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A BÍBLIA E SEUS INTÉRPRETES A Bíblia e seus intérpretes @ 2004, Editora Cultura Cristã. Todos os direitos são reservados. Conselho Editorial Cláudio Marra (Presidente) Produção Revisão Filipe Fontes Heber Carlos de Campos Jr. Hermisten Maia Pereira da Costa Joel Theodoro da Fonseca Jr. Elvira Castanon Misael Batista do Nascimento Tarcízio José de Freitas Carvalho Victor Alexandre Nascimento Ximenes Wilton Lima Editoração Zenaide Rissato Capa Magno Paganelli Diagramação de e-book L8641b EquireTech Lopes, Augustus Nicodemus A Bíblia e seus intérpretes/Augustus Nicodemus Lopes. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. ISBN 978-65-5989-001-9 1. Bíblia 2. Confissão de Westminster I. Título A posição doutrinária da Igreja Presbiteriana do Brasil é expressa em seus “símbolos de fé”, que apresentam o modo Reformado e Presbiteriano de compreender a Escritura. São esses símbolos a Confissão de Fé de Westminster e seus catecismos, o Maior e o Breve. Como Editora oficial de uma denominação confessional, cuidamos para que as obras publicadas espelhem sempre essa posição. Existe a possibilidade, porém, de autores, às vezes, mencionarem ou mesmo defenderem aspectos que refletem a sua própria opinião, sem que o fato de sua publicação por esta Editora represente endosso integral, pela denominação e pela Editora, de todos os pontos de vista apresentados. A posição da denominação sobre pontos específicos porventura em debate poderá ser encontrada nos mencionados símbolos de fé. Rua Miguel Teles Júnior, 394 – CEP 01540-040 – São Paulo – SP Fones 0800-0141963/(11) 3207-7099 www.editoraculturacrista.com.br – cep@cep.org.br Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio Batista Marra http://www.editoraculturacrista.com.br/ mailto:cep@cep.org.br Este livro é dedicado a Alderi, Davi, Heber, Mauro, Tarcízio e Valdeci, colegas cuja amizade foi forjada a ferro e fogo na fornalha da aflição. SUMÁRIO PREFÁCIO PARTE 1: A NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA Introdução As duas naturezas da Bíblia A Bíblia como livro humano Distanciamento temporal Distanciamento contextual Distanciamento cultural Distanciamento linguístico Distanciamento autoral A Bíblia como livro divino Distanciamento natural Distanciamento espiritual Distanciamento moral Entendendo o lado humano da Bíblia Erros de copistas Linguagem de acomodação Não sabemos tudo Traduções não são inerrantes Conclusão PARTE 2: OS PRIMEIROS INTÉRPRETES DO ANTIGO TESTAMENTO Introdução Capítulo 1 – Os autores do Antigo Testamento Introdução As Escrituras como edifício hermenêutico A transmissão escrita da Revelação O uso de fontes escritas Os profetas anteriores Os profetas posteriores Os escritos Características da interpretação das Escrituras no Antigo Testamento Atitude para com as Escrituras Propósito aplicativo Consciência de autoridade Leitura natural do texto Base para desenvolvimento da teologia bíblica Midrash Conclusão Capítulo 2 – Os rabinos do antigo Israel Introdução A Torá oral As fontes para o estudo da interpretação rabínica das Escrituras Midrashim Mishna Talmude A exegese rabínica Peshat Midrash Regras de interpretação O Novo Testamento e a exegese rabínica Era Paulo um rabinista? Os problemas com fontes rabínicas Conclusão Capítulo 3 – A comunidade do mar Morto Introdução A comunidade que produziu os Manuscritos Quem escreveu os Manuscritos? Crenças da comunidade Os escritos da comunidade A hermenêutica dos intérpretes de Qumran A relação entre os autores do Novo Testamento e os intérpretes do Qumran Semelhanças e diferenças Conclusão Capítulo 4 – Filo de Alexandria Introdução Quem foi Filo de Alexandria As obras de Filo Escritos diversos Exposições bíblicas Filo e as Escrituras O método exegético de Filo O caráter da alegoria de Filo A grande alegoria Filo e o Novo Testamento Conclusão Capítulo 5 – Flávio Josefo Introdução A vida de Josefo Josefo e Jesus Cristo As obras de Josefo As guerras dos judeus Antiguidades judaicas Outras obras Josefo e as Escrituras Josefo como intérprete da narrativa bíblica O objetivo apologético O objetivo teológico Josefo e alegoria Os escritores do Novo Testamento e Josefo Escatologia Atualização Resolução de problemas do texto Conclusão Capítulo 6 – Os autores do Novo Testamento Introdução A Bíblia dos autores do Novo Testamento O Antigo Testamento no Novo Dificuldades com as citações Princípios controladores da hermenêutica neotestamentária Cristo é a chave das Escrituras Os últimos dias já raiaram Tipologia A diferença entre tipologia e alegoria Interpretação como um dom espiritual apostólico O Espírito como Mestre A revelação dos mistérios Conclusão PARTE 3: OS INTÉRPRETES DA BÍBLIA NA HISTÓRIA DA IGREJA CRISTÃ Introdução Capítulo 7 – Alexandrinos e antioquianos Introdução A escola de Alexandria Surgimento da escola catequética de Alexandria Principais representantes da escola de Alexandria A escola de Antioquia Princípios de interpretação Exemplos de interpretação Influência e fracasso Conclusão Capítulo 8 – Os pais latinos Introdução Principais características hermenêuticas Preferência pela interpretação literal Contexto histórico Intenção do autor Alegorias ocasionais Escritura com Escritura Regra de fé da igreja Agostinho e Jerônimo Conclusão Capítulo 9 – Os intérpretes da Idade Média Introdução Características da interpretação bíblica dessa época O uso da quadriga Apoio às inovações da Igreja Medieval Aplicações práticas Ênfase na obscuridade das Escrituras Presença de uma tradição hermenêutica gramático-histórica Surgimento das escolas de teologia A influência de Rashi Publicação de obras que favoreciam a interpretação literal Surgimento das ordens mendicantes A tradução das Escrituras para o vernáculo A luta dos huerguenses na Espanha Conclusão Capítulo 10 – Os reformadores Introdução A Bíblia na Reforma Características da interpretação dos reformadores Ênfase no sentido literal, gramático-histórico do texto A necessidade da iluminação do Espírito Santo A necessidade de estudar as Escrituras Escritura com Escritura Intenção do autor humano Uso de outras obras Linguagem figurada Erasmo de Roterdã Conclusão Capítulo 11 – Escolásticos e puritanos Introdução Dogmatismo e controvérsias Entendendo a hermenêutica da Pós-Reforma As controvérsias internas A Contrarreforma Necessidade de catequese Preservação da doutrina reformada Papa de papel? Os puritanos Características da interpretação dos puritanos Alto apreço pelas Escrituras Escritura com Escritura Predominância do sentido natural A Bíblia é sobre Cristo Necessidade de conversão e iluminação do Espírito Santo Intenção autoral Desejo de aplicar as Escrituras Alguns problemas com a interpretação puritana A influência da interpretação dos puritanos Conclusão Capítulo 12 – A interpretação das Escrituras na modernidade Introdução Impacto do Iluminismo na interpretação da Bíblia Rejeição dos relatos miraculosos Distinção entre fé e História Erros nas Escrituras Exegese controlada pela razão Mito Separação dos dois Testamentos A influência da dialética de Hegel Principais metodologias críticas Crítica das fontes Crítica da forma Crítica da redação O Cristianismo liberal Conclusão Capítulo 13 – A chegada da pós-modernidade na interpretação bíblica Introdução Características da pós-modernidade A pluralidade da verdade A morte da razão O abandono da neutralidade A defesa do inclusivismo O conceito do “politicamente correto” O impacto na interpretação cristã das Escrituras Sincronia Pluralidade de interpretações Epistemologia Perda do sentido original A morte do autor Retorno à alegorese? Deslocamento do sentido A dicotomia liberal pós-moderna Conclusão Capítulo 14 – Vertentes formadoras dos intérpretes pós-modernos Introdução A vertente teológico-psicológica: Schleiermacher A vertente exegética: Bultmann A vertente teológica: Barth A vertente linguística: Saussure A vertente filosófica: Gadamer e Derrida Gadamer Derrida Conclusão Capítulo15 – Os intérpretes da Bíblia na pós-modernidade Introdução Estruturalismo como hermenêutica Estruturalismo bíblico A morte do estruturalismo Crítica da narrativa, ou nova crítica literária Principais características Hermenêutica reader response A hermenêutica da “teologia da libertação” Hermenêuticas feministas Desconstrucionismo O método de leitura desconstrucionista A influência na hermenêutica bíblica A hermenêutica da suspeita Os mestres da suspeita Características da sua hermenêutica Conclusão Capítulo 16 – Desafios atuais aos intérpretes da Bíblia A utilização do método histórico-crítico Os pressupostos do Racionalismo As limitações da crítica da forma O método histórico-crítico sob ataque Resposta às hermenêuticas pós-modernas A obra de E. D. Hirsch É impossível a recuperação da intenção do autor? As limitações da nossa natureza humana As distâncias histórica e cultural são impossíveis de transpor Diferenças quanto à hermenêutica reformada O caráter proposicional e inspirado da Revelação A possibilidade de conhecer Sentido disponível a todos Sentido único As Escrituras como referencial Conclusão CONCLUSÃO APÊNDICE A linguística e a hermenêutica bíblica: diálogo e desafios para o intérprete do século Introdução A abordagem linguística e suas tendências hoje Algumas áreas de estudo da macrolinguística Pragmática Linguística textual Análise do discurso Sociolinguística As correntes macrolinguísticas e o problema da busca do significado As perspectivas da interpretação bíblica: o diálogo com a linguística O diálogo entre linguística e hermenêutica Conclusão BIBLIOGRAFIA PREFÁCIO A ideia de escrever um livro sobre a história da interpretação da Bíblia nasceu da constatação que fiz, durante os cursos que tenho ministrado sobre o assunto nos últimos dez anos, de que falta na língua portuguesa material sobre o tema que esteja relativamente atualizado. Como nem todos têm facilidade para ler outros idiomas, nos quais existe bastante material sobre o assunto, pensei que uma “história da interpretação” em português podia ser muito útil, não somente aos professores e estudantes de instituições de ensino teológico, mas também ao público em geral interessado no estudo de hermenêutica e da própria Bíblia. Gostaria de apresentar este livro dizendo quatro coisas sobre ele. Primeira, ele foi escrito do ponto de vista reformado. Isso significa, pelo menos para mim, um compromisso com a perspectiva que os reformadores tinham da inspiração e infalibilidade das Escrituras e com os princípios hermenêuticos que utilizaram. Usamos o termo “Escrituras” não somente para nos referir ao Antigo e Novo Testamento, mas também para indicar o que acreditamos com relação aos mesmos. Muito embora o termo seja também usado por estudiosos que não acreditam em sua inspiração e infalibilidade, é aqui empregado com a mesma convicção dos autores do Novo Testamento, que o usaram para referir-se aos escritos produzidos sob a inspiração de Deus por homens por ele designados e escolhidos, de tal modo que se revestem de autoridade e infalibilidade divina. O leitor perceberá no decurso da obra que procurei entender e interagir com outras hermenêuticas e outras perspectivas sobre a Bíblia, bastante divergentes das minhas. Esta interação procurou indicar pontos positivos com os quais entendo que um reformado possa concordar e também fraquezas e defeitos que tornam determinados sistemas inadequados. Segunda, este livro não é meramente um livro de história. Simplesmente não consegui ser apenas descritivo. Como minha formação é essencialmente teológica, nem sempre consegui conter o ímpeto para a análise crítica. Ao descrever os intérpretes da Bíblia e seus modelos hermenêuticos frequentemente ofereço ao leitor uma análise dos mesmos à luz dos pressupostos já mencionados. Não me penitencio por isto; pois, afinal, para que nos serve a História, se não nos levar a analisar, refletir e aprender com os erros e acertos do passado? E quando se trata da história da interpretação, descobriremos que muitos modelos e ideias interpretativas de hoje nada mais são que reedições maquiadas de períodos passados – com os mesmos erros e acertos e outros novos. Terceira, este livro tem como um de seus alvos demonstrar que o método gramático-histórico, cujos traços podemos perceber desde os primórdios da história da interpretação, é o que melhor se adapta ao caráter divino e humano das Escrituras. Muito embora o sistema alegórico, o método histórico-crítico e as novas hermenêuticas possam nos dar detalhes interpretativos da Bíblia válidos e úteis, são parte de sistemas radicalmente diferentes daquele que suporta o método gramático-histórico. No meu entendimento, somente uma hermenêutica que leve a sério a inspiração e infalibilidade das Escrituras, a historicidade dos relatos bíblicos e a intencionalidade dos textos em comunicar sentido proposicionalmente, poderá abranger todos os aspectos envolvidos na interpretação de um texto divino e humano ao mesmo tempo. E o método gramático-histórico atende a estes requisitos. Quarta, este livro procura mostrar que embora existam semelhanças entre a hermenêutica praticada pelos autores bíblicos do Antigo e do Novo Testamento e o método gramático-histórico, devemos admitir o caráter especial da primeira em razão do fenômeno da inspiração divina. Não defendemos neste livro que a hermenêutica dos autores inspirados era gramático-histórica – certamente não era. Por outro lado, defendemos que o método gramático-histórico pode ser visto como o sistema interpretativo que melhor deu continuidade ao trabalho dos profetas e apóstolos ao interpretar as Escrituras em seus dias. Agradeço a contribuição do Rev. Dr. Mauro Meister, que graciosamente revisou os capítulos que tratam da interpretação do Antigo Testamento pelos diferentes grupos ao redor do período apostólico. Agradeço também ao Rev. Dr. Franklin Ferreira pela colaboração no capítulo que descreve a hermenêutica de Karl Barth. De inestimável valia foi a colaboração do Rev. Ms. Robério Odair Basílio, que não somente revisou todos os capítulos, mas também escreveu o apêndice sobre as tendências mais modernas da Crítica Literária. A todos minha profunda gratidão. Ao final do livro o leitor encontrará uma bibliografia contendo os livros, artigos e teses que foram consultados na elaboração da presente obra. Apesar do conhecido Dr. Martin Lloyd-Jones ter dito certa feita que um calvinista é aquele que pode colocar notas de rodapé para cada uma de suas afirmações, optei por indicar no texto apenas de forma geral as fontes de que me vali, em vez de utilizar notas bibliográficas de rodapé. As obras citadas no texto estão mencionadas na Bibliografia, a não ser quando citadas por terceiros ou recolhidas da Internet. As mesmas acabariam por se tornar demasiadamente numerosas, tornando o livro mais extenso. Creio em bons livros acadêmicos escritos de maneira popular e acessível a todos. Grande parte do material que o leitor tem em mãos veio das minhas aulas sobre o tema. Agradeço aqui aos meus alunos que sempre me desafiaram a compreender e expor melhor as questões hermenêuticas com as quais nos defrontamos em sala de aula. Finalmente agradeço a Minka. Sem a sua compreensão e paciência, eu não teria como terminar esta pesquisa, que já passa de dez anos. Ao dedicar-se ainda mais a Hendrika, Samuel, David e Anna, nossos filhos, ela se deu por mim, comprando-me tempo precioso para terminar esta obra. Augustus Nicodemus Lopes Recife, outubro de 2003 Parte 1 A NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA Introdução Nem todos se apercebem do fato de que cada leitura de um texto envolve um processo de interpretação do mesmo. Não existe compreensão de um texto sem que haja interpretação, mesmo que esta leitura seja do jornal e o processo de interpretação aconteça inconscientemente. Sendo um texto, a Bíblia não foge a esta regra. Cada vez que a abrimos e lemos, buscando entender a mensagem de Deus para nós, engajamo-nos num processo de interpretação.Como Palavra de Deus, a Bíblia deve ser lida como nenhum outro livro. Mas, tendo sido escrita por homens, ela deve ser interpretada como qualquer outro livro. Acresce que a Bíblia está distante de nós em diversos aspectos, o que faz que nossa leitura da mesma exija um esforço consciente de interpretação, diferente, por exemplo, da leitura que fazemos da revista Veja. Ao longo da sua história, a Bíblia tem sido conscientemente interpretada de formas diferentes por diferentes pessoas e grupos. Existe, portanto, uma história da interpretação da Bíblia ao longo dos séculos. O presente livro dedica-se a entender os intérpretes da Bíblia, seus princípios interpretativos, seus resultados e impacto na Igreja Cristã. As duas naturezas da Bíblia Há muitas pessoas que ficam desanimadas com as controvérsias e as polêmicas que existem nos meios intelectuais em que se estuda a Bíblia. Elas acabam por considerar todo estudo mais sério como desnecessário e mesmo como uma barreira à espiritualidade e ao crescimento da igreja. Simpatizamos com pessoas assim, pois realmente existe muito academicismo e intelectualismo árido e infrutífero em muitos círculos acadêmicos ditos evangélicos. Por outro lado, rejeitar essas coisas não vai resolver o problema, pois continuamos diante de um texto antigo, distanciado de nós, escrito em outras línguas e que precisa ser interpretado para poder ser entendido. Alguns dizem: “Vamos deixar de lado essas questões e simplesmente ler a Bíblia como ela é”. Infelizmente, uma abordagem assim não é possível. Não existe leitura e entendimento de um texto sem que haja interpretação, mesmo que ela se processe de maneira inconsciente. O objetivo desta parte introdutória é levantar alguns aspectos da natureza da Bíblia que tornam indispensável um esforço consciente para interpretá-la. A Bíblia como livro humano O fato de que a Bíblia não caiu pronta do céu, mas que foi escrita por diferentes pessoas em diferentes épocas, línguas e lugares, alerta-nos para o que alguns estudiosos têm chamado de distanciamento. O fenômeno do distanciamento aparece em diversas áreas. Distanciamento temporal A Bíblia está séculos distante de nós. Seu último livro foi escrito pelo final do século 1º da Era Cristã, o que nos separa temporalmente em dois milênios. A distância temporal, num mundo em constantes mudanças, faz que a maneira de encarar o mundo, os aspectos culturais e linguísticos dos escritores da Bíblia se percam no passado distante. Portanto, como qualquer documento antigo, a Bíblia precisa ser lida levando-se isto em conta. Na época do Novo Testamento o distanciamento já era uma realidade. A história da interpretação das Escrituras visa mostrar como, desde cedo, o leitor das Escrituras procurou condições de transpor esse abismo temporal. Distanciamento contextual Os livros da Bíblia foram escritos para atender a determinadas situações, que já se perderam no passado distante. É verdade que ao serem incluídos no cânon bíblico, eles passaram a ser relevantes para a igreja universal. Por outro lado, recuperar o contexto em que esses livros foram escritos é essencial para entendermos melhor a sua mensagem. As cartas de Paulo foram escritas visando atender as necessidades de igrejas locais. Não posso entender corretamente o ensinamento do apóstolo sobre o uso do véu pelas mulheres (1Co 11) se não estiver consciente do problema que estava acontecendo na igreja relacionado com a participação das mulheres no culto. Igualmente, 1João toma outra relevância quando fico consciente de que João estava escrevendo contra a influência de uma forma incipiente de Gnosticismo nas igrejas da Ásia Menor. Ou ainda, que o livro de Habacuque foi escrito num contexto de iminente invasão por potências estrangeiras. A mensagem do evangelho de Marcos fica mais clara quando descobrimos que Marcos escreveu para ajudar os crentes romanos a enfrentar as provações que sofriam por causa de Cristo. E o livro de Jonas – especialmente a atitude de Jonas contra os ninivitas – ganha maior clareza quando descubro que havia uma antipatia natural dos judeus contra os ninivitas por causa dos seus grandes pecados. A hermenêutica bíblica historicamente sempre buscou transpor as dificuldades criadas pela distância contextual. Distanciamento cultural O mundo em que os escritores da Bíblia viveram já não existe. Está no passado distante, com suas características, cosmovisões, costumes, tradições e crenças. Muito embora a inspiração das Escrituras garanta que sua mensagem seja relevante para todas as épocas, devemos lembrar que esta comunicação foi registrada em determinada cultura, da qual preservou traços. Os intérpretes da Bíblia devem levar em conta o jeito de escrever daquela época, a maneira de expressar conceitos e ilustrar as verdades, para poder transpor a distância cultural. Distanciamento linguístico As línguas em que a Bíblia foi escrita também já não existem. Não se fala mais o hebraico, o grego e o aramaico bíblicos nos dias de hoje, mesmo nos países onde a Bíblia foi escrita. Como cada língua tem seu jeito próprio de comunicar conceitos (apesar de uma estrutura comum a todas), os leitores da Bíblia devem levar em conta essas peculiaridades. O conhecimento do paralelismo hebraico certamente ajudou alguns intérpretes da Bíblia ao longo da História a entender melhor os Salmos e os profetas. Distanciamento autoral Devemos ainda reconhecer que teríamos uma compreensão mais exata da mensagem de alguns textos bíblicos reconhecidamente obscuros se os seus autores estivessem vivos. Poderíamos perguntar a eles acerca dessas passagens complicadas que escreveram e que continuam até hoje desafiando os melhores intérpretes. Por exemplo, Pedro poderia nos esclarecer o que ele quis dizer com “Cristo foi e pregou aos espíritos em prisão” (1Pe 3.19). Ou ainda, Paulo poderia nos dizer o que ele quis dizer com “o que farão os que se batizam pelos mortos?” (1Co 15.29). Mateus poderia finalmente tirar a dúvida sobre o sentido da frase de Jesus “não terminarão de percorrer as cidades de Israel até que venha o Filho do Homem” (Mt 10.23). Daniel poderia nos esclarecer a quem ele se referia por Ciro (de quem não temos registro fora da Bíblia, cf. Dn 1.21; 6.28; 10.1) e por que considerava Belsazar filho de Nabucodonosor, quando era filho de Nabonido (Dn 5.2). Não endossamos o que alguns estudiosos afirmam, que com a morte do autor perdeu-se a possibilidade de recuperar- se a intenção deles. Cremos que esta intenção sobrevive no que escreveram. Mas certamente a ausência do autor faz que a interpretação de textos obscuros seja necessária. O distanciamento, portanto, tem exigido dos leitores da Bíblia ao longo dos séculos a tarefa de interpretá-la. Interpretar é tentar transpor o distanciamento em suas várias formas, como mencionadas acima, e chegar ao sentido exato do texto. De modo geral, o ponto central da mensagem da Bíblia é tão claro que pode ser entendido por todos, mesmo os que não estão conscientes do distanciamento. A prova disto é que a igreja vem se mantendo viva e ativa ao longo dos séculos, sendo composta em sua quase absoluta maioria por pessoas que não têm treinamento teológico, histórico e linguístico que permitiriam uma leitura mais informada das Escrituras. Por outro lado, uma maior exatidão e clareza acerca de todos os aspectos da mensagem bíblica não poderá ser alcançada sem interpretação consciente. A Bíblia como livro divino O fato de que a Bíblia foi inspirada por Deus, sendo assim a sua Palavra, também deve ser levado em conta por aqueles que desejam interpretá-la corretamente. A divindade e a humanidade das Escrituras devem ser mantidas em equilíbrio. Quando enfatizamos uma em detrimento da outra, acabamos por cair em alguns daqueles erros hermenêuticos que veremos ao longo da nossa análise da história da interpretação das Escrituras. Este foi o grande problema do método histórico-crítico de interpretação, que surgiu com o Iluminismo, ao adotar os pressupostos racionalistas quanto às Escrituras, contrários à suaorigem divina. Ao tratar a Bíblia como qualquer outro livro de religião, deixando de levar em conta sua inspiração e divina autoridade, os estudiosos e professores cristãos, influenciados pelo racionalismo, acabaram por desenvolver um método de interpretação que não aceitava o conceito de revelação, inspiração e providência de Deus. Como resultado, a Bíblia passou a ser vista não como Palavra de Deus em sua inteireza, mas como o registro da fé de comunidades religiosas, primeiro a judaica e depois a cristã. Continha erros crassos, e seus livros individuais eram trabalhos compostos de retalhos de fontes contraditórias e refletiam mais o pensamento dos que a escreveram do que as realidades históricas e espirituais que pretendiam transmitir. Tal abordagem às Escrituras já se demonstra inadequada e perniciosa para a igreja. Uma atitude oposta é igualmente perigosa. Muitos movimentos e grupos religiosos esqueceram ao longo da História o fenômeno do distanciamento e encararam a Bíblia como se fosse um livro caído do céu, cuja interpretação dependia somente de oração, jejum e plenitude do Espírito Santo. Evidentemente, sendo a Palavra de Deus, precisamos