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Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
 
 
Licenciado sob uma Licença Creative Commons 
GUIMARÃES, M. L. 
 
Voltas pelo cancioneiro profano: questões sobre a poesia medieval 
 
Questions about medieval poetry: Galician-Portuguese Canticles 
 
Marcella Lopes Guimarães 
 
Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professora adjunta da mesma 
instituição, membro do NEMED e Editora chefe da Revista Diálogos Mediterrânicos, Curitiba, PR – 
Brasil. E-mail: marcella974@gmail.com 
 
Resumo 
 
A intenção desse artigo é apreciar as maneiras pelas quais a poesia em galego-português 
evidenciou a circulação de temas literários e notícias no Medievo a partir da especificidade do 
gênero literário e dos modos de trovar dos poetas dos cancioneiros, entre o século XIII e a 
primeira metade do XIV. 
 
Palavras-chave: Cantigas galego-portuguesas. Cancioneiros. Cantigas de seguir. Península 
Ibérica. 
 
Abstract 
 
The intention of this article is to assess the ways by which the poetry in Galician-Portuguese 
evidenced the circulation of literary themes and news in the Middle Ages from the specificity of 
the literary genre and of the modes of trovar of the poets of the songbooks, between the 
thirteenth century and the first half of the fourteenth. 
 
Keywords: Galician-Portuguese Canticles. Songbooks. Canticles of follow. Iberian Peninsula. 
 
Prolegômenos 
 
Entre 1388-1389, o cronista de Valenciennes Jean Froissart (1337-1405) se 
dirigiu à corte do Conde de Foix, Gastão Febo, em Ortez, para se informar: “c’est le 
moment où le conflit franco-anglais s’est deplacé dans la péninsule ibérique et où la 
guerre se fait par Espagnols et Portugais interposés”1. Já era um cronista conhecido, 
servira à rainha da Inglaterra Filipa de Hainaut (esposa de Eduardo III) e portava uma 
carta de recomendação de seu senhor Guy de Blois para estar na corte do Prince Soleil a 
fim de recolher informações. O resultado está no Livro III, obra que marca uma viragem 
 
1 ZINK, Michel. Froissart et le temps. Paris: PUF, 1998. p. 11. 
mailto:marcella974@gmail.com
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
no sentido de uma maior participação do narrador na narrativa e dá sobejas informações 
sobre os conflitos dinásticos em Portugal e Castela2. 
As crônicas históricas, escritas no ocidente medieval entre os séculos XIII e XV, 
de um projeto universal à particularização, reportam eventos além do reino onde a 
escrita se realiza. Como a matéria principal desses textos tem relação com conflitos 
transterritoriais, a narrativa convoca uma série de elementos, sucessos, fracassos e 
decisões concernentes a um perímetro largo e culturalmente diverso. O exemplo de 
Froissart encontra eco nas crônicas do castelhano Pedro Lopez de Ayala (1332-1407) e 
do português Fernão Lopes (1385-1460). Mesmo a crônica biográfica senhorial, como o 
Victorial de Gutierre Díez de Games (séc. XV), haveria de reportar inúmeros 
acontecimentos além Pirineus, sobretudo em razão da própria atuação do protagonista, o 
cavaleiro castelhano Pero Niño (1378-1453). 
As fontes da cronística são diversas: missivas, testemunhos, outras crônicas, a 
experiência pessoal..., mediadas pelo narrador que deve trabalhar em equipe, ainda que 
esse procedimento não abale a unidade do texto. Todos os autores citados aqui, que 
escreveram entre os séculos XIV e XV farão opção pela prosa. Froissart renunciará à 
poesia em favor da prosa, quando resolver escrever História. Ele e Ayala são bons 
exemplos, pois ambos cultivaram o lírico e demarcaram a diferença do trabalho 
historiográfico com a mudança do gênero literário. 
Optaram deliberadamente pela prosa pela possibilidade que o gênero lhes abria, 
de construir uma mediação mais impessoal em relação à matéria narrada, em 
comparação com a poesia, que tem como elemento constitutivo um eu lírico. Fizeram 
essa opção em um contexto em que a poesia se enfraqueceu como expressão da vida 
cortesã. Mas antes de ela recuar em favor da prosa, é preciso lembrar que a expressão 
poética impulsionou a linguagem dos povos. Segundo T. S. Eliot, 
 
O impulso concernente ao uso literário das linguagens dos povos começa 
com a poesia. E isso parece absolutamente natural quando percebemos que a 
poesia tem a ver fundamentalmente com a expressão do sentimento e da 
emoção; e esse sentimento e emoção são particulares (...) A emoção e o 
sentimento são, portanto, melhor expressos na língua comum do povo, isto é, 
na língua comum a todas as classes: a estrutura, o ritmo, o som, o modo de 
falar de uma língua expressam a personalidade do povo que a utiliza3 
 
 
2 GUIMARÃES, Marcella Lopes (org.). Por São Jorge! Por São Tiago! Batalhas e narrativas ibéricas 
medievais. Curitiba: Ed. UFPR, 2013. p. 132-140. 
3 ELIOT, T. S. “A função social da poesia” in De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991. p.30. 
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
Não por acaso as “certidões de nascimento” das línguas românicas são a sua 
poesia. E antes da prosa, a poesia exprimiu trânsitos culturais tão significativos quanto 
os reportados pelas crônicas medievais. A intenção desse artigo é apreciar as maneiras 
pelas quais a poesia evidenciou a circulação de temas e notícias a partir da 
especificidade do gênero literário e dos modos de trovar dos poetas do cancioneiro 
galego-português, entre o século XIII e a primeira metade do XIV. 
 
