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1 Maria José – em busca de um lugar no mundo1 Profa Dra. Ana Maria Capitanio RESUMO Paulo é um psicólogo que participa do Grupo de Estudos em Psicologia Social. Ele trabalha numa ONG que ajuda famílias em situação de vulnerabilidade. Dentre as várias histórias que conheceu, ele ouve a de Maria José e sua inusitada família que é permeada de abandono, sofrimento e luta pela sobrevivência. Atualmente, Paulo está intrigado com a história contada por Maria José que, aliás, está passando por um conflito. Mas Paulo, na verdade está preocupado é com o nível de consciência que Maria José tem de si e como sua identidade foi se transformando no decorrer de sua vida, pois quando lhe pergunta sobre sua história, sobre quem era, ela responde contanto sobre a vida de outra mulher (Mônica)! Paulo acredita que depois de compreender essa história, do ponto de vista psicológico, terá condições de compreender o conflito que Maria José se encontra e, assim, poder ajudá-la. PALAVRAS-CHAVE Identidade; Consciência; Representações Sociais; Processo Grupal. O Grupo de Estudo Boudet2 (GEB), na região da grande São Paulo/SP, é uma Organização não Governamental (ONG) com cerca de 50 anos de fundação. Esta ONG foi a realização de um sonho de algumas pessoas que tinham em mente ajudar famílias vulneráveis de um bairro da Região Sul da cidade, cercado por extrema pobreza. Contando com doações materiais de anônimos e associados, atualmente tem, ao todo, quatro unidades com atendimentos específicos. A maioria das pessoas que lá trabalha é voluntária. Existem alguns poucos funcionários, entre estes, dois psicólogos e uma assistente social. Esses profissionais trabalham duas vezes por semana, totalizando 12 horas cada um deles. Eles alternam os atendimentos em manhãs e tardes. Os psicólogos respondem diretamente à presidente da 1Esse caso foi retirado de uma tese de doutorado e não é cópia fiel do original, uma vez que foi adaptado para atender a fins didáticos. O nome da ONG e dos personagens citados são fictícios. Orignal: PINHO, Luiz Fernando Sempionato Vieira. As Emoções na constituição da Identidade: a questão do sofrimento e o papel da solidariedade para a emancipação. Tese de Doutorado. PUC-SP, 2014. 2Todos os nomes utilizados neste caso são fictícios. Estudo de Caso 2 ONG. O GEB segue a Doutrina Kardecista, entretanto, não tem tratamento diferenciado a quem se disser espírita ou de outra religião, etnia, orientação sexual, preferência política etc., para o seu acolhimento. POLÍTICAS DE ATENDIMENTO A referida ONG promove diversas formas de atendimento à comunidade e, entre elas, acolhe cerca de 330 famílias por semestre com duas distribuições no ano. Em Junho com roupas, blusas, alimentos e cobertores (dependendo das doações); Em Dezembro com roupas, alimentos e alguns produtos para o natal (dependendo das doações). Triagem É a porta de entrada de todos os serviços assistenciais do GEB. De 330 famílias por semestre, é selecionada uma parte delas para participar do Programa de Família Assistida ou Adotada. Critérios para ser uma Família Assistida (Adotada) A triagem é realizada pela assistente social, que segue os seguintes critérios determinados pela equipe gestora: famílias que passam por dificuldades momentâneas ou que, por meio de estímulos, possam ser reintegradas à sociedade. São traçados objetivos para essas famílias conquistarem até o término da adoção que varia em torno de seis meses. Esses objetivos abrangem, entre outras coisas, participação em cursos, melhoria da higiene da casa, educação e saúde de todos os familiares, participação de cursos e participação de processos seleletivos em empresas parceiras para recolocação profissional ou acesso ao primeiro emprego. O GEB passa a fornecer gêneros alimentícios a cada duas semanas, sendo assim, o dinheiro que essas famílias gastariam com alimentos poderá ser utilizado nos objetivos da adoção. Todas as famílias que passam pela triagem recebem a “Distribuição Semestral” (são kits com roupas, sapatos, gêneros alimentícios, material escolar para as crianças, itens de higiene) e algumas famílias, de acordo com determinados critérios de seleção, poderão fazer parte do trabalho de Família Assistida. Para a comunidade da região e bairros periféricos a este, o GEB oferece também: Creche: inscrições mediante a abertura de vagas; Curso de gestante; Sopa: segunda a sábado das 11h às 13h. Além desse atendimento interno, há ainda o caminhão do GEB que sai em alguns pontos da região para distribuir a sopa, já que muitos não podem se deslocar por condições adversas; Cabeleireiro: 1º e 3º sábados do mês; Cursos oficializados: todos dependem de avaliações, sendo