de comunhão com Deus e da iluminação do Espírito para o conhecimento salvador das Escrituras. Porém, a utilização consciente de princípios de interpretação compatíveis com a natureza dela fará que esse conhecimento nos chegue de maneira mais exata e completa. Precisamos ter cuidado, porém, para não cair no erro de pensar que somente aqueles que têm treinamento profissional em princípios de interpretação poderão chegar ao conhecimento da mensagem das Escrituras. Muitos dos princípios de interpretação bíblicos, praticados no decorrer dos séculos por todos os leitores da Bíblia, são simples, lógicos e evidentes, como, por exemplo, a interpretação de uma palavra à luz do seu contexto. Isto fazemos diariamente, na leitura do jornal, de notícias pela internet e lendo um e-mail. Em certo sentido, ler a Bíblia envolve as mesmas regras que ler essas coisas. A natureza divina da Bíblia, por sua vez, provoca outro tipo de distanciamento, como segue. Distanciamento natural A distância entre Deus e nós é imensa. Ele é o Senhor, criador de todas as coisas, do céu e da terra. Somos suas criaturas, limitadas, finitas. Nossa condição de seres humanos impõe limites à nossa capacidade de entender e compreender as coisas de Deus. Não impede a possibilidade desse conhecimento, com certeza, mas o limita. O fato de sermos seres humanos tentando entender a mensagem enviada pelo Deus criador em si só representa um distanciamento. A distância entre a criatura e o Criador, tão frequentemente mencionada nas Escrituras, tem seus efeitos também na hermenêutica. Os intérpretes da Bíblia não podem ignorar isso e pensar que bastam ferramentas hermenêuticas corretas para que se entenda a revelação de Deus. Historicamente, muitos desses intérpretes reconheceram a necessidade de transpor essa distância pela iluminação do Espírito. Distanciamento espiritual O fato de que somos pecadores impõe ainda mais limites à nossa capacidade de interpretação da Bíblia. Todos os intérpretes da Bíblia têm sido e são seres afetados pelo pecado tentando entender os desígnios do Deus puro e santo. A Queda é um conceito espiritual, mas que não pode ser deixado de lado em qualquer sistema interpretativo das Escrituras. Transpor o abismo epistemológico causado pela Queda é certamente o ponto de partida. A regeneração e a conversão são a resposta de Deus a essa condição. Distanciamento moral É a distância que existe entre intérpretes pecadores e egoístas e a pura e santa Palavra que pretendem esclarecer. A corrupção de nossos corações acaba por introduzir na interpretação das Escrituras motivações incompatíveis com o Autor das mesmas. Infelizmente a história da igreja mostra como diferentes grupos manipulam as Escrituras para defender, provar e dar autoridade a seus pontos de vista. Certamente existem pessoas sinceras, mas a sinceridade nem sempre evita o equívoco. Não podemos negar que o distanciamento moral acaba nos levando a torcer o sentido das Escrituras, procurando usá-las para nossos fins, nem sempre louváveis. A Bíblia tem sido usada como prova das mais conflitantes teorias e ideias, o que mostra que ler e entender imparcialmente a sua mensagem não é tão fácil assim. A Bíblia foi usada pelos protestantes de países colonizadores para justificar a escravidão, usando textos do Antigo e Novo Testamentos que falam da escravidão sem, contudo, aboli-la (Êx 21.2-6). Os seus opositores usaram também a Bíblia para defender as ideias abolicionistas, usando a parábola do bom samaritano e “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. A Bíblia também foi usada para provar que os judeus deveriam ser perseguidos e que os protestantes brancos são uma raça superior. A Bíblia foi usada para executar as bruxas, para impedir o casamento dos padres, para defender a masturbação, para justificar o aborto e a eutanásia, para regular o tamanho das saias e do cabelo das mulheres cristãs, para prover aceitação e fortalecimento dos homossexuais, para proibir ingerência de qualquer tipo de bebida alcoólica, para proibir transfusão de sangue, etc. O catálogo é imenso. Entendendo o lado humano da Bíblia Seria importante perguntar até que ponto o lado humano das Escrituras possibilitou a entrada de erros na mesma. Essa é uma questão bastante controversa e certamente não poderemos abordá-la de maneira exaustiva aqui. Apenas reafirmaremos nossa convicção de que a Bíblia é a Palavra de Deus, verdadeira em tudo que afirma, com algumas qualificações que mencionamos a seguir. Erros de copistas Ao dizer que a Bíblia é verdadeira em tudo que afirma não estamos negando que erros de copistas se introduziram no longo processo de transmissão da mesma. Seria negar a realidade. A inerrância é um atributo dos autógrafos, ou seja, do texto como originalmente produzido pelos autores inspirados por Deus. Muito embora hoje não tenhamos mais os autógrafos, pela providência divina podemos recuperá-los quase que em sua totalidade por meio da ajuda de ferramentas como a baixa crítica ou a manuscritologia bíblica. Linguagem de acomodação Também não estamos dizendo que os autores bíblicos receberam conhecimento pleno e onisciente acerca do mundo, ao escreverem. Eles se expressaram nos termos e dentro do conhecimento disponível naquela época, acomodando a verdade revelada em termos do que sabiam do mundo. Assim, eles falam que o sol nasce num lado do céu e se põe no outro, ou ainda mencionam que o sol parou no céu (Josué). No livro de Levítico, se diz que a lebre rumina e que o morcego é uma ave. Sabemos que pelos padrões científicos atuais lebres não ruminam e morcegos não são aves. Os autores bíblicos, entretanto, estavam se expressando mediante a linguagem das aparências, acomodando-se ao conhecimento de sua época. Do ponto de vista do observador o sol de fato gira em torno da terra, todos os animais que mexem com a boca após comer parecem ruminantes e tudo que tem asas e voa parece ave! Não sabemos tudo Também não estamos dizendo que podemos explicar todas as dificuldades da Bíblia em termos absolutamente satisfatórios. Por exemplo, a harmonia dos evangelhos continua sendo em parte um desafio para autores comprometidos com a inerrância bíblica, pois nem sempre se consegue achar uma explicação absolutamente satisfatória para alguns dos problemas levantados pelas poucas e aparentes discrepâncias entre os evangelhos. Ou ainda, pelas aparentes discrepâncias entre 1 e 2Crônicas e 1 e 2Reis. No entanto, não podemos aceitar soluções que impliquem numa diminuição da autoridade das Escrituras, sugerindo contradições ou erros. É preferível aguardar até que mais informações nos ajudem a achar soluções compatíveis com a natureza da Escritura e sua divina origem. Traduções não são inerrantes Por último, é importante acrescentar que não estamos dizendo que as traduções da Bíblia são inerrantes. Muito embora possamos ler com confiança a Bíblia em nossalíngua, reconhecemos que em muitos casos os tradutores tiveram de tomar decisões relacionadas com a melhor maneira de verter determinado termo ou expressão, e que tais decisões, não sendo inspiradas por Deus, nem sempre foram as corretas. Conclusão Tudo isso mostra que não é tão fácil assim simplesmente ler a Bíblia e fazer o que ela diz. Por outro lado, não queremos desanimar da possibilidade (muito real!) de entendermos com clareza o ensinamento das Escrituras, reconhecendo humildemente que nunca poderemos ter uma compreensão exaustiva de todas as suas passagens. Sabendo que a Bíblia vem de Deus, temos ânimo para buscá-lo em oração, suplicando a sua graça e sua iluminação em nossa tarefa como intérpretes. Muitos estudiosos modernos, cansados do método histórico-crítico, têm proposto novos métodos de interpretação que levem em conta o caráter divino das Escrituras. Defendem princípios de interpretação que estejam atentos não somente aos aspectos humanos da Bíblia como literatura religiosa, mas especialmente às implicações da sua divina origem e natureza, bem como da nossa dupla condição de humanos e pecadores. A dupla natureza da Bíblia provoca um distanciamento temporal e espiritual que precisa ser transposto, para que possamos chegar à sua mensagem. Porém, isso não nos isenta de buscar compreender de maneira mais exata e completa a revelação que Deus fez de si mesmo. Com a graça de Deus, o estudo da interpretação da Bíblia feito pela Igreja Cristã e outros grupos ao longo da História pode nos servir de auxílio oportuno para aprender com os erros e acertos dos que vieram antes de nós. Esse é o alvo deste livro. Parte 2 OS PRIMEIROS INTÉRPRETES DO ANTIGO TESTAMENTO Introdução Nossa investigação começa com a história dos primeiros intérpretes da Bíblia. Isso nos leva ao estudo da interpretação das Escrituras do Antigo Testamento feita não somente pelos primeiros cristãos, mas também por grupos e indivíduos fora da comunidade cristã. Esses grupos e indivíduos usavam as Escrituras como base de suas crenças e frequentemente as interpretavam em sua literatura. Os principais dentre eles são: os próprios autores do Antigo Testamento, os rabinos, a comunidade de Qumran, Filo de Alexandria e Flávio Josefo. Por fim, abordaremos o uso do Antigo Testamento pelos autores do Novo. O uso do Antigo Testamento na Septuaginta, targums e outras versões antigas não será historiado aqui, por ser de menor importância. Nossa História não deixará de conter alguma análise dos modelos hermenêuticos dos intérpretes que serão aqui mencionados. Nosso objetivo nesta primeira parte é apresentar de forma introdutória os primeiros intérpretes das Escrituras do Antigo Testamento e analisar de maneira geral a hermenêutica e princípios de exegese deles. Quando possível iremos comparar a exegese deles com aquela praticada pelos primeiros cristãos, especialmente pelo apóstolo Paulo. É essencial que estejamos inteirados do uso que os autores do Novo Testamento fizeram do Antigo. Esse conhecimento, porém, deve ser obtido à luz do contexto interpretativo amplo do Judaísmo do século 1º. Embora a hermenêutica dos apóstolos e escritores do Novo Testamento deva ser considerada única em virtude da inspiração divina, esse fato não elimina as realidades históricas e humanas das quais eles fizeram parte. A revelação divina foi dada a homens imersos em determinado contexto histórico, linguístico e social. O pano de fundo judaico dos escritores do Novo Testamento certamente desempenhou um papel na sua abordagem das Escrituras do Antigo Testamento. Além disso, eles dificilmente esperariam que seus leitores se aproximassem do texto como uma tabula rasa. Se a exegese apostólica se utilizou ou não dos métodos exegéticos dos grupos não cristãos que também interpretaram a Bíblia em sua época é uma questão que só pode ser respondida com um estudo em primeira mão das fontes. Naturalmente, isso não pode ser obtido em um único livro. Nosso alvo, portanto, é abordar de modo bastante geral o assunto e lançar as suas bases. Capítulo 1 Os autores do Antigo Testamento Introdução Nossa História começa com o caso mais antigo de interpretação bíblica que conhecemos, ou seja, a interpretação das Escrituras pelas próprias Escrituras. Os homens que escreveram o Antigo Testamento, particularmente os que vieram após Moisés, utilizaram as Escrituras já produzidas antes de seu tempo. Ao fazerem isso, nos legaram os primeiros exemplos de interpretação bíblica que temos. Mais recentemente, os estudiosos têm dado atenção a esse fato. Seria de se esperar que os livros posteriores fizessem uso dos anteriores. Esse fenômeno é chamado em linguística de intertextualidade, e compreende as diversas maneiras pelas quais a produção e recepção de dado texto dependem do conhecimento de outros textos por parte de seu autor ou autores. Quem usou quem, obviamente, depende da cronologia e da ordem na qual os livros que hoje estão no cânon foram escritos. Os que adotam as ideias de estudiosos liberais pensam que primeiro foram escritos os livros proféticos e depois o Pentateuco. Neste caso, o Pentateuco seria uma elaboração e sistematização legal posterior aos escritos dos profetas e em alguns casos, pressuporiam aqueles. Entretanto, essa teoria se baseia na hipótese, hoje questionada, da evolução da religião de Israel, uma reconstrução baseada em suposições não provadas sobre a forma como o povo judeu, ao longo de sua história, evoluiu do politeísmo tribal e carismático para uma monarquia legal e monoteísta, conforme defendeu o estudioso liberal Gerhard Von Rad. Em nosso estudo seguimos a posição histórica, e ainda perfeitamente defensável, que os primeiros escritos canônicos de Israel foram os cinco livros de Moisés, seguidos pelos escritos dos profetas, dos livros históricos e poéticos, no que chamamos de cânon ocidental. Encontramos muitos exemplos de interpretação bíblica no Antigo Testamento. Veremos vários deles no decorrer do presente capítulo. O assunto é importante para nós porque os autores do Antigo Testamento inauguraram um movimento hermenêutico que continua até os dias de hoje, fecundado e amadurecido pela chegada do Cristianismo e qualificado em diversos aspectos pelos limites da inspiração impostos pela história da salvação. É importante para nós entender como os autores das Escrituras usaram as Escrituras dadas antes deles. Afinal foram eles os seus primeiros intérpretes. As Escrituras como edifício hermenêutico Sem jamais nos esquecermos da ação divina na sua formação, podemos nos referir às Escrituras como uma grande empreitada interpretativa. Seria bastante natural que os autores bíblicos, ao registrarem a revelação, o fizessem em termos e com a ajuda de escritos inspirados anteriores que já gozavam de status de Escritura. Com certeza, Deus poderia revelar suas palavras e seu conselho diretamente aos instrumentos humanos que escolheu. Porém, não se pode deixar de notar, lendo o Antigo Testamento, que não foi sempre esse o sistema empregado por ele. Pois, frequentemente, autores veterotestamentários se referem a autores anteriores e em muitos casos até mesmo identificam as fontes que estão empregando. Veremos vários exemplos disso mais adiante. Podemos identificar nos escritos posteriores o uso de fontes sagradas anteriores. Ao utilizá-las em seus próprios escritos, o autor bíblico estava engajado em interpretação bíblica, pois, em última análise, é nisso que a mesma consiste. Interpretar é entender um texto existente, apreender o seu sentido, e aplicá-lo à situação presente. Foi isto que autores do Antigo Testamento fizeram ao usar, em suas obras, Escrituras já existentes. Usando a divisão hebraica do cânon do Antigo Testamento (Quadro 1), podemos ver, desta perspectiva, as Escrituras como uma pirâmide, (Quadro 2) em cuja base está a Lei (Torá), os cinco livros atribuídos a Moisés. Em seguida, edificando-se sobre a Lei, temos os Profetas e os Escritos. Os Profetas (anteriores e posteriores) dão o desenvolvimento objetivo da religiãodo Antigo Testamento, interpretando e aplicando a Lei aos seus dias para a nação de Israel. Os Escritos, incluindo os chamados livros históricos e sapienciais, representam a resposta subjetiva à Lei, expondo situações e narrando história onde os princípios dinâmicos da Lei atuam. O fato de ser uma resposta subjetiva (de caráter até mais pessoal em alguns casos) não os torna menos inspirados, antes, mostra-nos a aplicabilidade da Lei de Deus até nas áreas mais íntimas e remotas da vida humana. Tanto os Profetas quanto os Escritos repousam sobre a Lei. Neles, a Lei é usada, interpretada, e aplicada a novas situações. No topo temos o Novo Testamento, repousando, enraizando-se e dependendo de todo esse trabalho interpretativo, sendo ele mesmo uma interpretação da Lei, dos Profetas e dos Escritos, ou seja, uma continuidade da tradição hermenêutica inaugurada no próprio Antigo Testamento. Uma leitura correta do Novo Testamento sem a base hermenêutica do quem vem anteriormente é impossível. Quadro 1 – Organização e classificação do cânon hebraico Quadro 2 – A pirâmide hermenêutica das Escrituras É claro que a perspectiva citada pressupõe a cronologia tradicional da história de Israel bem como a autoria de seus livros conforme geralmente é atribuída na erudição mais conservadora. Entretanto, mesmo os estudiosos que entendem que a formação dos livros canônicos passou por um longo e complexo processo de explicações, adaptações, alterações e edições, de forma a não se poder atribuir a autoria dos mesmos a um ou mais autores – no final, teria sido um Samler, colecionador, que ajuntou os textos na forma canônica atual – reconhecem que nesse processo houve muita exegese e interpretação de textos anteriores considerados sagrados. A transmissão escrita da Revelação Também estamos pressupondo que Israel, desde cedo, lançou por escrito a sua história e sua teologia, nada deixando para a transmissão oral que fosse de fundamental importância. Nossas pressuposições se baseiam em estudos recentes, especialmente na obra de Bruce Waltke, demonstrando que tanto Israel como os outros povos do Antigo Oriente confiavam na escrita para a transmissão do que era realmente importante. Assim, a tradição oral se ocupava daquilo menos relevante. A insistência de muitos estudiosos sobre uma extensa tradição oral por trás dos escritos bíblicos é fruto de muita especulação e pressuposições que nunca foram confirmadas. Não é difícil provar que os autores bíblicos não apenas tinham conhecimento como de fato usaram fontes escritas antes deles. A conclusão óbvia é que desde cedo o material que hoje compõe o cânon do Antigo Testamento adquiriu forma escrita para ser transmitido de geração em geração. Mesmo na época de Moisés e no ambiente do Antigo Oriente Próximo havia a consciência clara da necessidade de se preservar o que era proveniente de Deus como revelação. Na verdade, Deus mesmo dá a ordem de se construir uma arca e colocar dentro dela a Lei. O uso de fontes escritas Na Lei encontramos referências a fontes escritas que foram provavelmente utilizadas por Moisés ou pelo editor final do Pentateuco (Êx 17.14; 24.7; Nm 21.14; Dt 28.61). Em Deuteronômio 17.18; 27.1-8; 31.9 e 24 se fazem referências a material escrito datado da época de Moisés. Sem dúvida, transparece que a composição do Pentateuco utilizou fontes escritas existentes, algumas de tempos anteriores a Moisés, outras do seu próprio tempo. Três observações são pertinentes aqui. Primeira, o uso por Moisés de fontes escritas existentes em nada diminui sua inspiração e autoridade. O mesmo acontece em vários outros escritos da Bíblia e mesmo nos evangelhos. Segunda, existe uma diferença em admitir que Moisés usou fontes escritas para compor o Pentateuco e aceitar a hipótese de que o Pentateuco foi composto por um redator desconhecido que juntou, às vezes de forma inábil, cinco ou mais documentos que continham, por vezes, material contraditório. Esta teoria, chamada hipótese documentária, predominou nos estudos do Antigo Testamento nos dois últimos séculos, estando já em grande parte descartada pela falta de provas, pelo seu caráter altamente especulativo e pela falta de resultados e consenso entre seus defensores. É interessante notar que um dos pontos de partida do pensamento dos propositores dessa hipótese (principalmente Wellhausen) é de que o livro de Deuteronômio é posterior aos livros históricos (principalmente Juízes) porque os mesmos não mencionam e nem aplicam a Lei do Pentateuco. Veremos mais adiante que essa hipótese não pode ser sustentada. Terceira, muito embora Moisés tenha usado material escrito na composição do Pentateuco – podemos até admitir que um editor deu a forma final do Pentateuco utilizando-se de material que remonta ao próprio Moisés – não se trata aqui de Escritura usando Escritura, pois esse material escrito, existente e anterior, nunca chegou a obter canonicidade e o status de Escritura na forma como o conhecemos hoje. Ainda como ilustração, observamos que o livro de Gênesis é um grande comentário sobre os grandes eventos da história da criação e da salvação. Podemos observar que a própria estrutura do livro parece ser baseada em material escrito e não em tradição oral. As “gerações” ou toledots são uma característica de material escrito do Antigo Oriente Próximo. Também podemos observar como no livro de Deuteronômio, a segunda Lei, Moisés interpreta a Lei de maneira mais específica para a segunda geração de israelitas depois da saída do Egito. Era uma nova situação e a Lei precisava ser aplicada naquele momento. Uma mudança significativa que pode ser claramente observada é a justificativa para a guarda do quarto mandamento. Em Êxodo, a guarda do sábado é explicada com base na criação, para uma geração que havia crescido no meio de um povo politeísta (egípcios) que cria nos elementos dessa criação como seus deuses. Cerca de quarenta anos mais tarde, agora em face da entrada na terra e confronto com outros povos, Moisés se reporta à libertação do cativeiro no Egito como mais uma razão para a guarda do Sábado (Dt 5.14-15). Os profetas anteriores Os escritos de Moisés foram abundantemente usados – e, portanto, interpretados – nos escritos que conhecemos como Profetas, e que na Bíblia hebraica inclui os Profetas Anteriores e Posteriores (Quadro 1). Começando com os Profetas Anteriores, temos o livro de Josué, por exemplo, que reflete conhecimento detalhado dos escritos de Moisés. O autor refere-se em 24.32 ao pagamento de cem pedaços de prata por um pedaço de terra que Jacó fez aos filhos de Hamor. Menciona também a promessa que José obteve de seus irmãos acerca de seus ossos. Os dois eventos estão narrados em Gênesis (33.19; 50.24-25). Essas alusões e várias outras aos demais livros do Pentateuco podem ser vistas no Quadro 3 abaixo: Quadro 3 – Uso do Pentateuco em Josué Mas nosso objetivo não é apenas demonstrar que o autor de Josué conhecia as tradições escritas de Moisés, e sim que as interpretou ao escrever a sua obra. Isso pode ser percebido não tanto pela citação de passagens individuais ou alusões a eventos do período patriarcal, mas no fato de que o livro de Josué foi desenvolvido com base na teologia do Pentateuco, mais especificamente de Deuteronômio. Josué desenvolve vários temas de Deuteronômio, tais como aliança, guerra santa, distribuição da terra, unidade de todo o Israel e Josué como sucessor de Moisés. Todos esses temas são encontrados no Pentateuco e particularmente em Deuteronômio, demonstrando claramente sua dependência literária do mesmo. Ao narrar a história da conquista e da partilha da terra prometida, Josué refere-se abundantemente a textos que tratam das promessas e advertências de Deus, bem como a partilha da terra e de como os israelitas deveriam viver em Canaã. Josué tem como preocupação central mostrar como Deus cumpriu fielmente sua promessa de dar aos patriarcas uma terra e descanso. O livro reflete a consciência de que os dias da conquista e vitória eram dias de cumprimento das promessasrelatadas no Pentateuco (Js 1.3; 1.6; 5.6; 11.23; 22.4,9; 23.5; 23.10,15). Josué 11.23 é provavelmente o tema principal do livro e também a manifestação clara do pensamento teológico do autor do livro: “Assim, tomou Josué toda esta terra, segundo tudo o que o SENHOR tinha dito a Moisés; e Josué a deu em herança aos filhos de Israel, conforme as suas divisões e tribos; e a terra repousou da guerra” (cf. ainda 23.14). A terra prometida é vista como um dom de Deus (ver Dt 1.20,25; 2.29; 3.20; etc.) que havia sido prometida aos pais (Dt 1.8,35; 6.10,18,23; 7.13; et al). Ao fazer essas afirmações, o autor de Josué estava interpretando as Escrituras já existentes, apercebendo-se do sentido delas e aplicando-as aos seus dias, ou ainda, percebendo a aplicação das mesmas nos eventos de sua época. Josué contribui de muitas maneiras para o desenvolvimento da história da salvação exposta na história Juízes–Reis. De certo modo, lança os alicerces dessa mesma história, como veremos em seguida, alicerces esses enraizados nas Escrituras do Pentateuco. Os livros de Juízes a 2 Reis, da mesma forma, edificam-se também sobre o alicerce do Pentateuco e de Josué. Para alguns estudiosos, Juízes – Reis é uma obra independente e unificada, escrita por um único autor, que viveu perto dos tempos do exílio ou mesmo depois dele. O autor é chamado por alguns de “Deuteronomista” porque sua linguagem e seu pensamento são bastante similares à linguagem e aos temas das leis do livro de Deuteronômio, bem como aos discursos de Moisés que precedem e seguem essas leis. Outros rejeitam essa hipótese, considerando corretamente o caráter especulativo da mesma. Entretanto, a maioria dos estudiosos reconhece que os livros de Juízes a 2 Reis (quer tenham sido escritos por um único autor ou por autores independentes) continuam os principais temas de Josué. O autor, ou autores, conhecia também as leis de Moisés, particularmente o livro de Deuteronômio. Esses livros pressupõem que seus leitores conheciam as advertências de Moisés (Dt 4.26) e de Josué (Js 23.12ss) que são mencionadas, assim como a explicação teológica para a queda da nação de Israel séculos após a conquista. A ideia teológica central desses livros é a retribuição divina em âmbito nacional, um dos conceitos centrais da teologia da aliança