A circulação do tema poético lírico 
 
 
Levantou-s'a velida, 
 levantou-s'alva, 
e vai lavar camisas 
 eno alto, 
 vai-las lavar alva. 
 
Levantou-s'a louçana, 
 levantou-s'alva, 
e vai lavar delgadas 
 eno alto, 
 vai-las lavar alva. 
 
[E] vai lavar camisas; 
 levantou-s'alva, 
o vento lhas desvia 
 eno alto, 
 vai-las lavar alva. 
 
E vai lavar delgadas; 
 levantou-s'alva, 
o vento lhas levava 
 eno alto, 
 vai-las lavar alva. 
 
O vento lhas desvia; 
 levantou-s'alva, 
meteu-s'[a] alva em ira 
 eno alto, 
 vai-las lavar alva. 
 
O vento lhas levava; 
 levantou-s'alva, 
meteu-s'[a] alva em sanha 
 eno alto, 
 vai-las lavar alva.4 
[Levou-s'a louçana], levou-s'a velida: 
vay lavar cabelos, na fontana fria. 
 Leda dos amores, dos amores leda. 
[Levou-s'a a velida], levou-s'a louçana: 
vay lavar cabelos, na fria Fontana. 
 Leda dos amores, dos amores leda. 
 
Vay lavar cabelos na fontana fria: 
passou seu amigo, que lhi ben queria. 
 Leda dos amores, dos amores leda. 
 
Vay lavar cabelos, na fria fontana: 
passa seu amigo, que a muyt'amava. 
 Leda dos amores, dos amores leda. 
 
Passa seu amigo, que lhi bem queria: 
o cervo do monte a áugua volvia. 
 Leda dos amores, dos amores leda. 
 
Passa seu amigo que a muyt'amava: 
o cervo do monte volvia a áugua. 
 Leda dos amores, dos amores leda.5 
 
Pero Meogo 
 
4 Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas 
[base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 5 de maio 
de 2014] Disponível em: . 
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
 
D. Dinis 
 
As duas cantigas galego-portuguesas são cantigas de amigo, subgênero alba, e 
foram escritas por trovadores que viveram no mesmo contexto histórico, o século XIII. 
Ambas foram compiladas no Cancioneiro da Biblioteca Nacional e no da Vaticana. O 
rei de Portugal D. Dinis (1261-1325) investiu a expressão corrente da comunicação do 
reino em língua oficial, além de ter cultivado poeticamente essa língua. Sua obra 
manifesta um trânsito cultural consciente, pois além de revelarconhecimento, atualiza a 
recepção, caso das cantigas: “Proençaes soem mui bem trobar” e “Senhor fremosa e de 
mui loução”. Na primeira, diferencia a sua obra e o sofrimento que ela traduz, em 
comparação à obra e à sinceridade do trovar provençal. Na segunda, manifesta pleno 
conhecimento da literatura do norte da França6. 
Sobre Pero Meogo, trovador de quem sabemos pouco, Leodegário de Azevedo 
Filho acompanhando outros estudiosos afirmou que Meogo foi possivelmente um 
clérigo e teria vivido em Banga7. A base de dados desenvolvida no IEM/PT “Cantigas 
Medievais Galego-portuguesas”, Projeto Littera, refere conclusões de José António 
Souto Cabo sobre um clérigo de nome Petrus Moogus que teria vivido nos arredores de 
Compostela em um círculo que incluía outros trovadores8. 
Em Portugal ou na Galiza, o certo é que a leitura das duas cantigas aponta para 
um procedimento de glosa. Dadas as incertezas que cercam a biografia de Meogo, não é 
possível definir quem glosou quem, mas isso não importa para a evidente variação de 
um tema análogo. Do ponto de vista da expressão poética, a variação ilustra a circulação 
do tema entre Portugal e Galiza. Nos dois casos, a jovem se afasta da casa, para junto à 
fonte lavar ora as camisas, roupa da sua intimidade; ora seus cabelos, ícone da sua 
feminilidade. Ocupadas nesse ofício, encontram o elemento masculino, que em uma 
cantiga é o cervo e na outra é o vento. O certo é que em ambos os casos, trata-se do 
amigo e essa identificação é facilmente detectável a partir das imagens disponíveis nos 
 
5 AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. As Cantigas de Pero Meogo. Estabelecimento crítico dos textos, 
análise literária, glossário e reprodução facsimilar dos manuscritos. Rio de Janeiro: Edições Gernasa e 
Artes Gráficas Ltda. 1974. p. 59. 
6 BOISSELLIER, Stéphane, DARBORD, Bernard et MENJOT, Denis. L’Atelier du médiéviste 12, 
Langues Médiévales ibériques. Domaines espagnol et portugais. Turnhout : Brepols, 2012. p.452. 
7 AZEVEDO FILHO, Leodegário de. As cantigas de Pero Meogo. Estabelecimento crítico dos textos, 
análise literária, glossário e reprodução fac-similar dos manuscritos. Rio de Janeiro: Ed. Gernasa e Artes 
Gráficas Ltda. 1974. p. 18 e 19. 
8 Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas 
[base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 5 de maio 
de 2014] Disponível em: . 
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
cancioneiros medievais. Na cantiga de Pero Meogo, a diferença mais significativa é a 
expressão do estado de paixão, afinal a jovem vai “leda dos amores, dos amores leda”. 
Ressalte-se que, do ponto de vista fonético, as cantigas insistem nos mesmos fonemas 
/v/ e /l/, e essa aliteração também tem efeito evocativo, sobretudo levando-se em conta a 
performance. 
Também como glosa, podemos compreender as cantigas de João Zorro e Airas 
Nunes: 
 
Bailemos agora, por Deus, ai velidas, 
sô aquestas avelaneiras frolidas, 
e quem for velida, como nós velidas, 
 se amigo amar, 
sô aquestas avelaneiras frolidas 
 verrá bailar. 
 
