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Organizadores: Giorgia dos Santos | Luciane Schutz Kruche | Márcia Beatriz Cerutti Müller BRASILEIRA DE SINAIS Cultura Surda e Língua UNIDADE 4 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias Prezado estudante, Estamos começando uma unidade desta disciplina. Os textos que a compõem foram organizados com cuidado e atenção, para que você tenha contato com um conteúdo completo e atualizado tanto quanto possível. Leia com dedicação, realize as atividades e tire suas dúvidas com os tutores. Dessa forma, você, com certeza, alcançará os objetivos propostos para essa disciplina. Objetivo Geral Refletir sobre a escola como espaço constituinte das subjetividades do sujeito surdo e de sua cultura. Objetivos Específicos • Conhecer e analisar percursos históricos da educação para pessoas surdas no Brasil e no mundo; • Refletir a escola na contemporaneidade e sua relação com a identidade e cultura surda. Questões Contextuais • Quais foram os desafios que as pessoas surdas enfrentaram para ter acesso à escolarização? • Qual é a importância da escola para a construção da identidade das crianças surdas? • Quais foram as fases da educação dos surdos? unidade 4 CULTURA SURDA E LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS | Márcia Beatriz Cerutti Müller 86 4.1 A Educação de Surdos em uma Perspectiva Mundial Figura 4.1 – Mundo. Fonte: Freepik (2020). Para iniciar os nossos estudos sobre a escola como espaço constituinte das subjetividades dos surdos, é importante fazer uma retomada da contextualização histórica da educação (que já iniciamos de maneira introdutória na Unidade 1), além de conhecer e analisar esses percursos. Essa retomada de conteúdo, por mais que possa soar repetitiva, nos possibilitará verificar como essas concepções influenciaram as identidades surdas. De acordo com Stuart Hall (2000, p. 108), “as identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência.” Conhecendo os processos históricos da escolarização das pessoas surdas e a forma como a sua linguagem foi se constituindo, é possível relacionar e fazer projeções futuras, pois as identidades são constituídas dentro do discurso, em locais históricos e institucionais específicos, entrelaçadas por relações de poder, na marcação da diferença (HALL, 2000). A história da educação de surdos foi permeada por estas relações de poder e pode-se perceber como esses laços constituíram a diferença surda e as suas implicações e reflexos nas identidades surdas. Sabe-se que, historicamente, as questões relacionadas com os sujeitos surdos foram atravessadas por diversas concepções que remontam desde a educação egípcia, a filosofia grega e o cristianismo. Outras influências ligadas à tecnologia, à medicina e aos interesses políticos exerceram forte influência sobre as abordagens educacionais relacionadas com a surdez e com os surdos. Ivan Ivan Ivan Ivan 87 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias | UNIDADE 4 Através de uma retrospectiva histórica, sabe-se que, na Idade Média, algumas culturas acreditavam que os surdos seriam seres místicos ou demoníacos. Figura 4.2 – Surdos na Idade Média: considerados místicos. Fonte: Shutterstock (2020). Percebam que na Grécia antiga, o valor estético do corpo forte e perfeito de combate nas guerras fazia com que todas aquelas pessoas que não estivessem dentro desses padrões fossem consideradas como um fardo para a sociedade e, por isso, condenadas à morte. À época também se acreditava que o pensamento estivesse condicionado à oralidade, e sob esta perspectiva, aquelas pessoas que não pudessem ter acesso aos sons e se expressar através da fala, estariam impossibilitados de se desenvolverem cognitivamente (PEREIRA et al., 2011). Figura 4.3 – Gregos Lutando. Fonte: Domínio Público (2020). CULTURA SURDA E LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS | Márcia Beatriz Cerutti Müller 88 Os registros históricos apontam que somente a partir do século XVI é que começam a aparecer os primeiros educadores de surdos. Um deles foi Pedro Ponce de Leon (1520- 1584), tutor espanhol, que destacou-se ensinando crianças surdas da nobreza. O seu método de ensino