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EAD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA LICENCIATURA EM HISTÓRIA HISTÓRIA INDígENA MARIA HILDA BAqUEIRO PARAISO Salvador UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A ©2010 Cedido à Editora da Universidade do Estado da Bahia – EDUNEB para esta edição. Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida ou modificada em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma. Depósito Legal na Biblioteca Nacional FICHA TÉCNICA EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – EDUNEB DIRETORA Maria Nadja Nunes Bittencourt ASSESSORA EDITORIAL Carla Cristiani Honorato de Souza REVISÃO E PREPARAÇÃO DE ARqUIVO Carla Cristiani Honorato de Souza Maíta Nogueira de Andrade Naiara Rios Sena DIAgRAMAÇÃO Sidney Santos Silva O conteúdo deste Material Didático é de inteira responsabilidade do(s)/da(s) autores (as), por cuja criação assume(m) ampla e total responsabilidade quanto a titularidade, originalidade do conteúdo intelectual produzido, uso de citações de obras consultadas, referências, imagens e outros elementos que façam parte desta publicação. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP). Catalogação na Fonte BIBLIOTECA DA COORDENAÇÃO UAB/UNEB Editora da Universidade do Estado da Bahia – EDUNEB Rua Silveira Martins, nº 2.555 – Cabula CEP: 41.195-001 – (71) 3117-3458 editora@listas.uneb.br www.uneb.br PARAÍSO, Maria Hilda. P222 História indígena: licenciatura em história. / Maria Hilda Paraíso. Salvador: UNEB/ UAB, 2011. 86p. 1. Brasil 2. História 3.Índio I. Maria Hilda Paraíso II. Título. III. Universidade Aberta do Brasil. IV. UNEB CDD: 980.41 EAD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI APRESIDENTE DA REPÚBLICA Dilma Roussef MINISTRO DA EDUCAÇÃO Fernando Haddad SISTEMA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL PRESIDENTE DA CAPES Jorge guimarães DIRETOR DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA DA CAPES João Teatini GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA GOVERNADOR Jacques Wagner VICE- GOVERNADOR Otto Roberto Mendonça de Alencar SECRETÁRIO DA EDUCAÇÃO Osvaldo Barreto Filho UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB REITOR Lourisvaldo Valentim da Silva VICE-REITORA Adriana dos Santos Marmori Lima PRÓ-REITOR DE ENSINO DE GRADUAÇÃO José Bites de Carvalho COORDENADOR UAB/UNEB Silvar Ferreira Ribeiro COORDENADOR UAB/UNEB ADJUNTO Daniel de Cerqueira góes EAD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A Caro (a) cursista, Estamos começando uma nova etapa de trabalho e para auxiliá-lo no desenvolvimento da sua aprendizagem es- truturamos este material didático que atenderá ao Curso de Licenciatura na modalidade de Educação a Distância (EaD). O componente curricular que agora lhe apresentamos foi preparado por profissionais habilitados, especialistas da área, pesquisadores, docentes que tiveram a preocupação em alinhar o conhecimento teórico e prático de maneira contextualizada, fazendo uso de uma linguagem motivacional, capaz de aprofundar o conhecimento prévio dos envolvidos com a disciplina em questão. Cabe salientar, porém, que esse não deve ser o único material a ser uti- lizado na disciplina, além dele, o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), as atividades propostas pelo Professor Formador e pelo Tutor, as atividades complementares, os horários destinados aos estudos individuais, tudo isso somado compõe os estudos relacionados a EaD. É importante também que vocês estejam sempre atentos às caixas de diálogos e ícones específicos que aparecem durante todo o texto apresentando informações complementares ao conteúdo. A ideia é mediar junto ao leitor, uma forma de dialogar questões para o aprofundamento dos assuntos, a fim de que o mesmo se torne interlocutor ativo desse material. São objetivos dos ícones em destaque: Você sabia? – convida o leitor a conhecer outros aspectos daquele tema/conteúdo. São curiosidades ou informações relevantes que podem ser associadas à discussão proposta. Saiba mais – apresenta notas, textos para aprofundamento de assuntos diversos e desenvolvimento da argumentação, conceitos, fatos, biografias, enfim, elementos que o auxiliam a compreender melhor o conteúdo abordado. Indicação de leituras – neste campo, você encontrará sugestões de livros, sites, vídeos. A partir deles, você poderá aprofundar seu estudo, conhecer melhor determinadas perspectivas teóricas ou outros ol- hares e interpretações sobre determinado tema. Sugestões de atividades – consiste num conjunto de atividades para você realizar autonomamente em seu processo de auto-estudo. Estas atividades podem [ou não] ser aproveitadas pelo professor formador como instrumentos de avaliação, mas o objetivo principal é o de provocá-lo, desafiá-lo em seu processo de auto-aprendizagem. Sua postura será essencial para o aproveitamento completo desta disciplina. Contamos com seu empenho e entu- siasmo para juntos desenvolvermos uma prática pedagógica significativa. SETOR DE MATERIAL DIDÁTICO UNEB/EaD ?? VOCÊ SABIA? ??? ??? SAIBA MAIS INDICAÇÃO DE LEITURA SUGESTÃO DE ATIVIDADE EAD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A Apresentação da Disciplina A disciplina História Indígena tem como objetivo, conforme sua ementa, fazer compreender, nas múltiplas di- mensões das experiências dos índios como sujeitos históricos, a constituição de diferentes relações de tempo e espaço. Os textos que compõem este módulo estão organizados em ordem cronológica, para que o processo histórico possa ser mais bem compreendido. Sugerimos, portanto, que sua leitura e as orientações obedeçam à ordem de inserção dos textos. O objetivo deste curso é o de estabelecer um diálogo com vocês sobre o assunto, responder as perguntas que todos temos e abrir novas perspectivas para compreender a realidade indígena. O módulo está organizado em 8 capítulos. No capítulo I, veremos que é possível se fazer História Indígena, quando ela foi aceita pela academia, como podemos trabalhar a temática e as dificuldades a serem enfrentadas. No capítulo II, o tema é o que é ser índio. No capítulo III, de onde são originários e como o foram; e, no capítulo IV, como são diversos entre si. Dessa forma, daremos uma visibilidade mais acurada a esses personagens históri- cos. No capítulo V, trataremos do índio colonial, isto é, analisaremos as várias formas de interação estabelecidas entre índios, missionários, colonos e autoridades metropolitanas. Veremos os principais pontos de conflito e negocia- ção, a escravidão indígena e a relevância do seu trabalho, inclusive, na defesa da colônia. Destacaremos algumas das principais revoltas que desencadearam, pois, diferentemente do que estamos acostumados a ler, os indígenas estabeleceram formas de resistência e impuseram negociações, obrigando o governo colonial a fazer concessões e dar garantias aos grupos revoltados. Aprenderemos a dinâmica dessas relações, conhecendo como e por que a metrópole deliberou, nos meados do século XVIII, abolir a escravidão indígena e transformar seus aldeamentos em vilas. No capítulo VI, iniciamos nosso estudo pelo início do XIX, quando a guerra justa a alguns grupos indígenas é retomada e a escravidão indígena volta 50 anos depois de ter sido proibida. Esta foi a forma encontrada para conquistar novos espaços produtivos e abrir outros caminhos de circulação. É o período conhecido pela política de interiorização da conquista e de acirramento das relações entre índios e não índios e dos preconceitos contra aqueles povos. Pensados como substitutos dos escravos de origem africana, os indígenas passaramassunto até 1808, quando aportou no Rio de Janeiro, já então capital da colônia. A presença da corte exigiu que fossem adotadas várias medidas, buscando garantir o abastecimento dos súditos ali ins- talados. O aumento da população da cidade e os novos hábitos de consumo dos portugueses recém- chegados exigiam medidas urgentes. Era preciso interiorizar a conquista e a exploração de novas terras e abrir caminhos que permitissem o escoamento dos produtos locais para a capital. Um dos obstáculos a serem superados era a dominação dos ín- dios que viviam nas áreas a serem tomadas. Assim, nos anos de 1808 e 1811, foram decretadas guerras justas aos índios que ali viviam e que receberam denomina- ções genéricas: Botocudos, na Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo e em São Paulo e Paraná; Canoeiros, em Goiás e Mato Grosso e Muras, na Amazônia. Figura 16 – Foto de quadro Rua Direita. Rio de Janeiro século XIX. Fonte: MEDDI, Jjeocazeocaz lee Disponível em Acesso em 25.jan.2011. 30 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A Figura 17 – Foto de pintura de índios Botocudos Fonte: WIED. NEUWIED, M. Viagem ao Brasil. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1989. Disponível em Acesso em 25.jan.2011. Figura 18 – Foto d e gravura de índio Mura da Amazônia. Fonte: RODRIgUES,Vanessa Disponível em . Acesso em 25.jan.2011. Figura 19 – Foto de gravura índio Mura inalando o paricá. Fonte: POZELLA, Eduardo Disponível em Acesso em 25.jan.2011. INDICAÇÃO DE LEITURA Veja como a volta da política de combate aos índios, no Século XIX, era considerada essencial para a conquista das fronteiras de ocupação, lendo: LOPES, Marta Maria. OS GRUPOS INDÍGENAS NA FRONTEIRA OESTE DE MATO GROSSO E SUAS RELAÇÕES COM OS MILITARES NO SÉCULO XIX, 2005. Disponível em: Acesso em: 25. Jan.2011. Os moradores que se dispusessem a participar da guerra recebiam inúmeras vantagens econômi- cas: sesmarias nas terras conquistadas, o direito de escravizar os índios por 10 ou 20 anos, perdão de dívidas fiscais e até de crimes que por ventura, tivessem cometido. Para viabilizar essa empreitada e apoiar a ação dos colonos, foram criados quartéis e destacamentos militares e colônias de degredados, todos localizados em pontos estratégicos: ao longo de rios que poderiam vir a ser usados como vias de comunicação, em áreas de terras sabidamente férteis e ricas em madeiras e onde houvesse grande concen- tração de indígenas. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 31UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA Essa política administrativa de cunho militar provo- cou graves desarranjos na vida dos povos nativos que viviam nessas áreas. Caçados, uns buscaram se inte- riorizar nas matas, na tentativa de se proteger. Alguns outros grupos optaram por aceitar os aldeamentos impostos e por se aliarem aos colonos na guerra contra os demais, na tentativa de evitar que fossem também escravizados. ?? VOCÊ SABIA? Boa parte das tropas de combate aos chamados índios inimigos era formada por indígenas aldeados, que eram obrigados a participar da guerra. Dos grupos que se recusavam a aldear-se e compor as tropas, alguns decidiram pelo enfrentamento, consi- derando que a vida como trabalhadores nas fazendas ou nos quartéis e destacamentos não era atrativa devido aos maus tratos e ao excesso de trabalho. Outra tática era a da fuga dos aldeamentos após três anos, período em que se extinguiam as benesses – terem roças plan- tadas por terceiros, receberem brindes e atendimento e não serem usados como trabalhadores -, e circularem pelas áreas onde havia colonos recém instalados, apresentando-se como índios saídos das matas, pas- sando a usufruir mais três anos de benefícios. Figura 20 – Foto de índio Avá Canoeiro do Centro-Oeste. Fonte: TORAL, André Disponível em Acesso em 25.jan.2011. ?? VOCÊ SABIA? Os combates nas guerras aos índios eram extremamente violentos. As aldeias eram cercadas durante a noite e as casas eram queimadas perto do amanhecer. Nesse meio tempo, os atacantes cortavam as cordas dos arcos e quebravam as flechas. Quando os moradores fugiam das chamas, eram presos ou mortos a tiros. Muitas vezes só aprisionavam crianças e mulheres, sendo os demais mortos. Os prisioneiros eram tratados de forma diferenciada. Os homens sobreviventes eram vendidos ou entregues aos interessados em trabalhadores, pois essas eram re- giões que, por estarem em fase inicial de desbravamen- to, seus conquistadores não dispunham de capital para adquirir escravos de origem africana. Posteriormente, a prática, ante as atitudes de rebeldia dos homens aprisionados ainda crianças, a ordem era de matá-los no momento de combate. Apenas eram aprisionadas as mulheres que, além de serem trabalhadoras, também se tornavam amasias dos militares e dos colonos, queixa constante dos índios, mesmo daqueles que viviam aldeados e sob a suposta proteção da lei. Também as crianças eram aprisionadas, doadas e vendidas. O comércio de crianças indígenas foi relatado por viajantes, missionários, autoridades governamen- tais e pelos próprios colonos que se mostravam satis- feitos com a docilidade e obediência desses meninos e meninas, alguns colocados na lida desde os cinco anos de idade. Esse comércio de pequenos escravos, além do seu caráter econômico, também era visto como uma tática para promover a desunião entre os vários povos. A fome, as promessas de benesses e a tentativa de preservar as crianças do seu grupo transformavam alguns grupos indígenas em pombeiros, responsáveis por roubar crianças das tribos não aliadas e entregá-las às autoridades civis e militares, que as repassavam aos seus aliados políticos e aos colonos interessados. 32 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A ??? ??? SAIBA MAIS Pombeiros eram índios (na América) e negros (na África) encarregados de trazer dos sertões pessoas para serem vendidas como escravos aos interessados. No caso dos índios, eles, para atender as exigências legais, diziam que haviam aprisionado os indígenas e os estariam levando para morrerem em rituais antropofágicos. Assim, o interessado, ao pagar pelo prisioneiro, estaria comprando sua liberdade e vida, o que lhe garantia o direito de mantê-los como escravos. Dois outros destinos podiam ser dados aos pri- sioneiros: serem levados para estudo nos Gabinetes Naturalistas na Europa, principalmente na Alemanha, ou para o Corte Imperial, onde supostamente deveriam freqüentar escolas, atuarem na Marinha e em outras atividades urbanas. INDICAÇÃO DE LEITURA A presença de índios na cidade do Rio de Janeiro só pode ser explicada pela vontade do Governo Imperial de inserir os índios nas atividades pior remuneradas. Veja como, neste texto: LEMOS, César de Miranda e. FONTES PARA UM DEBATE: OS ÍNDIOS NA URBANIDADE CARIOCA NO INÍCIO DO OITOCENTOS. 2007. Disponível em: . Acesso em: 25/01/2011. Outro comércio comum naquele período era a de índios adultos, crianças e de esqueletos, particular- mente crânios, para a Europa. No início do século XIX, fortaleciam-se as pesquisas sobre evolução humana na Alemanha. Lá estavam localizadas as principais institui- ções de pesquisa, conhecidas como Gabinetes Natura- listas, ligados ou não a Faculdades de Medicina. INDICAÇÃO DE LEITURA Se você quer entender como os Botocudos foram considerados ancestraisdo homem, leia este texto: Valério, Marcus. EVOLUÇÃO. DE ONDE VIEMOS? A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR. 2004. Disponível em: . Acesso em: 14. fev.2010. Os Botocudos, naquele momento, eram considerados como o possível elo perdido no processo de evolução entre macacos e humanos. O interesse nos crânios e esqueletos era grande e sua venda e envio eram regula- res. Os vivos também eram estudados e avaliados física e mentalmente e, quando chegavam novos seres, os anteriores eram vendidos aos apresentadores de feiras ambulantes para serem exibidos junto com “mulheres barbadas” e outros elementos considerados exóticos. Ao morrerem, eram vendidos para museus de cera ou para os Gabinetes Naturalistas. INDICAÇÃO DE LEITURA Os estudos sobre evolução humana buscavam espaço nos museus, para explicar à população o processo de transformação pela qual passara a humanidade. Para tanto, leia MARANDINO, Marta. MUSEUS DE CIÊNCIAS, COLEÇÕES E EDUCAÇÃO: RELAÇÕES NECESSÁRIAS. Em Museologia e Patrimônio. V.2. nº 2. Jul/dez 2009. Disponível em: e em . Acesso em: 14. Fev. 2010. Esse quadro de manteve após a Independência, embora se tornassem freqüentes os questionamentos ao modelo adotado que, segundo alguns autores, não traziam maiores benefícios. Segundo pensadores políticos, como José Bonifácio de Andrada e Silva, era preciso repensar a política indigenista e criar me- canismos de atração e qualificação desses potenciais trabalhadores. No entanto, o projeto de Bonifácio foi apresentado às Cortes de Lisboa e à Comissão encarregada de ela- borar a Constituição de 1824, não tendo sido aprovada em nenhuma instância. Mantinha-se a guerra justa nas fronteiras e a política pombalina para os índios aldeados no período colonial. REgISTRE SUA IDEIA Para você, a política indigenista, no período joanino ,representou avanços ou retrocessos dos direitos indí- genas com relação à política pombalina? SUGESTÃO DE ATIVIDADE Faça uma análise de como as ideias evolucionistas agravaram o preconceito relativo aos índios, no século XIX, e compare com as notícias atuais de jornais sobre a luta dos índios para reaverem as terras que lhes foram doadas. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 33UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA AS POLíTICAS INDIgENISTAS, A CONSTITUIÇÃO IMPERIAL E OS íNDIOS NO NOVO PAíS. A proposta apresentada por José Bonifácio, apesar do seu caráter autoritário, como por exemplo, o de determinar que as crianças indígenas deveriam ser desmamadas aos 6 meses e que os aldeamentos seriam feitos longe de rios e em terrenos áridos, para que os índios não se tornassem preguiçosos, apre- sentava avanços que foram considerados inaceitáveis pelos constituintes. Além de propor a suspensão da guerra justa, sugeria o reconhecimento do direito dos índios à propriedade das terras que ocupavam e, como decorrência, que a exploração desses lotes de terras se fizesse através da compra e pagamento aos pro- prietários. Essa proposição não poderia ter sido aceita naquele momento, assim como não o é até hoje. A Constituinte de 1823, ao discutir a quais seg- mentos sociais seriam concedido o status de cidadão, considerou que, embora fosse reconhecida a naciona- lidade dos povos indígenas, não se poderia considerá- los cidadãos. Os argumentos usados para lhes negar essa condição estão expressos com clareza na fala do Deputado França: São habitantes do Brasil, os neles nascidos, cidadãos brasil- eiros. Agora pergunto eu, um Tapuia é habitante do Brasil? É. Um Tapuia é livre? É, logo, é cidadão brasileiro? Não, posto que, aliás, se possa chamar brasileiro, pois os índios no seu estado selvagem não são, nem se podem considerar como parte da grande família brasileira; e são, todavia, livres, nas- cidos no Brasil e nele habitantes. Nós, é verdade, que temos lei que lhes outorgue os direitos de cidadão, logo que eles abracem os nossos costumes e a civilização, antes disso, porém, estão fora da nossa sociedade.” 1 ?? VOCÊ SABIA? Para que os índios fossem aceitos como cidadãos, eles deveriam abrir mão da condição de índio e se comportar como os demais brasileiros. 1 FRANÇA, ...... Declarações na Reunião da Assembléia Nacional Constituinte de 23/09/1823 In Anais da Assembléia Nacional Constituinte de 1823; Arquivo Nacional, . Secção SPO T.05. p. 211-4. Começava-se, então, a desenhar a perspectiva de uma nova política para as populações indígenas: a possibilidade de promover sua integração ao todo nacional. Porém, para tanto, eles deveriam abdicar de seus costumes, de sua língua e de sua identidade, para serem aceitos plenamente como cidadãos. Este era um novo desafio proposto ao Estado, que teria que criar instituições capazes de promover essa transfor- mação, a qual o Primeiro Reinado não se preocupou em viabilizar. Também para os povos indígenas aldeados desde o período colonial e vivendo nas vilas criadas pelo Diretório Pombalino, esse desafio se fazia presente. Embora o Diretório tivesse previsto que a administração das vilas seria entregue aos indígenas, tal não havia ocorrido, alegando-se que os mesmos não possuíam conhecimento para assumir essa responsabilidade. Ficava claro, a partir da Constituição de 1824, que eles deveriam se comportar como os novos brasileiros para terem seus direitos reconhecidos. Isto significava abdicar de sua maneira de ser ou ocultar e camuflar suas identidades e expressões culturais peculiares. INDICAÇÃO DE LEITURA Os romances são grandes formadores de opinião, principalmente o eram, quando não havia rádio, televisão e nem jornais circulantes diários. Veja como o romance O Guarani, de José de Alencar, foi importante para criar uma visão romântica dos índios. Para tanto, leia MOREIRA, Vânia Maria Louzada OS ÍNDIOS E O IMPÉRIO: HISTÓRIA, DIREITOS SOCIAIS E AGENCIAMENTO INDÍGENA. 2009. Disponível em: . Acesso em: 21.jan.2011 e em ALENCAR, José. O GUARANI. Veja o resumo editado por Orfeu Spam Apostilas. 