Bailemos agora, por Deus, ai loadas, 
sô aquestas avelaneiras granadas, 
e quem for loada, como nós loadas, 
 se amigo amar, 
sô aquestas avelaneiras granadas 
 verrá bailar.9 
 
João Zorro 
 
Bailemos nós já todas três, ai amigas, 
sô aquestas avelaneiras frolidas, 
e quem for velida, como nós, velidas, 
 se amigo amar, 
sô aquestas avelaneiras frolidas 
 verrá bailar. 
 
Bailemos nós já todas três, ai irmanas, 
sô aqueste ramo destas avelanas, 
e quem for louçana, como nós, louçanas, 
 se amigo amar, 
sô aqueste ramo destas avelanas 
 verrá bailar. 
 
Por Deus, ai amigas, mentr'al nom fazemos 
sô aqueste ramo frolido bailemos, 
e quem bem parecer, como nós parecemos, 
 se amigo amar, 
sô aqueste ramo, sol que nós bailemos, 
 verrá bailar.10 
 
Airas Nunes 
 
Sabe-se mais sobre Airas Nunes que sobre João Zorro. O primeiro ligado à corte 
de Castela e o segundo, talvez a Portugal, dadas às referências poéticas a Lisboa. É 
possível que também tenham vivido no mesmo contexto histórico. Como nas cantigas 
de D. Dinis e Pero Meogo, a glosa se faz no gênero da cantiga de amigo, mas desta vez 
no subgênero bailada e, embora os cancioneiros em que as suas cantigas foram 
compiladas (Biblioteca Nacional e Vaticana) não refiram explicitamente a categoria de 
cantiga de seguir para o caso de Nunes ou Zorro, é bastante plausível percebê-las dentro 
da categoria abordada no IX Capítulo da “Arte de Trovar”: 
 
 
Outra maneira há i em que trobam do[u]s homens e que chamam seguir; e 
chamam-lhe assi porque convém de seguir cada um outra cantiga, a som ou 
 
9 Idem. 
10 Idem. 
 
 
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em p[alav]ras ou em todo. E este seguir se pode fazer em três maneiras. A ũa, 
filha[m]-se o som doutra cantiga e fazem-lhe outras palavras tam iguaes 
come as outras, pera poder e[m] elas caber aquel som mesmo. E este seguir é 
de meos em sabedoria, porque [nom] toma nada das palavras da cantiga que 
segue. 
Outra maneira i há de seguir a que chamam palavra por palavra, e [é] porque 
convém, o que e[m] esta maneira quiser seguir, que faça a cantiga nas rimas 
da outra cantiga que segue, e sejam iguaes e de tantas silabas ũas come as 
outras, pera poderem caber em aquele som mesmo. 
E outra maneira i há de seguir em que nom segue[m todas] as palavras, [mais 
ũas] fazem-nas das outras rimas, iguaes daquelas, pera poderem caber em 
aquel som mesmo; mais outra[s] daquela cantiga que seguem as devem de 
tomar ou trameter, [e] fazerem-lhe dar aquel entendimento mesmo per outra 
maneira. E pera maior sabedoria pode[m]-lhe dar aquel [refram] mesmo, em 
outro entendimento, per aquelas palavras mesmas; assi é a melhor maneira de 
seguir, porque dá ao refram outro entendimento per aquelas palavras mesmas, 
e tragem as palavras da cobra a concordarem com el.11 
 
Além de versos praticamente iguais, que seguem a sonoridade, com repetição 
dos mesmos fonemas /b/, /l/, /v/ e /m/, uma delas segue o refrão. Do ponto de vista 
semântico, em ambas sobressai a cena da reunião de jovens sobre a aveleira em flor, ou 
seja, da árvore antes da época dos frutos (quase um semestre depois). As imagens 
poéticas se nutrem da experiência e, portanto, há diferença entre convocar uma 
avelaneira em flor e uma já repleta de seus frutos. As jovens que dançam ao abrigo 
desse arbusto buscam a sua companhia em sintonia com o estado da natura, um estado 
de espera. Não por acaso é o fruto – a avelã – que ocupa um espaço em ritos 
matrimoniais12. Novamente, não interessa demarcar o primeiro “autor” da cena, mas o 
trânsito poético, que promove a circulação do tema, a partir da ideia de seguir. 
 
As sequências e contestações no cancioneiro satírico 
 
En Arouca ũa casa faria; 
atant'ei gran sabor de a fazer 
que já mais custa non recearia 
nen ar daria ren por meu aver, 
ca ei pedreiros e pedra e cal; 
e desta casa non mi míngua al 
se nom madeira nova, que queria. 
 
E quen mi a desse, sempr'o serviria, 
ca mi faria i mui gran prazer, 
de mi fazer madeira nova aver, 
en que lavrass'ũa peça do dia, 
e pois ir logo a casa madeirar 
Don Afonso López de Baian quer 
fazer sa casa, se el pod' aver 
madeira nova; e, se mi creer, 
fará bon siso: tanto que ouver 
madeira, logo punh' ena cobrir, 
o fundamento ben alt'; e guarir 
pod'o lavor per i, se o fezer. 
 
