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Seção 2 Sistema Circulatório 31 Envelhecimento Cardiovascular Izo Hélber • Geovana de Arruda João • Abrahão Afiune (in memoriam) Introdução A prevalência de doença cardiovascular (DCV) aumenta progressivamente com a idade, e as pessoas com mais de 65 anos de idade representam mais da metade de todas as hospitalizações e procedimentos cardiovasculares nos EUA, além de aproximadamente 80% de todas as mortes cardiovasculares (Benjamin et al., 2019). Embora as pessoas com 75 anos de idade ou mais representem apenas 6% da população total, mais de 50% das mortes cardiovasculares ocorrem nessa faixa etária. De fato, o câncer é a principal causa de morte nos EUA em adultos entre 18 e 74 anos de idade, e é somente após os 75 anos de idade que as DCV se tornam a causa dominante de mortalidade (Heron, 2010). A taxa de prevalência é maior que 70% de 60 a 79 anos de idade e maior que 80% a partir dos 80 anos de idade, tendo como a principal causa de morte a doença arterial coronariana (DAC; 43,2%), seguida por acidente vascular encefálico (AVE; 16,9%), hipertensão arterial (9,8%), insuficiência cardíaca congestiva (ICC; 9,3%), doença arterial (3%) e outras (17,7%) (Benjamin et al., 2019). A DCV também é uma das principais causas de incapacidade crônica, perda de independência e pior qualidade de vida entre os idosos. Mesmo sem fatores de risco sistêmicos associados, o envelhecimento promove deteriorações cardíacas estruturais e funcionais nos idosos. Em geral, acredita-se que o aumento da prevalência de doenças e da mortalidade nos idosos tenha início com o envelhecimento em nível celular. Os principais mecanismos que promovem o envelhecimento do coração e suas células constituintes são alterações na degradação intracelular de proteínas (autofagia), aumento do estresse oxidativo mitocondrial, modificações no comprimento dos telômeros, mudanças na sinalização do fator de crescimento semelhante à insulina tipo 1 (IGF-1), alterações na quantidade de fator de diferenciação do crescimento 11 (GDF-11) e variações nas vias de sinalização da proteinoquinase ativada por monofosfato de adenosina (AMPK). Como consequência dessas alterações, haverá uma transformação estrutural em vasculatura, anatomia cardíaca (átrios, ventrículos, válvulas, miocárdio, pericárdio e sistema de condução) e sistema nervoso autônomo. Portanto, intervenções para combater o envelhecimento cardíaco não apenas melhorarão a expectativa de vida dos idosos, como também poderão prolongar a vida útil, retardando as mortes relacionadas com DCV (Tabela 31.1). Mecanismos moleculares e processos celulares do envelhecimento cardíaco O envelhecimento cardíaco é um processo lento e heterogêneo que afeta a integridade do sistema cardiovascular na ausência de qualquer doença (Czuriga et al., 2011), caracterizado pela incapacidade do coração de manter uma função adequada em resposta a um maior estresse ou carga de trabalho, como isquemia ou exercício. A senescência celular foi originalmente descrita como um processo que limita a divisão de células humanas normais em cultura (Hayflick, 1965), e sua definição foi expandida para incluir a interrupção do crescimento causada por diversas alterações celulares, incluindo estresse oxidativo e danos ao ácido desoxirribonucleico (DNA) (Takahashi, 2012). O estresse oxidativo é uma condição biológica em que ocorre desequilíbrio entre a produção de espécies reativas de oxigênio (ERO) e a sua eliminação pelos sistemas (enzimáticos ou não enzimáticos) que removem ou reparam os danos por elas causados. Sob condições fisiológicas, as ERO em baixas quantidades desempenham um papel importante na sinalização e funcionalidade celular e mitocondrial; no entanto, em grande quantidade, podem causar danos a tecidos e células, mantendo um ciclo aditivo de inflamação e estresse oxidativo. Além disso, estão implicadas no envelhecimento do sistema cardiovascular, principalmente na patogênese de ICC, aterosclerose e infarto agudo do miocárdio (Brown; Griendling, 2015). Na ICC, a capacidade antioxidante das mitocôndrias nos miócitos é prejudicada, levando a um excesso de produção e eliminação diminuída das ERO, que desencadeia a morte celular e a disfunção do ventrículo esquerdo (VE). Finalmente, as ERO promovem a aterosclerose, desempenhando um papel fundamental na oxidação do colesterol da lipoproteína de baixa densidade (LDL-c), e este, quando oxidado, é absorvido pelos monócitos da parede vascular. Uma vez dentro da camada íntima, os monócitos se diferenciam em macrófagos e interiorizam as lipoproteínas modificadas, tornando-se células espumosas. A evidência de células espumosas na parede arterial é uma característica da lesão aterosclerótica inicial (Kattoor et al., 2017). Tentativas de tratamento profilático de doenças com antioxidantes têm sido amplamente ineficazes e, em alguns casos, prejudiciais (Steinhubl, 2008). As conexões entre estresse oxidativo, biologia dos telômeros e senescência celular são complexas. Telômeros são regiões do DNA com proteínas associadas localizadas nas extremidades dos cromossomos que participam da manutenção da estabilidade e replicação genômica e celular. A divisão celular e o envelhecimento são as causas mais importantes do encurtamento dos telômeros. A capacidade regenerativa cai de 1% aos 20 anos de idade para 0,4% aos 75 anos de idade (Bergmann et al., 2009). Vários estudos demonstraram que telômeros curtos induzem declínio funcional no sistema cardiovascular (Moslehi et al., 2012; Sahin; DePinho, 2010). O seu encurtamento tem sido associado a DAC e aumento de mortalidade, além de forte associação a calcificação e extensão coronariana (Kark et al., 2013). Nos tecidos vasculares, os telômeros encurtados estão associados a maior presença de aterosclerose (Sack et al., 2017). ■ TABELA 31.1 Principais mecanismos envolvidos no envelhecimento cardíaco. Degradação intracelular de proteínas (autofagia) Aumento do estresse oxidativo mitocondrial Modificações no comprimento dos telômeros Mudanças na sinalização do fator de crescimento (IGF-1) Alterações na quantidade de fator de diferenciação do crescimento (GDF-11) Variações nas vias de sinalização da proteinoquinase ativada por monofosfato de adenosina (AMPK) IGF-1: fator de crescimento semelhante à insulina tipo 1. O encurtamento e a disfunção dos telômeros são afetados por vários fatores, independentemente da idade. Desses fatores, alguns são modificáveis (Tabela 31.2), mas a maioria não é modificável (Tabela 31.3). Fármacos que visam à manutenção de telômeros podem, em teoria, oferecer novas estratégias para a prevenção e tratamento de DCV relacionadas com a idade. Inibidores do sistema renina- angiotensina-aldosterona (Imanishi et al., 2005; Feng et al., 2011) e estatinas (Spyridopoulos et al., 2004) foram associados à manutenção do seu comprimento em alguns estudos. Outros três mecanismos reguladores do processo de senescência celular seriam via insulina/IGF-1, autofagia e gatilhos da fibrose cardíaca (GDF-11 e AMPK). O IGF-1 tem ação proeminente no sistema cardiovascular, mas seu papel no envelhecimento cardíaco permanece incompleto. Seu nível circulante atinge um pico na puberdade e diminui constantemente até a sexta década de vida. Muitos estudos sugerem que tenha um potencial antiaterogênico. Baixos níveis associaram-se a maiores riscos de DAC e ICC (Lee; Kim, 2018; Vasan et al., 2003). No entanto, em outros estudos de superexpressão, a sua sinalização causa hipertrofia cardíaca e ICC (North; Sinclair, 2012). Dados conflitantes sobre a repercussão no sistema cardiovascular vinculada aos níveis de IGF-1 são reflexo do antagonismo pleiotrópico, que apresenta certos efeitos que beneficiam o coração e outros efeitos que refletem danos (Milman et al., 2016). Define-se como autofagia a degradação dos componentes citoplasmáticos, promovendo liberação de proteínas citotóxicas e organelas danificadas. Durante o envelhecimento, há uma diminuição da autofagia, atenuando a resposta imune e acentuando a resposta inflamatória.lesão vascular envolvendo dano à camada média, que estimula a trombose, resultando em SCA instáveis ou outro evento aterosclerótico (dependendo da localização). O endotélio, que é a camada interna do vaso e se estima cobrir cerca de 700 m2 e pesar 1,5 kg, tem como funções: ■ Propiciar uma superfície não trombogênica: por meio da produção de derivados da prostaglandina (como a prostaciclina e o inibidor da agregação plaquetária) e do sulfato de heparina e sua cobertura ■ Secretar o mais potente vasodilatador: o fator relaxante derivado do endotélio (EDRF) – uma forma do óxido nítrico, que mantém o balanço entre vasoconstrição e vasodilatação, auxiliando a homeostase arterial ■ Secretar agentes efetivos na lise dos trombos de fibrina: plasminogênio e materiais pró- coagulantes como o fator de von Willebrand e o inibidor da ativação do plasminogênio tipo 1 (PAI-1) ■ Secretar citocinas e moléculas de adesão celular vascular (VCAM-1) e de adesão intercelular (ICAM-1) ■ Secretar agentes vasoativos: endotelina, angiotensina II (A-II), serotonina e o fator de crescimento derivado da plaqueta (PDGF). Com esses mecanismos citados anteriormente, o endotélio regula o tônus vascular, a ativação plaquetária, a adesão dos monócitos, a inflamação, a trombogenicidade, o metabolismo lipídico, o crescimento celular e a remodelação vascular (Drexler, 1998; Deanfield et al., 2007). Em resposta aos diversos estímulos lesivos, a célula endotelial modula suas propriedades no sentido de restaurar a homeostase vascular, por meio de alterações fenotípicas temporárias que não comprometem a posterior restauração da função endotelial. Contudo, em certas condições patológicas, como na aterosclerose, a função da célula endotelial ficará comprometida cronicamente, favorecendo o desenvolvimento e a progressão das patologias. Como já ressaltamos, a disfunção endotelial (Figura 35.2) é o passo inicial que promove a difusão dos lipídios e das células inflamatórias (monócitos, linfócitos T) para o espaço subendotelial. A secreção de citocinas e os variados fatores de crescimento promovem migração intimal, proliferação das CML e acúmulo de colágeno, monócitos e outras células, formando o ateroma (Drexler, 1998; Deanfield et al., 2007). Papel da lipoproteína de baixa densidade O LDL-c modificado por um processo de oxidação de baixo grau é captado pelo receptor de LDL, internalizado e transportado pelo endotélio, acumulando-se na íntima. Já no espaço subendotelial, essas lipoproteínas modificadas agem como estimulador crônico do sistema imune inato e adaptativo (Bentzon, 2014), promovendo a produção de citocinas e recrutamento de monócitos pelas células vasculares, causando oxidação adicional (Steinberg; Lewis, 1997). As LDL extensivamente oxidadas – LDL-ox (extremamente aterogênicas) – são fagocitadas pelos macrófagos e agem conforme da seguinte maneira: ■ Ligam-se aos receptores scavenger dos macrófagos, transformando-se nas chamadas células espumosas ■ FIGURA 35.1 Processo de desenvolvimento da lesão aterosclerótica. ■ FIGURA 35.2 Endotélio “ativado”. IL: interleucina; TNF-α: fator de necrose tumoral alfa; MCP-1: proteína 1 quimiotática de monócitos; PDGF: fator de crescimento derivado das plaquetas; FGF: fator de crescimento de fibroblastos. ■ Aumentam a produção endotelial de moléculas de adesão leucocitária, citocinas e fatores de crescimento, que regulam a proliferação das CML, degradação do colágeno e trombose ■ Inibem a atividade do óxido nítrico e aumentam a geração de espécies reativas de oxigênio, alterando a vasodilatação endotélio-dependente ■ Alteram a resposta das CML ao estímulo da A-II (aumentando sua concentração); as CML que proliferam na íntima para dar forma aos ateromas avançados são derivadas, originalmente, da camada média ■ Induzem e aumentam a expressão de moléculas de adesão: VCAM-1 e ICAM-1, também conhecida como CD54 ■ Induzem e a aumentam a expressão da MCP-1, também conhecida como CCL2 ■ Ligam-se aos complexos proteoglicanos aos quais são fortemente glicosilados. Atualmente, a teoria de que o acúmulo de CML na íntima representa condição sine qua non das lesões avançadas é aceita integralmente, bem como o papel das LDL-ox como precursoras da formação da placa (Bentzon, 2014). A despeito das diferentes causas de lesão ao endotélio, o que acontece a seguir é o aumento de expressão das moléculas de adesão, da permeabilidade endotelial e da transmigração do LDL-c para dentro da íntima, bem como a diminuição do óxido nítrico. Histologicamente, isso pode ser visto como um espessamento intimal (Stary, 1994). A próxima etapa é a migração de partículas de LDL-c através da camada endotelial para a íntima, onde estarão sujeitas a alterações na sua estrutura por variados fatores, e um deles é a oxidação por produtos derivados do estresse oxidativo. Monócitos, macrófagos e inflamação Os monócitos apresentam papel crítico em todas as etapas da aterosclerose e são atraídos para áreas lesionadas pelas moléculas quimiotáticas secretadas pelas células endoteliais (Figura 35.3). Nessas regiões, ao se ligarem às moléculas de adesão na região subendotelial, após diapedese, transformam-se em macrófagos (Figuras 35.4 e 35.5). Os macrófagos (derivados dos monócitos) induzem um aumento da expressão dos receptores scavenger (lixeiro) aumentando sua capacidade de internalizar partículas de LDL-ox (modificado) e fragmentos de células apoptóticas (Figura 35.6). A permeabilidade endotelial às LDL é influenciada pela inflamação local e sistêmica. Os macrófagos repletos desses produtos da fagocitose dão origem às células espumosas. Essas células denunciam a ocorrência de um processo inflamatório decorrente das lipoproteínas. ■ FIGURA 35.3 Lipoproteínas de baixa densidade (LDL) modificadas