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<p>MAIÊUTICA</p><p>CIÊNCIAS</p><p>HUMANAS</p><p>E SOCIAIS</p><p>REVISTA MAIÊUTICA</p><p>CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS</p><p>UNIASSELVI 2023</p><p>Presidente do Grupo UNIASSELVI</p><p>Prof. Pedro Jorge Guterres Quintans Graça</p><p>Reitor da UNIASSELVI</p><p>Prof. Janes Tomelin</p><p>Pró-Reitor de Ensino de Graduação Presencial</p><p>Prof. Antônio Roberto Rodrigues Abatepaulo</p><p>Pró-Reitora de Ensino de Graduação a Distância</p><p>Prof.ª Neuzi Schotten</p><p>Pró-Reitor Operacional de Graduação a Distância</p><p>Prof. Érico Ribeiro</p><p>Diretor de Educação Continuada</p><p>Prof. Tiago Stachon</p><p>Editor da Revista Maiêutica</p><p>Prof. Luis Augusto Ebert</p><p>Comissão Científica</p><p>Prof.ª Luciane da Luz</p><p>Prof. Gesiel Anacleto</p><p>Prof. Márcio José Cubiak</p><p>Prof. Kevin Daniel dos Santos Leyser</p><p>Prof. André Gaulke</p><p>Prof. Kelvin Custódio Maciel</p><p>Prof. Sandro Luiz Bazzanella</p><p>Prof.ª Antonia Irismar de Souza</p><p>Prof. Marcelo Blanck</p><p>Prof.ª Mariane Beatriz Wittmann</p><p>Prof. Simão Henrique Jakobowski</p><p>Prof.ª Simone Teixeira</p><p>Prof. Thiago Buzatto Storck</p><p>Prof. Thiago Leandro da Silva Dias (colaborador externo)</p><p>Editoração e Diagramação</p><p>Equipe Produção de Materiais</p><p>Revisão Final</p><p>Equipe Produção de Materiais</p><p>Publicação On-line</p><p>Propriedade do Centro Universitário Leonardo da Vinci</p><p>CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI</p><p>Rodovia BR 470, Km 71, nº 1.040, Bairro Benedito</p><p>89084-405 - INDAIAL/SC</p><p>www.uniasselvi.com.br</p><p>A Revista de Maiêutica de Ciências Humanas e Sociais do Centro de Universitário</p><p>Leonardo Da Vinci – Uniasselvi é de publicação anual e está entrando em seu nono ano de</p><p>existência, tendo sido lançado o seu primeiro exemplar em 2014. O objetivo dessa revista é</p><p>fornecer uma plataforma para a publicação de pesquisas e estudos nessas áreas, permitindo que</p><p>nossos acadêmicos, assim como a comunidade externa, compartilhem suas descobertas com</p><p>outros pesquisadores e com o público em geral. Nossa Maiêutica propõe o diálogo e o debate</p><p>sobre questões sociais, culturais e políticas, envolvendo os demais temas que afetam a vida</p><p>humana, como identidade, justiça social, questões éticas entre outras. Ao fornecer um fórum</p><p>para discutir essas questões, nossa revista pretende ajudar a promover uma compreensão mais</p><p>profunda e complexa do mundo em que vivemos.</p><p>Hoje a revista possui um fluxo bem definido de avaliação e devolutiva dos artigos</p><p>recebidos e conta com um uma comissão científica de colabores externos e internos a Uniasselvi,</p><p>composta por mestres e doutores das áreas das ciências humanas e sociais, o que qualifica e dá</p><p>transparência ao processo de seleção dos artigos aprovados a cada edital da revista.</p><p>Do ponto de vista dos artigos submetidos internamente, a meta deste periódico é articular</p><p>iniciação cientifica, extensão e ensino, publicando trabalhos de docentes e discentes, abrangendo</p><p>produção de iniciação científica, artigos elaborados a partir dos trabalhos de conclusão de curso,</p><p>dos seminários e práticas interdisciplinares, dos relatórios de estágios, de revisão bibliográfica,</p><p>resenhas e outras modalidades de trabalhos acadêmicos que reflitam as possibilidades de fazer</p><p>ciência praticados e pretendidos pela Uniasselvi no âmbito das ciências humanas e sociais.</p><p>Dessa forma, a revista busca o desenvolvimento da interdisciplinaridade, multidisciplina-</p><p>ridade e transdisciplinaridade e seus múltiplos diálogos e verticalidades. Nesse sentido a revista</p><p>está aberta a ideias e abordagens emergentes, criando laços entre o conhecimento e a sociedade.</p><p>Por este motivo a Revista Maiêutica de Ciências dos cursos de Ciências Humanas e</p><p>Sociais agradece aos seus colaboradores, desejando-lhes inspiração e aprofundamento nas</p><p>pesquisas, esperando o crescimento de todos, o reconhecimento da qualidade de suas produções</p><p>e a inserção de novos saberes no âmbito das ciências humanas e sociais.</p><p>Professora Luciane da Luz.</p><p>Coordenação.</p><p>Apresentação</p><p>SUMÁRIO</p><p>APRESENTAÇÃO .................................................................................................................... 3</p><p>SOFRIMENTO E ESPERANÇA NO TEXTO DE ISAÍAS:</p><p>uma exegese de Isaías 65:17-25</p><p>Suffering and hope in the text of Isaiah: an exegesis of Isaiah 65:17-25</p><p>Fabio Ribeiro da Silva</p><p>Eduardo Sales de Lima</p><p>Jonas Brustulin Ramos ............................................................................................................... 5</p><p>O TRANSPORTE DE VALORES NO BRASIL E OS DESAFIOS COM O AUMENTO</p><p>DA CRIMINALIDADE</p><p>TRANSPORT OF VALUES IN BRAZIL AND THE CHALLENGES WITH THE</p><p>INCREASE IN CRIMINALITY</p><p>Yan gomes dos Santos</p><p>Felipe Pereira de Melo</p><p>Juliane Moreira rocha .............................................................................................................. 15</p><p>OS IMPERATIVOS ECONÔMICOS CONTEMPORÂNEOS E AS IMPLICAÇÕES</p><p>PSÍQUICAS, SOCIAIS E AMBIENTAIS</p><p>CONTEMPORARY ECONOMIC IMPERATIVES AND PSYCHIC, SOCIAL AND</p><p>ENVIRONMENTAL IMPLICATIONS</p><p>IMPERATIVOS ECONÓMICOS CONTEMPORÁNEOS E IMPLICACIONES</p><p>PSÍQUICAS, SOCIALES Y AMBIENTALES</p><p>Príncela Santana da Cruz</p><p>Jairo Marchesan</p><p>Sandro Luiz Bazzanella</p><p>Leonardo Dresch Eberhardt ..................................................................................................... 27</p><p>A CIDADANIA DESVIRTUADA: um estudo da memória social de um modelo à brasileira</p><p>The disappointed citizenship: a study of social memory of Brazilian model</p><p>Talles Garcia Santana ............................................................................................................... 45</p><p>O OUTRO LADO DA ADOÇÃO: relato de experiência</p><p>The other side of adoption: experience report</p><p>Adriana Prado Santana Santos ................................................................................................. 61</p><p>A FLUIDEZ EM BAUMAN E A DURAÇÃO BERGSONIANA: Um Diálogo</p><p>Sobre Educação</p><p>Fluidity In Bauman And Bergsonian Duration: a Dialogue On Education</p><p>Luciana Fiamoncini Frainer ..................................................................................................... 73</p><p>5</p><p>SOFRIMENTO E ESPERANÇA NO TEXTO DE ISAÍAS:</p><p>uma exegese de Isaías 65:17-25</p><p>Suffering and hope in the text of Isaiah: an exegesis of Isaiah 65:17-25</p><p>Fabio Ribeiro da Silva 1</p><p>Eduardo Sales de Lima 2</p><p>Jonas Brustulin Ramos 3</p><p>Resumo</p><p>Neste artigo, pretende-se desenvolver uma pesquisa sobre a Bíblia como mensagem de esperança frente às adver-</p><p>sidades da vida. A problemática se relaciona com o cenário de sofrimento causado pelo Covid-19. Essa pesquisa</p><p>se justifica em razão dos múltiplos questionamentos atuais sobre o sofrimento e perdas de tantas vidas. Também</p><p>se justifica em razão da necessidade de subsídio epistemológico atual para o cuidado pastoral comunitário e para</p><p>uma reflexão individual sobre o sofrimento. O objetivo geral é propor uma releitura bíblica a partir da mensagem</p><p>de esperança frente às adversidades da vida, tendo como base o livro de Isaías. Será uma pesquisa qualitativa, bi-</p><p>bliográfica parcial e aplicada. Desenvolver-se-á por meio de exegese no texto de Isaías 65:17-25, usado o método</p><p>semio-discursivo. Espera-se que ao término desta pesquisa possamos reconhecer uma possibilidade de intervenção</p><p>em favor da esperança em tempos difíceis.</p><p>Palavras-chave: Covid-19. Sofrimento. Esperança.</p><p>Abstract</p><p>In this work we intend to develop a research on the Bible as a message of hope in the face of life's adversities. The</p><p>problem relates to the scenario of suffering caused by Covid-19. This research is justified because of the multiple</p><p>current questions about the suffering and loss of so many lives. It is also justified because of the need for current</p><p>epistemological support for community pastoral care and for individual reflection on suffering. The general objec-</p><p>tive is to propose a biblical rereading from the message of hope in the face of life's adversities based on the book</p><p>of Isaiah. It will be a qualitative, partial and applied bibliographic research. It will be developed through exegesis</p><p>in the text of Isaiah 65:17-25, using the semio-discursive method. It is hoped that at the end of this research we can</p><p>recognize a possibility of intervention in favor of hope in difficult times.</p><p>Keywords: Covid-19. Suffering. Hope.</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>A; ABREU, Viviane. C. Novo cangaço – explosões de caixas</p><p>eletrônico. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade de</p><p>Uberaba, Uberaba, 2018.</p><p>REGINATO, Stéfano. S; MOREIRA, Glauco. R. M. O crime organizado no Brasil. In:</p><p>ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 11., 2015, Presidente Prudente. Anais</p><p>[...]. Presidente Prudente: Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente</p><p>Prudente, 2015.</p><p>27</p><p>OS IMPERATIVOS ECONÔMICOS CONTEMPORÂNEOS E AS</p><p>IMPLICAÇÕES PSÍQUICAS, SOCIAIS E AMBIENTAIS</p><p>CONTEMPORARY ECONOMIC IMPERATIVES AND PSYCHIC,</p><p>SOCIAL AND ENVIRONMENTAL IMPLICATIONS</p><p>IMPERATIVOS ECONÓMICOS CONTEMPORÁNEOS E</p><p>IMPLICACIONES PSÍQUICAS, SOCIALES Y AMBIENTALES</p><p>Príncela Santana da Cruz1</p><p>Jairo Marchesan2</p><p>Sandro Luiz Bazzanella3</p><p>Leonardo Dresch Eberhardt4</p><p>RESUMO: O presente artigo aborda a relação entre a economia e a psicologia, ou seja, discute como os aspectos</p><p>econômicos cotidianos vinculados ao modo de produção capitalista, dentre os quais a economia financeirizada,</p><p>as relações entre o débito e o crédito, dentre outros, interferem nos seres humanos, constituindo subjetividades</p><p>conformadas às exigências econômicas e sociais em curso. Para tanto, metodologicamente, neste artigo, dialoga-se</p><p>com autores como Zygmunt Bauman, Hannah Arendt e Sigmund Freud. Freud, considerado o pai da psicanálise,</p><p>discorre sobre as relações de sofrimento e prazer que compõem a humanidade. Hannah Arendt proporciona a re-</p><p>flexão sobre ação, trabalho, labor e as dependências humanas nas relações de sobrevivência. Com as contribuições</p><p>de Bauman, analisa-se a condição humana nos contextos líquidos modernos e contemporâneos. Também há outros</p><p>autores, que se fazem presentes neste estudo por meio de conceitos e reflexões. Neste artigo, portanto, foram anali-</p><p>sados alguns aspectos do conceito de economia ao longo da história da sociedade humana; inicialmente, destaca-se</p><p>a relação das pessoas com a economia na perspectiva da sobrevivência e, posteriormente, suas relações com o mer-</p><p>cado. Paralelamente, como a economia intervém ou influencia psicologicamente e negativamente na conformação</p><p>da subjetividade humana, interferindo nas relações humanas e na qualidade de vida da sociedade humana atual.</p><p>Palavras-chave: Economia; subjetividade; relações humanas; sociedade contemporânea.</p><p>ABSTRACT: This article addresses the relationship between economics and psychology, in other words, it in-</p><p>vestigates how the everyday economic aspects linked to the capitalist mode of production, among which, the</p><p>financialized economy, the relationship between debt and credit, affect human beings, constituting subjectivities</p><p>conforming to ongoing economic and social demands. So, methodologically, this article dialogues with authors</p><p>such as Zygmunt Bauman, Hannah Arendt and Sigmund Freud. Freud, considered as the father of psychoanalysis,</p><p>discusses the relationships of suffering and pleasure that make up humanity. Hannah Arendt provides a reflection</p><p>on action, work, labor and human dependencies in survival relationships. With Bauman's contributions, the human</p><p>condition is analyzed in modern and contemporary liquid contexts. There are also other authors who are present in</p><p>this study with their concepts and reflections about these issues. Therefore, for this research, firstly, some aspects</p><p>of the concept of economy throughout the history of human society were analyzed such as the relationship between</p><p>people and the economy from the perspective of the human condition of survival and, later, the human relationship</p><p>with the market. At the same time, with theses analyzes, how the economy interferes or influences the formation of</p><p>human subjectivity, interfering in human relationships, and in the quality of life of today’s human society.</p><p>1 Mestranda no Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado (UnC) Canoinhas/</p><p>SC Brasil. Site: www.uniasselvi.com.br</p><p>2 Doutor em Geografia (UFSC). Docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Desenvolvimento Regional da</p><p>Universidade do Contestado (UnC) Canoinhas/SC Brasil. Site: www.uniasselvi.com.br</p><p>3 Doutor em Ciências Humanas (UFSC). Docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Desenvolvimento Regional</p><p>da Universidade do Contestado (UnC) Canoinhas/SC Brasil. Site: www.uniasselvi.com.br</p><p>4 Doutor em Saúde Pública (FIOCRUZ). Site: www.uniasselvi.com.br</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>28</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Keywords: Economy; subjectivity; human relations; contemporary society.</p><p>RESUMEN: Este artículo aborda la relación entre la economía y la psicología, es decir, discute cómo los aspectos</p><p>económicos cotidianos vinculados al modo de producción capitalista, entre los cuales la economía financiarizada,</p><p>la relación entre el débito y el crédito, entre otros, interfieren en el ser humano, constituyendo subjetividades con-</p><p>formadas hacia las exigencias económicas y sociales en curso. Para ello, metodológicamente, este artículo dialoga</p><p>con autores como Zygmunt Bauman, Hannah Arendt y Sigmund Freud. Freud, considerado el padre del psicoaná-</p><p>lisis, habla de las relaciones de sufrimiento y placer que componen la humanidad. Hannah Arendt brinda una re-</p><p>flexión sobre la acción, el trabajo, la labor y las dependencias humanas en las relaciones de supervivencia. Con los</p><p>aportes de Bauman se analiza la condición humana en contextos líquidos modernos y contemporáneos. También</p><p>hay otros autores, que están presentes en este estudio por medio de conceptos y reflexiones. En este artículo, por</p><p>lo tanto, se analizaron algunos aspectos del concepto de economía a lo largo de la historia de la sociedad humana;</p><p>inicialmente se destaca la relación de las personas con la economía desde la perspectiva de la supervivencia y,</p><p>posteriormente, su relación con el mercado. Al mismo tiempo, cómo la economía interviene o influye psicológica-</p><p>mente y negativamente en la conformación de la subjetividad humana, interfiriendo en las relaciones humanas y</p><p>en la calidad de vida de la sociedad humana actual.</p><p>Palabras clave: Economía; subjetividad; relaciones humanas; sociedad contemporánea</p><p>1 INTRODUÇÃO</p><p>As sociedades humanas, para além de suas especificidades, se caracterizam fundamental-</p><p>mente pelas relações que estabelecem entre si, com os outros e com o seu entorno. A partir dessa</p><p>interação, é constituída a subjetividade5 humana, que, na abordagem psicanalítica freudiana e</p><p>lacaniana, é definida como a singularidade de cada ser, compostas pelas primeiras referências</p><p>para este processo de formação, que são as figuras parentais e, posteriormente, pelos vetores da</p><p>cultura, da educação e do trabalho, dentre outros, que produzem implicações no modo de vida</p><p>das pessoas (DINIZ; CAMPOS, 2017).</p><p>Para a constituição e o desenvolvimento de uma sociedade organizada social, política e</p><p>economicamente, há a necessidade do estabelecimento de relações de confiança entre os seres</p><p>humanos (ARRUDA, 2001), visto que é nas relações com o outro que nos conhecemos, nos</p><p>constituímos socialmente e expressamos o nosso "mundo interior”. A partir destas interfaces,</p><p>nos desenvolvemos psicologicamente e socialmente e, ainda, construímos relações sociais per-</p><p>meadas por estratégias e práticas econômicas que podem estar a favor da manutenção da vida,</p><p>atendendo as necessidades humanas.</p><p>Assim, considerando a economia concebida para além dos reducionismos monetários e</p><p>financeiros, que influencia na gênese da subjetividade humana e que reflete na formação de uma</p><p>sociedade, cabe perguntar: Como a dimensão econômica, ou seja, como os aspectos cotidianos</p><p>da economia financeirizada, do débito e do crédito, vinculada ao modo de produção capitalista</p><p>na atualidade, impõe formas de subjetivação que incidem na vida e nas relações humanas?</p><p>5 Na psicanálise freudiana e lacaniana, a subjetividade é o resultado de uma trajetória pela qual o sujeito passa para</p><p>se subjetivar. Esta trajetória</p><p>inicia-se com os cuidados que a mãe tem com o filho nos primeiros momentos da vida</p><p>e as consequências que podem advir dessa relação narcísica da mãe com a constituição do seu filho. Ao longo do</p><p>desenvolvimento físico e mental, o sujeito vivência etapas como a do Complexo de Édipo e a da Castração que também</p><p>irão influenciar o desenvolvimento da constituição subjetiva do sujeito (PSICANÁLISE CLÍNICA, 2020).</p><p>Igualmente, Cruz (2022a) considera a subjetividade como um processo, tanto individual quanto social, que ocorre de forma</p><p>simultânea, isto é, “a constituição subjetiva”, que é um processo dinâmico, ocorre tanto relacionado aos aspectos individuais</p><p>de cada sujeito (suas experiências, vivências, percepções etc.) quanto relacionado aos aspectos do convívio social (cultura,</p><p>educação, política etc.). Isso significa que a subjetividade é uma ação constitutiva, resultante do processo de desenvolvi-</p><p>mento humano e da interação social que caracteriza a forma de ser de cada um e de cada sociedade (CRUZ, 2022b).</p><p>29</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Sob tais pressupostos reflexivos, o presente artigo analisa as interfaces da economia e</p><p>seu impacto nas relações humanas e, por decorrência, na constituição da subjetividade. Afinal,</p><p>os seres humanos são sociais, se comunicam, estabelecem relações entre si e com o ambiente e</p><p>se organizam em sociedades estruturadas social, política e, economicamente.</p><p>Sendo assim, para entender a organização econômica das sociedades e o modo de vida</p><p>das pessoas, é imprescindível compreender o conceito de economia6, que pode ser definido</p><p>como um fenômeno humano resultante do conjunto de práticas sociais e econômicas. As práti-</p><p>cas sociais se referem às formas de vida; já as práticas econômicas se remetem às satisfações</p><p>das carências ligadas às reproduções sociais e com produção e distribuição de bens e serviços</p><p>(JAEGGI, 2018, p. 511). Neste contexto, as relações sociais, políticas e, principalmente, a di-</p><p>mensão econômica, contribuem para definir as formas de subjetividade individual e social.</p><p>A partir desta compreensão, é possível considerar que, quanto mais organizada uma</p><p>sociedade esteja em seus aspectos sociais, políticos e econômicos, maior pode ser seu tempo</p><p>de existência, pois a constituição subjetiva, se voltada aos interesses do bem-estar coletivo,</p><p>contribuiria para a durabilidade das sociedades humanas com vivências pautadas no bem-estar</p><p>subjetivo. A compreensão das relações econômicas em curso, portanto, é fundamental para o</p><p>conhecimento da dinâmica organizacional das sociedades e dos modos subjetivantes da for-</p><p>mação das pessoas e suas implicações na saúde mental.</p><p>Para a construção deste artigo, a pesquisa amparou-se na análise bibliográfica de artigos</p><p>científicos e obras selecionadas, dentre as quais, destacam-se A condição humana (ARENDT,</p><p>2007), a qual discorre sobre a existência humana na sociedade; Capitalismo parasitário (BAU-</p><p>MAN, 2010), no qual o autor analisa a relação das pessoas com o sistema capitalista; e O</p><p>mal-estar na civilização (FREUD, 1996), que, segundo o entendimento freudiano, as relações</p><p>humanas e os modos de vida são uma forma de obter satisfação das necessidades nas quais os</p><p>instintos de vida e de morte7 se manifestam, configurando os cenários sociais.</p><p>Assim, este trabalho é uma abordagem qualitativa e analítica, a partir das contribuições</p><p>do pensamento dos autores supracitados – Hannah Arendt (1906-1975), Sigmund Freud (1856-</p><p>1939) e Zygmund Bauman (1925-2017) –, salvaguardadas suas diferenças teóricas e conceitu-</p><p>ais sobre a dimensão dos aspectos sociais e econômicos do sistema capitalista em curso e sobre</p><p>como estes interferem na constituição da subjetividade humana.</p><p>O desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no método fenomenológico que, de acor-</p><p>do com Prodanov e Freitas (2013), consiste em mostrar o que é dado, esclarecendo-se aquilo</p><p>que é visto mediante a consciência do analista. Sob tais pressupostos, portanto, o objetivo geral</p><p>deste artigo é analisar como os aspectos econômicos atuais impactam na subjetividade humana</p><p>e na saúde mental das pessoas.</p><p>6 Para além do supraexposto, compreende-se economia à luz do pensamento do filósofo e jurista italiano Giorgio</p><p>Agamben (2011), para quem a economia se apresenta como o conjunto de ações, relações, saberes, instituições,</p><p>aspectos morais, de normas e leis, cujo objetivo é conformar uma forma de governo, de controle, de normalização</p><p>e orientação que age sobre a vida de indivíduos e populações, com o intuito de otimizar comportamentos, gestos,</p><p>pensamentos vinculadas a capacidade de produção e de consumo no seio de uma sociedade espetacularizada.</p><p>7 Segundo a teoria freudiana, os instintos de vida são voltados à sobrevivência básica, ao prazer e à reprodução,</p><p>importantes para sustentar a vida do indivíduo, bem como para a continuação da espécie, por também estarem</p><p>associados aos atos de amor, cooperação e outras ações pró-sociais. Já os instintos de morte se voltam ao comportamento</p><p>autodestrutivo, mas que quando dirigida para fora e para os outros, é expressa por meio de atos de agressão e violência</p><p>(PENSAMENTO LÍQUIDO, 2018).</p><p>30</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>1.1 RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E AS CONDIÇÕES DE VIDA</p><p>Para compreender a sociedade humana atual, é necessário conhecer a organização da</p><p>produção, da distribuição e do consumo, constitutivos da dinâmica da economia e como esta</p><p>influencia na vida e na subjetividade das pessoas, nas escalas locais e regionais.</p><p>Em Bauman (2010), é possível observar o seguinte:</p><p>[...] sabemos que a força do capitalismo está na extraordinária engenhosidade com que</p><p>busca e descobre novas espécies hospedeiras sempre que as espécies anteriormente ex-</p><p>ploradas se tornam escassas ou se extinguem. E também no oportunismo e na rapidez,</p><p>dignos de um vírus, com que se adapta às idiossincrasias de seus novos pastos (p. 6-7).</p><p>Para o autor, a vida voltada ao capitalismo, com o consumismo exacerbado, gera con-</p><p>sequências, como a exploração dos bens naturais para a produção de novos produtos, além do</p><p>sofrimento mental que flagela os seres humanos:</p><p>[...] a natureza do sofrimento humano é determinada pelo modo de vida dos homens.</p><p>As raízes da dor da qual nos lamentamos hoje, assim como as raízes de todos os males</p><p>sociais, estão profundamente entranhadas no modo como nos ensinam a viver: em</p><p>nosso hábito, cultivado com cuidado e agora já bastante arraigado, de correr para os</p><p>empréstimos cada vez que temos um problema a resolver ou uma dificuldade a supe-</p><p>rar. Como poucas drogas, viver a crédito cria dependência (BAUMAN, 2010, p. 11).</p><p>Esta relação homem-economia já foi diferente, sem a característica do consumismo e da</p><p>vida voltada ao sistema econômico capitalista atual. Para a compreensão de como era a relação</p><p>dos homens com o sistema econômico, é importante o entendimento da etimologia do vocábulo</p><p>economia, que tem sua origem na cultura grega – oikonomía.</p><p>Oikos significa casa, moradia ou habitação. O vocábulo nomos significa administração,</p><p>organização, distribuição (ARENDT, 2007; ARTHMAR; BRADY; SALLES, 2010), ou seja,</p><p>para os gregos antigos, o sentido da economia era prover a casa, especialmente a oferta de um</p><p>espaço para habitar, para alimentar-se, para descansar e para conduzir as atividades de manu-</p><p>tenção da vida. Assim, a economia dizia respeito ao conjunto de relações produtivas entre os</p><p>membros da família, incluídos os servos, de provisionamento da casa, das condições básicas e</p><p>materiais essenciais de sobrevivência dos componentes da família.</p><p>Para Arendt (2007), a economia em sua etimologia volta-se à condição do labor, ou seja,</p><p>ao ciclo natural da produção do necessário para a subsistência; já o trabalho, que é realizado</p><p>com o uso de ferramentas, aumenta a produção e incita o consumismo para além das necessi-</p><p>dades de subsistência:</p><p>As três atividades e suas respectivas condições têm íntima relação com as condições</p><p>mais gerais da existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalida-</p><p>de. O labor assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie.</p><p>O trabalho e seus produtos, o artefato humano, emprestam certa permanência e dura-</p><p>bilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano. A ação,</p><p>na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos cria a condição</p><p>para a lembrança, ou seja, para a história (p. 16-17).</p><p>Na abordagem arentiana (2007), o uso de artefatos, técnicas e tecnologias nos meios de</p><p>produção e na vida das pessoas possibilitaram nova organização social. Já Freud (1996), por ser</p><p>gregário, devido aos instintos de vida, analisava a manifestação dos humanos na perspectiva da</p><p>busca da felicidade.</p><p>31</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>[...] os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção</p><p>de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal</p><p>pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim</p><p>permanecer. Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta</p><p>negativa. Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à</p><p>experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra</p><p>‘felicidade’ só se relaciona a esses últimos (p. 49).</p><p>Dessa forma, um dos propósitos humanos na vida em sociedade é a busca da felicidade;</p><p>porém, às vezes, ao submeter o outro aos desejos imperativos individuais, essa procura se res-</p><p>palda no uso da violência. Ao mesmo tempo em que o homem ameaça a civilização com sua</p><p>agressividade, o mesmo a constrói, pois necessita da segurança para evitar as consequências</p><p>de sua própria agressividade. A ilusão de ser possível alcançar tanto a segurança quanto a fe-</p><p>licidade move o homem ao trabalho, à produção e ao consumo, mesmo à custa da exploração</p><p>humana e ambiental.</p><p>Nessas relações, ao longo do tempo os seres humanos se organizaram em novas formas</p><p>de conceber a economia – a vida voltada ao sistema econômico, a qual reforça o consumismo na</p><p>busca pela felicidade –, que resulta em várias mazelas sociais, sendo uma delas a desigualdade.</p><p>Acerca da desigualdade social, Bauman (2013, p. 78) destaca a condição daqueles que</p><p>não conseguem participar plenamente do sistema econômico vigente, que se encontram à mar-</p><p>gem da sociedade, considerados refugos, descartados pelo próprio sistema por não serem úteis</p><p>como consumidores, ao afirmar que:</p><p>Indivíduos e grupos ou categorias de pessoas têm negada sua subjetividade humana e</p><p>são reclassificados pura e simplesmente como objetos, localizados de modo irrevogá-</p><p>vel na ponta receptora dessa ação. Tornam-se entidades cuja única relevância (o único</p><p>aspecto levado em consideração quando se planeja o tratamento que irão receber)</p><p>para os responsáveis pelas “medidas de segurança” em favor daqueles cuja própria</p><p>segurança é considerada ou declarada sob ameaça é a ameaça que eles já constituem,</p><p>podem constituir ou ser acusados (com plausibilidade) de constituir. A negação da</p><p>subjetividade desqualifica os alvos selecionados como parceiros do diálogo; qualquer</p><p>coisa que possam dizer, assim como o que teriam dito se lhes dessem voz, é a priori</p><p>declarado imaterial, se é que se chega a ouvi-los.</p><p>Dessa forma, compreender a condição humana em Arendt (1906-1975), Bauman (1925-</p><p>2017) e Freud (1856-1939), é compreender as relações do homem com a economia e o impacto des-</p><p>ta nos modos de vida das pessoas, haja vista que uma das bases da sociedade humana é a econômica.</p><p>Segundo Arendt (2007), o ser humano, ao nascer, é inserido ou acolhido pela dinâmica</p><p>de um ambiente constituído pela esfera da ação constitutiva do espaço público do entorno, bem</p><p>como da condição política.</p><p>Assim, segundo a abordagem arentiana, a subjetividade humana está vinculada à con-</p><p>dição humana, que, mediada pela dinâmica do trabalho, das relações sociais e do consumo,</p><p>moldam o estilo de vida das pessoas e seus processos de subjetivação. Nesta visão, portanto, a</p><p>subjetividade do ser humano se constitui nesta relação do homem com o trabalho e o consumo.</p><p>Da mesma forma, para Bauman, a economia em curso passa a ser determinantemente</p><p>influente sobre a vida humana e, por conseguinte, na constituição da subjetividade. Como so-</p><p>mos uma sociedade capitalista pautada no intenso trabalho, na produtividade e no consumo, tais</p><p>relações implicam na saúde das pessoas, inclusive a saúde mental.</p><p>De todo modo, o que aproxima Arendt (2007) de Bauman (2010) é, sobretudo, essa con-</p><p>dição humana de ser pleno consumidor de bens ou produtos que se caracterizam por relações</p><p>humanas destrutivas entre si e destas com a natureza. Isso significa que os seres humanos estão</p><p>32</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>submetidos à lógica do capital que explora o ser humano em sua condição humana, que expro-</p><p>pria o trabalho humano e que o lança nos imperativos do consumo como o ideal da existência.</p><p>A vida voltada ao consumismo impacta na psicodinâmica das relações humanas, o que acarreta</p><p>o mal-estar civilizatório ao qual Freud (1996, p. 83) se refere: “[...] quanto da eterna luta entre</p><p>Eros8 e o instinto de destruição ou morte. Esse conflito é posto em ação tão logo os homens se</p><p>defrontam com a tarefa de viverem juntos”.</p><p>O ser humano, na sociedade, vivencia um sentimento ambivalente, que o move, de um</p><p>lado, para as conquistas que almeja, e, por outro, aos comportamentos agressivos e de subjuga-</p><p>ção, na justificativa de que as motivações humanas se voltam aos interesses individuais ante-</p><p>riormente aos interesses do bem-estar da coletividade.</p><p>Dessa forma, a prática da ação arentiana, na perspectiva da prática política voltada aos</p><p>assuntos das necessidades sociais e do bem-estar comum, são imprescindíveis para a manuten-</p><p>ção do convívio social e da saúde mental das pessoas.</p><p>No sistema capitalista, a ação humana constituída por meio da política, como espaço</p><p>de negociação e manutenção da vida e voltada ao interesse coletivo, é limitada devido à plena</p><p>produção e o pleno consumo, que gera o individualismo, além de produzir também aquilo que</p><p>Bauman (2010) denomina como refugos humanos – seres humanos descartáveis, que não con-</p><p>seguem participar da esfera da plena produção e do pleno consumo.</p><p>A produção de “refugo humano”, ou, mais propriamente, de seres humanos refuga-</p><p>dos (os excessivos e redundantes, ou seja, os que não puderam ou não quiseram ser</p><p>reconhecidos ou obter permissão para ficar, é um produto inevitável da modernidade,</p><p>é um acompanhante inseparável da modernidade. É um inescapável efeito colateral</p><p>da construção da ordem (cada ordem define algumas parcelas da população, como</p><p>“deslocadas”, “inaptas” ou “indesejáveis”) e do progresso econômico (que não pode</p><p>ocorrer sem degradar e desvalorizar os modos anteriormente efetivos de “ganhar a</p><p>vida” e que, portanto, não consegue senão privar seus praticantes dos meios de sub-</p><p>sistência) (BAUMAN, 2005, p. 12).</p><p>O modo de produção capitalista tem como objetivo a produção e o consumo, e não o</p><p>compartilhamento dos bens e a preservação dos interesses públicos. Assim, pode-se considerar,</p><p>então, que a economia em Bauman (2010) é caracterizada pelo constante estímulo ao consumo</p><p>e descarte de produtos. Nesse sentido, portanto, assim como produtos são descartados, muitos</p><p>seres humanos também ficam ou estão à margem da sociedade – os refugos humanos –, que se</p><p>constituem perante a desigualdade econômica, a falta de oportunidades e de formação humana,</p><p>e são como os descartes de produtos, ignorados pela sociedade.</p><p>Para Arendt (2007), a economia vigente também se caracteriza pela ausência de reconhe-</p><p>cimento e exercício da dimensão política, a qual é suplantada pela lógica hegemônica do capital,</p><p>que resulta na redutibilidade de uma existência marcadamente consumista a serviço do capital.</p><p>E para Freud (1996), a economia manifesta</p><p>os instintos, tanto de vida e de morte, os</p><p>quais conduzem os seres humanos a formarem uma sociedade organizada economicamente,</p><p>mas com a vivência do mal-estar civilizatório.