E, quand'el a madeira adusser, 
guarde-a ben e faça-a jazer 
en logar que non chôvia, ca torcer- 
s'-ia mui tost', e non ar á mester; 
e, se o lavor non quer escarnir,11 Idem. 
12 Chevalier, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, 
formas, figuras, cores, números (15ª ed.). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. 
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
e telhá-la; e pois que a telhar, 
dormir en'ela de noit'e de dia. 
 
E, meus amigos, par Santa Maria, 
se madeira nova podess' aver, 
logu' esta casa iria fazer 
e cobri-la e descobri-la-ia, 
e revolvê-la, se fosse mester; 
e se mi a mi a abadessa der 
madeira nova, esto lhi faria.13 
 
Afonso Lopes de Baião 
 
abra-lh'o fundament'alt'; e ferir, 
e muito batê-lo, quanto poder. 
 
E pois o fundamento aberto for 
alt'e ben batudo, pode lavrar 
en salvo sobr'el; e, pois s'acabar, 
estará da madeira sen pavor; 
e do que diz que a revolverá, 
ant'esto faça, senon matar-s'-á, 
ca est'é o começo do lavor. 
 
E Dom Afonso pois há tal sabor 
de fazer bõa casa, começar 
a dev[el] assi; e des i folgar 
e jazer quand'e quand’, u mester for 
descobri-la e cobri-la poderá 
e revolvê-la, ca todo sofrerá 
a madeira, e seerá-lhi en melhor. 
 
E Don Afonso tod'esto fará 
que lh'eu conselho; se non, perder-s'-á 
esta casa per mao lavrador.14 
 
Paio Gomes Charinho 
 
Afonso Lopes de Baião é um trovador que pratica a poesia em contexto anterior 
ao círculo poético de D. Dinis. Foi mesmo casado com a sobrinha de outro trovador15. 
Sua família foi referida no Nobiliário do Conde D. Pedro e essa preeminência colabora 
para o rastreamento de sua atuação no contexto histórico. Sobre o mosteiro de Arouca 
onde o eu lírico buscaria “madeira nova”, costuma-se aludir à sua má fama, mas 
também foi espaço de refúgio de algumas damas de alta linhagem, cujas famílias talvez 
estivessem implicadas nas disputas entre Sancho II de Portugal e seu irmão, o futuro 
Afonso III16. O certo é que, ignorada a má reputação da abadia e a resposta do trovador 
Paio Gomes Charinho, a cantiga de Baião seria de difícil classificação, pois a leitura 
literal restringiria o sentido para o desejo de um homem de montar casa, tendo quase 
todas as condições materiais para fazê-lo, excetuando a “madeira nova”. Entretanto, a 
poesia medieval vive de “palavras encuberbas” e jogos de contrários, como tanto a 
 
13 CANTIGAS D’ESCÁRNIO E DE MAL DIZER dos cancioneiros medievais galego-portugueses. Ed. 
crítica e vocabulário do Prof. Manuel Rodrigues Lapa. Porto: Edições ASA, 1998. p.57. 
14 Idem, p. 199. 
15 Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas 
[base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 6 de maio 
de 2014] Disponível em: . 
16 Idem. 
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
“Arte de Trovar” quanto a II Partida de Afonso X (1221-1284) comprovam17. Portanto, 
todas as associações, dados do contexto e pontos de vista devem ser levados em 
consideração para promover a compreensão da sátira. Assim, tendo todas as condições 
para construir uma casa, o eu poético dirige-se justamente à má afamada vila de Arouca 
para fixar-se e requisitar à abadessa o que lhe falta, “madeira nova”, ou seja, uma jovem 
mulher18. A glosa de Paio Gomes Charinho reforça os bons requisitos elencados na 
primeira cantiga, personificando o projeto de construção da casa na biografia do autor: 
“Don Afonso López de Baian quer/ fazer sa casa”. Mas a resposta do trovador ainda 
merece acrescentamento. 
Charinho e Baião teriam participado da conquista de Sevilha, em 1248, mas 
seguiram rumos diferentes. Baião em Portugal, e Charinho em Castela, onde seria 
mesmo nomeado Almirante. A experiência do mar alimenta a sua poesia lírica e satírica. 
Assim, trilhando rumos diferentes, a glosa da cantiga de Baião manifesta a continuidade 
da tertúlia como passatempo cortês19, sendo desnecessária a presença dos envolvidos no 
mesmo espaço de atuação. Ora a própria vocação extraterriorial20 da nobreza peninsular 
tornava a todos em alguma medida conhecidos de todos. 
O cancioneiro satírico é fecundo nessas glosas e réplicas. E a maneira reiterada 
como alguns personagens são detratados faz supor que essas sequências e seguires 
poderiam ser muito mais fecundos que a reunião quinhentista dos cancioneiros mais 
completos conseguiu levar a cabo. Assim, Álvaro Rodrigues teria levado a mal, teria 
rido confiante no jogo escarninho dos contrários ou ainda teria respondido às 
provocações de Estevão da Guarda, quando este escarnece do apreço do protagonista 
pelo seu jovem mouro21? Se as iluminuras do Cancioneiro da Ajuda dão boa pista a 
 