encontrada em Deuteronômio. Deus havia concedido uma honra especial à nação de Israel, mas também uma obrigação especial, na forma da Lei de Moisés. O pacto é compreendido em termos de um relacionamento ativo. Para desenvolver esse conceito teológico, o autor/autores narra a história de Israel, desde o tempo dos juízes até o exílio, à luz de um princípio teológico central encontrado no Pentateuco, particularmente em Deuteronômio, e que já havia sido inicialmente desenvolvido em Josué: bênçãos e julgamentos divinos, vitórias e derrotas, estão intimamente ligados à fidelidade de Israel para com Deus, ou seu abandono da mesma. O desenvolvimento da narrativa em termos das condições da relação pactual de Israel com Deus exigia que seus autores conhecessem, entendessem e aplicassem as Escrituras já existentes na análise que fizeram da história de Israel. Ou seja, eles foram, primeiramente, intérpretes da história à luz da Lei. Evidentemente na obra Juízes–Reis não se fazem citações de passagens bíblicas como costumamos fazer hoje. Mas é claro que o autor, ou autores, de Juízes–Reis usou o Pentateuco e Josué em sua obra e, ao fazê-lo, estava interpretando as Escrituras. No geral, essa interpretação consistia em aplicar os princípios encontrados nelas aos seus próprios dias. Por exemplo, em Juízes 14.9 há uma aparente aplicação de Levítico 11.27, que proíbe até tocar a carcaça de um quadrúpede que anda na planta dos pés. Relatando o episódio em que Sansão deu a seus pais mel de um enxame que estava no corpo de um leão morto, o autor de Juízes faz um comentário que remonta a essa proibição. Juízes também menciona a recusa dos edomitas em deixar que os israelitas passassem por Edom (cp. Jz 11.16-17 com Nm 20.17-20). O procedimento e julgamento da vida de cada rei de Israel e Judá são avaliados com base nas leis do Pentateuco. Assim, a descrição ao final da vida dos reis (“fez o que era mau perante o SENHOR” ou “fez o que era reto perante o SENHOR”) é baseada em algo bem estabelecido e não algo subjetivo segundo o julgamento pessoal do autor. A apostasia do rei Salomão é narrada em 1Reis 11 em termos que lembram a Lei de Moisés quanto aos deveres e obrigações do rei (Dt 17.14ss.), especialmente as advertências contra multiplicar cavalos (Dt 17.16) e mulheres (Dt 17.17). Outro exemplo é a extensa narrativa da monarquia em Reis, que, em geral, reflete o princípio de Deuteronômio, de que a obediência à Lei traz a bênção de Deus sobre a nação, e a desobediência traz a sua maldição. Tanto uma como a outra são expressas em termos de prosperidade material e conquistas militares. Essa dinâmica da história da salvação é declarada em 2Reis 17.7-23. Ali se dá a explicação teológica para a queda e exílio de Israel, moldada em termos das advertências encontradas em Deuteronômio, especialmente 28.15-68. O autor havia interpretado as Escrituras que falam dessa dinâmica, havia entendido o seu funcionamento e, agora, aplicava esse princípio aos eventos de seus dias. Outros exemplos poderiam ser acrescentados, mas o ponto que desejamos destacar é que, à semelhança de Josué, esses livros constroem sobre o alicerce do Pentateuco. Os profetas posteriores Podemos observar esses mesmos princípios interpretativos nos Profetas Posteriores (Isaías–Malaquias). Há várias evidências claras de que os profetas escritores conheciam e utilizaram as Escrituras existentes na composição de suas obras. Alguns poucos exemplos serão suficientes para demonstrar este ponto. Isaías, ao prenunciar a queda dos caldeus, referiu-se à destruição de Sodoma e Gomorra, que está registrada em Gênesis 13 (cf. Is 13.19), usando o mesmo vocabulário de Deuteronômio 29.23. O profeta anunciou que Babilônia teria destino similar às duas cidades. Com certeza Isaías recebeu uma revelação direta da parte de Deus quanto ao futuro desastre do maior império da época. E essa revelação estava em perfeito acordo com o princípio de operação divina estabelecido no texto de Gênesis 13 e Deuteronômio 29, o qual afirma que Deus abate nações e cidades ímpias. A aplicação do relato de Gênesis 13 à chegada da destruição da Babilônia envolvia entendimento e aplicação, dois importantes componentes da interpretação bíblica (cf. ainda Is 1.9-10). Em Isaías 3.9 o profeta interpreta o relato bíblico sobre o estado moral de Sodoma, identificando qual o seu pecado, e aplica o texto ao povo de seus dias. Isaías conhece o relato do dilúvio (Is 54.9) e a história dos patriarcas (Abraão e Jacó são mencionados frequentemente). Isaías usa ainda termos e linguagem que ecoam claramente o texto do Pentateuco em diversos pontos, como por exemplo, “pó será o alimento da serpente” (comp. Is 65.25 com Gn 3.14; cf. Mq 7.17), a menção de que não haverá outro dilúvio (cp. Is 54.9 com Gn 9.11), a imagem de uma nuvem de fumaça durante o dia e fogo durante a noite (cp. Is 4.5 com Êx 13.21-22 ou Nm 14.14), a referência à ação de Moisés que causou a destruição dos egípcios pelas águas do mar (Is 10.26), o canto de vitória quanto ao futuro (cp. Is 12.2b com Êx 15.2), a menção (única no Antigo Testamento) de Levítico 11.29 em que “rato” é particularmente mencionado como comida proibida (Is 66.17), a expressão “altos da terra” (cp. Is 58.14 com Dt 32.13a). É fácil perceber que a linguagem do profeta é permeada de expressões e termos provenientes das Escrituras. Creio que a abundância de referências ao Pentateuco demonstra, ainda que sujeita a contra-argumentação, que Isaías conhecia bem mais do que apenas as tradições orais referentes a Moisés. Até mesmo a referência genérica ao “livro do SENHOR” que poderia ser lido pelo povo (Is 34.16), é uma provável referência à Lei de Moisés escrita, cuja cópia estaria guardada no templo. Na época deIsaías, a escrita já era conhecida e comum (Is 30.8). O profeta Jeremias igualmente usa o Pentateuco em seus escritos. Ele parece ecoar Êxodo 4.22, em que se diz que Israel é o primogênito de Deus, ao referir-se a Efraim como primogênito de Deus (Jr 31.9). Jeremias 34.13- 14, por sua vez, é uma alusão clara a Êxodo 21.2 (cf. Dt 15.12). Jeremias também menciona a “fornalha de ferro” de Deuteronômio 4.20 (Jr 11.4) e seu chamado (Jr 1.9) é descrito em termos das características proféticas mencionadas em Deuteronômio 18.18. O teste do verdadeiro profeta (Dt 18.22) é aplicado por Jeremias ao falso profeta Hananias (Jr 28.9). O caso do profeta Ezequiel é ainda mais notável. O profeta praticamente “reescreve” as prescrições de Levítico e Deuteronômio quanto ao templo e à ordem sacerdotal, ao formular em seus escritos material relativo ao novo templo e à nova ordem sacerdotal, claramente inspirado nesses livros (Ez 40–48). Não podemos entrar aqui nas diversas teorias que pretendem explicar os motivos do profeta. Uma coisa é certa, ele conhecia em detalhes as prescrições do Pentateuco sobre o templo e os sacerdotes e levitas e usou-as largamente em sua obra. Outro exemplo é o uso que Ezequiel faz em 22.1-16 das leis de santidade prescritas em Levítico 17–26. Além disso, o profeta Ezequiel demonstra conhecimento exclusivo de certas passagens do Pentateuco (cp. Ez 44.25 com Lv 21.1; Ez 44.29 com Nm 18.14). Mais uma vez é possível argumentar que Ezequiel e os demais profetas tinham conhecimento apenas das tradições orais referentes a material legal. Entretanto, logo no início de seu ministério, Ezequiel tem de comer um rolo escrito, que representa, sem dúvida, as palavras de Deus, a Lei escrita de Moisés (Ez 3.1-4), que servirá de base para a sua profecia. Mais tarde, Zacarias tem uma visão semelhante, de um rolo voador, que traz maldições sobre toda a terra, possivelmente uma alusão às maldições contidas no livro de Deuteronômio (Zc 5.1-4). O profeta Oseias cita, interpretativamente, o episódio da queda de Adão, que se encontra em Gênesis 3 (Os 6.7). Para o profeta, tal episódio consistiu na quebra da aliança, um aspecto que não está explícito em Gênesis mas que pode, por interpretação, ser deduzido do seu contexto. Não compreendendo isso, algumas traduções trocam a expressão do texto hebraico “como Adão” por “em Adã” (cf. a Bíblia na Linguagem de Hoje). Oseias, após interpretar o episódio, aplica-o ao povo de seus dias, que certamente conhecia a Lei de Moisés escrita (cf. Os 8.12). Oseias 12.3 combina Gênesis 25.26, “no ventre pegou do calcanhar do seu irmão” com Gênesis 32.24ss, “no vigor da sua idade lutou com Deus”. Oseias 12.12 trata de eventos de Gênesis 28 e 29 da mesma maneira. A lei de Levítico 7.13, sobre ofertas com bolos, é mencionada unicamente por Amós (4.5). Há vários outros exemplos nos profetas, conforme o quadro abaixo: Quadro 4 – O uso do Pentateuco nos profetas É importante notar que a maioria das referências mencionadas acima ocorreu de momentos em que passagens e eventos do Pentateuco são mencionados somente por um profeta em particular. Se tais eventos estivessem circulando sob a forma de tradições orais em Israel, é de estranhar que não apareçam em outros livros canônicos. Por terem sido citados apenas uma vez por um profeta, em particular, aponta para o fato que o profeta tinha diante de si um registro escrito, que não era facilmente acessível a todo o povo. Podemos dizer que os profetas escritores desenvolveram temas do Pentateuco, e aplicaram seus princípios e leis ao relacionamento de Deus com seu povo. A esta altura é preciso lembrar que a maior parte do ministério dos profetas do Antigo Testamento consistia em aplicar a Lei de Moisés às suas circunstâncias. Os profetas eram geralmente homens da hora. Quando a nação decaía espiritualmente e sua liderança real e sacerdotal falhava em orientar o povo na Lei de Deus, os profetas surgiam em cena, convocando todos, inclusive reis e sacerdotes, a que se arrependessem e voltassem para o Senhor. Essas exortações consistiam em ameaças e advertências ao povo de que os castigos de Deus, conforme os termos da sua aliança com Israel, estavam para vir, caso a nação persistisse na desobediência. Por outro lado, Deus estaria pronto a conceder a sua misericórdia e o seu perdão a todos os que se arrependessem e voltassem a ele. O referencial da obediência e da apostasia era a Lei de Deus, que havia sido dada a Moisés. O que é mais interessante é que até mesmo as profecias preditivas anunciando a derrocada futura de Israel e de outras nações ao seu redor consistiam na aplicação do princípio fundamental estabelecido nas Escrituras de Moisés, ou seja, que as bênçãos divinas viriam sobre Israel enquanto a nação permanecesse fiel ao pacto; em compensação, castigo e juízo seriam derramados caso abandonasse a Deus. Assim, o profeta que conhecia a Lei de Moisés não hesitaria em prever a sua derrota militar e finalmente o cativeiro como castigo de Deus (cf. Dt 28). Evidentemente, os profetas escritores eram, primeiramente, intérpretes da Lei de Deus. Os escritos Nos Escritos encontramos diversas obras que formam o que chamamos de Literatura Sapiencial. Estes livros – Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cantares – refletem a resposta subjetiva do crente perplexo, que percebe que a obediência aos termos da aliança prescrita e abençoada no Pentateuco nem sempre é recompensada. O tema subjacente do livro de Jó é exatamente a tese, defendida no Pentateuco, que o justo obediente sempre será abençoado, muito embora possa passar por muitas angústias e aflições aqui neste mundo. Outro exemplo é o salmo 73, no qual a mesma perplexidade pela aparente prosperidade dos ímpios – contradizendo à primeira vista o princípio mosaico – aparece na experiência do salmista. Os salmos 1 e 2 possivelmente foram colocados no início da coleção dos Salmos, formando a sua introdução, porque seu motivo central é que a obediência do justo é recompensada aqui e no juízo e, desse modo, dá às orações de Davi (e demais autores dos salmos) a autoridade da Torá. Note como o salmo 1 ecoa Deuteronômio 6, ao mencionar a felicidade do que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Dentro dos Escritos podemos mencionar o uso dos livros dos Reis pelo Cronista. A preocupação do Cronista é entender a história de Israel da perspectiva do exílio. A história de Asa é um exemplo da “teologia da retribuição” que ele adota. Ele está lutando conscientemente para interpretar a história a partir dessa perspectiva teológica. Várias das ênfases do Cronista são desenvolvidas a partir de temas do Pentateuco. Por exemplo, a sua ênfase na derrota militar como castigo divino segue a perspectiva de Moisés e dos profetas. O Pentateuco apresenta a derrota como castigo de Deus para a desobediência aos termos da aliança ou sua rebelião contra Deus (ver Dt 28.36-37,64; Lv 26.17). Os profetas seguem a mesma perspectiva (ver Is 8.5-8; Jr 5.10-17; Hc 1.2-11). O Cronista aplicou essas perspectivas teológicas à sua análise da história de Israel. A nação sempre experimentou derrotas por causa da rebelião contra Deus. O ponto central que desejamos enfatizar é que na própria estrutura do Antigo Testamento percebe-se a interdependência dos seus escritos. Podemos afirmar, assim, que o Antigo Testamento é um grandioso empreendimento hermenêutico. Características da interpretação das Escrituras no Antigo Testamento Nos exemplos dados, transparecem algumas características do uso das Escrituras pelos autores posteriores do Antigo Testamento. Não podemos, em rigor, falar de um método de interpretação comum a todos eles, mas podemos apontar para alguns princípios que pareciam controlar esse uso das Escrituras em suas obras. Atitude para com as Escrituras Notemos a consideração dos autores do Antigo Testamento para com as Escrituras, como sendo a infalível e autoritativa palavra de Deus quanto à fé e prática do seu povo. Na verdade, um dosmotivos pelos quais eles usaram as Escrituras foi dar autoridade de Escritura ao material que produziram. Seus próprios escritos refletem a autoridade que elas têm. Propósito aplicativo Os autores do Antigo Testamento consideravam as Escrituras como tendo caráter válido e permanente em contextos diferentes daqueles em que foram escritas. Por esse motivo, o uso que fizeram das Escrituras tinha um caráter eminentemente prático. O seu alvo ao usar as Escrituras era trazê-las para seus dias e aplicar seus princípios à situação contemporânea. Alguns estudiosos chamam esse uso de “atualização”. Aceitamos esse termo com a ressalva de que os autores bíblicos não estavam re-escrevendo as Escrituras e nem que elas, com o passar do tempo, haviam se tornado “desatualizadas”. Em vários casos poderíamos dizer que os autores bíblicos estavam trazendo as Escrituras para o seu próprio tempo e agregando novos valores à eterna Palavra de Deus, num processo de interpretação inspirada. Consciência de autoridade Os autores do Antigo Testamento reconheciam o caráter profético das Escrituras, pois as mesmas anteciparam situações que só viriam a acontecer séculos depois. Junto a esse reconhecimento, vinha a consciência dos autores posteriores de estarem escrevendo com autoridade, ao declararem que determinados acontecimentos eram o cumprimento ou a aplicação de princípios bíblicos em seus próprios dias. Leitura natural do texto Os autores bíblicos, via de regra, usaram as Escrituras existentes fazendo uma leitura natural do seu sentido, sem alegorias ou interpretações fantásticas. Geralmente esse uso consistia em uma aplicação atualizada da passagem bíblica para uma nova circunstância. Base para desenvolvimento da teologia bíblica O uso de Escrituras anteriores pelos autores do Antigo Testamento é uma das principais chaves para o desenvolvimento de uma teologia bíblica do Antigo Testamento. Hermenêutica e teologia bíblica estão muito proximamente relacionadas no círculo hermenêutico. Existe uma codependência entre as duas disciplinas porque existe a necessidade de interpretar e fazer teologia. Essa necessidade era uma das realidades dos próprios autores bíblicos. Em textos como os do profeta Jeremias encontramos todo um processo de interpretação que não só compreende a história passada, mas também o presente e o futuro. Midrash Muitos estudiosos do Antigo Testamento, judeus e protestantes, têm chamado este uso da Escritura pela própria Escritura de midrash. Provavelmente seria um anacronismo qualificar o uso das Escrituras no Antigo Testamento como midrash, considerando que esse tipo de literatura e o método de interpretação a ele associado só ocorrem nos escritos rabínicos séculos após o término do cânon (veja o próximo capítulo). A referência seria válida se tomássemos o termo midrash em seu sentido mais amplo, como sendo um uso prático das Escrituras em outros contextos. Porém, mais do que simples citação de textos anteriores ou aplicação prática, o uso da Escritura nas Escrituras do Antigo Testamento resultou na formação do sistema doutrinário que serviu de base para a fé da Igreja Cristã. Conclusão Esses princípios vistos acima inauguram uma abordagem às Escrituras que se estendeu aos autores do Novo Testamento, como veremos mais adiante, servindo como base e inspiração para a Igreja Cristã. Ao procurar estabelecer um método em nossos dias que faça justiça à natureza das Escrituras e à forma como ela foi interpretada pelos autores inspirados, devemos levar em conta tais princípios ressalvando os aspectos únicos decorrentes da inspiração dos autores bíblicos. O modelo de interpretação intrabíblica que encontramos acima estabelece em largas pinceladas os parâmetros maiores de nossa tarefa hermenêutica atual. Capítulo 2 Os rabinos do antigo Israel Introdução O Antigo Testamento foi desde cedo objeto de interpretação por escribas e rabinos que viveram no período do segundo Templo, ou seja, desde o retorno de Israel à terra prometida até o surgimento do Cristianismo. As Escrituras eram a obra literária central na vida dos judeus daquele período. A destruição do templo e o desterro deixaram o povo de Israel (especificamente o Reino do Sul) sem referencial para a sua vida religiosa. Os três grandes marcos que representavam a estabilidade da nação ruíram: a cidade de Jerusalém, o templo e a monarquia davídica. O desastre causou uma volta de atenções para a Lei, sendo que os últimos autores do Antigo Testamento concluíram seus escritos nas primeiras décadas após o retorno do exílio na Babilônia. Sem dúvida alguma essa mudança de referencial contribuiu grandemente para a história da interpretação. A centralidade das Escrituras deu origem a um vasto material interpretativo, conservado e transmitido, a princípio, de forma oral. Poucos séculos depois de Cristo, esse material adquiriu forma escrita e fixa. Os intérpretes da Escritura no período do segundo Templo foram os rabinos, título dado a mestres religiosos reconhecidos, sábios, ou líderes. Originalmente, “rabino” era uma forma respeitosa de se dirigir a alguém, mas se tornou um título formal no século 1º d.C. para aqueles que eram autorizados pelos seus mestres – depois de examinados na Escritura – a interpretar e expor a Lei Judaica. Vários estudiosos pensam que os rabinos surgiram com a necessidade de continuação da instrução da Lei ao povo durante o exílio, que estava disperso em colônias nos vários pontos do império babilônico. Para os rabinos, as Escrituras eram “os escritos de Deus” ou “santos escritos”. Consideravam-nas como tendo sido ditadas, escritas e editadas por inspiração divina. Os livros escritos depois da cessação da profecia – o último profeta escritor tinha sido Malaquias – não eram reconhecidos como inspirados. O Pentateuco ocupava uma posição de destaque. Consideravase que já existia mesmo antes da criação do mundo, e que era, portanto, eterno. Mesmo considerando o Pentateuco como tendo origem celestial, a autoria humana de Moisés não era negada ou desprezada. A Torá oral O Pentateuco, ou os cinco livros de Moisés, representavam no cânon hebraico a primeira divisão, chamada Torá. Torá significa “instrução” e era considerada a fonte de toda a sabedoria e vida. Por muitos séculos os judeus somente consideravam como Torá os escritos de Moisés. Porém, no período do Segundo Templo, surgiu a Torá oral. Os rabinos acreditavam que Deus tinha dado duas leis a Israel: a Lei escrita e a Lei oral. Ambas eram consideradas Torá – nenhuma tinha precedência sobre a outra. Na realidade, a Torá escrita e a Torá oral eram uma. Ambas foram dadas por Deus “no monte Sinai, pela mão de Moisés” segundo a interpretação de Levítico 26.46 na Sifra. A Torá oral consistia em toda a tradição exegética desenvolvida e transmitida oralmente pelos rabinos, tanto em matérias legais (Halakah), quanto em exposições homiléticas (Agadah). Inicialmente a Torá oral surgiu da necessidade de traduzir-se as Escrituras do hebraico (que entrou em declínio durante o exílio) para o aramaico. Eram feitas leituras do texto hebraico na sinagoga e estas eram seguidas de um resumo explicativo em aramaico. Essas paráfrases e suas explicações foram sendo expandidas e elaboradas a ponto de surgir a necessidade de serem registradas por escrito, dando origem aos primeiros Targumin (plural de Targum – explicação oral de passagens lidas). A princípio, o registro das explicações orais era proibido, mas com o tempo começou a ser feito. Os rabinos afirmavam que a autoridade da Torá oral vinha, primeiro, da sua antiguidade, que para os rabinos era a mesma da Torá escrita. Os rabinos se viam como os sucessores dos sacerdotes e levitas, a quem havia sido confiada a interpretação e aplicação da Lei em Israel. Eles sentiram a necessidade de encontrar uma interpretação que servisse como base para novas leis e costumes, gerando assim a Torá oral. Essas novas leis são referidas no Novo Testamento como a “tradição dos anciãos”. Muitas dessas tradições eram claramente interpretações forjadas da Leiescrita com vistas a legitimar novas práticas dentro do novo contexto em que Israel vivia. O Senhor Jesus rejeitou a Torá oral (“a tradição dos anciãos”), considerando-a como ensino de homens conflitante com as Escrituras (ver Mt 15.1-20; Mc 7.3 e 13. Cf. Gl 1.14; Cl 2.8). A Torá oral, contendo essas traduções, veio a tomar forma escrita a partir do século 3º d.C. e se constitui em fontes originais para a pesquisa da interpretação rabínica. Mesmo que tais documentos datem de uma época posterior ao período apostólico, muitos estudiosos acreditam que eles contêm muito da religião e da hermenêutica judaica do período da Torá oral. Existem muitos problemas relacionados ao uso desse material para estudos comparativos com o Novo Testamento. Um exemplo é a tese do estudioso J. Sanders, de que o farisaísmo judaico do século 1º d.C. não era legalista, e sim uma religião baseada na graça de Deus. Sanders utilizou-se dessas fontes rabínicas de data posterior ao século 1º d.C. como fundamento de sua tese, no que tem sido muito criticado por outros estudiosos, que consideram essa pesquisa como sendo anacrônica. As fontes para o estudo da interpretação rabínica das Escrituras O aparecimento e o desenvolvimento da literatura rabínica se deu por vários estágios importantes. O primeiro tipo de literatura a aparecer foi os midrashim. Midrashim O termo midrash vem da raiz hebraica darash, que significa “investigar, averiguar”, e denota estudo intenso, ou exame do sentido de uma passagem. O substantivo ocorre apenas duas vezes no Antigo Testamento (2Cr 13.22 e 24.27) e é traduzido em português como “história”. Quando se refere à época rabínica, o termo midrash pode significar tanto um tipo de literatura quanto uma forma de interpretação da literatura bíblica. É importante para o nosso estudo entender o midrash como um método de interpretação. Na verdade era o método usado por alguns escribas para chegarem ao sentido de uma passagem da Torá. O midrash ia além de uma interpretação literal e simples, e procurava penetrar no “espírito” da passagem, indo além do sentido evidente da mesma. A compilação dessas interpretações orais em forma escrita no século 3º d.C. foi chamada de Midrashim (plural de midrash). Os midrashim, portanto, foram aquele tipo de literatura judaica produzida por um método exegético, o midrash. São a nossa principal fonte para estudar a exegese rabínica. Existiram pelo menos dois tipos de midrashim, os quais descrevemos a seguir. Midrashim haláchicos Um primeiro tipo de midrashim que encontramos é o haláchico. A designação halakah vem do termo hebraico halak, “a caminhada”. O termo é usado para designar as exposições rabínicas da Torá, destinadas a mostrar o caminho que Israel deveria seguir, ou, mais exatamente, o caminhar requerido de alguém que queria seguir a Lei. Daí o nome halakah. Os midrashim haláchicos são os mais antigos. Entre eles encontramos a Sifra em Levítico e a Sifre em Números e Deuteronômio. Esses lidam primariamente com o material legislativo da Torá, procurando identificar as leis em meio ao extenso material narrativo. Em seguida, procuram descobrir os princípios para elaboração de novas leis adaptadas às circunstâncias presentes (lei oral), ou mesmo para justificar alguns costumes tradicionais em vigência. Midrashim agádicos ou homiléticos Outro tipo de midrashim é o agádico ou homilético. O nome vem do termo hebraico agadah, que significa “o relato”. Esses midrashim expõem primariamente