que as datas e matrículas são fixadas no mural do GEB (cursos de panificação; corte e costura; qualificação profissional e informática); • • • • • • • 3 Farmácia: remédios com receita prescrita com o mínimo de 30 dias, no entanto, é solicitado que procurem primeiro a Rede Pública; Fraldas: cadastro para receber as fraldas, pois devido à grande procura há uma lista de espera; Advogado: 1º e 3º sábados do mês, sendo que estes não irão acompanhar o caso, só orientam o que fazer, e quais os documentos necessários etc. Curso artesanato: trabalhos manuais. O caso que se segue foi relatado por Paulo, um dos psicólogos que atende a ONG e que está preocupado com uma das frequentadoras. Ao conhecer a história dela, Paulo sentiu- se confuso com o emaranhado de informações que ela apresentou ao ser perguntada sobre quem ela era e qual era sua história. Paulo participa de um Grupo de Estudos em Psicologia Social de uma Universidade Privada da Região Sul de São Paulo e levou o caso para ser discutido e esclarecer os conceitos teóricos observados na prática profissional e, sobretudo, para formular uma hipótese diagnóstica sobre a situação atual da frequentadora. A seguir, veja o depoimento de Paulo sobre seu encontro com a frequentadora. • • • • “A primeira vez que entrevistei Maria José foi num sábado, em mais um dia de atendimento às famílias do entorno de uma região periférica da cidade de São Paulo. Depois tivemos mais dois encontros, totalizando três entrevistas individuais. Fiz duas perguntas para ela: “Quem é você?” e “Qual é a sua história?” Maria José veio ao GEB para buscar ajuda para uma amiga que passava por dificuldades físicas, materiais e psicológicas e como estava numa condição de pouquíssimos recursos, não conseguia ajudá-la. Maria José fez breves comentários, suficientes para despertar meu interesse. Ela contou-me que é de família simples, extremamente religiosa, composta de pai, mãe e seis irmãos. Completou o ensino fundamental e trabalhava na lavoura, em uma fazenda, aos arredores de sua casa, no interior de uma cidade nordestina. Aos 14 anos, ficou grávida do namorado. Seu pai, religioso e rígido em seus valores, não aceitou essa situação e expulsou a adolescente de casa, dizendo a ela que ‘envergonhava a família e agora que seria mãe, ele não tinha mais obrigações com ela, seu homem que cuidasse dela!’. Assim, a menina de 14 anos foi abandonada pelos pais e sem orientação e sem ter para onde ir, foi morar na casa da sogra, na Zona sul, da cidade de São Paulo, com o marido, quase com a mesma idade de Maria José. Na cidade grande, a jovem migrante tenta conciliar o papel de mãe com a de esposa, além de trabalhar com o marido numa churrascaria para sobrevivência da família. O casamento durou 10 anos, quando Maria José descobriu que o marido, taxista, tinha outra mulher. Revoltada com a traição e com a predisposição do marido em trocá-la pela nova companheira e, sentindo-se abandonada, pela segunda vez sai de casa com os três filhos. Sem ter para onde ir, pediu abrigo aos pais, que por conta das dificuldades encontradas no sertão nordestino, também vieram morar em São Paulo. No entanto, eles não a aceitaram, alegando que teriam que sustentar mais‘quatro bocas’. Maria José se viu obrigada a devolver seus filhos para o ex-marido e sua nova companheira. Sem emprego e sem apoio, foi morar na rua, embaixo de marquises. Para sobreviver, se tornou catadora de sucatas e com o dinheiro da venda desses materiais recicláveis, comprava bala e chiclete para vender em faróis. 4 Certa noite, uma mulher que esperava o farol abrir se interessou pela vida de Maria José e esta lhe contou sua história. A mulher se comoveu e a convidou para morar e trabalhar em sua casa. Ajudou-a a tirar seus documentos e sua vida começa a mudar. Mais adiante ela foi morar e trabalhar na casa de Mônica, uma das irmãs de sua ex-patroa. Descobriu, então, que tanto Mônica quanto o marido tinham o vírus HIV. O marido morre, mas Mônica permaneceu doente e com um agravante: era usuária de drogas. Isso leva Mônica a vender todas as coisas da casa para comprar drogas, pois não conseguia mais trabalhar devido ao avanço da doença. Vendeu até mesmo os pertences pessoais de Maria José. Mônica foi internada várias vezes em clínicas e quando voltava melhor, saía à noite e ficava pela madrugada indo aos bares do bairro. Por inúmeras vezes, Maria José ia a sua procura. Quando encontrava Mônica, ela lhe agredia verbalmente, dizendo-lhe para ir embora e que a deixasse em paz. Mônica tinha três crianças: a mais nova tinha cerca de 2 anos, um menino com 6 e uma menina com 9 anos. Esta última, inclusive, saía à noite sozinha pelas ruas, à semelhança de Mônica. Mônica mandava os