</p><p>1.2 RELAÇÕES ENTRE PSICOLOGIA E ECONOMIA</p><p>No entendimento de que a sociedade humana é formada a partir das relações sociais,</p><p>políticas, culturais e principalmente econômicas, reconhece-se que a economia é determinante</p><p>na formação da subjetividade humana.</p><p>8 Eros é o deus grego da paixão, do amor e do erotismo utilizado metaforicamente por Freud (1996) ao se referir ao</p><p>instinto de vida.</p><p>33</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Com isso, o estudo das obras de autores como Freud (1996), Arendt (2007) e Bauman</p><p>(2010) nos permite conjecturar o que constitui a subjetividade humana, e como os seres huma-</p><p>nos se organizam mediante sua visão de mundo e modo de vida, a partir das múltiplas relações</p><p>estabelecidas nos contextos social, político e, principalmente, econômico.</p><p>Em seu escrito O mal-estar da civilização, Freud (1996) discorre sobre as discrepân-</p><p>cias existentes entre os pensamentos das pessoas e suas ações, assim como a diversidade de</p><p>seus impulsos plenos de desejo e sobre como todos estes aspectos incidem na constituição do</p><p>tecido social.</p><p>Nessa perspectiva, Arendt (2007) se utiliza de três atividades fundamentais dos seres</p><p>humanos – labor, trabalho e ação9 – para descrever a condição humana. Segundo a autora, é por</p><p>meio do trabalho que resulta a construção da humanidade.</p><p>Esta condição prévia de liberdade eliminava qualquer modo de vida dedicado ba-</p><p>sicamente à sobrevivência do indivíduo – não apenas o labor, que era o modo de</p><p>vida do escravo coagido pela necessidade de permanecer vivo e pela tirania do</p><p>senhor, mas também a vida de trabalho dos artesãos livres e a vida aquisitiva do</p><p>mercador. Em uma palavra, excluía todos aqueles que, involuntária ou voluntaria-</p><p>mente, permanente ou temporariamente, já não podiam dispor em liberdade dos</p><p>seus movimentos e ações. Os três modos de vida restantes têm em comum o fato de</p><p>se ocuparem do “belo”, isto é, de coisas que não eram necessárias nem meramente</p><p>úteis: a vida voltada para os prazeres do corpo, na qual o belo é consumido tal como</p><p>é dado [...] (ARENDT, 2007, p. 20-21).</p><p>Arendt (2007) explica que todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de</p><p>que os homens vivem juntos. Assim, levando-se em conta as considerações da autora acerca da</p><p>tendência dos homens de se apresentarem como animais gregários, fica claro que estes, de al-</p><p>guma forma, procurarão meios de ocupar um lugar nesta condição. Por este viés, Freud (1996)</p><p>adverte que todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser</p><p>salvo, ou seja, ocupar o seu lugar neste contexto.</p><p>Freud (1996) menciona que a liberdade está relacionada ao mecanismo da sublimação10</p><p>posta em prática. A sublimação do instinto constitui um aspecto do desenvolvimento cultural,</p><p>que torna possíveis as atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas,</p><p>ocupando – o desempenho – um papel importante na vida civilizada.</p><p>Ao analisar as forças, os impulsos e os desejos constitutivos da subjetividade humana,</p><p>Freud (1996) nos permite considerar variáveis da economia psíquica implicadas na condição</p><p>humana, que se desdobram no conjunto de relações que os seres humanos estabelecem consigo</p><p>mesmos, com os outros e com a sociedade em sua totalidade. Dito de outra forma, a economia</p><p>psíquica que subjaz a existência individual se torna determinante na conformação da economia</p><p>e das relações humanas e sociais.</p><p>Para Freud (1996), portanto, se a propriedade privada fosse abolida, possuída em co-</p><p>mum toda a riqueza e permitida a todos a partilha de sua fruição, o individualismo daria lugar</p><p>aos interesses coletivos, pois isso possibilitaria que as necessidades de todos fossem satisfeitas.</p><p>9 O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, isto é, a produção do necessário para</p><p>a subsistência. O trabalho corresponde ao artificialismo da existência humana pois, com o uso de ferramentas o homem</p><p>transforma sua atividade de produção bem como o meio ambiente. A ação se refere ao exercício da prática política.</p><p>10 Segundo a Psicanálise Clínica (2019), a sublimação é um mecanismo de defesa que transforma algum desejo ou</p><p>energia inconsciente em determinados impulsos aceitos e úteis na sociedade. O intuito é amenizar inconscientemente</p><p>a dor, a angústia, a frustração e os conflitos mentais. Em resumo, a sublimação transforma impulsos indesejados em</p><p>peça construtiva de trabalho.</p><p>34</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>O individualismo torna os seres humanos insaciáveis e insatisfeitos, com a tendência</p><p>de, na sociedade capitalista, expressar sua insatisfação, tanto na subjugação dos outros – por</p><p>meio das relações de poder – quanto na própria expressão da agressividade: agressões físicas,</p><p>psicológicas, sexuais, espancamentos, tráfico de pessoas, cárcere privado, violência de gênero</p><p>e doméstica e outros que se manifestam de forma não incomum na sociedade. Esses fenômenos</p><p>sociais são o mal-estar civilizatório de Freud (1996) e a infelicidade universal de Arendt (2007).</p><p>Tanto Freud quanto Arendt afirmam a necessidade de os seres humanos viverem orga-</p><p>nizados em sociedade. Como seres relacionais, estes buscarão formas estruturadas para manter</p><p>a vida comum, na qual, com o trabalho e a produção, moldarão um modo de vida, tanto para</p><p>garantir a subsistência e a segurança, quanto para o pertencimento à dinâmica da sociedade</p><p>em curso. Nesta direção, é preciso considerar que a vida direcionada para o consumismo, que</p><p>molda a subjetividade capitalista, além de não garantir a segurança, também não garantirá a fe-</p><p>licidade, pois o próprio sistema capitalista, com sua produção em massa, incitará novos desejos</p><p>de consumo, com os quais os seres humanos nunca poderão se equiparar no quesito do binômio</p><p>consumo e saciedade.</p><p>No entendimento de Freud (1996), as premissas psicológicas em que o sistema eco-</p><p>nômico da civilização se baseia seriam uma ilusão insustentável. A civilização constitui um</p><p>processo a serviço de Eros (instinto de vida), cujo propósito é combinar indivíduos humanos</p><p>isolados, depois famílias e, posteriormente, raças, povos e nações numa única e extensa uni-</p><p>dade, a da humanidade.</p><p>O pai da psicanálise, Freud (1996), lembra que o natural instinto agressivo do homem</p><p>(instinto de morte), a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe</p><p>a esse programa da civilização. O instinto agressivo é o derivado e o principal representante do</p><p>instinto de morte; está lado a lado de Eros, e é com este que divide o domínio do mundo.</p><p>Assim, o significado da trajetória civilizacional representa a luta entre Eros e a Morte,</p><p>entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como esta se elabora na espécie humana.</p><p>Dessa forma, o desenvolvimento da civilização pode ser simplesmente descrito como a luta da</p><p>espécie humana pela vida. E para que o instinto de vida esteja na regência da organização social</p><p>e econômica, ou seja a economia voltada à vida, o exercício da ação política deve ocupar um</p><p>espaço de destaque na sociedade, conforme a teoria arentiana.</p><p>Para Arendt (2007), no mundo moderno, as esferas social e política diferem muito me-</p><p>nos entre si, pelo fato de que a política é apenas uma função da sociedade em que a ação, o</p><p>discurso e o pensamento são fundamentalmente superestruturas assentadas no interesse social.</p><p>A ascensão da sociedade com o declínio da família indica, no pensamento da autora,</p><p>que o que ocorreu foi a absorção da família por grupos sociais correspondentes, sendo que</p><p>um fator decisivo para este acontecimento é que a sociedade, em todos os seus níveis, exclui</p><p>a possibilidade de ação, que antes era exclusiva da esfera pública. A sociedade espera que</p><p>cada um dos seus membros tenha certo tipo de comportamento, impondo inúmeras</p><p>e variadas</p><p>regras, todas tendentes a normalizá-los e fazê-los comportarem-se, abolindo a ação espontâ-</p><p>nea ou a reação inusitada.</p><p>Com isso, constitui-se a sociedade de massas, indicando que os vários grupos sociais</p><p>foram absorvidos por uma sociedade única, a qual abrange e controla, igualmente, todos os</p><p>membros da comunidade.</p><p>Para Freud, esta capacidade psíquica de massa é:</p><p>[...] extremamente excitável, impulsiva, passional, inconstante, inconsequente, inde-</p><p>cisa e ao mesmo tempo disposta a ações extremas, acessível apenas às paixões mais</p><p>grosseiras e aos sentimentos mais simples, extraordinariamente sugestionável, leviana</p><p>35</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>em suas reflexões, violenta em seus juízos, receptiva apenas às conclusões e aos argu-</p><p>mentos mais simples e mais incompletos, fácil de conduzir e de comover, desprovida</p><p>de consciência de si e de sentimento de responsabilidade, mas disposta a se arrastar</p><p>pela consciência de sua força a todas as atrocidades que só podemos esperar de um</p><p>poder absoluto e irresponsável. Portanto, ela se comporta antes como uma criança</p><p>malcriada ou como um selvagem passional e não vigiado, numa situação que lhe é</p><p>estranha; nos piores casos, seu comportamento é antes o de uma manada de animais</p><p>selvagens que o de seres humanos (FREUD, 2011, p. 65-66).</p><p>Segundo o raciocínio de Arendt (2007), não seria difícil suportar o número de pessoas</p><p>que a sociedade de massas abrange, mas, sim, o fato da negação do mundo como um fenômeno</p><p>político, o qual pode arruinar uma sociedade.</p><p>Uma sociedade de massa se torna vulnerável à ideologia capitalista, e a subjetividade</p><p>formatada neste sistema econômico, segundo Oliveira e Aragão (2014), traz diversas consequ-</p><p>ências, incluindo o sofrimento psíquico:</p><p>A sociedade de consumo marcada por publicidades fascinantes, prometendo um bem-</p><p>-estar conquistado pela aquisição de produtos da moda, gera insegurança e infelicida-</p><p>de. Os indivíduos que entram nesse jogo acabam por prosperar particularmente dessa</p><p>forma – material (p. 125).</p><p>Além da insegurança e infelicidade, a forma como a economia é concebida atualmente</p><p>é geradora de muitos outros sintomas, como a depressão e a ansiedade, acarretando em trans-</p><p>tornos mentais e, ainda, o adoecimento físico. Nesse sentido, novas relações entre os seres hu-</p><p>manos e a economia devem ser pensadas e instituídas, para que haja a promoção do bem-estar</p><p>subjetivo e da saúde mental.</p><p>1.3 ECONOMIA E A SUBJETIVIDADE</p><p>Compreender a economia e como a mesma interfere ou influencia na formação da subje-</p><p>tividade e, consequentemente, como isso reflete nas condições de vida das pessoas, é importante,</p><p>senão necessário, para perceber e conhecer as relações e contradições da sociedade humana atual.</p><p>O tripé sociedade, política e economia constitui o dispositivo formador da subjetivida-</p><p>de, que caracteriza as percepções e o relacionamento das pessoas entre si e com o mundo. O</p><p>dispositivo da economia, o qual produz técnicas de saber, de poder, de produção e de estímulo</p><p>ao consumismo, impõe sobre as pessoas um conjunto de formas e relações em que a visão de</p><p>mundo é determinada de acordo com o gozo sem limites, com o consumo desenfreado, com as</p><p>relações excessivamente pragmáticas e utilitárias no contexto das sociedades contemporâneas.</p><p>O consumo de bens naturais sempre foi necessário para a sobrevivência humana, porém,</p><p>atualmente, na sociedade capitalista, o consumismo, devido à abundância da produção, atinge</p><p>escalas inimagináveis. Um dos exemplos da dimensão do consumo é o culto ao corpo humano,</p><p>que mobiliza as atividades econômicas propagadas pela rede discursiva das grandes mídias,</p><p>onde são criadas concepções de saúde intimamente ligadas ao mercado de consumo voltado ao</p><p>corpo (SANTOS et al., 2019).</p><p>Assim, no mundo pós-moderno, de acordo com Santos et al. (2019), o indivíduo se inse-</p><p>re como pleno consumidor, e o movimento produtivo cria e recria nichos de mercado por meio</p><p>da padronização das formas de relações entre os sujeitos, graças aos discursos subjetivantes. A</p><p>padronização fomenta o consumo massificado, ou seja, o consumo que exige uma padronização</p><p>de relações e a entronização de certos discursos sobre si.</p><p>36</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>A mídia torna-se a grande produtora e propagadora dessas identidades temporárias.</p><p>Por meio dos discursos inflamados que a mídia espalha de forma endêmica, os in-</p><p>divíduos são persuadidos a adotar determinadas práticas e a consumir produtos que</p><p>estão em conformidade com tais signos-mercadorias. Produtos que são consumidos</p><p>porque agregam ao consumidor marcas identificatórias. O sentimento de pertenci-</p><p>mento a uma comunidade, ainda que provisório, faz-se por meio do consumo desses</p><p>símbolos (p. 246).</p><p>O consumo massificado tem conexões imaginárias e simbólicas que causam fascínio,</p><p>fazendo com que os produtos e serviços oferecidos pelo mercado sejam atraentes, tornando-os</p><p>mercadorias-signo, que valem mais pela diferenciação que marcam em relação aos outros sig-</p><p>nos do que pelo uso possível que involucram (SANTOS et al., 2019).</p><p>Em relação à subjetividade capitalística, Reishoffer e Bicalho (2009 apud SILVA; ALE-</p><p>XANDRE, 2019) afirmam que esta se trata de uma produção de sujeitos serializados, normati-</p><p>zados e modelizados de acordo com os padrões econômicos dominantes. Um dos fatores resul-</p><p>tantes desta nova produção de subjetivação, como observam Silva e Alexandre (2019), é a ideia</p><p>de liberdade individual, que possui relação muito próxima com a defesa de uma liberdade de</p><p>mercado, ou seja, a ideia de liberdade individual sugere que o indivíduo pode alcançar aquilo</p><p>que almeja (trabalho, ascensão social, sucesso e realização profissional e pessoal) sem depender</p><p>de outrem (incluindo aqui o Estado). Com o desdobramento da propagação desta concepção de</p><p>liberdade individual, tem-se a ideia de empreendedorismo, amplamente difundida na atualidade.</p><p>Dessa forma, a economia caracteriza-se pela transformação da competição das ativi-</p><p>dades de produção, com a expansão e a intensificação da concorrência pela mundialização do</p><p>capital, seja pela exploração de bens naturais ou pela comercialização de produtos.</p><p>Essa intensificação da concorrência, de acordo com Dardot e Laval (2016), se dá por</p><p>meio da inovação, na qual um número crescente de atividades se encontra submetido à com-</p><p>petição e à concorrência de preços. Ainda nesta direção, os autores (2016) afirmam que, para</p><p>pôr e manter os indivíduos em concorrência, e obter deles o máximo desempenho, é preciso</p><p>estabelecer um preço sobre o que eles fazem e sobre o que eles são, mediante a avaliação quan-</p><p>titativa, que é uma forma de controlar os indivíduos, fazendo com que os mesmos pensem que</p><p>os objetivos, que estão a cumprir, se originam de seus próprios desejos e não como algo externo</p><p>que lhes tenha sido atribuído.</p><p>A inovação é inseparável da concorrência, é sua forma principal, porque a concorrên-</p><p>cia diz respeito não apenas aos preços, mas também, e sobretudo, a estruturas, estra-</p><p>tégias, procedimentos e produtos. [...] A inovação tornou-se rotina, não provoca mais</p><p>rompimentos. Burocratiza-se, automatiza-se. De modo mais geral, o capitalismo, não</p><p>tendo mais o benefício das condições sociais e políticas que o protegiam, está amea-</p><p>çado (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 151).</p><p>A existência do sujeito assujeitado à lógica econômica em curso, caracterizada por sua</p><p>relação com o que o excede por seu impulso ao excesso e por estar fora de seus limites, que não</p><p>para de causar estresse, depressão, drogadição, suicídio, ataques de pânico e outros sintomas,</p><p>são fatores que impactam a vida dos indivíduos na sociedade (DARDOT; LAVAL, 2016). Esses</p><p>impactos, que advêm do sistema econômico e que estão relacionados com a formação da subje-</p><p>tividade humana, têm íntima relação com fatores sociais e políticos. Afinal, é da relação que se</p><p>estabelece em uma sociedade que os sujeitos se desenvolvem socialmente e, consequentemen-</p><p>te, que as mudanças que envolvem esta dinâmica refletem nos modos de vida dos indivíduos.</p><p>37</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Diante da análise do sistema político, econômico e social em curso e sua relação com os</p><p>seres humanos inseridos neste contexto, pode-se compreender como seria a subjetividade para</p><p>Freud (1996), Arendt (2007) e Bauman (2010), ou seja, o estudo das obras destes autores per-</p><p>mite conjecturar o que constitui os seres humanos – na questão da subjetivação – e como estes</p><p>se organizam na sociedade.</p><p>Arendt (2017), como já descrito anteriormente, pondera a condição humana em três</p><p>aspectos: labor, trabalho e ação. Bauman (2010) caracteriza a sociedade atual pelo consumo</p><p>excessivo e, em complemento de outras obras, se aprofunda na questão da perda da identidade</p><p>de cada sujeito em substituição a uma identidade hegemônica capitalista. Freud (1996), por</p><p>sua vez, apresenta o mal-estar – a angústia humana –, procedida da relação do homem com</p><p>o mundo frente aos reclamos dos instintos, necessária para manter uma organização social,</p><p>significando que, em seus escritos na obra O mal-estar da civilização, Freud (1996) discorre</p><p>sobre as discrepâncias existentes entre os pensamentos das pessoas e suas ações, assim como</p><p>a diversidade de seus impulsos plenos de desejo e como tais questões refletem na sociedade.</p><p>A constituição da subjetividade, então, para Freud, está relacionada à dinâmica incons-</p><p>ciente que se dá entre os instintos de vida e de morte e com as relações sociais, em que, de</p><p>acordo com a organização da sociedade, essa dinâmica se utilizará de outros mecanismos para</p><p>se manifestar – como o mecanismo da sublimação.</p><p>Dessa forma, a maioria dos seres humanos procura o convívio com outros seres humanos,</p><p>formando grupos e estabelecendo regras de convivência, na qual sua subjetividade irá se constituir.</p><p>Segundo a abordagem arentiana, a subjetividade humana está vinculada à condição hu-</p><p>mana, na relação dinâmica entre trabalho e consumo. Nesta condição, a subjetividade do ser</p><p>humano irá se constituir a partir da necessidade de consumir que, com o artificialismo do traba-</p><p>lho, excede o que é necessário para a sua subsistência.</p><p>Por seu turno, Bauman (2010) se refere aos indivíduos como seres individualistas e que</p><p>formam a sua identidade segundo o sistema capitalista. Este individualismo resulta na desigual-</p><p>dade social, quando muitos humanos são considerados como “refugos” – isto é, são aqueles que</p><p>não participam do sistema econômico e que são refugados por este mesmo sistema. Tal como</p><p>o lixo é produzido e descartado em qualquer lugar, os refugos humanos, de forma similar, são</p><p>despejados na sociedade, tornando evidente a desigualdade social, na qual alguns poucos têm</p><p>recursos suficientes para a sua sobrevivência e outros nem o mínimo, como o alimento.</p><p>A constituição da subjetividade em Bauman (2008) é o que permeia a vida do ser huma-</p><p>no, que está voltada ao consumo para pertencimento do sistema de plena produção e de pleno</p><p>consumo, incorporando em si a identidade hegemônica de mercado que reforça a permanência</p><p>do sistema capitalista. Segundo o autor,</p><p>Aparência é tudo de que dispomos, e isso não revela qualquer realidade profunda, fun-</p><p>damentada, em termos do que realmente somos. Aparências são fabricadas, ativadas</p><p>e desativadas na sedução que acompanha o consumo permanente. Com tantas alter-</p><p>nativas amplamente disponíveis e em crescente popularidade, o esforço exigido pelo</p><p>ímpeto de resolução do problema de identidade própria por meio do amor recíproco</p><p>tem uma possibilidade ainda menor de sucesso (p. 101).</p><p>Assim, o que aproxima Arendt (2007) de Bauman (2010) é, sobretudo, essa condição de</p><p>um pleno consumidor que tem uma relação destrutiva com o mundo. Consequentemente à essa</p><p>condição, estão os instintos da abordagem freudiana como fatores inerentes dos seres humanos</p><p>que os impulsionam ao consumismo.</p><p>38</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Na abordagem freudiana, de acordo com a obra Introdução ao Narcisismo, ensaios de</p><p>metapsicologia e outros textos (FREUD, 2010), essas características apontadas por Arendt e</p><p>Bauman constituem um sujeito narcísico. A relação do ser narcísico na sociedade de consumo</p><p>é explicada por Oliveira e Aragão (2014, p. 124):</p><p>[...] o narcisismo na sociedade de consumo não está essencialmente ligado ao outro,</p><p>do mundo exterior, nesse caso há uma regressão, a libido é redirecionada ao eu. Ou-</p><p>tras características marcantes desse narcismo são: valorização da autorrealização,</p><p>egocentrismo, eficiência, particularismo, hedonismo, busca por viver intensamente</p><p>o presente, sedução e criatividade, fascínio pelo espetáculo e busca por novas rea-</p><p>lizações. Instala-se, ainda, um sentimento de desprezo e apatia pelo coletivo, bus-</p><p>cando apenas a própria vantagem e só necessitando do outro como instrumento de</p><p>confirmação do próprio eu.</p><p>O ser narcísico é aquele voltado a si mesmo e aos seus próprios interesses; a ele carecem</p><p>as relações mais profundas, visto que não há interesse no bem-estar do outro. O egoísmo e o</p><p>individualismo despontam como suas principais características. Este ser narcísico é o fruto do</p><p>sistema econômico capitalista que aos poucos vai cedendo lugar à era do narcisista, na qual</p><p>Os indivíduos encontram-se dominados pela fluidez de valores, são focados somente</p><p>em si próprios e na sua autopromoção, vivem isolados socialmente e ignoram a rele-</p><p>vância da empatia. Esses comportamentos, por sua vez, ultrapassam os limites da nor-</p><p>malidade e devem ser verificados como possíveis quadros patológicos, uma vez que</p><p>se aproximam das condutas narcísicas, em virtude de uma sequência de atos que vão</p><p>desde a falta de empatia ao exagerado investimento e promoção da própria imagem</p><p>por meio das redes sociais (ULLRICH; ROCHA, 2019, p. 49-50).</p><p>Assim, é imperativo que estudos e debates sobre a formação constitutiva subjetivante,</p><p>resultado do sistema econômico capitalista, tenha espaço na ação política, para que as consequ-</p><p>ências advindas desta formação humana possam ser repensadas.</p><p>1.4 ECONOMIA, MEIO AMBIENTE E SUBJETIVIDADE</p><p>O cenário atual que configura a economia dominante e nosso modo de vida se caracteri-</p><p>zam como uma sociedade do mal-estar. O adoecimento físico e mental das pessoas e a desigual-</p><p>dade social geram o mal-estar na civilização e também impactos negativos ao meio ambiente, o</p><p>qual, para manter a civilização e a economia, sofre intensa exploração humana e dos bens natu-</p><p>rais. São vários os danos ambientais causados, desde aqueles em escala local até a devastação</p><p>dos biomas, por exemplo. Isto gera consequências, como o efeito estufa, a extinção de animais</p><p>e a proliferação de vírus, como o novo Coronavírus, Covid-1911, que se espalhou pelo mundo a</p><p>partir de 2020 (BRASIL, 2020).</p><p>Estes impactos consequentes da economia capitalista influenciou a vida psíquica das</p><p>pessoas, pois mostra o quanto os seres humanos, apesar do avanço da ciência e tecnologia, não</p><p>conseguem controlar as transformações da natureza, principalmente quando fazem uso abusivo</p><p>dos bens naturais, não para sobreviver, mas para ostentar um modo de vida capitalista de acu-</p><p>mulação e descarte, tornando a sociedade frágil e de risco.</p><p>11 De acordo com o pesquisador Allan Carlos Pscheidt, doutor em Biodiversidade Vegetal e Meio Ambiente e professor</p><p>das Faculdades Metropolitanas Unidas, em São Paulo, o novo coronavírus se alastrou pelo mundo devido à ação</p><p>destrutiva e invasora do ser humano contra a natureza (GIMENES, 2020).</p><p>39</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Segundo Krenak (2020a), exploramos a Terra, como se tirássemos pedaços, removendo</p><p>montanhas, fazendo intenso uso da água, do solo, por meio de atividades econômicas extrema-</p><p>mente extrativistas. Por outro lado, o mesmo autor apresenta a perspectiva dos povos indígenas,</p><p>pautada no modo do Bem Viver12, definido como a experiência de manter o equilíbrio com a</p><p>natureza</p><p>e o que dela podemos obter, mantendo assim relações de sustentabilidade.</p><p>Da mesma forma, Bauman (2010), em seu livro Capitalismo Parasitário (2010) afirma</p><p>que o sistema capitalista se destaca por criar problemas e não por solucioná-los, e assim o ca-</p><p>racteriza como um sistema parasitário e destrutivo das relações da sociedade humana entre si</p><p>e desta com a natureza. Assim, como todos os parasitas, estes podem prosperar durante certo</p><p>período, desde que encontrem um organismo ainda não explorado que lhes forneça alimento,</p><p>porém não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo, cedo ou tarde, as condições</p><p>de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência.</p><p>O Bem Viver, para Krenak (2020a, p. 15), remete ao estado de estar equalizado com o</p><p>corpo da Terra, vivendo com inteligência, na seguinte explicação: “[...] nesse organismo, que</p><p>também é inteligente, fazendo essa dança, que já me referi a ela como uma dança cósmica”. O</p><p>autor lembra, ainda, que a vida não é somente no Planeta Terra, mas para além dela, denominan-</p><p>do esse conceito de cosmovisão, citado pelos Yanomamis e Guaranis (povos indígenas), sendo</p><p>essas tradições referentes a uma narrativa de criação de mundo. Assim, o autor considera que a</p><p>Terra é um organismo vivo, e isso distingue o que é bem-estar do que é Bem Viver.</p><p>Krenak (2020a) nos alerta sobre a relação que estabelecemos com a natureza, e a forma</p><p>como esse “organismo vivo” reage diante das nossas ações. Se a sociedade humana continuar</p><p>a se relacionar com o Planeta Terra da forma como o faz hoje para manter a civilização, base-</p><p>ada na economia capitalista, não apenas ela sofrerá com o adoecimento, mas também a Terra o</p><p>sofrerá. E neste processo, sabemos da capacidade de regeneração e sobrevivência da Terra, no</p><p>entanto, os seres humanos, sendo os mais frágeis, com a escassez e a poluição dos bens naturais,</p><p>estão ameaçados em sua existência.</p><p>Afinal, o que torna tão difícil aos seres humanos mudarem sua vida neste modelo</p><p>capitalista? Bauman (2010) contribui, explicando que a produção contínua de novas ofertas</p><p>e o volume sempre ascendente de bens oferecidos reacende, constantemente, o desejo dos</p><p>indivíduos de substituírem seus bens por outros novos e diferenciados, reforçando o estilo</p><p>consumista de vida.</p><p>Para poder se manter neste estilo consumista de vida, os indivíduos necessitam e passam</p><p>a viver do crédito, que gera dependência. Inseridos neste contexto capitalista, os indivíduos se</p><p>veem emaranhados em um sistema que lhes tira a liberdade, mas que, ao mesmo tempo, facilita-</p><p>-lhes o crédito por meio de empréstimos, financiamentos e outros, e que, por hora, proporciona</p><p>aos mesmos certa satisfação do consumismo. Por outro lado, estes mesmos indivíduos se veem</p><p>presos a uma armadilha, a qual faz com que se emaranhem cada vez mais para conseguir mais</p><p>crédito, para pagar seus débitos e perpetuar este ciclo sem fim do sistema capitalista.</p><p>Dessa forma, as pessoas tornam-se visceralmente vinculadas ao modo de vida do consu-</p><p>mismo deste sistema capitalista, na sociedade do mal-estar, que, muitas vezes, gera certa satis-</p><p>fação momentânea e passageira, obrigando a todos a consumirem mais para garantir o mínimo</p><p>de satisfação e, assim, explorar cada vez mais a si mesmos, aos outros e ao Planeta, para, num</p><p>ciclo sem fim, produzir mais. Para Arendt,</p><p>12 Segundo Krenak (2020a), o bem viver é um modo de estar no mundo, mantendo um equilíbrio entre o que podemos</p><p>obter da vida, da natureza, e o que devolvemos à natureza. O bem viver, então, não é incidir sobre a Terra, mas estar</p><p>equalizado com ela.</p><p>40</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Em nossa necessidade de substituir cada vez mais depressa as coisas mundanas que</p><p>nos rodeiam, já não podemos nos dar ao luxo de usá-las, de respeitar e preservar sua</p><p>inerente durabilidade; temos que consumir, devorar, por assim dizer, nossas casas,</p><p>nossos móveis, nossos carros, como se estes fossem as “boas coisas” da natureza que</p><p>se deteriorariam se não fossem logo trazidas para o ciclo infindável do metabolismo</p><p>do homem com a natureza. É como se houvéssemos derrubado as fronteiras que dis-</p><p>tinguiam e protegiam o mundo, o artifício humano, da natureza, do processo biológico</p><p>que continua a processar-se dentro dele, bem como os processos cíclicos e naturais</p><p>que o rodeiam, entregando-lhes e abandonando a eles a já ameaçada estabilidade do</p><p>mundo humano (2007, p. 137).</p><p>Esse ciclo perpetuado pelo capitalismo pode gerar um desastre sem proporções, e levar</p><p>ao fim a existência humana, ou à queda – termo utilizado por Arendt e Freud.</p><p>Nessa perspectiva, Krenak (2020a) destaca que o ser humano é apenas um dentre os bi-</p><p>lhões de outros seres que habitam o Planeta Terra, sendo que já foi extinguiu significativo núme-</p><p>ro de espécies. Apenas os seres humanos não entraram na lista, ainda; porém, pela maneira como</p><p>se relacionam com o Planeta, estão reivindicando o direito de brevemente entrar nessa lista.</p><p>Na análise de Krenak (2020b), as pessoas na atualidade vivem reféns desse sistema</p><p>econômico, que as prende e lhes tira a liberdade. A mudança do modo de vida, para aqueles que</p><p>estão inseridos neste sistema econômico, se torna difícil, como um caminho sem volta. Poucos</p><p>seriam os corajosos dispostos a sair desse sistema e mudar completamente seu estilo de vida.</p><p>É neste contexto que a subjetividade se apresenta como a constituição de cada ser hu-</p><p>mano, na relação que estabelece consigo mesmo e com os outros e que irá caracterizar a forma</p><p>de ser no mundo: a expressão dos pensamentos e comportamentos, que moldam as formas de</p><p>vida na sociedade.</p><p>A economia, para Krenak (2020b), é uma atividade inventada pelos humanos e que de-</p><p>pende dos próprios seres humanos. Nesta direção, a economia deve servir e ser útil aos seres</p><p>humanos e não estes estarem a serviço de um modelo de economia financeirizada e especulati-</p><p>va, controlado por uma minoria de capitalistas.</p><p>Em relação a este sistema econômico, Krenak (2020b) aborda a questão de que, para os</p><p>governantes, a perda daqueles que representam gastos seria um ganho econômico, no sentido</p><p>de deixar morrer os que integram os grupos de risco (referência às perdas das pessoas conta-</p><p>minadas pela Covid-19). Essa referência do autor ilustra os excluídos em Bauman (2010) – os</p><p>refugos humanos – na base competitiva do sistema econômico, em que a desigualdade é uma</p><p>das características da sociedade humana atual.</p><p>2 CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>As reflexões propostas neste artigo analisam as relações sociais, políticas e econômicas</p><p>que permeiam a sociedade atual e seu impacto na subjetividade humana. Os interesses humanos</p><p>apresentados nas análises de Freud, e as perspectivas sociais históricas presentes nas visões de</p><p>Arendt auxiliam na compreensão dessas relações entre o ser humano e a economia.</p><p>Além disso, Bauman propõe o pensar sobre o outro, e este, por sua vez, pode não con-</p><p>seguir equiparar-se num sistema econômico, o que reflete em atitudes, por vezes, inesperadas</p><p>ou até agressivas. Dentre as demais contribuições expostas, Krenak percorre a relação do ser</p><p>humano com o estado de Bem Viver, e o associa com a dependência que este tem à natureza.</p><p>A sociedade atual, portanto, está pautada no sistema capitalista financeirizado – que abriu</p><p>as fronteiras de mercado –, internacionalizando a economia. Neste sistema, os seres humanos</p><p>estão cada vez mais competitivos e dependentes do mesmo. A dependência toma uma dimensão</p><p>41</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 27-43, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>cada vez maior, devido às possibilidades e à comodidade para a realização de empréstimos e</p><p>empreendimentos, até mesmo em longo prazo, com o objetivo de tentar conquistar um modo de</p><p>vida mais confortável, com a aquisição de bens (imóveis, veículos, objetos, planos de saúde e</p><p>outros). A base deste sistema é o da plena produção e do pleno consumo. Essa tentativa humana</p><p>em alcançar o conforto e a segurança e produtos os tornam reféns deste próprio sistema.</p><p>De outra forma, tais desejos lhes tira a liberdade e geram consequências do sofrimento</p><p>psíquico e físico: o cansaço, as doenças crônicas e os transtornos mentais, que conduzem esse</p><p>indivíduo a sua própria armadilha – à dependência do Estado para o tratamento da sua saúde e,</p><p>com isso, a necessidade de se manter neste sistema para poder ter o acesso ao tratamento. Esse</p><p>cenário gera um ciclo vicioso e sem fim, pois a procura de maior segurança (acesso ao conforto)</p><p>leva as pessoas a terem menor liberdade.