as narrativas da Torá (as partes que não são consideradas material de legislação), as profecias e as experiências dos salmistas. Os midrashim agádicos procuram definir o sentido das histórias e experiências narradas por meio do vasto material bíblico. Seu conteúdo é, portanto, mais homilético e livre, e contém sermões pregados pelos mestres nas sinagogas e academias no período entre 200-500 d.C. Quase todo material agádico foi reduzido à escrita alguns séculos depois do período apostólico e a data exata é incerta. A redação final pode ter levado vários séculos após o desaparecimento dos sábios cujas homilias foram registradas. Reproduzimos abaixo uma porção da Mekhilta de Rabi ben Ishmael, um exemplo de midrash agádico tanaítico: Rabi Natan ensinou: De onde [isto é, de qual passagem da Escritura] alguém pode deduzir que Deus mostrou a Abraão, nosso ancestral, [as futuras realidades do] inferno, a revelação da Torá, o abrir do mar Vermelho? A Escritura diz: “E sucedeu que, posto o sol, houve densas trevas; e eis um fogareiro fumegante” – isto era o inferno, pois a Escritura confirma: “a fornalha [do Senhor está] em Jerusalém” [Is 31.9]. A tocha de fogo [Gn 15.17] era a revelação da Torá, pois a Escritura confirma: “Todo o povo presenciou os trovões, e os relâmpagos, e o clangor da trombeta, e o monte fumegante” [Êx 20.18]. E a expressão “… passou entre aqueles pedaços” [Gn 15.17] foi o milagre do mar Vermelho, pois a Escritura confirma: “Aquele que separou em duas partes o mar Vermelho” [Sl 136.13]. Deus também mostrou a Abraão o Templo e os sacrifícios, como as Escrituras indicam: “Toma-me uma novilha, uma cabra e um cordeiro, cada qual de três anos, uma rola e um pombinho” [Gn 15.9]. Deus também lhe mostrou os quatro impérios que estavam destinados a escravizar o seu povo, pois a Escritura diz: “Ao pôr do sol, caiu profundo sono sobre Abrão, e grande pavor e cerradas trevas o acometeram” [Gn 15.12]. “Pavor” é o império da Babilônia; “trevas” é o império dos medos e persas; “grande” é o império dos gregos; “caiu” é o quarto império, a Roma ímpia. Mishna Após o surgimento dos midrashim, veio o Mishna. Depois da queda de Jerusalém em 70 d.C., mestres e estudiosos judeus conhecidos como tannaim continuaram a elaborar e sistematizar a Torá oral, processo esse que, segundo imagina-se, foi iniciado pelo Rabino Hillel antes de Cristo. Por volta de 200 d.C. o Rabino Judá Ha-Nasi (c.135 — c.220 d.C.), patriarca da comunidade judaica na Palestina, promulgou uma coleção escrita dessas tradições. Essa obra ficou conhecida como Mishna (do hebraico shanah, que significa “repetir”), e tornou-se o texto oficial para o desenvolvimento da jurisprudência judaica posterior. O Mishna é uma obra haláchica, ou seja, concentra-se na exposição de material legislativo do Pentateuco, dividindo-os em seis seções atribuídas ao Rabino Akiba: Sementes (Zera’im), Festas Fixas (Moed), Mulheres (Nashim), Danos (Nezikin), Coisas Sagradas (Kodashim) e Purificações (Taharot). Diferente dos midrashim, que são comentários extensos sobre o texto, o Mishna quase não cita os textos bíblicos, além de ser breve. O Mishna apela como autoridade, não para passagens bíblicas, mas para os ditos de mais de 150 diferentes rabinos, incluindo os debates e os pontos de discordância entre eles. Outros ditos individuais foram colecionados em obras chamadas Baraitas. O Mishna é para os judeus a principal Escritura depois do Antigo Testamento, além de ser considerada pelos seus autores como parte intrínseca da Torá oral. Talmude Outro desenvolvimento da literatura rabínica é o surgimento dos Talmudes, contendo o material existente para o estudo da interpretação rabínica do Antigo Testamento. Usamos o plural porque existem dois deles: o Talmude de Jerusalém e o da Babilônia. O primeiro é menor e menos elaborado. Foi feito na Palestina e é o produto das discussões dos rabinos do período amoraico sobre a interpretação do Mishna (200 — 500 d.C.), e ganhou forma escrita apenas no século 5º. O segundo contém os ensinamentos dos rabinos das academias da Pérsia, e é bem maior e mais sofisticado. Ambos são compostos do Mishna e Guemara, esta última obra consistindo de exposições minuciosas e detalhadas do Mishna pelos sábios amoraicos. Enquanto o Mishna foi compilado em hebraico, o Guemara usa dialetos aramaicos. No Guemara temos os debates entre os sábios amoraicos sobre cada ponto do Mishna e nele encontramos instâncias de exegese bíblica, em que o texto é interpretado engenhosamente, de modo a se adaptar às tradições rabínicas.Abaixo, damos alguns exemplos selecionados da exegese rabínica encontrada no Talmude Babilônico: Rabi Jehoshua ben Levi disse: Grande é a paz, pois é como o fermento da massa. Se o Santo não tivesse dado paz ao mundo, espada e bestas o devorariam de completo, como está escrito [Lv 26.6]: “Estabelecerei paz na terra”. Está escrito [Ec 1.4]: “Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre”. O Rei Salomão quis dizer isto: embora uma geração passe e outra venha, um reino desapareça e outro apareça; e apesar de que decretos maus são passados vez após vez contra Israel, ainda assim Israel permanece para sempre. O Senhor não abandonará os judeus. Nunca serão aniquilados nem diminuirão, como está escrito: “Porque eu, o Senhor, não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos” (Capítulo sobre a paz no tratado Derech Eretz–Rabba e Zuta, do Talmude babilônico). A soberba é equivalente à idolatria, como está escrito [Dt 7.26]: “Não meterás, pois, coisa abominável em tua casa”; e também está escrito [Pv 16.5]: “Abominável é ao SENHOR todo arrogante de coração”. Já que a abominação mencionada em Deuteronômio é idolatria, e a mesma expressão é usada em Provérbios, aprendemos daí que a soberba é equivalente à idolatria (Cap. 11 do Tratado Derech Eretz-Rabba do Talmude Babilônico). Nunca um homem deve entrar na casa de seu vizinho sem permissão, e esta conduta pode ser aprendida do Santo, bendito seja Ele, que ficou na porta do jardim do Éden e chamou Adão: “Onde estás” [Gn 3.9]. Aconteceu com os quatro anciãos Rabi Gamaliel, Rabi Jehoshua, Rabi Eleazar e Rabi Aquiba, que foram às cidades interioranas de Roma. Numa delas vivia um amigo deles, um filósofo. Os quatro foram vê-lo e quando o Rabi Jehoshua bateu à porta do filósofo, este conclui de vez que aquela era a maneira de um sábio (Cap. 5 do Tratado Derech Eretz-Rabba do Talmude Babilônico). A exegese rabínica Nas fontes mencionadas (Midrash, Mishna e Talmude), e especialmente nos midrashim, encontramos os princípios hermenêuticos e os métodos exegéticos utilizados pelos rabinos para interpretar as Escrituras de Israel. Podemos afirmar que quanto ao seu conteúdo e propósito encontramos dois tipos de exegese: a exegese haláchica e agádica. A haláchica dedica-se à interpretação das leis escritas da Torá com o propósito de defini-las e entender seus princípios. Seu alvo é elaborar novas leis ou justificar as que já se encontram em vigor. A agádica, por sua vez, aplica-se a todo o material de caráter não legislativo tais como narrativas, profecias e salmos. Quanto ao método da exegese rabínica encontramos também duas formas: o peshat e o midrash. Peshat O termo vem do hebraico e significa “despir”, “depenar”, e daí a ideia de expor inteiramente. Como método o peshat é aquela atividade exegética dos rabinos que busca expor o sentido do texto bíblico por meio de um método similar em vários aspectos ao método que hoje chamamos de método gramático-histórico, o qual é sensível às considerações filológicas e ao contexto histórico da passagem. As principais características do peshat podem ser brevemente descritas como se segue. Busca do sentido mais simples O intérprete deveria buscar o sentido mais simples e natural do texto, sem engajar-se em especulações e interpretações elaboradas e distantes do que as palavras queriam dizer. Não se procurava um sentido além daquele que transparecia naturalmente da passagem bíblica. Exegese literal Na busca do sentido do texto, esse método procurava dar uma interpretação literal à passagem bíblica. Por exemplo, na Mekilta encontramos um peshat de Êxodo 17.8-16, em que a guerra de Israel e Amaleque é entendida literalmente, enquanto que outro rabino, interpretando de forma midráshica o versículo 9 (em que Moisés declara que estaria no topo do monte), diz que o topo são os méritos dos patriarcas, e o monte, os das matriarcas. Atenção à linguagem bíblica O peshat reconhecia que nem todas as palavras do texto têm necessariamente de conter algum sentido oculto. Alegavam os que usavam esse método que algumas palavras, se tiradas do texto, em nada faziam falta, pois estavam lá apenas por razões estilísticas, ou para separar assuntos. Em geral podemos dizer que o peshat existia em oposição consciente ao método midrash, que era bem mais livre, metafórico e alegórico. O peshat existia nos séculos 1º e 2º d.C., mas não como uma escola de interpretação definida. Os rabinos às vezes usavam peshat, outras vezes, midrash. Midrash Como já vimos acima, o termo midrash tem sido extensivamente debatido por estudiosos judeus e cristãos quanto à sua legitimidade para cobrir toda a literatura rabínica da época. O alvo dos intérpretes rabínicos com esse método era encontrar a aplicabilidade da Torá para o seu próprio tempo. Ao contrário do peshat, o método não se preocupa em estabelecer o sentido original e contextual de uma passagem bíblica, antes, ignora totalmente o contexto e as regras da linguagem bíblica. É importante lembrar que o termo midrash é usado tanto para um tipo de literatura como para um tipo de interpretação, assim como usamos hoje o termo “alegoria”. Existe a literatura que é escrita em forma alegórica e que deve ser lida como alegoria (e.g. O Peregrino de Bunyan) e existe a interpretação alegórica de textos, em que se busca significados ocultos no texto. O midrash, como interpretação, tinha diversas características. Multiplicidade de sentidos num único texto Ao utilizar-se do método midrash, os rabinos consideravam que as Escrituras eram divinas quanto a origem. Como resultado, atribuíam um sentido eterno ao texto, considerando cada expressão, cada letra, como significante. Diziam que cada palavra tinha “70 aspectos”, e, portanto, geração após geração poderia extrair lições de um texto, as quais eram consideradas como latentes ou implícitas. Desse modo, apontavam para a relevância das Escrituras e seus sentidos para todas as épocas. Na verdade, os sábios de Israel nesse período criam na teoria da interpretação progressiva das Escrituras. Conforme declara Nahum Sarna, exegeta judeu contemporâneo, A exegese rabínica está firmemente enraizada no princípio cardeal de que, inserido no texto bíblico, há uma multiplicidade de sentidos… uma variedade intrínseca e infindável de interpretações, mesmo que, ou talvez especialmente em virtude de, internamente, o texto ser internamente contraditório e repleto de antinômios, o que reforça a realidade da inspiração divina por detrás do texto. Alegorização do texto bíblico Tendo o ponto acima como pressuposição básica à sua interpretação, encontramos como principal característica do midrash a alegorização do texto bíblico. Uma das causas para a alegorização dos textos bíblicos era o conceito mecânico de inspiração adotado pelos rabinos, o que tendia a minimizar o aspecto humano das Escrituras. As alegorizações surgiam principalmente diante de algumas circunstâncias: 1. Quando encontravam hapaxlegoumena (palavras que só ocorrem uma vez nas Escrituras) – estas eram interpretadas puramente em termos midráshicos. Por exemplo, Rabino Ishmael não encontrou o nome das localidades Tofel e Labã citadas em Deuteronômio 1.1 nas demais listas dos locais de acampamento de Israel no deserto. Os rabinos seguintes interpretaram Tofel e Labã como sendo “palavras indecentes” proferidas pelos israelitas no deserto contra o maná por sua cor branca. 2. Quando encontravam antropomorfismos ou antropopatismos – os rabinos se opunham a qualquer descrição material de Deus, mesmo que fossem textos bíblicos que falassem figuradamente de Deus como tendo corpo (antropomorfismo) ou sentimentos humanos (antropopatismo). Textos sugerindo qualquer “materialismo” eram interpretados alegoricamente. Por exemplo, na passagem de Êxodo 12.13 Deus diz que ao passar “veria” o sangue do cordeiro nos portais e passaria adiante sem causar a destruição. Os rabinos interpretam “ver” como “conhecer” para evitar a figura antropomórfica do texto. Isto levava às vezes a interpretações quese desviavam grandemente do sentido literal. Um texto sobre Deus contendo algum antropomorfismo era às vezes interpretado como não se referindo a Deus. 3. Quando consideravam uma passagem supérflua – às vezes os rabinos alegorizavam passagens cujo sentido literal, na opinião deles, era absolutamente supérfluo. Assim, alguns deles interpretavam os relatos da história de Israel no deserto alegoricamente, porque criam que o propósito da Bíblia não é descrever eventos históricos ou trazer conhecimento do passado. Outro exemplo é a interpretação alegórica de Cantares pelo Rabino Akiva, a qual veio a se tornar dominante, ou seja, que o livro é sobre o amor entre a alma e Deus, entre o judeu e seu Criador. 4. Quando pensavam existir uma contradição entre textos haláchicos – nesses casos os rabinos tendiam a harmonizar os textos por meio de alegoria. Exemplo: os rabinos entenderam que “encontrar” o animal do próximo, em Êxodo 23.4, implica encontro físico, e “ver” o animal do inimigo, em 23.5, requer apenas o ver, sem aproximação física, o que se constitui numa contradição. A solução é não interpretar “encontrar” literalmente, mas no sentido de aproximação relativa, que os rabinos fixaram em um quinto de milha! 5. Quando havia uma contradição entre o sentido literal do texto bíblico e uma tradição haláchica existente (Torá oral) – nessas situações resolviam o problema com uma alegorização do texto bíblico. Um exemplo é a interpretação de olam, “para sempre” em Êxodo 21.6, a qual é rejeitada em favor da interpretação haláchica, de que olam significa “até o ano do jubileu”. Significado dos detalhes Os rabinos que usavam midrash buscavam significado espiritual e teológico em todo e qualquer detalhe do texto sagrado. Não somente os detalhes, mas até mesmo a ordem e repetição em que eles ocorriam tinham algum sentido. O mestre nesta área foi o Rabino Akiva, que explicava cada letra e palavra do texto hebraico. Ele ficou conhecido por achar um sentido diferente a cada ocorrência de et, a partícula indicativa do objeto direto. Seu opositor foi o Rabino Ishmael. Notarikon No midrash, cada nome próprio tinha um sentido. Aqui entra o uso do notarikon – um método cabalístico (do hebraico Kabbalah – “aquilo que foi recebido”) de interpretação em que o intérprete “encontra” novas palavras usando a combinação da primeira e última letra de algumas palavras consideradas especiais. Usavam também os métodos de divisão de palavras para encontrar esses significados. Esses métodos, assim como a gematria, são cercados de mistérios que seriam passados dos mestres para seus alunos. A gematria levava em consideração o valor numérico de cada letra do alfabeto hebraico para descobrir significados. Por exemplo, em algumas fontes amoraicas encontra-se uma interpretação de que os 318 membros da casa de Abraão que foram à guerra refere-se somente a Eliezer, cujo nome tem o valor numérico de 318, segundo o sistema de gematria. Tendência à harmonização O midrash concebia as Escrituras como uma unidade monolítica simples, e era insensível ao fato de que a revelação foi dada de forma progressiva, e que há um crescendo na mesma, resultando em diferença na linguagem bíblica. Como resultado, todas as contradições encontradas eram resolvidas pela harmonização. Dois textos conflitantes eram geralmente harmonizados por meio de uma terceira passagem. Por exemplo, em Êxodo 12.5 Israel deveria trazer o sacrifício pascal das ovelhas ou das cabras, enquanto que em Deuteronômio 16.2 diz das ovelhas ou das vacas. A contradição é resolvida pelo Rabino Akiva com uma terceira passagem, Êxodo 12.21, na qual Moisés ordena que os anciãos tomem um cordeiro para o sacrifício. Atualização ou aplicação Esta é uma característica central da interpretação midráshica. Os rabinos interpretavam a Escritura para aplicar seus resultados ao presente. Preocupavam-se com a aplicação contemporânea das Escrituras. Isso tomava forma pela elaboração de novas leis que atendiam as circunstâncias presentes e justificavam as leis já em vigor. Baseavam-se na pressuposição de que o texto tinha múltiplos sentidos e que havia vários níveis de significado em cada passagem. Assim, enquanto o peshat procurava responder a pergunta: “o que o texto quis dizer na época em que foi escrito?”, o midrash procurava responder a pergunta: “o que o texto quer dizer hoje?”. A resposta era dada à luz das ideias e ensinos dos rabinos. Regras de interpretação O sistema de interpretação dos rabinos foi desenvolvido oralmente durante um longo tempo até que as regras utilizadas foram compiladas de maneira sistemática. Encontramos na literatura rabínica três listas de regras de interpretação, que se propõem a esclarecer e sistematizar o método exegético usado pelos rabinos desde cedo. As sete regras (middot) de Hillel Essas regras são as mais antigas. Elas são atribuídas pelo Talmude a Hillel (século 1º a.C.), embora não seja claro se ele as criou ou adaptou. Elas formam a base para a interpretação rabínica de material haláchico. As regras aparecem listadas em hebraico em sentenças crípticas e curtas, e boa parte dos estudiosos tem dificuldades em dar exemplos concretos de sua utilização. Qal wahomer (leve e pesado) – Inferência do menor para o maior – o que se aplica em casos menos importantes certamente se aplicará em casos mais importantes. Exemplo: o texto de Deuteronômio 21.21-23 afirma que se alguém fosse executado o seu corpo deveria ser enterrado no mesmo dia para não contaminar a terra. O Rabino Meir, usando desse princípio, conclui que “Se Deus fica perturbado com a morte de um criminoso, quanto mais, então, não ficará Deus perturbado com coisas ruins que acontecem com o bom”. Gezerah shawah (equivalência de expressões) – Inferência da analogia de expressões – quando as mesmas palavras são aplicadas para dois casos diferentes, segue-se que as mesmas considerações se aplicam a essas palavras. Exemplo: comparando-se Juízes 13.5 com 1Samuel 1.11 pode-se concluir que Samuel era nazireu, uma vez que a mesma expressão “não passará a navalha” é usada em ambos os textos. Binyan ab mikathub ‘ehad (construindo a partir de um texto) – Se uma mesma sentença é encontrada em vários versos deve se aplicar o mesmo princípio em todos. É uma generalização partindo de uma única passagem. Exemplo: a pedra do moinho não pode ser tomada como penhor ao devedor, pois representa a segurança de sua vida (Dt 24.6). A regra pode ser gene- ralizada para incluir tudo que representa a segurança do indivíduo. Binyan ab mishene kethubim (construindo a partir de dois textos) – Se um princípio é estabelecido relacionando dois versos, esse princípio, uma vez estabelecido, pode ser aplicado a outros versos. É uma generalização partindo de diferentes passagens. Kelal upherat (o geral e o particular) – Se uma lei ou proposição geral é seguida da enumeração de particulares, a lei geral só se aplica aos particulares ali enumerados; se categorias específicas são seguidas de uma proposição geral, a proposição geral pode ser aplicada a outros particulares. Kayoze bo bemaqom áher (analogia feita de outro lugar) – A dificuldade em uma lei pode ser resolvida comparando-a com outro texto similar. Dabar halamed meinyano (explicação obtida do contexto) – O sentido de uma passagem pode ser deduzido pelo seu contexto. Exemplo: Êxodo 16.29 é qualificado pelo contexto, de outra forma, a proibição incluiria inclusive o sair de casa durante o sábado. Com essas regras os sábios estavam interessados em esclarecer o tipo de comportamento específico esperado dos seguidores da Lei. Essas regras eram livremente usadas de acordo com a necessidade do intérprete. Não encontramos nelas nenhuma instrução sobre como e quando deveriam ser usadas. As Sete Regras foram expandidas para formar as Treze Regras do Rabino Ishmael, segundo a introdução do Sifra (comentário em Levítico), ainda que outras fontes discordem quanto ao número e composição das mesmas. Como as regras de Hillel, elas eram usadas pelos rabinos para explicar parteshaláchicas do Pentateuco, embora ocasionalmente fossem usadas para material agádico. Além dessas, encontramos ainda as Trinta e Duas Regras do Rabino Eliézer, que é a lista mais longa e detalhada. Ela contém regras para interpretação da agadah, e aparece em fontes datando de vários séculos depois de Cristo, e, portanto, não pode servir com segurança como fonte para a interpretação rabínica do período apostólico. A maior parte dessas regras de interpretação representa princípios racionais e lógicos, que podem ser encontrados na literatura de qualquer povo. Muitos estudiosos argumentam que há muito pouco (ou quase nada) que seja caracteristicamente “rabínico” nessas regras. O que é reconhecidamente rabínico é o uso casuístico que os rabinos fizeram dessas regras, utilizando-as para amoldar a Escritura ao material haláchico em vigor, derivando interpretações absurdas, como por exemplo: “Se o prato de ouro do altar resistia ao fogo, quanto mais um transgressor em Israel!”. Conclusão: nenhum israelita sofreria as penas do fogo eterno do Gehenna. O Novo Testamento e a exegese rabínica Uma questão interessante no estudo dos intérpretes da Bíblia é se os escritores do Novo Testamento utilizaram-se, em sua hermenêutica, dos princípios e métodos rabínicos de interpretação. O tipo de interpretação encontrado no Novo Testamento é rabínico, considerando que seus autores eram judeus? No caso de Paulo, que era um rabino treinado, a questão ganha dimensões ainda mais interessantes. Vários estudiosos contemporâneos afirmam que a interpretação paulina é basicamente rabínica. Analisemos algumas das alegações quanto à interpretação de Paulo, que foi um aluno de Gamaliel e que, segundo a tradição, foi a segunda geração dos sucessores de Hillel. Era Paulo um rabinista? Muitos estudiosos reivindicam ter achado nas cartas de Paulo inúmeros paralelos entre a sua exegese e a exegese rabínica. Segundo esses estudiosos, era de se esperar que Paulo, como filho de sua época, utilizasse na sua interpretação das Escrituras os métodos exegéticos vigentes. Embora sua conversão tivesse revolucionado sua forma de encarar o Antigo Testamento, o treinamento rabínico que havia recebido aos pés de Gamaliel permaneceu firmemente gravado em seus métodos e hábitos de leitura e exposição. Diversos autores, como A. F. Puukko (1928), sugeriram que Paulo não somente conhecia, mas de fato utilizou as Sete Regras de Hillel. Puukko foi seguido por H. J. Schoeps, H. Hüller e Joaquim Jeremias. Este último defendeu a tese de que Paulo era um hillelita treinado. Dois defensores modernos da origem rabínica da hermenêutica Paulina são Earle Ellis e Richard Longenecker, o qual explica a liberdade que Paulo usa para com o Antigo Testamento como sendo instâncias de midrash rabínico. Mais recentemente, Paul J. Tomson defendeu a tese de que o fator controlador do pensamento de Paulo (e consequentemente, do seu uso do Antigo Testamento) era uma vida estruturada pela halakah. Paralelos citados Alguns dos paralelos que são normalmente citados para provar que Paulo funcionava como um rabino treinado no uso do Antigo Testamento em suas cartas são estes: 1. Uso de midrash em Romanos 9-11, ou seja, citação de passagens do Antigo Testamento, algumas vezes ligadas entre si por uma palavra-chave e seguidas de um comentário ligeiro e informal com vistas a uma aplicação atualizada da passagem ao presente. 2. Uso da primeira regra de Hillel (Qal wahomer – leve e pesado) “do menor para o maior” em 1Coríntios 9.9, citando Deuteronômio 25.4; e ainda 2Coríntios 3.6-11 citando Êxodo 34.30 e Jeremias 31.31ss. 3. O midrash em 1Coríntios 10.1-4 da agadah sobre a peregrinação dos israelitas no deserto, ou seja, há uma expansão e atualização da passagem com a alegorização da “rocha”. 4. O tratamento altamente alegórico da agadah sobre Sara e Hagar em Gálatas 4.21-31. Paulo mesmo denomina a passagem de “alegoria”. 5. Seu argumento baseado no singular da palavra sperma em Gálatas 3.16, conforme está na Septuaginta (Gn 12.7; 13.15; etc.), que relembra os artifícios rabínicos baseados em uma única palavra ou letra. 