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JELSON OLIVEIRA Organizador A linguagem ao mesmo tempo rica e faz desta obra uma contribuição para O debate nacional sobre os problemas que as lentes de seus autores ajudam a enxergar, sobre os quais eles jogam luzes, em benefício do debate aberto e competente que, nesse caso, ultrapassa a mera formalidade acadêmica, para alcançar que emerge hoje como problema social e político, dado O nosso tempo histórico e O nosso espaço Poucos países do mundo vivem, hoje, a necessidade de pensar as políticas tecnológicas e tomar decisões centrais para O presente e futuro, como Brasil. Ao escrever seus textos, autores que aceitaram participar deste trabalho, desde a análise dos filósofos e problemas escolhidos, compartilham saberes e, acima de tudo, compromissos que ultrapassam O livro, levando a filosofia para a praça pública - lugar onde ela, afinal, deveria permanecer, em benefício próprio. Ali, na ágora, O livro é uma convocação aos leitores. Porque não só apresenta diferentes posições, mas sobretudo porque, ao O leitor se sentirá fortemente instado a opor-se a opiniões e a criar desavenças nascidas dos liames dos elos não revelados, dos nós desabotoados que, como quem tem em mãos as pontas de muitos fios, podem ser amarrados por quem lê até que, afinal, ele mesmo se sinta acionado a ocupar seu lugar na praça. Falando hiperbolicamente, O livro é uma convocação. OSOFIA DA SEUS AUTORES E SEUS PROBLEMAS ISBN 978-65-5807-016-0 Prefácio de Ivan DominguesJelson Oliveira [organizador] FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL Presidente: Quadros dos Santos UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL Reitor: Evaldo Antonio Kuiava Vice-Reitor: Odacir Deonisio Graciolli de Pesquisa e Juliano Rodrigues Gimenez FILOSOFIA DA Pró-Reitora Acadêmica: TECNOLOGIA Nilda Stecanela Diretor seus autores e Candido Luis Teles da Roza seus problemas Chefe de Gabinete: Gelson Leonardo Rech de Ivan Domingues Coordenadora da Educs: Simone Côrte Real Barbieri CONSELHO EDITORIAL DA EDUCS Adir Ubaldo Rech (UCS) Asdrubal Falavigna (UCS) - presidente Cleide Calgaro (UCS) Gelson Leonardo Rech (UCS) Jayme Paviani (UCS) Juliano Rodrigues Gimenez (UCS) Nilda Stecanela (UCS) Simone Côrte Real Barbieri (UCS) Terciane Ângela Luchese (UCS) Vania Elisabete Schneider (UCS)de Jelson Oliveira Imagem capa: PIRO4D por Pixabay Revisão: Ivone Polidoro Franco Editoração: Traço Diferencial Prefácio Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Florilégio / 9 Universidade de Caxias do Sul UCS - BICE - Processamento Técnico Ivan Domingues F488 Filosofia da tecnologia : seus autores e seus problemas / org. Jelson Oliveira. Introdução / 17 Caxias do Sul, RS : Educs, 2020. Jelson Oliveira 236 p.; 23 cm. Apresenta bibliografia 1 ANDERS, GÜNTHER ISBN 978-65-5807-016-0 A oportunidade da obsolescência 1. Tecnologia - 2. I. Oliveira, Jelson. Agostino Cera CDU 2. ed.: 1:62 2 BACCA, JUAN DAVID para o Entre técnica, artificialidade e cria 1. Tecnologia - Filosofia Bruno Vasconcelos de Almeida 1:62 2. Filosofia 1 3 BORGMANN, ALBERT Catalogação na fonte elaborada pela Hipermodernidade, informação e Carolina Machado Quadros CRB 10/2236 Luiz Adriano Gonçalves Borges 4 BUNGE, MARIO Uma filosofia exata da tecnologia Alberto Cupani 5 CANGUILHEM, GEORGES ireitos reservados à: A técnica entre útero artificial e a retrovírus / 71 EDITORA AFILIADA Marco Martins Rodrigues e Editora da Universidade de Caxias do Sul Francisco Getúlio 1130 - CEP 95070-560 Caxias do Sul RS - Brasil Caixa Postal 1352 CEP 95020-970 - Caxias do Sul - RS Brasil 6 DELEUZE, GILLES lefone / Telefax: (54) 3218 2100 2197 e 2281 DDR: (54) 3218 2197 Um pensamento sobre a técnica / E-mail: educs@ucs.br Eladio C. P. CraiaLLUL, JACQUES 17 KAPP, ERNST construção do conceito de técnica moderna 93 A gênese da philosophie der technik / 207 anessa Delazeri Mocellin Luiz Henrique de Lacerda Abrahão EENBERG, ANDREW 18. KROES, PETER desenvolvimento tecnológico é uma arena política / 105 A escola holandesa: uma introdução / 221 ristiano Cordeiro Cruz Gilmar Evandro Szczepanik MICHEL 19. LEROI-GOURHAN, dois registros da tecnologia: e estudos A mão, cérebro, a técnica e a evolução / 231 / 115 Luis Hernandes Matos Leite e Luiz Henrique de Lacerda Ratton 20. ORTEGA Y GASSET, JOSÉ EHLEN, ARNOLD Cinco teses sobre a técnica / 243 técnica desde um ponto de vista antropológico / 125 Diego Lawler e Dario Sandrone ndell E. S. Lopes 21. SEVERINO, EMANUELE ABERMAS, JÜRGEN A essência do niilismo e destino da técnica / 261 ecnologia entre instrumentalidade e comunicação / 141 Rossano Pecoraro Fernandes 22. SIMONDON, GILBERT RAWAY, DONNA A técnica como pensamento e objeto / 271 ecnologia entre a ontologia e a política / 151 Pedro Mateo Kritski e Veronica Ferreira Bahr Calazans ilia de Sousa Neves 23. SLOTERDIJK, PETER IDEGGER, MARTIN As antropotécnicas e os limites do parque humano / 283 écnica como Ge-stell. De facto antropológico a paradigma Leonardo Nunes Camargo cal da modernidade tardia / 161 e Borges-Duarte 24. SPENGLER, OSWALD A técnica e declinio da civilização / 293 TTOIS, GILBERT Lilian S. Godoy Fonseca nica, ética e transumanismo / 171 Candido de Azambuja 25. VIEIRA PINTO, ÁLVARO Brasil como problema. Parte um: a filosofia da técnica / E, DON Jairo Dias Carvalho relações humano-tecnologia / 181 Buenos Aires de Carvalho de filósofos por perspectivas teóricas / 323 AS, HANS de filósofos por épocas de produção teórica / 325 pilares para a filosofia da tecnologia / 193 de filósofos por regiões geográficas / 327 Oliveira Sobre os autores / 329 6 7PREFÁCIO FLORILÉGIO FILOSÓFICO Este livro é uma obra de divulgação e traz a lume as contribuições de cerca de 25 estudiosos preocupados com a presença e impacto da tecnologia no mundo contemporâneo, visada na perspectiva da filosofia e tendo, pois, a filosofia da tecnologia como locus comum e campo de problemática. A origem foi uma encomenda ou, antes, uma proposta da coordenação do Grupo de Trabalho em filosofia da tecnologia e da Técnica (doravante GT, por comodidade), ligado à Associação Nacional de Pós- Graduação em Filosofia (Anpof) e constituído por uma grande variedade de pesquisadores, com diferentes expertises e afiliações intelectuais, espalhados nos quatro cantos do País e vinculados a diferentes instituições acadêmicas. Antes que os resultados da iniciativa viessem a público na presente obra, o GT organizou, em plena pandemia, no curso do mês de maio, um Virtual com título muito a propósito de Filosofia da seus problemas e seus autores, em que os autores puderam discutir os principais achados e fornecer aquilo que seria a avant-première do livro. Os problemas tratados eram de várias ordens e com interseções de diferentes disciplinas como a ética e a ontologia. E os autores-objeto, igualmente, oriundos de diferentes países e tradições do Ocidente, um rico e diversificado mosaico. Tal mosaico de problemas e autores, já anunciados no título do aumentou ainda mais, na sequência dos trabalhos, com a incorporação de novos temas, problemas e autores, devido à inclusão de mais colegas e pesquisadores, associados, ou não, ao GT, que atenderam à chamada à comunidade, e resultado é o que está: nada menos de 25 capítulos, um elenco de 25 autores-pensadores e 26 estudiosos (houve uma parceria, incluindo mais uma vez um colega), compondo aquilo que os eruditos chamavam para as antigas antologias, com o selo das belas letras, de florilégio:Trata-se de um feito único no mercado editorial brasileiro, no campo (ver site do NEPC e também Ivan Domingues [org.], Editora UFMG, da filosofia da tecnologia, cuja presença, em nossos meios, salvo autores 2012 e 2018). No plano autoral, com a proposta, digamos assim, de isolados, como Álvaro Vieira Pinto, não chega a vinte anos, sendo que apresentar a filosofia da tecnologia ao público brasileiro, portanto como nosso GT foi fundado em 2015. obra de divulgação, cabe dar todo o destaque ao livro de Alberto Cupani, Para leitor fazer uma ideia da situação, contam com duas mãos os também ligado ao GT e um dos pioneiros da filosofia da tecnologia no de filosofia da tecnologia publicados pelas principais revistas de Brasil: Filosofia da tecnologia: um convite. 2. ed. Editora da filosofia. No início deste ano, foi publicado um com igual título UFSC, 2013. pela Filosofia Unisinos (cf. n. 21, jan./abr., 2020), com a participação de Penso que é bastante. membros do GT, do qual eu fui editor-convidado. Cinco anos antes a Passando para o livro do GT, salta às vistas a diversidade de revista Dois Pontos publicou o Técnica e Filosofia, igualmente com perspectivas e a tremenda instabilidade, beirando colapsamento, que membros do GT, então em constituição, e uma variedade de outros experts cerca os conceitos e os problemas tratados. Numa vertente, vamos brasileiros e franceses (cf. 12, n. 1, 2015). No mesmo ano, a revista encontrar aqueles estudiosos que assimilam técnica e tecnologia, outros Aurora publicou um sobre Feenberg, a partir de um evento realizado que as diferenciam, havendo, também, aqueles que buscam a origem da em Uberlândia, em parceria com NEPC, com a presença do filósofo técnica na poiesis, outros na práxis ou na ação e, mesmo na magia, como norte-americano. A mesma revista, com a vocação de precursora, tinha no caso de Simondon. Noutra vertente, vamos encontrar aqueles que se publicado, em 2012, um sobre Técnica em Heidegger e Jonas, dão por satisfeitos ao remontar à origem da técnica na Antiguidade grega, como resultado de um congresso realizado em 2011. Na mesma linha, a ao passo que outros, não contentes, irão recuar até o paleolítico em busca revista Pensando, da UFPI, publicou dois sobre Filosofia da Técnica, da evidência do tempo mais remoto quando tudo começou, com a mão e com membros do NEPC e do (futuro) GT, respectivamente, em 2013 e 2017. Não faz um mês a revista Dialectus, da UFC, publicou polegar, além do sílex, servindo de primeiras ferramentas: veja-se Leroi- Filosofia da Técnica e Educação (cf. n. 17, 2020) e, na mesma ocasião, Gourhan, que era um porém não um filósofo, mas cuja obra é anunciou outro, na sequência, devendo sair no final do ano. plena de potencial e cujos ecos vamos encontrar em Simondon, como na noção de evolução técnica, ainda que Simondon não reconheça Além dos seria preciso adicionar os artigos e os ensaios de abertamente suas dívidas com grande Por outro lado, membros do GT, ou não, e, como tais, frutos de iniciativa individual em não faltarão aqueles que vão fazer economia dos tempos geológicos e diferentes contextos da pesquisa. Contudo, se eu fizesse, iria encompridar em demasia este razão pela qual renuncio, para ficar com aqueles antigos para entrar de corpo inteiro na contemporaneidade, quando a que incidem diretamente sobre GT e seu percurso, bem como sobre a técnica atingiu níveis nunca vistos antes: assim, em vez de techne e da situação ou quadro da filosofia da tecnologia no Assim, colega velha oposição entre episteme e techne, haverá aqueles que vão falar de fusão de ambas e, no lugar da techne, vão colocar a tecnociência, assim do GT Gilmar Szczepanik publicou, em 2013, artigo "Un diagnóstico de los estudios filosóficos de la tecnología en Brasil: análisis actual y como tecnossistema. Tal vai ser caso de Feenberg, mas que dizer de futuros" (Argumentos de Razón Técnica, n. 16, 2013). Paralelamente, o Heidegger, que a todos esses vocábulos prefere o alemão vulgar Gestell, mesmo colega, em parceria com Jairo Dias Carvalho, publicou, em 2016, mas lhe inocula de altas denotações metafísicas, mais do que conotações, um artigo sobre o GT na revista Guairacá da Universidade Estadual do ao falar de essências no mundo dos artefatos, e, ao mesmo tempo, volta Centro-Oeste do Paraná, intitulado "A emergência de um grupo de com a techne, com as duas irmãs gêmeas, a arte e a técnica, bem como trabalho em filosofia da tecnologia e da técnica" (cf. V. 32, n. 2, 2016). volta com a aletheia grega, que toma a verdade como desvelamento Tudo isso mostra que a filosofia da tecnologia está plenamente daquilo que estava escondido, como em Platão, mas não sem imprimir, integrada na comunidade acadêmica brasileira e se, agora, no livro que na noção grega, tour de force heideggeriano que irá deixar tudo de ponta ora vem a lume, leitor está diante do primeiro florilégio, uma antologia, cabeça: agora não é mais episteme que emparelhada com a aletheia, não faltaram obras de autoria coletiva, produzidas por grupos de pesquisa mas a técnica, que ele toma mais ampla do que a tecnologia, coisa que especializados: assim, os livros publicados pelo NEPC/UFMG, um total ninguém mais faz e dela faz modo por excelência de desvelamento e à das regulações do real na época moderna.leitor irá se deparar com todas essas inconsistências ao longo do problema cultural e como problema esse foi nosso ponto de livro, sem que editor pudesse cobrar coerência horizontal de ninguém, partida ou a primeira a de que a reflexão sobre a nem impor top-down à sua coerência pessoal, devendo leitor tomar técnica se deu fora das disciplinas meio obliquamente, e sem livro pelo que ele é ou se propôs: uma antologia ou um florilégio, como a preocupação de criar uma nova disciplina, como mais uma "filosofia eu disse, e tomar a diversidade não como deficiência e desencorajamento, da linguagem, da educação, da ciência, do direito, da psicanálise, e mas como riqueza (a diversidade é riqueza, dizia Empédocles, e algo assim por diante. Depois, a partir dos anos 70, a situação muda e será, parecido dirá Darwin, ao firmar discrepante, não O monolítico ou a então, a fase em que a técnica ou, antes, a filosofia da técnica, se vê mais mesmice, como princípio evolucionário) e convite ao pensamento e ao e mais afunilada e se abre à interseccionalidade disciplinar, dando azo à filosofar. ontologia da técnica, à qual próprio Heidegger se verá associado e como filósofo maior, bem como à ética da técnica, à epistemologia da técnica, Tudo considerado, tais inconsistências conceituais e choques de perspectivas intelectuais, vale dizer mostram três coisas: a para não falar de antropotécnica, e assim por diante. primeira, como sabido, não há mainstream em filosofia, mas tradições, Com essas ideias em mente, ao cabo do exercício intelectual que escolas de pensamentos e entradas pessoais. A segunda, como viu Platão fizemos cada um de seu lado e a seu modo, chegamos ao seguinte resultado em Eutifron, filósofo e a filosofia não têm balanças para pesar as ideias e compartilhamos com leitor: e os argumentos, nem métricas ou réguas, poderíamos acrescentar, para [1] Visão da Técnica: Bacca, Borgmann, Ellul, Foucault, Kapp medir seu afastamento ou sua aproximação da realidade ou da verdade Ortega y Gasset e Spengler das coisas, então não tem jeito, e as controvérsias irão acompanhar sempre [2] Anders, Canguilhem, Gehlen, as discussões A terceira, nem por isso estamos perdidos, como Leroi-Gourhan e Sloterdijk viu na Ética a se não temos a régua perfeita dos [3] Ontologia: Deleuze, Don Ihde, Heidegger, Kroes, Severino e geômetras, podemos nos servir da régua torta dos construtores de Lesbos, Simondon. a régua de chumbo usada pelos mestres de obras e, como eles, aplicar ao terreno nada aplainado das ideias morais, com as virtudes e os vícios a [4] Política: Feenberg, Habermas, Haraway e Vieira Pinto servirem de metron, havendo toda sorte de discrepâncias e afastamentos, [5] Ética: Jonas e Hottois mas, ainda assim, elas podem ser compreendidas e pensadas. Um pouco [6] Epistemologia: Bunge dessas três coisas vamos encontrar no terreno da filosofia da tecnologia. Em conversa com editor, Prof. Jelson Oliveira, ele e eu, atentos a Como em toda taxonomia, há, nessas classificações, algo de esses ensinamentos, tentamos fazer um exercício intelectual no sentido arbitrário, fazendo lembrar a enciclopédia chinesa de Borges, mas não é a de colocar ordem no caos das ideias, pensando no leitor, com propósito mesma coisa. Heidegger, p. ex., juntamente com Simondon, poderiam de em sua entrada, diante de um mosaico tão rico e variado. A estar incluídos na visão da técnica, ao fornecer duas sumamente nossa pressuposição é que a filosofia da tecnologia não é uma disciplina, influentes, com poder de dar-lhes um lastro enorme e de inventar como a ética ou a metafísica, mas um campo de estudos, como a ciência problema da técnica, especialmente Heidegger. Já Feenberg e ou a religião ou as artes. Além do mais, um campo constituído Habermas poderiam estar incluídos na visão da técnica, igualmente, assim recentemente, caracterizado pela diferença de visões e de perspectivas, de como na visão política, essa tomada à parte: por um lado, devido ao caráter mais ou menos holístico, durante a maior parte em que ele foi escopo da obra, ao buscar, intencionalmente, a interface com a política; constituído e chegou até nós. Ou seja, desde dia em que Ernest Kapp batizou campo nascente e deu-lhe nome, em 1877, passando por por outro, devido ao do próprio estudioso, mais no tocante ao leitor Spengler e Ortega y Gasset nos anos 20 e 30, os quais falam de técnica e de Feenberg, menos no tocante ao leitor de Habermas, não impedindo, de não de filosofia da técnica, até chegar a Heidegger, nos anos 50, quem porém, que as ilações políticas do filósofo alemão - com sua zona influência enorme de intelectual público - falem mais alto e terminem também evita nome. Esse foi O tempo em que os filósofos pensaram a técnica em toda sua extensão, ao formular problema da técnica como por Ora, a mesma possiblidade se daria com respeito a Álvaro Vieira prevalecer, ao trazer a tecnologia para espaço público de discussão. Pinto, problema humano ou antropológico, como problema da civilização, comocuja obra sobre o tema se enquadra sem forçamento na visão marxista da [vi] Espanha: Ortega y Gasset (exilado na Arge e, de saída, com vies político, como quase tudo em anos, depois em Portugal por mais três anos, ten Marx, e, como resultado, no caso do brasileiro, de uma apropriação para Espanha, onde permaneceu dez anos, até sua pensar a nossa realidade de país subdesenvolvido, conforme evidencia estudioso. Não muito diferente seria caso de Don Ihde, cuja obra poderia [2] América do Norte: Borgmann (emigrante ser classificada como protótipo da visão fenomenológica da técnica, como Haraway, Feenberg, todos nos EUA, e Bunge (ar uma de suas variantes, segundo ele "pós-fenomenológica" e nas vizinhanças da hermenêutica, levando-o a falar de "hermenêutica esse, bem atuação no poderia ser o caso, mas resolvemos deixá-lo na companhia de Heidegger e de Kroes, conforme mostra colega que dele se ocupou em seu estudo, [3] Latina: Bacca (espanhol radicado na ao focalizar o duplo existencial e relacional da ontologia de Don e no Equador) e Vieira Pinto (brasileiro, ex-c Ihde, cuja influência será sentida na Holanda, com Kroes e outros colegas exilado pela ditadura militar). falando de natureza dual e relacional dos artefatos tecnológicos. Continuando, as mesmas possibilidades poderão ser argumentadas Tendo feito a apresentação do livro, só me resta no tocante à rigorosamente, muito do que dessas paragens uma boa leitura, com a certeza de que sat é feito ao abrigo da antropologia poderia receber a etiqueta de proveito ao abrir as primeiras páginas do florilégio, contin ontoantropologia, como no caso de Sloterdijk, bem como de Anders e da leitura e prazer de conhecer e de descobrir até as derr mesmo de Gehlen. Todavia, nem sempre é caso e nem é direto vínculo Quanto ao grupo, minhas congratulações aos [i] da abordagem antropológica, ao falar de natureza humana e termos caminhada e a esperança de que, depois do florilégio, será correlatos, como essência humana e condição humana, abrindo para a GT, de obras autorais ou coletivas, não faltando o ética ou a filosofia da cultura, [ii] com a análise ontológica da Natureza Companions e os Handbooks com unidade temática, com dos tecnoartefatos como artificialia, na esteira de Heidegger o poder de estabilizar o campo de estudos, como já o e Simondon. nos países anglo-saxões. Sobre as áreas de influência e as regiões pensando menos na nacionalidade dos pensadores do que nos países e continentes de Prof. I atuação, teremos mais uma possibilidade de classificação, também marcada pela diversidade: Universidade Federal [1] Europa: [i] Alemanha: Anders (nascido em Breslau, hoje com longa estada na Alemanha, onde estudou, exilado nos EUA e final da vida na Gehlen, Habermas, Heidegger, Jonas (com atuação sobretudo nos EUA), Kapp (com extenso período nos EUA antes de voltar ao seu país), Sloterdijk e Spengler. [ii] França: Canguilhem, Deleuze, Ellul, Foucault, Leroi-Gourhan e Simondon [iii] Holanda: Kroes [iv] Hottois [v] Itália: Severino 14 15INTRODUÇÃO A filosofia da tecnologia tem sido apresentada como um ramo, mais ou menos recente, do pensamento Ele nasce requisitado por um dos fatores centrais da sociedade contemporânea, marcada pela emergência dos novos poderes tecnológicos que inclui desenvolvimento de seus dispositivos e processos, a oferta de novos produtos que invadem cotidiano dos indivíduos, a apresentação de novas esperanças e utopias e, também, de novos riscos e perigos. Andrew Feenberg caracterizou, adequadamente, a filosofia da tecnologia como a autoconsciência de nossa sociedade, expressando, com isso, a importância de que um tal evento seja levado a sério teoricamente, e que, por ele, possamos olhar para tempo que é nosso e, por compreender quem Embora a palavra techne seja de longo interesse remetendo às origens gregas da filosofia, sua progressão histórica mostra como essa vocação humana tornou-se ontologicamente relevante na era moderna, na medida em que o saber foi transformado em poder. Esse novo status do conhecimento fez da tecnologia moderna aquilo que ela é em nossos dias: a expressão de poderes crescentes, cumulativos, quase sempre instrumentais e utilitários, pretensamente isentos de valores e desvencilhados de fins previamente estabelecidos. Nessa dinâmica, a história da tecnologia tem sido reconhecida como uma história de muitos êxitos, acumulados em todos os campos da nossa vida, das máquinas domésticas aos laboratórios de testes das edições genéticas da vida. No geral, a dinâmica própria da tecnologia transforma mundo em matéria-prima disponível e, com isso, dispõe a physis (e ser humano incluído) à velocidade das descobertas, invenções e inovações que alteram a vida humana em sua profunda intimidade. Como todo processo desse tipo, as posições sobre sua legitimidade e benefício não são consensuais. Nem sequer reconhecimento de sua relevância é. Como também é comum, nesses casos, não há outro modo de encontrar uma compreensão mais ou menos adequada de um fenômeno tão complexo a não ser analisando-o sob as diferentes perspectivas que, longe de serem apenas disputas teóricas, passam a somar-se na de um mosaico cuia feitaa lista de nomes e problemas trazidos a lume nesta obra deixa muitas de mil peças, projeta algum sentido e promove alguma compreensão lacunas e sofre os próprios daquilo que, sendo processo aberto, algo afinal, sempre em pendência. nunca se completa. Há muitas carências e faltas importantes, cuja solução É essa, precisamente, a vantagem do livro que o/a leitor/a tem em pode estar em projetos futuros desses e de outros pesquisadores. Por mãos. Sua intenção é oferecer as peças desse quebra-cabeça, para que, outro lado, há boas surpresas: nomes que talvez não seriam ligados de como no jogo, cada um possa construir suas imagens. Diferentemente, imediato ao assunto são colocados em cena, o que oferece a sempre boa contudo, as peças aqui são maleáveis e não possuem um único encaixe. chance de [re]visão, que é benefício adicional de todos reencontros. Cada um poderá moldar as pontas, esmerilar e alterar conexões, acoplar No geral, os autores ofereceram alguns dados do outros encaixes segundo seus próprios interesses. Um fio de filósofo abordado, um panorama de suas preocupações em relação ao compreensibilidade, todavia, há de permanecer: entre todos os argumentos problema da técnica e algumas citações de suas obras, que pretendem aqui apresentados, consonantes e divergentes, a evidência e a colocar o/a leitor/a em contato direto com a escrita original de cada importância do sua profunda significação para o pensamento, pensador a qual, muitas vezes, ainda não encontra tradução em seu mérito histórico, sua dimensão e seu valor civilizacional, seu prestígio português. A linguagem, ao mesmo tempo rica e acessível, faz dessa obra e a proporção de sua tarefa hoje e no futuro. uma contribuição para debate nacional sobre os problemas que as lentes Por isso, livro é uma caixa de peças que, reunidas, formam um desses autores ajudam a enxergar, sobre os quais jogam luzes, em benefício cenário teórico não apenas relevante do ponto de vista mas do debate aberto e competente que, nesse caso, ultrapassa a mera essencial do ponto de vista existencial. Reunidos pela data de nascimento, formalidade acadêmica, para alcançar O que emerge, hoje, como problema logo que os 24 autores apresentados neste volume representam social e político, dado nosso tempo histórico, dado nosso espaço pensamento sobre a tecnologia, desenvolvido a partir do final do século Poucos países do mundo vivem, hoje, a necessidade de pensar XIX, mais especificamente, ao longo do século XX. Muitos deles, aliás, as políticas tecnológicas e tomar decisões centrais para presente e são convocados ao pensamento sobre o tema a partir da Segunda Guerra futuro, como Brasil. Ao escrever seus textos, os autores que aceitaram Mundial, quando a tecnologia apresentou-se ao mundo em sua magnitude participar deste trabalho, desde a análise dos filósofos e problemas e em sua ambiguidade, convocando para si a tarefa do pensamento que, escolhidos, compartilham saberes, mas, sobretudo, compromissos que segundo propôs Hans Jonas, é uma tarefa cósmica. livro, por isso, não ultrapassam livro, levando a filosofia para a praça pública lugar é um inventário de ideias ultrapassadas, mas recompõe as pistas deixadas onde ela, afinal, deveria permanecer em benefício próprio. por alguns autores e, ao mesmo tempo, expressa esforço teórico que Isso não é tudo. Ali, na ágora, livro é uma convocação aos leitores, muitos deles ainda estão levando adiante em nossos dias e ao qual se porque não só apresenta diferentes posições, mas, sobretudo, porque, ao une quem vislumbra as mesmas importâncias. o leitor se sentirá fortemente instado a opor as e a criar as livro, assim, nasce de um apelo epocal. Seu aparecimento condensa desavenças nascidas dos liames sub-reptícios, dos elos não revelados, dos os esforços de um grupo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros nós desabotoados que, como quem tem em mãos a ponta de muitos fios, reunidos no Grupo de Trabalho de Filosofia da Tecnologia e da Técnica, podem ser amarrados por quem até que, afinal, ele mesmo se sinta da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia do Brasil (Anpof), acionado a ocupar seu lugar na praça. Nesse caso, é coautor, que, nos últimos cinco anos, tem articulado pesquisas que visam analisar coeditor e coagente, que encontra os fios e segue fazendo borbulhar as os problemas filosóficos da tecnologia, levando em conta sua amplitude e ideias, dando vida às coisas mesmo lá onde isso nem sempre estava previsto. complexidade, para que, como dissemos, torna-se necessária a reunião Como exploração, a leitura tem participação naquela arqueologia que vê de múltiplas expertises, seja pela variação de problemas e autores, seja pela não mostrado na medida em que cava as intenções fundamentais. Como necessária articulação com outras áreas do saber. atitude, ela evoca a participação política tão urgente em nossos dias, em torno desses problemas tão urgentes. Falando hiperbolicamente, livro é que se apresenta, aqui, muito honrosamente, como produto, é parte desse esforço. volume soma 25 textos, escritos por 27 autores, de uma convocação. 