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<p>DOSSIÊ BRASIL 500 ANOS – Folha de São Paulo, Suplemento Mais, 2000.</p><p>Visões do Negro</p><p>MARILENE FELINTO</p><p>DA EQUIPE DE ARTICULISTAS</p><p>No século 15, quando o infante Dom Henrique ordenou que suas caravelas fossem ao país da Guiné, "onde as gentes são extremamente negras", em busca de cristãos e especiarias, estavam lançadas as sementes da gênese americana e brasileira.</p><p>Com o correr dos séculos, o contato entre brancos e negros não só foi conformando a geografia física e humana das Américas como se constituiu na primeira tomada de consciência da unidade do planeta.</p><p>O fim do século 20 tem sido marcado pela rediscussão da participação e do direito da raça negra na conformação daquele novo mundo.</p><p>No Brasil, onde já em fins do século 18 havia cerca de um milhão de brancos contra dois milhões de negros e pardos, estudos sobre a presença do negro na formação do "caráter nacional brasileiro" vêm sendo feitos desde meados do século 19. Verdade que a visão do negro na principal historiografia brasileira é até hoje trabalho de branco: são brancos Silvio Romero, Gilberto Freyre e Euclides da Cunha, para citar apenas alguns dos mais importantes estudiosos do assunto.</p><p>Este número do "Mais!", que reúne a história das principais idéias sobre o negro brasileiro, inicia a cobertura especial que a Folha fará durante o ano sobre problemas raciais e a condição do negro no Brasil, por ocasião dos 300 anos da morte de Zumbi, comemorados em 20 de novembro.</p><p>Zumbi foi chefe do Quilombo dos Palmares, o mais importante movimento de rebeldia de escravos negros do Brasil colonial.</p><p>Além de uma série de reportagens, a Folha realizará sobre o tema eventos, exposições, conferências e debates abertos ao público.</p><p>(1) A voz dissonante de Joaquim Nabuco</p><p>ANGELA M. ALONSO</p><p>ESPECIAL PARA A FOLHA</p><p>Em 1883, como parte da campanha abolicionista que tomava o país, aparecia "O Abolicionismo", panfleto escrito pelo jovem político Joaquim Nabuco (1849-1910). O livro, orientado para a atuação política, apresentava uma análise sociológica formulada a partir de um radicalismo crítico nunca antes aplicado à análise do país. Face ao grosso da geração de jovens intelectuais de fins do Segundo Reinado, que, calcada nas teorias cientificistas aportadas entre nós nas últimas décadas do século 19, explicava o atraso brasileiro tendo por base o determinismo biológico ou histórico, Nabuco discrepava.</p><p>Muito embora aceitasse as conclusões da ciência de seu tempo no que diz respeito a uma hierarquia biológica entre as raças, sua interpretação do Brasil foi construída de uma perspectiva política, e não cientificista, que buscava investigar as condições mais profundas para a efetivação da modernidade no Brasil.</p><p>Sua questão central não era a adaptabilidade da civilização européia em terras tropicais ou os males que poderiam advir da mistura de raças, mas identificar os alicerces do atraso brasileiro. Isto é, Nabuco subvertia as emergentes explicações dos teóricos raciais: não seria a miscigenação o cerne do problema, mas uma instituição social, a escravidão, decorrente de uma organização social específica, esta sim responsável pela degeneração não apenas do escravo como também do senhor.</p><p>Ou seja, ao invés da raça, Nabuco toma a escravidão, como relação social paradigmática, como categoria central para análise da sociedade brasileira tomada como totalidade.</p><p>A escravidão assume, portanto, uma importância epistemológica; sendo o próprio motor interno de funcionamento da sociedade brasileira, nela deveria ser buscada a raiz dos males nacionais. Nabuco apresenta, portanto, a instituição da escravidão, e não a raça negra, como origem dos problemas; degenerado é o homem que vive em cativeiro, é o escravo, não o negro. Nabuco —eis aí a novidade— concede a escravidão como uma relação de dominação, a qual supõe uma mútua dependência e uma mútua desqualificação de senhores e escravos.</p><p>Sendo a marca de seu atraso, a escravidão, com suas implicações políticas, econômicas, jurídicas e morais, impossibilita não apenas o progresso material do país, mas impede a formação da própria nação. Neste sentido, ao invés de acompanhar a onda de explicações biologizantes, Nabuco opta por uma explicação sociológica— não é um fator atávico que causa o atraso, mas uma instituição criada e mantida pela sociedade.</p><p>Daí a possibilidade de reversão do atraso estar posta fundamentalmente na mudança desta instituição e de seus efeitos. Isto é, as transformações de que o país necessitava para entrar no concerto das nações civilizadas passariam por uma mudança da estrutura política, em seu sentido mais amplo, e não por intervenções eugênicas, já que apenas politicamente poderiam se deslindar os nós górdios de nosso atraso.</p><p>É claro que Nabuco não atravessou incólume a onda das teorias raciais, não deixou de tomar os africanos e asiáticos como atrasados em relação aos europeus e de considerar nefasta a miscigenação quando estava em pauta a imigração chinesa para o Brasil.</p><p>Porém, sua ênfase está nas condições sociais desse processo. A questão será tomada a partir da inserção do Brasil no movimento capitalista internacional, o que significava instaurar aqui seus pressupostos: trabalho livre e cidadania. É justamente a contradição entre as leis liberais, orgulho do Império, e a realidade crua da escravidão que Nabuco vai apontar.</p><p>A constituição do Império trazia inscrita em sua própria letra a garantia das liberdades, mas incluía entre elas a própria liberdade de possuir escravos. Sendo a cidadania a condição do capitalismo moderno, punha-se a claro sua incompatibilidade com o trabalho escravo.</p><p>Nabuco aponta que o problema está na escravidão em si como parte necessária que era de uma sociedade baseada no latifúndio agro-exportador e na monocultura. De nada adiantaria trocar os negros por qualquer outro povo, ainda que fossem colonos europeus, se não houvesse uma reforma social completa, passando pela reforma agrária, pela mudança de leis e costumes e pelo enquadramento de escravos e senhores em um regime de equidade, pelo qual ambos se tornassem cidadãos.</p><p>Muito embora Nabuco visse vantagens na imigração européia, seu foco está posto na transformação da própria sociabilidade brasileira porque a boa imigração, assim como a tão almejada civilização, só se efetivaria no Brasil se o país lhe oferecesse o que tinha na Europa ou nos Estados Unidos: cidadania e capitalismo.