6. O midrash em Abraão, o pai da fé, em Romanos 4. Fórmulas literárias fixas Além dos paralelos citados acima, alguns estudiosos vão mais longe e reivindicam identificar em Paulo (e no Novo Testamento) ocorrências de fórmulas literárias de exposição rabínica que aparecem na literatura rabínica de vários séculos depois de Cristo, como o yelammedenu rabbenu (“que nosso mestre nos ensine”). Essa fórmula que tratava de material haláchico consistia de: a) Tema e pergunta levantados pelo texto do dia; b) Contrapergunta e exposição, que era feita via exposição de textos secundários, ligados ao texto inicial e ao tema por palavras-chave; c) Aplicação escatológica por meio de um argumento “do menor para o maior”; d) Texto final. Alguns estudiosos identificam um padrão similar em Gálatas 4.21 – 5.1: a) Introdução e texto inicial – 4.2ss com Gn 21; b) Citação suplementar (4.27; Is 54.1) e exposição ligada verbalmente ao texto inicial e final (4.22-29); c) Texto final e aplicação (4.30 – 5.1). Embora reconheçamos que a autoridade exegética de Paulo em nada seria diminuída pela utilização de regras e métodos rabínicos, devemos ao mesmo tempo estar cientes dos inúmeros problemas relacionados com estudos comparativos entre o Novo Testamento e a literatura rabínica. Em primeiro lugar, muitas dessas similaridades se devem ao fato de que algumas regras de interpretação são universais, lógicas, e se encontram não somente na literatura rabínica, mas na grega e na romana, como, por exemplo, a regra “do maior para o menor”. Ao dizer que “se Deus não poupou o seu próprio Filho… como não nos dará com ele todas as coisas” Paulo não estaria necessariamente seguindo uma regra de Hillel, mas uma lógica universal, de que quem dá o maior, também dá o menor. Os problemas com fontes rabínicas Em segundo lugar, muitos estudiosos citam fontes rabínicas aparentemente sem a devida atenção a muitos desses problemas. Listamos abaixo alguns destes problemas discutidos por P. S. Alexander em seu excelente artigo (veja a bibliografia). O estado dos textos rabínicos Muitos textos rabínicos (Midrashim, Mishna e Talmude) não dispõem ainda hoje de um aparato crítico. Existe uma tremenda discrepância entre os manuscritos mais antigos de boa parte do material rabínico mais importante. Existem tantas variantes que se pensa que esse material passou por várias recensões. Por exemplo, o texto final da Mekhilta do Rabino Ishmael, editada por Horovitz-Rabin, difere assustadoramente do texto final editado por Lauterbach. A primeira questão, portanto, é qual texto do Mishna, do Talmude e dos Midrashim será usado para a comparação. Não há resposta fácil a essa pergunta. A compreensão dos textos Em muitos casos, estudiosos do Novo Testamento estão lendo os textos rabínicos com os óculos dos comentaristas judeus medievais. Existe pouca dúvida hoje que Rashi e Maimônides, comentaristas rabínicos da Idade Média, impuseram, em certa medida, a sua própria interpretação aos textos originais. Os estudos rabínicos devem progredir no sentido de determinar o que os textos queriam dizer na época em que foram escritos. Antes disso, uma comparação com os textos do Novo Testamento fica difícil. A data exata dos textos rabínicos As datas geralmente aceitas hoje são aquelas determinadas pelos estudiosos do século 19, como Zunz. Geralmente essas datas são grandemente questionáveis e foram determinadas a partir de critérios bastante subjetivos. Sabemos que os escritos rabínicos se desenvolveram a partir de material oral transmitido ao longo de séculos, e que a data exata da sua colocação em escrita é extremamente difícil de determinar. Em alguns casos, a margem de erro pode chegar até 200 anos. Nesse caso, uma comparação com o material do Novo Testamento, que data do século 1º d.C., corre o risco de se tornar absolutamente anacrônica. A exatidão das atribuições Atribuição é um dito “atribuído” a determinadorabino. Por exemplo, um rabino declara: “Rabino Fulano de Tal disse isto e isto”. A autoridade que o Mishna reivindica é basicamente a das atribuições. Mas, será que são exatas? Como podemos saber? Os críticos do Novo Testamento hoje são muito mais céticos quanto aos ditos de Jesus nos evangelhos do que quanto às atribuições. Muitos hoje aceitam um dito atribuído a Hillel quinhentos anos após a morte dele! Às vezes o mesmo dito é atribuído a rabinos diferentes. Além disso, o conteúdo das atribuições não deve ter permanecido estável, mas sofreu alterações substanciais durante o longo período de transmissão. Portanto, é praticamente impossível recuperar-se hoje o dito original e literal do rabino em questão. Anacronismo Muitas vezes encontramos estudiosos do Novo Testamento citando textos rabínicos dos séculos 4º e 5º, ou de ainda mais tarde, para ilustrar o ensino e métodos rabínicos do século 1º. Assume-se que há uma continuidade ininterrupta entre os fariseus dos anos 70 d.C. e os rabinos que vieram depois. Porém, os traumas causados pela derrubada do templo no ano 70 d.C., bem como pela derrota de Bar koshba em 135 d.C., quando o Judaísmo perdeu sua instituição religiosa central e a sua liderança, certamente contribuíram para a quebra da continuidade. O Judaísmo que emergiu no século 2º d.C. dificilmente seria o mesmo daquele do século anterior. O axioma judaico de uma tradição farisaico-rabínica ainda não foi provado. Paralelomania Muitos estudiosos são culpados de “paralelomania”, isto é, eles colocam lado a lado elementos do Cristianismo e Judaísmo primitivos, constatam similaridades e, com base nelas, concluem que o Cristianismo copiou isto ou aquilo do Judaísmo da época. Além do fato de que não havia uma forma única do Judaísmo no período apostólico (fariseus, saduceus, essênios, Filo, apocalípticos, etc.), similaridades de pensamento e métodos podem se explicar de outra maneira que não dependência direta. Conclusão Em razão dos problemas relacionados com o material rabínico disponível para comparações, o estudioso do Novo Testamento deve ser cauteloso ao citar os Midrashim, Mishna, Talmude e outros materiais rabínicos para ilustrar o farisaísmo do período apostólico. O método de Paulo, bem como dos demais autores do Novo Testamento, em usar o Antigo Testamento não pode e nem deve ser entendido exclusivamente à luz dos métodos rabínicos que aparecem em escritos datando de uma época bem posterior. Não devemos, portanto, assumir que o tipo de interpretação do Antigo Testamento que encontramos no Novo Testamento seja exclusivamente rabínico. Muito ainda há para ser atestado em termos de cronologia para que se possa fazer afirmações mais diretas sobre o tema. Capítulo 3 A comunidade do mar Morto Introdução A descoberta, no início de 1947, de antigos manuscritos em cavernas nas proximidades da vila de Qumran, situada na margem norte do Mar Morto, na Palestina, trouxe mais luz sobre os intérpretes das Escrituras do Antigo Testamento no período do segundo Templo e no início do período apostólico. Esses documentos, agora conhecidos como Manuscritos do Mar Morto, embora aparentemente produzidos por uma seita judaica que havia se isolado da corrente principal do Judaísmo da Palestina, certamente refletem as práticas hermenêuticas em vigor naquela época. O tipo de interpretação que encontramos nesses manuscritos, conquanto tenha similaridades com a exegese rabínica que estudamos no capítulo anterior, distancia-se desta e se aproxima mais daquela praticada no Novo Testamento, em diversos aspectos que comentaremos mais adiante. Isso não quer dizer que os intérpretes de Qumran conhecessem a literatura cristã produzida em meados do século 1º – embora haja estudiosos que sustentem, até agora sem comprovação, que entre os fragmentos encontrados em Qumran havia pedaços do evangelho de Marcos, como o erudito católico José O’Callaghan. O reverso também é verdadeiro. Não existe qualquer evidência indiscutível de que os autores do Novo Testamento conheciam a comunidade de Qumran, seus ensinamentos e seus escritos, muito embora uns poucos eruditos ainda sugiram uma estada de João Batista ou de Jesus entre os membros da seita durante um período. Apesar de não existir uma dependência direta comprovada, tanto os escritos do Novo Testamento quanto os da irmandade de Qumran foram produzidos na mesma época e dentro de um mesmo contexto linguístico, cultural e, até certo ponto, religioso: as duas comunidades se consideravam legítimas herdeiras do Judaísmo. Esse fato certamente explica as semelhanças entre o modo como o Antigo Testamento é interpretado em Qumran e no Novo Testamento. A comunidade que produziu os Manuscritos Perguntemos agora quem foram os intérpretes do Antigo Testamento em Qumran. Para a resposta, devemos lembrar que estamos tratando de duas descobertas arqueológicas na mesma área: os manuscritos encontrados em jarros de barro dentro de várias cavernas, e em um mosteiro não muito distante. Qual é a exata relação entre as duas? Foram os manuscritos produzidos pela comunidade que vivia no mosteiro? A comunidade apenas adquiriu e guardava tais manuscritos? As cavernas eram a biblioteca da comunidade? O que levou a comunidade a esconder ali os seus preciosos escritos? Ou se trata de duas descobertas sem qualquer relação uma com a outra? Algumas dessas perguntas continuam ainda hoje sem uma resposta unânime por parte dos estudiosos. Mas parece ser consenso da maioria que uma irmandade de essênios morava no mosteiro e que os manuscritos são de sua autoria. Acredita-se que a irmandade abandonou o mosteiro durante a invasão romana da Palestina em 68 d.C. Os romanos posteriormente destruíram também o templo em 70 d.C. Antes da invasão romana os essênios teriam escondido nas cavernas seu bem mais precioso, que era a biblioteca. Após esse período, nada sabemos sobre o destino da seita. Entretanto, existe uma corrente menor de estudiosos sugerindo que os manuscritos haviam sido produzidos em Jerusalém e guardados no Templo, até que fossem levados, às pressas, diante da proximidade da invasão romana, para a segurança de cavernas fora da cidade, onde ficaram até sua descoberta em nossa época. Desse modo, esses manuscritos refletiriam o tipo de interpretação judaica em vigor no coração do Judaísmo, pouco antes de Jesus surgir em cena e, quem sabe, até durante sua época. Essa teoria é atraente e explica diversas coisas, como por exemplo, a enorme quantidade de manuscritos (que deveria ter sido difícil de produzir por uma única seita), mas carece de maior fundamentação. A maioria dos estudiosos ainda pensa que os manuscritos foram realmente produzidos pela comunidade que habitava no mosteiro, embora se dividam quanto à origem da comunidade: se dos fariseus ou dos saduceus. De qualquer maneira, os manuscritos contêm, no mínimo, informações preciosas sobre a exegese das Escrituras praticada por uma linha do Judaísmo naquela época. Precisaremos conhecer um pouco mais a comunidade que abrigava os rolos, para melhor entender a hermenêutica dos intérpretes da Bíblia que labutaram ali. As principais fontes para a história e identidade da comunidade à qual pertenciam esses intérpretes são os próprios rolos encontrados e as informações fornecidas por autores antigos, como Flávio Josefo (37-93 d.C.), Plínio, o Velho (23-79 d.C.) e Filo de Alexandria (c.20 a.C. – 50 d.C.). Quem escreveu os Manuscritos? Quanto aos manuscritos encontrados, devemos notar que nenhum contém uma autoidentificação, ou narrativa direta e explícita da história da comunidade. O conhecimento que obtemos dos manuscritos é indireto e deduzido. Este é um dos motivos pelos quais os estudiosos não são unânimes em suas conclusões sobre a verdadeira identidade da seita, muito embora a maioria deles entenda que a seita era composta de essênios. Flávio Josefo menciona um grupo de essênios em suas obras “Antiguidades judaicas” e “Guerras dos Judeus”. Também Plínio, o Velho, fala sobre o grupo em suas obras “Hipotética” e “História Natural”(c. 77 d.C.). Nesta última, ele menciona que a seita dos essênios morava ao longo das margens do Mar Morto. Filo, o filósofo-teólogo judeu de Alexandria, em seu tratado “Todo Homem Bom é Livre”, menciona o grupo dos “terapeutas” e descreve os membros desse grupo de uma maneira admiravelmente similar ao que sabemos da irmandade que vivia no mosteiro próximo às cavernas. Ele faz um contraste entre os “terapeutas” e os essênios, que ele considerava como outra seita do Judaísmo: (1) os essênios eram artesãos – os terapeutas tinham uma vida contemplativa de Deus; (2) os essênios eram homens solteiros – os terapeutas tinham mulheres como membros (notar que Flávio Josefo dizia que alguns dos essênios eram casados); (3) Filo contrasta as refeições dos terapeutas (sagradas e realizadas no sétimo dia) com as orgias descritas na literatura grega de Homero e as refeições filosóficas de Platão. Embora ainda existam problemas não resolvidos com relação à história e identidade exatas da comunidade que guardava os manuscritos (e que possivelmente produziu a maioria – ou todos – deles), os estudiosos concordam em alguns pontos centrais. Existem duas teses principais quanto à origem da seita. Na primeira, acredita-se que a comunidade formou-se entre 150 e 100 a.C., quando um grupo de judeus piedosos, possivelmente fariseus, retirou-se da Palestina para Qumran, em protesto contra a liderança ilegítima dos sacerdotes hasmoneanos, que passaram a controlar o Templo, o culto e os sacrifícios. Na segunda teoria, defende-se que a comunidade formou-se a partir de um grupo de saduceus que se retirou para o deserto, quando os Macabeus, ao assumirem em 152 a.C. o controle da nação, após a revolta vitoriosa contra os gregos selêucidas, adotaram a tradição legal dos fariseus. Aqui, em nossa obra, adotamos a primeira tese, que representa a maioria, ou seja, que a origem da comunidade é farisaica. O líder da revolta e da debandada para o deserto parece ter sido o “Mestre da Justiça”, personagem misteriosa e não identificada nos escritos da comunidade, mas a quem se atribui a autoria de boa parte do material produzido e a primeira liderança da irmandade. A maioria dos estudiosos identifica a comunidade como sendo um grupo de “essênios” conforme mencionados por Flávio Josefo, Plínio e Filo, muito embora nessas descrições encontremos contradições. Por exemplo, Flávio Josefo se refere ao fato de que os essênios se casavam, enquanto que Plínio e Filo parecem sugerir que eram celibatários. O fato de que foram encontradas ossadas de mulheres e crianças no cemitério do mosteiro pode fazer a balança pender em favor de Flávio Josefo. Os essênios, segundo ele, representavam a terceira seita dos judeus, ao lado dos fariseus e saduceus. Crenças da comunidade Com base nos manuscritos produzidos pela comunidade pode-se sistematizar as suas principais crenças. Os comentários aos livros bíblicos feitos por membros do grupo – provavelmente o Mestre da Justiça escreveu a maioria deles – bem como os escritos que tratavam da vida comunitária e das suas práticas religiosas, revelam um conjunto de convicções que formavam a base doutrinária e prática da irmandade, bem como os princípios que controlavam sua interpretação das Escrituras de Israel. Abaixo mencionamos apenas aquelas que aparentemente influenciaram de modo determinante os intérpretes bíblicos da comunidade. O verdadeiro Israel A comunidade considerava-se o remanescente fiel de Israel, profetizado nas Escrituras. O Judaísmo palestino, para eles, havia se desviado e corrompido o culto no templo de Jerusalém. Eles cortaram suas relações com o templo e com o Judaísmo, e em vez de oferecer sacrifícios, tinham uma refeição comunal para os mais avançados da seita. Mantinham uma atitude crítica para com o Judaísmo da Palestina e sua liderança sacerdotal. Como o verdadeiro povo de Deus, aguardavam a restauração do culto no templo e do verdadeiro sacerdócio. Sua interpretação das Escrituras era controlada por esta crença, que os levava a encontrar passagens que comprovavam essa avaliação. Veremos alguns exemplos mais adiante. Outro aspecto da sua crença, já que acreditavam serem o verdadeiro Israel, era o conceito da nova aliança. Os essênios criam que a nova aliança profetizada por Jeremias (Jr 31.31-34) havia sido estabelecida por Deus com a comunidade, quando eles se retiraram para o deserto. A antiga aliança havia sido desfeita no exílio, e Israel ainda estava no cativeiro. Porém, Deus havia estabelecido a sua aliança com o verdadeiro Israel, cujo líder e fundador era o “Mestre da Justiça”. O fato de se considerarem o povo da nova aliança, a continuação legítima do período bíblico, fazia que entendessem que somente eles tinham acesso à correta interpretação das Escrituras. Os últimos dias A consciência escatológica está presente nos escritos da comunidade. Eles acreditavam estar vivendo nos últimos tempos, conforme anunciado pelos profetas, e aguardavam a manifestação escatológica de Deus, por meio da batalha final entre o bem e o mal. Nesta batalha, Deus destruiria todo o mal e purificaria Jerusalém. Eles tomariam parte nessa batalha, como os “filhos da luz”. Os detalhes da batalha estão descritos no Rolo da Guerra, em que se narra a batalha a ser travada no último dia entre os filhos das trevas e os filhos da luz. Comentando Isaías 10.34–11.2, o autor dessa obra diz que o rebento de Jessé é o Príncipe da Congregação, o líder da comunidade, que matará com golpes os inimigos. Diz ainda que um Sacerdote de renome comandará a morte dos Kittim. Aparentemente, alguns membros de Qumran se juntaram aos zelotes, outro ramo do Judaísmo, na fortaleza de Massada, a oeste do Mar Morto, no início da década de 70 d.C., para resistir à invasão romana (um rolo dos Salmos e do livro de Eclesiástico, similar aos rolos encontrados nas cavernas de Qumran, foram encontrados nas ruínas de Massada). Eles devem ter julgado que a luta dos zelotes contra Roma era a última guerra contra o mal, mencionada no Rolo da Guerra. Massada caiu, conquistada pelos romanos, entre 72 e 74 d.C., sob o comando do general Flavius Silva. Muitos dos defensores de Massada cometeram suicídio para não cair prisioneiros dos romanos. Messianismo A crença messiânica dos essênios não é fácil de se precisar. Aparentemente, criam na futura aparição de três messias: o Messias de Israel, da descendência de Davi; o Messias de Arão, descendente de Arão, o sumo sacerdote. Esse recebia maior importância no conceito da comunidade; e ainda outro, que seria o Profeta a aparecer nos últimos dias e que restauraria a profecia que havia cessado em Israel após Malaquias. Os fariseus já haviam desenvolvido a crença na ideia dos dois primeiros messias (de Israel, que seria um líder político, e o de Arão, um sacerdote), partindo de Zacarias 4.14. Mas os essênios acrescentaram ainda um terceiro. Além do mais, eles levavam muito mais a sério a sua expectativa messiânica. No seu afã de se prepararem para a chegada dos messias, isolaram-se do mundo, praticavam o celibato (alguns) e seguiam rituais purificatórios. Eles eram tão legalistas, ou mais, quanto os fariseus. As Escrituras Os essênios aceitavam o Antigo Testamento como sendo a Palavra de Deus, e se propunham a uma observância meticulosa e detalhada da Lei de Moisés conforme interpretada pelos seus líderes. Criam que a eles, e especialmente ao fundador da comunidade, o Mestre da Justiça, Deus havia revelado o verdadeiro sentido das Escrituras. As interpretações dele são consideradas como inspiradas e dadas por revelação divina. O Judaísmo da Palestina já estava desenvolvendo a ideia de um cânon de livros sagrados e inspirados por Deus, como consequência do término da inspiração profética com Malaquias. A comunidade de Qumran, entretanto, via a Bíblia como ainda aberta, e a ela associaram seus escritos, como sendo também inspirados. Uma boa parte do tempo era dedicada à cópia e estudo da Lei. Um dos juramentos feitos pelos membros incluía o de preservar os escritos da comunidade. Foi,provavelmente, graças a isso que hoje temos a sua biblioteca. Os escritos da comunidade A irmandade de Qumran produziu muitos manuscritos. Os escritos encontrados nas cavernas podem ser classificados de diversas formas. Aqui seguiremos a classificação conforme o conteúdo. Escritos bíblicos Até a descoberta dos rolos do Mar Morto, os manuscritos mais antigos do Antigo Testamento em hebraico datavam dos séculos 9º e 10º d.C., e os em grego (Septuaginta) do século 4º d.C. Os manuscritos achados em Qumran, contendo textos de livros do Antigo Testamento em hebraico, datam de um milênio mais cedo. Especialistas acreditam que a grande maioria dos manuscritos foi produzida entre o século 3º a.C. e 68 d.C. Um fragmento da Septuaginta também foi encontrado. Foi achado nas cavernas um rolo contendo o livro de Isaías completo (existe outra cópia danificada e incompleta), cerca de 20 rolos contendo mais de cem dos salmos e fragmentos de Levítico. Esses são mais preservados. Além desses, foram achados fragmentos de mais 21 livros do Antigo Testamento. No geral, preservam a mesma leitura do texto Massorético, no qual se baseiam as versões da nossa Bíblia em português, com pequenas alterações (adições e omissões) feitas pelos escribas de Qumran. Uma curiosidade foi a descoberta de filactérios, pequenas caixas de couro com textos bíblicos em miniatura, cuidadosamente escritos com um incrível grau de miniaturização. Filactérios eram populares na Palestina, e eram usados especialmente pelos fariseus. Os demais livros do Antigo Testamento são atestados em outros manuscritos da irmandade (exceto Ester). Também foram achados rolos e fragmentos de vários livros apócrifos, como Gênesis Apócrifo (em aramaico), Tobias, Eclesiástico, o Livro do Jubileu, o Livro de Enoque, e alguns dos Testamentos dos Doze Patriarcas. Alguns estudiosos reivindicam que fragmentos em grego encontrados nas cavernas são de livros do Novo Testamento, entre eles os evangelhos de Mateus e Marcos (6.52-53), e as cartas de Tiago e 1Timóteo. Outros estudiosos, aceitando essas reivindicações, propõem uma revisão completa nas teorias que datam Marcos após 70 d.C. e 1Timóteo no século 2º. Entretanto, a maioria dos estudiosos tem rejeitado essa identificação, pois não há qualquer evidência nos manuscritos de que a comunidade conhecia Jesus. Há um texto que foi intitulado “O Messias Crucificado” (4Q285), mas é altamente polêmico quanto à origem e conteúdo. Há outro fragmento em aramaico (4Q246) que menciona “o filho de Deus”, como um herói militar, mas a descrição que faz desse Messias é bastante diferente de Jesus e de seu ministério. O que nos concerne, agora, é a preocupação da comunidade em manter uma biblioteca com tantos escritos bíblicos. A resposta que nos parece mais evidente é o alto apreço que a comunidade tinha pelas Escrituras, a sua separação dos sacrifícios e do culto no templo de Jerusalém. Esse último fator provavelmente havia deslocado o centro de sua atividade religiosa, ou seja, do templo para as Escrituras (coisa similar iria acontecer mais tarde no Judaísmo, após a destruição do templo em 70 d.C.). Escritos religiosos Dentre os manuscritos mais conservados encontram-se aqueles relacionados com a vida da irmandade. Essas obras detalham regras de conduta e instrução religiosa dos sectários, e constituem a fonte mais importante para a reconstrução de sua história, crenças e práticas. A maioria delas aparenta ter sido escrita pelo seu líder, o Mestre da Justiça. As principais obras são estas: A Regra da Comunidade (1QS) – É possivelmente o documento mais antigo da irmandade. Contém instruções sobre o processo de iniciação, a vida comunal, o exercício da disciplina para com os faltosos, um código penal, um modelo de sermão, extratos litúrgicos, entre outras coisas. Esporadicamente, uma passagem das Escrituras é mencionada como texto- prova de uma regra ou instrução. O Documento (ou Pacto) de Damasco (CD) – Já em 1896-7 duas cópias desse documento, datando do período medieval (séculos 10º e 12), haviam sido descobertas num depósito (“geniza”) no Cairo. Mas por falta de maiores informações ou referenciais históricos, não se fez qualquer ligação entre os dois textos descobertos e a irmandade dos essênios mencionada pelos antigos. Até que em Qumran foram descobertos fragmentos extensos do mesmo documento. O título “Pacto de Damasco” vem da sua autodesignação como “uma exortação aos que são da nova aliança feita na terra de Damasco”. O documento se divide em duas partes, uma “exortação” e uma série de “estatutos”. Na “exortação”, o Pregador – possivelmente o Mestre da Justiça – exorta seus “filhos” a perseverar nos caminhos da irmandade, demonstrando, a partir da história de Israel no Antigo Testamento, que a obediência sempre é recompensada e que a desobediência é sempre castigada. Aqui, o autor frequentemente cita e interpreta o Antigo Testamento para dar sustentação ao seu ensino, e com exceção dos comentários bíblicos, essa obra é a mais importante para nosso entendimento de como esses intérpretes usavam as Escrituras. Os “estatutos” consistem em uma coleção de leis da irmandade, baseadas numa reinterpretação de mandamentos bíblicos sobre juramentos, tribunais, a guarda do sábado, entre outros assuntos. O Rolo da Guerra – Uma das primeiras obras a ser encontradas, o rolo contém um trabalho teológico sobre a batalha do bem contra o mal, cujo clímax é atingido na guerra final entre os filhos das trevas (talvez os romanos?) e os filhos da luz (os membros da irmandade). Essa guerra seria travada “nos últimos dias”, expressão tirada dos profetas (cf. Is 2.2; Jr 48.47; e especialmente Ez 38.16). A vitória final seria dos filhos da luz, que então teriam acesso ao templo de Jerusalém para restabelecer o culto a