combinava os gestos com a oralidade e seu objetivo era ensinar seus alunos a falar, para que, assim, pudessem ter direito à herança (PEREIRA et al., 2011). Outro educador que dedicava-se a ensinar os surdos foi Juan Bonet (1579-1629). Em 1620, publicou um manual de ensino com língua de sinais própria: o qual era embasado pelo um alfabeto manual e pela leitura labial. Podemos citar, também, o educador francês Jacob Pereira (1715-1780), o alemão Johann Amman (1669-1724) e o britânico John Wallis (1616-1703) como os precursores da educação de surdos. Entretanto, apesar de usarem sinais, acreditavam que os surdos deveriam falar e que os sinais serviam apenas como ponte para a aquisição da oralidade. Por volta de 1760, na França, o abade Charles-Michel de L’Épée fundou a primeira escola para surdos – o Instituto de Surdos-Mudos de Paris. Este foi um marco importante na educação de pessoas surdas, pois utilizava a Língua de Sinais Francesa como a língua de instrução dos surdos. Figura 4.4 – Abade Michel de L’Épée. Fonte: Domínio Público (2020). Atualmente não se utiliza mais a expressão surdo-mudo. Hoje, sabe-se que as pessoas surdas têm um impedimento sensorial que interfere na sua audição e não na emissão dos sons. REFLETINDO Ivan Ivan Ivan Ivan Ivan 89 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias | UNIDADE 4 Destaca-se que, devido a sua importância, L’Épée foi considerado como o principal educador para a comunidade de surdos. Nesse instituto, eram ensinadas tanto as crianças da nobreza quanto as de outras classes sociais. Salienta-se que havia a participação de professores surdos no corpo docente desta instituição.Ressalta-se que essa escola foi referência para muitos outros países, sendo que L’Épée e seus seguidores eram convidados a participar da fundação de escolas para surdos em diversos países. O americano Thomas Gallaudet (1787-1851) foi um desses seguidores, que após ir até Paris e aprender os métodos educacionais utilizados naquela instituição, voltou aos Estados Unidos e fundou a primeira escola pública para surdos em seu país, escola que, até hoje, segue em funcionamento, chamada de University Gallaudet. Figura 4.5 – Universidade Gallaudet. Fonte: Wikimedia Commons (2020). Assista ao vídeo realizado pela TV INES. Lá você saberá mais sobre Charles- Michel de L’Épée e a sua importância na educação de surdos. Disponível em: http://gg.gg/m2ogl. VÍDEO Ivan Ivan Ivan CULTURA SURDA E LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS | Márcia Beatriz Cerutti Müller 90 Nessa mesma época, Thomas Braidwood, na Inglaterra, e Samuel Heinicke (1727-1790), na Alemanha, destacavam-se em seus respectivos países, ensinando os surdos com métodos baseados no oralismo, utilizando estratégias que privilegiam a fala e que proibiam o uso de qualquer tipo de sinalização. Vale ressaltar que havia duas correntes educacionais muito fortes: a língua de sinais, liderada por L’Épée, na França e o oralismo conduzido por Heinicke, na Alemanha. Uma se opunha a outra, pois aquelas pessoas que seguiam a abordagem oralista não aceitavam o uso de sinais na educação dos surdos. No ano de 1880 foi realizado o Congresso de Milão, na Itália. Foi decidido que a educação dos surdos seria realizada apenas através do oralismo e foi determinado que a oralização seria o único percurso educacional e que todas as escolas deveriam seguir tal resolução. Esta determinação refletiu mundialmente na educação dos surdos. Apenas os Estados Unidos permaneceram utilizando sinais em suas escolas. Os países europeus, por exemplo, adotaram o oralismo, proibindo qualquer utilização qualquer tipo de gesticulação. Figura 4.6 – Congresso de Milão. Fonte: Domínio Público (2020). Para saber mais sobre a Universidade Gallaudet, acesse o link da instituição. Disponível em:http://gg.gg/m2oja. SAIBA MAIS Ivan Ivan Ivan 91 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias | UNIDADE 4 O Congresso de Milão reuniu educadores de crianças surdas, mas os educadores surdos foram excluídos deste evento, sendo que apenas um professor surdo pôde participar. As opiniões das pessoas surdas foram desconsideradas e o discurso vinculado à reabilitação da fala dominou a