17 Sobre a análise do “jugar de palavras” no cancioneiro satírico: SODRÉ, Paulo Roberto. O Riso no jogo 
e o jogo no riso na sátira galego-portuguesa. Vitória: EDUFES, 2010. 
18 Conferir a obs. da pág. 76 de BARROS, José D’Assunção. “Os trovadores ibéricos e as tensões sociais: 
enfrentamentos internobiliárquicos (séculos XIII e XIV)” in Revista Signótica v. 23, n.1, 2011. 
Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/sig/article/view/16146 (acesso em 6 de maio de 
2014). 
19 SODRÉ, Paulo Roberto. “O nome de donas e soldadeiras nas cantigas satíricas de Afonso X” in Revista 
Convergência Lusíada 27, janeiro-junho 2012. p.84. Disponível em: 
http://www.realgabinete.com.br/revistaconvergencia/pdf/1161.pdf (acesso em 6 de maio de 2014) 
20 Sobre isso, conferir a argumentação de FERNANDES, Fátima Regina. “A nobreza, o rei e a fronteira 
peninsular” in En la España Medieval, 2005, 28, p.155-176. Disponível em: 
http://revistas.ucm.es/index.php/ELEM/article/viewFile/ELEM0505110155A/21845 (acesso em 6 de 
maio de 2014). 
21 Alvar Rodríguiz dá preço d'esforço 
a est'infante mouro pastorinho 
e diz que, pero parece menin[h]o, 
que parar-se quer a tod'alvoroço; 
http://www.revistas.ufg.br/index.php/sig/article/view/16146
http://www.realgabinete.com.br/revistaconvergencia/pdf/1161.pdf
http://revistas.ucm.es/index.php/ELEM/article/viewFile/ELEM0505110155A/21845
 
 
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respeito da importância hierarquicamente superior da performance em relação aos 
conflitos e situações de cada cantiga no século XIII, as preferências de Álvaro 
Rodrigues cantadas aos quatro cantos pelos jograis até poderiam ter despertado um 
desejo de resposta que não sobreviveu... 
O que dizer da “questão da ama” de que participam vários trovadores a partir da 
célebre cantiga de amor de João Soares Coelho22? De João Garcia de Guilhade e as 
reprovações à felicidade conjugal do jogral Martim, ou seria este um jogo de contrários? 
Das tenções? Das alusões à covardia entre cavaleiros? Dos remoques aos reis? Enfim, 
há sobejos exemplos em que uma série de elementos da vida e da sociabilidade cortesã 
estão na berlinda23 ao sabor da extraterritorialidade também de trovadores e jograis. 
Segundo José D’Assunção Barros, 
 
Entre algumas singularidades do trovadorismo galego-português – destaca-se 
o fato de que os meios trovadorescos ibéricos do século XIII eram ambientes 
excepcionalmente abertos à crítica social, política e pessoal. Isso porque o 
discurso poético-satírico ou travestido através do humor permitia que muita 
coisa podia ser dita por meio das canções trovadorescas, o que incluía críticas 
sociais e políticas de todos os tipos. Nem mesmo o rei, que abria 
generosamente o seu Paço para os espetáculos e saraus trovadorescos, 
escapou de algumas críticas bem-humoradas que ficaram registradas nas 
páginas desta poesia. Também a Religião e a Igreja foram amplamente 
criticadas por alguns poetas satíricos, por intermédio de depreciações dos 
dignitários eclesiásticos, de críticas às vezes ácidas à Igreja, ou de eventuais 
questionamentos em relação à própria religiosidade tradicional em si mesma. 
Por fim, a arena social dostrovadores ibéricos dava-se de maneira tal que 
todas as classes e grupos sociais podiam se criticar reciprocamente com 
relativa liberdade.24 
 
O caso das cantigas de seguir 
 
Na base de dados “Cantigas Medievais Galego-portuguesas” desenvolvido no 
IEM/PT, apenas 3 cantigas são classificadas como de seguir: duas do trovador 
português João de Gaia e uma do galego Lopo Dias. A obra do trovador Gaia floresce 
na última etapa do cultivo da poesia medieval em galego-português. A sua vida 
 
e maestr'Ali, que vejas prazer, 
d'Álvar Rodriguiz punha de saber 
se fode já este mouro tan moço. 
1ª estrofe de um dos escárnios dirigidos a Álvaro Rodrigues. 
CANTIGAS D’ESCÁRNIO E DE MAL DIZER dos cancioneiros medievais galego-portugueses. Ed. 
crítica e vocabulário do Prof. Manuel Rodrigues Lapa. Porto: Edições ASA, 1998. p.90. 
22 Cantiga: “Atal vej'eu aqui ama chamada”. 
23 Evoco o título de Paulo Sodré: Um trovador na berlinda: as cantigas de amigo de Nuno Fernandes 
Torneol (São Paulo: Ibis, 1998). 
24 BARROS, José D’Assunção. “Os trovadores ibéricos e as tensões sociais: enfrentamentos 
internobiliárquicos (séculos XIII e XIV)” Op. Cit., p. 66. 
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
transcorre entre o reinado do rei trovador e o do Bravo, colaborador do Salado (1340). 
Muitas coisas podem ser afirmadas sobre Afonso IV de Portugal, mas não que se 
dedicara à poesia. No caso de Lopo Dias, sobram dúvidas, mas há grande possibilidade 
de a sua poesia ser da fase inicial do trovadorismo português. O seguir da cantiga “Em 
este som de negrada” se remete, a partir da primeira palavra, ou seja, do primeiro verso, 
ao som25. 
O Cancioneiro da Biblioteca Nacional atribui a João de Gaia três cantigas 
satíricas. Assunção de Barros26 aborda as transformações sociais e econômicas que 
estariam na origem da sátira não pertencente à categoria de seguir a um cavaleiro (não 
nominado) que trocara de senhor 3 vezes em 6 meses. Pode-se acrescentar, porém, que a 
divisão do reino motivada pela disputa do infante contra o pai dificilmente colaborava 
para o fablar en gasaiado27, sobretudo se o herdeiro não cultivava a poesia. Nesse 
sentido, o conde de Barcelos Pedro Afonso, filho bastardo de Dinis e irmão do ciumento 
príncipe, é um letrado que sintetiza as mudanças culturais do contexto, ao ainda praticar 
a poesia28, mas já dirigir projetos que haveriam de plantar a crônica em Portugal, como 
a redação da Crónica de 1344. 
As cantigas de seguir de João de Gaia são amparadas por rubricas bem 
detalhadas. Ora, a singularidade desse exercício poético, aliado ao conhecimento das 
circunstâncias do seguir e ao caráter tardio da sua obra, em relação aos momentos mais 
fecundos do trovadorismo galego-português, fazem supor que suas sátiras conheceram 
prestígio no contexto. O primeiro seguir que examinamos é o que tem como alvo um 
Bispo de Viseu: 
 