estimulam a expressão da proteína 1 quimiotática dos monócitos (MCP-1) na célula endotelial. MCP-1 perpetua o processo, atraindo cada vez mais monócitos para o espaço subendotelial. ■ FIGURA 35.4 Recrutamento dos monócitos pelas moléculas de adesão das células endoteliais. ICAM-1: molécula 1 de adesão intercelular; VCAM-1: molécula 1 de adesão celular vascular. ■ FIGURA 35.5 Diferenciação dos monócitos em macrófagos. LDL: lipoproteína de baixa densidade; MCP-1: proteína 1 quimiotática dos monócitos. Os macrófagos têm papel central na formação das estrias gordurosas e na progressão e no agravamento da placa aterosclerótica como será demonstrado adiante. Os receptores scavenger também exercem um papel na sinalização celular. Os macrófagos secretam citocinas e quimiocinas pró-inflamatórias (interleucinas 1, 6, 12, 15, 18 [IL-1, IL-6, IL-12, IL-15, IL-18], fator de necrose tumoral alfa [TNF-α] e fator inibidor de migração de macrófago), e também anti-inflamatórias (interleucina 10 [IL-10] e fator transformador do crescimento beta [TGF-β]) bem como fator de crescimento vascular endotelial (VEGF) (Figura 35.7). Os macrófagos podem assumir um fenótipo pró-inflamatório (tipo M1 em analogia ao perfil Th1 dos linfócitos T helper) com produção de IL-1β, IL-2, TNF-α, MCP-1 e quimiocinas, provocando um estado pró- ate-rogênico. O fenótipo dos macrófagos sofre influência das lipoproteínas e o fenótipo M2 apresenta efeitos antagônicos ao M1. Citocinas anti-inflamatórias, como IL-4, IL-10, e o TGF-β estão associados aos macrófagos do fenótipo M2 e, junto das CML, diminuem o grau da inflamação nas placas (Libby, 2001; Tabas et al., 2016). ■ FIGURA 35.6 Macrófagos expressam receptores que atraem as lipoproteínas de baixa densidade modificadas. LDL: lipoproteína de baixa densidade; MCP-1: proteína 1 quimiotática dos monócitos. Em decorrência dessa cascata inflamatória, induzida pelo LDL-ox e perpetuada pelos macrófagos; estes na presença de linfócitos T e CML da parede arterial repletos de gordura na forma de colesterol livre e esterificado se transformam nas células espumosas, que ao se acumularem darão origem às estrias gordurosas (fatty streak) (Stary, 1994). Desse modo, a resposta inflamatória induzida pela absorção das LDLmodificadas pelos macrófagos recruta mais macrófagos, células T, CML e, em adição, um aumento ainda mais importante das moléculas de adesão endotelial e aumento na permeabilidade endotelial. As substâncias citotóxicas, relacionadas inicialmente com a ação dos macrófagos, ligam-se às partículas de LDL-ox, promovendo um ciclo vicioso no qual mais macrófagos são atraídos. Com a continuação desse processo, as células espumosas se agregam formando os núcleos lipídicos das placas ateroscleróticas. ■ FIGURA 35.7 Macrófagos e células espumosas expressam fatores de crescimento e proteinases. LDL: lipoproteína de baixa densidade; MCP-1: proteína 1 quimiotática dos monócitos. Núcleo lipídico e formação da capa fibrosa O acúmulo das células espumosas na íntima, descritas anteriormente, resulta na formação das estrias gordurosas ou xantomas. Os xantomas são benignos, reversíveis e observados em aortas de fetos e recém-nascidos, provavelmente, como reflexo do risco cardiovascular da mãe. Contudo, podem reaparecer na adolescência ou vida adulta em regiões propensas às lesões ateroscleróticas (Bentzon, 2014). Para o desenvolvimento da capa fibrosa é necessário a migração das CML da camada média do vaso para a íntima, onde se depositam e secretam colágeno. Essas células são as responsáveis pela formação de uma parede/capa que irá separar o conteúdo lipídico do sangue circulante. As características da capa fibrosa serão um dos fatores responsáveis pela estabilidade ou instabilidade da placa aterosclerótica. Apesar da natureza sistêmica da aterosclerose, sua distribuição é multifocal e heterogênea, com múltiplas lesões em diferentes estágios de progressão coexistindo em um mesmo indivíduo e, certamente, em uma mesma artéria em um único ponto ao mesmo tempo. Stary et al. propuseram uma classificação histopatológica das lesões ateroscleróticas (Steinberg; Lewis, 1997): ■ Lesão tipo I: endotélio expressa moléculas de adesão E-selectina e P-selectina, atraindo mais células polimorfonucleares e monócitos para o espaço subendotelial ■ Lesão tipo II: macrófagos iniciam intenso processo de fagocitose das LDL (estria gordurosa) ■ Lesão tipo III: continuação do processo descrito antes – formação de células espumosas ■ Lesão tipo IV: exsudato lipídico para o espaço extracelular e início do aglomerado lipídico para a formação do core ■ Lesão tipo V: CML e fibroblastos se movimentam, formando fibroateromas com core lipídico (soft) e capa fibrosa ■ Lesão tipo VI: ruptura da capa fibrosa, resultando em trombose ■ Lesão tipos VII e VIII: as lesões estabilizam-se, transformando-se em fibrocalcificadas (tipo VII) e, em última instância, lesão fibrótica com conteúdo extenso de colágeno (tipo VIII). As placas ateroscleróticas podem ser classificadas em estrias gordurosas, placas fibróticas e placas complexas, como demonstrado na Tabela 35.2. Até a formação do ateroma, considera-se que a aterosclerose esteja em estágio inicial, com possibilidades de reversão ou evolução para estágios subsequentes. Após a instalação do ateroma propriamente dito, o processo morfológico passa a ser irreversível, podendo ocorrer dois tipos de evolução: uma progressão intermediária, em que se segue a história natural (sem predefinição de tempo) e outra rápida, na qual a qualquer momento poderá ocorrer instabilidade e ruptura da placa. ■ TABELA 35.2 Classificação das placas ateroscleróticas. Estrias gordurosas (inicial) Lesão tipo I (inicial) Lesão tipo II (estria gordurosa) Placas fibrosas (intermediária) Lesão tipo III (pré-ateroma) Lesão tipo IV (ateroma) Placas complexas (avançada) Lesão tipo V (fibroateroma) Lesão tipo VI (complicada) Lesão tipo VII (calcificada) Lesão tipo VIII (fibrosada) A principal alteração no interior da íntima arterial durante o desenvolvimento da placa fibrótica é a proliferação das CML. Já a lesão complexa é uma placa fibrosa que exibe extensa degeneração, com necrose, fissuras e defeitos que produzem irregularidades em sua superfície luminal, servindo de locais para aderência de plaquetas, agregação plaquetária e formação de trombos sobre a placa. Frequentemente, os trombos se mostram organizados; isso pode se relacionar com a oclusão súbita de uma artéria afetada. Portanto, a partir da lesão tipo IV ou V, a possibilidade de um evento trombótico já pode ser considerada. Por outro lado, os componentes ateroscleróticos da placa podem ser divididos em quatro: tecido fibroso, necrose (núcleo ateromatoso rico em lipídios), inflamação e calcificação. A contribuição relativa desses componentes para totalizar a área da placa varia entre diferentes tipos de placas (Stary et al., 1994). Estudos mostraram que as principais artérias coronárias responsáveis por IAM ou morte súbita apresentavam em média: tecido fibroso, 68%; necrose, 16%; inflamação, 8%; e calcificação, 8%. A análise desses componentes citados, bem como suas proporções e localizações intraplaca, promoveu uma diferente classificação das lesões ateroscleróticas (Tabela 35.3). Lesões do mesmo tipo compartilham as mesmas características-chave; por exemplo, todas as placas ateromatosas têm um núcleo necrótico. Entretanto, como já dissemos anteriormente, ainda podemos ter um olhar muito diferente se analisarmos o grau de distribuição e localização de cada um dos componentes, bem como sua participação na totalização da área da placa. Adicionalmente, cada um dos componentes da placa ainda é definido pela sua heterogeneidade. Uma característica extensamente usada para definir o núcleo ateromatoso rico em lipídios (necrótico) é a ausência de suporte de colágeno. O core contém restos celulares e lipídicos, incluindo cristais de colesterol, e estes componentes podem estar próximos ao núcleo necrótico, mas não estão necessariamente presentes em toda sua área. Do mesmo modo, a necrose pode ou não ser associada à calcificação que pode estar presente também fora do núcleo necrótico. Igualmente, o tecido fibroso das lesões ateroscleróticas varia na densidade do colágeno e de lipídios, e as calcificações podem ser grandes e densas ou estarem presentes no formato de microcalcificações. Crescimento da placa e remodelamento vascular Com o progresso da lesão endotelial e da inflamação, fibroateromas crescem e dão forma à placa. Ao mesmo tempo que acontece o crescimento da placa, ocorre o remodelamento vascular, que pode ser positivo ou negativo. O fato é que o grau de estenose vai depender do tipo e da evolução desse remodelamento. O conceito de remodelamento arterial fisiológico foi introduzido em 1893, quando notou-se que os vasos sanguíneos se ampliavam para acomodar o fluxo aumentado a um órgão a jusante. Quase 100 anos depois, em 1987, Glagov apresentou o conceito do remodelamento arterial no processo patológico de aterosclerose nas artérias coronárias. O fenômeno Glagov descreve como o lúmen arterial de seção transversal é preservado do avanço da aterosclerose na parede arterial. Postulou-se que isso ocorre por expansão preferencial de segmentos da parede arterial ainda não envolvidos na formação da placa aterosclerótica (Glagov et al., 1987). No entanto, quando a placa aterosclerótica envolve mais de 40% da área da lâmina elástica interna (seção transversal), progressiva invasão luminal poderá ocorrer, causando estenose significativa (Pant; Marok; Klein, 2014). ■ TABELA 35.3 Classificação modificada da American Heart Association para as lesões ateroscleróticas com base na descrição morfológica. Tipo de lesão intimal Descrição Íntima normal/espessamento adaptativo intimal Tecido conjuntivo normal contendo células musculares lisas Sem acúmulo lipídico ou macrófagos Xantoma intimal/estria gordurosa Íntima normal exceto pelo acúmulo de células espumosas próximo ao lúmen do vaso Placa não ateromatosa Acúmulo extracelular de lipídios e tecido conjuntivo com fibrose com ou sem calcificação Sem núcleo (core) ateromatoso rico em lipídios (necrótico) Placa ateromatosa Com núcleo (core) ateromatoso rico em lipídios (necrótico) ■ Remodelamento positivoÉ o remodelamento compensatório externo, em que a parede arterial se projeta para fora, e o lúmen arterial se mantém sem alterações. As placas causadoras desse fenômeno geralmente crescem muito, sem que se sejam observadas manifestações clínicas (p. ex., angina), porque não se tornam hemodinamicamente significativas. São as placas ditas vulneráveis, na sua maioria, com grandes núcleos lipídicos e geralmente responsáveis pelos eventos agudos, pois têm mais tendência a se romper (Rioufol et al., 2002). ■ Remodelamento negativo Algumas lesões exibem quase nenhuma dilatação vascular compensatória, e o ateroma cresce firmemente interno, causando estreitamento gradual do vaso, com diminuição do lúmen. São as placas estáveis que geralmente produzem sintomas clínicos (p. ex., angina estável). Importante salientar que uma lesão pode se transformar em outra; o processo é dinâmico e inúmeras variáveis podem afetá-lo (Rioufol et al., 2002). Células progenitoras endoteliais As células endoteliais em circulação foram descritas pela primeira vez nos anos 1970; porém, só décadas mais tarde foram elaboradas técnicas que permitiram o seu isolamento e quantificação. Em situações de lesão do endotélio, essas células se desprendem da superfície endotelial e entram na circulação sanguínea por vários mecanismos, como: lesão mecânica, adesão defeituosa e separação induzida por citocinas ou proteases (Schmidt-Lucke et al., 2005; Werner et al., 2005). As células endoteliais progenitoras (CEP), descritas por Asahara et al. (1997), são aquelas derivadas da medula óssea com potencial para se diferenciarem em células endoteliais maduras que, quando mobilizadas, são libertadas na circulação periférica (Ashara et al., 1997). As CEP têm capacidade para reparar o endotélio, uma vez que, na corrente sanguínea, podem se ligar ao endotélio lesionado em um processo mediado pela expressão de moléculas de adesão (família das integrinas) e citocinas. Essas células representam um importante mecanismo endógeno de manutenção da integridade vascular, desempenhando um papel na neovascularização e manutenção da homeostasia vascular (Tabela 35.4). Em humanos, baixa concentração de CEP em circulação associa-se aos fatores de risco tradicionais e emergentes, bem como à gravidade da patologia aterosclerótica, predizendo de maneira independente o risco de futuro evento cardiovascular. Hill et al. (2003) demonstraram em sujeitos aparentemente saudáveis que o número de CEP em circulação é melhor preditor da dilatação fluxo-dependente do que o Escore de Risco de Framingham. Em pacientes com DAC, o número e a capacidade regenerativa e proliferativa das CEP em circulação encontram-se diminuídos, provavelmente como resultado da exaustão de seus competentes, pelo contínuo processo de lesão vascular ou pela sua deficiente mobilização a partir da medula óssea (Hill et al., 2003). Em um estudo em mulheres com isquemia miocárdica crônica por doença microvascular, a alteração na reserva de fluxo coronariano estava associada a maiores níveis de CEP, sugerindo que a isquemia crônica estimula a mobilização de CEP (Mekonnen et al., 2016). De acordo com algumas teorias, o processo de envelhecimento produz exaustão de várias células progenitoras, além de dificultar a neovascularização (que também é dependente da ação das CEP). Como resultado, o envelhecimento pode reduzir esse mecanismo de homeostase vascular (Ungvari et al., 2018). ■ TABELA 35.4 Mecanismos que interferem na saúde vascular. Células progenitoras endoteliais Capacidade de produzir regeneração endotelial Transporte