Deus conforme a sua fé. Após cerca de 30 anos, Israel derrotaria todas as nações da terra, conquistando-as. A obra contém uma exposição detalhada da ordem de batalha, os armamentos, a tática ofensiva, as vestimentas dos guerreiros e a tarefa dos sacerdotes. Foi composta possivelmente entre 150 a.C. e 68 d.C., e aparentemente inspirou-se no livro de Daniel. Exposições bíblicas Várias das obras encontradas nas cavernas podem ser classificadas como exposições bíblicas. Nelas, aparentemente, o Mestre da Justiça e outros intérpretes da irmandade entendem as Escrituras à luz da história recente da seita. Podemos dividi-las em duas categorias. Comentários ou “Pesherim” – São “comentários” feitos aos livros proféticos, procurando demonstrar que as profecias das Escrituras encontraram seu cumprimento na história recente da irmandade. Consistem na citação, verso por verso, do texto bíblico, os quais são seguidos por uma interpretação introduzida pela expressão hebraica pshr (pishrô), que pode ser traduzida como “a sua interpretação é…”. Daí o nome “pesherim”. Foram descobertos “pesherim” de Isaías, Naum, Habacuque, Oseias e Miqueias, além de um comentário em alguns salmos. Os “pesherim” mais importantes são o Comentário de Habacuque e o Comentário de Naum. Do primeiro só sobreviveram os capítulos um e dois de Habacuque. É possivelmente o documento mais importante como fonte primária sobre a hermenêutica da seita. Naum é abundante em referências históricas, este “pesher” se constitui numa das fontes mais importantes para a reconstituição da história da seita. Expansões bíblicas – São obras em que as narrativas bíblicas são reescritas e expandidas. As mais conhecidas são “Gênesis Apócrifo”, “Samuel Apócrifo”, “as bênçãos de Jacó” e “as palavras de Moisés”. Não são comentários, como os “pesherim”, mas textos expandidos, o que implica interpretação bíblica. É o que alguns têm chamado de “Bíblia reescrita”. Escritos litúrgicos São obras contendo a liturgia para o culto, ou tratando da regulamentação do mesmo. Deles, o mais importante é o Rolo do Templo, cheio de referências ao Antigo Testamento, particularmente aquelas partes do Pentateuco e de Ezequiel que tratam do culto. Nele se reflete a crença da comunidade de que a restauraçãoescatológica de todas as coisas consistia na reinstalação da liturgia plenamente formal no templo, quando o mesmo for resgatado das mãos do sacerdócio ilegítimo e colocado de volta nas mãos dos sacerdotes da linhagem de Zadoque. O Rolo do Templo contém, página após página, detalhes exaustivos de como o culto restaurado haverá de ser. Escritos seculares São as pouquíssimas obras tratando de assuntos não religiosos, das quais a mais famosa é o Rolo de Bronze, contendo uma lista detalhada das partes de um tesouro, que ultrapassaria em valor as maiores fortunas da época. Muita especulação tem acompanhado os esforços para se decifrar e entender o mistério da lista. Refere-se a um tesouro que pertencia à irmandade? E onde estaria o mesmo, hoje? Ou será que os romanos, ao destruírem a comunidade, já se apossaram dele? O nome da obra vem do material em que foi escrito. A hermenêutica dos intérpretes de Qumran Para nosso propósito, que é estudar a história dos intérpretes da Bíblia, apenas aquelas obras que usaram o Antigo Testamento nos interessam aqui. Há muitas boas obras sobre os Manuscritos do Mar Morto para os estudantes interessados em aprofundar seus conhecimentos sobre essa importante descoberta. Nosso alvo, entretanto, é entender a hermenêutica dos intérpretes das Escrituras do Antigo Testamento que eram da irmandade. Antes de tudo, porém, é necessário nos lembrarmos de que os intérpretes de Qumran se aproximavam das Escrituras com uma agenda bastante definida. Na verdade, a sua interpretação é bem diferente do que conhecemos como “exegese”. Era mais “aplicação” do que interpretação propriamente dita. Consistia no emprego direto de passagens das Escrituras à história recente da irmandade para provar suas reivindicações. Em outras palavras, a interpretação das Escrituras em Qumran não era feita no vácuo. Era controlada pelas crenças e convicções dos seus membros. Alguns estudiosos têm apontado para o fato de que a hermenêutica da irmandade não tinha qualquer interesse em saber o que o texto antigo significou em seu contexto original, mas o que ele significava agora. Isso não quer dizer que não podemos encontrar interpretação não alegórica em Qumran. Vejamos o exemplo abaixo do pesher em Oseias: Ela, pois, não soube que eu é que lhe dei o trigo, e o vinho, e o óleo, e lhe multipliquei a prata e o ouro, que eles usaram para Baal [Os 2.8]. [A interpretação disto é] que [eles] comeram e ficaram satisfeitos, e esqueceram de Deus [que os havia alimentado, e todos] os seus mandamentos jogaram para trás de si, que ele lhes havia enviado [por] seus servos, os profetas. Mas eles deram ouvidos aos que os desviaram, e os honraram. Portanto, tornar-me-ei, e reterei, a seu tempo, o meu trigo e o meu vinho, e arrebatarei a minha lã e o meu linho, que lhe deviam cobrir a nudez. Agora, descobrirei as suas vergonhas aos olhos dos seus amantes, e ninguém a livrará da minha mão [Os 2.9-10]. A interpretação é que ele [Deus] feriu-os com fome e nudez e se tornaram uma desgraça e uma vergonha aos olhos das nações nas quais haviam confiado para obter apoio, mas elas não os salvaram de suas aflições. Podemos observar que o intérprete de Oseias procurou entender o texto em seu contexto histórico. Porém, predomina na comunidade a espiritualização de passagens com o objetivo de aplicá-las à história da seita. Nesse afã, eles não se limitavam a observar os paralelos históricos entre a história deles e a narrativa bíblica, mas insistiam que a história recente da irmandade era o sentido real e primário do texto bíblico. Portanto, toda interpretação era, na verdade, aplicação. O resultado da sua leitura era determinado pelo alvo que o comentarista queria atingir e aplicar. Vejamos as principais pressuposições que controlavam seu uso das Escrituras. Revelação contínua As Escrituras eram consideradas como divinas e a principal fonte de autoridade para o ensino e prática da irmandade. Elas haviam sido dadas por Moisés e os profetas, e nisto residia sua autoridade. Porém, a base maior da autoridade era o fato de que tinham sido inspiradas por Deus. Apesar de crer que as Escrituras haviam sido inspiradas, a irmandade cria em revelação contínua, e distinguia três períodos de revelação. No primeiro período, Deus havia revelado a Torá a Moisés e aos Profetas. O sentido das suas palavras havia permanecido obscuro, até que Deus as revelou ao Mestre da Justiça. No segundo estágio, por meio de revelação divina, o Mestre da Justiça penetrou o sentido original e verdadeiro das palavras de Moisés e dos Profetas. O material exegético produzido por ele e demais intérpretes da comunidade, portanto, era considerado como inspirado, pois foi produzido por meio de revelação divina. O último estágio de revelação seria na vinda do Messias, quando Deus revelaria por meio dele novas instruções. Consciência escatológica Os membros da irmandade acreditavam estar vivendo nos “últimos dias”, no período das “dores de parto” da era messiânica. As profecias do Antigo Testamento tinham um sentido velado, conhecido somente pelo Mestre da Justiça e que se aplicava somente à irmandade. Essa consciência escatológica fez que os intérpretes da irmandade aplicassem os escritos dos profetas à sua própria história, como se a irmandade fosse o cumprimento do sentido original do que os profetas haviam escrito. Assim, a escatologia era um dos fatores controladores da sua interpretação. Partiam do pressuposto de que eles eram o cumprimento das profecias e procuravam achar nas Escrituras as passagens em que pudessem provar isso. Por esse motivo, estudiosos acham difícil usar o termo “exegese” para se referir ao uso das Escrituras nos comentários produzidos pela irmandade. Nesse sentido, essa abordagem difere do midrash praticado pelos rabinos, pois tem um elemento altamente escatológico e aproxima-se da forma como os escritores do Novo Testamento usam o Antigo Testamento. Os dois pressupostos teológicos mencionados acima tiveram uma influência decisiva na maneira pela qual os membros da seita liam as Escrituras. Mas outros fatores também contribuíram para o caráter único da hermenêutica de Qumran, como os princípios interpretativos utilizados. Mistério e revelação O tipo de interpretação praticada em Qumran tem recebido o nome de raz e pesher, porque os comentaristas da irmandade usam o padrão “mistério” (raz) e “interpretação” (pesher) conforme encontrado no livro de Daniel. Em Daniel encontramos um padrão em que Deus revela um raz (“mistério”) cujo sentido é revelado somente a Daniel, o qual dá o pesher (“interpretação”) do mesmo (Dn 2.19,30-45). Os intérpretes essênios, semelhantemente, concebem a revelação bíblica como dada em dois estágios: primeiro, o raz, mistério divino comunicado por meio dos profetas, e segundo, o pesher, o sentido velado do mesmo, por meio dos intérpretes da irmandade e especialmente o Mestre da Justiça, sentido este que invariavelmente tinha a ver com a irmandade. Assim, Habacuque 2.2, “para que a possa ler até aquele que passa correndo”, é comentado no pesher de Habacuque assim: “Interpretado (pshr, pishrô) refere-se ao Mestre da Justiça, a quem Deus fez conhecer todos os mistérios das palavras dos seus servos, os profetas”. Essa interpretação raz-pesher não consiste, realmente, em uma exegese ou análise do texto, em que aspectos históricos e gramaticais são levados em conta – mas é simplesmente um comentário corrido, o emprego da passagem em uma situação contemporânea. Interpretação por revelação Também é importante notarmos o papel do intérprete principal da seita, o Mestre da Justiça. Ele era considerado como aquele a quem Deus havia revelado todos os mistérios dos profetas, e a quem Deus havia concedido o sentido das Escrituras. Portanto, seus comentários eram recebidos como inspirados e contendo a verdade divina final. Assim, no pesher de Habacuque se diz que embora o profeta Habacuque soubesse o que iria ocorrer nos últimos dias, foi somente ao Mestre da Justiça que o tempo do cumprimento foi revelado. De acordocom o Documento de Damasco, o Mestre da Justiça havia sido levantado por Deus nos últimos tempos “para mostrar à última geração o que Deus estava para fazer com a última geração” (CD 1:11ss). O raz foi revelado aos profetas, e o pesher ao Mestre da Justiça, e comunicado aos membros da irmandade. Referencial escatológico e atualização De acordo com os intérpretes de Qumran, as profecias não tinham qualquer aplicação ao tempo em que os profetas escreveram, mas se referiam ao tempo do fim. O exemplo clássico disso é que eles interpretavam as referências nos livros proféticos aos assírios e babilônicos como sendo realmente referentes aos romanos, os Kittim, que na época da irmandade dominavam a Palestina. Aqui nós temos uma atualização das profecias à época deles. Já que, para a irmandade, o surgimento do Mestre da Justiça e a formação da comunidade no deserto sinalizavam a proximidade do fim, era natural que achassem referências ao Mestre e seus contemporâneos na Bíblia. Assim, a referência em Isaías “voz do que clama no deserto, preparai no ermo um caminho ao nosso Deus” (Is 40.3) é interpretada como uma profecia da fundação da seita no deserto da Judeia (1QS 8:14). Semelhantemente, no pesher de Habacuque, “aquele que dá de beber ao seu companheiro, misturando à bebida o seu furor” (Hb 2.15) é interpretado como se referindo ao “Sacerdote Ímpio”. Essa figura misteriosa talvez seja o sumo sacerdote da linha hasmoneana do templo em Jerusalém, que expulsou o Mestre da Justiça, o qual refugiou-se no deserto para fundar a comunidade. O melhor exemplo desse referencial escatológico e da atualização do texto na interpretação das Escrituras é o pesher em Habacuque. O comentarista focaliza sempre na história da irmandade, e consistentemente interpreta três elementos do texto de Habacuque como sendo três elementos daquela história: a) O “ímpio” e a “violência” são sempre interpretados como referindo-se ao “Sacerdote Ímpio” e seus esforços em aniquilar a comunidade (1QpHab 1:13; 8:8; 9:9,16; 10:9; 11:4,12; 12:2,8); b) O “justo” é sempre interpretado como sendo o Mestre da Justiça (1:13; 5:10; 7:4), embora também se refira aos que o seguem fielmente (8:11); c) Os “caldeus” e suas atividades são sempre tomadas como se referindo aos Kittim = Romanos (2.11,17; 3.4,9; 4.5,10; 6.1). Alegoria Não há uniformidade entre os estudiosos quanto ao sentido de “alegoria”. Mas seguiremos uma definição bem simples e ampla, que será empregada aqui nesta obra. Alegorizar significa “expressar uma coisa em termos de outra”. Interpretar um texto alegoricamente significa entender que o texto está dizendo uma coisa utilizando-se de outra. Ou seja, o verdadeiro sentido do texto não é o que está aparente e óbvio, mas um que se esconde e se oculta por detrás das palavras. A busca desse sentido oculto é a tarefa da interpretação alegórica, e isso frequentemente sem consideração para com o sentido histórico e literal do texto em análise. Nos comentários da seita, já que a relação entre o texto bíblico e a história da comunidade não podia ser estabelecida de maneira literal e direta, empregava-se a leitura alegórica para se fazer essa relação. Vejamos alguns exemplos: a) A cidade construída com sangue em Habacuque 2.12 significa não uma cidade literal, mas uma comunidade religiosa rival da irmandade em Qumran, fundada pelo Falso Profeta, o arqui-inimigo do Mestre da Justiça (1QpHab 10:9-13). Note que essa interpretação é totalmente arbitrária, sem qualquer indício de que esse seja o sentido original das palavras do profeta. b) A “preciosa pedra angular” de Isaías 28.16 é alegorizada como uma referência ao conselho da comunidade, 1QS 8:4b-8a. Seria até esperado que identificassem a pedra com o Messias, mas não com o Conselho da comunidade. A ligação, mais uma vez, é arbitrária, como sempre ocorre na alegorização do texto bíblico. c) Em CD 6:3-11 o poço e o cetro mencionados em Números 21.18 são alegorizados da seguinte forma: o poço significa a Lei, e os que beberam dela são os membros da comunidade, os quais deixaram a Palestina e foram habitar em Qumran; o cetro refere-se ao Mestre da Justiça, do qual Isaías disse: “Deus forma a arma para seu devido fim” (CD 54:16). d) A estrela que procederia de Jacó é interpretada como sendo o Mestre da Justiça: “A estrela é o intérprete da Lei que virá a Damasco, como está escrito: ‘Uma estrela procederá de Jacó e um cetro surgirá em Israel’. O cetro é o Príncipe de toda a congregação, e quando ele vier, esmagará os filhos de Sete” (CD 7:14-21). Mais uma vez se percebe o caráter alegórico da interpretação. Podemos mencionar como último exemplo um rolo na forma de carta, considerado uma das obras mais antigas, conhecido como Miqsat Ma’ase ha-Torah, que significa Alguns Preceitos da Torá, condena o casamento de sacerdotes com mulheres judias interpretando figuradamente Levítico 19.19, “Guardarás os meus estatutos; não permitirás que os teus animais se ajuntem com os de espécie diversa; no teu campo, não semearás semente de duas espécies; nem usarás roupa de dois estofos misturados”. Com respeito a casamentos mistos que são realizados entre o povo, e eles são os filhos da santa [semente], como está escrito, “Israel é santo” [Lv 19.2]. E com respeito aos animais [limpos] de Israel está escrito que uma espécie não se deve acasalar com outra; e com respeito às suas roupas, [está escrito que elas não devem] ser de estofos diferentes; e que não se deve semear o campo e o jardim com espécies misturadas. Porque eles (Israel) são santos, e os filhos de Arão são [santíssimos]. Mas tu sabes que alguns dos sacerdotes se misturaram com os leigos. [Assim], aderem um ao outro e poluem a santa semente, bem como a [semente] dos próprios sacerdotes com mulheres corrompidas. A relação entre os autores do Novo Testamento e os intérpretes do Qumran Mais adiante estudaremos como o Novo Testamento interpreta o Antigo. Entretanto, este nos parece o momento apropriado para levantar uma das questões mais importantes nos estudos da interpretação das Escrituras praticada em Qumran, ou seja, qual a relação entre Qumran e os cristãos, particularmente neste assunto. Semelhanças e diferenças Muitos estudiosos têm defendido uma ligação estreita entre o nascimento do Cristianismo e a comunidade de Qumran, baseados especialmente na aparente semelhança entre algumas doutrinas do Novo Testamento e algumas das crenças da irmandade. Assim, alguns têm sugerido que João Batista era um dos membros da comunidade, e que até Jesus também tinha sido. Outros têm defendido que a Epístola aos Hebreus foi escrita para uma audiência que era composta de ex-membros da irmandade. Os defensores mais exacerbados dessas teorias são eruditos judeus ou estudiosos protestantes liberais, ansiosos por achar uma maneira de desacreditar o Cristianismo. O fato é que não existe qualquer evidência concreta e indiscutível de uma relação direta entre o Cristianismo nascente e a irmandade do Mar Morto. As semelhanças são realmente aparentes, e a maioria delas pode ser explicada pelo fato de que as duas comunidades surgiram num mesmo contexto cultural, linguístico e religioso, que foi o Judaísmo do segundo Templo. Outras podem ser explicadas à luz da semelhança histórica entre os dois grupos: ambos saíram do Judaísmo com a convicção de que eram o verdadeiro Israel, e de que possuíam a chave da interpretação das Escrituras de Israel. Ao que tudo indica, porém, a comunidade que morava em Qumran vivia em total isolamento da sociedade palestina, e, portanto, possivelmente nunca ouviu falar de Jesus e nem do crescimento do Cristianismo na Judeia, Samaria, e confins da terra, apesar de que, quando a comunidade se desfez, Paulo já havia alcançado Roma com o evangelho. Na área de interpretação bíblica, é fácil ver que os escritores do Novo Testamento, em geral, às vezes usam o Antigo Testamento em suas cartas de forma parecida com a que achamos nos comentários e demais escritos da comunidade do mar Morto. A fórmula “está escrito” é usada por eles e tambémpelos intérpretes da irmandade essênia para introduzir citações das Escrituras. Também, vários dos textos que encontramos no Novo Testamento como sendo referentes a Jesus Cristo são encontrados nos escritos da comunidade, porém com outra interpretação. Vale notar, entretanto, que os evangelhos e as cartas são bastante diferentes do comentário versículo-porversículo encontrado em Qumran. As aparentes semelhanças, todavia, são mais quanto aos pressupostos que parecem guiar tanto os escritores de Qumran quanto os escritores do Novo Testamento. Vejamos os mais claros. Consciência escatológica Mais uma vez usemos os escritos de Paulo como comparação. O apóstolo, à semelhança dos demais autores do Novo Testamento, está consciente de estar vivendo nos “últimos tempos” e de que tudo que foi escrito no Antigo Testamento tinha como alvo final os cristãos (1Co 10.11). Assim, ele interpreta a história de Israel no deserto como sendo instrução para a igreja de Corinto, conforme vemos em 1Coríntios 10. Porém, notemos que Paulo não está dizendo que a história de Israel prefigurava os eventos históricos que aconteceram com a igreja, como os comentaristas de Qumran faziam, entendendo a história da sua seita como uma repetição profética da história de Israel. O método de Paulo consiste em achar o princípio que está operando nos eventos da história de Israel e aplicá-lo (atualizá-lo) às circunstâncias presentes. Assim, o princípio de que o trabalhador é digno de seu salário é derivado de Deuteronômio e aplicado ao obreiro cristão (1Co 9.9). Muito embora Paulo e o Mestre da Justiça tivessem consciência de que estavam vivendo nos “últimos dias”, o conceito, além de representar coisas diferentes para ambos, levou-os a uma diferente compreensão das Escrituras. Mistério e revelação Para Paulo e demais autores do Novo Testamento, o sentido das Escrituras do Antigo Testamento era velado aos descrentes, e só aos crentes era dado, por meio de revelação do Espírito Santo. O Antigo Testamento era um livro fechado, até que as mentes fossem iluminadas quanto ao seu sentido real (2Co 3 e 1Co 2.6-16). O plano divino de salvação era um mistério só conhecido por meio de revelação (cf. 1Co 2.7-10). Essa revelação estava ligada à interpretação das Escrituras, conforme veremos em maiores detalhes ao estudar a hermenêutica do Novo Testamento mais adiante (cf. 1Co 15.51-56; Rm 11.25-27; Ef 5.31-32; Rm 16.25-26). Esse método aparentemente é muito parecido com o raz-pesher empregado em Qumran. Notemos, porém, que ao mesmo tempo Paulo e os demais escritores do Novo Testamento insistem que a interpretação cristã do Antigo Testamento é clara e deveria ser aceita por todos os judeus, e que se não fosse a dureza dos seus corações eles teriam percebido que em Cristo elas se cumprem (2Co 3). Paulo coloca sua interpretação como sendo o desdobramento daquela dos profetas e demais escritores do Antigo Testamento, enquanto que a irmandade de Qumran reivindicava para o Mestre da Justiça um conhecimento revelatório exclusivo. Para os sectários, nem mesmo Davi havia entendido o sentido verdadeiro da Torá, e confundiu-se como os demais (CD 3:13; 4:13-16). A similaridade aparente nesse método raz-pesher pode ser considerada como originando-se em temas já encontrados no Antigo Testamento, o qual era o ponto de partida de Paulo e do Mestre da Justiça. A base para o conceito de inspiração do Mestre da Justiça para conhecer os mistérios de Deus é o Servo Sofredor de Isaías 49.2, muito embora o Mestre da Justiça nunca se identifique completamente com ele. Isso pode fornecer um pano de fundo comum para a interpretação raz–pesher de Qumran e de Paulo. Porém, a grande diferença é que, para Paulo, o Servo Sofredor é Jesus Cristo, o Messias, o qual havia concedido seu Espírito à igreja. Referencial escatológico Paulo, à semelhança dos demais autores do Novo Testamento, acreditava que a morte e a ressurreição de Cristo, bem como o surgimento e expansão da igreja, eram o cumprimento das Escrituras, e frequentemente cita o Antigo Testamento com esse sentido. Para ele, as Escrituras encontraram seu cumprimento em Cristo, e a nova era já havia raiado. Na nova aliança anunciada no Antigo Testamento por Jeremias, Deus escreveria suas leis no coração de seu povo. Para Paulo, isso já ocorreu com os cristãos (2Co 3), enquanto que para os comentaristas de Qumran a convicção de que eles estavam recebendo uma nova revelação levou-os a elaborar novas leis para o Israel futuro, no famoso Rolo do Templo. Por outro lado, enquanto a irmandade aguardava a revelação futura do Messias (ou mais de um), para Paulo o Messias de Israel já havia chegado, e isto deu uma precisão muito maior à sua interpretação do Antigo Testamento. Alegoria O caso clássico de alegoria no Novo Testamento é Gálatas 4.21-31, em que Paulo interpreta a narrativa de Gênesis sobre Sara e Hagar alegoricamente, referindo-se às duas alianças (lei e graça). Mesmo aqui, entretanto, percebe-se a tremenda diferença das alegorias fantasiosas feitas em Qumran: Paulo interpreta o texto no contexto maior da história da salvação, partindo do relato histórico das duas mulheres e da maneira pela qual elas vieram a ter seus filhos, bem como pelo desenvolvimento posterior dos povos que brotaram desses filhos. Os intérpretes de Qumran não tinham qualquer noção de história progressiva da salvação, na qual cada etapa ilumina, esclarece, e dá sentido à anterior. Conclusão Nosso estudo sobre os intérpretes das Escrituras da irmandade dos Manuscritos do Mar Morto traz algumas conclusões importantes. 1) Existem algumas semelhanças entre o uso das Escrituras feito pelos intérpretes essênios e aquele feito pelos rabinos. Os autores dos Manuscritos mantinham o mesmo apreço pelas Escrituras que encontramos nos autores bíblicos e entre os rabinos. Para eles, a Escritura era a infalível e autoritativa palavra de Deus quanto à fé e prática do seu povo. À semelhança dos rabinos, recebiam suas interpretações como sendo também inspiradas. O que a Torá oral era para os rabinos, as interpretações do Mestre da Justiça era para a comunidade de Qumran. Além disso, o uso que fizeram das Escrituras tinha um caráter eminentemente prático. Eles queriam empregar as Escrituras para a situação contemporânea. E também à semelhança dos rabinos, davam-se a interpretações alegóricas fantasiosas e sem qualquer consideração pelo sentido histórico e natural do texto bíblico. Essas semelhanças se devem ao fato de que o essenismo é filho do Judaísmo. Porém, há algumas diferenças entre eles. A mais importante é a consciência escatológica na interpretação de Qumran, que a afasta dos rabinos e a traz mais para perto da hermenêutica do Novo Testamento. 