filhos pedirem dinheiro pelas ruas, a fim de obter o sustento da família e para as drogas também. Maria José ficava transtornada com essa situação e, ela que havia aceitado o trabalho na casa de Mônica para serviços domésticos, passou a cuidar dos filhos: dava banho, alimentava-os, levava-os à escola e, logicamente, cuidava da própria Mônica. Quando Mônica ficou bastante debilitada, Maria José resolveu procurar o GEB para receber algum tipo de ajuda (cestas básicas). O GEB acolheu a família e passou a acompanhá-la semanalmente. Mônica, percebendo que não tardaria muito em morrer, resolveu pedir para os voluntários do GEB que encontrassem uma família para seus filhos, pois não queria que eles ficassem sob a tutela do Estado e desejava dar um destino às crianças. Maria José pediu para ficar com as crianças, pois os parentes mais próximos de Mônica não os queriam, com receio que tivessem problemas com eles, tanto do ponto de vista social, pois as crianças foram ‘educadas de jeito diferente’, quanto da saúde, pois tinham medo de eles estarem também contaminados com o vírus. Antes mesmo de Mônica falecer, o Juiz deu a guarda das crianças para Maria José e ela se tornou mãe delas. Faz três anos que Mônica faleceu. A menina mais nova gosta muito de Maria José, o menino, que hoje tem cerca de 12 anos, não dá trabalho. E a menina mais velha, com cerca de 16 anos, se casou recentemente e, sempre vai à casa de Maria José ver como estão os dois irmãos, aconselhando-os a obedecerem à mãe. A casa, na verdade, pertence aos filhos de Mônica. Maria José não vê, praticamente, seus três filhos biológicos que foram cuidados por outra mãe. Seus pais morreram e ela disse que não guarda mágoa deles e nem tão pouco do ex-marido. Continua a trabalhar para melhorar a vida das crianças, seu objetivo maior. Maria José, repetidamente, faz afirmações sobre seu comportamento exemplar, que foi uma boa mãe e que repetia sempre para seus filhos que ‘dessem bons motivos para que os avós se orgulhassem deles’. Ela costuma dizer que: ‘Hoje minha filha mais velha é casada, os meus filhos não têm o vírus no sangue. Meus filhos tão aqui, são saudáveis. Minha filha é casada, tem juízo, não tem filho’. 5 Maria José empreende enorme esforço para manter sua família: lava roupas para os vizinhos, leva e busca crianças de outras famílias na escola, ganhando 30, 40 reais por mês para cada criança. No entanto, atualmente, Maria José anda bem nervosa, chorosa e muito preocupada, pois soube de duas crianças que foram abandonadas e ela está pensando em ‘adotá- las’. Os vizinhos a aconselharam a não se envolver nesse assunto, já que, na opinião deles, as crianças deveriam ser cuidadas pelo Estado. Maria José diz saber ‘o que é não ter ninguém nessa vida’. Maria José está com 60 anos e ainda tem um sonho: trabalhar numa escola. Ela diz que, como não tem mais preocupações para cuidar de filhos, não sabe se ‘adota as duas crianças’ ou, finalmente, segue seu sonho. Por fim, Maria José faz questão de todo momento afirmar como seus filhos estão bem, distantes das drogas, dos vícios, da marginalidade e de como é uma boa mãe. Percebe- se, atualmente, que Maria José fala de sua história de vida como uma mãe que educou seus filhos mesmo diante de tantas adversidades. Ela não é mais assistida pelo GEB, mas, a cada 15 dias participa dos grupos terapêuticos e palestras, pois ’se sente bem e muito lhe acrescenta em termos de visão do mundo’.” Depois da análise da história de Maria José, Paulo entende que analisar, do ponto de vista da Psicologia Social Crítica, é examinar detalhadamente todos os pormenores que formam um todo. A partir disso, ele terá condições de elaborar hipóteses diagnósticas, ainda que temporárias (temporárias porque a vida está em movimento e em um contexto sócio-histórico) sobre o estado atual de Maria José para poder orientá-la em sua decisão. Dessa forma, imagine que você está no lugar de Paulo e elabore uma ou mais hipóteses diagnósticas, tendo em vista as seguintes questões. 1. O conflito de Maria José poderia estar relacionado a questões de identidade em transformação, ainda que esteja com 60 anos de idade? 2. Qual seria o nível de consciência que Maria José tem de si? Como a ideologia interfere no nível da consciência? 3. Como sua identidade foi se metamorfoseando no decorrer de sua vida? 4. Por que, quando Paulo perguntou sobre sua história, sobre quem era, ela lhe respondeu contando sobre a vida de outra mulher (Mônica)? 6 REFERÊNCIAS PINHO, Luiz Fernando Sempionato Vieira. 2014. 132 f. As emoções na constituição da identidade: a questão do sofrimento e o papel da solidariedade para a emancipação. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 13 jan. 2020.