educação de surdos. As escolas foram se transformando em clínicas, mais focadas em ensinar a falar do que preocupadas aos processos de ensino e aprendizagem dos estudantes que lá estavam inseridos. Pereira et al. (2011) nos revela o quanto foi perversa tal determinação, pois muitos professores surdos foram destituídos do seu trabalho, uma vez que as línguas de sinais foram proibidas nos espaços escolares. Em seu lugar, entrou o treinamento auditivo, o uso de próteses auditivas, leitura labial e exercícios fonoarticulatórios, todos visando a aquisição da linguagem oral. Com a aprovação do método oral, os professores surdos foram destituídos de seu papel de educadores e a língua de sinais foi proibida de ser usada pelos professores na educação e na comunicação com seus alunos surdos (PEREIRA et al., 2011, p. 10). O método oralista decidido pelo Congresso de Milão persistiu por aproximadamente cem anos. Segundo Skliar (1998), nesta época, os surdos foram privados de poder se expressar na sua língua natural, sendo forçados a exercitar a fala, que muitas vezes não lhes era significativa, pelo fato de não compreenderem os sons da linguagem oral. Esta concepção tinha uma visão clínica da surdez, na qual a surdez era considerada uma doença, que necessitava de terapia com fonoaudiólogo para recuperar a fala. [...] Foram mais de cem anos de práticas enceguecidas pela tentativa de correção, normalização e pela violência institucional, instituições especiais que foram reguladas tanto pela caridade e pela beneficência, quanto pela cultura social vigente que requeria uma capacidade para controlar, separar e negar a existência da comunidade surda, da língua de sinais, das identidades surdas e das experiências visuais, que determinam o conjunto de diferenças dos surdos em relação a qualquer outro grupo de sujeitos (SKLIAR, 1998, p. 7). Vale mencionar que, a partir desse congresso, iniciou-se uma época de decadência educacional dos surdos, pois eram privados de poder se expressar em sinais, estando em escolas que passaram a utilizar o oralismo puro como metodologia educacional em suas salas de aula. Sendo assim, os surdos não obtinham formação acadêmica adequada e de qualidade, o que desencadeou o fracasso educacional desse grupo. Ivan Ivan Ivan CULTURA SURDA E LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS | Márcia Beatriz Cerutti Müller 92 4.2 Abordagens Educacionais Para os Surdos A educação dos surdos sofreu a interferência de diversos fatores, sendo que, em determinadas épocas, as influências religiosa, médica, tecnológica, cultural e política exerceram muito poder, refletindo diretamente nos processos de escolarização dos estudantes surdos. Nesse sentido, é importante pontuar que o oralismo exerceu influência mundial até a década de 1960. À época, o linguista norte americano William Stokoe constatou, através de suas pesquisas, que a Língua de Sinais Americana possuía todas as características das línguas orais. O trabalho desenvolvido por ele serviu de referencial para diversas pesquisas da área (GUARINELLO, 2007). Figura 4.7 – Ouvindo os Sons. Fonte: Freepik (2020). Por volta da década de 1970, iniciou-se uma nova abordagem na educação de surdos, denominada Comunicação Total, a qual utilizava a fala e sinais como apoio para o ensino dos conteúdos escolares. Nesta modalidade, dava-se ênfase ao “treinamento auditivo” com o uso de aparelhos de amplificação sonora e exercícios orofaciais. Utilizou-se duas modalidades de linguagem, com estruturas diferentes, sendo que o principal objetivo continuava sendo a aquisição da língua oral. Na abordagem oralista era dada ênfase para a fala, sem o uso de nenhum gesto ou sinalização. DESTAQUE Ivan Ivan Ivan 93 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias | UNIDADE 4 Deste modo, os professores continuavam dando ênfase à fala, sem preocupar-se com a estrutura da língua de sinais. A comunicação entre os estudantes surdos e seus professores era falha e demorada, uma vez que a estrutura de comunicação utilizava a fala como base, desconsiderando a estrutura gramatical dos sinais, “omitindo a rica morfologia dos sinais e trocando a ordem dos sinais, tornando consequentemente a