reverso do colesterol Principal mecanismo de regressão da placa Neovascularização/angiogênese Reverter a hipoxia na parede do vaso – regressão da placa Propiciar crescimento, hemorragias intraplaca e instabilidade Angiogênese/neovascularização Na aterosclerose, a formação de novos vasos em torno da parede arterial pode ser observada mesmo antes do desenvolvimento de disfunção endotelial e da formação da placa. Além disso, a neovascularização dos vasa vasorum desenvolve-se principalmente na área de espessamento intimal, indicando o cross-talk entre a íntima e a adventícia. A angiogênese nos vasa vasorum e a infiltração na camada média fornecem nutrientes para o desenvolvimento e a expansão da íntima, podendo prevenir morte celular e contribuir para o crescimento e a estabilização da placa em lesões iniciais. Porém, em placas mais avançadas, a infiltração de células inflamatórias e a produção concomitante de citocinas pró-angiogênicas podem ser responsáveis pela indução descontrolada de proliferação de microvasos na neointima, tendo por resultado a produção de novos vasos imaturos e frágeis, que podem contribuir para hemorragia intraplaca e instabilidade da mesma (Kwon et al., 1998; Herrmann et al., 2001). Além disso, o processo de neovascularização cria uma porta de entrada de fatores inflamatórios e proliferativos, hemácias para a adventícia. A camada média e o espaço subendotelial ficam imprensados entre duas camadas altamente vascularizadas e expostos diretamente a uma área de superfície endotelial extensiva em um ou outro lado. Enquanto a placa se desenvolve, novos vasos surgem dos vasa vasorum pela camada média em direção à lesão intimal (Fleiner, 2004). Apenas uma pequena parte desses novos vasos seguirão até a íntima; as áreas onde eles se concentram são na base da placa e essa região é chamada de ombro. Eventualmente, a neovascularização caracteriza-se não somente pela placa vulnerável, mas também pela vulnerabilidade do paciente. A angiogênese é associada a diversas fases da aterosclerose. Há evidências crescentes de que a neovascularização está relacionada com o estágio do desenvolvimento da placa, o risco de ruptura e a doença sintomática. Fatores que podem ser considerados como estímulo para a angiogênese são hipoxia, estresse oxidativo na parede arterial e inflamação (Doyle; Caplice, 2007; Moreno et al., 2006). Evidentemente, quando a lesão aumenta, a hipoxia pode transformar-se no estímulo mais proeminente para a formação do novo vaso. Nesse ponto, um crescimento adicional de placas ateroscleróticas pode realmente depender da angiogênese, lembrando o que acontece em uma lesão cancerosa. Apesar da identificação de mecanismos que possam contribuir para esse processo, a compreensão da angiogênese ainda não foi claramente estabelecida. Shear stress O shear stress (SS) ou força de cisalhamento induzido pelo fluxo sanguíneo aparece como uma característica essencial para a aterogênese. Essa força de arrasto fluida, a qual age na parede do vaso, sofre o que chamamos de mecanotransdução para um sinal bioquímico, que resulta em mudanças no comportamento (Resnick, 2003). A manutenção de um SS fisiológico, laminar, é crucial para o funcionamento vascular normal – controle do calibre vascular, inibição da proliferação, da trombose e da inflamação. Assim, ele funciona como protetor (Traub; Berk, 1988). Reconhece-se também que, quando alterado ou próximo de bifurcações, óstios e curvaturas arteriais – fluxos oscilatórios – estão associados à formação do ateroma (Chatzizisis et al., 2007; Malek; Alper; Izumo, 1999). Adicionalmente, o endotélio vascular tem respostas comportamentais diferentes aos padrões alterados de fluxo, tanto no nível molecular quanto no celular, e essas reações atuam em sinergia com os outros fatores de risco sistêmicos já definidos. O fluxo não laminar promove mudanças na expressão genética endotelial, no arranjo citoesquelético, na resposta ao dano, na adesão dos leucócitos, bem como nos estados vasorreativos, oxidativos e inflamatórios da parede da artéria (Tabela 35.5). O SS alterado influencia também a seletividade do local de formação da placa aterosclerótica e o processo de remodelação da parede arterial – que pode afetar a vulnerabilidade da placa, a reestenose de um stent e a hiperplasia (Chatzizisis et al., 2007; Malek et al., 1999). A progressão da placa ocorre, primariamente, em subsegmentos arteriais com baixo SS e se associa àcitada remodelação vascular, que pode ser expansiva ou constritiva. Os gatilhos implicados nessa alteração não são conhecidos. Nessas áreas, a progressão da placa com remodelação expansiva geralmente causa SCA, e a remodelação constritiva com ou sem progressão da placa acarreta síndromes clínicas estáveis com graves estenoses. ■ TABELA 35.5 Shear stress e seus efeitos. Características Efeitos Baixo e fluxo alterado Aterogênico: pró-inflamatório, pró-migração e pró- trombótico Fisiológico, com fluxo laminar Vasculoprotetor Alto e fluxo turbulento Promove ativação plaquetária, formação de trombo e possível ruptura da placa intimal da CML em enxertos venosos CML: célula muscular lisa. No estudo de Carallo et al. (2016), que avaliou o desenvolvimento de placas ateroscleróticas na carótida ao longo de 12 anos, observou-se que a redução da força de cisalhamento (SS) decorrente do envelhecimento era um preditor independente para aterosclerose. Ruptura da placa: evento principal responsável pelas apresentações clínicas agudas De acordo com o que conhecemos da história natural da aterosclerose, as placas alcançam a maturidade por volta da terceira/quarta década de vida e, após essa fase, podemos ter a evolução para agudização e/ou estabilização das mesmas, com as consequências clínicas conhecidas de todos nós (Wick; Grundtman, 2012). As manifestações agudas da aterosclerose podem se dar de quatro maneiras (Bonaventura et al., 2020): ■ Ruptura da placa com inflamação ■ Ruptura da placa sem inflamação ■ Erosão da placa ■ Vasospasmo. Caso o equilíbrio entre as duas forças antagônicas – pró e anti-inflamatórias – seja rompido, ou tenhamos o agente agressor (colesterol primariamente, por exemplo) mantido, o processo de aterogênese continua e a placa pode se tornar vulnerável à erosão ou à ruptura. Macrófagos ativados produzem metaloproteinases que degradam o colágeno. Assim, a espessura da capa fibrosa pode diminuir, ficando mais instável e sujeita a ruptura ou erosão. Quando uma dessas situações acontece, o conteúdo trombogênico entra em contato com o sangue, resultando na formação do coágulo; dependendo do grau de obstrução e do tempo de permanência do trombo, bem como da artéria acometida, temos a instalação de um evento aterosclerótico agudo. Aterosclerose coronariana é um achado extremamente comum nas necropsias, mesmo naqueles pacientes que não sofreram IAM. Mesmo a doença isquêmica coronariana sendo a causa principal de morte nos países industrializados, mais pessoas vivem com a doença do que morrem (Cheruvu et al., 2007; Burke et al., 2001). A coexistência no mesmo indivíduo de placas estenóticas (constritivas) e não estenóticas (expansivas) sugere que a evolução da placa é bem mais complexa do que a simples acumulação de lipídios com consequente diminuição do lúmen vascular. Já sabemos também que a magnitude da reação inflamatória na parede vascular em resposta à acumulação dos lipídios, condicionada por fatores locais (SS), sistêmicos (fatores de risco diversos) e genéticos, parece determinar a evolução da placa. A perpetuação da resposta inflamatória com a contínua remodelação vascular tende a fragilizar a parede vascular, originando, dessa maneira, placas expansivas sem diminuição do lúmen vascular. Sendo mais suscetíveis à ruptura, estas placas vulneráveis são a principal causa de eventos ateroscleróticos agudos. Por isso, a questão-chave não é por que a aterosclerose se desenvolve, e sim por que, após anos de crescimento lento, uma placa estável se rompe subitamente e se torna trombogênica, podendo ser responsável por um evento agudo (Fishbein, 2010). O risco da ruptura da placa está intimamente relacionado com as suas propriedades intrínsecas (vulnerabilidade), que a predispõem à ruptura, e com forças extrínsecas (gatilhos) (Barger; Beeuwkes, 1990; Muller et al., 1994). A modificação na classificação das placas pela American Heart Association em recente documento as dividiu em três categorias: placas estáveis, placas culpadas (que se caracterizam por trombo agudo associado a ruptura ou erosão da placa) e placas vulneráveis, incluindo: ateroma revestido por fina capa fibrosa – fibroateroma (thin-cap fibroatheroma [TCFA]) – caracterizado por uma lesão composta por um core lipídico rico coberto por uma fina capa fibrosa (espessura 90%; e nódulos calcificados superficiais (Fishbein, 2010; Thim et al., 2008). A desendotelização física ou funcional (ruptura, fissura ou erosão da placa) ocasiona a perda dos fatores de proteção e dispara uma sequência de eventos que se inicia com a deposição das plaquetas, prosseguindo com sua ativação e reação trombogênica com um grande aumento local de fibrinogênio (Virmani et al., 2005). A ruptura da placa ocorre frequentemente no seu ponto mais fraco, em geral onde a capa fibrosa é mais fina e fortemente infiltrada pelas células espumosas. Os macrófagos ativados abundantes no ateroma podem produzir enzimas proteolíticas potentes e capazes de degradar o colágeno e, assim, desestabilizar a placa (van der Wal et al., 1994). Após a ruptura ou a erosão, o conteúdo altamente trombogênico do core lipídico entra em contato com o sangue circulante. O fator tissular, expressado por células endoteliais, CML e monócitos, maior regulador da coagulação, hemostasia e trombose, está presente nesse conteúdo e tem um papel preponderante ativando a cascata da coagulação, que resulta em produção da trombina, ativação plaquetária e depósito de fibrina. A disfunção endotelial já alterou o fenótipo anticoagulante para um estado pró-coagulante ao mesmo tempo que as plaquetas expõem os cofatores de superfície que podem catalisar a formação da trombina. Temos adesão plaquetária, seguida então da ativação das plaquetas e subsequente formação do trombo. Podemos fazer uma distinção inicial em duas formas de trombos: (1) superficial, que é superposto a uma placa intacta; e (2) profundo, que é causado por uma fissura na placa rompida. Tipos de trombos Na década de 1980, começamos a conhecer o papel do trombo nas SCA. Esse conhecimento se aprimorou nos anos 1990, com o entendimento do papel das plaquetas na trombose arterial (Falk, 1983). Atualmente, tem ficado cada vez mais claro que a inflamação arterial é o maior player para o início da ruptura da placa e precipita eventos isquêmicos recorrentes tanto a curto quanto a médio prazo. Também é o link entre a disfunção endotelial e a progressão da placa (Davies, 1995). A plaqueta por si só emerge como uma célula inflamatória, e, quando ativada, libera numerosos mediadores inflamatórios, com ênfase no CD40, que é um potente mediador da interação de diversas células, incluindo células endoteliais, musculares lisas, macrófagos, células T e as próprias plaquetas (Heeschen et al., 2003). Importante ressaltar ainda que os mecanismos responsáveis pela adesão e agregação plaquetárias são diferentes. A adesão plaquetária é mediada por fibronectina, colágeno, fator de von Willebrand e três glicoproteínas específicas da superfície das plaquetas: GPIb, GPIc/IIa e GPIa/IIa. Em contraste, a agregação plaquetária é mediada pela fibronectina, pelo fator de von Willebrand e pela GPIIb/IIIa. O receptor para a glicoproteína GPIIb/IIIa está presente em alta densidade na superfície das plaquetas, em uma concentração que chega a 50 mil sítios de ligação/célula (Bhatt; Topol, 2000). A agregação plaquetária induzida por epinefrina, tromboxano A2, trombina e colágeno é mediada pela interação do fibrinogênio com a GPIIb/IIIa. A liberação de difosfato de adenosina (ADP) a partir das células do interior da placa é um estímulo para a agregação plaquetária (Bhatt; Topol, 2000). O resultado dessa sequência é a formação de um trombo rico em plaquetas, cujo propósito fisiológico é a cicatrização da lesão endotelial. Esse trombo rico em plaquetas (trombo branco) é rapidamente infiltrado pela fibrina, transformando-se em um trombo fibrinoso. Logo após, as hemácias são capturadas por essarede fibrinosa e forma-se então o trombo vermelho, responsável pela maior oclusão do vaso sanguíneo (Libby, 2001). Caso o estímulo trombogênico seja limitado, haverá uma oclusão intermitente ou transitória, responsável pela apresentação clínica da angina instável ou do IAM sem supradesnivelamento do segmento ST. Entretanto, quando o estímulo proveniente da placa aterosclerótica for mais intenso, as plaquetas poderão responder excessivamente, e o resultado poderá ser um trombo que oclua totalmente o vaso sanguíneo, que do ponto de vista clínico corresponde ao desenvolvimento do IAM com supradesnivelamento do segmento ST (Libby, 2001). Intervenções antienvelhecimento vascular e aterogênese Tradicionalmente, as intervenções direcionadas para aterosclerose focavam exclusivamente na redução do colesterol, particularmente do LDL-c. Apesar do reconhecido papel das estatinas em diversas DCV, isoladamente sua efetividade é limitada, por isso buscam-se novos alvos. Com o reconhecimento do papel do sistema imune na aterogênese, o reposicionamento de fármacos que atuam na modulação desse sistema na abordagem de DCV aterotrombóticas ganhou destaque. Cita-se, por exemplo, a modulação dos níveis TNF-α (metotrexato), inibição de neutrófilos (colchicina), inibição de IL-1β (canakinumab, anakinra, rilonacept e colchicina), inibição de IL-6 (tocilizumabe e metotrexato) e redução de proteína C reativa (estatinas) (Moriya, 2019). Apesar