22 diferentes instituições de ensino superior (entre as quais, 3 estrangeiras). Obviamente, um trabalho dessa monta nunca está completo. Ao contrário, 19Cabe, por tudo isso, agradecer o esforço dos colegas de pesquisa que dedicaram seu engenho e tempo ao trabalho de escrita e à construção desse mosaico de nomes, problemas e desafios teóricos. mérito da obra, obviamente, está na qualidade dos textos oferecidos, na elegância da escrita e na profundidade das preocupações que ela revela. Devo agradecer ainda, de maneira muito especial, ao prof. Ivan Domingues, cuja leitura atenta, sugestões, gentileza e préstimo foram imprescindíveis para a organização 1 desta obra. Ivan Domingues, Prof. Pablo Mariconda, da USP e o Prof. Alberto Cupani, da UFSC (cujos nomes também formam esse mosaico), são os precursores dessas preocupações e interesses no Brasil. livro, por GÜNTHER isso, também é uma homenagem e um agradecimento a eles, pelo que representam e pela inspiração que oferecem a nós todos/as. A gratidão se ANDERS estende também à ANPOF, que vem possibilitando intercâmbio e a troca de ideias entre os pesquisadores/as, sem que a filosofia permaneceria apenas a insatisfatória coleção de isolamentos e nada mais triste do que A oportunidade da obsolescência um quebra-cabeças desmontado, do qual se tenha perdido as peças. Agostino Cera Jelson Oliveira Pontificia Universidade do As páginas seguintes têm como objetivo responder a três perguntas: Primavera de 2020 1. Quem é Anders? 2. que é a tecnologia para Anders? (Ou seja, qual é sua filosofia de tecnologia?) 3. Qual é o papel e a relevância de Anders para a história da filosofia da 1 Em entrevista de 1979, Anders "Não há dúvida de que 6 de agosto de 1945, e com isso quero dizer que Hiroshima [...] foi a maior ruptura da minha vida, embora não tenha sido a primeira". Ele chamou de quarta ruptura para ser mais preciso. A primeira foi a eclosão da Primeira Guerra Mundial, quando ele tinha 15 anos; a segunda, a ascensão de Hitler ao poder; a terceira, sobre os campos de concentração. "A segunda e a terceira rupturas", continua Anders, "fizeram de mim um escritor político. Em relação à Hiroshima, quarto, eu não Dada a brevidade deste esboço, não incluirei referências à bibliografia secundária (ou seja, a trabalhos sobre Anders). Para esse fim, leitor pode consultar a bibliografia abrangente continuamente atualizada da Internationale Günter Anders Disponível em: contudo, incluir referências aos meus trabalhos andersianos. Fiz essa escolha para assumir total responsabilidade por essa tentativa de pintar um retrato da filosofia da tecnologia de Anders, um retrato que representa também, uma interpretação a seumatéria dada a priori, "tributário de uma realidade inexistente e que cabe reagi como escritor a não ser anos depois; a princípio fiquei calado [...] a ele/ela realizar" (ANDERS, 1934, p. 69), o ser humano é naturaliter minha imaginação, meu pensamento, minha boca e minha pele se obrigado a moldar seu próprio nicho ecológico para torná-lo habitável, acalmaram diante da monstruosidade do fato" (ANDERS, 1979, p. 43- isto é, para compensar sua condição inicial de não pertencimento. Ao 44).2 moldar nicho ecológico que será seu anfitrião, ser humano também Essa reconstrução sugere uma interpretação da filosofia andersiana dá forma a si mesmo. Desse princípio emerge sua inclinação técnico- como dividida em duas fases, embora elas, realmente, representem a demiúrgica inata (seu prometeanismo, diria Anders). A diferença evolução coerente de um único tema subjacente, tradicional à filosofia: a antropológica que é a peculiaridade da conditio humana em comparação relação entre ser humano e mundo. As duas fases podem ser resumidas com a de todos os outros seres vivos consiste, precisamente, nessa em duas fórmulas: Man ohne Welt [ser humano sem mundo] e Welt ohne equivalência entre antropogênese e tecnogênese. Anders define a condição Menschen [mundo sem ser humano]. A primeira fórmula identifica inicial do ser humano Welfremdheit [worldstrangeness, estranheza do estágio inicial da reflexão andersiana como começando com sua educação mundo], que também é onde ele coloca a raiz ontológica da liberdade filosófica em Hamburgo com Cassirer, em Freiburg com Husserl e humana. Essa visão antropológica é expressa na fórmula "ser humano Heidegger (ele seguiria Heidegger a Marburg após obter seu doutorado sem mundo". em e em Frankfurt, onde ele, brevemente, colaborou com Scheler Enquanto isso, devido a um emaranhado cada vez maior entre sua e sua associação com, entre outros, Benjamin (seu primo), Brecht e os vita contemplativa e vita activa, a vida e pensamento de Anders deram expoentes da Escola de Frankfurt. Entre seus interesses estavam a estética uma guinada inesperada. Entre os muitos eventos dignos de nota, naqueles e a antropologia filosófica, a última das quais estava passando por um anos, estão: a publicação, em 1928, de seu primeiro trabalho renascimento na Alemanha, graças a Scheler, Plessner e Gehlen. Em dois fracasso em ingressar na academia, em parte devido à oposição de Adorno ensaios Une interprétation de l'a posteriori e pathologie de la liberté aos seus escritos sobre a filosofia da música;6 a mudança de seu sobrenome publicados em em meados da década de 30, mas inspirados por de Stern para Anders enquanto trabalhava como correspondente no uma conferência que ele realizou em 1929, na Kantgesellschaft de Frankfurt Berliner Borsen-Courier, a ascensão do nazismo e sua fuga para Paris com e Hamburgo, Anders aborda ou até antecipa certas posições presentes na sua esposa Hannah Arendt, com quem se casara em 1929 (durante sua "antropologia elementar" de Gehlen (apesar de sempre ter sentido uma estadia em Paris, ele também escreveria seu romance distópico Die profunda aversão a Gehlen devido às suas escolhas políticas). molussische Katacomb, publicado apenas em 1992);7 fim desse casamento Nessas páginas, Anders mostra-se de acordo com pressuposto básico (1937); e, acima de tudo, sua fuga para os Estados Unidos (1936), para da nova antropologia filosófica a caracterização do ser humano de onde seu pai, célebre psicólogo Wilhelm Stern, já havia se mudado maneira peculiar mas não essencialista por meio do "paradigma depois de obter um cargo de professor na Carolina do Norte. deficiente" que Gehlen atribuiu a Herder. Segundo esse paradigma, ser A nova experiência mundial teve um efeito profundo em Anders, humano é um [ser deficiente] ou, pelo menos, um ser não especialmente porque, diferentemente de seus célebres colegas alemães no terminado [ready-made Diferentemente dos animais, ser exílio (Marcuse, Mann, Adorno...), com quem mantinha apenas contatos deficiente não está equipado com um espaço vital pronto (oikos), mas é ocasionais, ele vivia como um estranho entre Nova York e a obrigado pela natureza a moldar seu próprio espaço vital. Na falta de Em alguns aspectos, ele poderia ser considerado um flaneur of the new world. Acrescente-se, aliás, que ele já havia morado na Europa. A condição 2 Sobre Hiroshima ver também: Anders (1981, 1982). marginal que ele assumiu durante exílio americano o que levou a Ver Anders, 1924. Apesar das conhecidas dificuldades pessoais, Anders era um uma grande variedade de "empregos estranhos", (inclusive como e crítico altamente eficaz do pensamento de Heidegger. Seus ensaios heideggerianos estão trabalhador nos estúdios de Hollywood) ajudou a conhecer os Estados agora reunidos em Anders (2001). Ver: Anders (1934, Uma vez perdido o pensamento, texto original em das conferências de Anders em 1929. em Hamburgo e Frankfurt intitulado Die Ver Anders, 1928. Weltfremdheit des Menschen foi publicado recentemente. Ver: Anders (2018). Sobre a Ver: Anders primeira antropologia de Anders como Fremdheitsanthropologie [antropologia Ver: Anders (1992). Sobre sua relação com Hannah Arendt, ver: Anders (2011). da consulte Cera (2017a). 23Unidos por dentro. Dominado pela lógica do capitalismo e do ou seja, em que toda forma de alteridade e diversidade desaparece consumismo avançados, país parecia aos seus olhos, como a vanguarda gradualmente. Esse é um totalitarismo suave (ANDERS, 2002a, p. 238)," da era contemporânea como era tecnológica. Essa experiência uma ditadura de bem-estar e conforto por trás da qual esconde um inferno desempenhou um papel decisivo em sua obra filosófica original, cujo do mesmo (HAN, 2015, p. 2). lançamento exigiu impulso de dois eventos "supraliminais Dado tal quadro de época, Anders estava convencido de que Auschwitz e Hiroshima. pensamento deveria assumir uma posição. Isso não significa Como judeu nascido e criado em Breslau (agora Wroclaw) Polônia, uma simples refutação da superioridade tradicional da theorein sobre a perto de Auschwitz, a descoberta dos campos de extermínio nazistas práxis, uma refutação que Marx já havia declarado e à qual, a seu modo, tornou-se para Anders um tormento contínuo, algo entre obsessão e culpa, tanto Heidegger quanto a própria fenomenologia haviam subscrito. Em forçando-o a uma análise cruel de si mesmo como ser humano, sendo um vez disso, significa um dever que pensamento não deve iludir, judeu germanizado e um intelectual. Sua conversão filosófica definitiva e cujo cumprimento requer abandono da abordagem ocorreu, no entanto, como vimos, com O lançamento da bomba atômica acadêmica típica. novo pensamento deve sujar as mãos e lutar com a em Hiroshima, um evento no qual todas as contradições da era da dura realidade. Para Anders esse dever se traduziu no estabelecimento de tecnologia estavam contidas, acima de tudo, seu impulso niilista e uma filosofia da tecnologia que ele chama de antropologia na implacável e sua tensão autodestrutiva paradoxal. Com a invenção da época da tecnocracia (ANDERS, 2013, p. 9). Do ponto de vista bomba atômica, a própria humanidade foi posta em jogo. No lugar da metodológico, essa é uma abordagem impressionista (isto é, não vagamente inspirada por Nietzsche (Anders também foi um creatio ex nibilo [...] uma força oposta tomou conta: as potestas grande escritor de um estilo ad hoc definido como a ad nihil [...]. A onipotência que nós, Gelegenheitsphilosophie [filosofia ocasional] que está a meio caminho entre com espirito prometeico, tanto ansiamos, que finalmente adquirimos, embora da forma diferente do que esperávamos. Dado metafisica e jornalismo (ANDERS 2002a, p. 8). A partir da consideração que possuímos poder de nos destruir, somos senhores do de fenômenos precisos, essa filosofia chega a um après coup" Apocalipse. Nós somos infinito (ANDERS, 2002a, p. 239, grifos (ANDERS, 2013, p. 10). do autor). A convicção de Anders de que habitus tradicional deve ser subvertido também decorre de sua consciência (apesar de sua objetivo não mencionável da racionalização tecnológica havia sido identificação explícita com a esquerda) de que estamos vivendo em uma expresso na convicção tola de ser capaz de "tornar ser humano época marcada pela primazia da questão do conservadorismo. Quando [überflussig]" (ANDERS, 2013, p. 26). projeto de autoaperfeiçoamento confrontados com aniquilismo e a ameaça atômica, a prioridade passa e superação da humanidade, ou seja, a utopia moderna de criar um ser a ser a de conservar e garantir a simples persistência daquilo que é, mas humano totalmente novo, além de um "mundo totalmente novo", parecia que, pela primeira vez na história, corre risco de não ser mais. Em tal viável apenas por meio de sua autoaniquilação. Anders fala, assim, de época, futuro, pela primeira vez, não se apresenta como ainda não [noch (Annihilismus), um passo adicional - imprevisto por Nietzsche nicht], mas como não mais [nicht Parafraseando a famosa décima no fenômeno niilista, que é uma sindrome da época produzida pela primeira tese de Marx sobre Feuerbach, Anders escreve: "Mudar mundo de niilismo de massa e aniquilação de massa (ANDERS, 2002a, p. não é suficiente hoje, precisamos primeiro conservá-lo. Depois mudaremos 303-304). Auschwitz + Hiroshima mundo sem ser humano. Aqui reside a drasticamente com a revolução. Mas primeiro devemos ser conservadores possibilidade concreta de um "apocalipse sem reino" que assume a forma no verdadeiro sentido do mundo, em um sentido que ninguém que se de um monismo metafísico no qual tudo é um (ANDERS, 2002a, p. define conservador jamais admitiria" (ANDERS, 1979, p. 49). Quando 8 Anders considera supraliminar aqueles "eventos e ações que são grandes demais para serem entendidos pelo ser humano" (ANDERS, 1979, p. 47). 11 Ele também fala do "totalitarismo do gozo" der Lust] (ANDERS, 2013, 9 Sobre esse assunto, ver: Anders (1985b). p. 179). 10 Por sua vez, esse monismo representa a básica de um "amoralismo radical e 12 Ver: Anders (1991, 2002b). programático". (ANDERS, 2002a, p. 300). 13 Sobre esse assunto, ver: Anders (1978, p. 66-67). 24 25a tecnologia se torna objeto da história ou seja, quando "a diferença 2 entre ontologia e ética é invalidada" Anders, que se considera um A investigação acerca da tecnologia de Anders é colocada dentro moralista, sente que esse papel pode ser desempenhado apenas como um dessa estrutura histórico-biográfica. A maior parte é apresentada nos dois "conservador ontológico" (1979, p. 49). volumes de sua obra-prima Die Antiquiertheit des Menschen [A obsolescência Há uma clara proximidade dessas posições com aquelas ideias bio- do ser humano], publicada em 1956 e 1980, trabalho ontológicas que Hans Jonas apresenta como fundamento de seu princípio/ consiste em duas coleções de ensaios que, apesar de abranger um período imperativo de responsabilidade como para a era tecnológica" de tempo muito maior do que sugerido nas datas já distantes de (JONAS, 1985, p. 1). Da mesma forma, é explicada a aversão de Anders publicação, conseguem manter uma coesão sólida, na medida em que (assim como a do próprio Jonas) aos pontos de vista de seu amigo Ernst ambas representam tentativas de alcançar uma "ontologia do presente" Bloch, cujo "princípio esperança" foi fundado em um otimismo utópico (Foucault), isto "compreender [nosso] tempo em pensamentos" (Hegel). que toma aspirações religioso-escatológicas e as traduz ao campo político- pressuposto básico comum a essas tentativas é que a questão relativa à histórico. Anders considera a esperança um luxo que a humanidade não tecnologia representa a passagem hermenêutica fundamental para decifrar pode mais se permitir, a saber, uma forma de covardia, a construção de o Zeitgeist atual. um álibi que impediria a humanidade de agir para mudar seu próprio Mas que é tecnologia para Anders? Tecnologia é, antes de tudo, um destino. "Aquele que tem esperança, deixa a melhoria para outro momento nome que indica um fenômeno de época: a passagem de um limiar crítico [...]. Nas situações em que a ação na primeira pessoa é tudo que que muda radicalmente, provavelmente de maneira irreversível, a relação importa, é simplesmente uma palavra para a à entre o ser humano e mundo, que é a própria conditio humana. Os própria ação" (ANDERS, 1987, p. 33). A posição de Anders sobre termos e as categorias nas quais ele se baseia, ao descrever esse esse assunto é inspirada no "princípio do desespero" (ANDERS, 2013, são Diskrepanz [discrepância] e Antiquiertheit [desatualização, p. 452, nota 12), que é uma atitude desencantada, mas nunca renunciada. Dentro desse princípio, ele coloca os critérios para qualquer ação radical e, portanto, potencialmente eficaz. Ele nunca Em entrevista de 1985, ele definiu seu pensamento como "filosofia abandonou essa atitude: em 1950, retornando à Europa e se mudando da discrepância" Contrariando a tradição da para Viena, ajudou a animar, juntamente com escritor e jornalista "filosofia da identidade" (origem schellengiana), ele se concentra na Robert Jungk, debate e movimento antinucleares dos evidência histórica de uma "discrepância cada vez maior entre que pontos de vista antimilitarista e ecológico. Famosos foram seus diálogos podemos produzir [Herstellen] e que podemos imaginar públicos com Claude Eatherly um dos pilotos de Hiroshima, no (ANDERS, isto é a crescente incapacidade de nossa imaginação qual ele vê protótipo dos "inocentes culpados" (ANDERS, 1979, p. de acompanhar ritmo frenético de nosso fazer/produzir. Sobre esse e com Klaus Eichmann, filho de Adolf. Além de seu assunto, ele escreve: "Ao enfatizar essa discrepância, acredito que envolvimento público contra a Guerra do Vietna e com Tribunal de caracterizei a condição humana de nosso tempo e de todos os futuros, ele viveu para testemunhar desastre de Chernobyl: mais desde que nos sejam permitidos" (ANDERS, 1979, p. 44-45). A tecnologia um aviso ignorado por uma civilização que se apressa para sua própria é claramente mostrada para representar "sujeito da história" atual por destruição. Essa experiência intensificou seu desencanto a tal ponto meio dessa discrepância (é O que Anders quer dizer com termo que, como pacifista, ele começou a legitimar a violência como "tecnocracia"). Enquanto isso, ser humano é reduzido a uma instrumento de luta política. Para ser específico, aquela "contra- proletarização progressiva, ou seja, a um papel co-histórico como mero violência que é chamada legítima defesa" (ANDERS, 1987, p. 17 Ver: Anders (2002a, 2013). Como um estranho sábio e "desesperado", ele morreu em 1992, aos 18 Ver também: Anders (2013, p. 14). 90 anos. 19 "Por não quero significar domínio dos tecnocratas [...] mas o fato de que mundo em que vivemos [...] é um mundo tecnológico, a tal ponto que devemos 14 Ver: Anders (1982). dizer: a está ocorrendo na condição mundial (Weltzustand) chamada 15 Ver: Anders (1968). Ou, melhor, a tecnologia agora se tornou objeto da história, com a qual somos apenas 16 Sobre Chernobyl, ver: Anders (1986). (ANDERS, 2013, p. 9, grifos do autor). 26 27executor das injunções anônimas da megamáquina. Na sua ao principal que consiste na metamorfose preliminar de physis "renunciamos [...] ao nos considerar sujeitos da história; abdicamos, em techne, naquele longo processo de tecnologização (isto é, desfisizalização, substituindo-nos por outro sujeito da história: a tecnologia, cuja história descosmização) da Natureza que caracteriza toda a modernidade e que se tornou história ao longo da história recente" (ANDERS, 2013, encontra sua realização definitiva em nossa época. Nesse cenário epocal, Essa abdicação gradual do ser humano em relação a si mesmo é tudo que podemos ver é uma Technature, isto é, uma "física sem physis marcada pelo que Anders chama de "três revoluções industriais". A e uma natureza sem logos" (LÖWITH, 1986, p. 62). primeira delas começou no momento em que princípio de Segundo Anders, essa fusão osmótica entre techne e physis - a começou a ser iterado; isto é, produzindo máquinas por meio de Technature encontra sua melhor expressão na equação ontológica entre máquinas"; segundo coincide com a produção (obrigatória) de nossas "machbar ou seja, "ser" "ser A idade necessidades, ou seja, com a transformação de nossas necessidades em em que a tecnologia se torna objeto da história equivale à estrutura da produtos; terceiro "colocou a humanidade na posição de produzir sua época em que ser significa ser matéria-prima. Tudo O que é realizável; própria destruição" (ANDERS, 2013, p. 15-20). Isso ocorre com a criação mais precisamente: tudo é na medida em que é Aqui, makeable da bomba atômica: meio" que transcende qualquer fim possível, equivale a "desafiável [challengeable] (herausforderbar)" de acordo com e cujos efeitos devem ser considerados de "natureza metafísica", na medida sentido heideggeriano dessa [Makeability/ em que "o termo ainda pressupõe como óbvia a continuação da desafeability] e torna-se um modus história e uma sucessão de outras épocas; uma suposição que não é essendi universal. Como resultado, a caracterização ontológica daquilo permitida para nós. A época de mudança de época não existe mais após que é determinado inteiramente por sua capacidade de produção/desafio 1945" (ANDERS, 2013, p. 20). é o que Heidegger chama de Bestand [reserva enquanto Como visto anteriormente, Anders considera a era desta terceira Anders a descreve como matéria-prima Essas observações revolução industrial ou seja, a era do aniquilismo e do mundo sem ser lembram que Anders considera outra lei básica de nossa época, que é humano - como a última época, por definição. Um Endzeit [Tempo dos "segundo axioma da ontologia econômica", que diz: "O que não pode ser fins] que se transforma em um Zeitende [Fim dos usado não é." Expressado como um postulado (imperativo), esse A seus olhos, nossa era apresenta uma exibição sem precedentes de argumento seria algo como: "Você não deve se abster de usar O que pode um Aufhebung da diferença entre natureza e cultura, ou melhor, uma ser usado!" ou "torne tudo utilizável" (ANDERS, 2002a, p. 183-188), (con)fusão entre techne e physis. Ilustremos, brevemente, esse ponto. que é "tornar tudo uma Como resultado, "o ser-matéria- Como meio universal nas relações entre ser humano e mundo, bem prima é um criterium existendi. Ser é ser matéria-prima" (ANDERS, como entre ser humano e ser humano, a tecnologia assumiu um papel 2013, p. 33). tão difundido que a única maneira de ser adequadamente percebida é Nesse novo marco histórico-ontológico, possibilitas se torna potestas, pensar nela como sendo a própria Natureza, como os gregos pensavam Möglichkeit se torna Macht e, finalmente, Da totipotency of na physis. Ou seja, como uma síntese de kosmos (ordem) e dynamis, passamos para the of Macht. Na era da tecnologia, (totalidade). No entanto, olhando mais de perto, essa metamorfose da a categoria de possibilidade é inteiramente reduzida à possibilidade de techne em physis - essa naturalização da tecnologia - acaba sendo efeito fazer (algo), a saber, "nosso atual 'fazer' (Tun) não passa de uma colaboração de uma causa adicional. A techne pode ser pensada como physis apenas porque, anteriormente e sub-repticiamente, havia tomado lugar da physis. 22 Decidimos traduzir makeable por realizável, para remeter ao sentido de algo capaz de Se physis relaciona techne a si própria, isso significa que já havia sido ser feito, algo que pode ser feito, razoavelmente provável, algo realizável, portanto (N. T.). convertida de acordo com parâmetros técnicos. Como resultado, a 23 Segundo Heidegger, "a revelação de que regras na tecnologia moderna é um desafio metamorfose de techne em physis acaba sendo um epifenômeno em relação (Herausfordern), que coloca à natureza a demanda irracional de fornecer energia que pode ser extraída armazenada como tal" (HEIDEGGER, 1977, p. 14). 