Rubrica: 
Esta cantiga foi seguida per ũa bailada que 
diz: "Vós havede'los olhos verdes e matar-
m'-edes com eles." E foi feita a um bispo de 
Viseu, natural d'Aragom, que era tam cárdeo 
 
25 Na base de dados “Cantigas Medievais Galego-portuguesas”, comenta-se que “A forma desta cantiga 
foi interpretada por Manuel Pedro Ferreira como sendo similar à do zajal árabo-andaluz”. Essa 
interpretação é alusiva ao seguir mourisco a que o trovador se refere. 
Por palavra e cobra, refiro-me ao verso e à estrofe respectivamente, como se estabelece na “Arte de 
Trobar”. 
26 Idem, p. 81. 
27 “Momento de gozar alegremente o convívio cortesão” in SODRÉ, Paulo Roberto. O Riso no jogo e o 
jogo no riso na sátira galego-portuguesa. Vitória: EDUFES, 2010. P.48. 
28 Evoco a reflexão de Graça Videira Lopes sobre a sinceridade no cancioneiro galego-português e em 
particular na poesia do conte: LOPES, Graça V. E DIZEM ELES QUE É COM AMOR. Fingimento e 
sinceridade na poesia profana galego-portuguesa. Disponível em 
http://www.fcsh.unl.pt/docentes/gvideiralopes/index_ficheiros/sinceridade.pdf (acesso em 12 de maio de 
2014). 
http://www.fcsh.unl.pt/docentes/gvideiralopes/index_ficheiros/sinceridade.pdf
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
com[o] cada ũa destas cousas que conta em 
esta cantiga ou mais e apoinham-lhe que se 
pagava do vinho. 
 
 
 
Eu convidei um prelado a jantar, se bem me venha. 
Diz el em est': - E meus narizes de color de berengenha? 
 Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles! 
 
- O jantar está guisado e, por Deus, amigo, trei-nos. 
Diz el em est': - E meus narizes color de figos sofeinos? 
 Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles! 
 
- Comede mig'e dirám-nos cantares de Martim Moxa. 
Diz el em est': - E meus narizes color d'escarlata roxa? 
 Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles! 
 
- Comede mig'e dar-vos-ei ũa gorda garça parda. 
Diz el em est': - E meus narizes color de rosa bastarda? 
 Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles! 
 
- Comede mig'e dar-vos-ei temporão figo maduro. 
Diz el em est': - E meus narizes color de morec'escuro? 
 Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles! 
 
- Treides mig'e comeredes muitas boas assaduras. 
Diz el em est': - E meus narizes color de moras maduras? 
 Vós havede'los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles!29 
 
Como esclarecido na rubrica, a cantiga segue um verso parodiado no refrão. Ao 
trocar “olhos” por “alhos”, o trovador talvez saia do ambiente lírico, de um possível 
elogio aos olhos verdes, que Camões continuaria a fazer 2 séculos depois, para inserir 
seu protagonista em uma cena de excessos em que os “alhos verdes” colaborariam para 
aguçar a vontade de beber do protagonista. A cantiga lança mão de uma série de 
imagens colhidas à natureza, à especificidade de gostos e hábitos alimentares radicados 
no reino português: “figos sofeinos”, “gorda garça parda”, “moresc’ escuro” e as “moras 
maduras”. A prova da sua pertinência e singularidade é consolidada pela necessidade da 
compreensão dos elementos isolados que, entretanto, associados de forma poético-
satírica, propiciam a burla. Ora, só ri da piada quem a entende. O trovador deve recorrer 
a um repertório comum para elaborar seus jogos verbais. 
A cantiga também encena uma tenção, afinal são dois os personagens que falam: 
o eu poético e o prelado convidado a jantar. Na cena, o clérigo tem direito a mais 
 