mensagem sinalizada quase imperceptível às crianças surdas e sem nenhuma ordem gramatical” (GUARINELLO, 2007, p. 32). Posteriormente, estudos realizados por linguistas ganharam destaque. As discussões sobre o Bilinguísmo para os surdos começam a surgir no cenário educacional a partir dos anos de 1980 e 1990. Na concepção de educação bilíngue para surdos, a primeira língua a ser adquirida pelos surdos é a língua de sinais e deve ser estimulada e desenvolvida o mais precocemente possível. A língua majoritária ouvinte deve ser ensinada como segunda língua, na modalidade escrita, sem a obrigatoriedade da aquisição da modalidade oral auditiva. Figura 4.8 – Sinalizando Eu te Amo. Fonte: Universidade La Salle (2020). Na abordagem da Comunicação Total, usava-se alguns sinais, mas a ênfase maior era para a fala. A estrutura linguística utilizada era a da linguagem oral. DESTAQUE Na abordagem bilíngue, a ênfase é para a língua de sinais como primeira língua, isto é: a L1 ou língua materna. DESTAQUE Ivan CULTURA SURDA E LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS | Márcia Beatriz Cerutti Müller 94 4.3 A Educação dos Surdos no Brasil O Brasil seguiu as perspectivas educacionais mundiais: teve influência francesa através do professor E. Huet, que a convite de D. Pedro II veio ao Rio de Janeiro e participou da fundação da primeira escola para surdos. Huet era surdo e havia sido aluno do Instituto Nacional de Paris. Por esse motivo, a língua de sinais brasileira teve uma forte influência da língua de sinais francesa. Em 1857, foi fundado o Imperial Instituto de Surdos-Mudos, atualmente denominado Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES, conforme você aprendeu na Unidade 1. Figura 4.9 – Instituto Nacional de Educação de Surdos - INES. Fonte: INES (2020). Essa escola recebia alunos surdos em regime de internato de muitas regiões do país, e quando voltavam às suas cidades de origem divulgavam os conhecimentos sobre a língua de sinais nas comunidades de origem. O Instituto ensinava os conteúdos acadêmicos e também o ensino profissionalizante. Sendo que, para as meninas, era ofertado o ensino em regime de externato. Para elas, também era destinado o ensino de bordado. Ivan Ivan 95 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias | UNIDADE 4 Figura 4.10 – Primeiro Documento Oficial da Instituição. Fonte: INES (2020). Após o Congresso de Milão, o Brasil também adotou o oralismo puro, no qual era proibido o uso de qualquer forma de gesticulação, sendo a língua de sinais proibida nas instituições escolares. Conforme Lulkin, [...] na prática escolar, a primeira medida educativa para coibir o uso da língua de sinais foi obrigar os alunos surdos a sentarem sobre suas mãos. Em seguida, retiraram-se pequenas janelas das portas das salas de aula para impedir a comunicação sinalizada entre os alunos. Os professores surdos e seus auxiliares deveriam deixar as escolas e os institutos (LULKIN, 2001, p. 38). A língua de sinais manteve-se viva através dos seus usuários, que a utilizavam apesar da sua proibição. Era a forma como os surdos se comunicavam (secretamente) nos recreios e nos corredores escolares, pois aqueles que eram surpreendidos utilizando os sinais eram castigados. Ivan Ivan CULTURA SURDA E LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS | Márcia Beatriz Cerutti Müller 96 Na época do oralismo e da comunicação total, a visão clínica da surdezse sobrepôs à pedagógica. Na visão clínica, a surdez é considerada uma doença que necessita de tratamento. Havia dentro das escolas mais preocupação com a aquisição da fala do que com os processos de aprendizagem dos estudantes surdos. Figura 4.11 – O caminho de aprendizagem dos estudantes surdos. Fonte: Shutterstock (2020). No Brasil, houve a criação de diversas escolas para surdos, sendo algumas públicas de âmbito estadual ou municipal, outras privadas, muitas vinculadas a congregações religiosas. Todas elas passaram pelas fases do oralismo, depois a comunicação total e mais recentemente o bilinguismo, conforme vimos anteriormente. Esss fases não são lineares e tampouco obedeceram a uma ordem cronológica, pois o nosso país é extenso e em algumas localidades