2006. Disponível em: . Acesso em: 25. Jan.2011. SUGESTÃO DE ATIVIDADE Identifique, após a leitura do romance O Guarani, a imagem ideal de índio pensada pelas autoridades e intelectuais do início do século XX. Para os povos não aldeados, o Império manteve a política da guerra justa com todas as suas implicações, 34 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A pois a conquista de terras, o uso do trabalho indíge- na e a necessidade de interiorização da colonização mantinham-se como essenciais e eram reivindicados pelos conquistadores das áreas de fronteiras. INDICAÇÃO DE LEITURA A política imperial foi complexa e teve muitas faces. Porém, manteve a mesma postura agressiva para com os índios que se opusessem à expansão do domínio brasileiro. Para tanto, leia: FERREIRA,,Andrey Cordeiro CONQUISTA COLONIAL, RESISTÊNCIA INDÍGENA E FORMAÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO : OS ÍNDIOS GUAICURÚ E GUANÁ NO MATO GROSSO DO SÉCULO XIX. 2008. Disponível em: . Acesso em: 14. Fev. 2011. Para os aldeados, outros problemas se apresenta- vam. Os administradores das vilas indígenas passaram a usar a Constituição de 1824 contra os indígenas. Afirmavam que os moradores dessas localidades já falavam a língua portuguesa, vestiam-se como os colonos, eram cristãos e sabiam ler. INDICAÇÃO DE LEITURA A postura das elites imperiais era a de não reconhecer os direitos indígenas e nem a capacidade desses povos de manterem suas identidades. O texto abaixo vai lhe ajudar a compreender essa realidade: LOPES, Fátima Martins; OFICIAIS DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS: NOVOS INTERLOCUTORESNAS VILAS DA CAPITANIA DO RIO GRANDE, 2009. Disponível em: Acesso em: 25.jan. 2011. Logo, poderiam ser considerados como cidadãos brasileiros e, consequentemente, não deveriam ter mais as regalias dos índios em fase de adaptação à nova realidade nacional, isto é: era preciso extinguir os aldeamentos e vender as terras aos interessados. Inclusive aos novos cidadãos. Iniciava-se, então, o desmanche dos aldeamentos indígenas e a negação dos seus direitos às terras ancestrais que lhes haviam sido concedidas pela Coroa portuguesa sob a forma de sesmarias. O interesse dos colonos nas terras dos aldeamentos devia-se ao fato de as mesmas já terem sido trabalha- das pelos indígenas e terem recebido investimentos da metrópole ou do Estado brasileiro. Significava economia de tempo e de recursos para promover a produção de mercadorias a serem inseridas no mercado nacional ou internacional. Assim se iniciava mais um foco de tensão, que se estenderia até o fim do Segundo Império: a pressão dos colonos para que o Estado promovesse a extinção dos aldeamentos e lhes entregasse as terras para seu uso. INDICAÇÃO DE LEITURA Que tal ler este texto para compreender melhor a situação dos povos indígenas ante a ameaça de perderem as terras de seus aldeamentos? DANTAS Mariana Albuquerque. DISPUTAS DE IDENTIDADE ÉTNICA NA EXTINÇÃO DO ALDEAMENTO DO IPANEMA - PERNAMBUCO: CAMINHOS POSSÍVEIS ENTRE ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA. 2007. Disponível em: . Acesso em: 25. Jan. 2011. As políticas indigenistas e o período regencial: a consolidação das novas tendências. A crise política vivenciada no início da década de 30 dos oitocentos terminou por resultar na abdicação de D. Pedro I e no seu retorno para Portugal. Durante toda essa década, o Brasil foi governado por sucessivos regentes e as tensões entre o governo central e as elites locais assumiram o caráter de sucessivas rebeliões contra as quais, para serem resolvidas, não foi usado apenas o poder militar. Longas negociações e muitas concessões foram feitas, levando a uma descentraliza- ção do poder e ao empoderamento das elites locais. INDICAÇÃO DE LEITURA Quer saber como era o Brasil no período em que era administrado por regentes? Este texto vai ajudá-lo: Sem autor, PERÍODO REGENCIAL (1831 - 1840), sem data. Disponível em: . Acesso em: 25. Jan. 2011. No bojo das negociações estava a questão da polí- tica indigenista. As primeiras medidas adotadas foram a proibição da guerra justa, a atribuição do status de EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 35UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA órfãos aos índios e a entrega de sua administração ao juiz de paz, autoridade nomeada pelas elites locais. Logo em seguida, o poder central deliberou pela entrega da formulação das políticas indigenistas às As- sembléias Legislativas Provinciais, que as elaborariam de acordo com o que considerassem como adequado aos interesses das elites locais. REgISTRE SUA IDEIA qual era o interesse das elites locais em terem o controle da política indigenista? A maioria das Assembléias aprofundou o projeto de conquista das terras indígenas. Propunham que novos aldeamentos temporários fossem criados nas fronteiras onde houvesse índios refratários ao contato. Esses novos espaços, segundo sugestão dos deputados, deveriam ser missionados por frades capuchinhos, considerados capazes de acelerar o processo de res- socialização, preparar os aldeados para o trabalho e usá-los para criar a infraestrutura necessária à abertura e à fiscalização de caminhos e estradas. Para os antigos aldeamentos, cujos moradores eram considerados como “misturados aos nacionais”, a política era a de extinção gradativa. Isto é, inicialmente entregaram a administração das vilas e terras dos alde- amentos às Câmaras Municipais, depois retiraram os diretores de aldeias e, finalmente, propunham que fos- sem extintos e as terras vendidas aos interessados. Usaremos, como exemplo das muitas rebeliões indígenas decorrentes desse avanço dos nacionais so- bre as terras dos aldeamentos tradicionais, as revoltas ocorridas em Pedra Branca e Caranguejo, hoje distritos do Município de Santa Teresinha. Figura 21 – Foto de quadro dos índios Apiaká do rio Arinos aldeados em Mato grosso (1827) Fonte: SURITA, Teresa. História: a Expedição Langsdorff Disponível em Acesso em 25.jan.2011. Ali viviam índios Kiriri Sapuyá ou Sabujá e alguns Tupi que para ali foram deslocados, no fim do século XVII, para garantir a conquista, a implantação da agri- cultura e da pecuária e viabilizar a circulação de tropas comerciais pelas margens do rio Paraguaçu. Figura 22 – Mapa da Bahia localizando o município de Santa Teres- inha, ao qual pertence o Distrito de Pedra Branca. Fonte: wikipedia Disponível em Acesso em 24.jan.2011. 36 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A No bojo da Guerra dos Bárbaros, em 1700, o rei de Portugal concedeu a esses índios uma sesmaria e os retirou da administração de particulares entregando-os à dos jesuítas. O aldeamento prosperou e se tornou o principal fornecedor de vinho de missa para a Diocese da Bahia, além de um centro de pecuária. Com a saída dos missionários, após o Diretório Pombalino, em 1758, e a nomeação de um diretor leigo, aumentaram as dificuldades vividas pelos aldeados. Os arrendamentos se ampliaram, particularmente nas áreas dos atuais municípios de Castro Alves, Amargosa, São Miguel das Matas e Iaçu. Figura 23 – Foto de Pintura rupestre – Morro do Chapéu – Bacia do Paraguaçu Fonte: DALTRO, Rafael Disponível em Acesso em 25.jan.2011. Porém, é na década de 30, graças à atuação da Câmara Municipal, que a invasão de terras se acentuou, fazendo com que os índios desencadeassem sucessivas rebeliões em 1834, 1839, 1846-7 e 1853. A repressão ocorreu de forma dura, e a acusação, dentre outras, era a de que os índios eram contrários à independência e desejavam o retorno do domínio colonial. Na verdade, os Kiriri Sapuyá, com essas revoltas sucessivas, apenas conseguiram protelar a extinção do aldeamento. Alguns dos sobreviventes, após longa peregrinação, terminaram por se refugiar no Posto Indígena Caramuru- Paraguaçu, na região dos municípios de Itajú do Colônia, Camacan e Pau-Brasil, onde, juntamente com outros grupos, continuam a lutar pelo direito à terra. INDICAÇÃO DE LEITURA A luta dos Kiriri foi longa e difícil. Quer saber mais sobre este assunto? Leia: REGO, André de Almeida. CABILDA DE FACINOROSOS MORADORES. UMA REFLEXÃO SOBRE O LEVANTE DOS ÍNDIOS DA PEDRA BRANCA EM 1834. Dissertação de Mestrado em História Social. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Disponível em: . Acesso em: 25. Jan.2011. Também se inicia, nesse período, a lenta retoma- da do projeto de missionamento, o que, até então, era rejeitado de forma contundente, desde o período pombalino Ainda era uma atividade incipiente, pois apenas alguns capuchinhos italianos que viviam nas capitais das províncias foram deslocados para atender aldeamentos nas fronteiras. Porém, o sucesso obtido por alguns desses missionários fez com que os gover- nos provinciais considerassem que esta era a grande e futura solução para resolver, de vez, a questão dos “índios bravios”. ?? VOCÊ SABIA? Que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foi criado para escrever a História do Brasil e pensar políticas a serem adotadas pelo governo? É também no período regencial que se estabelece o projeto de pensar e escrever uma História do Brasil não mais vinculada à História de Portugal, mas querefor- çasse ideias de sentimentos nativistas antigos e cons- tituísse, também, uma forma de projetar o futuro. ??? ??? SAIBA MAIS A nova História do Brasil deveria ser formulada, de maneira a demonstrar a vocação dos brasileiros para a liberdade e a independência. Foi feito um concurso internacional, em 1843, para que os sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB escolhessem a melhor proposta. Quem ganhou o concurso foi um naturalista prussiano chamado Friedrich Von Martius, que visitara o Brasil entre 1815 e 1817. Segundo Martius, a narrativa deveria ter por base o estudo da contribuição das chamadas três raças formadoras e seu papel ativo no desenvolvimento da população como um todo. Segundo sua visão, o branco era visto como o grande civilizador; o índio, como passível de ser regenerado, e o negro, como o grande empecilho do progresso. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 37UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA O Instituto era composto pela elite social e política do Império e alguns intelectuais e, além da escrita da História do Brasil, seus membros também deveriam debater e sugerir os caminhos a serem trilhados pela administração imperial. INDICAÇÃO DE LEITURA O Instituto Histórico e Geográfico do Brasil foi muito importante para a formulação da história do Brasil. Que tal saber mais sobre este assunto? Veja este texto: CAETANO, Dhiogo José O IHGB E A HISTÓRIA. 2010. Disponível em: . Acesso em: 25. Jan.2011. Duas questões, dentre outras, apresentavam-se re- levantes e terminaram por se entrelaçar: a necessidade de pensar em como substituir a mão-de-obra escrava de origem africana e o que fazer com a população indígena. Ante o sucesso da atuação de alguns missionários e a influência das ideias iluministas predominantes entre os intelectuais do IHGB, a proposta apresentada por este segmento foi a de capacitar os indígenas para subs- tituírem os escravos. E, lentamente, os capuchinhos italianos foram se firmando no imaginário intelectual e político como os mais capazes de viabilizar esse projeto. No entanto, a crise vivenciada no período regencial resultou na declaração da maioridade do Imperador D. Pedro II e na retomada de políticas voltadas para pro- mover a centralização do poder. Era preciso reduzir o poder das elites provinciais, para garantir a manutenção do regime imperial, o que, então, era considerado como sinônimo da sobrevivência do jovem país. Várias reformas administrativas foram estabelecidas nesse sentido e, dentre elas, a política indigenista. INDICAÇÃO DE LEITURA A decisão de elevar D. Pedro II ao trono, quando ainda era um adolescente, deveu-se à necessidade política de manter o Brasil unido. Leia mais sobre este assunto em MAIORIDADE DE D. PEDRO II. Enciclopédia Viva. Disponível em Acesso em: 25. Jan. 2011. O 2º império e a possível incorporação dos índios ao todo nacional. A nova administração imperial herdou três categorias de índios como base para elaborar sua política indige- nista: os “bravios”, os que estavam aldeados havia pou- co tempo e aqueles que viviam em aldeamentos havia muitos anos. E foi em função dessas três categorias que foi pensada a administração dessas populações. Para os que viviam em antigos aldeamentos, con- solidava-se a política da lenta extinção. Os governos provinciais e as câmaras municipais continuavam a pressionar para que eles deixassem de existir e as terras fossem leiloadas. Entretanto, o governo central optou, inicialmente, por fazer um levantamento detalhado da situação dos vários aldeamentos em todas as provín- cias, antes de adotar qualquer decisão. Os aldeados havia pouco tempo, os que viviam em aldeamentos particulares e os chamados bravios foram tratados da mesma forma. Os novos aldeamentos fo- ram definidos como temporários, o que significa que existiriam enquanto os índios não se tornassem “civi- lizados”, e sua administração, acompanhando a ótica dos governos provinciais e até mesmo de particulares, ficou a cargo dos frades capuchinhos. Retomava-se, assim, o antigo projeto de missionamento, abandonado desde o período pombalino. ?? VOCÊ SABIA? Que a quase totalidade dos capuchinhos encarregados de missionarem entre os índios eram italianos? A presença e atuação de capuchinhos, como já se observou, precederam ao ano de 1845, quando lhes foi entregue, oficialmente, a responsabilidade de missionar entre os vários grupos indígenas no Brasil. Na verdade, já a partir do século XVII, há referências à presença de capuchinhos de origem francesa atuando nos sertões baianos. Porém, os vários conflitos com os grandes criadores de gado culminaram na expulsão da Ordem. O Hospício de Nossa Senhora da Piedade, fundado em Salvador, no ano de 1679, constituiu-se, em 1712, na sede da Pri- meira Prefeitura da Ordem, quando passou da condição de ponto de transbordo dos frades italianos em suas 38 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A viagens entre a Itália e a África. Só a partir da década de 1830, esses missionários voltaram a atuar entre os indígenas no Brasil. Uma das razões da escolha desta e não de outras Ordens deveu-se a sua forma de atuação, que pode ser caracterizada como eminentemente orientada para a ação prática e para a preparação de trabalhadores. Esses frades atuavam, tradicionalmente, entre as comunidades pobres da Europa, visando promover a transformação das pessoas através de sua inserção no mercado de trabalho, o que o Governo brasileiro esperava que acontecesse com os grupos indígenas. A vinda oficial, em número significativo, de capuchi- nhos italianos, para se engajarem na política indigenista, decorreu de um longo processo de negociações entre o Governo brasileiro e a Santa Sé, iniciado em 1840 e concluído em 1845. Pela assinatura de vários decretos e após várias negociações, ficou estabelecido que o governo brasileiro arcaria com todas as despesas do traslado, o pagamento das côngruas dos frades e de todas as obras que fossem necessárias para sua atuação: construção de hospícios, igrejas, capelas e outras, definidas como extraordinárias e indispensáveis. Também cabia ao governo definir onde e entre quais grupos indígenas atuariam. Ao superior da Ordem foi preservado o direito de ser ouvido em casos de trans- ferência dos missionários, quando fosse conveniente ao serviço, ao bem-estar dos índios e/ou dos frades e a autoridade sobre as técnicas de missionamento. Finalmente, o Decreto n.º 426 de 24/7/1845 instituía as formas de atuação desses missionários e recebeu o nome de Regulamento das Missões. Era o resultado de estudos elaborados pela adminis- tração imperial e nele se definia o missionamento como um dever político, religioso, humanitário e essencial para a implantação do “progresso social’, o que só seria possível com o reconhecimento da liberdade inata dos índios e com a eliminação de todas as formas de desrespeito e as violências praticadas contra eles até então. A meta a ser alcançada era a de incluir os indí- genas à sociedade nacional, retirá-los da vida errante, incutir-lhes o gosto pelo trabalho e pela propriedade e fazê-los conhecer as comodidades da vida social, o que os faria apreciar a proteção da sociedade. INDICAÇÃO DE LEITURA Durante o 2º Império uma das preocupações centrais era a de transformar os indígenas em seres úteis ao país. Saiba mais sobre essa visão, lendo: MOREIRA, Vânia Maria Losada, OS ÍNDIOS E O IMPÉRIO: HISTÓRIA, DIREITOS SOCIAIS E AGENCIAMENTO INDÍGENA. 2009. Disponível em: Acesso em: 25. Jan. 2011. As autoridades brasileiras recomendavam que os missionários deveriam, antes de iniciar seus trabalhos, ser informados acerca de questões que desconheciam, dos hábitos dos índios e da produçãodo país e de lugares para onde se deslocariam, para que melhor pudessem definir os meios a serem adotados. Segundo o Regulamento, a administração indígena ficava dividida em dois setores administrativos: o laico, sob a responsabilidade de um diretor, e o religioso, administrado pelos missionários, que se tornaram responsáveis por atrair, aldear, converter e educar os indígenas para o trabalho. Era a retomada da política indigenista pelo poder central, ainda que com o concurso dos governos pro- vinciais, e do projeto voltado para solucionar os con- flitos entre índios e colonos e entre a Igreja e o Estado, evitando-se, dessa forma, o retardamento da expansão nacional. Assim, buscava-se, primordialmente, a forma- ção de um exército de mão- de- obra disponível para ser empregado pelo governo na implantação e ampliação da infraestrutura viária, considerada essencial à aceleração da expansão da sociedade nacional. Sua inspiração era o Diretório Pombalino, pois, como ele, o Regulamento estava voltado para promover a ade- quação sociocultural dos grupos indígenas à sociedade nacional, usando a administração da vida cotidiana dos aldeamentos como grande vetor. Os modelos dos aldeamentos deveriam aproximar-se, cada vez mais, do padrão das povoações civilizadas européias: igrejas, oficinas, cadeias públicas, livre comércio entre índios e brancos, garantindo a estes o acesso e instalação nessas povoações. Portanto, fica claro que os aldeamentos, lócus da realização dos projetos assimilacionistas, faziam parte de um projeto maior, vistos como uma fase de transição para a assimilação total dos indígenas e a incorpora- ção das terras dos aldeamentos às propriedades dos nacionais. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 39UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA ??? ??? SAIBA MAIS Um projeto assimilacionista significa a tentativa de eliminar as diferenças entre dois ou mais grupos sociais, uniformizando- os culturalmente, de modo a torná-los portadores da mesma cultura e perspectiva de vida. A realidade vivida por muitos povos, principalmente a partir do século XX, tem demonstrado que essa assimilação plena nunca aconteceu com um povo sequer. SUGESTÃO DE ATIVIDADE Levante nos noticiários (televisão e jornais) alguns países que estão enfrentando conflitos devido a terem sido compostos por povos de origens étnicas diferentes. Para tanto, os frades deveriam treinar os aldeados em artes mecânicas, de acordo com a aptidão de cada um, e em técnicas agrícolas, o que exigia a construção de oficinas nos aldeamentos. Nessa mesma linha de raciocínio, era considerado essencial promover casa- mentos intra e interétnicos, como parte da estratégia assimilacionista implantada pelo Governo. Para tornar mais atrativo o aldeamento, as festas religiosas e civis deveriam ser pomposas. A estrutura administrativa definida pelo Regulamento das Missões era a seguinte: Organograma 1 - Estrutura administrativa criada pela legislação de 1845 para viabilizar o missionamento dos indígenas Fonte: Elaboração Própria Desde os primeiros momentos de funcionamento dessa estrutura, iniciaram-se os conflitos. Os atores sociais envolvidos eram os diretores de aldeamento, os missionários, os colonos e os índios. Como cabia ao diretor parcial definir a manutenção ou não dos aldeamentos e como seriam aplicados os recursos destinados ao empreendimento, por ser ele membro da comunidade nacional em que os índios se localizavam, suas decisões contrariavam os interesses dos aldeados e não havia consenso entre as decisões tomadas pelos diretores e pelos missionários. Estes também entravam em conflito com os colonos. A razão era a recusa dos moradores locais de entregarem seus trabalhadores para viverem nos aldeamentos. Diretores, colonos e missionários também viviam em conflitos com os índios, que buscavam encontrar o “mal menos pior”, quando optavam por um dos modelos que lhes era oferecido: aldeamentos particulares ou aldeamentos missionários. Fugas, deserções e rebeliões eram constantes, assim como a circulação entre as várias instâncias administrativas, na tentativa de obterem melhores condições de vida. Conseqüentemente, o Regulamento das Missões só pode ser compreendido a partir da identificação das pre- ocupações centrais daquele período: o índio deveria ser transformado em alternativa viável para a substituição da mão-de-obra escrava africana e garantir a criação de infraestrutura que permitisse a futura instalação dos colonos europeus ou sua substituição nas áreas em que essas tentativas fracassassem. Para tanto, era essencial que todos os esforços dos administradores estivessem voltados para a desestrutu- ração das sociedades indígenas e a implantação de um novo padrão social adequado aos desejos da sociedade dominante. Daí o leque de preocupações ir do ensino do português ao de ofícios e atividades econômicas consideradas essenciais ao desenvolvimento dos ser- tões em desbravamento. O que se pretendia é que os índios abandonassem, em caráter definitivo, seu antigo sistema produtivo comunal, base de sua organização social, para se transformarem em produtores, ou me- lhor, trabalhadores que criassem as precondições para a expansão e a incorporação de novas áreas ao circuito do comércio nacional. 40 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A O FRACASSO DO REgULAMENTO DAS MISSÕES Inicialmente, apontaremos a questão da diferença entre o número de capuchinhos chegados ao Brasil e a quantidade de pedidos para sua nomeação. Os pedidos eram constantes e vinham de todas as províncias. No entanto, não havia como atender a todos, criando uma situação de desconforto para a Ordem e para o Gover- no. Esse problema se agravava, devido ao abandono da missão por alguns missionários, fosse por doença, inadaptação, loucura, velhice, fosse por morte. Muitos, inclusive, optaram por retornar à Itália. Nos casos de vacância, um capuchinho terminava por ficar responsável por missionar em vários aldea- mentos, sem que fosse considerada a distância entre os que já lhe eram atribuídos. Em alguns casos, ocorria simplesmente o abandono dos aldeados, gerando a insatisfação dos índios. Outra tentativa de solução foi a de concentrar índios de etnias diferentes num mesmo espaço, o que fez com que, na maioria das vezes, eles abandonassem o local e retornassem para os antigos aldeamentos, passando a exigir a nomeação de um novo missionário. Esse problema ainda se agravou mais, a partir do momento em que os diretores dos aldeamentos pas- saram a renunciar ao cargo, que não era remunerado. Como muitas vezes não havia interessados em substi- tuí-los, os capuchinhos começaram a acumular os dois cargos, sobrecarregando-se de atividades e reduzindo sua capacidade de atuar, particularmente quando já exerciam a administração de vários aldeamentos. ?? VOCÊ SABIA? Para compreendermos as razões do fracasso da política do Regulamento das Missões, temos que considerar, além dos constantes conflitos de opiniões acerca da administração, os obstáculos enfrentados pelos responsáveis por aplicar os novos princípios da política imperial. Alguns desses obstáculos eram insuperáveis. INDICAÇÃO DE LEITURA O papel dos capuchinhos foi muito importante para a expansão das fronteiras agrícolas. Saiba como, lendo estes textos: PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. MISSÕES E MISSIONAMENTOS CAPUCHINHOS NA BAHIA, MINAS GERAIS E ESPÍRITO SANTO (1845-1890). 