29 Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas 
[base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 6 de maio 
de 2014] Disponível em: . 
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
expressão: a segunda palavra de cada cobra e o refrão. O eu promete um lauto banquete 
e o clérigo, talvez desconfiado da burla, interpõe dificuldades. O tamanho da cantiga, 
manifesto em suas voltas, reforça a réplica que ganha graça com as propostas e 
respostas de ambos os lados. O eu não dirige remoques, é só o autor do convite e da 
insistência; o trovador caçoa da aparência do prelado colocando na boca deste os 
detalhes físicos burlescos. A rubrica afirma que o prelado era “cardeo”, ou seja, tinha 
aparência arroxeada30, e apreciava bastante o vinho... Mas quem seria? 
Segundo a base de dados que vimos utilizando, elaborada por pesquisadores do 
IEM/PT, esse prelado poderia ser Miguel Vivas, confessor da rainha santa Isabel. Teria 
atuado de forma destacada no reinado do herdeiro Afonso IV, inclusive junto à 
Chancelaria. A se confirmar a vinculação do personagem à cantiga de Gaia é possívelduvidar da leitura literal e investir todas as fichas no sentido promovido pelo jugar de 
palavras. Entretanto, sendo o alvo Miguel Vivas ou não, ou sendo o prelado em questão 
amante do vinho ou não, o certo é que a cantiga manifesta um trânsito de informação e 
investe na paródia como leitura e prolongamento do tema. Aliás, a cantiga aponta para 
pelo menos 3 desdobramentos da circulação da informação: a bailada que motivou o 
seguir, a realização de Gaia e a possibilidade de um novo seguir, tenção ou glosa do 
trovador Martim Moxa, referido explicitamente na 2ª cobra. 
A segunda cantiga de seguir de Gaia possui rubricas mais robustas que a própria 
composição: 
Rubrica: 
Rubrica anterior: 
Diz ũa cantiga de vilãao: "A pee d'ũa torre, 
baila corpo probo. Vedes o cós, ai 
cavaleiro!". E Joam de [...] 
Rubrica posterior: 
Esta cantiga seguiu Joam de Gaia per 
aquela de cima de vilãaos, que diz a refrom: 
"Vedes lo cós, ai, cavaleiro!" E feze-a a um 
vilãao que foi alfaiate do bispo Dom 
Domingos Jardo de Lixbõa e havia nome 
Vicente Domingues, e depois pose-lhi nome 
o bispo Joam Fernandes; e feze-o servir ante 
si de cozinha e talhar ant'el; e feze-o el-rei 
Dom Denis cavaleiro; e depois morou na 
freguesia de Sam Nicolao e chamarom-lhi 
Joam Fernandes de Sam Nicolao. 
 
 
Vosso pai na rua 
 
30 Idem. 
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
ant'a porta sua: 
 vede'lo cós, ai cavaleiro! 
 
Ant'a sa pousada, 
em saia 'pertada: 
 vede'lo cós, ai cavaleiro! 
 
Em meio da praça, 
em saia de baraça: 
 vede'lo cós, ai cavaleiro!31 
 
A rubrica faz referência a um gênero de cantigas previsto na “Arte de Trovar”, 
que, entretanto, só tem esse apontamento para provar sua existência, trata-se da cantiga 
de vilão. Segundo o capítulo VIII da arte poética, em si pouco legível: 
 
Outrossi outras cantigas fazem os trobadores, a que chamam de vilãas. Estas 
cantigas […] sem mao lengua[ge], nam som per al erradas (?), per que as 
nom escarniom i. Como outras cantigas, pode[m-n]as fazer de quantos talhos 
[quiserem].32 
 
A única coisa que podemos afirmar com segurança é a possibilidade concreta de 
vilãos também trovarem, aliás, em defesa do seu trovar a uma ama, João Soares Coelho 
desafiou seus detratores: 
 
E o vilão que trobar souber 
que trob'e chame "senhor" sa molher, 
e haverá cada um o seu dereito.33 
 
Ou seja, para trovar, era preciso apenas saber fazê-lo. 
As cantigas de vilão não foram compiladas nos cancioneiros da poesia medieval 
em galego-português que conhecemos. Porém, a rubrica atesta sua existência e mais: o 
trânsito de motivos poéticos entre a rua e o paço. João de Gaia segue a cantiga de vilão 
aproveitando-se de parte do que parece ser o seu refrão. A segunda rubrica esclarece o 
sucedido: um alfaiate feito cavaleiro em resposta a um pedido do bispo de Lisboa. Com 
isso, até muda de nome. O acontecimento e o remoque revelam a possibilidade de 
mobilidade social e a reação jocosa do segmento social “inchado”, o dos cavaleiros. É 
bastante irônico pensar que Gaia também se beneficiara da mediação do mesmo rei D. 
Dinis para a sua legitimação34. Essa ironia não seria inapreensível em seu contexto... 
 
31 Idem. 
32 Idem. 
33 Idem. 
34 Idem. 
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
Excluindo-se o refrão, porém, a cantiga só reporta as circunstâncias de exercício 
de um ofício: o de alfaiate. Ele confecciona e conserta roupas em frente à sua casa, 
diante ou no meio da praça. É o refrão (seguido da cantiga de vilão) que promove a 
sátira na medida em que aproxima mundos que, pelo menos nos textos que tentavam 
compreendê-los, apareciam separados. Nascida na rua, as cantiga migra para o paço 
para reportar de forma jocosa uma alteração social promovida pelo rei! Mas não ri do 
rei, ri de quem, mesmo mudado, não pode esconder a própria origem. 
O caráter lúdico da poesia colabora para a possibilidade de uma crítica que toca 
a sensibilidade do público. Remoques, devoção, o amor e o sofrimento, de cantigas 
satíricas, religiosas, de amor e de amigo, na Idade Média eram indissociáveis da arte 
que, dentre as sete artes liberais, era a mais perfeita, a música. Ora nenhuma 
circunstância promovia mais a circulação de temas poéticos e notícias que a 
performance que incluía essa “suprême expression de la joie divine et humaine”35. 
 