o processo de mudança foi/está sendo mais longo e demorado. Atualmente, há lutas e discussões sobre a implementação de escolas bilíngues para surdos, nas quais a primeira língua deve ser a língua de sinais – a de acesso aos conteúdos curriculares – e a segunda a língua portuguesa, na modalidade escrita. Entretanto, ainda há muita polêmica, pois as escolas bilíngues são escassas e há muitos alunos surdos nas escolas comuns inclusivas. [...] entendo que um ponto forte da criança surda é, sem dúvida, a sua capacidade de desenvolver a língua de sinais da comunidade em que está inserida, não só porque tem maior predisposição para o processamento visual, mas principalmente porque é nessa língua que as interações, a comunicação podem acontecer (SILVA, 2000, p. 48). A educação das pessoas surdas passou, e ainda passa, por diversos desafios e obteve muitas conquistas. Contudo, há muito o que se discutir para poder ampliar as concepções sobre a escolarização dos sujeitos surdos. Ivan Ivan Ivan Ivan 97 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias | UNIDADE 4 4.4 Relação In/Exclusão A temática da inclusão possibilita muitos debates nas instituições escolares. Na atualidade, problematiza-se sobre as questões relacionadas com a inclusão dos surdos nas escolas regulares. As legislações mais atuais preveem que, para a inclusão dos alunos surdos nas escolas comuns e educação bilíngue (Língua Portuguesa/Libras), o programa escolar deve contemplar o acesso ao ensino escolar na Língua Portuguesa como segunda língua, na modalidade escrita, e a Libras, como primeira língua. Também há destaque para a necessidade do profissional tradutor intérprete de Libras, e também para o ensino dessa língua aos demais alunos da escola. É prevista a oferta do atendimento educacional especializado, na modalidade oral, escrita e na língua de sinais. Porém, o que se tem percebido é que, na grande maioria das escolas de educação básica, quando o aluno surdo é incluído em turmas comuns de ensino, ocorre o apagamento da surdez, pois a diferença surda, que é marcada pela língua de sinais, não é respeitada, apesar de haver determinações legais para inclusão dos estudantes surdos. Na maioria das escolas não há a presença da Libras, nem de intérpretes ou instrutores surdos. Nesse contexto, observa-se uma situação de exclusão ao incluir o aluno surdo em uma escola comum, pois estará vivenciando uma situação de exclusão, sem ter a sua língua respeitada. Figura 4.12 – O que estão falando? Fonte: Freepik (2020). Ivan Ivan CULTURA SURDA E LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS | Márcia Beatriz Cerutti Müller 98 Ocorre que, ao considerar o surdo como um ouvinte, a escola utiliza-se do lema Escola para Todos; mas ela nega a existência da diferença e trata todos de forma igual, mas indiferente às capacidades de cada estudante. Respeitar a diferença significa “deixar que o outro seja diferente, deixar ser uma diferença que não seja, em absoluto, diferença entre identidades, mas diferença da identidade” (PARDO, 1996, p. 154, apud SILVA, 2000, p. 101), deixar que o diferente tenha a sua própria diferença, sem comparações e sem descaracterização ou inferiorização. No caso dos surdos, deixar que a diferença surda seja marcada pela língua de sinais nos currículos escolares (KRUCHE, 2016). Skliar (1997), em seus estudos, apresenta que os surdos já foram muitas vezes comparados aos ouvintes: “[...] a pedagogia para surdos se constrói, implícita ou explicitamente, a partir das oposições binárias normalidade/anormalidade, saúde/patologia, ouvinte/surdo, maioria/minoria, oralidade/gestualidade etc” (SKLIAR, 1997, p. 9). Nessa divisão, o surdo é comparado ao ouvinte e inferiorizado; ele sempre apresenta um déficit em relação ao ouvinte e deve tentar suprir essa falta, por meio do uso de próteses auditivas e treinamento da fala. Essa visão é inerente tanto à escola regular como à especial, que durante muito tempo e, algumas até hoje, tiveram a percepção clínica do surdo e da surdez. Esse sujeito, sob essa perspectiva, acaba sofrendo com o ouvintismo. Contudo, não se trata de questionar a inclusão do surdo dentro da escola regular, ou a sua exclusão, mas