2008. Disponível em: . Acesso em: 14.fev.2011. SOUZA, Telma Miriam Moreira de. ENTRE A CRUZ E O TRABALHO: EXPLORAÇÃO DA MÃO-DE-OBRA INDÍGENA NO SUL DA BAHIA (1845–1875). 2007. Disponível em Acesso em: 14. Fev. 2011. Outra tarefa que desviava os missionáriosde suas atividades era administrar os índios encarregados de construir obras de infraestrutura nas proximidades dos aldeamentos: abertura, fiscalização, conserto e policia- mento de estradas, construção de pontes, derrubada das matas e transformação dos aldeamentos em ponto de apoio para os tropeiros que passaram a circular pelos novos caminhos. Essa questão se agravava com o fato de que, apesar de acumularem cargos e terem que percorrer grandes distâncias, suas côngruas, os recursos para desloca- mentos e seus proventos não eram aumentados. Da mesma forma, as prometidas obras a serem realizadas nos aldeamentos não ocorriam. As reclamações eram constantes e as queixas de não poderem atender de forma adequada aos catecúmenos sempre estavam presentes nos ofícios enviados ao Diretor Geral dos Índios e ao Superior da Ordem. Um dos casos exemplares desse quadro foi a administração dos aldeamentos do rio Pardo. Ali, os capuchinhos missionaram nos aldeamentos da Barra do Catolé, Barra do Salgado (Itapé), Lagoa do Rio Pardo (foz do rio Jibóia), Santo Antônio da Cruz (Inhobim), São Pedro de Alcântara (Ferradas), do Cachimbo (Itambé), Catolé (Itapetinga) e Salto do Rio Pardo (Angelim). Durante sua atuação, os missionários, por várias razões, abandonaram ou foram transferidos, fazendo com que, na década de 60, todos os aldeamentos ficas- sem sob a responsabilidade de Frei de Luís de Grava, que ainda acumulava os cargos de Diretor da Colônia Nacional, no rio Colônia, e de pároco em Santo Antônio do Cachimbo (Itambé). EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 41UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA REgISTRE SUA IDEIA Após ler sobre o assunto, avalie por que era difícil resolver os problemas enfrentados pelos missionários capuchinhos. Uma das soluções pensadas foi a de criar aldeamen- tos centrais, para onde seriam levados missionários e índios transferidos dos vários espaços em que viviam. Esse projeto fracassou rapidamente, sendo que o que teve uma vida mais longa foi o de Nossa Senhora dos Anjos de Itambacuri (atual cidade de Teófilo Ottoni, em Minas Gerais), que conseguiu sobreviver a uma grande revolta indígena, mas não ao assédio dos nacionais e colonos estrangeiros da região do Mucuri, inclusive para se apropriarem da escola indígena que ali existia. Outra dificuldade vivida pelos frades era o conflito constante com os colonos e as Câmaras Municipais. Ambos os segmentos estavam sempre insatisfeitos com a atuação dos missionários, que lhes reduziam as possibilidades de controlar o trabalho dos aldeados e se recusavam a transferir aldeamentos para os locais considerados mais adequados aos seus interesses. Também o isolamento espacial vivido pelos ca- puchinhos que atuavam em aldeamentos criava um conjunto de percalços: não podiam trocar experiências com outros missionários e nem encontravam apoio dos companheiros nos momentos de dificuldades e, muito menos, nas autoridades locais. Essa situação os levava, lentamente, a abandonarem a sua missão com os índios e se envolverem com os nacionais. Delineava-se, assim, a “morte anunciada” da política estabelecida pelo Regulamento das Missões. Duas novas propostas iriam acelerar esse processo: a pro- mulgação da Lei de Terras, para regularizar a questão fundiária, e a crescente opção pela vinda de imigrantes estrangeiros. Figura 24 – Foto de gravura de índios Botocudos – Mutum – Espírito Santo – Século XIX Fonte: BISPO, A. A. Nomes da história intercultural em contextos euro-brasileiros. Therese von Bayern (1850-1925) - Teresa da Bavi- era s/d Disponível em > Acesso em 25.jan.2011. A LEI DE TERRAS, A OPÇÃO PELOS IMIgRANTES E O ABANDONO DOS íNDIOS Para agilizar as medidas que viriam a ser tomadas com relação às terras indígenas, o governo imperial determinou aos Diretores Gerais das Províncias que fizessem o levantamento dos antigos aldeamentos, que deveriam ser extintos e ter suas terras leiloadas, para legalizar a ocupação daquelas que estavam em mãos de arrendatários. ?? VOCÊ SABIA? A partir de 1850, os índios deixaram de ser uma opção prioritária para a solução do problema de mão- de- obra no Brasil e passaram a ser vistos como um empecilho à modernização do país. A partir de então, a opção deixa de ser a de preparar índios para o trabalho, e os recursos antes aplicados nesse projeto foram deslocados para promover a imi- gração e criação de colônias estrangeiras, inviabilizando a continuidade do projeto missionário como havia sido pensado em 1845. 42 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A Os índios passam a ser vistos como incapazes de promover o desenvolvimento da agricultura, porque, segundo a visão dominante, ou viviam errantes pelas matas ou estacionados em aldeias humildes, manten- do relações temporárias com os fazendeiros vizinhos. Esses povos também eram acusados de renegarem o trabalho sistemático e não compreenderem as respon- sabilidades da vida social, não experimentando suas necessidades, o que era atribuído à sua natureza moral. Considerava-se que, apesar dos investimentos realiza- dos pelo governo, os resultados eram muito parcos. A sugestão era a de engajar os índios no Exército, Armada ou Marinha, para atuarem na defesa do país. INDICAÇÃO DE LEITURA Essa ideia de usar os índios como defensores das fronteiras brasileiras era muito forte nas regiões Norte e Centro-Oeste, áreas de ocupação nacional rarefeita. Aprofunde essa reflexão, lendo: LOPES, Marta Maria. OS GRUPOS INDÍGENAS NA FRONTEIRA OESTE DE MATO GROSSO E SUAS RELAÇÕES COM OS MILITARES NO SÉCULO XIX, 2007. Disponível em: . Acesso em: 26. Jan.2011. Na verdade, a crescente opção pelo imigrante es- trangeiro estava associada a uma nova forma de pensar o país: a necessidade de modernizá-lo e branqueá-lo. Neste novo modelo, cada vez mais, o trabalhador indí- gena foi sendo descartado, e os interesses das elites rurais se voltaram para a tomada das terras dos alde- amentos pelas vias legais ou pela força. Era o reflexo do crescimento das atividades agrário-exportadoras como um todo, do fortalecimento do mercado consu- midor interno, da aplicação de capitais em atividades produtivas e da expansão das relações de trabalho assalariadas. Relacione a promulgação da Lei de Terras de 1850 e a extinção dos aldeamentos. Novas deliberações governamentais foram tomadas a partir da década de 50, sendo voltadas para a mo- dernização do país e para atender às novas elites do Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente, onde se concentrava o nascente pólo cafeeiro. A Lei de Terras eliminava o sistema de sesmarias e determinava que, a partir de então, a propriedade das terras só poderia ser obtida através da compra, medição e registro e que todos os que quisessem ser proprietários e que não cumprissem esse ritual teriam suas terras consideradas como devolutas e colocadas à venda pelo governo. No caso dos aldeamentos indígenas, havia uma possibilidade de solução para o problema. A primeira era que os diretores gerais dos índios, indicados pelos presidentes das províncias, determinassem a medição, demarcação e registro das antigas sesmarias, conce- didas no período colonial, pois era difícil, quando não impossível, encontrar os documentos comprobatórios da doação ou o registro de seus limites. Porém, nada foi feito nesse sentido e as terras indígenas passaram a ser vistas como devolutas. INDICAÇÃO DE LEITURA Finalmente, foi criada a legislação que permitia às elites tomarem as terras indígenas. Saiba como isso foi possível, lendo: SILVA, Isabelle Braz Peixoto da O RELATÓRIO PROVINCIAL DE 1863 E A EXPROPRIAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 2007. Disponível em: . Acesso em 26. Jan.2011. Os aldeamentos criados mais recentemente tinham caráter temporário,por isso, não havia sido efetivada a doação das terras e, menos ainda, a demarcação e registro. Logo, eram devolutas, ocupadas temporaria- mente, até os indígenas serem considerados “civili- zados”, quando os aldeamentos seriam extintos e as terras leiloadas. Para efetivar com mais rapidez essas medidas, a administração da política indigenista passou a ser res- ponsabilidade do Ministério da Agricultura. Esse órgão, após consultar os governos provinciais sobre qual a situação de cada aldeamento existente nas diversas províncias, iniciou seus trabalhos de extinção e venda de alguns aldeamentos, os mais antigos, sobre os quais se informava que os indígenas estavam “misturados” aos nacionais. Depois de serem declarados extintos, deveriam ser recolhidos os livros e papéis, coligi-los, prestar os devidos esclarecimentos e enviá-los ao Governo Impe- rial. Os dados considerados mais importantes eram os relativos ao patrimônio, edifícios existentes e objetos de valor que pudessem ser arrecadados e devolvidos à Fazenda Pública para serem leiloados. Essa atitude do Governo Imperial refletia seu cres- cente desinteresse, a partir da segunda metade da déca- da de 70, em continuar a administrar a questão indígena. Como conseqüência, iniciou-se a lenta transferência de poder às Câmaras Municipais, para adotarem as me- EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 43UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA didas que fossem de interesse das elites econômicas daqueles locais. Essa postura foi claramente expressa no Decreto n° 2672 de 1875, que autorizava a alienação de terras dos aldeamentos extintos e sua venda pelo preço de mercado aos foreiros ou a outros, como fosse mais vantajoso para a Fazenda Nacional. Os lotes reservados para doação aos descenden- tes dos índios variavam de acordo com os interesses locais. Na Bahia, por exemplo, foram designados, em 1875, trinta hectares para os chefes de família e treze para os solteiros. Como a despesa com esses procedi- mentos era alta, os trabalhos foram interrompidos em 1878, devido ao desinteresse do Governo Imperial no assunto e à falta de recursos até para o pagamento do engenheiro e dos trabalhadores. Com a desativação das Comissões de Discriminação dos Aldeamentos Extintos, o Governo Provincial assu- miu o controle do processo de venda dos aldeamentos do norte da Bahia, sob a alegação de que ali não mais havia índios, apenas nacionais. REgISTRE SUA IDEIA O qUE VOCÊ PENSA SOBRE ESSA AFIRMATIVA? A SUBSTITUIÇÃO DE íNDIOS POR IMIgRANTES ES- TRANgEIROS PARA TRABALHAREM NA LAVOURA TEVE RESULTADOS POSITIVOS PARA O BRASIL. Fortalecia-se a crença de que os índios eram um estorvo a ser eliminado para poder ocorrer o progresso sonhado. Além dessas considerações, estabelecia-se a visão de que esses povos compunham uma raça que tendia a desaparecer, sendo inútil realizarem-se investimentos. Deveriam ser deixados à própria sorte e esperar que o destino se cumprisse. O país deveria concentrar esforços e recursos na vinda de imigrantes europeus, única forma de garantir a melhoria da raça mestiça e da economia nacional. As províncias, liberadas pelo governo central, a partir da década de 70, criaram inúmeros municípios, inclu- sive usando as terras dos antigos aldeamentos como base territorial. Da mesma forma, os investimentos na abertura de novas estradas carroçáveis e de ferro abriram novas fronteiras, sem respeitar as terras dos aldeados e nem os territórios de índios que ainda viviam nas matas. Iniciou-se, então, o processo sistemático de extinção dos aldeamentos: os primeiros foram os de Pedra Bran- ca, Aricobé, na comarca de S. Francisco; São Miguel, em Camamu; Santa Cruz, em Porto Seguro; Peruípe em Caravelas; Cachimbo e Barra do Salgado, em Ilhéus, Bom Jesus da Glória e o de São Fidelis. Outros, simplesmente, foram abandonados e tiveram suas terras vendidas pelas Câmaras Municipais, que sequer se preocuparam em cumprir a lei que determi- nava que fossem reservados lotes para uso dos índios e seus descendentes. A eles restava apenas a inserção no mercado de trabalho ou a participação como pequenos produtores nas faixas de terra que conseguiam manter sob seu domínio. Esse abandono, lento e gradual, calcado nos ar- gumentos de que os moradores dos aldeamentos estavam “confundidos com a população em geral” ou eram descendentes ou se faziam passar por índios, não significava, no entanto, que fossem considerados como nacionais. Era-lhes negado um conjunto de direitos: o de manter as terras, a condição de cidadão e qualquer forma de assistência. Boa parte deles optou por migrar para as cidades e vilas ou se refugiaram nas matas, situação que não se alterou com a Proclamação da República. CAPíTULO VII: AS PERPLEXIDADES DA REPÚBLICA Ao ser proclamada a República, a questão indíge- na, de imediato, não era considerada relevante nem mereceu qualquer tipo de referência. Nem mesmo na Constituição de 1891, que apenas referendou a política estabelecida no fim do século anterior. A realidade indígena, diferentemente de até então, considerava apenas a existência dos índios ditos selvagens e que viviam nas matas. Todos os demais povos indígenas do Brasil, e que se reconheciam e eram reconhecidos como índios e viviam em aldeamentos seculares, foram, simplesmente, ignorados. Era como se, ao se extinguir a estrutura administrativa dos alde- amentos, seus moradores também fossem extintos por decreto, deixassem de existir e de se pensarem como índios e de serem discriminados e espoliados de suas terras. A República simplesmente partiu do princípio de que essas pessoas haviam-se tornado brasileiros comuns, ignorando-lhes suas especificidades sócio- culturais e sua consciência étnica particular. 44 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A ?? VOCÊ SABIA? O governo brasileiro unicamente se sentiu pressionado a promover uma política indigenista, quando os conflitos se ampliaram nas áreas de fronteira interna, onde havia expansão agrícola e pecuária. A preocupação com os índios “selvagens” também só ocorreu alguns anos depois, no início do século XX. As razões resultaram da decisão de expansão das fronteiras agrícolas – café em São Paulo, borracha na Amazônia e cacau na Bahia - do sistema de comuni- cações, particularmente as redes de telégrafo – Centro Oeste e Norte do país - e ferroviária – São Paulo, Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia - e dos conflitos entre os índios Xokleng e Kainkang e colonos estrangeiros nos estados do Paraná e Santa Catarina. Esses índios eram vistos, a partir de então, como inimigos e entraves que precisavam ser eliminados ou controlados. A revolta dos indígenas, em 1893, que viviam em Itambacuri com os missionários capuchinhos, no norte de Minas Gerais, acirrou ainda mais os ânimos contra os índios. INDICAÇÃO DE LEITURA OS CONFLITOS ENTRE ÍNDIOS E CAPUCHINHOS FORAM SE TORNANDO CADA VEZ MAIS INTENSOS. LEIA MAIS SOBRE ISSO, ACESSANDO AS SEGUINTES INDICAÇÕES: SILVEIRA, Suely Itamar Santiago. OS BORUN DO WATU, s/d. Disponível em: . Acesso em: 26. Jan.2011. WIIK, Flavio Braune. XOKLENG. 1999. Disponível em: . Acesso em: 26. Jan.2011. MATTOS, Izabel Missagia de. DOMINGOS RAMOS PACÓ, PROFESSOR BILÍNGÜE E INTÉRPRETE DO ALDEAMENTO MISSIONÁRIO DO ITAMBACURI, MG. Disponível em Acesso em: 26. Jan. 2011. Figura 25 – Foto de índios Krenak do Rio Doce em Minas gerais. 1926. Fonte: SILVEIRA, Itamar Santiago. s/d Disponível em Acesso em 26.jan.2011. Figura 26 – Foto do Posto Indígena dos Kaingang no Paraná sob a administração do SPI. Fonte: MARqUES, Fernanda. Estado nutricio- nal de crianças indígenas reflete condições desfavoráveis Disponívelem: Acesso em 26.jan.2011. Figura 27 – Foto da Aldeia Maxakali do Pradinho – Minas gerais Fonte: FERREIRA, Mário. Disponível em Acesso em 26.jan.2011. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 45UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA A discussão sobre a questão indígena se fazia entre aqueles que tentavam explicar as reações indígenas e os que defendiam sua eliminação em nome do progres- so e modernização do país. Pelos jornais, o tom dos debates se tornou cada vez mais radical. Enquanto os positivistas acusavam a equivocada política indigenista aplicada até então como responsável pela reação dos índios, outros afirmavam que a natureza dos índios era selvagem e irredutível e não adiantava realizar qualquer tipo de investimento. E um terceiro grupo sugeria que os nativos fossem deslocados para as fronteiras mais distantes, onde não impedissem a expansão nacional. REgISTRE SUA IDEIA qual das três propostas você considera a mais adequada para resolver o problema indígena no Brasil. Entre aqueles que defendiam a necessidade moral de o Estado estabelecer uma política indigenista estavam pessoas de grande relevo, como o Monsenhor Claro Monteiro e os intelectuais Teodoro Sampaio, Couto de Magalhães e João Mendes Júnior, dentre outros. Diver- giam, apenas, quanto à continuidade do missionamento como forma de atuação do Estado junto aos índios. Essas pessoas fundaram a Sociedade de Etnografia e Civilização dos Índios. Em reunião realizada em São Paulo, em 1901, as críticas ao abandono dos índios variaram desde a falta de formação de coleções etno- gráficas, a ausência de leis até os resultados negativos da não atuação junto aos povos das matas. A sociedade propunha-se a resolver a questão, conquistando novas terras e milhares de braços já adaptados ao clima para atuarem na pecuária e no extrativismo. ??? ??? SAIBA MAIS O capitalismo no Brasil, no início do século XX, calcava-se na ideia de expansão continuada da conquista e exploração de novas terras. Não havia grandes preocupações em usar tecnologia moderna para recuperar terras usadas. Por essa razão, eram constantes os conflitos com os índios, que se recusavam a entregar suas terras para os não índios ocuparem. O avanço do capitalismo no Brasil acirrou os deba- tes entre aqueles que pensavam a questão indígena, obrigando o Estado a formular uma política para esses povos. As acusações contra a violência praticada contra eles e a falta de qualquer forma jurídica de proteção de suas vidas e bens ganhavam dimensões nacionais através da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Em contrapartida, os governos dos estados e as elites oligárquicas locais agiam de forma a sa- tisfazer seus projetos, inclusive contratando mateiros para “limparem” os terrenos que queriam incorporar a suas propriedades. Uma polêmica de características mais dramáticas e bem conhecida foi estabelecida entre o Diretor do Museu Paulista, Herman von Hering, e a professora Leolinda Daltro. O primeiro, ao defender o direito dos colonos à vida, chegou a afirmar a necessidade de ser promovido o extermínio dos índios. Já a professora, uma imagem feminina ímpar para o início do século XX, após viajar por 4 anos por várias aldeias indígenas no Centro-Oeste do país, lamentava o estado de pobreza e subserviência em que viviam as tribos indígenas que visitara. Seu projeto era o de oferecer educação laica para promover a integração dos índios à sociedade nacional, garantindo-lhes condições de vida adequadas e respeito aos seus direitos. Leolinda recebeu o apoio de pequena parcela da classe média paulista e o total silêncio do Estado. Nem mesmo quando compareceu, em 1906, acompanhada de índios Xerente, Guarani e Krahô, ao Congresso Pan Americano, realizado no Rio de Janeiro, conseguiu demover o governo federal a pensar no assunto. Em 1908, Daltro foi a porta voz dos índios Guarani de São Paulo, ao denunciar o massacre que haviam enfrentado em Ourinhos, no sul daquele estado, e, graças a apoio recebido de simpatizantes, fundou a Associação de Proteção e Auxílio aos Silvícolas do Brasil. 46 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A INDICAÇÃO DE LEITURA OS KRAHÔ FORMAM UM POVO MUITO INTERESSANTE. LEIA SOBRE ELES E SUAS LUTAS, ACESSANDO: MELATTI, Julio Cezar. KRAHÔ. 1989. Disponível em: . Acesso em: 26. Jan.2011. Outros intelectuais, como Horta Barbosa e Campos Novais vieram a público para dar seu apoio à causa defendida por Daltro e criticar a postura de von Hering e do governo. Como conseqüência dessas constantes críticas e dos conflitos que se ampliavam, o Estado brasileiro deliberou, finalmente, em 1910, criar uma política e um órgão oficial para tratar da questão. SUGESTÃO DE ATIVIDADE Pesquise na internet a trajetória de Leolinda Daltro e faça uma pequena biografia dessa ativista social. O SPI E SUA TRAJETÓRIA Assim, surgiu o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) em 1910. Sua primeira frente de atuação foi a implanta- ção da Linha Telegráfica ligando o Rio de Janeiro aos estados do Centro Oeste. Ali já atuava um capitão do Exército, Cândido Mariano da Silva Rondon, descenden- te de índios, conhecedor da região e de vários grupos indígenas e fiel seguidor dos princípios positivistas que orientavam o ordenamento do Estado Republicano recém-criado. Além dos lemas positivistas, como Ordem e Pro- gresso, Rondon notabilizou-se por uma expressão que passou a ser o símbolo de sua atuação, dos órgãos in- digenistas e dos defensores da causa indígena: “Morrer, se preciso for; matar nunca.” INDICAÇÃO DE LEITURA O POSITIVISMO FOI UMA FILOSOFIA MUITO IMPORTANTE PARA A FORMAÇÃO DO BRASIL REPUBLICANO. CONFIRME ESSA AFIRMATIVA LENDO ESTES TEXTOS: s/autor. AUGUSTE COMTE. 2005. Disponível em: . Acesso em: 26. Jan.2011. Escola de Sargentos de Armas – Comunicação. MARECHAL CÂNDIDO MARIANO DA SILVA RONDON, PATRONO DAS COMUNICAÇÕES. Disponível em: . Acesso em: 26. Jan.2011. QUAL A INFLUÊNCIA DO POSITIVISMO NO BRASIL?, 2007. Disponível em: . Acesso em: 26. Jan.2001 Figura 28 – Foto do Povo Krahô Fonte: CARELLI, Vincent. Krahô Disponível em Acesso em 26.jan.2011. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 47UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA Figura 29 – Foto do Capitão Cândido Mariano da Silva Rondon no início dos trabalhos no SPILTN. Fonte: Assembléia Legislativa do Mato grosso. Disponível em Acesso em 26.jan.2011. Rondon foi nomeado chefe da Comissão das Linhas Telegráficas de Mato Grosso e Amazonas e continuou sua atuação. Em 1910, quando foi criado o SPILTN, graças a sua experiência e conhecimento dessa área de fronteira, e por ter conseguido estabelecer relações pacíficas com os povos indígenas, foi escolhido para dirigir o órgão indigenista. Figura 30 – Foto do. do Marechal Rondon Fonte: Escola de Sargentos de Armas – Comunicação. Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, Patrono das comunicações. Disponível em 26.jan.2011. Figura 31 – Foto da Comissão Rondon levantando os postes do telé- grafo em Mato grosso Fonte: VIETTA, Katya A atuação da Comissão Rondon e do SPI em terras sul-mato-grossenses. Disponível em Acesso em 26.jan.2011. Figura 32 – Mapa identificando a linha de telégrafo construída por Rondon Fonte: National geographic Brasil Disponível eminteratividades/mapas/2009/mapa-marechal-rondon.shtml> Acesso em 26.jan.2011. INDICAÇÃO DE LEITURA As primeiras ações do SPI ocorreram na região centro-oeste. Veja por que, lendo: VIETTA, Katya A ATUAÇÃO DA COMISSÃO RONDON E DO SPI EM TERRAS SUL-MATO-GROSSENSES. 2011. Disponível em: Acesso em: 26. Jan. 2011. 48 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A ??? ??? SAIBA MAIS Os positivistas também eram evolucionistas e, por isso, viam os índios como seres que deviam ser levados a se modificar e se tornarem iguais aos civilizados. Os fundamentos do SPILTN eram positivistas e, portanto, evolucionistas. Seus seguidores acreditavam no apostolado leigo que levaria os povos indígenas ao mais alto grau de evolução humana. Acreditavam, como bons evolucionistas, no princípio de que todos os povos tinham potencial para evoluir e, portanto, era viável adotar uma política indigenista voltada para promover a civilização dos índios. Daí porque o órgão previa a localização de trabalha- dores nacionais dentro ou nas proximidades das áreas indígenas, para que estes atuassem como agentes transformadores sociais, aceleradores da evolução e introdutores das ideias capitalistas. Era também uma forma de, ao transferir trabalhadores rurais para as fronteiras desocupadas, reduzir a pressão social em áreas economicamente decadentes ou que sofriam o impacto de secas prolongadas, particularmente no Nordeste. Figura 33 – Mapa localizando od Parque Indígena do Xingu Fonte: Klima Naturali Disponível em Acesso em 26.jan.2011. Essa medida terminou por criar problemas insolúveis na disputa de terras, pois grande parte desses traba- lhadores nacionais terminou por se tornar arrendatário das terras indígenas. O problema assumiu proporções mais graves, quando o SPI se enfraqueceu e seus fun- cionários se envolveram com a corrupção. O resultado é que, em muitos casos, como os dos Pataxó Hãhãhãe da Bahia, os Krenak e Maxakali de Minas Gerais, todas as terras dos Postos Indígenas foram arrendadas aos nacionais, que criaram vários mecanismos para expulsar os índios e se recusaram a pagar as taxas de arrendamento, levando à falência o sistema administrativo local e do órgão, e ao abandono dos indígenas que ali viviam. A partir da década de 70, esses arrendatários pres- sionaram os governos dos estados para distribuírem títulos de proprietários aos que ocupavam as terras dos antigos Postos Indígenas, gerando conflitos e processo jurídicos demorados. Os casos de Minas Gerais já foram resolvidos e os Krenak e Maxakali tiveram assegurada a reintegração da posse das terras demarcadas. Já o processo Pataxó Hãhãhãe se encontra no Supremo Tribunal Federal desde a década de 80 e ainda não foi concluído, apesar de a causa ser exatamente igual a dos índios de Minas Gerais. REgISTRE SUA IDEIA Como você vê a demora nos julgamentos dos pro- cessos relativos às disputas das terras indígenas. Outra crença que teve profundos reflexos nos pro- blemas provocados pela forma de administrar a questão indígena também se relacionava diretamente com as ideias evolucionistas: a de que num sistema compe- titivo, sobreviveriam os mais aptos. E, segundo essa forma de pensar, os índios não eram os mais aptos e não sobreviveriam física ou culturalmente ao avanço da civilização. Logo, as políticas estabelecidas tinham caráter transitório, o que se refletiu em duas decisões que geraram dificuldades para os povos indígenas: demarcações de pequenos lotes de terra e a recusa a vacinar os aldeados. INDICAÇÃO DE LEITURA As ideias evolucionistas de que sobreviveriam apenas os mais aptos tiveram forte impacto sobre a saúde e o índice de sobrevivência das populações indígenas. Saiba por que lendo: OLIVEIRA, Priscila Enrique de. VACINAÇÃO GRÁTIS CONTRA FEBRE AMARELA E TUBERCULOSE. EXTRAÇÃO DE DENTES GRÁTIS. CURATIVO E REMÉDIO GRÁTIS. TUDO POR CONTA DO GOVERNO!!! 2008. Disponível em: . Acesso em: 26. Jan.2011. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 49UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA A grande maioria das terras foi demarcada medindo 2 mil hectares, não sendo suficientes para acomodar uma população que, ao invés de desaparecer, se expan- diu demograficamente e hoje não possui terra suficiente para se sustentar. Este problema também é de difícil solução, pois há fortes resistências do Judiciário aos pedidos de ampliação das pequenas áreas demarcadas pelo SPI. Quanto à recusa de aplicação de vacinas, os efeitos foram bem mais impactantes. Muitos povos indígenas deixaram de existir, pois os índices de mortalidade foram elevados, reforçando a crença de que eles não eram aptos a sobreviver e que, assim, a história seguia o seu curso normal e previsível. ??? ??? SAIBA MAIS Evoluir, para os positivistas do SPI, era transformar os índios em trabalhadores agrícolas ou mecânicos e em pequenos produtores capazes de se autossustentarem. Isso indica que a assistência que lhes era garantida seria temporária e duraria até eles serem capazes de se inserir no mercado de trabalho ou produzir para os mercados regionais e nacionais. A meta de transformar os indígenas e os Postos Indígenas em entidades autônomas e autossuficientes economicamente não foi atingida por várias razões: o arrendamento das terras pelos trabalhadores nacionais, a incapacidade de alguns desses postos produzirem em quantidade suficiente e produtos de interesse do mercado, conflitos e corrupção de funcionários. A política adotada pelo Governo Federal para tentar encontrar uma solução foi a de criar um mecanismo denominado Renda Indígena, que permitia a transferên- cia de recursos de um posto produtivo para outros que não conseguiam se sustentar. Assim, os indígenas que viviam nas áreas mais produtivas terminaram por se desinteressar por produzir mais do que o necessário para sua subsistência, pois não viam retorno para seus esforços. Essas contradições se acentuaram à medida que ocorria a ocupação econômica das fronteiras pelos pequenos produtores, por latifundiários e grandes empresas nacionais e internacionais. O Estado vivia o dilema de optar entre as políticas preservacionistas para os povos indígenas e aquelas voltadas para incre- mentar a conquista de novos espaços e riquezas que poderiam vir a representar um salto qualitativo na vida dos nacionais e na economia do país. ?? VOCÊ SABIA? O SPI não foi pensado para reconhecer a existência e nem os direitos dos povos indígenas que viviam em contato com os não índios há muitos anos. Outra questão que provocou, e ainda provoca, sérios desgastes na política indigenista refere-se á omissão do SPI com relação aos antigos aldeados dos períodos colonial e imperial. A extinção dos aldeamentos, no final do século XIX, partia do falso pressuposto de que esses índios haviam se diluído física e culturalmente na sociedade nacional. Essa concepção foi herdada do período imperial pela República. Tanto assim que a criação do SPI não levou em consideração essa população. O órgão foi pensado para resolver conflitos nas fronteiras, atrair, pacificar, aldear e educar. Não havia espaço para esses outros povos, porque, simplesmente, eles não eram mais con- siderados como indígenas e, portanto, não mereciam qualquer assistência por parte do Estado. O drama vivido por esses grupos – espoliação de suas terras e preconceito pelo fato de serem índios – não chegou aos ouvidos da nação até o fim da década de 40, quando os Fulin-ô de Pernambuco e os Kiriri da Bahia, com o apoio da Igreja Católica, se tornaram vi- síveis e, afirmando suas peculiaridades sócio-culturais e históricas, passaram a pressionar o SPI para serem reconhecidos e reaverem seus direitos à terra e à as- sistência. Alguns grupos, como os Tupinambá,de Olivença, na Bahia, chegaram a organizar alianças com partidos políticos, como o Partido Comunista Brasileiro, para tentar reaver as terras do seu aldeamento, ante a indi- ferença do SPI. INDICAÇÃO DE LEITURA A participação de índios em projetos políticos mais amplos é importante para compreendermos suas possibilidades de articulação política. Veja este exemplo: PARAISO, Maria Hilda B. MARCELLINO JOSÉ ALVES: DE ÍNDIO A CABOCLO, DE “LAMPIÃO MIRIM” A COMUNISTA, UMA TRAJETÓRIA DE RESISTÊNCIA E LUTA NO SUL DA BAHIA. 2009. Disponível em: . Acesso em: 26. Jan. 2011. O mesmo caminho foi trilhado pelos Pataxó de Porto Seguro, em 1951, num episódio que ficou conhecido 50 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A como o Fogo de 51, devido a sua aldeia ter sido quei- mada por policiais e moradores locais. INDICAÇÃO DE LEITURA Outras experiências políticas que resultaram em sofrimento para povos indígenas estão narradas nos textos abaixo: HISTÓRIA DA NAÇÃO PATAXÓ. Disponível em: Acesso em: 26. Jan. 2011. Em Pernambuco, os Xucuru tentaram essa solução, sendo também penalizados como os demais. Na Bahia, também os Pataxó Hãhãhãe se viram envolvidos em conflitos desse partido com o Estado Nacional, conflitos estes aproveitados pelos arrendatá- rios do Posto Indígena e por fazendeiros vizinhos para obrigar a redução da área demarcada para os Postos Indígenas Caramuru- Paraguaçu. INDICAÇÃO DE LEITURA A área indígena do Caramuru-Paraguaçu é uma das mais conturbadas do sul da Bahia. Veja por que, lendo:** CARVALHO, Maria Rosário Pataxó Hã-Hã-Hãe. 1998. Disponível em: Acesso em: 26. Jan. 2011. Essas reivindicações vão se tornar mais constantes e eficientes, a partir da década de 70, quando surgem as organizações indígenas e ocorre o apoio à causa indígena pelas universidades, particularmente nos De- partamentos de Antropologia, como veremos ao tratar da trajetória da Funai e dos movimentos indígenas. ??? ??? SAIBA MAIS O SPI foi organizado de uma forma complexa e seguindo padrões administrativos claros. Havia uma Diretoria Geral e 2 subdiretorias, situadas na capital da República, 13 Inspetorias – Amazonas, Pará, Maranhão, Bahia, Espírito Santo, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Mato Grosso e Acre – e várias povoações indígenas, depois conhecidas por Postos Indígenas, onde atuavam diretor, escrevente e um ajudante. A esse grupo foram adicionados, posteriormente, os cargos de professora e de enfermeira, geralmente ocupados pelas esposas dos chefes de posto. INDICAÇÃO DE LEITURA Uma das áreas de atuação em que o SPI se notabilizou foi a de atrair grupos indígenas e forçá-los a serem administrados pelo governo federal. Vejas quais as estratégias usadas para convencer os índios a aceitarem as condições que lhes eram impostas, lendo este texto: ARRUDA, Lucybeth Camargo de. OS BRINDES E A ATRAÇÃO DE ÍNDIOS NO POSTO FRATERNIDADE NA RAIA DA FRONTEIRA OESTE PELO SPI*, 2005. Disponível em: . Acesso em: 26. Jan.2011. Em 1918 o SPI perdeu seu poder administrativo so- bre a localização dos trabalhadores nacionais. Os dois segmentos atendidos passaram a ser responsabilidade de órgãos diferentes, o que terminou por interromper soluções negociadas e acirrar os ânimos e as contradi- ções dentro do Estado, levando ao questionamento dos supostos prejuízos provocados pela política protecionis- ta do SPI. Em 1928, o SPI assumiu a tutela orfanológica dos indígenas, sendo concedida a administração dos bens e riquezas existentes nos territórios indígenas aos diretores dos aldeamentos. Ainda que nem todos os grupos compreendessem os efeitos dessa decisão, aqueles com períodos mais longos de contato nacional buscaram demonstrar sua insatisfação com os poderes concedidos aos diretores, sendo comum adotarem várias formas de resistência e de acomodação às novas estruturas. Negociações e concessões eram constantes, o que terminava por gerar ajustes particulares a cada situação e às reivindicações dos aldeados. Os índios passaram a ser classificados em quatro categorias: nômades, arranchados ou aldeados, índios que viviam em povoações indígenas e os misturados com a população nacional. Uma clara referência ao ideário evolucionista e ao projeto integracionista que ordenava as políticas do órgão e ao caráter paterna- lista autoritário das relações estabelecidas nos postos indígenas, contra as quais os índios protestavam ou buscavam negociações. Os diretores, depois chefes de postos, imiscuíam-se nas atividades cotidianas dos administrados, fossem elas de caráter privado ou produtivo. Eram eles que definiam onde, quando e o quais atividades econômicas os índios podiam realizar. Da mesma forma, podiam conceder arrendamentos em áreas dentro das reservas, fossem as terras ocupadas ou não por famílias indígena ou, simplesmente, ignorar quando as posses dessas EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 51UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA famílias eram tomadas à força ou mesmo quando eram praticados atos de violência contra elas. Seu poder econômico e de repressão os tornava onipresentes e com poder para castigar ou premiar aqueles que acatassem ou não suas determinações. A aplicação de castigos físicos e a decretação de prisão dos que contestavam seus atos tornavam os chefes de posto pessoas impositivas e, muitas vezes, arro- gantes e prepotentes que definiam, na prática, quem seria agraciado ou não com os recursos destinados à assistência da população aldeada. ?? VOCÊ SABIA? A partir de 1934, as constituições brasileiras reconheceram o direito dos povos indígenas às terras que ocupavam e haviam recebido por doação. A nova Constituição de 1934 reconheceu o direito dos indígenas às terras que ocupavam, criando uma nova zona de atrito com os estados federativos que possuíam as terras indígenas definidas como devolutas e que, até então, se mantinham como senhores dessas terras. Também consagrou o princípio integracionista de promover a incorporação dos indígenas ao todo nacional, devendo sua atuação se restringir ás áreas ocupadas pelos índios. Os núcleos administrativos do órgão passaram a ser, também, segundo a perspectiva evolucionista e a integracionista, postos de atração e vigilância; assistên- cia, nacionalização e educação, sendo estes, em 1939, atrelados aos projetos de colonização. Para auxiliar e fiscalizar o SPI, foi criado o Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI). Com o passar dos anos, os dois órgãos entraram em rota de colisão. As discordâncias quanto à forma de atuar do SPI e as constantes acusações de corrupção e desrespeito aos direitos indígenas tornaram o CNPI num núcleo de contestação à política governamental ante as acusações de má administração dos bens indígenas, de omissão ante os crimes cometidos contra índios e de corrupção administrativa. Em 1936, o SPI passou a ter uma estrutura admi- nistrativa que se manteve até 1967, quando foi extinto, e influenciou até a estruturação de sua sucessora - a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Pela organização de 36, o SPI possuía uma admi- nistração central no Rio de Janeiro com três diretorias : a seção de estudos, a de orientação e assistência, e a de administração ; nove inspetorias regionais, situ- adas nas capitais dos estados, que coordenavam os postos indígenas nos aldeamentos, lócus dos projetos de “melhoria” dos índios. INDICAÇÃO DE LEITURA A administração do SPI buscou atender a todas as regiões do Brasil. Muitos problemas foram enfrentados nas décadas de 40 e 50 do século passado. Quer saber mais sobre esta questão? Leia: MANFROI, Ninarosa Mozzato da Silva A QUESTÃO INDÍGENAa ser ad- ministrados por missionários capuchinhos e, logo depois, abandonados à própria sorte, quando da opção pelos imigrantes europeus para trabalharem no Brasil. Em seguida, demonstraremos como a independência do Brasil não alterou a visão preconceituosa sobre os índios, particularmente por predominarem as teorias racistas como explicação para as diferenças sociais. Analisaremos, ainda, como a necessidade de substituição dos escravos de origem africana, após a proibição do tráfico negreiro, fez o governo brasileiro deliberar por criar centros de educação e preparação de trabalhadores nas aldeias indíge- nas e entregar sua administração aos frades capuchinhos italianos. Porém, quando a elite política imperial deliberou substituir escravos por imigrantes estrangeiros, os índios foram abandonados à própria sorte e tiveram as terras dos seus aldeamentos vendidas em praça pública aos interessados. No capítulo VII, veremos que a proclamação da República não implicou em alterações até 1910, quando, após muitas discussões, criou-se o Serviço de Proteção aos Índios que, após muitos fracassos e corrupção, e alguns sucessos, terminou sendo extinto e substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). As contradições da política indigenista serão reveladas, assim como os efeitos provocados pela oscilação de orientações e posturas. Também veremos, nesse mesmo capítulo, as formas encontradas pelos indígenas para se organizarem e assim melhor poderem conquistar seus direitos. Finalmente, no capítulo VIII, vamos estudar quais as grandes questões que estão postas, hoje, para as populações indígenas, sua organização e lutas, além de analisar os principais questionamentos feitos pela sociedade nacional com relação às conquistas desses povos. Espero que, ao final do curso, tenhamos aprendido mais sobre os índios e que os possamos ver na sua real dimen- são humana e histórica; que possamos (re) conhecê-los e compreender suas ações e reivindicações. Desejo, ainda, que sejamos capazes de pensar questões como: qual o lugar dos índios na sociedade nacional? Os índios “misturados” são índios e têm os mesmos direitos dos demais? Após tantas demarcações de terras indígenas, há muita terra para pouco índio? Que também entendamos melhor como se formou a nossa sociedade e como se constituíram os fundamentos discriminatórios e hierarquizantes que caracterizam nossa nação. Desejo-lhes, então, bons estudos! A Autora EAD UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A SUMÁRIO CAPíTULO I: A HISTÓRIA DA HISTÓRIA INDígENA 13 CAPíTULO II: DEFININDO íNDIOS 13 CAPíTULO III: ORIgEM DAS POPULAÇÕES INDígENAS 15 CAPíTULO IV: ENTENDENDO AS DIVERSIDADES NO BRASIL 17 CAPíTULO V: O íNDIO COLONIAL 19 CONTATOS E CONVIVÊNCIAS INTERÉTNICAS 19 A ESCRAVIDÃO INDígENA 21 ALDEAR, MISSIONAR, ADMINISTRAR E CIVILIZAR 23 CAPíTULO VI: O SÉCULO XIX E AS POLíTICAS INDIgENISTAS 29 As políticas indigenistas e o período regencial: a consolidação das novas tendências. 34 O 2º império e a possível incorporação dos índios ao todo nacional. 37 O FRACASSO DO REgULAMENTO DAS MISSÕES 40 A LEI DE TERRAS, A OPÇÃO PELOS IMIgRANTES E O ABANDONO DOS íNDIOS 41 CAPíTULO VII: AS PERPLEXIDADES DA REPÚBLICA 43 O SPI E SUA TRAJETÓRIA 46 A FUNAI E AS NOVAS E VELHAS POSTURAS 53 CAPíTULO VIII: O LUgAR DO íNDIO E qUESTÕES ATUAIS. 55 gLOSSÁRIO 59 EAD 1313UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A CAPíTULO I: A HISTÓRIA DA HISTÓ- RIA INDígENA Até a década de 70 do Século XX, os historiadores consideravam impossível e irrelevante realizar História Indígena, atribuindo essa reflexão aos antropólogos. Essa forma de pensar mantinha-se, apesar do estabe- lecimento do diálogo entre a História e a Antropologia desde o início daquele século, quando foi criada a conhecida Escola dos Annales. ??? ??? SAIBA MAIS A Escola dos Annales surgiu na França, no início do século XX. Seus componentes editaram uma revista, chamada Les Annales, que terminou por dar o nome a um grupo de historiadores que a escreviam e propunham uma nova forma de fazer História. Eles buscaram o diálogo com as Ciências Sociais e introduziram novos objetos e métodos de análise. Principalmente, buscaram ter uma visão crítica dos documentos usados na pesquisa a partir de sua contextualização do autor e do momento em que o documento foi escrito. Para saber mais, acesse: ESCOLA DOS ANNALES. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. Disponível em: Acesso em: 20. jan.2011. Apesar dessa nova postura que mudou as temáticas e os métodos dos historiadores, os índios continuaram a ser vistos, principalmente, após o fortalecimento do Estruturalismo, como povos sem história. Não haviam produzido documentos e não pensavam numa perspectiva temporal, como era compreendida pelos estudiosos ocidentais – continuando, portanto, a ser objeto da Etnologia, segundo afirmava o célebre historiador brasileiro Francisco Adolfo Varnhagen, em 1850. Um dos exemplos mais claros dessa postura é a publicação, em 1997, da coletânea História da Vida Privada no Brasil, obra na qual são tratados os mais diversos temas, onde, porém, não há sequer um capítulo sobre os índios no país. INDICAÇÃO DE LEITURA Este livro é muito interessante para você saber mais sobre o assunto: MELLO E SOUZA, Laura de. História da vida privada no Brasil – cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo. Companhia das Letras, 1997. ??? ??? SAIBA MAIS A escola Estruturalista influenciou a História, destacando a necessidade de serem abandonados os fatos, em si, como objeto de análise, para usá-los para criar modelos de análise e compreender as estruturas profundas do pensamento humano, as regras que ordenariam o comportamento humano. CAPíTULO II: DEFININDO íNDIOS No início da colonização, a resposta era facilmente dada: índios eram todos aqueles que não eram europeus ou seus descendentes. Porém, com o passar do tempo e a chegada de povos de outras origens, como aqueles que vieram da África, a intensidade da miscigenação e a dinâmica cultural vivenciada pelos grupos indígenas e demais povos, esta resposta ficou cada vez mais difícil. ??? ??? SAIBA MAIS No Brasil atual, ante os constantes conflitos por terras envolvendo populações indígenas e a sua diversidade física e cultural, uma das perguntas que mais ouvimos é: afinal, o que é um índio? Iniciando o nosso exercício, devemos destacar que a própria denominação “índio” é problemática e implica num conjunto de dados a serem considerados. Sabe- mos que não existe uma etnia ou um povo chamado índio, indígena, nativo, silvícola ou algo similar. Essas denominações foram criadas pelos europeus, para 14 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A Vários critérios foram propostos e praticamente todos abandonados, por não se mostrarem adequados à realidade. O primeiro foi o racial, que partia das ideias equivocadas de que é possível aplicar esse conceito aos seres humanos e, consequentemente, o da existência de raças puras, o que pressupunha a inexistência da miscigenação e da igualdade física de todos esses povos que aqui habitavam. A primeira falha é a grande diversidade física entre os chamados indígenas. A segunda é não considerar que a miscigenação foi e é uma realidade concreta. ??? ??? SAIBA MAIS Nos Estados Unidos, esse critério ainda é usado. Quando uma pessoa tem uma bisavó indígena, ela é legalmente índio, mesmo que não o queira. O mesmo acontece com os negros. É uma forma bastante discriminatória de tratar as pessoas, pois não dá liberdade ao indivíduo de sequer optar pela raça de um dos sete bisavós, para se identificar. REgISTRE A SUA IDEIA É possível ou não identificarNAS PÁGINAS DOS JORNAIS SOB A ÓTICA DO JURISTA ANTONIO SELISTRE DE CAMPOS - 1940 A 1950. 