Considerações finais 
 
As cortes medievais colmataram uma sociabilidade repleta de nuances. A poesia 
era um elemento constitutivo dessa vida cortesã e foi incluída entre as preocupações 
legislativas de Afonso X, que sugeriu regras para o fablar en gasaiado. A preocupação 
do rei é realçada, quando evocamos a sua prática poética plural. 
A leitura dos cancioneiros descortina uma série de relações entre os trovadores – 
desde os temas poéticos, como nas cantigas do rei Dinis, de Meogo, Zorro e Airas 
Nunes, até as tenções, remoques, glosas e seguires de Baião e Charinho, Álvaro 
Rodrigues, João Soares Coelho e tantos outros, cujas referências conhecemos ou se 
perderam. Mas um aspecto foi realçado em particular neste artigo: a circulação da 
informação nos cantares de seguir. Como sugeri, é possível que a categoria cubra mais 
cantigas que os apontamentos quinhentistas tenham definido, ou seja, que sejam mais 
numerosos que os casos de Lopo Dias e João de Gaia, vide a correspondência da regra 
aos casos de João Zorro e Airas Nunes. 
O exame dos seguires de Gaia, beneficiados pelas rubricas dos cancioneiros, 
revelou um curioso caminho que incluía a incorporação poética do tema da rua pelo 
trovador cortesão. Sugere ainda que a cantiga de vilão foi praticada, apenas não 
 
35 LE GOFF, Jacques. Un Moyen Âge en images. Paris : Hazan, 2007. p. 283. 
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
prestigiada o suficiente para figurar nos cancioneiros quinhentistas. O trovador teve 
mais “pejo” de cantar a turbação social resultante de um filho de alfaiate que vira 
cavaleiro que fazer uso de um segmento da cantiga de vilão em seu cantar. No caso da 
cantiga que tem como alvo o prelado, o seguir é reenquadrado na paródia e pode se 
beneficiar do jugar de palavras. Ora, mesmo transformado, o verso “primeiro” não é 
perdido, o que supõe que as versões conviveram a ponto de ser possível evocá-las na 
composição dos cancioneiros. 
A poesia oferece um alargamento do entendimento da relação entre as fontes de 
informação no medievo. As crônicas compilam documentos sem pudor, pois esse modo 
de proceder confere autoridade ao texto, mesmo quando se trata de confrontar as 
fontes36. A poesia é mais sinuosa no trato documental e essa qualidade ilumina vias de 
comunicação – como as da rua para o paço – mais plurais e inusitadas, a partir de 
repertórios comuns. Aliada à música e realizada de forma performativa, seu potencial 
comunicativo era maior que o da prosa e se escudava na arte divina e humana, como 
postulou Le Goff, para afirmar nas barbas do rei paixões por damas conhecidas e mais 
subversivamente “E o vilão que trobar souber que trob'e”! 
 
Referências 
 
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crítico dos textos, análise literária, glossário e reprodução facsimilar dos manuscritos. 
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enfrentamentos internobiliárquicos (séculos XIII e XIV) in Revista Signótica v. 23, n.1, 
2011. Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/sig/article/view/16146 
(acesso em 6 de maio de 2014). 
 
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médiéviste 12, Langues Médiévales ibériques.Domaines espagnol et portugais. 
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CANTIGAS D’ESCÁRNIO E DE MAL DIZER dos cancioneiros medievais galego-
portugueses. Ed. crítica e vocabulário do Prof. Manuel Rodrigues Lapa. Porto: Edições 
ASA, 1998. 
 
 
36 Conferir a discussão da relação de Fernão Lopes com o texto de Pero Lopez de Ayala em 
GUIMARÃES, Marcella Lopes. “O subtexto do Chanceler Pero Lopez de Ayala na Crônica de D. João I 
de Fernão Lopes referente ao biênio de 1383-1384: autoridade e desafio.” In Scripta Mediaevalia, v.2, 
p.107 - 126, 2009. 
http://www.revistas.ufg.br/index.php/sig/article/view/16146
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
Chevalier, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Mitos, sonhos, 
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números (15ª ed.). Rio de Janeiro: José 
Olympio, 2000. 
 
ELIOT, T. S. A função social da poesia in De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense, 
1991. 
 
FERNANDES, Fátima Regina. A nobreza, o rei e a fronteira peninsular in En la 
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http://revistas.ucm.es/index.php/ELEM/article/viewFile/ELEM0505110155A/21845 
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narrativas ibéricas medievais. Curitiba: Ed. UFPR, 2013. 
 
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Crônica de D. João I de Fernão Lopes referente ao biênio de 1383-1384: autoridade e 
desafio. In Scripta Mediaevalia, v.2, p.107 - 126, 2009. 
 
LE GOFF, Jacques. Un Moyen Âge en images. Paris : Hazan, 2007. 
 
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LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais 
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Afonso X in Revista Convergência Lusíada 27, janeiro-junho 2012. Disponível em: 
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SODRÉ, Paulo. Um trovador na berlinda: as cantigas de amigo de Nuno Fernandes 
Torneol. São Paulo: Ibis, 1998. 
 
ZINK, Michel. Froissart et le temps. Paris: PUF, 1998. 
 
 
 
 
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http://www.fcsh.unl.pt/docentes/gvideiralopes/index_ficheiros/sinceridade.pdf
http://www.realgabinete.com.br/revistaconvergencia/pdf/1161.pdf
 
 
Rev. História Helikon, Curitiba, v.2, n.2, p.55-71, 2º semestre/2014. 
 
Data de recebimento e aprovação 
 
Recebido: 21/07/2014 
Received: 21/07/2014 
Aprovado: 16/10/2014 
Approved: 16/10/2014

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