sim problematizar as relações de poder que se estabelecem a partir da ideia da falta, da carência, o que impossibilitaria esse sujeito de participar do processo de escolarização (KRUCHE, 2016, p. 24). É um grande desafio compreender a surdez como uma diferença cultural e linguística. O ambiente escolar precisa ser acolhedor para que o estudantes surdos possam transitar, vivendo essa diferença. Aceitar o surdo é aceitar a sua língua e sua cultura, entendendo que, para esse grupo, a visualidade da língua de sinais é o que marca a diferença e que também facilita a sua inclusão nos espaços escolares. Ivan Ivan Ivan 99 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias | UNIDADE 4 “Sourd et Malentendus” (Sou surdo e não sabia) é uma boa dica de filme. Por vários anos, Sandrine não sabia que era surda. Surda de nascença, ela é filha de pais ouvintes. Chegou a freqüentar a escola regular, e lá se perguntava como os outros compreendiam o que a professora estava tentando transmitir. Como uma pessoa surda descobre que pessoas se comunicam através de sons, que o movimento dos lábios que eles vêem produz palavras e comunicação? Esse documentário olha para a questão a partir de dentro, pela perspectiva de Sandrine e sua história verídica. Paralelamente ao relato da autonomia conquistada com a língua de sinais, o filme levanta a discussão sobre a conveniência do implante coclear e da oralização de crianças surdas” (retirado do site do festival Assim Vivemos). Dirigido por Igor Ochronowicz, o filme documental “Sou surdo e não sabia” traz interessantes reflexões sobre temas atuais como educação de surdos, inclusão e luta por direitos. Disponível em: http://gg.gg/m2par. Figura 4.13 – Sou Surdo e não sabia. Fonte: Cultura Surda (2012). DESTAQUE Ivan CULTURA SURDA E LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS | Márcia Beatriz Cerutti Müller 100 4.5 Língua, Identidade e Cultura Surda Para melhor contextualização, são estabelecidas algumas considerações sobre a utilização do termo surdo, o qual remete à visão socioantropológica e enfatiza as questões culturais e de identidade. A língua de sinais constitui fortemente a identidade deste grupo cultural. É através dessa forma de comunicação que os surdos constroem as suas identidades, seus jeitos de ser e estar no mundo, identidades diferenciadas, multifacetadas e construídas de acordo com as experiências vivenciadas. [...] as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação (HALL, 2000, p. 108). O contato dos surdos com as manifestações culturais dos próprios surdos é necessário para a construção da sua identidade, possibilitando que ele tenha com quem se autoidentificar como diferente e comosurdo, podendo construir uma relação de identificação e construção de identidade cultural surda (PERLIN, 2000). É no encontro com seus pares surdos, e com os adultos surdos, que a comunidade de surdos interage e que a língua de sinais se desenvolve e obtém o seu papel de ligação entre os surdos e de formação das múltiplas identidades surdas. Figura 4.14 – Sinalizando Borboleta. Fonte: Universidade La Salle (2020). Ivan Ivan Ivan Ivan 101 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias | UNIDADE 4 O papel da escola é importante, pois, além dos conhecimentos formais, é na escola que a língua de sinais pode ser proporcionada às crianças surdas, e é através do contato com os seus pares, com adultos surdos e pessoas f luentes em Libras, que as crianças surdas poderão adquirir o desenvolvimento linguístico em Libras. Assim, estarão em contato com modelos linguísticos que lhes darão o suporte necessário para a educação bilíngue. É através da língua de sinais que as crianças poderão ter um desenvolvimento de linguagem saudável, que trará o desenvolvimento cognitivo e a preparação para a leitura, a escrita e a aquisição dos conteúdos curriculares. Para que a criança possa ter um desenvolvimento cognitivo-linguístico, é necessário que tenha acesso precoce à língua de sinais. Entretanto, ainda é comum crianças em idade escolar tendo os primeiros contatos com a língua de sinais ao ingressarem na escola. Por isso, são necessárias algumas considerações sobre como se dá o acesso