</p><p>Nesse sentido, o liberalismo de Nabuco é mesmo um "novo liberalismo": visava garantir não apenas as condições econômicas do capitalismo —os direitos econômicos e políticos— mas enfatizava, fundamentalmente, a aquisição de direitos sociais. Isto é, postulava que o liberalismo econômico, pilar do Império, sem democracia social efetiva jamais alçaria o Brasil à condição de nação civilizada.</p><p>A radicalidade de sua análise sociológica não o levou, porém, a uma aposta revolucionária; monarquista que era, Nabuco investiu em reformas sociais e políticas internas ao quadro institucional do Império. A República viria solapar seu reformismo; mudando o regime político sem transformar a sociedade, nos legou, sem resolvê-los, os pontos de estrangulamento do Império que Nabuco tão bem diagnosticou.</p><p>(2) Dois autores atormentados com o mundo tropical das raças mistas</p><p>LILIA MORITZ SCHWARCZ</p><p>ESPECIAL PARA A FOLHA</p><p>No Brasil o tema da identidade nacional é quase uma obsessão. Na verdade, essa mania de refletir sobre o que somos e o que não somos; ou acerca do que faz do Brazil, Brasil, não é de hoje. Mas se a questão é antiga, foi no século 19 que a inquietação se manifestou de forma mais evidente.</p><p>Com efeito, independente politicamente a partir de 1822, essa monarquia tropical, cercada de repúblicas por todos os lados, precisava provar para os outros e para si mesma que aqui havia uma nação e quiçá um povo.</p><p>Porém, o Brasil romântico dos anos 800 elegeu sobretudo o indígena como seu símbolo e representação, preferindo deixar esquecida sua realidade negra e mestiça. De fato, apesar do projeto do naturalista K. von Martius, que já em 1844 chamava a atenção</p><p>para a especificidade da "civilização local" —onde "três raças humanas são colocadas uma ao lado da outra de maneira desconhecida"—, o Brasil dos Institutos Históricos, das Academias Imperiais e das benesses do monarca apagou de seu registro o africano.</p><p>Homens de "sciencia"</p><p>Foi só no final do século passado que o negro passou a ser tema da intelectualidade nacional, nesse contexto, profundamente influenciada por modelos deterministas e evolutivos de análise.</p><p>Nesse panorama, destacam-se dois autores —Nina Rodrigues (1862-1906), da Faculdade de Medicina da Bahia, e Silvio Romero (1851-1914), da Escola de Direito de Recife— que passam, enquanto "homens de sciencia", a lidar com a questão, sem esconder suas apreensões.</p><p>Como afirmava de forma impiedosa Silvio Romero, no prefácio à obra de Nina Rodrigues, "Africanos no Brasil", "o negro não é só uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e malgrado a sua ignorância, um objeto de sciencia".</p><p>Tratado como objeto de ciência, o negro virava tema de estudos acadêmicos, que em geral oscilavam entre, de um lado, reconhecer o caráter singular desse país miscigenado e, de outro, divulgar as conclusões pessimistas dos mestres europeus que não viam futuro "em um país de raças mistas".</p><p>O imperador mulato</p><p>O momento não estava, porém, para consensos. Enquanto Silvio Romero advogava, em 1888, a idéia de que "o mestiço é a nação em formação" e concluía que "somos um país mestiço, se não no sangue ao menos na alma (...) pouco adianta discutir se isso é um bem ou um mal; é um fato e basta" —e ainda se dava ao luxo de ironizar a situação: "O primeiro imperador foi deposto porque não era nato, o segundo há de sê-lo porque não é mulato"; já autores como Nina Rodrigues revelavam ora curiosidade, ora temor frente a essa nação mestiça.</p><p>Assim, se foi esse médico maranhense o primeiro a se preocupar em catalogar as várias nações africanas que vieram ao Brasil, ou mesmo a denunciar a violenta repressão policial aos "candomblés da Bahia", também foi ele quem passou a vida toda atormentado pelo que chamou ser "o problema negro", ou seja, nossa falta de "uniformidade étnica" e "fraqueza biológica".</p><p>Apesar de se dizer um "simpatizante das populações negras", Rodrigues defendeu posições radicais, um ano antes da abolição da escravidão, criticando "a irresponsabilidade dos juristas", que não viam que "a igualdade de direitos era uma utopia". "Os homens nascem diferentes", rebatia, defendendo a tese de que "as disparidades raciais deveriam levar à conformação de códigos penais também diversos, adaptados aos diferentes graus de evolução".</p><p>Originalidade nacional</p><p>A defesa da diferença nem sempre se fez, portanto, em uma só direção. Com efeito, essa foi uma geração atormentada entre a vontade de reconhecer e elogiar uma certa originalidade nacional ou fazer jus às teorias estrangeiras que viam na mistura um mal e na diferença entre as raças um elemento fundamental.</p><p>Afirmar, na época, que "era preciso não ter preconceito e reconhecer as diferenças", como o fez Silvio Romero, não significava exaltar particularidades, mas antes resignar-se às desigualdades e à idéia da inferioridade de certos grupos. Objeto de análise, objeto de raça e de sua condição, aos negros, nesse contexto intelectual, não cabia qualquer local para a auto-afirmação.</p><p>No entanto, se é evidente o grau de racismo presente na obra desses intelectuais do 19 —tão deslumbrados pelo caráter premonitório dos modelos evolucionistas, que garantiam aos brancos a supremacia e a civilização—, talvez tenham sido eles os inspiradores de uma certa representação, anos depois vitoriosa. Afinal, foi nos anos 30 e sobretudo a partir da interpretação culturalista de Gilberto Freyre que o mestiço, de desalento, se transforma em fortuna, "na sua mais completa tradução".</p><p>LILIA K. MORITZ SCHWARCZ é professora de antropologia na USP, autora de "Retrato em Branco e Negro" (Companhia das Letras)</p><p>(3) Um mestre francês reflete sobre a civilização em branco e preto</p><p>FERNANDA PEIXOTO</p><p>ESPECIAL PARA A FOLHA</p><p>Não é possível comentar a obra de Roger Bastide (1898-1974) sem fazer referências ao Brasil e aos temas relacionados à problemática negra, em seus variados aspectos; a presença do elemento negro se impunha a qualquer tentativa de compreensão do país. Desde o momento em que desembarca em solo brasileiro, o professor francês volta-se imediatamente para o exame da contribuição africana na formação de nossa cultura mestiça.