das tentativas frustradas iniciais, o emprego de canakinumab, anticorpo monoclonal para IL-1β na dosagem de 150 mg por via subcutânea a cada 3 meses em pacientes com história de IAM, apresentou redução dos desfechos primários combinados (Ridker et al., 2017). Entretanto, a manipulação do sistema imune, por ser um sistema regulador, tem o potencial de apresentar inúmeros efeitos indesejados, muitos deles relacionados com a imunidade e risco de infecções. Por esse motivo, a segurança destas intervenções é o grande limitador do seu emprego no momento, particularmente nos idosos. Ademais, intervenções focadas no tratamento de uma doença de forma fragmentada se mostraram pouco eficazes em evitar o aparecimento de doenças crônicas e não promovem o aumento da longevidade. De acordo com a ideia defendida pelo autores que cunharam o termo geroscience, as intervenções multifatoriais com potencial de agir em mais de um mecanismo biológico do processo de envelhecimento são as mais promissoras para retardar o aparecimento ou a progressão das doenças crônico-degenerativas (DCV, doença de Alzheimer, diabetes, sarcopenia, neoplasias) e eventualmente aumentar a longevidade, uma vez que a idade é o principal fator de risco para todas essas doenças (Kennedy et al., 2014; Yabluchanskiy et al., 2018). A doença aterosclerótica também pode ser vista sob esse prisma. Nesse contexto, destacam-se o papel da inflamação crônica de baixo grau (inflammaging) e o estresse oxidativo (incluindo a disfunção mitocondrial) como processos que impulsionam o envelhecimento cardiovascular e, por conseguinte, a aterogênese. Intervenções que seguem o conceito de geroscience podem, portanto, ser importantes na modulação da aterogênese. Mudanças de estilo de vida, incluindo exercícios aeróbicos, dieta saudável e restrição calórica, são algumas das estratégias para um envelhecimento cardiovascular bem-sucedido. O exercício aeróbico regular é considerado uma estratégia importante para prevenir ou reverter a disfunção endotelial, a diminuição do risco cardiovascular e o enrijecimento das artérias, relacionados com o envelhecimento. O exercício aeróbico regular promove a supressão do estresse oxidativo e da inflamação e o aumento do controle de qualidade mitocondrial, elevando também a resistência a estressores nas artérias envelhecidas. Exercício aeróbico regular melhora a forma da artéria carótida na deficiência de estrogênio pré, peri e pós-menopausa e nas mulheres em terapia de reposição hormonal (Seals et al., 2018; Rossman et al., 2018). Padrões alimentares de baixa qualidade parecem acelerar o envelhecimento vascular. A grande rigidez das artérias elásticas está ligada ao estresse oxidativo. Evidências têm demonstrado que, com a idade, uma dieta de estilo ocidental com alto teor de gordura, alto teor de açúcar e baixo teor de fibras reduz a função endotelial e aumenta a rigidez arterial. Padrões dietéticos que valorizam o consumo de frutas, vegetais, grãos integrais, laticínios com baixo teor de gordura, peixes e moderado consumo de carnes magras (p. ex., as dietas mediterrâneas e DASH [do inglês, dietary approaches to stop hyperetension]) melhoram a função endotelial e reduzem a rigidez arterial, particularmente em adultos mais velhos (Rossman et al., 2018). Maior ingestão de potássio, magnésio e cálcio e baixo consumo de sódio são associados a melhor função endotelial e menor rigidez arterial. Restrição de sódio diminui a pressão arterial e reduz a rigidez das grandes artérias, melhora a função macro e microvascular em adultos de meia-idade e idosos (Rossman et al., 2018). Estudos também mostram que proteína solúvel do leite, cacau, chocolate amargo, sementes, grãos inteiros, nozes, leguminosas e café estão associados ao envelhecimento cardiovascular favorável, bem como óleos de peixe (ômega-3), curcumina (antioxidante/indutor de antioxidante endógeno e anti-inflamatório), suplementação de nitrato (reforço de NO), administração de trealose (autofagia, ativador/antioxidante) e resveratrol (ativação da sirtuína tipo 1); antioxidantes específicos mitocondriais (MitoQ) e compostos com aumento dos níveis de dinucleotídio de nicotinamida e adenina (NAD) e ativação das vias celulares sensíveis à energia da sirtuína (mononucleotídio de nicotinamida ribosídeo de nicotinamida). Mais estudos são necessários para estabelecer a segurança e a eficácia do uso dessas substâncias (Rossman et al., 2018). Perda de peso com base na restrição calórica, sem desnutrição em obesos adultos e de meia- idade, melhora a função endotelial macrovascular e microvascular. Mesmo sendo forte a evidência da eficácia da restrição calórica, a adesão é ruim, devido a vários fatores, incluindo calorias prontamente disponíveis para uso e a importância sociocultural dos alimentos (Seals et al., 2018; Rossman et al., 2018). Além disso, em idosos, temos uma importante redução das massas muscular e óssea. Uma estratégia alternativa mais segura e de fácil adesão é o “jejum intermitente”, caracterizado por períodos alternados de alimentação irrestrita com períodos de restrição calórica para ativar redes de detecção de energia. Uma nova forma de jejum intermitente que pode trazer os benefícios da restrição calórica, ao mesmo tempo que minimiza seus riscos, é a alimentação com restrição de tempo. É necessário estabelecer diversas opções baseadas em evidências para preservar a saúde vascular com o envelhecimento (Rossman et al., 2018). Novas abordagens de estilo de vida saudável, como treinamento intervalado de alta intensidade, jejum intermitente, alimentos funcionais e suplementos naturais, controle de exposição ao estresse ambiental (p. ex., terapia de calor), podem ser uma promessa, mas ainda são necessários estudos para comprovação. Uma medicina personalizada e humanizada deve adaptar decisões médicas, práticas e intervenções para o indivíduo, com base nas suas expectativas, funcionalidade, respostas aos tratamentos ou risco de doença. Sempre buscando o melhor resultado para o paciente. Considerações finais Recentes avanços no entendimento da biologia vascular da aterosclerose têm definido que essa doença é um processo complexo de lesão da parede vascular, caracterizado por mecanismos ineficazes de reparação e por uma exacerbada resposta inflamatória. O envelhecimento é o principal fator de risco para aterosclerose e outras doenças crônico- degenerativas. Isso explica a maior incidência e prevalência das DCV com a progressão da idade. Apesar de o envelhecimento vascular ser um processo distinto da aterosclerose, ele favorece o desenvolvimentodesta; portanto, o entendimento de como interagem esses processos (envelhecimento vascular versus aterosclerose) é um tema de grande interesse científico.A atenuação da autofagia promove o desenvolvimento de ICC, hipertensão arterial, aterosclerose e cardiopatia isquêmica (Sasaki et al., 2017). A autofagia tem um papel proeminente na reversão da hipertrofia cardíaca induzida pela angiotensina II, embora os mecanismos subjacentes permaneçam incertos. Quando a autofagia diminui, a hipertrofia cardíaca é acentuada (Oyabu et al., 2013). ■ TABELA 31.2 Fatores ambientais que afetam o comprimento dos telômeros. Promoção do encurtamento de telômeros Reduzindo encurtamento dos telômeros Fumar Abuso de álcool Obesidade Poluição do ar Estresse mental Estilo de vida saudável Tratamento com estrogênio Vitaminas C, D e E Ácidos ômega-3 Estatina Metformina Cirurgia bariátrica ■ TABELA 31.3 Fatores endógenos que afetam o comprimento dos telômeros. Promovendo o encurtamento de telômeros Reduzindo o encurtamento dos telômeros Idade Divisão celular Fatores genéticos Estresse oxidativo Inflamação Ativação do sistema renina-angiotensina Telomerase Fatores genéticos Estrogênio Antioxidantes A fibrose cardíaca é um processo reativo associado à hipertrofia ventricular esquerda (HVE) e que aumenta com a idade (Murtha et al., 2017). A inflamação prolongada promove fibrose cardíaca e vascular, mas os eventos moleculares envolvidos na fibrose mediadora ainda são pouco compreendidos. AMPK, um membro da família serina/treonina quinase, e o GDF-11, um membro da superfamília do fator de crescimento transformador-β, são abundantemente expressos no coração com efeitos antifibróticos nos miofibroblastos e cardiomiócitos (Daskalopoulos et al., 2016; Jiang et al., 2017). Apresentam um efeito antifibrótico, além de reduzir o tamanho dos cardiomiócitos e inibir a hipertrofia cardíaca (Hermida et al., 2013). O declínio associado à idade na expressão de AMPK e GDF-11 provavelmente desempenha um papel no aumento da fibrose cardíaca associada ao envelhecimento. Alterações morfológicas ■ Alterações vasculares As alterações celulares promotoras do envelhecimento anteriormente descritas ocasionam mudanças em várias propriedades estruturais e funcionais de grandes artérias, incluindo diâmetro, espessura e rigidez da parede, calcificação e modificações na função endotelial. Evidências emergentes indicam que essas transformações associadas à idade também são aceleradas na DCV, tornando-se fatores de risco para o aparecimento ou progressão destas. É um erro considerarmos os vasos sanguíneos simplesmente como condutores do fluxo sanguíneo; são estruturas dinâmicas que se adaptam, reparam, remodelam e governam suas propriedades estruturais e funcionais utilizando vias de sinalização complexas em resposta a carga, estresse e idade. A espessura da parede arterial, indexada pela espessura das camadas íntima e média, aumenta linearmente quase três vezes entre as idades de 20 e 90 anos, mesmo na ausência de placas ateroscleróticas. Há uma maior rigidez do vaso, atribuída também aos ciclos repetidos de distensões e recuos elásticos da parede arterial, que, acredita-se, aceleram a fragmentação e depleção de elastina, cuja síntese já é diminuída com o avanço da idade, em contraste com a síntese e deposição excessiva de colágeno tipos I e III. A rigidez pode ser ainda mais amplificada em polimorfismos genéticos específicos. As células endoteliais desempenham um papel central na regulação de várias propriedades arteriais, incluindo tônus vascular, permeabilidade vascular, angiogênese e resposta à inflamação. Substâncias derivadas do endotélio como o óxido nítrico e a endotelina são determinantes da grande complacência arterial, sugerindo que as células endoteliais também podem modular a rigidez arterial central. Estudos em humanos e animais revelaram que o envelhecimento está associado a uma redução na vasodilatação endotelial, considerada secundária à produção reduzida de óxido nítrico (Lakatta; Levy, 2003; Lakatta, 2013). Por outro lado, há um aumento expressivo nos níveis de angiotensina II, bem como da sua sinalização nas paredes arteriais com o decorrer da idade, que, acredita-se, desempenham um papel central na senescência vascular, decorrente do potente efeito pressor e mitogênico, em contrapartida ao nível plasmático reduzido nos idosos (Wang et al., 2010). A calcificação vascular, antes considerada como consequência passiva do envelhecimento, agora é reconhecida como um processo altamente regulado, semelhante à formação óssea. O estudo HORUS demostrou que a relação entre o envelhecimento e a calcificação vascular é uma associação milenar. Neste estudo, 137 múmias de até 4.000 anos foram examinadas por meio de tomografias computadorizadas (TC). A calcificação vascular estava presente em 34% das múmias e houve uma correlação positiva entre a idade no momento da morte, a calcificação vascular e a quantidade de vasos calcificados (Thompson et al., 2013). Em uma metanálise com 218 mil pacientes, a calcificação em qualquer parede arterial está associada a um risco 3 a 4 vezes maior de mortalidade e eventos cardiovasculares (Rennenberg et al., 2009). Em associação a outros distúrbios relacionados com a idade, como hipertensão arterial, dislipidemia e diabetes, o remodelamento vascular aumenta a suscetibilidade a doenças vasculares ateroscleróticas. Portanto, é bem aceito que o envelhecimento em si promova a patogênese das doenças ateroscleróticas, e estudos sugeriram que a senescência vascular tem um papel crítico nesse processo. ■ Miocárdio No processo de envelhecimento do miocárdio, ocorrem mudanças na matriz extracelular, com aumento do colágeno e do entrecruzamento de suas moléculas, aumento no diâmetro das fibrilas musculares, maior proporção de colágeno tipo I em relação ao tipo III, redução do conteúdo de elastina e aumento da fibronectina. O equilíbrio entre a produção e a degradação da matriz extracelular pelas metaloproteinases e seus inibidores é alterado, favorecendo a ação dos inibidores e, com isso, ocorre aumento na produção da matriz. Além disso, fatores teciduais de crescimento, como a angiotensina II, o fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa) e o fator de crescimento derivado de plaquetas (PDGF), favorecem a proliferação de fibroblastos. Todas essas alterações resultam em perda celular e alteração da função celular no miocárdio (Braunwald et al., 2006). Apesar da progressiva redução de miócitos, ocorre aumento do volume das fibras miocárdicas, além de deposição de material amiloide, colágeno e tecido lipídico, com aumento de fibrose intersticial e, com isso, há enrijecimento, aumento da espessura miocárdica e do índice de massa (Olivetti et al., 1991). O entendimento destas alterações induzidas pelo envelhecimento na massa do VE sofreu várias alterações ao longo do tempo, à medida que os pesquisadores fizeram melhorias na abordagem tecnológica, nos critérios de exclusão e na análise estatística. Com base em estudo com ressonância magnética realizado em idosos saudáveis no Baltimore Longitudinal Study of Aging (BLSA), constatou-se uma diminuição da massa do VE no homem, porém não em mulheres. Apesar de não haver um acréscimo