24 "O nome (Bestand) [...] designa nada menos do que a maneira 20 Sobr tema da "proletarianização" e "co-historicidade" ver: Anders (2013, p. 271- 278). pela qual tudo apresenta que é revelado pela revelação desafiadora. Tudo O que permanece 21 Ve: Anders (1981). no sentido de reserva permanente não se mais a nós como objeto" (HEIDEGGER, p. 17). 28conformista (Mit-Tun)" (ANDERS, 2002a, p. 287), como "se ou seja, se tudo é Bestand ou matéria-prima, ser humano obedece a essa qu[iser]mos participar ou não, nós participamos porque somos lei épica ao se tornar uma matéria-prima humana, ou seja, Bestand-Mensch obrigados a participar" (ANDERS, 2002a, p. 1). Reduzida a nada além (ser humano reserva Para usar uma palavra mais de capacidade de adaptação, a possibilidade se transforma em força e familiar: um recurso humano. Na de Anders, esse paradoxo destino. A fórmula para expressar esse estado de coisas é a chamada "Lei antropológico se torna ipso facto um paradoxo moral, pois a realidade de de Gabor", que Anders enuncia da seguinte maneira: que pode ser feito, Auschwitz e dos projetos de engenharia humana são, para ele, uma prova deve ser feito" (das Gekonnte ist das Gesollte), ou seja, "o que deve ser feito concreta do advento do Homo Materia. Portanto, na era da tecnologia é inevitável" (ANDERS, 2013, p. 17). Mais precisamente, a possibilidade totalizada, nem mesmo os antropos podem escapar da prescrição ontológica (Können) de fazer (algo) se torna necessidade (Sollen) de fazer (algo) e, no do Esse novo mandamento corresponde à final, obrigação (Müssen) de não se abster de fazer (algo). implementação definitiva do segundo axioma da ontologia econômica A equação ontológica entre ser e ser realizável também encontra mencionado acima. Se "tornar tudo utilizável (aceitável, desafiador)" uma tradução antropológica: é a dupla metamorfose de Homo Faber para significa, essencialmente, "tornar tudo um Bestand", sua absolutização Homo Creator e de Homo Creator para Homo A absolutização diz: "torne tudo um Bestand, incluindo você de Macht na forma de Machbarkeit (isto é, triunfo da tecnologia como A lógica da tecnologia como fenômeno epocal equivale à versão força planetária) transforma Homo Faber em Homo Creator. Por essa secularizada de uma dialética teológica. Preso à ansiedade soteriológica, definição, Anders refere-se ao fato de que "nos colocamos a nós mesmos que não é mais psicológica, mas somática, Homo Mensch na posição de gerar produtos da natureza [...] que não pertencem à dá à luz uma No âmbito da "megamáquina [megamachine]" categoria de 'produtos culturais', mas à categoria da natureza" (Mumford), ele se percebe como uma engrenagem perpetuamente (ANDERS, 2013, p. 21). Homo Creator é o tipo humano produzido pela defeituosa porque nunca é capaz de exercer as funções que lhe foram evolução da techne da mimese para a poiesis, uma transição que ocorre atribuídas nos dois campos: de ação (produção) e de paixão (consumo). quando a techne se torna capaz de criar, ou seja, quando "a physis é A força motriz da realidade atual não se encontra na produção, mas no produzida por meio do techne" (ANDERS, 2013, p. 21). A condição do consumo, ou melhor, na produção de consumo, que é a produção de Homo Criator corresponde à situação em que Homo Faber absolutiza necessidades. "O modelo existe apenas em função da reprodução [...], a seu direito/dever de fazer, estendendo-o à totalidade das entidades sem realidade se torna a reprodução de suas imagens" ou, segundo "primeiro Para se tornar um criator, ele deve transformar tudo no que é axioma da ontologia econômica": "a realidade é produzida pela reprodução; ou seja, em matéria-prima ou Bestand. Tudo, 'Ser' é apenas plural, pois é uma série" (ANDERS, 2002a, p.179-183). É portanto, também (e acima de tudo) a si mesmo. por isso que Anders descreve nosso mundo como "fantasma [phantom]" e Como resultado, paradoxal, mas consequente produto da "matriz [matrix]" tecnocosmos é um laboratório de desejos, uma metamorfose antropológica de Homo Faber para Homo Creator é sua de necessidades. Seduzido pelos fantasmas do "mundo sirênico" metamorfose complementar em Homo Materia. Para se tornar sujeito da (ANDERS, 2013, p. 310-313), ser humano compromete-se a uma busca realidade presente isto é, os kybernetes da "mobilização total" (como perpétua para se redimir de sua deficiência, uma deficiência percebida colocou Ernst Jünger em sua definição bem-conhecida) ser humano como culpa ou, em sua versão secularizada, como doença. Ao aspirar à deve fazer de si mesmo objeto de sua própria criação. Para realizar emenda de sua ineficiência intolerável, O ser humano decreta toda a plenamente sua vocação prometeica, ele deve se subjugar à sua própria autoridade da tecnologia e seu correspondente estado minoritário. capacidade de produção [Machbarkeit], que se torna um parâmetro A introjeção paradoxal desse imperativo, segundo a qual nos universal de referência. Somente nessa forma hipostatizada, a permitimos ser aprimorados, corrigidos, curados (salvos) daquilo que tecnologia pode se tornar uma subjetividade histórica (ANDERS, 2013, produzimos, é que Anders define como "vergonha prometeica" p. 21-25). Se tudo é medido com base em sua capacidade de contestação, 27 Pelo neologismo technodicy (techne dique), quero significar uma versão secularizada 25 Essa é também a explicação do que Anders define como "medialidade da tradicional teodiceia (theos + dique). A technodiceia confirma a ideia de que, em sua (ANDERS, 2002a, p. 287). versão sistêmica a tecnologia assume a função de barriga de 26 Sobre esse ver: Anders (2013, p. 21-25). aluguel por, agora, inúteis princípios hinterwordly. 31Scham], um novo tipo de pudendum: essa vergonha "que obsolescência, que Anders considera a referência antropológica da era se sente diante da alta qualidade 'humilhante' dos objetos que atual. Segundo ele, a representa "a atitude negativa do fabricamos" (ANDERS, 2002a, p. 23). Essa vergonha é resultado de homem em relação ao ser humano", seu irrepreensível impulso de superar, uma "lacuna prometeica" criada pela "incapacidade de uma vez por todas, a vergonha de seu próprio natum esse. A de nossa alma de estar com a nossa produção" (ANDERS, obsolescência equivale a voluptas humana por se tornar, finalmente, sicut 2002a, p. 16). Na progressão exponencial, o hiato de Prometeu, que machinae (ANDERS, 2013, p. 292). Como resultado, a era da tecnologia inicialmente era hiato que existe entre máximo que podemos produzir como sujeito da história pode ser descrita como a era na qual Super- e máximo (vergonhosamente pequeno) que podemos imaginar, [...] Homem e Homo Materia (isto é, Übermensch Bestand-Mensch) se tornam agora se tornou um hiato entre que produzimos e o que produzimos a mesma pessoa. para usar". "agora podemos fornecer uma terceira versão do nosso hiato prometeano [...] entre máximo que podemos produzir e máximo 3 (vergonhosamente pequeno) que podemos precisar" (ANDERS, 2013, p. 18-19). principal resultado dessa progressão é que "nossa finitude real não consiste mais no fato de sermos animalia indigentia, seres carentes, Para concluir, gostaria de abordar papel histórico e a relevância de mas muito pelo contrário: consiste no fato de que [...] podemos precisar Anders para a filosofia da tecnologia (sua não obsolescência, por assim [de] muito pouco; em resumo: na nossa falta (Mangel an Mangel)" dizer). (ANDERS, 2013, p. 19). De acordo com a taxonomia proposta por Hans Achterhuis, Anders Como novos archè kineseos, a tecnologia representa pharmakon deve ser incluído juntamente com estudiosos como Heidegger, Ellul, essencial para esse ser vivo permanentemente endividado. Se a lacuna Arendt, Jonas, Jünger, Mumford na "primeira geração de filósofos da prometeica gera a vergonha prometeica, ela se torna inveja prometeica e, tecnologia" ou "os filósofos clássicos da tecnologia" (ACHTERHUIS, depois, culpa prometeica: uma atitude negativa que acaba se tornando 2001, p. 3). Essas figuras tratavam principalmente das "condições uma má-consciência com relação ao próprio "(ainda) ser (apenas) históricas e transcendentais que tornaram possível a tecnologia humano". Essa culpa dá origem à ansiedade soteriológica pela redenção Embora eles entendessem que a tecnologia não é ciência natural aplicada prometeica do único pecado mortal ainda presente no Éden da nem instrumentalidade, mas sim forma de vida, Achterhius afirma que mobilização total: obsolescência Essa redenção equivale eles foram incapazes de entender "as múltiplas maneiras pelas quais a ao mandamento de "não ser mais humano". É a obrigação de se permitir tecnologia se manifesta" (ACHTERHUIS, 2001, p. 3). Em outras ser, sistematicamente, desafiado, de se tornar Homo Materia, para que a palavras, a filosofia da tecnologia de Anders apresenta os mesmos limites tecnologia possa nos desumanizar, ou seja, nos libertar da condenação de da primeira geração, ou seja, essencialismo, apriorismo, determinismo, ser "simplesmente humanos". Expressa nessa soteriologia prometeica a atitude distopica. saber, na invocação da tecnodicidade [technodicy] está a aspiração de Hoje, porém, mais de 30 anos após a chamada virada na alcançar uma condição pós-humana, que, portanto, poderia ser filosofia da que é momento em que os limites dessa considerada o outro lado da moeda da obsolescência. Em vez de reformar abordagem estão começando a emergir, acredito que a visão andersiana mundo para atender às necessidades humanas escolheu-se represente um dos melhores compromissos de evitar dois resultados modificar ser humano para que ele possa medir até um mundo sem extremos (e negativos) para a filosofia da tecnologia, ambos expressos em medida (supermanejado duas fórmulas heideggerianas. Por um lado, o fundamento antropológico Dada essa suposição, tipo humano selecionado pelo neoambiente tecnológico não será um simples Übermensch, mas um Super-homem real, Como é sabido, de acordo com Achterhius, desde a década de toda a filosofia da ou seja, uma entidade literalmente Ou seja, um "não-mais- tecnologia deve ser traçada até sua virada ou seja, pela rejeição da abordagem essencialista inspirada por Heidegger (e, mais geralmente, pela filosofia continental). É Nessa base, pode emergir significado autêntico de caracterizada por uma abordagem pragmatista, otimista construtivista. Essa mudança também estabelece que centro de gravidade na filosofia da tecnologia muda da Europa Sobre overmanned world, ver: Anders (2013, p. 26-31). para a América do Norte.da reflexão andersiana (seu neo-humanismo permite capacidade imaginativa, nossa fantasia moral, de modo a retornar a um a conservação da filosofia da dimensão ético-política da tecnologia. Ou estado de vida de acordo com que fazemos. seja, evita potencial desvio mistico (e consequente interdito Em termos éticos, essa expansão imaginativa representa a condição envolvido na abordagem de Heidegger, ou seja, sua de possibilidade de um retorno para ser realmente responsável por nossas interpretação da tecnologia como "uma maneira de revelar" ações. Nesse sentido, dizer que Anders trabalha "nas costas" (HEIDEGGER, 1977, p. 12), um Ereignis [evento] na História do Ser, de Jonas, lançando as bases para da que assume a forma de um destino responsabilidade, a fim de que continue a ser uma opção prática, mesmo Por outro lado, a abordagem de Anders permite a proteção do que, na era da tecnologia. Para responder a algo, precisamos, primeiramente, na minha representa a suposição epistêmica básica da filosofia ser capazes de reconhecê-lo pelo que é. verdadeiro impasse moral da era da própria tecnologia: a condição de possibilidade de uma abordagem da tecnologia reside na lacuna prometeica (que é o caráter supraliminar, adequadamente filosófica da questão da tecnologia. Essa suposição é corriqueiro e assumido por eventos e ações), em nossa incapacidade de expressa em outra sentença heideggeriana bem-conhecida, segundo a qual viver de acordo com Prometeu que está dentro de nós. Se a discrepância "a essência da técnica não é, de forma alguma, algo técnica" dá origem ao supraliminar, esse se torna a condição de possibilidade para (HEIDEGGER, 1977, p. 4). Em outras palavras, a visão de Anders o advento do Uma reflexão filosófica sobre a tecnologia representa um aviso útil para impedir a transformação da Virada Empírica capaz de sustentar esse desafio epocal - ou seja, "Filosofia da tecnologia no em Virada Ontofóbica, que é uma reação exagerada contra essa abordagem caso deve ter como objetivo ajudar a preencher essa lacuna essencialista da questão da tecnologia tão comum aos filósofos clássicos e essa discrepância. da tecnologia. Essa reação exagerada equivale a um interesse quase exclusivo na dimensão ôntica (a saber, implicações sociais, políticas e práticas) da Penso que a imoralidade e a culpa hoje não consistem tanto em tecnologia e, portanto, um desinteresse a priori por qualquer uma de suas sensualidade ou infidelidade ou desonestidade ou devassidão ou implicações ontológicas, que acabam se tornando um tabu. Ou seja, uma mesmo em exploração, como na falta de fantasia [...]; eu acho onto-fobia real. A principal consequência dessa ontofobia é a metamorfose que postulado de hoje deve ser: expanda sua capacidade epistêmica da filosofia da tecnologia: sua transformação em uma atividade imaginativa para saber que você está fazendo. E isso é ainda mais de solução de problemas, como é comum na corrente principal dessa área necessário, na medida em que nossa percepção não se compara à nossa produção [...]. Medir empirismo é precisamente motivo de estudos (particularmente, estou pensando na chamada pós- pelo qual devemos estimular nossa fantasia, por mais paradoxal fenomenologia, liderada por Don Ihde). que possa parecer. É isso que se entende por "perceber" hoje Meu argumento é que trabalho de Anders pode nos ajudar a (ANDERS, 1979, p. 45, grifos do autor). preservar a insubstituibilidade de uma abordagem estritamente filosófica da questão da tecnologia e, assim, salvaguardar a biodiversidade epistêmica da própria filosofia. Concluindo, para dar um exemplo concreto da atualidade Referências (oportunidade) de seu pensamento, gostaria de recordar os pars destruens ACHTERHUIS, H. (ed.). American Philosophy of Technology: The Empirical Turn, de sua filosofia da tecnologia, seu lado menos conhecido. Como trans. R. P. Crease, Indiana: University Press, Bloomington/Minneapolis 2001. mencionado, Anders vê a ideia de discrepância como um dos principais ANDERS, G. Brecht konnte mich nicht riechen. Ein von Fritz J. conceitos de seu trabalho, que é a discrepância entre que podemos Raddatz mit Günther Anders, in: "Die Zeit", 13/1985, 22.3.1985, p. 65-67 (on- produzir e que podemos imaginar. Dado que desenvolvimento de line version nossa capacidade poiética não pode ser retardado - ou seja, que a era da 1985a. tecnologia é um caminho irreversível devemos tentar ampliar nossa Sobre esse tema, ver: Anders (1988, p. 19-23). Sobre esse tema, ver: Volpi p. 146-147). Sobre a proposta concreta de uma 30 Com a expressão interdito antropológico, refiro-me à rejeição por Heidegger da Filosofia da Tecnologia no Caso Nominative (Tecnom), ver: Cera (2017b). antropologia que ele considerou uma contradiction in 33 Texto traduzido do por Jelson 35ANDERS, G. "Wenn ich verzweifelt bin, was geht's mich an?" mit Günther ANDERS, G. Off limits für das Gewissen. Der Briefwechsel zwischen dem Anders [Interview with Mathias Greffrath], in: M. Greffrath (hrsg. von), Die Hiroshima-Piloten Claude Eatherly und Günther Anders, in Anders 1982a, p. 191- einer Zukunft. Gespräche mit emigrierten Rowohlt, 360, 1982b. Reinbek, p. 19-57, 1979. ANDERS, G. Pathologie de la liberté. Essai sur la non-identification, in: ANDERS, G. 10 Thesen zu Tschernobyl, in: "Psychosozial" IX, 29, 1986, Heft II "Recherches Philosophiques", 6, 1936-37, p. 22-54 (online version: http:// (Nach Tschernobyl regiert wieder das Vergessen?), 1986. p. 7-10. www.lesamisdenemesis.com/? p=84/), 1936. ANDERS, G. Besuch im Hades. Auschwitz und Breslau 1966. Nach "Holocaust" ANDERS, G. Philosophische Stenogramme, Beck, München, 2002b. 1979. Beck, 1985b. ANDERS, G. Philosophische Untersuchungen zu musikalischen Situationen, in ANDERS, G. Die Antiquiertheit des Hassens, in: R. Kahle, H. Menzner und G. Id., Musikphilosophische Schriften. Texte und Dokumente, hrsg. von R. Ellensohn, Vinnai (hrsg. von), Die Macht eines unerwünschten Gefühls. Rowohlt: Beck, p. 15-175, 2017. Reinbek, p. 11-32, 1985c. ANDERS, G. Über das Haben: Sieben Kapitel zur Ontologie der Erkenntnis, ANDERS, G. Die Antiquiertheit des Menschen 1. Über die Seele im Zeitalter der Cohen, Bonn, 1928. zweiten industriellen Revolution. Beck, 2002a. ANDERS, G. Ober Heidegger, hrsg. von G. Oberschlick und W. Reinmann, ANDERS, G. Die Antiquiertheit des Menschen 2. Über die Zerstörung des Lebens Beck, München, 2001. im Zeitalter der dritten industriellen Revolution. Beck, München, 2013. ANDERS, G. Une interprétation de l'a posteriori, in: "Recherches ANDERS, G. Die Kirschenschlacht. Dialoge mit Hannah Arendt, hrsg. Von G. Philosophiques", 4, 1934-35, p. (online version: http:// Oberschlick, Beck, München, 2011. 1934. ANDERS, G. Die molussische Katacombe. Beck, München, 1992. ANDERS, G. Visit beautiful Vietnam - ABC der Aggressionen heute, Pahl- ANDERS, G. Die Rolle der Situationskategorie bei den "logischen Erster Rugenstein, 1968. Teil einer Untersuchung über die Rolle der Situationskategorie, dissertation ANDERS, G. Wir Eichmannsöhne. Offener Brief an Klaus Eichmann, 2. (unpublished), Freiburg, 1924. um einen weiteren Brief ergänzte Auflage, Beck, 1988. ANDERS, G. Die Weltfremdheit des Menschen. Schriften zur philosophischen CERA, A. Bausteine zu einer in: G. Tidona (hrsg. Anthropologie, hrsg. von Ch. Dries und H. Gätjens, Beck, München, p. 11-91, von), Fremdheit. Xenologische Ansätze und ihre Relevanz für die 2018. Bildungsfrage, Mattes Verlag, p. 103-122, 2017a. ANDERS, G. Endzeit und Gedanken über die atomare Situation. Beck, München 1972; 2. durchein Vorwort erweiterte Auflage, Die atomare CERA, A. Il paradigma prestazione. Contributi per un'antropologia del Drohung. Radikale Überlegungen. Beck, 1981. presente, in: Proceedings of the conference "Transformations of the Concept of Humanity" (Università Statale degli Studi di Milano, 23-24 May 2018), ANDERS, G. Gewalt ja oder nein. Eine Notwendige Diskussion. Knaur: München, being published, 2020b. 1987. CERA, A. La cruda Il "principio di-sperazione" in Karl Löwith e ANDERS, G. Hiroshima ist Beck, München, 1982a. Günther Anders, in: M. Russo (a cura di). Sonde filosofiche ANDERS, G. Internationale Günther Anders Gesellschaft (https://www.guenther- nell'esistenza. Aracne: Canterano (RM), p. 21-47, 2020a. anders-gesellschaft.org/) CERA, A. The Technocene or Technology as (Neo)environment. in: ANDERS, G. Ketzereien, Beck: 1991. Research in Philosophy and Technology", 21:2-3, p. 243-281 (DOI: 10.5840/ ANDERS, G. Lieben gestern. Notizen zur Geschichte des Fühlens 2017b. 1947-1949), Beck, 1989. HAN B.-Ch. The Transparency Society, trans. E. Butler, Stanford University Press, ANDERS, G. Mein Judentum, in: H. J. Schultz (hrsg. von) Mein Judentum, Stanford (Ca), 2015. Kreuz, Stuttgart, p. 58-76, 1978. M. The Question Concerning Technology, in: M. ANDERS, G. Mensch ohne Welt. Schriften zur Kunst und Beck, The Question Concerning Technology and Other Essays, trans. W. Lovitt, Garland, 1993. New York & London, p. 1977.JONAS, H. The Imperative of Responsibility: In Search of an Ethics for the Technological Age, trans. H. Jonas and D. Herr, Chicago London: University of Chicago Press, 1985. LÖWITH, K. Gott, Mensch und Welt in der Metaphysik von Descartes bis zu Nietzsche, in: Id., Schriften Band 9, hrsg. von H. Ritter, Metzler: Stuttgart, p. 1-194, 1986. 2 VOLPI, F. Il nichilismo. Roma: Laterza; Bari: Laterza, 2004. JUAN DAVID GARCÍA BACCA Entre técnica, artificialidade e criatividade Bruno Vasconcelos de Almeida A tarefa que me coube neste livro se revelou impossível: apresentar uma espécie de introdução ao pensamento da técnica e da tecnologia na obra do filósofo espanhol Juan David Garcia Bacca, e isso por dois motivos: primeiro pela extensão e escala da obra do autor que produziu por mais de sessenta anos; o segundo pela complexidade e engenhosidade que deixam leitor, iniciante em Bacca, aturdido e atônito. Dito isso, procedimento metodológico escolhido consistiu em anotar ideias, pensamentos e pistas para aprofundamento nessa filosofia um tanto desconhecida e de possibilidades Para Bacca a técnica tem uma função humanizadora. Ele postula uma transformação técnica do Universo ao mesmo tempo que reconhece graus básicos de artificialidade do real. Parte de sua obra foi escrita durante a "Guerra Fria", e nela autor indicou perigos e limites da técnica, pois tinha, no horizonte de suas preocupações, a questão atômica. Ciência e técnica propiciam horizontes de sentido. Sua filosofia da técnica e da tecnologia, em parte, antecede aos e contém os elementos de três tradições distintas: a filosofia da tecnologia engenheril; a filosofia da tecnologia conectada às humanidades; e a filosofia da tecnologia ancorada na teoria da sociedade. Dados biográficos Juan David Bacca nasceu em 26 de junho de 1901, em Pamplona Espanha, faleceu em 5 de agosto de 1992, em Quito 39Equador. Sua produção intelectual cobre mais de seis décadas, de 1928 a Posteriormente, em "Ciencia, técnica, historia y filosofia en la 1992. A variedade de temas e interesses está distribuída por mais de atmósfera cultural de nuestro tiempo", e como próprio título do artigo seiscentos títulos, entre livros, artigos, aulas e outros escritos. Bacca foi sugere, autor brinca com quantidades ao definir ciência e técnica como um intelectual de enorme cultura e pode ser considerado um pensador de componentes da atmosfera cultural: fronteiras que passa pela filosofia, pela teologia e pelas ciências. Sua longevidade aponta para um tipo de pensador cada vez mais raro, de Componentes formais da nossa atmosfera cultural são a ciência, a imensa e sólida cultura, que atravessou diferentes momentos do técnica, história, filosofia, teologia, direito, arte. Qual é a dosagem pensamento e lidou criativamente com todos eles. típica de todos eles em nosso tempo, isto é, qual é a composição Ao longo de sua vida, recebeu formação neotomista, quando de sua da nossa atmosfera cultural? As porcentagens de que falar não têm, é claro, mais que um valor E, é claro, que entrada na Ordem Claretiana da Catalunha; passou por um período será dito é mais uma abordagem do que reivindicações de resposta próximo ao vitalismo historicista, inspirado em Ortega y Gasset e definitiva. Nossa concepção do universo, nossa atmosfera cultural Wilhelm Dilthey; recebeu intensa influência de Heidegger e, ou ar de nosso são constituídos por quarenta por cento posteriormente, de Marx, até chegar a um "humanismo positivo"; e de ciência, trinta por cento de técnica; dez por cento de história; ainda apresentar um modo de entender a realidade que, de acordo de um a sete por cento de filosofia; de cinco por cento do direito: com Beorlegui (1993), pode ser denominado tecnocêntrico. A reflexão de quatro por cento de arte; de uns dois por cento de teologia e sobre técnica perpassa sua obra desde início do exílio na vamos deixar dois por cento para outros elementos. Em outros (Venezuela, Equador, e Argentina) e se torna central em sua momentos nos tempos medievais, por exemplo a dose de última década de vida. teologia deve ter sido de oitenta por cento; cinco por cento para a filosofia, escrava da teologia, e meio por cento para a ciência [...]. Há relativo consenso entre as diferentes etapas do pensamento Atmosfera de gases asfixiantes seria para os medievais a nossa bacquiano, a saber: uma primeira etapa escolástica (1928-1933), uma atmosfera; e para a deles (BACCA, 1966, p. 4). etapa lógico-matemática (1933-1940), uma etapa existencialista (1940- 1960) e uma etapa marxista (1960-1992). Esta última, porém, diverge A ciência aparece como um ideal de conhecimento teórico, técnico, das demais. Alguns estudiosos encerram a etapa marxista em 1980 e ontológico, fenomenológico, objetivo e Define a tecnologia sustentam distanciamento do autor em direção a um "giro prático" como fusão entre teoria e prática, que aproveita um saber, transformando-o com temas relacionados à ciência e à técnica (MONFORT, 2017). ou não. Já a técnica diz respeito ao que nos rodeia, usamos e consumimos. Martin Jimenez (2018) propõe oito modelos para uma tipologia da ideia de técnica a partir do cruzamento de critérios epistemológicos, Nossa atmosfera física, psíquica, é artificial, cada vez ontológicos e axiológicos: a ideia grega de técnica como mimese da mais artificial. natural recua cada vez mais para fundo, para fundo do fundo; e talvez não demore muitos anos para que mudem Natureza, a ideia crista de técnica como arte servil, a ideia prometeica as almas de corpo, pois já mudaram a nossa voz; da saída da boca, de técnica gestada na Revolução a técnica como projeção garganta e peito à saída de discos ou fitas magnéticas; e os poderes orgânica a partir de Ernest Kapp, a técnica como automatismo, a naturais que usados em monopólio específico, como o técnica como evento determinante de uma época, a técnica como entendimento, já estão substituindo a lógica e a matematica, e as ortopedia humana como em Ortega y Gasset, e, por último, uma ideia máquinas já estão funcionando e calculando. Se não inventarmos dialética de técnica atenta às morfologias técnicas concretas. De acordo outras tarefas para entendimento logo não saberemos o que com Casado (2019), Bacca é um predecessor desta última perspectiva. fazer com ele e ele se atrofiará como certos órgãos do nosso corpo. primeiro artigo dedicado por Bacca especificamente à questão da Aqueles que inventaram sílica esculpida ou faca de pedra, roda, roda giratória, flecha, bengalas, lemes, jangada, tijolos técnica foi publicado em Caracas, em 1952, e se intitula "Atitude do [...] eles não sabiam que desencadearam uma reação em cadeia, Homem Moderno Frente à Ciência e à Técnica". pano de fundo do uma avalanche de notícias, de coisas não naturais, de monstros artigo é o cenário da Guerra Fria e do desenvolvimento de tecnologias que, milênio a milênio no começo, século a século depois, e agora nucleares. dia após dia, ameaçam sugar a substância do natural e do cérebro 40natural do homem, e transubstanciar tudo em artefatos, em lembrar curso que Bacca proferiu sobre Alfred North Whitehead artificialidade, em tecnemas [...] (BACCA, 1966, p. 9-10). (1947) a criatividade é estado de máxima potência, poder motriz cristalizado no ente, força e probabilidade máxima. Caos e criatividade Vale lembrar que neste mesmo trabalho, Bacca indica a história e a referem-se a uma realidade primária, causa que precede efeito, a criação filosofia como outros elementos da atmosfera cultural. Trata-se de um como causa do novo. autor via homem como inventor e criador. curioso texto sobre cultura, no qual autor deixa um pequeno espaço A técnica é uma espécie de força energética do homem, sua para a teologia, direito, a arte, e a outras mais. capacidade inventora, sua criatividade. Vida e técnica têm uma função Bacca pensa O homem como causa do artificial, e a técnica como comum: a de estabelecer a ordem. A criatividade é uma espécie de transformação do Universo natural em mundo artificial, segundo modelos componente ontológico e metafísico do poder criador da matéria e da humanos de causalidade em um Universo regido pelo acaso e pela entropia. vida. Artificializar natural corresponde a colocar ordem na desordem e, por Em Elogio da (1987), encontramos a afirmação de Bacca de consequência, potencializar a vida. Ele ainda aponta ao papel da técnica que a natureza de cada coisa pode chegar a atingir um estado de perfeição como meio para superar a divisão ôntica do real em Universo natural e próprio, e que a função da técnica é manter a perfeição, ela é o meio para mundo artificial. tal fim: Mas se O homem perceber que tem poder dentro de certos (1) A natureza de cada coisa seja homem, sentidos do homem, limites, mais ou menos amplos [...] de transformar, humanizar, mente ou vontade humanas, órgãos geradores água, por um trabalho técnico e socialmente organizado e racionalmente terra, luz, mármore, limoeiro, cavalo... tende a, e pode chegar e programado, a causalidade neutra e indiferente do físico a favor chega de ordinário a possuir um seu estado de perfeição próprio, de uma causalidade superior, essa separação inicial da natureza do insuperável, equilibrado, estável. homem pode ser superada à medida que a imposição da (2) A técnica não pode nem deve fazer mais que manter tal humanidade progride no universo em que nos encontramos. A perfeição, ou repô-la se a tivesse perdido ou produzi-la caso não se técnica é a que permitirá superar a divisão de ambos os domínios a alcance, por um acidente, a ela. em favor do homem. A técnica, como é implantada gradualmente, é, com uma terminologia já clássica, a que (3) Natureza é norma ou fim supremo, a técnica é meio para tal humaniza universo. Para humanizá-lo, é necessário fazer algo fim (BACCA, 1987, p. 20-21). com ele. Se tudo já tivesse sido feito de sobrariam muitos homens; nossas mãos seriam deixadas. natural, E mais à frente: físico começa por não ser humanizado, nem a favor nem contra, frente à causalidade autêntica. homem através da técnica, através do trabalho, será único que poderá impor ao mundo Viver é retornar ao nível atômico e molecular, é inverter caos caráter triplo de seu efeito: a ser reformado por ele, a ser inicial ou viver no caos. natural perfeito é simplesmente uma feito à imagem das ideias do homem, a ser feito para os parada, uma limitação, algo a superar, não propósitos do homem. Nesse caso, princípio de causalidade transcendendo, deixando-o como está, como alguém que sobe um que chega a reger mundo, quando plenamente homem degrau acima de uma escada, mas vice-versa, descendo ao fundo, estiver humanizado pelo trabalho ou pela técnica, adotará a ao caos, à ordem micromolecular: proteínas ou não, vivas ou não. primeira formulação, não a segunda (BACCA, 1961, p. 48). Ou dito com uma frase escolástica, não entendida por mim por longos anos, agora reluzente, também para mim, verdadeira Reformado, refeito, fabricado, produzido pelo mundo e, ao mesmo programação e experimentação: mais vívido é voltar à primeira questão reductio ad materiam primam. Em vez dessa tempo, fabricador, criador, constituído pelo processo de criatividade. Um imprecisão da matéria-prima, vamos falar, porque podemos, aspecto a ser destacado no universo conceitual de Bacca é da criatividade. sobre átomos, ácidos nucléicos Ela está associada ao caos e ao novo. De inspiração whiteheadiana vale (BACCA, p. 50). 42 43Nesse ponto, talvez, se possa perguntar pela relação entre técnica e no Brasil de hoje" (1961), trabalho referido pelo Professor Ivan Domingues criatividade. A filosofia de Bacca está ancorada na história e problematiza em seu já clássico Filosofia no Brasil: legados e perspectivas ensaios uma espécie de fenomenologia do ato criador e da criatividade. Em Nueve encontra-se uma referência do Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz ao filósofo navarro. Pela tamanha raridade, essa referência grandes filósofos y sus temas (1990), livro de 1947, organizado a partir de cursos dados na Universidade Nuevo Leon, em torna-se da recepção de Bacca em língua portuguesa. Monterrey no ano de 1944, autor dedica um capítulo-chave do livro ao pensamento de Alfred North Whitehead. Encontramos, a partir da influência deste último, algumas definições de criatividade: é ato puro, ato infinito, [...] é a gênese, em toda a amplitude infinita, da ordem do ser (BACCA, 1990, p. 461-462). Referências Whitehead definiu criatividade como princípio da novidade, algo ALMEIDA, Bruno Vasconcelos de: ÁVILA, Luiz puro, não especificado, algo absolutamente infinito. A criatividade Augusto Lima de (org.). Pensar da literatura. Belo Horizonte: Fumarc, é a realidade básica do Universo, um dos três componentes da 2014. categoria do último, juntamente com um e muitos (WHITEHEAD, ALMEIDA, Bruno Vasconcelos de. Cartografias da alegria na e na literatura. 1985). Curitiba: CRV, 2011. (Trilogia da alegria, 1). Em um de seus livros da fase final Infinito, transfinito, finito ALMEIDA, Bruno Vasconcelos de. Clinica e beatitude. Curitiba: CRV, 2011. (1984) Bacca, por seu turno, pensa o problema da finitude e dos limites, (Trilogia da alegria, 2). e sua consequente superação, na história do pensamento, indicando que BACCA, Juan David Antropologia y ciencia Barcelona: homem inventou, ou melhor, criou modos de avançar sobre sua própria Anthropos Editorial del Hombre, 1983. finitude, em especial, através da ciência e da técnica contemporâneas, BACCA, Juan David Ciencia, historia y filosofia en la atmósfera tornando possível uma espécie de transfinitude, possibilidade real de ser cultural de nuestro tiempo. Disponível em: http://fundaciongarciabacca.com/assets/ infinito. Trata-se de referência aos números transfinitos de cantor, números Acesso em: 18 maio 2020. maiores que qualquer quantidade concebível. BACCA, Juan David De magia a tecnica: ensayo de teatro Se a questão da criação e da criatividade aparece em diferentes literario-técnico. Barcelona: Anthropos Editorial del Hombre, 1989. momentos da obra desse autor longevo, e, por vezes enigmático, em seu BACCA, Juan David Elogio de la Barcelona: Anthropos Editorial último período, em que trabalha especificamente questões da ciência e da del Hombre, 1987. técnica, ambas parecem sustentar seu pensamento em direção ao infinito, BACCA, Juan David Garcia. Infinito, transfinito, finito. Barcelona: Anthropos à transubstanciação, a um pensamento acerca da imortalidade. Editorial del Hombre, 1984. Para um leitor em obra tão complexa e em uma espécie de afinidade BACCA, Juan David Garcia. Nueve grandes filósofos contemporáneos y sus eletiva com Whitehead, a aproximação com seu pensamento parece uma temas: Bergson, Husserl, Unamuno, Heidegger, Scheler, Hartmann, W. James, viagem por terra estranha e cheia de dificuldades. Por outro lado, Ortega y Gasset, Whitehead. Barcelona: Anthropos Editorial del Hombre, 1990. experimenta-se a sensação de estar perto de algo que nominar (Autores, textos y temas/filosofia, 30). como sabedoria. Pode-se destacar a consistência, a complexidade, a BEORLEGUI, Carlos. La filosofia de J. D. Garcia Bacca. Isegoria, 1993. amplidão dos campos de interesse e a rica proliferação conceitual. Bacca Disponível em: Acesso em: 18 é um autor do século XX, mas sua leitura, nos dias atuais, proporciona maio 2020. um sabor de novidade e surpresa. Que essas poucas páginas possam CASADO, Carlos. Filosofia de la técnica y de la tecnología. Revista CTS, 14, estimular sua leitura. n. 40, Febrero de 2019. Disponível em: article/view/104/99. Acesso em: 18 maio 2020. Uma última anotação diz respeito à completa ausência de obras, bem como da fortuna crítica, de Bacca em terras brasileiras. Em artigo Ivan. Filosofia no Brasil: legados perspectivas: ensaios São Paulo: Ed. da Unesp, 2017. publicado na Revista Portuguesa de Filosofia "O pensamentode la técnica y de la tecnologia. Colloto: n el basilisco). David Una para la actividad de Estudios Culturales, n. 21, 2017/1. ISSN www.latorredelvirrey.es/wp-content/uploads/ Garcia-Bacca.pdf Acesso em: 18 maio 2020. 3 pensamento filosófico no Brasil de hoje. p. 235-273, 1961. cess and reality. Edited by David Ray Griffin rk: The Free Press, 1985. ALBERT BORGMANN Hipermodernidade, informação e cultura da tecnologia Luiz Adriano Gonçalves Borges Albert Borgmann é um filósofo da tecnologia teuto-americano que, seguindo um ponto de vista heideggeriano, introduziu a noção de paradigma do dispositivo, conceito que procura discutir a maneira como a tecnologia é percebida e consumida na sociedade contemporânea. Esse conceito partiu da noção de Heidegger de Gestell [enquadramento], que seria a essência do tecnológico. A preocupação daqueles que foram influenciados pelo filósofo alemão acabou sendo, sempre, a essência da tecnologia de um ponto de vista transcendentalista e metafísico. Assistindo às aulas de Heidegger em Freiburg, mais tarde se doutorando com uma tese em filosofia da tecnologia, Borgmann foi um continuador das ideias do filósofo alemão no que concerne à tecnologia. A visão filosófica de Heidegger pressupunha que se devia buscar pela causa última de tudo que é, devendo ter a percepção de que isso está oculto, (meta) do fenômeno natural (fisica). É a essa busca que Heidegger vai partir ao analisar a tecnologia em sua obra influenciadora The question concerning technology, de 1954 (HEIDEGGER, 2013). A questão principal para filósofo, a essência da tecnologia, estaria em como as pessoas se relacionam com ela. Ele se perguntava como conseguir um relacionamento livre com a tecnologia. Assim, a preocupação reside em discutir que a tecnologia é para nós (uma visão instrumentalista, mas incompleta segundo autor) e quais 46 47são seus fins; para isso ele desenvolve uma visão essencialista da tecnologia. (BORGMANN, 1988). Partindo das ideias de Heiddeger de Para Heidegger a tecnologia seria uma forma de desvelamento, ou que a tecnologia diminui a experiência da realidade, Borgmann discorre desocultamento, um compelir-à-frente. sobre como temos uma relação bem menos intensa com a realidade do Para elaborar essa noção de desvelamento e seus desdobramentos, que antes da tecnologia moderna. Graças à tecnologia, passamos a ter acesso ao conforto de maneira muito mais fácil. Não vamos mais à floresta Heidegger se apropriou do conceito aletheia, surgido no seio da filosofia para conseguir madeira para nos aquecer, simplesmente podemos ligar grega antiga e utilizado por Esse conceito significa, grosso modo, estado de não estar escondido, estado de estar evidente, de aquecedor. A isso ele denomina "desengajamento". revelar-se. Assim, a tecnologia desvela que estava escondido, a intenção Em busca de melhor compreender fenômeno da tecnologia, por do artefato. Quem constrói uma casa ou um barco, ou forja Borgmann divide seu livro em três partes: a primeira, "O problema da um cálice sacrificial, revela um modo de ver mundo, compele-à-frente tecnologia", lida com questões terminológicas e a segunda, algo que estava oculto. Ao fazer uso da tecnologia, não se está somente "O caráter da tecnologia", apresenta sua teoria original de tecnologia (o criando, mas compelindo-à-frente; mundo é abordado da maneira que paradigma do dispositivo) em contraponto às ideias de Heidegger; e a o homem escolhe. É dessa forma que a tecnologia contemporânea não é última parte, intitulada "A reforma da tecnologia", trata de práticas e simplesmente a utilização racional de meios para se alcançar um fim, mas coisas um modo de compelir, de desabrigar A tecnologia seria Na primeira parte, autor sintetiza os estudos de tecnologia em três uma visão de mundo, uma maneira de ser humano lidar com mundo. vertentes: a substantiva, a instrumentalista e a pluralista. Na visão A tecnologia [technik] desabriga e um desafio [herausfordern] ao tornar substantiva, a tecnologia possui uma força por si só e que acaba moldando, à Terra, homem, enfim, tudo que a cerca, em bestand, algo disponível, de forma a visão e os valores da sociedade. uma reserva a seu dispor. Os seres humanos não estão livres para escolher, instrumentalismo percebe a tecnologia como uma ferramenta e enxerga antes são controlados por esse modo de enxergar a realidade, por um ser humano como um fazedor e usuário de artefatos, e as tecnologias, enquadramento. Os seres humanos enquadram toda a realidade, inclusive como objetos neutros do ponto de vista de valores. A visão pluralista leva ao lidar consigo mesmos e com os outros de sua espécie, dentro de uma em consideração as várias tendências e complexidades envolvidas nas perspectiva tecnológica. Uma vez introduzido pelos próprios seres muitas forças que interagem. A proposta de Borgmann pretende evitar as humanos, esse enquadramento tecnológico se tornou a visão dominante limitações e incorporar as virtudes de cada uma das dominantes da e os tornou escravos dessa maneira de enxergar as coisas. Para Heidegger filosofia da tecnologia. a única maneira de sair dessa prisão é tornar-se consciente do Assim, o filósofo teuto-americano parte para apresentar sua tese enquadramento. "A essência da técnica [...] não é de modo algum algo central do paradigma do dispositivo. Esse conceito é fundamentalmente como afirmou, mas se encontra na visão que se faz da técnica. a ideia de que temos certeza de que os dispositivos tecnológicos cumprem Mas filósofo não deu maiores detalhes de como a mudança de perspectiva seu propósito, nos fornecendo objetos de consumo (commodities). poderia recorrer, ficando a cargo de seus discípulos e seguidores apontar problema é que essa maneira de se utilizar a tecnologia acaba formatando soluções (HEIDEGGER, 2007; SCHARFF; DUSEK, 2014, pt. IV). (da mesma forma que enquadramento heideggeriano) a maneira como vemos a realidade, empobrecendo-a e nos afastando de questões mais essenciais, que Borgmann denomina de "práticas focais". Não sabemos Albert Borgmann e sua obra mais fazer um pão, nem como se dá processo de fazê-lo: procedimento Albert Borgmann nasceu em Freiburg Alemanha, em 1937, de colheita, separação de moagem, preparação e mistura dos mudando-se para os Estados Unidos, mas retornando para completar seu ingredientes, e tempo de esperar para a massa ficar pronta nos estranho. doutorado na Universidade de Munique, em 1963. Após ser nomeado professor na Universidade de Montana, começou a se interessar por Borgmann vai discutir Heidegger especialmente em dois capítulos: no 8 The promise of filosofia da tecnologia e, em 1984, publica seu primeiro livro sobre technology, na parte no Focal things and practices, na parte 3. Isso se dá justamente tema: Technology and the character of contemporary life: a philosophical para apontar de onde ele está partindo como ele pretende responder ao questionamento e caráter da vida uma investigação levantado por Heidegger de como tentar ultrapassar a forma técnica de ver mundo.Vamos ao mercado e compramos um produto pronto. Com isso, houve Ao tirar centro da tecnologia, podemos nos relacionar com as coisas e uma quebra e empobrecimento com a realidade e uma desvalorização de com os outros não como uma reserva ou algo disponível a mas ter todo processo. Não é surpresa que tenhamos tantos problemas de saúde um relacionamento com a realidade mais profundo e rico. tanto corporal quanto mental. E qual seria a solução? Colocar a tecnologia Esse livro foi responsável por criar todo um campo de estudos em seu lugar e focar, uma palavra que tem importância central na teoria sobre como ter uma relação mais ética e virtuosa com a tecnologia borgmanniana. (HIGGS; LIGHT; STRONG, 2000; VALLOR, 2016). Como nos conta Borgmann, a palavra foco vem do latim e significava lareira. Em sociedades pré-tecnológicas, a lareira constituía centro do Os problemas da hipermodernidade, a informação na calor, luz e de práticas diárias. A lareira sustentava, ordenava e centrava a casa e a família. Algum membro era responsável por cortar a lenha, outro, virada do milênio e a cultura da tecnologia por acender, outro, por cuidar do fogo, e todos se reuniam ao redor da Dando continuidade ao seu projeto, ele publica Crossing the lareira. É muito diferente de somente apertar um botão e ligar aquecedor. postmodern divide [Atravessando a divisão (BORGMANN, Foi no Iluminismo que termo passou a conotar noções de 1993) sobre a condição pós-moderna ou, como ele denomina, de hiper- geometria e ótica. moderna, uma espécie de pós-modernismo tecnologicamente ativado. Dentro do campo da filosofia da tecnologia, o tema da pós-modernidade surge a partir da apropriação de Heidegger por autores franceses que Esses sentidos técnicos de "foco" convergiram alegremente com original na linguagem comum. Figurativamente, eles sugerem que escreveram na década de 70 como Derrida, Lyotard e Baudrillard. Um um foco reúna as relações de seu contexto e se irradie em seu dos conceitos utilizados por Borgmann, nesse livro, é justamente de entorno e as informem. Focar em algo ou em foco é hiper-realidade de Baudrillard. central, claro e articulado. É no contexto desses sentidos Pertinente é dizer que, no mesmo ano em que Borgmann publica históricos e vivos de "foco" que quero falar de coisas e práticas seu texto sobre tecnologia e pós-modernismo, cientista político Arthur focais (BORGMANN, 1988, Cap. 23, p. Kroker lançou seu importante The possessed individual: technology and the French postmodern (KROKER, 1992), com um diálogo mais próximo Borgmann cita como exemplos de coisas e práticas focais a música, com pensadores dessa corrente de pensamento, buscando o debate com a a jardinagem, a cultura da mesa, e a corrida. Outras podem ser adicionadas, tecnologia. como fazer construir algo com as próprias mãos, jogar um jogo de Trazendo para a filosofia da tecnologia o conceito de Baudrillard, tabuleiro, tocar um instrumento musical, etc. Essas práticas "agora podem Borgmann define que ele entende por ser vistas como restauradoras de uma profundidade e integridade de nossas vidas que são, em princípio, excluídas dentro do paradigma da tecnologia" (1988, p. 208). Assim, ele define que "a presente proposta é restringir a condição é, no geral, um afastamento notável do todo paradigma tanto a quanto a mercadorias (commodities), projeto moderno e uma resposta salutar à crise da Mas ainda é uma constelação profundamente ambígua que pode ao status de um meio e deixar que coisas e práticas focais sejam nossos ser resolvida de duas maneiras muito diferentes. Um, que é fins" (BORGMANN, 1988, Cap. 23, tradução minha). Agindo assim, descendente direto da tecnologia moderna e é muito mais para uma verdadeira riqueza e uma boa vida. Não se proeminente diante dos desenvolvimentos recentes, que eu chamo trata de substituir toda a tecnologia por práticas focais, algo que seria de hipermodernismo. Ele é dedicado ao design de um universo inviável. A tecnologia não precisa ser um a uma relação tecnologicamente sofisticado glamourosamente irreal, intensa com a realidade, ela pode, inclusive, ter um papel nessas distinguido por sua hiper-realidade, hiperatividade e práticas, como quando usamos a tecnologia para construir algo que hipermodernismo deriva [em] grande parte transmita valores transcendentais, como uma catedral, por exemplo. de sua energia, de sua suposta alternativa, uma resignação sombria ao declinio da era uma melancolia Todas as traduções de citações foram feitas por mim. principalmente neste país (1993, p. 5-6).comunal, até desafiando a noção individualista de nossos tempos, Apesar dessa desesperança, dessa melancolia, Borgmann indica que colocando outros valores, para além da tecnologia, como foco de há soluções para resolver a ambiguidade da condição pós-moderna, trazendo elementos de suas teses apresentadas no livro anterior: Toda a realidade, a Natureza e os relacionamentos humanos não Existe, entretanto, um modo de vida além da melancolia e devem ser transformados em meros produtos (commodities), ou em hiperatividade. É uma recuperação da vida das coisas eloquentes, dispositivos disponíveis ao nosso bel-prazer. Essa característica de nossa uma recuperação que aceita a crítica e realiza sociedade, que Borgmann denominou de "paradigma do dispositivo", aspirações pós-modernas. Eu chamo essa recuperação de realismo é que as práticas focais pretendem contornar. pós-moderno e aponto suas características emergentes realismo Alguns anos mais tarde, Borgmann procurou aplicar seus conceitos focal, vigor paciente e celebração comunitária (BORGMANN, para a era da informação em que se estava entrando na década de 90. 1993, p. 6). Assim, em 1999, na eminência do início de um novo milênio, ele publica Holding on to reality: the nature of information at the turn of the millennium Nas citações acima, temos um esquema básico do que Borgmann [Agarrando-se à realidade: a natureza da informação na virada do vai explorar ao longo de sua obra. Ele, primeiramente, define que é (BORGMANN, 2000). Segundo seu prognóstico, com a criação e modernismo e pós-modernismo e, depois, apresenta os problemas trazidos popularização da internet, acentua-se distanciamento com a realidade, pelo hipermodenismo, tais como a hiperatividade, além de criticar os com a diminuição da prática de atividades focais, tais como: jardinagem, efeitos colaterais da hiper-realidade e da busca pela hiperinteligência. Esses corrida, cozinhar e relacionamentos pessoais, para imersão em fantasias problemas seriam de segurança, de liberdade, de desconexão com a eletrônicas, no ciberespaço e com a realidade virtual. Essa é a divisão realidade e de uma memória mais superficial, entre outros. Discutindo pós-moderna que ele já desdobrava no livro anterior. Nesse livro, brevemente esses impasses, Borgmann encaminha algumas possíveis autor investiga as características dessa nova fase e advoga pela defesa da soluções que estão englobadas no que ele denomina como "realismo pós- realidade. moderno". A ideia de Borgmann é diferenciar conceito de informação do de Como remédio para os problemas do hipermodernismo, devemos realidade e, para isso, destaca três formas de se entender a realidade tendo não abandonar totalmente suas características ou a tecnologia, mas a informação como meio: a informação sobre a realidade (informação perceber as boas lições da crítica e procurar decifrar as natural); a informação para a realidade (informação cultural); e, por ambiguidades de sua condição com uma atitude de vigor paciente para último, a informação como realidade (informação tecnológica). uma ordem comum centrada em celebrações Agindo dessa Segundo pensador, a informação, hoje, é um dispositivo forma, uma relação melhor com a realidade toma centro da solução. tecnológico que se apresenta como a realidade, buscando usurpá-la. A Quando nos deslocamos da realidade para um universo cibernético, informação tecnológica, em nossos dias, abunda e se sobrepõe às outras podemos perder foco do que é importante, como as relações camadas de tipos de informação, como a natural e a cultural, se tornando incorporadas, nas quais corpo e mente têm importância. Aqui devemos uma enxurrada4 que ameaça erodir, suspender e dissolver seus nos lembrar do conceito de coisas e práticas focais apresentado acima. predecessores. "Tudo que é tocado pela tecnologia da informação se destaca Não que a tecnologia não deva ser usada, mas ela não deve ser um de si mesmo de suas fundações e [perde a] ligação com suas origens." substituto para relações humanas presenciais. (BORGMAN, 2000, 2). Sem falar na opacidade que gera em relação à Assim, juntamente com a condição pós-moderna, deve-se cultivar realidade e os diversos problemas gerados pelo caos de informação, como uma paciência vigorosa, para não buscarmos as soluções mais rápidas ansiedade e depressão. Assim, Borgmann afirma que para nossos problemas. imediatismo é um grande mal da hipermodernidade, já que, uma vez que a informação trafega à Há toda uma linha de pensadores que apontam a soluções comunitaristas: Alister velocidade da luz, queremos respostas rápidas. E, por fim, na triade MacIntyre, Charles Michael Sandel Michael Walzer. de soluções propostas para reconquistar a realidade e contornar os Curiosamente, essa palavra está no do livro de James Gleick "A informação: uma uma uma enxurrada" p. 11-20). problemas do hipermodernismo, Borgmann propõe a celebração 53precisamos tanto de uma teoria quanto de uma ética da informação um bom relacionamento com as pessoas e com as coisas, não as tratando uma teoria para iluminar a estrutura da informação e uma ética como para obter a moral de seus desenvolvimentos. Minha esperança é último livro que queremos analisar chama-se Power failure: que a teoria irá fornecer perspicácia à ética, e que a ética dará à christianity in the culture of technology [Falha de energia: cristandade na teoria alguma força e que, uma vez que tenhamos entendido a cultura da tecnologia], de 2003 (BORGMANN, 2003). Nessa obra, informação, veremos que a boa vida requer um ajustamento entre os três tipos de informação e um balanço de sinais e coisas Borgmann quer compreender como a tecnologia, aparentemente, trouxe (BORGMANN, 2000 p. 6). a libertação da fome, do frio, de doenças, da ignorância, trazendo riquezas e, ao mesmo tempo, parece ter tornado cristianismo algo supérfluo no Ocidente. Para isso ele parte de alguns questionamentos acerca do tipo Por sinais, Borgmann quer apontar elementos naturais que de liberdade que a tecnologia tem prometido, qual sorte de riquezas ela conseguimos distinguir e que nos dão pistas acerca das coisas; por exemplo, tem produzido, se nos sentimos, de fato, livres e se nós estamos realmente sinais no céu que indicam que pode chover no dia seguinte. No passado, prosperando. Para Borgmann, nós não devemos tentar demolir a a relação entre sinais e coisas era tão forte como era a relação entre tecnologia nem fugir dela. Nós devemos restringi-la e e informação e conhecimento. Agora, a informação chega aos cristianismo apresentaria respostas promissoras para a tecnologia. mas não sabemos para que servem tantos dados; na verdade, nem Dessa forma, Borgmann, primeiramente, examina as circunstâncias precisamos de grande parte deles. Há uma desconexão entre a da cultura da tecnologia contemporânea para, em um segundo momento, informação que recebemos e a constituição de conhecimento. Na esboçar lugar do cristianismo nessa cultura. Esse exame resgata conceitos hipermodernidade, as coisas, que nos engajavam com a realidade são deixadas de lado ou transformadas em commodities, que, na teoria de (apresentados acima) caros ao autor, como paradigma do dispositivo, que aqui ele apresenta como O componente das commodities e do Borgmann, aponta para entidades altamente reduzidas, desenraizadas maquinário. Mais uma vez, ele ressalta que as coisas e práticas focais são e que perdem sentido; commodities são objetos que não possuem profundo contrapesos para a tecnologia, entendida como uma forma de cultura. significado. Ele cita exemplo da cultura de mesa. A tecnologia da informação esconde, sob sua faceta de transparência, a busca de um controle sobre a realidade (Cap. 13). E afastamento da realidade intrínseco à Realidade Virtual gera uma ambiguidade; não é A prática de cozinhar tem sido grandemente através da disponibilidade de comida de e fornos de micro-ondas. incomum vermos jovens viciados em tecnologia tendo dificuldade em A prática de jantar tem sido reduzida a comer pequenas porções ao relacionamentos reais (Cap. 14). A realidade virtual não produz longo do dia, a lanches e simplesmente pegar algo e comer formas informações sobre mundo real e acaba gerando uma fraca experiência de mero consumo de comida. A própria comida se reduziu de um da realidade: "Ao separar facetas da realidade de seu contexto real e contexto inteligível e de algo iluminador para uma commodity opaca colocá-las à tona no ciberespaço, a tecnologia da informação não apenas e glamorosa (BORGMANN, 2003, Cap. 2, p. 31). permite banalização e glamourização, mas também contribui para a desfocagem da linha entre fato e ficção" (BORGMANN, 2000, p. Talvez um dos efeitos negativos da ausência de uma cultura de mesa 192). Borgmann anteviu surgimento das redes sociais e das fake seja surgimento de novas intolerâncias alimentares. news. Assim, no capítulo "Communities of ele apresenta a Borgmann tem uma visão otimista com relação à tecnologia da tradição comunitarista6 como solução para os problemas da cultura da informação e de suas potencialidades. A busca deve ser ajustar equilíbrio tecnologia. E como se daria isso? entre os níveis de informação, quais sejam, natural, cultural e tecnológico. Esse equilíbrio passa pela restituição de significado e constituição de Principalmente nesse mas não somente, Borgmann adia muitos temas propostos espaços naturais, concebidos a partir de uma urbanização que leve em por outro heideggeriano, sul-coreano, naturalizado Byung Chan Han. consideração bem viver. Para Borgmann engajamento com a realidade diagnóstico é similar, mas as soluções divergem. Ver nota 3. (práticas focais) seria remédio para a condição hipermoderna, tendo 55Como então podemos ter esperança de dar às comunidades Com os conceitos de poder e cuidado, Borgmann expõe como de celebração um lugar central em uma sociedade tecnológica? cristianismo pode trazer uma relação profunda e frutifera para a tecnologia. Comunidade, para começar, é [um termo] geralmente usado para Ao percebermos que poder que a tecnologia traz muitas vezes é uma designar um número de pessoas com uma ligação comum de busca pelo controle da Natureza e dos outros e que a noção de cuidado alguma sorte, um interesse ou hábito em comum. [...] Eu quero (ecos do princípio responsabilidade de Hans Jonas) pode inocular esse usar comunidade em um senso forte, um que é próximo da noção de Robert Bellah de uma comunidade de memória e de práticas desvio da tecnologia, podemos conviver melhor uns com os outros, com Universo e com mesmos. de comprometimento, e se refere a um grupo de pessoas que estão na presença corporal uns dos outros e engajados em um empreendimento comum que é um fim ao invés de um meio Considerações finais (BORGMANN, 2003, Cap. 3, p. 47). Borgmann conclui esse livro, que nos serve também de conclusão para este capítulo, com a "cultura da palavra e a cultura de mesa". Com Um dos grandes problemas que mundo tecnológico tem trazido é isso ele quer recuperar as práticas de conversação, de leitura e do cozinhar a falta de presença corporal nos relacionamentos. Fazemos ligações através como remédio para os mal-estares da hipermodernidade. As pessoas não de aplicativos, vemos rosto das pessoas e ouvimos sua voz, mas algo está irão deixar paradigma do dispositivo, a transformação de tudo em um faltando. Há ruídos de comunicação devido à falta de expressões que só produto pronto a ser consumido, se não encontrarem um paradigma são possíveis presencialmente. Em um período em que estamos vivendo melhor. Assim, filósofo teuto-americano apresentou alguns elementos de isolamento social devido ao Covid-19, percebemos que as tecnologias, do cristianismo para se pensar na natureza humana numa cultura por mais maravilhosas e úteis que sejam, não são substitutos da presença tecnológica; não de abandono da tecnologia, mas do rompimento do incorporada. Suspeitávamos, antes disso, mas esse contexto confirmou. paradigma do dispositivo para um modo comunitário e benevolente de Portanto, para Borgmann existe a necessidade de se resgatar convívio uso da tecnologia, passando pela prática de atividades focais. Agindo assim, em comunidade como da cultura tecnológica, segundo ele, estaremos retirando foco da tecnologia, mudando que transforma tudo em commodities e dispositivos a serem consumidos. enquadramento com que enxergamos a realidade. Essas comunidades não se constituem somente de momentos festivos, mas também de redes de apoio, de solidariedade e de moral, confirmando Borgmann continuou a escrever e a aplicar seus conceitos em estudos a insuficiência do liberalismo individualista. sobre filosofia da tecnologia, procurando aprofundar seu diagnóstico da cultura e reforçando sua prescrição já cristianismo prega algumas noções que podem ajudar a equilibrar apresentada ao longo de suas obras anteriores,8 por exemplo, ao analisar a essa cultura tecnológica. Com os conceitos de contingência e graça, relação da realidade com a tecnologia, percebendo como a conjunção de Borgmann indica como podemos deixar de focar na busca por controle, commodity e joga luz sobre os descontentamentos da vida na eficiência e predição para perceber que nem tudo precisa ser transformado atual sociedade. Novamente ele afirma a recuperação de compromissos e e controlado pela tecnologia e perceber como a Natureza é algo recebido atividades focais, pois, do contrário, veremos um futuro ainda mais gratuitamente pelo ser humano. Isso não quer inferir que não devamos disjuntivo e "commodificado" (BORGMANN, 2010). Também autor procurar usar a tecnologia para nos alimentarmos, nos aquecermos e nos apontou que que pode trazer sentido de e um significado curarmos, mas que devemos ser mais gratos pelas contingências da vida. profundo à vida humana passa por uma vida comunal e mais real, isto é, Por exemplo, no campo da bioengenharia, as pesquisas devem procurar alicerçada em práticas focais. Ele parte das conclusões de expoentes da um equilíbrio entre melhorias e curas, aceitando certas limitações como filosofia norte-americana do século XX, como: Carnap, Quine, Krike e e constituintes da natureza humana. ser humano é incompleto Nozick, para mostrar como a presença em experiências focais reforça a e deficiente e não pode prever que suas ações podem causar na Natureza realidade (BORGMANN, 2011a). em longo prazo. Ver importante livro que discute a filosofia de Borgmann, assim como aponta Ver: Sandel (2013). e caminhos a seguir (HIGGS; STRONG, 2000). 56 57Em The sacred and the person, Borgmann comentou que há dois tipos de sagrado: sagrado legitimo, mais conhecido sob título de direitos BORGMANN, A. Reality and technology. Cambridge Journal of Economics, humanos, e sagrado gracioso da realidade concreta - coisas e práticas de 34, n. 1, p. 27-35, 1° jan. 2010. natureza e arte particularmente. Desdobrando esses dois pontos, ele discute BORGMANN, A. The here and now: theory, technology, and actuality. Philosophy sobre a sacralidade da pessoa dentro de sua teoria (BORGMANN, 2011b). Technology, 24, n. 1, p. 5-17, mar. 2011a. Buscando insights na vida do monge católico Thomas Merton, Borgmann BORGMANN, A. The sacred and the person. Inquiry, 54, n. 2, p. 183-194, escreveu como a contemplação é uma saída para a distração e os efeitos 25 mar. 2011b. destrutivos da tecnologia (BORGMANN, 2012). Por fim, essa discussão BORGMANN, A. Contemplation in a technological era: learning from Thomas levou a adentrar, ainda que brevemente, no tema da identidade pessoal Merton. Perspectives on Science and Christian Faith, 64, n. 1, p. 3, mar. 2012. na era da internet e os desafios de autonomia individual e autoridade BORGMANN, A. So who am I really? Personal identity in the age of the internet. estatal, tema caro aos debates liberais e comunitaristas (BORGMANN, AI SOCIETY, 28, n. 1, p. 15-20, fev. 2013. 2013). GLEICK, J. A informação. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Este belo jardim teórico, que Borgmann cultivou ao longo de HEIDEGGER, M. A questão da técnica. Scientiae Studia, 5, n. 3, p. 375-398, décadas, continua a inspirar muitas análises na área da filosofia da set. 2007. tecnologia e traz diversos belos insights para a crítica e a reforma da nossa M. The question concerning technology and other essays. Trad. de cultura William Lovitt. New York; London; Toronto: Harper Collins Publishers, 2013. HIGGS, E.; LIGHT, A.; STRONG, D. (ed.). Technology and the good life? Chicago: University of Chicago Press, 2000. KROKER, A. The possessed individual: technology and the French postmodern. New York: St. Martin's Press, 1992. SANDEL, M. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. Referências SCHARFF, R. C.; DUSEK, V. (ed.). Philosophy of technology: the technological BORGES, Luiz Adriano Gonçalves. Ciência, tecnologia e cristianismo na obra condition: an anthology. Malden, MA: Wiley Blackwell, 2014. de C. S. Lewis. Revista Brasileira de Filosofia da 4, n. 2, p. 108-133, VALLOR, S. Technology and the virtues: a philosophical guide to a future worth dez. 2017. wanting. New York, NY: Oxford University Press, 2016. BORGES, Luiz Adriano Gonçalves. The city of man and the technological paradox. In: ELLUL, Jacques; THE BIBLE, 2018, Vancouver. Annals of ELLUL THE BIBLE Colloquium, 2018. BORGMANN, A. Technology and the character of contemporary life: a philosophical inquiry. Paperback ed., 3. ed. Chicago: University of Chicago Press, 1988. BORGMANN, A. Crossing the postmodern divide. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1993. BORGMANN, A. Holding on to reality: the nature of information at the turn of the millennium. Paperback ed. Chicago: Univ. of Chicago Press, 2000. BORGMANN, A. Power failure: christianity in the culture of technology. Grand Rapids, Mich: Brazos Press, 2003. O autor agradece a leitura do texto sugestões de Fernando Pasquini Santos (UFU)4 MARIO BUNGE Uma filosofia exata da tecnologia Alberto Cupani Mario Augusto Bunge (1919-2020), argentino radicado havia muito tempo no (McGill University), foi um dos pioneiros da filosofia da tecnologia como disciplina acadêmica. cedo como na década de 70, reclamava da indiferença dos filósofos para com a tecnologia, afirmando que filosofia e tecnologia eram "dois vizinhos que se desconheciam". A relação dos problemas axiológicos relativos à tecnologia que, na sua opinião, esperavam ser trabalhados, é possível que ainda não tenha sido superada (BUNGE, 1980, Cap. 13). Desde então, a disciplina cresceu para satisfação desse pensador, que continuou contribuindo para a mesma, assim como para a filosofia em geral. Físico de formação e possuidor de uma erudição fora do comum, Bunge formulou um sistema de filosofia (Treatise on Basic Philosophy, de 1974 a 1989) que constitui o pano de fundo de suas reflexões sobre tecnologia. Bunge define a tecnologia como "o campo de conhecimento relativo ao desenho de artefatos e à planificação da sua realização, operação, ajustamento, manutenção e monitoramento, à luz do conhecimento (BUNGE, 1985a, p. 231). A caracterização da tecnologia como "campo de conhecimento", se deve ao fato de que, para Bunge, não existe tecnologia na qual homem se limita a aplicar um saber-fazer ou a Minha como é a de todas as citações.servir-se de artefatos sem se perguntar pela sua base teórica nem procurar tecnologia foi condição de uma aceleração do progresso humano. Isso seu aperfeiçoamento. Essa última conduta corresponde à técnica porque a inovação é, dentro da técnica tradicional, um processo dificultado (tradicional) e ao comportamento do atual técnico (não do tecnólogo, pela inércia social. Do ponto de vista sistemático (não necessariamente, como engenheiro). histórico), a tecnologia surge na medida em que ou bem se indaga a Técnica e tecnologia compartilham da mesma finalidade: produzir fundamentação teórica das regras técnicas, ou bem se busca aplicar conhecimentos à solução de problemas práticos. Isso não um artefato, algo artificial, produzido com arte (tekhne). Não se deve pensar, observa Bunge, que o artificial seja, necessariamente, uma coisa significa que a tecnologia seja, meramente, aplicação da ciência, pois ela (um uma vacina). Pode tratar-se também da modificação de implica a busca de novo conhecimento (prático). um sistema natural (v.g., quando se represa ou se desvia curso de um rio), ou seja, de um estado artificial de um sistema natural. Pode tratar-se, Em qualquer processo tecnológico de alto nível, como observado também, da transformação de um sistema (uma mudança artificial), como numa refinaria de num hospital moderno ou num exército moderno, tanto os pesquisadores tecnológicos (nem tanto quando se ensina uma pessoa a ler. Em todos os casos, a ação técnica assim os como os administradores ou dirigentes, utilizam uma forma de trabalho opera utilizando recursos naturais (empregar numerosas ferramentas conceituais, tais como a química orgânica, cérebro próprio para resolver um problema de maneira metódica; usar eletromagnetismo, a teoria das filas de espera e a teoria das plantas para construir uma cabana), transformando-os (produzir tecidos decisões. No caso de serem inovadores ou criativos, os com base na domesticar animais), ou reunindo elementos naturais pesquisadores e os que decidem ensaiarão ou até inventarão novas (sintetizar organizar pessoas em uma firma comercial). Algo teorias ou novos procedimentos. Em suma, a tecnologia não está artificial é "toda coisa, estado ou processo controlado ou feito separada da teoria nem é mera aplicação da ciência pura: ela tem deliberadamente com auxílio de algum conhecimento aprendido e um componente criativo particularmente manifesto na pesquisa utilizável por outros [seres humanos]" (BUNGE, 1985b, p. 33-34). tecnológica e na planificação de políticas tecnológicas (BUNGE, Observe-se, ainda, que artefato pode ser eventualmente algo social, como 1980, p. 191). no caso de organizar uma equipe esportiva; que se pode tratar do resultado de um serviço (por exemplo, pacientes cuidados) e, finalmente, que pode De resto, ciência aplicada, observa Bunge, é uma expressão ambígua, consistir em algo julgado como negativo (como as armas atómicas). pois pode referir-se à utilização de uma ciência por parte de outra (a física Caracteriza, também, a técnica e a tecnologia a existência de uma na biologia), ou bem ao uso de conhecimentos para resolver planificação ainda que mínima. Ambas as atividades um objetivo problemas de conhecimento de possível importância (p. ex., na preciso. artefato é concebido (antecipado), e se procuram, fabricação de remédios). Vale a pena, portanto, nos determos na distinção sistematicamente, os meios de produzi-lo. Para tanto, técnica e tecnologia entre ciência pura, ciência aplicada e tecnologia. Para Bunge, ao passo conhecimentos já disponíveis ou novos. A técnica serve-se do saber que a primeira deseja obter o saber pelo seu valor intrínseco, e a tecnologia vulgar, eventualmente impregnado de saber que não é persegue a solução de problemas práticos mediante recursos a reconhecido como tal. A tecnologia recorre, explicitamente, ao saber ciência aplicada representa uma zona intermediária entre as duas (dados, leis e teorias). Para a produção técnica e tecnológica, os primeiras, zona em que (tal como na pesquisa básica) se se tem por elementos naturais são vistos como recursos, não sendo apreciados apenas objetivo o conhecimento (e não a ação ou a produção), mas, ao mesmo pelas suas qualidades inerentes. Técnica e tecnologia implicam, portanto, tempo (e como na tecnologia), conhecimento é procurado pelas valores (na forma genérica de: "tal coisa é útil ou adequada para tal outra"). suas projeções práticas. Exemplos respectivos: estudo da composição Finalmente, a produção técnica ou tecnológica contém regras, ou seja, de um ecossistema (ciência básica), diferente de pesquisar os efeitos instruções "para realizar um número finito de atos em uma ordem dada e dos poluentes sobre sistema (ciência aplicada) e diferente também com um objetivo também dado". As regras são necessárias tanto para que de projetar processos de diminuição de sua poluição (tecnologia). Mas artefato seja utilizável como para que seja eficiente. a distinção anterior não significa que os três tipos de pesquisa existam A técnica acompanhou (e possibilitou) desenvolvimento da sempre isoladas. As três atividades se superpoem e se alimentam humanidade ao longo da maior parte de sua surgimento da reciprocamente.Bunge faz uma contribuição importante à filosofia da tecnologia ao engenharia: civil, mecânica, elétrica, nuclear e a recente engenharia caracterizar conhecimento tecnológico à diferença do conhecimento climática, a arquitetura e urbanismo), tecnologias quimicas (química Este último consiste, principalmente, em leis ("enunciados industrial, engenharia química), tecnologias biológicas (agronomia, nomológicos"). Para seu uso tecnológico, tais enunciados devem ser veterinária, medicina, farmacologia, odontologia, engenharia traduzidos em "enunciados nomopragmáticos", que fundamentam, por tecnologias (psicologia clínica, psiquiatria, sua vez, regras de ação. Um enunciado nomopragmático consiste na psicologia industrial, pedagogia...), tecnologias da informação reformulação da correspondente lei, na forma de um enunciado (informática ou engenharia do conhecimento, em particular a condicional que a converte em previsão (se se ocorrerá y). Assim, a inteligência artificial) e tecnologias sociais (que podem ser específicas, segunda lei de movimento de Newton: "A variação da quantidade de como a administração e a jurisprudência, ou gerais: a engenharia social, movimento de um corpo é proporcional à força aplicada e se verifica base de políticas sociais. Diante de todas essas tecnologias particulares, sempre na mesma direção em que age a força", serve de base à regra existe também, segundo Bunge, que se pode denominar de tecnologia tecnológica: "Para fazer com que um corpo de massa m adquira uma geral, que é, na verdade, uma coleção de teorias tecnológicas, incluindo, aceleração a, exerça-se sobre ele uma f ma." De igual modo, a lei principalmente, a teoria geral de sistemas (de que Bunge foi defensor) e a sociológica: "A participação reforça a coesão social" fornece a regra: "Para teoria da decisão (BUNGE, 1985c, Cap. 5). promover a coesão social, deve-se favorecer a participação" (BUNGE, A inclusão na classificação anterior de disciplinas como a medicina 1985c, 242). Além dessas regras, Bunge aponta à existência de teorias (que muitos tendem a considerar como uma ciência), ou da arquitetura e tecnológicas, diferentes das As teorias tecnológicas podem ser, a pedagogia, amiúde entendidas como artes, não significa que Bunge ignore conforme nosso autor, substantivas (ou seja, fornecem conhecimento sobre os aspectos artísticos (criativos) daquelas atividades ou a base científica artefatos, como uma teoria do de aviões, drones, etc.) ou operativas da medicina. Ocorre que, para ele, esta última especialidade (assim como (as que se referem às ações de que depende o funcionamento dos artefatos, a veterinária e a odontologia) tem uma finalidade prática (conservar ou como uma teoria das decisões ótimas acerca da distribuição do trânsito restaurar a saúde), servindo-se, para tanto, da ciência pura ou aplicada. Já aéreo em dada região). Junto com a existência de regras e teorias a arquitetura e a pedagogia têm, certamente, um componente tecnológicas, Bunge defende a existência de um ou estratégia geral (em termos de sensibilidade e criatividade pessoais), porém não deixam da tecnologia, paralela que caracteriza a estratégia geral da ciência de requerer conhecimentos Na verdade, reconhece Bunge, (Bunge foi partidário do método hipotético-dedutivo como inerente a nenhuma tecnologia é de criação ou execução automática. Todas elas toda pesquisa rigorosamente método tecnológico geral exigem habilidade pessoal, sentido de oportunidade na aplicação de regras consistiria no ciclo: problema prático projeto protótipo prova até talento se considerarmos que a beleza é amiúde uma condição correção do projeto ou reforma do problema (BUNGE, 1985a, p. 39, do design tecnológico. 1985c, p. 232, 236). Dentre as tecnologias, Bunge destaca a importância das relativas à Outra contribuição bungeana consiste em distinguir tipos de informação. Ingressamos reconhece autor numa época em que a tecnologia e classificá-los conforme diferentes critérios. Se for levada riqueza é produzida não apenas pelo trabalho muscular ou pelas máquinas, em consideração a quantidade de conhecimento "de ponta" utilizado, mas, também e, cada vez mais, pelo cérebro seus auxiliares automáticos. certos ramos representam "alta tecnologia" [high tech], como nos casos No entanto, Bunge denuncia uma supervalorização desse tipo de das engenharias química e nuclear, da manipulação genética e da tecnologia, em particular culto aos computadores, malconcebidos como tecnologia Se reparamos na economia de recursos escassos, supercérebros. computador, argumenta junto com outros filósofos como no respeito ao meio ambiente e à facilidade de emprego, certas J. Searle e H. Dreyfus, não pensa, nem sabe, em rigor, nada. Mesmo em tecnologias destacam-se como brandas (soft) ou apropriadas (como no suas versões mais sofisticadas e avançadas (v.g., computadores com desenho de pequenos geradores elétricos, ou de moradias rurais com programas flexíveis que podem mudar seu curso segundo recebem ou algumas das comodidades urbanas). De acordo com o tipo de artefato produzem nova informação), computador não cria, literalmente, nada. produzido, junto com a classe de informação utilizada, Quem continua pensando é ser humano por trás do computador. E podemos diferenciar tecnologias (ou diversos ramos da agrega:Isso se compreende bem quando se analisa a maneira em que um postulados tais como: a existência de um mundo independente dos sujeitos cientista, tecnólogo ou administrador usa um computador para que conhecem e manipulam; caráter material do mundo, integrado resolver um problema dado. Quem descobre, inventa ou coloca por coisas que possuem propriedades, que estão submetidas a leis e formam problema é sujeito, não computador. Este último nem sequer sistemas; caráter mutável da realidade e a existência de diversos níveis analisa problema para comprovar se está bem formulado ou se de entidades (físicas, biológicas, etc.). Já a dimensão axiológica da os dados são suficientes. Tampouco avalia problema para ver se tecnologia reside em que, ao passo que para a ciência (pura) não há vale a pena dedicar-se a resolvê-lo, ou gastar certo número de diferenças de valor entre as entidades reais (todo objeto ou evento é, em horas de computador. Nem, por último desenha estratégias para princípio, valioso como assunto de possível conhecimento), a tecnologia resolvê-lo. Todas essas operações [...] devem ser feitas por cérebros é inerentemente avaliativa. Para ela, os objetos e eventos reais se classificam vivos e bem mobiliados. computador se limita a encontrar a solução, quando existe, e a comprovar se ela efetivamente resolve em (possíveis) recursos, produtos, e resto. Além do mais, a atividade problema (BUNGE, 1985a, p. 235, grifos do autor). tecnológica e seus produtos são avaliáveis, principalmente em termos ético- políticos. No que tange à ética, uma possível tem sido prejudicada até hoje, para Bunge, por cinco premissas morais: que Por essas razões, Bunge é crítico da inteligência artificial. Além de homem é radicalmente diferente dos demais seres vivos, que ele tem insistir em que se trata de uma tecnologia (e não de uma ciência), assinala direito (e talvez o dever) de dominar a Natureza; que homem não é que, apesar das suas conquistas, o seu futuro está obstaculizado pelo que responsável por esta última, que a tecnologia objetiva explorar, nosso autor considera um preconceito básico: a suposição de que podemos eficientemente, os recursos naturais e humanos, sem outras considerações, compreender cérebro humano em vista do desempenho do computador. e que técnicos e tecnólogos não são moralmente responsáveis pelas Essa compreensão advirá para ele de pesquisas em neurociência, psicologia consequências de suas atividades. Bunge repudia esse código, que considera cognitiva e psicolinguística, bem como em filosofia da mente, e não do derivado de premissas religiosas (homem como "Rei da Criação") e que denominou, em obra recente "computacionalismo" (BUNGE, 2017). ideológicas (o desenvolvimento industrial como finalidade de todo Como pioneiro da filosofia da tecnologia (ele foi um dos primeiros esforço social), e insiste em que a tecnologia e seus produtos nunca são pensadores a usar essa expressão), Bunge a entende como a identificação neutros, embora possam ser ambivalentes (como automóvel ou telefone do "conjunto dos conceitos e hipóteses inerentes à teoria e celular). Além disso, existem para ele atividades inerentemente prática da tecnologia" (BUNGE, 1980, p. 188). No entanto, a sua condenáveis, como expressa a seguir: exploração das questões filosóficas suscitadas pela tecnologia ultrapassa, de longe, aquela formulação. No que tange aos aspectos epistemológicos, É perverso realizar pesquisas sobre a desfolhação de bosques, sobre Bunge entende que a tecnologia compartilha com a ciência realismo, envenenamento de reservatórios de água, mutilação de civis, isto é, a convicção de que O mundo existe independentemente de tortura de presos, manipulação de consumidores e eleitores e coisas que ele é e que conhecimento se dá por meio de teorias similares, uma vez que conhecimento adquirido em pesquisas que são representações dos objetos pesquisados. técnico desse tipo será utilizado provavelmente só para fins criminosos: tradicional, acredita Bunge, era um realista ingênuo, mas tecnólogo pesquisa-se a tortura para torturar mais eficazmente, manipulam- se consumidores para explorá-los mais proveitosamente, e assim moderno é um realista crítico, ciente do caráter superficial (e amiúde por diante. Não se trata do mau uso imprevisto de um setor de de suas teorias e modelos. Um tal realismo está combinado no conhecimento neutro, como seria mau uso de uma tesoura ou tecnólogo com certa dose de instrumentalismo ou pragmatismo, inevitável de um fósforo (BUNGE, 1980, p. 202). dada a natureza de sua atividade. Ao tecnólogo interessa o conhecimento como um meio de ação, não como algo de valor inerente. No que tange ao aspecto ontológico da tecnologia, Bunge alega que não é qualquer Os posicionamentos precedentes não implicam que Bunge entenda a filosofia da tecnologia como uma disciplina acabada, integrada posicionamento ontológico que a permite ou estimula. Em uma sociedade cuja cosmovisão faça do homem um ser passivo, resignado ante a realidade, por respostas já alcançadas. Existem e continuarão a surgir problemas a tecnologia (embora não a técnica) dificilmente pode existir. Como típico epistemológicos, ontológicos e axiológicos a desafiar os pensadores. Como produto da Modernidade europeia, a tecnologia compartilha com a ciência exemplos de problemas do primeiro tipo que Bunge formula podemos 67citar: "Como poderia tornar-se exato efeito do conhecimento de um Sou da de que, a propósito da tecnologia como de prognóstico tecnológico sobre curso dos eventos?"; "Em que se qualquer outra questão de interesse filosofico a única maneira de cultivar fundamente a denominada avaliação da tecnologia (technology assessment)?" os ideais iluministas, que pessoalmente endosso, consiste em superá-los, e "Em que consiste [exatamente] um indicador social?" São casos de salvando seu para além da sua problemas ontológicos: "Possuem os artefatos e os compostos homem- máquina leis próprias, diferentes daquelas estudadas pela ciência "Pode dizer-se que os artefatos são materializações ou encarnações de ideias?" e "Existe algo além de mera analogia entre o bom funcionamento de um artefato e a saúde de um organismo?" Já os problemas axiológicos Referências têm boas amostras em: "É possível reunir os diversos valores que um BUNGE, M. São Paulo: Queiroz, 1980. objeto tecnológico possui?"; "As decisões tecnológicas se fundamentam BUNGE, M. Seudociência e ideologia. Madrid: Alianza, 1985a. em leis (naturais ou sociais) e também em juízos de valor. Seria possível e desejável generalizar esse procedimento para a moral e a jurisprudência?" BUNGE, M. Philosophy of science and technology: Parte I, formal and physical e "É possível e desejável combinar a tecnocracia com a democracia?" sciences. Dordrecht: Reidel, 1985b. (Treatise, 7). (BUNGE, 1980, p. 195-201). BUNGE, M. Philosophy of science and technology: Parte II: life science, social science, and technology. Dordrecht: Reidel, 1985c. (Treatise, 7). BUNGE, M. Matéria e mente. Trad. de Matter and Mind: a philosophical inquiry, 2010. São Paulo: Perspectiva, 2017. A análise que Bunge faz da tecnologia é muito abrangente, minuciosa CUPANI, A. The Significance of the treatise in the light of the western e Sua sensibilidade para detectar ou imaginar questões philosophical tradition In: P.; DORN, G. (org.). Studies on filosóficas (aqui, como em qualquer outro campo de reflexão, haja vista a Mario Bung's treatise. Amsterdam Holanda: Rodopi, 1990. p. 533-548. abrangência dos seus estudos) é notável, mesmo comparada com a de CUPANI, A. A filosofia da ciência de Mario Bunge e a questão do positivismo. outros pensadores. Além do mais, e, conforme sua aspiração a produzir Manuscrito, XIV, n. 2, p. 113-142, 1991. uma filosofia Bunge apresenta seus conceitos, diagnósticos e CUPANI, A. Bunge is correct about positivism, but less so about marxism and propostas com uma clareza cartesiana. Intelectual declaradamente hermeutics. In: MATTHEWS, M. (ed.). Mario Bunge: a centenary festschrift. iluminista, ele mantém uma posição otimista sobre a relação do homem Cham: Springer 2019. p. 273-288. com a tecnologia, ainda que reconhecendo seus excessos e desvios. As suas ideias são um conveniente acredito, contra doutrinas que focalizam talvez, excessivamente, os problemas causados pela tecnologia ou que receiam estar homem submetido a ela. No entanto, otimismo bungeano pode ser alvo de questionamento, na medida em que encarna um cientificismo que parece hoje a muitos exagerado e até perigoso. Sua exaltação da ação tecnológica como "maximamente racional" torna-se vulnerável a críticas como as de Hannah Arendt e Jürgen Habermas à identificação da ação humana com a planificação e a fabricação (isto é, da práxis com a poiesis), identificação essa em que esses autores veem uma ameaça ao reconhecimento da especificidade da ação ético-política. Tampouco parece Bunge perceber a capacidade da tecnologia de desestruturar as culturas em que é introduzida. Ele parte da pressuposição, típica do Iluminismo, de que toda tradição equivale a atraso e de que toda cultura não é, de algum modo, defeituosa, uma maneira de pensar patentemente necessitada de revisão. 685 GEORGES GANGUILHEM A técnica entre o útero artificial e a influência virótica dos retrovírus Marco Martins Rodrigues Maurício Fernandes A proposta mais ampla do útero artificial foi projetada para que, a partir de um ovocito fertilizado, que passa a ser inicialmente um óvulo e, logo em seguida, um ovo ou zigoto, esse seria colocado na máquina para desenvolver um feto até chegar a termo. Apesar de pesquisas recentes terem melhorado a técnica para manutenção dos fetos, com melhor adequação da bolsa amniotica, e cânulas para nutrição e circulação sanguínea, as técnicas ainda precisam de melhor adequação. A tecnologia do útero artificial vem mas envolta em questionamentos sobre os fatores relacionados à vida e a questões, inclusive, éticas, que devem ser analisadas para uso da técnica em seres humanos. Na relação útero artificial e placenta humana, encontramos a dependência de uma tecnologia do útero-máquina na interface materno- fetal, ainda a ser estudada para a solução de processos de sinalização e comunicação celulares, ou seja, estudos práticos que permitam a substituição de componentes biológicos evolutivos por estruturas artificiais para desenvolvimento fetal. É nesse sentido que ressaltamos a ectogênese, definida nas aplicações e como a "gênese fora do ventre materno", que implica uma conexão inerente ao corpo da mãe. Essa ectogênese promete um sonho tecnológico para o desenvolvimento fora do corpo humano, possibilitando a gestação dentro de uma máquina 71projetada para simular condições do ventre, uma máquina que age como Retrovírus na evolução biológica se fosse uma mãe (ARISTARKHOVA, 2009, p. 432-433). De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), dentre as embrião humano e de animais se apresenta constituído doenças infecciosas que atingem os seres humanos, cerca de 60% são de de uma área celular externa, denominada de trofoblasto e uma área interna etiologia viral. Santos et al. (2015, p. 3) ressaltam que os vírus são os reais que é embrioblasto, sendo essa excêntrica, mantendo uma cavidade que competidores da humanidade pelo domínio do Planeta. Eles podem servir é a blastocele. trofoblasto será uma área que estabelecerá uma placenta como parasitas e elementos genéticos nos seus hospedeiros. primitiva, para fixar embrião, além da nutrição, síntese de enzimas e Os vírus não só apresentam uma plasticidade genética que os capacita hormônios, presença de receptores de membranas celulares a evoluir em novas como também, mostram a capacidade de indispensáveis aos processos fisiológicos e impedir a rejeição do interação genética e metabólica com as células infectadas, que os coloca embrião, além de outras funções (SADLER, 2013, p. 25-40). Assim, em posição de mediar alterações evolucionárias cumulativas nas células a placenta que se constituirá apresenta inúmeras funções, dentre as hospedeiras, sendo que as infecções virais podem, também, dizimar uma quais: transporte de oxigênio por meio de vasos sanguíneos, água, população, como observado em experiências históricas com pandemias. carboidratos, aminoácidos, vitaminas, minerais e outros nutrientes para feto; também exerce atividade endócrina, além de proteger feto contra Na sua constituição, os são estruturas subcelulares, com um antigênicas, infecções e doenças maternas (RODRIGUES, et ciclo de replicação exclusivamente intracelular (vírus bacterianos, al., 2018, p. 149-150). chamados também de sem nenhum metabolismo ativo fora da célula hospedeira. Uma viral completa, ou virion, é composta Canguilhem (2012a) entende por vida a "organização universal" e por uma de ácido nucleico circundado por uma capa de proteína, da matéria, ou a experiência do ser humano como um ser vivo singular e podendo conter glicolipídeos e glicoproteínas. carrega seu genoma consciente da vida. Outra acepção dirigida pela primeira, mais viral para dentro da célula. Evolutivamente, desde que os primeiros seres fundamental, caracteriza sentido de que a vida é a forma e poder do humanos deixaram de ser domesticando animais e invadindo vivente. Defendemos, aqui, apoiando-nos nos estudos de Canguilhem, terras, os variados contatos intra e interespécies tornaram-se mais que processo de mecanização da vida, ou de equiparação do organismo frequentes, possibilitando que diversos tipos de proteína, dentre eles os a máquinas, iniciado com Descartes (1596-1650), pode encontrar, hoje, vírus, fossem transmitidos e mantidos nas populações. respaldo nas mais recentes descobertas da biologia evolutiva, relativas às De acordo com Santos et al. (2015, p. 6-8), as doenças de origem condições de comunicação e sinalização celulares e aos seus processos viral começaram a ser registradas nas civilizações egípcia e greco-romana. metabólicos informacionais relacionados à memória celular-evolutiva. Os vírus são dependentes de uma célula hospedeira, utilizando regras, Nossa proposta é a de assimilar O modelo biológico e sinalizações e vias regulatórias do hospedeiro. Os vírus de animais também vírus como ponto inicial para a compreensão dos padrões evolutivos do tiveram papel central no desenvolvimento da tecnologia de DNA ser humano, correlacionados ao advento e ao progresso da tecnologia do recombinante. A descoberta da enzima transcriptase reversa nos retrovírus, útero artificial. ajudou a explicar o processo de replicação desse e produção de DNA problema a ser analisado, neste trabalho, é como útero-máquina complementar (DNAc). Quanto aos retrovírus, esses se distinguem dos poderá se estabelecer como uma máquina independentemente de processos demais vírus de RNA de fita pelo fato de codificarem uma enzima com biológicos evolutivos naturais para desenvolvimento pleno de um feto atividade de polimerização de de DNA a partir de moldes de em condições normais. Para expandir o conhecimento referente às RNA. diversas formas de interação materno-fetal, visando a análises filosóficas A estratégia de replicação desses vírus baseia-se na transcrição reversa e biológicas, fazemos referência ao estudo dos retrovírus na evolução da de RNA em uma fita dupla de DNA. Os retrovírus endógenos biológica da placenta. Nesse sentido, pretende-se uma compreensão (ERVs) estão presentes no genoma de todos os vertebrados e originados do conceito de técnica para Canguilhem (1904-1995), a partir da de infecções germinais do hospedeiro por retrovírus exógenos. Esses têm discussão sobre questões referentes ao conceito de vida e seus processos uma coevolução com seus hospedeiros por milhões de anos e são biológicos. reconhecidos por contribuir com a plasticidade genômica, proteger 72hospedeiro em oposição à infecção de relatos patogênicos e retrovírus de inter-relação mãe e feto, solucionando problemas ligados aos processos exógenos, e atuar com uma função vital no desenvolvimento da placenta. biológicos; exemplo são os retrovírus na evolução. Nesse contexto, Consequentemente, em alguns ERVs, tem sido positivamente selecionado buscamos enfatizar que, no útero artificial, não houve ainda compreensão e mantido no genoma do hospedeiro por toda a evolução biológica. e substituição mais específicas da placenta. A consideração indevida, pela falta e aprimoramento de novas tecnologias, de que o útero seria apenas Retrovírus e útero artificial um órgão que alberga feto, como uma "incubadora inteligente", sem Existem em defesa da tecnologia do útero artificial, e já outros níveis de relações entre feto e a mãe. Considerando que os vírus existem propostas pela medicina reprodutiva que pressupõe início e podem se tornar endógenos por meio de virais, ou seja, genes final da gestação fora do corpo da mulher por meio de "técnicas de que são incorporados às células hospedeiras, DNA humano e outros procriação medicamente assistida" (PMA). Essa questão é justificada no animais além de aves e répteis no processo evolutivo de um sentido de que a fertilização e início do desenvolvimento do embrião desenvolvimento no ovo externo, podem ter suas células germinativas até cinco ou seis dias antes de ser implantado no útero, já é uma gestação, modificadas nos genes, por meio da transmissão genética vertical, ou seja, considerando que termo gestação significa tempo que medeia entre a a passagem evolutiva dos ovíparos para os placentários dependeu da concepção e o parto. No sentido da biologia da reprodução, termo participação dos retrovírus. Devido à transcriptase reversa, principalmente, gestação é mais utilizado quando embrião se implanta no útero, passando é que a evolução biológica da placenta se completou nos por todas as etapas do desenvolvimento. Apesar disso, algumas placentários, pelo menos até nessa fase evolutiva. indicam que fato de os bebês prematuros conseguirem sobreviver fora Os vírus evoluem mais rápido do que os seres humanos. No caso do do útero, numa incubadora, representa uma redução do tempo HIV, alguns vírus possuem uma alta taxa de mutação, que os ajuda a estritamente necessário da gestação intrauterina. Assim, ressaltamos dois evoluir rapidamente, fornecendo mais variação como material inicial. Dois pontos importantes na relação útero-máquina: a otimização e outros fatores que contribuem para a rápida evolução dos vírus são aperfeiçoamento das técnicas de PMA; e a investigação grande tamanho da população e ciclo de vida rápido. Quanto maior for tecnológica para aumentar a sobrevivência, sem sequelas para os a população, maior será a probabilidade de que ela terá um vírus com prematuros. É preciso lembrar, aqui, que os fetos de cordeiros estudados uma mutação aleatória particular (por exemplo, resistência a uma droga no útero artificial, ainda trazem sequelas após o período de retirada do ou alta infectividade) sobre a qual a seleção natural pode atuar. Além útero em questão, por uma série de problemas ainda não solucionados. disso, os vírus se reproduzem rapidamente, fazendo que, com suas A estrutura do útero artificial apresenta os princípios que poderiam populações, evoluam em escalas de tempo menores do que a dos seus resolver os objetivos principais, quanto à manutenção da vida dos fetos hospedeiros. Assim, na evolução biológica da vida, células procariontes e eucariontes, juntamente com os vírus tipo retrovírus, foram essenciais no de cabras, considerando contexto de cateteres para circulação do sangue, conjunto de toda uma obra evolutiva da placenta em inclusive oxigenação e presença de líquido com a composição típica do líquido no ser humano, como uma técnica da vida. Nossa análise, de acordo com as diversas referências sobre placenta, mostra que esse órgão é a típica interface materno-fetal, que, no útero artificial, ainda não existe em condições adequadas, e nem foi Georges Canguilhem e a vida como experiência maquínica totalmente substituída pelos cateteres, por isso pode explicar, inicialmente, Os vírus têm um papel fisiológico na morfogênese da placenta por fato de os fetos morrerem antes de chegar a termo, ou após a finalização meio de de retrovírus. Também são abundantes no trato genital do processo por falta de maturação muscular dos Trabalhos e na placenta de várias espécies animais. São genes env expressos no mais recentes mostram a melhoria no sistema de trocas gasosas, mas ainda sinciciotrofoblasto multinucleado da placenta, e importantes na evolução sem sucesso na manutenção da vida de cordeiros utilizados no processo. biológica de placentários, bem como a tolerância feto-maternal. Biologicamente, a gravidez humana é uma "luta", aproximadamente nos Nesse sentido, estamos diante de uma condição de vida e técnica na seus nove meses de desenvolvimento fetal, pois a mãe tenta, pelo processo evolução biológica uterina. Canguilhem (2012, p. 137-138) considera a imunológico, expulsar feto, e feto do seu lado contrário tenta evadir técnica como um fenômeno biológico universal, e não apenas uma as defesas maternas. A placenta, durante a evolução, permitiu vários níveis operação intelectual do homem, por isso, afirma que a "autonomia criadora 74das artes" e dos ofícios em relação a todo conhecimento, existe no sentido ou seja, estado normal do corpo humano é o estado que se deseja de inscrever mecânico no orgânico. Não há mais sentido questionar em restabelecer. Para Canguilhem não há, em tese e a priori, diferença que medida organismo pode ou deve ser considerado como uma entre uma forma de vida perfeita e uma forma de vida máquina no sentido de suas funções e estrutura. Canguilhem considera a malograda, como, por exemplo, na teratologia. Ele trata os fenômenos vida como uma atividade normativa, que é a vida quem decide os modos patológicos como idênticos aos "fenômenos normais correspondentes", de restauração da normalidade perdida. Máquinas não têm atividade de salvo pelas variações quantitativas. Mas seria "estado patológico" apenas vida normativa, elas não adoecem. Infelizmente, a natureza ainda é vista uma modificação quantitativa do estado normal? Existe uma teoria como matéria-prima, e não como um mundo que emerge de si mesmo, ontológica da doença, que nasce da necessidade terapêutica, uma uma physis, mas como materiais que esperam a transformação naquilo hierarquia vulgar das doenças, baseada na maior facilidade de localizar que desejamos, ou seja, um mundo compreendido seus sintomas. Se delegarmos à técnica, mágica ou positiva a tarefa de A proposta de Canguilhem foi a de que uma concepção "mecanicista restaurar na norma desejada organismo afetado pela doença, é porque do organismo" não era menos mesmo perante aparências, nada esperamos de bom da natureza por si própria. Para Canguilhem a do que uma concepção do mundo físico. que se tenta perturbação do equilíbrio, da harmonia, é a doença, que está toda no justificar é mostrar homem em continuidade com a vida por meio da homem. As circunstâncias externas são ocasiões, e não causas, ou seja, a técnica, e não uma ruptura, cuja responsabilidade esse homem assume doença não é somente desequilíbrio ou desarmonia; ela é, também, por meio da ciência. Assim, está claro que se vivente humano se deu esforço que a Natureza exerce no homem para obter novo equilíbrio. uma técnica do tipo mecânico, este tem um sentido não gratuito Essa posição de Canguilhem mostra que, em relação aos retrovírus, e também não revogável sob demanda. importantes na evolução da placenta biológica, suas partículas virais foram Quanto ao sistema extrauterino, Partridge et al. (2017, p. 1-4) utilizadas para uma normatividade que permitiu que células e processos ressaltam que, em relação ao desenvolvimento de estudos de fetos informativos desenvolvessem condições de adesão de um zigoto ao tecido prematuros, existem causas de mortalidade devido a órgãos imaturos e uterino. Aqui vemos um exemplo de que a vida não é indiferente, porque efeitos adversos em Até momento, há muitos esforços que vírus que poderiam ser letais modificaram-se para processo evolutivo- visam melhorar um sistema de gestação que incorpore circuitos de biológico tanto em animais domésticos e quanto em silvestres oxigenação que se conectem a fetos de cordeiro, que facilite, pelo cordão bem como para ser umbilical, uma melhor interface junto ao circuito e útero Canguilhem (2012, p. 127-177), no capítulo "O conhecimento da artificial. Nesse trabalho, os pesquisadores relacionam os fetos de cordeiro vida", que por meio da interferência das flutuações genéticas e das ao período de desenvolvimento equivalente ao feto prematuro humano, oscilações da quantidade e da qualidade das condições de existência ou que pode ser fisiologicamente suportado nessa intervenção extrauterina de sua distribuição geográfica, podemos apreender que normal significa por quatro semanas. Os dados mostram que fetos de cordeiro se mantêm hemodinamicamente estáveis, com sangue e oxigenação normais. Com ora caráter mediano cujo desvio é tanto mais raro quanto mais sensível, suporte nutricional apropriado, cordeiros nesse sistema, demonstram ora caráter cuja reprodução, quer dizer, a um só tempo, a manutenção desenvolvimento somático normal, maturação pulmonar e e a multiplicação, revelara a importância e valor vitais. Canguilhem desenvolvimento cerebral e mielinização. conceito de suporte oferece um exemplo com placentas abortadas após a retirada do corpo extracorporal do feto é atraente devido à analogia com a fisiologia fetal lúteo em coelhas, e, ao mesmo tempo, outra placenta localizada no inata, em que a troca gasosa é mantida pela placenta. No entanto, intestino, que permanece funcional, ou seja, intestino se comportou desenvolvimento de uma placenta artificial vem sendo investigada por, como um útero e se pode dizer, mais vitoriosamente. Cita-se: pelo menos, 50 anos, mas com limitado sucesso. Na obra de Canguilhem normal e patológico (2009, p. 48), No limite, devemos reconhecer que, no organismo, a pluralidade filósofo relata que, em medicina, estado normal designa, ao mesmo de funções pode se acomodar com a unicidade de um órgão. Portanto, um organismo tem mais latitude do que uma tempo, estado habitual dos órgãos, e seu estado ideal já é Ele tem menos finalidades e mais potencialidades. A máquina, restabelecimento desse estado habitual, que é o objeto usual da terapêutica, produto de um cálculo, verifica as normas do cálculo, normas 76racionais de identidade, de constância de previsão, ao passo que interface materno-fetal: a última front organismo vivo age segundo empirismo (CANGUILHEM, DOMINGUES, Ivan (org.). 2012, p. 127). Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2018 SADLER, Thomas W. Langman. Embr A vida é experiência, ou seja, improvisação, utilização das ocorrências. Trad. de Dilza Balteiro Pereira de Can Ela é tentativa em todos os sentidos. Assim, enquanto a construção da Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2 máquina não for uma função da própria máquina, enquanto a totalidade SANTOS, Norma Suely de Oliveira. Vi do organismo não for equivalente à soma das partes descobertas por uma Koogan, 2015. análise, uma vez que esse organismo é dado, poderá parecer legítimo considerar a anterioridade da organização biológica como uma das condições necessárias à existência e ao sentido das construções mecânicas. Do ponto de vista importa menos explicar a máquina do que e isso significa na história humana, inscrevendo a história humana na vida, mas tendo consciência de que o homem faz parte de uma cultura irredutível à simples natureza. A evolução do sinciciotrofoblasto, pela ação dos retrovírus, mostra a questão de que a vida se move pelo empirismo. Referências ARISTARKHOVA, Irina; DOMINGUES, Diana (org.). Ectogênese e mãe como máquina: arte, ciência e tecnologia: passado presente e desafios. Trad. de Flávia Gisele Saretta et al. São Paulo: Ed. da Unesp, 2009. p. 429-444. CANGUILHEM, Georges. conhecimento da vida. Trad. de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Revisão de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. 221 p. Georges. Estudos de e de filosofia das ciências: concernentes aos vivos e à vida. Rio de Janeiro: Forense, 2012a. CANGUILHEM, Georges. normal e patológico. Trad. de Mana Thereza Redig de Carvalho Barrocas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. PARTRIDGE, Emily A.; DAVEY, G. Davey; HORNICK, Matthew A.; Patrick; MEJADDAM, Ali Y.; VRECENAK, Jesse D.; MESAS- BURGOS, Carmen; OLIVE, Aliza; CASKEY, Robert C.; WEILAND, Theodore R.; HAN, Jiancheng; Alexander J.; CONNELLY, James T.; DYSART, Kevin C.; RYCHIK, Jack; HEDRICK, Holly L.; PERANTEAU, William H.; FLAKE, Alan W. An extra-uterine system to physiologically support the extreme premature lamb. Nature Communications, 2017. RODRIGUES, Marco Aurélio Martins; de Souza; Mauricio dos Reis. útero artificial e a placenta humana como uma6 GILLES DELEUZE Um pensamento sobre a técnica Eladio C. P. Craia Não existe uma filosofia da técnica na obra de Gilles Deleuze, pois esse campo assim delimitado, nunca determinou perímetro de um problema singular e especificamente abordado pela sua filosofia. Seria uma corruptela afirmar que Deleuze é um pensador inscrito no campo da filosofia da técnica ou da tecnologia. Desse modo, pensar a técnica com Deleuze implica, metodológica e semanticamente, colocar seu aparelho analítico, seus operadores conceituais a serviço de uma reflexão sobre a técnica, e não verificar qual seria sua filosofia da técnica ou, porventura, julgá-la eficaz ou limitada. Do que se trata é de pensar a com os conceitos deleuzianos e não com uma eventual filosofia da de Reconhecido esse ponto de partida, outra questão de ordem preliminar deve ser claramente exposta: pensar a técnica com Deleuze leva a pensar, de modo central, na ontologia da e, apenas de maneira tangencial ou oblíqua, questões éticas, políticas, sociais, estéticas, etc. Isso em virtude de que a obra deleuziana pode ser caraterizada, nevralgicamente, embora não unicamente, como uma reflexão ontológica, talvez a mais refinada (junto com a de A. Badiou, seu antagonista-admirador) da segunda metade do século Para Esta declaração que afirma uma ontologia em Deleuze, não se encontra livre de Referimo-nos que interroga a pertinência, ou não, de pensar a ontologia como vetor mais destacado na filosofia de Gilles Deleuze; ou se tal pensamento deveria analisado sob o signa do Esse debate, em sede exegética, não encontra ser 81lo de modo vertical: seu problema maior e estatuto da diferença e a de um modo univoco. É aqui que outra noção da ontologia deleuziana se possibilidade, por parte da filosofia, de pensar um conceito que lhe seja torna presente de modo central, trata-se da noção de sentido entendido próprio como conceito diferencial e não localizar um conceito geral de como acontecimento incorporal (evidentemente pela via estoica), que não diferença à sombra da história da identidade na metafísica ocidental; nessa é nem coisa nem linguagem, mas que se nas coisas e se diz na linguagem, empreitada ele não está só, como próprio Deleuze diria no segundo é analisada e proposta na Lógica do Sentido. prólogo da monografia maior, Diferença e repetição: "O assunto aqui tratado está manifestamente no ar, podendo-se ressaltar como seus sinais: Inseparavelmente sentido é exprimível ou expresso da proposição a orientação cada vez mais acentuada de Heidegger na direção de uma e atributo do estado de coisas. Ele volta uma face para as coisas, filosofia da Diferença ontológica; [...]" (DELEUZE, 2018, p. 8). Tendo uma face para as proposições. Mas não se confunde nem com a essa perspectiva como pano de fundo, expor, embora de modo proposição que exprime nem com estado de coisas ou a dramaticamente sintético e, portanto, injusto, os traços centrais da qualidade que a proposição designa. É exatamente, a fronteira ontologia de Deleuze, se torna uma exigência metodológica inevitável; entre as proposições e as coisas. É este aliquid, ao mesmo tempo apenas num segundo momento, será possível alinhavar dois eixos de extra-ser e insistência, este mínimo de ser que convém às insistências. É neste sentido que é um "acontecimento": com a reflexão que consideramos não apenas legítimos e pertinentes, mas também condição de não confundir acontecimento com sua efetuação férteis para pensar a esfera fenomênica da tecnologia, por um lado, e da espaço-temporal em um estado de coisas (DELEUZE, 1998, técnica, por outro. Evidentemente, será necessário deixar de fora, para p. 23, grifo do autor). serem tratados em outra ocasião, aportes mais delimitados, mas não menos importantes com relação a específicos dentro do marco da filosofia Justamente, é essa a perspectiva que sustenta a possibilidade de pensar da técnica que a obra de Deleuze também ajuda a pensar. a univocidade; Ser se diz num único sentido, mas, esse sentido é um acontecimento aberto, variável, prenhe de ressonâncias semânticas, e não, A ontologia da diferença um instrumento de fixação de significados. Por outro lado, Deleuze afirma Os conceitos estruturantes da Ontologia da Diferença proposta por que tudo no orbe do fenomênico é multiplicidade atravessada por devires, Deleuze são os de univocidade, imanência, expressão ontológica, questão que, por sua vez, podem ser nomeados de "fluxos de intensidade"; sendo, multiplicidade e, finalmente, Acompanhar cada inclusive, a própria Diferença uma diferença intensa, uma pura potência, um dos efeitos analíticos desses conceitos, bem como verificar comércio vazia de conteúdo específico ou determinável, dado que a intensidade é reflexivo entre eles não é nossa tarefa aqui, evidentemente, já que essa sempre diferença de intensidade. empreitada demandaria estudos específicos e No entanto, A consequência desse construto se apresenta como uma sem perder a perspectiva da complexidade da ontologia problematização maior da ontologia deleuziana, aquela que indica que deleuziana, é possível indicar, de modo resumido, a estrutura que baliza Ser não deve ser entendido nem como algo, (coisa, ente fenomenológico), nem seu horizonte. como Nada (vazio, ausência, negatividade). Desse modo, defrontamo-nos A afirmação ontológica central de Deleuze declara que a Diferença é com uma interrogação desafiadora: Qual é estatuto daquilo que não é Ser, e que esse Ser é bem como imanente ao universo dos entes, nem algo nem nada? Mais uma vez, estatuto da Diferença está em questão. não podendo operar, portanto, como fundamento transcendente no É no âmbito dessa pergunta que problema do virtual-atual em Deleuze sentido metafísico. Assim, esse seria um primeiro delineamento: Ser é deve ser entendido como o ponto de chegada de um processo que atravessa univoco e imanente à multiplicidade dos entes como Diferença; ora bem, ser uma série de produções conceituais que objetivam levar adiante e ajustar, unívoco não quer dizer ser um, senão, mais especificamente, ser expressado sempre mais, pensamento ontológico da diferença. Com a noção de virtual-atual, Deleuze leva a interrogação do estatuto da Diferença, que, lugar nesta breve apresentação; assim, sugerimos nosso artigo: "Entre a ontologia e por outro lado, pode ser caracterizado como uma interrogação sobre devir, transcendental: Deleuze, uma apropriação de Kant" (CRAIA, 2009). até seu limite conceitual, inclusive nas margens de sua filosofia. Assim Propomos uma análise mais detalhada do horizonte ontológico deleuziano em nosso parece entendê-lo Eric Alliez na seguinte citação: "Pois a igualdade entre livro: A problemática ontológica em Gilles Deleuze (CRAIA, 2002). ser e a diferença só será exata se diferença for diferenciação [...] e se, a 82 83partir de um virtual que, sem ser atual, possui, enquanto tal, uma realidade deleuziana é que sentido imanente de nosso campo de existênca que intensiva [...]" (1996, p. 20). podemos pensar como solo epistêmico com Foucault, como forma de Por esse motivo, Deleuze aloca sua reflexão sobre conceito virtual- vida (lá onde a pá entorta), com Wittgenstain, como aparecimento de atual na linhagem de reflexões que pensam devir, não movimento ou a um mundo com sentido para esta coisa que nós mesmos somos, com a mudança, isto é, a potência-ato e possível-real, segundo nos localizemos fenomenologia, como ser epocal com Heidegger, a depender de nosso na tradição grega ou na latina. Conceitualmente, virtual é determinado gosto se diz como diferença; este é seu Ser. A diferença é em Diferença e Repetição de acordo com as seguintes características: modo unívoco de sentido da multiplicidade diferencial e indeterminável primeiramente, virtual possui uma realidade plena, não implica uma in extremis, num forte eco spinoziano. A questão é: Como esse diagrama dramatica carência ontológica, nem uma inaceitável inconsistência lógica; conceitual pode nos ajudar a pensar a ontologia da técnica e da tecnologia por tal motivo, não se deve opô-lo ao real, mas somente ao atual. Essa é a na nossa contemporaneidade? A seguir, abordaremos essa possibilidade diferença mais importante entre par virtual-atual e os anteriores, os com mais detalhes. quais pensavam numa dinâmica entre aquilo que ainda não é real (é puramente potencial ou puramente possível), por um lado, e advento Um ajuste conceitual do real pleno (como atualidade e como realidade), por outro. Assim, A afirmação de que nossa realidade, nosso mundo e nossa época são virtual não deve esperar ser atualizado para poder ser real; ao contrário, dominados pela técnica e a tecnologia, aloja um problema central. Com processo de atualização se estabelece entre dimensões absolutamente reais e efeito, a primeira tarefa da reflexão é verificar, mais uma vez, se essas duas imbricadas. Por outro lado, virtual, sendo absolutamente real porém categorias, tecnologia e podem, de direito e de fato, ser consideradas não atual, se articula, necessariamente, em torno de seu próprio processo e analisadas apenas desde âmbito da epistemologia ou, no máximo, de atualização, mas esse processo é, por sua vez e em cada caso, "diferente desde certa filosofia da técnica, como habitualmente, quase sinônimos, e singular", portanto O virtual nada perde de singularidade, ao tempo que ou seria filosoficamente prudente, quiçá, pensá-la a partir de outro prisma. não se torna um universal abstrato. Comecemos por uma primeira afirmação. Tecnologia e não são a mesma coisa. Essa distinção é fundamental para compreender a riqueza virtual não se ao real, mas somente ao atual. virtual do tema. A seguir, delimitaremos, embora apenas de modo perimetral, possui uma plena realidade enquanto virtual. [...] virtual deve ser mesmo definido como uma estrita parte do objeto real como qual é o sentido de cada uma dessas duas instâncias. Ajustemos, então, os se objeto tivesse uma de suas partes no virtual e mergulhasse conceitos. como numa dimensão objetiva [...] longe de ser indeterminado, Entendemos por tecnologia conjunto múltiplo, variável, apenas virtual está absolutamente determinado. [...] A atualização do parcialmente determinável dos artefatos e dos processos tecnológicos, desde a virtual, ao contrário, sempre se faz por diferença, divergência ou instauração de uma demanda (individual ou coletiva, real ou artificial), diferenciação. A atualização rompe tanto com a semelhança como passando pelo design, seguido pela produção e, finalmente, na dispersão e processo quanto com a identidade como princípio. Nunca os na deriva dos múltiplos usos desses entes tecnológicos. Como vemos, termos atuais se assemelham à virtualidade que eles atualizam: as qualidades e as espécies não se assemelham às relações diferenciais nessa definição, estão embutidos os quatro momentos básicos do ser que elas encarnam; as partes não se assemelham às singularidades tecnológico: perceber uma pensar e projetar um artefato ou que elas encarnam. A atualização, a diferenciação, neste um processo para supri-la; produzir esse artificio; e finalmente, colocar (DELEUZE, 2018, p. 199, grifo do autor). em uso esse artefato. Respectivamente, um primeiro momento coletivo- Desse modo, queda exposta a cartografia básica da ontologia de As demandas podem ser variadas. Desde alguma exigência imediata e real (produzir mais alimentos, curar uma doença, etc.), até exigências culturais, políticas, sociais menos Deleuze. Vamos invocando vários conceitos de autores fáticas (viajar à criar GPS para turismo, etc.); todas essas configurações são sempre conceitos, esses, que comportam as maiores diferenças entre eles, bem como demandas. Em outro registro, se deverá analisar se elas são multiplicadoras, majoritárias algumas contradições intransponíveis, mas que, em última instância, ou etc., mas isso é outra questão, não menos importante, mas muito diversa e emergem da mesma esfera de questionamentos. que afirma a ontologia que demanda um próprio de 84político; um segundo momento epistemológico; um terceiro momento no orbe tecnológico. Tecnologia e técnica não são mesmo porque a econômico-capitalista; e, por último, quarto momento, social, aquele segunda é um efeito incorporal, para continuar com Deleuze, da primeira; do uso e da dispersão capilar dessas conjunto desses a técnica nos permite reconhecer univocamente mundo tecnológico momentos constituem a nossa realidade tecnológica; mundo no qual não na sua univocidade (dado que não possui unidade), mas nas suas somos. variabilidades e produções múltiplas. Dar sentido sem unificar. É porque Ora, se nosso mundo é tecnológico, então, por que falar também de se expressa na compreensão técnica do mundo, que campo fenomenal técnica? Haveria, porventura, outra forma de mundo além disso que do tecnológico faz sentido e pode ser pensado. Esse campo de sentido é chamamos de tecnológico e que parece esgotar todos nossos modos de horizonte onde as explicações epistemológicas, éticas, políticas da ser? A resposta a essa questão não é perfeitamente delimitável; em certo tecnologia encontram sua possibilidade de expressão; cuidado, não seu sentido, não há dúvidas de que somente existe tecnológico, mas, em fundamento, mas seu campo de sentido imanente. outro sentido, essa presença (o tecnológico), expressa se expressa Analisaremos esses modos com mais detalhes a seguir. de modo a promover um aliquid, como gostaria de chamá-lo Deleuze, que já não é mais resumível apenas ao plexo do tecnológico. Vejamos isso Multiplicidade e tecnologia com mais detalhes. que chamamos de técnica possui outro estatuto; trata-se do espaço semântico, ou solo epistêmico (como dizíamos Em termos concretos, a produção constante do plexo fatual do anteriormente), segundo qual compreendemos sentido mais vasto de tecnológico é estabelecida segundo dois registros: um primeiro, como nosso modo de ser fático da época (mais uma vez parafraseando produção mecânica, planejada, repetitiva e mais ou menos previsível; Heidegger). Compreensão mais geral de nossas relações e suas dinâmicas, normalizada segundo conjunto dos estândares científica e politicamente de nossas trocas etc. Sentido geral de nosso momento histórico; estabelecidos; e outra como produção tecnológica diferencial, inesperada, sempre que sentido seja entendido como Deleuze pensa na sua Lógica desnecessária, monstruosa; impensável Enfim, a tecnologia produz do sentido, como evento incorporal que acontece nas coisas (isto é, no planejado e inconsiderado; "aconteciamental" como efetuação de plexo múltiplo do tecnológico, seus artefatos e procedimentos), por um uma combinação de forças produtivas, cujo resultado final não resulta lado, e que se expressa na linguagem (portanto no âmbito da compreensão num artefato, ou sistema previsto, previsível. É possível pensar primeiro geral de mundo que temos e que pensamos), por outro. Não se trata de um horizonte metafísico e transcendente que exprimiria a essência de Não estamos falando aqui de inovação, que, neste artigo para os fins teóricos aqui analisados, será entendida como uma das formas ou variações da produção normalizada. nosso mundo; pelo contrário, esse campo é um efeito imanente ao próprio Tratar-se-ia do modo mais criativo e aberto, mas sempre dentro dos estândares que balizam universo tecnológico e que expressa suas variabilidades e multiplicidades a produção majoritária. Evidentemente que muitas inovações possuem alto poder internas num sentido não disruptivo, mas, ainda assim, são fruto do exercício controlado da produção normal É tão vasto, tão múltiplo, tão acelerado e tão inabordável campo levada até seu limite criativo. Os exemplos desse tipo de produção são inumeráveis, mas não podemos nos restringir tecnológico que seria impossível dizer, de forma geral, que nossa época é apenas aos casos fortuitos, de casualidade ou sorte na hora de criar tecnologia: forno de tecnológica. dizer que é genética, virtual, micro-ondas que deveria ser um radar é exemplo mais conhecido. Há, nesse aparecer, interconectada e, assim por diante, com graus cada vez mais específicos e um diferencial do que aqui tipo de produção, mais vertical mais delimitados. No entanto, dizemos que nosso mundo, apesar de que e com mais consequências. Por exemplo, erotismo homossexual de um grupo de jovens na costa oeste americana, censurado e condenado no imediato segundo pós-guerra, driblou na realidade ele é indeterminável de modo exato (como todos os momentos as com uma expressão e esportiva que ressignificava antigo regime históricos, é tecnológico. Essa compreensão é a forma de de compreensão da força dos homens no sentido masculino. resultado foi, 50 compreendermos a realidade a partir dela mesma, de modo imanente; ou anos depois, um conjunto radicalmente novo de campos fenomênicos e semânticos de seja, é o sentido técnico da época e acontecimento-sentido que se expressa nossa contemporaneidade: toda uma ciência, um comércio, uma estética, um disciplina dietética, uma noção de corporeidade e normalidade corporal, uma pornografia, enfim tudo isso a partir e a serviço de um novo esporte; fisiculturismo. computador pessoal, tratamento mais demorado, bem como necessário detalhamento desses momentos saído das entulhadas garagens dos jovens californianos da década de 70, e que não deveria deverá aguardar outro espaço dada sua riqueza de nuanças, que não seria comportada por ser possível, levou a tirar das corporações da época criando no futuro a centro este do avanço da até hoje, onde se reconfigura a partir desse primer as 86registro a partir das ferramentas da epistemologia, da economia política, configuração que articula normalizado a partir da organização e dos da análise ético-moral e até da pedagogia, mas a mesma estratégia não estândares junto com formas de captura e agenciamento com elementos seria aplicável ao segundo modo. Todas essas análises tenderiam a pensar heterogêneos e inarticuláveis em princípio, é próprio movimento da a tecnologia radicalmente diferencial, disruptiva, como inesperado, tecnologia. A multiplicidade pensa esse tipo de fenômeno. portanto de difícil compreensão, na melhor das hipóteses, ou como erro e até monstruoso numa hipótese mais Seriam necessárias É preciso fazer múltiplo, não acrescentando sempre uma outras categorias que colocassem, no mesmo horizonte, com mesmo dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com estatuto, planejado e O devir, não por generosidade ontológica, mas força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, para poder pensar melhor fenômeno dominante de nosso tempo, de sempre n-1 (é somente assim que uno faz parte do múltiplo, modo mais complexo, mais elaborado e mais abrangente. Nesse sentido, estando sempre subtraído dele). Subtrair único da multiplicidade uma ontologia que dê conta de pensar os modelos reconhecíveis como a ser constituída; escrever a n-1. [...] Princípio de multiplicidade: majoritários, normais, molares, e outros, os moleculares, as linhas de fuga, é somente quando múltiplo é efetivamente tratado como embora eventualmente aberrantes (evidentemente não falamos aqui de substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação ética). Uma ontologia que aborde os agenciamentos mais diversos com uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural justamente como agenciamentos, como produção efetiva, e não, segundo ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. diapasão do normal e do patológico, que seja capaz de compreender [...] Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas que tecnológico é uma multiplicidade tanto na produção mecânica, somente determinações, grandezas, dimensões que não podem repetitiva e estandardizada, quanto nas produções impensadas e até crescer sem que mude de natureza (as leis de combinação crescem, indesejadas. então, com a multiplicidade) (DELEUZE, 1995, p. 13-15). Os operadores conceituais que a ontologia deleuziana nos oferece são os de multiplicidade e A multiplicidade é sempre uma Operando conjuntamente com conceito de multiplicidade, outra composição aberta de elementos homogêneos e heterogêneos, eles mesmos noção oriunda da ontologia deleuziana se mostra fértil para pensar o parte de processos de singularização. Assim, uma multiplicidade é, por fenômeno da hiperprodução tecnológica (porque é disso que se trata exemplo, um conjunto de trabalhos, de relatos, de operações diretas sobre quando falamos do domínio tecnológico de nosso mundo). É o par os fenômenos sociais, de organização política interna e suas relações com conceitual virtual-atual, é ele que nos permitirá pensar os processos a contingência externa, etc. Toda multiplicidade é aberta com relação ao produtivos padronizados, bem como os diferenciais, em virtude de sua seu perímetro epistêmico e às suas potências de agenciamento; ele pode análise operar, de modo imanente, os elementos e os fenômenos concretos, se estabilizar, concretizar de modo mais ou menos estável e depois se sem monopólio das regras preestabelecidas. É por esse motivo que a recompor em processos de metaestabilidade, portanto, sempre é móvel, noção de virtual-atual se aplica de modo eficaz, para pensar os movimentos mutante, sempre em processo de se organizar e desorganizar, inesperados da técnica e suas consequências sempre problemáticas. Com permanentemente em processo de renovar suas configurações. A conceito de virtual, Deluze analisa problema do aparecimento de elementos que ressignificam seu próprio campo de subjetividades, as formas de comunicação, etc. Transexuais desesperados pela falta de aparecimento dado que a composição de vetores que os produzem não condições sociais e do cuidado coletivo, que chegam a utilizar óleo usado em motores de avião (altamente siliconado), para retocar suas próteses. A linha que separa as inovações, poderia ser pensada como possíveis a priori. Enfim, as noções de pensadas propositalmente sob signo da surpresa e os devires propriamente diferenciais, multiplicidade e de virtual possibilitam pensar não apenas nem a priori é tênue e de difícil reconhecimento, whatsApp ou Uber, pertencem à qual categoria? como é aberrante aquilo que não é normalizado nem normalizável. A Começam moleculares e rapidamente se tornam molares: a velocidade impera, é preciso tecnologia multiplica sua produção na ordem de nova velocidade, que já criar e produzir mais. Explorar esse rico campo exigiria um texto específico. Apenas queremos mostrar a existência desse campo não é a do fazer ou do pensar humanos (talvez seria necessário instaurar Evidentemente, todos esses campos de análise são vitais para pensar a totalidade do nova doutrina, uma Dromologia, como propôs, com precisão, Paul Virilio), evento tecnológico, apenas indicamos que seriam insuficientes para pensar certa produção não apenas como produção mecânica e (aquela do capital, da diferencial da tecnologia. mercadoria como fetiche-desejo da invenção permanente de novas 88necessidades desnecessárias, do comércio e uso de toda a constelação Encontramos, assim, um conceito para compreender modo de ser artefatual), mas, também, a expressões tecnológicas, que respondem a tecnológico no seu sentido unívoco: técnico. Com conceito de desejos e demandas singulares, minoritários, inesperados, que resultam multiplicidade, é possível pensar, de modo claro, no modo de ser em produções não esperadas, não previstas e, talvez, não queridas; por tecnológico, na sua multiplicidade indeterminada, na dinâmica acelerada; isso, a invocação desses conceitos deleuzianos. com conceito de univocidade, é possível pensar na noção de técnica como um modo expressivo, como sentido que essa realidade tecnológica configura como compreensão da realidade dos signos da época, das formas Univocidade e técnica coletivas, etc. Dizíamos, anteriormente, que tecnológico implica uma forma de modo de ser técnico de nossa época não é homogêneo, nem seu expressão, e que essa expressividade produz um aliquid, que não se sentido totalizante, pelo contrário, ele expressa um conjunto de confunde com próprio plexo do tecnológico. Se trataria, diversamente, variabilidades e de ressonâncias internas na dinâmica do tecnológico que de um campo semântico, isto é, de um sentido-acontecimento que nos não invoca nem impõe uma unidade ao corpus fenomênico. Mas, nesse dá certa compreensão de mundo. As noções de sentido e de acontecimento, dizer, sabemos de que mundo e de qual época estamos falando. Sem ser agenciadas, nos permitem pensar nesse âmbito sem os perigos de torná- identitário, nem transcendente, senão que, ao contrário, resultado de lo um signo unificador ou um transcendental que condicionaria o processos diferenciais, a tecnica é sentido univoco de nosso tempo. aparecimento dos pelo contrário, permite entendê-lo a partir Essa relação entre técnica e tecnologia se pauta através da relação de de suas variações internas e composições múltiplas, mas como imanência; a técnica é unívoca como sentido da época, que se expressa na Apontávamos, anteriormente, que a formulação central da multiplicidade dos entes tecnológicos, sempre que lembremos e afirmemos univocidade afirma que ser se diz com apenas um sentido, com relação que esta expressão é imanente e que, portanto, não implica uma à totalidade dos entes singulares, entendidos como multiplicidade, com conceitualmente insustentável dualidade ontológica, que redundaria, os quais se relaciona. "Com efeito, essencial, na univocidade, não é que necessariamente, na transcendência de um polo sobre o outro. Há uma Ser se diga num único sentido. É que ele se diga num único sentido de análise dos tecnológicos e outra do modo de compreensão do todas as suas diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas" mundo que esses promovem, o modo Também para (DELEUZE, 2018, p. 45). Por outro lado, isso implica que espaço essa segunda dimensão da análise Deleuze pode nos ajudar. ontológico da univocidade é compartilhado por uma infinidade de campos diferenciais e de singularidades, em movimentos nômades não representáveis. "O ser unívoco é, ao mesmo tempo, distribuição Considerações finais e anarquia coroada" (DELEUZE, 2018, p. 91). Ora, se univocidade é Com os conceitos de multiplicidade e de virtual, pensamos sentido, e sentido é acontecimento diferencial, então, o sentido do mundo tecnológico; com os conceitos de sentido e de acontecimento, nos é diferencial. Trata-se de afirmar a diferença de modo radical, vertical aproximamos da noção de univocidade e, com ela, interrogamos o sentido como compreensão da realidade e, por esse caminho, poder pensar, de técnico do mundo na nossa contemporaneidade. Por outro lado, sabemos modo derivado, aparecer de novos modos diferenciais, do radicalmente que esse complexo tecnológico-técnico deflagra profundas operações e diferente, enfim, a emergência da diferença sem pensá-la como erro ou intervenções pontuais sobre uma de tópicos fenomênicos que aberração, mas como forma expressiva. Podemos, agora, substituir a aqui não foram apontados; apenas apresentamos os movimentos gerais categoria ser, por outras mais próximas do nosso universo conceitual, do aporte de Deleuze a essa querela reflexiva, não os específicos, embora para evitar possíveis preconceitos. sejam também muito conceito de univocidade sempre foi um dos mais densos em certo sentido, questionado, da ontologia de Deleuze; no entanto, cremos, ele constitui a pedra de toque a mais notável das reflexões deleuziano-guattarinianas seja a de CsO (Corpo sem de toda essa ontologia diferencial. Portanto, é importante verificar que implica e qual a qual nos fornece uma ferramenta decisiva para pensar no problema da é o motivo reflexivo pelo qual Deleuze propõe este conceito pelo menos desde corporeidade hoje. Com ela podemos pensar em desmontar que talvez seja último ponto de vista da filosofia Deixemos a analise desta vicissitude para centrismo da metafísica: o carbonocentrismo. Pensar que o corpo vivo, portanto também outra ocasião. nosso, que a vida como corporeidade, apenas pode ser entendida sob o signo das cadeias 90 91Toda uma filosofia da técnica e da tecnologia de outra ordem começa a se configurar a partir disso. Toda uma ontologia dos artefatos e da pode ser postulada com tais conceitos, para além das preocupações das filosofias da técnica clássicas e sem cair nas euforias adolescentes das tecnofilias. Como diria Deleuze, apenas nos resta esperar que não sejam piores que as anteriores. 7 JACQUES ELLUL Referências ALLIEZ, E. Deleuze: filosofia virtual. In: DELEUZE, G. L'actuel et le virtuelle. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. A construção do conceito CRAIA, E. A problemática ontológica em Gilles Cascavel: 2002. de técnica moderna CRAIA, E. Entre a ontologia e transcendental: Deleuze, uma apropriação de Kant. Kant e-Prints, Campinas, série 2, 4, n. 2, p. 307-321, jul./dez. 2009. Vanessa Delazeri Mocellin DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018. DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998. Jacques Ellul (1912-1994), filósofo e sociólogo desenvolve, DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil São Paulo: Editora 34, 1995. em sua principal obra, A tecnica e desafio do publicada pela primeira vez em 1954, as características que constituem que ele denomina de "técnica moderna" e que podemos entender como Tais caraterísticas só se tornam evidentes após a diferenciação sugerida pelo autor entre técnica antiga e moderna, que possibilita entendimento última como um fenômeno que está presente e influencia em todos os aspectos da vida humana. Nesse sentido, Ellul (1968, 2008) se preocupa com o modo como a tecnologia pode se tornar um risco à liberdade humana. Cabe, aqui, afirmar que a preocupação de Ellul (1974,2008) com a questão da liberdade relacionada à técnica se manifesta com a apresentação das características da tecnologia que enfatizam seu caráter e, dessa forma, nos faz ter uma visão pessimista sobre ela. Dizer que a carbonadas. Um privilégio que não saberiamos como defender nem como perpetuar Publicado originalmente em com título: La technique ou l'enjeu du siecle. diante do universo tecnológico. corpo, também o corpo vivo, também nosso como termo tecnologia será utilizado como sinônimo da expressão tecnica moderna. coletividade, também nosso como singularidade, pertence ao diagrama histórico onde Em oposição ao determinismo tecnológico, nos deparamos com construtivismo social, novas composições são promovidas, é sobre elas que devemos colocar olho da reflexão, no qual principal argumento levantado por seus autores, como, por exemplo, Wiebe não sobre a manutenção de uma natureza Que composições, quais relações e Bijker e Trevor Pinch enuncia que a tecnologia não determina a ação humana, fluxos, que singularidades estabilizadas, a partir deles, aparecem no campo de imanência mas que é a necessidade humana que determina desenvolvimento tecnológico, assim do real e do pensado. Deixemos essa discussão para um artigo específico. como uso da tecnelogia depende do contexto social em que ela está inserida. 92tecnologia pode ter um caráter determinístico é dizer que ela pode que impõe regras e que se instala em todos os domínios da vida humana. determinar a realidade social e a vida humana, mas que não pode ser Ela, portanto, é global, não se limita aos objetos ou à produção. E, determinada por esses. Assim, segundo uma visão determinística, a exatamente por isso, precisamos diferenciar essa técnica que atinge todos tecnologia não pode ser modificada por valores sociais ou humanos, ela os domínios daquela que simplesmente é um modo de resolver um apenas obedece aos seus próprios valores e regras. problema qualquer. Em outras palavras, a técnica em sentido universal se refere ao conceito de "fenômeno técnico" em sua totalidade, ao passo que a técnica, como um modo de resolver um problema específico, corresponde que é o fenômeno técnico? ao que Ellul (1968) chama de "operação técnica". Para o autor, portanto, Para Ellul (1968, p. 1) a técnica não se refere somente às máquinas, a operação técnica é apenas uma pequena fração do fenômeno técnico. aos artefatos que utilizamos, mas consiste, também, em conhecimentos "As operações técnicas eram são) diversas e limitadas pelos seus contextos teóricos aplicáveis. A máquina é apenas uma pequena parcela da técnica, culturais; a técnica é um único, universal, que se impõe a todos é apenas a forma mais evidente da técnica, ao passo que a técnica "assume os contextos" (CUPANI, 2011, p. 201-202). hoje em dia a totalidade das atividades do homem, e não apenas sua conceito de "operação técnica" nos é apresentado por Ellul (1968, atividade produtora" (ELLUL, 1968, p. 2). Assim sendo, a técnica seria a p. 19) como método para atingir um fim específico, e, nesse sentido, junção da teoria com a práxis, pois, além de se referir ao maquinário, ela podemos afirmar que tanto as técnicas antigas quanto as modernas é mais que esse, ela é que possibilita que ele seja produzido e determina apresentam, em sua funcionalidade, a "operação técnica", e, portanto, como deve funcionar. Além disso, outro fator importante que Ellul (1968, apresentam a mesma natureza, podendo distingui-las por meio do nível 1977) aponta sobre a inserção da máquina em nossa sociedade, é que ela de atingido, ou seja, através do aprimoramento do processo criou um ambiente inumano,4 ou seja, além da máquina ajudar a driblar operacional que incluiu conhecimento na modernidade. Em os fatores da Natureza que prejudicavam a satisfação das nossas suma, que caracteriza a "operação técnica" é a procura da eficacia, e essa necessidades humanas, ela transformou nosso ambiente e deixou "sem procura ampliada a todos os domínios é o fenômeno técnico: "O fenômeno vida". técnico pode ser resumido como sendo "a busca do melhor meio em todos os campos". fenômeno técnico é, portanto, a preocupação da homem vivia em uma atmosfera anti-humana. Concentração imensa maioria dos homens de nosso tempo de buscar, em todas as coisas, de grandes cidades, casas sujas, falta de espaço, falta de ar, falta de o método absolutamente mais eficaz" (ELLUL, 2008, p. 18-19, tradução tempo, sombrias e luz pálida que faz tempo desaparecer, nossa). usinas desumanizadas, insatisfação dos sentidos, trabalho das mulheres, distância da natureza. A vida não faz mais sentido. Para que seja possível fenômeno técnico, autor (1968, p. 21) Transportes públicos onde homem é menos que um pacote, divide a procura pelos mais eficazes em duas etapas: primeiro, hospitais onde é apenas um número, o "três-oito", e ainda é um com a intervenção da razão, escolhem-se certos traços para a realização progresso... E barulho, monstro afligindo a noite toda sem de um objetivo determinado, mas tais traços devem visar ao fim a que ele conceder à miséria uma pausa. Proletários e alienados, essa é a é proposto e à melhor eficácia. Depois, com a intervenção da consciência, condição humana diante da máquina (ELLUL, 2008, p. 2-3, conscientiza-se de que há muitas possibilidades para além do mundo tradução nossa). natural, e, que essas estão para serem empregadas em prol de um fim. Desse modo, fica evidente que, através da busca dos melhores e mais A técnica integra meio à sua própria necessidade antinatural e eficazes meios para a realização de determinados fins, se estabelecem os integra humano ao mundo inumano, nos aponta Ellul (2004a, 2004b, alicerces do fenômeno técnico presente em nossa sociedade. 2008). É nessa integração que a técnica se torna substância e deixa de ser objeto, pois é um modo de saber-fazer, pois é um modo de funcionamento Quais são as características da técnica moderna? 'O termo inumano aqui será compreendido como antinatural, afinal, considera-se que Para entendermos a diferença entre técnica antiga e técnica moderna ser humano faça parte da Natureza apesar de compartilhar, do mundo técnico. utilizada por Jacques Ellul (1968, p. 64), primeiramente, precisamoscompreender que a posição do autor faz parte de uma visão sobre a técnica moderna, afinal, para que ela funcione perfeitamente visa-se a eliminar que acredita que ela é um totalmente novo, inexistente toda e qualquer variabilidade de um usuário para outro, unificando-se anteriormente na história e, no qual, há uma mudança de natureza ou aperfeiçoamento do uso à fabricação de novo objeto. qualidade da técnica atual e moderna em comparação às precedentes, a Por último, a terceira característica destacada por Ellul (1968) está qual se mostra nas novas características da técnica atual. Tal posição não relacionada à lenta e local propagação da técnica nas sociedades desconsidera que existem algumas características intrínsecas a qualquer precedentes, pois os grupos sociais permaneciam fechados e com pouca técnica, como a operação mental e instinto humano, que se encontram comunicação com exterior, dificultando a imitação ou a transmissão tanto na técnica antiga quanto na moderna, de modo que Ellul apresenta técnica entre grupos distintos, além de determinada técnica ser dois exemplos para explicar tal fato: "É certo que a operação mental que representante dos valores de outra sociedade, ela era "subjetiva em relação faz Arquimedes construir uma máquina de guerra é a mesma de qualquer à civilização" (ELLUL, 1968, p. 72). Ao passo que, na Modernidade, a engenheiro que aperfeiçoa um motor" (ELLUL, 2008, p. 64, tradução técnica tem alcance global, sua aplicação passa a ser generalizada a todos nossa) e igualmente certo que é a mesma espécie de instinto humano os setores e civilizações, pois o foco foi modificado da subjetividade para que leva homem a colocar uma pedra na extremidade de uma vara e a a objetividade e da moralidade para a eficácia. construir uma metralhadora" (ELLUL, 2008, p. 64, tradução nossa). Constata-se, assim, que as características que estão presentes na Entretanto, essas duas características não conseguem provar, segundo relação técnica e na sociedade não permaneceram iguais; houve, portanto, autor (1968), que as técnicas antigas e as atuais fazem parte do mesmo uma mudança de natureza da técnica, bem como uma nova relação fenômeno, afinal para ele as técnicas antigas eram intermediárias entre germinou e resultou em novas características da técnica moderna que humano e meio, ao passo que a técnica atual, que provém das ciências serão tratadas a seguir. aplicadas, "assumiu um corpo próprio, tornou-se uma realidade por si Com a mudança de natureza da técnica antiga para a moderna, faz- mesma. Não é mais apenas meio [para um fim] e intermediário; mas se necessário destacar as características que pertencem somente à segunda, objeto em si, realidade independente e com a qual é preciso contar" (ELLUL, 1968, p. 65). sejam elas: racionalidade, artificialidade, automatismo, autocrescimento, unicidade, universalismo e autonomia. Com exceção das duas primeiras, E, considerando a técnica atual como uma realidade em si, Ellul as demais características apontadas representam grande diferencial da (1968, 2004a) elenca três características que surgem da relação entre conceituação elluliana de técnica, pois indicam minúcias que não foram fenômeno técnico e sociedade e que ajudam a diferenciar a técnica antiga percebidas anteriormente e que anunciam progresso da técnica moderna. A primeira levantada pelo autor (1968) diz que, nas sociedades primitivas, as técnicas eram aplicadas a domínios limitados, A racionalidade, como característica pertencente à técnica moderna, inclusive, em número, mantendo, assim, a nas relações pessoais, já nada mais é que dizer que sempre existiu, na técnica, um processo racional, que ficar uns com os outros era mais importante que pensar em produzir ou, em outras palavras, uma redução ao esquema lógico. Já a artificialidade mais, consequentemente, se consumia menos. Já na nossa sociedade, a apresenta a técnica como oposto do natural, pois o técnico é criado, é técnica alcançou domínios ilimitados, e pensar em técnica passou a produzido pelo humano a partir da modificação do natural, não fazendo significar pensar em comodidade, ou seja, "trata-se principalmente do parte, portanto, da autoprodução da Natureza. Em outras palavras, que evita esforço e permite repouso, que permite sentir-se fisicamente artificial modifica e destrói natural, de modo que "caminhamos à vontade. Esse conforto está, pois, estreitamente ligado à vida material e rapidamente para ponto em que brevemente não mais teremos meio se exprime no aperfeiçoamento do mobiliário da máquina" (ELLUL, 1968, natural" (ELLUL, 1968, p. 82), pois tudo será artificial. p. 68). "O automatismo consiste em que a orientação e as escolhas técnicas A segunda característica destacada por Ellul (2008, p. 62) recupera se efetuam por si mesmas (ELLUL, 1968, p. 79), ou seja, não se pode a ideia de invariabilidade de meios para atingir um fim, que estava presente escolher entre os métodos de que se dispõe, pois sempre melhor método, nas sociedades precedentes. Nesse sentido, caráter obsoleto do utensílio mais eficaz e racional, irá se impor. Desse modo, quando falamos em era compensado através da habilidade do usuário e não do aperfeiçoamento técnica, fica claro que nunca poderá haver recusa diante da maior do utensílio. Essa ideia é, hoje, contrária ao que se pensa sobre a técnica e racionalidade, pois a escolha sempre será independente de qualqueraspecto subjetivo, sempre será ipso facto; e humano apenas será sujeito Como próprio termo indica, a unicidade é aquele traço que diz que registra os resultados das análises e opta pelo mais eficiente. Em que todas as técnicas fenômeno técnico em sua totalidade possuem resumo, a escolha entre os métodos se dá automaticamente e se elimina as mesmas características. A unicidade também define que não é possível automaticamente toda atividade que não seja técnica, elimina-se acaso. distinguir a técnica de seu uso, pois "essas distinções são rigorosamente falsas e provam que nada se compreendeu do fenômeno técnico, cujas Nada mais pode entrar em competição com meio técnico. A partes são ontologicamente ligadas, e cujo uso é inseparável do ser" escolha é feita a priori. Nem homem nem grupo pode resolver (ELLUL, 1968, p. 98). Assim, do ponto de vista ontológico, ser da seguir qualquer outro caminho além do caminho estão técnica não pode ser distinto do seu uso, pois é exatamente no seu uso com efeito colocados diante do seguinte dilema muito simples: que mora a determinação de seu ser. Tal conceituação tem como base ou bem decidem salvaguardar sua liberdade de escolha, decidem teórica as quatro causas do ser propostas por Aristóteles (2002) e que usar meio tradicional ou pessoal, moral ou empírico, e entram enfatiza que a causa final "para que serve" determina ser e sua então em concorrência com um poder contra qual não tem defesa finalidade. Além disso, para Ellul (2008) a unicidade também garante eficaz; seus meios não são eficazes, serão esmagados ou eliminados, eles próprios serão vencidos, ou então resolvem aceitar a que não devemos separar as técnicas instrumentais das técnicas sociais, necessidade técnica; nessa hipótese, submetendo-se, afinal, existem técnicas diversas que abarcam os mais diversos campos da porém, de modo irremediável, à escravidão técnica (ELLUL, 1968, sociedade, e que suprem as mais diversas necessidades. Cada parte que p. 87). compõe a totalidade das técnicas é indispensável para fortificar e sustentar fenômeno, para garantir um perfeito funcionamento do conjunto. Já autocrescimento pode ser dividido em dois aspectos: primeiro Ellul (2004a, 2008), ao exemplificar a unicidade, explica que essa que afirma que próprio desenvolvimento técnico não precisa mais da característica garante que nenhuma técnica possa ser valorizada como intervenção humana, e O segundo, que se refere à paixão humana pela boa ou má, justa ou injusta, pois pertence estritamente à moralidade técnica, fazendo com que se trabalhe em prol do desenvolvimento da técnica e obedece exclusivamente aos motivos técnicos, dentre os quais mesma. Com relação ao primeiro, autocrescimento se dá através da apenas se pode julgar algum mau uso que dela se faz. Dessa forma, fica combinação das técnicas, seguindo uma progressão claro que a técnica é causal e objetiva, é um meio para um fim e deve ser combinando uma nova invenção com as posteriores, de modo que uma usada da maneira correta, sem possibilidade de escolha humana. Ou, nas vez iniciado, se torna ilimitado e irreversível. Sobre segundo, Ellul palavras de Ellul, "a técnica é, por si mesma, um modo de agir, exatamente (1968, p. 90) salienta que a técnica progride através de pequenos um uso" (1968, p. 101), e pensar a técnica a partir da escolha humana é aperfeiçoamentos que se acumulam formando um maior e mais ir contra seu uso técnico, é ir contra seu ser, é impedir que ela produza significativo, acrescentando que esses aperfeiçoamentos só são possíveis que tem que produzir, é ir contra à concepção moderna de através de pesquisas coletivas e anônimas que estão ocorrendo em todos Já universalismo se refere a dois aspectos: geográfico e qualitativo. os lugares e ao mesmo tempo. Entretanto, humano assume papel universalismo é porque a técnica atinge todos os países e de registrador das combinações técnicas, de modo que "[...] o homem civilizações, e é qualitativo, pois "[...] a técnica não precisa para seu uso desempenha um papel cada vez menos importante nessa evolução" de um homem seja qual for a mão que a utilize, a técnica (ELLUL, 1968, p. 96). produz seu efeito mais ou menos totalmente" (ELLUL, 2008, p. 107, Assim, para Ellul (1968, p. 94) autocrescimento significa que a tradução nossa) e depende apenas de como é utilizada. técnica progride sem a intervenção humana, através da combinação Vale lembrar, no entanto, que Ellul (1968) enumera alguns fatores ilimitada das mais variadas técnicas, em prol da produção de novas. que possibilitam a expansão técnica, e esses fatores geralmente Entretanto, alguns ramos evoluem mais que outros, que autor (1968, correspondem a causas históricas, como e a guerra entre povos, p. 96) explica através da ligação entre automatismo e autocrescimento. ou a fatores técnicos, como a rapidez e a intensidade dos meios de primeiro decide através da eficiência quais ramos devem evoluir mais, comunicação, que disseminam os produtos pelo mundo. Ou, ainda, segundo possibilita crescimento desses ramos combinando e podem corresponder à exportação de técnicos, que tem como consequência aprimorando as técnicas. compartilhamento de ideias e a capacitação de novos técnicos, além de 98

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