</p><p>O foco inicial escolhido pelo sociólogo para o estudo do sincretismo e da herança africana recairá, não por acaso, sobre as manifestações artísticas. Durante as décadas de 20 e 30, parte significativa da produção ensaística de Bastide diz respeito à reflexão sobre arte, sobretudo em sua interface com a experiência místico-religiosa, e sobre sociologia da religião. Munido de um instrumental analítico afiado em questões desse naipe, o sociólogo dividirá sua primeira fase da estada em São Paulo entre cursos de estética sociológica ministrados na universidade e pesquisas sobre arte brasileira.</p><p>Nos ensaios sobre o barroco reunidos em "Psicanálise do Cafuné - Estudos de Sociologia Estética Brasileira" (1941), as preocupações de Bastide ficam claras: trata-se de avaliar a especificidade dos produtos estéticos aqui produzidos em relação aos modelos europeus. Assim, ele coloca-se, precocemente, contra a idéia da mera cópia ou da simples importação de modelos. A tarefa primordial do crítico diante da realidade brasileira seria examinar o material cultural originário —e singular— da mescla de modelos europeus e raízes africanas. Daí o seu interesse pelo barroco brasileiro, capaz de fornecer plasticamente —seja nas fachadas da igrejas ou na figura do Aleijadinho—, o mapa desse país cindido, de raízes coloniais e escravistas.</p><p>Nas pesquisas sobre a poesia afro-brasileira, Bastide explicita mais uma vez preocupações que irão atravessar toda a sua obra sobre o Brasil. O estudo, publicado em 1943, trata das dificuldades de constituição de uma poesia afro-brasileira original, em um contexto onde os conflitos raciais encontram-se atenuados. Diante desse quadro, o intérprete vai tentar localizar os ecos africanos na poesia realizada pelos negros e mulatos no Brasil, abafados, desde o período colonial, por grossas camadas de verniz europeu.</p><p>As reflexões de Bastide sobre a presença do negro e do mulato na arte brasileira vão se desenvolver paralelamente às primeiras viagens que ele realiza pelo Brasil na década de 40, relatadas no livro "Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto" (1945). Datam desse momento seus primeiros escritos sobre as religiões afro-brasileiras, objeto dos grandes trabalhos publicados na década de 60: "Religiões Africanas no Brasil", onde encontra-se construída uma verdadeira sociologia das manifestações religiosas de origem africana no Brasil e "O Candomblé: Rito Nagô", estudo de caráter antropológico onde o candomblé é analisado como universo autônomo.</p><p>Os debates e críticas suscitadas pela obra de Bastide acerca dos cultos afro-brasileiros (uma das objeções diz respeito à idealização das raízes africanas, ao culto da pureza "nagô", que marcaria a visão do estudioso) só confirmam a importância de seus trabalhos. Não é possível discutir umbanda e candomblé no Brasil sem tomá-lo como referência primeira. Assim como qualquer estudo sobre sincretismo religioso não pode ignorar as noções de "princípio de corte" e de "interpenetração de civilizações" por ele elaboradas, que complexificaram a visão da heterogeneidade cultural brasileira.</p><p>Os escritos de Bastide mostram que no Brasil acervos culturais distintos se reuniram sem perderem suas características originais (daí a substituição gradativa do termo sincretismo pelo de "interpenetração"). Tal fato pode ser observado nos cultos religiosos onde os afro-brasileiros participam, simultaneamente, de dois universos culturais —o católico e o africano— que não se misturam completamente devido ao "princípio de corte".</p><p>Roger Bastide fez escola entre nós, formou sucessivas gerações</p><p>na USP como as de Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Maria Isaura P. de Queiroz, Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni, entre outras. Seus antigos alunos são unânimes em afirmar que foi pelas mãos do mestre francês que conheceram o Brasil e a cultura afro-brasileira. Seus colegas de ofício também são enfáticos nesse ponto. Diz Pierre Verger: "Foi Bastide que me revelou a África no Brasil!".</p><p>Além de seu papel docente e do impacto de sua obra entre nós, Bastide formou diversos pesquisadores através do projeto que coordenou na década de 50 com Florestan Fernandes sobre as relações raciais entre brancos e negros em São Paulo, patrocinado pela Unesco, e que deu origem a uma série de trabalhos sobre o negro e o preconceito de cor no Brasil.</p><p>Mas tal literatura, bem como as distintas orientações dos escritos de Bastide e Florestan no contexto desse projeto, dariam início a um outro texto.</p><p>(2) Uma genealogia das imagens do racismo</p><p>MUNIZ SODRÉ</p><p>ESPECIAL PARA A FOLHA</p><p>Drácula, bem o sabem os aficionados, não se reflete no espelho —logo, é sem imagem. O mito do vampiro tem sido persistente no imaginário contemporâneo, talvez porque indique, com alguma magia, a armação da cultura em construção de uma identidade. O conde Drácula é o inverso da identidade normalizada pela cultura pequeno-burguesa. E, para coroar todas as suas inversões antropológicas, não aparece no espelho.</p><p>Mais uma razão, assim, para a atualidade desse mito. Na sociedade da imagem (anagrama de magia) ou dos dispositivos de visão, o sujeito só existe se aparece no "espelho", isto é, se tem condições socioculturais de ter imagem publicamente reconhecível.</p><p>Passados 300 anos de Zumbi dos Palmares, os ecos brasileiros dessas discussões primeiro-mundistas em torno de quociente de inteligência, superioridade ou inferioridade de raças parecem-me abrigar, na verdade, uma outra questão, que pode ser anunciada da seguinte maneira: Qual o quociente de "aceitabilidade" da imagem do homem de pele escura numa ordem social que ilumina suas pretensões planetaristas e hiper-racionalistas com tonalidades branco-européias?</p><p>Para responder a essa questão, é preciso remontar historicamente a "fontes" de imagens coletivas do homem negro no Brasil. Não qualquer fonte, certamente, mas aquelas bem acolhidas pelas elites e pelos aparatos de reprodução das idéias (escolas, manuais escolares, academias, obras literárias etc) postos sob a égide do Estado nacional.