da massa cardíaca com o envelhecimento, há um incremento significativo na espessura do miocárdio como resultado do aumento do tamanho do cardiomiócito. Este aumento de espessura se traduz em hipertrofia concêntrica do VE, o septo interventricular cresce proporcionalmente mais do que a parede livre, e há uma alteração na forma do VE, mudando de uma geometria elipsoide para esférica, promovendo um maior estresse na parede, com implicações importantes para a eficiência contrátil geral (Hees et al., 2002) (Tabelas 31.4 e 31.5). ■ Pericárdio As principais alterações do pericárdio relacionadas com a idade são aumento da fibrose e da expressão da aromatase. Há um aumento associado à idade na deposição de tecido adiposo pericárdico, que sintetiza e secreta várias adipocinas pró-inflamatórias (Fei et al., 2010). Existe uma correlação entre a extensão do tecido adiposo pericárdico e risco de fibrilação atrial (FA), embora os mecanismossubjacentes permaneçam incertos. ■ TABELA 31.4 Alterações anatômicas do coração no idoso. Diminuição do número dos miócitos (necrose e apoptose) Aumento do volume dos miócitos Alteração das propriedades do colágeno Relação miócito/colágeno inalterada Aumento da espessura e da massa do ventrículo esquerdo Aumento do átrio esquerdo ■ Sistema de condução A prevalência de doenças do sistema de condução aumenta com a idade, como evidenciado pelo aumento da incidência de bradicardia, síncope e morte súbita cardíaca em idosos. O comprometimento do sistema de condução cardíaco ocorre predominantemente nos nós sinoatrial (SA) e atrioventricular (AV). No nó SA, há redução dos cardiomiócitos nodais e aumento das células adiposas e fibrose, com incremento de colágeno reticular, que podem vir a substituir, eventualmente, a maioria das células de condução. No nó AV, ocorre o mesmo processo, mas também podem existir pontos de calcificação que envolvem os anéis valvares e do septo interventricular e, com a proximidade dessas estruturas ao nó AV, feixe de His e seus ramos, pode haver comprometimento do sistema de condução cardíaco, com consequentes bloqueios AV e intraventriculares (Ohkawa, 2008). A idade é considerada o principal fator de risco para FA, mas nossa compreensão do fator causal é incompleta, apesar da grande evidência na associação entre o aumento da idade e a FA. O miocárdio atrial sofre remodelação estrutural e elétrica com a idade, a qual pode desempenhar um papel importante no início e/ou na perpetuação de arritmias atriais (Pandit; Jalife, 2007). Alterações na estrutura do tecido atrial parecem ser de grande importância para fornecer um substrato para FA. A fibrose é onipresente nos átrios do coração senil, e é a marca do substrato estrutural da FA, principalmente quando associada à lentidão na condução (Papageorgiou et al., 1996; Nattel et al., 2014). ■ Sistema nervoso autônomo A ativação de receptores adrenérgicos por catecolaminas é o mecanismo regulador mais importante do desempenho cardiovascular. Os agonistas dos receptores adrenérgicos, assim como os exercícios, estimulam o sistema adrenérgico aumentando a frequência cardíaca (FC), a contratilidade miocárdica e o relaxamento, reduzindo a pós-carga do VE e redistribuindo o fluxo sanguíneo para o músculo esquelético. De qualquer modo, a responsividade adrenérgica é alterada com o envelhecimento (White et al., 1994). Na verdade, estudos em animais e humanos indicam um declínio em FC, contratilidade cardíaca, débito cardíaco (DC) e fração de ejeção em resposta à estimulação beta-adrenérgica e ao exercício (Rinaldi et al., 2006; Corbi et al., 2012). Parte do declínio relacionado com a idade na responsividade beta-adrenérgica foi atribuída a uma diminuição geral da contratilidade cardíaca. No entanto, várias observações indicam um papel crucial da densidade reduzida do receptor beta-adrenérgico e alguns defeitos envolvendo a cascata da adenilciclase além dos níveis do receptor beta (Ferrara et al., 2005; Freedman et al., 1995). A redução associada à idade na FC máxima durante altos níveis de exercício está relacionada com uma responsividade beta-adrenérgica reduzida, apesar de um aumento nos níveis circulantes de catecolaminas. O envelhecimento está associado à ativação neuro-hormonal elevada e caracterizado por níveis circulantes de norepinefrina e epinefrina plasmática aumentados, devido ao transbordamento aumentado dos tecidos (incluindo o coração) e à redução da depuração plasmática de catecolamina (Esler et al., 1995). A “dessensibilização beta- adrenérgica”, pelo menos em parte, decorre da redução da densidade da membrana plasmática do receptor beta-adrenérgico descrita em corações de animais senescentes e humanos idosos (White et al., 1994). Os receptores beta-adrenérgicos são membros da família de receptores acoplados à proteína G, que atua por acoplamento com proteínas de ligação do nucleotídio guanina, e a diminuição induzida pela idade na responsividade do receptor beta-adrenérgico é caracterizada em nível molecular por diminuição da ativação da adenilciclase e produção reduzida de monofosfato cíclico de adenosina (cAMP). Ao lado da regulação negativa do receptor beta- adrenérgico, outra alteração crucial relacionada com a idade dessa via de sinalização parece ser o acoplamento desse receptor à adenilciclase por meio da proteína Gs, o que causa uma redução na capacidade de aumentar o cAMP e para ativar as proteínas quinases. ■ TABELA 31.5 Alterações anatômicas associadas à idade. ↑ Espessura vascular (íntima) ↑ Produção de matriz Estágio inicial da aterosclerose ↑ Rigidez vascular Fragmentação da elastina ↑ Ativiade elastase ↑ Produção de colágeno Hipertensão sistólica Alteração da regulação do fator de crescimento e reparo tecidual Aterosclerose ↑ Espessura da parede do VE ↑ Volume dos miócitos ↓ No de miócitos ↑ Deposição de colágeno ↓ Enchimento diastólico precoce do VE ↑ Pressão de enchimento de VE ↑ Atrio esquerdo ↑ Pressão/volume AE ↑ Risco de fibrilação atrial ■ Alterações valvares Com o aumento da expectativa de vida, tornam-se mais prevalentes as patologias valvares. Dentre elas, as mais frequentes são a estenose aórtica (EA) calcificada e a insuficiência valvar mitral, sendo a degeneração fibroelástica dos folhetos a causa mais comum de insuficiência valvar mitral nesta faixa etária (Aronow, 2006). Estenose aórtica A doença valvar aórtica calcificada não pode mais ser considerada simplesmente um processo valvar degenerativo relacionado com a idade, mas sim um processo ativo altamente complexo, de provável etiologia sistêmica, que envolve fatores bioquímicos, imunológicos e genéticos de forma interativa. Vários estudos sugeriram que EA degenerativa calcificada e aterosclerose têm fatores de risco comuns, como idade, tabagismo, hipertensão arterial, hipercolesterolemia, diabetes melito e síndrome metabólica (Xanthakis et al., 2014; Loprinzi et al., 2016). Uma vez que os folhetos da válvula podem ter heterogeneidade anatômica, diferentes tensões de cisalhamento podem provocar disfunção endotelial na superfície valvar. A perda da integridade endotelial possibilita o acúmulo de lipídios e a migração celular (células inflamatórias, macrófagos e células T) na matriz subendotelial (Bossé et al., 2008) com ativação neuro-hormonal (New; Aikawa, 2011). Ocorre um espessamento focal das válvulas com formação de nódulos cálcicos que se inicia ao lado da válvula aórtica no nível subendotelial e se estende gradativamente para a camada externa ou fibrosa. Essas válvulas permanecem flexíveis por muito tempo, para que seu mecanismo de abertura não seja afetado. Com o passar do tempo, as áreas de espessamento convergem em grandes massas calcificadas que acabam se projetando para a via de saída da válvula aórtica, conferindo maior rigidez às válvulas e diminuindo significativamente a área valvar, interferindo no seu funcionamento normal. Insuficiência mitral A doença degenerativa valvar mitral é a causa mais comum de insuficiência mitral (IM). Na IM importante, diminuem entre os idosos casos de etiologia reumática e aumentam os de etiologia degenerativa ou causados por prolapso valvar mitral (PVM), sendo as principais causas de origem primária. Quando incluídas causas secundárias como remodelamento ventricular, com consequente dilatação do anel mitral, estas passam a ser a principal etiologia de IM em idosos. A IM degenerativa inclui PVM, folhetos alongados, espessados, e raramente calcificação anular pode resultar em fechamento incompleto do folheto mitral e consequente regurgitação. A degeneração mixomatosa de folhetos mitrais leva ao PVM, o que pode causar ruptura de cordas e falha de coaptação dos folhetos (Desai et al., 2017). Diferentemente do caso da estenose mitral degenerativa, no PVM, não há relação entre os fatores de risco para aterosclerose na patogênese da doença. ■ Coronárias As alterações das artérias coronárias não são, em geral, expressivas quando não é considerada a arteriosclerosevascular (ver Tabela 31.4), podendo ser encontradas, como condição habitual de envelhecimento, perdas de tecido elástico e aumento do colágeno acumulando-se em trechos proximais das artérias. Eventualmente, ocorre depósito de lipídios com espessamento da túnica média. É comum a presença de vasos epicárdicos tortuosos, ocorrendo mesmo quando não há diminuição dos ventrículos. A coronária esquerda altera-se antes da direita. Essas alterações são diferentes da arteriosclerose; também há discussão sobre artérias coronárias dilatadas, que não encontrou apoio em verificações de necropsias antigas. Outra alteração significativa é a calcificação das artérias coronárias epicárdicas, observada com frequência em indivíduos muito idosos e muito comuns nessa população, podendo atingir o tronco coronário e as três grandes artérias, ocupando geralmente o terço proximal desses vasos. A calcificação da artéria coronária (CAC) resulta em redução na complacência vascular, respostas vasomotoras anormais e perfusão miocárdica diminuída. A presença de CAC está associada a piores resultados na população geral e em pacientes submetidos à revascularização (Wang et al., 2006). A prevalência de CAC é idade e sexo-dependente, ocorrendo em 90% dos homens e 67% das mulheres com mais de 70 anos de idade. A extensão da CAC correlaciona-se fortemente ao grau de aterosclerose e à taxa de futuros eventos cardíacos. Com base nos escores de cálcio, a TC adiciona valor prognóstico nos eventos cardíacos, especialmente em pacientes de risco intermediário, como demonstrado em uma população geral de pacientes idosos assintomáticos com idade 69,6 ± 6,2 anos do Estudo Rotterdam, em que 52% dos homens e mulheres foram reclassificados, em categorias de risco mais precisas utilizando-se o escore de cálcio coronariano associado a um modelo de Framingham modificado (Elias-Smale et al., 2010). A patogênese da CAC e a formação óssea compartilham vias comuns, e diversos fatores de risco que contribuem para a sua iniciação e progressão foram identificados. A calcificação aterosclerótica ocorre principalmente na íntima. No entanto, a calcificação na média que anteriormente era considerada um processo benigno associa-se frequentemente a idade avançada, diabetes e doença renal crônica, causando rigidez arterial e aumentando assim o risco de eventos cardiovasculares (Johnson et al., 2006). Adicionalmente, o sistema renina– angiotensina pode desempenhar um papel na calcificação da média, porque bloqueadores dos receptores da angiotensina II tipo 1 abolem o desenvolvimento da CAC em modelo pré-clínico (Armstrong et al., 2011). O ativador do receptor do fator nuclear-kappaB (osteoprotegerina) surgiu como potencial interface entre a osteoporose e a CAC. Dados epidemiológicos em humanos sugerem que os níveis mais elevados de osteoprotegerina estão associados a CAC e eventos cardiovasculares (Abedin et al., 2007). Curiosamente, a ingestão de uma dieta rica em cálcio não apresentou associação à CAC, e não foi observada relação entre a ingestão de cálcio na dieta e a DAC (Wang et al., 2012). Esses dados sugerem que a CAC seja resultado de mecanismos aberrantes de regulação, em vez de simples sobrecarga de cálcio. É necessária melhor compreensão das vias que contribuem para essa calcificação, possibilitando que terapias mais eficazes sejam desenvolvidas. Repercussão do envelhecimento ■ Alterações estruturais Atualmente, os métodos de imagem têm auxiliado em diagnóstico, seguimento e avaliação prognóstica do coração senil. Com o tempo, há elevação do volume das fibras miocárdicas em ambos os ventrículos e deposição de material amiloide, colágeno e tecido lipídico no coração, com aumento discreto dos focos de fibrose intersticial. Ao ecocardiograma, pode observar-se aumento da espessura miocárdica e do índice de massa do VE em grau discreto. Isso tem implicações na adaptação do VE e nas alterações hemodinâmicas e, a partir da quinta década, geralmente, na forma de disfunção diastólica, que se caracteriza por maior participação na fase ativa do esvaziamento atrial e no enchimento ventricular para não aumentar a pressão média do átrio esquerdo. A disfunção diastólica discreta é muito comum no idoso saudável e não é acompanhada de sinais e sintomas de ICC, sendo facilmente diagnosticada ao ecocardiograma. A disfunção diastólica é um dos determinantes da redução do DC do idoso frente ao exercício, uma vez que não há alteração da função sistólica global pela idade e os índices ejetivos estão preservados mesmo nas faixas etárias mais avançadas. O aumento atrial também é observado e utilizado atualmente como um dos critérios para diagnosticar disfunção diastólica; além de ser marcador prognóstico e auxiliar no diagnóstico diferencial de cardiomiopatias, é um preditor de eventos, como nas taquiarritmias. Hennersdorf et al. (2007) mostraram que a prevalência de