delas aos sinais, considerando que a criança em fase inicial de escolarização já deveria ter a linguagem em avançado processo de desenvolvimento, ocorrendo, na escola, a ampliação do seu repertório linguístico e a continuação ao que foi estimulado pelos familiares. Contudo, crianças surdas têm chegado à escola sem um desenvolvimento de linguagem que lhes deem o suporte necessário para significar o mundo que as cercam. Elas acabam utilizando uma linguagem com sinais caseiros (combinações feitas pela família), que conseguem designar um vocabulário extremamente básico, mas que não dão conta de abstrair nem de fazer relações e ampliar o repertório em sinais. [...] muitos pais criaram e desenvolveram um sistema de comunicação gestual com seus filhos surdos. Estes sistemas – por mais que se insista em descrever e em pesquisar sua notável complexidade semântica e gramatical- não conduzem a criança surda a um processo formal de aquisição de informações linguísticas e sócio-culturais (SKLIAR, 1997, p. 130). Por isso, é necessário o compartilhamento de práticas culturais que possam inserir a criança surda para que ela vá elaborando e construindo significados da cultura ouvinte. Sendo assim, a escola precisa pensar em possibilidades de como fazer para que essa criança possa desenvolver a linguagem de forma satisfatória. Nesse sentido: A adoção da língua de sinais na educação de surdos possibilitou que as crianças surdas tivessem acesso a uma língua que, por ser visual, não lhes oferece nenhuma dificuldade para ser adquirida. No entanto, para que a aquisição se dê de forma eficaz faz-se necessário que a criança surda seja inserida em atividades que privilegiem diálogos e textos e não sinais isolados (PEREIRA et al., 2011, p. 83). Ivan Ivan CULTURA SURDA E LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS | Márcia Beatriz Cerutti Müller 102 O contato dos surdos com as manifestações culturais dos próprios surdos é necessário para construção da sua identidade. Nesse sentido, objetivando uma escrita que pudesse abranger toda a complexidade da percepção visual, foi desenvolvido o trabalho de pesquisa em SignWriting (SW), uma escrita que representa os sinais viso- espaciais utilizados pela comunidade de surdos para se comunicarem, possibilitando o desenvolvimento da sua identidade e sua língua. Figura 4.15 – SignWriting. Fonte: SignWriting (2020). Para saber mais sobre esta escrita, confira a tese “Aprendizagem de escrita de língua de sinais pelo sistema SignWriting: língua de sinais no papel e no computador”. SignWriting deu atenção especial a esta temática em pesquisas para a sua tese de Doutorado, na qual trabalhou com a aquisição do sistema SignWriting (SW) (escrita dos sinais). Disponível em: http://gg.gg/m2ppc. SAIBA MAIS Ivan Ivan 103 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias | UNIDADE 4 Com relação à literatura brasileira, há pouco acervo que aborda a surdez ou que personagens surdos estejam presentes. Como já vimos na Unidade 1, pode-se citar o livro de literatura infantil brasileiro, escrito em língua de sinais “Rapunzel Surda” (2004), que é uma releitura do tradicional conto de fadas, no qual são inseridos elementos da cultura e identidade surda. Essa história é acompanhada da escrita em língua portuguesa e da escrita dos sinais (SW), bem como de ilustrações. Esse livro é uma releitura do clássico conto de fadas e é resultado de estudos envolvendo pesquisadores surdos e ouvintes. Nessa mesma linha, o livro “Cinderela Surda” (2003) traz personagens surdos para dentro da literatura infantil, também em uma adaptação do conto de fadas. Outro livro que traz elementos importantes da cultura surda e da surdez é “Tibi e Joca-uma história de dois mundos” (2001). Essa obra aborda a descoberta da surdez por uma família de ouvintes e o choque que esse fato causa. O diferencial desse livro é que nele não há o texto escrito em português e os personagens contam a história através dos sinais e da riqueza das ilustrações. Figura 4.16 – Capa do Livro Tibi e Joca. Fonte: Bisol (2001). O Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES foi uma das primeiras instituições a empreender esforços para a elaboração de livros