</p><p>Essa situação, como muitas outras, reflete no comportamento das pessoas, que pode se</p><p>apresentar pela insatisfação, agressividade e violência. A agressividade e a violência podem to-</p><p>mar duas dimensões: aquela voltada ao próprio indivíduo ou aos outros. Desse modo, é comum</p><p>na sociedade o relato de violência praticada entre os indivíduos, levando-os ao homicídio ou</p><p>também ao suicídio.</p><p>A agressividade e a violência se manifestam de várias formas: desde a violência física,</p><p>a qual deixa marcas no corpo, como também o assédio moral, caracterizado pela comunicação</p><p>violenta – o desrespeito, a injúria e a calúnia – com demonstrações de intolerância que escon-</p><p>dem a satisfação de algo que oprime, que leva o indivíduo a seu limite e que dificulta o seu</p><p>autocontrole no relacionamento social, familiar e profissional.</p><p>Assim, a economia capitalista hegemônica impacta psicologicamente nas pessoas, no</p><p>sentido de torná-las limitadas em suas escolhas e no direito de participação na sociedade.</p><p>A condição humana atual, moldada no sistema econômico capitalista, conduz a socie-</p><p>dade humana não apenas a um adoecimento físico e psicológico, mas também à destruição das</p><p>relações da própria sociedade, e, ainda, dos bens naturais.</p><p>Diante desse cenário, há a necessidade premente de compreender a história da sociedade</p><p>humana, bem como, de sua organização social, política e econômica para, então, ao rever as</p><p>atuais condições humanas, propor e construir um novo sistema econômico que seja voltado ao</p><p>bem-estar da sociedade, diferente do sistema econômico atual, que opera a serviço do mercado.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>AGAMBEN, Giorgio. 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Os métodos para busca de respostas à problemática proposta se resumiram ao campo</p><p>bibliográfico e documental, tendo sido os dados obtidos analisados de forma qualitativa. Em síntese, os resultados</p><p>obtidos evidenciaram a existência de sequenciada de questões que desconstruíram a cidadania no Brasil ano após</p><p>ano em doses virulentas, formatando assim uma nova identidade para ela de maneira a colocá-la na condição de</p><p>subcidadania recheada de códigos sociais hierárquicos complexos que enfraquecem a democracia no âmbito na-</p><p>cional, deixando-a vulnerável para rompantes populistas ou até mesmo para discursos de retomada de ditadura.</p><p>Palavras-chave: Cidadania. Democracia. Estado. Memória.</p><p>ABSTRACT: This article sought to highlight the main factors present in social memory that contributed to the</p><p>distortion of citizenship in Brazil, a topic that should be widely discussed and always be on the national public</p><p>agenda. Studying citizenship in Brazil and its specificities requires a reckoning with the history of the Brazilian</p><p>State in its various periods that, each in its own way, had a direct influence on the distortion process capable of</p><p>discrediting political participation and the effective role of civil society in the decisions of your interest. The</p><p>methods for seeking answers to the proposed problem were limited to the bibliographic and documentary field,</p><p>with the data obtained being analyzed qualitatively. In summary, the results obtained evidenced the existence of</p><p>a sequence of questions that deconstructed citizenship in Brazil year after year in virulent doses, thus formatting</p><p>a new identity for it to place it in the condition of sub-citizenship filled with complex hierarchical social codes</p><p>that they weaken democracy at the national level, leaving it vulnerable to populist outbursts or even to discou-</p><p>rses of resumption of dictatorship.</p><p>Keywords: Citizenship. Democracy. State. Memory.</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Por séculos e séculos da história mundial, especialmente da brasileira, o conceito de</p><p>cidadania recebeu várias conotações e teorizações que fizeram da sua compreensão algo bas-</p><p>tante situacional de acordo com o momento político vivido em cada época. Por outro lado,</p><p>uma concepção mais persistente ou mais hegemônica é a do direito ao voto advinda desde as</p><p>democracias atenienses chegando à estabelecida na sociedade brasileira que limita o conceito</p><p>de cidadania a meros ditames morais ou jurídico-constitucionais em detrimento do sociológico.</p><p>A grande questão nesse caso não é nem desconsiderar os construtos teóricos ou se são</p><p>persistentes ou não e sim estabelecer uma justa e adequada concepção de cidadania como real-</p><p>mente deveria ser, ou seja, uma cidadania emancipadora, capaz de encorajar o empoderamento</p><p>social em todos os estratos, fortalecendo assim a democracia. No entanto, o estudo de memória</p><p>nos traz a compreensão que a construção política e sociológica da cidadania foi completamente</p><p>desvirtuada especialmente nos países ibero e latino-americanos como o Brasil, considerados</p><p>como capitalistas periféricos e de modernidade tardia e de efeitos devastadores.</p><p>1 Doutorando e Mestre em Memória Social e Bens Culturais pela Universidade La Salle/RS, Bacharel em Admi-</p><p>nistração em Gestão Pública pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS).</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>46</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Nesse sentido, o objetivo deste artigo é apresentar, discutir e contextualizar os elementos</p><p>existentes na memória social brasileira, levando-nos a crer que a noção de cidadania no Brasil</p><p>vem em franco e contínuo processo de desconstrução e desvirtuamento, resultando no surgi-</p><p>mento de subcidadãos e enfraquecendo o estado democrático de direito. A pergunta que se pre-</p><p>tende responder ao longo do artigo é quais foram os principais desvirtuadores que contribuíram</p><p>com esse processo e qual a perspectiva para os próximos anos e gerações.</p><p>REFERENCIAL TEÓRICO</p><p>Inicialmente, entendemos ser necessário estabelecer a compreensão do termo “desvir-</p><p>tuar” que é central para o estudo proposto. Desvirtuar remete a depreciar a virtude, o valor de</p><p>algo ou mesmo torcer o sentido, ou seja, uma inversão de valores, uma desacreditação.</p><p>Assim, a investigação dos principais desvirtuadores inseridos no curso da história políti-</p><p>ca e social do Brasil somente é possível através do estudo da memória social que é muito mais</p><p>do que uma mera repetição linear de acontecimentos e vivências, mas um processo de recons-</p><p>trução revestido de um conjunto de relações sociais. Nesse sentido, o estudo da memória social</p><p>do processo de desvirtuamento da cidadania no Brasil vai mais do que recapitular fatos, mas</p><p>associá-los ao contexto e inscrevê-los no presente justificando os acontecimentos.</p><p>O estudo da memória social é capaz de evitar o desaparecimento de referências e até</p><p>mesmo a diluição das identidades comum com o passar do tempo, uma vez que a memória se</p><p>caracteriza como uma reconstrução atualizada do passado baseada na relação dialógica com o</p><p>outro (alteridade), reforçando a sua coletividade. Nesse caso, a teoria de Candau nos convida a</p><p>refletir sobre a importância da memória social brasileira além da teoria de Halbwachs, uma vez</p><p>que a relaciona com a identidade que nos remete ao sentido de pertencimento que só é possível</p><p>quando conhecemos as nossas origens, o nosso passado etc.</p><p>Mesmo que não tenhamos vivido todos os acontecimentos, eles têm, de certa forma, in-</p><p>fluência na nossa cotidianidade atual, e tomam proporção na vida dos indivíduos ou até mesmo</p><p>da coletividade como se fosse uma memória herdada indissociável da memória construída. A</p><p>relação estabelecida por Pollak nos motiva ainda mais a querer compreender o que não viven-</p><p>ciamos, remetendo-nos a não acreditar como verdade tudo que se conta sem antes promover</p><p>uma reflexão, fazendo assim um acerto de contas consistente com o nosso passado.</p><p>A compreensão da memória social como construção adquire mais sentido quando a re-</p><p>lacionamos com a cotidianidade, ou seja, o que se sabe sobre cotidianidade é sustentável e não</p><p>menos óbvio, pois se trata dos modos de fazer alguma coisa, o agir dos indivíduos em uma</p><p>sociedade que, por vezes, acabam se reafirmando no esteio social por meio de costumes im-</p><p>postos por classes hegemônicas, por exemplo. Nesse sentido, fica fácil compreender o porquê</p><p>de alguns fenômenos cotidianos persistentes como a exclusão social e o racismo, por exemplo.</p><p>A memória social é estratégica para a identificação das raízes históricas do preconceito,</p><p>trazendo à luz o ou os pontos nevrálgicos nos quais os ideais preconceituosos ganharam forma,</p><p>sejam por equivocados juízos de valor ou por questões hegemônicas estruturais que se perpe-</p><p>tuaram na sociedade. Assim, a libertação dos valores preconceituosos depende muito disso,</p><p>proporcionando a reflexão, o debate e a ressignificação de ideias, chegando-se, assim, em um</p><p>“amadurecimento social”.</p><p>Em relação ao conceito de sociedade, recorremos ao ensinamento de Bonavides (2000),</p><p>que nos diz que podemos compreendê-la</p><p>a partir da concepção de um complexo de relações do</p><p>homem com seus semelhantes, podendo assumir um caráter mais mecanicista (indivíduo cen-</p><p>tralizado como sujeito da ordem social) ou organicista (indivíduo não pode existir descolado</p><p>47</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>da ordem social vigente). Em complemento, Dallari (2011) nos instiga a pensar que a vida em</p><p>sociedade é uma espécie de “contrato social”, o qual os indivíduos transferem direitos como a</p><p>melhor alternativa para a organização social como o estado, por exemplo.</p><p>Para Souza (2012), a explicação para algumas das muitas deficiências nas relações so-</p><p>ciais está no conceito de habitus, que implica a forma como são introjetadas e incorporadas</p><p>percepções das coisas pelos atores sociais, uma espécie de esquema de conduta e compor-</p><p>tamento que passa a gerar práticas individuais e coletivas que tendem a gerar uma série de</p><p>comportamentos “razoáveis” e de “senso comum”, fazendo com que, inconscientemente, os</p><p>acontecimentos sejam vistos como normais e que precisam ser simplesmente aceitos. Outro</p><p>fator determinante é a existência de uma hierarquia valorativa opaca que comanda as relações</p><p>sociais no Brasil, resultando na assimetria de acesso aos recursos disponíveis na sociedade e</p><p>fortalecendo a lógica das relações baseadas no poder econômico ou político.</p><p>Para Teixeira (2002) são os fenômenos da desigualdade e da concentração de riqueza</p><p>que, de certa forma, impedem a constituição de sujeitos políticos capazes de reivindicar sua in-</p><p>serção na esfera pública, difundindo valores individualistas e de consumo que solapam as possi-</p><p>bilidades de construção de vínculos sociais que transitem e superem a fratura urbana brasileira.</p><p>No mesmo viés, Zaluar (1997) afirma que a exclusão, ao contrário da pobreza, é que questiona</p><p>e ameaça a organização social, a autoridade política e o projeto econômico, ou seja, o fato de</p><p>parte significativa da população não estar incorporada à comunidade social e política representa</p><p>a negação sistemática de seus direitos de cidadania e consequentemente seu acesso à riqueza</p><p>produzida no país, implicando a construção de uma normatividade que separa os indivíduos,</p><p>impedindo sua participação na esfera pública e num processo relacional e cultural que regula a</p><p>diferença como condição de exclusão.</p><p>Tanto Carvalho Franco (1997) quanto Bourdieu (2004) apontam para a existência de um</p><p>fetichismo político na delegação de poder, especialmente sobre os mandatários ou delegados</p><p>em tomar as decisões em nome de uma população, deixando clara a existência de uma idolatria</p><p>política na personagem política, sobretudo entre as classes mais despossuídas, condição sine</p><p>qua non que explica o fato dos mandantes (povo) passarem um “cheque em branco” ao man-</p><p>datário ou mesmo aos representantes (legisladores) independentemente da condição destes de</p><p>responderem questões básicas as quais o povo demanda soluções.</p><p>Nesse sentido, faz-se importante compreender em que ponto a cidadania se articula na</p><p>relação política e sociedade, nos remetendo aos preceitos advindos da Grécia Antiga que tratava</p><p>a política como uma comunidade organizada pelos cidadãos. No entanto, o que pesa é que a</p><p>concepção de cidadania foi sempre muito restrita de um lado ou de outro, a começar pela sua</p><p>origem na própria Grécia.</p><p>Para Marshall (1973), pensar cidadania e democracia plenas é impossível se não houver</p><p>a consolidação do que ele chamava de “Pirâmide dos Direitos” começando pela integraliza-</p><p>ção tácita dos direitos civis em qualquer sociedade, para assim atingir os direitos políticos e</p><p>somente por último, os direitos sociais. No entanto, Giddens (2005), ao contrário de Marshall,</p><p>entendia que isso só seria possível por meio de uma arena de lutas, o que não subestimaria nem</p><p>desconsideraria a força das classes hegemônicas nesse processo.</p><p>Para Carvalho (2002), o caso brasileiro remonta à inversão da Pirâmide de Marshall,</p><p>priorizando-se os direitos sociais na arena de lutas e rifando os direitos civis e políticos na</p><p>contramão desse processo, desvirtuando qualquer noção de cidadania e comprometendo a de-</p><p>mocracia e sua lenta e tênue retomada, o que, na visão de Valente (2013) torna o processo de</p><p>construção da cidadania complexo e atrasado especialmente pelas questões ligadas a moder-</p><p>nidade periférica brasileira que resultou na profunda assimetria de direitos e dissimulação das</p><p>desigualdades. De acordo com Tavolaro (2009), a modernidade periférica instituída nos países</p><p>48</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>latino-americanos, como o Brasil, contribuiu significativamente para o surgimento de duas</p><p>classes de cidadãos: os “subcidadãos”, que ficam à margem da sociedade moderna e à espera</p><p>das migalhas do estado e os “sobrecidadãos” que gozam dos privilégios especialmente ofe-</p><p>recidos pelo estado.</p><p>Para Mouffe (1992), a verdadeira cidadania só pode existir por meio de uma democracia</p><p>radical que implicaria uma concepção ativa da cidadania, onde os cidadãos sejam constante-</p><p>mente estimulados a participar da vida pública, reivindicando e implementando seus direitos,</p><p>mas isso só será atingido quando houver a mínima satisfação das necessidades básicas que,</p><p>por serem objetivas e universais e independerem das preferências de cada um, são condições</p><p>essenciais em qualquer civilização no mundo. Por outro lado, DaMatta (1997) nos diz que esse</p><p>espírito coletivo perde espaço para o individualismo presente no contexto brasileiro e converge</p><p>para ir contra as leis que consolidam a igualdade e a totalidade dos membros, fazendo com que</p><p>a noção de cidadania sofra uma espécie de desvio, seja para baixo, seja para cima, que a impede</p><p>de assumir integralmente seu significado político universalista e nivelador.</p><p>Assim, a relação estabelecida entre cidadania e democracia encontra ponto de conver-</p><p>gência significativo, uma vez que uma depende da outra, mas que, segundo Bobbio (1988),</p><p>para que isso de fato aconteça é preciso o fortalecimento das garantias civis defendidas por</p><p>Tocqueville e do desenvolvimento gradual e progressivo da igualdade social. Nesse sentido,</p><p>parece apropriado consignar a teoria de Robert Dahl apresentada em 1989 sobre as poliarquias,</p><p>podendo ser compreendidas como os graus de democratização de uma sociedade. A Figura 1, a</p><p>seguir, ilustra a teoria da poliarquia de Robert Dahl, demonstrando um modelo ideal de demo-</p><p>cracia e os modelos que podem se sobrepor dependendo do contexto político e social.</p><p>Figura 1. Sistemas poliárquicos de Robert Dahl</p><p>Fonte: adaptada de Dahl (1989)</p><p>De acordo com a visão de Dahl (1989), é possível de ter pelo menos quatro graus de de-</p><p>mocratização em uma sociedade, sendo que o maior deles são as sociedades poliárquicas, tanto</p><p>pela ampla participação social quanto de candidatos em disputa, remetendo a um sufrágio pra-</p><p>ticamente perfeito de reduzida assimetria especialmente na questão competitiva. No entanto, de</p><p>acordo com Reis (2014), o persistente ranço autoritarista brasileiro impede a construção social</p><p>da cidadania fazendo com que a democracia no Brasil seja simplesmente uma fábula bem con-</p><p>tada, pois a intolerância e as tendências autoritárias perpassam com vigor a sociedade brasileira</p><p>49</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>evidenciadas claramente com as elevadas taxas de homicídio e feminicídio, violência policial,</p><p>graves violações a liberdade de imprensa, uma assustadora homofobia, e prática disseminada</p><p>de tortura e sua aceitação por amplos segmentos da sociedade. Da mesma forma, a assimetria</p><p>de competição pelos espaços políticos tanto do Legislativo quanto do Executivo retrata fidedig-</p><p>namente esse panorama brasileiro.</p><p>METODOLOGIA</p><p>O artigo aqui apresentado decorre de uma pesquisa iniciada em 2013 em meio à eferves-</p><p>cência dos movimentos de rua que viriam a culminar no impeachment da ex-presidente Dilma</p><p>Rousseff. Na época, resultou na construção do trabalho de conclusão de curso</p><p>A Bíblia, sobretudo o livro do profeta Isaías, influenciaram, influenciam e continuarão</p><p>a influenciar pessoas (SCHMITT, 2013). Esse livro configura importante papel nas religiões</p><p>cristã e judaica, isto devido à sua influência na formação do imaginário sagrado popular que</p><p>extrapola o contexto religioso. O texto de Isaías é uma obra de admirável linguagem poética e</p><p>simbólica, sua grandeza está em ser uma obra voltada para o cuidado de comunidades que en-</p><p>frentaram situações de calamidade social, colaborando para manter a esperança dos que sofrem</p><p>(MATOS, 2013).</p><p>1 Acadêmico da Graduação em Teologia – Unicesumar – PIVIC.</p><p>2 Orientador. Doutor. Docente Unicesumar. Eduardo.lima@unicesumar.edu.br</p><p>3 Co-orientador. Mestrando. Docente Unicesumar. Jonas.Ramos@unicesumar.edu.br</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 5-13, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>6</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 5-13, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Os principais personagens são Deus, Isaías, o povo de Israel e os povos vizinhos. Estru-</p><p>turalmente, o livro começa com uma alusão à morte e termina com uma referência à vida (SI-</p><p>CRE, 1996), o que já aponta para sua proposta. Era um período de sofrimento em que surgiram</p><p>profetas com mensagens que abordavam o juízo e o castigo divino, alguns nem eram religiosos,</p><p>mas, no geral, seus textos eram realistas e trágicos ao mesmo tempo em que pregavam uma lei-</p><p>tura de esperança e fé. Um dos pontos de concordância entre os teólogos do Antigo Testamento</p><p>é a compreensão de que a voz profética desses escritos é portadora de esperança, restauração</p><p>e alegria, temas recorrentes no livro de Isaías (RAD, 2006; CROATTO, 2000; LANE, 2011).</p><p>O objetivo deste artigo é identificar na profecia de Isaías uma mensagem de esperança</p><p>frente às adversidades. Pretende-se analisar a mensagem de forma geral e prática, como respos-</p><p>ta às crises e sofrimentos, sobretudo àquelas vividas nas realidades urbanas, em que, milhares</p><p>de pessoas buscam respostas para os seus anseios.</p><p>Neste segmento, desde 2019 o mundo tem testemunhado e lutado contra a pandemia de</p><p>Covid-19 e entre os resultados possíveis, milhões de mortes em todas as faixas etárias. Diante</p><p>de todo esse sofrimento desproporcional, diversos textos sagrados foram resgatados no imagi-</p><p>nário popular, seja por dúvidas, seja por esperança. E, nestes casos, ouvir um discurso religioso</p><p>que não condiz com a realidade de amparo pode intensificar o sofrimento e gerar outros casos</p><p>de ansiedade e depressão. Fato é que as pessoas têm que lidar com temas pertinentes ao sentido</p><p>último da vida e o esperado é que a mensagem de esperança e fé forneça conforto e amparo. O</p><p>cuidado pastoral, neste momento precisa atentar em como utilizar os textos para evitar expor a</p><p>pessoa a maiores sofrimentos, dúvidas e dor (SCHMITT, 2019).</p><p>METODOLOGIA</p><p>Essa pesquisa justifica-se em razão dos múltiplos questionamentos atuais sobre o so-</p><p>frimento e principalmente sobre a morte. A metodologia usada será de pesquisa bibliográfica</p><p>exploratória; serão estudados artigos e livros de referência para exegese no texto bíblico. Serão</p><p>usados os bancos de dados do Google Acadêmico, do portal de Periódicos da CAPES e por</p><p>meio de portais de pesquisa internacionais como o ResearchGate e a plataforma Academia.edu,</p><p>o recorte temporal será nos últimos 5 anos. Também será utilizada a versão da bíblia hebraica a</p><p>partir da Bíblia Hebraica Stuttgartensia.</p><p>A perspectiva seguirá o método semio-discursivo. A utilização deste método se deve à</p><p>cientificidade e objetividade. Nesta pesquisa seguiremos as perspectivas clássicas de exegese,</p><p>primeiro uma análise do texto no original e suas versões, análise histórica e cultural, análise dos</p><p>discursos e possíveis aplicações. Espera-se que, ao término da pesquisa reconheçamos nesse</p><p>texto a possibilidade de utilização de mensagens bíblicas a fim de fornecer esperança em mo-</p><p>mentos de sofrimento.</p><p>CENÁRIO: A pandemia de COVID-19</p><p>Entre o final de 2019 e começo de 2020, surgiram na cidade de Wuhan, China, os primei-</p><p>ros casos de uma gripe incomum (Síndrome Respiratória Aguda Grave) denominada Covid-19,</p><p>causada por um vírus denominado Sars-CoV-2. Em meados de março de 2020, a Organização</p><p>Mundial de Saúde (OMS) se manifestou afirmando que estávamos diante de uma pandemia</p><p>global (COUTO et al., 2021). Nas Américas, o número de pessoas infectadas aumentou dras-</p><p>ticamente. Foram registrados números próximos a 74 milhões de pessoas infectadas com Sar-</p><p>s-CoV-2 resultando em mais de 1,9 milhões de mortes (OPAS, 2021); segundo dados de 2022,</p><p>7</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 5-13, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>com o surgimento de novas variantes, as infecções mundiais passaram a marca de 350 milhões</p><p>de pessoas e mais de 5 milhões de mortes, contabilizando apenas os casos notificados, deduz-se</p><p>que o número real é superior.</p><p>Uma das formas usadas para evitar a propagação do vírus foi o afastamento físico (so-</p><p>cial distancing). Vários países adotaram este método com o objetivo de inibir a propagação do</p><p>vírus, mas teve graves consequências para a sociedade como o impedimento de abertura de co-</p><p>mércios, escolas e indústrias produzindo um caos econômico (COUTO et al., 2021). Segundo</p><p>Macedo e Macedo (2020, p. 48), o Sars-CoV-2 desestruturou uma “sociedade tecnologicamente</p><p>mais avançada do que era cem anos atrás” e com isso provocou uma interrupção nos “fluxos de</p><p>produção, consumo e financeiro”, amplificando os sofrimentos dos mais pobres e intensificando</p><p>a desigualdade.</p><p>Diante desse sofrimento, diversos textos sagrados foram resgatados no imaginário popu-</p><p>lar, levantando mais questionamentos à procura de mensagens de esperança. É neste contexto</p><p>que Isaías 65:17-25 oferece uma abordagem profética, podendo ser usado para atender a pesso-</p><p>as que esperam não só alívio e conforto, mas também salvação e libertação da opressão política</p><p>e religiosa por parte de classes dominantes (LANE, 2011).</p><p>Croatto (1997) afirma que o Trito-Isaías (referência ao texto de Isaias dos capítulos</p><p>56-66) está permeado de oráculos de crítica e juízo, mas também de esperança e salvação. Em</p><p>nossa pesquisa, identificamos maior presença de estudos e exegeses no Proto-Isaías (1-39) e no</p><p>Deutero-Isaías (40-55), mas não são tão comuns os estudos sobre a terceira parte (56-66), afir-</p><p>ma Barredo (2016). Desta forma, por meio de exegese no texto Isaiano, especificamente Isaías</p><p>65:17-25, procuraremos identificar a possibilidade de mensagem de esperança para o contexto</p><p>psicossocial em que a sociedade atual vive sob os impactos do Covid-19.</p><p>O TEXTO</p><p>A perícope delimitada nos vv. 17-25 de Isaías 65 é reconhecida como um anúncio de sal-</p><p>vação. Dentre as propostas de delimitação, precisamos considerar duas abordagens: 1) Segun-</p><p>do Lane (2011) diversos autores acreditam que o capítulo todo é uma unidade, porém, outros</p><p>afirmam que ele pode ser dividido em duas ou mais unidades, vv. 1-16 e vv. 17-25; 2), também</p><p>há quem entenda que a unidade se estende até o 66.4 ou 66.5. Para apresentação do texto segui-</p><p>remos a proposta tradicional que compreende a perícope dos versos 17-25.</p><p>A seguir apresento o texto hebraico e uma tradução provisória. Para essa pesquisa utili-</p><p>zamos a Bíblia Hebraica Stuttgartensia (grifo nosso), principal referência para estudos no texto</p><p>da Bíblia Hebraica.</p><p>Tabela 1. Texto Hebraico e Tradução de Isaías 65:17-25</p><p>17. Pois crio os céus novos e terra nova. E não lembro</p><p>as primeiras e não subirão para o coração</p><p>הָׁ֑שָדֲח ץֶרָ֣אָו םיִׁ֖שָדֲח םיִַ֥מָׁש אֵ֛רוֹב יִ֥נְנִה־יִּֽכ</p><p>׃בֵֽל־לַע הָניֶ֖לֲעַת אֹ֥לְו תוֹ֔נֹׁשאִ֣רָה ֙הָנְרַ֨כָּזִת אֹ֤לְו</p><p>18. Mas, gozareis e alegrareis para sempre na criação</p><p>que eu tenho feito, para Jerusalém alegria e gozo</p><p>para seu povo.</p><p>֩יִּכ אֵ֑רוֹב יִ֣נֲא רֶ֖שֲׁא דַ֔ע־יֵדֲע ּ֙וליִ֨גְו וּשׂיִ֤שׂ־םִא־יִּֽכ</p><p>׃שׂוֹֽשָׂמ הָּּ֥מַעְו הָ֖ליִּג םִַ֛לָשׁוּרְי־תֶא אֵ֧רוֹב יִ֨נְנִה</p><p>19. E me alegrarei em Jerusalém e gozarei com meu</p><p>povo, e nela nunca mais será ouvida voz de choro</p><p>nem de clamor</p><p>עַ֥מָּׁשיִ־אֹֽלְו יִּ֑מַעְב יִּ֣תְׂשַׂשְו</p><p>limitado aos fatos</p><p>ocorridos até aquele ano. A pesquisa foi retomada em 2022 com propósito de atualizar os fatos</p><p>que permearam a memória social nesses últimos anos e com a ideia de acrescentar o que mudou</p><p>de lá para cá.</p><p>O recorte amostral não se resumiu a apenas um período da memória nacional e sim a</p><p>um apanhado de fatos relevantes que só se agravaram desde a colonização. No entanto, mes-</p><p>mo sabendo que cada período da história merece uma análise mais aprofundada, esse não é</p><p>o propósito central da pesquisa e sim por meio de poucas evidências acumuladas demonstrar</p><p>que a cidadania no Brasil se desvirtuou e se recriou com nova roupagem de “subcidadania” ou</p><p>“semicidadania”.</p><p>Em linhas gerais, a pesquisa assumiu uma postura dialética, sendo um dos métodos mais</p><p>aplicados nas pesquisas qualitativas, de interpretação dinâmica, onde os fatos que serão apre-</p><p>sentados não poderão ser considerados fora de um contexto social e político. Por se tratar de um</p><p>estudo sobre memória social, isso confere uma responsabilidade adicional à condução da pesqui-</p><p>sa, pois se buscou estabelecer um elo das relações memória-identidade com as conexões que se</p><p>pretende elucidar por meio do resgate dos fatos históricos da realidade social e política nacional.</p><p>Os materiais de pesquisa se limitaram ao campo bibliográfico e documental, buscando</p><p>investigar a problemática por meio do tanto de informações que fossem possíveis de extrair de</p><p>livros, artigos, reportagens, vídeos, dados oficiais etc. A seleção dos materiais de pesquisa como</p><p>livros e artigos se deu com base em autores que dialogam permanentemente sobre a história</p><p>social e política brasileira, permitindo que os fatos vividos não deixassem de ser discutidos e</p><p>apresentados, o que, para a memória social brasileira é essencial, uma vez que não se perde</p><p>no tempo, não cai no ostracismo e ressignifica a cada abordagem discursiva. Buscou-se fazer</p><p>uso das plataformas digitais para pesquisa tanto de livros quanto artigos, com foco na base de</p><p>periódicos da Capes, SciElo e bibliotecas virtuais. Algumas obras foram adquiridas para leitura</p><p>e consulta no Kindle.</p><p>RESULTADOS E DISCUSSÕES</p><p>Com a chegada da Família Real ao Brasil em 1808, precisou-se formatar um projeto de</p><p>nação para comportar a corte obrigada a viver aqui. Os efeitos, para a sociedade, não foram</p><p>quase nada positivos, uma vez que se ampliaram as desigualdades por meio de um estapafúrdio</p><p>elitismo e agenciamento social e a escravidão se institucionalizou com mais intensidade. Para</p><p>Bueno (2012), a sociedade e a política dos tempos imperiais e monárquicos eram compostas</p><p>pelos "homens-bons", os ricos proprietários da “casa grande” que definiam os rumos políticos</p><p>das vilas e cidades excluindo o povo, sobretudo as mulheres e os negros da participação na vida</p><p>pública, em meio a uma sociedade patriarcal, conservadora e predominantemente aristocrática.</p><p>50</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Para Carvalho (2002), a tradição cívica do Brasil era pouco encorajadora em 1822, pois</p><p>tinha-se uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata e um absolutismo crônico ins-</p><p>taurado, ampliando as desigualdades sobretudo pelo instituto da escravidão. As relações políti-</p><p>cas e a sociabilidade do período imperial eram dotadas de especificidades que existem até hoje</p><p>na sociedade brasileira, a começar pela disputa acirrada pelo poder político, a malandragem</p><p>eleitoral, os votantes menos conscientes curvados ao patronato, a barganha por votos, uma boa</p><p>parte da população escravizada, não existindo assim uma comunidade de cidadãos. O que a me-</p><p>mória nos apresenta até a queda da Monarquia no Brasil em 1889 é que o modelo de cidadania</p><p>estabelecido era bem parecido com o da democracia ateniense, restrito a classes, patriarcal e</p><p>repleto de valores equivocados, originando muito do que se observa até os dias atuais.</p><p>Nem mesmo a chegada da República foi capaz de aplainar a desigualdades dos tempos</p><p>da monarquia tampouco de trazer o frescor do civismo e do senso de pertencimento da popu-</p><p>lação brasileira. Segundo Carvalho (2002), o ideal republicano jamais conseguiu aproximar</p><p>o governo do eleitorado mais desvalido e sim das elites, dando início às sólidas oligarquias</p><p>estaduais e ao coronelismo. O exercício da soberania popular à época era uma “fantasia” e</p><p>ninguém levava a sério muito em função do voto de cabresto, visto que até 1930 não se teste-</p><p>munharam movimentos populares exigindo maior participação eleitoral, exceto pela inserção</p><p>do voto feminino. Para Bueno (2012) todos os descaminhos da política e da economia brasi-</p><p>leiras se materializaram plenamente nos dez primeiros anos da República como clientelismo,</p><p>oligarquia política, coronelismo, repressão a movimentos populares, confronto entre civis e</p><p>militares, estado de sítio, crimes políticos, fechamento do congresso e alternâncias cada vez</p><p>mais equivocadas de governo.</p><p>Diferentemente da Europa, o surgimento do Estado Liberal entre a metade do século</p><p>XIX e o século XX nos países ibéricos e latinos, se caracterizou pelo desalinhamento das forças</p><p>democráticas e progressistas, resultando em práticas espúrias como o clientelismo e o popu-</p><p>lismo. Isso explica a formação da chamada “sociedade de notáveis” que empoderou as elites</p><p>do coronelismo e os militares em uma só voz institucionalizando o autoritarismo e um estado</p><p>capaz de atender aos interesses e objetivos da classe dominante (JAGUARIBE, 2000).</p><p>Para Carvalho (2002) o manifesto da cidadania ativa pelas camadas mais populares da</p><p>sociedade iniciado nos movimentos abolicionistas ainda no período monárquico dava a impres-</p><p>são de que o povo tinha ligeira consciência do seu voto, mas abriu precedente para o surgimento</p><p>das práticas populistas. Nesse sentido, a emergência de práticas assistencialistas imprimira uma</p><p>estranha concepção de cidadania, chamada de concedida em troca de subserviência pessoal</p><p>(SALLES, 1994).</p><p>Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder a partir de 1930, os institutos do populismo</p><p>e do caudilhismo se introduziram de vez no seio da sociedade brasileira referendado por um</p><p>golpe de estado (BUENO, 2012). No entanto, o primeiro período de Vargas a frente do governo</p><p>brasileiro, de certa forma, representou alguns avanços sociais significativos como a criação</p><p>de uma legislação trabalhista, revoluções no campo da educação básica, ligeira inclusão das</p><p>mulheres na sociedade e fortalecimento de muitos outros direitos sociais, mas um prejuízo gra-</p><p>víssimo às liberdades civis e políticas (CARVALHO, 2002).</p><p>De acordo com Villa (2011), a edição de uma nova Constituição em 1946 referendou</p><p>com força a retomada das liberdades individuais e coletivas, mas a liberdade de expressão que</p><p>consignava já se apresentava com ressalvas e a participação popular através do plebiscito só</p><p>foi assegurada através de Emenda Constitucional redigida mais adiante. Para Bueno (2012),</p><p>o novo governo de Getúlio Vargas, em 1951, se instaurou sob outro tom, desta vez respeitoso</p><p>aos valores democráticos e com um presidente preocupado ainda mais com os direitos sociais,</p><p>tal qual sua última passagem. A sua recondução se deu muito em função do anseio de parte da</p><p>51</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>população pela sua volta e pelo discurso carregado de populismo, o que o aproximou signi-</p><p>ficativamente das massas que praticamente ignoraram o seu histórico ditatorial e repressor.</p><p>Os períodos subsequentes, de JK a João Goulart, representaram a onda desenvolvimentista</p><p>no país, das reformas de base, mas com populismo fortalecido e forte apelo às massas e ins-</p><p>tabilidade democrática.