FA paroxística pode ser diminuída em pacientes com regressão da HVE pelo tratamento da hipertensão arterial, em comparação com pacientes com progressão da HVE, apesar do tratamento. O septo sigmoide anatomicamente considerado como aumento discreto e localizado da espessura miocárdica no segmento basal do septo ventricular, sem causar obstrução significativa ao fluxo na via de saída do VE, é visto frequentemente no idoso. Além da hipertrofia miocárdica própria da idade, este achado pode ser decorrente da alteração da posição do coração no tórax, secundária à cifoescoliose, que leva ao alongamento do arco aórtico e à diminuição do ângulo entre o septo interventricular e a aorta. Com o envelhecimento, também observamos ao ecocardiograma alterações degenerativas valvares, calcificações, hiper-refringências, que fazem diagnósticos diferenciais de doenças de depósito, alterações ventriculares, hemodinâmicas, e ainda é possível avaliar repercussões no coração de causas não cardíacas e fazer o seguimento. Além disso, é muito utilizado ultimamente para avaliação e manejo não invasivo de volemia por avaliação da veia cava inferior, em pacientes ambulatoriais e em unidade de terapia intensiva (UTI), e para avaliação do DC, estimativa da pressão venosa central e do índice cardíaco, entre outros parâmetros. ■ Alterações funcionais A contribuição do coração para a regulação do DC em resposta ao aumento da demanda metabólica do exercício foi bem caracterizada e depende essencialmente da regulação dinâmica de dois parâmetros fisiológicos, FC e volume sistólico (VS). Em adultos jovens saudáveis, a estimulação adrenérgica induzida por exercício aumenta rapidamente o DC, principalmente pelo incremento da contratilidade miocárdica e pela diminuição da resistência vascular periférica. Proporcionalmente à intensificação do exercício, o VS tende a se expandir em até 40 a 50% da capacidade máxima, e, havendo necessidade de aumento adicional do DC, este seria impulsionado por um novo aumento na FC (Vella; Robergs, 2005). Embora os idosos ainda sejam capazes de aumentar seu DC em resposta ao exercício, o aumento relativo é tipicamente diminuído em comparação com os mais jovens. A redução da FC máxima, também conhecida como incompetência cronotrópica, é um dos principais contribuintes para a diminuição da resposta cardíaca ao exercício em idosos. O envelhecimento normal resulta em um declínio progressivo da FC máxima em aproximadamente 0,7 bpm/ano (Gulati et al., 2010). Embora os mecanismos de incompetência cronotrópica não sejam completamente compreendidos, mudanças degenerativas no sistema de condução, juntamente com regulação autonômica prejudicada, provavelmente desempenham papéis centrais (Brubaker; Kitzman, 2011). É importante ressaltar que a redução da FC de pico relacionada com a idade se associa fortemente à diminuição da capacidade de exercício e é um preditor independente de eventos cardiovasculares adversos e mortalidade (Lauer et al., 1999). Em geral, corações idosos ainda são capazes de aumentar o VS em resposta ao exercício, embora em níveis insuficientes para compensar a redução da FC máxima. Curiosamente,o mecanismo pelo qual o coração aumenta o VS com exercícios muda com a idade. Enquanto a contratilidade miocárdica aumentada é o principal meio de aumentar a VS em corações jovens, o exercício aumenta o VS em corações idosos principalmente por meio do incremento do volume diastólico final e com mínimas alterações da contratilidade (Kappagoda; Amsterdam, 2012). De maneira geral, o envelhecimento normal diminui significativamente as respostas cronotrópicas e inotrópicas do coração ao exercício. Clinicamente, esse fenômeno é referido como reserva cardíaca prejudicada, que é a incapacidade do coração de aumentar o DC de maneira adequada para atender às demandas crescentes de estresse fisiológico, seja induzido por exercício ou farmacologicamente. Em conjunto com as alterações associadas à idade nos mecanismos periféricos de extração e utilização de oxigênio no músculo esquelético (Fleg et al., 1995), a oferta inadequada de oxigênio da reserva cardíaca prejudicada é um dos principais contribuintes para a diminuição da capacidade funcional em idosos, especialmente aqueles com IC (Borlaug et al., 2010). O consumo máximo de oxigênio (VO2 max), que é a taxa máxima que o corpo pode consumir oxigênio durante o exercício incremental, é uma métrica estabelecida da capacidade de exercício. Com o envelhecimento normal, o VO2 max diminui em aproximadamente 10% por década em indivíduos ambulatoriais saudáveis (Fleg; Lakatta, 1988), mas esse declínio acelera notavelmente em idades acima de 70 anos e na ICC (Fleg et al., 2005), sugerindo que os mecanismos que causam o comprometimento dessa reserva cardíaca no envelhecimento podem ser particularmente relevantes para o aumento da ICC observado com a idade avançada (Tabela 31.6). Considerações finais O processo de envelhecimento é um continuum, progredindo ao longo da vida do indivíduo. Diferentemente das condições patológicas, esse processo afeta todos os indivíduos. Ele é geneticamente programado, mas modificado por influências ambientais, para que a taxa de envelhecimento possa variar amplamente entre as pessoas. Portanto, o envelhecimento fisiológico em qualquer indivíduo pode ocorrer mais rapidamente ou mais lentamente que a idade cronológica, dando origem a pessoas “idosas” aos 60 anos e outras pessoas “jovens” aos 75 anos de idade. Pesquisas recentes desafiaram o pensamento tradicional sobre os mecanismos moleculares subjacentes ao envelhecimento cardíaco e sugeriram um potencial para retardar, se não reverter, as alterações cardíacas associadas à idade. No entanto, lacunas significativas permanecem em nossa compreensão dos mecanismos moleculares subjacentes às diversas mudanças estruturais e funcionais causalmente envolvidas no envelhecimento cardíaco. Ao mesmo tempo, poucas novas vias foram identificadas que podem ser alvos de fármacos para mitigar o envelhecimento cardíaco. ■ TABELA 31.6 Alterações funcionais durante a atividade física do idoso. Parâmetros CV no pico do exercício Alterações com o envelhecimento Débito cardíaco ↓ /Inalterado Frequência cardíaca ↓ Volume sistólico ↑/↓ /Inalterado Volume diastólico final ↑ Contratilidade de VE ↓ VO2 máximo ↓ (A–V) O2 diferença ↓ CV: cardiovasculares; VE: ventrículo esquerdo. Consequentemente, à medida que adquirimos maior compreensão das consequências do envelhecimento no coração, podemos dar passos maiores na promoção de uma expectativa de vida mais longa e saudável. 33 Mudanças no Estilo de Vida na Prevenção da Doença Aterosclerótica Claudia Felícia Gravina • Stela Maris Grespan Introdução Foram necessários milênios para que a espécie humana evoluísse e atingisse o estágio atual de Homo sapiens, séculos se passassem para que o homem construísse sua civilização e visse assegurada a sua sobrevivência. Bastaram apenas algumas décadas de profundas transformações para que se concretizasse a aspiração maior do homem: a longevidade. A evolução da cultura e da capacidade humana de organização política e social foi decisiva para a longevidade. Dentre as transformações histórico-geográficas consequentes à Revolução Industrial, a urbanização expressiva das sociedades foi fundamental para que parcelas significativas da população fossem beneficiadas com medidas sanitárias básicas, vacinações e controles de endemias, contraceptivos e planejamento familiar, acesso a cuidados médicos preventivos e curativos, medicamentos em caráter mais universalizado. Entretanto, o progresso acelerado causou impacto ambiental e exposição a poluentes e ruídos, estresse e isolamento social e incorporação de novos hábitos. Um quadro de privação e excesso em que proliferam transtornos alimentares, do humor e do sono, de consumo de álcool e tabaco e de alimentos industrializados, resultando em risco aumentado para a obtenção do chamado envelhecimento saudável. O desgaste biológico, comum a todos os seres vivos, se inicia no homem em torno dos 30 anos de idade. O envelhecimento dito fisiológico inclui, entre outras, as perdas progressivas de massa óssea e muscular, da flexibilidade articular, da coordenação motora e do equilíbrio, além de alterações sensoriais, especialmente visão e audição, e cognitivas. Estas modificações fisiológicas podem ser agravadas ainda por medicamentos e comorbidades, dificultando a distinção entre o envelhecimento fisiológico e o patológico. Como reflexo dessas considerações, o alargamento da expectativa de vida trouxe consigo o impacto da doença crônico-degenerativa como maior causa de morbimortalidade na população adulta idosa. As doenças cardiovasculares (DCV) de origem aterosclerótica, embora decrescentes em algumas sociedades, constituem a primeira causa de mortalidade mundial em condições naturais, incidindo atualmente em populações mais idosas do que no passado. A idade é o maior fator causal de doença aterosclerótica, dado o tempo de exposição aos agentes agressores. A idade, o sexo e a hereditariedade constituem os fatores de risco (FR) não modificáveis. Outros FR clássicos, já que bem estabelecidos como seus desencadeantes, como hipertensão arterial sistêmica (HAS), diabetes melito, dislipidemias, tabagismo, obesidade e sedentarismo, são passíveis de controle preventivo por intervenção nos hábitos de vida. As evidências do valor da alimentação na manutenção da saúde dos indivíduos, hoje amplamente divulgadas pela mídia, são insuficientes para motivar os idosos a mudar hábitos cultivados no tempo. Outros obstáculos a vencer antes de recomendar uma dieta são as dificuldades para estabelecer com propriedade o grau de saúde geral do paciente, seu hábito alimentar, estado nutricional e níveis de atividade física. As referências nutricionais fornecidas pelo National Research Council (NRC), embora contemplem idade e sexo, são inapropriadas, considerando-se a heterogeneidade deste grupo populacional. Heterogeneidade também observada pelas profundas desigualdades socioeconômicas encontradas no interior de uma mesma sociedade e cultura, especialmente ao considerarmos a realidade de alguns grupos étnicos, notadamente povos originais, negros e imigrantes, e a desproporção de renda entre indivíduos ativos e aposentados. A prescrição dietética é um aspecto primordial na promoção da saúde; porém, torna-se complexa por inúmeras razões; portanto, não pode ser redutível à mera imposição de padrões estabelecidos como saudáveis, devendo ser individualizada e adaptada ao gosto, poder aquisitivo e à própria capacidade de preparo. Alguns dados econômicos, como escolaridade e renda mensal dos 15% de idosos, que constituem a população brasileira, somam-se à diversidade cultural e são determinantes na adoção de um estilo de vida peculiar desses cidadãos. Suas preferências alimentares estão condicionadas não só a hábitos domésticos e regionais, ao estado de saúde geral e bucal, ao sistema de crenças e socialização, como também à produção e distribuição de alimentos (Bloom et al., 2003). Embora a reeducação alimentar permanente no idoso seja uma tarefa difícil, deve ser sempre trabalhada, pois nessapopulação os FR clássicos adquirem maior valor absoluto na determinação da DCV do que em adultos mais jovens, e sua combinação multiplica o risco para a doença arterial coronariana (DAC), cerebral ou periférica. Outra particularidade, com grande significado clínico nesta faixa etária, é a doença isquêmica silenciosa, razão pela qual são necessários consultas e exames complementares periódicos para a intervenção preventiva, tanto mais eficaz quanto mais precoce. Os grandes estudos de prevenção por meio de intervenções nos hábitos alimentares demonstraram as dificuldades de adesão prolongada e/ou definitiva a novos comportamentos. Os benefícios resultaram ainda maiores quando foi agregado exercício físico à dieta (Knowler et al., 2002). Obesidade A obesidade ou a má distribuição de gordura corporal tem sido responsabilizada pelo crescente aumento da prevalência dos FR clássicos para a doença aterosclerótica em suas diversas apresentações. Foi constatada, entre idosos ambulatoriais no Brasil, uma prevalência de 30% de obesidade. Um provável novo FR para a doença, a hiper-homocisteinemia, guarda relação com a deficiência crônica de ácido fólico e de outras vitaminas do grupo B, as quais compõem as dietas ricas em verduras, frutas e proteínas de origem animal nem sempre acessíveis financeiramente aos idosos. O excesso de peso também está relacionado com a HAS, DCV predominante na população brasileira idosa ambulatorial (67%), especialmente no sexo feminino (73%). No Third National Health and Nutrition Survey (NHANES III), a prevalência de HAS ajustada à idade foi de 25% em homens e de 24% em mulheres que apresentavam índice de massa corporal (IMC) de 27 a 29 kg/m2; já entre indivíduos com IMC maior que 30 kg/m2, a prevalência aumentou para 38 e 32% em homens e mulheres, respectivamente. As medidas preventivas na HAS, entre elas a redução do sobrepeso, são idênticas em qualquer fase da vida adulta e seus benefícios independem da idade. O estudo DASH (Appel et al., 1997) demonstrou que as dietas ricas em frutas, vegetais e produtos com pouca gordura saturada e colesterol são capazes de reduzir o peso e os níveis de pressão arterial (PA) em hipertensos e normotensos, portanto úteis na prevenção primária e secundária de HAS. Dentre os mecanismos implicados na fisiopatologia da HAS no idoso, encontra-se a sensibilidade alterada ao sal, muitas vezes consumido em excesso pela perda natural do paladar ou pelo consumo exagerado de produtos industrializados. A redução do peso e da ingestão de sal nesses pacientes demonstrou ser instrumento seguro e eficaz no controle da HAS (Whelton et al., 1998). A obesidade associa-se ainda a