</p><p>Sabe-se que todo Estado nacional procura instituir uma "comunidade nacional" na base de uma etnicidade fictícia —e se entende o "fictício" não como mera ilusão, mas como a montagem de um efeito institucional com sentido histórico preciso. A partir de critérios linguísticos e biológicos, o Estado "etniciza" a população, essencializando as suas representações por meio de ideologias nacionalistas ou mitos de identidade baseados em cultura, origem e projeto coletivo presumidamente comuns.</p><p>A identidade assim obtida permite a idealização das relações políticas que instituem a cidadania. É o Estado que a garante como ficção étnica, certo, mas como ficção única, desenhada contra o pano de fundo da cultura universalista européia, que classifica a diversidade humana por categorias étnicas ("etnicidades") unas, únicas e diferentes. Características linguísticas, mas também somáticas e psicológicas funcionam como operadores públicos dessa ficção.</p><p>Pouco importa que já desde o século passado um pensador do porte de Max Weber tenha proposto em Economia e Sociedade o abandono da etnia como conceito sociológico, por considerá-lo cheio de ambiguidades e contradições. Na prática, a etnicidade tem livre curso como dialética de uma comunidade e uma história, desenhando as linhas de uma identidade e uma diferença coletivas.</p><p>A nação resulta de jogo dialético entre uma herança comunitária e uma história onde se constrói uma entidade política. O imaginário, o fictício entram no jogo quando se trata de forjar uma identidade coletiva. Tomar essa identidade como "natural" é esquecer ou recalcar a trama histórica de sua montagem, abrindo caminho para estigmatizações e racismos.</p><p>As teorias etnicistas alemãs, desde Fichte, incorporavam a crença na naturalidade étnica. Talvez também por isso os pensadores brasileiros que, a partir do declínio do Império, se indagaram sobre a identidade nacional, fossem bastante sensíveis à questão da etnia. Silvio Romero, autor de uma famosa História da Literatura Brasileira (1888), localizava a identidade étnica do brasileiro na mestiçagem, física ou psicológica. Para ele, a influência africana era maior que a européia ou a indígena, o que faria a distinção entre o elemento nacional brasileiro e o das outras nações hispano-americanas.</p><p>Enquanto Romero encarava a ascendência africana —mesmo às vezes ambiguamente— como um traço positivo, escritores como Euclides da Cunha ( Os Sertões, 1902) e Oliveira Vianna ( Populações Meridionais do Brasil, 1910), embora também ambíguos em algumas partes de suas obras, tendiam a ver no negro ou na miscigenação fatores de instabilidade social e de enfraquecimento intelectual frente a Portugal ou a nações "brancas".</p><p>A verdade é que, desde a Independência (1822), as representações racistas, enquanto sistema de pensamento institucional, tinham começado a exacerbar-se no Brasil. Os negros foram deixados de fora do pacto social instaurador da nova ordem, e os índios apenas simbolicamente incluídos.</p><p>A relação social racista impôs-se com mais força à consciência pequeno-burguesa depois da abolição da escravatura, no instante em que as antigas hierarquias sociais sentiram-se ameaçadas. Era a época em que o negro despontava como objeto de ciência para alguns setores da intelectualidade nacional, ao mesmo tempo em que se expandia a "ideologia do embranquecimento". Esta última alimentou os dogmas da superioridade racial, do determinismo climático, da geopolítica, da filosofia eugenista, que redundaram em instituições como a Liga de Higiene Mental ou em pensamentos como os de Oliveira Vianna e Euclides da Cunha.</p><p>Oliveira Vianna, advogado, mulato, repetia muitas das opiniões de Silvio Romero e Euclides da Cunha. Ele começa Populações Meridionais do Brasil com loas à "genialidade" de gente como Lapouge, Gobineau e outros pais do racismo doutrinário. Mas seu real objetivo era refletir sobre como poderia uma população racialmente miscigenada como a do Brasil preservar a sua unidade nacional e desempenhar um papel no mundo moderno. Em sua tentativa de resposta, os mestiços apareciam como seres "inferiores", embora houvesse aqueles que, por terem "aparência ariana" (cabelo, cor da pele, moralidade dos sentimentos etc), faziam exceção. Com esta ressalva, Vianna buscava certamente livrar a própria cara.</p><p>A ideologia do embranquecimento, já presente na obra de Oliveira Vianna, era no fundo uma tentativa de preservar a discriminação contra eventuais efeitos colaterais da abolição. Representava a passagem do racismo de dominação ao racismo de exclusão.</p><p>Dessa ideologia excludente procedem as fontes de imagens racistas circulantes na contemporaneidade. Suas premissas são entretanto acadêmica e cientificamente irrelevantes.</p><p>Por quê?</p><p>1º) Em primeiro lugar, porque não existe a raça negra. Se é sociologicamente ambíguo, como já indicamos, o conceito de etnia, o de raça é ainda mais problemático. Inexiste raça, a não ser a humana. Montaigne já o havia dito: "Todo homem carrega a forma inteira da humana condição". Ou seja, "raça" não é mais do que a "humana condição". Fora disso, existem linhas morfológicas (formato craniano, tipo de cabelo, cor da pele etc) que já permitiram à antropologia física classificar os grandes grupos humanos como "caucasóides", "mongolóides" e "negróides".</p><p>Esses traços visíveis (ponto de partida para qualquer imagem) não têm nenhuma coerência genética com outros traços não imediatamente visíveis, a exemplo da frequência de proteínas séricas na gamaglobulina. É possível, portanto, que um indivíduo de pele branca apresente genes de origem negróide, como correu</p><p>recentemente em pesquisa feita na região de Porto Alegre (cf. Joel Rufino em Atrás do Muro da Noite).</p><p>O que existe mesmo é a diversidade das linhas morfológicas da "raça humana" em função da adaptação territorial e a diversidade dos modos pelos quais cada grupo humano relaciona-se com o seu real, ou seja, a diversidade das culturas. A diferença dita étnica resulta de uma combinação de linhas morfológicas com singularidades linguísticas e culturais. Mas essa diferença é simbolicamente, culturalmente construída. Quanto à raça, é tão só uma invenção de quem nela crê, daquela consciência que sobrecarrega a percepção de imagens fantasiosas.</p><p>2º) Um certo senso comum precisa continuar acreditando na idéia de raça ou em algo equivalente. De fato, com a desmoralização científica do conceito de raça, o racismo ideológico ou doutrinário —o mesmo em que trafegaram Oliveira Vianna, Euclides da Cunha e outros— perdeu suas bases biológicas e sobrevive apenas como aberração de pensamento junto a grupos anacrônicos ou a pseudo-cientistas.</p><p>Resta para o senso comum (as representações sociais, as opiniões, a antiga dóxa), um vazio de classificação ou de saber em face da alteridade humana. Como ajustar a consciência à percepção daquele que, por ter cor e cabelo diferentes, sabe-se ser "outro"?</p><p>Ou seja, como ajustar, num mundo regido por imagens tecnicamente normalizadas, a imagem de um "outro" à minha própria? A idéia de raça torna-se operativa (ou mesmo a de etnia, que pode esconder a noção de raça).</p><p>Embora não exista raça, o senso comum constrói imaginariamente a relação racial. A discriminação desse tipo vem a calhar, porque todo racismo implica um saber automático (sem dúvidas, sem discussões) sobre o outro. Vê-se a cor da pele e, como um passe de mágica ou de imagem, tem-se a ilusão de um saber-poder sobre o outro diferente. Rosenberg, teórico do nazismo, bem o percebeu: "Os que sabem tudo não têm medo de nada".</p><p>Há, assim, na consciência racista ou na neo-racista, uma busca de exorcismo do vampiro, do medo do outro. Há a secreta esperança de estabelecer "relações de verdade" com concidadãos familiares. Isso importa no momento da cultura ocidental em que a questão da verdade universal se enfraquece juntamente com o esvaziamento dos sistemas metafísicos —religião, ciências humanas, doutrinas morais e filosóficas.</p><p>Afirmando-se uno, idêntico a si mesmo e a um grupo determinado pelos traços visíveis da cor, o sujeito da consciência discriminante acredita entrar numa relação de verdade com membros de uma comunidade imaginariamente semelhante em tudo —da cor aos genes. Uma falsa verdade estatui: somos radicalmente idênticos, os que não se parecem conosco são radicalmente diferentes, logo discrimináveis, já que não nos comunicamos com eles em termos de "verdade".</p><p>O ocaso do racismo doutrinário ou ideológico não acaba com a discriminação, precisamente porque esta não é mais questão de razões de Estado colonialista nem de evolucionismo teórico. A discriminação foi assimilada pelo senso comum e difrata-se no mundo das práticas cotidianas, porque é uma espécie de saber-poder.</p><p>Na microfísica das relações humanas, esse suposto saber automático sobre o diferente gera poder. É preciso não esquecer que o nazi-fascismo não estava só no Estado nazi-fascista, mas também na multiplicidade dos atos cotidianos de um vizinho ou de um colega de trabalho. O saber discriminante tem estreita analogia com a caracterologia histérica e obsessiva.</p><p>Ao contrário do que possam pensar os otimistas das chamadas tecno-democracias ocidentais, apologistas do mundo neoliberal, a globalização cultural só tem exacerbado a discriminação étnica. Com o aumento da mobilidade migratória das populações e com a acelerada circulação das imagens públicas das variadas espécies humanas, cada um vê-se compelido, muito mais do que no passado, à troca com a alteridade. O Ocidente culto estava preparado para reconhecer o direito à diferença. Mas descobre a duras penas que a questão não é apenas intelectual, ou seja, que não se resolve por reconhecimento nem por direito.</p><p>Há aí uma verdadeira questão simbólica, mais difícil do que a socioeconômica e mesmo a psicológica. A questão simbólica não passa por reconhecer ou desconhecer, mas por dar e receber ou hospedar e ser hospedado. Implica reversibilidade das trocas.</p><p>Ora, abrigar o outro (o migrante, o estrangeiro, o diferente) sem a mediação de uma ética do acolhimento parece ameaçar a consciência viciada no individualismo moderno. O "outro" representa a ameaça fantasmática de dividir o espaço a partir do qual falamos e pensamos. É essa a ameaça (arcaica, primitiva) que espreita a consciência discriminante: o medo de perder o espaço próprio. Medo primitivo, análogo ao terror noturno das crianças. O "outro" acaba virando Drácula, sem imagem legítima.</p><p>Voltar a falar hoje da tradição de pensamento racista no Brasil faz sentido, porque é fundamental rever o posicionamento das elites logotécnicas (articulistas, editorialistas, jornalistas de destaque, publicitários, programadores culturais, professores etc) no que diz respeito à questão étnica. Não tem sido uma questão prioritária para as elites e no entanto vem sendo um problema crescente na ordem global contemporânea.</p><p>A formação de uma imagem total, diz Paul Virilio, é tributária de uma iluminação. O que tem "iluminado" no espaço público/mediático do Brasil a imagem dos descendentes de Zumbi? As tonalidades ainda sombrias da consciência discriminante. Pode-se até aceitar o fato de que a imagem do negro tenha melhorado aqui e ali, mas a sua real condição é desastrosa, quando se pensa em termos de distribuição de renda, de emprego e de oportunidades educacionais. Diferentemente do que ocorre nos EUA, não se pode citar uma só "família tradicional" negra.</p><p>É que aqui são fundas as raízes da discriminação. Nelas tropeçam até mesmo as consciências ditas iluministas, por deliberação (caso vergonhoso de figuras públicas ou jornalistas que são abertamente racistas no vídeo, sem que ninguém proteste) ou por ato falho —quando alguém diz, por exemplo, que tem pé na cozinha por ser mulato. A nação real é uma metonímia dos Palmares. Mas suas elites estamentárias —leitoras de Oliveira Vianna e quejandos nas escolas— olham no espelho europeu para se verem como moços de fino trato ou, como canta Caetano Veloso em seu último disco, "caballeros de fina estampa". É preciso reeducar as elites com a lição de Zumbi dos Palmares.</p><p>(5) Assimilação marginal ao mundo do trabalho livre</p><p>MARIA ARMINDA ARRUDA</p><p>ESPECIAL PARA A FOLHA</p><p>"A Integração do Negro na Sociedade de Classes", de Florestan Fernandes, publicada em 1965 e, originariamente, sua tese de cátedra em sociologia, representa um momento de viragem nas análises sobre a questão racial no Brasil, além de ser obra importante no interior da produção intelectual do autor. Expressa, ao mesmo tempo, a persistência do seu interesse no tema das relações interétnicas, já demonstrado na pesquisa "Brancos e Negros em São Paulo", realizada em colaboração com Roger Bastide.</p><p>Situando a problemática na transição "da ordem social escravocrata e senhorial" para o "desenvolvimento posterior do capitalismo", o sociólogo constrói uma forma particular de tratar o assunto, evidenciando a condição de marginalidade dos negros e dos mulatos.</p><p>Ao eleger a cidade de São Paulo como universo empírico privilegiado, realça-se uma situação paradigmática de exclusão social dos negros, por tratar-se do "primeiro centro urbano especialmente burguês", regido por mentalidade mercantil, iniciativa individual e liberalismo econômico, ingredientes que respaldavam o progresso encetado no período em questão.</p><p>Nesse quadro, a obra analisa os impasses vivenciados por negros e mulatos no esforço de inserção na nova ordem social, pontuada pelo "estilo de vida individualista e competitivo", construído pelo "novo regime de relações de produção". O problema racial, focalizado no prisma da dinâmica global de modernização da sociedade brasileira, evidente em São Paulo, revela a natureza</p><p>do recorte temático escolhido.</p><p>A rápida transformação ocorrida na cidade de São Paulo, entre o fim do século 19 e o começo do 20, teria impossibilitado, segundo o estudo, a inserção do negro e do mulato no estilo urbano de vida. Ou, nos termos do autor, a heteronomia presente na "situação de castas", típica da condição escrava, impediu aos ex-escravos a assimilação das potencialidades presentes na "situação de classes".</p><p>Profundos desajustamentos resultaram desse processo, respondendo pela desorganização de negros e mulatos no novo contexto social. A extinção da escravatura não promoveu a reintegração dos egressos, relegando-os ao seu próprio destino, desterrados para as sombras da sociedade que se modernizava. Paralelamente a esse posicionamento social ambíguo ao qual eram empurrados, desenhavam-se os contornos do Brasil moderno e as direções que se pretendiam imprimir na sociedade de classes.</p><p>Ressocialização</p><p>O estatuto de pessoas juridicamente livres não significou, portanto, mudança substancial na condição de excluídos dos antigos escravos, impedindo-os de alçarem-se categoria de cidadãos que, de resto, era o apanágio dos dominantes.</p><p>Ausentes a democratização efetiva e os direitos e deveres fundamentais dos indivíduos no plano concreto, a realidade instaurada alijou o negro do mercado de trabalho e da "ordem social competitiva", corroendo os fundamentos jurídicos e morais das relações contratuais, acirradíssimas em São Paulo pela competição desigual com o imigrante europeu.</p><p>O segundo capítulo da obra ilustra, contundentemente, a trajetória percorrida pelos negros no momento crucial da transformação urbana. Marcados pela pauperização e desorganização, "viveram dentro da cidade, mas não progrediram com ela e através dela", por não dominarem as regras intrínsecas da sociedade em emergência.</p><p>A ressocialização exigida pela realidade urbana e industrial requeria o afastamento dos fundamentos do passado, impossível de se efetivar naquele contexto, cerceando a construção de nova identidade, que exigia requisitos de outra natureza. Os afro-brasileiros reiteraram um padrão de comportamento pontuado por "tradicionalismo tosco e inoperante", deixando entrever os impasses dos ajustamentos e acomodações oriundos da antiga vivência.</p><p>Nesse compasso, o andamento da reflexão destaca o período de 1880 a 1960, assinalado pela ruptura da escravidão e pelo advento da ordem social competitiva, que possibilitou a reavaliação das formas de reabsorção do negro no âmbito do desenvolvimento industrial. Em todas as etapas, a problemática da marginalização tece o fio condutor da análise e o autor localiza e expande a compreensão do preconceito e da discriminação racial, originários da preservação das formas sociais arcaicas.</p><p>O ritmo da história em São Paulo criou forte descompasso entre a ordem social (mais sincronizada com as alterações econômicas) e a ordem racial (de ajustamento mais lento às mudanças). O atraso da última é sintomático da ausência de democracia racial e a desmontagem do que Florestan Fernandes denomina por "mito" é passagem eloquente que arremata parte dos seus pontos de vista.</p><p>Fidelidade do olhar</p><p>Por tudo isso, "A Integração do Negro" é obra de clivagem no âmbito dos estudos sobre as relações raciais. A problemática dos negros, inaugurada no final dos 800, vincada pelas teses raciais e mesmo racistas, encontra-se presa ao evolucionismo e ao darwinismo social, cujo autor mais representativo foi Nina Rodrigues.</p><p>Em "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, a questão racial é focalizada no prisma do culturalismo, deslocando a orientação haurida na sociobiologia, criando-se um novo cânon interpretativo. Esse livro, ao romper com as vertentes dominantes, renovou os estudos sobre o tema, mas solidificou, em contraface, o chamado mito da democracia racial ao inserir no mesmo amálgama, e de modo equivalente, as diversas "contribuições" da nossa cultura.</p><p>Florestan Fernandes, quando rediscute o problema, imprime nova inflexão e redireciona os estudos na área. Os próprios trabalhos de Fernando Henrique Cardoso —"Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional"— e de Octávio Ianni —"As Metamorfoses do Escravo"—, apesar de terem sido escritos anteriormente, foram, em larga medida, tributários das investigações de Florestan sobre os impactos da escravidão na constituição da sociedade brasileira.</p><p>A reinterpretação do sociólogo paulista manifesta um ponto de vista que percorre praticamente toda sua obra. Desde seus primeiros estudos sobre o folclore, passando pela análise dos índios e dos negros cujo coroamento ocorre em "A Revolução Burguesa no Brasil", o autor tematiza a sociedade brasileira na perspectiva da exclusão e da impossibilidade de se eliminarem os traços sociais do passado que se encontram mesclados às novas realidades, embaraçando a plena realização da ordem social competitiva.</p><p>Possivelmente convivem nessas inquietações elementos da sua própria biografia e que, talvez, possam iluminar a fidelidade do olhar de Florestan, construído na vivência das camadas populares.</p><p>Muito das suas posições políticas prende-se a essa visão original da sociedade brasileira. No conjunto, a obra de Florestan Fernandes é indispensável para a compreensão da nossa modernidade.</p><p>"A Integração do Negro na Sociedade de Classes" é texto imprescindível na fixação de uma imagem não conservadora sobre os negros e no andamento de sua reflexão arguta sobre o Brasil.</p><p>MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA é professora do departamento de sociologia da USP e autora de "Mitologia da Mineiridade"</p><p>(6) O pecado colonial e o recalque da mestiçagem</p><p>JOSÉ MAURÍCIO ANDION ARRUTI</p><p>ESPECIAL PARA A FOLHA</p><p>Como qualquer outro grupo que eles estudam, nossos antropólogos também produziram suas classificações sobre o mundo, separando e agrupando coisas, fenômenos e pessoas.</p><p>Uma das distinções produzidas por essas classificações, usada tanto para explicar o Brasil quanto para organizarem-se eles mesmos, foi a distinção estabelecida entre os estudos étnicos e os estudos raciais. De um lado, aqueles que se interessam pelos grupos de origem americana pré-colonial, todos reunidos sob o rótulo genérico de “índios”, de outro, aqueles interessados nos grupos de origem ou descendência africana, reunidos sob o rótulo genérico de “negros”.</p><p>A maior e mais conhecida parte do trabalho de Darcy Ribeiro foi realizada respeitando essa classificação básica. Darcy Ribeiro escreveu sobre índios e sobre a proteção oficial que lhes deveria ser dedicada, chegou a participar pessoalmente do extinto Serviço de Proteção ao Índio e ajudou a estabelecer as bases acadêmicas e programáticas do “indigenismo autêntico”.</p><p>Sua pretensão teórica, no entanto, sempre foi mais ampla e é nela que encontramos um dos raros momentos de ruptura com a distinção entre questões étnicas e questões raciais. Num texto de 1985, marcado por seu estilo forte e polêmico, Darcy Ribeiro acusava seus colegas de se preocuparem em tratar “cientificamente” (aspas dele) apenas temas “limitados e irrelevantes”, de se interessarem somente pelas influências culturais “pretensamente recíprocas” entre os povos e, por isso, permanecerem investigando a destruição e reconstrução das culturas tribais, sem colaborar em praticamente nada para o que ele considera o fundamental: um olhar global sobre “a edificação dos povos emergentes como entidades étnicas”.</p><p>Retrospectivamente, portanto, seus trabalhos sobre os padrões de contato entre índios e brancos no Brasil podem ser vistos como parte de um projeto mais amplo definido por duas metas completamentares. De um lado, buscar a explicação global do colonialismo europeu em termos de “processo civilizatório”, configurador de toda a variedade americana que conhecemos hoje. De outro, formular uma “teoria do Brasil”.</p><p>Tradição marginal</p><p>Surgem daí ao menos dois pontos importantes a serem mencionados sobre o pensamento de Darcy Ribeiro no contexto de debates sobre as relações raciais no Brasil. Inicialmente, recupera uma tradição marginal em nossas ciências sociais ao buscar</p><p>pensar o Brasil como realidade latino-americana.</p><p>Em segundo lugar, por ter como horizonte a formulação de uma teoria do Brasil, torna-se impossível deixar de lado a questão do negro. Para isso, ele inclui o negro no mesmo modelo explicativo já formulado para os índios, através de uma declarada recusa da idéia de raça, que é então subordinada às noções de “minoria étnica”, “etnia hegemônica”, “macroetnias”, “populações muti-étnicas” e outras variações.</p><p>Com este recurso, rompe com uma distinção canônica e abre espaço para formulações comuns ou homólogas, já que seu objeto de interesse não são particularidades fundadas no sangue, no psiquismo ou na cosmologia mas, pelo contrário, nas composições criadas pelo contato, pelo confronto entre formas culturais e o seu produto.</p><p>Contudo, expulsa pela porta da frente, a raça volta pelos fundos. Para construir seus amplos modelos explicativos, Darcy Ribeiro recorre a inúmeras tipificações e, numa delas, define dois tipos básicos de população, gerados por diferentes “processos de sucessão ecológica”.</p><p>Num tipo, o processo tem por base uma população européia imigrante trazida em unidades familiares já constituídas, que produziu núcleos homogêneos e se reproduziu socialmente excluindo o contingente indígena, dizimado, e negro, marginalizado. No outro, o processo se deu pela implantação de uma população européia fragmentada, composta principalmente de homens e que acabou impondo-se às outras matrizes raciais pela miscigenação intensiva com índias e negras. Nesse segundo caso, onde nos incluímos, foi produzida uma vasta camada mestiça e mulata, que passou a constituir o principal das populações nacionais.</p><p>Trata-se mesmo de um inevitável macroprocesso ecológico. Esse amalgamento de raças, que aos poucos vai absorvendo e assimilando o próprio branco, tão seguro de sua superioridade, acelera-se com o tempo, transformando profundamente a população de toda a América, até fazê-la uma representação cada vez mais homogênea do humano e, por isso, mais capacitada a conviver e a identificar-se com todos os povos. Essa nova raça mestiça tem por isso um grande poder de transformação, de romper barreiras, realizando como corpo e como cultura, o ideário da quebra das distinções sociais e nacionais.</p><p>Assim, como para outros autores, a questão das misturas raciais continuou sendo para Darcy Ribeiro um elo oscilante na explicação do Brasil, não mais pelo viés da democracia racial, como em Gilberto Freyre, ou da definitiva degeneração de Nina Rodrigues, mas pela formação do que ele chamou de uma “proto-etnia”, formada pela combinação das matrizes culturais e biológicas indígena, negra e européia, num resultado original, com o qual toda a população vai aos poucos se identificando. Somos uma etnia em plena formação, mas sob algumas condições.</p><p>Um olhar triste</p><p>Na verdade, o primeiro olhar de Darcy Ribeiro sobre o brasileiro é um olhar triste. O resultado da desumanização e da “desculturação” de índios e negros foi a formação de uma classe de homens mestiça e culturalmente espúria, marcada que é pelo pecado colonial, pelo “drama de ser dois”, nativo e europeu, alienado e alienante.</p><p>Ao adotar como visão de si mesmo a ideologia de seus dominadores, o mestiço opta pelo recalque e pela traição de tudo que nele não for espelho da Europa: o filho de índia e europeu, identificando-se com o pai, tornou-se perseguidor do gentio materno; o mulato, buscando ascender socialmente, trata desesperadamente de embranquecer, reforçando e legitimando o preconceito com o negro.</p><p>Para romper com essa realidade é necessário nos voltarmos para nossa capacidade de criação cultural, mediante um esforço racional de reumanização e amadurecimento cultural paulatino, capaz de elevar-nos até a condição de etnias nacionais. Na sua antropologia do povo brasileiro, índios e negros, depois de um perverso processo civilizatório, passam a constituir uma proto-etnia em busca de um caráter. Nela não existe interesse sobre os conflitos raciais a não ser como reflexo de uma estrutura social injusta, produzida por uma ideologia colonial absorvida de forma acrítica.</p><p>Os processos de desalienação e de reestruturação cultural são provavelmente processos naturais, diz ele, como formas que as sociedades encontram de escapar da deterioração. Mas, e é isso que interessa a Darcy Ribeiro, esse processo pode e deve ser impulsionado pela intervenção racional, que procure romper com preconceitos e com as noções de predestinação, concebendo a realidade como suscetível de mudança intencional.</p><p>Existe portanto um compromisso político e cultural de todo aquele que produz cultura, com a transformação desta proto-etnia de mestiços envergonhados numa etnia autêntica e autônoma. A sua teoria do Brasil na verdade é, simultaneamente, a formulação e a realização disso. Ela tem a intenção de revelar, não tanto como é, mas como pode vir a ser.</p><p>(7) Idílio racial e despotismo em Gilberto Freyre</p><p>RICARDO BENZAQUEN DE ARAÚJO</p><p>ESPECIAL PARA A FOLHA</p><p>Uma indagação acerca do papel desempenhado pela figura do negro na obra de Gilberto Freyre provavelmente receberia, até há pouco tempo, uma resposta dupla e rápida. Por um lado, ele seria quase com certeza elogiado por ter se constituído no primeiro intelectual brasileiro a tratar essa figura através da idéia de cultura e não da de raça, o que lhe permitiria recuperar de forma positiva as contribuições de diferentes comunidades de origem africana para a formação da nossa identidade nacional.</p><p>Por outro, contudo, não se deixaria de registrar que esse mesmo impulso relativista o teria levado a criar uma imagem singularmente harmônica e integrada da nossa sociedade colonial, ocultando a exploração e o conflito inerentes à escravidão atrás de uma fantasiosa "democracia racial".</p><p>Creio que esses dois pontos resumem o que se poderia chamar de "sabedoria convencional" sobre Freyre. Entretanto, embora não pretenda refutá-los inteiramente, tenho a impressão de que já seja possível levantar argumentos que, ao menos no tocante aos livros que ele publicou nos anos 30 —como "Casa Grande & Senzala" (1933)—, talvez possam tornar essa discussão mais complexa e matizada.</p><p>O próprio abandono da noção de raça em "Casa Grande & Senzala" está longe de ser uma questão completamente resolvida, pois basta uma leitura superficial do texto para que se perceba que Gilberto Freyre continua a empregá-la. Tal percepção, todavia, não o converte em mero repetidor das posições racistas da época, posições que, sempre encarando o Brasil pelo ângulo da miscigenação, ou o condenavam à mais absoluta decadência ou faziam com que as suas chances de desenvolvimento dependessem da total erradicação da nossa herança negra.</p><p>Freyre, ao contrário, irá lidar com a questão de maneira muito diversa: baseando-se em uma suposta aptidão dos seres humanos para se adaptar às condições ambientais, aptidão que importava inclusive na capacidade de incorporar, transmitir e herdar características adquiridas na interação com o meio, ele acaba por trabalhar com uma concepção neolamarckiana de raça, concepção que julgava que aspectos biológicos e culturais dos povos eram profundamente marcados pela relação com o clima e o relevo da sua região de origem.</p><p>Teríamos, então, o que se denominava de raças "históricas" ou "artificiais", categorias cuja utilização não implicava necessariamente contradição com o conceito de cultura. Afinal, nada obrigava a que diferenças atmosféricas pudessem fundar uma escala de valores em que alguns povos fossem privilegiados e outros rebaixados ou excluídos.</p><p>Abria-se na Colônia, portanto, o palco para uma peculiar e —para Freyre— essencialmente positiva experiência social, onde, bem distante do predomínio de uma única regra ou civilização, diferentes raças e culturas influenciavam-se mutuamente. E, o que é particularmente relevante, sem que cada uma perdesse inteiramente sua identidade, o que aponta para uma totalidade extremamente precária, sincrética e instável, em que a busca do equilíbrio nunca envolve a completa anulação dos antagonismos</p><p>culturais.</p><p>Ora, basta recordarmos a enorme importância que a idéia de região terá no pensamento de Freyre, além da evidente complexidade apresentada tanto por aquela relativa conciliação entre os conceitos de cultura e de raça quanto por essa plástica e heterogênea visão do nosso passado colonial, para que fique suficientemente claro o interesse que o exame desses temas pode despertar.</p><p>Não cessam aqui, porém, as possibilidades levantadas por uma revisão daquela "sabedoria convencional" acerca do nosso autor: também no que diz respeito ao caráter idílico e consequentemente mistificador da sua análise da escravidão colonial, podem-se sugerir algumas alternativas no sentido de uma reabertura da discussão.</p><p>Ainda que não pairem dúvidas sobre a ênfase conferida por Gilberto à formação de vínculos bastante estreitos entre senhores e escravos, vínculos responsáveis até por uma certa "colonização" do português pelo negro, é indispensável também reconhecer que ele nunca deixa de destacar o ambiente violento e despótico que cercava estes vínculos.</p><p>Na verdade, este ambiente é realçado e detalhado a tal ponto, concretizando-se em torturas, estupros, mutilações e —sobretudo— na cotidiana redução da vontade do cativo à do seu mestre, que não podemos deixar de nos perguntar sobre o efetivo significado de uma sociedade assim dividida entre o despotismo e a confraternização, entre a exploração e a intimidade.</p><p>Mas é justamente no tratamento de questões deste tipo que aquela imagem de uma totalidade instável e heterogênea, recém-mencionada, parece oferecer a sua mais valiosa contribuição.</p><p>Provavelmente estimulada pelo seu diálogo com as correntes modernistas, no país e no exterior, esta acepção não vai deixar de recorrer às idéias de ordem, consistência e solidariedade, mas nunca de forma dogmática, rotineira ou sistemática, mostrando-se, por isto mesmo, particularmente sugestiva para uma experiência tão ambígua e repleta de contrastes quanto a brasileira.</p>

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