acessíveis em Libras. Empenharam-se em produzir filmagens em VHS e, atualmente, produzem DVDs e materiais diversos disponibilizados no YouTube, constituindo-se como referência na confecção de materiais acessíveis em Libras. Esses materiais são produzidos numa parceria entre surdos e ouvintes. CULTURA SURDA E LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS | Márcia Beatriz Cerutti Müller 104 Algumas editoras também vêm atuando na confecção de materiais acessíveis em Libras, realizando um trabalho embasado na cultura surda e com a participação deste grupo. Podemos citar: “Peter Pan” (2011), “Alice no país das Maravilhas” (2015), “O Caso da Vara” (2005) e “A Missa do Galo” (2005). Figura 4.17 – Capa do livro “Alice para crianças”. Fonte: Editora Arara Azul (2015). Figura 4.18 – Capa do DVD “Caso da Vara”. Fonte: Editora Arara Azul (2005). 105 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias | UNIDADE 4 Nessa perspectiva, ressalta-se a importância de que os surdos procuram viver e estar em grupos, nos quais a língua de sinais seja respeitada e utilizada como a língua principal, pois é através dela que conseguem significar o mundo e a si próprios. É pela língua que a interação e as aprendizagens podem ocorrer, como marcas culturais da identidade surda e dessa diferença linguística. Para finalizar, é necessário que a escola potencialize o acesso aos conhecimentos em língua de sinais, refletindo sobre a importância da visualidade na educação de surdos. É através da linguagem que os sujeitos podem adquirir as capacidades que lhes darão o suporte necessário para o desenvolvimento de seus processos de ensino e aprendizagem. É fundamental que você reflita sobre a história da educação de surdos, a importância da escola, da língua de sinais e a sua relação com a construção da identidade e a cultura surda. Lembrando de Paulo Freire, o desafio é propor que você possa disseminar os conhecimentos adquiridos para transformar o “mundo” e torná-lo mais acessível e inclusivo. Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente e ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerente (FREIRE,2000, p. 33). REFLETINDO Ivan Ivan CULTURA SURDA E LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS | Márcia Beatriz Cerutti Müller 106 Síntese da Unidade Nesta Unidade buscamos retomar alguns aspectos já trabalhados na Unidade 1 para conhecer, compreender e analisar a história da educação das pessoas surdas, entendendo o quanto esse percurso histórico exerceu influência na constituição da identidade dos surdos. Conhecemos um pouco sobre a história da educação dos surdos em uma perspectiva mundial e também brasileira. Estudamos sobre as principais escolas e os sobre os principais educadores de surdos. Compreendemos as fases da educação de surdos desde o Oralismo, Comunicação Total e Bilinguismo. Problematizamos a questão da inclusão de crianças surdas no ensino regular e os reflexos dessa escolarização na aquisição da linguagem. Além disso, foi possível compreender a importância da educação bilíngue para para a comunidade surda e a para o fortalecimento da identidade e cultura surda. Ivan Ivan Ivan Ivan 107 Surdez e Educação: Reflexões Necessárias | UNIDADE 4 Bibliografia BISOL, C. Tibi e Joca: Uma história de dois mundos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2001. DIAS SILVA, R. Língua brasileira de sinais: Libras. São Paulo: Pearson, 2016. FREIRE, P. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. GUARINELLO, A. C. O papel do outro na escrita de sujeitos surdos. São Paulo: Plexus, 2007. HALL, S. Quem precisa da identidade? IN: Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. SILVA, T. T. da. (org.), Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. INES – INSTITUTO NACIONAL DE EDUCAÇÃO DOS SURDOS. Dicionário de Libras. Brasília, Portal, 2020. Disponível em: http://gg.gg/m2q10. Acesso em: 10 ago. 2020. KRUCHE, L. S. Língua portuguesa para surdos: estratégias e adaptações de materiais acessíveis em Libras. Dissertação (Mestrado em Diversidade Cultural e Inclusão Social) – Feevale, Novo Hamburgo – RS, 2016. LACERDA, C. B.; SANTOS, L. 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