um processo de inflamação crônica, o que tem piorado o prognóstico de idosos obesos com a doença do coronavírus tipo 2 (covid-19) (Maioli, 2020). No quesito obesidade no idoso, algumas observações merecem ser feitas. O envelhecimento determina alterações na estrutura corporal como resultado de sarcopenia e lipossubstituição, aumento da cifose dorsal, redução dos espaços intervertebrais e, consequentemente, da estatura, dificultando a acurácia das medidas antropomórficas. Os índices disponíveis para mensurar e classificar a obesidade foram estabelecidos, como a seguir, para populações de jovens e de meia- idade: ■ IMC = peso em kg/quadrado da altura: normal: 18 a 24,9 kg/m2; sobrepeso: 25 a 29,9 kg/m2; e obesidade: ≥ 30 kg/m2 ■ Medida da circunferência abdominal (CA) = ≥ 94 cm nos homens e ≥ 80 cm nas mulheres ■ Índice cintura/quadril (ICQ) = CA/circunferência do quadril: masculino: > 0,99 cm; feminino: ≥ 0,97 cm. Esses aspectos levaram vários pesquisadores (Heiat et al., 2001) a estudar o impacto do peso corporal medido por IMC na mortalidade por todas as causas em indivíduos acima de 65 anos de idade. Para tanto, os resultados de publicações na Medline foram submetidos a revisões sistemáticas. Os resultados encontrados foram controversos, pois alguns não demonstraram qualquer relação entre risco aumentado de mortalidade e IMC entre 25 e 27; outros mostraram IMC ≥ 27 como fator prognóstico significativo para mortalidade cardiovascular e por todas as causas entre idosos de 65 a 74 anos de idade, e apenas um estudo demonstrou associação significativa entre IMC ≥ 28 e mortalidade por todas as causas em idosos com 75 anos de idade ou mais. Valores maiores de IMC foram consistentes com menor risco relativo de mortalidade em idosos comparados com populações jovens e de meia-idade. Os autores concluem que peso ideal de IMC de 18,5 a 75 anos) acompanhadas em ambulatório durante 5 anos. Os resultados indicaram que o melhor parâmetro de distribuição de gordura central entre as mulheres idosas foi o ICQ que, juntamente com baixo peso, foi preditor de mortalidade total em idosas de 60 a 80 anos de idade. Índices iguais ou superiores a 0,97 em mulheres brasileiras entre 60 e 80 anos de idade estiveram associados a maior risco cardiovascular. Em vista de tais resultados, o Departamento de Cardiogeriatria da SBC (DECAGE) vem recomendando (II Diretrizes em Cardiogeriatria, 2009), mantidas em sua atualização de 2019, como critério diagnóstico de obesidade em idosos as seguintes medidas: ■ IMC: peso normal: 18,5 a 27 kg/m2; sobrepeso: > 27 a 29,9 kg/m2; obesidade: ≥ 30 kg/m2 ■ CA: 102 cm em homens e 88 cm em mulheres ■ ICQ: > 0,99 cm em homens; ≥ 0,97 cm em mulheres. Sedentarismo O valor da atividade física no manejo dos FR modificáveis para a DCV tem sido observado em grande número de estudos. Embora não tenham sido avaliados especificamente para idosos, o bom-senso indica que os benefícios advindos desta prática possam lhes ser estendidos, desde que respeitadas as peculiaridades do envelhecimento. O Estudo Multicêntrico em Idosos (EMI) (Gravina Taddei et al., 1997), desenvolvido em 1995, coletou dados procedentes de ambulatórios de Geriatria e Cardiologia Geriátrica de 13 estados brasileiros. Nessa amostra, o sedentarismo foi o FR mais prevalente em idosos com DCV estabelecida. Verificou-se sua prevalência em 74% dos entrevistados, 79% no sexo feminino e 66% no masculino. Observou-se, ainda, a influência do avanço da idade no sedentarismo, presente em 70%, 76% e 88% dos idosos nas faixas etárias de 65 a 74 anos,75 a 84 anos e acima de 85 anos, respectivamente. A falta de incentivo à atividade física para o idoso é universal. Nos EUA, cerca de 50% dos indivíduos com mais de 60 anos de idade descrevem-se como sedentários. O risco relativo para DAC em sedentários varia de 1,5 a 2,4, de acordo com as diversas populações examinadas, sendo comparável aos fatores hipertensão, hipercolesterolemia e tabagismo (Physical Activity Guidelines, 2008; Public Health Focus, 1993), motivo suficientemente forte para modificar esta postura complacente em relação ao mau hábito. Programas de atividade física orientada podem diminuir o risco coronário, uma vez que, para além da própria doença, exercem seus efeitos sobre os FR da doença em si: aumentam os níveis de colesterol “bom” (HDL; do inglês high density lipoprotein), diminuem os níveis de triglicerídios, PA, peso corpóreo, melhoram a tolerância à glicose e corrigem a distribuição da gordura. O exercício físico previne ou retarda a manifestação de HAS e diabetes, como demonstrado em dois recentes estudos publicados (Tuomilehto et al., 2001; Knowler et al., 2002). A obtenção de ganhos em massa óssea e muscular, a recuperação da flexibilidade, coordenação motora e equilíbrio favorecem a reintegração social, com proveitos consideráveis sobre os transtornos do humor e qualidade de vida. Na DAC, a reabilitação tem demonstrado melhorar o limiar aeróbico, prolongando o tempo de atividade livre de angina. A prescrição de atividade física deve ser colocada no panorama global do paciente: doenças osteoarticulares, estado nutricional e anemia, força muscular, evidência ou não de DCV manifesta, doenças neurológicas e vasculares periféricas. A avaliação pressupõe uma consulta médica, exame físico detalhado e os exames complementares necessários, sem prescindir da análise do grau de motivação do paciente para seguir a orientação. A adesão é estimulada pelo esclarecimento das vantagens, riscos e benefícios do exercício, cuja modalidade será orientada pelo estado geral do paciente e adaptada aos gostos e limitações individuais. Os idosos mal condicionados preferem e toleram melhor as atividades físicas de baixa e média intensidade, sempre introduzidas gradativamente. A caminhada é a modalidade mais apreciada e segura, pois independe de aprendizado, é acessível, tem custo baixo e a vantagem de poder ser compartilhada com grupos de pessoas. É aconselhável, pelo risco de traumatismos ou de hipotensão postural, que a caminhada seja feita em terrenos pouco acidentados, evitando-se a exposição prolongada ao sol. Outras atividades físicas e seus gastos energéticos podem ser observados na Tabela 33.1. Uma vez que a incidência de doença isquêmica silenciosa entre idosos é elevada, é recomendável realizar teste ergométrico em esteira rolante ou cicloergômetro, precedendo a atividade física moderada ou intensa. O exame é valioso não só pela sua alta especificidade na detecção de isquemia de esforço induzida e de arritmias, como pela provisão de informações objetivas da capacidade física avaliada em equivalentes metabólicos (MET) e da frequência cardíaca ideal de treinamento, a ser fixada segundo o objetivo do treinamento. Outras atividades aeróbias de baixo impacto são a esteira rolante (Hagberg, 1989) e a bicicleta ergométrica. Nas atividades de alto impacto, como correr ou pular, a melhora da capacidade cardiorrespiratória é mais acentuada, mas o risco de lesões osteoarticulares e musculares sobrepassa os limites de segurança. A atividade física regular, em que pesem seus comprovados benefícios, exerce pouca atração em idosos. Esta aversão decorre de aspectos psicossociais como insegurança, dependência de companhia, resistência à mudança de hábitos e depressão. Quando associados às outras morbidades limitantes, estabelece-se um círculo vicioso em que cada fator realimenta e mantém os demais. Um aspecto relevante para esta inércia está relacionado com as alterações fisiológicas do processo de envelhecimento, maiormente representadas pela diminuição da capacidade aeróbica, alteração de relaxamento diastólico e diminuição da complacência pulmonar. Estas são responsáveis pela percepção de dispneia desproporcional aos esforços realizados. A experiência em programas institucionais demonstra que, superada a resistência inicial, o exercício físico se converte em porta de entrada para a integração do idoso em outras atividades associativas. Tem sido observado que o esforço esclarecedor dos médicos, divulgado amplamente na imprensa, vem obtendo êxito na reversão do sedentarismo, uma vez que este é o fator que apresentou maior tendência em mudanças nos resultados de estudos nacionais e internacionais. ■ TABELA 33.1 Atividades físicas e seus gastos energéticos. MET Atividade exercida 1 a 2 Andar a 1,5 km/h, costurar, pintar sentado 2 a 3 Dirigir carro, tocar instrumento musical 3 a 4 Boliche, jardinagem 4 a 5 Natação, dança lenta, bicicleta a 13 km/h no plano > 6 Andar com velocidade 7 km/h, nado vigoroso MET: equivalentes metabólicos. Tabagismo Dentre os hábitos adquiridos nos últimos séculos, o tabagismo pode ser considerado como um dos mais deletérios à saúde. Em muitas regiões, o cultivo do fumo e seus subprodutos industriais ou artesanais é o sustento econômico da população. A sedução publicitária gera o aumento crescente de jovens usuários e lucros absurdos para a indústria de cigarros. A formação de lobbies junto aos governos e a dependência econômica dos polos produtores se opõem às campanhas educacionais e às cruzadas antitabagísticas. Nos países mais pobres, o mau hábito cresceu 50% nos últimos anos, especialmente entre adolescentes. Segundo estimativas mundiais da Organização Mundial da Saúde (OMS), 47% dos homens e 12% das mulheres acima de 15 anos de idade são tabagistas. A limitação física e a morte prematura por doenças relacionadas com o fumo – DCV, doenças respiratórias crônicas e câncer – representam o tributo individual nas despesas pagas pela saúde pública e privada. Entre os vários FR cardiovascular analisados no EMI, o hábito de fumar foi o de menor prevalência, ocorrendo em 6% dos homens idosos e em 3% das mulheres participantes. Segundo o CHS, o tabagismo foi observado em 10% dos homens e em 13% das mulheres dentre os 5.201 idosos maiores de 65 anos de idade que participaram. Estudos iniciais sobre a importância do tabagismo em idosos causaram controvérsia ao sugerir que seu risco diminuía na proporção direta do envelhecimento (Seltzer, 1975). Entretanto, estudos posteriores demonstraram que seus males perduram mesmo em idades avançadas. O Chicago Stroke Study (Miettinen et al., 1976) analisou a mortalidade por DCV em 2.674 pacientes de 65 a 74 anos de idade, verificando que sua prevalência era 52% maior em tabagistas do que em não tabagistas ou ex-tabagistas. O Systolic Hypertension in the Elderly Program Study (Siegel et al., 1987) analisou pacientes com idade média de 72 anos, observando aumento significativo de infarto agudo do miocárdio (IAM), morte súbita e acidente vascular encefálico (AVE) em fumantes comparado aos não fumantes. No estudo Established Populations for Epidemiologic Studies of the Elderly, entre 7.178 idosos (50% acima de 75 anos de idade), as taxas de mortalidade cardiovascular e por todas as causas foram duas vezes maiores em tabagistas ativos que em não tabagistas. O mesmo estudo demonstrou benefícios na interrupção do hábito mesmo em idosos tabagistas de longa data, equiparando o risco de mortalidade cardiovascular entre ex-tabagistas idosos e aqueles que jamais fumaram. Um conceito vigente por muito tempo era o de que o idoso é resistente ao abandono do hábito de fumar. O estudo Courage (Teo et al., 2009) observou se a adição de stent não farmacológico em pacientes com DAC, associada a controle rigoroso dos FR e mudança no estilo de vida, reduzia eventos cardiovasculares, com comparação com aqueles que não recebiam stent e faziam apenas controle dos FR e mudança de estilo de vida. Não houve diferença entre os dois grupos, excetoem redução de angina por 3 anos e em pacientes com carga isquêmica alta; os pacientes do grupo stent evoluíram melhor. Em relação ao controle dos FR, houve uma nítida redução de abandono do cigarro no grupo dos mais idosos em comparação com os pacientes mais jovens, independente da colocação de stent ou não. Assim, recomenda-se a suspensão do tabagismo em todas as faixas etárias. O tabagismo passivo vem despertando interesse no meio médico, pois não tabagistas expostos ao fumo em ambientes coletivos podem desenvolver doenças, o que representa um importante problema de saúde pública (Dwyer, 1997). Kawachi et al. (1997) acompanharam, durante 10 anos, cerca de 32 mil mulheres com idades variáveis ente 36 e 71 anos, todas não tabagistas. Foi constatado que a longa exposição ao fumo aumentou o risco relativo de desenvolver DAC; quando ocasional, o risco relativo foi de 1,58, aumentando para 1,91 em exposições regulares. O tabagismo ativo ou passivo também é causa de demência, segundo publicação da OMS em 2014. O tabagismo é atualmente reconhecido como resultado da interação de fatores genéticos e ambientais. A dependência física e psíquica à nicotina varia em intensidade, determinando capacidades individuais distintas para abandonar o fumo. Vários estudos em epidemiologia molecular e genética sinalizam que o tabagismo em todos os seus aspectos – idade de iniciação, grau de dependência, capacidade de interrupção e suscetibilidade às doenças – é um comportamento multifatorial de polimorfismo genético. A possibilidade de identificar os marcadores biológicos determinantes de risco aumentado para a dependência física à nicotina abre novas perspectivas na abordagem preventiva e terapêutica da doença (Sotto-Mayor, 2004). A complexidade dos fatores envolvidos no tabagismo sinaliza a necessidade de estratégias institucionais e de profissionais habilitados para o seu manejo. O Ministério da Saúde, em parceria com as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde e setores da sociedade civil organizada, desde 1989 coordena as ações do Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT), desenvolvido para reduzir a iniciação ao hábito, promover sua cessação e diminuir os poluentes da fumaça do tabaco. Análises