</p><p>Para Carvalho (2002), a ascensão de João Goulart ao poder poderia ter representado</p><p>um capítulo bem importante para o avanço da cidadania no Brasil, já que sua condução ao</p><p>poder, ainda que de forma conturbada, se deu por meio de um dos maiores levantes sociais</p><p>e democráticos presentes na memória social brasileira, a Campanha da Legalidade, liderada</p><p>por Leonel</p><p>Brizola no Rio Grande do Sul. No entanto, para Bueno (2012), a oposição ao go-</p><p>verno era ferrenha, as elites temiam que as reformas de base como a agrária e da educação,</p><p>por exemplo, promovessem avanço e mobilidade social efetiva das classes mais pobres e</p><p>fortalecimento da esquerda política.</p><p>Para Carvalho (2002), não há dúvidas de que o período de 1930 a 1964 representou um</p><p>avanço ao instituto da democracia no Brasil, ainda que com sérias restrições como as limita-</p><p>ções do direito de votar e ser votado, à medida que se evoluiu no sentido de se ter eleições mais</p><p>limpas (eliminando boa parte dos ranços do coronelismo), porém não menos vulnerável aos</p><p>apelos populistas. No entanto, o golpe civil-militar de 1964 arrefeceu qualquer empoderamento</p><p>popular e se manteve assim até a redemocratização. A ideia era de promover um ajustamento da</p><p>ordem social e uma reabertura democrática, o que não aconteceu. Havia um sentimento muito</p><p>perverso das classes hegemônicas de frear a mobilidade social e com ela o avanço das massas</p><p>no cenário político e somente a ditadura envolta de valores morais convergentes ao da elite</p><p>conservadora da época era capaz de conduzir esse processo.</p><p>Para Rodrigues (1999), as grandes condições para organização e mobilização da socie-</p><p>dade patrocinadas pelos últimos presidentes, então populistas, eram vistas como riscos para a</p><p>governabilidade pelos setores conservadores e por isso para eles era vital a instalação de uma</p><p>nova ordem para restauração legítima dos meios governativos ameaçados justamente pela usur-</p><p>pação de massas mobilizadas pela ação do populismo irresponsável. No entanto, a ditadura mi-</p><p>litar de 1964 se inscreveu na memória nacional como o golpe mais duro para a democracia do</p><p>Estado Brasileiro, tanto por sua longa duração de mais de vinte anos, pelos problemas sociais</p><p>que foram piorados por ela e sobretudo por se tratar de uma “revolução” patrocinada pela so-</p><p>ciedade civil contra si própria, ainda que a maioria burguesa e que se incomodava e muito com</p><p>a figura do progressismo que as reformas de base institucionalizariam no país (BUENO, 2012).</p><p>Para Carvalho (2002), do ponto de vista da cidadania, o período militar pode ser per-</p><p>feitamente dividido em três períodos: de 1964 a 1968, com períodos de repressão e sinais de</p><p>abrandamento; de 1968 a 1974, com o capítulo mais duro especialmente para os direitos civis e</p><p>políticos com repressão violenta, porém com efetivos direitos sociais para desviar os holofotes</p><p>da repressão na sociedade à medida que com o avanço do regime até mesmo a elite empresarial</p><p>se via prejudicada por ele; e de 1974, ao fim do período com a reabertura à democracia, porém</p><p>lenta e gradual e com os reflexos dos desastres econômicos do período também. Durante esse</p><p>período, toda e qualquer oposição ao regime era combatida pelo governo, sendo que o único</p><p>movimento da sociedade civil organizada que se manteve de pé foi o da Igreja Católica, e com</p><p>isto a alternativa era formar grupos de esquerda paramilitares originando as guerrilhas como</p><p>a do Araguaia. O Congresso, que poderia representar um sopro de democracia e pluralidade</p><p>enquanto aberto por curtos períodos, era composto por apenas dois partidos, sendo que a Arena</p><p>defendia ferrenhamente os interesses da ditadura e detinha a maioria.</p><p>52</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Para Gallego (2019, p. 137), “à luz de seus próprios objetivos, a ditadura foi um suces-</p><p>so”, não economicamente uma vez que a modernização se deu em parte e o crescimento foi</p><p>pífio e incipiente com larga concentração de renda. Do ponto de vista político, tudo saiu melhor</p><p>do que a encomenda, uma vez que a oposição que poderia simbolizar a resistência foi dizimada,</p><p>presa ou exilada, a cultura silenciada, a imprensa cerceada e os movimentos sindicais desidra-</p><p>tados ou mesmo desmantelados.</p><p>A Ditadura Militar começa a perder força a partir do momento em que perde apoio de</p><p>seus patrocinadores e mantenedores a partir dos anos 1980, sempre seguindo a lógica do inte-</p><p>resse e do benefício, ou seja, já não era mais algo vantajoso como foi em 1964. Os primeiros</p><p>sopros de redemocratização ocorreram somente em 1982 quando foram realizadas eleições</p><p>nos estados e retomado o multipartidarismo, mas tudo muito incipiente e desencorajador. As</p><p>eleições legislativas eram frequentemente manipuladas a favor dos políticos de direita da</p><p>Arena, enquanto crescia o número de eleitores nesse período, porém sem qualquer poder e</p><p>sem qualquer significância para a democracia e para o exercício dos direitos políticos. Nesse</p><p>sentido, se estabeleceu a linha de hegemonias inclusivas descrito por Robert Dahl, criando</p><p>um falso sentimento de retomada que, de certa forma, favoreceu o desencorajamento da</p><p>sociedade com a redemocratização. Para Tavolaro (2009), o ensaio da redemocratização e</p><p>a fraca efervescência política da época foram provas suficientes da subversão da timidez e</p><p>superficialidade da cidadania entre todos.</p><p>No entanto, os movimentos organizados da sociedade civil simbolizaram algo bem mais</p><p>esperançoso para a retomada como a “Greve Geral do ABC Paulista”, em 1979 e o “Diretas</p><p>Já” em 1984 (Bueno, 2012). Para Carvalho (2002) ambos os movimentos, além de encontrarem</p><p>ressonância nas massas e na ampla cobertura da imprensa, já não podiam ser contidos pelos</p><p>militares que se viam cada vez mais acuados pela retomada do poder em favor do povo.</p><p>Os primeiros anos da redemocratização ficaram marcados pela eleição indireta para a</p><p>Presidência da República que elegeu Tancredo Neves para a missão. No entanto, com o seu</p><p>súbito falecimento, assume o poder o seu vice, José Sarney, uma espécie de simpatizante do</p><p>período militar recente. Segundo Carvalho (2002), praticamente nada mudou durante o gover-</p><p>no Sarney, uma vez que problemas remanescentes dos anos de chumbo foram agravados e a</p><p>corrupção se acentuou com mais força no seio estatal. No entanto, o que chama atenção nesse</p><p>período foi a proposital desacreditação das instituições democráticas, mais precisamente do Po-</p><p>der Legislativo, “pavimentando” um novo caminho para a recondução dos militares ao poder.</p><p>Mesmo com a edição da Constituição de 1988, a mais liberal e democrática que o país já teve,</p><p>e eleições diretas em 1989, isso, por si só, não garantiu estabilidade democrática desejada, uma</p><p>vez que os primeiros anos da retomada da democracia ainda não estava apresentando soluções</p><p>para os problemas sociais mais graves.</p><p>Segundo Carvalho (2002), com relação aos direitos civis e sociais, a Constituição de</p><p>1988 representou avanços significativos na proteção aos mais vulneráveis e a retomada das</p><p>liberdades individuais e restrição da arbitrariedade conduzida pelos ditadores. No entanto, isso</p><p>foi insuficiente para frear as mazelas sociais históricas, a violência urbana, entre outros, que ca-</p><p>recem de políticas públicas concretas especialmente dos governantes federais. Para Cremonese</p><p>(2007), a Constituição Federal de 1988 não garantiu avanços significativos especialmente no</p><p>campo da democracia social (igualdade étnica, emprego, saúde, lazer, moradia, entre outros)</p><p>que ainda é utopia para milhões, prevalecendo uma democracia eleitoral sobre a social que se-</p><p>ria realmente cidadã, o que vem conferindo um alto descrédito aos políticos e suas instituições</p><p>políticas através da opinião pública e demonstrando que a cidadania no Brasil é incipiente à</p><p>medida em que predominam a exclusão social e econômica, a desigualdade social e a violência</p><p>difusa na sua sociedade civil.</p><p>53</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>No campo dos direitos políticos retomados fez-se emergir a escatologia messiânica nas-</p><p>cida no século XX. A população vinha amargando problemas sociais uma economia catastrófica</p><p>na década de 1980, fazendo com que mais de 70 milhões de brasileiros inflamados pelo populis-</p><p>mo galopante fossem às urnas na Eleição Presidencial Direta de 1989, motivada e determinada</p><p>a eleger uma espécie de “salvador da</p><p>pátria”, Fernando Collor de Mello (CARVALHO, 2002).</p><p>Aqui, mais uma vez, vale pontuar sobre a tese de Dahl (1989) que, para esse caso específico,</p><p>nos faz constatar o aparecimento de uma sociedade poliárquica pela primeira vez no Brasil,</p><p>ainda que carente de maturação.</p><p>Para Chauí (1994) e Laclau (2006), tanto a eleição de Collor quanto de Vargas, basea-</p><p>das nos elementos mágico-religiosos que permeiam a dinâmica política brasileira, retratam a</p><p>imagem de um brasileiro fragilizado por tanta instabilidade e sem saber em quem acreditar,</p><p>sobretudo as classes populares que se afundam no autoengano e condizem o jargão de “massa</p><p>de manobra”. No entanto, a imagem de messias se desmantelou completamente quando Collor</p><p>se mostrou um gestor despreparado e recheado de traços autoritaristas coincidentes com os</p><p>vistos nos anos ditatoriais, deixando vir à tona graves escândalos de corrupção que inflaram os</p><p>ânimos da população jovem que, mais revestida de suas liberdades, foram às ruas e pressiona-</p><p>ram o Congresso pela saída de Collor que acaba renunciando antes da conclusão do processo de</p><p>impeachment (CARVALHO, 2002).</p><p>Com a renúncia de Collor, assume Itamar Franco, seu vice, que nada mais fez do que</p><p>pavimentar ainda mais o caminho para o neoliberalismo, uma camada ideológica do liberalismo</p><p>originário que defendia ferozmente, entre outras coisas, a redução do tamanho do estado e o</p><p>compartilhamento enganoso das responsabilidades estatais para a sociedade civil no chamado</p><p>terceiro setor. Essa corrente ideológica se mostrou bastante hegemônica nos países latino-a-</p><p>mericanos, muito em função da fragilidade do modelo capitalista neles introduzido, incluindo</p><p>o próprio Brasil. No entanto, entre o período em que esteve Presidente e o do seu sucessor,</p><p>Fernando Henrique Cardoso, o processo democrático parece ter se estabilizado sem maiores</p><p>rompantes ou ameaças.</p><p>Para Carvalho (2002) o governo de Fernando Henrique Cardoso representou o forta-</p><p>lecimento dos ideais do neoliberalismo e, com isso, os direitos sociais se viram praticamente</p><p>transferidos para a esfera do terceiro setor, mas as liberdades civis e políticas se mantinham</p><p>preservadas e fortalecidas. No entanto, para Dagnino (2003) e Kliksberg (2005), a expansão</p><p>do neoliberalismo, que deu protagonismo ao terceiro setor como fio condutor da promoção dos</p><p>direitos sociais no Brasil, gerou um certo sentimento de desilusão na população mais pobre</p><p>causando debilidade de confiança na democracia.</p><p>Para Montano (2002), o projeto neoliberal queria uma sociedade civil dócil, sem con-</p><p>fronto, completamente alienada e reificada de tal maneira que se ocupassem completamente</p><p>com atividades não criadoras e tampouco transformadoras, porém voltadas para dar resposta às</p><p>suas demandas individuais e por ela julgada urgentes, sendo que o legítimo cotidiano de uma</p><p>verdadeira sociedade civil deveria estar situado em uma arena de lutas, representando uma ati-</p><p>tude emancipadora e que superaria o imediatismo e a alienação, procurando assim a defesa e a</p><p>ampliação dos direitos e conquistas sociais e trabalhistas.</p><p>Pode se dizer que o saldo dos governos da década de 1990 para questões de inclusão</p><p>social e dignidade foi assombroso, uma vez que o Brasil amargava um flagelo social de mais</p><p>de 25 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza e figurando no mapa da fome mundial,</p><p>mesmo com bons programas de transferência de renda e uma sensível mobilidade social. Esse</p><p>cenário resultou em maior vulnerabilidade social e política da população, implicando em mais</p><p>assimetria e exclusão social de um povo cada vez mais carente de políticas públicas consisten-</p><p>tes para resolver problemas nem tão emergentes assim (BUENO, 2012).</p><p>54</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Segundo Carvalho (2002), o acesso à cidadania até o final do governo FHC mostrava-se</p><p>altamente complexo, visto que as classes mais baixas tinham grandes dificuldades de acesso à</p><p>justiça e ao sistema de segurança pública, os poucos cidadãos pobres que tinham consciência</p><p>dos seus direitos muito pouco conseguiam fazê-los valer, o sistema jurídico era por muitas ve-</p><p>zes inacessível e lento, contando com poucos defensores públicos para fazer a manutenção dos</p><p>direitos dos menos favorecidos e o único setor do judiciário que funcionava mesmo com mais</p><p>celeridade ainda era a Justiça do Trabalho.</p><p>Para Miguel (2019), mesmo com a fragilidade da transição democrática ocorrida em</p><p>1984, o Estado Brasileiro, sob o comando de FHC, consolidou a instituição da democracia e,</p><p>de certa forma, neutralizou os ânimos. A maior prova disso foi que a partir do seu segundo go-</p><p>verno, FHC colocou o poder militar sob o comando civil no Ministério da Defesa, esmaecendo</p><p>o protagonismo das Forças Armadas na cena política e aniquilando qualquer tipo de intento</p><p>golpista ou de rompimento com o estado democrático de direito.</p><p>Para Bueno (2012), a vitória de Luís Inácio Lula da Silva em 2002 inaugurou um novo</p><p>ciclo na política brasileira com a ascensão dos ideais de esquerda que, inicialmente, causaram</p><p>temor de instabilidade política como experimentado em 1964 com as pretensões das reformas</p><p>de base bastante progressistas. No entanto, nada disso aconteceu e Lula conseguiu implementar</p><p>suas políticas progressistas de ampliação de políticas sociais até então debilitadas e incapazes de</p><p>retirar o Brasil do mapa da fome e acabou tendo sucesso na empreitada. O resultado foi positivo,</p><p>registraram-se significativos índices de mobilidade social, maior democratização do acesso à</p><p>educação, à justiça, ao sistema bancário, entre outros, e com isso uma significativa redução na</p><p>assimetria e vulnerabilidade social com o país deixando de figurar no mapa da fome mundial1.</p><p>Para Bueno (2012), em matéria econômica, tanto os governos de Lula (2003-2010)</p><p>quanto de sua sucessora Dilma Rousseff (2011-2016), promoveram verdadeiras reformas so-</p><p>ciais, aproximando do Estado todas as classes produtivas e até mesmo de setores conservado-</p><p>res, mesmo investindo pesado em projetos de mobilidade e empoderamento social como pou-</p><p>quíssimas vezes se vira no país, e mesmo se evidenciando escândalos de corrupção por todos</p><p>os lados, com a diferença que as instituições estavam mais livres para apurar e responsabilizar,</p><p>revelando que os traços autoritaristas do passado haviam perdido e muito sua força expressiva.</p><p>Para Miguel (2019), o período do lulopetismo no Brasil, apesar de pouco radical como se ima-</p><p>ginava, representou uma mudança de ares bem expressiva para o estado democrático de direito,</p><p>especialmente com os movimentos sociais ganhando mais protagonismo e centralidade.</p><p>O saldo dos governos petistas, interrompidos pelo processo de Impeachment em 2016,</p><p>foi bastante positivo especialmente pelo fortalecimento das instituições, independência dos três</p><p>poderes constituídos e pelas políticas públicas progressistas que, de certa forma, ainda incomo-</p><p>davam uma parcela elitista da sociedade inconformada com a ampla mobilidade social e poten-</p><p>cialização da cidadania de consumo predominante nos 13 anos de permanência. Nesse período,</p><p>a emergência de políticas afirmativas, tão importantes quanto a mobilidade social para o forta-</p><p>lecimento da cidadania e da democracia, mostrou-se predominante no cenário nacional, tendo</p><p>a Lei Maria da Penha (combate ao feminicídio), as políticas de cotas para negros, a Lei das</p><p>empregadas domésticas, a Comissão Nacional da Verdade, entre outras, como seus principais</p><p>marcos simbólicos. Na mesma linha, o controle social ganhou ainda mais protagonismo com a</p><p>instituição da política nacional de participação social (PNPS) e o Sistema Nacional de Partici-</p><p>pação Social (SNPS) no Estado Brasileiro. Por outro lado, o Brasil, no campo civil e político,</p><p>durante o governo de Dilma Rousseff, atravessou uma profunda crise de representatividade que</p><p>culminou com os manifestos populares de junho de 2013, já que o Brasil vinha assolado por</p><p>repetidos escândalos de corrupção em várias instituições governamentais e nos</p><p>demais poderes.</p><p>1 Dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) divulgados em 2014.</p><p>55</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Para Antunes (2013) e Freixo; Pinheiro-Machado (2019), os movimentos observados</p><p>entre 2013 e 2015 expuseram a existência de um grande fosso entre sociedade civil e sociedade</p><p>política, revelando que os poderes constitucionais não estavam necessariamente nas mãos do</p><p>povo como deveriam. Além do mais, as ruas foram tomadas não mais apenas pela juventude tra-</p><p>dicionalmente de esquerda, mas também pela nova direita que viu como vantajosa e estratégica</p><p>essa ocupação para retomar o poder perdido com a ascensão do lulopetismo.</p><p>Ao passo que, com a ampla mobilidade social promovida pelos governos petistas, as</p><p>classes mais desvalidas e menos hegemônicas provaram sua força por meio do voto e da as-</p><p>censão de governos populares, a nova direita e sua cosmovisão sempre se viu incomodada com</p><p>esse empoderamento, o que se viu plenamente refletido nas eleições de 2014 com a apertada</p><p>margem de vitória de Dilma Rousseff contra Aécio Neves, em que mais uma vez a direita não</p><p>ascendia pelo voto. Havia um levante significativo contrário a tudo que aos ideais progressistas</p><p>dos governos petistas instituídos na sociedade que modificaram o perfil dos eleitores e da classe</p><p>média. Para Miguel (2019, p. 153), “a democracia ‘desconsolidou-se’ quando grupos-chave</p><p>concluíram que o jogo eleitoral não lhes servia mais”.</p><p>Para Freixo; Pinheiro-Machado (2019), o impeachment de Dilma Rousseff travestido</p><p>de ressoar das vozes das ruas que clamavam pela sua saída, nada mais foi do que um golpe</p><p>jurídico-parlamentar patrocinado pelos conglomerados de mídia, elite empresarial, bancadas</p><p>conservadoras do congresso que precisavam emplacar suas pautas reformistas que jamais se-</p><p>riam patrocinadas por meio do voto popular e, de certa forma, frear o progressismo instituído</p><p>pelo lulopetismo. A partir de então, o que se viu, em peso, nesse período foram verdadeiras</p><p>agressões às liberdades individuais com toques surreais de golpismo sustentados por parte do</p><p>Judiciário e do Ministério Público que levaram à prisão do ex-presidente Lula, consagrando</p><p>a prática do Lawfare2 no Brasil. O surgimento da chamada “escola sem partido” também foi</p><p>outra prática espúria implementada que levou ao silenciamento de professores e alunos que</p><p>defendiam ideais de esquerda contrariando a nova direita, além da desidratação dos sindica-</p><p>tos, tidos como fontes de poder da esquerda. No campo das liberdades e da fragilização da</p><p>democracia agravados após o Impeachment de 2016 está ainda a “policialização” das Forças</p><p>Armadas em operações de segurança pública e a intervenção do Estado do RJ em 2018, repre-</p><p>sentando não a garantia da lei e da ordem, mas um meio indireto para repressão de protestos</p><p>de rua e ocupação de comunidades pelo exército, restringindo veladamente as liberdades civis.</p><p>(FREIXO; PINHEIRO-MACHADO, 2019).</p><p>Para Freixo e Pinheiro-Machado (2019), o cenário construído no pós-impeachment foi</p><p>decisivo para pavimentar o caminho de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto nas eleições de</p><p>2018, acompanhado de uma verdadeira alavancagem da extrema-direita no Congresso Nacional.</p><p>Um dos fatos que mais chamaram atenção no processo eleitoral de 2018 foi a ampla abstenção</p><p>de eleitores e votos em branco (só abstenções foram 23,15% do eleitorado), o que, pode ser</p><p>atribuído a uma significativa desilusão dos jovens com a política e simbolizando a formação de</p><p>oligarquias competitivas. A participação cidadã pelo voto em 2018, com isso, mostrou-se drasti-</p><p>camente reduzida, uma vez que na disputa de 2014 o cenário foi completamente diferente, cons-</p><p>tatado, sobretudo, pela diferença entre Dilma e Aécio e entre Bolsonaro e Haddad. Isso prova</p><p>que o processo de descrédito na principal eleição do país vinha em franca expansão desde 2014.</p><p>2 Expressão popularizada durante a defesa do ex-Presidente Lula nos processos da Operação Lava Jato. Trata-se</p><p>de uma estratégia de utilização dos meios legais para perseguição política por meio de acusações pouco prováveis</p><p>como meio de pressão dos investigados. O lawfare resultou na prisão do ex-Presidente Lula em 2018 e sua</p><p>inelegibilidade no pleito presidencial de 2018, que liderava as pesquisas (ZANIN et al., 2019).</p><p>56</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>A campanha de Jair Bolsonaro no ano de 2018 resgatou velhos elementos da política</p><p>brasileira, mas um em especial, o populismo. O Brasil vinha amargando altos índices de vio-</p><p>lência, vinha em descrédito com as instituições, o impeachment de Dilma Rousseff, a Operação</p><p>Lava-Jato e uma onda conservadora de direita que ganhava ressonância cada vez maior desde</p><p>2015, incomodada, especialmente, com a mobilidade social e com as pautas afirmativas. O trí-</p><p>duo neopentecostal, do ruralismo e das Forças Armadas brasileiras praticamente catapultaram</p><p>Bolsonaro ao poder, que trazia em mãos a intenção de moralizar o país e afastar de vez o lulo-</p><p>petismo e suas pautas progressistas.</p><p>Por outro lado, segundo Freixo e Pinheiro-Machado (2019), movimentos como o #ele-</p><p>não ganharam as redes sociais em contraponto ao derramamento de fake news promovido jus-</p><p>tamente pelos apoiadores da candidatura de Bolsonaro e por integrantes do Movimento Brasil</p><p>Livre (MBL). No entanto, o movimento pouco prosperou em meio a disparada de fake news em</p><p>todas as redes sociais afirmando que se o PT vencesse a eleição seria a retomada do comunis-</p><p>mo, o fim da família tradicional, a violência seguiria em crescimento, entre outras inverdades,</p><p>comprovando que a pauta de Bolsonaro era puramente moral e pouquíssimo de enfrentamento</p><p>aos assuntos mais urgentes da agenda nacional como saúde, educação, emprego etc., além de</p><p>dedicada a revogar ações e políticas que conferiram algum empoderamento aos mais desvalidos</p><p>e que perturbava a elite que compunha a nova direita.</p><p>Para Freixo e Pinheiro-Machado (2019) e Messenberg (2019), Bolsonaro se apresentou</p><p>como o verdadeiro anti-establishment3 e ganhou a confiança de parte do eleitorado descontente</p><p>com os governos petistas, já que se propunha a dar ainda mais subsídios ao combate à corrupção</p><p>e relaxar a política de desarmamento no país. O que realmente assustava era a sua estreita proxi-</p><p>midade corporativista com os militares, que deu ainda mais aporte as suas pautas e transcendeu</p><p>a sua própria figura, representando uma visão ultraconservadora e assumindo uma retórica pa-</p><p>triótica e nacionalista, tudo que não era prioridade na agenda petista e da esquerda.</p><p>A ascensão de Jair Bolsonaro ao poder inicialmente representou mais do que um simbo-</p><p>lismo à nova direita e sua cosmovisão, pois havia grande expectativa de revogação de políticas</p><p>públicas progressistas e afirmativas duramente conquistadas nos governos petistas. De igual</p><p>forma, o sentimento dos apoiadores do governo de apoio a pautas antidemocráticas ganha um</p><p>representativo espaço na agenda de discussões, obrigando o STF a intervir com mais frequência</p><p>e rigor no combate às ações com intuito de enfraquecer as instituições e assim pavimentar um</p><p>novo casamento com uma possível ditadura e com o autoritarismo.</p><p>Por outro lado, o judiciário, liderado pelo STF, promoveu, entre 2019 e 2021, o que se</p><p>pode chamar de contramão aos interesses estabelecidos e simbolizados pelo governo, uma vez</p><p>que reforçou as ações afirmativas como a criminalização da homotransfobia, um assunto indi-</p><p>gesto para os apoiadores do governo que cada vez mais se viram pressionados por um rompi-</p><p>mento com o estado democrático de direito e com isso o fechamento do STF e a retomada das</p><p>pautas conservadoras e moralistas que haviam bancado Jair Bolsonaro em 2018.</p><p>CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>Como se pode ver, ao longo do exposto, a cidadania no Brasil se caracterizou muito</p><p>mais como um processo de desconstrução, complexo, assimétrico e com doses virulentas de</p><p>desvirtuamento desde a Monarquia. Quando se pensou</p><p>que as coisas fossem, de fato, engrenar,</p><p>parecia que o túnel ficava ainda mais longo e sem luz à vista.</p><p>3 Rompimento com a ordem estabelecida de forma a reinventar a roda. O discurso de Bolsonaro sustentava que ele</p><p>jamais faria qualquer aliança com o chamado “Centrão” do Congresso, o núcleo duro de deputados e senadores com</p><p>forte presença política no cenário nacional e com as maiores bancadas, prefeitos e governadores no Brasil.</p><p>57</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Isso tudo foi possível de trazer à tona graças ao estudo de memória desenvolvido que</p><p>revelou narrativas sobre as nossas particularidades associadas às mais variadas escatologias</p><p>políticas e sociais disseminadas. O estudo não apenas promoveu o acerto de contas com os</p><p>acontecimentos e os inscreveu no tempo presente como vivos e latentes, mas revelou que as</p><p>causas são ainda mais profundas como um imenso iceberg de onde só se enxerga o cume, mas</p><p>que pode causar um estrago devastador.</p><p>É assim que podemos enxergar a cidadania no Brasil e infelizmente relacionar essa cons-</p><p>trução tipicamente brasileira com contornos ibero-latino-americanos com a fragilidade da nossa</p><p>democracia que, desde 1808, quando a Família Real instituiu a Monarquia até os dias atuais, só</p><p>foi vista de uma forma ligeiramente firme por pouco mais de 50 anos. Os demais 214 anos fo-</p><p>ram puramente experimentos malsucedidos de autocracias, repressões a liberdades, cidadanias</p><p>concedidas, cidadanias limitadas a classes e muito abuso de poder político e econômico. No</p><p>entanto, esses pouco mais de 50 anos de convivência episódica com a democracia foram reche-</p><p>ados de ameaças, de rompimentos de ordem, de populismo, de autoritarismo e de toda má sorte</p><p>de governos neoliberais que, ao invés de emancipar a população e lhe fortalecer a legitimidade</p><p>do poder, fizeram exatamente o contrário, a favor dos próprios interesses e projetos espúrios</p><p>de poder. Enfim, se experimentou de tudo um pouco e quase tudo convergiu para desvirtuar a</p><p>cidadania plena.</p><p>Para deixar isso mais brando, a solução mais encantadora encontrada foi a de inverter</p><p>a chamada Pirâmide de Marshall, potencializando e priorizando a arena dos direitos sociais e</p><p>do assistencialismo, mas nem tanto, dado que o reformismo se fez pujante e devastador nos</p><p>últimos anos, retirando qualquer expectativa da população com relação ao seu empoderamento</p><p>cívico, ampliando a assimetria e a desigualdade social e com isso minguando a cidadania e ex-</p><p>pondo a fragilidade da democracia.</p><p>Por outro lado, a percepção que a memória nos traz a compreensão sobre o decurso his-</p><p>tórico da cidadania e da democracia é de que as tradições advindas dos mais remotos períodos</p><p>da Monarquia, passando pela República e períodos subsequentes foram cuidadosamente man-</p><p>tidas acesas pelas classes hegemônicas a fim de desidratar qualquer senso de pertencimento à</p><p>população, reduzindo a cidadania à termo deixando-a em posição passiva frente a legitimação</p><p>do poder que deveria emanar do povo. Em outras palavras, os efeitos do autoritarismo, do neoli-</p><p>beralismo, dos períodos de repressão e de cerceamento das liberdades, por exemplo, ainda estão</p><p>latentes e se introjetaram na cultura social e política por meio do habitus. Da mesma forma, a</p><p>segregação e marginalização social produzida por meio das hierarquias valorativas formataram</p><p>o que podemos chamar de subcidadania, explicando bastante a inversão do modelo de Marshall</p><p>e neutralizando qualquer reação contundente e expressiva em arena de lutas.</p><p>Por fim, a construção de cidadania, ainda que completamente equivocada no curso dos</p><p>acontecimentos, vem resultando na formação de subcidadãos, precisando, assim, ir além do</p><p>voto e de códigos de sociabilidade passivos, visto que o primeiro já não vem estimulando boa</p><p>parte da sociedade desiludida com o processo político e com a debilidade da democracia e</p><p>o segundo praticamente condena a sociedade, sobretudo os mais desvalidos, a aceitar passi-</p><p>vamente os mandos e desmandos e ficar à mercê da caridade por algo que legitimamente lhe</p><p>pertence e nunca deixou de pertencer, simplesmente lhe foi vergonhosamente subtraído ao</p><p>longo de vários anos.</p><p>58</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 45-60, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ANTUNES, R. 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Buscar-se-á discutir o processo de adoção entendida como aquele que observe todas as garantias de um</p><p>processo legal. Além disso, nos resultados traz narrativas da experiência vivida por uma família que adotou duas</p><p>irmãs consanguíneas mostrando o outro lado da adoção, que nos dá clareza de que durante todo esse processo não</p><p>fica apenas no entusiasmo inicial, onde tudo são “flores”, mas se vive muitos sentimentos de incertezas e desafios</p><p>a serem superados no dia a dia, principalmente, se uma das crianças faz parte do grupo de adoção tardia, ou seja já</p><p>veio acima do sete (7) anos, se tornando um desafio maior. De modo que, o objetivo geral encontra-se em: demons-</p><p>trar os principais aspectos sobre adoção para as famílias, profissionais e a sociedade em geral, a fim de contribuir</p><p>com adoções futuras. Como objetivos específicos têm-se: entender o conceito de adoção e as leis aqui no Brasil;</p><p>refletir no ponto de vista da família e crianças adotadas. A pesquisa é de cunho qualitativo e reúne informações</p><p>coletadas por meio de pesquisas bibliográficas sobre o tema, conforme Andrade (2010). E como aponta, Doxsey</p><p>e De Riz (2002-2003). Ela é também de caráter colaborativo segundo Bortoni-Ricardo, (2008), e Ibiapina (2008),</p><p>pois acontece a interação entre a família adotante. Não obstante, a importância do estudo está no fato de que poderá</p><p>ser utilizado para futuras pesquisas, contribuindo e apontando possíveis soluções para efetivar mudanças quanto à</p><p>aplicabilidade das leis vigentes sobre a adoção e a convivência com as novas famílias, proporcionando melhores</p><p>condições materiais e sociais, tanto para quem adota como para quem é adotado.</p><p>Palavras-chave: Adoção. Família. Legislação.</p><p>Abstract: Building bonds in adoption is a very complex process, as it usually involves moments of emotional</p><p>fragility for the family that adopts and children and adolescents who are in this process. Adoption has different</p><p>points of view and meanings for each family, but many things are repeated with regard to difficulties, access to</p><p>post-adoption support, among other situations. Thus, this experience report intends to analyze Adoption in Brazil</p><p>from the point of view of legislation, such as the Brazilian Constitution (1988), the Child and Adolescent Statute</p><p>(ECA), the so-called adoption of Law 12.010/09. It will seek to discuss the adoption process understood as one</p><p>that observes all the guarantees of a legal process. In addition, the results bring narratives of the experience lived</p><p>by a family that adopted two consanguineous sisters, showing the other side of the adoption, where it gives us a</p><p>clarity that throughout this process is not only in the initial enthusiasm, where everything is “flowers”, but there</p><p>are many feelings of uncertainty and challenges to be overcome day by day, especially if one of the children is part</p><p>of the late adoption group, that is, they are already over seven (7) years old, becoming a greater challenge. So, the</p><p>general objective is: to demonstrate the main aspects of adoption for families, professionals and society in general,</p><p>in order to contribute to future adoptions. The specific objectives are: to understand the concept of adoption and</p><p>the laws here in Brazil; reflect on the point of view of the family and adopted children. The research is qualitative</p><p>and gathers information collected through bibliographic research on the subject, according to Andrade (2010). And</p><p>as pointed out by DOXSEY & DE RIZ (2002-2003). It is also collaborative according to BORTONI-RICARDO,</p><p>(2008), and IBIAPINA (2008), as the interaction between the adopting family takes place. However, the impor-</p><p>tance of the study lies in the fact that it can be used for future research, contributing and pointing out possible</p><p>solutions to effect changes regarding the applicability of the current laws on adoption and coexistence with new</p><p>families, providing better material and social conditions, both for those who adopt and for those who are adopted.</p><p>Keywords: Adoption. Family. Legislation.</p><p>1 Adriana Prado Santana Santos – Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI – Supervisora de disciplina,</p><p>(adripsico2@gmail.com). Indaial – SC.</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>62</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Quando falamos de adoção, inicialmente nos referimos a uma das formas de solucionar</p><p>o problema de casais que não podem procriar. Além disso, a adoção também é vista como um</p><p>ato de amor. Mas não podemos deixar de mencionar que a adoção também é uma forma de au-</p><p>xiliar o sistema governamental e a sociedade com na demanda de crianças e adolescentes que,</p><p>de alguma forma foram abandonados pelos seus genitores e estão em abrigos.</p><p>Quando buscamos pesquisas sobre a temática da adoção, encontramos autores como</p><p>Maldonado (1997), Berthoud (1997) e Paiva (2004), que concluem que no fato de serem "bons"</p><p>ou "maus" pais independe da condição de serem pais biológicos ou adotivos; mas depende, sim,</p><p>da motivação que leva homens e mulheres a buscar um filho. Nesse contexto, Schetinni Filho</p><p>(1998), considera que os filhos (sejam biológicos ou adotivos), precisam sempre ser adotados</p><p>pelos pais, mas em que sentido? No sentido do afeto, do cuidado. "É o afeto dedicado a uma</p><p>criança que faz dela um filho e constrói em nós a postura de pais" (SCHETINNI FILHO, 1998,</p><p>p. 48). Assim, entendemos que, sejam pais biológicos ou adotivos, é necessário construir uma</p><p>relação que deve se estreitar entre pais e filhos.</p><p>Um dos principais problemas para quem</p><p>quer adotar continua sendo a burocracia e o</p><p>excesso de documentos, além da falta de estrutura física nas varas da infância e da adolescência</p><p>para atender à demanda das famílias interessadas, tudo isso faz com que o processo de adoção</p><p>seja moroso, e muitas famílias acabam desistindo do sonho de serem pais. Posto isso, sabemos</p><p>que, a adoção legal é o caminho mais seguro, pois evita a ilegalidade e consequentemente pro-</p><p>blemas com as leis.</p><p>O desenvolvimento de uma criança está embasado em uma família que ofereça conforto,</p><p>afeto e amor, e a adoção destaca-se como um direito de todo indivíduo a ter uma expectativa de</p><p>futuro em família (GONDIM et al., 2008). De fato, para ser um adulto bem-sucedido, a fase da</p><p>infância deve ter uma base familiar sólida.</p><p>Pressupõe-se então que, quando são adotadas, todas as crianças são inseridas em uma</p><p>nova família e incluídas no convívio desta para dar um novo rumo na vida dessas crianças.</p><p>O tema em foco, do presente artigo, trata, brevemente, do conceito de adoção e algumas</p><p>leis brasileiras sobre o assunto, culminando com um relato de experiência e reflexão sobre o</p><p>outro lado da adoção, ou seja, a visão não tão glamorosa assim, por parte das famílias adotivas.</p><p>Dentro dessa perspectiva de análise, como objetivo geral pretende-se demonstrar os principais</p><p>aspectos sobre adoção para as famílias, profissionais e a sociedade em geral, a fim de contribuir</p><p>com adoções futuras. Como objetivos específicos têm-se: entender o conceito de adoção e as</p><p>leis aqui no Brasil; refletir no ponto de vista da família e crianças adotadas.</p><p>As etapas deste trabalho se deram em uma breve introdução, e a escolha dos objetivos.</p><p>Contextualização sobre o conceito de adoção e algumas legislações sobre a temática. Sobre a</p><p>metodologia, buscou-se a que mais se adequava aos objetivos. Além disso, houve uma breve</p><p>investigação por conteúdos sobre a temática, por meio de artigos, livros, entre outros materiais,</p><p>com o apoio das redes sociais.</p><p>Em seguida, trazemos recortes do relato de experiência, com os resultados e as discus-</p><p>sões, trazendo as concepções da família adotante com falas das crianças adotadas. E, por fim,</p><p>apresentamos as considerações finais e as referências utilizadas na realização desta pesquisa.</p><p>63</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>ADOÇÃO – CONCEITO</p><p>Hoje, dentro da área do direito brasileiro, podemos encontrar diversos conceitos de ado-</p><p>ção. Entre eles trazemos Rodrigues (2002, p. 380), que diz que, “a adoção é um ato do adotante</p><p>pelo qual traz, para sua família e na condição de filho, pessoa que lhe é estranha”. Segundo</p><p>ele, o termo adoção não reflete o comportamento do adotante, mas um desejo e iniciativa para</p><p>ter um filho. E em muitos casos é assim mesmo, o casal quer experimentar os sentimentos de</p><p>serem pai e mãe, de cuidar com carinho afeto e atenção, fazendo tudo o que puder para que essa</p><p>criança ou adolescente venham a se tornar um adulto com qualidades e virtudes desejáveis para</p><p>viver em sociedade.</p><p>Para Diniz (2002, p. 154), “a adoção é uma ficção jurídica que cria o parentesco civil. É</p><p>um ato jurídico bilateral que gera laços de paternidade e filiação entre pessoas para as quais tal</p><p>relação é inexistente naturalmente”. Ou seja, aqui se vê a adoção apenas no contexto jurídico/</p><p>legal perante as leis com a visão de assistencialismo. Entretanto, o termo “assistencial” não é</p><p>visto muito bem por alguns autores. Liberati (2003, p. 20). Ressalta que,</p><p>A adoção não admite ter “pena” nem “dó”, “compaixão”; a adoção, como a entende-</p><p>mos nos dias de hoje, não se presta para resolver problemas de casais em conflito, de</p><p>esterilidade, de transferência de afetividade pelo falecimento de um filho, de solidão</p><p>etc. ela é muito mais que isso; é a entrega de amor e dedicação a uma criança que, por</p><p>algum motivo, ficou privada de sua família.</p><p>Algumas pessoas na sociedade dizem “coitadinhos, que bom que foram adotados”. Mas,</p><p>quem disse que os adotados gostam que sintam pena deles? Ou a expressão, a família adotou</p><p>para substituir o seu filho biológico. Em todos os casos prevalece uma compreensão de que a</p><p>adoção significa dar assistência à criança adotada, e que a família que a adotou precisa ser ad-</p><p>mirada por esse feito.</p><p>Nessa mesma linha de pensamento, porém com pequena divergência, aponta Costa</p><p>(1998, p. 47) que “Adoção é o ato solene pelo qual se admite em lugar de filhos quem por na-</p><p>tureza não o é” ou “adoção é o ato legítimo pelo qual alguém, perfilha filho que não gerou”. Ou</p><p>seja, a adoção atribui o sentido de assumir alguém legitimando como seu. Isso deve acontecer</p><p>não só por meio dos sentimentos mútuos como já falado como se fosse uma “simbiose”, mas,</p><p>ao se colocar o sobrenome da família adotante.</p><p>Diniz (2002) acredita que “mais do que suprir as necessidades de casais impossibilitados</p><p>de gerar filhos biológicos, a adoção é um “instituto de solidariedade social” onde há “simbiose”,</p><p>entre adotante e adotado, “um auxílio mútuo, um meio de repartir por maior número de família</p><p>os encargos de prole numerosa” (DINIZ, 2002, p. 156). Neste caso, a adoção contribui para</p><p>resolução dos problemas socioeconômicos vividos pela população de baixa renda.</p><p>Percebemos que o conceito de adoção é visto de muitas formas por diversos autores, per-</p><p>passando por muitas similaridades e contrastes, trazendo discussões importantes, que merecem</p><p>atenção dos governantes e da sociedade em geral.</p><p>LEIS BRASILEIRAS SOBRE ADOÇÃO</p><p>Antigamente, a finalidade da adoção em todo o mundo era de atender apenas aos inte-</p><p>resses religiosos dos adotantes. Com os avanços das leis e mudanças na sociedade, entende-se</p><p>a adoção sob o prisma principalmente dos interesses dos adotados, objetivando dar-lhe um lar,</p><p>uma família, segurança e uma perspectiva de uma vida melhor. Nesse sentido, é interessante</p><p>relembrar o processo de adoção, aqui no Brasil. Segundo Sousa (2011), p. 30,</p><p>64</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>o ato de adoção era concedido inicialmente a pessoas casadas com idade superior a 50</p><p>anos de idade, já quase sem nenhuma possibilidade de ter filhos biológicos como dis-</p><p>punha o Código Civil de 1916. [...], a partir de 1957, para pessoas com idade superior</p><p>a 30 anos, o direito de adotar.</p><p>Observamos aqui que inicialmente as preocupações para acontecer o processo de ado-</p><p>ção eram, com respeito à idade dos adotantes, e após findar a possibilidade de ter filhos. Com o</p><p>advento da Constituição Federal (CF) de 1988, também conhecida como nossa carta Magna a</p><p>estrutura familiar ganhou uma conotação mais humanista e preocupada com o maior reconheci-</p><p>mento da dignidade de seus membros. A partir de sua promulgação, se promoveu uma inovação</p><p>dentro do nosso ordenamento jurídico, ao eleger o respeito à dignidade da pessoa humana como</p><p>princípio fundamental do sistema jurídico brasileiro.</p><p>Sobre a legitimidade e direito depois da adoção as nossas crianças brasileiras são bem</p><p>protegidas, pois a nossa Constituição de 1988 deixou bem claro que não se pode mais fazer</p><p>distinção entre filhos, legítimos ou não, os dois gozarão do mesmo direito. Conforme art. 227,</p><p>inciso 6º, “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos</p><p>direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.</p><p>Em 1990, entrava em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069, de</p><p>13-7-1990), que permite adoção plena para os menores de 18 anos. O Estatuto da Criança e do</p><p>Adolescente (ECA) foi elaborado visando dar um lar e uma família para as crianças e adoles-</p><p>centes abrigados. O capítulo III, traz a visão de que os menores têm “o direito à convivência</p><p>familiar e comunitária” (BRASIL, 1990).</p><p>Mas sem dúvida um marco para os processos de adoção, foi a aprovação da Lei Na-</p><p>cional da Adoção, de 12 de outubro de 2009), pois resolveu muitas problemáticas trazendo à</p><p>tona muitas discussões, para as famílias biológicas e famílias adotantes. Entre</p><p>elas, o art. 39 da</p><p>Lei mostra que, “A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas</p><p>quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou</p><p>extensa” [...] (BRASIL, 2009).</p><p>Aqui se encontra uma controvérsia, pois há muitos casos que a família adotante, por</p><p>motivo de força maior, ou seja, quando esgotadas todas as possibilidades, em uma ação entre as</p><p>famílias e a justiça, a criança ou o adolescente acabam sendo restituídas em sua família de ori-</p><p>gem depois de um tempo. Mas, aqui não vamos adentrar na temática, pois não é nosso objetivo.</p><p>Assim, a adoção não se torna tão irrevogável ainda que a justiça entenda que, a família adotante</p><p>e a criança ou adolescente adotados tenham que passar por algum processo.</p><p>Ainda, o art. 28, inciso 4o, da mesma lei, trouxe uma mudança que até certo ponto faz</p><p>sentido, pois se entende que a melhor maneira de preservar a família é não dividi-la, quando</p><p>diz que, “Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma família</p><p>substituta, [...], procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos</p><p>fraternais” (BRASIL, 2009). Neste contexto, esse artigo da lei se aplica na experiência aqui</p><p>relatada, pois os irmãos não foram separados de estado ou país. Ficaram no mesmo estado e</p><p>cidade, porém em famílias diferentes, que o sistema governamental chama de “adoção casada”.</p><p>Assim, percebemos que, as novas legislações favorecem principalmente os adotados, ou</p><p>seja, as crianças e os adolescentes que estão nos abrigos, pois primeiro precisam ser esgotadas</p><p>todas as possibilidades da criança ou adolescente viver em sua família natural/biológica ou ex-</p><p>tensa para posteriormente ir para uma família adotante. Por família extensa, segundo o Art. 25</p><p>da ECA, entende-se que é “aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da uni-</p><p>dade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e</p><p>mantém vínculos de afinidade e afetividade” (BRASIL, 1990).</p><p>65</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Dessa forma, embora houvesse muitos avanços na questão da legislação, reconhecemos</p><p>que há muitos debates teóricos e práticos acerca da legislação sobre adoção, que, já houve</p><p>muitos avanços, porém, há muito a ser trilhado, pois a cada ano aqui no Brasil e no mundo</p><p>novas situações vão surgindo nos contextos familiares no lar biológico e no lar adotante e que</p><p>precisam de soluções.</p><p>METODOLOGIA</p><p>A pesquisa é de cunho qualitativo e reúne informações coletadas por meio de pesquisas</p><p>bibliográficas de estudiosos sobre o tema, conforme Andrade (2010, p. 25), que nos diz:</p><p>Ela é obrigatória nas pesquisas exploratórias, na delimitação do tema de um trabalho</p><p>ou pesquisa, no desenvolvimento do assunto, nas citações, na apresentação das con-</p><p>clusões. Portanto, se é verdade que nem todos os alunos realizarão pesquisas de labo-</p><p>ratório ou de campo, não é menos verdadeiro que todos, sem exceção, para elaborar os</p><p>diversos trabalhos solicitados, deverão empreender pesquisas bibliográficas.</p><p>Ainda trazemos Doxsey e De Riz (2002-2003 p. 35), que mostram que, “A pesquisa</p><p>ou levantamento bibliográfico é um importante estágio na elaboração do quadro inicial [...]”.</p><p>Além disso, a metodologia se torna também de caráter colaborativo, segundo Bortoni-Ricardo,</p><p>(2008), pois acontece a interação entre a família adotante relatando sua experiência junto às</p><p>filhas adotadas.</p><p>Destaca-se que, uma pesquisa colaborativa tem algumas características que devem ser</p><p>atendidas para legitimar o processo, entre as quais se destaca a participação voluntária dos su-</p><p>jeitos envolvidos, pois, se não for assim, o trabalho perde seu caráter colaborativo, centrando-se</p><p>apenas em ações estabelecidas pelo pesquisador (IBIAPINA, 2008). Por isso, a relação entre</p><p>teoria e prática se torna fundamental para que se efetive um trabalho colaborativo.</p><p>RELATO DE EXPERIÊNCIA</p><p>DESCRIÇÃO DOS PARTICIPANTES</p><p>Uma adolescente de quinze anos, adotada aos nove e uma criança, hoje com nove anos,</p><p>foi adotada com três, são irmãs consanguíneas e têm mais dois irmãos consanguíneos, que tam-</p><p>bém foram adotados por uma família que moram na mesma cidade. Mas o foco aqui são as meni-</p><p>nas e a família que a adotou. Os pais adotivos, na época, o pai com quarenta e sete de idade, hoje</p><p>com cinquenta e três e a mãe, na época, com quarenta e três anos de idade, hoje com cinquenta.</p><p>RELATOS</p><p>Segundo o abrigo, os pais de biológicos eram usuários de drogas, portanto, tanto elas</p><p>como seus irmãos sofreram negligência, física e emocional. O pai morreu de overdose e poste-</p><p>riormente as crianças foram para o abrigo. A família vivia em uma casa tomada por ocupação,</p><p>na qual circulavam muitas pessoas usuárias de drogas.</p><p>Antes de serem inseridos nas famílias adotivas, os irmãos ficaram em torno de oito me-</p><p>ses no abrigo. Como as famílias adotivas moravam em outro município, onde ficava o abrigo,</p><p>o juiz autorizou que eles pudessem ser imediatamente inseridos nas novas famílias logo no pri-</p><p>meiro encontro no fórum, ato que hoje as famílias tendo mais informações, entendem que, não</p><p>66</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>houve o período que chamam de “namoro”, ou seja, um tempo considerável para um estágio</p><p>de convivência pelo fato de uma das crianças já ter quase dez anos, entrando para o processo</p><p>de adoção tardia.</p><p>Sobre o estágio de convivência, a Lei nº 13.509/2017, que dispõe sobre adoção e altera</p><p>a Lei nº 8.069, o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e a Lei nº 10.406, de 10 de ja-</p><p>neiro de 2002 (Código Civil). Explica no Art. 46, o que significa esse estágio de convivência.</p><p>“A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo</p><p>máximo de 90 (noventa) dias, observadas a idade da criança ou adolescente e as peculiaridades</p><p>do caso” (BRASIL, 2017).</p><p>Assim, na época, os pais adotivos foram tomados pela emoção de serem pais, de cuidar</p><p>de seres que necessitavam de amor, carinho, respeito e dignidade como qualquer pessoa, não</p><p>questionando essa convivência. Os irmãos foram adotados por duas famílias que moram no</p><p>mesmo estado e mesma cidade, cujo objetivo foi de não separarem os irmãos, mesmo que não</p><p>fosse para a mesma família, conforme a Lei Nacional da Adoção (Lei nº 12.010/09) é o que a</p><p>justiça chama de “adoção casada”.</p><p>Devido à criança ter maior idade entre os irmãos, foi lhe informado, que ela e seus ir-</p><p>mãos seriam adotados, e que, ela teria a opção de escolher com qual irmão gostaria de ficar. Ou</p><p>seja, diferente dos irmãos, o abrigo considerou que, ela por ser mais velha e entender melhor</p><p>a nova situação a qual ela e seus irmãos se encontravam, ela teria o privilégio de ficar com o</p><p>irmão que ela mais sentia afeto, já o irmão que estava na época com sete anos, nada foi lhe per-</p><p>guntado, só explicado que seriam adotados por outra família.</p><p>Foram quatro meses, até as novas certidões de nascimento com os sobrenomes dos pais</p><p>adotivos chegarem, na época uma ocasião muito esperada e comemorada. A criança mais velha</p><p>passou por um luto pela família originária quando adentrou à família adotiva: “Lá bem no início,</p><p>a gente sentia que ela teve um sofrimento, e nos rejeitou fortemente, não aceitando o prato de</p><p>comida que fazíamos, ela jogava fora e fazia outro, as roupas lavadas e dobradas em sua cama,</p><p>ela desdobrava e dobrava tudo de novo, dizia para a irmã menor que aquela senhora não era</p><p>sua avó de verdade, e que suas tias não moravam ali, entre outras situações” (mãe adotiva).</p><p>Já a criança de três anos, na época, ao ser adotado, não se lembrava muito dos genitores,</p><p>embora nunca fosse lhe escondido que não era filha biológica e sim do coração, demorando</p><p>em compreender o que se passava. “A assistente social ao falar conosco pelo telefone, nos</p><p>orientou a levar algum presente, levamos duas bonecas, emocionada lembro-me do rostinho</p><p>assustado da pequena no meu colo segurando a</p><p>boneca, sem entender de fato o que estava</p><p>acontecendo” (mãe adotiva).</p><p>Ainda os pais destacaram que, a mais velha veio com muitas dificuldades de aprendi-</p><p>zagem, inclusive sem estar totalmente alfabetizada com quase dez anos de idade, mas com</p><p>auxilio diário em casa e da escola, hoje não há problemas em acompanhar e fazer as atividades</p><p>da escola. Algo que chamou atenção dos pais adotivos, e chama atenção até hoje, é o fato da</p><p>criança mais velha enaltecer sempre o pai em detrimento à mãe. Em suas palavras ela se refere</p><p>com carinho ao pai enquanto que pela genitora guarda muito rancor.</p><p>Pelos relatos da criança mais velha, ela era responsável pelos seus três irmãos mais</p><p>novos enquanto os pais se drogavam, “eles deixavam agente em uma barraca de praia com</p><p>bolachas e salgadinhos e iam se drogar, não lembro por quanto tempo, mas eu tinha que trocar</p><p>as fraldas e dar bolachas para meus irmãos)” (irmã mais velha). Nesse sentido, um dos maio-</p><p>res desafios enfrentados pelos pais adotivos, logo no início foi mostrar à menina que ela não</p><p>necessitava mais assumir o papel de responsável pela irmã mais nova, visto que agora possuíam</p><p>pessoas responsáveis para cuidar delas, e que ela podia assumir, então, o seu real papel de filha.</p><p>67</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>A mãe adotiva relata que, logo que elas chegaram conversava bastante sobre esses acon-</p><p>tecimentos, o que deixava a mais velha relaxada ao desabafar. Nestas conversas, a mais velha</p><p>revelou que, muitas vezes, ela ia buscar droga para os pais, mas, na época, acreditava que era</p><p>o certo a se fazer, e logo em seguida culpou somente a mãe. Mas, após muitas conversas, a</p><p>mãe adotiva percebeu que nos seus relatos, havia muitas falas e informações que pareciam ser</p><p>fantasiadas, ou seja, inventadas, pois logo em seguida ela desconstruía o que havia dito e trazia</p><p>outras informações e com muitos detalhes não ditos antes, o que levou a mãe adotiva a ficar</p><p>preocupada com essas atitudes e a desconfiar se tudo o que ela falava realmente aconteceu.</p><p>A irmã mais nova relata que gostava de brincar com a irmã mais velha no abrigo então</p><p>parecia que havia uma cumplicidade entre as duas. Bem diferente dos dias de hoje, pois os pais</p><p>adotivos relatam que, nunca existiu uma boa convivência entre elas, se agridem muito verbal e</p><p>até fisicamente. “Em uma das conversas com a mais velha, ela revelou que os pais biológicos</p><p>a enganaram, pois havia prometido que ela seria filha única, e que sua vida virou um inferno</p><p>depois do nascimento dos irmãos” (mãe adotiva.</p><p>Segundo os pais, percebe-se nas atitudes e falas da adolescente, hoje, muita raiva pelo</p><p>fato que, sua irmã mais nova tem uma vida diferente da qual ela tinha enquanto estava na famí-</p><p>lia de origem que gera muita animosidade entre elas. A irmã mais nova, por outro lado, diz que</p><p>gostaria que sua irmã mais velha voltasse a ser como era antes como ela mesma disse: “queria</p><p>que ela tivesse a “voz dócil” comigo de novo)” (irmã mais nova. Por outro lado, a irmã mais</p><p>velha diz que, não quer saber de cuidar de criança nunca mais na vida, e continua a culpar a mãe</p><p>biológica e seus irmãos pelo seu sofrimento.</p><p>Os pais adotivos destacaram que percebem que a irmã mais velha ainda não confia ple-</p><p>namente neles, mesmo após já terem passados quase seis longos anos de convivência, e que</p><p>cria problemas a partir de questões que poderiam ser solucionadas rapidamente. No início era</p><p>como uma forma de testá-los para ter a certeza de que estava sendo aceita. Mas, com o tempo</p><p>se agravou e existe uma dificuldade em seguir regras em escutar conselhos, buscando sempre</p><p>uma mentira como desculpa pelo erro.</p><p>Ao perceber essas atitudes constantes da filha mais velha, os pais adotivos a levaram</p><p>para uma psicóloga, que fez uma anamnese e constatou que ela tem o Transtorno de Oposição</p><p>Desafiante (TOD), que segundo o APA (2014), “estão agora agrupados em três tipos: humor</p><p>irritado/irritável, comportamento argumentativo/desafiador e vingativo” (APA, 2014, p. 815).</p><p>Foi encaminhada para atendimento com o profissional psiquiatra que também constatou</p><p>outro transtorno de personalidade “Bordelaine”, que tem a ver com a história na infância de</p><p>negligência e abandono. Conforme APA (2014), a característica principal desse transtorno, “é</p><p>um padrão difuso de instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem e de afetos e de</p><p>impulsividade acentuada que surge no começo da vida adulta e está presente em vários contex-</p><p>tos” (APA, 2014, p. 663).</p><p>Nesse sentido, é importante ressaltar o período de adaptação da criança que vivenciou</p><p>o processo de adoção e passa por fases, sendo que, em um primeiro momento, há um encan-</p><p>tamento, porque se encontra feliz por sair da instituição e por sentir que os pais/responsáveis</p><p>estão apaixonados por ela (ANDREI, 2001). Mas, também pode surgir um período de fal-</p><p>so sentimento que pode não ser superado se a criança não sentir confiança para se mostrar</p><p>verdadeiramente. Logo, é possível assinalar que, por ter convivido mais tempo com a família</p><p>de origem do que sua irmã mais nova apresenta maiores marcas dessa convivência, e por isso</p><p>maiores dificuldades em confiar plenamente no ambiente, isto é, em sua família atual. Porém,</p><p>como esse período pareceu não passar os diagnósticos veio, com muita apreensão para todos</p><p>os envolvidos. E até hoje continua a fazer terapia e toma medicação para controlar os acessos</p><p>de “fúria” como ela mesma diz.</p><p>68</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Os pais adotivos ainda relatam sobre a filha mais velha, que, nos primeiros meses, con-</p><p>forme ia conhecendo a comunidade (família/amigos) que a cercava, buscava sempre agradar</p><p>outras pessoas fora do convívio familiar. “Ela esnobava a nós três, nos tratando mal com pala-</p><p>vras e ações, como se não precisasse mais de nós, e nos perguntávamos o porquê daquilo” (pai</p><p>adotivo). Nesse caso, a criança sente que necessita adaptar-se àquilo que acha que o ambiente</p><p>espera dela, não podendo desenvolver sua personalidade nuclear e verdadeira, fazendo com que</p><p>a parte impulsiva não se integre à estrutura psíquica (LEVINZON, 2006).</p><p>Talvez para testar a nova família, fato que é corriqueiro na segunda fase da adoção,</p><p>quando surge a raiva e a decepção, o período em que a criança diz "não" na tentativa simbólica</p><p>de refazer e controlar sua vida. E, dependendo da maturidade destes, esse período pode ser su-</p><p>perado, ou, em casos extremos, levar à devolução da criança (ANDREI, 2001). São situações</p><p>que torna difícil a convivência na nova família.</p><p>Algo relatado também pelos pais adotivos é o desejo que a filha mais velha tem em reen-</p><p>contrar a família de origem, o que buscam tratar o assunto com muita naturalidade, colocando</p><p>que, posteriormente, poderá ser feito contato. Mas se percebe que, apesar desse desejo, ela</p><p>mostra claramente, qual "a família que gostaria de ter", ou seja, é a que onde se encontra agora,</p><p>a família adotiva, e continua a transparecer a necessidade de ser protegida e cuidada.</p><p>Todavia, observa-se que, aos poucos, a filha adotiva se sente pertencente à nova família</p><p>e comunidade, e mostrando quem deseja ser uma pessoa diferente do que tem sido. Além dis-</p><p>so, depois de muitas sessões de terapia, ajuda psiquiátrica e dos remédios, já existem alguns</p><p>momentos que ela consegue se mostrar mais verdadeira e sensível aos acontecimentos em sua</p><p>volta. Winnicott (1987/1999) ressalta que quando se constrói um lar para a criança, dá-se a ela</p><p>um mundo em que se acreditar nas ocasiões em que o amor falha, ou seja, em que o sentimento</p><p>de "estar em família", o relacionamento entre a criança e os adultos (pais/mães) pode sobreviver</p><p>aos desentendimentos.</p><p>A respeito da filha mais nova agora com nove anos, o casal relata que não teve proble-</p><p>mas com a adaptação, ela se apegou rapidamente aos pais adotivos as tias e primos, principal-</p><p>mente da avó materna. Até hoje, ela se despede para dormir, com beijos e abraços, pede para</p><p>ou pai ou a mãe ficar com</p><p>ela até ela pegar no sono, e ler uma história. Nunca falou dos pais</p><p>biológicos, talvez pelo fato de ter ido para o abrigo ao dói (2) anos de idade. A única vaga lem-</p><p>brança a qual se refere é enquanto estava no abrigo, de brincar de bonecas. (Às vezes de tanto a</p><p>irmã mais velha repetir alguns acontecimentos, como por exemplo, as três vezes em que a mãe</p><p>foi visitá-los no abrigo, ela repetia a mesma fala, mas não porque estava lembrando-se de algo)</p><p>(mãe adotiva). A mãe adotiva relembra que nos seus desenhos da pré-escola, ela se desenhava</p><p>dentro da barriga de sua mãe, fato que, a mãe reflete hoje que, talvez ela quis entender dentro</p><p>de seu mundo o que estava acontecendo naquela época.</p><p>Porém, os pais adotivos também destacam que, sua filha mais nova também apresenta</p><p>episódios relacionados não querer se alimentar corretamente, querendo se alimentar somente</p><p>de pão e bolacha. E ao chegarem e ser feitos exames de laboratório foi constatado uma anemia,</p><p>provavelmente pela má alimentação desde que nasceu, e que já estava sendo tratada no abrigo,</p><p>Sobre seu comportamento principalmente a partir dos cinco anos de idade a família</p><p>adotiva começou a perceber episódios de enfrentamento, de não aceitar regras facilmente, mas</p><p>ainda não tão arraigado quanto é em sua irmã mais velha. Sempre que se conversa com ela lhe</p><p>explicando o porquê desse comportamento ela diz que não consegue se segurar, e que não que-</p><p>ria fazer assim.</p><p>Assim a irmã mais nova, embora nunca se mostrasse fora do contexto da nova família</p><p>se integrando rapidamente, tem mostrado um comportamento difícil no dia a dia, com mui-</p><p>tos “nãos”, com padrão persistente de impulsividade em tudo que faz. Precisa ser lembrada</p><p>69</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>constantemente de suas tarefas, quadro que aos seis (6) anos, foi diagnosticada com Déficit de</p><p>Atenção e hiperatividade (TDAH), e faz uso de medicação para não causar prejuízos escolares</p><p>e sociais.</p><p>O TDAH é um transtorno do neurodesenvolvimento definido por níveis prejudiciais</p><p>de desatenção, desorganização e/ou hiperatividade-impulsividade. Desatenção e de-</p><p>sorganização envolvem incapacidade de permanecer em uma tarefa, aparência de não</p><p>ouvir e perda de materiais em níveis inconsistentes com a idade ou o nível de de-</p><p>senvolvimento. Hiperatividade-impulsividade implicam atividade excessiva, inquie-</p><p>tação, incapacidade de permanecer sentado, intromissão em atividades de outros e</p><p>incapacidade de aguardar. (APA, 2014, p. 32).</p><p>Assim, a filha mais nova tem, seus altos e baixos, mas ainda assim, volta atrás quando</p><p>erra, e, tem grande apego aos pais, com muito medo de desagradá-los. “(Ela é muito intensa, faz</p><p>tudo com muita alegria e gosta de colocar sua opinião em tudo, e nós que somos adultos temos</p><p>que colocar limite” (mãe adotiva). Sobre esse contexto Paggi e Guareschi (2004), diz que, é na</p><p>relação parental que primeiramente se estabelece a noção de limites, o respeito à autoridade e a</p><p>capacidade de se colocar no lugar do outro. Assim, a construção de limites implica na capacida-</p><p>de da criança de socialização e convivência bem-sucedidas, de forma que ela possa reconhecer</p><p>e considerar os próprios limites e os dos demais.</p><p>Assim, o processo de adoção muitas vezes enfrenta muitos entraves e descontroles com</p><p>sentimentos controversos, em que as vidas das crianças e adolescente passam por uma mudan-</p><p>ça radical, onde tentam se adaptar ou se ajustar a nova situação. Mas, destacamos que, durante</p><p>esse processo há muitos momentos de alegria e cumplicidade. Além disso, uma vez que os pais</p><p>adotivos que são os adultos se responsabilizam em transformar as vidas dessas crianças e ado-</p><p>lescentes, assumem o compromisso de cuidar, orientar e dar afeto e direcionar para que sejam</p><p>adultos com valores e princípios corretos.</p><p>CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>O relato deixa claro que, mesmo que já se passou alguns anos à filha mais velha ainda</p><p>se encontra em processo de adaptação na família adotiva, não se sentindo ainda totalmente</p><p>pertencente e integrada. Nesse contexto, Winnicott (1999) evidencia que uma criança que não</p><p>experimentou o cuidado pré-verbal, a confiabilidade humana, é uma criança carente, que carece</p><p>de amor e de manejo adequado. Isso se torna ainda mais delicado, pois os cuidadores podem</p><p>até conseguir fornecer cuidados domésticos visando superar essa falta de amor/confiabilidade,</p><p>entretanto, provavelmente, isso não será suficiente, pois eles têm a necessidade de testar os pais</p><p>adotivos todo o tempo, de verificar se esse amor suporta a destrutividade ligada ao amor primi-</p><p>tivo. Como aconteceu e ainda acontece no caso da filha mais velha conforme vimos no relato.</p><p>Entendemos então que, no contexto da adoção, existem muitas variáveis com muitos</p><p>acertos e muitos erros, e é de extrema importância que os pais/mães adotivos compreendam que</p><p>poderão vir a ser válvulas de escape dos impulsos da criança, e que o amor e ódio da criança</p><p>serão direcionados para eles, para garantir que sobreviverão apesar dos ataques (MACHADO;</p><p>FERREIRA; SERON, 2015).</p><p>Nesse sentido, os pais adotivos das crianças relatadas aqui, já passaram e ainda passa por</p><p>muitos momentos de tristeza, decepção como se eles tivessem que levar a culpa de tudo que a</p><p>família de origem fez, como se fossem essa válvula de escape mencionada pelos autores, e che-</p><p>gam a pensar que, se tudo que passaram e ainda passam valerá a pena. Se no futuro as filhas serão</p><p>adultas que valorizarão a vida, e se serão pessoas confiáveis e felizes por tomar decisões corretas.</p><p>70</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Também observamos no relato a importância de a criança ir se integrando à família e</p><p>encontrando um ambiente que a acolha e ofereça segurança ao vazio de rejeição que tem dentro</p><p>dela, e o pai adotivo tem grande responsabilidade para que isso aconteça. É natural que os filhos</p><p>adotivos se conscientizem de que eles também precisam fazer sua parte.</p><p>É preciso destacar que é mais difícil adotar uma criança de mais idade do que uma crian-</p><p>ça com menos idade. Isso se dá principalmente devido à personalidade que já está no processo</p><p>de formação de maturação. Em geral, crianças adotadas com mais idade já têm seus pensamen-</p><p>tos mais estruturados junto aos desafios e dificuldades enfrentados no passado com a família de</p><p>origem. Mas, ao receber ajuda necessária tem a oportunidade de buscar a superação.</p><p>Por fim, os pais relatam que, esperam chegar à terceira fase da adoção, quando o ado-</p><p>tado entende que encontrou uma família e refaz os pedaços de vida. E, ocorre o momento do</p><p>"insight amoroso", em que a criança percebe que aqueles são seus pais/responsáveis e estes</p><p>vislumbram que a criança irá crescer, viver e se tornar um adulto (ANDREI, 2001). Assim, é</p><p>possível observar que a, adoção embora cheia de desafios, pode ter a capacidade de modificar</p><p>a condição psíquica do adotado advindas dos sofrimentos com os pais biológicos, tornando o</p><p>processo ainda mais leve para aos adotados e a família adotante.</p><p>Por fim, este artigo aponta que, embora se acredite que a família é a base de tudo, e que</p><p>o ato de adoção resolve muitos problemas da sociedade, existe uma linha divisória muito exten-</p><p>sa, a da visão que não é tão encantadora e que a maioria das famílias adotivas não relatam, por</p><p>medo de serem julgados pelos seus familiares, amigos e sociedade.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ANDREI, E. Uma promessa de realização: os desafios da adoção no Brasil. In: Freire, F.</p><p>(org.). Abandono e adoção: contribuições para uma cultura de adoção III (p. 105-118).</p><p>Curitiba: Terra dos homens, 2001.</p><p>ANDRADE, M. M. Introdução à metodologia do trabalho científico: elaboração de</p><p>trabalhos na graduação. São Paulo: Atlas, 2010.</p><p>APA – AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-5 – Manual diagnóstico e</p><p>estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2014.</p><p>BERTHOUD, C. M. E. Filhos do coração. São Paulo: Cabral Editora Universitária, 1997.</p><p>BORTONI-RICARDO, S. M. O professor pesquisador:</p><p>םִַ֖לָׁשוּריִב יִּ֥תְלַגְו</p><p>׃הָֽקָעְז לוֹ֥קְו יִ֖כְּב לוֹ֥ק דוֹ֔ע ּ֙הָּב</p><p>8</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 5-13, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>20. Ali não haverá mais criança de dias, nem velho que</p><p>não cumpra seus dias, porque a criança morrerá com</p><p>cem anos e o pecador de cem anos será maldito.</p><p>רֶׁ֥שֲא ןֵ֔קָזְו ֙םיִמָי לוּ֤ע דוֹ֗ע םָּׁ֜שִמ הֶ֨יְהִֽי־אֹל</p><p>הָ֤אֵמ־ןֶּב רַעַּ֗נַה יִּ֣כ ויָ֑מָי־תֶא אֵּ֖לַמְי־אֹֽל</p><p>׃לָּֽלֻקְי הָ֖נָׁש הָ֥אֵמ־ןֶּב אֶ֔טוֹחַ֣הְו תוּ֔מָי ֙הָנָׁש</p><p>21. E edificarão casas e morarão nelas e plantarão</p><p>vinhas e comerão o fruto delas. ׃םָֽיְרִּפ וּ֖לְכאְָו םיִ֔מָרְכ וּ֣עְטָנְו וּבָׁ֑שָיְו םיִּ֖תָב וּ֥נָבוּ</p><p>22. Não edificarão para que outro habite; não plantarão</p><p>para que outro coma; porque segundo os dias das</p><p>árvores serão os dias do meu povo e meus escolhidos</p><p>desfrutarão a obra de suas mãos.</p><p>לֵ֑כאֹי רֵ֣חאְַו וּ֖עְּטיִ אֹ֥ל בֵׁ֔שֵי רֵ֣חאְַו ּ֙ונְביִ אֹ֤ל</p><p>׃יָֽריִחְב וּּ֥לַבְי םֶ֖היֵדְי הֵׂ֥שֲעַמוּ יִּ֔מַע יֵ֣מְי ֙ץֵעָה יֵ֤מיִכ־יִּֽכ</p><p>23. Não trabalharão em vão, não darão seus filhos para</p><p>destruição, porque são semente bendita de YHWH</p><p>e com eles os seus descendentes.</p><p>יִּ֣כ הָ֑לָהֶּבַל וּ֖דְלֵי אֹ֥לְו קיִ֔רָל ּ֙ועְגיִֽי אֹ֤ל</p><p>׃םָּֽתִא םֶ֖היֵאָצֱאֶצְו הָּמֵ֔ה ֙הָוהְי יֵ֤כוּרְּב עַרֶ֜ז</p><p>24. E acontecerá que, antes de clamarem, eu responde-</p><p>rei, enquanto ainda falam, eu ouvirei.</p><p>דוֹ֛ע הֶ֑נֱעֶא יִ֣נֲאַו וּאָ֖רְקיִ־םֶרֶֽט הָ֥יָהְו</p><p>׃עָֽמְׁשֶא יִ֥נֲאַו םיִ֖רְּבַדְמ םֵ֥ה</p><p>25. O Lobo e o Cordeiro pastarão juntos; o Leão e o</p><p>Boi comerão palha; a serpente comerá o barro;</p><p>não haverá destruição nem mal em todo meu santo</p><p>monte, diz YHWH.</p><p>ןֶבֶּ֔ת־לַכאֹֽי רָ֣קָּבַּכ ֙הֵיְראְַו דָ֗חֶאְכ וּ֣עְריִ הֶ֜לָטְו בֵ֨אְז</p><p>־אֹֽלְו וּעֵ֧רָי־אֹֽל וֹ֑מְחַל רָ֣פָע שָׁ֖חָנְו</p><p>Fonte: autores (2022).</p><p>O LIVRO E SUA COMPLEXA REDAÇÃO</p><p>Dentre as várias teorias possíveis sobre sua redação, inicialmente o livro massorético de</p><p>Isaías era tido como combinação de duas sessões, tendo dois autores distintos e escritos em épo-</p><p>cas diferentes. Na primeira sessão (1-39), o autor é identificado como Isaías, nascido em Jeru-</p><p>salém e filho de Amoz e teria profetizado durante a metade do século VIII a. C., abrangendo os</p><p>reinados de quatro reis: Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias (Is 1:1). A segunda sessão (40-66), escrita</p><p>por um autor anônimo que teria vivido, aparentemente, na época do pós-exílio, foi acrescentada</p><p>a obra de Isaías. Todavia, mesmo com as descobertas de Qumran, não há nada que aponte para</p><p>alguma separação entre as duas sessões. No entanto, no século XIX, a forma de ler o livro de</p><p>Isaías incluiu uma terceira divisão (56-66).</p><p>Iniciado em torno de 740 a.C., com o profeta Isaías, a longa obra é terminada quase qua-</p><p>tro séculos depois (CROATTO, 1989). Souza (2020) afirma que uma escola isaiana é reconhe-</p><p>cida pela crítica moderna onde o Livro do Profeta Isaías é dividido em três partes: Proto-Isaías</p><p>(Is 1-39); Dêutero-Isaías (40-55) e Trito-Isaías (56-66), sendo possível encontrar ao longo dos</p><p>66 capítulos desse livro, vários estilos como: alegorias, parábolas, poemas, narrativas históricas</p><p>e oráculos, sendo este um chamado ao arrependimento e os poemas, por se turno, denunciam a</p><p>idolatria e anunciam a nova criação. Schmitt (2020) descreve que em meio às pesquisas bíbli-</p><p>cas sobre o Dêutero-Isaías, Bernhard Duhm, no seu comentário “Biographisches Lexikon für</p><p>Ostfriesland”, escrito em 1892, identificou que os capítulos 56-66 tratavam de um período e</p><p>temas diferentes dos capítulos 1-55, ponderando sobre a hipótese do Trito-Isaías. Essas teorias,</p><p>entretanto, devem ser tomadas com cuidado visto que a redação e estrutura final do livro apre-</p><p>sentam passagens fora da ordem cronológica e, além disso, a grandeza e diversidade do material</p><p>aduzem à possibilidade de mais do que três autores.</p><p>Marcio Daza</p><p>9</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 5-13, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>A partir do decurso histórico descrito entre os capítulos 1-66 de Isaías, compreende-se</p><p>que o povo de Judá foi forçado, em períodos distintos. Sofreu a dominação assíria, caldeia e</p><p>persa e enfrentou o fim da monarquia, seguida da escravidão no exílio babilônico.Mas, também</p><p>experimentou tentativas de restauração sob o governo persa, e dentro destes contextos pode-se</p><p>identificar os possíveis escritores do Proto-Isaías (profeta histórico), do Dêutero-Isaías (o profe-</p><p>ta do exílio) e do Trito-Isaías (profeta pós-exílico) e, apesar desta divisão ser aceita pela maioria</p><p>dos exegetas, alguns ainda unificam o bloco de 40-66 (CROATTO, 1989).</p><p>O CONTEXTO DO TRITO-ISAÍAS</p><p>No texto do Trito-Isaías, é possível identificar que a comunidade judaica já está orga-</p><p>nizada em Judá, no retorno do exílio, e o templo possivelmente estava em funcionamento (Is</p><p>56:7-66:1). Segundo Nakanose, Pedro e Toseli (1998), o exílio teve sua causa no fato de o rei</p><p>de Judá, Joaquim, que reinou entre 598-597 a.C., ter se recusado a pagar tributos ao império</p><p>babilônico, então, Nabucodonosor, rei da Babilônia, tomou a cidade de Jerusalém em 597 a.C.</p><p>(2Rs 24:10-17), levando cativo não somente o rei e os principais líderes do país com o objetivo</p><p>de evitar possíveis resistências locais. Para Schmitt (2020), o exílio foi o evento mais traumáti-</p><p>co ao longo da história de Israel.</p><p>Deixado por Nabucodonosor para liderar a parcela do povo que ficou, Sedecias (597-</p><p>587) cedeu à pressão feita pelo poder egípcio e, aproveitando as movimentações no poder da</p><p>corte babilônica, não pagou o tributo devido para o império babilônico e sofreu a consequente</p><p>represália (SOUZA, 2020). O templo foi destruído por Nabucodonosor em 587 a.C. e as elites</p><p>da cidade de Judá (líderes políticos, religiosos, militares, ecônomos, serralheiros, fabricantes de</p><p>armas e ferramentas) foram deportados e o país perdeu sua “autonomia”, deixando de ser um</p><p>Estado independente, passando a ter status de Colônia.</p><p>Em poucos anos ocorreu uma segunda deportação, aumentando o sofrimento do povo</p><p>(Is 42:22). A libertação se tornou um desejo dos dois grupos deportados para a babilônia, mas</p><p>esse retorno assumiu ideais diferentes, havia o desejo de reaver seus bens e assumir o poder</p><p>de Jerusalém novamente e, ao mesmo tempo, o desejo de reconstruir Jerusalém sob os pilares</p><p>da justiça, equidade e solidariedade, o que justifica em parte a diversidade literária do período</p><p>exílico (NAKANOSE; PEDRO; TOSELI, 1998).</p><p>Segundo o texto de Isaias, um rei persa, identificado no Dêutro-Isaías (Is 45,1; 44,28-45;</p><p>13; 41,2-3,25) como Ciro, libertou o povo do jugo da servidão, concretizando, assim, o desejo</p><p>dos judeus em 539 a.C. ao conquistar a Babilônia e permitir a recolonização de Judá, o que tam-</p><p>bém fez para os outros povos que haviam sido deportados (NAKANOSE; PEDRO; TOSELI,</p><p>1998; SOUZA, 2020).</p><p>Em 515 a.C., o Templo foi reinaugurado e passou a exercer um forte simbolismo sobre o</p><p>povo judeu que, sem uma monarquia estabelecida, foram liderados pelos sacerdotes. No retorno</p><p>continuaram como colônia da Pérsia, como fonte de recursos por meio de tributos e como alia-</p><p>dos contra o Egito. A narrativa de Neemias também informa que, quando Artaxerxes assumiu o</p><p>reinado da Pérsia, priorizou a organização tanto da economia de Judá quanto o funcionamento</p><p>do templo em 445 a.C. tornando Judá uma base militar. E, segundo a narrativa de Esdras (400</p><p>a.C.), também houve uma reforma no aparato religioso e ideológico por meio da “Lei de Deus”.</p><p>Dessa forma, o governo persa assumiu o controle religioso e político de Judá (NAKANOSE;</p><p>PEDRO; TOSELI, 1998).</p><p>Essa “nova” sociedade organizada por sacerdotes e escribas legislavam sobre a condição</p><p>social e espiritual do povo. Eram responsáveis por decidir quem era puro ou não, cobravam</p><p>preços elevados para que as pessoas pudessem cultuar e participar do convívio social, ainda que</p><p>Marcio Daza</p><p>10</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 5-13, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>por meio de várias exigências e normas. O problema é que as pessoas, sem poder aquisitivo,</p><p>não podiam pagar o que os sacerdotes estipulavam. O povo continuava sendo explorado inclu-</p><p>sive com aval</p><p>introdução pesquisa qualitativa. São</p><p>Paulo: Parábola Editorial, 2008.</p><p>BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.1988. Brasília, 1988.</p><p>Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso</p><p>em: 1 out. 2022.</p><p>BRASIL. 1990. Lei nº 8.069, de 13 de agosto de 1990. Estatuto da Criança e do</p><p>Adolescente, Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.</p><p>htm. Acesso em: 1 out. 2022.</p><p>71</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>BRASIL. 2009. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Nova Lei Nacional da</p><p>Adoção, Presidência da República, Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/</p><p>ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12010.htm. Acesso em: 2 out. 2022.</p><p>BRASIL. 2017. Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e altera a</p><p>Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Consolidação</p><p>das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943,</p><p>e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível em: https://cutt.ly/</p><p>i84NqfZ. Acesso em: 2 out. 2022.</p><p>COSTA, T. J. M. Adoção transnacional: um estado sócio jurídico e comparativo da</p><p>legislação atual. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.</p><p>DINIZ, M. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. São Paulo, Saraiva, 2002.</p><p>DOXSEY J. R.; DE RIZ, J. Metodologia da pesquisa científica. ESAB – Escola Superior</p><p>Aberta do Brasil. 2002-2003. Apostila.</p><p>GONDIM, A. K.; CRISPIM, C. S.; FERNANDES, F. H. T.; ROSENDO, J. C.; BRITO, T.</p><p>M. C.; OLIVEIRA, B. T. 2008. Motivações dos pais para a prática da adoção. Boletim de</p><p>Psicologia, 58 (129):161-170.</p><p>IBIAPINA, I. M. L. Pesquisa colaborativa: investigação, formação e produção de</p><p>conhecimentos. Brasília: Líber Livro Editora, 2008.</p><p>LEVINZON, G. K. (2006). A adoção na clínica psicanalítica: o trabalho com os pais</p><p>adotivos. Mudanças – Psicologia da Saúde, 14(1), 24-31.</p><p>LIBERATI, Wilson Donizete. A adoção internacional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.</p><p>MACHADO, L. V.; FERREIRA, R. R.; SERON, P. C. 2015. Adoção de crianças maiores:</p><p>sobre aspectos legais e construção do vínculo afetivo. Estudos Interdisciplinares em</p><p>Psicologia, 6(1):65-81. Disponível em: https://doi.org/10.5433/2236-6407.2015v6n1p65.</p><p>Acesso em: 9 out. 2022.</p><p>MALDONADO, M. T. Os caminhos do coração: pais e filhos adotivos. São Paulo:</p><p>Saraiva, 1997.</p><p>PAGGI, K.; GUARESCHI, P. (2004). O desafio dos limites: um enfoque psicossocial na</p><p>educação dos filhos. Rio de Janeiro: Vozes.</p><p>PAIVA, L. D. Adoção: significado e possibilidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.</p><p>RODRIGUES, S. Direito civil, vol. 6, 27. ed., São Paulo: Saraiva 2002, p. 380.</p><p>SCHETINNI FILHO, L. Compreendendo o filho adotivo. Recife: Bagaço, 1998.</p><p>72</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>SOUZA. A. A. Adoção no Brasil e as principais mudanças com a Lei 12.010/09. 2011.</p><p>Disponível em: http://ww2.faculdadescearenses.edu.br/biblioteca/TCC/DIR/ADOCAO%20</p><p>NO%20BRASIL%20E%20AS%20PRINCIPAIS%20MUDANCAS%20COM%20A%20LEI.</p><p>pdf> Acesso em: 9 out. 2022.</p><p>WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1999.</p><p>73</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>A FLUIDEZ EM BAUMAN E A DURAÇÃO BERGSONIANA:</p><p>Um Diálogo Sobre Educação</p><p>Fluidity In Bauman And Bergsonian Duration: a Dialogue On Education</p><p>Luciana Fiamoncini Frainer1</p><p>Resumo: Este artigo visa provocar um diálogo entre Henri Bergson e Zygmund Bauman acerca dos</p><p>conceitos de duração e fluidez relacionados à educação. Mobilizando os conceitos de fluidez de Bau-</p><p>man e duração de Bergson, o artigo discute a adequabilidade dos processos educativos, sob a pers-</p><p>pectiva da fluidez e da duração. O estudo é de caráter qualitativo e bibliográfico, de análise conceitual</p><p>de algumas das obras de ambos os autores, bem como de estudos sobre suas obras. Os resultados</p><p>demonstram que, embora a sociedade seja fluida, os processos educativos focam na transmissão de</p><p>conceitos de maneira enrijecida e pouco flexível, o que torna os sujeitos, por vezes, desprovidos de</p><p>criticidade. Enquanto o conceito de fluidez de Bauman reclama alguma duração, o conceito de duração</p><p>em Bergson contém nele mesmo o devir. O método bergsoniano da intuição pode ser pensado como</p><p>uma possibilidade de repensar a educação em tempos de Modernidade Líquida.</p><p>Palavras-chave: Duração. Fluidez. Educação. Sociologia da educação.</p><p>Abstract: This article aims to provoke a dialogue between Henri Bergson and Zygmund Bau-</p><p>man about the concepts of duration and fluidity related to education. Mobilizing the concepts of</p><p>fluidity by Bauman and duration by Bergson, the article discusses the adequacy of educational</p><p>processes, from the perspective of fluidity and duration. The study is qualitative and bibliogra-</p><p>phical, with a conceptual analysis of some of the works of both authors, as well as studies on</p><p>their works. The results show that, although society is fluid, educational processes focus on</p><p>transmitting concepts in a rigid and inflexible way, which makes the subjects, at times, devoid</p><p>of criticality. While Bauman's concept of fluidity claims some duration, Bergson's concept of</p><p>duration contains in itself becoming. The Bergsonian method of intuition can be thought of as</p><p>a possibility to rethink education in times of Liquid Modernity.</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>A pesquisa em educação é uma atividade que há muito vem sendo exercida por estudio-</p><p>sos que se dedicam à compreensão dos fenômenos que nos atravessam diariamente. Muitos pes-</p><p>quisadores contemporâneos ainda mergulham em teorias propostas por autores que nos ajudam</p><p>a compreender nas teorias de hoje fenômenos já descritos há muito tempo. Nos dias atuais, o</p><p>desafio de se pesquisar a educação torna-se ainda maior, frente às grandes mudanças pelas quais</p><p>a sociedade vem passando, o que acaba impactando significativamente nos processos educacio-</p><p>nais. Pensar a educação implica pensar a sociedade na qual ela se desenvolve.</p><p>1 Fundação Universidade Regional de Blumenau – (FURB), Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em</p><p>Educação. Blumenau – SC – Brasil. Link do OrCid: https://orcid.org/0000-0001-5798-1557. E-mail: luciana.</p><p>fiamoncini@hotmail.com</p><p>74</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>A Sociologia da Educação é posta como base para que possamos compreender de onde</p><p>falamos, sobre o que falamos e para quem falamos. Também nos faz refletir sobre como a so-</p><p>ciedade funciona, e assim, como os saberes destinados à educação são alocados e com que fina-</p><p>lidades. Ela, por si, não é garantia de uma educação transformadora, mas nos dá a possibilidade</p><p>de ampliar a compreensão da realidade social e de ver a educação a partir de diferentes ângulos.</p><p>Ela, por nos permitir ampliar estes horizontes, serve como uma ferramenta para a transmissão</p><p>da herança cultural das ideologias, o que apresenta estreita relação com a realidade de acordo</p><p>com cada contexto histórico.</p><p>A partir do exposto, justifica-se o uso da Sociologia da Educação para apoiar uma pes-</p><p>quisa cujo objeto é primordialmente filosófico. Pensar Sociologia é, de certa maneira, render-se</p><p>à Filosofia. Tomá-la a partir do seu aspecto questionador é pensar a sociedade e de que maneira</p><p>a educação a transforma com responsabilidade intelectual. A evolução do conhecimento é a</p><p>chave para que possamos compreender a ligação de ambas as ciências, desde que haja um con-</p><p>senso epistemológico entre elas.</p><p>Zygmund Bauman e Henri Bergson trazem à tona os conceitos de fluidez e duração:</p><p>objetos deste estudo. Pretende-se analisá-los paralelamente, buscando identificar possíveis con-</p><p>tribuições para discutir educação. A discussão é qualitativa e baseada na análise de conceitos</p><p>expressos em bibliografia. Os principais livros de Bergson são: A Evolução Criadora (1979),</p><p>Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (1927), Matéria e Memória (1999) e O</p><p>Pensa-</p><p>mento e o Movente (2006); e de Bauman são: A sociedade individualizada (2008), Modernida-</p><p>de e Ambivalência (1999), Modernidade líquida (2001) e Sobre Educação e Juventude (2001).</p><p>Contribuem ainda com o estudo Lima, Leopoldo e Silva e Saviani.</p><p>Desde o Iluminismo, ou talvez desde Sócrates, a função da educação foi tirar o homem</p><p>da ignorância. Foi com este propósito que a escola moderna foi organizada neste modelo en-</p><p>ciclopédico. Ele manifesta o desejo de emancipar intelectualmente os indivíduos pela trans-</p><p>missão dos conhecimentos historicamente acumulados. Isto constituiria o sujeito esclarecido,</p><p>arrancando-o da ignorância. Apesar de todas as mudanças que ocorrem desde então, será que</p><p>ela cumpre sua missão?</p><p>Atualmente encontramo-nos diante de um cenário fragmentado no que diz respeito à</p><p>teoria, à cultura, à sociedade e, consequentemente, à educação. Os novos modelos de educação</p><p>escolar, com a implementação de novas tecnologias pedagógicas e digitais parecem destituir</p><p>da estabilidade e da continuidade dos discursos pedagógicos, sejam eles conservadores ou pro-</p><p>gressistas.</p><p>Zygmund Bauman é um crítico do conceito de pós-modernidade . Ele entende que as</p><p>transformações das antigas estruturas sociais e antropológicas começaram a ocorrer no renasci-</p><p>mento, momento no qual os ideais racionalistas começavam a despontar com força ante o pen-</p><p>samento tradicional, provocando rupturas com o modelo anterior de sociedade. Assim, os ideais</p><p>firmados na pré-modernidade acabaram criando condições para novas maneiras de organização</p><p>social. As leis civis e uma racionalização da ética passaram a ocupar o espaço da religião, por</p><p>exemplo.</p><p>A racionalização, essa busca pela ordem, disseminou-se pelos mais diversos espaços</p><p>sociais, institucionais e intelectuais, no período moderno. Bauman caracteriza aquele momento</p><p>do pensamento moderno com a metáfora da solidez. A “modernidade sólida” ainda se apresenta</p><p>estável, fixa, tanto nas relações sociais entre as pessoas quanto com as instituições. Nesta fase</p><p>sólida da sociedade, os valores transformavam-se lentamente e de modo previsível. Havia mais</p><p>certezas e a sensação de ordem e controle sobre a sociedade, economia, cultura, e outros seg-</p><p>mentos (BAUMAN, 2001).</p><p>75</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Porém essa “ordem”, palavra-chave da civilização moderna, era fictícia, e acabou pro-</p><p>duzindo um efeito rebote quando esta se liquefez. Ao invés do cumprimento da “ordem”, o que</p><p>ocorreu foi justamente a desordem e o caos na sociedade, inclusive no campo da educação, ao</p><p>longo do século XX.</p><p>Bauman (1999) também analisa a linguagem, em seu esforço por sustentar a ordem e</p><p>negar o acaso. Ocorre a desordem, chamada por ele também de ambivalência, quando os ins-</p><p>trumentos linguísticos usados pela linguagem não possibilitam mais a classificação de uma</p><p>situação, por ela não pertencer mais às classes já anteriormente descritas, pois, em sua fluidez,</p><p>pode encaixar-se em qualquer uma delas. A ambivalência é, portanto, a impossibilidade da se-</p><p>gurança, lançando a própria linguagem na contingência.</p><p>Quando ocorre a transição para o século XXI, a modernidade adequa-se a uma nova con-</p><p>dição, da liquidez. Assim, a modernidade sólida, submissa ao disciplinamento, ordenada, puní-</p><p>vel, passa a ser líquida, ou seja, fluida. De acordo com o autor, não houve ruptura completa na</p><p>transição da modernidade sólida para a líquida (BAUMAN, 1999), mas sim, uma continuidade.</p><p>O conceito de fluidez em Bauman tem como principal característica a noção de que, em</p><p>nossa modernidade, as coisas se transformam em velocidades tão aceleradas que é impossível</p><p>às pessoas identificarem elementos mais estáveis, de duração. Por outro lado, um dos conceitos</p><p>fundamentais de Bergson é a duração. Mas a duração, em Bergson, não se refere a elementos</p><p>estáticos, imutáveis. A duração é, nela mesma, processo, é devir. É neste sentido que um diálogo</p><p>entre Bergson em Bauman pode ser profícuo para se pensar a educação em nossas sociedades.</p><p>A MODERNIDADE LÍQUIDA E A SUA FLUIDEZ</p><p>“Tudo é temporário, a modernidade […] – tal como os líquidos – caracteriza-se pela in-</p><p>capacidade de manter a forma” (BAUMAN, 2001). Quando a Modernidade supera a rigidez de</p><p>sua mecânica racionalista, ela se torna cada vez mais líquida. Com isto altera-se toda a estrutura</p><p>construída sobre a base fixa e sólida. Com isto as relações passaram a ser voláteis, os parâme-</p><p>tros de classificação esvaíram-se (BAUMAN, 2001). Esta nova modernidade fez com que cada</p><p>sujeito se sentisse livre para buscar o que quer, a partir de seus próprios esforços.</p><p>Com a passagem dos modelos rígidos da “sociedade da disciplina" (FOUCAULT, 2002)</p><p>para a “sociedade de desempenho individual”, nutre-se da “cultura de afundar ou nadar sozi-</p><p>nho" (BAUMAN, 2016). Na modernidade líquida, a liberdade, pela falta de padrões produz</p><p>maior instabilidade social (BAUMAN, 2001). Sem os “universais” da modernidade clássica</p><p>temos a sensação de que</p><p>[...] estamos passando de uma era de 'grupos de referência' predeterminados a uma</p><p>outra de 'comparação universal', em que o destino dos trabalhos de autoconstrução</p><p>individual […] não está dado de antemão, e tende a sofrer numerosa e profundas</p><p>mudanças antes que esses trabalhos alcancem seu único fim genuíno: o fim da vida do</p><p>indivíduo. (BAUMAN, p. 14, 2001).</p><p>Passamos por uma desconstrução dos parâmetros modernos de sociedade, o que já esta-</p><p>va em germe no movimento que desconstruiu os paradigmas na pré-modernidade (BAUMAN,</p><p>2001). Mas, em nosso contexto, a reconstrução de novos paradigmas não adquire mais forma</p><p>sólida, ou seja, permanece na liquidez. Em sua fluidez os paradigmas, assim como a água pre-</p><p>enche os mais recônditos vazios, vão tomando seu lugar de acordo com o que cada momento</p><p>determinar.</p><p>76</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>O sujeito líquido caracteriza-se pela manifestação de inúmeros “eus” em sua “identi-</p><p>dade”, de acordo com os acontecimentos, com a tendência, com o momento. Um homem que</p><p>é advogado, por exemplo, porta-se diferente quando esta diante do tribunal, quando está pai,</p><p>quando está esposo, quando está torcedor, quando está dirigindo em um trânsito caótico. Embo-</p><p>ra conflitantes, estes vários “eus” constituem a identidade de um único sujeito.</p><p>A modernidade líquida, portanto, traduz-se como o oposto da modernidade sólida, cuja</p><p>característica era a durabilidade das relações e do conhecimento (BAUMAN, 2013). Vivemos</p><p>a época do efêmero, do agora, da transitoriedade, a instantaneidade das coisas, das relações e,</p><p>consequentemente, do conhecimento.</p><p>Ao que se tem observado, a liquidez da sociedade tende a ampliar-se, sem sinais de</p><p>retomar-se a solidez. Ao contrário, o consumo como base das relações, o individualismo, a</p><p>competitividade, as crises políticas são os elementos que impulsionam o atual modelo social e</p><p>econômico. Assim, a firmeza do terreno que outrora pisávamos esvaiu-se, “somos tão modernos</p><p>como nunca, ‘modernizando’ de modo obsessivo tudo aquilo que tocamos. Um dilema, portan-</p><p>to: o mesmo, embora diferente, a descontinuidade na continuidade” (BAUMAN, 2001, p. 83).</p><p>Quais impactos isto causa na educação?</p><p>A DURAÇÃO EM HENRI BERGSON</p><p>O conceito de duração já foi pensado metafisicamente como essência, como Ser, como</p><p>Bem, como Verdade. Nas filosofias metafísicas a duração foi pensada como algo separado, imu-</p><p>tável. Neste sentido, a metafísica de Bergson produz um duplo deslocamento no pensamento</p><p>filosófico. Por um lado, trata-se de “uma filosofia que vê na duração o próprio tecido de que a</p><p>realidade é feita” (BERGSON, 1979, p. 191). Por outro, a duração não é imutável, mas devir.</p><p>Na filosofia bergsoniana, por trás de uma aparente imobilidade, no conceito de duração,</p><p>existe o movimento. Sem esse movimento, a vida não existiria como ela é. O tempo, tal qual</p><p>o conhecemos, dividido em segundos, minutos, horas, é uma das maiores invenções humanas</p><p>(BERGSON, 1979). O tempo não é. Ele</p><p>não se divide em passado como o ido, presente como</p><p>o agora e futuro como o que virá. Não há antes e depois.</p><p>Assim, Bergson propõe uma das suas principais problemáticas filosóficas: como pensar o</p><p>tempo sem fragmentá-lo? Através da duração pura, que é um conceito simples, que pode ser obser-</p><p>vado em nós o tempo todo. A duração é movimento, o tempo indivisível. Bergson afirma que “é jus-</p><p>tamente essa continuidade indivisível de mudança que constitui a verdadeira duração” (1979, p. 36).</p><p>Para simplificarmos, o tempo é continuo, e a consciência, por viver esse tempo, também é</p><p>contínua. Nossa consciência atravessa o tempo sem a delimitação do tempo em pequenos espaços,</p><p>mas como uma continuidade. O fluxo da nossa consciência não é feito de momentos separados, pois</p><p>ela não obedece aos padrões que, embora úteis à nossa prática, por serem mensuráveis, são divisí-</p><p>veis. A vida é, portanto, uma continuidade de movimentos diferenciados que nunca se interrompem.</p><p>A separação da duração em momentos é criada por nós para facilitar o acesso a ela.</p><p>A duração é movimento que se acumula (BERGSON, 2006). O tempo, portanto, não é</p><p>passageiro, como erroneamente pensamos, mas se prolonga. O passado não é o que foi, pois</p><p>perdura no presente. Para compreender o presente é preciso que o passado seja acessado cons-</p><p>tantemente. O presente é, portanto, feito de passado.</p><p>A noção de tempo como duração é o motivo pelo qual ele critica a divisão do tempo em</p><p>“espaços”, passado, presente e futuro. Caso o tempo fosse realmente espacializado, a duração</p><p>não faria sentido. Nossa consciência seria como um grande gaveteiro no qual os momentos</p><p>seriam apenas acumulados, sem serem reacessados. Nós só somos o que somos hoje porque</p><p>constantemente nosso passado bate à porta do que vivemos no agora.</p><p>77</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>A materialização do tempo causa o problema conceitual que dificulta a compreensão da</p><p>duração. Em nossa maneira de pensarmos o tempo, assim como colocamos uma caixa na frente</p><p>de outra, colocamos um momento antes do outro. Com isto perdemos a essência do tempo: tra-</p><p>ta-se de uma duração pura do passado no presente, do prolongamento de um momento no outro,</p><p>e não da ordenação de um momento após o outro.</p><p>Bergson pensa duas multiplicidades. A primeira é extensiva, refere-se ao espaço, ocorre</p><p>no domínio da inteligência, na elaboração dos conceitos, na análise de um objeto espacial-</p><p>mente, a partir de diferentes ângulos. Ela pode ser medida: metros, quilos, horas, anos. Esta</p><p>multiplicidade é o movimento quantificável, cartesiano. A segunda multiplicidade refere-se ao</p><p>tempo. Esta multiplicidade é duração e não pode ser quantificada. Caso seja dividida, transfor-</p><p>ma-se. Para ser pura, precisa ser indivisível.</p><p>Em suma, a pura duração bem poderia não ser senão uma sucessão de mudanças</p><p>qualitativas, que se fundem, que se penetram, sem contornos precisos, sem nenhuma</p><p>tendência a se exteriorizarem umas com relação às outras, sem nenhum parentesco</p><p>com o número: seria a heterogeneidade pura (BERGSON, 1927, p. 67).</p><p>Bergson estabelece uma diferença entre os conceitos, fruto da inteligência (racional) e</p><p>a intuição. Ele “afirma que a inteligência, ao elaborar conceitos e ao trabalhar analiticamente,</p><p>fragmenta, espacializa e fixa a realidade que, nela mesma, é contínua mudança qualitativa, puro</p><p>tornar-se” (LEOPOLDO E SILVA, 1984, p. 10). Esta é uma necessidade intelectual típica do</p><p>“eu superficial”, e está voltada para o útil e para o cômodo. Entretanto, o conceito faz com que a</p><p>natureza do objeto escape. O conceito “retém do objeto apenas o que é comum a esse e a outros</p><p>objetos” (Op. Cit. p. XI).</p><p>A atividade analítica do intelecto pensa a realidade a partir do quantitativo, espacial. Mas</p><p>a filosofia de Bergson pensa o qualitativo, enquanto duração. Ela constitui uma forma de olhar o</p><p>tempo de maneira pura, sem fragmentações. Sem engessamentos. O tempo não flui como água,</p><p>mas se preserva como garrafa que, posta à chuva, vai enchendo. Todo o passado vai crescendo à</p><p>medida que o tempo dura. Nós somos o passado que insiste no presente. “Diante do espetáculo</p><p>dessa mobilidade universal, alguns de nós serão tomados de vertigem. Estão acostumados à</p><p>terra firme; não conseguem se acostumar com o caturro e a arfagem. Precisam de pontos ‘fixos’</p><p>aos quais amarrar as ideias e a existência” (BERGSON, 2006, p. 88).</p><p>O tempo e o espaço, como estamos acostumados a vê-los, não passam de ilusões hu-</p><p>manas, segundo o pensamento de Bergson. Ficar presos à ideia de que a vida está assegurada</p><p>por modelos universais, essências imutáveis, segundo Bergson, nos afasta de sua natureza que</p><p>é movimento, portanto, mudança. A realidade, na dimensão quantitativa, enquanto espaço, ad-</p><p>mite formas relativamente estáveis. Elas são necessárias do ponto de vista prático do nosso</p><p>entendimento. Entretanto, em sua dimensão qualitativa, enquanto tempo-duração, ela é essen-</p><p>cialmente movimento.</p><p>Não é necessário, porém, afastar-se da realidade. A intuição é, segundo Bergson um método</p><p>capaz de apreender a duração, sem que caiamos no misticismo. A inteligência, que opera por conceitos,</p><p>não dá conta de compreender por si a duração pura. Esta só pode ser compreendida pela intuição.</p><p>Bergson e Bauman podem ser confrontados nos conceitos de fluidez, duração e movi-</p><p>mento: não ganhamos mais tempo quando vamos mais rápido. A liquidez da modernidade faz</p><p>com que já estejamos rápido demais. O tempo, na modernidade, passou a ser aquilo que vai,</p><p>mas o conhecimento se apreende a partir do que dura. O tempo, na modernidade líquida, faz</p><p>com que sejamos vários “eus”. Mas se analisarmos pela ótica bergsoniana, ele nos arremessa</p><p>em um mundo onde cada um, de modo particular, encontra sua duração.</p><p>78</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>UM DIÁLOGO SOBRE A EDUCAÇÃO A PARTIR DA FLUIDEZ E DA DURAÇÃO</p><p>Pensar o sujeito em uma sociedade líquida, caracterizada pela efemeridade, transito-</p><p>riedade e liquidez e, ao mesmo tempo, pensá-lo como duração, parece paradoxal. Outro nível,</p><p>talvez ainda mais complexo, é analisar estes conceitos sob o prisma da educação.</p><p>De acordo com Bauman (2016), “desde que os antigos sábios gregos inventaram a noção</p><p>de Paideia foi preciso mais de dois mil anos para transformar a ideia de ‘educação permanen-</p><p>te’”. Porém, as evidências dessa transformação aconteceram nos últimos anos, por conta de</p><p>uma acelerada mudança na visão da sociedade. A história da pedagogia sempre foi, portanto,</p><p>atravessada por momentos nos quais as estratégias usadas perderam espaço com relação à rea-</p><p>lidade e precisaram ser reformadas.</p><p>As diversas metodologias de ensino, porém, sempre trabalham com o conhecimento de</p><p>maneira fragmentada, por áreas de conhecimento, por disciplinas, dividindo o tempo em ho-</p><p>ras-aula, semestres ou anos letivos. Assim como o sujeito é, por sua essência, duração, também</p><p>o conhecimento é duradouro Ele não pode ser talhado, mas deve ser visto como uma conti-</p><p>nuidade. Os métodos educativos, sempre pensados dentro de uma fragmentação, vão contra o</p><p>princípio da duração proposto por Bergson.</p><p>Bauman (2008) aborda a educação sob dois prismas: no primeiro, influenciado por Fou-</p><p>cault, ele se debruça a demonstrar como a escola foi essencial para o estabelecimento da ordem</p><p>como objetivo da modernidade. Foi erigida como um local no qual as ambições do Estado se</p><p>concretizaram. A escolarização foi um projeto no qual a formação dos sujeitos passou a ser</p><p>responsabilidade da sociedade, especificamente do governo.</p><p>A escola passou a ser regida por conhecimentos e valores universalizados, a partir da no-</p><p>ção burguesa de ‘ordem’. Os professores, a serviço dos interesses burgueses e do Estado foram</p><p>investidos como os únicos capazes de governar os indivíduos em sua suposta ignorância, im-</p><p>pondo-lhes a visão burguesa e eurocêntrica de vida moral. Bauman (2008) descreve a educação</p><p>escolarizada como uma fábrica de ordem, cujo objetivo era a produção</p><p>de corpos dóceis, efi-</p><p>cientes e disciplinados. É por este motivo que, segundo Bauman, a escola está em crise: porque</p><p>houve, na passagem da modernidade sólida para a líquida, uma decadência da filosofia herdada.</p><p>No segundo prisma ele amplia seu olhar sobre a educação escolarizada e afirma que a escola,</p><p>tendo sido concebida para um mundo no qual a ordem imperava e que, o que era sólido se desman-</p><p>chava, sempre com a promessa de algo ainda mais sólido, tinha por objetivo o conhecimento para</p><p>longa duração, com base em uma educação que tinha o intuito de fazer com que os aprendizes levas-</p><p>sem o conhecimento por toda a vida. Assim, o conhecimento tinha valor estável num mundo sólido.</p><p>A educação formaria um sujeito que duraria a vida inteira. Com a passagem da socieda-</p><p>de sólida para a líquida, esta garantia esvaiu-se. A solidez, a imutabilidade e a estabilidade não</p><p>fazem mais parte do mundo no qual vivemos. A sociedade mudou muito e a escola estagnou,</p><p>não está preparada para atender às demandas da atual sociedade. O “preparar para a vida” pro-</p><p>posto na sociedade sólida ganhou outros contornos.</p><p>De acordo com Bauman (2016), “a cada dia, o volume de novas informações excede mi-</p><p>lhões de vezes a capacidade do cérebro humano de retê-las. A mudança da sociedade moderna</p><p>de sólida para um estágio líquido coincide [...] com a passagem da ‘sociedade da disciplina’</p><p>para a ‘sociedade de desempenho’”. A partir dessa afirmação, pode-se fazer um paralelo refe-</p><p>rente ao que Bergson propõe como duração. Para que possamos compreendê-la, ele instaura o</p><p>método da intuição.</p><p>Este método é uma apreensão direta da nossa consciência. É um método distinto daquele que</p><p>o conhecimento científico e do conhecimento comum proporcionam, e que geram, por assim dizer,</p><p>conhecimento útil para uma “sociedade da disciplina”, que não condiz com a que vivemos hoje.</p><p>79</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Bauman (2001) compreende na modernidade líquida a transitoriedade, afirmando que</p><p>“tudo nasce com a marca da morte iminente e emerge da linha de produção com o ‘prazo de va-</p><p>lidade’ impresso ou presumido”. Essa afirmação nos remete ao fato de que tudo o que é pensado</p><p>de maneira fragmentada, sem levar em consideração a sua duração, torna-se volátil.</p><p>Assim, Bergson (1984, p. X) trabalha os conceitos, conforme mencionado anteriormen-</p><p>te. Segundo ele, “o conceito deixa escapar a natureza mesma do objeto concreto”. A inteligência</p><p>que se move nesse plano de abstrações, com esse “prazo de validade”, está fadada a permanecer</p><p>no nível de relações entre as coisas, sendo incapaz de apreender o que cada coisa tem de essen-</p><p>cial e de próprio. Assim, a inteligência, segundo o autor, ao criar conceitos, espacializa e fixa a</p><p>realidade, impossibilitando a compreensão da contínua mudança que ocorre nos processos, ou</p><p>seja, o “puro tornar-se”.</p><p>As reflexões bergsonianas acerca da educação envolvem a temática da moral. Bergson</p><p>(1979), em seus estudos de educação, suscita uma discussão acerca da educação moral que</p><p>toma por modelo a mística da educação que tende ao adestramento moral. Para ele, quando há</p><p>consciência do que é a verdadeira moral, o conhecimento que deve ser ensinado tanto o papel</p><p>da pressão social quanto a importância da aspiração.</p><p>Considerando a educação moral como a maneira de alunos a intuírem que moral e so-</p><p>ciabilidade aparecem a partir da evolução da vida, e que por meio desta intuição eles podem</p><p>ter a possibilidade de “abrir” o que está “fechado” na sociedade, Bergson (1979) não descarta</p><p>a importância da razão neste processo. Ele reconhece, pelo contrário, que a reflexão inteligente</p><p>é o que nos possibilita a sistematização dos deveres que são necessários para que a sociedade</p><p>seja organizada.</p><p>Bergson alerta, porém, para o fato de que a educação moral não pode restringir-se so-</p><p>mente à razão, mas primordialmente à “vontade que lhe é anterior” (1979, p. 35). Ainda sobre</p><p>a relação entre a reflexão inteligente e a vontade, ele destaca que:</p><p>Não se nega a utilidade, a necessidade mesmo de um ensino moral que se dirija à</p><p>pura razão, que defina os deveres e os ligue a um princípio do qual siga, no pormenor,</p><p>as diversas aplicações. É no plano da inteligência, e nele somente, que a discussão é</p><p>possível, e não há moralidade completa sem reflexão [...]. Mas se um ensino que se</p><p>dirija à inteligência é indispensável para dar ao senso moral garantia e sutileza; se ele</p><p>nos torna plenamente aptos para realizar nossa intenção quando nossa intenção for</p><p>boa, seria preciso que houvesse primeiro intenção, e a intenção assinala uma direção</p><p>da vontade tanto ou mais que da inteligência” (BERGSON, 1979, p. 128).</p><p>Destarte, orientar a vontade faz-se necessário para que a educação moral ocorra, e para</p><p>isso duas frentes podem ser tomadas: ou a do adestramento, que ocorre a partir da obediência</p><p>aos hábitos que não nos são pessoais; ou à misticidade, que trabalha sob a ótica de promover</p><p>uma vida próxima à moral que impulsionará o aperfeiçoamento do eu (BERGSON, 1979).</p><p>É na misticidade que o educador deve recorrer à intuição, para que o caminho para esta</p><p>simpatia se concretize. Bergson, em seus estudos, afirma que na vida em sociedade que esta-</p><p>mos, somos quase sempre guiados ao adestramento, pois ele age na impessoalidade. Porém, ele</p><p>sempre precisará ser complementado pela misticidade para que o homem possa aprimorar-se.</p><p>Na modernidade líquida, a durabilidade não é mais vista como uma qualidade, portanto,</p><p>as relações são úteis somente por um determinado tempo. Assim como propôs Bergson (1979),</p><p>a educação moral auxilia no primeiro desafio que a pedagogia deve enfrentar na atualidade. O</p><p>conhecimento hoje é visto como algo descartável, que será de utilização imediata e, caso seja</p><p>necessário, descartado em seguida.</p><p>80</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Quando a educação ocorre a partir da transformação do eu, da intuição, e não a partir do</p><p>mero acúmulo de conceitos, o sujeito passa a compreender os sentidos mais do que simples-</p><p>mente usar e “jogar fora”. A ideia de que o ensino é um produto passa a ser descartada a partir</p><p>do momento em que o sujeito passa a transforma-se a partir da compreensão dos fenômenos.</p><p>A durabilidade de conceitos para a qual a pedagogia foi pensada passou a ceder lugar a</p><p>uma necessidade de conhecimento instantâneo, que só é possível quando ocorre a transforma-</p><p>ção do eu profundo em contrapartida ao eu superficial, que utiliza-se do uso de conceitos para</p><p>a apreensão da realidade.</p><p>Na fase sólida da sociedade, portanto, a proposta da pedagogia era ensinar os conceitos,</p><p>fixa-los, para que a quantidade de conhecimento fosse quantificada, sem a necessidade de com-</p><p>preender a sua essência e de refletir criticamente quando utilizá-los. Já na fase líquida da socie-</p><p>dade, cuja demanda é por funções que rapidamente se esvaem, é necessário que se aprenda por</p><p>analogia, pela linguagem metafórica, que seja capaz de apreender, pela intuição, o verdadeiro</p><p>sentido do que está sendo aprendido.</p><p>Nenhum tempo da história foi tão desafiador quanto este, que nos coloca frente a frente</p><p>com uma sociedade altamente volátil, e em contrapartida a um ensino conceitual, de formas</p><p>pré-definidas. A saturação de informações está tomando conta da nossa era líquida, por isso,</p><p>mais do que nunca, faz-se necessário atuar no campo do eu profundo para compreender a arte</p><p>de aprender e apreender.</p><p>CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>A Filosofia, assim como a Sociologia, não é caracterizada por conteúdos, mas sim, por</p><p>atitudes que o homem, na busca constante pelo conhecimento, toma frente à realidade que lhe</p><p>é apresentada. É o questionamento, a reflexão, o desafio a esta realidade previamente dada. É a</p><p>partir desta busca por soluções que novas questões vão tomando forma.</p><p>Trazer uma reflexão sobre educação a partir de um conceito sociológico, neste caso, de</p><p>Modernidade Líquida, e pensá-lo junto a um conceito filosófico mostra que a reflexividade</p><p>do</p><p>homem frente ao seu tempo faz-se necessária, pois é preciso compreender a sociedade como ela</p><p>é, para onde ela caminha, e ao mesmo tempo questionar as vontades humanas e analisar o co-</p><p>nhecimento como ele é. Não há como pensar em propostas de educação sem pensar a sociedade.</p><p>Esta análise não se propôs a classificar verdades ou inverdades postas pela linguagem. A</p><p>proposta foi analisar a educação à luz dos conceitos de fluidez de Bauman e de duração de Berg-</p><p>son, observando se o acúmulo de conhecimento ainda é a melhor maneira de ter conhecimento.</p><p>Não é possível pensar em estudar a sociedade e seus indivíduos sem pensar nos sujeitos: seres</p><p>estes que raciocinam, pensam, transformam.</p><p>A sociologia, portanto, pode questionar-se através da reflexão filosófica, sobre este su-</p><p>jeito que a compõe. Estes questionamentos devem ser feitos a fim de fortalecer suas verdades</p><p>científicas. Há, entre elas, uma reciprocidade. A filosofia tem por função estimular as reflexões</p><p>que os métodos científicos visam comprovar. Pode-se afirmar, assim, que a filosofia tem ampla</p><p>contribuição para a observação da sociedade como ela é.</p><p>No tempo líquido em que vivemos, como propôs Bauman em sua teoria sobre Moder-</p><p>nidade Líquida, as mudanças na sociedade são notáveis e, de certa forma, preocupantes. O</p><p>próprio significado do conhecimento e a maneira como ele é produzido, assimilado e como será</p><p>utilizado precisa ser questionado. Assim, faz-se necessário não somente o acúmulo de concei-</p><p>tos, que, conforme Bergson, fragmentam e especializam a realidade, mas sim, mas o pensamen-</p><p>to crítico, aquele que apreender o mundo a partir da sua duração, da sua totalidade. Se não for</p><p>assim, estes conhecimentos adquiridos serão incapazes de dialogar com o momento presente.</p><p>81</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>A descoberta da duração, por Bergson, bem como do método da intuição para apreen-</p><p>dê-lo, transformou a maneira de pensar os conceitos que são, até hoje, ensinados de maneira</p><p>aleatória, muitas vezes descontextualizados e sem que haja uma finalidade prática para eles. A</p><p>partir da duração, podemos compreender uma série de equívocos nos processos educacionais, e</p><p>é a partir dela que se pode empreender uma busca por soluções para estes problemas que, apesar</p><p>de antigos, nos parecem tão atuais.</p><p>Foi a partir da intuição da duração que Bergson apresentou inovadoras concepções filo-</p><p>sóficas sobre psicologia, conhecimento, memória, relação entre a matéria e o espírito, evolução</p><p>da natureza, moral, e muitas outras vertentes. Todas estas vertentes se cruzam com as teorias da</p><p>educação, pois têm estreita relação com ela.</p><p>A maneira com que Bergson aborda a questão da ética, trabalhada anteriormente, pode</p><p>ser considerada um alicerce à teoria da educação que temos hoje: o objetivo de Bergson sempre</p><p>foi, conforme ele mesmo afirmava, aproximar sua filosofia da vida (BERGSON, 1999), e é isso</p><p>que se propõe a partir desta análise: usar a teoria da duração e aplicá-la à educação em tempos</p><p>de fluidez da sociedade.</p><p>Bauman (2001) colabora com esta afirmação dizendo que mesmo que o sistema edu-</p><p>cacional hoje pareça limitado, há poderes de transformação suficientes para que se possa con-</p><p>siderá-lo um dos mais promissores do nosso tempo. A educação ainda é, portanto, uma arma</p><p>poderosa, porém, é preciso repensá-la.</p><p>O conhecimento que hoje é produzido esvai-se com facilidade, os conteúdos aprendidos</p><p>o são, muitas vezes, com o objetivo de ser aprovado em alguma prova. Bauman (2001) afirma</p><p>que em nosso mundo volátil, de mudanças instantâneas, os conhecimentos sólidos e a estabili-</p><p>dade outrora apresentada tornam-se desvantagens. Ele vê a reforma das estratégias educacio-</p><p>nais como uma grande possibilidade de mudança. O que mudou, segundo Bauman, foi o mundo</p><p>fora da escola, e não a escola. Bauman afirma que “a arte de viver num mundo hiper saturado</p><p>de informação ainda não foi apreendida. E o mesmo vale também para a arte ainda mais difícil</p><p>de preparar os homens para esse tipo de vida” (2010, p. 60).</p><p>Para ele, aproximar a escola da vida é a chave. Com a saturação de informações, é neces-</p><p>sário criar a consciência crítica, cientes de que a educação ocorre também em outros contextos,</p><p>como as mídias, os espaços públicos, a família, os movimentos sociais, expandindo, assim, a</p><p>abrangência da educação, que acompanha o sujeito em todas as suas vivências.</p><p>Destarte, nota-se que são necessários novas maneira e pensar, novos métodos, novos</p><p>conceitos para que nossa experiência possa ser transformada em conhecimento. Para que os su-</p><p>jeitos enfrentem os desafios que hoje lhes são propostos, é preciso colocar-se acima dos dados</p><p>da experiência. A percepção de cada sujeito, para que seja cada vez mais ampliada, precisa da</p><p>intuição para apreender-lhe o sentido puro.</p><p>Os estudos de Bergson, mesmo que não sejam contemporâneos aos de Bauman, podem</p><p>ser revisitados e aplicados, firmando a sua atemporalidade frente às mudanças que a sociedade</p><p>enfrenta. A filosofia de Bergson é ampla e aberta à renovação dos seus estudos, que podem</p><p>contribuir de maneira significativa para a discussão de importantes problemas educacionais da</p><p>nossa modernidade líquida, na qual nossos sujeitos fluem.</p><p>Esta proximidade entre a sociologia e a filosofia permite que surjam novas ideias, e que</p><p>as já existentes sejam refletidas a partir de novas lentes. A filosofia é uma atitude perante a so-</p><p>ciedade. A sociologia é a ciência concreta que visa compreender esta mesma sociedade. Mesmo</p><p>que cada uma ande por suas estradas, perfazendo sua história, quando, juntas, potencializam-se.</p><p>Agradecimentos: ao Uniedu, pelo financiamento da pesquisa.</p><p>82</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 61-72, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>Bauman, Z. (2016, 04 julho). A educação deve ser pensada pela vida inteira. Jornal O Globo.</p><p>http://www.culturaambientalnasescolas.com.br/noticia/educacao/zygmunt-bauman:-a-educa-</p><p>cao-deve-ser-pensada-durante-a-vida-inteira</p><p>Bauman, Z. (2008). A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Zahar,</p><p>2008.</p><p>Bauman, Z. (2018, 10 janeiro). Entrevista à Revista Carta Capital. https://www.cartacapital.</p><p>com.br/opiniao/zygmunt-bauman-e-a-escola/</p><p>Bauman, Z. (1999). Modernidade e ambivalência. Zahar.</p><p>Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Zahar.</p><p>Bauman, Z. (2013). Sobre educação e juventude: conversas com Ricardo Mazzeo. Zahar.</p><p>Bergson, H. (1979). A evolução criadora. Zahar.</p><p>Bergson, H. (1927). Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Edições 70.</p><p>Bergson, H. (1999). Matéria e memória. Martins Fontes.</p><p>Bergson, H. (2006). O pensamento e o movente. Martins Fontes.</p><p>Foucault, M. (2002). Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Editora Vozes.</p><p>Leopoldo e Silva, F. (1984). Henri Bergson: Cartas, conferências e outros escritos. Victor</p><p>Civita.</p><p>Lima, J. F. L. (2010). A pedagogia e o cenário pós-moderno: sobre as possibilidades de conti-</p><p>nuar educando. Educere et Educare: Revista de Educação, 10(5) 1-12.</p><p>Saviani, D. (1999). Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses</p><p>sobre educação e política! Autores Associados.</p><p>Veiga-Neto. A. (2003). Foucault e a Educação. Autêntica.</p><p>dos líderes de Judá, (NAKANOSE; PEDRO; TOSELI, 1998; SCHMITT, 2020;</p><p>SOUZA, 2020).</p><p>Para finalizar, Nakanose, Pedro e Toseli (1998) descrevem o problema que assolava co-</p><p>munidade de Judá da seguinte forma:</p><p>Por trás das leis do templo, existe, na verdade, um rigoroso sistema de arrecadação</p><p>de tributos, que sustenta a elite religiosa judaica e o império persa. As famílias pobres</p><p>sofrem a dor da miséria, da fome, da doença, do desemprego, da falta de moradia,</p><p>da morte... E sofrem a humilhação de serem consideradas pelo sistema do templo</p><p>gente inferior, impura, desprezível. São excluídas da sociedade e, segundo a religião</p><p>oficial, rejeitadas por Deus. É dessa profunda condição de abandono que sobe o grito</p><p>de esperança e de fé da comunidade de Terceiro Isaías: é possível mudar a história e</p><p>construir um mundo novo, baseado no direito e na justiça.” (NAKANOSE; PEDRO;</p><p>TOSELI, 1998, p. 14).</p><p>ANÁLISE TEXTUAL</p><p>O versículo 17b narra um acontecimento extraordinário em que Deus “criará” novos</p><p>céus e nova terra. Lane (2011) comenta que a função verbal indica uma ação presente e con-</p><p>tínua – “crio” ou “criando”. Westermann (1969), de forma semelhante a Lane (2011), explica</p><p>que o verbo אֵ֛רוֹב (criar) possui o sentido de uma criação nova, porém, isto não significa afirmar</p><p>que céu e terra serão destruídos, mas que todas as coisas serão renovadas milagrosamente. No</p><p>contexto, essa nova criação está relacionada com a vida e a sociedade livre da violência e ex-</p><p>ploração testemunhadas no exílio e na colonização Persa.</p><p>A parte b do versículo 17 ressalta que nesta nova terra não haverá lugar para lembranças</p><p>que causem tristeza. Primeiro, demonstra o sofrimento e a presença da tristeza como sentimento</p><p>no pós-exílio e, diante disso propõe uma superação, não apenas da memória de sofrimento, mas</p><p>também de todo histórico passado do povo hebreu que segundo a teologia da época, motivou o</p><p>exílio (p.ex. Is 40:2). Ou seja, a possibilidade de restauração necessitava de uma superação das</p><p>memórias de dor. Elas existem, mas não teriam mais lugar no coração.</p><p>É identificado no versículo 18a um imperativo para que os judeus se alegrem (LANE,</p><p>2011). O profeta diz que os judeus devem se regozijar para sempre (v. 18b). Paul (2012) ressalta</p><p>que nesse novo momento Jerusalém seria o epítome, o próprio símbolo da alegria. O tema da</p><p>alegria e do regozijo assumem o tom central da passagem como uma forma de resposta, uma</p><p>mensagem de esperança diante do sofrimento passado.</p><p>O verso 19 narra a alegria do próprio Deus pela então reconstruída Jerusalém e o prazer</p><p>que terá no seu povo escolhido. Paul (2012) observa a possível influência de Jeremias 31:15-16</p><p>neste versículo, onde a lógica da alegria é proposta como recompensa ao choro. Segundo Wes-</p><p>termann (1969), é o fim do pranto e das lamentações.</p><p>A exagerada mudança temporal com relação a idade das crianças e dos idosos no versí-</p><p>culo 20 tem sentido poético (hiperbólico) e aponta, segundo Lane (2011), para uma mudança</p><p>no espaço da vida, como uma nova realidade diante da anterior de violência e exploração cujos</p><p>impactos eram sentidos na perda de qualidade e na abreviação da vida frente a opressão colo-</p><p>nial. Os novos céus e terra são um espaço criado para uma vida onde a longevidade surgiria</p><p>como bênção (PAUL, 2012).</p><p>11</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 5-13, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Na nova Jerusalém, o povo não construirá casas ou plantará vinhas em vão, (versos</p><p>21 e 22a). Segundo Lane (2011) esta combinação aponta para atividade urbana e rural sem a</p><p>interferência e exploração inimiga, era uma mensagem de esperança sobre a possibilidade de</p><p>um mundo onde haveria justiça nas relações trabalhistas, onde o fruto do trabalho poderia ser</p><p>usufruído pelo próprio trabalhador (WESTERMANN, 1969).</p><p>O versículo 23 denuncia a geração de filhos para morrer na guerra de forma precoce</p><p>(LANE, 2011). A mensagem propõe uma parábola e chama os filhos de semente bendita de</p><p>YHWH, objetivando o crescimento futuro da nação.</p><p>Antes mesmo de clamar, o povo será ouvido (verso 24). Essa mensagem assume o retor-</p><p>no da relação de YHWH com o povo, essa mensagem de esperança garante que ao invocarem</p><p>a Deus, não somente serão ouvidos, mas seguramente terão sua resposta (WESTERMANN,</p><p>1969), uma clara restauração da aliança que a teologia no pós-exílio (Ne 9) entendeu estar rom-</p><p>pida devido ao pecado dos pais (LANE, 2011).</p><p>O verso 25, para Westerman, (1969), segue de forma abrupta e não se ajusta bem com</p><p>o texto anterior. Paul (2012) chama a atenção para a metáfora onde o lobo e o cordeiro estão</p><p>dividindo a mesma área de pastagem. A passagem colocada na sequência textual, ainda que não</p><p>indique o mesmo escrito, aponta para a intenção do redator. Ao selecionar e justapor estas pas-</p><p>sagens, dessa forma, o sofrimento e aflição pela exploração no contexto do exílio e da coloni-</p><p>zação persa seriam superados pela nova criação. Nesta, a violência e a exploração simbolizadas</p><p>pelos animais vorazes seria conciliada com a situação pacífica e carente do povo, simbolizada</p><p>pelos animais dóceis.</p><p>CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>A tomada de Jerusalém por Nabucodonosor resultou no exílio, uma situação de desespe-</p><p>ro e sofrimento, tanto pela nova condição quanto pela dor do pós-guerra e por tudo que perde-</p><p>ram. Diante desse quadro de sofrimento, o livro de Isaias atuou como mensagem de esperança</p><p>para reconstrução do projeto de vida no retorno do exílio. Segundo Zabatiero (2006), o texto de</p><p>Isaías apresenta a história de Judá sendo julgada por Deus devido aos seus pecados, mas que</p><p>independentemente disso continuava sendo o povo de Deus; portanto, perdão e renovação da</p><p>aliança eram possibilidades reais, pois o Senhor, seu Deus, mantinha-se fiel. A mensagem de</p><p>esperança de Is 65:17-25 possui status de promessa de que a esperança não estava perdida e que</p><p>eles viveriam o tempo de júbilo e descanso no Deus da salvação.</p><p>A pandemia tem sido desafiadora para todos e, de forma semelhante a Judá, devemos</p><p>manter a esperança de que todo sofrimento será convertido em alegria e que experimentare-</p><p>mos um novo tempo. No Brasil, são aproximadamente 625.000 óbitos até fevereiro de 2022</p><p>(CORONAVÍRUS BRASIL, 2022), mas, em meio a dor e sofrimento temos como alento tem</p><p>um número próximo a 22.000.000 de casos de pessoas que se recuperaram (CORONAVÍRUS</p><p>BRASIL, 2022).</p><p>Assim como Judá, que recebeu a promessa de que poderia se manter firme na esperança</p><p>de que novos céus e nova terra se tornariam realidade (Is 65:17), que vida longa os alcançaria</p><p>(Is 65:20) em um lugar de completa paz e prosperidade inigualável (Is 65:21-25), há a possibi-</p><p>lidade de a comunidade de fé manter a esperança de que a atual realidade está sob o controle de</p><p>um Deus que se mantém fiel à sua aliança.</p><p>Considerando a análise da perícope de Is 65:17-25, realizada ao longo deste trabalho, é</p><p>possível concluir que a intenção primária do autor do Trito-Isaías era de transmitir uma mensa-</p><p>gem de esperança para um povo que se encontrava desesperançado pelas pressões ocorridas ao</p><p>longo do cativeiro babilônico.</p><p>12</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 5-13, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Judá experimentou grande fracasso no seu relacionamento com Deus devido a sua in-</p><p>fidelidade, atraindo desta forma juízo e dor, mas também teve o privilégio de ter sua aliança</p><p>restaurada pelo Senhor de Israel.</p><p>Hoje, é possível refletir no referido texto isaiano, entendendo o potencial de esperança e</p><p>cura da mensagem de um futuro próspero e de paz. Essa proposta identificou a possibilidade de</p><p>identificação entre passagens bíblicas direcionadas à situações de sofrimento como referenciais</p><p>para uma abordagem de problemas e sofrimento na atualidade, como os vivenciados nos piores</p><p>momentos da pandemia de Covid-19.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BARREDO, M. Á. Encaje de Is 56-66 Enel Arco Exegético sobre el libro de Isaías.Enel s. XX</p><p>e Inicios Del Actual. Carthaginensia, v. 32, p. 1-31, 2016.</p><p>BENAA. Bíblia de Estudo Nova Almeida Atualizada. Barueri-SP: Sociedade Bíblica do</p><p>Brasil, 2018.</p><p>BROTZMAN, E. R.; TULLY, E. J. Crítica Textual do Antigo Testamento: Uma Introdução</p><p>Prática. São Paulo: Vida Nova, 2021.</p><p>BRASIL. COVID-19: Painel de controle. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso</p><p>em: 28 jan. 2022.</p><p>COUTO, M. T. et al. Considerações sobre o impacto da COVID-19 na relação indivíduo-</p><p>sociedade: da hesitação vacinal ao clamor por uma vacina. Saúde Soc., São Paulo, v. 30, n. 1,</p><p>p. 1-11, 2021.</p><p>CROATTO, J. S. Isaías: A Palavra Profética e sua Releitura Hermenêutica. São Paulo:</p><p>Editora Sinodal, 1989.</p><p>CROATTO, J. S. El Origen Isaiano de Las Bienaventuranzas de Lucas. Revista Bíblica, n.</p><p>65, ano 59, p. 1-16, 1997.</p><p>CROATTO, J. S. Del sufrimiento, al de La esperanza: comentário exegetico de Isaias 65,17-</p><p>25. Cuadernos de Teología, v. 19, p. 1-37, 2000.</p><p>LANE, W. L. Salvação integral: uma análise sêmio-discursiva de Isaías 65.17-25. 2011.</p><p>(Tese de Doutorado) – Escola Superior de teologia, Programa de Pós-Graduação em Teologia.</p><p>São Leopoldo: EST/PPG, 2011.</p><p>MACEDO, L. D.; MACEDO, J. R. D. A pandemia de Covid-19: aspectos do seu impacto na</p><p>sociedade globalizada do século XXI. Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas, v. 17, n. 30,</p><p>ano 17, p. 1-14, 2020.</p><p>MATOS, S. H. M. de. Não Temas! Gritei Por Teu Nome: Estudo da Concepção Materna</p><p>de javé em Dêutero-Isaías a partir da Análise Exegética de Is 43, 1-7. 2013. (Dissertação) –</p><p>Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião,</p><p>Universidade Metodista de São Paulo - UMESP, 2013.</p><p>13</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 5-13, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>NAKANOSE, S.; PEDRO E. P.; TOSELI, C. O Terceiro Isaías (56-66). São Paulo: Editora</p><p>Paulus, 1998.</p><p>OPAS. Novos casos de COVID-19 aumentam em muitos países das Américas. Brasília,</p><p>DF. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/14-7-2021-novos-casos-covid-19-</p><p>aumentam-em-muitos-paises-das-americas. Acesso em: 28 jul. 2021.</p><p>PAUL, S. M. Isaiah 40–66: Translation and Commentary. Grand Rapids, MI; Cambridge,</p><p>UK: William B. Eerdmans Publishing Company, 2012.</p><p>RAD, G. Teologia no Antigo Testamento. São Paulo: ASTE, 2006.</p><p>SCHMITT, F. Um Chamado para a Vida. Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 5, n. 2,</p><p>p. 381-403, 2013.</p><p>SCHMITT, G. Um projeto de esperança: os oráculos de salvação em Dêutero-Isaías. 2020.</p><p>(Tese de Doutorado) – Escola Superior de teologia, Programa de Pós-Graduação em Teologia.</p><p>São Leopoldo: EST/PPG, 2020.</p><p>SICRE, J. L. Profetismo em Israel: o profeta, os profetas. A Mensagem. Petrópolis-RJ:</p><p>Vozes, 1996.</p><p>SOUZA, J. N. Dêutero-Isaías: Entre Desolação e Consolação. Perspect. Teol., Belo</p><p>Horizonte, v. 52, n. 1, p. 211-225, 2020.</p><p>WESTERMANN, C. ISAIAH 40-66. The Westminster Press., Philadelphia, Pennsylvania, 1969.</p><p>ZABATIERO, J. P. T. A Boa-Nova em Isaías 40-66: um evangelho antes do Evangelho.</p><p>Estudos Bíblicos, Petrópolis, v. 24, n. 89, p. 25-32.2006.</p><p>14</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 5-13, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>15</p><p>O TRANSPORTE DE VALORES NO BRASIL E OS DESAFIOS</p><p>COM O AUMENTO DA CRIMINALIDADE</p><p>TRANSPORT OF VALUES IN BRAZIL AND THE</p><p>CHALLENGES WITH THE INCREASE IN CRIMINALITY</p><p>Yan gomes dos Santos 1</p><p>Felipe Pereira de Melo 2</p><p>Juliane Moreira rocha 3</p><p>RESUMO</p><p>O cenário da criminalidade no Brasil apresenta uma realidade cada vez mais alarmante no tocante aos ataques rea-</p><p>lizados ao transporte de valores nos estados Brasileiros, visto que devido à grande quantidade de estradas e a carên-</p><p>cia de efetivo policial, a atuação das instituições de segurança pública tornam-se limitadas. Neste sentido, torna-se</p><p>latente a preocupação com a segurança das instituições bancárias, bem como da própria sociedade econômica em</p><p>geral. Diante deste cenário, a pesquisa trouxe como problemática identificar os principais desafios da atividade de</p><p>transporte de valores no Brasil com uma abordagem qualitativa de natureza aplicada de caráter exploratório, sendo</p><p>seu procedimento a pesquisa de campo, utilizando em sua análise o método de Bardin. Ainda, as poucas pesquisas</p><p>neste segmento apontam uma necessidade de ampliação da temática no meio acadêmico, tendo em vista que há</p><p>uma lacuna teórica de grandes proporções a respeito do tema.</p><p>Palavras-chave: Transporte de Valores; Segurança Privada; Organizações Criminosas; Brasil.</p><p>ABSTRACT</p><p>The criminality scenario in Brazil presents an increasingly alarming reality with regard to attacks carried out on the</p><p>transport of valuables in the Brazilian states, since due to the large number of roads and the lack of police force,</p><p>the performance of public security institutions becomes if limited. In this sense, the concern with the security of</p><p>banking institutions, as well as of economic society in general, becomes latent. In view of this scenario, the rese-</p><p>arch brought as problematic to identify the main challenges of the activity of transporting values in Brazil with a</p><p>qualitative approach of applied nature of exploratory character, being its procedure the field research, using in its</p><p>analysis the method of Bardin. Still, the few researches in this segment point to a need to expand the theme in the</p><p>academic environment, considering that there is a theoretical gap of great proportions regarding the theme.</p><p>Keywords: Transport of Values; Private security; Criminal Organizations; Brazil.</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>1 Graduado em gestão de segurança privada, UNICESUMAR, Av. Guedner, nº 1610 maringá-PR. Site: www.</p><p>uniasselvi.com.br.</p><p>2 Orientador, Docente do Curso de Gestão de Segurança Privada, UNICESUMAR, Av. Guedner, nº 1610 maringá-</p><p>PR. Site: www.uniasselvi.com.br.</p><p>³ Docente do curso de gestão de segurança privada, UNICESUMAR, Av. Guedner, nº 1610 maringá-PR. Site:</p><p>www.uniasselvi.com.br.</p><p>16</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>1 INTRODUÇÃO</p><p>Segundo a ABTV (Associação Brasileira de Transporte de Valores), de janeiro de 2019</p><p>a junho de 2020 foram registradas 72 situações de sinistro, sendo que 36 foram consumados,</p><p>um número bem menor do que o ano de 2018, mas consequentemente ainda é um número rela-</p><p>tivamente alto trazendo impactos significativos para toda à sociedade (ESTATÍSTICAS, 2020).</p><p>Dentre os fatores de influência para a crescente ação de criminosos envolvendo o trans-</p><p>porte de valores, pode-se afirmar o alto desenvolvimento de Organizações Criminosas, que</p><p>tentados pela quantidade de numerários financeiros transportados em carros-fortes, promovem</p><p>ações de extrema violência a fim de atingir seu intento criminoso.</p><p>Além de trafegar por rodovias parcialmente desertas, os Vigilantes ainda enfrentam ou-</p><p>tro problema, sendo este a questão do armamento defasado e antigo, de acordo com o presi-</p><p>dente da SindForte/RN (Sindicato de Transporte de Valores do Rio Grande do Norte) Márcio</p><p>Figueiredo em entrevista à Tribuna do Norte, os Vigilantes não estão dando mais conta de deter</p><p>as ações com revólveres .38 e espingardas calibre .12, ainda de acordo com Márcio Figueiredo,</p><p>seria necessário reformular toda a lei que rege a segurança privada no Brasil (Lei nº 7.102, de</p><p>20 de junho de 1983). Pensando nestas perspectivas relacionadas à fragilidade da temática essa</p><p>pesquisa procura trazer sugestões a fim de que se possa ter maior eficiência e eficácia na ativi-</p><p>dade de transporte de valores na Segurança Privada.</p><p>É perceptível que a falta de segurança tem assolado a maioria dos brasileiros e é um</p><p>grande problema em nossa sociedade atual, portanto, para suprir essa necessidade, estes indi-</p><p>víduos têm procurado cada vez mais empresas especializadas no setor privado de segurança,</p><p>contudo este segmento de trabalho, com o avanço da criminalidade, tem tido muita dificuldade</p><p>em prestar seus serviços, estas dificuldades são causadas principalmente pela legislação defa-</p><p>sada, pouco poder bélico e organizações criminosas especializadas em ataques a veículos de</p><p>transporte de valores.</p><p>Esta pesquisa está dividida em sete tópicos, introdução, segurança privada no</p><p>Brasil, trans-</p><p>porte de valores, metodologia, análise de dados e resultados, considerações finais e referências.</p><p>2 SEGURANÇA PRIVADA NO BRASIL</p><p>No Brasil, com a evolução do período imperial, tendo este durado de 1822 a 1889 e</p><p>passando por dois imperadores, Dom Pedro I e Dom Pedro II, quando nosso país se declarou in-</p><p>dependente, não mais sendo uma mera colônia de Portugal, a segurança privada já existia, mas</p><p>naquela época ainda se confundia o que era público e privado, no entanto, quando se instaurou</p><p>a República, a segurança evoluiu das milícias privadas para os serviços orgânicos de segurança</p><p>pública e privadas. Foi então que, por meio dos Decretos-Lei nº 1.034, de 9 de novembro de</p><p>1969 e nº 1.103, de 21 março de 1970, as empresas de segurança e vigilância armada privada,</p><p>surgiram em nosso País (MORETTI, 2020).</p><p>Posteriormente, esses decretos foram revogados pela Lei n° 7.102, de 20 de junho de</p><p>1983, que dispõe sobre a segurança para estabelecimentos financeiros, estabelecendo normas</p><p>para constituição e funcionamento das empresas particulares que exploravam os serviços de</p><p>vigilância e de transporte de valores em nosso país, um ponto importante é que na década de</p><p>1960, os assaltos às instituições financeiras foram cruciais para o surgimento das empresas de</p><p>segurança privada no Brasil (BRASIL, 1983).</p><p>17</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Surgiram com o objetivo de proteger patrimônios, pessoas e realizar transporte de va-</p><p>lores. Os primeiros trabalhadores tinham variadas denominações, como: vigias, guardiões, ro-</p><p>dantes, fiscais de pátio, fiscais de piso e similares; atuavam em estabelecimentos industriais,</p><p>comerciais ou residenciais, tais trabalhadores eram contratados por empresas de segurança ge-</p><p>renciadas por coronéis aposentados, que adotavam a disciplina militar. Pode se dizer que o</p><p>começo da segurança privada no Brasil foi marcado por uma disciplina paramilitar.</p><p>A segurança privada atualmente está em constante crescimento, conforme mostra os</p><p>dados do estudo do setor de segurança privada tendo 4.425 empresas especializadas registradas</p><p>na Polícia Federal e de acordo com o mesmo estudo, o setor também emprega cerca de 520.179</p><p>vigilantes (MORETTI, 2020).</p><p>Como cita Marcondes (2016), a segurança privada se divide em cinco segmentos, sendo</p><p>eles: vigilância patrimonial, transporte de valores, escolta armada, segurança pessoal privada,</p><p>curso de formação, extensão e reciclagem de vigilantes.</p><p>Tais segmentos, por sua vez, atuam de diferentes formas e cada um com suas</p><p>especialidades propriamente designadas especificamente para cada área de atuação, ainda</p><p>conforme Marcondes (2016), é importante ressaltar que para cada uma das cinco áreas citadas</p><p>a qual se divide a segurança privada, o profissional denominado como vigilante faz cursos</p><p>de extensão que o qualifica a exercer cargos anteriormente citados que se denominam como</p><p>extensões, levando em consideração que o vigilante também fará cursos de reciclagem a cada</p><p>dois anos também oferecidos pelas escolas de formação de vigilantes, todavia fiscalizadas pela</p><p>Polícia Federal.</p><p>Os segmentos, descrições e áreas de atuação estão sistematizados no Quadro 1:</p><p>Quadro 1 – seguimentos de atuação da Segurança Privada</p><p>Segmento Descrição Área de atuação</p><p>Vigilância</p><p>patrimonial</p><p>Preservação de bens e</p><p>patrimônio, prevenção de</p><p>risco provenientes de ações</p><p>criminosas.</p><p>- Bancos.</p><p>- Organizações comerciais e industriais</p><p>diversas.</p><p>- Órgãos públicos.</p><p>- Condomínios fechados, prédios ou</p><p>residências, shopping centers, estádios</p><p>de futebol, centros de exposições, casas</p><p>de eventos e espetáculos diversos,</p><p>cinemas, bares, restaurantes etc.</p><p>Segurança</p><p>pessoal</p><p>Acompanhamento e prote-</p><p>ção (geralmente empresá-</p><p>rios, executivos etc.).</p><p>- Empresários, políticos, VIPs e outros.</p><p>Curso de</p><p>formação</p><p>Treinamento e qualificação</p><p>de vigilantes.</p><p>- Atende empresas de segurança e profis-</p><p>sionais de segurança privada e pública.</p><p>18</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Escolta armada</p><p>Acompanhamento motori-</p><p>zado armado (geralmente</p><p>de empresários, executivos,</p><p>políticos, outros).</p><p>- Veículos de cargas, empresários, execu-</p><p>tivos, políticos, outros.</p><p>Transportes de</p><p>valores</p><p>Transporte de bens e nume-</p><p>rários de autovalor. - Bancos e instituições financeiras.</p><p>Fonte: elaborado pelos autores.</p><p>Assim, esse segmento de trabalho tem auxiliado a segurança pública, tendo em vista que</p><p>está presente em determinados pontos de centros urbanos e rurais defendendo não apenas bens</p><p>tangíveis, mas também intangíveis, sejam eles consumidores de seus serviços ou não. Confor-</p><p>me explica Melo, Tenório e Franco (2021), a segurança privada atualmente está mais presente</p><p>no meio urbano do que podemos imaginar, é uma área de extrema importância para a sociedade</p><p>tendo em vista que ela auxilia na prevenção de crimes.</p><p>3 O TRANSPORTE DE VALORES NO BRASIL</p><p>O transporte de valores é a utilização de veículos blindados que transporta grandes</p><p>numerários e que substitui um transporte comum, esta modalidade só é permitida a empresas</p><p>autorizadas pela Polícia Federal. É importante ressaltar que não apenas empresas especiali-</p><p>zadas podem fazer transporte de numerários ou bens com veículos especiais, mas empresas</p><p>orgânicas que possam optar por elas mesmas fazerem o transporte de seus bens e numerários</p><p>conforme detalha o art. 1º da Portaria nº 992, de 25 de outubro de 1995, que enquadra como</p><p>segurança privada os serviços de segurança desenvolvidos por empresas que tenham objeto</p><p>econômico diverso da vigilância ostensiva e do transporte de valores, que utilizem pessoal de</p><p>quadro funcional próprio, para a execução dessas atividades (BRASIL, 1995). Mesmo tendo</p><p>a opção de cuidarem de sua própria segurança e transporte, várias empresas e instituições</p><p>bancárias optam por terceirizar esses serviços por conta dos altos níveis de risco. Melo, Te-</p><p>nório e Franco (2021) afirmam que escolta armada ou transporte de valores são as atividades</p><p>de segurança privada, aquela que visa garantir o transporte de qualquer carga ou de valores,</p><p>abrange tanto a ida quanto o retorno da equipe com o armamento e demais equipamentos e</p><p>pernoites, estritamente necessários.</p><p>Também chamado de carro-forte, o veículo especial utilizado pela segurança privada é</p><p>dotado de algumas especificações regidas pela Portaria nº 139/1984 Brasil (1984), tais como:</p><p>ter guarnição mínima de quatro vigilantes, carroceria furgão que resista a impactos a partir da</p><p>munição 9 mm, cabine metálica com vidros à prova de balas, divisões internas separando o</p><p>cofre da guarnição, sistema de escotilhas para tiro com tampa inviolável na parte externa do</p><p>veículo, tonelagem mínima de 1,35 T, tanque de combustível protegido com chapa de blinda-</p><p>gem, sistema de radiocomunicação VHF (ou UHF) e SSB, pneus traseiros com rodagem dupla.</p><p>Atualmente, esses veículos sofreram mudanças drásticas e têm evoluído com o passar</p><p>dos anos por conta de ataques de organizações criminosas. Mudanças estas que fizeram com</p><p>que as empresas de transporte de valores e fabricantes dos veículos mudassem o seu modelo e</p><p>adotassem designs diferenciados para o melhor desempenho de sua respectiva função.</p><p>19</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Além do carro-forte, o transporte de valores também ganhou outro veículo para o trans-</p><p>porte de valores, que é a adaptação de caminhões com maior capacidade carga totalmente blin-</p><p>dados, com um ou dois compartimentos. O modelo novo de transporte de valores está sendo</p><p>bastante utilizado por empresas que precisam transportar cargas de acentuado valor comercial,</p><p>sendo que atualmente apenas três empresas possuem autorização para utilizar estes veículos:</p><p>Brinks, Prosegur e Proforte.</p><p>De acordo com Osuna (2012), a implantação do veículo especial para o transporte de va-</p><p>lores chegou no Brasil por meio de empresas estrangeiras preocupadas em incutir a mentalidade</p><p>do transporte com segurança nas instituições financeiras,</p><p>ainda segundo o autor o setor privado</p><p>ditou as regras do desenho e das características de segurança dos carros-fortes, desde 1966 até</p><p>a regulamentação pelo Estado, em 1984, por meio da Portaria n° 139, tendo sido alterada meses</p><p>mais tarde pela portaria n° 511, de 5 de dezembro 1984 (BRASIL, 1984).</p><p>É importante ressaltar que mesmo sendo robusto e contendo uma grossa camada de</p><p>blindagem, esses veículos ainda são alvo de criminosos que muitas vezes tem êxito em concluir</p><p>suas práticas, utilizando explosivos e armamentos de contenção.</p><p>As organizações criminosas atualmente são um dos maiores problemas em nosso país,</p><p>de acordo com Reginato e Moreira (2015), as organizações criminosas estão entrelaçadas em</p><p>quase todos os setores e classes sociais do país, estas organizações estão ligadas à corrupção</p><p>e má administração pública. Ainda segundo os autores, com o início do regime militar, que</p><p>durou de 1964 a 1985, começaram a surgir as primeiras organizações criminosas, que tinham</p><p>por intuito desestabilizar o governo para que mudasse a forma do regime urgentemente, para</p><p>concretizar seu objetivo este grupo denominado “frente armada” efetuavam assaltos a banco,</p><p>atendados terroristas, sequestros e atendados a bomba. É importante ressaltar que devido a es-</p><p>ses ataques a instituições financeiras surgiu a Segurança Privada no Brasil.</p><p>Atualmente no Brasil existem diversas organizações criminosas, se destacando entre</p><p>elas o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho. Dentre as ações emanadas, tem-</p><p>-se o “novo cangaço”, como uma das ações mais violentas protagonizando verdadeiro atentado</p><p>à sociedade. O termo é agregado a esse segmento criminoso por conta das práticas utilizadas</p><p>pelos criminosos, que lembram o antigo cangaço brasileiro. Pinheiro e Abrel (2018) salientam</p><p>que o que mudou desde a época de Lampião foi apenas os meios de locomoção, o modus ope-</p><p>randi continua o mesmo, sendo eles, ação planejada e específica; considerável poder bélico;</p><p>prática de disparos de arma de fogo em via pública; ataques contra quarteis; enfrentamento às</p><p>forças policiais; utilização de material explosivo e, em alguns casos, o uso de reféns. Conforme</p><p>os mesmos autores os alvos desses criminosos são cidades pequenas com pouco contingente</p><p>policial e segurança pública, por serem localidades urbanas com baixo índice de criminalidade</p><p>e perto de rodovias, facilitando, assim, sua fuga.</p><p>3.2 ATAQUES A CARROS-FORTES</p><p>Entre 2015 e 2019, conforme explica Araújo (2019), em sua matéria no Jornal Metró-</p><p>poles, foram registrados um total de 355 ataques a carros-fortes em todo o país, resultando</p><p>em 151 vigilantes feridos e 24 que evoluíram a óbito, um número espantoso e alarmante. O</p><p>autor também reforça que os atuais veículos não são tão seguros contra alguns determinados</p><p>armamentos e que um dos pontos mais vulneráveis é parte de trás do veículo, que não possui</p><p>escotilhas para retardar a ação criminosa e, na maioria das vezes, é onde acontecem as abor-</p><p>dagens utilizando explosivos.</p><p>20</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Os dados mostram que o constante enfrentamento entre vigilantes e criminosos em todo</p><p>o território nacional, principalmente em rodovias onde as forças de segurança são mais au-</p><p>sentes, faz com que existam cenas de guerra e terror. Torna-se perceptível que os locais onde</p><p>aconteceram os maiores números de sinistros foram nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste,</p><p>sendo que esses ataques acontecem, na maioria das vezes, em rodovias estaduais e federais</p><p>abandonadas. Um dos casos mais recentes aconteceu no dia 4 de janeiro de 2022, no Pará, entre</p><p>as cidades de Bragança e Augusto Correia na BR 308, onde criminosos tentaram assaltar um</p><p>carro-forte utilizando explosivos, porém não obtiveram êxito em sua empreitada por não con-</p><p>seguirem abrir o cofre, conforme cita o jornalista Cavalieri (2022).</p><p>Com tantos atos de sinistro acontecendo e as ações do chamado novo cangaço, as em-</p><p>presas de transporte de valores vêm adquirindo novas tecnologias para tentar suprimir as ações</p><p>dos criminosos, como rádios em diversas frequências, rastreamento por satélite, cofres com</p><p>criptografia e serviços de telefonia 4G, como detalha a Associação Brasileira de Transporte de</p><p>Valores (ESTATÍSTICAS, 2020).</p><p>Para Barros (2019), todos os veículos de escolta ou transporte de valores devem ter um</p><p>sistema de rastreamento e um botão de pânico, em determinados locais o serviço telefônico</p><p>ou via rádio transmissor pode falhar, sendo assim, o botão de pânico pode ser uma válvula de</p><p>escape de um possível sinistro.</p><p>A necessidade de implementação de novas tecnologias faz-se necessária não somente</p><p>em aquisição de equipamentos, mas também de instrumentos e ferramentas que viabilizem a</p><p>melhoria dos processos em segurança privada.</p><p>4 METODOLOGIA</p><p>A presente pesquisa consiste em uma abordagem qualitativa de natureza aplicada de ca-</p><p>ráter exploratório, sendo seu procedimento a pesquisa de campo. O objetivo desta pesquisa que</p><p>é investigar os maiores problemas do transporte de valores no Brasil, utilizando para tanto de</p><p>entrevistas semi-estruturadas com profissionais que atuam na atividade de Segurança Privada,</p><p>no segmento de transporte de valores.</p><p>Com relação à abordagem qualitativa, segundo Creswell (2013 p. 25) “é uma abordagem</p><p>voltada para a exploração e para entendimento do significado que indivíduos e grupos atribuem</p><p>a um problema social e humano”. É qualitativa uma vez que vai em busca das percepções dos</p><p>profissionais do transporte de valores, avaliando contextos, condições, perspectivas, dentre ou-</p><p>tros. Trata-se ainda de pesquisa aplicada, vez que possui o intuito de fazer com que os conheci-</p><p>mentos obtidos possam atender as consequências práticas da temática. É exploratória pois tra-</p><p>ta-se de um tema pouco explorado em pesquisas e com grande carência de referenciais teóricos.</p><p>Quanto à pesquisa exploratória, tem-se que segundo Gil “visa proporcionar maior fa-</p><p>miliaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses,</p><p>pode-se dizer que estas pesquisas têm como objetivo principal o aprimoramento de ideias ou a</p><p>descoberta de intuições” (2002 p. 41).</p><p>No que diz respeito aos procedimentos, foi abordado por uma pesquisa de campo, a qual,</p><p>também de acordo com Gil (2002 p. 53), trata-se do “estudo de campo procura muito mais o</p><p>aprofundamento das questões propostas do que a distribuição das características da população</p><p>segundo determinadas variáveis”.</p><p>A seguir são apresentados os delimitadores da pesquisa.</p><p>21</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>4.1 DELIMITAÇÃO DA PESQUISA</p><p>Para realizar o levantamento de dados sobre o transporte de valores do Brasil, assim</p><p>como compreender os conceitos de seus maiores problemas, respectivamente, realizou-se uma</p><p>pesquisa bibliográfica, a fim de que se obtivesse o arcabouço teórico necessário para o desen-</p><p>volvimento da pesquisa. Conforme Gil (2002, p. 29), “a pesquisa bibliográfica é elaborada com</p><p>base em material já publicado”.</p><p>Para se obter melhores dados, foi realizada uma pesquisa documental em fontes abertas</p><p>a todo o público e disponíveis de forma on-line, baseada em Legislações Federais, e também</p><p>matérias feitas por jornais etc.</p><p>Quanto ao objetivo específico, como técnica de coleta de dados utilizou-se de entrevis-</p><p>tas semiestruturadas. As entrevistas semiestruturadas, segundo Boni e Quaresma (2005, p. 75),</p><p>“combinam perguntas abertas e fechadas, onde o informante tem a possibilidade de discorrer</p><p>sobre o tema proposto. O pesquisador deve seguir um conjunto de questões previamente defini-</p><p>das, mas ele o faz em um contexto muito semelhante ao de uma conversa informal”.</p><p>A pesquisa foi realizada com a amostra formada a partir da técnica de amostragem não</p><p>probabilística por conveniência, em que participaram da amostra pessoas dispostas a colabora-</p><p>rem. Trata-se de um método extremamente útil a fim de que se possa estudar populações com</p><p>maior nível de dificuldade</p><p>de serem acessadas ou estudadas, ou ainda as quais não há precisão</p><p>de quantitativos. As dificuldades são latentes no tocante ao quantitativo de agentes da segurança</p><p>privada, visto se tratar de informação estratégica e também por receio de sanções administra-</p><p>tivas por parte das empresas, como na dificuldade de obter-se confiança para participação da</p><p>entrevista, demonstrando seu grau elevado de complexidade. Ainda realizou-se a seleção pela</p><p>técnica denominada “bola de neve” (ALBUQUERQUE et al., 2014). Essa técnica corresponde</p><p>a uma forma de amostra, em que os entrevistados iniciais de um respectivo estudo indicam no-</p><p>vos possíveis participantes para a pesquisa, estabelecendo-se um vínculo de confiança em uma</p><p>rede de colaboração, conforme o universo a ser estudado, os quais, dando segmento, indicam</p><p>novos participantes a fim de que seja possível obter êxito nos objetivos propostos.</p><p>Portanto, foram entrevistados quatro profissionais da área de segurança privada que atu-</p><p>am ou atuaram no transporte de valores, sendo que três entrevistados trabalharam como cober-</p><p>tura e um como motorista no transporte de valores. Foram elaboradas 16 perguntas, sendo elas:</p><p>1. Qual o seu cargo no transporte de valores?</p><p>2. A quanto tempo atua na área?</p><p>3. Quais os maiores problemas do transporte de valores no Brasil segundo sua</p><p>perspectiva?</p><p>4. Quais as soluções e medidas que devem ser tomadas por parte das empresas e do</p><p>governo para os problemas que você apontou?</p><p>5. Já esteve em alguma situação de sinistro na sua atividade?</p><p>6. Como lida com essa situação caso ela aconteça?</p><p>7. O que acha do atual cenário do transporte de valores?</p><p>8. Por que escolheu essa profissão?</p><p>9. Quais pontos nas estradas você considera mais perigosos e por quê?</p><p>10. Acha que os estudos atuais sobre assaltos a carros-fortes ou bases estão corretos?</p><p>11. A algum plano de contingencia que você e sua equipe usem formulados pela</p><p>empresa ou só usam o que aprenderam no curso? Qual o plano?</p><p>12. Como você lida com o estresse do seu trabalho?</p><p>13. Oque acha do atual cenário da criminalidade?</p><p>22</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>14. Acha que os vigilantes de transporte de valores deveriam ter mais treino e preparo</p><p>como uma força de elite? Se sim, por quê?</p><p>15. Como você solucionaria os problemas que descreve?</p><p>16. Você se sente seguro dentro do carro-forte? Se não, por quê?</p><p>Os dados obtidos foram analisados e comparados com as estimativas de anos anteriores,</p><p>a partir do ano de 2005 até o ano de 2020, comparando o número de ataques, roubos a carros-</p><p>-fortes, vigilantes feridos ou que evoluíram a óbito, dentre outros dados que surgiram no decor-</p><p>rer da pesquisa para ter uma análise mais detalhada de forma percentual.</p><p>Após as entrevistas, estas foram transcritas. A técnica utilizada para análise dos dados</p><p>obtidos foi a análise de conteúdo, pela perspectiva de Bardin. Seguindo essa metodologia de</p><p>Bardin (2011), o projeto de análise qualitativa deve ser dividido em três fases, sendo elas: 1)</p><p>pré-análise; 2) exploração do material; e 3) tratamento dos resultados, inferência e interpreta-</p><p>ção. Ainda, compreende em seus procedimentos:</p><p>Um conjunto de técnicas de análise das comunicações que utiliza procedimentos sis-</p><p>temáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. A intenção da análise</p><p>de conteúdo é a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção, in-</p><p>ferência esta que recorre a indicadores (quantitativos ou não) (BARDIN, 2011, p. 44).</p><p>As quatro entrevistas foram organizadas e separadas em forma de textos individuais,</p><p>sendo que com base no conhecimento individual dos entrevistados, muitas expressões e termos</p><p>foram explicitados de formas diferentes para relatar os mesmos assuntos referentes as perguntas.</p><p>4.2 ASPECTOS ÉTICOS</p><p>Por conta da atual pandemia do covid-19 não foi possível que o entrevistador fosse ao</p><p>encontro do entrevistado, dito isto, as entrevistas foram feitas via vídeo chamada e gravadas</p><p>pelo aplicativo Google Meet. Cabe ressaltar que se obteve a coleta dos Termos de Consenti-</p><p>mento Livre e Esclarecido (TCLEs), os entrevistados não são identificados por uma questão</p><p>de sigilo, visto que atuam no transporte de valores e também por conta de suas identidades</p><p>profissionais junto as organizações. É importante ressaltar que, para serem feitas as respectivas</p><p>entrevistas que lidam com pesquisa humana, as perguntas foram submetidas ao comitê de ética</p><p>e pesquisa da Universidade Cesumar, tendo sido aprovadas.</p><p>5 ANÁLISE DE DADOS E RESULTADOS</p><p>O conteúdo das entrevistas, que discorre sobre o transporte de valores no Brasil e seus</p><p>maiores problemas perante a criminalidade, foi transcrito de modo textual e separado em quatro</p><p>documentos pré-analisados, depois buscou-se explorar o material obtido com as entrevistas, na</p><p>sequência foi possível tratar os resultados obtidos, suas interferências e interpretações segundo</p><p>a metodologia de Bardin (2011), para se ter uma melhor coleta de dados dos problemas encon-</p><p>trados junto a pesquisa bibliográfica, e achar indicadores de possíveis soluções ou estratégias</p><p>que possam amenizar os problemas em questão.</p><p>Quando os entrevistados foram indagados sobre os maiores problemas do transporte de</p><p>valores no Brasil, foi perceptível que todos apontaram quase os mesmos problemas, sendo eles:</p><p>necessidade de mudança na legislação e portarias que regem a segurança privada, armamento</p><p>defasado, o alto poder bélico da criminalidade que executa esses tipos de ações, a quantidade de</p><p>23</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>numerário que é transportado de uma só vez em longas distancias e também o abandono do Es-</p><p>tado em relação à segurança nas rodovias estaduais e federais do país. Quando indagados se os</p><p>estudos atuais de roubos a carros-fortes estavam corretos, o Entrevistado 1 respondeu que não,</p><p>pois, segundo ele, “Todo dia ou quase todo dia, acontecem tentativas de assaltos a carros-fortes</p><p>no Brasil inteiro, só não estão registrados”. Entrevistado 1 (2021).</p><p>Os Entrevistados 2 e 3 alegaram não saber a dimensão correta dessa análise, por não</p><p>estarem acompanhando esses assuntos de forma efetiva, já o Entrevistado 4 alegou que estão</p><p>corretas, tendo em vista que houve uma diminuição no índice de tentativas.</p><p>É perceptível que para atuar nesse segmento de trabalho, é necessário um treinamento</p><p>específico e todo um aparando técnico, após serem questionados se os vigilantes deveriam ter</p><p>mais treinamento os Entrevistados 1 e 2 responderam que o tempo máximo exigido para uma</p><p>reciclagem é de dois anos, e que este respectivo tempo é muito longo para voltar a um treina-</p><p>mento e que seria necessário um período de um ano. Já o Entrevistado 4, afirmou que varia</p><p>muito de empresa para empresa, segundo ele: “A empresa que eu trabalho, é uma empresa que</p><p>quando você é contratado não quer saber do curso que você teve lá na escola de formação de</p><p>vigilante, ela já te manda para que você possa fazer um novo curso com um especialista de car-</p><p>ro-forte, de ano em ano a empresa faz esse investimento”. Entrevistado 4 (2021).</p><p>É importante ressaltar que quando indagados sobre o plano de contingência utilizado em</p><p>caso de sinistro, todos eles relataram a mesma resposta, que não há um plano de contingencia</p><p>especifico em caso de sinistro sobre combate, são instruídos para se evadir do local, se possível,</p><p>relatar a sua base operacional sobre o ocorrido e procurar um dos postos de segurança pública.</p><p>Quanto à solução pelos problemas apresentados todos os entrevistados parecem entrar</p><p>em consenso de que, a legislação vigente da segurança privada deve ser reanalisada para os</p><p>dias atuais, levando em consideração o alto índice de criminalidade, dando um melhor poder</p><p>bélico aos agentes de segurança privada para que possam reagir a abordagem dos criminosos.</p><p>Dentre todos esses aspectos um em particular deve ser levado em consideração, o Entrevistado</p><p>4 relatou que a organização em que trabalha tem utilizado um plano</p><p>para melhorar a segurança</p><p>em seus transportes, segundo ele, a empresa tem utilizado outro veículo especial para escoltar</p><p>o carro-forte que leva o numerário em vias mais perigosas e que já houve situações de sinistro,</p><p>redobrando a segurança e diminuindo a probabilidade de ataques.</p><p>Outro problema recorrente na atividade de transporte de valores é a questão do estresse dos</p><p>vigilantes que, de acordo com o Entrevistado 2, é bem recorrente, em determinado trecho da entre-</p><p>vista ele chega a citar que mesmo não atuando mais na área do transporte de valores ainda vai ao</p><p>psicólogo, segundo ele, é uma medida necessária que, por sua vez, muitos vigilantes não utilizam.</p><p>6 CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>A pesquisa em questão teve como objetivo principal analisar os maiores problemas do</p><p>transporte de valores no Brasil e propor ações para a melhoria deste segmento de trabalho,</p><p>tendo em vista que foi necessário fazer um levantamento na literatura sobre todo o histórico</p><p>da segurança privada e suas vertentes, compreender os seus respectivos segmentos e analisar</p><p>sua legislação vigente. Para diagnosticar tais problemas, foi necessário fazer uma pesquisa de</p><p>campo no modelo de entrevistas semiestruturadas no qual foram entrevistados indivíduos que</p><p>trabalham ou já trabalharam nesse ramo, sendo que dos quatro entrevistados três atuavam como</p><p>cobertura e um como motorista de veículo especial. Na busca por referências bibliográficas foi</p><p>notável que todo o setor privado de segurança tem uma lacuna teórica impressionante, visto que</p><p>é um serviço de extrema importância e necessidade.</p><p>24</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>Foi perceptível que atualmente, nas rodovias federais e estaduais de todo o Brasil, está</p><p>acontecendo um grave embate entre vigilantes e criminosos, de modo que a maioria dos ataques</p><p>acontecem em rodovias por serem parcialmente abandonadas pelo poder público, essas guarni-</p><p>ções rodam por todo o país em estradas parcialmente desertas e esquecidas, muitas vezes com</p><p>um alto valor de numerários, o que é muito atrativo para criminosos.</p><p>Foi possível diagnosticar, entre os entrevistados, que os vigilantes não concordam que o</p><p>curso de reciclagem seja feito a cada dois anos, de acordo com eles, deveria ser em um espaço mais</p><p>curto de tempo, tendo em vista que o risco que correm é grande, o treinamento e aperfeiçoamento</p><p>deveriam ser feitos no período máximo de um ano ou menos, muitas organizações investem em</p><p>treinamento dentro de seus próprios núcleos, mas isso corresponde a uma pequena parcela.</p><p>Embora o treinamento seja muito importante no combate à criminalidade, muitas vezes</p><p>não é suficiente. Assim, a segurança privada no Brasil vive, hoje, um cenário de completo aban-</p><p>dono por parte do poder público, chega a ser irônico, tendo em vista que ela surgiu e auxiliou</p><p>em um dos momentos mais críticos da história de nosso país, os agentes de segurança privada,</p><p>atualmente, contam com armamentos defasados, velhos e ultrapassados, armas da década de</p><p>1970, enquanto os criminosos parecem cada vez mais investir em poder bélico, como fuzis, dis-</p><p>positivos explosivos e até mesmo metralhadoras .50, táticas ousadas, não apenas para cometer</p><p>suas práticas ilegais, mas também para intimidar qualquer um que se oponha a eles.</p><p>Um fator de extrema importância é que muitos dos vigilantes sofrem com problemas</p><p>de estresse acarretados pelo trabalho, e estes não procuram ajuda ou tentam lidar com isso de</p><p>forma saudável e, na maioria das vezes, nem mesmo as empresas possuem um especialista na</p><p>área psiquiátrica para que possa ajudar.</p><p>Conclui-se, então, que o transporte de valores, apesar de ser um segmento de extrema</p><p>importância para a sociedade, não é bem visto e é esquecido pelas políticas de Estado, tendo</p><p>em vista que esse segmento de trabalho é de suma importância, não apenas para o setor pri-</p><p>vado de segurança mas também para as forças de segurança pública, é necessário que haja</p><p>uma nova reestruturação nas leis que regem a segurança privada, facilitando, assim, que essas</p><p>organizações possam adquirir melhores equipamentos e utilizá-los para combater ou inibir as</p><p>ações criminosas.</p><p>O compartilhamento de informações e conhecimentos entre as empresas de transporte</p><p>de valores e as forças de segurança pública são de extrema importância para o combate aos</p><p>assaltos a transportes de valores, prática que não é adotada e, se fosse, reduziria drasticamente</p><p>esse tipo de ação.</p><p>É necessário compreender que a segurança privada complementa a segurança pública</p><p>em diversos aspectos, ajudando, assim, a manter a segurança de toda a sociedade. Durante as</p><p>entrevistas foi notável e perceptível o comprometimento dos vigilantes para com o seu trabalho</p><p>e sua integridade, todavia é necessário que haja mais estudos sobre as temáticas por sua extrema</p><p>importância e por sua lacuna teórica vigente.</p><p>7 REFERÊNCIAS</p><p>ARAÚJO, Saulo. Carros-fortes, homens indefesos. Metrópoles, São Paulo, 28 ago. 2019.</p><p>Disponível em: https://www.metropoles.com/materias-especiais/ataques-a-carros-fortes-nas-</p><p>estradas-mutilam-e-matam-vigilantes. Acesso em: 1 jun. 2021.</p><p>ALBUQUERQUE, Ulysses Paulino et al. Methods and techniques used to collect</p><p>ethnobiological data. In: ALBUQUERQUE, Ulysses Paulino et al. Methods and techniques</p><p>in ethnobiology and ethnoecology. New York: Humana Press, 2014. p. 15-37.</p><p>25</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>BARROS, Adalto. S. Gestão de patrulhamento e escoltas. Maringá: Unicesumar, 2019.</p><p>BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.</p><p>BONI, Valdete; QUARESMA, Silvia. J. aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em</p><p>ciências sociais. Revista eletrônica de pós-graduação em sociologia política da UFSC,</p><p>Florianópolis, v. 2 n. 3, p. 68-80, 2005.</p><p>BRASIL. Lei n° 7.102, de 20 de junho de 1983. Dispõe sobre segurança para estabelecimen-</p><p>tos financeiros, estabelece normas para constituição e funcionamento das empresas particula-</p><p>res que exploram serviços de vigilância e de transporte de valores, e dá outras providências.</p><p>Brasília, DF: Presidência da República, 1983.</p><p>BRASIL. Ministério da Justiça. Portaria n° 511, de 5 de dezembro de 1984. Dispõe sobre</p><p>veículos especiais de transporte de valores e regras normativas para seu uso e fabricação.</p><p>Brasília, DF. Ministério da Justiça, 1984.</p><p>BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento de Polícia Federal. Portaria DPF n° 992, de</p><p>25 de outubro de 1995. Dispõe sobre as normas e procedimentos relacionados às empresas</p><p>de segurança privada, segurança orgânica e segurança de estabelecimentos financeiros.</p><p>Brasília, DF: Departamento da Polícia Federal, 1995.</p><p>CAVALIERI, Yuri. Quadrilha explode carro-forte em rodovia do Pará. 1º Jornal, 5 jan. 2022.</p><p>Disponível em: https://www.band.uol.com.br/noticias/primeiro-jornal/ultimas/quadrilha-</p><p>explode-carro-forte-em-rodovia-no-para-16468900. Acesso em: 7 jun. 2022.</p><p>CRESWELL, J. W. Research design: qualitative, quantitative and mixed methods</p><p>approach. California: Sage, 2013.</p><p>ESTATÍSTICAS. ABTV, São Paulo, jun. 2020. Disponível em: http://abtvalores.com.br/</p><p>estatisticas/. Acesso em: 7 jul. 2021.</p><p>GIL, Antônio Carlos. Como elaborar um projeto de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Editora</p><p>Atlas S.A., 2002.</p><p>MARCONDES, José. S. Segurança privada, o que é? Conceitos e atribuições, tipos.</p><p>Blog Gestão de Segurança Privada, [s. l.], 23 jun. 2016. Disponível em: https://</p><p>gestaodesegurancaprivada.com.br/conceito-de-seguranca-privada/ . Acesso em: jul. 2021.</p><p>MORETTI, Claudio D. S., A segurança privada no Brasil: histórico e evolução. Monee,</p><p>Illinois: Independently published. 2020.</p><p>MELO, Felipe P. D.; TENÓRIO, Cristian R.; FRANCO, Paula D. A. Segurança</p><p>empresarial e patrimonial. Maringá: Unicesumar, 2021.</p><p>OSUNA, Leandro. V. O veículo especial na segurança privada. Periódicos DPF. Brasília,</p><p>DF, v. 5 n. 2, p. 61-80, julho a dezembro 2012.</p><p>26</p><p>Revista Maiêutica, Indaial, v. 8, n. 01, p. 15-26, 2023 - ISSN: 2525-8338</p><p>PINHEIRO, Adriano. D.</p>