2007. Disponível em: Acesso em: 21. Jan. 2011 Nessas atividades de atração, pode-se claramente perceber a ideologia do SPI: I) sua preocupação em liberar áreas para a expansão da sociedade nacional, ao recolher os indígenas em espaços definidos e liberando o restante da área de circulação dos territórios tribais; II) a prática autoritária de impor a essas populações o contato com a sociedade nacional, e seu confinamen- to compulsório numa área definida pelo órgão e a admi- nistração, de acordo com os interesses nacionais ; III) a visão evolucionista, modernizadora e colonialis- ta de ver no indígena um ser que deveria ser compelido a “melhorar”, isto é, a se tornar um nacional. INDICAÇÃO DE LEITURA Para conhecer mais sobre o PNXINGU, acesse este texto e leia: XINGU. 1998, Disponível em: . Acesso em: 26. Jan.2011. O objetivo era o de avaliar uma política de caráter menos evolucionista e integracionista, além de tentar demonstrar a seriedade das ações indigenistas do país no exterior. Para tanto, foi demarcada uma gran- 52 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A de área - 2.642.003 hectares – de mata nativa com grande biodiversidade, regada pelos rios formadores do Xingu e onde viviam vários grupos indígenas ainda não aldeados. O Parque surgiu com um caráter híbrido: o de pro- teger o meio ambiente e as populações indígenas e sua diversidade social e cultural. Deveria vir a ser uma espécie de oásis no qual as populações indígenas teriam suas decisões respeitadas, no tocante às formas de relacionamento intertribal e com a sociedade nacional, assim como ao ritmo de transformações socioculturais que viriam a adotar. O Parque conseguiu manter essa política e ser preservado integralmente até a década de 80, quando ocorreram as primeiras invasões de pescadores e caça- dores, fatos que se agravaram no final dos anos 90. A partir de então, as queimadas em fazendas pe- cuárias, localizadas a nordeste do Parque, ameaçam atingi-lo e o avanço das madeireiras, instaladas a oeste, começaram a chegar perto dos limites físicos definidos pela demarcação. Ademais, a ocupação do entorno começou a poluir as nascentes dos rios que abastecem o Parque e que ficaram fora da área demarcada. Nesse processo, fortaleceu-se, entre os morado- res do PIX, a percepção de que está a caminho um incômodo “abraço”: o Parque vem sendo cercado pela ocupação de seu entorno e já se evidencia como uma “ilha” de florestas em meio ao pasto e à monocultura, na região do Xingu. Essa realidade fez com os índios solicitassem a incorporação das terras dos Suyá e Wajá às do Parque, para tentar preservar seu relativo isolamento, o que ocorreu em 1998. No momento, lutam para anexar as terras dos Ikpeng e a mata sagrada dos Wajá que desejam transformar numa área de preservação am- biental. Em termos socioculturais, o projeto vem surtindo os efeitos desejados. A população do PIX tem conseguido manter o controle sobre as modificações em sua cultura e detém a capacidade de gerenciamento de seus des- tinos, elementos desconhecidos pelos demais grupos aldeados pelo SPI. Figura 34 – Foto dos índios do Posto Indígena Ibirama dos índios Xokleng de Santa Catarina. Fonte: Wessel. Disponível em Acesso em 26.jan.2011. Figura 35 – Foto de casa xinguana construída no Museu do índio, Rio de Janeiro. Fonte: Museu do índio Disponível em . Acesso em 26.jan.2011. Apesar do sucesso dessa experiência, ela não se multiplicou. As crises institucionais e as acusações de corrupção e maus tratos aos índios acentuaram-se num momento crítico, em termos de relações internacionais para o país: o do golpe de 1964. A necessidade de melhorar sua imagem no exte- rior e de estabelecer um controle mais efetivo sobre as crises no campo, em 1967, o governo brasileiro extinguiu o SPI e estabeleceu uma nova política para os povos indígenas, ainda que mantendo os mesmos princípios e contradições vivenciadas nos tempos daquela instituição. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 53UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA REgISTRE SUAS IDEIAS Você acredita que a administração do SPI provocou problemas aos índios que perduram até os dias atu- ais? Você acredita que é possível solucioná-los? A FUNAI E AS NOVAS E VELHAS POSTURAS O novo órgão herdou os problemas não soluciona- dos pelo SPI e também aqueles que foram gerados por sua má administração: terras demarcadas de tamanho insuficiente e, na maioria das vezes, invadidas, princi- palmente por ex-arrendatários; terras por demarcar; índios insatisfeitos com a falência administrativa e com o abandono em que viviam; vários grupos reivindicando seu reconhecimento; a demarcação das terras de seus antigos aldeamentos e a assistência a que tinham direi- to, além de uma estrutura funcional defasada e muitos funcionários envolvidos em casos de corrupção. Outros problemas foram gerados pelo momento histórico vivido pelo país. A chamada “Revolução de 64” procurou se firmar a partir de dois paradigmas: a repressão e o desenvolvimento. Ambos se refletiram na forma de administrar a questão indígena. A repressão, através do controle efetivo dos índios insatisfeitos, remetendo-os ao Presídio Krenak, em Minas Gerais, onde eram mantidos encarcerados e realizando trabalhos compulsórios. INDICAÇÃO DE LEITURA Veja um bom exemplo de repressão aos índios no período da Ditadura no Brasil, lendo este texto: PARAISO Maria Hilda Baqueiro. KRENAK, 1998. Disponível em . Acesso em: 27. Jan. 2011. Também os funcionários que se insurgiam contra as medidas adotadas pelo órgão receberam variadas punições, inclusive a demissão sumária. Para garantir essas medidas, a presidência da FUNAI foi entregue, sucessivamente, a generais do Exército e a um delegado da Polícia Federal. O projeto desenvolvimentista do governo recaiu na construção de grandes obras, geralmente em áreas indígenas, porque, como as terras eram da União, poder-se-ia economizar em pagamentos de indeniza- ção. Assim, foram construídas em terras reservadas e demarcadas para os índios grandes represas e hi- droelétricas, instaladas redes de alta tensão, abertas estradas, como a Belém-Brasília e a Transamazônica, concedidas autorizações para garimpo a empresas nacionais e internacionais e estabelecidos contratos de risco para pesquisa de petróleo. A Funai foi criada como um órgão gestor da totali- dade da política indigenista: educação, saúde, desen- volvimento, para demarcar, assegurar e proteger as terras por eles tradicionalmente ocupadas, estimular o desenvolvimento de estudos e levantamento da exis- tência e localizção do grupos indígenas e promover a compreensão da questão indígena entre os nacionais. Também era seu dever defender as comunidades indí- genas de qualquer ameaça que viessem a sofrer. Era um tutor na plenitude de seus poderes. No entanto, o órgão não conseguia cumprir seus deveres e o quadro de pressão e violentação constante dos direitos indígenas explica a construção de várias alianças entre índios e seus defensores e que teve reflexos na gestão da política indigenista. A primeira foi a estabelecida entre índios e vários indigenistas, isto é, trabalhadores da Funai que atuavam em campo, junto a esses povos. Apesar das punições e, em alguns casos, da demissão sumária, eles se po- sicionaram ao lado dos indígenas, inclusive publicando informações e denúncias sobre o que ocorria nas áreas em que atuavam. Em seguida, deu-se efetivo envolvimento dos an- tropólogos na busca de melhorias para os problemas indígenas. Dessa relação, resultaram nãosó trabalhos acadêmicos nos quais eram mostradas as condições de vida dos índios, mas também denúnicas a nível nacional e internacional e criação de Organizações Não Governamentais que visavam ajudar na organização dos povos, busca de financiamentos internacionais para atender aos grupos que viviam em piores condições e assessoramento jurídico nas ações de defesa de seus direitos. Outra aliança importante resultou da criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), órgão ligado à Igreja e que vem atuando nas áreas indígenas, apoiando 54 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A e assessorando os vários grupos na sua organização política. Porém, a mais relevante e, talvez, a mais importante, resultou da organização dos povos indígenas em asso- ciações nacional e regionais (União Nacional Indígena e Associação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, dentre muitas outras), o que lhes garantiu visibilidade, troca de experiências na luta por seus direitos e o estabelecimento de frentes de resistência ante as políticas emanadas do governo. Ampliavam-se, assim, os interlocutores e agentes históricos na construção das lutas. Várias demarcações, reconquista e ampliação de terras, reconhecimento de povos indígenas e de seus direitos e indenizações por uso, pelo governo, dos territórios tradicionais desses grupos, para a construção de grandes obras foram conquistadas nesse período. Essas conquistas resultaram em aspectos positivos e negativos para a política indigenista. Por uma lado, os povos indígenas assumiram de forma mais efetiva o seu papel histórico e se fortale- ceram nas suas lutas. Em contrapartida, o volume de reivindicações eram impossíveis de serem atendidas pela Funai, com recursos e pessoal cada vez mais restritos, pois os governos federal e estaduais viam no órgão indigenista uma instituição de poderes supremos que se opunha às políticas do Estado brasileiro. O resultado dessa contradição entre a ação dos ín- dios e seus aliados e das elites econômicas nacionais, particularmente os ruralistas e mineradores, foi a de, lentamente esvaziar a Funai do seu poder: a educação passou a ser responsabilidade do MEC, a saúde é da FUNASA, a proteção dos direitos foi para o Ministério Público, restando à Funai a questão da identificação, demarcação e proteção das terras, sofrendo, porém, restrições e tendo que manter longas negociações envolvendo a Câmara de Conciliação e Arbitramento, órgão da Advocacia Geral da União, onde os vários órgãos da União buscam soluções cada vez que as decisões de um deles incide em decisões tomadas por outros. INDICAÇÃO DE LEITURA Uma das questões mais graves, hoje, é o conflito de interesses entre índios e não índios em áreas de ocupação que se superpõem. Veja como o Estado brasileiro procura solucionar esses problemas, acessando este texto: WERLE, Vera Inês, LEITE, Sávia Maria Rodrigues Gonçalves, FANTIN, Adriana Aghinoni, LOULA, Fábio Conrado, TORRES Maurício Braga e BERTOLO, Patrícia Batista. Advocacia Geral da União. Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal. CARTILHA. Disponível em: . Acesso em: 27. Jan.2011. Por exemplo, quando há superposição entre área indígena a ser demarcada e área de reserva ambiental, o conflito é discutido e intermediado por essa Câmara. Quando não se chega a um consenso, o problema é levado à Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal e, não havendo solução, ao Supremo Tribunal Federal. INDICAÇÃO DE LEITURA Quando os órgãos do Poder Executivo não conseguem encontrar solução para os conflitos, o problema passa a ser julgador pelo judiciário. Veja como, lendo: 6ª Câmara de Coordenação e Revisão. TERRAS INDÍGENAS. Disponível em: . Acesso em: 27. Jan.2011. Porém, uma das maiores conquistas dessas articu- lações foi a participação de índios e seus aliados nos debates ocorridos quando da elaboração da Constitui- ção de 1988. Na verdade, esses personagens já discu- tiam, juntamente com grandes juristas e a sociedade civil, essa questão desde 1985 buscando encontrar as melhores formas de reformular as práticas políticas e garantir os direitos indígenas. O resultado dessa ação foi não só a denúncia pública dos desrespeitos e violências sofridas pelos povos indígenas, ao longo da história brasileira, como também o reconhecimento constitucional dos direitos dos povos indígenas. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 55UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA INDICAÇÃO DE LEITURA A luta dos povos indígenas pelos seus direitos está apoiada pela Constituição de 1988. Veja como ocorreu essa conquista, lendo: MATSUURA, Lilian. DIREITO INDÍGENA NASCEU COM CONSTITUIÇÃO DE 1988, DIZ MINISTRO. 2008. Disponível em: . Acesso em: 27. Jan. 2011. Já naquele momento se expressavam duas correntes de oposição à conquista dos índios. Os militares se expressavam, usando o argumento pseudo nacionalista de que a concessão de terras aos índios significava a redução da soberania nacional e a perda de controle sobre as fronteiras :do país. É de estranhar que o Exército, ao qual o SPI pertenceu e foi o grande núcleo de formação de defensores da causa indígena, tenha usado historicamente os índios como defensores das fronteiras nacionais. INDICAÇÃO DE LEITURA Para saber por que a argumentação do Exército não tem fundamentação histórica, leia este texto: OLIVEIRA, João Pacheco de. OS ÍNDIOS AMEAÇAM A SEGURANÇA NACIONAL? Disponível em: . Acesso em: 27. Jan.2011. A outra frente é a chamada Bancada Ruralista, composta por grandes proprietários rurais, que se opõe sistematicamente a todas as propostas de demarcação de terras indígenas, alegando a importância do agrone- gócio para a economia nacional e o atraso do avanço do capitalismo no campo, devido à preservação de áreas indígenas e ambiental. Outras questões também suscitaram debates: saúde, educação, mineração em terras demarcadas, manutenção ou não da tutela e sua relativização, parti- cularmente no que se refere à capacidade de autogestão de suas atividades econômicas, de se auto representar na justiça, mesmo contra o tutor, a liberdade de ir e vir sem precisar de autorização do tutor e o direito de votar e ser votado, isto é, o reconhecimento de sua condição de cidadão. INDICAÇÃO DE LEITURA MATSUURA, Lilian. Direito indígena nasceu com Constituição de 1988, diz ministro 2008. Disponível em: . Acesso em: 27. Jan.2011. SUGESTÃO DE ATIVIDADE Consulte a Constituição de 1988, veja quais os direitos que foram resguardados às populações indígenas e avalie se eles são suficientes para garantir o bem estar desses povos. CAPíTULO VIII: O LUgAR DO íNDIO E qUESTÕES ATUAIS. Num contexto em que o Estado-Nação é concebido como uma unidade territorial na qual sua população compartilha cultura e tradições comuns - proces- so resultante de uma atuação violenta de conquista de espaço e de mecanismos de opressão, quanto à eliminação da diversidade étnica e dos direitos dos conquistados -, só é possível pensar o conjunto das relações interétnicas pela ótica da dominação, isto é, voltada para a destruição de todas e de quaisquer for- mas de diversidade sociocultural, em nome da criação da unidade nacional. Na verdade, para o Estado, visto aqui como o gran- de articulador, seja pela ação, seja pela omissão, do destino das populações indígenas, a questão do lugar a ser ocupado por essas populações sempre foi um problema de difícil solução. Embora as reconhecesse como os primitivospro- prietários do país, o que implicava, como contrapartida, no reconhecimento do seu direito ao território que ocupavam, essa postura gerava a contrariedade dos interesses das elites econômicas e da população em geral. Para esses segmentos, era essencial ter garantido o seu direito a expandirem a conquista e a exploração de novos lotes de terra. Também o reconhecimento da autonomia dos povos indígenas representaria a negação da razão de ser do Estado – a unificação do território sob seu efetivo controle e a legitimação desse possuir. 56 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A Outro aspecto contraditório nessa relação é que o Estado – Nação, ao pressupor o compartilhamento cultural e de tradições entre todos os ocupantes do território unificado e sob seu efetivo controle, tem que atuar no sentido de eliminar as diversidades étnicas e culturais. Isso implicaria a negação dos direitos dos indígenas a manterem suas culturas e a da imagem simbolicamente atribuída aos índios no século XIX, que ressalta o sentimento de liberdade e autonomia como sua grande contribuição para a formação do caráter nacional. Finalmente, um outro problema ou conflito, proposto ao Estado-Nação com relação aos povos indígenas, era e é o fato de que, para determinados segmentos nacio- nais, ocupantes de áreas economicamente periféricas, a mão-de-obra dessa população era vital, devendo ser criados, portanto, mecanismos preservadores de sua existência. Já em áreas de economia mais capitalizada, o índio era encarado como um obstáculo que deveria ser eliminado em nome do progresso e da expansão econômica e da civilização. Pelo que se constata, tanto o Estado português como o brasileiro buscaram a solução dessas contra- dições, através da instituição de uma legislação flexível o suficiente para atender aos múltiplos interesses das elites nacionais ou adotando uma atitude de omissão e silêncio em relação às práticas desrespeitosas adota- das por particulares na solução de questões indígenas localizadas. No entanto, essa flexibilidade nunca contemplou o reconhecimento do direito à propriedade das terras ocu- padas pelos grupos indígenas, a sua autonomia política e à preservação de suas peculiaridades socioculturais, pois essa atitude seria a negação do projeto de afirmar os princípios básicos da constituição do Estado-Nação, isto é, a unicidade territorial e a homogeneização étnica do seu povo. REgISTRE SUA IDEIA É possível superar essas contradições vividas pelos governos de atender a tantos interesses diferentes? Essa postura, por outro lado, também coloca as populações indígenas frente a questões de caráter contraditório. Em função de fragilidades decorrentes de sua organização politicosocial e do processo de dominação a que foram submetidos, não resta a essas populações outra alternativa de sobrevivência a não ser reelaborar sua organização sociocultural e inserir-se no Estado-Nação. Este passa, então, a ser, simultaneamen- te, o símbolo da dominação e da espoliação a que são submetidos e a instância maior, capaz de lhes garantir ou negar a necessária proteção para preservar peque- nas parcelas de seu território tradicional e sobreviver, pelo menos fisicamente. ??? ??? SAIBA MAIS Território tradicional é o espaço ocupado pelos indígenas antes de serem administrados pelo Estado. Esse território é formado, a partir de sua necessidade e capacidade de ocupação e exploração. Quando passam a ser administrados, esses limites construídos historicamente nunca são respeitados. São reduzidos para atender aos interesses econômicos dos não índios. Entretanto, ao aceitar a inserção no Estado-Nação, as sociedades indígenas passam a ter novas contra- dições a serem solucionadas. É importante considerar que o conceito de “índio” é uma categoria construída pela sociedade nacional, que a estabeleceu a partir de imagens formuladas nas relações vivenciadas e nos interesses e expectativas historicamente constitu- ídos. Tal categoria – a de índio - caracteriza-se por seu caráter amplamente generalizante, ignorando as espe- cificidades e peculiaridades étnicas dos vários povos, marcas de identidades Pataxó, Kamakã-Mongoió, Pojixá, Jiporok, Xerente, Xavante, Guarani, dentre outras –, elementos não valorizados pela sociedade nacional, ao estabelecer a sua postura para com essas sociedades. O que essa realidade implica? Implica a necessidade de os povos indígenas, ao aceitarem sua inserção no Estado-Nação, posicionarem-se não como entidades individuais e personalizadas. Eles devem, cada vez mais, conformar sua identidade e organização social à categoria de “índio”, estabelecida de acordo com as imagens e expectativas definidas pelo Estado-Nação, para serem classificados como tal e, conseqüentemen- EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 57UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA te, terem seus direitos, em princípio, resguardados e serem reconhecidos como agentes políticos com um espaço garantido no palco das lutas sociais em âmbito nacional. Esse processo de diluição das identidades leva, portanto, à opção de aceitarem as profundas trans- formações econômicas, sociais e políticas impostas pela sociedade dominante, o que - sem mencionar os graves e profundos desarranjos sociais -, implica na desestruturação social. Consequentemente, passam a ser classificados como “misturados com os civilizados”, como eram definidos no século XIX, termo substituído, nos dias de hoje, por “integrados ou caboclos”. Isto sig- nifica a negação da sua identidade étnica diferenciada da dos nacionais e, portanto, dos direitos inerentes a sua condição de etnia diversa e do papel de protetor assumido pelo Estado. Agravando esse quadro, as comunidades indígenas apreendem, com sua realidade cotidiana e a trajetória histórica de seu povo, que a proteção oferecida pelo Estado tem um caráter mais teórico do que prático e que, como foi constatado ao longo de toda essa análise, pode ser interrompida a qualquer momento sob as mais variadas justificativas. Logo, sabem ser necessário à sua sobrevivência física buscar inserção no contexto regional do mercado produtivo. Para tanto, é necessá- rio que abdiquem não só das formas diferenciais de sua organização social, como até neguem a própria identidade étnica. Todas essas contradições se refletem na desarti- culação social interna desses povos, esfacelando-os e reduzindo, ainda mais, sua capacidade de resistência ante o poder avassalador da sociedade nacional. Os conflitos internos se acentuam ante novas e tantas perspectivas possíveis de enfrentamento, para as quais o seu universo de referências não tem resposta. Assim, havendo tantos posicionamentos possíveis ante a nova realidade, surgem facções ou, até mesmo, indivíduos com distintas propostas, desestabilizando a organi- zação comunitária, a grande instância de articulação política do grupo. SUGESTÃO DE ATIVIDADE Analise as dificuldades vivenciadas pelos indígenas nesta realidade histórica contemporânea. Pensar numa solução para a questão que está co- locada, tanto para o Estado-Nação quanto para as po- pulações indígenas, implicaria repensar a forma como o Estado foi constituído no século XIX. Isto significa que essa instituição deveria abdicar do seu projeto de incorporar ou controlar a totalidade do território defi- nido como nacional e de homogeneizar sua população em termos culturais, passando a aceitar o direito à autonomia política e cultural das nações indígenas. Projeto que parece muito distante da realidade concreta vivenciada no país. Resta, portanto, aos povos indígenas realizarem uma opção dramática: aceitar a necessidade de reformular, constantemente, suas formas de viver e pensar, como forma de tentar sobreviver, manter-se no isolamento das matas, deliberar por opor resistência à realidade vivida ou enfrentar o governo brasileiro e seus cidadãos. Figura 36 – Mapa indicandoas terras indígenas demarcadas, por demarcar e por reconhecer Fonte: Limongi. Disponível em . Acesso em 27.jan.2011. Apesar de mais de 500 anos de contato entre índios e não índios, algumas questões fundamentais não se 58 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A encontram claramente definidas, provocando tensões e dúvidas quanto às decisões que devem ser tomadas. Uma das questões mais cadentes, herdada do período Imperial, é o reconhecimento da identidade e, consequentemente, dos direitos daqueles povos indígenas que não mais correspondem às imagens dos livros didáticos. Neste caso, identidade e direitos estão intimamente ligados, e reconhecer seus direitos implica em admitir sua prerrogativa de possuírem ou recuperarem terras que ocupam de forma tradicional e ininterrupta. Como, na verdade, essas terras, hoje, se encontram ocupadas por não índios, o confronto se estabelece e a alegação mútua de direitos termina por criar longos processos judiciais que geram insatisfações e prejuízos para os envolvidos. INDICAÇÃO DE LEITURA Você sabe quantos processos de disputa por terras entre índios e não índios há na Bahia? Procure nos jornais e entenda por que esses conflitos acontecem, lendo: OLIVEIRA, João Pacheco. UMA ETNOLOGIA DOS “ÍNDIOS MISTURADOS”? SITUAÇÃO COLONIAL, TERRITORIALIZAÇÃO E FLUXOS CULTURAIS. Em MANA 4(1):47- 77, 1997. Disponível em: . Acesso em: 27. Jan.2011. Os estudos sobre esses povos “misturados ou mes- tiçados” são recentes, em decorrência da invisibilidade e do preconceito alimentado pelas imagens tradicionais que remetem à fantasiosa existência de índios puros. Foi graças à já referida organização política desses povos e de suas alianças com não índios que eles terminaram por serem aceitos como indígenas e reconquistaram seus direitos. São povos que compartilham uma história comum de perdas, de reelaborações de suas organizações socioculturais, de uma vivência colonial e de transfe- rências ou reduções territoriais, mas que, nem por isso, perderam seus sentimentos de pertencimento a uma comunidade que não é apenas nacional. A identidade de uma pessoa ou de um povo não pode ser definida pelas roupas e produtos que usam. Por acaso, deixamos de nos sentir brasileiros por usarmos jeans, produtos da Nestlé, perfumes fran- ceses, sabonetes e produtos l’Oreal, computadores e televisores japoneses, carros importados, pneus Fyrestone, comprarmos gasolina em Postos Shell e bebermos Coca-cola? Nosso sentimento de nacionalidade é menor por usarmos esses sinais externos? Por que seria diferente com os índios? Ou eles, para serem índios, têm que abdicar desses produtos para que possamos identificá-los como índios? Sentimo-nos como membro de um grupo, porque partilhamos suas crenças, valores, esperanças e tristezas. É um sentimento que passa pela consciên- cia de pertencermos a um grupo social ou nacional, independentemente do que vestimos, comemos ou compramos. Outra questão refere-se diretamente ao tamanho das terras que são demarcadas para os índios. E esse pro- blema gera algumas questões que merecem reflexão. A primeira delas a ser considerada é que nem o Estado português e nem o brasileiro reconheceram ou reconhecem o direito dos índios à propriedade da terra. Ou elas pertenciam ao rei, no período colonial, ou ao Imperador; depois às províncias e aos estados da federação e, hoje, à União. Os índios sempre possuíram e possuem simplesmente o direito de posse. Podem ser deslocados e suas terras usadas, sempre que o Estado considerar que isso é do interesse nacional. O segundo aspecto a ser pensado é que as doações de sesmarias aos povos indígenas, durante o período colonial, e até hoje, nunca contemplavam o tamanho real do território por eles ocupado. Às vezes, sequer o local em que viviam é levado em conta, e os transferem para áreas consideradas como mais convenientes aos interesses da Nação. Também essas áreas doadas, com a concordância ou omissão dos governantes, terminaram por ser arrendadas ou apropriadas pelos não índios. Muitos deles foram obrigados a abandonar as terras doadas para buscar sustento fora delas. O terceiro é que a decisão do governo imperial de extinguir os aldeamentos reduziu a capacidade de os indígenas fazerem frente ás decisões dos governos municipais de leiloarem suas terras. Outra decisão imperial – a dos aldeamentos passarem a ter caráter temporário e não serem demarcados – também repre- sentou graves prejuízos a esses povos, obrigando-os a buscar outros espaços sem qualquer garantia para sobreviverem. Outro aspecto também a ser considerado é o fato do tamanho reduzido das áreas demarcadas pelo SPI, como vimos acima, e o arrendamento das terras indíge- EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 59UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA nas. O pressuposto de que os índios estariam extintos em poucos anos não se concretizou. Ao contrário, a população cresceu e as terras demarcadas não são suficientes para manter a população. Finalmente, há que se considerar que as grandes demarcações para os povos que vivem em áreas de fronteira têm aspectos especiais. Além de procurarem respeitar o tamanho dos seus territórios tradicionais, essas áreas lhes garantem a possibilidade de se repro- duzirem física e socialmente, ainda que atualizando suas formas peculiares de vida e organização econômica e social. Finalmente, é relevante considerar que a terra para os índios não tem o mesmo tipo de importância eco- nômica que lhe atribuímos na nossa sociedade. Além de ser essencial para a sua sobrevivência física, ela tem grande relevância no que se refere à afirmação de sua identidade étnica e no tocante a suas crenças religiosas. Elas não são mercadoria, mas territórios de identidade. INDICAÇÃO DE LEITURA Para os índios, a terra é um elemento dos mais importantes, para que possam sobreviver como pessoas e como povo. Entenda isso melhor, lendo: OLIVEIRA, João Pacheco de. “MUITA TERRA PARA POUCO ÍNDIO? UMA INTRODUÇÃO (CRÍTICA) AO INDIGENISMO E À ATUALIZAÇÃO DO PRECONCEITO”, 2006. Disponível em: . Acesso em: 27. Jan. 2011. REgISTRE SUA IDEIA O que pensar sobre a questão da demarcação de terras indígenas no Brasil? gLOSSÁRIO Ameríndias: populações nativas da América. Ancestralidade: referente aos antepassados. Antropólogos: cientistas sociais que estudam as formas de organização social e a cultura dos povos. Apostolado Leigo: missão não religiosa de converter os infiéis ás crenças do Positivismo. Apresadores de Escravos: pessoas que capturavam outras, para vendê-las como escravos. Bula Papal: Documento emitido pelo Papa, determi- nando comportamentos que deveriam ser adotados pelos católicos. Capitanias Hereditárias: grandes lotes de terra con- cedidos a pessoas ricas e influentes, para que admi- nistrassem e realizassem a conquista e colonização em nome do rei. Capuchinhos: frades de ordem religiosa que se se- pararam da ordem franciscana por discordarem do enriquecimento e distanciamento dos preceitos de São Francisco. Adotaram o modelo de hábito de São Fran- cisco, inclusive, com a cobertura da cabeça, chamada de capucho, de onde vem o nome da ordem. Catecúmenos: pessoas recém-convertidas a uma religião e que ainda estão aprendendo os princípios da nova crença. Coleções Etnográficas: coleção de objetos de vários povos e que ficam expostas, para que pessoas de outros grupos possam conhecer aqueles que produzi- ram esses objetos ou para que os próprios criadores possam demonstrar sua cultura. Companhia das índias Ocidentais: companhia mercan- til organizada pelos povos que viviam nos Países Baixos (hoje Holanda), para explorar as riquezas e ocupar terras nas Américas. Companhiade Jesus: organização religiosa criada por Inácio de Loyola na Espanha, para fazer frente ao avanço do protestantismo. Côngruas: pagamento feito pelo Estado aos religiosos para exercerem suas atividades. Cooptação: ato de negociar e atrair para si pessoa ou grupo que tem posições contrárias, em troca de con- cessão de benefícios. Corsários: pessoas que realizavam o corso, isto é, viviam de realizar ataques aos territórios de outros países que não os seus. Cortes de Lisboa: reunião de representantes de Portu- gal e suas colônias para decidirem, em 1820, o retorno 60 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A de D. João VI a Portugal e escrever uma constituição que reduziria o poder do monarca e as relações a se- rem estabelecidas com as colônias, após o retorno da capital do Império português para Lisboa.. Economia Mercantilista: princípio econômico base- ado na crença de que a riqueza resultava das trocas comerciais. Estado do grão Pará: área dos atuais estados do nor- te, a partir do Maranhão, que possuíam um governo distinto do restante da América portuguesa. Etnia: um povo organizado a partir de suas peculiari- dades socioculturais e portador da consciência de sua identidade própria. Fóssil: restos de um ser vivo – vegetal ou animal – morto há muito tempo. gabinetes Naturalistas: núcleos de pesquisas organi- zados por intelectuais interessados em compreender os fenômenos naturais. Eram muito comuns na Alemanha e noutros países da Europa, no século XIX. glaciação: fenômeno climático, quando ocorre frio intenso, levando ao aumento das áreas cobertas por gelo. Hibridez Cultural: uma cultura que resulta da mistura com outra cultura. Isso ocorre em processos de contato intenso entre povos diferentes num mesmo espaço, e a cultura que daí resulta é a síntese das duas culturas. Hospícios: conventos. Ideário: conjunto de ideias, crenças e visões do mun- do. Ideias Iluministas índio Colonial: índios que viveram no período colonial e que tiveram que realizar adaptações nas suas formas de viver e se relacionar com outros grupos indígenas e com os colonos. índios Antropófagos: índios que praticavam rituais reli- giosos de morte e consumo da carne do prisioneiro. Irredutível: usa-se esse termo para se referir àqueles grupos indígenas que não aceitavam ser aldeados e administrados por não índios e se recusavam a aprender os ensinamentos ditos civilizados. Juiz de Paz: juiz eleito por seus concidadãos, que era responsável pela administração da justiça e pela apli- cação das leis na localidade em que vivia. Laico: tudo e todos que não estão na esfera religiosa. Lócus: lugar. Mateiros: pessoas conhecedoras dos matos e que viviam de combater índios e quilombolas. Miscigenação: ato de mestiçar, cruzar, misturar. Missões volantes: pregações religiosas realizadas pe- los missionários que se deslocavam para as aldeias. Monopólio: quando o Estado ou um particular é o único a poder realizar a comercialização de um determinado produto. Patrimônio Imaterial: conhecimentos, crenças e valo- res que, necessariamente, não precisam se expressar materialmente. Periferia Econômica: zona produtiva que não participa das grandes rotas de comércio e que, portanto, geram poucos lucros para os que ali atuam. Pesquisa Arqueológica: técnica de escavação de restos materiais e fósseis para análise, catalogação, datação e identificação de sua origem. Pesquisa genética: estudo da carga genética dos seres vivos, que permite, através da identificação do DNA, conhecer suas vinculações com outros seres. Poligamia: forma de organização familiar que prevê a possibilidade de casamento entre um homem e várias mulheres ou uma mulher e vários homens. Políticas preservacionistas: práticas políticas voltadas para garantir a preservação de povos indígenas, meio ambiente e expressões culturais. Principais: lideranças indígenas. Produção de subsistência: agricultura voltada para a produção de alimentos. Ressocialização: ato de reeducar uma pessoa, de forma a que ela abandone antigas formas de comportamento e adote as desejadas pelo educador. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 61UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA Sentimentos de pertença: consciência de pertencer a determinado grupo social ou nacionalidade. Sesmarias: lotes de terras concedidas a colonos nas áreas das capitanias. Silvícola: aqueles que vivem nas selvas. Sistema produtivo comunal: sistema de produção em que os bens necessários são de propriedade da comunidade e não de indivíduos. REFERÊNCIAS MELLO E SOUZA, Laura de. História da vida privada no Brasil – cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo. Companhia das Letras, 1997. MAESTRI, MÁRIO. OS SENHORES DO LITORAL: CONQUISTA PORTUGUESA E AGONIA TUPINAMBÁ NO LITORAL BRASILEIRO (SÉCULO XVI) Porto Alegre, EDUFRS, 1994. MONTEIRO, J. NEGROS DA TERRA. ÍNDIOS E BAN- DEIRANTES NAS ORIGENS DE SÃO PAULO. S. Paulo. Companhia das Letras, 1995. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. METAMORFOSES INDÍGENAS: IDENTIDADE E CULTURA NAS ALDEAIS COLONIAIS DO RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003. POMPA, Cristina. RELIGIÃO COMO TRADUÇÃO: MIS- SIONÁRIOS, TUPI E TAPUIA NO BRASIL COLONIAL. Bauru, SP: EDUSC/ANPOCS. 2003. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. ÍNDIOS LIVRES E ÍNDIOS ESCRAVOS: OS PRINCÍPIOS DA LEGISLAÇÃO INDI- GENISTA NO PERÍODO COLONIAL. In: CUNHA, Maria Manuela C. da. (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Fapesp/ SMC, 1992. p.115-132 . SCHWARTZ, S. B. SEGREDOS INTERNOS: ENGENHOS E ESCRAVOS NA SOCIEDADE COLONIAL, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras; CNPq, 1988. FRANÇA, Declarações na Reunião da Assembléia Na- cional Constituinte de 23/09/1823 In Anais da Assem- bléia Nacional Constituinte de 1823; Arquivo Nacional, Secção SPO T.05. p. 211-4.os índios por suas características físicas? Pensou-se, então, em defini-los pelos aspectos cul- turais peculiares. Também aqui, ignorava-se, não só a diversidade cultural desses povos, conhecidos desde o fim do Século XV, quando Colombo chegou ao continen- te americano, como também a realidade da dinâmica e transformação cultural resultante da convivência entre índios de várias etnias em aldeamentos criados pelos colonizadores, com europeus e seus descendentes, com escravos de origem africana em quilombos, en- genhos e vilas e povoados, e povos de origem asiática. Além do mais, o fato de os grupos indígenas viverem em situações diferenciadas de contato – tempo pacíficas ou não, opções de como se relacionar - tornam a adoção desse critério bastante problemática. Nos Estados Unidos deliberaram por adotar o que chamam de critério legal, Isto é, para alguém ser considerado índio, deverá comprovar documentalmente possuir as exigências estabelecidas por lei. Como a lei muda com o tempo, esse critério criava uma situação confusa, pois, de acordo com a lei vigente no ano anterior, alguém era indígena, porém, com a lei do ano seguinte, não o era mais. definir os vários grupos humanos que encontraram nas Américas. Essa denominação genérica – outras vão surgir posteriormente – ignorava um aspecto fundamental: a diversidade entre as centenas ou milhares de etnias existentes na América. Assim, passaram a ser colo- cados nas mesmas categorias povos tão diferentes quanto, por exemplo, os Astecas, os Maias e os Incas, com suas sociedades complexas e hierarquizadas, e os Tupinambá do Brasil, os Cheynne dos Estados Unidos, com organização social não hierarquizada. Se houve miscigenação, transformações sócio-cul- turais e ampliação do número de povos que passaram a viver nas Américas, como então definir o que é ser índio no novo contexto? Figura 1 – Foto do Cacique Raoni da tribo Kaiapó do Parque Nacional do Xingu, Mato grosso. Fonte: Agência Brasil. Disponível em Acesso em 20.jan.2011. Figura 2 – Foto de Nelson Júnior de índios de várias tribos comemo- rando em Brasília a vitória na ação de demarcação da Terra Indígena Serra do Sol. Disponível em Acesso: 20.jan.2011 EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 15UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA Outra tentativa foi feita, levando em conta o nível de desenvolvimento econômico. Segundo os for- muladores desse critério, os indígenas estariam para sempre condenados a não atingirem o nível de desen- volvimento dos não índios, o que tem sido desmentido pela realidade atual. Ignoraram o estado de pobreza das populações faveladas e camponesas em áreas rurais de muitos países americanos. Estas, muitas vezes, vivem em igual condição ao das populações indígenas ou até piores, por não contarem com políticas governamentais de apoio e não possuírem terras. REgISTRE A SUA IDEIA Você pensa que esses critérios de identificação são adequados e justos? O critério que tem sido adotado desde 1949 e acolhi- do pela ONU é o da auto identificação étnica. Segundo ele, são índios todos aqueles indivíduos que, dada a sua ancestralidade e socialização, se consideram e são assim considerados pelo grupo com o qual convivem e pelos não índios. Valorizam-se, assim, os sentimentos de pertença de uma pessoa e como ela se posiciona no mundo em que vive e se reconhece que esse sentimento nada tem a ver com aspectos físicos e nem com qualquer possibilidade de serem povos sem história, isto é, sem dinâmica social. INDICAÇÃO DE LEITURA Como esse assunto é muito interessante, sugiro este texto: MESQUITA, Caroline Rosa. A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS. 2010. Disponível em: . Acesso em: 17.fev.2010. CAPíTULO III: ORIgEM DAS POPULA- ÇÕES INDígENAS Até a década de 1980, a teoria vigente sobre a ori- gem dos povos indígenas afirmava que a penetração de todos eles, na América, havia ocorrido pelo estreito de Bering, durante a última glaciação, provavelmente há 12 mil anos. ?? VOCÊ SABIA? Os índios não são nativos da América. Foi preciso muita pesquisa genética, arqueológica, histórica e antropológica para se saber, com certeza, de onde eles vieram. Figura 3 – Mapa mostrando a localização do Estreito de Bering entre o Alaska e a Sibéria. Fonte: ESTRELLA, Sylvia. Como Funcionam os índios. Disponível em Acesso em 20.jan.2011. INDICAÇÃO DE LEITURA Para entender melhor esse assunto, leia Silva, Washington Luiz Alves da. GLACIAÇÕES, 2004. Disponível em . Acesso em 20. jan.2011. Segundo essa ótica, o mesmo povo de origem asiática teria atravessado o referido estreito, usando como pontos de apoio as Ilhas Aleutas, adentrando no território que hoje pertence aos Estados Unidos e daí se espalhando em todas as direções, até ocupar todo o território das três Américas. Figura 4 – Mapa mostrando a localização das Ilhas Aleutas Fonte: Mare Nostrum Disponível em Acesso em 20.jan.2011 16 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A ?? VOCÊ SABIA? Os achados arqueológicos, no Brasil, foram muito importantes para repensar a origem dos povos indígenas da América e revolucionaram os conhecimentos existentes até então. Algumas questões foram surgindo, ao longo do tempo, com a ampliação dos estudos antropológicos e arqueológicos. O primeiro aspecto a chamar a atenção era a grande diversidade física e sócio cultural entre os muitos povos aqui existentes. O tempo pensado para essa migração era muito curto para tantas diferencia- ções. Entretanto, foram os achados arqueológicos que co- locaram definitivamente em cheque a teoria da entrada única. No caso do Brasil, dois achados, ainda que haja muitos outros, têm sido destacados. O primeiro são os trabalhos da arqueóloga Niede Guidon, no sudoeste do Piauí. Figura 5 – Foto de pintura rupestre na Serra da Capivara, Piauí Fonte: Pablo de Sousa. Disponível em Acesso em 20.jan.2011. Após longas pesquisas e envio de material para datação nos Estados Unidos e na França, apesar da sistemática oposição das universidades americanas aos novos dados, ficou comprovada a presença humana na região entre 14 e 48 mil anos. INDICAÇÃO DE LEITURA Como este assunto é muito importante e pouco conhecido, leia o texto abaixo que terá muita informação interessante: GUIMARÃES, Henri. PARQUE NACIONAL DA SERRA DA CAPIVARA, 2008. Disponível em: . Acesso em: 24. jan. 2011 ?? VOCÊ SABIA? O fóssil mais antigo do Brasil foi encontrado em Lagoa Santa, no estado de Minas Gerais, e era de uma mulher com traços negroides. Outra descoberta que merece ser destacada é a de André Prous, na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, em 2001. O crânio encontrado e datado de 11 mil e quinhentos anos, apresentava peculiaridades tais que o arqueólogo o enviou para o antropólogo físico Walter Neves. Este, após vários estudos, concluiu que a mulher a quem pertencera o crânio não tinha caracte- rísticas ameríndias, mas negroides. Chamado de Luzia, esse fóssil apontou para a existência de populações não indígenas que aqui viviam simultaneamente com esses povos. Figura 6 – Foto da reconstituição da face de Luzia, fóssil encontrado em Lagoa Santa, Minas gerais. Fonte: Professor Daniel. Disponível em Acesso em 20.jan.2011. INDICAÇÃO DE LEITURA Veja como ocorreu essa descoberta em: SOARES FILHO,Ney DNA DO HOMEM DE LAGOA SANTA JÁ FOI EXTRAÍDO DOS OSSOS in HOJE EM DIA. 2001. Disponível em: . Acesso em: 24. Jan.2010. Também em outros pontos da América, outras descobertas levavam á contestação frontal da teoria da entrada única por Bering. Os novos dados apontam para o fato de vários povos, em momentos distintos e usando rotas distintas, terem EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 17UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA adentrado na América. Aqui estabeleceram relações entre si e viveram experiências históricas particulares que resultaram nos diversos povos que habitaram e habitam o nosso continente, inclusive o Brasil. INDICAÇÃO DE LEITURA Para conhecer melhor este assunto, leia LUZIA. Em Revista VEJA, 25 de Agosto de 1999, Disponível em: Acesso em: 21. jan.2011 Figura 7 – Mapa das rotas de entrada de povos na América como está estabelecido na atualidade. Fonte: Blog do Professor Daniel Disponível em Acesso em 20.jan.2011. ?? VOCÊ SABIA? Que há poucos trabalhos arqueológicos no Brasil e que muitas informações já se perderam e outras estão por se perder? Antes de estudarmos a diversidade dos povos indí- genas, é importante considerar alguns aspectos quase nunca sinalizados nos livros didáticos. Devido à precariedade dos estudos arqueológicos, à destruição de grande quantidade de sítios, resultante da ação humana e á fragilidade de alguns equipamentos, feitos com fibras vegetais, madeiras e cerâmica, muitas informações sobre essas populações são irrecuperá- veis. Assim sendo, há que se ter muito cuidado ao usar afirmativas sobre demografia pré colonial (os cálculos são arbitrários e nada confiáveis), relações interétnicas, nome dos povos e sua localização. Só a partir do fim do século XX, houve censos demográficos no país e as informações são parcialmente aceitáveis, porque só foram contados os índios que estavam em contato com os não índios. Os que viviam nas matas não foram incluídos nos dados produzidos. ??? ??? SAIBA MAIS Os dados demográficos que se referem ao período que vai do século XVI ao XX se baseiam em cálculos feitos por não índios, que desconheciam a quase totalidade dos povos indígenas: quantos eram, que espaço ocupavam, quantos viviam em cada aldeia. Para fazer o cálculo, baseavam-se em dados aproximados das aldeias tupis do litoral, calculavam a distância entre essas aldeias, dividiam pelo tamanho do atual território nacional, para saber quantas aldeias existiriam, e multiplicavam esse número pelo dos supostos moradores das aldeias tupis. CAPíTULO IV: ENTENDENDO AS DI- VERSIDADES NO BRASIL O primeiro indicador usado pelos pesquisadores para identificar a identidade de um grupo é a língua que eles falam. Ela é um indicador confiável e inicial das características sócioculturais de um povo. Além do mais, através dos estudos de etnolinguística, é possível identificar as migrações dos falantes da língua estudada e as relações que mantiveram com outros povos. ??? ??? SAIBA MAIS Etnolinguística é o estudo comparativo das línguas indígenas. As semelhanças entre as palavras de várias línguas indicam que elas têm uma língua antiga comum. Por exemplo, as chamadas línguas latinas, como o português, o francês, o italiano e o espanhol, indicam que elas derivam do latim. Então, se identificarmos os locais onde se falam as línguas latinas, podemos estabelecer a história do contato e da expansão dos povos que falavam latim e daqueles que falam línguas latinas. 