de custo/benefício realizadas pela OMS sugerem que os investimentos na cessação de fumar, por seus bons resultados a curto prazo, são superiores àqueles sobre a iniciação. O abandono espontâneo do tabagismo não é fácil nem habitual, dada a dependência física e psíquica. Por se tratar de um hábito crônico, o idoso está menos propenso a abandonar o tabagismo que os pacientes mais jovens. Na maioria das vezes, considera como interferência em sua vida, e não como preocupação da equipe de saúde com a melhoria de sua qualidade de vida. Estudos mostram que os tabagistas idosos apresentam menor intenção em abandonar o cigarro se comparados aos jovens, no entanto, eles apresentam maior probabilidade de sucesso quando tentam parar de fumar (Hall et al., 2008; Treating Tobacco Use and Dependence, 2008). Com frequência, o sucesso nessa interrupção é obtido após um evento coronariano agudo, agravamento de doença pulmonar obstrutiva crônica ou doença vascular periférica sintomática e limitante. O aconselhamento médico para a cessação do tabagismo deve ser firme, com ênfase nos benefícios a curto e médio prazos. Práticas agressivas relacionadas com a suspensão do tabagismo devem ser adotadas (Bratzler et al., 2002; Buckland; Connolly, 2005). Devido às fortes evidências de que o tabagismo é FR modificável para DCV em idosos, seu abandono é indicado. Para tanto, uma abordagem recomendável é o emprego do Método dos 4 “A”: averiguar (ask); aconselhar (advise); ajudar (assist); e acompanhar (arrange follow up), dadas as evidências (Andrews et al., 2004; Tait et al., 2007; Burton et al., 1995). Outras abordagens que podem ser utilizadas caso a caso são as intervenções por meio de aconselhamento individual realizado por profissionais da saúde, a distribuição de material de autoajuda adequado para a faixa etária, a utilização de nicotina (adesivos transdérmicos ou goma de mascar) ou o emprego de medicamento específico, como, por exemplo, a bupropiona, pois têm se mostrado eficazes no tratamento contra o tabagismo (Morgan et al., 1996). A observação da curva demográfica dos países constituintes do Grupo dos 7 mostra um estreitamento progressivo na diferença de sobrevida masculina e feminina em idades avançadas. Entre as causas dessa contração, estão as mudanças comportamentais do homem, proativas em relação ao abandono do tabagismo, na prevenção do câncer e DCV, em oposição ao estilo de vida da mulher que, sendo economicamente ativa, superajunta o trabalho às suas tarefas tradicionais de mãe e cuidadora e às tarefas do lar. A tábua de vida brasileira de 2018 revela que a esperança de vida ao nascer alcançou os 79,9 anos para a mulher e os 72,8 anos para o homem, persistindo o padrão de “sobremortalidade masculina” em determinadas faixas etárias mais jovens, fenômeno que pode ser explicado por causas externas e não naturais em decorrência de mortes violentas, como no trânsito e em homicídios (IBGE, 2018). O estudo INTERHEART (Yusuf et al., 2004) vem reforçar tal pensamento, na medida em que identificou em 52 países de todos os continentes os 9 maiores FR para o desenvolvimento de IAM. Seus resultados demonstram que tabagismo, níveis lipídicos, HAS, diabetes, obesidade, dieta, atividade física, consumo de álcool e fatores psicossociais correspondem a cerca de 90% dos casos de eventos cardíacos relacionados com a doença aterosclerótica e não são afetados por diversidades étnicas ou desenvolvimentistas. A universalidade desses fatores, a facilidade de sua detecção e a possibilidade de modificá- los resgatam a ideia de que o homem não necessita esperar pelas conquistas farmacogenéticas para fugir de um hipotético destino predeterminado. Sua propensão pode ser alterada por mudanças comportamentais refletidas no estilo de vida e nas relações com o meio social. O estilo de vida é também condicionado pelas percepções individuais dos valores sociais. Indivíduos esclarecidos adotam comportamentos ilógicos porque orientados pela dualidade do prazer e desprazer. É a moral da satisfação imediata de falsas necessidades a dificultar o processo de apreensão da realidade. Se a incorporação de medidas saudáveis pode beneficiar os idosos e conferir qualidade aos seus derradeiros anos, tais orientações devem ser instituídas já na infância e na fase adulta jovem, para que sejam mais bem usufruídas no futuro. O aprimoramento democrático e o exercício pleno da cidadania por meio da participação nos projetos de ação e integração social é um caminho para dar sentido à vida. 35 Aterogênese Pedro Rousseff • José Maria Peixoto • Isabela Moraes Vargas • Rodrigo Ribeiro dos Santos Um homem é tão velho como suas artérias. (Thomas Sydenham) Introdução A frase dita há alguns séculos por Thomas Sydenham, pai da medicina inglesa, suscita inúmeras reflexões ainda hoje. A aterosclerose ganha destaque na literatura médica no século XX. A descrição inicial do termo “doenças cardiovasculares” (DCV) por Louis Faugeres Bishop, no seu livro intitulado Arteriosclerosis (1914), mostra há quanto tempo os autores se debruçam sobre o tema deste capítulo. A associação da aterosclerose com envelhecimento também não é novidade. Ignatz Nascher, no seu livro Geriatrics: the disease of old age and their treatment (1914), afirma que a “aterosclerose senil” é a degeneração mais frequente e com as consequências mais importantes (Nascher, 1914). A partir dessas afirmações de Sydenham e Nascher, pode-se questionar, por exemplo, se ainda hoje seria apropriado considerar envelhecimento arterial normal e aterosclerose como partes de um mesmo continuum, pois ambos se interconectam e compartilham, inclusive, de mesmos mecanismos moleculares. A afirmativa de Nascher sobre o impacto da aterosclerose ainda é apropriada quando avaliamos a prevalência das DCV no mundo, particularmenteno Ocidente. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as DCV (incluem doença arterial coronariana [DAC] e acidente vascular encefálico [AVE]) constituem o grupo de doenças não transmissíveis mais comum no mundo, responsáveis por 17,8 milhões de mortes no ano de 2017, das quais mais de três quartos ocorreram nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento (Kaptoge et al., 2019). A aterosclerose é o elemento central na fisiopatologia da maioria dessas DCV, que figuram entre as causas mais prevalentes de redução de funcionalidade em idosos, fato observado analisando-se alguns dos indicadores de análise da carga das doenças sugeridos pela OMS, como o Disability Adjusted Life Years, que incorpora os conceitos de morte prematura, anos vividos com incapacidade e anos de vida saudável (Kyu et al., 2017). Retomando o questionamento inicial sobre a ideia de continuum, pontua-se a difícil tarefa dos estudos em isolar os efeitos da senescência e da senilidade para elucidar realmente quais são as alterações fisiológicas puras do envelhecimento. A distinção dos limites do processo de envelhecimento cardiovascular normal da fase inicial da aterosclerose é um desafio. Contudo, as alterações da senescência na morfologia e na fisiologia das artérias são consideradas como um processo distinto da arteriosclerose (Xu et al., 2017; Iurciuc, 2017). Acredita-se que a idade é o fator de risco individual mais importante para aterosclerose, e estudos experimentais e observacionais sugerem que a senescência, ao alterar as artérias, amplifica as consequências patológicas e clínicas dos outros fatores de risco já estabelecidos. Assim, a prevalência, a incidência e a gravidade da aterosclerose aumentam significativamente com o envelhecer, e, agregada aos outros fatores, ela aumenta substancialmente o risco de eventos (Félix-Redondo et al., 2013). A compreensão da aterosclerose como um processo distinto do envelhecimento vascular possibilita identificar alvos terapêuticos específicos e, portanto, reduzir a carga das DCV. Motivo pelo qual, no fim deste capítulo, apresentaremos algumas intervenções e alvos terapêuticos no processo da aterogênese. Contexto histórico A despeito de considerarmos a aterosclerose como uma doença do mundo moderno, ela já havia sido descoberta nas artérias das múmias egípcias há mais de 3.500 anos (Ruffer, 1911). Teve sua descrição inicial feita, provavelmente, por Leonardo da Vinci, que demonstrou em uma ilustração de lesões arteriais na necropsia de um homem idoso a aparência macroscópica das artérias ateroscleróticas. Johann Lobstein (que cunhou o termo “aterosclerose” em 1893), cirurgião francês, nascido na Alemanha, patologista muitos anos mais tarde, considerava a arteriosclerose como um endurecimento da parede arterial causado pela remodelação do tecido em resposta ao envelhecimento, disfunções metabólicas e estresse hemodinâmico (Lorkowski; Cullen, 2007). O médico alemão Felix J. Marchand utilizou pela primeira vez, em 1904, o termo aterosclerose (palavra de origem grega athero = gruel = pasta e skleros = endurecimento) para enfatizar as características macroscópicas da doença. Uma das primeiras teorias sobre a aterosclerose foi postulada por Rudolf Virchow, patologista alemão e estadista, em 1853. Por meio do exame de lesões ao microscópio, propôs que essa doença deveria ser resultado de um processo inflamatório crônico da íntima do vaso (Lorkowski; Cullen, 2007). Osler (1892) sugeriu uma ligação entre o desenvolvimento da aterosclerose e a infecção, que funcionaria como um estimulador da resposta imune, associação que tem sido estudada na busca do desenvolvimento de vacinas contra a doença vascular aterosclerótica (Dyer et al., 2006; Puijvelde et al., 2008). Em 1973, o patologista norte-americano Russell Ross publicou uma revisão sobre a aterosclerose e propôs a teoria da lesão endotelial e consequente inflamação no desenvolvimento da aterosclerose. Ross tem inúmeras publicações sobre o tema, e sua teoria persiste até os dias atuais, com acréscimos de conhecimento trazidos pela biologia molecular e pelos inúmeros métodos de imagem acoplados no estudo das características das placas in vivo (Ross, 1999). Na Tabela 35.1, apresentamos as primeiras teorias sobre aterosclerose. Aterosclerose e resposta à lesão Aterosclerose é um processo sistêmico complexo, multifatorial, heterogêneo (a patologia da hipercolesterolemia familiar homozigótica é distinta desse contexto), com progressão imprevisível, em que a maioria das placas permanece assintomática, outras promovem obstrução coronariana lenta e progressiva, responsáveis pela isquemia miocárdica demanda dependente (angina estável) e outro grupo progride para trombose, ocasionando as síndromes coronarianas agudas (SCA; angina instável e infarto agudo do miocárdio [IAM]). ■ TABELA 35.1 Teorias da aterogênese. Teoria da “incrustação” (camadas) Proposta por Rokitansky, em 1851, sugere que a aterosclerose começa na íntima com o depósito do trombo com subsequente organização pela infiltração de fibroblastos e secundária deposição lipídica Teoria lipídica/proliferativa Em 1853, Virchow propôs que a aterosclerose se iniciava com a infiltração lipídica na parede arterial e sua interação com elementos celulares e extracelulares, causando “proliferação intimal” Teoria da resposta à lesão endotelial Em 1973, Ross propôs uma teoria unificadora – a aterosclerose se originava a partir de um dano endotelial, o que faria o endotélio ficar suscetível ao acúmulo lipídico e depósito do trombo Variados fatores de risco são reconhecidos na aterosclerose. Os estudos epidemiológicos tradicionais identificaram hipercolesterolemia (colesterol de lipoproteína de baixa densidade [LDL-c] elevado e modificado), tabagismo (aumenta liberação de radicais livres), sexo masculino, hipertensão arterial sistêmica (HAS), obesidade, diabetes e o envelhecimento como os principais fatores de risco. O papel das alterações genéticas, microrganismos infecciosos e das combinações desses fatores, além de outros marcadores de risco, estão envolvidos na aterogênese. Apesar da grande interconexão entre eles, o mecanismo da doença aterosclerótica a partir do LDL-c é o mais bem elucidado (Bentzon, 2014). Esses fatores tradicionais estimulam uma resposta imune pró-inflamatória, que contribui de maneira significativa para progressão da doença aterosclerótica. Os produtos da glicação associados ao diabetes aumentam a produção de citocinas pela célula endotelial vascular. Através das ações da angiotensina II, a HAS pode estimular uma resposta pró-inflamatória vascular (Ahmed, 2005). O papel do sistema imune modulando a aterogênese é sugerido há vários anos (Tegos et al., 2001). Didaticamente, as etapas do desenvolvimento das lesões ateroscleróticas podem ser sumarizadas como apresentado na Figura 35.1. Papel do endotélio O processo aterosclerótico inicia com a disfunção endotelial. Como regulador da homeostase vascular, o endotélio íntegro mantém o balanço entre vasodilatação e vasoconstrição, inibição e estimulação da proliferação e migração das células musculares lisas (CML), entre trombogênese e fibrinólise. Quando a disfunção endotelial se instala, esse balanço é interrompido, causando dano à parede arterial e iniciando-se o processo da aterogênese. A maioria dos efeitos ligados à homeostase vascular são relacionados com as ações do óxido nítrico, o mais potente vasodilatador endógeno, com papel também na inibição da oxidação do LDL-c. Um defeito na sua produção ou atividade pode, por si só, levar à disfunção endotelial (Libby, 2001). O dano endotelial (que pode ser causado por uma série de fatores de risco e/ou alterações hemodinâmicas) foi classificado da seguinte forma (Fuster, 2005): ■ Tipo I: lesão vascular envolvendo mudanças funcionais no endotélio com mínimas mudanças estruturais (i. e., aumento da permeabilidade às lipoproteínas e às células brancas/adesão) ■ Tipo II: lesão vascular envolvendo rompimento endotelial com mínima trombose ■ Tipo III: