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A BÍBLIA E SEUS INTÉRPRETES
A Bíblia e seus intérpretes @ 2004, Editora Cultura Cristã. Todos os direitos são reservados.
Conselho Editorial
Cláudio Marra (Presidente)
Produção
Revisão
Filipe Fontes
Heber Carlos de Campos Jr.
Hermisten Maia Pereira da Costa Joel
Theodoro da Fonseca Jr.
Elvira Castanon
Misael Batista do Nascimento
Tarcízio José de Freitas Carvalho Victor
Alexandre Nascimento Ximenes
Wilton Lima
Editoração
Zenaide Rissato
Capa
Magno Paganelli
Diagramação de e-book
L8641b
EquireTech
Lopes, Augustus Nicodemus
A Bíblia e seus intérpretes/Augustus Nicodemus Lopes. São Paulo: Cultura Cristã, 2013.
ISBN 978-65-5989-001-9
1. Bíblia 2. Confissão de Westminster I. Título
A posição doutrinária da Igreja Presbiteriana do Brasil é expressa em seus “símbolos de fé”, que
apresentam o modo Reformado e Presbiteriano de compreender a Escritura. São esses símbolos a
Confissão de Fé de Westminster e seus catecismos, o Maior e o Breve. Como Editora oficial de uma
denominação confessional, cuidamos para que as obras publicadas espelhem sempre essa posição.
Existe a possibilidade, porém, de autores, às vezes, mencionarem ou mesmo defenderem aspectos
que refletem a sua própria opinião, sem que o fato de sua publicação por esta Editora represente
endosso integral, pela denominação e pela Editora, de todos os pontos de vista apresentados. A
posição da denominação sobre pontos específicos porventura em debate poderá ser encontrada nos
mencionados símbolos de fé.
Rua Miguel Teles Júnior, 394 – CEP 01540-040 – São Paulo – SP
Fones 0800-0141963/(11) 3207-7099
www.editoraculturacrista.com.br – cep@cep.org.br
Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio Batista Marra
http://www.editoraculturacrista.com.br/
mailto:cep@cep.org.br
Este livro é dedicado a Alderi, Davi, Heber,
Mauro,
Tarcízio e Valdeci, colegas cuja amizade foi
forjada
a ferro e fogo na fornalha da aflição.
SUMÁRIO
PREFÁCIO
PARTE 1: A NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA
Introdução
As duas naturezas da Bíblia
A Bíblia como livro humano
Distanciamento temporal
Distanciamento contextual
Distanciamento cultural
Distanciamento linguístico
Distanciamento autoral
A Bíblia como livro divino
Distanciamento natural
Distanciamento espiritual
Distanciamento moral
Entendendo o lado humano da Bíblia
Erros de copistas
Linguagem de acomodação
Não sabemos tudo
Traduções não são inerrantes
Conclusão
PARTE 2: OS PRIMEIROS INTÉRPRETES DO ANTIGO TESTAMENTO
Introdução
Capítulo 1 – Os autores do Antigo Testamento
Introdução
As Escrituras como edifício hermenêutico
A transmissão escrita da Revelação
O uso de fontes escritas
Os profetas anteriores
Os profetas posteriores
Os escritos
Características da interpretação das Escrituras no Antigo Testamento
Atitude para com as Escrituras
Propósito aplicativo
Consciência de autoridade
Leitura natural do texto
Base para desenvolvimento da teologia bíblica
Midrash
Conclusão
Capítulo 2 – Os rabinos do antigo Israel
Introdução
A Torá oral
As fontes para o estudo da interpretação rabínica das Escrituras
Midrashim
Mishna
Talmude
A exegese rabínica
Peshat
Midrash
Regras de interpretação
O Novo Testamento e a exegese rabínica
Era Paulo um rabinista?
Os problemas com fontes rabínicas
Conclusão
Capítulo 3 – A comunidade do mar Morto
Introdução
A comunidade que produziu os Manuscritos
Quem escreveu os Manuscritos?
Crenças da comunidade
Os escritos da comunidade
A hermenêutica dos intérpretes de Qumran
A relação entre os autores do Novo Testamento e os intérpretes do Qumran
Semelhanças e diferenças
Conclusão
Capítulo 4 – Filo de Alexandria
Introdução
Quem foi Filo de Alexandria
As obras de Filo
Escritos diversos
Exposições bíblicas
Filo e as Escrituras
O método exegético de Filo
O caráter da alegoria de Filo
A grande alegoria
Filo e o Novo Testamento
Conclusão
Capítulo 5 – Flávio Josefo
Introdução
A vida de Josefo
Josefo e Jesus Cristo
As obras de Josefo
As guerras dos judeus
Antiguidades judaicas
Outras obras
Josefo e as Escrituras
Josefo como intérprete da narrativa bíblica
O objetivo apologético
O objetivo teológico
Josefo e alegoria
Os escritores do Novo Testamento e Josefo
Escatologia
Atualização
Resolução de problemas do texto
Conclusão
Capítulo 6 – Os autores do Novo Testamento
Introdução
A Bíblia dos autores do Novo Testamento
O Antigo Testamento no Novo
Dificuldades com as citações
Princípios controladores da hermenêutica neotestamentária
Cristo é a chave das Escrituras
Os últimos dias já raiaram
Tipologia
A diferença entre tipologia e alegoria
Interpretação como um dom espiritual apostólico
O Espírito como Mestre
A revelação dos mistérios
Conclusão
PARTE 3: OS INTÉRPRETES DA BÍBLIA NA HISTÓRIA DA IGREJA CRISTÃ
Introdução
Capítulo 7 – Alexandrinos e antioquianos
Introdução
A escola de Alexandria
Surgimento da escola catequética de Alexandria
Principais representantes da escola de Alexandria
A escola de Antioquia
Princípios de interpretação
Exemplos de interpretação
Influência e fracasso
Conclusão
Capítulo 8 – Os pais latinos
Introdução
Principais características hermenêuticas
Preferência pela interpretação literal
Contexto histórico
Intenção do autor
Alegorias ocasionais
Escritura com Escritura
Regra de fé da igreja
Agostinho e Jerônimo
Conclusão
Capítulo 9 – Os intérpretes da Idade Média
Introdução
Características da interpretação bíblica dessa época
O uso da quadriga
Apoio às inovações da Igreja Medieval
Aplicações práticas
Ênfase na obscuridade das Escrituras
Presença de uma tradição hermenêutica gramático-histórica
Surgimento das escolas de teologia
A influência de Rashi
Publicação de obras que favoreciam a interpretação literal
Surgimento das ordens mendicantes
A tradução das Escrituras para o vernáculo
A luta dos huerguenses na Espanha
Conclusão
Capítulo 10 – Os reformadores
Introdução
A Bíblia na Reforma
Características da interpretação dos reformadores
Ênfase no sentido literal, gramático-histórico do texto
A necessidade da iluminação do Espírito Santo
A necessidade de estudar as Escrituras
Escritura com Escritura
Intenção do autor humano
Uso de outras obras
Linguagem figurada
Erasmo de Roterdã
Conclusão
Capítulo 11 – Escolásticos e puritanos
Introdução
Dogmatismo e controvérsias
Entendendo a hermenêutica da Pós-Reforma
As controvérsias internas
A Contrarreforma
Necessidade de catequese
Preservação da doutrina reformada
Papa de papel?
Os puritanos
Características da interpretação dos puritanos
Alto apreço pelas Escrituras
Escritura com Escritura
Predominância do sentido natural
A Bíblia é sobre Cristo
Necessidade de conversão e iluminação do Espírito Santo
Intenção autoral
Desejo de aplicar as Escrituras
Alguns problemas com a interpretação puritana
A influência da interpretação dos puritanos
Conclusão
Capítulo 12 – A interpretação das Escrituras na modernidade
Introdução
Impacto do Iluminismo na interpretação da Bíblia
Rejeição dos relatos miraculosos
Distinção entre fé e História
Erros nas Escrituras
Exegese controlada pela razão
Mito
Separação dos dois Testamentos
A influência da dialética de Hegel
Principais metodologias críticas
Crítica das fontes
Crítica da forma
Crítica da redação
O Cristianismo liberal
Conclusão
Capítulo 13 – A chegada da pós-modernidade na interpretação bíblica
Introdução
Características da pós-modernidade
A pluralidade da verdade
A morte da razão
O abandono da neutralidade
A defesa do inclusivismo
O conceito do “politicamente correto”
O impacto na interpretação cristã das Escrituras
Sincronia
Pluralidade de interpretações
Epistemologia
Perda do sentido original
A morte do autor
Retorno à alegorese?
Deslocamento do sentido
A dicotomia liberal pós-moderna
Conclusão
Capítulo 14 – Vertentes formadoras dos intérpretes pós-modernos
Introdução
A vertente teológico-psicológica: Schleiermacher
A vertente exegética: Bultmann
A vertente teológica: Barth
A vertente linguística: Saussure
A vertente filosófica: Gadamer e Derrida
Gadamer
Derrida
Conclusão
Capítulo15 – Os intérpretes da Bíblia na pós-modernidade
Introdução
Estruturalismo como hermenêutica
Estruturalismo bíblico
A morte do estruturalismo
Crítica da narrativa, ou nova crítica literária
Principais características
Hermenêutica reader response
A hermenêutica da “teologia da libertação”
Hermenêuticas feministas
Desconstrucionismo
O método de leitura desconstrucionista
A influência na hermenêutica bíblica
A hermenêutica da suspeita
Os mestres da suspeita
Características da sua hermenêutica
Conclusão
Capítulo 16 – Desafios atuais aos intérpretes da Bíblia
A utilização do método histórico-crítico
Os pressupostos do Racionalismo
As limitações da crítica da forma
O método histórico-crítico sob ataque
Resposta às hermenêuticas pós-modernas
A obra de E. D. Hirsch
É impossível a recuperação da intenção do autor?
As limitações da nossa natureza humana
As distâncias histórica e cultural são impossíveis de transpor
Diferenças quanto à hermenêutica reformada
O caráter proposicional e inspirado da Revelação
A possibilidade de conhecer
Sentido disponível a todos
Sentido único
As Escrituras como referencial
Conclusão
CONCLUSÃO
APÊNDICE
A linguística e a hermenêutica bíblica: diálogo e desafios para o intérprete do
século
Introdução
A abordagem linguística e suas tendências hoje
Algumas áreas de estudo da macrolinguística
Pragmática
Linguística textual
Análise do discurso
Sociolinguística
As correntes macrolinguísticas e o problema da busca do significado
As perspectivas da interpretação bíblica: o diálogo com a linguística O diálogo
entre linguística e hermenêutica
Conclusão
BIBLIOGRAFIA
PREFÁCIO
A ideia de escrever um livro sobre a história da interpretação da Bíblia
nasceu da constatação que fiz, durante os cursos que tenho ministrado sobre
o assunto nos últimos dez anos, de que falta na língua portuguesa material
sobre o tema que esteja relativamente atualizado. Como nem todos têm
facilidade para ler outros idiomas, nos quais existe bastante material sobre o
assunto, pensei que uma “história da interpretação” em português podia ser
muito útil, não somente aos professores e estudantes de instituições de
ensino teológico, mas também ao público em geral interessado no estudo de
hermenêutica e da própria Bíblia.
Gostaria de apresentar este livro dizendo quatro coisas sobre ele.
Primeira, ele foi escrito do ponto de vista reformado. Isso significa, pelo
menos para mim, um compromisso com a perspectiva que os reformadores
tinham da inspiração e infalibilidade das Escrituras e com os princípios
hermenêuticos que utilizaram. Usamos o termo “Escrituras” não somente
para nos referir ao Antigo e Novo Testamento, mas também para indicar o
que acreditamos com relação aos mesmos. Muito embora o termo seja
também usado por estudiosos que não acreditam em sua inspiração e
infalibilidade, é aqui empregado com a mesma convicção dos autores do
Novo Testamento, que o usaram para referir-se aos escritos produzidos sob
a inspiração de Deus por homens por ele designados e escolhidos, de tal
modo que se revestem de autoridade e infalibilidade divina. O leitor
perceberá no decurso da obra que procurei entender e interagir com outras
hermenêuticas e outras perspectivas sobre a Bíblia, bastante divergentes das
minhas. Esta interação procurou indicar pontos positivos com os quais
entendo que um reformado possa concordar e também fraquezas e defeitos
que tornam determinados sistemas inadequados.
Segunda, este livro não é meramente um livro de história. Simplesmente
não consegui ser apenas descritivo. Como minha formação é
essencialmente teológica, nem sempre consegui conter o ímpeto para a
análise crítica. Ao descrever os intérpretes da Bíblia e seus modelos
hermenêuticos frequentemente ofereço ao leitor uma análise dos mesmos à
luz dos pressupostos já mencionados. Não me penitencio por isto; pois,
afinal, para que nos serve a História, se não nos levar a analisar, refletir e
aprender com os erros e acertos do passado? E quando se trata da história
da interpretação, descobriremos que muitos modelos e ideias interpretativas
de hoje nada mais são que reedições maquiadas de períodos passados – com
os mesmos erros e acertos e outros novos.
Terceira, este livro tem como um de seus alvos demonstrar que o método
gramático-histórico, cujos traços podemos perceber desde os primórdios da
história da interpretação, é o que melhor se adapta ao caráter divino e
humano das Escrituras. Muito embora o sistema alegórico, o método
histórico-crítico e as novas hermenêuticas possam nos dar detalhes
interpretativos da Bíblia válidos e úteis, são parte de sistemas radicalmente
diferentes daquele que suporta o método gramático-histórico. No meu
entendimento, somente uma hermenêutica que leve a sério a inspiração e
infalibilidade das Escrituras, a historicidade dos relatos bíblicos e a
intencionalidade dos textos em comunicar sentido proposicionalmente,
poderá abranger todos os aspectos envolvidos na interpretação de um texto
divino e humano ao mesmo tempo. E o método gramático-histórico atende
a estes requisitos.
Quarta, este livro procura mostrar que embora existam semelhanças
entre a hermenêutica praticada pelos autores bíblicos do Antigo e do Novo
Testamento e o método gramático-histórico, devemos admitir o caráter
especial da primeira em razão do fenômeno da inspiração divina. Não
defendemos neste livro que a hermenêutica dos autores inspirados era
gramático-histórica – certamente não era. Por outro lado, defendemos que o
método gramático-histórico pode ser visto como o sistema interpretativo
que melhor deu continuidade ao trabalho dos profetas e apóstolos ao
interpretar as Escrituras em seus dias.
Agradeço a contribuição do Rev. Dr. Mauro Meister, que graciosamente
revisou os capítulos que tratam da interpretação do Antigo Testamento
pelos diferentes grupos ao redor do período apostólico. Agradeço também
ao Rev. Dr. Franklin Ferreira pela colaboração no capítulo que descreve a
hermenêutica de Karl Barth. De inestimável valia foi a colaboração do Rev.
Ms. Robério Odair Basílio, que não somente revisou todos os capítulos,
mas também escreveu o apêndice sobre as tendências mais modernas da
Crítica Literária. A todos minha profunda gratidão.
Ao final do livro o leitor encontrará uma bibliografia contendo os livros,
artigos e teses que foram consultados na elaboração da presente obra.
Apesar do conhecido Dr. Martin Lloyd-Jones ter dito certa feita que um
calvinista é aquele que pode colocar notas de rodapé para cada uma de suas
afirmações, optei por indicar no texto apenas de forma geral as fontes de
que me vali, em vez de utilizar notas bibliográficas de rodapé. As obras
citadas no texto estão mencionadas na Bibliografia, a não ser quando
citadas por terceiros ou recolhidas da Internet. As mesmas acabariam por se
tornar demasiadamente numerosas, tornando o livro mais extenso. Creio em
bons livros acadêmicos escritos de maneira popular e acessível a todos.
Grande parte do material que o leitor tem em mãos veio das minhas
aulas sobre o tema. Agradeço aqui aos meus alunos que sempre me
desafiaram a compreender e expor melhor as questões hermenêuticas com
as quais nos defrontamos em sala de aula.
Finalmente agradeço a Minka. Sem a sua compreensão e paciência, eu
não teria como terminar esta pesquisa, que já passa de dez anos. Ao
dedicar-se ainda mais a Hendrika, Samuel, David e Anna, nossos filhos, ela
se deu por mim, comprando-me tempo precioso para terminar esta obra.
Augustus Nicodemus Lopes
Recife, outubro de 2003
Parte 1
A NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA 
 
Introdução
Nem todos se apercebem do fato de que cada leitura de um texto envolve
um processo de interpretação do mesmo. Não existe compreensão de um
texto sem que haja interpretação, mesmo que esta leitura seja do jornal e o
processo de interpretação aconteça inconscientemente. Sendo um texto, a
Bíblia não foge a esta regra. Cada vez que a abrimos e lemos, buscando
entender a mensagem de Deus para nós, engajamo-nos num processo de
interpretação.Como Palavra de Deus, a Bíblia deve ser lida como nenhum
outro livro. Mas, tendo sido escrita por homens, ela deve ser interpretada
como qualquer outro livro. Acresce que a Bíblia está distante de nós em
diversos aspectos, o que faz que nossa leitura da mesma exija um esforço
consciente de interpretação, diferente, por exemplo, da leitura que fazemos
da revista Veja.
Ao longo da sua história, a Bíblia tem sido conscientemente interpretada
de formas diferentes por diferentes pessoas e grupos. Existe, portanto, uma
história da interpretação da Bíblia ao longo dos séculos. O presente livro
dedica-se a entender os intérpretes da Bíblia, seus princípios interpretativos,
seus resultados e impacto na Igreja Cristã.
As duas naturezas da Bíblia
Há muitas pessoas que ficam desanimadas com as controvérsias e as
polêmicas que existem nos meios intelectuais em que se estuda a Bíblia.
Elas acabam por considerar todo estudo mais sério como desnecessário e
mesmo como uma barreira à espiritualidade e ao crescimento da igreja.
Simpatizamos com pessoas assim, pois realmente existe muito
academicismo e intelectualismo árido e infrutífero em muitos círculos
acadêmicos ditos evangélicos. Por outro lado, rejeitar essas coisas não vai
resolver o problema, pois continuamos diante de um texto antigo,
distanciado de nós, escrito em outras línguas e que precisa ser interpretado
para poder ser entendido. Alguns dizem: “Vamos deixar de lado essas
questões e simplesmente ler a Bíblia como ela é”. Infelizmente, uma
abordagem assim não é possível. Não existe leitura e entendimento de um
texto sem que haja interpretação, mesmo que ela se processe de maneira
inconsciente. O objetivo desta parte introdutória é levantar alguns aspectos
da natureza da Bíblia que tornam indispensável um esforço consciente para
interpretá-la.
A Bíblia como livro humano
O fato de que a Bíblia não caiu pronta do céu, mas que foi escrita por
diferentes pessoas em diferentes épocas, línguas e lugares, alerta-nos para o
que alguns estudiosos têm chamado de distanciamento. O fenômeno do
distanciamento aparece em diversas áreas.
Distanciamento temporal
A Bíblia está séculos distante de nós. Seu último livro foi escrito pelo final
do século 1º da Era Cristã, o que nos separa temporalmente em dois
milênios. A distância temporal, num mundo em constantes mudanças, faz
que a maneira de encarar o mundo, os aspectos culturais e linguísticos dos
escritores da Bíblia se percam no passado distante. Portanto, como qualquer
documento antigo, a Bíblia precisa ser lida levando-se isto em conta. Na
época do Novo Testamento o distanciamento já era uma realidade. A
história da interpretação das Escrituras visa mostrar como, desde cedo, o
leitor das Escrituras procurou condições de transpor esse abismo temporal.
Distanciamento contextual
Os livros da Bíblia foram escritos para atender a determinadas situações,
que já se perderam no passado distante. É verdade que ao serem incluídos
no cânon bíblico, eles passaram a ser relevantes para a igreja universal. Por
outro lado, recuperar o contexto em que esses livros foram escritos é
essencial para entendermos melhor a sua mensagem. As cartas de Paulo
foram escritas visando atender as necessidades de igrejas locais. Não posso
entender corretamente o ensinamento do apóstolo sobre o uso do véu pelas
mulheres (1Co 11) se não estiver consciente do problema que estava
acontecendo na igreja relacionado com a participação das mulheres no
culto. Igualmente, 1João toma outra relevância quando fico consciente de
que João estava escrevendo contra a influência de uma forma incipiente de
Gnosticismo nas igrejas da Ásia Menor. Ou ainda, que o livro de
Habacuque foi escrito num contexto de iminente invasão por potências
estrangeiras. A mensagem do evangelho de Marcos fica mais clara quando
descobrimos que Marcos escreveu para ajudar os crentes romanos a
enfrentar as provações que sofriam por causa de Cristo. E o livro de Jonas –
especialmente a atitude de Jonas contra os ninivitas – ganha maior clareza
quando descubro que havia uma antipatia natural dos judeus contra os
ninivitas por causa dos seus grandes pecados. A hermenêutica bíblica
historicamente sempre buscou transpor as dificuldades criadas pela
distância contextual.
Distanciamento cultural
O mundo em que os escritores da Bíblia viveram já não existe. Está no
passado distante, com suas características, cosmovisões, costumes,
tradições e crenças. Muito embora a inspiração das Escrituras garanta que
sua mensagem seja relevante para todas as épocas, devemos lembrar que
esta comunicação foi registrada em determinada cultura, da qual preservou
traços. Os intérpretes da Bíblia devem levar em conta o jeito de escrever
daquela época, a maneira de expressar conceitos e ilustrar as verdades, para
poder transpor a distância cultural.
Distanciamento linguístico
As línguas em que a Bíblia foi escrita também já não existem. Não se fala
mais o hebraico, o grego e o aramaico bíblicos nos dias de hoje, mesmo nos
países onde a Bíblia foi escrita. Como cada língua tem seu jeito próprio de
comunicar conceitos (apesar de uma estrutura comum a todas), os leitores
da Bíblia devem levar em conta essas peculiaridades. O conhecimento do
paralelismo hebraico certamente ajudou alguns intérpretes da Bíblia ao
longo da História a entender melhor os Salmos e os profetas.
Distanciamento autoral
Devemos ainda reconhecer que teríamos uma compreensão mais exata da
mensagem de alguns textos bíblicos reconhecidamente obscuros se os seus
autores estivessem vivos. Poderíamos perguntar a eles acerca dessas
passagens complicadas que escreveram e que continuam até hoje
desafiando os melhores intérpretes. Por exemplo, Pedro poderia nos
esclarecer o que ele quis dizer com “Cristo foi e pregou aos espíritos em
prisão” (1Pe 3.19). Ou ainda, Paulo poderia nos dizer o que ele quis dizer
com “o que farão os que se batizam pelos mortos?” (1Co 15.29). Mateus
poderia finalmente tirar a dúvida sobre o sentido da frase de Jesus “não
terminarão de percorrer as cidades de Israel até que venha o Filho do
Homem” (Mt 10.23). Daniel poderia nos esclarecer a quem ele se referia
por Ciro (de quem não temos registro fora da Bíblia, cf. Dn 1.21; 6.28;
10.1) e por que considerava Belsazar filho de Nabucodonosor, quando era
filho de Nabonido (Dn 5.2). Não endossamos o que alguns estudiosos
afirmam, que com a morte do autor perdeu-se a possibilidade de recuperar-
se a intenção deles. Cremos que esta intenção sobrevive no que escreveram.
Mas certamente a ausência do autor faz que a interpretação de textos
obscuros seja necessária.
O distanciamento, portanto, tem exigido dos leitores da Bíblia ao longo
dos séculos a tarefa de interpretá-la. Interpretar é tentar transpor o
distanciamento em suas várias formas, como mencionadas acima, e chegar
ao sentido exato do texto. De modo geral, o ponto central da mensagem da
Bíblia é tão claro que pode ser entendido por todos, mesmo os que não
estão conscientes do distanciamento. A prova disto é que a igreja vem se
mantendo viva e ativa ao longo dos séculos, sendo composta em sua quase
absoluta maioria por pessoas que não têm treinamento teológico, histórico e
linguístico que permitiriam uma leitura mais informada das Escrituras. Por
outro lado, uma maior exatidão e clareza acerca de todos os aspectos da
mensagem bíblica não poderá ser alcançada sem interpretação consciente.
A Bíblia como livro divino
O fato de que a Bíblia foi inspirada por Deus, sendo assim a sua Palavra,
também deve ser levado em conta por aqueles que desejam interpretá-la
corretamente. A divindade e a humanidade das Escrituras devem ser
mantidas em equilíbrio. Quando enfatizamos uma em detrimento da outra,
acabamos por cair em alguns daqueles erros hermenêuticos que veremos ao
longo da nossa análise da história da interpretação das Escrituras.
Este foi o grande problema do método histórico-crítico de interpretação,
que surgiu com o Iluminismo, ao adotar os pressupostos racionalistas
quanto às Escrituras, contrários à suaorigem divina. Ao tratar a Bíblia
como qualquer outro livro de religião, deixando de levar em conta sua
inspiração e divina autoridade, os estudiosos e professores cristãos,
influenciados pelo racionalismo, acabaram por desenvolver um método de
interpretação que não aceitava o conceito de revelação, inspiração e
providência de Deus. Como resultado, a Bíblia passou a ser vista não como
Palavra de Deus em sua inteireza, mas como o registro da fé de
comunidades religiosas, primeiro a judaica e depois a cristã. Continha erros
crassos, e seus livros individuais eram trabalhos compostos de retalhos de
fontes contraditórias e refletiam mais o pensamento dos que a escreveram
do que as realidades históricas e espirituais que pretendiam transmitir. Tal
abordagem às Escrituras já se demonstra inadequada e perniciosa para a
igreja.
Uma atitude oposta é igualmente perigosa. Muitos movimentos e grupos
religiosos esqueceram ao longo da História o fenômeno do distanciamento e
encararam a Bíblia como se fosse um livro caído do céu, cuja interpretação
dependia somente de oração, jejum e plenitude do Espírito Santo.
Evidentemente, sendo a Palavra de Deus, precisamos de comunhão com
Deus e da iluminação do Espírito para o conhecimento salvador das
Escrituras. Porém, a utilização consciente de princípios de interpretação
compatíveis com a natureza dela fará que esse conhecimento nos chegue de
maneira mais exata e completa. Precisamos ter cuidado, porém, para não
cair no erro de pensar que somente aqueles que têm treinamento
profissional em princípios de interpretação poderão chegar ao
conhecimento da mensagem das Escrituras.
Muitos dos princípios de interpretação bíblicos, praticados no decorrer
dos séculos por todos os leitores da Bíblia, são simples, lógicos e evidentes,
como, por exemplo, a interpretação de uma palavra à luz do seu contexto.
Isto fazemos diariamente, na leitura do jornal, de notícias pela internet e
lendo um e-mail. Em certo sentido, ler a Bíblia envolve as mesmas regras
que ler essas coisas. A natureza divina da Bíblia, por sua vez, provoca outro
tipo de distanciamento, como segue.
Distanciamento natural
A distância entre Deus e nós é imensa. Ele é o Senhor, criador de todas as
coisas, do céu e da terra. Somos suas criaturas, limitadas, finitas. Nossa
condição de seres humanos impõe limites à nossa capacidade de entender e
compreender as coisas de Deus. Não impede a possibilidade desse
conhecimento, com certeza, mas o limita. O fato de sermos seres humanos
tentando entender a mensagem enviada pelo Deus criador em si só
representa um distanciamento. A distância entre a criatura e o Criador, tão
frequentemente mencionada nas Escrituras, tem seus efeitos também na
hermenêutica. Os intérpretes da Bíblia não podem ignorar isso e pensar que
bastam ferramentas hermenêuticas corretas para que se entenda a revelação
de Deus. Historicamente, muitos desses intérpretes reconheceram a
necessidade de transpor essa distância pela iluminação do Espírito.
Distanciamento espiritual
O fato de que somos pecadores impõe ainda mais limites à nossa
capacidade de interpretação da Bíblia. Todos os intérpretes da Bíblia têm
sido e são seres afetados pelo pecado tentando entender os desígnios do
Deus puro e santo. A Queda é um conceito espiritual, mas que não pode ser
deixado de lado em qualquer sistema interpretativo das Escrituras. Transpor
o abismo epistemológico causado pela Queda é certamente o ponto de
partida. A regeneração e a conversão são a resposta de Deus a essa
condição.
Distanciamento moral
É a distância que existe entre intérpretes pecadores e egoístas e a pura e
santa Palavra que pretendem esclarecer. A corrupção de nossos corações
acaba por introduzir na interpretação das Escrituras motivações
incompatíveis com o Autor das mesmas. Infelizmente a história da igreja
mostra como diferentes grupos manipulam as Escrituras para defender,
provar e dar autoridade a seus pontos de vista. Certamente existem pessoas
sinceras, mas a sinceridade nem sempre evita o equívoco. Não podemos
negar que o distanciamento moral acaba nos levando a torcer o sentido das
Escrituras, procurando usá-las para nossos fins, nem sempre louváveis.
A Bíblia tem sido usada como prova das mais conflitantes teorias e
ideias, o que mostra que ler e entender imparcialmente a sua mensagem não
é tão fácil assim. A Bíblia foi usada pelos protestantes de países
colonizadores para justificar a escravidão, usando textos do Antigo e Novo
Testamentos que falam da escravidão sem, contudo, aboli-la (Êx 21.2-6). Os
seus opositores usaram também a Bíblia para defender as ideias
abolicionistas, usando a parábola do bom samaritano e “amarás o teu
próximo como a ti mesmo”.
A Bíblia também foi usada para provar que os judeus deveriam ser
perseguidos e que os protestantes brancos são uma raça superior. A Bíblia
foi usada para executar as bruxas, para impedir o casamento dos padres,
para defender a masturbação, para justificar o aborto e a eutanásia, para
regular o tamanho das saias e do cabelo das mulheres cristãs, para prover
aceitação e fortalecimento dos homossexuais, para proibir ingerência de
qualquer tipo de bebida alcoólica, para proibir transfusão de sangue, etc. O
catálogo é imenso.
Entendendo o lado humano da Bíblia
Seria importante perguntar até que ponto o lado humano das Escrituras
possibilitou a entrada de erros na mesma. Essa é uma questão bastante
controversa e certamente não poderemos abordá-la de maneira exaustiva
aqui. Apenas reafirmaremos nossa convicção de que a Bíblia é a Palavra de
Deus, verdadeira em tudo que afirma, com algumas qualificações que
mencionamos a seguir.
Erros de copistas
Ao dizer que a Bíblia é verdadeira em tudo que afirma não estamos
negando que erros de copistas se introduziram no longo processo de
transmissão da mesma. Seria negar a realidade. A inerrância é um atributo
dos autógrafos, ou seja, do texto como originalmente produzido pelos
autores inspirados por Deus. Muito embora hoje não tenhamos mais os
autógrafos, pela providência divina podemos recuperá-los quase que em sua
totalidade por meio da ajuda de ferramentas como a baixa crítica ou a
manuscritologia bíblica.
Linguagem de acomodação
Também não estamos dizendo que os autores bíblicos receberam
conhecimento pleno e onisciente acerca do mundo, ao escreverem. Eles se
expressaram nos termos e dentro do conhecimento disponível naquela
época, acomodando a verdade revelada em termos do que sabiam do
mundo. Assim, eles falam que o sol nasce num lado do céu e se põe no
outro, ou ainda mencionam que o sol parou no céu (Josué). No livro de
Levítico, se diz que a lebre rumina e que o morcego é uma ave. Sabemos
que pelos padrões científicos atuais lebres não ruminam e morcegos não são
aves. Os autores bíblicos, entretanto, estavam se expressando mediante a
linguagem das aparências, acomodando-se ao conhecimento de sua época.
Do ponto de vista do observador o sol de fato gira em torno da terra, todos
os animais que mexem com a boca após comer parecem ruminantes e tudo
que tem asas e voa parece ave!
Não sabemos tudo
Também não estamos dizendo que podemos explicar todas as dificuldades
da Bíblia em termos absolutamente satisfatórios. Por exemplo, a harmonia
dos evangelhos continua sendo em parte um desafio para autores
comprometidos com a inerrância bíblica, pois nem sempre se consegue
achar uma explicação absolutamente satisfatória para alguns dos problemas
levantados pelas poucas e aparentes discrepâncias entre os evangelhos. Ou
ainda, pelas aparentes discrepâncias entre 1 e 2Crônicas e 1 e 2Reis. No
entanto, não podemos aceitar soluções que impliquem numa diminuição da
autoridade das Escrituras, sugerindo contradições ou erros. É preferível
aguardar até que mais informações nos ajudem a achar soluções
compatíveis com a natureza da Escritura e sua divina origem.
Traduções não são inerrantes
Por último, é importante acrescentar que não estamos dizendo que as
traduções da Bíblia são inerrantes. Muito embora possamos ler com
confiança a Bíblia em nossalíngua, reconhecemos que em muitos casos os
tradutores tiveram de tomar decisões relacionadas com a melhor maneira de
verter determinado termo ou expressão, e que tais decisões, não sendo
inspiradas por Deus, nem sempre foram as corretas.
Conclusão
Tudo isso mostra que não é tão fácil assim simplesmente ler a Bíblia e fazer
o que ela diz. Por outro lado, não queremos desanimar da possibilidade
(muito real!) de entendermos com clareza o ensinamento das Escrituras,
reconhecendo humildemente que nunca poderemos ter uma compreensão
exaustiva de todas as suas passagens. Sabendo que a Bíblia vem de Deus,
temos ânimo para buscá-lo em oração, suplicando a sua graça e sua
iluminação em nossa tarefa como intérpretes. Muitos estudiosos modernos,
cansados do método histórico-crítico, têm proposto novos métodos de
interpretação que levem em conta o caráter divino das Escrituras. Defendem
princípios de interpretação que estejam atentos não somente aos aspectos
humanos da Bíblia como literatura religiosa, mas especialmente às
implicações da sua divina origem e natureza, bem como da nossa dupla
condição de humanos e pecadores.
A dupla natureza da Bíblia provoca um distanciamento temporal e
espiritual que precisa ser transposto, para que possamos chegar à sua
mensagem. Porém, isso não nos isenta de buscar compreender de maneira
mais exata e completa a revelação que Deus fez de si mesmo. Com a graça
de Deus, o estudo da interpretação da Bíblia feito pela Igreja Cristã e outros
grupos ao longo da História pode nos servir de auxílio oportuno para
aprender com os erros e acertos dos que vieram antes de nós. Esse é o alvo
deste livro.
Parte 2
OS PRIMEIROS INTÉRPRETES DO ANTIGO TESTAMENTO
 
Introdução
Nossa investigação começa com a história dos primeiros intérpretes da
Bíblia. Isso nos leva ao estudo da interpretação das Escrituras do Antigo
Testamento feita não somente pelos primeiros cristãos, mas também por
grupos e indivíduos fora da comunidade cristã. Esses grupos e indivíduos
usavam as Escrituras como base de suas crenças e frequentemente as
interpretavam em sua literatura. Os principais dentre eles são: os próprios
autores do Antigo Testamento, os rabinos, a comunidade de Qumran, Filo
de Alexandria e Flávio Josefo. Por fim, abordaremos o uso do Antigo
Testamento pelos autores do Novo. O uso do Antigo Testamento na
Septuaginta, targums e outras versões antigas não será historiado aqui, por
ser de menor importância.
Nossa História não deixará de conter alguma análise dos modelos
hermenêuticos dos intérpretes que serão aqui mencionados. Nosso objetivo
nesta primeira parte é apresentar de forma introdutória os primeiros
intérpretes das Escrituras do Antigo Testamento e analisar de maneira geral
a hermenêutica e princípios de exegese deles. Quando possível iremos
comparar a exegese deles com aquela praticada pelos primeiros cristãos,
especialmente pelo apóstolo Paulo.
É essencial que estejamos inteirados do uso que os autores do Novo
Testamento fizeram do Antigo. Esse conhecimento, porém, deve ser obtido
à luz do contexto interpretativo amplo do Judaísmo do século 1º. Embora a
hermenêutica dos apóstolos e escritores do Novo Testamento deva ser
considerada única em virtude da inspiração divina, esse fato não elimina as
realidades históricas e humanas das quais eles fizeram parte. A revelação
divina foi dada a homens imersos em determinado contexto histórico,
linguístico e social. O pano de fundo judaico dos escritores do Novo
Testamento certamente desempenhou um papel na sua abordagem das
Escrituras do Antigo Testamento. Além disso, eles dificilmente esperariam
que seus leitores se aproximassem do texto como uma tabula rasa.
Se a exegese apostólica se utilizou ou não dos métodos exegéticos dos
grupos não cristãos que também interpretaram a Bíblia em sua época é uma
questão que só pode ser respondida com um estudo em primeira mão das
fontes. Naturalmente, isso não pode ser obtido em um único livro. Nosso
alvo, portanto, é abordar de modo bastante geral o assunto e lançar as suas
bases.
Capítulo 1
Os autores do Antigo Testamento
Introdução
Nossa História começa com o caso mais antigo de interpretação bíblica que
conhecemos, ou seja, a interpretação das Escrituras pelas próprias
Escrituras.
Os homens que escreveram o Antigo Testamento, particularmente os que
vieram após Moisés, utilizaram as Escrituras já produzidas antes de seu
tempo. Ao fazerem isso, nos legaram os primeiros exemplos de
interpretação bíblica que temos. Mais recentemente, os estudiosos têm dado
atenção a esse fato. Seria de se esperar que os livros posteriores fizessem
uso dos anteriores. Esse fenômeno é chamado em linguística de
intertextualidade, e compreende as diversas maneiras pelas quais a
produção e recepção de dado texto dependem do conhecimento de outros
textos por parte de seu autor ou autores.
Quem usou quem, obviamente, depende da cronologia e da ordem na
qual os livros que hoje estão no cânon foram escritos. Os que adotam as
ideias de estudiosos liberais pensam que primeiro foram escritos os livros
proféticos e depois o Pentateuco. Neste caso, o Pentateuco seria uma
elaboração e sistematização legal posterior aos escritos dos profetas e em
alguns casos, pressuporiam aqueles. Entretanto, essa teoria se baseia na
hipótese, hoje questionada, da evolução da religião de Israel, uma
reconstrução baseada em suposições não provadas sobre a forma como o
povo judeu, ao longo de sua história, evoluiu do politeísmo tribal e
carismático para uma monarquia legal e monoteísta, conforme defendeu o
estudioso liberal Gerhard Von Rad. Em nosso estudo seguimos a posição
histórica, e ainda perfeitamente defensável, que os primeiros escritos
canônicos de Israel foram os cinco livros de Moisés, seguidos pelos escritos
dos profetas, dos livros históricos e poéticos, no que chamamos de cânon
ocidental.
Encontramos muitos exemplos de interpretação bíblica no Antigo
Testamento. Veremos vários deles no decorrer do presente capítulo. O
assunto é importante para nós porque os autores do Antigo Testamento
inauguraram um movimento hermenêutico que continua até os dias de hoje,
fecundado e amadurecido pela chegada do Cristianismo e qualificado em
diversos aspectos pelos limites da inspiração impostos pela história da
salvação. É importante para nós entender como os autores das Escrituras
usaram as Escrituras dadas antes deles. Afinal foram eles os seus primeiros
intérpretes.
As Escrituras como edifício hermenêutico
Sem jamais nos esquecermos da ação divina na sua formação, podemos nos
referir às Escrituras como uma grande empreitada interpretativa. Seria
bastante natural que os autores bíblicos, ao registrarem a revelação, o
fizessem em termos e com a ajuda de escritos inspirados anteriores que já
gozavam de status de Escritura. Com certeza, Deus poderia revelar suas
palavras e seu conselho diretamente aos instrumentos humanos que
escolheu. Porém, não se pode deixar de notar, lendo o Antigo Testamento,
que não foi sempre esse o sistema empregado por ele. Pois, frequentemente,
autores veterotestamentários se referem a autores anteriores e em muitos
casos até mesmo identificam as fontes que estão empregando. Veremos
vários exemplos disso mais adiante.
Podemos identificar nos escritos posteriores o uso de fontes sagradas
anteriores. Ao utilizá-las em seus próprios escritos, o autor bíblico estava
engajado em interpretação bíblica, pois, em última análise, é nisso que a
mesma consiste. Interpretar é entender um texto existente, apreender o seu
sentido, e aplicá-lo à situação presente. Foi isto que autores do Antigo
Testamento fizeram ao usar, em suas obras, Escrituras já existentes.
Usando a divisão hebraica do cânon do Antigo Testamento (Quadro 1),
podemos ver, desta perspectiva, as Escrituras como uma pirâmide, (Quadro
2) em cuja base está a Lei (Torá), os cinco livros atribuídos a Moisés. Em
seguida, edificando-se sobre a Lei, temos os Profetas e os Escritos. Os
Profetas (anteriores e posteriores) dão o desenvolvimento objetivo da
religiãodo Antigo Testamento, interpretando e aplicando a Lei aos seus dias
para a nação de Israel. Os Escritos, incluindo os chamados livros históricos
e sapienciais, representam a resposta subjetiva à Lei, expondo situações e
narrando história onde os princípios dinâmicos da Lei atuam. O fato de ser
uma resposta subjetiva (de caráter até mais pessoal em alguns casos) não os
torna menos inspirados, antes, mostra-nos a aplicabilidade da Lei de Deus
até nas áreas mais íntimas e remotas da vida humana. Tanto os Profetas
quanto os Escritos repousam sobre a Lei. Neles, a Lei é usada, interpretada,
e aplicada a novas situações. No topo temos o Novo Testamento,
repousando, enraizando-se e dependendo de todo esse trabalho
interpretativo, sendo ele mesmo uma interpretação da Lei, dos Profetas e
dos Escritos, ou seja, uma continuidade da tradição hermenêutica
inaugurada no próprio Antigo Testamento. Uma leitura correta do Novo
Testamento sem a base hermenêutica do quem vem anteriormente é
impossível.
Quadro 1 – Organização e classificação do cânon hebraico
Quadro 2 – A pirâmide hermenêutica das Escrituras
É claro que a perspectiva citada pressupõe a cronologia tradicional da
história de Israel bem como a autoria de seus livros conforme geralmente é
atribuída na erudição mais conservadora. Entretanto, mesmo os estudiosos
que entendem que a formação dos livros canônicos passou por um longo e
complexo processo de explicações, adaptações, alterações e edições, de
forma a não se poder atribuir a autoria dos mesmos a um ou mais autores –
no final, teria sido um Samler, colecionador, que ajuntou os textos na forma
canônica atual – reconhecem que nesse processo houve muita exegese e
interpretação de textos anteriores considerados sagrados.
A transmissão escrita da Revelação
Também estamos pressupondo que Israel, desde cedo, lançou por escrito a
sua história e sua teologia, nada deixando para a transmissão oral que fosse
de fundamental importância. Nossas pressuposições se baseiam em estudos
recentes, especialmente na obra de Bruce Waltke, demonstrando que tanto
Israel como os outros povos do Antigo Oriente confiavam na escrita para a
transmissão do que era realmente importante. Assim, a tradição oral se
ocupava daquilo menos relevante. A insistência de muitos estudiosos sobre
uma extensa tradição oral por trás dos escritos bíblicos é fruto de muita
especulação e pressuposições que nunca foram confirmadas. Não é difícil
provar que os autores bíblicos não apenas tinham conhecimento como de
fato usaram fontes escritas antes deles. A conclusão óbvia é que desde cedo
o material que hoje compõe o cânon do Antigo Testamento adquiriu forma
escrita para ser transmitido de geração em geração. Mesmo na época de
Moisés e no ambiente do Antigo Oriente Próximo havia a consciência clara
da necessidade de se preservar o que era proveniente de Deus como
revelação. Na verdade, Deus mesmo dá a ordem de se construir uma arca e
colocar dentro dela a Lei.
O uso de fontes escritas
Na Lei encontramos referências a fontes escritas que foram provavelmente
utilizadas por Moisés ou pelo editor final do Pentateuco (Êx 17.14; 24.7;
Nm 21.14; Dt 28.61). Em Deuteronômio 17.18; 27.1-8; 31.9 e 24 se fazem
referências a material escrito datado da época de Moisés. Sem dúvida,
transparece que a composição do Pentateuco utilizou fontes escritas
existentes, algumas de tempos anteriores a Moisés, outras do seu próprio
tempo. Três observações são pertinentes aqui.
Primeira, o uso por Moisés de fontes escritas existentes em nada diminui
sua inspiração e autoridade. O mesmo acontece em vários outros escritos da
Bíblia e mesmo nos evangelhos.
Segunda, existe uma diferença em admitir que Moisés usou fontes
escritas para compor o Pentateuco e aceitar a hipótese de que o Pentateuco
foi composto por um redator desconhecido que juntou, às vezes de forma
inábil, cinco ou mais documentos que continham, por vezes, material
contraditório. Esta teoria, chamada hipótese documentária, predominou nos
estudos do Antigo Testamento nos dois últimos séculos, estando já em
grande parte descartada pela falta de provas, pelo seu caráter altamente
especulativo e pela falta de resultados e consenso entre seus defensores. É
interessante notar que um dos pontos de partida do pensamento dos
propositores dessa hipótese (principalmente Wellhausen) é de que o livro de
Deuteronômio é posterior aos livros históricos (principalmente Juízes)
porque os mesmos não mencionam e nem aplicam a Lei do Pentateuco.
Veremos mais adiante que essa hipótese não pode ser sustentada.
Terceira, muito embora Moisés tenha usado material escrito na
composição do Pentateuco – podemos até admitir que um editor deu a
forma final do Pentateuco utilizando-se de material que remonta ao próprio
Moisés – não se trata aqui de Escritura usando Escritura, pois esse material
escrito, existente e anterior, nunca chegou a obter canonicidade e o status de
Escritura na forma como o conhecemos hoje.
Ainda como ilustração, observamos que o livro de Gênesis é um grande
comentário sobre os grandes eventos da história da criação e da salvação.
Podemos observar que a própria estrutura do livro parece ser baseada em
material escrito e não em tradição oral. As “gerações” ou toledots são uma
característica de material escrito do Antigo Oriente Próximo.
Também podemos observar como no livro de Deuteronômio, a segunda
Lei, Moisés interpreta a Lei de maneira mais específica para a segunda
geração de israelitas depois da saída do Egito. Era uma nova situação e a
Lei precisava ser aplicada naquele momento. Uma mudança significativa
que pode ser claramente observada é a justificativa para a guarda do quarto
mandamento. Em Êxodo, a guarda do sábado é explicada com base na
criação, para uma geração que havia crescido no meio de um povo politeísta
(egípcios) que cria nos elementos dessa criação como seus deuses. Cerca de
quarenta anos mais tarde, agora em face da entrada na terra e confronto com
outros povos, Moisés se reporta à libertação do cativeiro no Egito como
mais uma razão para a guarda do Sábado (Dt 5.14-15).
Os profetas anteriores
Os escritos de Moisés foram abundantemente usados – e, portanto,
interpretados – nos escritos que conhecemos como Profetas, e que na Bíblia
hebraica inclui os Profetas Anteriores e Posteriores (Quadro 1).
Começando com os Profetas Anteriores, temos o livro de Josué, por
exemplo, que reflete conhecimento detalhado dos escritos de Moisés. O
autor refere-se em 24.32 ao pagamento de cem pedaços de prata por um
pedaço de terra que Jacó fez aos filhos de Hamor. Menciona também a
promessa que José obteve de seus irmãos acerca de seus ossos. Os dois
eventos estão narrados em Gênesis (33.19; 50.24-25). Essas alusões e várias
outras aos demais livros do Pentateuco podem ser vistas no Quadro 3
abaixo:
Quadro 3 – Uso do Pentateuco em Josué
Mas nosso objetivo não é apenas demonstrar que o autor de Josué
conhecia as tradições escritas de Moisés, e sim que as interpretou ao
escrever a sua obra. Isso pode ser percebido não tanto pela citação de
passagens individuais ou alusões a eventos do período patriarcal, mas no
fato de que o livro de Josué foi desenvolvido com base na teologia do
Pentateuco, mais especificamente de Deuteronômio. Josué desenvolve
vários temas de Deuteronômio, tais como aliança, guerra santa, distribuição
da terra, unidade de todo o Israel e Josué como sucessor de Moisés. Todos
esses temas são encontrados no Pentateuco e particularmente em
Deuteronômio, demonstrando claramente sua dependência literária do
mesmo. Ao narrar a história da conquista e da partilha da terra prometida,
Josué refere-se abundantemente a textos que tratam das promessas e
advertências de Deus, bem como a partilha da terra e de como os israelitas
deveriam viver em Canaã. Josué tem como preocupação central mostrar
como Deus cumpriu fielmente sua promessa de dar aos patriarcas uma terra
e descanso. O livro reflete a consciência de que os dias da conquista e
vitória eram dias de cumprimento das promessasrelatadas no Pentateuco
(Js 1.3; 1.6; 5.6; 11.23; 22.4,9; 23.5; 23.10,15). Josué 11.23 é
provavelmente o tema principal do livro e também a manifestação clara do
pensamento teológico do autor do livro: “Assim, tomou Josué toda esta
terra, segundo tudo o que o SENHOR tinha dito a Moisés; e Josué a deu em
herança aos filhos de Israel, conforme as suas divisões e tribos; e a terra
repousou da guerra” (cf. ainda 23.14).
A terra prometida é vista como um dom de Deus (ver Dt 1.20,25; 2.29;
3.20; etc.) que havia sido prometida aos pais (Dt 1.8,35; 6.10,18,23; 7.13; et
al). Ao fazer essas afirmações, o autor de Josué estava interpretando as
Escrituras já existentes, apercebendo-se do sentido delas e aplicando-as aos
seus dias, ou ainda, percebendo a aplicação das mesmas nos eventos de sua
época. Josué contribui de muitas maneiras para o desenvolvimento da
história da salvação exposta na história Juízes–Reis. De certo modo, lança
os alicerces dessa mesma história, como veremos em seguida, alicerces
esses enraizados nas Escrituras do Pentateuco.
Os livros de Juízes a 2 Reis, da mesma forma, edificam-se também sobre
o alicerce do Pentateuco e de Josué. Para alguns estudiosos, Juízes – Reis é
uma obra independente e unificada, escrita por um único autor, que viveu
perto dos tempos do exílio ou mesmo depois dele. O autor é chamado por
alguns de “Deuteronomista” porque sua linguagem e seu pensamento são
bastante similares à linguagem e aos temas das leis do livro de
Deuteronômio, bem como aos discursos de Moisés que precedem e seguem
essas leis. Outros rejeitam essa hipótese, considerando corretamente o
caráter especulativo da mesma. Entretanto, a maioria dos estudiosos
reconhece que os livros de Juízes a 2 Reis (quer tenham sido escritos por
um único autor ou por autores independentes) continuam os principais
temas de Josué. O autor, ou autores, conhecia também as leis de Moisés,
particularmente o livro de Deuteronômio. Esses livros pressupõem que seus
leitores conheciam as advertências de Moisés (Dt 4.26) e de Josué (Js
23.12ss) que são mencionadas, assim como a explicação teológica para a
queda da nação de Israel séculos após a conquista.
A ideia teológica central desses livros é a retribuição divina em âmbito
nacional, um dos conceitos centrais da teologia da aliança encontrada em
Deuteronômio. Deus havia concedido uma honra especial à nação de Israel,
mas também uma obrigação especial, na forma da Lei de Moisés. O pacto é
compreendido em termos de um relacionamento ativo. Para desenvolver
esse conceito teológico, o autor/autores narra a história de Israel, desde o
tempo dos juízes até o exílio, à luz de um princípio teológico central
encontrado no Pentateuco, particularmente em Deuteronômio, e que já
havia sido inicialmente desenvolvido em Josué: bênçãos e julgamentos
divinos, vitórias e derrotas, estão intimamente ligados à fidelidade de Israel
para com Deus, ou seu abandono da mesma. O desenvolvimento da
narrativa em termos das condições da relação pactual de Israel com Deus
exigia que seus autores conhecessem, entendessem e aplicassem as
Escrituras já existentes na análise que fizeram da história de Israel. Ou seja,
eles foram, primeiramente, intérpretes da história à luz da Lei.
Evidentemente na obra Juízes–Reis não se fazem citações de passagens
bíblicas como costumamos fazer hoje. Mas é claro que o autor, ou autores,
de Juízes–Reis usou o Pentateuco e Josué em sua obra e, ao fazê-lo, estava
interpretando as Escrituras. No geral, essa interpretação consistia em aplicar
os princípios encontrados nelas aos seus próprios dias. Por exemplo, em
Juízes 14.9 há uma aparente aplicação de Levítico 11.27, que proíbe até
tocar a carcaça de um quadrúpede que anda na planta dos pés. Relatando o
episódio em que Sansão deu a seus pais mel de um enxame que estava no
corpo de um leão morto, o autor de Juízes faz um comentário que remonta a
essa proibição. Juízes também menciona a recusa dos edomitas em deixar
que os israelitas passassem por Edom (cp. Jz 11.16-17 com Nm 20.17-20).
O procedimento e julgamento da vida de cada rei de Israel e Judá são
avaliados com base nas leis do Pentateuco. Assim, a descrição ao final da
vida dos reis (“fez o que era mau perante o SENHOR” ou “fez o que era reto
perante o SENHOR”) é baseada em algo bem estabelecido e não algo
subjetivo segundo o julgamento pessoal do autor. A apostasia do rei
Salomão é narrada em 1Reis 11 em termos que lembram a Lei de Moisés
quanto aos deveres e obrigações do rei (Dt 17.14ss.), especialmente as
advertências contra multiplicar cavalos (Dt 17.16) e mulheres (Dt 17.17).
Outro exemplo é a extensa narrativa da monarquia em Reis, que, em geral,
reflete o princípio de Deuteronômio, de que a obediência à Lei traz a
bênção de Deus sobre a nação, e a desobediência traz a sua maldição. Tanto
uma como a outra são expressas em termos de prosperidade material e
conquistas militares. Essa dinâmica da história da salvação é declarada em
2Reis 17.7-23. Ali se dá a explicação teológica para a queda e exílio de
Israel, moldada em termos das advertências encontradas em Deuteronômio,
especialmente 28.15-68. O autor havia interpretado as Escrituras que falam
dessa dinâmica, havia entendido o seu funcionamento e, agora, aplicava
esse princípio aos eventos de seus dias. Outros exemplos poderiam ser
acrescentados, mas o ponto que desejamos destacar é que, à semelhança de
Josué, esses livros constroem sobre o alicerce do Pentateuco.
Os profetas posteriores
Podemos observar esses mesmos princípios interpretativos nos Profetas
Posteriores (Isaías–Malaquias). Há várias evidências claras de que os
profetas escritores conheciam e utilizaram as Escrituras existentes na
composição de suas obras. Alguns poucos exemplos serão suficientes para
demonstrar este ponto.
Isaías, ao prenunciar a queda dos caldeus, referiu-se à destruição de
Sodoma e Gomorra, que está registrada em Gênesis 13 (cf. Is 13.19),
usando o mesmo vocabulário de Deuteronômio 29.23. O profeta anunciou
que Babilônia teria destino similar às duas cidades. Com certeza Isaías
recebeu uma revelação direta da parte de Deus quanto ao futuro desastre do
maior império da época. E essa revelação estava em perfeito acordo com o
princípio de operação divina estabelecido no texto de Gênesis 13 e
Deuteronômio 29, o qual afirma que Deus abate nações e cidades ímpias. A
aplicação do relato de Gênesis 13 à chegada da destruição da Babilônia
envolvia entendimento e aplicação, dois importantes componentes da
interpretação bíblica (cf. ainda Is 1.9-10). Em Isaías 3.9 o profeta interpreta
o relato bíblico sobre o estado moral de Sodoma, identificando qual o seu
pecado, e aplica o texto ao povo de seus dias. Isaías conhece o relato do
dilúvio (Is 54.9) e a história dos patriarcas (Abraão e Jacó são mencionados
frequentemente). Isaías usa ainda termos e linguagem que ecoam
claramente o texto do Pentateuco em diversos pontos, como por exemplo,
“pó será o alimento da serpente” (comp. Is 65.25 com Gn 3.14; cf. Mq
7.17), a menção de que não haverá outro dilúvio (cp. Is 54.9 com Gn 9.11),
a imagem de uma nuvem de fumaça durante o dia e fogo durante a noite
(cp. Is 4.5 com Êx 13.21-22 ou Nm 14.14), a referência à ação de Moisés
que causou a destruição dos egípcios pelas águas do mar (Is 10.26), o canto
de vitória quanto ao futuro (cp. Is 12.2b com Êx 15.2), a menção (única no
Antigo Testamento) de Levítico 11.29 em que “rato” é particularmente
mencionado como comida proibida (Is 66.17), a expressão “altos da terra”
(cp. Is 58.14 com Dt 32.13a). É fácil perceber que a linguagem do profeta é
permeada de expressões e termos provenientes das Escrituras.
Creio que a abundância de referências ao Pentateuco demonstra, ainda
que sujeita a contra-argumentação, que Isaías conhecia bem mais do que
apenas as tradições orais referentes a Moisés. Até mesmo a referência
genérica ao “livro do SENHOR” que poderia ser lido pelo povo (Is 34.16), é
uma provável referência à Lei de Moisés escrita, cuja cópia estaria
guardada no templo. Na época deIsaías, a escrita já era conhecida e comum
(Is 30.8).
O profeta Jeremias igualmente usa o Pentateuco em seus escritos. Ele
parece ecoar Êxodo 4.22, em que se diz que Israel é o primogênito de Deus,
ao referir-se a Efraim como primogênito de Deus (Jr 31.9). Jeremias 34.13-
14, por sua vez, é uma alusão clara a Êxodo 21.2 (cf. Dt 15.12). Jeremias
também menciona a “fornalha de ferro” de Deuteronômio 4.20 (Jr 11.4) e
seu chamado (Jr 1.9) é descrito em termos das características proféticas
mencionadas em Deuteronômio 18.18. O teste do verdadeiro profeta (Dt
18.22) é aplicado por Jeremias ao falso profeta Hananias (Jr 28.9).
O caso do profeta Ezequiel é ainda mais notável. O profeta praticamente
“reescreve” as prescrições de Levítico e Deuteronômio quanto ao templo e
à ordem sacerdotal, ao formular em seus escritos material relativo ao novo
templo e à nova ordem sacerdotal, claramente inspirado nesses livros (Ez
40–48). Não podemos entrar aqui nas diversas teorias que pretendem
explicar os motivos do profeta. Uma coisa é certa, ele conhecia em detalhes
as prescrições do Pentateuco sobre o templo e os sacerdotes e levitas e
usou-as largamente em sua obra. Outro exemplo é o uso que Ezequiel faz
em 22.1-16 das leis de santidade prescritas em Levítico 17–26. Além disso,
o profeta Ezequiel demonstra conhecimento exclusivo de certas passagens
do Pentateuco (cp. Ez 44.25 com Lv 21.1; Ez 44.29 com Nm 18.14). Mais
uma vez é possível argumentar que Ezequiel e os demais profetas tinham
conhecimento apenas das tradições orais referentes a material legal.
Entretanto, logo no início de seu ministério, Ezequiel tem de comer um rolo
escrito, que representa, sem dúvida, as palavras de Deus, a Lei escrita de
Moisés (Ez 3.1-4), que servirá de base para a sua profecia. Mais tarde,
Zacarias tem uma visão semelhante, de um rolo voador, que traz maldições
sobre toda a terra, possivelmente uma alusão às maldições contidas no livro
de Deuteronômio (Zc 5.1-4).
O profeta Oseias cita, interpretativamente, o episódio da queda de Adão,
que se encontra em Gênesis 3 (Os 6.7). Para o profeta, tal episódio consistiu
na quebra da aliança, um aspecto que não está explícito em Gênesis mas
que pode, por interpretação, ser deduzido do seu contexto. Não
compreendendo isso, algumas traduções trocam a expressão do texto
hebraico “como Adão” por “em Adã” (cf. a Bíblia na Linguagem de Hoje).
Oseias, após interpretar o episódio, aplica-o ao povo de seus dias, que
certamente conhecia a Lei de Moisés escrita (cf. Os 8.12). Oseias 12.3
combina Gênesis 25.26, “no ventre pegou do calcanhar do seu irmão” com
Gênesis 32.24ss, “no vigor da sua idade lutou com Deus”. Oseias 12.12
trata de eventos de Gênesis 28 e 29 da mesma maneira.
A lei de Levítico 7.13, sobre ofertas com bolos, é mencionada
unicamente por Amós (4.5). Há vários outros exemplos nos profetas,
conforme o quadro abaixo:
Quadro 4 – O uso do Pentateuco nos profetas
É importante notar que a maioria das referências mencionadas acima
ocorreu de momentos em que passagens e eventos do Pentateuco são
mencionados somente por um profeta em particular. Se tais eventos
estivessem circulando sob a forma de tradições orais em Israel, é de
estranhar que não apareçam em outros livros canônicos. Por terem sido
citados apenas uma vez por um profeta, em particular, aponta para o fato
que o profeta tinha diante de si um registro escrito, que não era facilmente
acessível a todo o povo.
Podemos dizer que os profetas escritores desenvolveram temas do
Pentateuco, e aplicaram seus princípios e leis ao relacionamento de Deus
com seu povo. A esta altura é preciso lembrar que a maior parte do
ministério dos profetas do Antigo Testamento consistia em aplicar a Lei de
Moisés às suas circunstâncias. Os profetas eram geralmente homens da
hora. Quando a nação decaía espiritualmente e sua liderança real e
sacerdotal falhava em orientar o povo na Lei de Deus, os profetas surgiam
em cena, convocando todos, inclusive reis e sacerdotes, a que se
arrependessem e voltassem para o Senhor. Essas exortações consistiam em
ameaças e advertências ao povo de que os castigos de Deus, conforme os
termos da sua aliança com Israel, estavam para vir, caso a nação persistisse
na desobediência. Por outro lado, Deus estaria pronto a conceder a sua
misericórdia e o seu perdão a todos os que se arrependessem e voltassem a
ele. O referencial da obediência e da apostasia era a Lei de Deus, que havia
sido dada a Moisés. O que é mais interessante é que até mesmo as profecias
preditivas anunciando a derrocada futura de Israel e de outras nações ao seu
redor consistiam na aplicação do princípio fundamental estabelecido nas
Escrituras de Moisés, ou seja, que as bênçãos divinas viriam sobre Israel
enquanto a nação permanecesse fiel ao pacto; em compensação, castigo e
juízo seriam derramados caso abandonasse a Deus. Assim, o profeta que
conhecia a Lei de Moisés não hesitaria em prever a sua derrota militar e
finalmente o cativeiro como castigo de Deus (cf. Dt 28). Evidentemente, os
profetas escritores eram, primeiramente, intérpretes da Lei de Deus.
Os escritos
Nos Escritos encontramos diversas obras que formam o que chamamos de
Literatura Sapiencial. Estes livros – Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e
Cantares – refletem a resposta subjetiva do crente perplexo, que percebe
que a obediência aos termos da aliança prescrita e abençoada no Pentateuco
nem sempre é recompensada. O tema subjacente do livro de Jó é
exatamente a tese, defendida no Pentateuco, que o justo obediente sempre
será abençoado, muito embora possa passar por muitas angústias e aflições
aqui neste mundo. Outro exemplo é o salmo 73, no qual a mesma
perplexidade pela aparente prosperidade dos ímpios – contradizendo à
primeira vista o princípio mosaico – aparece na experiência do salmista. Os
salmos 1 e 2 possivelmente foram colocados no início da coleção dos
Salmos, formando a sua introdução, porque seu motivo central é que a
obediência do justo é recompensada aqui e no juízo e, desse modo, dá às
orações de Davi (e demais autores dos salmos) a autoridade da Torá. Note
como o salmo 1 ecoa Deuteronômio 6, ao mencionar a felicidade do que
não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores,
nem se assenta na roda dos escarnecedores.
Dentro dos Escritos podemos mencionar o uso dos livros dos Reis pelo
Cronista. A preocupação do Cronista é entender a história de Israel da
perspectiva do exílio. A história de Asa é um exemplo da “teologia da
retribuição” que ele adota. Ele está lutando conscientemente para interpretar
a história a partir dessa perspectiva teológica. Várias das ênfases do
Cronista são desenvolvidas a partir de temas do Pentateuco. Por exemplo, a
sua ênfase na derrota militar como castigo divino segue a perspectiva de
Moisés e dos profetas. O Pentateuco apresenta a derrota como castigo de
Deus para a desobediência aos termos da aliança ou sua rebelião contra
Deus (ver Dt 28.36-37,64; Lv 26.17). Os profetas seguem a mesma
perspectiva (ver Is 8.5-8; Jr 5.10-17; Hc 1.2-11). O Cronista aplicou essas
perspectivas teológicas à sua análise da história de Israel. A nação sempre
experimentou derrotas por causa da rebelião contra Deus.
O ponto central que desejamos enfatizar é que na própria estrutura do
Antigo Testamento percebe-se a interdependência dos seus escritos.
Podemos afirmar, assim, que o Antigo Testamento é um grandioso
empreendimento hermenêutico.
Características da interpretação das Escrituras no Antigo
Testamento
Nos exemplos dados, transparecem algumas características do uso das
Escrituras pelos autores posteriores do Antigo Testamento. Não podemos,
em rigor, falar de um método de interpretação comum a todos eles, mas
podemos apontar para alguns princípios que pareciam controlar esse uso
das Escrituras em suas obras.
Atitude para com as Escrituras
Notemos a consideração dos autores do Antigo Testamento para com as
Escrituras, como sendo a infalível e autoritativa palavra de Deus quanto à fé
e prática do seu povo. Na verdade, um dosmotivos pelos quais eles usaram
as Escrituras foi dar autoridade de Escritura ao material que produziram.
Seus próprios escritos refletem a autoridade que elas têm.
Propósito aplicativo
Os autores do Antigo Testamento consideravam as Escrituras como tendo
caráter válido e permanente em contextos diferentes daqueles em que foram
escritas. Por esse motivo, o uso que fizeram das Escrituras tinha um caráter
eminentemente prático. O seu alvo ao usar as Escrituras era trazê-las para
seus dias e aplicar seus princípios à situação contemporânea. Alguns
estudiosos chamam esse uso de “atualização”. Aceitamos esse termo com a
ressalva de que os autores bíblicos não estavam re-escrevendo as Escrituras
e nem que elas, com o passar do tempo, haviam se tornado
“desatualizadas”. Em vários casos poderíamos dizer que os autores bíblicos
estavam trazendo as Escrituras para o seu próprio tempo e agregando novos
valores à eterna Palavra de Deus, num processo de interpretação inspirada.
Consciência de autoridade
Os autores do Antigo Testamento reconheciam o caráter profético das
Escrituras, pois as mesmas anteciparam situações que só viriam a acontecer
séculos depois. Junto a esse reconhecimento, vinha a consciência dos
autores posteriores de estarem escrevendo com autoridade, ao declararem
que determinados acontecimentos eram o cumprimento ou a aplicação de
princípios bíblicos em seus próprios dias.
Leitura natural do texto
Os autores bíblicos, via de regra, usaram as Escrituras existentes fazendo
uma leitura natural do seu sentido, sem alegorias ou interpretações
fantásticas. Geralmente esse uso consistia em uma aplicação atualizada da
passagem bíblica para uma nova circunstância.
Base para desenvolvimento da teologia bíblica
O uso de Escrituras anteriores pelos autores do Antigo Testamento é uma
das principais chaves para o desenvolvimento de uma teologia bíblica do
Antigo Testamento. Hermenêutica e teologia bíblica estão muito
proximamente relacionadas no círculo hermenêutico. Existe uma
codependência entre as duas disciplinas porque existe a necessidade de
interpretar e fazer teologia. Essa necessidade era uma das realidades dos
próprios autores bíblicos. Em textos como os do profeta Jeremias
encontramos todo um processo de interpretação que não só compreende a
história passada, mas também o presente e o futuro.
Midrash
Muitos estudiosos do Antigo Testamento, judeus e protestantes, têm
chamado este uso da Escritura pela própria Escritura de midrash.
Provavelmente seria um anacronismo qualificar o uso das Escrituras no
Antigo Testamento como midrash, considerando que esse tipo de literatura
e o método de interpretação a ele associado só ocorrem nos escritos
rabínicos séculos após o término do cânon (veja o próximo capítulo). A
referência seria válida se tomássemos o termo midrash em seu sentido mais
amplo, como sendo um uso prático das Escrituras em outros contextos.
Porém, mais do que simples citação de textos anteriores ou aplicação
prática, o uso da Escritura nas Escrituras do Antigo Testamento resultou na
formação do sistema doutrinário que serviu de base para a fé da Igreja
Cristã.
Conclusão
Esses princípios vistos acima inauguram uma abordagem às Escrituras que
se estendeu aos autores do Novo Testamento, como veremos mais adiante,
servindo como base e inspiração para a Igreja Cristã. Ao procurar
estabelecer um método em nossos dias que faça justiça à natureza das
Escrituras e à forma como ela foi interpretada pelos autores inspirados,
devemos levar em conta tais princípios ressalvando os aspectos únicos
decorrentes da inspiração dos autores bíblicos. O modelo de interpretação
intrabíblica que encontramos acima estabelece em largas pinceladas os
parâmetros maiores de nossa tarefa hermenêutica atual.
Capítulo 2
Os rabinos do antigo Israel
Introdução
O Antigo Testamento foi desde cedo objeto de interpretação por escribas e
rabinos que viveram no período do segundo Templo, ou seja, desde o
retorno de Israel à terra prometida até o surgimento do Cristianismo.
As Escrituras eram a obra literária central na vida dos judeus daquele
período. A destruição do templo e o desterro deixaram o povo de Israel
(especificamente o Reino do Sul) sem referencial para a sua vida religiosa.
Os três grandes marcos que representavam a estabilidade da nação ruíram: a
cidade de Jerusalém, o templo e a monarquia davídica. O desastre causou
uma volta de atenções para a Lei, sendo que os últimos autores do Antigo
Testamento concluíram seus escritos nas primeiras décadas após o retorno
do exílio na Babilônia. Sem dúvida alguma essa mudança de referencial
contribuiu grandemente para a história da interpretação. A centralidade das
Escrituras deu origem a um vasto material interpretativo, conservado e
transmitido, a princípio, de forma oral. Poucos séculos depois de Cristo,
esse material adquiriu forma escrita e fixa.
Os intérpretes da Escritura no período do segundo Templo foram os
rabinos, título dado a mestres religiosos reconhecidos, sábios, ou líderes.
Originalmente, “rabino” era uma forma respeitosa de se dirigir a alguém,
mas se tornou um título formal no século 1º d.C. para aqueles que eram
autorizados pelos seus mestres – depois de examinados na Escritura – a
interpretar e expor a Lei Judaica. Vários estudiosos pensam que os rabinos
surgiram com a necessidade de continuação da instrução da Lei ao povo
durante o exílio, que estava disperso em colônias nos vários pontos do
império babilônico.
Para os rabinos, as Escrituras eram “os escritos de Deus” ou “santos
escritos”. Consideravam-nas como tendo sido ditadas, escritas e editadas
por inspiração divina. Os livros escritos depois da cessação da profecia – o
último profeta escritor tinha sido Malaquias – não eram reconhecidos como
inspirados. O Pentateuco ocupava uma posição de destaque. Consideravase
que já existia mesmo antes da criação do mundo, e que era, portanto, eterno.
Mesmo considerando o Pentateuco como tendo origem celestial, a autoria
humana de Moisés não era negada ou desprezada.
A Torá oral
O Pentateuco, ou os cinco livros de Moisés, representavam no cânon
hebraico a primeira divisão, chamada Torá. Torá significa “instrução” e era
considerada a fonte de toda a sabedoria e vida. Por muitos séculos os judeus
somente consideravam como Torá os escritos de Moisés. Porém, no período
do Segundo Templo, surgiu a Torá oral. Os rabinos acreditavam que Deus
tinha dado duas leis a Israel: a Lei escrita e a Lei oral. Ambas eram
consideradas Torá – nenhuma tinha precedência sobre a outra. Na realidade,
a Torá escrita e a Torá oral eram uma. Ambas foram dadas por Deus “no
monte Sinai, pela mão de Moisés” segundo a interpretação de Levítico
26.46 na Sifra. A Torá oral consistia em toda a tradição exegética
desenvolvida e transmitida oralmente pelos rabinos, tanto em matérias
legais (Halakah), quanto em exposições homiléticas (Agadah). Inicialmente
a Torá oral surgiu da necessidade de traduzir-se as Escrituras do hebraico
(que entrou em declínio durante o exílio) para o aramaico. Eram feitas
leituras do texto hebraico na sinagoga e estas eram seguidas de um resumo
explicativo em aramaico. Essas paráfrases e suas explicações foram sendo
expandidas e elaboradas a ponto de surgir a necessidade de serem
registradas por escrito, dando origem aos primeiros Targumin (plural de
Targum – explicação oral de passagens lidas). A princípio, o registro das
explicações orais era proibido, mas com o tempo começou a ser feito.
Os rabinos afirmavam que a autoridade da Torá oral vinha, primeiro, da
sua antiguidade, que para os rabinos era a mesma da Torá escrita. Os
rabinos se viam como os sucessores dos sacerdotes e levitas, a quem havia
sido confiada a interpretação e aplicação da Lei em Israel. Eles sentiram a
necessidade de encontrar uma interpretação que servisse como base para
novas leis e costumes, gerando assim a Torá oral. Essas novas leis são
referidas no Novo Testamento como a “tradição dos anciãos”. Muitas
dessas tradições eram claramente interpretações forjadas da Leiescrita com
vistas a legitimar novas práticas dentro do novo contexto em que Israel
vivia. O Senhor Jesus rejeitou a Torá oral (“a tradição dos anciãos”),
considerando-a como ensino de homens conflitante com as Escrituras (ver
Mt 15.1-20; Mc 7.3 e 13. Cf. Gl 1.14; Cl 2.8).
A Torá oral, contendo essas traduções, veio a tomar forma escrita a partir
do século 3º d.C. e se constitui em fontes originais para a pesquisa da
interpretação rabínica. Mesmo que tais documentos datem de uma época
posterior ao período apostólico, muitos estudiosos acreditam que eles
contêm muito da religião e da hermenêutica judaica do período da Torá
oral. Existem muitos problemas relacionados ao uso desse material para
estudos comparativos com o Novo Testamento. Um exemplo é a tese do
estudioso J. Sanders, de que o farisaísmo judaico do século 1º d.C. não era
legalista, e sim uma religião baseada na graça de Deus. Sanders utilizou-se
dessas fontes rabínicas de data posterior ao século 1º d.C. como fundamento
de sua tese, no que tem sido muito criticado por outros estudiosos, que
consideram essa pesquisa como sendo anacrônica.
As fontes para o estudo da interpretação rabínica das
Escrituras
O aparecimento e o desenvolvimento da literatura rabínica se deu por vários
estágios importantes. O primeiro tipo de literatura a aparecer foi os
midrashim.
Midrashim
O termo midrash vem da raiz hebraica darash, que significa “investigar,
averiguar”, e denota estudo intenso, ou exame do sentido de uma passagem.
O substantivo ocorre apenas duas vezes no Antigo Testamento (2Cr 13.22 e
24.27) e é traduzido em português como “história”.
Quando se refere à época rabínica, o termo midrash pode significar tanto
um tipo de literatura quanto uma forma de interpretação da literatura
bíblica. É importante para o nosso estudo entender o midrash como um
método de interpretação. Na verdade era o método usado por alguns
escribas para chegarem ao sentido de uma passagem da Torá.
O midrash ia além de uma interpretação literal e simples, e procurava
penetrar no “espírito” da passagem, indo além do sentido evidente da
mesma. A compilação dessas interpretações orais em forma escrita no
século 3º d.C. foi chamada de Midrashim (plural de midrash). Os
midrashim, portanto, foram aquele tipo de literatura judaica produzida por
um método exegético, o midrash. São a nossa principal fonte para estudar a
exegese rabínica. Existiram pelo menos dois tipos de midrashim, os quais
descrevemos a seguir.
Midrashim haláchicos
Um primeiro tipo de midrashim que encontramos é o haláchico. A
designação halakah vem do termo hebraico halak, “a caminhada”. O termo
é usado para designar as exposições rabínicas da Torá, destinadas a mostrar
o caminho que Israel deveria seguir, ou, mais exatamente, o caminhar
requerido de alguém que queria seguir a Lei. Daí o nome halakah.
Os midrashim haláchicos são os mais antigos. Entre eles encontramos a
Sifra em Levítico e a Sifre em Números e Deuteronômio. Esses lidam
primariamente com o material legislativo da Torá, procurando identificar as
leis em meio ao extenso material narrativo. Em seguida, procuram descobrir
os princípios para elaboração de novas leis adaptadas às circunstâncias
presentes (lei oral), ou mesmo para justificar alguns costumes tradicionais
em vigência.
Midrashim agádicos ou homiléticos
Outro tipo de midrashim é o agádico ou homilético. O nome vem do
termo hebraico agadah, que significa “o relato”. Esses midrashim expõem
primariamente as narrativas da Torá (as partes que não são consideradas
material de legislação), as profecias e as experiências dos salmistas. Os
midrashim agádicos procuram definir o sentido das histórias e experiências
narradas por meio do vasto material bíblico. Seu conteúdo é, portanto, mais
homilético e livre, e contém sermões pregados pelos mestres nas sinagogas
e academias no período entre 200-500 d.C.
Quase todo material agádico foi reduzido à escrita alguns séculos depois
do período apostólico e a data exata é incerta. A redação final pode ter
levado vários séculos após o desaparecimento dos sábios cujas homilias
foram registradas.
Reproduzimos abaixo uma porção da Mekhilta de Rabi ben Ishmael, um
exemplo de midrash agádico tanaítico:
Rabi Natan ensinou: De onde [isto é, de qual passagem da Escritura] alguém
pode deduzir que Deus mostrou a Abraão, nosso ancestral, [as futuras
realidades do] inferno, a revelação da Torá, o abrir do mar Vermelho? A
Escritura diz: “E sucedeu que, posto o sol, houve densas trevas; e eis um
fogareiro fumegante” – isto era o inferno, pois a Escritura confirma: “a
fornalha [do Senhor está] em Jerusalém” [Is 31.9]. A tocha de fogo [Gn
15.17] era a revelação da Torá, pois a Escritura confirma: “Todo o povo
presenciou os trovões, e os relâmpagos, e o clangor da trombeta, e o monte
fumegante” [Êx 20.18]. E a expressão “… passou entre aqueles pedaços”
[Gn 15.17] foi o milagre do mar Vermelho, pois a Escritura confirma:
“Aquele que separou em duas partes o mar Vermelho” [Sl 136.13]. Deus
também mostrou a Abraão o Templo e os sacrifícios, como as Escrituras
indicam: “Toma-me uma novilha, uma cabra e um cordeiro, cada qual de três
anos, uma rola e um pombinho” [Gn 15.9]. Deus também lhe mostrou os
quatro impérios que estavam destinados a escravizar o seu povo, pois a
Escritura diz: “Ao pôr do sol, caiu profundo sono sobre Abrão, e grande
pavor e cerradas trevas o acometeram” [Gn 15.12]. “Pavor” é o império da
Babilônia; “trevas” é o império dos medos e persas; “grande” é o império
dos gregos; “caiu” é o quarto império, a Roma ímpia.
Mishna
Após o surgimento dos midrashim, veio o Mishna. Depois da queda de
Jerusalém em 70 d.C., mestres e estudiosos judeus conhecidos como
tannaim continuaram a elaborar e sistematizar a Torá oral, processo esse
que, segundo imagina-se, foi iniciado pelo Rabino Hillel antes de Cristo.
Por volta de 200 d.C. o Rabino Judá Ha-Nasi (c.135 — c.220 d.C.),
patriarca da comunidade judaica na Palestina, promulgou uma coleção
escrita dessas tradições. Essa obra ficou conhecida como Mishna (do
hebraico shanah, que significa “repetir”), e tornou-se o texto oficial para o
desenvolvimento da jurisprudência judaica posterior.
O Mishna é uma obra haláchica, ou seja, concentra-se na exposição de
material legislativo do Pentateuco, dividindo-os em seis seções atribuídas
ao Rabino Akiba: Sementes (Zera’im), Festas Fixas (Moed), Mulheres
(Nashim), Danos (Nezikin), Coisas Sagradas (Kodashim) e Purificações
(Taharot). Diferente dos midrashim, que são comentários extensos sobre o
texto, o Mishna quase não cita os textos bíblicos, além de ser breve.
O Mishna apela como autoridade, não para passagens bíblicas, mas para
os ditos de mais de 150 diferentes rabinos, incluindo os debates e os pontos
de discordância entre eles. Outros ditos individuais foram colecionados em
obras chamadas Baraitas. O Mishna é para os judeus a principal Escritura
depois do Antigo Testamento, além de ser considerada pelos seus autores
como parte intrínseca da Torá oral.
Talmude
Outro desenvolvimento da literatura rabínica é o surgimento dos Talmudes,
contendo o material existente para o estudo da interpretação rabínica do
Antigo Testamento. Usamos o plural porque existem dois deles: o Talmude
de Jerusalém e o da Babilônia. O primeiro é menor e menos elaborado. Foi
feito na Palestina e é o produto das discussões dos rabinos do período
amoraico sobre a interpretação do Mishna (200 — 500 d.C.), e ganhou
forma escrita apenas no século 5º. O segundo contém os ensinamentos dos
rabinos das academias da Pérsia, e é bem maior e mais sofisticado.
Ambos são compostos do Mishna e Guemara, esta última obra
consistindo de exposições minuciosas e detalhadas do Mishna pelos sábios
amoraicos. Enquanto o Mishna foi compilado em hebraico, o Guemara usa
dialetos aramaicos. No Guemara temos os debates entre os sábios
amoraicos sobre cada ponto do Mishna e nele encontramos instâncias de
exegese bíblica, em que o texto é interpretado engenhosamente, de modo a
se adaptar às tradições rabínicas.Abaixo, damos alguns exemplos selecionados da exegese rabínica
encontrada no Talmude Babilônico:
Rabi Jehoshua ben Levi disse: Grande é a paz, pois é como o fermento da
massa. Se o Santo não tivesse dado paz ao mundo, espada e bestas o
devorariam de completo, como está escrito [Lv 26.6]: “Estabelecerei paz na
terra”. Está escrito [Ec 1.4]: “Geração vai e geração vem; mas a terra
permanece para sempre”. O Rei Salomão quis dizer isto: embora uma
geração passe e outra venha, um reino desapareça e outro apareça; e apesar
de que decretos maus são passados vez após vez contra Israel, ainda assim
Israel permanece para sempre. O Senhor não abandonará os judeus. Nunca
serão aniquilados nem diminuirão, como está escrito: “Porque eu, o Senhor,
não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos” (Capítulo
sobre a paz no tratado Derech Eretz–Rabba e Zuta, do Talmude babilônico).
A soberba é equivalente à idolatria, como está escrito [Dt 7.26]: “Não
meterás, pois, coisa abominável em tua casa”; e também está escrito [Pv
16.5]: “Abominável é ao SENHOR todo arrogante de coração”. Já que a
abominação mencionada em Deuteronômio é idolatria, e a mesma expressão
é usada em Provérbios, aprendemos daí que a soberba é equivalente à
idolatria (Cap. 11 do Tratado Derech Eretz-Rabba do Talmude Babilônico).
Nunca um homem deve entrar na casa de seu vizinho sem permissão, e esta
conduta pode ser aprendida do Santo, bendito seja Ele, que ficou na porta do
jardim do Éden e chamou Adão: “Onde estás” [Gn 3.9]. Aconteceu com os
quatro anciãos Rabi Gamaliel, Rabi Jehoshua, Rabi Eleazar e Rabi Aquiba,
que foram às cidades interioranas de Roma. Numa delas vivia um amigo
deles, um filósofo. Os quatro foram vê-lo e quando o Rabi Jehoshua bateu à
porta do filósofo, este conclui de vez que aquela era a maneira de um sábio
(Cap. 5 do Tratado Derech Eretz-Rabba do Talmude Babilônico).
A exegese rabínica
Nas fontes mencionadas (Midrash, Mishna e Talmude), e especialmente nos
midrashim, encontramos os princípios hermenêuticos e os métodos
exegéticos utilizados pelos rabinos para interpretar as Escrituras de Israel.
Podemos afirmar que quanto ao seu conteúdo e propósito encontramos dois
tipos de exegese: a exegese haláchica e agádica. A haláchica dedica-se à
interpretação das leis escritas da Torá com o propósito de defini-las e
entender seus princípios. Seu alvo é elaborar novas leis ou justificar as que
já se encontram em vigor. A agádica, por sua vez, aplica-se a todo o
material de caráter não legislativo tais como narrativas, profecias e salmos.
Quanto ao método da exegese rabínica encontramos também duas formas: o
peshat e o midrash.
Peshat
O termo vem do hebraico e significa “despir”, “depenar”, e daí a ideia de
expor inteiramente. Como método o peshat é aquela atividade exegética dos
rabinos que busca expor o sentido do texto bíblico por meio de um método
similar em vários aspectos ao método que hoje chamamos de método
gramático-histórico, o qual é sensível às considerações filológicas e ao
contexto histórico da passagem. As principais características do peshat
podem ser brevemente descritas como se segue.
Busca do sentido mais simples
O intérprete deveria buscar o sentido mais simples e natural do texto,
sem engajar-se em especulações e interpretações elaboradas e distantes do
que as palavras queriam dizer. Não se procurava um sentido além daquele
que transparecia naturalmente da passagem bíblica.
Exegese literal
Na busca do sentido do texto, esse método procurava dar uma
interpretação literal à passagem bíblica. Por exemplo, na Mekilta
encontramos um peshat de Êxodo 17.8-16, em que a guerra de Israel e
Amaleque é entendida literalmente, enquanto que outro rabino,
interpretando de forma midráshica o versículo 9 (em que Moisés declara
que estaria no topo do monte), diz que o topo são os méritos dos patriarcas,
e o monte, os das matriarcas.
Atenção à linguagem bíblica
O peshat reconhecia que nem todas as palavras do texto têm
necessariamente de conter algum sentido oculto. Alegavam os que usavam
esse método que algumas palavras, se tiradas do texto, em nada faziam
falta, pois estavam lá apenas por razões estilísticas, ou para separar
assuntos.
Em geral podemos dizer que o peshat existia em oposição consciente ao
método midrash, que era bem mais livre, metafórico e alegórico. O peshat
existia nos séculos 1º e 2º d.C., mas não como uma escola de interpretação
definida. Os rabinos às vezes usavam peshat, outras vezes, midrash.
Midrash
Como já vimos acima, o termo midrash tem sido extensivamente debatido
por estudiosos judeus e cristãos quanto à sua legitimidade para cobrir toda a
literatura rabínica da época. O alvo dos intérpretes rabínicos com esse
método era encontrar a aplicabilidade da Torá para o seu próprio tempo. Ao
contrário do peshat, o método não se preocupa em estabelecer o sentido
original e contextual de uma passagem bíblica, antes, ignora totalmente o
contexto e as regras da linguagem bíblica.
É importante lembrar que o termo midrash é usado tanto para um tipo de
literatura como para um tipo de interpretação, assim como usamos hoje o
termo “alegoria”. Existe a literatura que é escrita em forma alegórica e que
deve ser lida como alegoria (e.g. O Peregrino de Bunyan) e existe a
interpretação alegórica de textos, em que se busca significados ocultos no
texto. O midrash, como interpretação, tinha diversas características.
Multiplicidade de sentidos num único texto
Ao utilizar-se do método midrash, os rabinos consideravam que as
Escrituras eram divinas quanto a origem. Como resultado, atribuíam um
sentido eterno ao texto, considerando cada expressão, cada letra, como
significante. Diziam que cada palavra tinha “70 aspectos”, e, portanto,
geração após geração poderia extrair lições de um texto, as quais eram
consideradas como latentes ou implícitas. Desse modo, apontavam para a
relevância das Escrituras e seus sentidos para todas as épocas. Na verdade,
os sábios de Israel nesse período criam na teoria da interpretação
progressiva das Escrituras. Conforme declara Nahum Sarna, exegeta judeu
contemporâneo,
A exegese rabínica está firmemente enraizada no princípio cardeal de que,
inserido no texto bíblico, há uma multiplicidade de sentidos… uma
variedade intrínseca e infindável de interpretações, mesmo que, ou talvez
especialmente em virtude de, internamente, o texto ser internamente
contraditório e repleto de antinômios, o que reforça a realidade da inspiração
divina por detrás do texto.
Alegorização do texto bíblico
Tendo o ponto acima como pressuposição básica à sua interpretação,
encontramos como principal característica do midrash a alegorização do
texto bíblico. Uma das causas para a alegorização dos textos bíblicos era o
conceito mecânico de inspiração adotado pelos rabinos, o que tendia a
minimizar o aspecto humano das Escrituras. As alegorizações surgiam
principalmente diante de algumas circunstâncias:
1. Quando encontravam hapaxlegoumena (palavras que só ocorrem uma
vez nas Escrituras) – estas eram interpretadas puramente em termos
midráshicos. Por exemplo, Rabino Ishmael não encontrou o nome das
localidades Tofel e Labã citadas em Deuteronômio 1.1 nas demais listas dos
locais de acampamento de Israel no deserto. Os rabinos seguintes
interpretaram Tofel e Labã como sendo “palavras indecentes” proferidas
pelos israelitas no deserto contra o maná por sua cor branca.
2. Quando encontravam antropomorfismos ou antropopatismos – os
rabinos se opunham a qualquer descrição material de Deus, mesmo que
fossem textos bíblicos que falassem figuradamente de Deus como tendo
corpo (antropomorfismo) ou sentimentos humanos (antropopatismo).
Textos sugerindo qualquer “materialismo” eram interpretados
alegoricamente. Por exemplo, na passagem de Êxodo 12.13 Deus diz que ao
passar “veria” o sangue do cordeiro nos portais e passaria adiante sem
causar a destruição. Os rabinos interpretam “ver” como “conhecer” para
evitar a figura antropomórfica do texto. Isto levava às vezes a interpretações
quese desviavam grandemente do sentido literal. Um texto sobre Deus
contendo algum antropomorfismo era às vezes interpretado como não se
referindo a Deus.
3. Quando consideravam uma passagem supérflua – às vezes os rabinos
alegorizavam passagens cujo sentido literal, na opinião deles, era
absolutamente supérfluo. Assim, alguns deles interpretavam os relatos da
história de Israel no deserto alegoricamente, porque criam que o propósito
da Bíblia não é descrever eventos históricos ou trazer conhecimento do
passado. Outro exemplo é a interpretação alegórica de Cantares pelo Rabino
Akiva, a qual veio a se tornar dominante, ou seja, que o livro é sobre o amor
entre a alma e Deus, entre o judeu e seu Criador.
4. Quando pensavam existir uma contradição entre textos haláchicos –
nesses casos os rabinos tendiam a harmonizar os textos por meio de
alegoria. Exemplo: os rabinos entenderam que “encontrar” o animal do
próximo, em Êxodo 23.4, implica encontro físico, e “ver” o animal do
inimigo, em 23.5, requer apenas o ver, sem aproximação física, o que se
constitui numa contradição. A solução é não interpretar “encontrar”
literalmente, mas no sentido de aproximação relativa, que os rabinos
fixaram em um quinto de milha!
5. Quando havia uma contradição entre o sentido literal do texto bíblico
e uma tradição haláchica existente (Torá oral) – nessas situações resolviam
o problema com uma alegorização do texto bíblico. Um exemplo é a
interpretação de olam, “para sempre” em Êxodo 21.6, a qual é rejeitada em
favor da interpretação haláchica, de que olam significa “até o ano do
jubileu”.
Significado dos detalhes
Os rabinos que usavam midrash buscavam significado espiritual e
teológico em todo e qualquer detalhe do texto sagrado. Não somente os
detalhes, mas até mesmo a ordem e repetição em que eles ocorriam tinham
algum sentido. O mestre nesta área foi o Rabino Akiva, que explicava cada
letra e palavra do texto hebraico. Ele ficou conhecido por achar um sentido
diferente a cada ocorrência de et, a partícula indicativa do objeto direto. Seu
opositor foi o Rabino Ishmael.
Notarikon
No midrash, cada nome próprio tinha um sentido. Aqui entra o uso do
notarikon – um método cabalístico (do hebraico Kabbalah – “aquilo que foi
recebido”) de interpretação em que o intérprete “encontra” novas palavras
usando a combinação da primeira e última letra de algumas palavras
consideradas especiais. Usavam também os métodos de divisão de palavras
para encontrar esses significados. Esses métodos, assim como a gematria,
são cercados de mistérios que seriam passados dos mestres para seus
alunos. A gematria levava em consideração o valor numérico de cada letra
do alfabeto hebraico para descobrir significados. Por exemplo, em algumas
fontes amoraicas encontra-se uma interpretação de que os 318 membros da
casa de Abraão que foram à guerra refere-se somente a Eliezer, cujo nome
tem o valor numérico de 318, segundo o sistema de gematria.
Tendência à harmonização
O midrash concebia as Escrituras como uma unidade monolítica simples,
e era insensível ao fato de que a revelação foi dada de forma progressiva, e
que há um crescendo na mesma, resultando em diferença na linguagem
bíblica. Como resultado, todas as contradições encontradas eram resolvidas
pela harmonização. Dois textos conflitantes eram geralmente harmonizados
por meio de uma terceira passagem. Por exemplo, em Êxodo 12.5 Israel
deveria trazer o sacrifício pascal das ovelhas ou das cabras, enquanto que
em Deuteronômio 16.2 diz das ovelhas ou das vacas. A contradição é
resolvida pelo Rabino Akiva com uma terceira passagem, Êxodo 12.21, na
qual Moisés ordena que os anciãos tomem um cordeiro para o sacrifício.
Atualização ou aplicação
Esta é uma característica central da interpretação midráshica. Os rabinos
interpretavam a Escritura para aplicar seus resultados ao presente.
Preocupavam-se com a aplicação contemporânea das Escrituras. Isso
tomava forma pela elaboração de novas leis que atendiam as circunstâncias
presentes e justificavam as leis já em vigor. Baseavam-se na pressuposição
de que o texto tinha múltiplos sentidos e que havia vários níveis de
significado em cada passagem. Assim, enquanto o peshat procurava
responder a pergunta: “o que o texto quis dizer na época em que foi
escrito?”, o midrash procurava responder a pergunta: “o que o texto quer
dizer hoje?”. A resposta era dada à luz das ideias e ensinos dos rabinos.
Regras de interpretação
O sistema de interpretação dos rabinos foi desenvolvido oralmente durante
um longo tempo até que as regras utilizadas foram compiladas de maneira
sistemática. Encontramos na literatura rabínica três listas de regras de
interpretação, que se propõem a esclarecer e sistematizar o método
exegético usado pelos rabinos desde cedo.
As sete regras (middot) de Hillel
Essas regras são as mais antigas. Elas são atribuídas pelo Talmude a
Hillel (século 1º a.C.), embora não seja claro se ele as criou ou adaptou.
Elas formam a base para a interpretação rabínica de material haláchico. As
regras aparecem listadas em hebraico em sentenças crípticas e curtas, e boa
parte dos estudiosos tem dificuldades em dar exemplos concretos de sua
utilização.
Qal wahomer (leve e pesado) – Inferência do menor para o maior – o
que se aplica em casos menos importantes certamente se aplicará em casos
mais importantes. Exemplo: o texto de Deuteronômio 21.21-23 afirma que
se alguém fosse executado o seu corpo deveria ser enterrado no mesmo dia
para não contaminar a terra. O Rabino Meir, usando desse princípio, conclui
que “Se Deus fica perturbado com a morte de um criminoso, quanto mais,
então, não ficará Deus perturbado com coisas ruins que acontecem com o
bom”.
Gezerah shawah (equivalência de expressões) – Inferência da analogia
de expressões – quando as mesmas palavras são aplicadas para dois casos
diferentes, segue-se que as mesmas considerações se aplicam a essas
palavras. Exemplo: comparando-se Juízes 13.5 com 1Samuel 1.11 pode-se
concluir que Samuel era nazireu, uma vez que a mesma expressão “não
passará a navalha” é usada em ambos os textos.
Binyan ab mikathub ‘ehad (construindo a partir de um texto) – Se uma
mesma sentença é encontrada em vários versos deve se aplicar o mesmo
princípio em todos. É uma generalização partindo de uma única passagem.
Exemplo: a pedra do moinho não pode ser tomada como penhor ao devedor,
pois representa a segurança de sua vida (Dt 24.6). A regra pode ser gene-
ralizada para incluir tudo que representa a segurança do indivíduo.
Binyan ab mishene kethubim (construindo a partir de dois textos) – Se
um princípio é estabelecido relacionando dois versos, esse princípio, uma
vez estabelecido, pode ser aplicado a outros versos. É uma generalização
partindo de diferentes passagens.
Kelal upherat (o geral e o particular) – Se uma lei ou proposição geral é
seguida da enumeração de particulares, a lei geral só se aplica aos
particulares ali enumerados; se categorias específicas são seguidas de uma
proposição geral, a proposição geral pode ser aplicada a outros particulares.
Kayoze bo bemaqom áher (analogia feita de outro lugar) – A dificuldade
em uma lei pode ser resolvida comparando-a com outro texto similar.
Dabar halamed meinyano (explicação obtida do contexto) – O sentido
de uma passagem pode ser deduzido pelo seu contexto. Exemplo: Êxodo
16.29 é qualificado pelo contexto, de outra forma, a proibição incluiria
inclusive o sair de casa durante o sábado.
Com essas regras os sábios estavam interessados em esclarecer o tipo de
comportamento específico esperado dos seguidores da Lei. Essas regras
eram livremente usadas de acordo com a necessidade do intérprete. Não
encontramos nelas nenhuma instrução sobre como e quando deveriam ser
usadas.
As Sete Regras foram expandidas para formar as Treze Regras do
Rabino Ishmael, segundo a introdução do Sifra (comentário em Levítico),
ainda que outras fontes discordem quanto ao número e composição das
mesmas. Como as regras de Hillel, elas eram usadas pelos rabinos para
explicar parteshaláchicas do Pentateuco, embora ocasionalmente fossem
usadas para material agádico.
Além dessas, encontramos ainda as Trinta e Duas Regras do Rabino
Eliézer, que é a lista mais longa e detalhada. Ela contém regras para
interpretação da agadah, e aparece em fontes datando de vários séculos
depois de Cristo, e, portanto, não pode servir com segurança como fonte
para a interpretação rabínica do período apostólico.
A maior parte dessas regras de interpretação representa princípios
racionais e lógicos, que podem ser encontrados na literatura de qualquer
povo. Muitos estudiosos argumentam que há muito pouco (ou quase nada)
que seja caracteristicamente “rabínico” nessas regras. O que é
reconhecidamente rabínico é o uso casuístico que os rabinos fizeram dessas
regras, utilizando-as para amoldar a Escritura ao material haláchico em
vigor, derivando interpretações absurdas, como por exemplo: “Se o prato de
ouro do altar resistia ao fogo, quanto mais um transgressor em Israel!”.
Conclusão: nenhum israelita sofreria as penas do fogo eterno do Gehenna.
O Novo Testamento e a exegese rabínica
Uma questão interessante no estudo dos intérpretes da Bíblia é se os
escritores do Novo Testamento utilizaram-se, em sua hermenêutica, dos
princípios e métodos rabínicos de interpretação. O tipo de interpretação
encontrado no Novo Testamento é rabínico, considerando que seus autores
eram judeus? No caso de Paulo, que era um rabino treinado, a questão
ganha dimensões ainda mais interessantes.
Vários estudiosos contemporâneos afirmam que a interpretação paulina é
basicamente rabínica. Analisemos algumas das alegações quanto à
interpretação de Paulo, que foi um aluno de Gamaliel e que, segundo a
tradição, foi a segunda geração dos sucessores de Hillel.
Era Paulo um rabinista?
Muitos estudiosos reivindicam ter achado nas cartas de Paulo inúmeros
paralelos entre a sua exegese e a exegese rabínica. Segundo esses
estudiosos, era de se esperar que Paulo, como filho de sua época, utilizasse
na sua interpretação das Escrituras os métodos exegéticos vigentes. Embora
sua conversão tivesse revolucionado sua forma de encarar o Antigo
Testamento, o treinamento rabínico que havia recebido aos pés de Gamaliel
permaneceu firmemente gravado em seus métodos e hábitos de leitura e
exposição.
Diversos autores, como A. F. Puukko (1928), sugeriram que Paulo não
somente conhecia, mas de fato utilizou as Sete Regras de Hillel. Puukko foi
seguido por H. J. Schoeps, H. Hüller e Joaquim Jeremias. Este último
defendeu a tese de que Paulo era um hillelita treinado. Dois defensores
modernos da origem rabínica da hermenêutica Paulina são Earle Ellis e
Richard Longenecker, o qual explica a liberdade que Paulo usa para com o
Antigo Testamento como sendo instâncias de midrash rabínico. Mais
recentemente, Paul J. Tomson defendeu a tese de que o fator controlador do
pensamento de Paulo (e consequentemente, do seu uso do Antigo
Testamento) era uma vida estruturada pela halakah.
Paralelos citados
Alguns dos paralelos que são normalmente citados para provar que Paulo
funcionava como um rabino treinado no uso do Antigo Testamento em suas
cartas são estes:
1. Uso de midrash em Romanos 9-11, ou seja, citação de passagens do
Antigo Testamento, algumas vezes ligadas entre si por uma palavra-chave e
seguidas de um comentário ligeiro e informal com vistas a uma aplicação
atualizada da passagem ao presente.
2. Uso da primeira regra de Hillel (Qal wahomer – leve e pesado) “do
menor para o maior” em 1Coríntios 9.9, citando Deuteronômio 25.4; e
ainda 2Coríntios 3.6-11 citando Êxodo 34.30 e Jeremias 31.31ss.
3. O midrash em 1Coríntios 10.1-4 da agadah sobre a peregrinação dos
israelitas no deserto, ou seja, há uma expansão e atualização da passagem
com a alegorização da “rocha”.
4. O tratamento altamente alegórico da agadah sobre Sara e Hagar em
Gálatas 4.21-31. Paulo mesmo denomina a passagem de “alegoria”.
5. Seu argumento baseado no singular da palavra sperma em Gálatas
3.16, conforme está na Septuaginta (Gn 12.7; 13.15; etc.), que relembra os
artifícios rabínicos baseados em uma única palavra ou letra.
6. O midrash em Abraão, o pai da fé, em Romanos 4.
Fórmulas literárias fixas
Além dos paralelos citados acima, alguns estudiosos vão mais longe e
reivindicam identificar em Paulo (e no Novo Testamento) ocorrências de
fórmulas literárias de exposição rabínica que aparecem na literatura rabínica
de vários séculos depois de Cristo, como o yelammedenu rabbenu (“que
nosso mestre nos ensine”). Essa fórmula que tratava de material haláchico
consistia de:
a) Tema e pergunta levantados pelo texto do dia;
b) Contrapergunta e exposição, que era feita via exposição de textos
secundários, ligados ao texto inicial e ao tema por palavras-chave;
c) Aplicação escatológica por meio de um argumento “do menor para o
maior”;
d) Texto final.
Alguns estudiosos identificam um padrão similar em Gálatas 4.21 – 5.1:
a) Introdução e texto inicial – 4.2ss com Gn 21;
b) Citação suplementar (4.27; Is 54.1) e exposição ligada verbalmente ao
texto inicial e final (4.22-29);
c) Texto final e aplicação (4.30 – 5.1).
Embora reconheçamos que a autoridade exegética de Paulo em nada
seria diminuída pela utilização de regras e métodos rabínicos, devemos ao
mesmo tempo estar cientes dos inúmeros problemas relacionados com
estudos comparativos entre o Novo Testamento e a literatura rabínica. Em
primeiro lugar, muitas dessas similaridades se devem ao fato de que
algumas regras de interpretação são universais, lógicas, e se encontram não
somente na literatura rabínica, mas na grega e na romana, como, por
exemplo, a regra “do maior para o menor”. Ao dizer que “se Deus não
poupou o seu próprio Filho… como não nos dará com ele todas as coisas”
Paulo não estaria necessariamente seguindo uma regra de Hillel, mas uma
lógica universal, de que quem dá o maior, também dá o menor.
Os problemas com fontes rabínicas
Em segundo lugar, muitos estudiosos citam fontes rabínicas aparentemente
sem a devida atenção a muitos desses problemas. Listamos abaixo alguns
destes problemas discutidos por P. S. Alexander em seu excelente artigo
(veja a bibliografia).
O estado dos textos rabínicos
Muitos textos rabínicos (Midrashim, Mishna e Talmude) não dispõem
ainda hoje de um aparato crítico. Existe uma tremenda discrepância entre os
manuscritos mais antigos de boa parte do material rabínico mais importante.
Existem tantas variantes que se pensa que esse material passou por várias
recensões. Por exemplo, o texto final da Mekhilta do Rabino Ishmael,
editada por Horovitz-Rabin, difere assustadoramente do texto final editado
por Lauterbach. A primeira questão, portanto, é qual texto do Mishna, do
Talmude e dos Midrashim será usado para a comparação. Não há resposta
fácil a essa pergunta.
A compreensão dos textos
Em muitos casos, estudiosos do Novo Testamento estão lendo os textos
rabínicos com os óculos dos comentaristas judeus medievais. Existe pouca
dúvida hoje que Rashi e Maimônides, comentaristas rabínicos da Idade
Média, impuseram, em certa medida, a sua própria interpretação aos textos
originais. Os estudos rabínicos devem progredir no sentido de determinar o
que os textos queriam dizer na época em que foram escritos. Antes disso,
uma comparação com os textos do Novo Testamento fica difícil.
A data exata dos textos rabínicos
As datas geralmente aceitas hoje são aquelas determinadas pelos
estudiosos do século 19, como Zunz. Geralmente essas datas são
grandemente questionáveis e foram determinadas a partir de critérios
bastante subjetivos. Sabemos que os escritos rabínicos se desenvolveram a
partir de material oral transmitido ao longo de séculos, e que a data exata da
sua colocação em escrita é extremamente difícil de determinar. Em alguns
casos, a margem de erro pode chegar até 200 anos. Nesse caso, uma
comparação com o material do Novo Testamento, que data do século 1º
d.C., corre o risco de se tornar absolutamente anacrônica.
A exatidão das atribuições
Atribuição é um dito “atribuído” a determinadorabino. Por exemplo, um
rabino declara: “Rabino Fulano de Tal disse isto e isto”. A autoridade que o
Mishna reivindica é basicamente a das atribuições. Mas, será que são
exatas? Como podemos saber? Os críticos do Novo Testamento hoje são
muito mais céticos quanto aos ditos de Jesus nos evangelhos do que quanto
às atribuições. Muitos hoje aceitam um dito atribuído a Hillel quinhentos
anos após a morte dele! Às vezes o mesmo dito é atribuído a rabinos
diferentes. Além disso, o conteúdo das atribuições não deve ter
permanecido estável, mas sofreu alterações substanciais durante o longo
período de transmissão. Portanto, é praticamente impossível recuperar-se
hoje o dito original e literal do rabino em questão.
Anacronismo
Muitas vezes encontramos estudiosos do Novo Testamento citando
textos rabínicos dos séculos 4º e 5º, ou de ainda mais tarde, para ilustrar o
ensino e métodos rabínicos do século 1º. Assume-se que há uma
continuidade ininterrupta entre os fariseus dos anos 70 d.C. e os rabinos que
vieram depois. Porém, os traumas causados pela derrubada do templo no
ano 70 d.C., bem como pela derrota de Bar koshba em 135 d.C., quando o
Judaísmo perdeu sua instituição religiosa central e a sua liderança,
certamente contribuíram para a quebra da continuidade. O Judaísmo que
emergiu no século 2º d.C. dificilmente seria o mesmo daquele do século
anterior. O axioma judaico de uma tradição farisaico-rabínica ainda não foi
provado.
Paralelomania
Muitos estudiosos são culpados de “paralelomania”, isto é, eles colocam
lado a lado elementos do Cristianismo e Judaísmo primitivos, constatam
similaridades e, com base nelas, concluem que o Cristianismo copiou isto
ou aquilo do Judaísmo da época. Além do fato de que não havia uma forma
única do Judaísmo no período apostólico (fariseus, saduceus, essênios, Filo,
apocalípticos, etc.), similaridades de pensamento e métodos podem se
explicar de outra maneira que não dependência direta.
Conclusão
Em razão dos problemas relacionados com o material rabínico disponível
para comparações, o estudioso do Novo Testamento deve ser cauteloso ao
citar os Midrashim, Mishna, Talmude e outros materiais rabínicos para
ilustrar o farisaísmo do período apostólico. O método de Paulo, bem como
dos demais autores do Novo Testamento, em usar o Antigo Testamento não
pode e nem deve ser entendido exclusivamente à luz dos métodos rabínicos
que aparecem em escritos datando de uma época bem posterior. Não
devemos, portanto, assumir que o tipo de interpretação do Antigo
Testamento que encontramos no Novo Testamento seja exclusivamente
rabínico. Muito ainda há para ser atestado em termos de cronologia para
que se possa fazer afirmações mais diretas sobre o tema.
Capítulo 3
A comunidade do mar Morto
Introdução
A descoberta, no início de 1947, de antigos manuscritos em cavernas nas
proximidades da vila de Qumran, situada na margem norte do Mar Morto,
na Palestina, trouxe mais luz sobre os intérpretes das Escrituras do Antigo
Testamento no período do segundo Templo e no início do período
apostólico. Esses documentos, agora conhecidos como Manuscritos do Mar
Morto, embora aparentemente produzidos por uma seita judaica que havia
se isolado da corrente principal do Judaísmo da Palestina, certamente
refletem as práticas hermenêuticas em vigor naquela época.
O tipo de interpretação que encontramos nesses manuscritos, conquanto
tenha similaridades com a exegese rabínica que estudamos no capítulo
anterior, distancia-se desta e se aproxima mais daquela praticada no Novo
Testamento, em diversos aspectos que comentaremos mais adiante. Isso não
quer dizer que os intérpretes de Qumran conhecessem a literatura cristã
produzida em meados do século 1º – embora haja estudiosos que sustentem,
até agora sem comprovação, que entre os fragmentos encontrados em
Qumran havia pedaços do evangelho de Marcos, como o erudito católico
José O’Callaghan. O reverso também é verdadeiro. Não existe qualquer
evidência indiscutível de que os autores do Novo Testamento conheciam a
comunidade de Qumran, seus ensinamentos e seus escritos, muito embora
uns poucos eruditos ainda sugiram uma estada de João Batista ou de Jesus
entre os membros da seita durante um período.
Apesar de não existir uma dependência direta comprovada, tanto os
escritos do Novo Testamento quanto os da irmandade de Qumran foram
produzidos na mesma época e dentro de um mesmo contexto linguístico,
cultural e, até certo ponto, religioso: as duas comunidades se consideravam
legítimas herdeiras do Judaísmo. Esse fato certamente explica as
semelhanças entre o modo como o Antigo Testamento é interpretado em
Qumran e no Novo Testamento.
A comunidade que produziu os Manuscritos
Perguntemos agora quem foram os intérpretes do Antigo Testamento em
Qumran. Para a resposta, devemos lembrar que estamos tratando de duas
descobertas arqueológicas na mesma área: os manuscritos encontrados em
jarros de barro dentro de várias cavernas, e em um mosteiro não muito
distante. Qual é a exata relação entre as duas? Foram os manuscritos
produzidos pela comunidade que vivia no mosteiro? A comunidade apenas
adquiriu e guardava tais manuscritos? As cavernas eram a biblioteca da
comunidade? O que levou a comunidade a esconder ali os seus preciosos
escritos? Ou se trata de duas descobertas sem qualquer relação uma com a
outra?
Algumas dessas perguntas continuam ainda hoje sem uma resposta
unânime por parte dos estudiosos. Mas parece ser consenso da maioria que
uma irmandade de essênios morava no mosteiro e que os manuscritos são
de sua autoria. Acredita-se que a irmandade abandonou o mosteiro durante
a invasão romana da Palestina em 68 d.C. Os romanos posteriormente
destruíram também o templo em 70 d.C. Antes da invasão romana os
essênios teriam escondido nas cavernas seu bem mais precioso, que era a
biblioteca. Após esse período, nada sabemos sobre o destino da seita.
Entretanto, existe uma corrente menor de estudiosos sugerindo que os
manuscritos haviam sido produzidos em Jerusalém e guardados no Templo,
até que fossem levados, às pressas, diante da proximidade da invasão
romana, para a segurança de cavernas fora da cidade, onde ficaram até sua
descoberta em nossa época. Desse modo, esses manuscritos refletiriam o
tipo de interpretação judaica em vigor no coração do Judaísmo, pouco antes
de Jesus surgir em cena e, quem sabe, até durante sua época. Essa teoria é
atraente e explica diversas coisas, como por exemplo, a enorme quantidade
de manuscritos (que deveria ter sido difícil de produzir por uma única
seita), mas carece de maior fundamentação. A maioria dos estudiosos ainda
pensa que os manuscritos foram realmente produzidos pela comunidade que
habitava no mosteiro, embora se dividam quanto à origem da comunidade:
se dos fariseus ou dos saduceus. De qualquer maneira, os manuscritos
contêm, no mínimo, informações preciosas sobre a exegese das Escrituras
praticada por uma linha do Judaísmo naquela época.
Precisaremos conhecer um pouco mais a comunidade que abrigava os
rolos, para melhor entender a hermenêutica dos intérpretes da Bíblia que
labutaram ali. As principais fontes para a história e identidade da
comunidade à qual pertenciam esses intérpretes são os próprios rolos
encontrados e as informações fornecidas por autores antigos, como Flávio
Josefo (37-93 d.C.), Plínio, o Velho (23-79 d.C.) e Filo de Alexandria (c.20
a.C. – 50 d.C.).
Quem escreveu os Manuscritos?
Quanto aos manuscritos encontrados, devemos notar que nenhum contém
uma autoidentificação, ou narrativa direta e explícita da história da
comunidade. O conhecimento que obtemos dos manuscritos é indireto e
deduzido. Este é um dos motivos pelos quais os estudiosos não são
unânimes em suas conclusões sobre a verdadeira identidade da seita, muito
embora a maioria deles entenda que a seita era composta de essênios. Flávio
Josefo menciona um grupo de essênios em suas obras “Antiguidades
judaicas” e “Guerras dos Judeus”. Também Plínio, o Velho, fala sobre o
grupo em suas obras “Hipotética” e “História Natural”(c. 77 d.C.). Nesta
última, ele menciona que a seita dos essênios morava ao longo das margens
do Mar Morto.
Filo, o filósofo-teólogo judeu de Alexandria, em seu tratado “Todo
Homem Bom é Livre”, menciona o grupo dos “terapeutas” e descreve os
membros desse grupo de uma maneira admiravelmente similar ao que
sabemos da irmandade que vivia no mosteiro próximo às cavernas. Ele faz
um contraste entre os “terapeutas” e os essênios, que ele considerava como
outra seita do Judaísmo: (1) os essênios eram artesãos – os terapeutas
tinham uma vida contemplativa de Deus; (2) os essênios eram homens
solteiros – os terapeutas tinham mulheres como membros (notar que Flávio
Josefo dizia que alguns dos essênios eram casados); (3) Filo contrasta as
refeições dos terapeutas (sagradas e realizadas no sétimo dia) com as orgias
descritas na literatura grega de Homero e as refeições filosóficas de Platão.
Embora ainda existam problemas não resolvidos com relação à história e
identidade exatas da comunidade que guardava os manuscritos (e que
possivelmente produziu a maioria – ou todos – deles), os estudiosos
concordam em alguns pontos centrais.
Existem duas teses principais quanto à origem da seita. Na primeira,
acredita-se que a comunidade formou-se entre 150 e 100 a.C., quando um
grupo de judeus piedosos, possivelmente fariseus, retirou-se da Palestina
para Qumran, em protesto contra a liderança ilegítima dos sacerdotes
hasmoneanos, que passaram a controlar o Templo, o culto e os sacrifícios.
Na segunda teoria, defende-se que a comunidade formou-se a partir de um
grupo de saduceus que se retirou para o deserto, quando os Macabeus, ao
assumirem em 152 a.C. o controle da nação, após a revolta vitoriosa contra
os gregos selêucidas, adotaram a tradição legal dos fariseus. Aqui, em nossa
obra, adotamos a primeira tese, que representa a maioria, ou seja, que a
origem da comunidade é farisaica. O líder da revolta e da debandada para o
deserto parece ter sido o “Mestre da Justiça”, personagem misteriosa e não
identificada nos escritos da comunidade, mas a quem se atribui a autoria de
boa parte do material produzido e a primeira liderança da irmandade.
A maioria dos estudiosos identifica a comunidade como sendo um grupo
de “essênios” conforme mencionados por Flávio Josefo, Plínio e Filo, muito
embora nessas descrições encontremos contradições. Por exemplo, Flávio
Josefo se refere ao fato de que os essênios se casavam, enquanto que Plínio
e Filo parecem sugerir que eram celibatários. O fato de que foram
encontradas ossadas de mulheres e crianças no cemitério do mosteiro pode
fazer a balança pender em favor de Flávio Josefo. Os essênios, segundo ele,
representavam a terceira seita dos judeus, ao lado dos fariseus e saduceus.
Crenças da comunidade
Com base nos manuscritos produzidos pela comunidade pode-se
sistematizar as suas principais crenças. Os comentários aos livros bíblicos
feitos por membros do grupo – provavelmente o Mestre da Justiça escreveu
a maioria deles – bem como os escritos que tratavam da vida comunitária e
das suas práticas religiosas, revelam um conjunto de convicções que
formavam a base doutrinária e prática da irmandade, bem como os
princípios que controlavam sua interpretação das Escrituras de Israel.
Abaixo mencionamos apenas aquelas que aparentemente influenciaram de
modo determinante os intérpretes bíblicos da comunidade.
O verdadeiro Israel
A comunidade considerava-se o remanescente fiel de Israel, profetizado
nas Escrituras. O Judaísmo palestino, para eles, havia se desviado e
corrompido o culto no templo de Jerusalém. Eles cortaram suas relações
com o templo e com o Judaísmo, e em vez de oferecer sacrifícios, tinham
uma refeição comunal para os mais avançados da seita. Mantinham uma
atitude crítica para com o Judaísmo da Palestina e sua liderança sacerdotal.
Como o verdadeiro povo de Deus, aguardavam a restauração do culto no
templo e do verdadeiro sacerdócio. Sua interpretação das Escrituras era
controlada por esta crença, que os levava a encontrar passagens que
comprovavam essa avaliação. Veremos alguns exemplos mais adiante.
Outro aspecto da sua crença, já que acreditavam serem o verdadeiro
Israel, era o conceito da nova aliança. Os essênios criam que a nova aliança
profetizada por Jeremias (Jr 31.31-34) havia sido estabelecida por Deus
com a comunidade, quando eles se retiraram para o deserto. A antiga
aliança havia sido desfeita no exílio, e Israel ainda estava no cativeiro.
Porém, Deus havia estabelecido a sua aliança com o verdadeiro Israel, cujo
líder e fundador era o “Mestre da Justiça”. O fato de se considerarem o
povo da nova aliança, a continuação legítima do período bíblico, fazia que
entendessem que somente eles tinham acesso à correta interpretação das
Escrituras.
Os últimos dias
A consciência escatológica está presente nos escritos da comunidade.
Eles acreditavam estar vivendo nos últimos tempos, conforme anunciado
pelos profetas, e aguardavam a manifestação escatológica de Deus, por
meio da batalha final entre o bem e o mal. Nesta batalha, Deus destruiria
todo o mal e purificaria Jerusalém. Eles tomariam parte nessa batalha, como
os “filhos da luz”. Os detalhes da batalha estão descritos no Rolo da
Guerra, em que se narra a batalha a ser travada no último dia entre os filhos
das trevas e os filhos da luz. Comentando Isaías 10.34–11.2, o autor dessa
obra diz que o rebento de Jessé é o Príncipe da Congregação, o líder da
comunidade, que matará com golpes os inimigos. Diz ainda que um
Sacerdote de renome comandará a morte dos Kittim.
Aparentemente, alguns membros de Qumran se juntaram aos zelotes,
outro ramo do Judaísmo, na fortaleza de Massada, a oeste do Mar Morto, no
início da década de 70 d.C., para resistir à invasão romana (um rolo dos
Salmos e do livro de Eclesiástico, similar aos rolos encontrados nas
cavernas de Qumran, foram encontrados nas ruínas de Massada). Eles
devem ter julgado que a luta dos zelotes contra Roma era a última guerra
contra o mal, mencionada no Rolo da Guerra. Massada caiu, conquistada
pelos romanos, entre 72 e 74 d.C., sob o comando do general Flavius Silva.
Muitos dos defensores de Massada cometeram suicídio para não cair
prisioneiros dos romanos.
Messianismo
A crença messiânica dos essênios não é fácil de se precisar.
Aparentemente, criam na futura aparição de três messias: o Messias de
Israel, da descendência de Davi; o Messias de Arão, descendente de Arão, o
sumo sacerdote. Esse recebia maior importância no conceito da
comunidade; e ainda outro, que seria o Profeta a aparecer nos últimos dias e
que restauraria a profecia que havia cessado em Israel após Malaquias. Os
fariseus já haviam desenvolvido a crença na ideia dos dois primeiros
messias (de Israel, que seria um líder político, e o de Arão, um sacerdote),
partindo de Zacarias 4.14. Mas os essênios acrescentaram ainda um
terceiro. Além do mais, eles levavam muito mais a sério a sua expectativa
messiânica. No seu afã de se prepararem para a chegada dos messias,
isolaram-se do mundo, praticavam o celibato (alguns) e seguiam rituais
purificatórios. Eles eram tão legalistas, ou mais, quanto os fariseus.
As Escrituras
Os essênios aceitavam o Antigo Testamento como sendo a Palavra de
Deus, e se propunham a uma observância meticulosa e detalhada da Lei de
Moisés conforme interpretada pelos seus líderes. Criam que a eles, e
especialmente ao fundador da comunidade, o Mestre da Justiça, Deus havia
revelado o verdadeiro sentido das Escrituras. As interpretações dele são
consideradas como inspiradas e dadas por revelação divina. O Judaísmo da
Palestina já estava desenvolvendo a ideia de um cânon de livros sagrados e
inspirados por Deus, como consequência do término da inspiração profética
com Malaquias. A comunidade de Qumran, entretanto, via a Bíblia como
ainda aberta, e a ela associaram seus escritos, como sendo também
inspirados. Uma boa parte do tempo era dedicada à cópia e estudo da Lei.
Um dos juramentos feitos pelos membros incluía o de preservar os escritos
da comunidade. Foi,provavelmente, graças a isso que hoje temos a sua
biblioteca.
Os escritos da comunidade
A irmandade de Qumran produziu muitos manuscritos. Os escritos
encontrados nas cavernas podem ser classificados de diversas formas. Aqui
seguiremos a classificação conforme o conteúdo.
Escritos bíblicos
Até a descoberta dos rolos do Mar Morto, os manuscritos mais antigos
do Antigo Testamento em hebraico datavam dos séculos 9º e 10º d.C., e os
em grego (Septuaginta) do século 4º d.C. Os manuscritos achados em
Qumran, contendo textos de livros do Antigo Testamento em hebraico,
datam de um milênio mais cedo. Especialistas acreditam que a grande
maioria dos manuscritos foi produzida entre o século 3º a.C. e 68 d.C. Um
fragmento da Septuaginta também foi encontrado.
Foi achado nas cavernas um rolo contendo o livro de Isaías completo
(existe outra cópia danificada e incompleta), cerca de 20 rolos contendo
mais de cem dos salmos e fragmentos de Levítico. Esses são mais
preservados. Além desses, foram achados fragmentos de mais 21 livros do
Antigo Testamento. No geral, preservam a mesma leitura do texto
Massorético, no qual se baseiam as versões da nossa Bíblia em português,
com pequenas alterações (adições e omissões) feitas pelos escribas de
Qumran. Uma curiosidade foi a descoberta de filactérios, pequenas caixas
de couro com textos bíblicos em miniatura, cuidadosamente escritos com
um incrível grau de miniaturização. Filactérios eram populares na Palestina,
e eram usados especialmente pelos fariseus.
Os demais livros do Antigo Testamento são atestados em outros
manuscritos da irmandade (exceto Ester). Também foram achados rolos e
fragmentos de vários livros apócrifos, como Gênesis Apócrifo (em
aramaico), Tobias, Eclesiástico, o Livro do Jubileu, o Livro de Enoque, e
alguns dos Testamentos dos Doze Patriarcas.
Alguns estudiosos reivindicam que fragmentos em grego encontrados
nas cavernas são de livros do Novo Testamento, entre eles os evangelhos de
Mateus e Marcos (6.52-53), e as cartas de Tiago e 1Timóteo. Outros
estudiosos, aceitando essas reivindicações, propõem uma revisão completa
nas teorias que datam Marcos após 70 d.C. e 1Timóteo no século 2º.
Entretanto, a maioria dos estudiosos tem rejeitado essa identificação, pois
não há qualquer evidência nos manuscritos de que a comunidade conhecia
Jesus. Há um texto que foi intitulado “O Messias Crucificado” (4Q285),
mas é altamente polêmico quanto à origem e conteúdo. Há outro fragmento
em aramaico (4Q246) que menciona “o filho de Deus”, como um herói
militar, mas a descrição que faz desse Messias é bastante diferente de Jesus
e de seu ministério.
O que nos concerne, agora, é a preocupação da comunidade em manter
uma biblioteca com tantos escritos bíblicos. A resposta que nos parece mais
evidente é o alto apreço que a comunidade tinha pelas Escrituras, a sua
separação dos sacrifícios e do culto no templo de Jerusalém. Esse último
fator provavelmente havia deslocado o centro de sua atividade religiosa, ou
seja, do templo para as Escrituras (coisa similar iria acontecer mais tarde no
Judaísmo, após a destruição do templo em 70 d.C.).
Escritos religiosos
Dentre os manuscritos mais conservados encontram-se aqueles
relacionados com a vida da irmandade. Essas obras detalham regras de
conduta e instrução religiosa dos sectários, e constituem a fonte mais
importante para a reconstrução de sua história, crenças e práticas. A maioria
delas aparenta ter sido escrita pelo seu líder, o Mestre da Justiça. As
principais obras são estas:
A Regra da Comunidade (1QS) – É possivelmente o documento mais
antigo da irmandade. Contém instruções sobre o processo de iniciação, a
vida comunal, o exercício da disciplina para com os faltosos, um código
penal, um modelo de sermão, extratos litúrgicos, entre outras coisas.
Esporadicamente, uma passagem das Escrituras é mencionada como texto-
prova de uma regra ou instrução.
O Documento (ou Pacto) de Damasco (CD) – Já em 1896-7 duas cópias
desse documento, datando do período medieval (séculos 10º e 12), haviam
sido descobertas num depósito (“geniza”) no Cairo. Mas por falta de
maiores informações ou referenciais históricos, não se fez qualquer ligação
entre os dois textos descobertos e a irmandade dos essênios mencionada
pelos antigos. Até que em Qumran foram descobertos fragmentos extensos
do mesmo documento. O título “Pacto de Damasco” vem da sua
autodesignação como “uma exortação aos que são da nova aliança feita na
terra de Damasco”. O documento se divide em duas partes, uma
“exortação” e uma série de “estatutos”. Na “exortação”, o Pregador –
possivelmente o Mestre da Justiça – exorta seus “filhos” a perseverar nos
caminhos da irmandade, demonstrando, a partir da história de Israel no
Antigo Testamento, que a obediência sempre é recompensada e que a
desobediência é sempre castigada. Aqui, o autor frequentemente cita e
interpreta o Antigo Testamento para dar sustentação ao seu ensino, e com
exceção dos comentários bíblicos, essa obra é a mais importante para nosso
entendimento de como esses intérpretes usavam as Escrituras. Os
“estatutos” consistem em uma coleção de leis da irmandade, baseadas numa
reinterpretação de mandamentos bíblicos sobre juramentos, tribunais, a
guarda do sábado, entre outros assuntos.
O Rolo da Guerra – Uma das primeiras obras a ser encontradas, o rolo
contém um trabalho teológico sobre a batalha do bem contra o mal, cujo
clímax é atingido na guerra final entre os filhos das trevas (talvez os
romanos?) e os filhos da luz (os membros da irmandade). Essa guerra seria
travada “nos últimos dias”, expressão tirada dos profetas (cf. Is 2.2; Jr
48.47; e especialmente Ez 38.16). A vitória final seria dos filhos da luz, que
então teriam acesso ao templo de Jerusalém para restabelecer o culto a Deus
conforme a sua fé. Após cerca de 30 anos, Israel derrotaria todas as nações
da terra, conquistando-as. A obra contém uma exposição detalhada da
ordem de batalha, os armamentos, a tática ofensiva, as vestimentas dos
guerreiros e a tarefa dos sacerdotes. Foi composta possivelmente entre 150
a.C. e 68 d.C., e aparentemente inspirou-se no livro de Daniel.
Exposições bíblicas
Várias das obras encontradas nas cavernas podem ser classificadas como
exposições bíblicas. Nelas, aparentemente, o Mestre da Justiça e outros
intérpretes da irmandade entendem as Escrituras à luz da história recente da
seita. Podemos dividi-las em duas categorias.
Comentários ou “Pesherim” – São “comentários” feitos aos livros
proféticos, procurando demonstrar que as profecias das Escrituras
encontraram seu cumprimento na história recente da irmandade. Consistem
na citação, verso por verso, do texto bíblico, os quais são seguidos por uma
interpretação introduzida pela expressão hebraica pshr (pishrô), que pode
ser traduzida como “a sua interpretação é…”. Daí o nome “pesherim”.
Foram descobertos “pesherim” de Isaías, Naum, Habacuque, Oseias e
Miqueias, além de um comentário em alguns salmos. Os “pesherim” mais
importantes são o Comentário de Habacuque e o Comentário de Naum. Do
primeiro só sobreviveram os capítulos um e dois de Habacuque. É
possivelmente o documento mais importante como fonte primária sobre a
hermenêutica da seita. Naum é abundante em referências históricas, este
“pesher” se constitui numa das fontes mais importantes para a
reconstituição da história da seita.
Expansões bíblicas – São obras em que as narrativas bíblicas são
reescritas e expandidas. As mais conhecidas são “Gênesis Apócrifo”,
“Samuel Apócrifo”, “as bênçãos de Jacó” e “as palavras de Moisés”. Não
são comentários, como os “pesherim”, mas textos expandidos, o que
implica interpretação bíblica. É o que alguns têm chamado de “Bíblia
reescrita”.
Escritos litúrgicos
São obras contendo a liturgia para o culto, ou tratando da
regulamentação do mesmo. Deles, o mais importante é o Rolo do Templo,
cheio de referências ao Antigo Testamento, particularmente aquelas partes
do Pentateuco e de Ezequiel que tratam do culto. Nele se reflete a crença da
comunidade de que a restauraçãoescatológica de todas as coisas consistia
na reinstalação da liturgia plenamente formal no templo, quando o mesmo
for resgatado das mãos do sacerdócio ilegítimo e colocado de volta nas
mãos dos sacerdotes da linhagem de Zadoque. O Rolo do Templo contém,
página após página, detalhes exaustivos de como o culto restaurado haverá
de ser.
Escritos seculares
São as pouquíssimas obras tratando de assuntos não religiosos, das quais
a mais famosa é o Rolo de Bronze, contendo uma lista detalhada das partes
de um tesouro, que ultrapassaria em valor as maiores fortunas da época.
Muita especulação tem acompanhado os esforços para se decifrar e
entender o mistério da lista. Refere-se a um tesouro que pertencia à
irmandade? E onde estaria o mesmo, hoje? Ou será que os romanos, ao
destruírem a comunidade, já se apossaram dele? O nome da obra vem do
material em que foi escrito.
A hermenêutica dos intérpretes de Qumran
Para nosso propósito, que é estudar a história dos intérpretes da Bíblia,
apenas aquelas obras que usaram o Antigo Testamento nos interessam aqui.
Há muitas boas obras sobre os Manuscritos do Mar Morto para os
estudantes interessados em aprofundar seus conhecimentos sobre essa
importante descoberta. Nosso alvo, entretanto, é entender a hermenêutica
dos intérpretes das Escrituras do Antigo Testamento que eram da
irmandade.
Antes de tudo, porém, é necessário nos lembrarmos de que os intérpretes
de Qumran se aproximavam das Escrituras com uma agenda bastante
definida. Na verdade, a sua interpretação é bem diferente do que
conhecemos como “exegese”. Era mais “aplicação” do que interpretação
propriamente dita. Consistia no emprego direto de passagens das Escrituras
à história recente da irmandade para provar suas reivindicações. Em outras
palavras, a interpretação das Escrituras em Qumran não era feita no vácuo.
Era controlada pelas crenças e convicções dos seus membros.
Alguns estudiosos têm apontado para o fato de que a hermenêutica da
irmandade não tinha qualquer interesse em saber o que o texto antigo
significou em seu contexto original, mas o que ele significava agora. Isso
não quer dizer que não podemos encontrar interpretação não alegórica em
Qumran. Vejamos o exemplo abaixo do pesher em Oseias:
Ela, pois, não soube que eu é que lhe dei o trigo, e o vinho, e o óleo, e lhe
multipliquei a prata e o ouro, que eles usaram para Baal [Os 2.8]. [A
interpretação disto é] que [eles] comeram e ficaram satisfeitos, e esqueceram
de Deus [que os havia alimentado, e todos] os seus mandamentos jogaram
para trás de si, que ele lhes havia enviado [por] seus servos, os profetas. Mas
eles deram ouvidos aos que os desviaram, e os honraram.
Portanto, tornar-me-ei, e reterei, a seu tempo, o meu trigo e o meu vinho, e
arrebatarei a minha lã e o meu linho, que lhe deviam cobrir a nudez. Agora,
descobrirei as suas vergonhas aos olhos dos seus amantes, e ninguém a
livrará da minha mão [Os 2.9-10]. A interpretação é que ele [Deus] feriu-os
com fome e nudez e se tornaram uma desgraça e uma vergonha aos olhos
das nações nas quais haviam confiado para obter apoio, mas elas não os
salvaram de suas aflições.
Podemos observar que o intérprete de Oseias procurou entender o texto
em seu contexto histórico. Porém, predomina na comunidade a
espiritualização de passagens com o objetivo de aplicá-las à história da
seita. Nesse afã, eles não se limitavam a observar os paralelos históricos
entre a história deles e a narrativa bíblica, mas insistiam que a história
recente da irmandade era o sentido real e primário do texto bíblico.
Portanto, toda interpretação era, na verdade, aplicação. O resultado da sua
leitura era determinado pelo alvo que o comentarista queria atingir e aplicar.
Vejamos as principais pressuposições que controlavam seu uso das
Escrituras.
Revelação contínua
As Escrituras eram consideradas como divinas e a principal fonte de
autoridade para o ensino e prática da irmandade. Elas haviam sido dadas
por Moisés e os profetas, e nisto residia sua autoridade. Porém, a base
maior da autoridade era o fato de que tinham sido inspiradas por Deus.
Apesar de crer que as Escrituras haviam sido inspiradas, a irmandade cria
em revelação contínua, e distinguia três períodos de revelação. No primeiro
período, Deus havia revelado a Torá a Moisés e aos Profetas. O sentido das
suas palavras havia permanecido obscuro, até que Deus as revelou ao
Mestre da Justiça. No segundo estágio, por meio de revelação divina, o
Mestre da Justiça penetrou o sentido original e verdadeiro das palavras de
Moisés e dos Profetas. O material exegético produzido por ele e demais
intérpretes da comunidade, portanto, era considerado como inspirado, pois
foi produzido por meio de revelação divina. O último estágio de revelação
seria na vinda do Messias, quando Deus revelaria por meio dele novas
instruções.
Consciência escatológica
Os membros da irmandade acreditavam estar vivendo nos “últimos
dias”, no período das “dores de parto” da era messiânica. As profecias do
Antigo Testamento tinham um sentido velado, conhecido somente pelo
Mestre da Justiça e que se aplicava somente à irmandade. Essa consciência
escatológica fez que os intérpretes da irmandade aplicassem os escritos dos
profetas à sua própria história, como se a irmandade fosse o cumprimento
do sentido original do que os profetas haviam escrito. Assim, a escatologia
era um dos fatores controladores da sua interpretação. Partiam do
pressuposto de que eles eram o cumprimento das profecias e procuravam
achar nas Escrituras as passagens em que pudessem provar isso. Por esse
motivo, estudiosos acham difícil usar o termo “exegese” para se referir ao
uso das Escrituras nos comentários produzidos pela irmandade. Nesse
sentido, essa abordagem difere do midrash praticado pelos rabinos, pois
tem um elemento altamente escatológico e aproxima-se da forma como os
escritores do Novo Testamento usam o Antigo Testamento.
Os dois pressupostos teológicos mencionados acima tiveram uma
influência decisiva na maneira pela qual os membros da seita liam as
Escrituras. Mas outros fatores também contribuíram para o caráter único da
hermenêutica de Qumran, como os princípios interpretativos utilizados.
Mistério e revelação
O tipo de interpretação praticada em Qumran tem recebido o nome de
raz e pesher, porque os comentaristas da irmandade usam o padrão
“mistério” (raz) e “interpretação” (pesher) conforme encontrado no livro de
Daniel. Em Daniel encontramos um padrão em que Deus revela um raz
(“mistério”) cujo sentido é revelado somente a Daniel, o qual dá o pesher
(“interpretação”) do mesmo (Dn 2.19,30-45). Os intérpretes essênios,
semelhantemente, concebem a revelação bíblica como dada em dois
estágios: primeiro, o raz, mistério divino comunicado por meio dos
profetas, e segundo, o pesher, o sentido velado do mesmo, por meio dos
intérpretes da irmandade e especialmente o Mestre da Justiça, sentido este
que invariavelmente tinha a ver com a irmandade. Assim, Habacuque 2.2,
“para que a possa ler até aquele que passa correndo”, é comentado no
pesher de Habacuque assim: “Interpretado (pshr, pishrô) refere-se ao
Mestre da Justiça, a quem Deus fez conhecer todos os mistérios das
palavras dos seus servos, os profetas”.
Essa interpretação raz-pesher não consiste, realmente, em uma exegese
ou análise do texto, em que aspectos históricos e gramaticais são levados
em conta – mas é simplesmente um comentário corrido, o emprego da
passagem em uma situação contemporânea.
Interpretação por revelação
Também é importante notarmos o papel do intérprete principal da seita, o
Mestre da Justiça. Ele era considerado como aquele a quem Deus havia
revelado todos os mistérios dos profetas, e a quem Deus havia concedido o
sentido das Escrituras. Portanto, seus comentários eram recebidos como
inspirados e contendo a verdade divina final. Assim, no pesher de
Habacuque se diz que embora o profeta Habacuque soubesse o que iria
ocorrer nos últimos dias, foi somente ao Mestre da Justiça que o tempo do
cumprimento foi revelado. De acordocom o Documento de Damasco, o
Mestre da Justiça havia sido levantado por Deus nos últimos tempos “para
mostrar à última geração o que Deus estava para fazer com a última
geração” (CD 1:11ss). O raz foi revelado aos profetas, e o pesher ao Mestre
da Justiça, e comunicado aos membros da irmandade.
Referencial escatológico e atualização
De acordo com os intérpretes de Qumran, as profecias não tinham
qualquer aplicação ao tempo em que os profetas escreveram, mas se
referiam ao tempo do fim. O exemplo clássico disso é que eles
interpretavam as referências nos livros proféticos aos assírios e babilônicos
como sendo realmente referentes aos romanos, os Kittim, que na época da
irmandade dominavam a Palestina. Aqui nós temos uma atualização das
profecias à época deles.
Já que, para a irmandade, o surgimento do Mestre da Justiça e a
formação da comunidade no deserto sinalizavam a proximidade do fim, era
natural que achassem referências ao Mestre e seus contemporâneos na
Bíblia. Assim, a referência em Isaías “voz do que clama no deserto,
preparai no ermo um caminho ao nosso Deus” (Is 40.3) é interpretada como
uma profecia da fundação da seita no deserto da Judeia (1QS 8:14).
Semelhantemente, no pesher de Habacuque, “aquele que dá de beber ao seu
companheiro, misturando à bebida o seu furor” (Hb 2.15) é interpretado
como se referindo ao “Sacerdote Ímpio”. Essa figura misteriosa talvez seja
o sumo sacerdote da linha hasmoneana do templo em Jerusalém, que
expulsou o Mestre da Justiça, o qual refugiou-se no deserto para fundar a
comunidade.
O melhor exemplo desse referencial escatológico e da atualização do
texto na interpretação das Escrituras é o pesher em Habacuque. O
comentarista focaliza sempre na história da irmandade, e consistentemente
interpreta três elementos do texto de Habacuque como sendo três elementos
daquela história:
a) O “ímpio” e a “violência” são sempre interpretados como referindo-se
ao “Sacerdote Ímpio” e seus esforços em aniquilar a comunidade (1QpHab
1:13; 8:8; 9:9,16; 10:9; 11:4,12; 12:2,8);
b) O “justo” é sempre interpretado como sendo o Mestre da Justiça
(1:13; 5:10; 7:4), embora também se refira aos que o seguem fielmente
(8:11);
c) Os “caldeus” e suas atividades são sempre tomadas como se referindo
aos Kittim = Romanos (2.11,17; 3.4,9; 4.5,10; 6.1).
Alegoria
Não há uniformidade entre os estudiosos quanto ao sentido de
“alegoria”. Mas seguiremos uma definição bem simples e ampla, que será
empregada aqui nesta obra. Alegorizar significa “expressar uma coisa em
termos de outra”. Interpretar um texto alegoricamente significa entender
que o texto está dizendo uma coisa utilizando-se de outra. Ou seja, o
verdadeiro sentido do texto não é o que está aparente e óbvio, mas um que
se esconde e se oculta por detrás das palavras. A busca desse sentido oculto
é a tarefa da interpretação alegórica, e isso frequentemente sem
consideração para com o sentido histórico e literal do texto em análise. Nos
comentários da seita, já que a relação entre o texto bíblico e a história da
comunidade não podia ser estabelecida de maneira literal e direta,
empregava-se a leitura alegórica para se fazer essa relação. Vejamos alguns
exemplos:
a) A cidade construída com sangue em Habacuque 2.12 significa não
uma cidade literal, mas uma comunidade religiosa rival da irmandade em
Qumran, fundada pelo Falso Profeta, o arqui-inimigo do Mestre da Justiça
(1QpHab 10:9-13). Note que essa interpretação é totalmente arbitrária, sem
qualquer indício de que esse seja o sentido original das palavras do profeta.
b) A “preciosa pedra angular” de Isaías 28.16 é alegorizada como uma
referência ao conselho da comunidade, 1QS 8:4b-8a. Seria até esperado que
identificassem a pedra com o Messias, mas não com o Conselho da
comunidade. A ligação, mais uma vez, é arbitrária, como sempre ocorre na
alegorização do texto bíblico.
c) Em CD 6:3-11 o poço e o cetro mencionados em Números 21.18 são
alegorizados da seguinte forma: o poço significa a Lei, e os que beberam
dela são os membros da comunidade, os quais deixaram a Palestina e foram
habitar em Qumran; o cetro refere-se ao Mestre da Justiça, do qual Isaías
disse: “Deus forma a arma para seu devido fim” (CD 54:16).
d) A estrela que procederia de Jacó é interpretada como sendo o Mestre
da Justiça: “A estrela é o intérprete da Lei que virá a Damasco, como está
escrito: ‘Uma estrela procederá de Jacó e um cetro surgirá em Israel’. O
cetro é o Príncipe de toda a congregação, e quando ele vier, esmagará os
filhos de Sete” (CD 7:14-21). Mais uma vez se percebe o caráter alegórico
da interpretação.
Podemos mencionar como último exemplo um rolo na forma de carta,
considerado uma das obras mais antigas, conhecido como Miqsat Ma’ase
ha-Torah, que significa Alguns Preceitos da Torá, condena o casamento de
sacerdotes com mulheres judias interpretando figuradamente Levítico
19.19, “Guardarás os meus estatutos; não permitirás que os teus animais se
ajuntem com os de espécie diversa; no teu campo, não semearás semente de
duas espécies; nem usarás roupa de dois estofos misturados”.
Com respeito a casamentos mistos que são realizados entre o povo, e eles
são os filhos da santa [semente], como está escrito, “Israel é santo” [Lv
19.2]. E com respeito aos animais [limpos] de Israel está escrito que uma
espécie não se deve acasalar com outra; e com respeito às suas roupas, [está
escrito que elas não devem] ser de estofos diferentes; e que não se deve
semear o campo e o jardim com espécies misturadas. Porque eles (Israel) são
santos, e os filhos de Arão são [santíssimos]. Mas tu sabes que alguns dos
sacerdotes se misturaram com os leigos. [Assim], aderem um ao outro e
poluem a santa semente, bem como a [semente] dos próprios sacerdotes com
mulheres corrompidas.
A relação entre os autores do Novo Testamento e os
intérpretes do Qumran
Mais adiante estudaremos como o Novo Testamento interpreta o Antigo.
Entretanto, este nos parece o momento apropriado para levantar uma das
questões mais importantes nos estudos da interpretação das Escrituras
praticada em Qumran, ou seja, qual a relação entre Qumran e os cristãos,
particularmente neste assunto.
Semelhanças e diferenças
Muitos estudiosos têm defendido uma ligação estreita entre o nascimento
do Cristianismo e a comunidade de Qumran, baseados especialmente na
aparente semelhança entre algumas doutrinas do Novo Testamento e
algumas das crenças da irmandade. Assim, alguns têm sugerido que João
Batista era um dos membros da comunidade, e que até Jesus também tinha
sido. Outros têm defendido que a Epístola aos Hebreus foi escrita para uma
audiência que era composta de ex-membros da irmandade. Os defensores
mais exacerbados dessas teorias são eruditos judeus ou estudiosos
protestantes liberais, ansiosos por achar uma maneira de desacreditar o
Cristianismo. O fato é que não existe qualquer evidência concreta e
indiscutível de uma relação direta entre o Cristianismo nascente e a
irmandade do Mar Morto.
As semelhanças são realmente aparentes, e a maioria delas pode ser
explicada pelo fato de que as duas comunidades surgiram num mesmo
contexto cultural, linguístico e religioso, que foi o Judaísmo do segundo
Templo. Outras podem ser explicadas à luz da semelhança histórica entre os
dois grupos: ambos saíram do Judaísmo com a convicção de que eram o
verdadeiro Israel, e de que possuíam a chave da interpretação das Escrituras
de Israel. Ao que tudo indica, porém, a comunidade que morava em
Qumran vivia em total isolamento da sociedade palestina, e, portanto,
possivelmente nunca ouviu falar de Jesus e nem do crescimento do
Cristianismo na Judeia, Samaria, e confins da terra, apesar de que, quando a
comunidade se desfez, Paulo já havia alcançado Roma com o evangelho.
Na área de interpretação bíblica, é fácil ver que os escritores do Novo
Testamento, em geral, às vezes usam o Antigo Testamento em suas cartas
de forma parecida com a que achamos nos comentários e demais escritos da
comunidade do mar Morto. A fórmula “está escrito” é usada por eles e
tambémpelos intérpretes da irmandade essênia para introduzir citações das
Escrituras. Também, vários dos textos que encontramos no Novo
Testamento como sendo referentes a Jesus Cristo são encontrados nos
escritos da comunidade, porém com outra interpretação. Vale notar,
entretanto, que os evangelhos e as cartas são bastante diferentes do
comentário versículo-porversículo encontrado em Qumran. As aparentes
semelhanças, todavia, são mais quanto aos pressupostos que parecem guiar
tanto os escritores de Qumran quanto os escritores do Novo Testamento.
Vejamos os mais claros.
Consciência escatológica
Mais uma vez usemos os escritos de Paulo como comparação. O
apóstolo, à semelhança dos demais autores do Novo Testamento, está
consciente de estar vivendo nos “últimos tempos” e de que tudo que foi
escrito no Antigo Testamento tinha como alvo final os cristãos (1Co 10.11).
Assim, ele interpreta a história de Israel no deserto como sendo instrução
para a igreja de Corinto, conforme vemos em 1Coríntios 10. Porém,
notemos que Paulo não está dizendo que a história de Israel prefigurava os
eventos históricos que aconteceram com a igreja, como os comentaristas de
Qumran faziam, entendendo a história da sua seita como uma repetição
profética da história de Israel. O método de Paulo consiste em achar o
princípio que está operando nos eventos da história de Israel e aplicá-lo
(atualizá-lo) às circunstâncias presentes. Assim, o princípio de que o
trabalhador é digno de seu salário é derivado de Deuteronômio e aplicado
ao obreiro cristão (1Co 9.9). Muito embora Paulo e o Mestre da Justiça
tivessem consciência de que estavam vivendo nos “últimos dias”, o
conceito, além de representar coisas diferentes para ambos, levou-os a uma
diferente compreensão das Escrituras.
Mistério e revelação
Para Paulo e demais autores do Novo Testamento, o sentido das
Escrituras do Antigo Testamento era velado aos descrentes, e só aos crentes
era dado, por meio de revelação do Espírito Santo. O Antigo Testamento era
um livro fechado, até que as mentes fossem iluminadas quanto ao seu
sentido real (2Co 3 e 1Co 2.6-16). O plano divino de salvação era um
mistério só conhecido por meio de revelação (cf. 1Co 2.7-10). Essa
revelação estava ligada à interpretação das Escrituras, conforme veremos
em maiores detalhes ao estudar a hermenêutica do Novo Testamento mais
adiante (cf. 1Co 15.51-56; Rm 11.25-27; Ef 5.31-32; Rm 16.25-26). Esse
método aparentemente é muito parecido com o raz-pesher empregado em
Qumran. Notemos, porém, que ao mesmo tempo Paulo e os demais
escritores do Novo Testamento insistem que a interpretação cristã do Antigo
Testamento é clara e deveria ser aceita por todos os judeus, e que se não
fosse a dureza dos seus corações eles teriam percebido que em Cristo elas
se cumprem (2Co 3). Paulo coloca sua interpretação como sendo o
desdobramento daquela dos profetas e demais escritores do Antigo
Testamento, enquanto que a irmandade de Qumran reivindicava para o
Mestre da Justiça um conhecimento revelatório exclusivo. Para os sectários,
nem mesmo Davi havia entendido o sentido verdadeiro da Torá, e
confundiu-se como os demais (CD 3:13; 4:13-16).
A similaridade aparente nesse método raz-pesher pode ser considerada
como originando-se em temas já encontrados no Antigo Testamento, o qual
era o ponto de partida de Paulo e do Mestre da Justiça. A base para o
conceito de inspiração do Mestre da Justiça para conhecer os mistérios de
Deus é o Servo Sofredor de Isaías 49.2, muito embora o Mestre da Justiça
nunca se identifique completamente com ele. Isso pode fornecer um pano
de fundo comum para a interpretação raz–pesher de Qumran e de Paulo.
Porém, a grande diferença é que, para Paulo, o Servo Sofredor é Jesus
Cristo, o Messias, o qual havia concedido seu Espírito à igreja.
Referencial escatológico
Paulo, à semelhança dos demais autores do Novo Testamento, acreditava
que a morte e a ressurreição de Cristo, bem como o surgimento e expansão
da igreja, eram o cumprimento das Escrituras, e frequentemente cita o
Antigo Testamento com esse sentido. Para ele, as Escrituras encontraram
seu cumprimento em Cristo, e a nova era já havia raiado. Na nova aliança
anunciada no Antigo Testamento por Jeremias, Deus escreveria suas leis no
coração de seu povo. Para Paulo, isso já ocorreu com os cristãos (2Co 3),
enquanto que para os comentaristas de Qumran a convicção de que eles
estavam recebendo uma nova revelação levou-os a elaborar novas leis para
o Israel futuro, no famoso Rolo do Templo. Por outro lado, enquanto a
irmandade aguardava a revelação futura do Messias (ou mais de um), para
Paulo o Messias de Israel já havia chegado, e isto deu uma precisão muito
maior à sua interpretação do Antigo Testamento.
Alegoria
O caso clássico de alegoria no Novo Testamento é Gálatas 4.21-31, em
que Paulo interpreta a narrativa de Gênesis sobre Sara e Hagar
alegoricamente, referindo-se às duas alianças (lei e graça). Mesmo aqui,
entretanto, percebe-se a tremenda diferença das alegorias fantasiosas feitas
em Qumran: Paulo interpreta o texto no contexto maior da história da
salvação, partindo do relato histórico das duas mulheres e da maneira pela
qual elas vieram a ter seus filhos, bem como pelo desenvolvimento
posterior dos povos que brotaram desses filhos. Os intérpretes de Qumran
não tinham qualquer noção de história progressiva da salvação, na qual
cada etapa ilumina, esclarece, e dá sentido à anterior.
Conclusão
Nosso estudo sobre os intérpretes das Escrituras da irmandade dos
Manuscritos do Mar Morto traz algumas conclusões importantes.
1) Existem algumas semelhanças entre o uso das Escrituras feito pelos
intérpretes essênios e aquele feito pelos rabinos. Os autores dos
Manuscritos mantinham o mesmo apreço pelas Escrituras que encontramos
nos autores bíblicos e entre os rabinos. Para eles, a Escritura era a infalível
e autoritativa palavra de Deus quanto à fé e prática do seu povo. À
semelhança dos rabinos, recebiam suas interpretações como sendo também
inspiradas. O que a Torá oral era para os rabinos, as interpretações do
Mestre da Justiça era para a comunidade de Qumran. Além disso, o uso que
fizeram das Escrituras tinha um caráter eminentemente prático. Eles
queriam empregar as Escrituras para a situação contemporânea. E também à
semelhança dos rabinos, davam-se a interpretações alegóricas fantasiosas e
sem qualquer consideração pelo sentido histórico e natural do texto bíblico.
Essas semelhanças se devem ao fato de que o essenismo é filho do
Judaísmo. Porém, há algumas diferenças entre eles. A mais importante é a
consciência escatológica na interpretação de Qumran, que a afasta dos
rabinos e a traz mais para perto da hermenêutica do Novo Testamento.
2) Apesar de se verem como os legítimos continuadores do Israel de
Deus, e de considerarem seus próprios escritos como sendo tão inspirados
como as Escrituras, a teologia produzida pela comunidade se afasta em
excesso da teologia bíblica que podemos encontrar nas Escrituras do Antigo
Testamento. O motivo é que a noção de continuidade não era baseada nos
temas centrais do Antigo Testamento, particularmente no tema da revelação
salvadora de Deus na História. O que Qumran perpetuou, em termos de
teologia, foi o nomismo legalista de Israel, que era uma distorção da
religião da graça que Deus havia revelado a Moisés. Por sua hermenêutica
estar desprovida de sensibilidade para a História, ela girava em torno da
vida da comunidade, o que impediu os sectários de ver nas Escrituras nada
além de si mesmos.
3) Percebemos ainda a importância dos pressupostos na interpretação, e
como eles determinarão o resultado da exegese. E vimos, mais uma vez,
que a questão central é se vamos ler a Bíblia de maneira natural e histórica,
ou se vamos lê-la alegoricamente, figuradamente, procurando empregar
suas passagens às circunstâncias da nossa vida, sem apreço ou consideração
pelo seu sentido original.
O estudo da hermenêutica de Qumran nos ajuda a entender o tipo de
interpretação que era praticada no ambiente em que maistarde o
Cristianismo haveria de nascer, e a entender como os primeiros intérpretes
cristãos usavam as Escrituras.
Capítulo 4
Filo de Alexandria
Introdução
A importância da obra de Filo de Alexandria para a história da interpretação
da Bíblia reside principalmente na sua influência sobre vários dos primeiros
intérpretes cristãos que seguiram o método alegórico de interpretação por
ele utilizado e popularizado.
Filo era um judeu praticante, da Diáspora. Muito embora nunca tenha se
convertido ao Cristianismo, a influência do seu método se fez sentir na
academia cristã patrística. Os judeus tiveram pouco interesse em suas obras.
Via de regra só preservavam o que era escrito em hebraico. Filo escreveu
em grego. Além do mais, era visto com alguma suspeita pelos patrícios por
causa de sua simpatia para com a filosofia grega. Foram os cristãos que
preservaram as obras de Filo e dela se utilizaram. A sua hermenêutica
acabou por se tornar o método de interpretação predominante em uma das
mais importantes escolas de catequese nos primórdios da Igreja Cristã, a
escola de Alexandria, no Egito, terra natal de Filo. E, posteriormente,
tornou-se o método dominante durante a Idade Média, após passar por
algumas modificações.
Quem foi Filo de Alexandria
Filo nasceu em Alexandria, ao norte do Egito, numa data entre 20-25 a.C., e
morreu cerca de 50 d.C. Foi contemporâneo de Herodes, o Grande, dos
sábios rabínicos como Gamaliel, Hillel e Shamai, e ainda de Jesus e de
Paulo. Ele tinha relações com pessoas influentes em Roma, o que
possibilitou que várias vezes visitasse a capital do Império representando os
interesses de seu povo. Um sobrinho seu, o judeu renegado Tibério
Alexandre, serviu como governador no Egito e na Palestina. Não é certo se
ele era casado (uma lenda diz que era) ou se tinha filhos.
Filo teve um treinamento completo em filosofia grega, embora não
saibamos onde e como ele conseguiu essa educação, que via de regra era
muito cara em seus dias. Filosoficamente falando, ele é uma mistura de
platonista e estoico, com a predominância do pensamento de Platão. Como
os demais judeus nascidos na Diáspora, Filo falava grego e provavelmente
não sabia hebraico ou aramaico. A sua Bíblia era a Septuaginta, que ele cita
constantemente em seus escritos.
Filo também teve uma educação judaica em uma família comprometida
com o Judaísmo. Seu rico irmão Alexandre doou portas caríssimas para o
templo em Jerusalém. Filo é profundo conhecedor da Septuaginta e das
tradições do Judaísmo. O Judaísmo da Diáspora, apesar de estar em
território pagão e de sofrer a influência da cultura e modo de vida dos
gregos, mantinha ainda um forte grau de ortodoxia, como lealdade ao
templo, observância da circuncisão, da dieta religiosa e do calendário
judaico, muito embora não com o mesmo rigor do Judaísmo da Palestina.
Filo era um típico judeu da Diáspora, com a diferença de que fez da
filosofia grega, particularmente de Platão, a segunda maior paixão de sua
vida. Apesar disso, podemos dizer que Filo era um judeu leal, numa época
em que muitos judeus haviam apostatado em Alexandria por causa do
ambiente grego. Suas ideias religiosas, instituições e lealdades são judaicas
– entretanto, suas explicações, intuições e devoções são gregas.
As obras de Filo
Filo foi um escritor prolífico. Suas obras, preservadas pelos cristãos,
ocupam 13 volumes da Loeb Classical Library. Ele é repetitivo, monótono,
mas raramente inconsistente; é muito claro e sua mente é lógica. Ele não
escreveu para as massas. Sua audiência pode ter sido círculos de
intelectuais, embora seja possível que também escrevesse para a classe
média. Suas obras foram reproduzidas abundantemente. É nelas que
encontramos com clareza o método interpretativo que lhe deu fama, que é o
método alegórico. Antes de analisar esse método, conheçamos as suas
principais obras, seguindo a seguinte classificação.
Escritos diversos
Debaixo desta categoria incluímos os escritos de Filo também chamados de
“históricos” (que não é uma definição exata) ou “não bíblicos” (que é
melhor). Dentre eles os seguintes se destacam:
“Hipotética”
Essa obra sobreviveu somente em alguns extratos mencionados por
Eusébio. Filo escreveu em defesa dos judeus e contra seus acusadores. Ele
expõe e exalta Moisés, as instituições judaicas, o sábado e a Lei.
“Todo homem bom é livre”
Essa obra é a continuação de outro tratado (agora perdido) cujo título era
“Todo homem mau é escravo”. Ambos foram escritos durante a mocidade
de Filo. “Todo homem bom é livre” é uma coleção de paradoxos estoicos,
nos quais a virtude é sempre “espiritual” e o vício “físico”. Filo ilustra seus
pontos de vista com citações da literatura grega, e quase nunca do Antigo
Testamento. Aqui ele dá uma visão elevada dos essênios, como sendo
homens livres, e contra quem os governadores da Judeia nunca tiveram
acusação alguma.
“A vida contemplativa”
Nessa obra Filo fala sobre os Therapeutae (“Terapeutas”), uma ordem
monástica que morava perto de Alexandria, e que Filo pode ter conhecido
pessoalmente. Não é impossível que os “terapeutas” fossem mais uma seita
judaica, além dos fariseus, saduceus e zelotes. É nessa obra que Filo os
contrasta com os essênios (veja o cap. anterior).
“Contra Flaco”
Flaco era o prefeito romano de Alexandria durante cujo mandato
aconteceram os “pogroms” (holocaustos) contra os judeus na cidade (38
d.C.). Ele foi deposto e banido por Roma para uma ilha e posteriormente
decapitado. Filo registrou esses eventos para demonstrar que qualquer um
que ousasse ir contra os judeus teria fim similar ao de Flaco. Portanto, é um
tratado histórico, mas também teológico.
“A representação a Gaio (Calígula)”
Essa é também uma obra histórico-teológica. Filo narra a história da
delegação que os judeus mandaram a Roma para ver o imperador Gaio
Calígula. Calígula queria que uma estátua da sua imagem fosse erigida no
templo de Jerusalém. Herodes Agripa o havia dissuadido da ideia, mas ele
ainda assim erigiu imagens de si mesmo nas sinagogas. A embaixada foi
defender os judeus contra as acusações de alexandrinos mal intencionados
diante do imperador. Filo não narra como tudo acabou, isto é, que Calígula
foi assassinado. Esse tratado começa com a tese de que as pessoas tendem a
julgar o presente cegamente, sem levar em conta a providência de Deus e
seu cuidado para com Israel. O tratado não tem uma conclusão, na qual Filo
provavelmente narraria a morte violenta de Calígula, como no tratado
anterior, em que narrou a morte de Flaco como sendo a retribuição da
justiça divina contra os inimigos dos judeus.
Exposições bíblicas
Nesta categoria, a qual é realmente a que mais tem a ver com nossa
pesquisa, relacionam-se os escritos de Filo sobre as Escrituras do Antigo
Testamento.
“A vida de Moisés”
Esse tratado tem duas partes. Não é claro para quem Filo escreveu. Nele
Filo reconta a história de Moisés, a quem Filo considerava o maior e mais
perfeito dos homens. Filo adiciona e omite partes significantes da narrativa
bíblica. Ele concentra-se em descrições psicológicas. Moisés é descrito em
sua capacidade de filósofo-rei de Israel, uma ideia platônica (o rei era a Lei
encarnada e vocalizada). Ele também descreve Moisés em seus três ofícios:
legislador, sumo sacerdote e profeta. Já que Moisés também escreveu o
Pentateuco, Filo divide seus escritos em duas partes: a histórica (criação do
mundo e a vida de pessoas especiais: Abraão e José) e a legislativa
(Decálogo, leis especiais e virtudes). Filo também trata sobre as razões
pelas quais os judeus de Alexandria usam a Septuaginta e não a Bíblia
Hebraica. Ele reproduz a carta de Aristeas, com algumas modificações, e
defende a Septuaginta como sendo tão inspirada quanto a Bíblia Hebraica.
A carta de Aristeas é uma defesa da inspiração da Septuaginta com um
relato de como foi escrita.
“A criação do mundo”
Esse tratado é baseado em Gênesis 1, mas o tratamento é platônico. Os
estudiosos têm percebido que Filo se baseia principalmente na obra de
Platão, “Timeus”. Dois temas principais,entretanto, são basicamente
judaicos: criação ex-nihilo, a providência de Deus e seu controle sobre o
mundo. Os temas principais desta obra são:
a) O mundo está em harmonia com a Lei, e vice versa. O relato da
criação em Gênesis é uma introdução necessária à Lei dada em Êxodo (esse
é um conceito estoico).
b) O número de dias da criação, segundo Filo, foi escolhido por Deus
por ser o número mais produtivo de todos de acordo com a lei da natureza.
O número seis tem duas partes iguais, as quais representam o macho e a
fêmea. O macho representa os números ímpares e a fêmea os pares. O
ímpar semeia a semente, o par a recebe. O número seis, portanto, representa
a combinação de ambos (duas vezes três).
c) Existe o mundo sensível (kosmos aesthetikos), cuja criação está
narrada em Gênesis 1, e que pode ser percebido pelos cinco sentidos, e o
mundo inteligível (kosmos noëtos), o qual a mente, partindo e indo além
dos sentidos, pode encontrar, e que se localiza na Razão Divina. Essa ideia
é consistente com o dualismo platônico e estoico.
Usando essa distinção ao analisar Gênesis 1, Filo interpreta a serpente e
Eva como sendo o mundo sensível que tenta influenciar a mente,
simbolizada em Adão. Já aqui vemos as primeiras tentativas de se
“desistoricizar” o relato da criação e da queda, interpretando-se as
personagens da narrativa como símbolos de outras realidades, e assim
considerando a veracidade histórica na narrativa bíblica como irrelevante
para a fé ou para a teologia. Vejamos alguns exemplos da sua interpretação
de Gênesis:
a) A criação do jardim do Éden (Gn 2.8-14) – O rio Gion (2.13) significa
“coragem” e circunda a terra de Cuxe, que significa “humilhação”; o
sentido alegórico é que a coragem dá demonstrações de bravura diante da
covardia. Já o rio Tigre (2.14) significa temperança, pois, como um tigre,
resiste resolutamente ao desejo. Eufrates (2.14) não se refere ao rio. O
sentido alegórico é justiça. O rio Pisom (2.11) significa “mudança na boca”
e Havilá “tagarelar”, que Filo interpreta como significando “insensatez”. A
interpretação alegórica da passagem é que a insensatez é destruída pela
“mudança na boca”, que é o falar com prudência.
b) A criação e queda do homem (Gn 2-3) – Filo considera fábula a
narrativa da criação da mulher da costela de Adão, após o mesmo haver
adormecido. Ele rejeita a interpretação literal da passagem. O sentido
verdadeiro é que Deus tomou o poder dos sentidos externos (Eva) e o
conduziu à mente (Adão). Esse poder é sempre ameaçado pelo prazer (a
serpente). A promessa messiânica, “Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o
calcanhar” (3.15) é interpretada como Deus dizendo ao prazer (serpente)
que a mente (o homem) vai vigiá-la e que em troca, o prazer (serpente) vai
atacar a mente (homem) oferecendo os prazeres mais básicos (morder o
calcanhar).
“Sobre Abraão”
Essa obra é a continuação do tratado anterior. Na introdução, Filo
observa que a Septuaginta deu o título nomos (Lei) ao Pentateuco. Como,
então, encaixar logicamente Gênesis, que é uma narrativa nessa descrição?
Filo responde na primeira parte dessa obra fazendo uma distinção entre a
“Lei não escrita da natureza” e as “Leis especiais”. A primeira não era
escrita e foi transmitida diretamente por Deus de forma oral aos patriarcas
Abraão, Isaque e Jacó, os quais viveram de acordo com ela, sendo eles
mesmos a própria manifestação dessa Lei. As “Leis especiais” são aquelas
dadas a Moisés no Sinai.
Cabe aqui uma observação. Essa relação dos patriarcas com a Lei mais
tarde veio a ser interpretada de formas diferentes: (1) Os rabinos e o livro
dos Jubileus consideravam os patriarcas como observadores pré-mosaicos
da Lei de Moisés. Com esse anacronismo, desejavam sustentar a eternidade
e superioridade da Lei sobre os patriarcas e sobre os eventos com eles
relacionados. (2) Paulo e Filo, embora totalmente divergentes quanto ao
papel da Lei, concordam entre si que a vida dos patriarcas representava a
norma e o padrão do relacionamento com Deus, e que a Lei de Moisés, que
veio depois, precisava ser harmonizada com eles. Em Romanos e Gálatas
Paulo refere-se à fé de Abraão e às promessas que lhe foram feitas como
sendo o padrão. A Lei de Moisés veio depois e não pode anular o conceito
de justificação pela fé. Filo, por sua vez, considera que os patriarcas se
guiaram pelo que ele chamou de “Lei não escrita da Natureza”, que embora
esteja de acordo com a Lei de Moisés, a antecede e é universal.
O que mais nos interessa, entretanto, é a abordagem de Filo ao relato de
Gênesis. Ele trata alegoricamente cada uma das personagens bíblicas
mencionadas:
Enos – esperança
Enoque – arrependimento
Noé – repouso e paz de espírito
Abraão – instrução
Isaque – intuição
Jacó – prática
Segundo ele, os patriarcas históricos alcançaram a perfeição porque
possuíam todas as três qualificações (instrução, intuição e prática);
alegoricamente, cada um de nós tem um Abraão, um Isaque e um Jacó
dentro de si, e assim por diante.
Na segunda parte dessa obra, chamada de “A piedade de Abraão”, Filo
aborda o relacionamento de Abraão com Deus. Essa seção é um digesto da
filosofia total de Filo, incluindo seus conceitos sobre Deus, os seres
intermediários entre Deus e os homens, e a capacidade humana de elevar-se
até Deus. Os seres intermediários são apresentados com base em Gênesis
18.2: “ele levantou os seus olhos, e eis que três homens estavam em pé
diante dele”. Segundo Filo, os três homens são: o Logos, o Poder (dunamis)
da Criação, e o Poder de Governo. A migração de Abraão de Ur dos
Caldeus é alegoricamente interpretada como uma migração da astrologia
para a descoberta do Logos divino.
Na parte final da obra, chamada de “Abraão tinha as quatro virtudes”,
Filo descreve o relacionamento de Abraão com os homens. Suas quatro
virtudes são as virtudes cardeais do estoicismo: justiça, bravura, prudência e
temperança. Mais uma vez fica evidente os pressupostos hermenêuticos de
Filo que controlam seu projeto de ler Gênesis à luz da filosofia grega.
“Sobre o Decálogo”
Filo trata nesse livro primeiramente da piedade – que é a relação do
homem com Deus. Segundo ele, os cinco primeiros mandamentos refletem
piedade. Os últimos quatro se relacionam com as quatro virtudes cardeais, e
o mandamento de honrar os pais é transformado na transição entre as duas
partes. Filo considera a Lei mosaica como divina, apesar de ser uma cópia
da “lei não escrita da natureza”. Como tal, é similar às leis promulgadas nas
cidades e nos senados.
“A alegoria da Lei”
É uma longa série de tratados, cada um deles começando com uma
passagem de Gênesis. Filo aqui perde-se frequentemente em digressões;
raramente se pode discernir a sua linha de pensamento. Isto torna a leitura
desses tratados extremamente difícil e monótona, o que é uma pena, já que
esses tratados são tão importantes quanto a “Exposição da Lei”. O título do
mesmo já aponta para o tipo de leitura que Filo faz do Pentateuco.
“Perguntas e respostas em Gênesis e Êxodo”
Essa obra ficou preservada apenas em fragmentos escritos em armênio.
Alguns fragmentos gregos da mesma também têm sido descobertos. Pelo
que se pôde recuperar, Filo trata nessa obra de algumas partes de Gênesis e
Êxodo, mas nada de Levítico, Números e Deuteronômio – possivelmente,
ele nunca conseguiu chegar até lá. O método que Filo emprega está
refletido no título, e se dá como segue abaixo:
a) Ele pergunta o que o texto bíblico está dizendo;
b) Então dá uma curta resposta quanto ao seu sentido literal;
c) Em seguida, uma resposta filosófica elaborada, da qual ele procede
para uma interpretação alegórica.
Filo e as Escrituras
Procuremos agora entender como Filo usa as Escrituras em suas obras.
Comecemos indagando sobre a distribuição das citações bíblicas em seus
escritos. O Pentateuco é a parte das Escrituras mais citada, embora Filo
também cite os Profetas e os Escritos. Não ocorrem citações dos Pseudo-
epígrafos ou Apócrifos. Filo segue a tendência geral dos judeus da
Dispersão de dar mais ênfase ao Pentateuco. Notemos ainda quenem
sempre Filo usa as Escrituras nos seus livros. Nas obras mencionadas acima
como “Escritos Diversos”, citações bíblicas quase nunca aparecem.
Apesar disso, não pode haver qualquer dúvida de que Filo reconhecia a
autoridade das Escrituras. Para ele, a Bíblia estava acima da literatura
secular. Muito embora Filo use alegoria para interpretar as Escrituras,
método que era empregado para interpretar algumas obras religiosas de sua
época, ele não considera o Antigo Testamento como tendo o mesmo valor
que obras humanas. Ele vê a Escritura como autoritativa, tendo origem
divina. Por exemplo, ele nunca cita os escritos de Homero ao lado dos
livros de Moisés.
Filo via a Bíblia como um oráculo, similar ao conceito grego de
revelação divina. Entre os gregos, a ida ao oráculo de Delfos em busca da
revelação divina era muito popular. Delfos se localizava em Fócis, Grécia,
no monte de Parnassos, perto do golfo de Corinto. Era considerada como o
omphalos (centro) da terra, e isto era designado por uma enorme pedra oval,
também chamada omphalos. Delfos era consagrada a Apolo, o deus da
profecia e patrono da filosofia e das artes, cujo templo famoso e santuário
profético se localizavam em Delfos. O templo, junto com o santuário que o
cercava, era o local do famoso oráculo de Delfos. Consultado até mesmo
por Édipo, Sócrates e outras figuras conhecidas da Antiguidade, o oráculo
pronunciava suas mensagens de maneira tão ambígua que raramente se
podia provar que havia falhado. Para Filo, a Bíblia era o oráculo de Deus
aos homens. Daí advinha sua autoridade. E assim, tudo que está na Bíblia é
verdadeiro.
No entanto, Filo tem um conceito de inspiração bem diferente do
conceito mecânico, que era o que ocorria no oráculo de Delfos. Para ele,
Moisés é tanto o receptor quanto o transmissor da Palavra de Deus. Ao
contrário do Judaísmo, Filo não vê Moisés como um receptor passivo, mas
como o autor real do Pentateuco. Portanto, a Escritura é uma palavra que
veio a Moisés e que também procedeu dele, ao mesmo tempo. Ele sempre
se refere a Moisés como o autor do Pentateuco. A personalidade de Moisés
está inseparavelmente ligada à Torá. Assim, a inspiração divina está por
detrás da personalidade humana, mas não toma o seu lugar.
Quanto ao propósito das Escrituras, Filo reconhecia que a Lei de Moisés
não era um fim em si mesma, como se defendia no Judaísmo rabínico. Para
ele, era o meio de se obter comunhão mística com Deus, o que era o alvo
maior de todos. Deste modo, a Escritura não era apenas o registro de fatos
antigos, mas também prefigurava a experiência de cada homem. Isso se
torna possível por meio da alegorização dos relatos bíblicos. Gênesis é o
registro das experiências dos seus personagens, os quais viveram tempos
passados, e também a experiência de cada leitor, que delas se apoderam
mediante a alegorização do relato. A Bíblia, assim, é o relato de eventos
passados e ao mesmo tempo o manual para nossa progressão espiritual. Ela
nos dá soluções e segurança em meio às nossas perplexidades.
Finalmente, uma palavra sobre o texto de Filo, que era a Septuaginta. O
que nos chama a atenção é que ele usa e cita continuamente a Septuaginta
sem qualquer atitude crítica para com os reconhecidos erros de tradução
desta versão grega do Antigo Testamento. Sua exegese e alegoria se
baseavam, em muitos casos, nas nuanças dessa tradução. Ele é o único
intérprete judeu na história da interpretação da Bíblia que usa
exclusivamente a versão grega do Antigo Testamento e não o texto
hebraico. Aparentemente, havia várias razões para isso. Primeira, a
Septuaginta tinha um alto status no Judaísmo helenístico (Dispersão), antes
de ser tomada e usada pelos cristãos. Era vista como um tesouro, uma fonte
de orgulho; havia até mesmo uma lenda a respeito da sua formação, a
famosa carta de Aristeas que Filo cita na sua obra “A vida de Moisés”.
Segunda, para Filo, a Lei só poderia se tornar disponível para toda a
humanidade se fosse transmitida em grego. Terceira, para ele, a Septuaginta
era tão inspirada e autoritativa quanto o texto hebraico. E por fim, muitos
estudiosos acreditam que Filo não sabia o hebraico, como também os
demais judeus da Dispersão.
O método exegético de Filo
Para melhor entender a hermenêutica de Filo, lembremos que ele estava
batalhando em duas frentes. Numa, desejava confrontar os excessos
interpretativos de uns poucos “alegoristas extremos” da sua época, que
aboliam totalmente o sentido literal do texto do Antigo Testamento. Muito
embora ele mesmo alegorizasse as Escrituras, considerava que tais
intérpretes estavam indo longe demais. O próprio Filo por vezes
interpretava literalmente o texto bíblico, muito embora sua preferência
fosse pela alegoria.
Noutra frente, disputava com os “literalistas” que queriam interpretar
literalmente as passagens que continham referências a Deus como se ele
fosse homem, tais como “os olhos do Senhor”, “a mão do Senhor” e outras.
O alvo de Filo era demonstrar que estes “antropomorfismos” deviam ser
entendidos alegoricamente, e que, quando o sentido literal era impossível, a
alegoria era a coisa certa a fazer. Em seu tratado A posteridade de Caim, ele
argumenta que Deus não pode ter forma humana, pois isto implicaria que
ele também teria necessidades e desejos humanos. As descrições
antropomórficas de Deus que temos nas Escrituras foram incluídas como
uma concessão ao povo, mas devem ser interpretadas figuradamente. Filo
temia que essas passagens pudessem ser usadas pelos inimigos do Judaísmo
para difundir ideias errôneas sobre a doutrina judaica de Deus.
Mas não pensemos que Filo só alegorizava passagens antropomórficas.
Ele alegorizava toda e qualquer passagem das Escrituras, pois seu
pressuposto fundamental é que por detrás do sentido literal subjaz o sentido
alegórico, que é o verdadeiro e mais importante.
Enfim, parece que Filo reconhecia dois níveis de sentido na Escritura, o
literal e o alegórico. Um exemplo pode nos ajudar a perceber isso. Ao
interpretar Gênesis 6.2,4 em seu tratado Sobre os Gigantes, Filo entende
que “filhos de Deus” se refere aos anjos e “filhas dos homens” às mulheres,
e rejeita a noção de que os gigantes mencionados sejam um mito. Mas em
seguida, diz que Deus deseja nos ensinar com essa passagem que existem
três tipos de pessoa: aquelas que se preocupam com as coisas físicas, com
as intelectuais e com as místicas. E é com esse ponto que ele se ocupa em
seguida, abandonando por completo as questões relacionadas com o
entendimento literal da passagem.
A relação entre essas duas “camadas” de sentidos, o literal e o alegórico,
era como a relação entre o corpo e a alma, posição mais tarde adotada por
Orígenes. Como um platonista que era, Filo dava muito mais valor à alma.
Semelhantemente, palavras eram vistas como um “espelho” de realidades
superiores. Porém, Filo mantém as duas “camadas” de sentidos
consistentemente separadas, com pouca ou nenhuma comunicação entre si.
Por exemplo, o José literal, que ele descreve em uma obra, é totalmente
diferente do José alegórico que ele descreve em outra.
O caráter da alegoria de Filo
Ao analisar as Escrituras, Filo parte da premissa que o todo-sábio Moisés
pretendeu dizer algo da sua sabedoria ocultando-o além do sentido literal da
Torá. Assim, frequentemente Filo comenta, ao interpretar uma passagem, “o
texto deve estar dizendo outra coisa…”. Alegorizar é exatamente isso. A
palavra vem do grego e significa literalmente “dizer outra coisa”, ou seja,
numa alegoria as palavras estão dizendo outra coisa que não aquela que
parece óbvia. A palavra “alegoria”, dessa maneira, veio a se aplicar a quase
todo tipo de interpretação que pressupõe a existência de sentidos ocultos,
além daquele sentido natural e óbvio de uma passagem. Interpretar uma
passagem alegoricamente é atribuir a determinada passagem um sentido que
aparentemente não está lá. Por exemplo, Filo interpreta Caim como sendo o
homem eloquente sem conteúdo, que “mata” o que tem conteúdo, mas que
não é eloquente (Abel). Essa interpretação é alegórica, poisencontra no
texto bíblico coisas que certamente não passavam pela mente de Moisés ao
escrevê-lo. São sentidos que estão além do sentido natural, óbvio e simples
da narrativa.
Entretanto, nem toda interpretação não literal é necessariamente
alegórica. Filo, por exemplo, às vezes é capaz de expandir um texto sem
usar alegoria. Essas “expansões” eram mais paráfrases elaboradas de um
texto, em que Filo supria detalhes e informações de origem, até hoje,
desconhecidas.
Filo usa alegoria para abordar passagens que são ao mesmo tempo
sagradas e difíceis. O seu método possivelmente originou-se muito antes,
com as tentativas de remover as dificuldades morais da Ilíada, a famosa
obra de Homero. Homero era a principal figura da literatura grega antiga, o
autor dos mais antigos e melhores poemas épicos, a Ilíada e a Odisseia.
Estudiosos modernos têm teorias conflitantes acerca da autoria desses
poemas, mas os gregos antigos criam que um poeta cego de nome Homero
os havia composto. De acordo com a tradição, Homero viveu no século 12
a.C., durante a época das guerras troianas, numa colônia iônica, talvez
Chios ou Esmirna, onde ganhava a vida cantando e contando histórias na
corte. Os gregos antigos consideravam Homero como divino e respeitavam
suas obras como fonte de sabedoria e modelo de conduta heroica.
Homero criou o famoso Panteão grego, com deuses imaginados em
semelhança humana, e capazes das emoções e atitudes humanas mais
depravadas. Assim, em suas obras encontramos deuses mentindo,
enganando, adulterando, assassinando e praticando canibalismo. Porém,
houve muita reação por parte de filósofos gregos. Hesíodo (séculos 7º e 8º
a.C.) não acreditava na história homérica de Prometeus enganando Zeus, o
rei dos deuses. Explicou que Zeus apenas fez-de-conta que foi enganado.
Pindar (século 6º a.C.) racionalizou a história de Homero em que o deus
Tantalus ofereceu aos deuses o seu filho como refeição. Xenofonte atacou
Homero diretamente: “Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses todas as
coisas que são vergonhosas e desrespeitáveis quando feitas pelos homens; e
eles contaram dos deuses muitas coisas ilegais, furto, adultério e engano”.
O próprio Platão, na República, propôs a censura das obras de Homero, por
conterem fábulas acerca dos deuses.
Em respeito aos deuses, e com o surgimento da moralidade grega, os
admiradores de Homero costumavam interpretar simbolicamente passagens
das suas obras em que os deuses eram descritos cometendo atos imorais e
errados, e dessa maneira procuravam salvar a pele do poeta cego. O
argumento era que as histórias eram para ser entendidas simbolicamente,
como alegorias, com sentidos diferentes daqueles que eram aparentes e
óbvios. Outra tentativa de alegorizar Homero foi feita pelos filósofos
estoicos dos séculos 4º e 5º a.C. Eles acreditavam na existência de apenas
um Deus e viam os muitos deuses de Homero apenas como representando
diversos aspectos do estoicismo.
Semelhantemente, Filo procurou remover as “dificuldades” das
Escrituras (Septuaginta) usando o mesmo método. As principais
dificuldades seriam as passagens em que Deus é apresentado de forma
antropomórfica, agindo, reagindo e sentindo como homem, ou tomando
decisões aparentemente cruéis, como mandar matar mulheres e crianças dos
pagãos. Entretanto, é preciso reafirmar que Filo alegoriza o texto sagrado
mesmo quando não há dificuldades envolvidas. Ele usa alegoria quase que
incessantemente. Um bom exemplo são os sentidos que ele atribui a cada
nome próprio e a cada número da Bíblia, o que prova que nem sempre ele
alegorizava para resolver problemas.
A grande alegoria
Existe uma diferença entre as alegorias de Filo e aquelas dos primeiros
rabinos e as de Flávio Josefo. Enquanto estes usavam alegorias
disparatadas, ao acaso, e desconectadas entre si, Filo compunha suas
alegorias bíblicas dentro de uma alegoria maior, a qual lhes dava
consistência e unidade. O estudioso judeu Samuel Sandmel, em seu livro
Filo de Alexandria, refere-se a essa alegoria maior como arquitetônica, por
servir de fundamento e base para o edifício da alegoria que Filo construiu.
O adesivo que une o material que Filo apresenta alegoricamente é o
Pentateuco. A narrativa da criação, o Éden, o dilúvio, os patriarcas, o
Êxodo, a peregrinação no deserto e a revelação da Lei são tomados por Filo
como representando a jornada espiritual de cada um de nós. As Escrituras
nos providenciam o mapa dessa jornada à perfeição espiritual. É essa
perspectiva alegórica maior sobre a Escritura que serve de fundamento para
as interpretações fantasiosas que Filo faz. Como resultado, ele acaba
dissolvendo os fatos históricos da Escritura, negando, por exemplo, que
Sara e Hagar fossem personagens históricos, ou que a jornada histórica de
Abraão tenha qualquer valor para nós.
Filo está muito mais interessado na grande jornada espiritual de cada um
de nós. Para ele, o homem nasce com corpo e alma. O corpo é material, o
assento das paixões e relacionado com o presente mundo. A alma é isenta
de corrupção. O nosso objetivo aqui neste mundo é usar a mente para livrar
a alma da dominação do corpo. Percebe-se que ele trabalha com conceitos
platônicos e estoicos dos dois mundos: o corpo está relacionado ao mundo
material, a alma ao mundo inteligível. Atingir a perfeição espiritual é deixar
o mundo material e perceptível, e entrar no mundo elevado das ideias.
Mas como alguém pode atingir a perfeição espiritual? Filo distingue
duas maneiras. A primeira, designada aos homens com dons inatos (tais
como ele mesmo!). Esses são como os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó. A
segunda, designada para o povo. A esses, Deus deu a Lei. Aqueles que
dentre o povo obedecem a Lei são como os patriarcas, embora não tendo
consciência do fato.
Partindo dessa estrutura, Filo faz que cada parte do Pentateuco se
encaixe. Seus eventos, relatos, instituições e personagens são interpretados
de modo a se acomodarem à grande alegoria. Filo sempre acaba forçando
toda a Escritura a caber dentro desta camisa de força alegórica. Personagens
bíblicas são frequentemente interpretadas em relação aos aspectos ou níveis
desta jornada espiritual. Assim, Ló representa um estágio da jornada para a
perfeição em que a alma ainda é inclinada aos prazeres físicos.
Parte do seu método consiste em dar o sentido do nome hebraico da
personagem, e então proceder para a alegorização do mesmo. Dessa
maneira, Abraão é interpretado como sendo astrólogo, porque ab é pai, e
ram elevado. Filo afirma que isso significava que, à noite, Abraão
perscrutava os céus examinando as estrelas.
Assim, por meio da alegoria, Filo pôde interpretar as Escrituras à luz de
Platão e do estoicismo, apesar de que ele negaria esse fato, desde que, para
ele, Platão derivou suas ideias do próprio Moisés.
Filo e o Novo Testamento
Muitos estudiosos têm perguntado qual a relação entre Filo e os autores do
Novo Testamento, visto que, supostamente, também se encontram alegorias
em seus escritos. Será que conheciam os escritos de Filo e foram por eles
influenciados? Um dos autores bíblicos mais destacados nessa questão é o
apóstolo Paulo, por abertamente fazer uma alegoria da história de Sara e
Agar (Gl 4.24). Era Paulo um seguidor do método de Filo? Certamente
existem diversos aspectos em comum entre os escritos de Filo e os de
Paulo: ambos foram escritos em grego, foram escritos fora da Judeia, dentro
do Judaísmo helenístico. Ambos usam a Septuaginta. Quanto ao sistema de
interpretação, porém, as diferenças são enormes.
Paulo quase nunca usa alegoria. Com exceção de Gálatas 4, Paulo
geralmente usa o Antigo Testamento dentro do seu contexto histórico e
literal. E mesmo no caso de Sara e Agar, Paulo pressupõe um contexto
histórico de revelação progressiva. A coisa significada (as duas alianças)
está historicamente ligada às duas mulheres. As alegorias de Filo, ao
contrário, são totalmente arbitrárias, sem que haja entre o texto e a coisa
significada qualquer relação histórica ou teológica.
Paulo e Filo têm pressupostos totalmente diferentes.Para Filo, a
Escritura harmoniza-se com a filosofia platônica e estoica, e ele a interpreta
com o propósito definido de apresentá-la como sendo uma manifestação
particular da Lei da Natureza. Para Paulo, as Escrituras falam de Cristo, e
ele as interpreta para demonstrar que toda a Lei, Escritos e Profetas se
cumprem nele.
Paulo tem consciência escatológica. Para ele, os tempos do fim
chegaram, tempos de cumprimento. As Escrituras estão se cumprindo nos
eventos históricos relacionados com Jesus Cristo, Pentecostes e a igreja
universal. Esse aspecto está totalmente ausente em Filo.
Existem também profundas diferenças quanto aos importantes conceitos
teológicos. Filo e Paulo veem Deus como plenamente transcendente, e
ambos enfrentam o problema de como construir uma ponte até Deus. A
solução dos dois é similar: o Logos de Filo e o Cristo de Paulo, enquanto
radicalmente diferentes em muitos pontos, representam um mecanismo
similar pelo qual o Deus transcendente se torna imanente. Entretanto, o
Logos de Filo é atemporal, enquanto que o Cristo de Paulo é um evento
histórico.
Conclusão
O estudo da hermenêutica de Filo de Alexandria nos ajuda especialmente a
entender como o método alegórico de interpretação bíblica foi se formando
no período pré-apostólico. Futuramente, a alegoria de Filo iria influenciar
estudiosos cristãos influentes, como Orígenes. E por meio de Orígenes e
outros, a alegoria se tornaria o método interpretativo predominante na Idade
Média, dentro da igreja cristã.
Outra conclusão a que podemos chegar é que dificilmente se poderá
provar que os autores do Novo Testamento – especialmente Paulo, e mesmo
o escritor de Hebreus, fossem filonistas, ou seja, seguidores do método
alegórico de Filo. Existem diferenças substanciais entre o sistema
interpretativo do Novo Testamento e a alegoria de Filo, conforme se pode
ver pela análise que fizemos antes. Se formos procurar em algum lugar a
fonte da hermenêutica dos apóstolos, a encontraremos no próprio método de
Jesus.
Capítulo 5
Flávio Josefo
Introdução
Josefo foi contemporâneo de Jesus Cristo e dos apóstolos, muito embora
provavelmente nunca os tenha conhecido pessoalmente. Sua interpretação
das Escrituras tem características semelhantes à dos cristãos, em alguns
aspectos, graças ao ambiente comum em que viviam e por serem herdeiros
do Judaísmo. Entretanto, a importância de Josefo para nossa pesquisa reside
mais no fato de que sua maneira de ler as Escrituras é bastante diferente
daquela dos cristãos, o que serve para destacar o que há de característico na
interpretação cristã.
A vida de Josefo
Como historiador judeu, as obras de Josefo são inestimáveis para nosso
conhecimento da história dos judeus debaixo do domínio romano. Flávio
Josefo nasceu de uma família de sacerdotes e seu nome original era José
ben Matias. Nasceu em 37 d.C. e morreu cerca de 100 d.C. Durante sua
vida, foi fariseu, muito embora durante a mocidade tenha, aparentemente,
passado algum tempo entre os essênios. Quando tinha 26 anos de idade,
serviu como embaixador dos judeus em Roma e ficou muito impressionado
com o poder imperial.
Durante a revolta dos judeus contra Roma, que teve início em 66 d.C.,
comandou as forças revolucionárias judaicas na Galileia, até ser capturado
pelo general romano Vespasiano. Na verdade, Josefo não acreditava na
causa dos judeus e não apoiava a revolta, e portanto serviu relutantemente.
Após sua captura, Josefo predisse que Vespasiano se tornaria imperador, e
quando isto aconteceu foi libertado. Até o fim da guerra contra os judeus,
atuou como intérprete para os romanos, especialmente quando foram
estabelecidos os termos da rendição de Jerusalém no ano 70 d.C. Depois,
Josefo foi morar em Roma, onde adotou o nome romano de Flávio, e lá
passou os últimos anos de sua vida, sustentado pelo imperador e
dedicandose a escrever.
A participação de Josefo na guerra foi motivo para que fosse bastante
criticado por sua subserviência aos romanos. Entretanto, o fato de que
defendeu ardentemente a cultura e a religião judaicas em sua obra Contra
Apião, bem como em outras demais obras históricas, mostra que era um
ardente defensor da cultura e da religião judaicas.
Josefo e Jesus Cristo
Em uma das obras de Josefo, Antiguidades Judaicas, encontra-se a seguinte
afirmação:
Por aquela época, ali viveu Jesus, um homem sábio, se realmente pode-se
chamá-lo de homem. Pois ele realizou obras surpreendentes e ensinou as
pessoas que alegremente recebiam a verdade. Ele convenceu muitos judeus e
gregos. Ele era o Messias. E quando, pela acusação dos principais de entre
nós, Pilatos o condenou à cruz, os que o haviam primeiramente amado não
cessaram. Ele lhes apareceu após ter sido restaurado no terceiro dia, pois os
profetas de Deus haviam predito estas coisas e mil outras coisas
maravilhosas sobre ele. E a tribo dos cristãos, assim chamada por causa dele,
até hoje ainda não desapareceu (Antiguidades, 18.3.3 §63).
A passagem, se autêntica, além de servir de comprovação histórica dos
relatos dos evangelhos, sugere que Josefo, mesmo não tendo se convertido
ao Cristianismo, acreditava no que os cristãos diziam acerca de Jesus, que
ele era o Cristo e que havia ressuscitado de entre os mortos. O impacto da
passagem é tão grande que muitos críticos a consideram uma interpolação
feita no texto de Antiguidades no século 3º ou 4º d.C., por copistas cristãos
que queriam dar autenticidade ao Cristianismo por meio do testemunho de
Josefo. Segundo eles, essa passagem não pode ter sido escrita por um judeu,
pois soa mais como cristã.
Entretanto, mesmo admitindo que a passagem pode ter sido alterada e
editada no decorrer de sua transmissão, ela ocorre nas versões mais antigas
que temos da obra de Josefo, e em diferentes línguas. O que pode ter
acontecido é que Josefo somente se referiu a Jesus e seus seguidores, e que
editores posteriores acrescentaram os aspectos cristãos mais radicais da
passagem. Assim, se Josefo realmente escreveu tudo isso, é questão que
permanece em aberto.
As obras de Josefo
Durante o tempo em que morou em Roma Josefo escreveu quatro obras. A
primeira foi As Guerras dos Judeus, contendo sete volumes. Em seguida
veio Antiguidades Judaicas, em 20 volumes. Questionado por Apião sobre
o que havia escrito em Antiguidades, Josefo escreveu Contra Apião e
terminou a carreira com sua Autobiografia.
As guerras dos judeus
Essa obra foi escrita primeiramente em aramaico e depois traduzida para o
grego, por volta de 79 d.C. Nela, Josefo relata primeiramente as causas da
guerra, iniciando com a revolta dos Macabeus no século 2º a.C. Em
seguida, fornece uma descrição dos eventos trágicos ocorridos durante a
revolta, que está baseada largamente no conhecimento de primeira mão que
ele, como comandante do exército judeu, tinha. Josefo utiliza as obras de
Tucídides e Políbio, historiadores gregos, como fonte para a dominação
romana. Em sua crônica das guerras, ele indica não somente as causas
humanas, mas aponta para a providência divina que a tudo supervisiona,
procurando identificar as causas teológicas da queda de Jerusalém. Na
passagem abaixo, extraída de As Guerras dos Judeus, ele atribui aos
próprios judeus a responsabilidade pela destruição de Jerusalém:
Podemos dizer com verdade que uma guerra tão cruel em seu interior não
lhes era menos funesta que uma guerra externa e que Jerusalém não sofreu
mais da parte dos romanos, do que o furor dessas infelizes divisões, que já
lhe havia feito experimentar males ainda maiores. Assim, não tenho receio
de afirmar que é principalmente a esses inimigos de sua pátria e não aos
romanos que devemos atribuir a ruína dessa poderosa cidade e que a única
glória que lhes pode caber é ter exterminado esses malfeitores, cuja
impiedade unida a tantos outros crimes que nem poderíamos imaginar, lhe
tinha destruído a união que lhe dava muito mais força que suas mesmas
muralhas. Não podemos pois dizer, com razão, que os crimes dos judeus são
a verdadeira causa de suas desgraças e que, o que os romanos lhes fizeram
sofrer,não foi um justo castigo? Deixo, porém, a cada qual que julgue como
lhe aprouver.
Antiguidades judaicas
Foi escrita e publicada em grego, por volta de 93 d.C. O seu objetivo com
esta obra de 20 volumes era esclarecer a ignorância do mundo greco-
romano acerca dos judeus e de seus costumes, tradições e crenças, bem
como de apresentar aos romanos, contando a história de Israel, uma defesa
de seu povo, e impressionar os dominadores. É aqui que o famoso
“Testemunho Flaviano” acerca de Cristo ocorre. A obra cobre toda a
história dos judeus, desde a criação, e traz um relato detalhado do período
dos Macabeus e da vida e feitos de Herodes. O relato consiste, na maior
parte, num “recontar” da narrativa bíblica, e frequentemente Josefo
expande, elabora e aumenta o texto bíblico, sua fonte primária. Vejamos por
exemplo como ele reconta a história de Caim em Antiguidades Judaicas:
Quando Caim tinha viajado por muitos países, ele e sua mulher, construiu
uma cidade e a chamaram de Node, e ali estabeleceu sua moradia; ali
também tiveram filhos. Entretanto, ele não aceitou sua punição como
corretivo, mas aumentou ainda mais a sua impiedade; pois ele buscava
somente aquilo que era para seu prazer físico, mesmo que para isto tivesse
que ferir seus vizinhos. Aumentou seus bens mediante a rapina e a violência;
ele incitava seus conhecidos a procurar prazeres e obter coisas pelo furto; ele
tornou-se um grande líder de homens no caminho da iniquidade. Ele também
introduziu uma mudança naquela maneira simples com que os homens
viviam antes; e ele tornou-se o autor das medidas e pesos. Enquanto eles não
conheciam essas artes, viviam de forma inocente e generosa. Caim, porém,
mudou o mundo em estratagemas ardilosos. Primeiro, ele estabeleceu limites
ao redor de terras; construiu uma cidade e fortificou-a com muralhas, e
obrigou sua família a viver ali. E chamou aquela cidade Enoque, que era o
nome de seu filho mais velho.
Percebe-se claramente a elaboração e expansão na narrativa bíblica. Não
se sabe ao certo de onde Josefo obteve essas informações adicionais, mui
provavelmente vieram de sua própria imaginação.
Outras obras
No livro Contra Apião, Josefo defende seu povo das ideias antissemitas
espalhadas em Roma por Apião, um autor romano muito popular, um dos
mais destacados inimigos dos judeus naquela época. A sua Autobiografia
foi escrita após 95 d.C. Um dos inimigos de Josefo, um judeu chamado
Justo de Tiberíades, fez um relato da guerra de Roma contra os judeus, na
qual Josefo participou, e descreve Josefo como sendo inimigo dos romanos
e militante contra o domínio imperial – deixando Josefo em situação difícil
como protegido pelo império. Josefo escreve a Autobiografia com o
objetivo de deixar claro sua posição moderada.
Josefo e as Escrituras
Em todas essas obras, Josefo cita as Escrituras do Antigo Testamento. Na
sua época, o cânon hebraico já estava completo e dividido em três partes, a
Lei, os Profetas e os Escritos. Nosso alvo é procurar entender como ele as
interpreta e sintetizar seu modelo hermenêutico. Comecemos indagando
qual era a Bíblia de Josefo. Estudiosos acreditam que ele tinha acesso a três
textos: o texto hebraico, a Septuaginta, e targums, escritos em aramaico.
Josefo nasceu e cresceu em Jerusalém. Ele era bem mais erudito do que
seus compatriotas, e certamente conhecia o texto hebraico. Entretanto, é
difícil determinar exemplos específicos em suas obras de quando está
traduzindo o texto hebraico, ou parafraseando-o. Alguns creem que pode ter
seguido uma versão hebraica independente do texto que temos hoje.
Aparentemente, Josefo não precisaria usar a Septuaginta, visto que
conhecia perfeitamente o hebraico. Além do mais, ele estava escrevendo
para os gregos, e no seu desejo de impressioná-los dificilmente citaria a
Septuaginta, pois em muitas partes ela traz um grego inferior ao seu
próprio. Por outro lado, a Septuaginta era amplamente difundida e
reconhecida no mundo grego. Além disso, às vezes, parece estar
expandindo partes que só aparecem na Septuaginta e não no texto hebraico.
Aramaico era a língua mãe de Josefo, e certamente ele estava
familiarizado com as leituras targúmicas em aramaico, pelos anos que
passou em Jerusalém, frequentando as sinagogas. Alguns estudiosos têm
notado semelhança entre as expansões que Josefo faz e aquelas dos
targums, o que os leva a acreditar que Josefo se utiliza deles.
Apesar de ter acesso a essas três versões das Escrituras, é provável que
Josefo tenha usado mais o texto hebraico, citando-o livremente ou
traduzindo-o livremente para o grego, língua em que publicou todas as suas
obras. A pergunta que agora se levanta é o grau de liberdade que ele
utilizou para traduzir e citar as Escrituras em suas obras.
Na introdução de Antiguidades, Josefo declara que não adicionará nem
omitirá coisa alguma das Escrituras (Ant 1:5-7). E ao término da mesma,
declara que nada omitiu ou adicionou (Ant 20:261). Entretanto, é evidente,
a partir do que escreveu, que numerosos detalhes e, às vezes, episódios
inteiros foram adicionados, e que também foram omitidos episódios
bíblicos que não se prestam ao seu propósito central, que é defender o
Judaísmo. Entre essas partes, está o relato da esperteza de Jacó em tirar as
ovelhas de Labão (Gn 30.37-38), o episódio de Judá e Tamar (Gn 38), o
assassinato do egípcio por Moisés (Êx 2.12), a construção do bezerro de
ouro (Êx 32), o pecado de Moisés ao ferir a rocha (Nm 20.10-12), entre
outros.
É possível que Josefo tenha se referido somente ao material haláchico ou
legal, os mandamentos e as leis do Pentateuco. Ele mesmo trata quase que
exclusivamente do material agádico, isto é, histórico ou narrativo. Ou
ainda, sua promessa pode ser apenas “conversa”, pois a grande maioria dos
seus leitores (gregos) talvez não tivesse como averiguar se ele cumpriria sua
promessa ou não.
Josefo como intérprete da narrativa bíblica
Para entender a maneira de Josefo ler a Bíblia devemos primeiro nos
conscientizar dos alvos que ele tinha em mente.
O objetivo apologético
Em primeiro lugar, havia o objetivo apologético. As obras de Josefo têm
caráter eminentemente apologético. Ele procura nelas defender o povo
judeu dos ataques antissemitas da sua época. Assim, ele adota várias
estratégias ao “re-narrar” a história bíblica. Primeiro, Josefo heleniza a
narrativa judaica adotando fraseologia e conceitos dos autores gregos
clássicos. Ele menciona mais de 35 autores gregos e, durante a sua
narrativa, percebe-se que depende principalmente de Homero, Ésquilo,
Sófocles, Eurípedes, Tucídides, Políbio, Heródoto e Platão.
Segundo, Josefo destaca as virtudes dos heróis bíblicos. Em seu esforço
de rebater a acusação de que os judeus não produziram homens “heróis”,
descreve os heróis bíblicos em termos das virtudes reconhecidas e
apreciadas pelos gregos: nascimento de família nobre, altura, piedade, e as
quatro virtudes de caráter: sabedoria, coragem, temperança e justiça.
Terceiro, ele faz constantes apelos aos aspectos militares, políticos e
geográficos da Bíblia. Josefo escreve acerca da constituição política de
Israel (ele conhece bem a linguagem política), destaca seus feitos militares,
usando sua própria experiência como general.
Por fim, Josefo traz um apelo aos interessados em filosofia, procurando
cativar sua audiência grega comparando as seitas judaicas com escolas
filosóficas. Os fariseus são comparados aos estoicos, os saduceus aos
epicureus, e os essênios aos pitagoreanos.
O objetivo teológico
Ao lado do objetivo apologético, Josefo tem também um propósito
teológico. Ele está interessado em apresentar uma interpretação judaica da
História que seja consistente e profundamente religiosa. Seu alvo é
demonstrar que nesta vida Deus recompensa os que guardam a sua Lei e
pune os desobedientes. Porém, já que é um historiador, não dá ênfase ao
papel de Deus nos episódios, para poder focalizar-se mais no papel do
homem, como, por exemplo, na história de José e Rute. Ou ainda, retira
quase todos os elementos miraculosos da história de Sansão.No geral,
entretanto, sua narrativa interpreta os eventos a partir do ensinamento
bíblico da intervenção de Deus em favor do seu povo ou em juízo contra
ele.
Já mencionamos que Josefo modifica a narrativa bíblica ao contar a
história dos judeus. Ele se propunha a contar esta história partindo das
Escrituras, sua fonte principal. Como vimos, estava controlado pelo desejo
de apresentar essa história com um cunho defensivo, apologético, uma
resposta aos ataques antissemitas de sua época. Assim, ele frequentemente
altera a narrativa bíblica para adaptá-la para esse alvo. Ele deseja livrar a
história dos judeus de qualquer “dificuldade” ou obscuridade que possa ser
um tropeço aos leitores gregos. Portanto, modifica ou interpreta o texto
bíblico com vários propósitos.
Primeiro, ele tem o alvo de resolver o que considera um problema
teológico ou uma contradição no texto bíblico. Josefo faz isto alterando ou
omitindo sentenças difíceis do texto bíblico. Por exemplo: “Façamos o
homem…” (Gn 1.26) é mudado para o singular: “Deus fez o homem”, com
o propósito claro de evitar a acusação de politeísmo.
Segundo, Josefo deseja remover dificuldades cronológicas. Talvez o
melhor exemplo disso seja o da longevidade dos patriarcas. Embaraçado
pelo relato bíblico de que eles viveram, cada um, perto de mil anos, Josefo
tenta amainar a dificuldade citando exemplos de pessoas da Antiguidade,
que, segundo os poetas gregos, viveram mais de mil anos, e mostrando que
os patriarcas tinham uma dieta especial, que precisavam viver muito para
aplicar e testar seus conhecimentos de astronomia e geometria, e que
tinham méritos diante de Deus (Ant 1:107-108).
Terceiro, Josefo procura sempre evitar antropomorfismos. No relato da
criação Josefo altera a sentença “o espírito de Deus pairava sobre a face das
águas” (a palavra “pairava” dá a ideia de “chocar”, como se o mundo fosse
um gigantesco ovo), traduzindo por “um vento se movia…” (Ant 1:27).
Similarmente, altera a ideia de que Deus “soprou” o fôlego da vida nas
narinas do homem, e diz que Deus “colocou” no homem alma e espírito.
Essas mudanças de Josefo tinham como objetivo evitar passar a ideia de
que o Deus de Israel tivesse corpo físico.
Quarto, ele desejava tornar a narrativa mais plausível. Segundo Josefo,
Mordecai descobre a trama contra o rei Assuero (Et 2.22) por intermédio de
certo judeu chamado Barnabazos, servo de um dos eunucos (Ant 11.207),
informação de origem desconhecida até hoje. E para evitar que se pense que
a esposa de Manoá tinha motivos errados ao pedir ao anjo que voltasse (Jz
13.2), Josefo acrescenta que ela fez isto para que seu marido o visse, e não
ficasse enciumado (Ant 5.280).
Por fim, ele visava esclarecer obscuridades do texto. O “fogo estranho”
que Nadabe e Abiú trazem perante o Senhor (Lv 10.1) é interpretado por
Josefo como sendo não o incenso prescrito por Deus, mas um já usado
anteriormente, o que teria provocado a ira do Senhor contra os dois
sacerdotes.
As circunstâncias em que Josefo escreveu suas obras explicam porque
frequentemente altera a narrativa das Escrituras, e nos mostra que
intérpretes bíblicos estão sempre sujeitos a cair na tentação de alterar e
adaptar a mensagem bíblica aos alvos que têm em mente.
Josefo e alegoria
Uma última questão que desejamos levantar é quanto ao uso da alegoria nos
escritos de Josefo. Ele raramente usa alegoria para resolver problemas de
interpretação, embora acredite que é um método bíblico (Ant 1.24). Ele
também está ciente de que os estoicos usaram esse método para resolver os
relatos de Hesíodo e Homero sobre as obscenidades dos deuses. Mas, no
geral, Josefo se manifesta contra interpretações fantasiosas da Escritura.
Talvez estivesse reagindo ao método de Filo, o qual ele conhecia.
Josefo, entretanto, usa alegoria às vezes. Em Antiguidades, ele diz que o
tabernáculo simboliza o céu e a terra (Ant 3.181). Já os doze pães da
proposição representam os doze meses do ano (Ant 3.182); o candelabro
com as sete lâmpadas representam os sete planetas (Ibid); as vestes do
sumosacerdote representam as partes do universo (Ant 3.184). Neste
aspecto, Josefo alegoriza o texto bíblico para encontrar ali referências a
temas e assuntos que despertassem o interesse e a admiração de seus
leitores greco-romanos.
Os escritores do Novo Testamento e Josefo
Concluindo, perguntemo-nos sobre a relação entre as obras de Josefo e os
escritos do Novo Testamento, considerando que surgiram no mesmo século
e no mesmo mundo. É difícil saber se Josefo tinha conhecimento dos
evangelhos, das cartas de Paulo ou de outros apóstolos. Quando Josefo
morreu (em Roma, cerca de 100 d.C.) já havia coleções dos evangelhos e
das cartas de Paulo circulando no mundo antigo e especialmente em Roma.
Por outro lado, considerando que a maioria dos autores bíblicos já havia
morrido por ocasião da publicação e divulgação das obras de Josefo, é
praticamente impossível afirmar que eles tivessem conhecimento delas. De
qualquer modo, as diferenças entre os dois, quanto ao uso das Escrituras,
são marcantes.
Escatologia
Esta é uma das grandes diferenças. Josefo é mais um historiador,
recontando a história bíblica e, portanto, concentrando-se nos relatos
históricos do Antigo Testamento. Ao interpretar a História, Josefo não
demonstra qualquer interesse escatológico. Não vê nos eventos nada de
tipológico aguardando consumação. Por outro lado, os escritores do Novo
Testamento são mais como profetas, asseverando que tanto as partes
haláchicas quanto as agádicas do Antigo Testamento encontram
cumprimento em seus próprios dias. A abordagem escatológica do
Cristianismo lhe permitiu ver o Antigo Testamento não simplesmente como
um livro de leis e histórias, mas como promessa. Nisto reside a principal
diferença.
Atualização
Quando Josefo “espiritualiza” e aplica o texto, ele o faz para mostrar a
harmonia das Escrituras com o pensamento e a cultura helenísticas. Os
escritores do Novo Testamento, por sua vez, aplicam as Escrituras
“cristocentricamente”. A consciência da vinda do Messias determina a sua
leitura do Antigo Testamento. Em outras palavras, Josefo interpreta o texto
bíblico em termos da cultura grega, e os autores do Novo Testamento em
termos de Cristo.
Resolução de problemas do texto
Enquanto Josefo está preocupado em remover as dificuldades do texto
bíblico e adaptar a narrativa aos seus cultos leitores gregos, os autores
bíblicos em nenhum momento adotam abordagem semelhante. Para eles, a
Escritura, tal como está, é a Palavra de Deus, autoritativa e profética. Eles
não se engajam em interpretação como se essa fosse um fim em si mesma,
mas para trazer o texto à sua época, aos fins dos tempos, a Cristo.
Conclusão
Muito embora Flávio Josefo não tenha sido um cristão, sua maneira de
abordar as Escrituras em suas obras, por contraste, contribui para nossa
melhor compreensão e entendimento do uso cristão das Escrituras em sua
época. Determinado a defender os costumes e a religião de Israel, numa
época de antissemitismo crescente, ele reconta a história sagrada visando
compatibilizar a história do povo de Deus com o que era aceitável na
cultura greco-romana. Ele também interpreta essa história do ponto de vista
da doutrina bíblica do governo de Deus sobre o mundo.
Capítulo 6
Os autores do Novo Testamento
Introdução
Para os cristãos, o capítulo mais importante da história da interpretação das
Escrituras é sem dúvida o que trata da interpretação do Antigo Testamento
pelos autores do Novo. Ao longo dos séculos, os estudiosos do Antigo e do
Novo Testamento têm se dedicado a esse assunto. O mesmo não tem apenas
interesse acadêmico. Ele tem importância crucial para pelo menos duas
áreas. Primeira, para nossa própria hermenêutica. Queremos uma
hermenêutica bíblica. Mas até que ponto a hermenêutica dos autores do
Novo Testamento pode nos servir de modelo? Segunda, para a questão da
inerrância das Escrituras. Na maioria das vezes, os autores do Novo
Testamento usam passagens do Antigo Testamento com o sentido original
fornecido pelo contextogramático-histórico. Porém, às vezes, eles
aparentam usar um texto sem respeito ao seu contexto veterotestamentário.
Além disso, ocasionalmente mudam, substituem, omitem e adicionam
palavras nas suas citações.
Nosso objetivo neste capítulo é mostrar como os autores do Novo
Testamento interpretaram o Antigo, à luz do seu ambiente cultural e
teológico, e dos demais modelos interpretativos em vigor em sua época, dos
quais já mostramos alguns exemplos.
A maior limitação deste capítulo é que não teremos como nos aprofundar
em várias das questões pertinentes ao assunto. Nosso interesse será somente
mostrar como a interpretação dos autores do Novo Testamento se encaixa
no milieu hermenêutico da época, explorando as semelhanças, as diferenças
e, especialmente, entendendo quais os princípios que a controlavam. Nesse
processo, várias questões serão levantadas e deixadas sem resposta
detalhada e profunda. Outra limitação é imposta pela quantidade de autores
do Novo Testamento. Se fôssemos dar atenção individual a Mateus,
Marcos, Lucas, João, Paulo, Tiago, João, Pedro, Judas e ao autor de
Hebreus, faríamos este capítulo desproporcionalmente longo. Procuraremos
citar todos eles à medida que formos ilustrando os princípios dominantes da
hermenêutica que lhes era comum. Porém, maior destaque será dado aos
escritos de Paulo, pela razão simples de que ele foi quem mais escreveu.
Temos alguns pressupostos que desejamos deixar claros antes de pros-
seguir. Partimos da convicção da harmonia e unidade do Novo Testamento,
da inspiração e infalibilidade de seus escritos, e da sua autoria apostólica
ainda durante o século 1º da era cristã. Também reconhecemos que não
temos resposta para algumas das intrigantes questões que aparecerão no
curso de nossa pesquisa. Entretanto, rejeitamos a priori qualquer resposta
que requeira engano ou erro por parte dos autores do Novo Testamento.
Preferimos aguardar por respostas que expliquem as dificuldades sem ferir
o princípio da autoridade e infalibilidade das Escrituras. A incredulidade
impaciente de muitos estudiosos críticos acaba por levá-los a rejeitar a
autoridade do Novo Testamento, propondo explicações que tornam seus
autores em redatores desajeitados ou teólogos incoerentes e manipuladores
irresponsáveis das Escrituras do Antigo Testamento.
A Bíblia dos autores do Novo Testamento
A Bíblia dos autores do Novo Testamento eram as Escrituras judaicas, que
posteriormente vieram a se chamar Antigo Testamento. A Bíblia era central
na vida deles, como também na dos rabinos, essênios e demais grupos e
indivíduos que já estudamos. Era a autoridade máxima em termos de
religião e conduta. O apóstolo Paulo a considerava como a Palavra de Deus,
inspirada e autoritativa (2Tm 3.16). A maioria das suas citações vem do
Pentateuco, Salmos e Isaías, como ocorre nos demais autores
neotestamentários e entre os rabinos e nos escritos de Qumran.
Uma importante questão é qual versão das Escrituras os intérpretes
neotestamentários usaram em seus escritos. Tomemos o caso de Paulo como
exemplo. Muito embora em muitos casos ele tenha citado as Escrituras de
memória, permanece a pergunta: qual versão ele tinha memorizado? Sim,
pois Paulo tinha diante de si várias opções: a versão grega (Septuaginta), a
Bíblia hebraica e versões em aramaico. Um estudo cuidadoso demonstra
que Paulo usou a Septuaginta, como Filo e, possivelmente, Josefo, que
também utilizou-se do texto hebraico, como os rabinos e Qumran, e que
ainda provavelmente usou targums (aramaico). Predominam as citações da
Bíblia hebraica e da Septuaginta, nessa ordem. Pode-se distinguir quando
Paulo cita uma ou outra porque nem sempre a Septuaginta seguiu o texto
hebraico de maneira consistente. O caso de Paulo é uma boa amostragem do
que ocorre com os demais autores do Novo Testamento.
O Antigo Testamento no Novo
Os autores do Novo Testamento em geral, e Paulo em particular,
construíram seus escritos sobre a revelação escrita prévia, as Escrituras do
Antigo Testamento, seguindo a mesma tradição hermenêutica que levou os
autores posteriores do Antigo Testamento a construir sobre textos
anteriores, conforme vimos no capítulo primeiro da nossa obra.
O Novo Testamento está impregnado do Antigo e indissoluvelmente
ligado a ele. O uso que os autores neotestamentários fazem das Escrituras
em seus escritos é bem variado. Além de prover o arcabouço teológico, o
Antigo Testamento é constantemente citado pelos autores do Novo. Há duas
formas de citações:
1) Citações formais – Essas citações geralmente têm uma fórmula
introdutória, como “está escrito” ou coisa semelhante, e são seguidas pela
reprodução da passagem do Antigo Testamento à qual os autores se
referem. Existem aproximadamente 104 citações formais do Antigo
Testamento nas cartas de Paulo. De acordo com o índice de citações da
quarta edição do texto grego da United Bible Society, temos 60 em
Romanos, 17 em 1Coríntios, 10 em 2Coríntios, 10 em Gálatas, 5 em
Efésios, 1 em 1Timóteo e mais 1 em 2Timóteo.
2) Alusões intencionais – São aquelas ocasiões em que os autores
neotestamentários não se referem explicitamente às Escrituras, mas
claramente estão dependendo de uma ou mais passagens do Antigo
Testamento. Podemos considerar como alusões as citações livres,
reminiscências, referências a eventos, paralelos de linguagem, ecos, etc. A
característica comum é que as alusões não são precedidas por uma fórmula
introdutória. Alguns exemplos das cartas de Paulo: (1) A exposição de
Paulo dos efeitos da queda em Romanos 5.12-14 reflete Gênesis 2.16ss;
3.1ss; etc.; (2) As exortações em 1Coríntios 10.1-15 se baseiam em várias
passagens sobre a desobediência dos israelitas no deserto (Nm 11.1ss; Êx
32.1ss; Nm 25.1ss; 21.1ss; 14.1ss); (3) A alegoria de Sara e Agar em
Gálatas 4.21-31 é baseada em Gênesis 16.1ss.
Dificuldades com as citações
O que nos interessa no momento são as citações formais que os autores
neotestamentários fazem, porque é aqui que a maneira como interpretam as
Escrituras transparece de forma mais clara. No geral, eles reproduzem essas
passagens respeitando o sentido das mesmas conforme seu contexto
histórico, mantendo o sentido que tinham para os leitores originais. Porém,
muitos críticos apontam para ocasiões em que eles parecem estar
manipulando e torcendo as Escrituras para provar seus argumentos.
Vejamos algumas dessas críticas feitas ao apóstolo Paulo.
Localização ignorada
Algumas vezes Paulo parece estar citando a Escritura, mas não
conseguimos localizar a passagem do Antigo Testamento a que ele se
refere. Por exemplo, em Efésios 5.14 ele faz uma citação introduzida pela
palavra “diz”, que às vezes introduz uma citação formal do Antigo
Testamento (cf. Rm 10.6 e 8). Só que não conseguimos encontrar no Antigo
Testamento nenhuma passagem similar à que Paulo reproduz em sua carta.
Alguns críticos dizem que o apóstolo simplesmente inventou uma passagem
do Antigo Testamento para dar força ao seu argumento. Porém, há outras
possibilidades além de acusar Paulo de charlatanice. Ele pode estar citando
uma parte de um hino cristão, ou de uma fórmula usada no batismo. Ou
melhor, ele pode simplesmente estar citando de memória uma combinação
de passagens do Antigo Testamento. No caso, uma combinação de Isaías
26.19 e 60.1, duas passagens em que o profeta conclama o povo de Deus a
despertarse diante da luz gloriosa da salvação:
Efésios 5.14 - Pelo que diz: Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e
Cristo te iluminará.
Isaías 26.19 - Os vossos mortos e também o meu cadáver viverão e
ressuscitarão; despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho, ó
Deus, será como o orvalho de vida, e a terra dará à luz os seus mortos.
Isaías 60.1 – Dispõe-te, resplandece, porque vem a tua luz, e a glória do
SENHOR nasce sobre ti.
Outro exemplo é 1Coríntios 2.9. Aqui, claramente Paulo diz estar
citando as Escrituras, usando sua fórmula introdutória preferida “está
escrito”. Porém, não conseguimos encontrar no Antigo Testamento a
passagem a que ele se refere. Nãoé necessário acusar Paulo de
desonestidade. Mais uma vez, parece que o apóstolo está citando de
memória duas passagens do Antigo Testamento, combinando o sentido de
ambas numa única citação livre:
1Coríntios 2.9 - … mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram,
nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que
o amam.
Isaías 52.15 - … assim causará admiração às nações, e os reis fecharão a sua
boca por causa dele; porque aquilo que não lhes foi anunciado verão, e aquilo
que não ouviram entenderão.
Isaías 64.4 – Porque desde a Antiguidade não se ouviu, nem com ouvidos se
percebeu, nem com os olhos se viu Deus além de ti, que trabalha para aquele
que nele espera.
Outros exemplos poderiam ser citados, mas são realmente poucos (cf.
2Tm 2.19b). A melhor explicação para esses casos em que o apóstolo diz
citar as Escrituras é que o faz de memória, fundindo textos e dando o
sentido geral deles, sem fazer uma citação ipsis literis ou formal. Esse
fenômeno não está restrito somente a Paulo, mas pode ser percebido em
outros autores do Novo Testamento. Mateus, por exemplo, apela para os
profetas para justificar que Jesus seria chamado de “nazareno” (Mt 2.23),
mas não sabemos de onde ele tirou essa citação, que é provavelmente uma
interpretação de várias profecias indicando que o Messias habitaria em
Nazaré.
É importante que levemos em conta que os padrões modernos a que
estamos acostumados (aspas, notas de rodapé, indicação da fonte, etc.)
exigem uma precisão muito maior na reprodução de textos em outros
textos, do que os padrões da época apostólica. Além disso, em muitos
casos, é possível que Paulo esteja citando de memória, sem a preocupação
de reproduzir o texto bíblico de maneira exata. É bem verdade que, em um
bom número de casos, as citações de Paulo seguem literalmente o texto do
Antigo Testamento (cf. Gl 4.27; Rm 3.13; 4.17-18; etc.), o que sugere o uso
de uma cópia da Bíblia. Porém, isso não precisa ser verdade em todos os
casos.
Mudanças intencionais do texto
Um pouco mais complicados são aqueles casos em que Paulo cita o
Antigo Testamento com mudanças aparentemente intencionais do texto
original. Algumas são de menor importância, consistindo apenas na troca de
uma ou outra palavra para adaptar a passagem ao seu novo contexto, sem
alteração alguma do sentido original. Por exemplo, veja a citação que Paulo
faz de Gênesis 15.6 em Romanos 4.3:
Romanos 4.3 - Pois que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado
para justiça.
Gênesis 15.6 - Ele creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado para justiça.
Na grande maioria dos casos, as alterações são como acima. Elas não
mudam o sentido original da passagem do Antigo Testamento, e podem ser
atribuídas a citações de memória (Paulo trocou “Senhor” por “Deus”) ou
adaptação ao contexto do material que Paulo está escrevendo (trocou “ele”
por “Abraão”). Porém, em outros casos, as alterações parecem mudar
intencionalmente o sentido da passagem do Antigo Testamento. Os críticos
de Paulo o acusam de torcer as Escrituras para servir aos seus propósitos.
Veja a comparação abaixo de duas citações de Paulo em 1Coríntios.
1Coríntios 2.16 - Pois quem conheceu a mente do Senhor, que o possa instruir?
Isaías 40.13 - Quem guiou o Espírito do SENHOR? Ou, como seu conselheiro,
o ensinou?
1Coríntios 3.20 - E outra vez: O SENHOR conhece os pensamentos dos sábios, que são
pensamentos vãos.
Salmo 94.1 - O SENHOR conhece os pensamentos do homem, que são
pensamentos vãos.
No primeiro caso, Paulo citou Isaías trocando “Espírito” por “mente”. A
troca poderia parecer normal, pois no pensamento de Paulo o Espírito é
quem entende e transmite a mente do Senhor, conforme 1Coríntios 2.10-11.
Por outro lado, a troca torna o argumento de Paulo em 1Coríntios mais
pertinente, pois ele está tratando da mentalidade humana decaída em
contraste com a mentalidade do homem regenerado. A troca, pois, parece
intencional.
No segundo caso, Paulo trocou “homem” por “sábios” e mais uma vez a
troca parece intencional, com o objetivo de fortalecer seu argumento. Paulo
está fazendo uma crítica à sabedoria humana e aos sábios deste mundo que
não conhecem a Deus. Portanto, ao citar a passagem de Isaías, introduz a
palavra “sábios”, como se os mesmos fossem o tipo de homens em que esse
desconhecimento de Deus se mostra de maneira mais aguda.
Esse procedimento não é exclusivo do apóstolo Paulo. Outros autores
neotestamentários o utilizam igualmente. Pedro, por exemplo, ao citar Joel
2.28 no dia de Pentecostes, troca “depois” por “nos últimos dias” (cf. At
2.17). Em todos esses casos de troca intencional percebe-se que os autores
neotestamentários estão dando uma versão interpretada da passagem do
Antigo Testamento. Nos casos mencionados acima, não há realmente
violência ao sentido do texto original. Pedro simplesmente interpreta Joel
dizendo que o “depois” do profeta se referia à chegada dos últimos dias,
com o derramamento do Espírito em Pentecostes.
É preciso lembrar que Paulo nunca se propõe a dar uma citação verbatim
do texto hebraico em suas cartas. Esse princípio é de extrema importância.
Se Paulo tivesse a intenção de dar uma citação verbatim, e então trocasse as
palavras, estaria cometendo um erro. Mas, se ele está se propondo apenas a
reproduzir o sentido de um texto do Antigo Testamento, a situação é
diferente. Com raras exceções, o argumento de Paulo nunca se baseia na
fraseologia, gramática, sintaxe ou tempos verbais do hebraico, e sim no
sentido do texto sendo citado. Assim, Paulo às vezes usa a fórmula “está
escrito” mas reproduz o texto bíblico apenas de modo geral (cf. Rm 2.24).
Uso da Septuaginta
Na maioria dos casos em que cita o Antigo Testamento, Paulo reproduz a
passagem bíblica em coerência com o texto hebraico e a Septuaginta, como,
por exemplo, em Romanos 2.6; 2.16; 3.4; 1Coríntios 3.20; etc. Noutras
ocasiões, ele segue o texto hebraico e não a Septuaginta, quando a mesma
diverge do hebraico. Ver, por exemplo, Romanos 1.17; 11.4; Gálatas 3.11.
Em algumas ocasiões, porém, Paulo segue a Septuaginta mesmo quando
ela difere do texto hebraico, ou o traduz inadequadamente. O fato é
estranho, acusam seus críticos, pois o apóstolo certamente conhecia o texto
hebraico e também a Septuaginta e poderia saber quando a tradução não
estava adequada. Há vários exemplos, como Romanos 2.24; 3.14; etc. Veja
a comparação abaixo no caso de 1Coríntios 6.16, em que Paulo segue a
Septuaginta, que introduziu a expressão “os dois” na passagem de Gênesis
2.24.
1Coríntios 6.16b - Porque, como se diz, serão os dois uma só carne.
Gênesis 2.24 (tradução literal do hebraico) - Por isso, deixa o homem pai e
mãe e se une à sua mulher, e serão uma só carne.
Gênesis 2.24 (LXX) - Portanto, deixará o homem seu pai e sua mãe e se unirá a
sua mulher e serão os dois uma só carne.
No caso acima o problema não parece tão grave, pois a adição da
Septuaginta é óbvia e não muda em nada o sentido do texto. Mas, o fato
indica que Paulo por vezes preferia seguir a tradução grega do Antigo
Testamento, mesmo tendo o original hebraico ao seu alcance. Esse fato
pode apresentar um problema teológico, ou seja, um apóstolo infalível
usando uma interpretação falível. Devemos nos lembrar de algumas coisas,
ao estudar esse assunto.
Primeira, podemos admitir que as passagens da Septuaginta citadas por
Paulo (bem como no restante do Novo Testamento) passaram a ter status de
Escritura e, portanto, inspiradas, sem que tenhamos de admitir, como Filo,
que toda a Septuaginta é inspirada. Nesse caso, o princípio é válido para
citações extracanônicas, como a citação do apócrifo Ascensão de Moisés
feita em Judas 9. Da mesma maneira, as citações que Paulo faz de autores
pagãos, como Aratus e Cleantes (At 17.28), Epimenides (Tt 1.12) e
Menander (1Co 15.33), não tornam os escritos deles inspirados. O uso que
Paulo faz de tradições rabínicas em aramaico, que mais tarde receberam
forma escrita nos targums, também não precisa nos preocupar. Aplica-se o
mesmo princípio.Por meio da cultura hermenêutica do Judaísmo rabínico,
Deus preservou aspectos da verdade, os quais foram posteriormente, por
meio do apóstolo inspirado, incorporados na revelação escrita.
Segunda, na grande parte das vezes em que a Septuaginta é citada,
mesmo traduzindo inadequadamente o texto hebraico, pode-se argumentar
que não existe violência ao sentido do texto original. Por exemplo, a citação
em 1Coríntios 6.16 da Septuaginta em Gênesis 2.24, a qual acrescenta “os
dois” ao texto hebraico, apenas reflete o fato que Paulo está preocupado,
não em reproduzir o hebraico verbatim, mas em reproduzir e aplicar seu
sentido. Calvino, comentando Hebreus 11.21, em que o autor segue a
Septuaginta “bordão” e não o texto hebraico “cama”, afirma que o escritor
de Hebreus se acomodou às versões em grego disponíveis aos seus leitores,
que eram judeus da Dispersão, quando isso não alterava de maneira
significativa o conteúdo do seu ensino.
Terceira, não devemos exagerar a dimensão do problema. Boa parte do
ataque que é feito à Septuaginta visa desacreditar a exegese apostólica e,
por inferência, a exegese gramático-histórica. Para alguns estudiosos
conservadores, pode-se achar, em cada caso em que a Septuaginta é citada
diferentemente do hebraico, uma razão convincente, que se harmoniza com
nossa crença na inspiração e inerrância da Bíblia.
Tradução independente
Por vezes Paulo cita uma passagem do Antigo Testamento de maneira
diferente tanto do texto hebraico quanto da Septuaginta. Mais uma vez a
acusação de torcer as Escrituras vem à tona. Porém, nesses casos, não é
impossível que ele esteja fazendo sua própria tradução diretamente do
hebraico ou simplesmente fazendo uma citação interpretada da passagem.
Por exemplo, as citações em sequência que ele faz em Romanos 3.10-12 de
vários salmos (Sl 14.1-3; 53.1-3) divergem do hebraico e da Septuaginta
apenas na sequência das palavras e nos vocábulos, mas o sentido é
absolutamente o mesmo. A mesma coisa em 1Coríntios 1.19, em que ele
cita Isaías 29.14 (ver ainda Gl 3.10). Um exemplo clássico é a citação que o
apóstolo faz, em Efésios 4.8, do salmo 68.19:
Efésios 4.8 - Por isso, diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e
concedeu dons aos homens.
Salmo 67.19 (LXX) - Subiste às alturas, levaste cativo o cativeiro, recebestes
dons para os homens, sim, pois foram rebeldes, para que possas habitar entre
eles.
Salmo 68.19 (hebraico) – Subiste às alturas, levaste cativo o cativeiro;
recebeste ho-mens por dádivas, até mesmo rebeldes, para que o SENHOR Deus
habite no meio deles.
No exemplo acima vemos dois fenômenos: (1) A Septuaginta trocou o
objeto direto do verbo “receber” de “homens” para “dádivas”. (2) Paulo
seguiu a Septuaginta nisto, e também traduziu o verbo hebraico lacah, que
significa “receber” como se fosse “conceder”, mudando assim
aparentemente o sentido original do salmo. Existem várias explicações para
esse fenômeno. Os críticos acham que Paulo simplesmente torceu o texto
hebraico para poder acomodá-lo ao seu propósito, que era de mostrar que
Cristo, ao subir às alturas e ser glorificado, concedeu dons espirituais à sua
igreja. Mas o texto hebraico e sua versão grega da Septuaginta eram
conhecidos dos leitores de Paulo e especialmente de seus inimigos, os
judaizantes, que facilmente poderiam acusá-lo de desonestidade. O apóstolo
deve ter se sentido seguro em fazer essa alteração.
A melhor possibilidade é que Paulo está se referindo, sob a forma de
citação, a um sentido implícito no tema geral do salmo. O mesmo trata da
vitória de Deus sobre seus inimigos, a qual é descrita em termos do triunfo
militar de um general vitorioso, que após capturar os inimigos entra em sua
cidade, trazendo-os como seus escravos em cortejo triunfante, recebendo-os
como despojo ou dádivas da guerra. Na mesma ocasião, ele distribui os
despojos da vitória entre seu povo, como dádivas e dons graciosos. Paulo
percebeu no salmo que o mesmo tratava não somente do fato de que Deus,
ao vencer em Cristo o cativeiro da morte, levou-a cativa e ganhou homens
para si, mas deu a estes homens dons e dádivas para o serviço na igreja,
seguindo o costume militar. Que Paulo estava bastante familiarizado com
este costume e que o usou para descrever a vitória de Cristo, percebe-se por
Colossenses 2.15, “… e, despojando os principados e as potestades,
publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz”. Entendemos
que a explicação acima resolve o problema satisfatoriamente.
Texto em outro contexto
Os críticos da hermenêutica de Paulo apontam o fato que existem ainda
casos em que, mesmo não havendo alterações significativas nas citações, o
texto referido é empregado pelo apóstolo num contexto e com um sentido
aparentemente diferentes do original. Vejamos alguns exemplos: (1) Paulo
aplica aos gentios em Romanos 9.25-29 passagens do Antigo Testamento
que originalmente falam de Israel (cf. Os 2.23; 1.10; Is 10.22-23; 1.9).
Entretanto, o problema se resolve quando esta aplicação é examinada à luz
da teologia paulina de que os gentios cristãos são o Israel de Deus, o
verdadeiro Israel, o remanescente fiel profetizado. (2) Em Romanos 10.5-8
Paulo usa Deuteronômio 30.12-14 para provar a justificação pela fé,
enquanto que a passagem originalmente parece defender que não é difícil
guardar as obras da Lei. Mais uma vez o uso do apóstolo pode ser
justificado à luz da sua doutrina de que o sistema de salvação pela fé estava
embutido dentro da Lei, e que o remanescente fiel foi justificado pela fé no
Antigo Testamento, exatamente como os cristãos de seus dias.
Em todos estes casos acima, e noutros, não é difícil provar que Paulo
está fazendo um uso legítimo das passagens em suas cartas, desde que
examinemos cada caso cuidadosamente à luz da teologia do apóstolo e
dentro do contexto maior no Antigo Testamento do qual as passagens foram
tiradas. Entretanto, é quando examinamos as características da
hermenêutica de Paulo que passamos a compreender melhor seu uso do
Antigo Testamento, bem como dos demais autores do Novo Testamento.
Princípios controladores da hermenêutica neotestamentária
Os escritores do Novo Testamento compartilham algumas características
gerais do uso das Escrituras com os rabinos e essênios de sua época. Ao
citar as Escrituras, eles geralmente fazem um comentário ligeiro (midrash?),
visando aplicar o texto à situação presente. Raramente estão envolvidos em
exegese do texto, à semelhança dos essênios e rabinos. Eles visam mais a
aplicação do texto. Ainda assim, sua aplicação e sua ênfase são bem
distintas do que os outros grupos estão fazendo, como veremos mais
adiante. Os autores do Novo Testamento também utilizam fórmulas
introdutórias, tais como “está escrito”, “a Escritura diz”, etc., que são
comuns no material rabínico e de Qumran.
A contribuição distinta dos cristãos para a hermenêutica bíblica é sua
reinterpretação radical das Escrituras do Antigo Testamento à luz dos
eventos históricos-redentores relacionados com a encarnação, vida, morte e
ressurreição de Cristo, e o surgimento da igreja cristã. Neste sentido, a
exegese deles representa um rompimento com o rabinismo judaico, com a
comunidade do Mar Morto e com os demais indivíduos que estavam inter-
pretando as Escrituras em seus dias fora do âmbito da igreja cristã. Vejamos
agora o que tornou o resultado da interpretação do Antigo Testamento pelos
autores neotestamentários tão diferente daquele produzido pelos demais
grupos da época.
Cristo é a chave das Escrituras
Os escritores do Novo Testamento estão convencidos de que Cristo é a
chave que abre o sentido do Antigo Testamento. Paulo, por exemplo,
chegou a essa conclusão não por meio de exegese, mas por meio de
revelação (cf. At 9.1-9; Gl 1.14-16). Uma vez que creu e entendeu que
Jesus a quem perseguia era o Messias prometido de Israel, passa a ler sua
Bíblia, não mais como um rabino, mas como um judeu que encontrou o
cumprimento da promessa de Israel. O texto clássico em que o apóstolo
explica esta conversão hermenêutica é 2Coríntios 3.13-17,no qual ele
defende que a conversão a Cristo destranca a porta para o sentido das
Escrituras. Para Paulo, até hoje, quando os judeus leem os livros da antiga
aliança, a mente deles está coberta com o mesmo véu que havia sobre a face
de Moisés, ao descer do monte com a Lei nas mãos, pois não enxergam
Cristo neles (2Co 3.14a e 15). Este véu havia sido colocado por Moisés para
que os israelitas não pudessem ver que o seu brilho, o brilho da antiga
aliança, estava desaparecendo (3.13). O véu representa o caráter inferior da
antiga aliança, em que a presença de Cristo era indicada de maneira velada
nas Escrituras, e pressagiava a chegada da nova aliança. Jesus é aquele de
quem elas falam, mas sob a forma de símbolos, figuras, tipos, instituições,
profecias. A vinda de Jesus Cristo cumpre esses símbolos (3.14b). Assim,
quando um judeu se converte a Jesus como Senhor, o véu é retirado pelo
Espírito, e agora o judeu convertido goza de liberdade para finalmente ler as
Escrituras sem véu e ver Jesus nelas (3.17).
Em resumo, para Paulo e demais autores do Novo Testamento, a Lei de
Moisés (Rm 10.4-9), os Profetas (Rm 1.2; 16.25-26), e os Escritos (Rm 4.7-
8), falavam de Cristo e da salvação por meio dele (cf. 1Co 15.1-4). O
Antigo Testamento, com suas profecias e história, encontrava cumprimento
pleno e final em Cristo e na nova era inaugurada por ele. Assim, com
frequência, Paulo comprova este fato em suas cartas aludindo ou citando o
Antigo Testamento:
• Cristo como filho de Abraão (Gl 3.16);
• A obediência e os sofrimentos de Cristo (Rm 15.3; Gl 3.13);
• A ressurreição, senhorio e domínio de Cristo (1Co 15.25,27; 15.45; Ef
4.8).
O caráter cristocêntrico da hermenêutica dos autores do Novo
Testamento torna-a radicalmente diferente da hermenêutica dos rabinos e
dos essênios, para quem, nas palavras de Paulo, os escritos da antiga aliança
eram um livro velado.
Os últimos dias já raiaram
Os primeiros intérpretes cristãos estão convencidos de que seus dias são
dias de cumprimento, de realização das promessas do Antigo Testamento, e
que, em Cristo, a época futura predita pelos profetas havia raiado. Assim,
para eles, as Escrituras se aplicam à sua própria geração (cf. 1Co 10.11) e o
surgimento da Igreja Cristã é o cumprimento divino do Antigo Testamento
(cf. 1Co 2.9; Rm 16.25-27). Deste modo, Paulo é capaz de defender os
principais eventos e ensinos desta nova época citando as Escrituras. Como
amostra, mencionaremos o tratamento que Paulo dá a dois eventos de sua
época, para os quais ele encontra justificação nos escritos inspirados do
Antigo Testamento:
1) Israel rejeitou o Messias – Um dos principais eventos relacionados
com o raiar da era messiânica é o fato de que Israel não reconheceu Jesus
como o Messias. Porém, para Paulo, essa rejeição não devia surpreender
ninguém, pois já estava escrito que seria assim. Ele trata do assunto em sua
carta aos Romanos e seu ponto é que tal rejeição pode ser encontrada nas
páginas dos próprios escritos dos judeus. De acordo com Paulo, Gênesis
21.12 e 18.10 mostram que os verdadeiros descendentes de Abraão são
aqueles que se apegam às promessas (Rm 9.6-10). A causa maior da
rejeição, entretanto, é a soberania de Deus, que havia escolhido Jacó e
aborrecido Esaú, conforme Gênesis 25.23 interpretado em Malaquias 1.2-3
(Rm 9.10-13). E, ao rejeitar os judeus, Deus estava exercendo de maneira
justa a sua soberania, da mesma forma como rejeitou Faraó de acordo com
Êxodo 33.19 e 9.16 (Rm 9.14-18). A queda de Israel foi o tropeço na rocha
profetizado em Isaías 28.16 (Rm 9.33). Moisés (Dt 32.21) e Isaías (Is 65.1-
2) já haviam dito que Deus provocaria o ciúme de Israel com outro povo
(Rm 10.19-21). Mas isso não significa que Deus abandonou definitivamente
o povo da antiga aliança. Resta ainda uma futura salvação para Israel,
conforme Isaías 59.20-21 e Jeremias 31.33-34 (Rm 11.26-27).
2) Os gentios são parte do povo de Deus – Outro evento momentoso da
chegada da nova época é a entrada na igreja de pessoas não judaicas. Para
Paulo, a futura inclusão dos gentios na igreja era algo que podia ser
encontrado nas próprias Escrituras judaicas. Estava lá o tempo todo – os
judeus é que não haviam percebido por causa da cegueira espiritual. Os
profetas Oseias (Os 2.23; 1.10) e Isaías (Is 10.22-23; 1.9) haviam falado
claramente de um remanescente fiel que seria tomado de entre os povos
(Rm 9.25-29). Um remanescente de israelitas fiéis que Deus sempre
conservou pela graça soberana em momentos de crise, como ocorreu na
época de Elias (1Rs 19.10,14,18), é um tipo da igreja gentílica, enquanto
que os demais judeus foram endurecidos, conforme profetizado em Isaías
29.10 e no salmo 69.22-23 (Rm 11.3,4,8-10). Vários outros textos são
citados pelo apóstolo em Romanos para demonstrar que a entrada dos
gentios no povo de Deus era algo previsto nas Escrituras (cf. Rm 15.9-12
em que o apóstolo cita passagens de 2Samuel, Deuteronômio, Salmos e
Isaías). A justificação dos gentios pela fé é defendida por Paulo em Gálatas
3.6-14 com base na própria justificação de Abraão (Gn 15.6 e 12.3), na
própria Lei de Moisés (Dt 27.26 e 21.23; Lv 18.5) e no profeta Habacuque
(Hb 2.4). Para o apóstolo, a justificação pela fé em Cristo não era algo
novo, mas ensinado nas Escrituras do próprio Antigo Testamento (cf. ainda
Rm 10.6-8,11,13,15-16,18; 2Co 6.2).
Tipologia
Outro importante componente da hermenêutica neotestamentária é o
conceito de tipologia. Estudiosos têm apontado para o fato de que Jesus e
seus discípulos entendem a História em termos de Heilsgechichte, “história
da salvação”, uma série de eventos salvadores determinados por Deus, que
ocorrem numa determinada sequência histórica, tendo seu clímax na vida,
morte e ressurreição de Jesus Cristo. É desse modo que Paulo pode se
referir à encarnação como tendo ocorrido na “plenitude do tempo” (Gl 4.4)
e à ressurreição como tendo ocorrido na “dispensação [oikonomia] da
plenitude dos tempos” (Ef 1.10). Ou seja, Deus vinha agindo
salvadoramente no tempo e na História, de maneira planejada, calculada e
secreta. Com a vinda de Cristo, é revelada a dispensação do mistério, desde
os séculos, oculto em Deus (Ef 3.9). E tudo isso, naturalmente, “por meio
das Escrituras proféticas” (Rm 16.25-26).
A ideia predominante aqui é aquela da continuidade íntima entre os
eventos narrados no Antigo Testamento e aqueles ocorrendo nos dias dos
autores do Novo Testamento. São todos eventos da mesma grandeza, da
mesma categoria. São eventos salvadores, manifestações do plano eterno de
Deus. Por essa perspectiva, Paulo e demais autores do Novo Testamento
assumem a correspondência entre as Escrituras do Antigo Testamento e os
eventos históricos-redentivos ocorridos em Cristo Jesus. Essa
correspondência é basicamente de promessa e tipo (Antigo Testamento) e
cumprimento e antítipo (Novo Testamento). Os eventos, personagens e
instituições registrados no Antigo Testamento são entendidos como “tipos”
das realidades presentes em Cristo Jesus. Deste modo, Paulo considera a
história de Israel no deserto como tendo acontecido de forma típica, para
servir de exemplo aos cristãos (1Co 10.11). Adão é visto por ele como um
tipo de Cristo, na qualidade de cabeça e representante da raça humana, por
meio de quem o destino da mesma é determinado (Rm 5.14). Os demais
autores do Novo Testamento seguem na mesma linha. O autor de Hebreus
igualmente vê as experiências negativas de Israel no deserto como típicas
para servir de exortação aos cristãos (Hb 4.11). Tiago vê os sofrimentos dos
profetas também como tipo a ser imitado pelos cristãos (Tg 5.10). Pedro
ensina que Deus, ao destruir Sodoma e Gomorra, colocou-as como exemplo
(hupodeigma) aos ímpios (2Pe 2.6).
A diferença entre tipologia e alegoria
A diferença entre tipologia e alegoria tem sido largamente debatida pelos
estudiosos. Se assumirmos que a tipologia pressupõe esta continuidade
histórica e teológica entre os dois Testamentos, fica evidente que todos os
casos em que os escritores do Novo Testamento estão “alegorizando” estão,
naverdade, “tipologizando”, apontando para a correspondência histórica e
teológica entre eventos, fatos, instituições do Antigo Testamento, e os
novos fatos ocorridos recentemente em Cristo Jesus. E essa é uma das
características dominantes da hermenêutica neotestamentária.
Aqui podemos ver mais uma diferença entre a hermenêutica de Paulo e
aquela dos demais grupos já estudados nos capítulos anteriores. Em
comparação com a exegese judaica praticada em seus dias, Paulo é muito
mais sensível às questões gramaticais, ao contexto histórico, e à intenção
original do autor bíblico do que os monges de Qumran, do que Filo, e a
maioria dos rabinos. O apóstolo sempre assume a historicidade dos eventos
relatados no texto bíblico. Enquanto a realidade histórica do relato da
tentação e da queda, por exemplo, é minimizada ou tornada supérflua pela
alegoria de Filo, se constitui no próprio fundamento da argumentação de
Paulo para justificar a necessidade da vinda de Cristo (ver Rm 5.12-21) e os
diferentes papéis do homem e da mulher (1Tm 2.11-15). Também, os
aspectos gramaticais do texto hebraico são importantes para ele: o fato de
que em Gênesis 12.7 a promessa foi feita ao descendente de Abraão
(singular) é notada por ele como sendo uma indicação messiânica, cf.
Gálatas 3.16. O contexto em que a passagem bíblica foi escrita também é,
no geral, respeitado por Paulo. A interpretação alegórica dos rabinos,
essênios, e de Filo não respeita o texto como texto, mas busca apenas o
sentido oculto, espiritual e mais profundo que ele supostamente carrega. Em
contraste, a interpretação de nosso apóstolo é bem mais sóbria, natural,
lógica e coerente. E como ele, também os demais intérpretes cristãos,
autores do Novo Testamento.
Interpretação como um dom espiritual apostólico
Outra característica da interpretação neotestamentária do Antigo
Testamento é a consciência que seus autores têm de que são levados pelo
Espírito Santo a descobrir o verdadeiro sentido dos antigos escritos
sagrados, sentido este que é consistentemente cristocêntrico. Essa
característica fica clara quando o autor de Hebreus, ao explicar o sentido da
disposição dos utensílios e departamentos do tabernáculo, bem como o fato
de que somente o sumosacerdote entrava no santo dos Santos, com sangue,
diz:
… querendo com isto dar a entender o Espírito Santo que ainda o caminho
do Santo Lugar não se manifestou, enquanto o primeiro tabernáculo continua
erguido. É isto uma parábola para a época presente (Hb 9.8-9).
O autor percebe na disposição do tabernáculo um sentido que o Espírito
agora torna claro, ou seja, que as ofertas e os sacrifícios de animais
oferecidos a Deus não eram capazes de santificar os ofertantes e que um
maior e melhor sacrifício – o de Cristo – se fazia necessário.
O Espírito como Mestre
A ideia de que o Espírito guiaria ao conhecimento do verdadeiro sentido
das Escrituras pode ser inferida da promessa feita por Jesus aos seus
discípulos: o Espírito Santo os haveria de guiar a toda verdade (cf. Jo 15.26;
16.13). O próprio Jesus abriu o entendimento deles para compreenderem as
Escrituras (Lc 24.45). Mais tarde, o apóstolo João se refere ao Espírito
Santo como sendo a unção vinda de Deus que ensina todas as coisas aos
cristãos (1Jo 2.20,27). O apóstolo Paulo declara que somente mediante o
Espírito se pode conhecer o mistério de Cristo (1Co 2.10-12), e isso
mediante a comparação de “coisas espirituais com espirituais” (2.13).
Muito embora todo cristão seja participante do Espírito e, portanto, por
ele guiado à verdade, parece que a revelação dos mistérios de Deus contidos
nas Escrituras do Antigo Testamento era um dom apostólico, consignado
aos autores do Novo Testamento como parte da inspiração divina para
registrar infalivelmente a verdade de Deus. Quem sabe encontramos traços
desse dom em 1Coríntios 13.2: “Ainda que eu tenha o dom de profetizar e
conheça todos os mistérios e toda a ciência…”. Ou ainda em 1 Coríntios
14.6: “Agora, porém, irmãos, se eu for ter convosco falando em outras
línguas, em que vos aproveitarei, se vos não falar por meio de revelação, ou
de ciência, ou de profecia, ou de doutrina?”. Aparentemente, Paulo entendia
que o conhecimento dos mistérios e da ciência (espiritual), algo relacionado
com revelação e doutrina, era um dom que ele mesmo possuía e que era
para a edificação das igrejas. Esse charisma capacitava o intérprete a
associar acontecimentos do Antigo Testamento ao presente, como Paulo faz
em Gálatas 4.21-31, associando Sara e Agar respectivamente aos cristãos e
aos judeus. Pelo Espírito, Paulo descobre como os fios ocultos nas
Escrituras entre o passado e o presente se relacionam, e o manto que está
sobre o passado é levantado. A relação tipológica entre o passado e o
presente era o coração deste dom apostólico de interpretação.
Nesse sentido, Paulo funciona como sucessor escatológico dos profetas
do Antigo Testamento. Sua hermenêutica é similar à deles. Assim como
Isaías, Paulo interpreta os escritos sagrados anteriores à luz dos eventos
escatológicos e de sua nova situação histórica. Entretanto, por ser um
apóstolo, ele anuncia o cumprimento das promessas feitas aos profetas do
Antigo Testamento. Como os profetas do Antigo Testamento, ele reconhece
estar incumbido dos mistérios de Deus (1Co 4.1). Essa característica
transparece mais claramente quando encontramos Paulo revelando
“mistérios” em suas cartas.
A revelação dos mistérios
Nessas ocasiões, Paulo expõe esses mistérios como se eles fossem contidos
nas Escrituras do Antigo Testamento, e agora se tornaram claros por meio
de sua exposição. Embora a revelação de Jesus Cristo que ele recebeu na
estrada de Damasco, e que está no começo de sua carreira apostólica, tenha
sido direta, sem qualquer mediação, é evidente que Paulo não aprendeu
todas as profundezas do mistério de Cristo naquele momento e da mesma
maneira. Outros aspectos do mistério, que ele expõe em suas cartas, quase
certamente vieram progressivamente, e isto não à parte ou sem aquela outra
revelação, as Escrituras do Antigo Testamento. O nosso ponto é que, ao
revelar esses mistérios em suas cartas, como alguém que foi incumbido
deles, Paulo o faz em ligação com citações interpretadas das Escrituras do
Antigo Testamento. Vejamos alguns exemplos:
a) Romanos 11.25-27 – O mistério do endurecimento de Israel e a
completa inclusão dos gentios na igreja (Rm 11.25) são revelados em
relação com a citação “está escrito” de Isaías 59.20-21 e 27.9, cf. salmo
14.7 e Jeremias 31.33-34.
b) Romanos 16.25-27 – Na doxologia final da carta aos Romanos, Paulo
faz referência ao seu evangelho como sendo a revelação do mistério
guardado em silêncio nos tempos eternos, e que, agora, tornou-se manifesto
e foi dado a conhecer por meio das Escrituras proféticas. Aqui transparece
claramente a relação entre mistério, revelação e as Escrituras na
hermenêutica do apóstolo.
c) 1Coríntios 15.50-57 – Sua exposição do mistério do corpo da
ressurreição é apresentada como o cumprimento de Isaías 25.8 e Oseias
13.14.
d) Efésios 5.31-32 – O grande mistério de Cristo e a igreja, que é
refletido na relação de marido e mulher, deve ser deduzido de Gênesis 2.24.
É uma questão muito interessante como o conhecimento desses mistérios
veio a Paulo. Não está claro quando e como Paulo recebeu o conhecimento
deles. Talvez a revelação tenha vindo numa visão, como aquela de
2Coríntios 12.1-7. Mas ele nunca reivindica autoridade para sua exposição
desses mistérios na base de uma experiência como aquela. Alguns sugerem
que Paulo recebeu os mistérios e a interpretação deles por meio de um
oráculo de um profeta cristão. Mas, isso também não pode ser confirmado
pelos textos e vai contra a ênfase de Paulo na origem direta e imediata de
seu evangelho. As referências às Escrituras do Antigo Testamento, logo
após o desvendamento do mistério, por outro lado, podem indicar os meios
pelos quais Paulo chegou a conhecer esses mistérios.
É aparente que o mistério e sua revelação estão de alguma maneira
relacionados com as Escrituras do AntigoTestamento. Provavelmente a
revelação do sentido do mistério veio a Paulo enquanto ele examinava as
Escrituras, numa espécie de discernimento inspirado, que lhe permitia ver o
sentido do mistério no Antigo Testamento à luz dos eventos do evangelho.
Nessa relação, podemos nos referir à relação especial de Paulo com o
Espírito, como um apóstolo de Cristo. Seu apostolado explica
satisfatoriamente os mistérios que ele recebeu e revelou nas suas cartas por
meio de exposições inspiradas dos escritos do Antigo Testamento. Ele era
antes de tudo um ministro do novo pacto, um pacto do Espírito, superior ao
da letra, publicado sob Moisés (2Co 3.3-9). Ele fala como o ministro de um
pacto cujos membros gozavam da liberdade hermenêutica trazida pelo
Espírito, que lhes removeu o véu de seus corações quando eles voltaram-se
ao Senhor pela primeira vez (2Co 3.14-18). Como apóstolo de Cristo, Paulo
reivindica uma relação especial com o Espírito do Senhor. Seu apelo ao
Espírito em 1Coríntios 7.40, “… penso que também eu tenho o Espírito de
Deus”, é feito em sua função de apóstolo e visa silenciar os “espirituais” de
Corinto que se gabavam de ter posse exclusiva do Espírito. A sua
proclamação da palavra da cruz que produziu sua própria demonstração do
Espírito e de poder (1Co 2.1-4), o seu gloriar-se acerca dos sinais de um
verdadeiro apóstolo (2Co 12.12), e seu apelo aos seus leitores como fruto
do seu trabalho no Senhor (1Co 9.1), que em 2Coríntios 3.1-3 é
representado como uma carta escrita com o Espírito do Deus vivo, refletem
esse apelo ao Espírito em conexão com seu apostolado.
Conclusão
Concluímos este estudo com uma pergunta crucial. Podemos aplicar a
hermenêutica de Paulo e demais autores neotestamentários hoje? Ou seja,
podemos interpretar as Escrituras em moldes similares àquele usado por
eles?
Alguns estudiosos consideram que Paulo e demais autores do Novo
Testamento são arbitrários no uso das Escrituras do Antigo Testamento em
seus escritos, como por exemplo, o conhecido estudioso alemão Ernest
Käsemann, ao comentar Romanos 3 em seu Romerbrief. Para esses
estudiosos, nada temos a aprender com os escritores do Novo Testamento,
pois a exegese deles é inferior, rudimentar e totalmente inadequada aos
nossos dias. Em nossa opinião, esse tipo de abordagem reflete a convicção
já pré concebida que a Bíblia é somente um livro totalmente humano e
cheio de erros. Percebe-se também uma má vontade em dar crédito aos
escritores neotestamentários e em levar em conta o ambiente e contexto em
que viveram. Rejeitamos, pois, essa abordagem do assunto.
Outros, indo ao extremo oposto, tendem a usar a hermenêutica
neotestamentária como modelo para a deles, sem qualquer percepção do seu
caráter especial. Também usam a doutrina da inspiração e inerrância para
descartar qualquer tentativa de entender os autores neotestamentários à luz
do ambiente hermenêutico de sua época. Porém, o fato de crermos na
inspiração desses autores e na sua inerrância ao escrever não elimina a
possibilidade de estudar seus métodos hermenêuticos, e mesmo de constatar
que eram filhos da sua época, e que, como tal, estavam condicionados ao
ambiente hermenêutico em que escreveram e labutaram.
Outra possibilidade envolveria as seguintes considerações. Primeira,
devemos nos aproximar das Escrituras com as mesmas perspectivas que
dominavam a leitura dos autores neotestamentários:
• Cristo é o tema das Escrituras.
• As Escrituras falam a nós, que estamos vivendo nos últimos tempos, e
devem ser aplicadas às nossas circunstâncias.
• Devemos depender do Espírito para nos iluminar em nosso
entendimento do texto sagrado.
Nesse sentido, sem dúvida alguma, seremos seguidores dos discípulos de
Cristo em nossa hermenêutica.
Segunda, devemos praticar uma hermenêutica que leve em conta a
sensibilidade dos autores neotestamentários ao contexto histórico das
Escrituras do Antigo Testamento e geralmente às peculiaridades da
gramática hebraica e grega. Devemos ainda lembrar que suas interpretações
levavam quase sempre em conta a intenção do autor antigo, e que eram
extremamente sóbrias e geralmente literais, em comparação com os grupos
ao seu redor.
Terceira, devemos considerar o fato de que os autores do Novo
Testamento eram apóstolos ou associados apostólicos e, como tal, gozavam
de uma relação especial com o Espírito Santo, a qual envolvia revelação e
interpretação das Escrituras. Como vimos no caso de Paulo, ele estava
plenamente consciente desse fato. A tipologia que ele emprega em suas
cartas é resultado do caráter apostólico-pneumático da sua hermenêutica. É
esse aspecto que o capacita a relacionar Sara e Agar com realidades da nova
era em Cristo, a relacionar Adão e Cristo, o véu de Moisés com a cegueira
dos judeus, e a desvendar os “mistérios”. Neste ponto, devemos reconhecer
humildemente que nos cabe estudar e entender o que Deus falou por meio
do seu apóstolo inspirado, e aplicar, no temor do Senhor, à nossa vida e às
nossas igrejas.
Parte 3
OS INTÉRPRETES DA BÍBLIA NA HISTÓRIA DA IGREJA
CRISTÃ
 
Introdução
Nesta segunda parte da nossa pesquisa, procuraremos entender as maneiras
pelas quais a Igreja Cristã abordou as Escrituras durante o período que vai
da época apostólica até a chamada pós-modernidade. Alguém poderia
perguntar qual o valor de investigarmos o modo pelo qual os antigos
cristãos liam a Bíblia. A resposta é que praticamente todos os problemas e
questões hermenêuticas com os quais nos deparamos hoje já afligiram os
cristãos dessas épocas. Muito embora existam hoje novas metodologias e
ferramentas de interpretação bíblica, recorrem problemas de interpretação
que são fundamentalmente os mesmos da época de Orígines e Agostinho.
À medida que formos estudando a história da interpretação das
Escrituras nesse período, questões relacionadas diretamente com a natureza
da hermenêutica, sua finalidade, bem como com pontos práticos
relacionados com princípios de interpretação serão levantadas e discutidas.
Algumas delas já foram abordadas na primeira parte deste livro. Nosso
método será esboçar os principais eventos e nomes que fizeram a história da
interpretação das Escrituras, a partir do período pós-apostólico até nossos
dias, comentando pontos fortes e fracos.
Conforme já afirmamos na primeira parte de nossa obra, nosso objetivo é
proporcionar uma visão global das principais questões interpretativas com
as quais a igreja ocupou-se em sua história e assim preparar o leitor para
melhor entender as questões hermenêuticas modernas. Estudar a história
dos intérpretes da Bíblia desde seus primórdios ajuda a colocar-nos na
perspectiva correta e a não cair na tentação da arrogância.
Capítulo 7
Alexandrinos e antioquianos
Introdução
Após a morte dos apóstolos inicia-se a chamada era pós-apostólica, que vai
do século 2º até o século 4º, época dos grandes concílios ecumênicos na
igreja. Nesse período, a Igreja de Cristo era liderada por pastores e bispos
que vieram a exercer considerável influência sobre a cristandade daquela
época. São os chamados “pais da igreja”.
É uma época de intensos debates teológicos sobre questões doutrinárias
vitais para a sobrevivência da igreja. Os pais da igreja procuram entender
qual a verdade de Deus examinando as Escrituras. Debates vigorosos
acontecem quanto ao sentido exato das palavras dos apóstolos e profetas.
Uma das questões hermenêuticas centrais é como a Igreja Cristã poderia
interpretar as profecias, instituições, personagens e eventos do Antigo
Testamento de modo que refletissem a Cristo.
Duas linhas nítidas e diferentes de interpretação surgem nessa época. A
primeira, mais alegórica, está relacionada com a cidade de Alexandria. A
outra, que surge depois em Antioquia como reação à primeira, é mais
voltada para o sentido literal do texto bíblico. Os problemas que os
intérpretes dessas escolas enfrentaram, de certa maneira, anteciparam as
questões de interpretação que a igreja iria encarar ao longo da sua história,
até o dia de hoje.
A escola de Alexandria
O sistema interpretativo que veio aassociar-se com a cidade de Alexandria
tem suas raízes históricas nas ideias de dois importantes filósofos gregos. O
primeiro é Heráclito (Éfeso, 540?–475? a.C.). Ele estabeleceu o conceito de
huponóia, ou sentido mais profundo, como uma nova abordagem às obras
de Homero (A Ilíada e a Odisseia). Conforme já vimos no nosso estudo
sobre Filo de Alexandria (Capítulo Quatro), nessas obras os deuses gregos
são descritos cometendo traição, imoralidades, vingança, mentindo e
praticando outros vícios. Para fugir das implicações óbvias de se interpretar
literalmente o que Homero escreveu acerca dos deuses, Heráclito sugeriu
que o verdadeiro sentido estava além das palavras (huponóia). Os escritos
de Homero não eram para ser entendidos literalmente, como estavam
escritos, mas como apontando para conceitos mais profundos, além da letra.
Assim ele salvou os deuses da acusação de “imorais”.
O segundo é Platão (Atenas, 427?–347? a.C.). Ele formou o conceito de
que o mundo em que vivemos é apenas uma representação do que existe no
mundo perfeito das realidades imateriais, o “mundo das ideias”. Uma
cadeira, por exemplo, é apenas o reflexo da cadeira perfeita que existe nesse
mundo ideal. Conceitos e verdades espirituais, próprios do “mundo das
ideias”, são representados por alegorias.
O conceito de que a verdade se encontra alegoricamente oculta além da
letra e da realidade visível, como haviam ensinado Heráclito e Platão,
influenciou mais tarde o famoso judeu de Alexandria, Filo. Conforme
vimos, Filo tinha uma formação judaica e era leal às instituições e costumes
de seu povo; ele tinha também uma formação filosófica, especialmente no
platonismo. Esta formação platônica levou-o a tentar uma síntese entre as
ideias de Platão e de Moisés. Filo dedicou sua vida a reconciliar o ensino de
Moisés nas Escrituras com as ideias de Platão. O método que ele empregou
para isso foi a alegorese. Filo escreveu diversas obras e comentários sobre a
Lei de Moisés interpretando as Escrituras alegoricamente, em termos das
ideias, virtudes e moralidade do platonismo. Sua influência foi decisiva na
hermenêutica da escola de Alexandria.
Surgimento da escola catequética de Alexandria
Quando o evangelho alcançou Alexandria, muitos se tornaram cristãos.
Uma forte comunidade floresceu rapidamente naquela cidade. De acordo
com alguns estudiosos, havia ali um professor-catequista chamado Barnabé
(150? d.C.) que seria o autor da chamada Carta de Barnabé, com
tendências gnósticas e uma interpretação altamente alegórica do Antigo
Testamento, seguindo os métodos de Filo. Provavelmente a Carta de
Barnabé tenha sido forjada em nome do famoso companheiro de Paulo. De
qualquer maneira, ela é oriunda de Alexandria, por volta do século 2º ou 3º,
e serve como exemplo da exegese que ali passaria a predominar. Uma das
passagens mais famosas da carta é a interpretação que Barnabé faz de
Gênesis 14.14 (na qual se mencionam os 318 homens de Abraão) para
provar que Abraão sabia não somente o nome de Cristo, mas até que ele
haveria de morrer na cruz:
Filhos do amor, aprendei mais particularmente estas coisas: Abraão,
praticando por primeiro a circuncisão, circuncidava porque o Espírito dirigia
profeticamente seu olhar para Jesus, dando-lhe o conhecimento das três
letras. Com efeito, ele diz: “E Abraão circuncidou entre os homens de sua
casa trezentos e dezoito homens”. Qual é, portanto, o conhecimento que lhe
foi dado? Notai que ele menciona em primeiro lugar os dezoito e depois,
fazendo distinção, os trezentos. Dezoito se escreve: I que vale dez, e H, que
representa oito. Tens aí: IH(sous) = Jesus. E como a cruz em forma de T
devia trazer a graça, ele menciona também trezentos (= T). Portanto, ele
designa claramente Jesus pelas duas primeiras letras e a cruz pela terceira
(Barnabé 9.7-8).
Barnabé entendia que “318” dizia outra coisa que não um número fixo.
Para ele, era uma referência proposital que Deus havia feito a Abraão
acerca de Jesus, e que só poderia ter sido decifrada “espiritualmente”,
interpretando-se a passagem alegoricamente.
Um conhecido líder de Alexandria foi Pantenus. Inicialmente um
filósofo estoico, Pantenus converteu-se ao Cristianismo e fundou uma
escola cristã catequética na cidade no século 2º. O sistema utilizado na
escola para interpretar a Bíblia era o sistema alegórico.
Principais representantes da escola de Alexandria
Um dos convertidos de Pantenus foi Clemente de Alexandria (150-215
d.C.), de quem alguns escritos foram preservados. Clemente substituiu
Pantenus na direção da escola em 180 d.C. Ele foi um dos primeiros a lidar
seriamente com questões de interpretação bíblica. Usava a interpretação
alegórica, característica da escola, para descobrir o sentido oculto das
passagens bíblicas e para harmonizar os dois Testamentos. Para ele, a
alegoria revelava a verdade ao verdadeiro discípulo, mas a escondia dos
outros. Insistia especialmente que o objetivo de Deus em revelar-se
alegoricamente era ocultar a verdade dos incrédulos em geral e descortiná-
la apenas para os espirituais. Clemente interpretava a parábola do filho
pródigo alegoricamente, atribuindo sentido a cada detalhe da parábola:
O pai, então, confere-lhe a glória e a honra que eram necessárias e
convenientes, colocando sobre ele o melhor manto, o manto da imortalidade,
e um anel, um sinete real e um selo divino – um sinete de consagração,
assinatura da glória, segurança do testemunho (pois está escrito: “Aquele
que aceitou o seu testemunho, esse confirmou que Deus é verdadeiro”, Jo
3.33), e sandálias, não aquelas que perecem, que devem ser retiradas quando
se entra em solo santo (Êx 3.5), e nem aquelas que Jesus proibiu que seus
discípulos carregassem quando fossem pregar (Mt 10.10), mas aquelas que
não se gastam, que são apropriadas para a jornada aos céus e que adornam o
caminho celestial, e que somente pés lavados pelo Senhor podem calçar (Jo
3.33).
Orígines (185–253 d.C.) é a mais importante figura nesse período. Era
um estudioso muito respeitado, muito capaz e provavelmente o mais erudito
de sua época. Infelizmente, Orígines seguiu e propagou diversos
ensinamentos estranhos ao Cristianismo bíblico. No século 4º, Jerônimo,
que tinha sido inicialmente um seguidor do método alegórico de Orígines,
resgistrou em sua obra Contra Johannem Hierosolymitanum um sumário
conveniente dos erros atribuídos a Orígines. Segundo Jerônimo, Orígines
negou que Cristo pudesse ver o Pai ou o Espírito Santo; afirmou que a alma
estava aprisionada no corpo, como uma prisão, como castigo; afirmou que
os demônios se arrependeriam e finalmente reinariam com os santos no
final dos tempos; que as folhas que Deus deu a Adão e Eva no Jardim após
a queda eram na verdade o corpo humano deles, pois antes eram espíritos
puros; e que o homem, após a queda, havia perdido a imagem de Deus na
qual havia sido criado. Existe hoje controvérsia se Orígines desenvolveu
essas ideias ou se foram seus seguidores e inimigos que adulteraram seus
escritos. De qualquer modo, essas ideias atribuídas ao patriarca foram
condenadas depois de sua morte por um decreto do Imperador Justino em
543 d.C.
Orígines tinha apenas 18 anos de idade quando assumiu a liderança da
Escola Catequética de Alexandria. Ele acreditava que a melhor maneira de
se entender a Bíblia é por meio da perspectiva platônica. Nesse sentido, ele
é um verdadeiro discípulo de Filo de Alexandria. A hermenêutica de
Orígines é mais bem refletida no capítulo IV de sua obra Primeiros
Princípios, escrita quando ele tinha 23 anos de idade. É considerada a
primeira obra de teologia sistemática produzida no âmbito da Igreja Cristã.
Nessa obra, Orígines ataca os “literalistas” de seus dias, acusando-os de
negar que a Bíblia contém um sentido mais profundo do que aquele
permitido pelo texto em si. Para ele, a Bíblia contém segredos que somente
a mente espiritual pode compreender. O sentido literal é valioso, mas
algumas vezes obscurece o sentido primário, que é o espiritual. O literal é
para iniciantes, mas o espiritual é para os maduros nafé. Orígines entende
que se Deus é o autor da Bíblia, ela deve ter um sentido mais profundo.
Assim, a interpretação literal é própria dos judeus e não dos cristãos. A
esses foi revelado o sentido mais profundo das Escrituras que havia sido
ocultado dos judeus incrédulos.
Orígines desenvolveu a ideia de que há três níveis de sentido nas
Escrituras, correspondentes às três dimensões da personalidade humana, em
sua obra Primeiros Princípios, no Livro 4, Capítulo 1, parágrafo 11. Ele
toma como base uma tradução própria que faz do texto grego de Provérbios
22.20:
Parece-nos que o modo com que devemos tratar as Escrituras e extrair delas
o seu sentido é aquele prescrito pela própria Escritura. Encontramos a
seguinte regra proposta por Salomão em Provérbios com respeito às
doutrinas divinas da Escritura: “E tu representas estas coisas de maneira
tripla, em conselho e conhecimento, para que possas responder palavras de
verdade aos que propõem estas palavras a ti” [Pv 22.20, LXX?]. O indivíduo
deve, portanto, expressar de forma tripla à sua alma as ideias da Santa
Escritura; para que o homem simples seja edificado pela “carne” da
Escritura, por assim dizer, pois assim consideramos o sentido óbvio delas;
aquele que já progrediu um pouco mais pode ser edificado pela “alma”, por
assim dizer. O homem perfeito, que se assemelha às palavras do apóstolo,
“expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém, a sabedoria deste
século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada; mas
falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus
preordenou desde a eternidade para a nossa glória” [1Co 2.6-7], este homem
recebe edificação da lei espiritual, a qual é sombra das coisas boas ainda por
vir. Pois da mesma forma que o homem consiste em corpo, alma e espírito,
assim também a Escritura, a qual foi assim arranjada para ser dada por Deus
para a salvação dos homens.
Orígines, porém, nunca seguiu consistentemente essa distinção tripla. Na
verdade, em suas obras, ele acaba discutindo somente dois níveis, aqueles
da letra e os do espírito. Seguindo o método alegórico, Orígines interpretava
o relato de Gênesis 24.15-17, no qual Rebeca vem tirar água do poço e
encontra os servos de Abraão, como significando que diariamente devemos
vir aos poços da Escritura para ali nos encontrarmos com Cristo. Faraó,
mandando matar os meninos e preservando as meninas hebreias (Êx 1.15-
16), era interpretado por Orígines em verdadeiro estilo filônico, os meninos
significando o espírito intelectual e sentidos racionais e as meninas
significando as paixões carnais. As seis talhas de pedra, que os judeus
usavam para as purificações (Jo 2.6), significam os sentidos moral e literal
das Escrituras e, às vezes, o espiritual. O sentido verdadeiro (alegórico) da
passagem sobre o divórcio (Mt 19.6) é a separação da alma do seu anjo da
guarda.
Devemos nos lembrar que Orígines e outros estavam tentando defender a
igreja dos ataques dos judeus e dos pagãos, e achavam que alegorizar as
passagens difíceis da Bíblia era o caminho. Por exemplo, quando os pagãos
acusavam Deus de ser desumano por mandar matar mulheres e crianças,
Orígines respondia com uma interpretação alegórica das passagens, dizendo
que não era para serem entendidas literalmente.
Podemos ainda mencionar Atanásio, o patriarca de Alexandria, campeão
da ortodoxia na luta contra a heresia ariana no século 4º. Em sua carta a um
cristão chamado Marcelino sobre a interpretação dos Salmos, Atanásio
reflete claramente a convicção dos intérpretes alexandrinos de que
praticamente todas as passagens do Antigo Testamento falam de Cristo,
ainda que de maneira alegórica. Vejamos alguns exemplos de sua
interpretação:
Praticamente cada salmo remete aos profetas. Sobre a vinda do Salvador e
daquele que devia vir a ser Deus, assim se expressa o salmo 50: “Vem o
nosso Deus e não guarda silêncio” [Sl 50.3]… Ele é o Verbo do Pai, como o
canta o 107: “Enviou-lhes a sua palavra, e os sarou, e os livrou do que lhes
era mortal” [Sl 107.20]. O Deus que vem é ele mesmo o Verbo enviado…
Conhecendo, igualmente, o nascimento virginal, o Salmista não se calou,
senão que o expressou claramente no salmo 45, ao dizer: “Ouve, filha; vê, dá
atenção; esquece o teu povo e a casa de teu pai. Então, o Rei cobiçará a tua
formosura” [Sl 45.11-12]… Por isso predisse também sua ascensão aos céus,
dizendo no salmo 24: “Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó
portais eternos, para que entre o Rei da Glória” [Sl 25.7]… Até a destruição
do diabo se anuncia a vocês no salmo 9: “no trono te assentas e julgas
retamente. Repreendes as nações, destróis o ímpio e para todo o sempre lhes
apagas o nome” [Sl 9.4-5]… Tudo isto o cantam os Salmos e se anuncia em
cada um dos outros Livros.
De todos os intérpretes alexandrinos, Orígines, sem dúvida, foi o mais
influente. Ele influenciou muitos pais da igreja como Dionísio, o Grande,
Eusébio de Cesareia, Dídimo, o Cego e Cirilo de Alexandria, que seguiram
sua interpretação alegórica. Embora Orígines tivesse um alto apreço pelas
Escrituras (que ele considerava como Palavra de Deus inspirada) e
reconhecesse a presença de Cristo nas Escrituras do Antigo Testamento,
defendeu, sistematizou e promoveu um sistema de interpretação que ao fim
diminuía o caráter histórico de algumas passagens e que não dispunha de
controles adequados contra o subjetivismo. Entretanto, a reação viria alguns
séculos depois, em Antioquia.
A escola de Antioquia
Como vimos no início deste capítulo, a interpretação dos pais da igreja
seguia duas linhas distintas. A primeira, mais alegórica, relacionada com a
cidade de Alexandria. A outra, que surgiu depois em Antioquia da Síria em
reação à primeira, mais voltada para o sentido literal do texto bíblico. Essa
última foi fundada por Luciano de Antioquia (240-312 d.C.), teólogo cristão
nascido em Samosata, que deu origem a uma tradição de estudos bíblicos
que ficou conhecida pela erudição e conhecimento das línguas originais.
Atribui-se a Luciano (embora sem evidências concretas) uma recensão e
uniformização dos textos gregos da sua época, dando origem ao texto
Bizantino ou Sírio, que foi o texto grego do Novo Testamento adotado pela
igreja até meados do século passado. Apesar de ser heterodoxo em seu
entendimento sobre Cristo, Luciano tinha profundas convicções com
relação ao Cristianismo. Morreu martirizado por torturas e fome, por se
negar a comer carne sacrificada aos deuses romanos. Luciano fundou em
Antioquia uma escola de estudos bíblicos em oposição consciente ao
método alegórico ligado a Alexandria, particularmente ao método de
Orígines.
Essa escola tornou-se famosa por sua abordagem literal das Escrituras.
Foi formada no início do século 4º, embora já no século 2º houvesse em
Antioquia estudiosos como Teófilo, com uma interpretação mais sóbria das
Escrituras. No exemplo abaixo, tirado do capítulo XVI de sua obra A
Autólico, vemos como ele entendia as profecias bíblicas em seu sentido
natural e óbvio:
Eu leio as Sagradas Escrituras dos santos profetas, os quais pelo Espírito de
Deus predisseram as coisas que têm realmente acontecido, exatamente como
vieram a ocorrer, e as coisas que agora estão ocorrendo no presente, e as
coisas futuras na ordem em que ocorrerão. Aceitando, portanto, a prova
evidente com a ocorrência de coisas preditas anteriormente, eu não descreio.
Ao contrário, creio, obediente a Deus, a quem você deveria também se
sujeitar, crendo nele, para que não seja condenado depois e atormentado com
a punição eterna.
A interpretação literal defendida em Antioquia predominou durante
muito tempo nas igrejas orientais e em muitos sentidos foi precursora da
exegese praticada na Reforma. A hermenêutica dos intérpretes reformados
foi, em muitos aspectos, um retorno aos princípios de Antioquia. Calvino
não se reportou diretamente a Antioquia, mas certamente usou o sistema de
interpretação que eles defenderam.
O sistema de interpretação adotado por Antioquia teve muitos e ilustres
defensores entre os pais da igreja.Alguns dos mais conhecidos e
importantes foram: Deodoro de Tarso (morto em 390 d.C.), Teodoro de
Mopsuéstia (morto em 428 d.C.) e João Crisóstomo (morto em 407 d.C.).
Os grandes antioquianos não foram contemporâneos de Orígines, mas dos
alexandrinos posteriores como Atanásio (morto em 373 d.C.) e Dídimo, o
Cego (morto em 398 d.C.). De muitas formas, o próprio Cirilo de
Alexandria (morto em 444 d.C.) demonstrou perceptividade para com a
exegese literal, o que o coloque talvez entre as duas escolas.
Princípios de interpretação
A escola de Antioquia e seus representantes seguiam princípios de
interpretação que estabeleciam, em muitos aspectos, uma diferença crucial
da exegese de Alexandria.
Sensibilidade e atenção ao sentido literal do texto
Era uma abordagem que em rigor não poderia ser chamada de
“gramático-histórica”, visto que esse termo só apareceu após a Reforma.
Entretanto, os princípios que caracterizavam esse tipo de interpretação já
estavam presentes em Antioquia: procurar alcançar o sentido do texto por
meio da busca da intenção do seu autor (daí estudar-se o sentido óbvio das
palavras, gramma em grego) considerando o contexto histórico em que foi
escrito.
Theoria
Desenvolveu-se em Antioquia o conceito de theoria. Esse termo designa
o estado mental dos profetas que recebiam as visões, em oposição à
alegoria. É uma intuição ou visão pela qual o profeta pode ver o futuro por
meio das circunstâncias presentes. Depois da visão, é possível para ele
descrever em seus escritos tanto o significado contemporâneo dos eventos
bem como seu cumprimento futuro. A theoria era o princípio usado pelos
antioquianos para descobrir um sentido mais que literal nas palavras dos
profetas do Antigo Testamento, permanecendo-se fiel ao seu sentido literal.
Entretanto, embora reconhecessem que havia um sentido mais profundo e
completo nas palavras dos profetas, estavam bem distantes da alegorese
alexandrina.
A questão que os antioquianos se perguntavam era a seguinte: quanto os
profetas estavam conscientes do sentido mais pleno (sensus plenior) daquilo
que diziam? Eles chegaram à conclusão de que os profetas sabiam todas as
implicações do que diziam, do sensus plenior de suas palavras. Assim,
Isaías sabia perfeitamente, ao escrever o capítulo 53 de sua obra, que estava
falando da morte do Messias. Bem como Oseias, ao dizer: “do Egito chamei
meu filho” (Mt 2.15), como uma referência à viagem do menino Jesus. Com
este conceito, os antioquianos queriam evitar o perigo do subjetivismo do
sistema alegórico, que achava sentidos proféticos fora da intenção autoral.
Os antioquianos diziam que todo sentido legítimo e possível já era
conhecido do profeta. Era isso que chamavam de theoria.
Historicidade dos relatos
Os antioquianos não negavam o caráter metafórico de algumas
passagens: reconheciam que havia um sentido mais profundo nas profecias
do Antigo Testamento e que havia tipologias, como a que Paulo fez em
Gálatas 4.21-31. Entretanto, afirmavam a historicidade da narrativa
veterotestamentária e procuravam em seguida descobrir o sentido teológico
da mesma.
Intenção autoral
Ainda buscavam determinar a intenção do autor pela atenção cuidadosa
ao sentido histórico das palavras em seu contexto original. Nesse sentido,
eram contra descobertas arbitrárias de Cristo no Antigo Testamento, como
as feitas pela alegorese alexandrina. Concordavam que Cristo estava
presente nas Escrituras do Antigo Testamento, mas reagiam contra a ideia
de que cada palavra, evento, número, personagem ou instituição das
mesmas poderia ser interpretado de forma alegórica de maneira a sempre se
encontrar a Cristo neles.
Exemplos de interpretação
Teófilo de Antioquia, um dos precursores da escola de Antioquia, na sua
obra intitulada A Autólico, enfatiza que o Antigo Testamento é um livro
histórico contendo a história autêntica dos atos de Deus para com Israel. Ele
esforçase para traçar uma cronologia bíblica da criação até seus dias. A
mensagem do Antigo Testamento é que o Deus de quem ele dá testemunho
é o criador dos céus e da terra. Isso é possível porque os autores humanos
foram inspirados por Deus e podiam, portanto, escrever sobre coisas que
aconteceram antes e depois de sua época. Lembremos que muitos
intérpretes alexandrinos tendiam a rejeitar a importância da historicidade do
relato da criação (Gn 1 e 2), valorizando o sentido mais profundo ou
espiritual do mesmo. Segue abaixo sua explicação de Gênesis 3.8, que diz:
“… ouviram a voz do SENHOR Deus, que andava no jardim pela viração do
dia”. Em vez de tentar alegorizar ou achar um sentido mais profundo na
declaração que Deus “andava”, Teófilo adota a explicação teológica da pré-
cristofania:
Você me dirá, então: “Você disse que Deus não pode ser contido num único
lugar, e como é que agora diz que ele andava no jardim?” Ouça minha
resposta. Deus Pai, na verdade, não pode ser contido, e não pode ser
encontrado em determinado lugar, pois não há lugar algum que lhe sirva de
descanso; mas sua Palavra, pela qual ele fez todas as coisas, sendo seu poder
e sua sabedoria, assumindo a pessoa do Pai e Senhor de todos, foi ao jardim
na pessoa de Deus e conversou com Adão. Pois a Escritura nos diz que Adão
ouviu sua voz. E que voz é esta senão a Palavra de Deus, que também é seu
Filho?
Deodoro de Tarso, que viveu 200 anos após Teófilo, deixou-nos um
comentário dos Salmos em que a interpretação cristológica moderada de
Antioquia reflete-se claramente. Ali vemos em ação o princípio antioquiano
de não atribuir a um texto do Antigo Testamento uma interpretação
cristológica que não possa ser provada e demonstrada pelo Novo
Testamento. Comentando o salmo 22, Deodoro nega que o mesmo seja
messiânico, pois as descrições literais dos sofrimentos do autor do salmo
não combinam com os sofrimentos de Cristo. O salmo 24 também não é
messiânico, mas referese aos judeus que voltaram do cativeiro babilônico.
Teodoro de Mopsuéstia é provavelmente o intérprete que seguiu mais
rigidamente os princípios de interpretação da escola de Antioquia quanto à
abordagem cristológica do Antigo Testamento. Para ele, uma passagem no
Antigo Testamento só pode ser considerada messiânica se for usada como
tal no Novo Testamento. Meras alusões não são suficientes. Assim,
passagens como o sacrifício de Isaque, que nunca são usadas no Novo
Testamento como se referindo a Cristo, não são consideradas messiânicas.
Influência e fracasso
Podemos perceber vários aspectos positivos na obra dos antioquianos. A
escola de Antioquia adotou uma leitura das Escrituras que buscava
principalmente descobrir a intenção do autor humano (que seria idêntica à
do autor divino) como meio de determinar-se o sentido de uma passagem
bíblica. Os antioquianos procuravam fazer justiça ao caráter histórico da
Escritura. Mais tarde, a interpretação reformada retornaria a esse princípio.
Por outro lado, às vezes, seus representantes eram incoerentes com esse
princípio e recaíam na alegoria. Um exemplo disso é a interpretação
alegórica que João Crisóstomo faz do milagre de Caná da Galileia, em sua
Homília em João. Ao concluir a exposição (bastante sóbria e literal) da
mesma, Crisóstomo interpreta a água como sendo pessoas frias e fracas,
cujas vontades Cristo muda, como fez ao vinho. E aí, perde-se em uma
longa digressão expondo o caráter dessas pessoas. Embora seja verdade que
Cristo muda as pessoas, a pergunta é se este é o ponto ensinado pelo relato
do milagre de Caná da Galileia. O próprio apóstolo João nos diz que o
objetivo do milagre era mostrar a glória de Jesus para que seus discípulos
cressem nele. Crisóstomo ensinou uma doutrina certa, mas usando o texto
errado.
Em que pese a influência de sua interpretação, especialmente nas igrejas
sírias, a escola de Antioquia não prevaleceu na Igreja Cristã como o sistema
interpretativo mais aceito. Uma das razões foi que alguns líderes
heterodoxos ou heréticos condenados pelos concílios ecumênicos eram
seguidores do método de Antioquia. Por exemplo, Nestório (morto em 451
d.C.), o patriarca sírio deConstantinopla, era um grande defensor da
exegese antioquiana. Porém, foi condenado pelo Concílio de Éfeso por
fazer uma distinção por demais exagerada entre as duas naturezas de Cristo,
a ponto de quase admitir a existência de duas pessoas no mesmo Cristo. No
Ocidente, por sua vez, Juliano, o bispo de Eclano (morto em 454 d.C.), que
era o principal defensor dos princípios de Antioquia, tornou-se pelagiano
em sua teologia. A condenação desses homens por heresia contribuiu em
parte para o descrédito da hermenêutica de Antioquia.
Conclusão
Podemos nos perguntar como o conhecimento da história dos intérpretes de
Alexandria nos afeta hoje. No mínimo, faz-nos entender que o tipo de
interpretação que prevalece na igreja evangélica brasileira de hoje segue o
mesmo caminho de Alexandria, mesmo sem ter a sofisticação e a erudição
de um Orígines, por exemplo. É somente por meio de uma interpretação
altamente “espiritualizante” das Escrituras que muitos mestres, pastores e
líderes evangélicos conseguem convencer seus rebanhos de que estão
ensinando a verdade da Palavra de Deus. Em termos práticos, Alexandria
nos ensina a ter cautela com a ideia de que a verdade da Bíblia só pode ser
alcançada por “espirituais” que tenham acesso privilegiado a um
conhecimento que está além do sentido claro, simples e evidente das
Escrituras.
Apesar do fracasso da escola de Antioquia em estabelecer o seu método
de interpretação, sua influência foi muito além dos limites da cidade de
Antioquia. Os pais latinos, estudiosos que escreveram em latim e cuja
influência haveria de perpetuar-se na igreja, seguiram via de regra um
sistema de interpretação semelhante ao desenvolvido pelos antioquianos.
A escola de Antioquia nos ensina duas coisas importantes: (1) o melhor
caminho para evitar a subjetividade descontrolada de uma interpretação
alegorista é nos atermos ao texto das Escrituras, ao seu sentido simples e
evidente; (2) precisamos cuidar para não cair no extremo de nos tornarmos
tão presos à busca do que o texto significou no passado que esqueçamos de
perguntar o que ele significa no presente.
Capítulo 8
Os pais latinos
Introdução
Neste capítulo abordaremos a hermenêutica dos pais latinos. Essa é a
designação que se dá aos pais da igreja que viveram nos séculos 4º e 5º,
cujas obras foram escritas em latim. Dentre eles, destacaremos aqueles
trabalhos que são mais relevantes na história da interpretação da Bíblia:
Tertuliano (155–após 220 d.C.), considerado o pai do Cristianismo latino;
Jerônimo (c. 347–420 d.C.), tradutor da Vulgata Latina, que viveu na
Palestina (Belém) e Agostinho (354–430 d.C.), o famoso bispo de Hipona,
no norte da África.
Principais características hermenêuticas
Preferência pela interpretação literal
Os pais latinos seguiram, embora nem sempre de modo coerente, a linha de
interpretação representada pela escola de Antioquia. Eles favoreciam a
interpretação literal, sendo geralmente atentos ao sentido natural do texto
bíblico. Tertuliano, por exemplo, não alegorizou Gênesis 1 e 2 em sua
exposição da passagem, como era costumeiro se fazer, mas considerou a
passagem como histórica. Vemos isso em sua defesa da universalidade da
Lei de Deus para todas as nações, em sua obra Resposta aos Judeus, no
capítulo 2:
No início do mundo, Deus deu a Adão e Eva uma lei: eles não deveriam
comer do fruto da árvore plantada no meio do Paraíso; e se eles
desobedecessem, morreriam. Esta lei teria permanecido como sendo
suficiente para eles, caso tivesse sido guardada. Nesta lei dada a Adão,
percebemos em forma embrionária todos os preceitos que mais tarde
brotaram ao serem dados a Moisés. Pois a lei primordial foi dada a Adão e
Eva no Paraíso, como a madre de todos os preceitos de Deus.
Tertuliano, nesse sentido, seguiu o método de Antioquia. A alegorese via
de regra procurava sentidos além do literal no relato da criação e os
relacionava com aspectos do platonismo, com virtudes morais do
estoicismo ou com aspectos da doutrina cristã. Ele, porém, não foi por esse
caminho. Já Jerônimo, que a princípio era um seguidor de Orígines, deixou
seu método pelo literal. Sua tradução das Escrituras para o latim (Vulgata),
feita quando já havia abandonado o método alegórico, é um exemplo de
interpretação quase literal das Escrituras.
Agostinho, ao interpretar o relato da criação no livro XI da sua obra
Cidade de Deus, considera os dias da criação como sendo dias literais,
apesar de confessar não saber como poderia ter havido manhã e tarde nos
primeiros dias antes da criação do sol. Outra demonstração de sua
preferência pela interpretação natural do texto é a crítica que ele faz, em sua
Doutrina Cristã, às sete regras de interpretação de Ticônio, um donatista de
sua época. Após analisar uma por uma, Agostinho conclui:
Todas estas regras, com exceção daquela sobre as promessas e a Lei, fazem
com que um sentido seja compreendido onde outro é expresso, que é a
característica da linguagem figurada. Esse tipo de linguagem, assim me
parece, está por demais disseminada para poder ser compreendida por
alguém. Pois, onde uma coisa é dita com a intenção de que outra seja
entendida, ali temos uma expressão figurada. Quando uma expressão desse
tipo ocorre onde é costumeiro, não temos problema em entendê-la. Mas
quando ocorre onde não é costumeiro, torna-se laborioso compreendê-la,
dependendo dos dons intelectuais que as pessoas receberam de Deus.
Contexto histórico
Os pais latinos também davam atenção ao contexto histórico da passagem.
Os intérpretes alegoristas, muito embora respeitassem as Escrituras como a
Palavra de Deus, tendiam a desprezar o contexto histórico e cultural em que
elas foram escritas, tratando-as via de regra quase que como um livro que
havia caído já pronto do céu. Os pais latinos eram mais sensíveis ao
contexto em que as Escrituras foram produzidas. Disto podemos citar
diversos exemplos. Jerônimo declarou que o Antigo Testamento era um
livro oriental, escrito numa língua oriental e num contexto oriental – coisas
que precisavam ser levadas em consideração pelo intérprete. Ele escreveu
um comentário no livro de Daniel para refutar a crítica do pagão Porfírio de
que as profecias do livro teriam sido escritas por alguém vivendo após o
tempo de Antíoco Epifânio e dos Macabeus. Jerônimo demonstra a
historicidade e veracidade do livro. Em sua obra Cidade de Deus,
Agostinho, tentando explicar o mais terrível evento de sua época – a queda
de Roma – demonstra sensibilidade para com a maneira pela qual, de
acordo com a Bíblia, Deus age na História. Agostinho traça historicamente,
de Caim e Abel ao fim do mundo (livros XV a XIX), o surgimento e
desenvolvimento da civitas dei (cidade de Deus), a Jerusalém celestial,
construída para o louvor e glória de Deus, em contraste com a “cidade
terrena” (civitas terrena) representada por Roma mas energizada pelos
desejos humanos de receber glória e honra. Esse desenvolvimento teológico
só é possível a partir do entendimento de Agostinho de que o relato do
Antigo Testamento era histórico.
Intenção do autor
Muito embora conscientes dos diversos sentidos que se poderia atribuir a
um único texto, os intérpretes latinos manifestam preferência por aquele
que melhor reflete a intenção do autor bíblico. Nas Confissões, temos uma
admirável declaração de Agostinho quanto a isso numa seção cujo título é:
“Primeiro, o sentido do escritor deve ser descoberto, e então, a verdade
divina por ela pretendida deve ser exposta” (Livro XII, cap. 32, par. 43):
Vede, ó Senhor meu Deus, quantas coisas temos escrito concernentes a umas
poucas palavras [da Bíblia] – vede quantas, peço-Te! Quanta força e quantas
eras necessitaríamos se fôssemos tratar desta maneira todos os Teus livros?
Permite-me, selecionar um único sentido que seja verdadeiro, certo e bom,
que Tu inspires, apesar de que muitos sentidos se ofereçam e eu possa
selecioná-los; que seja a fé da minha confissão, que eu lute para dizer da
forma correta e proveitosa aquilo que o Teu ministro [o autor do texto
bíblico] sentiu.
Como intérpretee expositor bíblico, Agostinho desejava ardentemente
ser fiel à intenção original das Escrituras, que ele entendia ser aquele único
sentido inspirado por Deus.
Alegorias ocasionais
Algumas vezes os intérpretes alegorizavam o Antigo Testamento. Eles não
estavam de todo livres da maior tentação hermenêutica da sua época, que
era interpretar as Escrituras alegoricamente. Uma das ocasiões em que
acabavam alegorizando o texto bíblico era quando respondiam aos ataques
dos judeus de que os cristãos torciam o sentido do Antigo Testamento para
provar que Cristo era o Messias. Para os intérpretes latinos, Cristo estava no
Antigo Testamento, e só não era percebido pelos judeus por causa de sua
incredulidade. Jerônimo, por exemplo, no prefácio da sua obra Sobre
Questões Judaicas, acusou os judeus tradutores da Septuaginta de
propositalmente omitir passagens que claramente se referiam à vinda de
Jesus Cristo:
Não é meu propósito acusar a Septuaginta de erro, nem vejo meu próprio
trabalho [a tradução da Vulgata] como um desprezo contra ela. O fato é que
eles [os tradutores da Septuaginta], já que estavam trabalhando debaixo do
rei Ptolomeu de Alexandria, decidiram não trazer à luz todos os mistérios
que os escritos sagrados contêm, e especialmente aqueles que nos dão a
promessa do advento de Cristo, com medo de que o rei, que tinha grande
estima pelos judeus por adorarem um único Deus, viesse a pensar que
adoravam um segundo Deus. Mas percebemos que os autores dos
evangelhos, e mesmo nosso Senhor e Salvador, e também o apóstolo Paulo,
citam muitas passagens do Antigo Testamento que não se acham em nossas
cópias [da Septuaginta].
No afã de provar que Cristo estava em todas as passagens do Antigo
Testamento, alguns intérpretes latinos acabavam forçando algumas
passagens, dando-lhes uma interpretação alegórica, para “achar” Cristo
nelas. De qualquer maneira, isso era menos complicado do que alegorizar
os textos bíblicos para encontrar neles as virtudes e as teses do platonismo.
Tertuliano, por exemplo, que se envolveu em muitas disputas com os
judeus, mesmo sendo um sóbrio intérprete das Escrituras, às vezes usou a
alegorese para substanciar seus argumentos.
Às vezes, os intérpretes latinos achavam sentidos figurados nos textos
por outros motivos. Agostinho, por exemplo, defende que Deus criou o
mundo em seis dias por causa da perfeição do número seis, pois Deus não
precisaria de tempo para criar o mundo. Ele emprega o capítulo 30 do livro
XI de Cidade de Deus para demonstrar por que o número seis é o número
perfeito e também que os números bíblicos estão cheios de significado.
Nesse mesmo capítulo, Agostinho, que entende literalmente os dias da
criação, acaba sugerindo também uma interpretação figurada:
Podemos falar [apropriadamente] de manhã e tarde. Pois o conhecimento da
criatura, em comparação com o conhecimento do Criador, é somente um
entardecer, que se transforma em amanhecer quando ela é atraída a louvar e
amar o Criador; e a noite nunca cai quando o Criador não é esquecido pelo
amor da criatura. Em outras palavras, quando a Escritura registra os dias da
criação, nunca menciona a palavra “noite”. Nunca diz “houve noite…”, mas
sim “houve tarde e manhã, o primeiro dia”… portanto, a tarde é uma figura
mais adequada do que a noite; e como eu disse, a manhã retorna quando a
criatura tem um conhecimento de si mesmo: este é o primeiro dia. Quando
ela adquire conhecimento do firmamento, que é o nome dado ao céu entre as
águas acima e abaixo, este é o segundo dia; e que todas as coisas crescem da
terra, este é o terceiro dia. O quarto dia é quando a criatura adquire
conhecimento dos luminares maiores e menores e das estrelas. O
conhecimento dos animais que nadam nas águas e voam nos ares, é o quinto
dia. O dos animais da terra, e do próprio homem, é o sexto dia.
Ao comentar Gênesis 22, que trata da prova à qual Abraão foi submetido
por Deus, ordenando-lhe sacrificar Isaque, Agostinho não nega a
historicidade da passagem, mas interpreta seus detalhes de forma
cristológica:
[Tudo isto] é uma similitude daquele de quem o apóstolo diz: “Aquele que
não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou” [Rm 8.32].
Nesse sentido, Isaque também levou ao local de sacrifício a madeira na qual
seria oferecido, exatamente como o Senhor carregou sua própria cruz.
Finalmente, já que Isaque não foi sacrificado, depois que seu pai foi proibido
de fazer-lhe mal, quem era o cordeiro cujo sangue, como uma representação,
completou o sacrifício? Pois quando Abraão o viu, ele estava preso pelos
chifres entre os arbustos [Gn 22.13]. O que ele, então, representa, senão
Jesus, o qual, antes de ser oferecido na cruz, foi corado com espinhos pelos
judeus?
Atribui-se a Agostinho o conceito de que existem quatro níveis de
sentido nas Escrituras: um sentido literal e três sentidos espirituais: moral,
alegórico e anagógico. O sentido literal seria o registro do que aconteceu (o
fato); o sentido moral conteria uma exortação quanto à conduta (o que
fazer); o sentido alegórico ensinaria uma doutrina a ser crida (o que crer); e
o sentido anagógico apontaria para uma promessa a ser cumprida (o que
esperar). Existem outros candidatos a autores dessa famosa “quadriga”,
como veremos mais adiante.
Até mesmo Jerônimo, que traduziu a Vulgata quase que literalmente,
permitiu-se evitar o sentido natural de textos bíblicos que fossem contrários
às suas ideias. Um dos melhores exemplos é sua obra Contra Joviniano, em
que procura refutar um tratado escrito em latim e publicado em Roma por
um tal Joviniano, que era contra a virtude monástica da virgindade e
perpétua virgindade de Maria. Em seu afã de defender essas doutrinas, que
já começavam a ser recebidas oficialmente na igreja, Jerônimo força a
interpretação de algumas passagens das Escrituras usadas por Joviniano.
Joviniano cita “crescei e multiplicai-vos” e Jerônimo replica: “O casamento
enche a terra, mas a virgindade enche os céus”. Joviniano apela para
Cantares, e Jerônimo replica que o mesmo é totalmente alegórico e
espiritual. Joviniano diz que Pedro era casado e Jerônimo responde que
Pedro lavouse da sujeira do casamento pelo sangue do seu martírio!
Notemos que a espiritualização do Antigo Testamento se dava
principalmente por causa da convicção dos pais latinos de que o Novo
Testamento está oculto no Antigo, e o Antigo Testamento é iluminado pelo
Novo. Nas palavras de Agostinho, In vetere novum lateat, et in novo vetus
pateat (“No Velho o Novo está oculto e no Novo o Velho é explicado”,
Quaest. in Heptateuchum 2.73).
Escritura com Escritura
Outra característica da interpretação dos pais latinos era a observância da
regra que passagens mais obscuras devem ser interpretadas à luz das mais
claras. Para muitos intérpretes nessa época, a solução para resolver
contradições entre passagens das Escrituras era alegorizar as que fossem
mais obscuras. Os pais latinos, ao contrário, adotam outra solução.
Procuravam interpretar uma passagem obscura e difícil à luz de outras que
tratem do mesmo assunto e que sejam mais claras. Era essa a regra que
procuravam seguir. O que estava por detrás dessa regra era a crença na
unidade da Escritura, ponto que Agostinho faz explicitamente em seu
comentário em Gênesis 22.
Regra de fé da igreja
Os pais latinos viveram numa época em que a igreja estava começando a
adquirir uma estrutura fixa em Roma. Ao contrário da tradição oriental, que
era influenciada por Alexandria e que via o texto como “aberto” (no sentido
de ser uma rica mina de sentidos), os pais latinos praticavam uma exegese
“fechada”, seguindo os dogmas dos concílios da época, nos quais o texto
aceitava apenas uma interpretação, que devia ser crida e recebida por todos.
Um dos exemplos disso foram as tentativas de Jerônimo de defender o
ensino sobre as virtudes da castidade e de se permanecer solteiro, que já
começava a ser aceito como doutrina da igreja.
Além disso, na época deles, já começava a formar-se uma tradição
eclesiástica reconhecida e aceita pela igreja. Os pais latinosdemonstram ter
consciência de uma tradição de intérpretes antes deles. Jerônimo cita
frequentemente em suas obras comentaristas antes dele que têm a mesma
interpretação.
Agostinho e Jerônimo
Um episódio interessante deste período é a correspondência trocada durante
muitos anos entre Agostinho e Jerônimo sobre a interpretação de uma
passagem polêmica de Gálatas. As cartas foram preservadas e se constituem
em um dos capítulos mais interessantes da história da interpretação no
período patrístico. A disputa ilustra bem o apreço que Agostinho tinha pela
interpretação mais literal das Escrituras.
Um dos inimigos do Cristianismo em seu início foi Porfírio, um filósofo
pagão. Ele escreveu um livro, “Contra os Cristãos”, no qual usa Gálatas 2
para mostrar que havia uma disputa entre os principais líderes do
Cristianismo, Pedro e Paulo. Nesta passagem, Paulo registra que em certa
ocasião repreendeu Pedro na cara, porque o mesmo usou de desfaçatez para
com os cristãos gentios (Gl 2.11). Porfírio usou essa passagem para provar
que Pedro e Paulo eram inimigos. Muitos cristãos escreveram refutando
Porfírio. E Jerônimo foi um deles. Em seu comentário aos Gálatas,
Jerônimo afirma que Paulo estava apenas fingindo, e que o conflito entre os
dois não deve ser tomado como algo sério. Agostinho era mais moço que
Jerônimo, e morava em Hipona. Jerônimo, por sua vez, morava na
Palestina, onde estava ocupado traduzindo as Escrituras (Vulgata).
Agostinho enviou-lhe diversas cartas, cobrando uma exegese mais correta
da passagem. O problema que Agostinho sentia com a interpretação de
Jerônimo era que ela acabava por fazer de Paulo um mentiroso. Para
Agostinho isso era sério, pois não era somente um ataque à autoridade
moral de Paulo, mas um ataque à autoridade da própria Bíblia.
Jerônimo ficou aborrecido com Agostinho e os dois começaram uma
troca de correspondência que durou muitos anos. Jerônimo defendia-se
dizendo que sua interpretação “espiritual” da passagem era válida, pois
servia para esvaziar as acusações que Porfírio estava fazendo contra as
Escrituras. Mas Agostinho não se deixava convencer. Para ele, o que estava
em jogo era a própria autoridade da Escritura. Isso tudo nos mostra um
ponto muito importante. Agostinho, apesar da influência platônica que
sofreu, foi um mestre da exegese bíblica. É verdade que ele não conhecia
nem o grego nem o hebraico, mas uma coisa o destaca: seu desejo de
interpretar a Palavra em seu sentido óbvio, simples e evidente, mesmo que
isso trouxesse algumas dificuldades.
Conclusão
Dentre os pais latinos, aquele cujas ideias e cuja hermenêutica mais
influenciou a igreja ocidental foi Agostinho. Infelizmente, foi somente um
aspecto da sua hermenêutica que prevaleceu, o reconhecimento de que
havia um sentido além do literal nas palavras da Bíblia. Na Idade Média, a
preocupação por sentidos além do literal dominou quase que
completamente, como veremos no capítulo seguinte. Isso não quer dizer
que houve somente interpretações alegóricas da Bíblia durante a Idade
Média. Em meio a esse período, uma pequena, mas forte tradição
interpretativa, em muito similar à de Antioquia, surgiu e acabou por
preparar o caminho da hermenêutica utilizada pelos reformadores.
Uma lição que podemos aprender com os intérpretes latinos,
especialmente com Jerônimo, é evitar que nossas crenças prediletas acabem
por controlar nossa interpretação das Escrituras. Frequentemente somos
tentados a interpretar textos bíblicos de modo a concordarem com nosso
pensamento. Sabemos que é impossível ler a Bíblia sem pressupostos.
Nosso dever, entretanto, é assegurar que esses pressupostos são somente
aqueles exigidos pela própria Escritura.
Capítulo 9
Os intérpretes da Idade Média
Introdução
Ao contrário do que geralmente se pensa, houve intensa atividade
hermenêutica durante a Idade Média. Há muita coisa a ser estudada nesse
longo período (séculos 5º a 16). No geral, prevaleceu o sistema de
interpretação difundido por Alexandria, apesar da grande influência
moderadora de Agostinho, cujo sistema de interpretação só foi lembrado
pelos lapsos alegóricos. Entretanto, nem toda exegese dessa época foi
alegórica. Como veremos, subsistiu um núcleo que, em alguns sentidos,
antecipou os princípios histórico-gramaticais dos reformadores, os quais
valorizavam o sentido primário e textual das Escrituras e procuravam
encontrar a intenção do autor como o sentido real da passagem. Embora
ocasionalmente surgissem estudiosos reconhecendo o valor da interpretação
natural das Escrituras, predominou na Idade Média a interpretação alegórica
defendida por Orígines.
Características da interpretação bíblica dessa época
O uso da quadriga
Um dos primeiros intérpretes da Idade Média é João Cassiano, que morreu
no século 5º. Monge e escritor asceta do sul da Gália, Cassiano foi um dos
maiores defensores do semi pelagianismo naquela época. Ele escreveu um
livro intitulado Institutas de Coenobia, no qual explica e regulamenta a vida
nos mosteiros no Egito valendo-se de uma interpretação bastante alegórica
das Escrituras. Nessa obra vemos claramente a preocupação principal dos
intérpretes daquela época, que era justificar biblicamente as inovações,
costumes e doutrinas que estavam surgindo na igreja, fazendo um uso
inadequado das Escrituras. É atribuída a João Cassiano a famosa distinção
entre os quatro sentidos da Escritura, também chamada de “quadriga”:
• Histórico ou literal – o sentido evidente e óbvio do texto.
• Alegórico ou cristológico – o sentido mais profundo, geralmente
apontando para Cristo.
• Tropológico ou moral – o sentido que determinava as obrigações do
cristão e a sua conduta.
• Anagógico ou escatológico – o sentido que apontava para as coisas
vindouras que o cristão deveria esperar.
Bernardo de Claraval, escritor prolífico do século 11, era adepto da
quadriga. Em sua obra Sobre o Amor a Deus, ele expõe o amor da igreja a
Cristo interpretando Cantares no uso alegórico da quadriga:
Nem os judeus nem os pagãos sentem as dores do amor como a igreja, que
diz: “Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, pois desfaleço de
amor” [Ct 2.5]. Ela contempla o Rei Salomão, com a coroa com a qual sua
mãe o coroou no dia do casamento; ela vê o unigênito do Pai carregando o
fardo pesado da sua cruz. Contemplando isto, a espada do amor traspassa sua
própria alma e ela clama: “Sustentai-me com passas, confortai-me com
maçãs, pois desfaleço de amor”. Os frutos que a esposa colhe da Árvore da
Vida no meio do jardim de seu Amado são romãs [Ct 4.13], que tomam seu
gosto do Pão da Vida, e sua cor do sangue de Cristo.
Nicolau de Lira, um dos grandes estudiosos do século 13, resumiu a
quadriga na famosa rima:
Littera gesta docet (a letra ensina os fatos)
Quid credas allegoria (a alegoria, o que deves crer)
Moralis quid agas (a moral, o que deves fazer)
Quo tendas anagogia (a anagogia, a direção)
A perspectiva de que as Escrituras têm três ou quatro níveis de sentidos,
conforme expressa a quadriga, dominou a interpretação bíblica no período
da Idade Média. Alguns, como Bonaventura, teólogo católico franciscano
do século 13, chegaram até a defender que havia sete níveis de sentido em
cada passagem.
Apoio às inovações da Igreja Medieval
Uma das preocupações dos intérpretes medievais era justificar as inovações
litúrgicas. O ponto interpretativo central era o lugar da Lei de Moisés nas
cerimônias litúrgicas da igreja. Para justificar o seu uso, era preciso
alegorizar o texto do Antigo Testamento de modo a permitir que as
cerimônias do culto do Antigo Testamento pudessem ser aplicadas ao
contexto cristão. Práticas como uso de corais, velas, imagens, bem como
doutrinas que tornavam os sacerdotes católicos em mediadores entre Deus e
os homens e com poderes para efetuar a transubstanciação, passaram a ser
justificadas com base em textos da Escritura interpretados alegoricamente.
Por exemplo, no salmo 74.13: “Esmagaste sobre as águas a cabeça dos
monstros marinhos” era usado para defender a expulsão de demônios pelo
batismo. Já o sistemalevítico do Antigo Testamento era empregado para
defender a ideia de que cada presbítero cristão era um sacerdote apto a
realizar o santo sacrifício da missa.
Outro objetivo dos intérpretes era justificar os dogmas eclesiásticos, ou
seja, a regula fidei da igreja. Para isso, era preciso muitas vezes alegorizar o
texto sagrado. Por exemplo, a ressurreição da filha de Jairo na presença de
umas poucas testemunhas provava a confissão auricular privada a um
sacerdote. De acordo com os monges comentaristas, a passagem “Do
SENHOR são as colunas da terra” (1Sm 2.8) defendia a existência de
cardeais. E no salmo 8.7-8: “Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e
sob seus pés tudo lhe puseste: ovelhas e bois, todos, e também os animais
do campo; as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as
sendas dos mares” foi usado por Antônio, bispo de Florença, para provar
que Deus havia posto todas as coisas debaixo dos pés do papa: as ovelhas
são os cristãos; os bois são os judeus e os heréticos; os animais do campo
são os pagãos; os peixes do mar são as almas no purgatório.
Ainda outro objetivo era justificar o surgimento das ordens monásticas.
Por exemplo, as duas varas mencionadas em Zacarias 11.7 eram
interpretadas como se referindo aos franciscanos e aos dominicanos. João
Cassiano, em suas Institutas de Coenobia, regulamenta no Livro 1 os trajes
que o monge deve usar. Cada detalhe da indumentária monástica, das
sandálias ao capuz, é “provado” biblicamente, como por exemplo, o uso da
cinta, que era um cordão grosso amarrado ao redor da roupa de peles:
O monge, como soldado de Jesus Cristo sempre pronto para a batalha, deve
sempre caminhar com os lombos cingidos com uma cinta. Pois foi nesta
maneira, como a autoridade da Santa Escritura nos mostra, que andaram
aqueles no Antigo Testamento que deram início a este costume – refiro-me a
Elias e Eliseu; além disto, sabemos que os líderes e autores do Novo
Testamento, ou seja, João, Pedro e Paulo, e outros do mesmo nível, andaram
da mesma forma… Quando Pedro foi preso por Herodes e estava para ser
morto no dia seguinte, o anjo chegou-se a ele de noite e disselhe: “Cinge-te e
calça as sandálias” [At 12.8]. O anjo do Senhor não teria dito isto se não
tivesse percebido que Pedro, por causa do descanso da noite, havia por um
pouco aliviado seus lombos cansados afrouxando a sua cinta. Quando o
profeta Ágabo tomou a cinta de Paulo para profetizar, com isto demonstrou
que Paulo sempre usava uma cinta à sua cintura [At 21.11] (Cap. I)… A
cinta ao redor do monge o protege e representa o grande mistério que se
exige dele, que é a mortificação daqueles membros que estão contidos nas
sementes da cobiça e da lascívia, conforme está escrito “Cingido esteja o
vosso corpo” [Lc 12.35], que é interpretado pelo apóstolo Paulo como sendo
“Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituição, impureza, paixão
lasciva, desejo maligno e a avareza, que é idolatria” [Cl 3.5] (Cap. XI).
Aplicações práticas
Outra preocupação dos intérpretes desse período era prática. O período das
polêmicas havia passado após o Concílio de Calcedônia (451 d.C., sobre a
pessoa de Cristo). No desejo de aplicar as Escrituras, espiritualizava-se seu
sentido para permitir a acomodação. Como exemplo, podemos citar
Gregório, o Grande (Papa, séc. VI). Gregório tinha um alto apreço pela
Escritura como a Palavra de Deus, dada para instruir os homens quanto à
salvação. Porém, era seguidor do método alegórico de Orígines. Isso o
levou a procurar o sentido espiritual, interior, oculto por detrás da letra,
determinando três níveis de sentido para cada passagem (histórico ou literal,
alegórico ou típico e moral). Desses, estava mais preocupado com o sentido
moral, pois era um pregador com uma audiência enorme. Um bom exemplo
são suas palestras sobre o livro de Jó, Moralia. Cada palestra tem uma
exposição literal, uma alegórica e outra moral. Na exposição literal de Jó
1.1-5, ele usa o Jó histórico como exemplo de um homem de grande fé, cuja
piedade deve ser imitada. Na exposição alegórica, explora os detalhes da
narrativa interpretando-os simbolicamente e aplicando-os a Cristo. E na
exposição moral, ele identifica Jó com a alma do cristão e suas posses com
as virtudes dessa alma.
Ênfase na obscuridade das Escrituras
Com o objetivo de proteger a usurpação hierárquica, os monges, bispos e
padres exageraram o fato de que existem passagens obscuras na Bíblia e
assim a mantiveram longe das multidões. Transformaram-na em um livro
fechado, cujo sentido somente os bispos e monges podiam desvendar. A
interpretação alegórica de Jó 1.1-5 feita por Gregório é bem representativa:
Jó teve 7 filhos e 3 filhas; o número 7 representa os apóstolos, já que 7 é
composto de 4 e 3, que multiplicados dão 12. Os números 3 e 4 indicam que
a Trindade é pregada nos 4 cantos da terra. As 3 filhas representam os 3
santos de Ezequiel 14.14, Noé, Daniel e Jó, que por sua vez representam os
sacerdotes, o celibato e o que é fiel no casamento.
Presença de uma tradição hermenêutica gramático-histórica
O tipo de interpretação praticado durante a Idade Média era na maioria dos
casos arbitrariamente alegórico, como os exemplos anteriores demonstram.
Isso não quer dizer que não havia nesse período quem defendesse uma
leitura da Bíblia em seu sentido natural e óbvio. Por exemplo, o monge
alemão Tomás à Kempis, do século 15, famoso por sua obra Imitação de
Cristo, recomenda no capítulo V deste livro que se leia a Bíblia com
simplicidade:
Devemos buscar a verdade e não a eloquência na leitura das Santas
Escrituras; e cada parte dela deve ser lida no espírito em que foi escrita…
Nossa curiosidade frequentemente prejudica nossa leitura das Escrituras,
quando queremos compreender e ponderar aquilo que simplesmente
deveríamos ler e seguir adiante. Portanto, é proveitoso que leiamos com
humildade, simplicidade e fé. Procure e ouça atentamente as palavras dos
santos.
Podemos dizer que uma nova apreciação pelo sentido literal das
Escrituras surgiu no período medieval, graças a alguns fatores, alguns dos
quais mencionamos em seguida.
Surgimento das escolas de teologia
Na Idade Média Alta surgiram as escolas de teologia nas catedrais, onde se
estudava a Bíblia mais academicamente. Elas adotavam um sistema de
leitura da Bíblia chamado quaestio, como contraponto ao sistema dos
mosteiros, que eram centros de estudos devocionais (lectio). Um bom
representante de um intérprete nesta linha é Hugo, abade da catedral de São
Vitor, na França, no século 12. Não somente ele, mas também outros
vitorianos, como André e Herberto, escreveram obras teológicas e
comentários em que a intenção do autor determinava o sentido do texto e se
dava atenção ao contexto histórico e à gramática. Hugo escreveu um
comentário à carta aos Romanos utilizando-se do sistema de quaestio, que
consistia em responder perguntas feitas ao texto bíblico. Vejamos o
exemplo abaixo:
Questão Quinquagésima Sexta.
Como pode o Apóstolo dizer que “Deus há de dar a cada um segundo as suas
obras”, [Rm 2.6] se as obras de um homem são boas enquanto sua intenção é
má, e as obras de outro são más enquanto sua intenção é boa, e é pelo afeto
que se impõe o nome à obra? Não é condenado pelas boas obras aquele cuja
intenção é má, enquanto que se salva pelas más obras aquele cuja intenção é
boa?
Solução.
Não é suficiente a intenção para que as obras sejam ditas boas, mas sempre é
exigido que sejam boas para aquele que as faz. Se, de fato, as obras são boas
em si, mas a intenção é má, o homem é punido pela má intenção, não pelas
boas obras, nem será remunerado por elas, porque se lhe tornaram inúteis
pela má intenção. Para que, porém, as obras lhe sejam más, não se exige a
má intenção. A intenção pode ser boa ou má e existir em obras más;
qualquer que for a intenção de uma obra má, causará esta dano ao que a
fizer. O julgamento deve referir-se à intenção nas coisas que são indiferentes,
isto é, nem boas nem más em si mesmas.
Embora a teologia de Hugo seja estritamente medieval e as respostasque
ele fornece às perguntas estejam influenciadas pelo escolasticismo católico,
seu método inevitavelmente leva à valorização do sentido natural e óbvio
das Escrituras.
A influência de Rashi
Outro fator foi o contato de eruditos cristãos com estudiosos judeus que
tinham uma abordagem das Escrituras influenciada pelo literalismo de
Rashi (Rabino Salomão ben Isaque, 1040-1105). Rashi era um judeu erudito
famoso que escreveu comentários influentes na Bíblia Hebraica e na maior
parte do Talmude Babilônico. É considerado uma das maiores autoridades
na Lei Judaica. Muito embora ainda estivesse apegado à interpretação
alegórica dos rabinos antigos, Rashi foi um mestre da brevidade que aplicou
o método da simplicidade ao máximo, evitando em sua exegese do Antigo
Testamento complicações desnecessárias, enfatizando a gramática e a
exposição racional das Escrituras. Vejamos, por exemplo, sua interpretação
de Gênesis 2.25: “Ora, um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus e
não se envergonhavam”:
Eles não conheciam o caminho da modéstia para distinguir entre o bem e
mal. Apesar de Adão ter recebido a sabedoria de chamar todas as criaturas
pelo nome, ele não estava imbuído de qualquer inclinação maligna, até que
comeu da árvore e a inclinação para o mal entrou nele e ele tornou-se capaz
de distinguir entre o bem e o mal.
No exemplo acima, Rashi é bastante sóbrio, sem procurar sentidos
ocultos na passagem. Seu estilo e suas obras acabaram por chegar ao
conhecimento de estudiosos cristãos das escolas de teologia e por produzir
um novo apreço por uma exegese mais simples e direta.
Publicação de obras que favoreciam a interpretação literal
As obras de Aristóteles traduzidas do árabe foram publicadas na Idade
Média Alta. O interesse por Aristóteles havia desaparecido no Ocidente
depois do declínio de Roma; suas obras foram preservadas em árabe por
estudiosos siríacos. Aristóteles percebia o sentido e a realidade, não num
mundo de ideias, como Platão, mas nas coisas em si. Sua filosofia foi
inclusive acusada de levar ao materialismo pela Igreja Católica, mas acabou
servindo de base para o pensamento de Tomás de Aquino.
Outro fator foi a publicação da obra de Maimônides, Guia para os
Perplexos, em que ele defende que a Lei pode ser interpretada e aplicada
literalmente. Maimônides foi um destacado filósofo judeu medieval do
século 12. Foi médico do Sultão Saladim e líder da comunidade judaica no
Egito, bem como um importante contribuidor para a codificação da Lei
Judaica. Ele provocou uma grande controvérsia ao publicar um resumo dos
princípios do Judaísmo em 13 declarações (como um credo), com o
objetivo de clarificar as principais diferenças entre o Judaísmo, o
Cristianismo e o Islamismo. Mas, desde então, esse “credo” passou a ser
incorporado à maioria dos livros de oração judaicos. Abaixo, temos um
exemplo da interpretação sóbria de Maimônides, tirada de sua obra As Leis
dos Princípios Básicos da Torá, capítulo I:
O que a Torá quer dizer com expressões como “… o dedo de Deus” [Êx
31.18], “a mão do SENHOR” [Êx 9.3], “os olhos do SENHOR” [Dt 11.12], “os
ouvidos do SENHOR” [Nm 11.1], etc.? Estas frases estão em consonância
com o nível de compreensão do povo, que só concebe a existência física. A
Torá fala em termos que possamos compreender. Todos os exemplos dessa
natureza são atributivos. Por exemplo, quando se diz “se eu afiar a minha
espada reluzente” [Dt 32.41] – isto significa realmente que Deus tem uma
espada e que ele realmente mata com ela? Tais frases são figuradas.
Surgimento das ordens mendicantes
O que levou Francisco de Assis a vender tudo o que tinha, dar aos pobres e
sair pelo mundo pregando o evangelho como ele o entendia foi sua
interpretação literal das palavras de Jesus nos evangelhos. Muito embora
possamos discordar dessa interpretação, é forçoso reconhecer que o
surgimento das ordens mendicantes, como a dos Franciscanos, com sua
interpretação simples, direta e literal dos evangelhos manteve viva a
tradição da interpretação literal, muito embora os Franciscanos e demais
mendicantes fossem filhos de sua época quanto ao entendimento teológico.
A tradução das Escrituras para o vernáculo
Não podemos deixar de dar crédito também à obra pioneira de João
Wycliffe, que foi traduzir a Vulgata (em latim) para o inglês, a língua do seu
povo, desafiando a hierarquia católica. A divulgação da Bíblia em língua
vernácula contribuiu para uma leitura simples e direta por parte do povo.
O apreço renovado pelo sentido literal por parte de estudiosos e monges
não representou o abandono do método alegórico. Esse permaneceu
intocado na Idade Média, como o principal método empregado. Os que
haviam descoberto a importância do sentido literal mantiveram também o
sistema alegórico de interpretação, como Tomás de Aquino (século 13).
Debaixo da influência de Aristóteles – pelo que foi inicialmente
questionado pela igreja de seus dias – ele deu total atenção e prioridade ao
sentido literal, buscando a intenção do autor e usando todas as ferramentas
disponíveis para o estudo do texto. Ele estava convencido que metáforas,
alegorias e similitudes eram parte da intenção original. Chegou mesmo a
ensaiar uma análise de discurso de Gálatas 3. Via também no Antigo
Testamento um sentido mais profundo que prefigurava Cristo. Apesar desse
aparente retorno ao método antioquiano, Aquino permaneceu leal ao
método alegórico. Vejamos abaixo a defesa que ele faz da quadriga na Suma
Teológica (1a.1.10):
As coisas são representadas por palavras, e estas coisas também têm, elas
mesmas, um significado. Portanto, aquele sentido no qual as palavras
representam coisas pertence propriamente ao primeiro sentido, o histórico ou
literal. E aquele sentido no qual as coisas representadas pelas palavras
também têm seu próprio sentido, é chamado de espiritual. Esse sentido
espiritual tem uma divisão tripla. Pois o Apóstolo diz [Hb 10.1] que a Antiga
Aliança era uma figura da Nova, e Dionísio diz em sua obra que “a Nova
Aliança é uma figura da futura glória”. Nessa Nova Aliança, aquilo que
Cristo fez é um tipo do que devemos fazer. Portanto, naquilo em que as
coisas da Antiga Aliança representam as coisas da Nova, temos o sentido
alegórico; naquilo em que as coisas realizadas em Cristo representam o que
devemos fazer, temos o sentido moral. No que elas significam o que tem a
ver com a glória eterna, eis o sentido anagógico.
A luta dos huerguenses na Espanha
Uma das mais destacadas exceções quanto à aplicação do método alegórico
na Idade Média foi o caso, não muito conhecido hoje, do espanhol Cipriano
de la Huerga, cujo vasto comentário de livros da Bíblia foi recentemente
publicado pela Universidade de Leão sob a direção de G. Morocho Gayo.
Os Huerguenses, como são chamados seus seguidores, romperam com a
abordagem dos quatro sentidos da Bíblia (quadriga) e abordaram o texto de
acordo com pressupostos que em tudo nos lembra a hermenêutica de
Antioquia.
Entre esses pressupostos ou princípios de interpretação, mencionamos,
primeiro, o retorno ao estudo da Bíblia utilizando-se as línguas originais
dos textos bíblicos, hebraico e aramaico para o Antigo Testamento e grego
para o Novo Testamento. Segundo, os huerguenses se dedicaram a uma
análise textual das Escrituras usando princípios similares ao que hoje se
conhece como filologia poligráfica. Na área da manuscritologia, eles
procuraram corrigir e fixar os textos das cópias antigas da Bíblia,
eliminando as interpolações e variantes até conseguir as leituras mais
próximas do original. Também dedicaram atenção especial às varietas
lectionum, quer dizer, as passagens com leituras distintas, que oferecem
diversidades de interpretações. Quanto à interpretação, procuravam explicar
as figuras poéticas, metáforas e parábolas segundo as normas da retórica
clássica. Ilustravam os textos que contêm termos geográficos,
acontecimentos históricos, instituições e elementos ilustrados pelos novos
conhecimentos trazidos pelas disciplinas correspondentes, rejeitando o
“sentido espiritual” da interpretaçãoalegórica. Faziam frequente uso de
citações de escritores clássicos gregos e romanos, desde Homero, passando
por Cícero e Sêneca, até os autores gregos e latinos dos séculos 4º e 5º.
Usavam também textos dos pais da igreja, tratando de explicar a
multiplicidade de sentidos.
A principal novidade introduzida por Cipriano e seus seguidores foi o
abandono do escolasticismo dos doutores da igreja medieval e a
incorporação dos métodos do humanismo. Como resultado, se deu um dos
maiores debates ideológicos já conhecidos pela universidade espanhola,
quando seus seguidores começaram a colocar em prática esse modo de
abordar as Escrituras. Os catedráticos escolásticos da Universidade de
Salamanca, com o apoio da inquisição, conseguiram encarcerar os
discípulos de Cipriano (Frei Luís de Leão e seus companheiros) e as suas
obras foram condenadas e colocadas no Índice de Livros Proibidos e nos
Expúrios. Em 1612 também os Comentários ao Livro de Jó foram
colocados no Index.
Conclusão
O ressurgimento do interesse no final da Idade Média pela interpretação
gramático-histórica preparou, em certo sentido, a grande revolução
hermenêutica que foi a Reforma Protestante. É o que veremos em seguida.
A história da interpretação da Bíblia durante a Idade Média nos mostra
de maneira muito clara como uma hermenêutica alegórica sem controles e a
decadência doutrinária da igreja andam juntas. É verdade que não podemos
responsabilizar o método alegórico por todos os desvios doutrinários
ocorridos nesse período, mas com certeza ele teve participação decisiva.
Semelhantemente, podemos inferir que a crise doutrinária e a falta de rumos
claros na teologia da igreja evangélica brasileira em nossos dias se devem
em alguma medida à predominância de uma exegese que não se preocupa
com o sentido primário, literal e evidente da Bíblia, mas com sentidos que
estão além da mesma e disponíveis apenas a intérpretes que se julgam
“espirituais”.
Capítulo 10
Os reformadores
Introdução
A Reforma Protestante foi, em muitos sentidos, um movimento
hermenêutico. Representa um momento crucial na história da interpretação
cristã das Escrituras. O domínio de séculos de interpretação alegórica é
finalmente quebrado. O retorno aos princípios de interpretação defendidos
pela escola de antioquia marca a pregação, o ensino e os princípios dos
reformadores. Portanto, procuraremos resumir as principais contribuições
da Reforma para a história da hermenêutica bíblica.
A Bíblia na Reforma
Para melhor entender a hermenêutica dos reformadores, devemos começar
entendendo a posição que as Escrituras passaram a ocupar em seu
pensamento. Os reformadores rejeitaram e combateram o conceito de que a
hierarquia da igreja era a autoridade máxima em questões religiosas. Eles
insistiram que a Bíblia era o juiz maior de todas as controvérsias religiosas,
interpretando-se a si mesma ao longo de suas partes. Ela passou a ser
central e crucial no pensamento e na prática dos seguidores da Reforma, ao
contrário do lugar secundário que ocupava no catolicismo da Idade Média.
Com o resgate da posição central da Bíblia na fé e na prática da igreja, a
sua certeza, divindade, veracidade e autoridade ganharam ainda mais
destaque, já que os cristãos agora tinham de apelar a ela para resolver
debates teológicos. Antes, era uma hierarquia infalível encabeçada por um
papa infalível que decidia todas as questões religiosas. A Reforma
Protestante, agora, sabia que a decisão dessas questões somente podia ser
alcançada pelo Espírito Santo falando por meio da Palavra de Deus
inspirada e infalível. A tendência então passou a ser a harmonização das
passagens difíceis da Bíblia.
Na época medieval as passagens difíceis eram interpretadas e resolvidas
em harmonia com a tradição e os dogmas da igreja. No passado, Orígines
havia recorrido à alegoria nesses casos. Mas os reformadores tinham de
achar outra solução, já que rejeitavam a autoridade da hierarquia
eclesiástica sobre as Escrituras e a alegorese. O caminho foi o de
interpretar a Escritura com a Escritura visando harmonizar as aparentes
contradições.
A ênfase à infalibilidade da Escritura – doutrina nunca negada por
Roma, mas reduzida a plano secundário pela prevalência da tradição –
evitou que ela recebesse dos reformadores um tratamento crítico como um
livro comum de religião. Os reformadores estavam conscientes de que a
Bíblia era um livro humano, isto é, foi escrita por homens em uma
linguagem humana, vivendo numa época e cultura específicas. Por outro
lado, reconheciam o caráter divino da mesma. Empregaram todos os
recursos disponíveis na época para o estudo bíblico, mas suas conclusões
eram controladas pela doutrina da inspiração, veracidade e infalibilidade
das Escrituras. Um bom exemplo disso é o tratamento que Calvino dá às
citações aparentemente deturpadas que os autores do Novo Testamento
fizeram do Antigo. Comentando Mateus 2.6, “E tu, Belém, terra de Judá,
não és de modo algum a menor entre as principais de Judá; porque de ti
sairá o Guia que há de apascentar a meu povo, Israel”, ele diz:
Não há dúvida de que os escribas citaram as palavras dessa passagem [Mq
5.2] fielmente, em sua própria língua, como se encontram no Profeta. Mas
Mateus estava escrevendo em grego, e seguiu a leitura que era aceita em sua
época… Devemos observar que quando os apóstolos citam um testemunho
das Escrituras, eles não o fazem palavra por palavra, e algumas vezes
chegam mesmo a distanciar-se bastante da linguagem original. Eles,
entretanto, acomodam a passagem de forma adequada ao propósito que
tinham em mente… Os evangelistas nunca torturam as Escrituras dando-lhes
um falso sentido, mas a aplicam de forma própria a um uso genuíno.
Foi somente após o Iluminismo e a chegada do racionalismo na igreja
que o método histórico-crítico foi desenvolvido. A partir daí, a Bíblia
passou a ser examinada sem os pressupostos que controlavam a exegese da
Reforma e com os pressupostos do racionalismo. Passagens como essa
examinada acima passaram a ser consideradas como erros grosseiros dos
autores neotestamentários, enquanto que Calvino as via como um uso
adaptado e genuíno.
Características da interpretação dos reformadores
Partindo dessa perspectiva das Escrituras, e mesmo em decorrência dela, os
reformadores desenvolveram um sistema de interpretação que representou
um rompimento radical com a hermenêutica alegórica medieval. Vejamos
as suas principais características.
Ênfase no sentido literal, gramático-histórico do texto
Havia a preocupação dos reformadores em chegar ao sentido óbvio, claro e
simples de cada passagem das Escrituras. E isto seria feito pela observação
cuidadosa da gramática e do contexto, conforme Lutero expõe em uma
crítica aos intérpretes escolásticos da Idade Média, em seu comentário aos
Gálatas (1535):
O que eles [os sofistas] deveriam fazer é vir ao texto vazios, derivar suas
ideias da Escritura Sagrada, e então prestar atenção cuidadosa às palavras,
comparar o que precede com o que vem em seguida, e se esforçar para
agarrar o sentido autêntico de uma passagem em particular, em vez de ler as
suas próprias noções nas palavras e passagens da Escritura, que eles
geralmente arrancam do seu contexto.
De acordo, os reformadores ensinavam que cada texto tem um só
sentido, que é o literal — a não ser que o próprio contexto ou outro texto
das Escrituras requeiram claramente uma interpretação figurada ou
metafórica. Nesse sentido, os reformadores não eram originais, pois durante
a Idade Média havia essa consciência por parte de alguns, conforme vimos
no capítulo anterior. Sua contribuição está no fato de que, além disso,
romperam drasticamente com a alegorese medieval que prevaleceu na Idade
Média, a qual via o texto bíblico como tendo diversos sentidos, sendo o
alegórico o mais importante. Rejeitaram o uso da alegorese por parte dos
escolásticos medievais. Lutero costumava referir-se às alegorias dos
escolásticos em termos fortes. Vejamos, por exemplo, alguns extratos sobre
o assunto tirados da obra Conversas de Lutero à Mesa:A alegoria de um sofista é sempre retorcida; ela rasteja e se curva como uma
cobra, que nunca se endireita, quer caminhe, quer se arraste, quer fique
parada; somente quando morre é que uma cobra fica direita… Quando eu era
um monge, era muito versado em significados espirituais e alegorias. Mais
tarde, porém, quando cheguei ao conhecimento de Cristo através da carta aos
Romanos, vi que todas as alegorias são vãs, exceto aquelas que Cristo
usou… Jerônimo e Orígines, Deus os perdoe, são os responsáveis pela
alegoria ser tão estimada [na Igreja]. Tudo o que Orígines escreveu não vale
uma única palavra de Cristo. Quanto a mim, já abandonei essas bobagens, e
minha melhor arte é pregar a Escritura em seu sentido único.
O fato de que os reformadores rejeitaram a alegorese escolástica não os
levou à conclusão de que não havia passagens de sentido figurado nas
Escrituras. Calvino, por exemplo, estava perfeitamente consciente da
existência de passagens figuradas e metáforas na Escritura. Ao interpretar
1João 4.1, “Amados, não deis crédito a qualquer espírito”, ele diz:
Entendo a palavra espírito como uma metáfora, significando a pessoa que
reivindica ter o dom do Espírito para assumir o ofício de profeta… Os
profetas são chamados de espíritos porque pronunciaram os oráculos do
Espírito.
A dificuldade era, porém, que nem sempre concordavam quanto a essas
passagens, como fica bem demonstrado na disputa entre Lutero e Zuínglio
quanto à interpretação de Mateus 26.26, “Tomai, comei; isto é o meu
corpo”. Enquanto que Lutero interpretava literalmente esta passagem,
Zuínglio interpretava literalmente Marcos 16.19, “O Senhor Jesus, depois
de lhes ter falado, foi recebido no céu e assentou-se à destra de Deus”. Para
ele, conforme defendeu em seu tratado Sobre a Ceia do Senhor, Cristo
estava localizado no céu em sua natureza humana física. Logo, ele estava
presente na Ceia somente de maneira espiritual, sem identificar-se com o
pão e o vinho. A resposta de Lutero, em um tratado publicado no ano
seguinte ao tratado de Zuínglio, foi que a frase “assentou-se à destra de
Deus” em Marcos 16.19 não era para ser entendida literalmente. É uma
metáfora para explicar o governo de Deus e sua esfera de ação. Cristo não
está em nenhum lugar fisicamente e nem está preso por limites de tempo e
de espaço. Portanto, poderia estar fisicamente na Ceia.
A necessidade da iluminação do Espírito Santo
Os reformadores enfatizaram a natureza divina das Escrituras, isto é, que
elas foram dadas por inspiração divina. A natureza espiritual da mensagem
das Escrituras era a principal barreira à sua compreensão por parte de
pessoas que não tinham o Espírito. A cegueira espiritual do homem em
decorrência da Queda havia afetado inclusive a capacidade dele de
conhecer as coisas de Deus e recebê-las. Para quem não tinha o Espírito, as
Escrituras eram um livro fechado. Assim, enfatizaram o papel indispensável
do Espírito Santo no processo de interpretação da mensagem da Bíblia.
Tanto para Lutero, como para Calvino, nenhuma pessoa poderia interpretar
corretamente as Escrituras sem a ação iluminadora do Espírito Santo por
meio da própria Palavra. É interessante observar que nos manuais de culto
produzidos pelos reformadores havia sempre uma oração na liturgia na qual
se pedia a iluminação do Espírito para a compreensão das Escrituras.
A necessidade de estudar as Escrituras
Igualmente, os reformadores reconheciam que a Bíblia era um livro
humano. Muito embora insistissem na clareza das Escrituras, já que eram
divinas quanto à origem, reconheciam por outro lado a necessidade de
serem estudadas e pesquisadas, visto que também eram humanas. Isto é,
havia alguns pontos obscuros nelas que precisavam de maior atenção para
serem elucidados. Essas obscuridades residiam no fato de que as Escrituras
foram escritas em línguas orientais já mortas, em culturas distantes e em
épocas já passadas. Pelo estudo cuidadoso das línguas originais, pelo
conhecimento da cultura e da época em que foram escritas, poder-se-ia
chegar ao sentido provável das passagens obscuras. Assim, Lutero, no
prefácio ao seu Comentário em Romanos, explica primeiro o sentido das
palavras-chave da carta, como fé, justiça e carne, como sendo o caminho
para a sua compreensão:
Você não deve entender carne aqui como denotando somente lascívia, ou
espírito como denotando somente a parte interior do coração. Aqui, São
Paulo chama a carne (como faz Cristo em João 3) tudo que nasceu da carne,
i.e., todo ser humano com corpo e alma, razão e sentidos, desde que tudo
dentro dele se inclina para a carne. Isto é o porquê você deveria saber o
suficiente para chamar aquela pessoa de “carnal” quem, sem a graça, fabrica,
ensina e tagarela sobre assuntos altamente espirituais. Você pode aprender a
mesma coisa em Gálatas, capítulo 5, em que São Paulo chama a heresia e
obras odiadas da carne. E em Romanos, capítulo 8, ele diz que, através da
carne, a lei é enfraquecida. Ele diz isso, não da lascívia, mas de todos os
pecados, muitos deles da incredulidade, a qual é o mais espiritual dos
defeitos… A menos que você entenda essas palavras desta maneira, você
nunca entenderá nem essa carta de São Paulo nem o livro das Escrituras.
Esteja atento, por isso, contra os professores que usam essas palavras
diferentemente, não importa quem ele seja, seja Jerônimo, Agostinho,
Ambrósio, Orígines ou qualquer outro tão grande como grande eles são.
É importante observar que apesar de reconhecer os pontos de difícil
interpretação nas Escrituras, os reformadores estavam convencidos de que o
sentido geral das mesmas era claro e disponível a todo cristão verdadeiro.
Escritura com Escritura
“Se são obscuras num lugar, são claras em outros”, disse Lutero com
referência às Escrituras. Esse princípio da Reforma estabeleceu que a única
regra infalível de interpretação das Escrituras é a própria Escritura. Ela se
autointerpreta, elucidando, assim, suas passagens mais difíceis. O ponto de
Lutero e dos demais reformadores era que o sentido das Escrituras não
poderia mais ser determinado por tradição, nem por decisão eclesiástica,
nem por argumento filosófico, nem por intuição espiritual, mas unicamente
por outras partes das mesmas que explicam e esclarecem o seu sentido.
Vemos esse princípio em operação no comentário de Gálatas, de Lutero. Ele
regularmente procura entender o que Paulo está dizendo em Gálatas à luz
do restante do Corpus Paulinus. Seu comentário está cheio de referências a
outras cartas do apóstolo, principalmente Romanos, 1 e 2Coríntios. Por
exemplo, ao explicar Gálatas 2.3, que trata da quase circuncisão de Tito,
Lutero apela para 1Coríntios 7.18, em que Paulo declara sua prática
missionária de amoldar-se às necessidades dos que o ouvem. Mais adiante,
comentando Gálatas 3.1, “Ó gálatas insensatos”, Lutero explica que a
aparente rudeza de Paulo se explica pelo fato de que o apóstolo está
simplesmente praticando o que ele ensina em 2Timóteo 4.2: “prega a
palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende e exorta”.
Além disso, nesse comentário aos Gálatas, Lutero cita passagens de vinte e
três livros do Antigo Testamento, especialmente de Gênesis, Deuteronômio,
Salmos e Isaías. Ele usa o Antigo Testamento como uma fonte abundante de
evidências, exemplos, e exortações. Para ele, a analogia scripturae
(“analogia das Escrituras”) justifica o aplicar-se a Cristo “todas as
maldições coletivas da Lei de Moisés”, como Paulo faz em Gálatas 3.13,
aplicando a Cristo a maldição de Deuteronômio 21.23.
Intenção do autor humano
Em lugar do conceito da alegorese medieval de que um único texto da
Bíblia tinha quatro sentidos, os reformadores insistiram que havia apenas
um sentido em cada texto, que era o pretendido pelo seu autor humano. Já
que o autor humano havia sido inspirado por Deus, havia a coincidência de
intenções. Logo, achar o sentido do autor humano era achar o sentido
pretendido por Deus. Como intérpretes bíblicos, eles se preocuparam, no
geral, em determinar a intenção do autor, que era geralmente osentido
literal de uma passagem, a não ser que o próprio autor indicasse o contrário.
Essa era a chave que abria o sentido do texto e determinava o seu sentido.
Em seu comentário aos Gálatas, Lutero esforça-se continuamente para
colocar di-ante dos leitores a intenção de Paulo, como no exemplo abaixo,
em que ele interpreta Gálatas 2.6, “E, quanto àqueles que pareciam ser de
maior influência, quais tenham sido, outrora, não me interessa”:
Esse é um bom argumento na refutação de Paulo. Ele rebaixa a autoridade e
a dignidade dos verdadeiros apóstolos, dizendo: “aqueles que pareciam ser
de maior influência”. A autoridade dos apóstolos era realmente grande em
todas as igrejas. Paulo não queria diminuir essa autoridade, mas ele tinha de
falar dessa forma derrogatória para conservar a verdade do evangelho e a
liberdade de consciência.
Isso não quer dizer que os reformadores fossem sempre consistentes na
aplicação deste princípio. Às vezes, eles acham sentidos nas passagens
bíblicas que não parecem evidentes de uma leitura normal e simples do
texto. Por exemplo, ao interpretar a passagem de Mateus 27.35, em que os
soldados rasgaram as roupas de Jesus, Calvino declara:
O evangelista nos apresenta Cristo despido de suas roupas para transmitirnos
o fato de que, pela sua nudez, somos cobertos com as riquezas que nos
adornam diante de Deus. O Filho foi desnudado pela vontade de Deus, para
nos vestir da sua justiça e da abundância de toda riqueza. Assim, onde antes
nossos trapos e imundícias nos tornavam indignos do céu, agora podemos
aparecer, com os anjos de Deus, na sua presença, com ousadia e sem temor.
O próprio Cristo permitiu que os soldados rasgassem a sua túnica que não
tinha costura, como animais dilaceram sua presa, para nos enriquecer com as
riquezas da sua vitória.
Aqui, o grande reformador declara a intenção de Mateus sem que haja
um indício na passagem de que tenha sido esta a intenção do evangelista. A
teologia bíblica de Calvino, porém, faz que essa interpretação do texto não
seja inconsistente com o ensino geral da Escritura. E esse é geralmente o
caso quando os reformadores iam além do sentido óbvio do texto.
Na busca pela intenção autoral, os reformadores empregaram os recursos
disponíveis, como o conhecimento da língua que o autor empregou, usos
gramaticais, conhecimento das circunstâncias em que o autor escreveu sua
obra, entre outras coisas. Vejamos, por exemplo, a interpretação que
Calvino faz em seu comentário de Mateus da difícil passagem “E foi habitar
numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que fora dito por
intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno” (Mt 2.23):
Mateus não deriva “nazareno” de “Nazaré”, como se existisse uma conexão
etimológica real e certa entre as duas palavras. O que temos aqui é uma mera
alusão. Nazir [em hebraico] significa santo e devotado a Deus, e por sua vez
deriva-se de nazar, que significa separado. É certo que os judeus chamavam
certa flor (aliás, a insígnia da coroa real) de nazar. Mas não há qualquer
dúvida de que aqui Mateus usou a palavra no sentido de santo. Em nenhuma
passagem lemos que os nazarenos floresceram; mas lemos em Números 6.4
que eles eram separados para Deus conforme prescrito na Lei. Portanto,
devemos entender a declaração de Mateus da seguinte forma: apesar de que
José foi habitar em um canto da Galileia [isto é, em Nazaré] por medo, Deus
tinha um propósito maior; pois Nazaré havia sido determinada para ser o lar
de Cristo, de forma que ele pudesse portar o nome de nazareno, que era
apropriadamente seu.
Uso de outras obras
Os reformadores fizeram uso abundante da erudição antiga, citando
comentaristas medievais, as obras dos pais apostólicos e obras de
contemporâneos. Apesar de insistirem na necessidade da iluminação do
Espírito para a correta interpretação das Escrituras, não desprezaram o que
o Espírito já havia revelado a outros antes deles.
Os reformadores defendiam-se da acusação dos papistas de que estavam
introduzindo novos ensinos na igreja de Cristo, apontando para a doutrina
da justificação pela fé nos escritos de Agostinho e de outros Pais da igreja.
E não somente com relação a essa doutrina, mas também em relação às
demais, sempre citavam as obras antigas para mostrar que estavam em
harmonia com as antigas doutrinas apostólicas da graça.
O ideal do ad fontes, o retorno às fontes documentais, do Sola Scriptura,
levou-os a realizar uma análise crítica do pensamento teológico da igreja
antiga e medieval. Lutero, na verdade, era bastante crítico dos escritos dos
pais:
Devemos ler os Pais cautelosamente, e pesá-los na balança dourada, pois
frequentemente tropeçam e se desviam, e misturam com seus livros muitas
coisas dos monges. Agostinho teve mais trabalho para se livrar dos escritos
dos Pais do que combater os heréticos… Quanto mais leio os escritos dos
Pais, mais me ofendo, pois apesar da sua reputação e autoridade, diminuíram
o valor dos livros e escritos dos santos apóstolos de Cristo.
Embora colocassem em primeiro plano a autoridade das Escrituras, os
reformadores não tinham a intenção de negar a História e seu
desenvolvimento. O princípio escriturístico não consistia em negar a
História, mas em introduzir, no próprio seio dessa, um princípio crítico que
permitisse julgá-la, bem como as doutrinas dos pais. Para os reformadores e
seus sucessores, os pais e os escolásticos tinham autoridade na medida em
que concordavam com a Escritura.
Linguagem figurada
Embora preferissem uma leitura literal das Escrituras, os reformadores
estavam perfeitamente conscientes de que determinados textos eram mais
bem interpretados como sendo figurados. Curiosamente, a Igreja Católica às
vezes preferia seguir uma interpretação literal desses mesmos textos. Dois
exemplos podem ser dados. Primeiro, os textos referentes à Ceia do Senhor.
Os reformadores em geral, à exceção de Lutero, entenderam que a
expressão “isto é o meu corpo” devia ser entendida não literalmente, ao
contrário dos adeptos da transubstanciação.
Segundo, a controvérsia entre religião e ciência que surgia já naqueles
dias. A tese de Copérnico, de que a Terra se movia em torno do sol, estava
ganhando grande aceitação. Curiosamente, a Igreja Católica preferiu seguir
aqui uma interpretação literal dos textos bíblicos que falavam sobre o
movimento do sol em torno da terra (Js 10.13; Sl 19.6; etc.). Na
Contrarreforma, o cardeal jesuíta Roberto Belarmino (1615) rebateu um
monge carmelita que sustentava, como Galileu, a teoria do movimento da
terra. Belarmino argumentou que os pais da igreja entendiam as passagens
bíblicas sobre o movimento do sol em torno da Terra no sentido literal. Para
ele, isso era matéria de fé, pois quem negava esses textos era tão herético
como quem negava que Jesus nasceu de uma virgem. E essa foi a posição
da Igreja Católica. Em oposição a essa interpretação literalista, Calvino,
mesmo seguindo o sistema astronômico prevalente na época (geocêntrico),
entendia que a diferença entre os autores bíblicos e os astrônomos era que,
na sua opinião, os primeiros escreveram de maneira popular, descrevendo
as aparências, aquilo que pessoas de bom senso fossem capazes de
compreender, sem usar aquela linguagem e descrições científicas que os
astrônomos usam em suas pesquisas. Ou seja, Calvino não entendia
literalmente tais passagens bíblicas, preferindo ver nelas uma acomodação
do Espírito Santo ao entendimento popular. Essa teoria da acomodação de
Calvino influenciou grandemente astrônomos seguidores de Copérnico, nos
países protestantes, como Edward Wright e provavelmente Johannes
Kepler.
Erasmo de Roterdã
Não podemos deixar aqui de mencionar a obra de Erasmo de Roterdã,
conhecido humanista católico. Ele teve importante contribuição para a
hermenêutica que se desenvolveu após a Reforma. Ele desejava alcançar o
sentido simples e original do texto bíblico e torná-lo significante para as
pessoas comuns de sua época. Seu alvo era simplificar o Cristianismo,
exaltar a razão e enfatizar a moralidade em vez do ritualismo que
prevaleceuna Idade Média.
A hermenêutica de Erasmo tinha três pontos fundamentais: (1)
estabelecer qual o texto original pelo trabalho de manuscritologia bíblica;
(2) achar o sentido histórico, literal e original; (3) usar o sentido tropológico
ou moral, ao qual ele dava importância fundamental, até mais que o sentido
literal.
Por causa de suas posições teológicas controversas, especialmente sua
defesa do pleno livre-arbítrio do homem, Erasmo não recebeu apoio nem de
calvinistas nem de luteranos, isolando-se do movimento da Reforma.
Conclusão
Os princípios interpretativos dos reformadores que vimos neste capítulo
serviram de base para o surgimento da interpretação gramático-histórica
que veio a prevalecer na igreja após a Reforma. Eles viriam a ser
desenvolvidos e adotados pelo protestantismo ortodoxo em geral desde
então, e se tornaram conhecidos pelo nome de método gramático-histórico
de interpretação bíblica. Entretanto, o grande ímpeto hermenêutico da
Reforma, que representou um retorno às Escrituras, sofreu diversas
influências no período Pós-Reforma, como veremos a seguir.
Podemos ver, a esta altura de nosso estudo, que Deus não permitiu que
sua igreja ficasse indefinidamente privada da verdade. Podemos também
ver que apesar dos desvios hermenêuticos e doutrinários que prevaleceram
na Idade Média, Deus preservou uma semente, pequenos oásis aqui e acolá.
E podemos ainda ver que Deus levanta homens no tempo oportuno, para
guiar e abençoar o seu povo. Uma lição importante para nós é o equilíbrio
hermenêutico alcançado pelos reformadores. Eles conseguiram manter
juntas a resposta a duas perguntas importantes: o que a Bíblia significou no
passado (exegese) e o que ela significa para nós hoje (aplicação). Essa
relação entre a busca do sentido literal e a aplicação desse sentido aos
nossos dias representa a união do que havia de melhor nas escolas de
Alexandria e Antioquia.
Capítulo 11
Escolásticos e puritanos
Introdução
Alguns estudiosos consideram que o período após a Reforma, também
conhecido como escolasticismo protestante, foi negativo para a
interpretação cristã das Escrituras e representou, em vários aspectos, um
retrocesso das conquistas hermenêuticas dos reformadores. Podemos
concordar que nem tudo correu bem nos arraiais protestantes nessa área,
mas seria uma radicalização injustificada rejeitar in totum o trabalho dos
estudiosos protestantes escolásticos.
Dogmatismo e controvérsias
Um dos estudiosos mais críticos dos intérpretes dessa época é o estudioso
liberal Frederic Farrar. Sua obra History of Interpretation (1961) analisa e
critica virulentamente toda a exegese feita pela Igreja Cristã antes do
surgimento do método histórico-crítico, defendendo que a igreja havia se
confundido na compreensão das Escrituras até então. O preconceito de
Farrar foi corretamente corrigido por Moisés Silva, na obra Has the Church
Misread the Bible? [A Igreja tem lido a Bíblia incorretamente?], 1987.
Apesar disso, as ideias de Farrar têm influenciado os estudiosos da história
da interpretação da Bíblia. Sua opinião negativa do período do
escolasticismo protestante representa bem a de outros estudiosos, que
podemos resumir em quatro pontos:
1) A academia Pós-Reforma reintroduziu o escolasticismo cristão da
Idade Média, pois promoveu o confessionalismo, o sobrenaturalismo, em
detrimento do aspecto humano das Escrituras, e a crença num conceito de
inspiração verbal das Escrituras que ia além daquele dos reformadores. Um
exemplo citado é a Formula Consensus Helvetica, elaborada em 1675, na
qual se afirma que até mesmo os sinais usados para a vocalização do texto
hebraico – que nem faziam parte dos manuscritos originais do Antigo
Testamento – foram divinamente inspirados e por isso eram inerrantes.
2) Segundo Farrar, a exegese passou a ser controlada pela dogmática,
isto é, pelo conjunto de doutrinas características dos reformadores. Com
isso, o lado humano das Escrituras foi minimizado e foram impostos limites
doutrinários à liberdade de investigação.
3) Além disso, já que a autoridade da hierarquia da Igreja Católica para
interpretar corretamente as Escrituras havia sido rejeitada, o caos instalou-
se com as muitas e diferentes interpretações e ideias entre os protestantes.
4) Para os críticos, os intérpretes da Pós-Reforma tornaram a Bíblia num
“papa de papel”, ao colocá-la no lugar da interpretação infalível da igreja.
Como anteriormente vimos, os reformadores rejeitaram a doutrina de que a
interpretação final das Escrituras era dada pela hierarquia católica,
encabeçada pelo papa, e sujeitaram-se à autoridade unicamente das
Escrituras, como a melhor intérprete de si mesma. Para Farrar e outros, isso
representou apenas a transferência do conceito de infalibilidade do papa
para um livro, ou seja, a troca de um “papa” humano por outro de papel.
Segundo alguns críticos, foi esse tipo de interpretação que veio a
dominar o período subsequente e a marcar a hermenêutica reformada.
Entendendo a hermenêutica da Pós-Reforma
Sem negar que houve extremos e radicalizações em setores da academia
Pós-Reforma, dizemos que o momento em que ela viveu não permitia
caminhos muito diferentes dos que ela tomou.
As controvérsias internas
A tendência à sistematização do ensino bíblico e o surgimento de confissões
e tratados teológicos nasceram das controvérsias doutrinárias entre os
protestantes. Essas controvérsias eram inevitáveis, desde que a Reforma
havia rejeitado a autoridade final da hierarquia da Igreja de Roma e
introduzido o conceito do livre exame das Escrituras. Com isso, vários
entendimentos diferentes apareceram, provocando o desejo de uma
formulação sistemática cada vez mais detalhada. Um exemplo é a produção
da já mencionada Formula Consensus Helvetica, cujo maior proponente foi
Francis Turretine (1623-1687), também conhecido como Turretin ou
Turretini, um teólogo italiano que ensinou em Genebra. Foi o maior
oponente de ideias universalistas (que todos serão salvos) que apareceram
em sua época. É geralmente considerado como o melhor representante do
escolasticismo reformado do século 17. A Formula Consensus Helvetica é
uma espécie de confissão de fé contra as tendências teológicas
universalistas e liberais de sua época. Elaborada pelos franceses calvinistas
da Suíça, ela defendia a inspiração das Escrituras e sua inerrância, a
depravação total do homem, a imputação da culpa de Adão, a
impossibilidade de salvação por meio da revelação natural e que a expiação
de Cristo foi restrita aos eleitos. É importante lembrar que não foram eles
quem “inventaram” essas doutrinas, apenas lhes deram ênfase diante do
momento que atravessavam.
A Contrarreforma
O desejo de sistematizar em detalhes a doutrina cristã era também uma
questão de sobrevivência: a Contrarreforma, movimento católico de reação
aos protestantes, vinha desde o século 16 recuperando o terreno perdido,
por meio dos jesuítas. Era preciso que as igrejas reformadas tivessem
respostas claras e prontas para seus membros. Catecismos e tratados eram a
saída mais rápida e fácil. Fazer credos em resposta a questões polêmicas já
era costume da igreja antiga, que em quatro concílios ecumênicos produziu
vasto material teológico confessional. Portanto, a produção confessional
dos intérpretes da Pós-Reforma não representa uma inovação na igreja, mas
o retorno a uma prática antiga.
Necessidade de catequese
Também devemos lembrar que no período da Pós-Reforma havia uma
preocupação maior entre os estudiosos protestantes de harmonizar e
sintetizar o ensino das Escrituras de forma racional, para que o mesmo
pudesse ser mais bem compreendido e ensinado. Os catecismos foram
produzidos também com esse objetivo. Em 16 de março de 1529 Martinho
Lutero publicou a primeira edição do seu Enchridion, ou Catecismo Menor,
com o objetivo de transmitir o evangelho de maneira clara e direta aos
jovens de sua época, que viviam em estado lamentável de imoralidade e
desconhecimento de Deus. Esse catecismo estava dividido em perguntas e
respostas; contribuiu grandemente paralevar avante a obra de reforma
religiosa, sendo largamente usado nas escolas públicas e nos lares.
Preservação da doutrina reformada
Outro fator a ser lembrado é o profundo desejo dos estudiosos protestantes
daquela época de preservar a doutrina bíblica e rechaçar os falsos ensinos
de Roma. A melhor maneira era organizar cuidadosamente a doutrina
protestante, de forma sistemática, para que pudesse servir de manual
doutrinal e confessional da igreja. Foi nesse contexto que apareceram as
confissões protestantes mais importantes, que serviriam mais tarde para a
preservação doutrinária do Protestantismo histórico.
Papa de papel?
Finalmente, existem profundas diferenças entre a doutrina reformada da
autoridade das Escrituras e a católica da infalibilidade papal, e as
consequências de ambas para a vida da igreja. A crítica de que os
reformadores adotaram um “papa de papel” parece-nos na verdade dirigida
à doutrina reformada da infalibilidade das Escrituras. Qualquer que seja o
sistema religioso ou hermenêutico, a questão final é quem decide qual a
interpretação correta. A Igreja Católica resolveu essa questão criando a
ideia de uma hierarquia eclesiástica encabeçada por um papa infalível e
descendente espiritual dos apóstolos de Cristo. Seitas geralmente têm seus
líderes e fundadores. Para os reformados, a autoridade máxima é o Espírito
de Deus falando por meio das Escrituras. Por mais subjetivo que isso possa
parecer, essa abordagem tem garantido nos anos de existência da igreja
reformada uma coesão de pensamento nos pontos fundamentais do
Cristianismo, em meio à enorme variedade que caracteriza os protestantes.
Os puritanos
Em nossa história dos intérpretes da Pós-Reforma não podemos deixar de
mencionar os puritanos, que viveram na parte final desse período. Além de
vastíssima obra literária, elaboraram a última das grandes confissões de fé
reformadas, a Confissão de Fé de Westminster. Como intérpretes das
Escrituras, eles merecem atenção à parte.
O apelido “puritanos” foi colocado por seus inimigos, para ironizar o
ideal de pureza que defendiam. O puritanismo não era uma denominação,
mas um movimento dentro da igreja da Inglaterra e das igrejas
independentes, que desejava maior pureza na igreja, no Estado e na
sociedade. Queriam que a Reforma, iniciada antes, fosse completa.
Acusavam que a igreja inglesa havia parado entre Roma e Genebra.
Estavam insatisfeitos porque ela havia se reformado apenas parcialmente,
conservando ainda muitas coisas do catolicismo que consideravam como
contrárias às Escrituras.
Muitos puritanos eram ministros ordenados da igreja da Inglaterra e das
Igrejas Presbiterianas, Batistas e congregacionais. Escreveram e produziram
muito material teológico, em que encontramos claramente seu método
hermenêutico. Nosso objetivo é procurar resumir as principais
características do seu sistema de interpretação bíblico.
Características da interpretação dos puritanos
Não podemos falar em rigor que havia um método hermenêutico adotado
conscientemente por todos os autores puritanos. Na verdade, existe até
alguma diversidade entre eles. No geral, eles continuaram na tradição
exegética dos reformadores, a qual estava estampada na literatura que os
mesmos produziram e que alimentava o movimento puritano. Destaquemos
alguns aspectos do modo pelo qual, no geral, eles liam e entendiam as
Escrituras.
Alto apreço pelas Escrituras
À semelhança dos reformadores, os intérpretes puritanos tinham alto apreço
pelas Escrituras, mantendo a sua divindade, autoridade e centralidade na
vida da igreja e do cristão individualmente. Eis alguns exemplos do que
disseram a esse respeito:
As coisas que estão escritas são extratos e cópia da Bíblia que Deus tem no
seu coração, e que foi escrita desde a eternidade (Thomas Goodwin).
Cristo desempenhou o ofício de profeta, entre outras coisas, pelo ministério
de homens santos, movidos por seu Espírito. Dessa forma, ele entregou a sua
Palavra, que foi escrita para ser uma regra eterna de fé e obediência para a
igreja (John Owen).
Pense, a cada linha que você lê, que Deus lhe está falando (Thomas Watson).
Escritura com Escritura
Um dos impactos da doutrina das Escrituras em sua hermenêutica foi o de
sempre entender uma passagem das Escrituras à luz de outras que tratassem
do mesmo assunto. Nisso, eram seguidores dos reformadores, que adotavam
o mesmo procedimento, conforme visto no capítulo anterior. Num sermão
sobre a agonia de Cristo, em Lucas 22.44, Jonathan Edwards, o mais
conhecido e influente dos puritanos americanos, expõe o sentido do verbo
“agonizar” à luz do seu uso em diversas partes do Novo Testamento e do
seu sentido na época de Cristo:
A palavra “agonizar” significa propriamente um conflito intenso, como o
que se percebe nas corridas e nas lutas. Portanto, em Lucas 13.24, “Esforçai-
vos por entrar pela porta estreita”, a palavra traduzida como “esforçai-vos” é
literalmente agonizesthe, “agonizai por entrar pela porta estreita”. Esta
palavra é especialmente usada para o tipo de conflito que naqueles dias era
exibido nos Jogos Olímpicos, nos quais os homens lutavam para dominar os
demais nas corridas e lutas e outras modalidades.
Nesse mesmo sermão, Edwards declara aos seus ouvintes:
Quando você ler as Escrituras, observe como as coisas são apresentadas.
Atente para o fluxo do discurso e compare uma Escritura com outra. Pois a
Escritura, pela harmonia das suas diferentes partes, lança uma grande luz
sobre si própria.
Os puritanos apegaram-se a uma regra que veio a ser conhecida como o
“princípio regulador”: todas as coisas na vida, na igreja (especialmente no
culto) e no Estado devem estar debaixo da autoridade da Escritura. Ao
elaborarem a Confissão de Fé de Westminster fizeram abundante uso das
Escrituras para provar praticamente cada frase que escreveram.
Em seu Comentário Bíblico o puritano Matthew Henry explica Êxodo
26.31, “Farás também um véu de estofo azul, e púrpura, e carmesim, e linho
fino retorcido”, à luz do Novo Testamento:
Esse véu servia como partição entre o Lugar Santo e o Santo dos Santos, o
que impedia que alguém olhasse dentro do Santo dos Santos. O apóstolo nos
diz qual o sentido deste véu, Hebreus 9.8: que a lei cerimonial não poderia
aperfeiçoar os adoradores, e que sua observância não levaria pessoas ao céu.
Predominância do sentido natural
Em suas obras, os intérpretes puritanos fazem abundantes citações da Bíblia
e, via de regra, citam-na de acordo com o sentido natural das palavras. O
alvo deles era entender o sentido original do texto, extrair as doutrinas ali
contidas, e aplicá-las aos seus leitores. Citemos o exemplo do conhecido
puritano John Bunyan em sua obra A Salvação do Pecador de Jerusalém.
Esse tratado evangelístico é baseado nas palavras de Lucas 24.47, “e que
em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas
as nações, começando de Jerusalém”. Bunyan extrai da passagem o
princípio da graça e da misericórdia de Deus para com os piores pecadores,
pois Jerusalém era a cidade que, desde a Antiguidade, havia rejeitado e
matado os enviados de Deus, e havia acabado de rejeitar e matar o Filho de
Deus. Apesar disso, Jesus determinou aos seus apóstolos que fossem
prioritariamente anunciar a salvação aos pecadores de Jerusalém. Nessa
abordagem, Bunyan interpreta o texto literalmente, sem alegorizar ou
espiritualizar a cidade de Jerusalém, extrai a doutrina ali contida, e aplica-a
aos seus dias.
Em sua obra A Serious Call to a Devote Life (Um Sério Apelo a Uma
Vida Devotada), William Law disse o seguinte sobre a interpretação de João
17.16, “Eles não são do mundo, como também eu não sou”:
Podemos nos enganar quanto quisermos com comentários vãos e brandos
sobre essas palavras; mas elas são entendidas, e devem ser entendidas, em
sua simplicidade e clareza por todo aquele que as lê, no mesmo espírito que
nosso Salvador as pronunciou. Entendê-las como tendo um sentido diferente
e menos significativo, é deixar a sabedoria carnal repelir aquilo pelo qual
seria destruída.
Isso nãoquer dizer que os intérpretes puritanos não estavam atentos para
alegorias e sentidos figurados na Bíblia. Eis a opinião do grande John
Owen, em sua obra Christologia, acerca do livro de Cantares de Salomão:
Alguns argumentam que as descrições de Cristo dadas nesse livro são
alegóricas, do que nada se pode concluir. As expressões são figurativas e a
estrutura do livro é alegórica. Mas as coisas significadas são reais e
substanciais; e as metáforas usadas são apropriadas, de acordo com a
analogia da fé, com o alvo de transmitir uma compreensão espiritual e o
sentido das coisas propostas nesse livro.
O que Owen está dizendo é que o sentido alegórico e figurado já fazia
parte da intenção autoral, e que ler Cantares em seu sentido natural é lê-lo
alegoricamente.
A Bíblia é sobre Cristo
Continuando a ênfase dos reformadores, os puritanos entendiam que Cristo
era o tema central das Escrituras. Nos comentários que escreveram sempre
procuravam mostrar como esta ou aquela passagem se relaciona com Cristo.
Veja, por exemplo, o que escreveu Isaac Ambrose, um renomado intérprete
puritano, acerca do tema central das Escrituras:
(1) Cristo é a verdade e a substância de todos os tipos e símbolos do AT; (2)
Cristo é a substância e o conteúdo do pacto da graça; (3) Cristo é o centro e
o ponto de encontro de todas as promessas; (4) Todos os sacramentos do AT
e NT apontam para Cristo; (5) As genealogias da Escritura apontam para
Cristo; (6) As cronologias da Escritura nos mostram as épocas e tempos de
Cristo; (7) As leis do AT servem como aio (pedagogo) para nos levar a
Cristo; (8) Cristo, portanto, é a própria substância, centro, escopo e alma das
Escrituras.
De modo similar, Owen, em sua Christologia, entende que Cantares de
Salomão é um livro sobre Cristo:
O livro inteiro de Cantares é uma declaração mística do amor mútuo entre
Cristo e a igreja… uma grande parte do livro consiste em descrições da
pessoa e do amor de Cristo que têm como alvo tornar Cristo desejável à
nossa alma.
Necessidade de conversão e iluminação do Espírito Santo
Os intérpretes puritanos insistiam na necessidade da conversão a Cristo
como condição para uma salvadora compreensão das Escrituras. Em sua
famosa obra, Tratado sobre os Sentimentos Religiosos, Jonathan Edwards
escreveu sobre a possibilidade de alguém não convertido interpretar
corretamente o sentido da Escritura:
Muitas pessoas sem conhecimento espiritual podem explicar os tipos [da
Bíblia]. É possível que alguém seja capaz de interpretar todos os tipos e
parábolas, enigmas e alegorias da Bíblia, e não ter um único raio de luz
espiritual em sua mente.
Nesse contexto, a iluminação do Espírito Santo era requerida para essa
salvadora compreensão da mensagem da Bíblia. À semelhança dos
reformadores, os intérpretes puritanos insistiam que sem a iluminação do
Espírito ninguém pode compreender e aceitar o sentido das sagradas letras.
Eis o que dois famosos estudiosos puritanos escreveram sobre o assunto:
Um princípio claro do Cristianismo é que oração constante e fervorosa pela
assistência do Espírito é um meio indispensável para se obter o
conhecimento da mente de Deus revelada na Escritura, e que sem oração, os
demais meios (métodos) de nada nos valerão (John Owen).
Antes e depois de ler as Escrituras, ore fervorosamente para que o Espírito
que a inspirou exponha o seu sentido a você e o guie na verdade (Richard
Baxter).
Isso não quer dizer que os estudiosos puritanos desprezavam o uso de
métodos de interpretação e o estudo das línguas originais. Bem ao contrário,
a grande maioria deles era composta de homens treinados nas línguas
originais, em latim, filosofia, literatura, artes e música. Outros ainda eram
treinados em matemática e astronomia.
Intenção autoral
A regra geral dos estudiosos puritanos era esta: o sentido de uma passagem
é o sentido literal, natural, óbvio e que era a intenção do autor. Também
nesse ponto eram seguidores dos reformadores, que haviam reagido contra
o conceito medieval de que havia vários sentidos num único texto. Para
eles, cada texto tinha apenas um sentido, que era o pretendido pelo autor
humano:
Se você deseja descobrir o sentido correto de uma passagem difícil, preste
atenção ao seu contexto, coerência e escopo (William Bridge).
Para Owen “Não existe nenhum sentido numa passagem além daquele
que está contido nas palavras”. Deste modo, em uma carta a um clérigo de
Westmoreland, ele diz:
“Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar
Deus a sua misericórdia” (Rm 9.16). Quanta controvérsia acadêmica tem
havido sobre o sentido dessas palavras! Mas elas não significam um til a
mais ou a menos daquilo que o apóstolo disse.
Como era o caso com os intérpretes antioquianos e reformados, os
puritanos entendiam que a intenção do autor humano era coincidente com a
intenção do Espírito Santo ao inspirar o texto. Essa intenção, que podia ser
percebida nas palavras usadas pelo autor humano, às vezes era referida
como sendo do autor humano ou do próprio Espírito, como na análise de
Owen em sua Christologia, do texto de Isaías 28.16, “Portanto, assim diz o
SENHOR Deus: Eis que eu assentei em Sião uma pedra, pedra já provada,
pedra preciosa, angular, solidamente assentada; aquele que crer não foge”:
Entre as mais ousadas tentativas da presente época contra os princípios vitais
da religião está a de alguns que se associam aos judeus e tentam aplicar esta
promessa ao rei Ezequias. A violência que fazem dessa forma à mente do
Espírito Santo [ou seja, o sentido da passagem] pode ser evidenciada por
cada palavra do contexto, bem como pela interpretação e aplicação dessas
últimas palavras pelos apóstolos.
Desejo de aplicar as Escrituras
A interpretação dos puritanos era marcada pela dimensão pastoral do
ministério deles. Lembremos que quase todos os puritanos que se
destacaram pelos seus escritos eram também ministros do evangelho, com
preocupações pastorais e práticas. Eles sempre procuravam entender as
Escrituras para em seguida tirar aplicações e “usos” práticos para seu
rebanho. O sermão puritano clássico tinha uma primeira parte em que a
interpretação do texto bíblico era feita e uma segunda parte, na qual se
anunciavam os “usos” práticos da passagem. Havia sermões com até mais
de 30 “usos” e “subusos”!
John Bunyan, mais conhecido por sua obra O Peregrino, escreveu
diversos outros livros voltados para a orientação da vida cristã. Vemos
abaixo um exemplo, tirado de O Comportamento Cristão, de como ele
procura extrair das Escrituras princípios para o modo como o homem
cristão deveria tratar sua esposa crente:
Tens tu uma esposa? Se ela é crente, então, deves agradecer a Deus por ela,
pois “a mulher virtuosa é a coroa do seu marido” (Pv 12.4); e “o seu valor
muito excede o de finas joias” (Pv 31.10). Ela foi dada por Deus para tua
glória, “a mulher é glória do homem” (1Co 11.7). Deves amá-la com dupla
consideração, pois, primeiro, ela é tua carne e ossos, “porque ninguém
jamais odiou a própria carne” (Ef 5.29), e segundo, pois sois “herdeiros da
mesma graça de vida” (1Pe 3.7).
Observemos que Bunyan toma as Escrituras em seu sentido natural e
óbvio, extraindo delas os princípios práticos que regem a atitude dos
maridos. Owen, escrevendo sobre a doutrina da justificação pela fé, disse:
Nosso alvo com a exposição dessa doutrina é orientar, instruir e apaziguar as
consciências dos homens, e não uma mera curiosidade intelectual ou desejo
polêmico.
Eles também desejavam interpretar a vida e as experiências à luz das
Escrituras. Um exemplo é o sermão do pastor puritano Thomas Prince
(1727), pregado em Boston, no Salmo 18.7 “Terremoto: Obra de Deus e
Sinal da sua Indignação”. Prince pregou esse sermão após um terremoto ter
sacudido a região. Ele interpretou-o como sinal da ira de Deus contra seu
povo e pregou sobre a necessidade de arrependimento.
Alguns problemas com a interpretação puritana
Os puritanos produziram abundante material teológico, firmados em
princípios sólidos de interpretação bíblica cuja raiz estava na hermenêuticados reformadores. Entretanto, apesar de unânimes nos pontos que
caracterizaram o puritanismo, seus maiores intérpretes divergiam por vezes
entre si em questões polêmicas, o que seria de se esperar. Por exemplo, na
interpretação de Romanos 11.25-26, “… e assim, todo o Israel será salvo”:
• Richard Baxter: não concordava que Paulo se referia à futura conversão
dos judeus.
• Thomas Goodwin: achava que Paulo se referia à conversão dos ju-deus
e ao reinado literal de mil anos.
• William Perkins: Paulo se referia à conversão dos judeus, mas não a
um milênio literal.
Porém, é importante notar que essas divergências não se deviam a
diferentes modelos de interpretação que usavam. Todos seguiam
basicamente o mesmo padrão. Mas, outros fatores, como temperamento,
experiências diferentes, ministérios e interesses diferentes.
Controle da exegese pela dogmática
Um problema que aparecia às vezes na interpretação de alguns puritanos
era o de permitir que sua exegese fosse controlada por um aspecto teológico
dominante. Em alguns casos, a interpretação do Antigo Testamento foi
dominada pela ideia de que tudo que se aplicava a Israel no passado se
aplica à igreja no presente, havendo uma identificação quase total da igreja
com o povo de Israel no Antigo Testamento. Muitos puritanos que vieram
fugidos da Europa para os Estados Unidos (na época chamada de Nova
Inglaterra) viram a terra nova como Canaã, a terra prometida e a igreja ali,
como Israel. Como resultado, à semelhança de Israel, promoveram dias de
oração e jejum para buscar a Deus por causa das catástrofes como secas e
terremotos, interpretados como sinal da ira de Deus sobre eles. Também
implementaram em suas comunidades determinadas leis do Antigo
Testamento, promovendo a intolerância religiosa, a morte aos heréticos e às
bruxas e a observância legalista do dia de descanso.
Inconsistência
Outro problema era a inconsistência para com o método
gramáticohistórico. Como vimos, esse método tem como princípio
fundamental que o texto tem somente um sentido, que é o seu sentido
natural, aquele pretendido pelo autor humano. Embora aderissem de
coração a esse princípio, os intérpretes puritanos por vezes achavam
sentidos num texto que certamente não eram aparentes de uma leitura
natural, simples e óbvia. Um exemplo é a análise que John Bunyan faz de
Efésios 4.4, “há somente um corpo”, em sua obra Exortação à Unidade e
Paz. Após declarar que Paulo exorta os cristãos a manterem a unidade da
igreja, como corpo de Cristo, ele diz:
O apóstolo alude nessas palavras ao estado e composição do corpo natural, e
portanto nos informa aqui que existe uma analogia entre o corpo de Cristo e
o corpo natural do homem. No corpo natural deve haver um espírito, para
que ele viva (Tg 2.26). Assim é também no corpo místico de Cristo, cujo
Espírito é o Santo Espírito. O corpo tem juntas que unem todas as partes;
assim, o corpo místico de Cristo (Cl 2.19). O que une o corpo de Cristo é
aquele vínculo da paz, mencionado no verso 16 desse capítulo. O corpo
natural recebe nutrição e conselho da cabeça; assim, o corpo místico de
Cristo; ele é seu conselheiro e a igreja deve ouvi-lo. O corpo natural não
pode subsistir, caso seu espírito ou seu corpo esteja quebrado ou ferido, e as
juntas deslocadas. O corpo não suporta um espírito ferido ou machucado, “o
espírito abatido faz secar os ossos” (Pv 17.22). Da mesma forma acontece
com o corpo místico de Cristo.
Não nos parece que Bunyan tenha dito qualquer coisa contrária à fé
bíblica. O caso é que ele leu no texto muito mais do que o apóstolo Paulo
teria querido dizer naquele momento e com aquelas palavras. Embora a
analogia entre o corpo humano e o corpo místico de Cristo esteja correta, a
pergunta é se Paulo tinha todos esses pontos de analogia em mente ao
escrever a passagem.
Por vezes, alguns dos melhores intérpretes puritanos alegorizavam
demasiadamente o texto do Antigo Testamento em seu desejo de ver a
Cristo e a dispensação evangélica ali. Um exemplo é a abordagem do
famoso comentarista puritano John Gill ao salmo 19.1: “Os céus declaram a
glória de Deus…”. Escreve Gill:
Não devemos entender os céus literalmente, apesar destes, como trabalhos
manuais de Deus, declararem a glória das suas perfeições, especialmente a
sabedoria dele e seu poder. Essas coisas mostram que há um Deus, e que ele
é um Deus glorioso. Mas, devemos entender essa passagem como se
referindo a uma dessas três coisas (ou todas elas): (1) Às igrejas evangélicas,
frequentemente representadas pelo reino do céu, no Novo Testamento; (2)
Aos membros delas, como pessoas nascidas do alto, e cujas doutrinas são
provindas dos céus. Há uma semelhança muito grande entre eles e os céus,
pois ambos proclamam a glória das perfeições divinas. (3) Aos apóstolos e
primeiros pregadores da palavra, como aparece em Romanos 10.18; tinham
uma posição fixa no lugar mais alto na igreja.
Aqui, Gill interpreta, a princípio, literalmente, mas em seguida alegoriza
a passagem tendo como referência a dispensação do evangelho.
A influência da interpretação dos puritanos
A hermenêutica dos intérpretes puritanos é a continuação daquela dos
reformadores, especialmente dos calvinistas. Ela ficou preservada na vasta
literatura produzida pelos puritanos. Sua influência sobre os seguimentos
conservadores da Igreja Cristã se fez sentir nas décadas subsequentes,
porém logo caiu em desuso. Charles Spurgeon, o famoso pregador batista
reformado, considerado como o último dos puritanos, em meados do século
19, advertia aos seus estudantes de teologia contra as alegorizações do texto
bíblico que haviam se tornado prevalente em seus dias. No capítulo VII de
sua obra Lectures to My Students (Lições aos meus estudantes) ele
menciona vários exemplos. Determinado pregador usou o texto “Eu
também sonhei, e eis que três cestos de pão alvo me estavam sobre a
cabeça” (Gn 40.16) para discursar sobre a Trindade. Outro pregou em
“Quando te assentares a comer com um governador, atenta bem para aquele
que está diante de ti; mete uma faca à tua garganta, se és homem glutão”
(Pv 23.1-2), interpretando o glutão como o novo convertido, o governador
como sendo o pregador legalista, e o meter a faca na garganta como o
prejuízo que a pregação legalista causa aos novos crentes. William
Huntingdon, por sua vez, havia pregado em Isaías 11.8, “A criança de peito
brincará sobre a toca da áspide, e o já desmamado meterá a mão na cova do
basilisco”, interpretando a criança de peito como o novo convertido, a
áspide como os arminianos, a toca da áspide como a boca dos arminianos.
Em sua própria pregação Spurgeon era um seguidor da hermenêutica dos
intérpretes puritanos, mas era praticamente o último. Já em seus dias havia
surgido uma nova abordagem às Escrituras que haveria de mudar
profundamente a história da interpretação da Bíblia, que foi o método
histórico-crítico.
A influência da hermenêutica dos puritanos se percebe também na
Confissão de Fé de Westminster. Essa Confissão tornou-se a expressão de fé
não somente das igrejas reformadas da Escócia, mas das principais Igrejas
Presbiterianas no mundo. Nela percebemos com clareza traços da sua
hermenêutica. Os puritanos começaram a Confissão com um capítulo sobre
as Escrituras, o que já demonstra que para eles a Bíblia era a autoridade
final e máxima sobre todas as questões da vida. Nesse capítulo vemos
refletidas algumas das características da doutrina puritana das Escrituras e
do método pelo qual elas devem ser interpretadas, como por exemplo, a
inspiração, veracidade e autoridade das Escrituras (I, 1), a necessidade da
iluminação do Espírito para a compreensão salvadora da Bíblia (I, 6), a
Escritura é a sua melhor intérprete (interpretar Escritura com Escritura) (I, 7
e 9) e o texto só tem um sentido, que é o pretendido pelo autor humano (I,
9).
Conclusão
A interpretação Pós-Reforma representa, em muitos sentidos, a maturação
dos princípios hermenêuticos desenvolvidos na Reforma. Os escolásticos e
puritanos tinham pressupostos teológicos quanto às Escrituras que eramos
mesmos pressupostos dos reformadores, especialmente João Calvino. Para
Calvino, o conhecimento de Deus nos chega por intermédio das Escrituras,
pela iluminação do Espírito, e esse conhecimento é seguro e certo. Esse
fundamento teológico claramente influenciou a hermenêutica escolástica e
puritana.
Podemos nos indagar o que a experiência hermenêutica Pós-Reforma
nos ensina. Algumas lições podem ser tiradas. Uma delas é a forte ênfase na
pureza da igreja de acordo com as Escrituras somente. Também em nossos
dias existem muitas práticas religiosas que são impostas ao povo por líderes
e igrejas que se arrogam como porta-vozes de Deus. Aprendemos com os
escolásticos e puritanos que não podemos sujeitar nossa consciência a não
ser ao ensino claro das Escrituras em matéria de fé e prática. E esse ensino
pode ser alcançado por meio do modelo de interpretação iniciado pelos
reformadores e desenvolvido por eles, buscando o sentido único do texto,
que é o pretendido por seu autor.
Aprendemos também que, mais que nunca, a Igreja Evangélica deve
retornar à doutrina fundamental da Reforma, Sola Scriptura (somente a
Escritura). Somente isso evitaria a proliferação de líderes carismáticos
arrogando-se em canais inspirados de revelação divina. Outra lição prática é
que a iluminação do Espírito na leitura e interpretação das Escrituras não
garante a mesma compreensão a todos os cristãos quanto a matérias
secundárias à fé, como a História tem demonstrado. Isso nos deve levar a
duas coisas: entender e nos apegar ao que realmente é fundamental no
Cristianismo e ser tolerante quanto à interpretação de pontos secundários.
Capítulo 12
A interpretação das Escrituras na modernidade
Introdução
O Iluminismo, movimento surgido no início do século 18, foi em vários
aspectos uma revolta contra o poder da religião institucionalizada e contra a
religião em geral. As pressuposições filosóficas do movimento foram
moldadas, em primeiro lugar, pelo racionalismo de Descartes, Spinoza e
Leibniz, e pelo empirismo de Locke, Berkeley e Hume. Mesmo sendo
teoricamente contrárias entre si, as duas filosofias concordavam que Deus
tem de ficar de fora do conhecimento humano. Os efeitos combinados de
ambas produziu profundo impacto na hermenêutica bíblica.
Alguns dos filósofos mencionados acima não eram ateus. Berkeley, por
exemplo, atribuía às leis da natureza a vontade livre de Deus e afirmava que
não há absolutamente nenhuma existência afora Deus. Entretanto, a sua
visão mecanicista do mundo, se bem que adaptada à concepção de Deus
como criador, acabou no empirismo racional que se tornou o método da
ciência moderna, no qual não há espaço para o Deus que intervém.
Descartes, por sua vez, cria que o homem tinha sido feito à imagem de
Deus e atribuía ao Criador soberania e liberdade na criação das leis naturais.
Porém, ao entender que Deus havia dado a razão ao homem como
instrumento pelo qual reconhecer como racional e possível o que há na
natureza, terminou contribuindo para a elaboração de um método dedutivo
de investigação que afastou Deus para fora do conhecimento humano.
Da mesma maneira, os teólogos que adotaram as perspectivas filosóficas
da época não eram necessariamente agnósticos. Porém, a tentativa de
combinar o racionalismo com as verdades da fé cristã acabou num sistema
teológico chamado deísmo. Esse termo foi aplicado ao pensamento dos
livre pensadores dos séculos 17 e 18 que procuraram compatibilizar a
crença em Deus e os conceitos do Iluminismo. O deísmo afirma a existência
de Deus, mas nega sua intervenção na História humana, quer por meio de
revelação, quer por meio de milagres ou da providência.
Uma nova escola de pensamento teológico surgiu como resultado do
pensamento humanista, do racionalismo inerente na teologia inglesa, das
ideias mais abertas dos arminianos holandeses, e da luta dos latitudinários
ingleses contra a ortodoxia da Igreja Estatal inglesa. É claro, não foram
todas as universidades, seminários e igrejas da Europa que adotaram esta
nova escola de teologia. Houve reações e inclusive divisões, como na Igreja
Luterana na Alemanha, com o surgimento do liberalismo teológico, nome
que foi dado a esta nova hermenêutica ou metodologia. Mas ao final de
algumas décadas, a nova escola dominava os estudos acadêmicos da Bíblia.
Impacto do Iluminismo na interpretação da Bíblia
Podemos destacar diversos importantes resultados da influência do
Iluminismo sobre a interpretação bíblica. O principal, sem dúvida, foi a
negação da intervenção divina, quer na História, quer nos registros bíblicos.
A História passou a ser vista como simplesmente uma relação natural de
causas e efeitos. O conceito de que Deus se revela ao homem e de que
intervém e atua sobrenaturalmente na História humana foi excluído a priori.
As consequências deste conceito para a hermenêutica foram de tremenda
importância.
Rejeição dos relatos miraculosos
Os relatos bíblicos envolvendo a atuação miraculosa de Deus na História,
como a criação do mundo, os milagres de Moisés e os milagres de Jesus,
passaram a ser desacreditados e frequentemente explicados como
fenômenos naturais. Já que milagres não existem, segue-se que esses relatos
são fabricações do povo de Israel e depois da igreja, que atribuiu a Jesus
atos sobrenaturais que nunca aconteceram historicamente. Em sua obra Das
Leben Jesu [A vida de Jesus], o racionalista Heinrich Paulus rechaça a
importância dos milagres de Cristo, argumentando:
A coisa verdadeiramente miraculosa a respeito de Jesus é ele mesmo, a
pureza e santidade serena de seu caráter, o qual é genuinamente humano e
adaptado para ser imitado e emulado pela humanidade.
Tratando das ressurreições registradas nos evangelhos, ele diz que se
trata de “libertação de enterros prematuros”. Ele explica a existência desses
casos do seguinte modo:
O apego judaico por milagres fazia com que tudo fosse atribuído
imediatamente a Deus, esquecendo-se as causas secundárias;
consequentemente, não se pensava em como evitar esses casos horríveis de
enterros prematuros.
Distinção entre fé e História
Os milagres registrados na Bíblia passaram a ser vistos como criação da fé
dos israelitas e da igreja primitiva e não como fatos históricos. Os críticos
não pouparam inclusive a ressurreição de Jesus, pilar central da fé cristã.
Bruno Bauer, o polêmico teólogo liberal alemão, reduziu a ressurreição de
Cristo à fé dos discípulos:
É somente dessa forma indireta que sua Pessoa – que ele livremente ofereceu
na causa de sua vocação histórica e pelos ideais pelos quais viveu –
continuou a viver, à medida que seus ideais foram aceitos. Quando, na
crença de seus seguidores, ele reviveu e continuou a viver na comunidade
cristã, era o Filho de Deus que havia conquistado e vencido a grande
antítese.
Ainda de acordo com Bauer, os milagres de Jesus foram inventados
pelos seus discípulos após a morte dele, quando passaram a crer que ele era
o Messias:
Jesus tinha que realizar esses milagres, esses milagres espantosos, pois de
acordo com o que os evangelhos apresentam, ele é o Messias. Portanto, ele
precisa realizá-los para provar que é o Messias… Mas ele só começou a
fazer milagres quando, na fé da igreja primitiva, ele ressurgiu dos mortos
como Messias. Os fatos que ele ressurgiu dos mortos como Messias e que
fez milagres são um único e mesmo fato.
Num panfleto intitulado O Alvo de Jesus e seus Discípulos (1778),
Herman Reimarus, estudioso alemão, crítico radical e polêmico, defende
que os apóstolos haviam criado suas próprias ideias: “Estaremos
justificados em traçar uma absoluta distinção entre o ensino dos apóstolos e
o ensino que o próprio Jesus proclamou e ensinou em sua vida”. David
Strauss, influenciado pela obra de Reimarus, declara em sua obra Vida de
Jesus:
A declaração explícita que os Sinóticos atribuem a Jesus descrevendo a sua
morte como um sacrifício propiciatório, pode muito bem pertencer àquele
sistema de pensamento que se desenvolveu após a morte de Jesus. E o dito
que o Quarto Evangelho coloca em sua boca sobre a relaçãoentre sua morte
e a vinda do Parácleto parece ser uma profecia após o evento ter acontecido.
Erros nas Escrituras
A reação contra o dogmatismo que, segundo os racionalistas, havia
prevalecido no período do escolasticismo da Pós-Reforma, se fez sentir
especialmente na área da interpretação das Escrituras. Estudiosos
racionalistas começaram a insistir que o “dogma” da inspiração divina da
Bíblia deveria ser deixado fora da exegese, para que a mesma pudesse ser
feita de forma “neutra”. Eram contra qualquer dogma em geral como
pressuposto de leitura da Bíblia, pois entendiam que todas as convicções de
caráter teológico tendem a viciar os resultados da pesquisa bíblica. Eram
especialmente contrários à doutrina da inspiração pois a mesma impedia
que a Bíblia recebesse tratamento crítico, como um livro humano. Para se
interpretar corretamente a Bíblia, seria necessária uma abordagem “não
religiosa”, desprovida de conceitos do tipo “Deus se revela”, ou “a Bíblia é
a revelação infalível de Deus” ou ainda “a Bíblia não pode errar”.
Gradativamente, o conceito que a Bíblia é a infalível Palavra de Deus foi
sendo abandonado. Os próprios críticos “cristãos” começaram a vê-la como
um livro cheio de erros e contradições. Em um dos Wolfenbüttel Fragment,
Reimarus afirma:
Nenhum milagre pode provar que dois mais dois fazem cinco, ou que um
círculo tem quatro cantos. E milagres, por mais numerosos que sejam,
poderão remover a contradição que jaz na superfície e registros do
Cristianismo.
Johann Semler, alemão, teólogo luterano da Universidade de Hale, fez a
separação entre palavra de Deus e Escritura Sagrada. A palavra de Deus
está contida nas Escrituras, mas isto não significa que cada livro canônico
das Escrituras é a palavra de Deus. A Escritura Sagrada foi o registro
escrito, por homens falíveis, da palavra de Deus falada por estes homens.
Era falível e sujeita a erros. Com isso ele rejeitou o conceito da inspiração e
infalibilidade da Bíblia. A mesma deveria ser entendida somente como
testemunha de uma época histórica específica – sem relevância para hoje.
Karl Hase, teólogo alemão do início do século 19, declara em sua Leben
Jesu:
Os três primeiros evangelhos são compilações de várias narrativas que
surgiram independentemente. Suas narrativas são estruturas compostas e a
apresentação delas da História é de tal forma que ninguém pode ter uma
ideia de como ajuntar os eventos.
David Strauss, em um artigo sobre os evangelhos sinóticos, declara:
Podemos ver que os ditos de Jesus não foram dissolvidos pelo dilúvio da
tradição oral, mas foram levados pela torrente de suas posições originais e,
como pedregulhos rolados pelas águas, depositados em lugares [no relato
dos evangelhos] aos quais não pertencem propriamente.
Intérpretes protestantes que adotaram a abordagem crítica consideravam-
na como “neutra”, e justificavam-se afirmando que a Igreja Cristã, pelos
seus dogmas e decretos, havia obscurecido a verdadeira mensagem das
Escrituras. No caso dos evangelhos, os dogmas dos grandes concílios
ecumênicos acerca da divindade de Jesus haviam obscurecido a sua figura
humana, e tornaram impossível, durante muito tempo, uma reconstrução
histórica da sua vida. Essa impossibilidade, insistiam eles, tornou-se ainda
maior após a Reforma, quando a exegese dos evangelhos e da Bíblia passou
a ser controlada pelas confissões de fé e pela teologia sistemática.
Exegese controlada pela razão
Outro efeito da predominância do racionalismo na hermenêutica foi o
estabelecimento da razão como medida da verdade em questões teológicas.
Os intérpretes críticos argumentaram que para se chegar aos fatos por detrás
do surgimento da religião de Israel e do Cristianismo seria necessário
reconstruir os fatos daquela época, que estavam por detrás do texto bíblico,
mediante métodos racionais. O principal critério a ser empregado nessa
empreitada seria a razão, que os racionalistas entendiam como sendo a
medida suprema da verdade. Por exemplo, Franz Reinhard, estudioso
alemão desta época, numa obra que versava sobre os planos de Jesus para a
humanidade, assim se referiu aos milagres bíblicos:
Tudo o que chamamos de miraculoso e sobrenatural é para ser entendido
somente de forma relativa, e não é nada mais que uma exceção óbvia ao que
pode ser produzido por causas naturais. Um pensador cauteloso não deveria
se aventurar a pronunciar que um evento é tão milagroso que Deus não
poderia tê-lo produzido mediante causas naturais.
Alguns intérpretes que ainda criam que a Bíblia era a Palavra de Deus,
mas que estavam influenciados pelo espírito da época, tentaram defender a
presença do sobrenatural nas Escrituras. Estes deístas tentavam sustentar ao
mesmo tempo sua fé em Deus e nas Escrituras e um compromisso com o
racionalismo. É o caso de Karl Hase. Sua tentativa de manter as duas coisas
acaba destruindo o valor histórico e teológico dos milagres, como podemos
ver abaixo no seu pensamento sobre a ressurreição de Jesus. Para ele, tanto
faz se Jesus ressuscitou dos mortos ou simplesmente reviveu – ambos os
casos são compatíveis com a fé cristã:
Ambas as perspectivas históricas possíveis – que o Criador deu uma nova
vida a um corpo que estava realmente morto, ou que a vida latente em um
corpo que estava aparentemente morto reacendeu-se – reconhecem a
ressurreição como uma prova manifesta da Providência por causa de Jesus, e
ambas devem ser reconhecidas como cristãs.
O critério para a determinação da veracidade dos milagres passou a ser a
ciência racionalista que começava a predominar nas academias e
universidades. Ernest Renan, o cético francês, em sua obra polêmica La Vie
de Jesus, que lhe custou o emprego como professor de línguas semíticas no
College de France, afirmou:
Nenhum dos milagres, dos quais as antigas histórias estão repletas,
aconteceu sob condições científicas. A observação, que nunca foi contradita
sequer uma vez, nos ensina que milagres nunca acontecem, a não ser em
épocas e lugares nos quais as pessoas acreditam neles. Nenhum milagre
jamais ocorreu diante de um homem capaz de testar seu caráter miraculoso.
As pessoas comuns e os leigos não estão preparados para fazer isto. Requer
grande precaução e longos hábitos de pesquisa científica.
Mito
O conceito de “mito” começa a ser aplicado aos relatos miraculosos do
Antigo e Novo Testamentos. Mito era a maneira pela qual a raça humana,
em tempos primitivos, articulava aquilo que não conseguia compreender.
Segundo os intérpretes críticos, as fontes que os autores bíblicos usaram
estavam revestidas de mitos. Surge o termo “alta crítica” para se referir a
essa tarefa de “criticar” o relato bíblico e “limpá-lo” dos acréscimos
mitológicos. Outros estudiosos preferiram usar o termo “saga” para se
referir às lendas criadas por Israel sobre suas origens e pela Igreja
apostólica sobre Jesus.
Um dos pioneiros em explicar os evangelhos consistentemente como
sendo mitológicos foi David Strauss. Para ele, nenhum evangelho foi
escrito por uma testemunha ocular. Portanto, são misturas de História e
mito:
Apesar de que a vida terrena do Senhor cai dentro dos tempos históricos, se
assumirmos que somente uma geração passou entre sua morte e a
composição dos evangelhos, tal período teria sido suficiente para permitir
que o material histórico se misturasse com mitos. Tão logo um grande
homem morre as lendas se ocupam da sua vida.
Ernest Renan, o crítico francês, declarou: “Que os evangelhos são em
parte legendários é evidente, visto que estão cheios de milagres e do
sobrenatural”.
Separação dos dois Testamentos
Houve ainda uma reação dos estudiosos críticos contra a interpretação do
Antigo Testamento feita do ponto de vista do Novo, que era a interpretação
cristológica defendida e desenvolvida pelos reformadores. Argumentavam
que não se podia usar o Cristianismo como pressuposto para entendimento
dos escritos do Antigo Testamento, o qual deveria ser lido como um livro
judaico. Os críticos insistiam na separação dos Testamentos para que o
Antigo pudesse ser lido sem a interferência do Novoe para que o Novo
fosse lido sem a interferência das doutrinas e dogmas da igreja. Disseram
que só assim poderiam fazer justiça aos autores bíblicos.
A influência da dialética de Hegel
A filosofia hegeliana marcou o final desse período. Esse “método” (assim
considerado por Hegel) oferecia uma visão da História sem Deus,
explicando os acontecimentos, não em termos da intervenção divina, mas
em termos de um movimento conjunto do pensamento, fazendo sínteses
entre os movimentos contraditórios (tese e antítese). Hegel afirmava que o
processo dialético contínuo leva ao conhecimento absoluto. Um importante
teólogo alemão, Ferdinand Baur, usando a dialética de Hegel, tentou
explicar a história da igreja primitiva como sendo o embate entre o
Cristianismo de Pedro (legalista) e o de Paulo (mais aberto). A síntese
desses movimentos opostos foi o surgimento da Igreja Católica incipiente
no século 2º.
Principais metodologias críticas
Debaixo da influência do racionalismo, a tarefa da hermenêutica passou a
ser considerada como metodológica, ou seja, competia à hermenêutica
elaborar um método por meio do qual se pudesse, de maneira isenta de
pressupostos, e tendo a razão e a ciência moderna como ferramentas,
alcançar o sentido verdadeiro de um texto. Esse método ficou conhecido
como histórico-crítico. Podemos considerar que o método histórico-crítico
nasceu no final do século 17, debaixo da influência do Iluminismo e do
deísmo, desenvolveu-se durante os séculos 18 e 19, tendo seu fim,
historicamente, no século 20. Apesar de seu falecimento já ter sido
decretado desde a década de 1970, uma boa parte dos supostos resultados
“infalíveis” desse método continua ainda hoje a influenciar os estudos
acadêmicos da Bíblia, como fatos provados, em vez do que são na
realidade: meras hipóteses.
Alguns diferentes métodos de interpretação foram desenvolvidos durante
esse período. Eles divergiam entre si quanto ao propósito e metodologia,
porém tinham como pressupostos comuns as características da
hermenêutica racionalista. São eles a crítica das fontes, da forma, da
redação, literária, histórica, da tradição, etc. Nem sempre a nomenclatura
reflete unanimidade entre os estudiosos.
Crítica das fontes
Negando a integridade e a autoria tradicional dos livros bíblicos, a crítica
das fontes tem como objetivo identificar e isolar as supostas fontes escritas
que foram usadas pelos arquivistas, colecionadores ou editores para compor
o texto bíblico como o temos hoje, e estudar a “teologia” dessas fontes. A
forma mais popular é a “Hipótese documentária” de Graff-Wellhausen que
defende a existência de quatro fontes documentárias por detrás da
composição do Pentateuco. De acordo com esta hipótese, essas supostas
fontes foram produzidas em diferentes períodos e por diferentes autores,
que foram o Javista (J), o Eloísta (E), o Deuteronomista (D) e o Sacerdotal
(P).
J P
O Senhor planeja o Dilúvio. Viu o
SENHOR que a maldade do homem se
havia multiplicado na terra e que era
continuamente mau todo desígnio do
seu coração; então, se arrependeu o
SENHOR de ter feito o homem na terra,
e isso lhe pesou no coração. Disse o
SENHOR: Farei desaparecer da face da
terra o homem que criei, o homem e o
animal, os répteis e as aves dos céus;
porque me arrependo de os haver feito.
Porém Noé achou graça diante do
SENHOR (Gn 6.5-8).
O Senhor planeja o Dilúvio. A terra
estava corrompida à vista de Deus e
cheia de violência. Viu Deus a terra, e
eis que estava corrompida; porque todo
ser vivente havia corrompido o seu
caminho na terra. Então, disse Deus a
Noé: Resolvi dar cabo de toda carne,
porque a terra está cheia da violência
dos homens; eis que os farei perecer
juntamente com a terra. Faze uma arca
de tábuas de cipreste; nela farás
compartimentos e a calafetarás com
betume por dentro e por fora. Deste
modo a farás: de trezentos côvados será
o comprimento; de cinquenta, a largura;
e a altura, de trinta. Farás ao seu redor
uma abertura de um côvado de altura; a
porta da arca colocarás lateralmente;
farás pavimentos na arca: um em baixo,
um segundo e um terceiro (Gn 6.11-16).
A situação especial de Noé. Disse o
SENHOR a Noé: Entra na arca, tu e toda
a tua casa, porque reconheço que tens
sido justo diante de mim no meio desta
geração (Gn 7.1).
A situação especial de Noé. Porque
estou para derramar águas em dilúvio
sobre a terra para consumir toda carne
em que há fôlego de vida debaixo dos
céus; tudo o que há na terra perecerá.
Contigo, porém, estabelecerei a minha
aliança; entrarás na arca, tu e teus
filhos, e tua mulher, e as mulheres de
teus filhos (Gn 6.17-18).
Animais em pares e sete pares. De
todo animal limpo levarás contigo sete
pares: o macho e sua fêmea; mas dos
animais imundos, um par: o macho e
sua fêmea. Também das aves dos céus,
sete pares: macho e fêmea; para se
conservar a semente sobre a face da
terra. Porque, daqui a sete dias, farei
chover sobre a terra durante quarenta
dias e quarenta noites; e da superfície
da terra exterminarei todos os seres que
fiz. E tudo fez Noé, segundo o SENHOR
lhe ordenara (Gn 7.2-5).
Animais em pares. De tudo o que vive,
de toda carne, dois de cada espécie,
macho e fêmea, farás entrar na arca,
para os conservares vivos contigo. Das
aves segundo as suas espécies, do gado
segundo as suas espécies, de todo réptil
da terra segundo as suas espécies, dois
de cada espécie virão a ti, para os
conservares em vida. Leva contigo de
tudo o que se come, ajunta-o contigo;
ser-te -á para alimento, a ti e a eles.
Assim fez Noé, consoante a tudo o que
Deus lhe ordenara (Gn 6.19-22).
Início do Dilúvio. E aconteceu que,
depois de sete dias, vieram sobre a terra
as águas do dilúvio (Gn 7.10).
Início do Dilúvio. No ano seiscentos da
vida de Noé, aos dezessete dias do
segundo mês, nesse dia romperam-se
todas as fontes do grande abismo, e as
comportas dos céus se abriram (Gn
7.11).
Duração do Dilúvio. E houve copiosa
chuva sobre a terra durante quarenta
dias e quarenta noites (Gn 7.12).
Duração do Dilúvio. E as águas
durante cento e cinquenta dias
predominaram sobre a terra (Gn 7.24).
Fim do Dilúvio. Ao cabo de quarenta
dias, abriu Noé a janela que fizera na
arca e soltou um corvo, o qual, tendo
saído, ia e voltava, até que se secaram
as águas de sobre a terra. Depois, soltou
uma pomba para ver se as águas teriam
já minguado da superfície da terra; mas
a pomba, não achando onde pousar o
pé, tornou a ele para a arca; porque as
águas cobriam ainda a terra. Noé,
estendendo a mão, tomou-a e a recolheu
consigo na arca. Esperou ainda outros
Fim do Dilúvio. Sucedeu que, no
primeiro dia do primeiro mês, do ano
seiscentos e um, as águas se secaram de
sobre a terra. Então, Noé removeu a
cobertura da arca e olhou, e eis que o
solo estava enxuto. E, aos vinte e sete
dias do segundo mês, a terra estava
seca. Então, disse Deus a Noé: Sai da
arca, e, contigo, tua mulher, e teus
filhos, e as mulheres de teus filhos (Gn
8.13-16).
sete dias e de novo soltou a pomba fora
da arca. À tarde, ela voltou a ele; trazia
no bico uma folha nova de oliveira;
assim entendeu Noé que as águas
tinham minguado de sobre a terra.
Então, esperou ainda mais sete dias e
soltou a pomba; ela, porém, já não
tornou a ele (Gn 8.6-12).
A promessa de Deus de não mais
amaldiçoar a terra. Levantou Noé um
altar ao SENHOR e, tomando de animais
limpos e de aves limpas, ofereceu
holocaustos sobre o altar. E o SENHOR
aspirou o suave cheiro e disse consigo
mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a
terra por causa do homem, porque é
mau o desígnio íntimo do homem desde
a sua mocidade; nem tornarei a ferir
todo vivente, como fiz. Enquanto durar
a terra, não deixará de haver sementeira
e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia
e noite (Gn 8.20-22).
A promessa de Deus: a aliança do
arcoíris. Disse também Deus a Noé e a
seus filhos: Eis que estabeleço a minha
aliança convosco, e com a vossa
descendência, e com todos os seres
viventes que estão convosco: tanto as
aves, os animais domésticos e os
animais selváticos que saíram da arca
como todos os animais da terra.

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