18 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A INDICAÇÃO DE LEITURA Você pode aprender mais sobre isso, lendo: Barreto, Evanice Ramos Lima ETNOLINGUÍSTICA: PRESSUPOSTOS E TAREFAS in Revista Virtual Portes, 2010, disponível em: acesso em: 21. Jan.2011. Embora seja tradicional se afirmar que, no Brasil, só havia dois grupos falantes de línguas diferentes – os Tupi e os Tapuia -, esta não é a realidade. O grupo Tapuia, como um povo, nunca existiu. Assim eram chamados todos aqueles que não falavam tupi ou guarani. Sequer é possível saber quantos grupos não falavam o tupi, onde se localizavam e o que com eles aconteceu. ??? ??? SAIBA MAIS Tapuia era como os vários grupos falantes da língua tupi chamavam aqueles que usavam outras línguas e que, portanto, não pertenciam a seu povo e eram vistos como inimigos. A palavra pode ser traduzida como aqueles que tinham a língua travada. O que se sabe é que, ainda hoje, no Brasil e em paí- ses vizinhos, existem os seguintes troncos lingüísticos: o Tupi e o Macro Jê (ambos existentes na Bahia). Além dos troncos, há várias famílias lingüísticas: Aruaque, Arauá, Caribe, Ianomâni, Tucano, Catuquina, Pano, Txa- pacura, Nambiquara, Guaicuru, Ticuna, Canoê, Aicaná, Cuazá, Aricapu, Irantxe/Minki e Trumai. Para entender melhor essa diversidade de línguas faladas pelos nossos indígenas, leia : INDICAÇÃO DE LEITURA FUNAI. ÍNDIOS. Disponível em: . Acesso em 22. jan.2011. Instituto Sócio Ambiental, TRONCOS E FAMÍLIAS. Disponível em: Acesso em: 21.jan.2011. Há povos que, devido ao longo tempo de contato, são falantes apenas do português. Outros, como os Fulni-ô, de Pernambuco, falam, além do português, uma língua que nenhum outro povo conhece. Provavelmente, os demais falantes devem estar extintos. Muitos são bilíngues, inclusive com o apoio do Governo brasileiro, que tem investido na formação de professores capazes de ensinar as duas línguas – a dos índios e o português – nas escolas das aldeias. Essas línguas se distribuem de forma diferenciada pelas várias regiões do país e o número de falantes varia bastante. Hoje ainda são faladas 180 línguas diferentes no país, constituindo-se num patrimônio imaterial dos mais relevantes e que deverá ser considerado como Patrimônio Imaterial da Humanidade. Figura 8 – Mapa das línguas indígenas faladas no Brasil na atuali- dade. Fonte: AMENDOLA, Marcio Disponível em Acesso em 21.jan.2011. A essa diversidade linguística corresponde a diver- sidade social, econômica, política, religiosa e cultural, que se acentua, na medida em que esses grupos se dispersam e passam a viver experiências particulares que alteram o seu universo cultural e social. A essa diversidade, que precede o contato com os não índios, devemos acrescentar as decorrentes des- sas novas relações e considerar o tempo da relação, seu caráter mais ou menos agressivo, as imposições, as novas experiências e, por fim, as opções feitas por cada grupo ante a situação vivenciada. Isto é, como reelaboram sua economia, organização social, cultura e seu universo de crenças. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 19UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA CAPíTULO V: O íNDIO COLONIAL CONTATOS E CONVIVÊNCIAS INTERÉTNICAS Os historiadores tradicionais apresentam sempre duas visões acerca dos primeiros contatos: ou os índios se apresentavam espontaneamente aos euro- peus, em atitude pacífica e aceitando submissamente as condições impostas pelos recém-chegados, ou agressivamente, dificultando ou impedindo a conquista e a colonização. O encantamento com a beleza e a liberdade dos índios, mas, ao mesmo tempo, estranheza, os medos e a incompreensão da hierarquia ante a presença do comandante da esquadra: esta primeira visão foi ex- pressa na carta escrita por Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, em 1500. INDICAÇÃO DE LEITURA Para você conhecer essa visão, é interessante acessar esta indicação:CARTA AO REI D. MANUEL. 2008. Disponível em: Acesso em: 21.jan.2011. A partir daí, vários autores escreveram sobre os ín- dios do litoral brasileiro, predominantemente falantes da língua tupi e guarani. Esses autores elaboraram imagens positivas ou negativas sobre esses povos, calcadas em suas experiências e visão do mundo. Porém, as imagens negativas passaram a predominar, após o estabelecimento de conflitos entre índios e colonos em disputa por terras e em reação à escravização que lhes era imposta. Essa dualidade na forma de vê-los está expressa, com muita clareza, no Regimento do Governador Tomé de Souza, elaborado em 1548, através do qual foram definidas duas categorias de índios: os mansos, que deveriam ser livres, aldeados, protegidos e assalariados, e os bravos,que eram destinados à guerra e à escravidão. INDICAÇÃO DE LEITURA O Regimento do Governador Tomé de Souza é uma das leis mais importantes para você entender como a Coroa portuguesa pensava sua colônia americana. Veja isso neste texto: O REGIMENTO DE TOMÉ DE SOUZA. 2009. Disponível em: . Acesso em: 21. Jan. 2011. Os conflitos entre índios e colonos se iniciaram, quando Portugal deixou de, simplesmente, explorar as riquezas naturais e decidiu implantar a colonização, para tanto doando sesmarias, deslocando população de Portugal e incentivando o plantio de cana-de-açúcar. A nova realidade gerou insatisfações. Algumas delas decorreram da ocupação das terras indígenas para a instalação da agricultura e pecuária; outras advieram do uso do trabalho escravo, que ainda não se buscava na África, e cujas necessidades não podiam ser supri- das em Portugal. A escravização dos índios provocou profundos desarranjos no sistema econômico, social e político daquelas sociedades. INDICAÇÃO DE LEITURA Para entender melhor como a escravidão afetou a vida dos índios, acesse esta análise: BORGES, Jóina Freitas ENTRE O ESPANTO E O CONFLITO: AS REAÇÕES DOS NATIVOS À CHEGADA DOS PRIMEIROS EUROPEUS À COSTA LESTE-OESTE. 2009. Disponível em: Acesso em: 21. Jan. 2011. Destacaremos, inicialmente, a redução do seu acesso aos alimentos, fosse por não mais disporem de tempo para caçar, pescar, coletar ou plantar, fosse pela competição na disputa pelos alimentos com os colonizadores. A redução na produção de alimentos obtidos também se refletiu nas relações interétnicas. O estabelecimento de alianças entre índios e não índios – sistema de troca pelo qual os índios ofertavam alimen- tos e trabalho em troca de produtos manufaturados e garantia de que não seriam escravizados – faliu, a partir do momento em que a produção indígena se tornava menor e mais inconstante, não mais sendo satisfatória para os europeus. A opção dos colonizadores foi, então, a de escravizar os índios, numa tentativa de regularizar o fluxo de mercadorias e trabalho. Ainda no campo econômico, outros fatores desa- gregadores foram importantes: a atribuição das tarefas agrícolas aos homens, sendo estas exercidas apenas por mulheres, assim como a substituição de uma eco- nomia calcada nos princípios da troca e da solidariedade por outra de caráter mercantilista, regida por regras de mercado que desconheciam, e voltada para o lucro. No campo religioso, cujos valores também interfe- riam na organização social, um dos grandes elementos complicadores foi a pressão exercida pelos colonos 20 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A para que os prisioneiros de guerra, destinados ao sacrifício ritual, fossem desviados e entregues como escravos para os interessados. Por ser uma sociedade hierarquizada, cujo prestígio e poder se fundamentava na captura e morte de prisioneiros, nas constantes guerras que os grupos mantinham entre si, a ruptura dessa prática não só lhes retirava as referências do ordenamento social, como também era vista como um desrespeito ao seu deus e ao cativo,que possuía direito a uma morte digna, única forma de atingir a Terra Sem Males, algo equivalente ao céu dos cristãos. INDICAÇÃO DE LEITURA Para entender melhor essa questão, aproveite esta dica de leitura: MAESTRI, MÁRIO. OS SENHORES DO LITORAL: CONQUISTA PORTUGUESA E AGONIA TUPINAMBÁ NO LITORAL BRASILEIRO (SÉCULO XVI) Porto Alegre, EDUFRS, 1994 REgISTRE A SUA IDEIA De como você vê o drama vivido por esses índios e se havia outras formas possíveis de relacionamento entre eles e os colonos. Figura 9 – Foto de gravura de jesuítas catequizando índios Fonte: Claudia *Literatura, Cultura e Artes* Disponível em claudialiteraturaculturaeartes.blogspot Acesso em 21.jan.2011. Ante essa realidade tão complexa, as respostas dadas pelos índios foram bastante diversificadas. Para fazerem suas opções, usavam o repertório dos seus conhecimentos anteriores ao contato e os adquiridos a partir das novas experiências no mundo colonial. Pode- mos elencar entre as várias formas de posicionamento adotadas a resistência, as fugas, os enfrentamentos, a construção de alianças com portugueses ou franceses e a tentativa de, através da aceitação do aldeamento compulsório, construir um espaço no mundo colonial, aprendendo a usar os espaços e instrumentos adminis- trativos que lhes eram favoráveis. Era preciso repensar, adaptar, encontrar brechas, formular estratégias de inserção e preservação, fazendo surgir uma nova so- ciedade indígena mais operante ante a nova realidade. ??? ??? SAIBA MAIS O aldeamento compulsório resultava da imposição ou da decisão dos índios de aceitarem viver em áreas restritas, administradas e localizadas pelos colonizadores, de acordo com seus interesses: garantir mão-de-obra nas proximidades de suas propriedades e defesa dessas propriedades, povoações e vilas, em caso de ataque de outros europeus ou de índios não aliados. INDICAÇÃO DE LEITURA Como essa questão é complexa, que tal aproveitar para ler essas referências: MONTEIRO, J. NEGROS DA TERRA. ÍNDIOS E BANDEIRANTES NAS ORIGENS DE SÃO PAULO. S. Paulo. Companhia das Letras, 1995; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. METAMORFOSES INDÍGENAS: IDENTIDADE E CULTURA NAS ALDEAIS COLONIAIS DO RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003. E POMPA, Cristina. RELIGIÃO COMO TRADUÇÃO: MISSIONÁRIOS, TUPI E TAPUIA NO BRASIL COLONIAL. Bauru, SP: EDUSC/ANPOCS. 2003. Em termos de ordenamento sociopolítico, há que destacar os efeitos negativos provocados pela mudança do eixo de poder, o que acentuava a dependência e a incapacidade de uma reação de maiores proporções e mais efetiva dos indígenas ante as imposições que lhes eram feitas. Nesse sentido, a morte e a destituição das lideranças indígenas ou sua cooptação acentuavam- lhes o sentimento de abandono, ausência de proteção e de perspectivas ante a violência imposta. No entanto, algumas dessas sociedades encontraram formas de se ajustarem a essa nova realidade e, até mesmo, de criarem regras hereditárias de sucessão para os cargos de chefia. Criaram, à moda européia, uma casta de governantes indígenas ativa no seu diálogo, capaz de apresentar suas exigências e reivindicar seus direitos através do uso de mecanismos políticos próprios do mundo colonial. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 21UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA INDICAÇÃO DE LEITURA Conheça como os índios se tornaram hábeis negociadores, usando este texto: APOLINÁRIO, Juciene Ricarte AÇÕES POLÍTICAS MULTIFACETADAS DOS TARARIÚ NOS SERTÕES DAS CAPITANIAS NO NORTE ENTRE OS SÉCULOS XVI E XVII. 2009. Disponível em: Acesso em: 21. Jan. 2011. Independentemente de as relações de poder se expressar, através de mecanismos de violência explí- cita ou da criação de alianças, suas bases estavam fincadas no projeto estatal de programar a conquista, acolonização e a integração. Ainda que forçada a um modelo estabelecido para conquistar e administrar, de acordo com seus interesses e os dos segmentos sociais tornados parceiros e executores daqueles projetos. E isso implicava a negação do direito à autonomia das populações nativas, gerando várias instâncias de an- tagonismo, oposição e resistência, o que só fortalecia a adoção de medidas e os argumentos voltados para garantir a dominação e o controle sobre os revoltosos. Logo, temos que pensar que as relações coloniais eram constantemente atualizadas, a partir das interações estabelecidas entre os dois segmentos sociais, o que atribui peculiaridades aos vários momentos e conjun- turas historicamente constituídos. INDICAÇÃO DE LEITURA Quer saber como as relações entre índios e colonos estavam em constante mudança, leia Lopes Fátima Martins, OFICIAIS DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS: NOVOS INTERLOCUTORES NAS VILAS DA CAPITANIA DO RIO GRANDE. 2009. Disponível em: Acesso em 21. Jan.2011 A ESCRAVIDÃO INDígENA Desde 1548 os índios haviam sido divididos em duas grandes categorias - os aliados e os inimigos – e cada uma delas tinha tratamento diferenciado: aldeamento ou guerra justa e escravidão. Um dos mitos mais comuns na nossa história é a de que a escravidão indígena deixou de existir a partir de 1560, quando começaram a chegar os escravos de origem africana e que essa substituição deveu-se à inadequação dos índios ao trabalho e à escravidão. Na verdade, a primeira notícia de indígenas es- cravizados data de 1514, quando a Nau Bretoa levou, juntamente com toras de pau-brasil e papagaios, um lote de pessoas nativas para serem vendidas na Euro- pa. A partir de então, essa prática se tornou comum e foi regulamentada, após 1532, quando da criação das capitanias hereditárias. Constava nas diversas cartas de doação o direito de os donatários enviarem, com isenção de pagamento de impostos, até 21 índios por ano, para comercializar na Europa. Os que excedessem essa cota seriam taxados pela Coroa. Com o Regimento de 1548 foi deliberado que to- dos os grupos que se revoltassem ou dificultassem a expansão da colonização deveriam ser aprisionados e escravizados. Aqueles que optassem por conviver com os colonos e se aldear seriam entregues à adminis- tração real, à particular ou à dos missionários, como veremos a seguir. SUGESTÃO DE ATIVIDADE Analise por que a Coroa portuguesa adotou essa política e a quem interessava que ela tratasse de forma diferente os índios. Essa política era uma tentativa da Coroa portuguesa de atender a duas necessidades essenciais, para ga- rantir a colonização: garantir moradores e defensores para a colônia, com o estabelecimento de alianças com os aldeados e, simultaneamente, garantir trabalhadores aos colonos. É preciso recordar que Portugal era um país com baixa densidade demográfica; Possuía colônias na África e na Ásia, onde a presença de portugueses era fundamental para viabilizar a exploração econômica, e era preciso manter lusos na metrópole, não só para garantir o funcionamento da máquina administrativa, como também produzindo alimentos e realizando outras tarefas essenciais á metrópole e ao império português como um todo. Até 1560, foi a mão de obra indígena que tocou os campos agrícolas, os engenhos, a criação de gado, a produção de subsistência, o corte e transporte de ma- 22 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A deiras e pedras, as construções e as demais atividades econômicas na América portuguesa, além da defesa da colônia dos ataques de corsários europeus e de outros índios que não aceitavam se aldear. Naquela década, ocorreram duas grandes epide- mias - uma de varíola e outra de catapora -, as quais, segundo o padre José de Anchieta, mataram 2/3 de toda a população indígena que vivia no litoral. A razão de tantas mortes deveu-se à contaminação dos índios aldeados, porque os ameríndios não possuíam anticor- pos para doenças infecto- contagiosas e nem sabiam como se tratar. Os aldeamentos se esvaziaram devido às mortes e às fugas, colocando em colapso o sistema produtivo colonial. Para agravar a situação, foi decretada uma Bula Papal, em 1570, proibindo a escravidão indígena, o que obrigou Portugal a enrijecer as normas relativas à decretação de guerra e escravização dos nativos da América. Mais uma vez, foi a política imperial que determinou a solução: a vinda de escravos africanos. Essa forma de resolver o problema mostrava-se benéfica a vários segmentos. A Coroa, que cobrava impostos aos co- merciantes de escravos, aos financiadores estrangeiros da produção de açúcar, que passavam a oferecer mais um item a ser financiado aos senhores de engenho, aos comerciantes possuidores de frotas de transporte que podiam navegar pelo Atlântico com três pontos para abastecimento de mercadorias – Europa, África e América. E, finalmente, os senhores de engenho sentiram-se mais seguros quanto ao abastecimento de escravos, já que não havia qualquer restrição legal, religiosa e moral para o uso dos africanos. A propaganda também estimulou esse comércio: os interessados no tráfico afirmavam que os africanos já não mais morriam de doenças infecto-contagiosas, se- riam mais fortes, resistentes e acostumados ao trabalho e teriam menores chances de fugir, por desconhecerem a terra e temerem os “índios antropófagos.” REgISTRE SUA IDEIA Para que possa sistematizar melhor seu conheci- mento, registre sua ideia sobre o assunto, analisando a importância da escravidão indígena e as razões pelas quais a História afirma que ela não continuou, porque os índios não se adaptaram às novas formas de trabalho e porque eram preguiçosos. No entanto, ressalte-se que a escravidão indígena não se extinguiu no século XVI. O primeiro grande em- pecilho era o preço do escravo africano, que chegava a ser dez vezes maior do que o praticado na aquisição dos índios. O segundo resultava de os empréstimos não serem acessíveis a todos os colonos. Agriculto- res, mesmo plantando cana-de-açúcar, mas que não possuíam engenhos, os que se dedicavam à lavoura de subsistência e os demais segmentos produtivos não eram financiados pelos importadores europeus nem pelos grandes comerciantes de escravos. Para eles, o acesso possível a trabalhadores continuava a ser o escravo indígena e, por isso, continuaram a usá-lo, inclusive os senhores de engenho, até sua proibição em 1756. Foi no espaço dos engenhos que se estabe- leceram casamentos mestiços entre índios e negros e as primeiras alianças que resultaram em quilombos partilhados pelos dois grupos escravizados. INDICAÇÃO DE LEITURA Este é um tema novo e ainda pouco conhecido, porém você pode encontrar boas observações neste texto sugerido: PERRONE- MOISÉS, Beatriz. ÍNDIOS LIVRES E ÍNDIOS ESCRAVOS: OS PRINCÍPIOS DA LEGISLAÇÃO INDIGENISTA NO PERÍODO COLONIAL. In: CUNHA, Maria Manuela C. da. (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Fapesp/ SMC, 1992. p.115-132 e em SCHWARTZ, S. B. SEGREDOS INTERNOS: ENGENHOS E ESCRAVOS NA SOCIEDADE COLONIAL, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras; CNPq, 1988. Figura 10 – Foto de gravura de índios trabalhando em fazendas Fonte: Jean Baptiste Debret Disponível em Acesso em 21.jan.2011. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 23UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA Outro espaço em que continuou a escravidão in- dígena de forma intensa foi a periferia econômica da colônia, particularmente nas zonas de fronteira, onde os colonos não dispunham de capital para adquirir escra- vos africanos, por ainda não terem acumulado capital suficiente para tal investimento. O aumento do valor de mercado e a ampliação da captura dos indígenas ocorreram durante a ocupação de São Paulo de Luan- da, na África, pela Companhia dasÍndias Ocidentais, quando houve drástica redução da vinda de escravos africanos para o Brasil. ??? ??? SAIBA MAIS Durante a invasão holandesa a Pernambuco, os membros da Companhia das Índias Ocidentais decidiram conquistar o principal porto de onde eram enviados escravos da África para o Brasil. Buscavam, assim, inviabilizar a produção açucareira em toda a América portuguesa, impedindo a compra de escravos. Por isso, os índios voltaram a ser aprisionados em larga escala e seu preço, enquanto durou a ocupação de Luanda, aumentou bastante. Porém, logo em seguida, houve outra desvalorização do escravo indígena, devido à grande quantidade de aprisionados e descidos para o Recôncavo durante as sucessivas rebeliões, entre o fim do século XVII e os meados do XVIII. Esses eventos ficaram conhecidos como Guerra dos Bárbaros e envolveram os grupos indígenas que viviam nos sertões entre a Bahia e o Ceará e entraram em conflito com os criadores de gado, como as famílias dos Ávila e Guedes de Brito. ?? VOCÊ SABIA? Que havia uma legislação especial definindo as razões pelas quais os índios podiam ser escravizados? Os índios podiam ser cativados, segundo as determinações legais que regiam a decretação da Guerra Justa e da escravização, nas seguintes situações: 1 – em casos de “ataques” dos índios, quando a vida e os bens dos colonos estariam em perigo; 2 – quando impedissem a expansão da fé cristã ; 3 – através da compra de índios aprisionados por outros e que originalmente seriam destinados ao sacrifício ritual. O que se sabe, através das cartas escritas pelos jesuítas, é que nem sempre os índios criavam situações que justificassem a decretação da guerra e a escravidão. Os colonos as criavam e, então, pediam autorização para promover o que chamavam de “resgates de prisioneiros” e guerra defensiva. Figura 11 – Foto do quadro Família guarani capturada por caçadores escravistas de índios.. Fonte: Jean Baptiste Debret Disponível em Acesso em 21.jan.2011. ALDEAR, MISSIONAR, ADMINISTRAR E CIVILIZAR A Coroa portuguesa também organizou a vida dos chamados aliados. Para tanto, instituiu os aldeamentos, isto é, espaços administrados por lusos e destinados a adequar os índios às novas exigências da realidade colonial. Foram criados três tipos de aldeamentos quanto às formas de administração: aqueles em que atuavam os missionários, inicialmente apenas os jesuítas e depois outras ordens religiosas, os de responsabilidade dos particulares e os dirigidos por agentes administradores reais. ??? ??? SAIBA MAIS Os primeiros jesuítas chegaram à América portuguesa com Tomé de Souza, em 1549. Logo iniciaram seus trabalhos de catequização dos índios na Bahia e depois se espalharam por outras capitanias. Inicialmente faziam missões volantes, isto é, iam às aldeias dos índios para pregar. Depois do governo de Mem de Sá, foram fundados aldeamentos para que eles morassem com os indígenas e melhor pudessem fazer seu trabalho de conversão e de lhes impor novos hábitos. Cada um dos três tipos de aldeamento apresentava peculiaridades, porém havia um eixo orientador comum a todos: preparar os índios para realizarem as novas atividades produtivas; desestruturar sua organização social; deslocá-los para os pontos mais adequados aos colonos – próximos a povoações e áreas produtivas – e usá- los como trabalhadores remunerados. 24 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A Também possuíam suas próprias regras de funcionamento e objetivos. Os aldeamentos del Rei visavam fornecer trabalhadores para as obras de interesse da metrópole: abertura de caminhos, construção de fortificações, de prédios administrativos, fornecer alimentos e garantir a defesa dos interesses da Coroa em momentos de ameaça interna ou externa. A preocupação central era a de treiná-los para exercerem essas atividades, o que fizeram com bastante competência, por exemplo, na expulsão dos holandeses da cidade do Salvador, em 1625. Os particulares podiam ser formados de três maneiras: pela conquista, por descimentos ou por estarem vivendo num pedaço de terra que era dada como sesmaria a um colono que fizesse jus a essa mercê real, geralmente em virtude de ter conquistado e ocupado esse espaço. Nesse tipo de aldeamento, os índios trabalhavam nas terras dos sesmeiros, em atividades que lhes eram indicadas. Porém, sua principal função era a de defender a propriedade do seu administrador e garantir futura expansão da área ocupada, o que significava a inclusão de novas aldeias a serem administradas pelo sesmeiro. Os serviços desses índios flecheiros administrados foram essenciais para a formação das grandes propriedades do Recôncavo e dos sertões da Bahia, assim como em outros pontos da colônia. Essas tropas eram convocadas para participar de outros eventos militares a convite do governo-geral, de forma a fortalecer as tropas dos aldeamentos del Rei. ??? ??? SAIBA MAIS Descimento é o suposto ato voluntário de índios abandonarem o local de sua aldeia, de acompanharem o europeu e de instalarem um aldeamento nas terras daquele que promoveu o descimento. Figura 12 – Foto de quadro de índio flecheiro. Fonte: Jean Baptiste Debret Disponível em Acesso em 24.jan.2011. ?? VOCÊ SABIA? Os maiores aldeamentos eram os administrados pelos missionários, o que desagradava os colonos, que queriam ter livre acesso à mão de obra dos indígenas. Já os administrados por missionários, além de cum- prirem as mesmas tarefas atribuídas aos ocupantes dos outros tipos de aldeamentos, apresentavam um projeto mais amplo e considerado essencial pela Coroa: formar cristãos e súditos fiéis. Os missionários que ali atuavam deveriam erradicar os “maus costumes” dos indígenas: a poligamia, a nudez, o compartilhamento das casas sem divisórias, a prática da guerra e a antropofagia ritu- al. Outro objetivo era o de transformar os aldeados em futuros pequenos produtores de subsistência capazes de garantir o abastecimento à sociedade luso-brasileira em expansão. Os missionários, para serem aceitos, inicialmente atuavam nas aldeias onde os indígenas viviam no momento do contato. Adotavam o discurso dos caraís e buscavam desacreditar esses sacerdotes indígenas e a religião dos moradores, promover casamentos e batizados e convertê-los ao cristianismo. ??? ??? SAIBA MAIS Caraís eram os sacerdotes- profetas que realizavam visitas regulares às aldeias, fazendo pregações e definindo quando seriam feitas as migrações em busca da Terra sem Males, que corresponde, aproximadamente, ao nosso conceito de paraíso celestial. Como não podiam exercer um controle mais efetivo sobre o comportamento dessas populações, passa- ram a viver nos aldeamentos e a enviar as crianças (curumins) para seus colégios, na expectativa de que viessem, no futuro, a atuar como missionários. REgISTRE SUA IDEIA A disputa de poder entre caraís e jesuítas teve grande dimensão nas relações coloniais. Avalie como o trabalho dos jesuítas desvalorizava os caraís e o que isso representou para os indígenas. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 25UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA Os trabalhos dos missionários sofreram vários percalços: a dificuldade de se fazerem compreender, a resistência dos indígenas em abandonarem suas prá- ticas sociais e valores e, após as epidemias de 1560 e 1563, terem sido responsabilizados pelas mortes. Também enfrentavam os constantes questio- namentos dos colonos. Acusavam-nos de reterem grande quantidade de trabalhadores sob suas ordens trabalhando para enriquecer a Companhia de Jesus, de não pagarem impostos, além de receberem recursos da Coroa. Os conflitos se ampliaram e culminaram na expulsão dos jesuítas, na administração do Marques de Pombal, em 1756. Cabe destacar que a vivência nesses aldeamentos criou a situaçãoda convivência entre índios de várias etnias, entre eles e europeus e negros, dando origem às bases da miscigenação e da hibridez cultural. Os aldeamentos jesuíticos eram, na verdade, grandes laboratórios sociais, voltados para a realização de dois projetos que se superpunham: o da Coroa – criar súdi- tos envolvidos com o sucesso do projeto de conquista e colonização da América portuguesa – e o da Igreja Católica – expandir sua fé pelo mundo e transformar os índios em bons súditos e cristãos. Para ambas as instituições, os índios deveriam se tornar produtores de artigos agrícolas, inseridos no mercado local e capazes de se auto sustentar e de su- prir as necessidades dos colonos, como trabalhadores dóceis e súditos fiéis ao Rei e ao Papa. INDICAÇÃO DE LEITURA O trabalho desenvolvido pelos jesuítas foi fundamental para o avanço da conquista e da colonização. Você poderá entender melhor essa importância lendo POMPA, Cristina. O LUGAR DA UTOPIA: OS JESUÍTAS E A CATEQUESE INDÍGENA In Novos Estudos, CEBRAP, N.° 64, novembro 2002, pp. 83-95, NOVEMBRO. Disponível em: Acesso em: 24. Jan.2011. SANTOS, Fabricio Lyrio. ALDEAMENTOS MISSIONÁRIOS E CATEQUESE INDÍGENA: NOVAS ABORDAGENS. 2008. Disponível em: . Acesso em: 24. Jan.2010. SUGESTÃO DE ATIVIDADE Pesquise se houve algum aldeamento administra- do por missionários nas proximidades de onde você mora. AS REFORMAS POMBALINAS E O PROJETO DE CI- VILIZAÇÃO O século XVIII, em Portugal, foi de grandes mudan- ças e conflitos. As ideias iluministas começaram a circular, as crises econômicas aconteceram, particu- larmente no que se referia á balança comercial com a Inglaterra. Também era tempo de modernizar a estrutura administrativa do Império, separar a Igreja e o Estado e definir as fronteiras americanas com a Espanha. Este conjunto de questões marcou o reinado de D. José I e foi o grande palco de atuação do seu Ministro, o Marquês de Pombal. ??? ??? SAIBA MAIS Devido ao desconhecimento das terras que estavam no interior das possessões espanhola e portuguesa na América, os limites entre os domínios dos dois países não eram claros. Essa situação terminava por criar conflito entre colonos e entre apresadores de escravos indígenas, colonos portugueses e missionários espanhóis. Além disso, dificultava a formulação de políticas de expansão econômica das duas Coroas. O Marquês via a questão indígena interagindo com três problemas que precisavam ser solucionados: o excesso de poder da Igreja, a necessidade de incorporar novos súditos produtivos e que pagassem impostos, e como definir, de forma favorável a Portugal, os limites de sua colônia na América. Para atender a todos esses aspectos e seguindo a sugestão de seu irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador do Estado do Grão Pará, em 1751, promulgou, entre 1755 e 1758, um conjunto de leis que alteraram de forma radical a forma de os índios serem administrados e seus destinos. As cartas de Mendonça Furtado atacavam violenta- mente os jesuítas, acusando-os de tirania no trato com os índios, de exercerem monopólio no comércio das especiarias, de possuírem imensas riquezas, de não 26 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A terem transformado os índios em súditos fiéis da Coroa e de, por ser a Ordem de origem espanhola, beneficiar os interesses daquele país. Essas e outras denúncias fizeram com que o ministro passasse a considerar os inacianos como os grandes responsáveis pelos proble- mas e dificuldades vividos por Portugal. INDICAÇÃO DE LEITURA Que tal aprofundar um pouco mais essa questão, lendo : PIRES, Maria Idalina, RESISTÊNCIA INDÍGENA NOS SERTÕES NORDESTINOS NO PÓS-CONQUISTA TERRITORIAL, 2009. Disponível em: Acesso em: 24. Jan.2011. Figura 13 – Foto do quadro Negociantes contando índios. Fonte: SPIX, J. B. von, MARTIUS, C. F. P. Disponível em Acesso em 24.jan.2011. A primeira medida adotada foi a de, através do Alvará de 07/06/1755, proibir a escravidão indígena no Grão Pará e de abolir o poder temporal dos religiosos nos aldeamentos, por considerar que sua forma de admi- nistrar era contrária à boa ordem e à administração da justiça. A administração temporal passava a ser de responsabilidade dos Juízes Ordinários, Vereadores, Oficiais de Justiça e índios naturais das aldeias e seus distritos. As aldeias independentes das vilas seriam administradas pelos Principais e seus subalternos. A Lei de 06/06/1755 estendia as decisões às demais Capitanias. INDICAÇÃO DE LEITURA Para saber como era difícil para os índios ocuparem os cargos de vereadores em seus antigos aldeamentos, leia o seguinte texto: ROCHA Rafael Ale, OS ÍNDIOS NAS CÂMARAS DAS VILAS DO ESTADO DO GRÃO PARÁ E MARANHÃO: UMA POLÍTICA DO ESTADO PORTUGUÊS. 2009. Disponível em: . Acesso em: 24.jan. 2011. Ante a reação negativa dos jesuítas a essas deci- sões, outras acusações lhes foram imputadas, o que culminou na decisão de expulsá-los, não só dos alde- amentos indígenas, mas de todo o Império luso, e de confiscar seus bens em 1759. As medidas também atin- giram outras ordens que missionavam entre os índios, embora seu afastamento tenha sido feito lentamente, ante a dificuldade de encontrar substitutos, párocos, para atuarem junto a essas populações. Para finalizar as medidas administrativas relativas aos índios, em 1757 foi promulgado o Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará e do Maranhão, cuja matriz de pensamento era a de promo- ver a integração dos índios à comunidade lusitana como súditos. Suas bases eram a de promover a civilização desses povos e de romper o isolamento em que viviam nos aldeamentos jesuíticos. Essa decisão, dentre outras razões, vinculava-se à questão da definição das fronteiras com a Espanha. O critério para defini-las foi o da efetiva ocupação, o que seria identificado a partir dos pontos limítrofes ocupa- dos por falantes do espanhol e do português. ?? VOCÊ SABIA? Em nome do progresso, da liberdade, da razão e da civilização, a organização social, política e cultural dos povos indígenas foi totalmente desrespeitada. O que se constatou foi que os índios aldeados não falavam o português, mas suas línguas nativas ou a chamada “língua geral”, que era uma língua criada pe- los jesuítas através da latinização do tupi. Era preciso impor-lhes a língua portuguesa e torná-los súditos defensores da Coroa lusitana e, para isso, era essencial ensinar-lhes hábitos “civilizados”. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 27UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA INDICAÇÃO DE LEITURA Esse projeto de transformação dos índios poderá ser melhor compreendido se você ler: GARCIA, Elisa Fruhauf. A “CONQUISTA” DOS SETE POVOS DAS MISSÕES: DE “ATO HERÓICO” DOS LUSO- BRASILEIROS A CAMPANHA NEGOCIADA COM OS ÍNDIOS. 2005. Disponível em: Acesso em: 24. Jan.2011. SUGESTÃO DE ATIVIDADE Assista ao filme A Missão, filme inglês de 1986, que mostra os efeitos dos acordos estabelecidos entre Portugal e Espanha sobre os índios que viviam na área denominada Sete Missões Guarani, na área conhecida como São Pedro e que hoje integra o território do Rio Grande do Sul. Acesse:que foram necessárias ou havia outras so- luções que poderiam ser adotadas? Para atrair os indígenas à esfera da influência por- tuguesa, os administradores metropolitanos conside- ravam essencial eliminar todas as diferenças, inclusive legais, entre os vários segmentos que compunham a população colonial. Para atingir essa meta, além das medidas acima referidas, o conjunto de leis deter- minava ainda que fossem garantidos aos índios a plena liberdade de comércio e uso dos bens indígenas pelos verdadeiros donos; elevação dos aldeamentos a vilas, estímulo aos casamentos interétnicos como forma de acelerar a integração e de aumentar as áreas cultivadas, o que também se refletiria no aumento do recolhimento dos impostos pelo governo. No mesmo sentido, foi determinada a extinção da propriedade coletiva da terra, substituindo-a pelo lotea- mento particular e a entrega da administração temporal a diretores que só seriam remunerados com o trabalho indígena e a cobrança de uma taxa sobre o salário que recebessem dos colonos e sobre o que comerciali- zassem. A presença desse administrador não índio era explicada pelo argumento de que este não estava capacitado a administrar seus bens e as vilas. INDICAÇÃO DE LEITURA A lei que garantia aos índios o direito de se autogovernarem não foi cumprida devido à visão negativa dos brancos sobre os índios. Veja por que razão, no texto : Teresinha Marcis, O EXERCÍCIO DO PODER EM UMA VILA INDÍGENA: OLIVENÇA-BA, 1824-1889. 2005. Disponível em: . Acesso em: 24. jan.2011. Figura 14 – Foto do quadro do Marquês de Pombal. Fonte: TAVARES. Ruy Pombal e a Censura Iluminada. Disponível em Acesso em 24.jan.2011. Os diretores deveriam também educar e civilizar os aldeados e lhes impor a língua e os costumes por- tugueses. Para tanto, era considerado fundamental o incremento do número de moradores nas aldeias de índios forros, moradores que poderiam arrendar as terras dos indígenas. 28 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A ??? ??? SAIBA MAIS Índios forros eram os índios não escravos, isto é, aqueles que não eram escravos e viviam aldeados sob a administração de missionários. Após o Diretório Pombalino, todos os índios se tornaram livres, o que não significou que aqueles que viviam sob a administração de particulares tenham sido libertados de fato. Dessa forma, o Diretório, em nome da necessidade de promover a civilização e de tornar os indígenas rapi- damente produtores de culturas diversificadas, inseri- dos nas redes de comércio interno e externo, pagadores de impostos e vassalos confiáveis, garantiu não só o livre acesso dos colonos à força de trabalho indígena, como também a suas terras. Portanto, o projeto de civilização vinculava-se diretamente à habilitação do trabalhador indígena, concebido a partir do modo de produção dominante da sociedade colonial. Os poderes atribuídos a um diretor, que não era re- munerado, geraram problemas sérios para os indígenas. Por terem o direito de acertar os contratos de trabalho e reter 2/3 dos salários, tornaram-se administradores vo- razes reduzindo o tempo que os índios podiam dedicar as suas roças. Como podiam retirar as terras daqueles que não cumpriam as metas de produção, terminavam por ampliar as áreas arrendadas aos colonos, diminuin- do cada vez as possibilidades de os índios produzirem e obterem sua autonomia, como previra a lei. Além do mais, os contratos de trabalho permitiam ao diretor reforçar sua rede de alianças locais, ao privilegiar seus aliados nos contratos de trabalho, em detrimento dos interesses dos aldeados. Da mesma forma, era proibido aos índios se ausen- tarem do aldeamento, pois isto implicaria em prejuízos. Argumentando que uma das formas de mantê-los satis- feitos era fazer com que eles vivessem em povoações e vilas e povoados iguais aos dos demais súditos, os administradores descaracterizaram os aldeamentos com construção de prédios públicos - câmara e cadeia -, o que, aos poucos, desfez os laços de pertença a um espaço indígena e atraiu colonos para as novas vilas criadas a partir dos aldeamentos indígenas. ??? ??? SAIBA MAIS Foram elevadas a vilas as seguintes aldeias, hoje no estado da Bahia: Natuba (hoje Nova Soure); Nossa Senhora da Escada de Olivença (hoje Olivença); Maraú (que recebeu o nome de Barcelos e hoje voltou a se chamar Maraú); Serinhaém (que passou a se chamar Santarém e hoje, Ituberá); São João dos Tapes (hoje Trancoso); Patatiba (hoje Vila Verde); Cana Brava (denominada de Ribeira do Pombal e hoje Banzaê); Espírito Santo de Abrantes (Abrantes, distrito do município de Camaçari); Viçosa (hoje Nova Viçosa); Aldeia das Lages (Prado); Belmonte (Belmonte); Nossa Senhora de Nazaré de Pedra Branca (Pedra Branca, distrito de Santa Terezinha); São Bernardo de Alcobaça (Alcobaça); São José de Porto Alegre (Mucuri); Nossa Senhora da Conceição dos Índios Gren (Almada); Saco dos Morcegos (Mirandela/ Banzaê). Insatisfeitos e empobrecidos ante a impossibilidade de produzirem o necessário para manter suas famí- lias, muitos índios optaram pela fuga e deserção, o que era encarado como uma ameaça aos projetos de incremento demográfico, econômico e militar, além de contrariar o maior interesse dos diretores e moradores: o de disporem de um celeiro de mão-de-obra ao qual tinham fácil acesso. Razão pela qual eram severamente punidos, quando recapturados. Os conflitos com os colonos pelo não cumprimento dos termos de contratos de trabalho e arrendamento/ invasão dos territórios indígenas agravaram as relações interétnicas, o que culminou na emissão de uma Carta Régia, em 1798, pela Rainha D. Maria I, que voltou a permitir que particulares realizassem descimentos e criassem aldeamentos particulares, satisfazendo os interesses dos colonos e abrindo novas frentes de conflito que serão melhor compreendidas no próximo capítulo, quando tratarmos do século XIX. EAD L IC EN CI AT UR A EM H IS TÓ RI A 29UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA Figura 15 – Foto de quadro de D. Maria I – Rainha de Portugal Fonte: Agência Brasil. Disponível em Acesso em 24.jan.2011. CAPíTULO VI: O SÉCULO XIX E AS PO- LíTICAS INDIgENISTAS O início do século XIX não apresentou grandes transformações na administração dos índios, o que não significa que as vidas desses atores sociais ficaram es- tagnadas. Os que continuaram sob a administração dos diretores de aldeamentos, segundo as normas definidas pelo Diretório dos Índios promulgado no reinado de D. José I, viviam as agruras da exploração excessiva de seu trabalho. Sua reação a essa situação variava entre a fuga para o mato, a busca de contratos de trabalho sem a intermediação do diretor ou, quando contratados através daquelas autoridades, atuarem de forma que não fossem valorizados pelos contratantes. O resultado era o crescente esvaziamento dos aldeamentos e o arrendamento das terras a particulares. Os dirigidos pelas determinações da Carta Régia de 1798 sofriam, igualmente, com a ação descuidada dos seus administradores, que os tratavam como se escravos fossem, sem lhes garantir os direitos legal- mente determinados. Sua insatisfação se expressava em revoltas e fugas, gerando prejuízos àqueles que os aldearam. As regiões de fronteira interna - particularmente no Oeste, na região de São Paulo e Paraná, na Amazônia e nas áreas de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo -, que, até então, haviam-se constituído em refúgio de grupos indígenas, após o decréscimo da produção de ouro e diamantes em Minas Gerais, tornavam-se áreas cobiçadas e vistas como solução para a crise econômica que afligia o Império português. Apesar das muitas correspondências enviadas ao Príncipe Regente D. João, este não tomou qualquer decisão sobre o