2) Apesar de se verem como os legítimos continuadores do Israel de Deus, e de considerarem seus próprios escritos como sendo tão inspirados como as Escrituras, a teologia produzida pela comunidade se afasta em excesso da teologia bíblica que podemos encontrar nas Escrituras do Antigo Testamento. O motivo é que a noção de continuidade não era baseada nos temas centrais do Antigo Testamento, particularmente no tema da revelação salvadora de Deus na História. O que Qumran perpetuou, em termos de teologia, foi o nomismo legalista de Israel, que era uma distorção da religião da graça que Deus havia revelado a Moisés. Por sua hermenêutica estar desprovida de sensibilidade para a História, ela girava em torno da vida da comunidade, o que impediu os sectários de ver nas Escrituras nada além de si mesmos. 3) Percebemos ainda a importância dos pressupostos na interpretação, e como eles determinarão o resultado da exegese. E vimos, mais uma vez, que a questão central é se vamos ler a Bíblia de maneira natural e histórica, ou se vamos lê-la alegoricamente, figuradamente, procurando empregar suas passagens às circunstâncias da nossa vida, sem apreço ou consideração pelo seu sentido original. O estudo da hermenêutica de Qumran nos ajuda a entender o tipo de interpretação que era praticada no ambiente em que maistarde o Cristianismo haveria de nascer, e a entender como os primeiros intérpretes cristãos usavam as Escrituras. Capítulo 4 Filo de Alexandria Introdução A importância da obra de Filo de Alexandria para a história da interpretação da Bíblia reside principalmente na sua influência sobre vários dos primeiros intérpretes cristãos que seguiram o método alegórico de interpretação por ele utilizado e popularizado. Filo era um judeu praticante, da Diáspora. Muito embora nunca tenha se convertido ao Cristianismo, a influência do seu método se fez sentir na academia cristã patrística. Os judeus tiveram pouco interesse em suas obras. Via de regra só preservavam o que era escrito em hebraico. Filo escreveu em grego. Além do mais, era visto com alguma suspeita pelos patrícios por causa de sua simpatia para com a filosofia grega. Foram os cristãos que preservaram as obras de Filo e dela se utilizaram. A sua hermenêutica acabou por se tornar o método de interpretação predominante em uma das mais importantes escolas de catequese nos primórdios da Igreja Cristã, a escola de Alexandria, no Egito, terra natal de Filo. E, posteriormente, tornou-se o método dominante durante a Idade Média, após passar por algumas modificações. Quem foi Filo de Alexandria Filo nasceu em Alexandria, ao norte do Egito, numa data entre 20-25 a.C., e morreu cerca de 50 d.C. Foi contemporâneo de Herodes, o Grande, dos sábios rabínicos como Gamaliel, Hillel e Shamai, e ainda de Jesus e de Paulo. Ele tinha relações com pessoas influentes em Roma, o que possibilitou que várias vezes visitasse a capital do Império representando os interesses de seu povo. Um sobrinho seu, o judeu renegado Tibério Alexandre, serviu como governador no Egito e na Palestina. Não é certo se ele era casado (uma lenda diz que era) ou se tinha filhos. Filo teve um treinamento completo em filosofia grega, embora não saibamos onde e como ele conseguiu essa educação, que via de regra era muito cara em seus dias. Filosoficamente falando, ele é uma mistura de platonista e estoico, com a predominância do pensamento de Platão. Como os demais judeus nascidos na Diáspora, Filo falava grego e provavelmente não sabia hebraico ou aramaico. A sua Bíblia era a Septuaginta, que ele cita constantemente em seus escritos. Filo também teve uma educação judaica em uma família comprometida com o Judaísmo. Seu rico irmão Alexandre doou portas caríssimas para o templo em Jerusalém. Filo é profundo conhecedor da Septuaginta e das tradições do Judaísmo. O Judaísmo da Diáspora, apesar de estar em território pagão e de sofrer a influência da cultura e modo de vida dos gregos, mantinha ainda um forte grau de ortodoxia, como lealdade ao templo, observância da circuncisão, da dieta religiosa e do calendário judaico, muito embora não com o mesmo rigor do Judaísmo da Palestina. Filo era um típico judeu da Diáspora, com a diferença de que fez da filosofia grega, particularmente de Platão, a segunda maior paixão de sua vida. Apesar disso, podemos dizer que Filo era um judeu leal, numa época em que muitos judeus haviam apostatado em Alexandria por causa do ambiente grego. Suas ideias religiosas, instituições e lealdades são judaicas – entretanto, suas explicações, intuições e devoções são gregas. As obras de Filo Filo foi um escritor prolífico. Suas obras, preservadas pelos cristãos, ocupam 13 volumes da Loeb Classical Library. Ele é repetitivo, monótono, mas raramente inconsistente; é muito claro e sua mente é lógica. Ele não escreveu para as massas. Sua audiência pode ter sido círculos de intelectuais, embora seja possível que também escrevesse para a classe média. Suas obras foram reproduzidas abundantemente. É nelas que encontramos com clareza o método interpretativo que lhe deu fama, que é o método alegórico. Antes de analisar esse método, conheçamos as suas principais obras, seguindo a seguinte classificação. Escritos diversos Debaixo desta categoria incluímos os escritos de Filo também chamados de “históricos” (que não é uma definição exata) ou “não bíblicos” (que é melhor). Dentre eles os seguintes se destacam: “Hipotética” Essa obra sobreviveu somente em alguns extratos mencionados por Eusébio. Filo escreveu em defesa dos judeus e contra seus acusadores. Ele expõe e exalta Moisés, as instituições judaicas, o sábado e a Lei. “Todo homem bom é livre” Essa obra é a continuação de outro tratado (agora perdido) cujo título era “Todo homem mau é escravo”. Ambos foram escritos durante a mocidade de Filo. “Todo homem bom é livre” é uma coleção de paradoxos estoicos, nos quais a virtude é sempre “espiritual” e o vício “físico”. Filo ilustra seus pontos de vista com citações da literatura grega, e quase nunca do Antigo Testamento. Aqui ele dá uma visão elevada dos essênios, como sendo homens livres, e contra quem os governadores da Judeia nunca tiveram acusação alguma. “A vida contemplativa” Nessa obra Filo fala sobre os Therapeutae (“Terapeutas”), uma ordem monástica que morava perto de Alexandria, e que Filo pode ter conhecido pessoalmente. Não é impossível que os “terapeutas” fossem mais uma seita judaica, além dos fariseus, saduceus e zelotes. É nessa obra que Filo os contrasta com os essênios (veja o cap. anterior). “Contra Flaco” Flaco era o prefeito romano de Alexandria durante cujo mandato aconteceram os “pogroms” (holocaustos) contra os judeus na cidade (38 d.C.). Ele foi deposto e banido por Roma para uma ilha e posteriormente decapitado. Filo registrou esses eventos para demonstrar que qualquer um que ousasse ir contra os judeus teria fim similar ao de Flaco. Portanto, é um tratado histórico, mas também teológico. “A representação a Gaio (Calígula)” Essa é também uma obra histórico-teológica. Filo narra a história da delegação que os judeus mandaram a Roma para ver o imperador Gaio Calígula. Calígula queria que uma estátua da sua imagem fosse erigida no templo de Jerusalém. Herodes Agripa o havia dissuadido da ideia, mas ele ainda assim erigiu imagens de si mesmo nas sinagogas. A embaixada foi defender os judeus contra as acusações de alexandrinos mal intencionados diante do imperador. Filo não narra como tudo acabou, isto é, que Calígula foi assassinado. Esse tratado começa com a tese de que as pessoas tendem a julgar o presente cegamente, sem levar em conta a providência de Deus e seu cuidado para com Israel. O tratado não tem uma conclusão, na qual Filo provavelmente narraria a morte violenta de Calígula, como no tratado anterior, em que narrou a morte de Flaco como sendo a retribuição da justiça divina contra os inimigos dos judeus. Exposições bíblicas Nesta categoria, a qual é realmente a que mais tem a ver com nossa pesquisa, relacionam-se os escritos de Filo sobre as Escrituras do Antigo Testamento. “A vida de Moisés” Esse tratado tem duas partes. Não é claro para quem Filo escreveu. Nele Filo reconta a história de Moisés, a quem Filo considerava o maior e mais perfeito dos homens. Filo adiciona e omite partes significantes da narrativa bíblica. Ele concentra-se em descrições psicológicas. Moisés é descrito em sua capacidade de filósofo-rei de Israel, uma ideia platônica (o rei era a Lei encarnada e vocalizada). Ele também descreve Moisés em seus três ofícios: legislador, sumo sacerdote e profeta. Já que Moisés também escreveu o Pentateuco, Filo divide seus escritos em duas partes: a histórica (criação do mundo e a vida de pessoas especiais: Abraão e José) e a legislativa (Decálogo, leis especiais e virtudes). Filo também trata sobre as razões pelas quais os judeus de Alexandria usam a Septuaginta e não a Bíblia Hebraica. Ele reproduz a carta de Aristeas, com algumas modificações, e defende a Septuaginta como sendo tão inspirada quanto a Bíblia Hebraica. A carta de Aristeas é uma defesa da inspiração da Septuaginta com um relato de como foi escrita. “A criação do mundo” Esse tratado é baseado em Gênesis 1, mas o tratamento é platônico. Os estudiosos têm percebido que Filo se baseia principalmente na obra de Platão, “Timeus”. Dois temas principais,entretanto, são basicamente judaicos: criação ex-nihilo, a providência de Deus e seu controle sobre o mundo. Os temas principais desta obra são: a) O mundo está em harmonia com a Lei, e vice versa. O relato da criação em Gênesis é uma introdução necessária à Lei dada em Êxodo (esse é um conceito estoico). b) O número de dias da criação, segundo Filo, foi escolhido por Deus por ser o número mais produtivo de todos de acordo com a lei da natureza. O número seis tem duas partes iguais, as quais representam o macho e a fêmea. O macho representa os números ímpares e a fêmea os pares. O ímpar semeia a semente, o par a recebe. O número seis, portanto, representa a combinação de ambos (duas vezes três). c) Existe o mundo sensível (kosmos aesthetikos), cuja criação está narrada em Gênesis 1, e que pode ser percebido pelos cinco sentidos, e o mundo inteligível (kosmos noëtos), o qual a mente, partindo e indo além dos sentidos, pode encontrar, e que se localiza na Razão Divina. Essa ideia é consistente com o dualismo platônico e estoico. Usando essa distinção ao analisar Gênesis 1, Filo interpreta a serpente e Eva como sendo o mundo sensível que tenta influenciar a mente, simbolizada em Adão. Já aqui vemos as primeiras tentativas de se “desistoricizar” o relato da criação e da queda, interpretando-se as personagens da narrativa como símbolos de outras realidades, e assim considerando a veracidade histórica na narrativa bíblica como irrelevante para a fé ou para a teologia. Vejamos alguns exemplos da sua interpretação de Gênesis: a) A criação do jardim do Éden (Gn 2.8-14) – O rio Gion (2.13) significa “coragem” e circunda a terra de Cuxe, que significa “humilhação”; o sentido alegórico é que a coragem dá demonstrações de bravura diante da covardia. Já o rio Tigre (2.14) significa temperança, pois, como um tigre, resiste resolutamente ao desejo. Eufrates (2.14) não se refere ao rio. O sentido alegórico é justiça. O rio Pisom (2.11) significa “mudança na boca” e Havilá “tagarelar”, que Filo interpreta como significando “insensatez”. A interpretação alegórica da passagem é que a insensatez é destruída pela “mudança na boca”, que é o falar com prudência. b) A criação e queda do homem (Gn 2-3) – Filo considera fábula a narrativa da criação da mulher da costela de Adão, após o mesmo haver adormecido. Ele rejeita a interpretação literal da passagem. O sentido verdadeiro é que Deus tomou o poder dos sentidos externos (Eva) e o conduziu à mente (Adão). Esse poder é sempre ameaçado pelo prazer (a serpente). A promessa messiânica, “Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (3.15) é interpretada como Deus dizendo ao prazer (serpente) que a mente (o homem) vai vigiá-la e que em troca, o prazer (serpente) vai atacar a mente (homem) oferecendo os prazeres mais básicos (morder o calcanhar). “Sobre Abraão” Essa obra é a continuação do tratado anterior. Na introdução, Filo observa que a Septuaginta deu o título nomos (Lei) ao Pentateuco. Como, então, encaixar logicamente Gênesis, que é uma narrativa nessa descrição? Filo responde na primeira parte dessa obra fazendo uma distinção entre a “Lei não escrita da natureza” e as “Leis especiais”. A primeira não era escrita e foi transmitida diretamente por Deus de forma oral aos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, os quais viveram de acordo com ela, sendo eles mesmos a própria manifestação dessa Lei. As “Leis especiais” são aquelas dadas a Moisés no Sinai. Cabe aqui uma observação. Essa relação dos patriarcas com a Lei mais tarde veio a ser interpretada de formas diferentes: (1) Os rabinos e o livro dos Jubileus consideravam os patriarcas como observadores pré-mosaicos da Lei de Moisés. Com esse anacronismo, desejavam sustentar a eternidade e superioridade da Lei sobre os patriarcas e sobre os eventos com eles relacionados. (2) Paulo e Filo, embora totalmente divergentes quanto ao papel da Lei, concordam entre si que a vida dos patriarcas representava a norma e o padrão do relacionamento com Deus, e que a Lei de Moisés, que veio depois, precisava ser harmonizada com eles. Em Romanos e Gálatas Paulo refere-se à fé de Abraão e às promessas que lhe foram feitas como sendo o padrão. A Lei de Moisés veio depois e não pode anular o conceito de justificação pela fé. Filo, por sua vez, considera que os patriarcas se guiaram pelo que ele chamou de “Lei não escrita da Natureza”, que embora esteja de acordo com a Lei de Moisés, a antecede e é universal. O que mais nos interessa, entretanto, é a abordagem de Filo ao relato de Gênesis. Ele trata alegoricamente cada uma das personagens bíblicas mencionadas: Enos – esperança Enoque – arrependimento Noé – repouso e paz de espírito Abraão – instrução Isaque – intuição Jacó – prática Segundo ele, os patriarcas históricos alcançaram a perfeição porque possuíam todas as três qualificações (instrução, intuição e prática); alegoricamente, cada um de nós tem um Abraão, um Isaque e um Jacó dentro de si, e assim por diante. Na segunda parte dessa obra, chamada de “A piedade de Abraão”, Filo aborda o relacionamento de Abraão com Deus. Essa seção é um digesto da filosofia total de Filo, incluindo seus conceitos sobre Deus, os seres intermediários entre Deus e os homens, e a capacidade humana de elevar-se até Deus. Os seres intermediários são apresentados com base em Gênesis 18.2: “ele levantou os seus olhos, e eis que três homens estavam em pé diante dele”. Segundo Filo, os três homens são: o Logos, o Poder (dunamis) da Criação, e o Poder de Governo. A migração de Abraão de Ur dos Caldeus é alegoricamente interpretada como uma migração da astrologia para a descoberta do Logos divino. Na parte final da obra, chamada de “Abraão tinha as quatro virtudes”, Filo descreve o relacionamento de Abraão com os homens. Suas quatro virtudes são as virtudes cardeais do estoicismo: justiça, bravura, prudência e temperança. Mais uma vez fica evidente os pressupostos hermenêuticos de Filo que controlam seu projeto de ler Gênesis à luz da filosofia grega. “Sobre o Decálogo” Filo trata nesse livro primeiramente da piedade – que é a relação do homem com Deus. Segundo ele, os cinco primeiros mandamentos refletem piedade. Os últimos quatro se relacionam com as quatro virtudes cardeais, e o mandamento de honrar os pais é transformado na transição entre as duas partes. Filo considera a Lei mosaica como divina, apesar de ser uma cópia da “lei não escrita da natureza”. Como tal, é similar às leis promulgadas nas cidades e nos senados. “A alegoria da Lei” É uma longa série de tratados, cada um deles começando com uma passagem de Gênesis. Filo aqui perde-se frequentemente em digressões; raramente se pode discernir a sua linha de pensamento. Isto torna a leitura desses tratados extremamente difícil e monótona, o que é uma pena, já que esses tratados são tão importantes quanto a “Exposição da Lei”. O título do mesmo já aponta para o tipo de leitura que Filo faz do Pentateuco. “Perguntas e respostas em Gênesis e Êxodo” Essa obra ficou preservada apenas em fragmentos escritos em armênio. Alguns fragmentos gregos da mesma também têm sido descobertos. Pelo que se pôde recuperar, Filo trata nessa obra de algumas partes de Gênesis e Êxodo, mas nada de Levítico, Números e Deuteronômio – possivelmente, ele nunca conseguiu chegar até lá. O método que Filo emprega está refletido no título, e se dá como segue abaixo: a) Ele pergunta o que o texto bíblico está dizendo; b) Então dá uma curta resposta quanto ao seu sentido literal; c) Em seguida, uma resposta filosófica elaborada, da qual ele procede para uma interpretação alegórica. Filo e as Escrituras Procuremos agora entender como Filo usa as Escrituras em suas obras. Comecemos indagando sobre a distribuição das citações bíblicas em seus escritos. O Pentateuco é a parte das Escrituras mais citada, embora Filo também cite os Profetas e os Escritos. Não ocorrem citações dos Pseudo- epígrafos ou Apócrifos. Filo segue a tendência geral dos judeus da Dispersão de dar mais ênfase ao Pentateuco. Notemos ainda quenem sempre Filo usa as Escrituras nos seus livros. Nas obras mencionadas acima como “Escritos Diversos”, citações bíblicas quase nunca aparecem. Apesar disso, não pode haver qualquer dúvida de que Filo reconhecia a autoridade das Escrituras. Para ele, a Bíblia estava acima da literatura secular. Muito embora Filo use alegoria para interpretar as Escrituras, método que era empregado para interpretar algumas obras religiosas de sua época, ele não considera o Antigo Testamento como tendo o mesmo valor que obras humanas. Ele vê a Escritura como autoritativa, tendo origem divina. Por exemplo, ele nunca cita os escritos de Homero ao lado dos livros de Moisés. Filo via a Bíblia como um oráculo, similar ao conceito grego de revelação divina. Entre os gregos, a ida ao oráculo de Delfos em busca da revelação divina era muito popular. Delfos se localizava em Fócis, Grécia, no monte de Parnassos, perto do golfo de Corinto. Era considerada como o omphalos (centro) da terra, e isto era designado por uma enorme pedra oval, também chamada omphalos. Delfos era consagrada a Apolo, o deus da profecia e patrono da filosofia e das artes, cujo templo famoso e santuário profético se localizavam em Delfos. O templo, junto com o santuário que o cercava, era o local do famoso oráculo de Delfos. Consultado até mesmo por Édipo, Sócrates e outras figuras conhecidas da Antiguidade, o oráculo pronunciava suas mensagens de maneira tão ambígua que raramente se podia provar que havia falhado. Para Filo, a Bíblia era o oráculo de Deus aos homens. Daí advinha sua autoridade. E assim, tudo que está na Bíblia é verdadeiro. No entanto, Filo tem um conceito de inspiração bem diferente do conceito mecânico, que era o que ocorria no oráculo de Delfos. Para ele, Moisés é tanto o receptor quanto o transmissor da Palavra de Deus. Ao contrário do Judaísmo, Filo não vê Moisés como um receptor passivo, mas como o autor real do Pentateuco. Portanto, a Escritura é uma palavra que veio a Moisés e que também procedeu dele, ao mesmo tempo. Ele sempre se refere a Moisés como o autor do Pentateuco. A personalidade de Moisés está inseparavelmente ligada à Torá. Assim, a inspiração divina está por detrás da personalidade humana, mas não toma o seu lugar. Quanto ao propósito das Escrituras, Filo reconhecia que a Lei de Moisés não era um fim em si mesma, como se defendia no Judaísmo rabínico. Para ele, era o meio de se obter comunhão mística com Deus, o que era o alvo maior de todos. Deste modo, a Escritura não era apenas o registro de fatos antigos, mas também prefigurava a experiência de cada homem. Isso se torna possível por meio da alegorização dos relatos bíblicos. Gênesis é o registro das experiências dos seus personagens, os quais viveram tempos passados, e também a experiência de cada leitor, que delas se apoderam mediante a alegorização do relato. A Bíblia, assim, é o relato de eventos passados e ao mesmo tempo o manual para nossa progressão espiritual. Ela nos dá soluções e segurança em meio às nossas perplexidades. Finalmente, uma palavra sobre o texto de Filo, que era a Septuaginta. O que nos chama a atenção é que ele usa e cita continuamente a Septuaginta sem qualquer atitude crítica para com os reconhecidos erros de tradução desta versão grega do Antigo Testamento. Sua exegese e alegoria se baseavam, em muitos casos, nas nuanças dessa tradução. Ele é o único intérprete judeu na história da interpretação da Bíblia que usa exclusivamente a versão grega do Antigo Testamento e não o texto hebraico. Aparentemente, havia várias razões para isso. Primeira, a Septuaginta tinha um alto status no Judaísmo helenístico (Dispersão), antes de ser tomada e usada pelos cristãos. Era vista como um tesouro, uma fonte de orgulho; havia até mesmo uma lenda a respeito da sua formação, a famosa carta de Aristeas que Filo cita na sua obra “A vida de Moisés”. Segunda, para Filo, a Lei só poderia se tornar disponível para toda a humanidade se fosse transmitida em grego. Terceira, para ele, a Septuaginta era tão inspirada e autoritativa quanto o texto hebraico. E por fim, muitos estudiosos acreditam que Filo não sabia o hebraico, como também os demais judeus da Dispersão. O método exegético de Filo Para melhor entender a hermenêutica de Filo, lembremos que ele estava batalhando em duas frentes. Numa, desejava confrontar os excessos interpretativos de uns poucos “alegoristas extremos” da sua época, que aboliam totalmente o sentido literal do texto do Antigo Testamento. Muito embora ele mesmo alegorizasse as Escrituras, considerava que tais intérpretes estavam indo longe demais. O próprio Filo por vezes interpretava literalmente o texto bíblico, muito embora sua preferência fosse pela alegoria. Noutra frente, disputava com os “literalistas” que queriam interpretar literalmente as passagens que continham referências a Deus como se ele fosse homem, tais como “os olhos do Senhor”, “a mão do Senhor” e outras. O alvo de Filo era demonstrar que estes “antropomorfismos” deviam ser entendidos alegoricamente, e que, quando o sentido literal era impossível, a alegoria era a coisa certa a fazer. Em seu tratado A posteridade de Caim, ele argumenta que Deus não pode ter forma humana, pois isto implicaria que ele também teria necessidades e desejos humanos. As descrições antropomórficas de Deus que temos nas Escrituras foram incluídas como uma concessão ao povo, mas devem ser interpretadas figuradamente. Filo temia que essas passagens pudessem ser usadas pelos inimigos do Judaísmo para difundir ideias errôneas sobre a doutrina judaica de Deus. Mas não pensemos que Filo só alegorizava passagens antropomórficas. Ele alegorizava toda e qualquer passagem das Escrituras, pois seu pressuposto fundamental é que por detrás do sentido literal subjaz o sentido alegórico, que é o verdadeiro e mais importante. Enfim, parece que Filo reconhecia dois níveis de sentido na Escritura, o literal e o alegórico. Um exemplo pode nos ajudar a perceber isso. Ao interpretar Gênesis 6.2,4 em seu tratado Sobre os Gigantes, Filo entende que “filhos de Deus” se refere aos anjos e “filhas dos homens” às mulheres, e rejeita a noção de que os gigantes mencionados sejam um mito. Mas em seguida, diz que Deus deseja nos ensinar com essa passagem que existem três tipos de pessoa: aquelas que se preocupam com as coisas físicas, com as intelectuais e com as místicas. E é com esse ponto que ele se ocupa em seguida, abandonando por completo as questões relacionadas com o entendimento literal da passagem. A relação entre essas duas “camadas” de sentidos, o literal e o alegórico, era como a relação entre o corpo e a alma, posição mais tarde adotada por Orígenes. Como um platonista que era, Filo dava muito mais valor à alma. Semelhantemente, palavras eram vistas como um “espelho” de realidades superiores. Porém, Filo mantém as duas “camadas” de sentidos consistentemente separadas, com pouca ou nenhuma comunicação entre si. Por exemplo, o José literal, que ele descreve em uma obra, é totalmente diferente do José alegórico que ele descreve em outra. O caráter da alegoria de Filo Ao analisar as Escrituras, Filo parte da premissa que o todo-sábio Moisés pretendeu dizer algo da sua sabedoria ocultando-o além do sentido literal da Torá. Assim, frequentemente Filo comenta, ao interpretar uma passagem, “o texto deve estar dizendo outra coisa…”. Alegorizar é exatamente isso. A palavra vem do grego e significa literalmente “dizer outra coisa”, ou seja, numa alegoria as palavras estão dizendo outra coisa que não aquela que parece óbvia. A palavra “alegoria”, dessa maneira, veio a se aplicar a quase todo tipo de interpretação que pressupõe a existência de sentidos ocultos, além daquele sentido natural e óbvio de uma passagem. Interpretar uma passagem alegoricamente é atribuir a determinada passagem um sentido que aparentemente não está lá. Por exemplo, Filo interpreta Caim como sendo o homem eloquente sem conteúdo, que “mata” o que tem conteúdo, mas que não é eloquente (Abel). Essa interpretação é alegórica, poisencontra no texto bíblico coisas que certamente não passavam pela mente de Moisés ao escrevê-lo. São sentidos que estão além do sentido natural, óbvio e simples da narrativa. Entretanto, nem toda interpretação não literal é necessariamente alegórica. Filo, por exemplo, às vezes é capaz de expandir um texto sem usar alegoria. Essas “expansões” eram mais paráfrases elaboradas de um texto, em que Filo supria detalhes e informações de origem, até hoje, desconhecidas. Filo usa alegoria para abordar passagens que são ao mesmo tempo sagradas e difíceis. O seu método possivelmente originou-se muito antes, com as tentativas de remover as dificuldades morais da Ilíada, a famosa obra de Homero. Homero era a principal figura da literatura grega antiga, o autor dos mais antigos e melhores poemas épicos, a Ilíada e a Odisseia. Estudiosos modernos têm teorias conflitantes acerca da autoria desses poemas, mas os gregos antigos criam que um poeta cego de nome Homero os havia composto. De acordo com a tradição, Homero viveu no século 12 a.C., durante a época das guerras troianas, numa colônia iônica, talvez Chios ou Esmirna, onde ganhava a vida cantando e contando histórias na corte. Os gregos antigos consideravam Homero como divino e respeitavam suas obras como fonte de sabedoria e modelo de conduta heroica. Homero criou o famoso Panteão grego, com deuses imaginados em semelhança humana, e capazes das emoções e atitudes humanas mais depravadas. Assim, em suas obras encontramos deuses mentindo, enganando, adulterando, assassinando e praticando canibalismo. Porém, houve muita reação por parte de filósofos gregos. Hesíodo (séculos 7º e 8º a.C.) não acreditava na história homérica de Prometeus enganando Zeus, o rei dos deuses. Explicou que Zeus apenas fez-de-conta que foi enganado. Pindar (século 6º a.C.) racionalizou a história de Homero em que o deus Tantalus ofereceu aos deuses o seu filho como refeição. Xenofonte atacou Homero diretamente: “Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses todas as coisas que são vergonhosas e desrespeitáveis quando feitas pelos homens; e eles contaram dos deuses muitas coisas ilegais, furto, adultério e engano”. O próprio Platão, na República, propôs a censura das obras de Homero, por conterem fábulas acerca dos deuses. Em respeito aos deuses, e com o surgimento da moralidade grega, os admiradores de Homero costumavam interpretar simbolicamente passagens das suas obras em que os deuses eram descritos cometendo atos imorais e errados, e dessa maneira procuravam salvar a pele do poeta cego. O argumento era que as histórias eram para ser entendidas simbolicamente, como alegorias, com sentidos diferentes daqueles que eram aparentes e óbvios. Outra tentativa de alegorizar Homero foi feita pelos filósofos estoicos dos séculos 4º e 5º a.C. Eles acreditavam na existência de apenas um Deus e viam os muitos deuses de Homero apenas como representando diversos aspectos do estoicismo. Semelhantemente, Filo procurou remover as “dificuldades” das Escrituras (Septuaginta) usando o mesmo método. As principais dificuldades seriam as passagens em que Deus é apresentado de forma antropomórfica, agindo, reagindo e sentindo como homem, ou tomando decisões aparentemente cruéis, como mandar matar mulheres e crianças dos pagãos. Entretanto, é preciso reafirmar que Filo alegoriza o texto sagrado mesmo quando não há dificuldades envolvidas. Ele usa alegoria quase que incessantemente. Um bom exemplo são os sentidos que ele atribui a cada nome próprio e a cada número da Bíblia, o que prova que nem sempre ele alegorizava para resolver problemas. A grande alegoria Existe uma diferença entre as alegorias de Filo e aquelas dos primeiros rabinos e as de Flávio Josefo. Enquanto estes usavam alegorias disparatadas, ao acaso, e desconectadas entre si, Filo compunha suas alegorias bíblicas dentro de uma alegoria maior, a qual lhes dava consistência e unidade. O estudioso judeu Samuel Sandmel, em seu livro Filo de Alexandria, refere-se a essa alegoria maior como arquitetônica, por servir de fundamento e base para o edifício da alegoria que Filo construiu. O adesivo que une o material que Filo apresenta alegoricamente é o Pentateuco. A narrativa da criação, o Éden, o dilúvio, os patriarcas, o Êxodo, a peregrinação no deserto e a revelação da Lei são tomados por Filo como representando a jornada espiritual de cada um de nós. As Escrituras nos providenciam o mapa dessa jornada à perfeição espiritual. É essa perspectiva alegórica maior sobre a Escritura que serve de fundamento para as interpretações fantasiosas que Filo faz. Como resultado, ele acaba dissolvendo os fatos históricos da Escritura, negando, por exemplo, que Sara e Hagar fossem personagens históricos, ou que a jornada histórica de Abraão tenha qualquer valor para nós. Filo está muito mais interessado na grande jornada espiritual de cada um de nós. Para ele, o homem nasce com corpo e alma. O corpo é material, o assento das paixões e relacionado com o presente mundo. A alma é isenta de corrupção. O nosso objetivo aqui neste mundo é usar a mente para livrar a alma da dominação do corpo. Percebe-se que ele trabalha com conceitos platônicos e estoicos dos dois mundos: o corpo está relacionado ao mundo material, a alma ao mundo inteligível. Atingir a perfeição espiritual é deixar o mundo material e perceptível, e entrar no mundo elevado das ideias. Mas como alguém pode atingir a perfeição espiritual? Filo distingue duas maneiras. A primeira, designada aos homens com dons inatos (tais como ele mesmo!). Esses são como os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó. A segunda, designada para o povo. A esses, Deus deu a Lei. Aqueles que dentre o povo obedecem a Lei são como os patriarcas, embora não tendo consciência do fato. Partindo dessa estrutura, Filo faz que cada parte do Pentateuco se encaixe. Seus eventos, relatos, instituições e personagens são interpretados de modo a se acomodarem à grande alegoria. Filo sempre acaba forçando toda a Escritura a caber dentro desta camisa de força alegórica. Personagens bíblicas são frequentemente interpretadas em relação aos aspectos ou níveis desta jornada espiritual. Assim, Ló representa um estágio da jornada para a perfeição em que a alma ainda é inclinada aos prazeres físicos. Parte do seu método consiste em dar o sentido do nome hebraico da personagem, e então proceder para a alegorização do mesmo. Dessa maneira, Abraão é interpretado como sendo astrólogo, porque ab é pai, e ram elevado. Filo afirma que isso significava que, à noite, Abraão perscrutava os céus examinando as estrelas. Assim, por meio da alegoria, Filo pôde interpretar as Escrituras à luz de Platão e do estoicismo, apesar de que ele negaria esse fato, desde que, para ele, Platão derivou suas ideias do próprio Moisés. Filo e o Novo Testamento Muitos estudiosos têm perguntado qual a relação entre Filo e os autores do Novo Testamento, visto que, supostamente, também se encontram alegorias em seus escritos. Será que conheciam os escritos de Filo e foram por eles influenciados? Um dos autores bíblicos mais destacados nessa questão é o apóstolo Paulo, por abertamente fazer uma alegoria da história de Sara e Agar (Gl 4.24). Era Paulo um seguidor do método de Filo? Certamente existem diversos aspectos em comum entre os escritos de Filo e os de Paulo: ambos foram escritos em grego, foram escritos fora da Judeia, dentro do Judaísmo helenístico. Ambos usam a Septuaginta. Quanto ao sistema de interpretação, porém, as diferenças são enormes. Paulo quase nunca usa alegoria. Com exceção de Gálatas 4, Paulo geralmente usa o Antigo Testamento dentro do seu contexto histórico e literal. E mesmo no caso de Sara e Agar, Paulo pressupõe um contexto histórico de revelação progressiva. A coisa significada (as duas alianças) está historicamente ligada às duas mulheres. As alegorias de Filo, ao contrário, são totalmente arbitrárias, sem que haja entre o texto e a coisa significada qualquer relação histórica ou teológica. Paulo e Filo têm pressupostos totalmente diferentes.Para Filo, a Escritura harmoniza-se com a filosofia platônica e estoica, e ele a interpreta com o propósito definido de apresentá-la como sendo uma manifestação particular da Lei da Natureza. Para Paulo, as Escrituras falam de Cristo, e ele as interpreta para demonstrar que toda a Lei, Escritos e Profetas se cumprem nele. Paulo tem consciência escatológica. Para ele, os tempos do fim chegaram, tempos de cumprimento. As Escrituras estão se cumprindo nos eventos históricos relacionados com Jesus Cristo, Pentecostes e a igreja universal. Esse aspecto está totalmente ausente em Filo. Existem também profundas diferenças quanto aos importantes conceitos teológicos. Filo e Paulo veem Deus como plenamente transcendente, e ambos enfrentam o problema de como construir uma ponte até Deus. A solução dos dois é similar: o Logos de Filo e o Cristo de Paulo, enquanto radicalmente diferentes em muitos pontos, representam um mecanismo similar pelo qual o Deus transcendente se torna imanente. Entretanto, o Logos de Filo é atemporal, enquanto que o Cristo de Paulo é um evento histórico. Conclusão O estudo da hermenêutica de Filo de Alexandria nos ajuda especialmente a entender como o método alegórico de interpretação bíblica foi se formando no período pré-apostólico. Futuramente, a alegoria de Filo iria influenciar estudiosos cristãos influentes, como Orígenes. E por meio de Orígenes e outros, a alegoria se tornaria o método interpretativo predominante na Idade Média, dentro da igreja cristã. Outra conclusão a que podemos chegar é que dificilmente se poderá provar que os autores do Novo Testamento – especialmente Paulo, e mesmo o escritor de Hebreus, fossem filonistas, ou seja, seguidores do método alegórico de Filo. Existem diferenças substanciais entre o sistema interpretativo do Novo Testamento e a alegoria de Filo, conforme se pode ver pela análise que fizemos antes. Se formos procurar em algum lugar a fonte da hermenêutica dos apóstolos, a encontraremos no próprio método de Jesus. Capítulo 5 Flávio Josefo Introdução Josefo foi contemporâneo de Jesus Cristo e dos apóstolos, muito embora provavelmente nunca os tenha conhecido pessoalmente. Sua interpretação das Escrituras tem características semelhantes à dos cristãos, em alguns aspectos, graças ao ambiente comum em que viviam e por serem herdeiros do Judaísmo. Entretanto, a importância de Josefo para nossa pesquisa reside mais no fato de que sua maneira de ler as Escrituras é bastante diferente daquela dos cristãos, o que serve para destacar o que há de característico na interpretação cristã. A vida de Josefo Como historiador judeu, as obras de Josefo são inestimáveis para nosso conhecimento da história dos judeus debaixo do domínio romano. Flávio Josefo nasceu de uma família de sacerdotes e seu nome original era José ben Matias. Nasceu em 37 d.C. e morreu cerca de 100 d.C. Durante sua vida, foi fariseu, muito embora durante a mocidade tenha, aparentemente, passado algum tempo entre os essênios. Quando tinha 26 anos de idade, serviu como embaixador dos judeus em Roma e ficou muito impressionado com o poder imperial. Durante a revolta dos judeus contra Roma, que teve início em 66 d.C., comandou as forças revolucionárias judaicas na Galileia, até ser capturado pelo general romano Vespasiano. Na verdade, Josefo não acreditava na causa dos judeus e não apoiava a revolta, e portanto serviu relutantemente. Após sua captura, Josefo predisse que Vespasiano se tornaria imperador, e quando isto aconteceu foi libertado. Até o fim da guerra contra os judeus, atuou como intérprete para os romanos, especialmente quando foram estabelecidos os termos da rendição de Jerusalém no ano 70 d.C. Depois, Josefo foi morar em Roma, onde adotou o nome romano de Flávio, e lá passou os últimos anos de sua vida, sustentado pelo imperador e dedicandose a escrever. A participação de Josefo na guerra foi motivo para que fosse bastante criticado por sua subserviência aos romanos. Entretanto, o fato de que defendeu ardentemente a cultura e a religião judaicas em sua obra Contra Apião, bem como em outras demais obras históricas, mostra que era um ardente defensor da cultura e da religião judaicas. Josefo e Jesus Cristo Em uma das obras de Josefo, Antiguidades Judaicas, encontra-se a seguinte afirmação: Por aquela época, ali viveu Jesus, um homem sábio, se realmente pode-se chamá-lo de homem. Pois ele realizou obras surpreendentes e ensinou as pessoas que alegremente recebiam a verdade. Ele convenceu muitos judeus e gregos. Ele era o Messias. E quando, pela acusação dos principais de entre nós, Pilatos o condenou à cruz, os que o haviam primeiramente amado não cessaram. Ele lhes apareceu após ter sido restaurado no terceiro dia, pois os profetas de Deus haviam predito estas coisas e mil outras coisas maravilhosas sobre ele. E a tribo dos cristãos, assim chamada por causa dele, até hoje ainda não desapareceu (Antiguidades, 18.3.3 §63). A passagem, se autêntica, além de servir de comprovação histórica dos relatos dos evangelhos, sugere que Josefo, mesmo não tendo se convertido ao Cristianismo, acreditava no que os cristãos diziam acerca de Jesus, que ele era o Cristo e que havia ressuscitado de entre os mortos. O impacto da passagem é tão grande que muitos críticos a consideram uma interpolação feita no texto de Antiguidades no século 3º ou 4º d.C., por copistas cristãos que queriam dar autenticidade ao Cristianismo por meio do testemunho de Josefo. Segundo eles, essa passagem não pode ter sido escrita por um judeu, pois soa mais como cristã. Entretanto, mesmo admitindo que a passagem pode ter sido alterada e editada no decorrer de sua transmissão, ela ocorre nas versões mais antigas que temos da obra de Josefo, e em diferentes línguas. O que pode ter acontecido é que Josefo somente se referiu a Jesus e seus seguidores, e que editores posteriores acrescentaram os aspectos cristãos mais radicais da passagem. Assim, se Josefo realmente escreveu tudo isso, é questão que permanece em aberto. As obras de Josefo Durante o tempo em que morou em Roma Josefo escreveu quatro obras. A primeira foi As Guerras dos Judeus, contendo sete volumes. Em seguida veio Antiguidades Judaicas, em 20 volumes. Questionado por Apião sobre o que havia escrito em Antiguidades, Josefo escreveu Contra Apião e terminou a carreira com sua Autobiografia. As guerras dos judeus Essa obra foi escrita primeiramente em aramaico e depois traduzida para o grego, por volta de 79 d.C. Nela, Josefo relata primeiramente as causas da guerra, iniciando com a revolta dos Macabeus no século 2º a.C. Em seguida, fornece uma descrição dos eventos trágicos ocorridos durante a revolta, que está baseada largamente no conhecimento de primeira mão que ele, como comandante do exército judeu, tinha. Josefo utiliza as obras de Tucídides e Políbio, historiadores gregos, como fonte para a dominação romana. Em sua crônica das guerras, ele indica não somente as causas humanas, mas aponta para a providência divina que a tudo supervisiona, procurando identificar as causas teológicas da queda de Jerusalém. Na passagem abaixo, extraída de As Guerras dos Judeus, ele atribui aos próprios judeus a responsabilidade pela destruição de Jerusalém: Podemos dizer com verdade que uma guerra tão cruel em seu interior não lhes era menos funesta que uma guerra externa e que Jerusalém não sofreu mais da parte dos romanos, do que o furor dessas infelizes divisões, que já lhe havia feito experimentar males ainda maiores. Assim, não tenho receio de afirmar que é principalmente a esses inimigos de sua pátria e não aos romanos que devemos atribuir a ruína dessa poderosa cidade e que a única glória que lhes pode caber é ter exterminado esses malfeitores, cuja impiedade unida a tantos outros crimes que nem poderíamos imaginar, lhe tinha destruído a união que lhe dava muito mais força que suas mesmas muralhas. Não podemos pois dizer, com razão, que os crimes dos judeus são a verdadeira causa de suas desgraças e que, o que os romanos lhes fizeram sofrer,não foi um justo castigo? Deixo, porém, a cada qual que julgue como lhe aprouver. Antiguidades judaicas Foi escrita e publicada em grego, por volta de 93 d.C. O seu objetivo com esta obra de 20 volumes era esclarecer a ignorância do mundo greco- romano acerca dos judeus e de seus costumes, tradições e crenças, bem como de apresentar aos romanos, contando a história de Israel, uma defesa de seu povo, e impressionar os dominadores. É aqui que o famoso “Testemunho Flaviano” acerca de Cristo ocorre. A obra cobre toda a história dos judeus, desde a criação, e traz um relato detalhado do período dos Macabeus e da vida e feitos de Herodes. O relato consiste, na maior parte, num “recontar” da narrativa bíblica, e frequentemente Josefo expande, elabora e aumenta o texto bíblico, sua fonte primária. Vejamos por exemplo como ele reconta a história de Caim em Antiguidades Judaicas: Quando Caim tinha viajado por muitos países, ele e sua mulher, construiu uma cidade e a chamaram de Node, e ali estabeleceu sua moradia; ali também tiveram filhos. Entretanto, ele não aceitou sua punição como corretivo, mas aumentou ainda mais a sua impiedade; pois ele buscava somente aquilo que era para seu prazer físico, mesmo que para isto tivesse que ferir seus vizinhos. Aumentou seus bens mediante a rapina e a violência; ele incitava seus conhecidos a procurar prazeres e obter coisas pelo furto; ele tornou-se um grande líder de homens no caminho da iniquidade. Ele também introduziu uma mudança naquela maneira simples com que os homens viviam antes; e ele tornou-se o autor das medidas e pesos. Enquanto eles não conheciam essas artes, viviam de forma inocente e generosa. Caim, porém, mudou o mundo em estratagemas ardilosos. Primeiro, ele estabeleceu limites ao redor de terras; construiu uma cidade e fortificou-a com muralhas, e obrigou sua família a viver ali. E chamou aquela cidade Enoque, que era o nome de seu filho mais velho. Percebe-se claramente a elaboração e expansão na narrativa bíblica. Não se sabe ao certo de onde Josefo obteve essas informações adicionais, mui provavelmente vieram de sua própria imaginação. Outras obras No livro Contra Apião, Josefo defende seu povo das ideias antissemitas espalhadas em Roma por Apião, um autor romano muito popular, um dos mais destacados inimigos dos judeus naquela época. A sua Autobiografia foi escrita após 95 d.C. Um dos inimigos de Josefo, um judeu chamado Justo de Tiberíades, fez um relato da guerra de Roma contra os judeus, na qual Josefo participou, e descreve Josefo como sendo inimigo dos romanos e militante contra o domínio imperial – deixando Josefo em situação difícil como protegido pelo império. Josefo escreve a Autobiografia com o objetivo de deixar claro sua posição moderada. Josefo e as Escrituras Em todas essas obras, Josefo cita as Escrituras do Antigo Testamento. Na sua época, o cânon hebraico já estava completo e dividido em três partes, a Lei, os Profetas e os Escritos. Nosso alvo é procurar entender como ele as interpreta e sintetizar seu modelo hermenêutico. Comecemos indagando qual era a Bíblia de Josefo. Estudiosos acreditam que ele tinha acesso a três textos: o texto hebraico, a Septuaginta, e targums, escritos em aramaico. Josefo nasceu e cresceu em Jerusalém. Ele era bem mais erudito do que seus compatriotas, e certamente conhecia o texto hebraico. Entretanto, é difícil determinar exemplos específicos em suas obras de quando está traduzindo o texto hebraico, ou parafraseando-o. Alguns creem que pode ter seguido uma versão hebraica independente do texto que temos hoje. Aparentemente, Josefo não precisaria usar a Septuaginta, visto que conhecia perfeitamente o hebraico. Além do mais, ele estava escrevendo para os gregos, e no seu desejo de impressioná-los dificilmente citaria a Septuaginta, pois em muitas partes ela traz um grego inferior ao seu próprio. Por outro lado, a Septuaginta era amplamente difundida e reconhecida no mundo grego. Além disso, às vezes, parece estar expandindo partes que só aparecem na Septuaginta e não no texto hebraico. Aramaico era a língua mãe de Josefo, e certamente ele estava familiarizado com as leituras targúmicas em aramaico, pelos anos que passou em Jerusalém, frequentando as sinagogas. Alguns estudiosos têm notado semelhança entre as expansões que Josefo faz e aquelas dos targums, o que os leva a acreditar que Josefo se utiliza deles. Apesar de ter acesso a essas três versões das Escrituras, é provável que Josefo tenha usado mais o texto hebraico, citando-o livremente ou traduzindo-o livremente para o grego, língua em que publicou todas as suas obras. A pergunta que agora se levanta é o grau de liberdade que ele utilizou para traduzir e citar as Escrituras em suas obras. Na introdução de Antiguidades, Josefo declara que não adicionará nem omitirá coisa alguma das Escrituras (Ant 1:5-7). E ao término da mesma, declara que nada omitiu ou adicionou (Ant 20:261). Entretanto, é evidente, a partir do que escreveu, que numerosos detalhes e, às vezes, episódios inteiros foram adicionados, e que também foram omitidos episódios bíblicos que não se prestam ao seu propósito central, que é defender o Judaísmo. Entre essas partes, está o relato da esperteza de Jacó em tirar as ovelhas de Labão (Gn 30.37-38), o episódio de Judá e Tamar (Gn 38), o assassinato do egípcio por Moisés (Êx 2.12), a construção do bezerro de ouro (Êx 32), o pecado de Moisés ao ferir a rocha (Nm 20.10-12), entre outros. É possível que Josefo tenha se referido somente ao material haláchico ou legal, os mandamentos e as leis do Pentateuco. Ele mesmo trata quase que exclusivamente do material agádico, isto é, histórico ou narrativo. Ou ainda, sua promessa pode ser apenas “conversa”, pois a grande maioria dos seus leitores (gregos) talvez não tivesse como averiguar se ele cumpriria sua promessa ou não. Josefo como intérprete da narrativa bíblica Para entender a maneira de Josefo ler a Bíblia devemos primeiro nos conscientizar dos alvos que ele tinha em mente. O objetivo apologético Em primeiro lugar, havia o objetivo apologético. As obras de Josefo têm caráter eminentemente apologético. Ele procura nelas defender o povo judeu dos ataques antissemitas da sua época. Assim, ele adota várias estratégias ao “re-narrar” a história bíblica. Primeiro, Josefo heleniza a narrativa judaica adotando fraseologia e conceitos dos autores gregos clássicos. Ele menciona mais de 35 autores gregos e, durante a sua narrativa, percebe-se que depende principalmente de Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Tucídides, Políbio, Heródoto e Platão. Segundo, Josefo destaca as virtudes dos heróis bíblicos. Em seu esforço de rebater a acusação de que os judeus não produziram homens “heróis”, descreve os heróis bíblicos em termos das virtudes reconhecidas e apreciadas pelos gregos: nascimento de família nobre, altura, piedade, e as quatro virtudes de caráter: sabedoria, coragem, temperança e justiça. Terceiro, ele faz constantes apelos aos aspectos militares, políticos e geográficos da Bíblia. Josefo escreve acerca da constituição política de Israel (ele conhece bem a linguagem política), destaca seus feitos militares, usando sua própria experiência como general. Por fim, Josefo traz um apelo aos interessados em filosofia, procurando cativar sua audiência grega comparando as seitas judaicas com escolas filosóficas. Os fariseus são comparados aos estoicos, os saduceus aos epicureus, e os essênios aos pitagoreanos. O objetivo teológico Ao lado do objetivo apologético, Josefo tem também um propósito teológico. Ele está interessado em apresentar uma interpretação judaica da História que seja consistente e profundamente religiosa. Seu alvo é demonstrar que nesta vida Deus recompensa os que guardam a sua Lei e pune os desobedientes. Porém, já que é um historiador, não dá ênfase ao papel de Deus nos episódios, para poder focalizar-se mais no papel do homem, como, por exemplo, na história de José e Rute. Ou ainda, retira quase todos os elementos miraculosos da história de Sansão.No geral, entretanto, sua narrativa interpreta os eventos a partir do ensinamento bíblico da intervenção de Deus em favor do seu povo ou em juízo contra ele. Já mencionamos que Josefo modifica a narrativa bíblica ao contar a história dos judeus. Ele se propunha a contar esta história partindo das Escrituras, sua fonte principal. Como vimos, estava controlado pelo desejo de apresentar essa história com um cunho defensivo, apologético, uma resposta aos ataques antissemitas de sua época. Assim, ele frequentemente altera a narrativa bíblica para adaptá-la para esse alvo. Ele deseja livrar a história dos judeus de qualquer “dificuldade” ou obscuridade que possa ser um tropeço aos leitores gregos. Portanto, modifica ou interpreta o texto bíblico com vários propósitos. Primeiro, ele tem o alvo de resolver o que considera um problema teológico ou uma contradição no texto bíblico. Josefo faz isto alterando ou omitindo sentenças difíceis do texto bíblico. Por exemplo: “Façamos o homem…” (Gn 1.26) é mudado para o singular: “Deus fez o homem”, com o propósito claro de evitar a acusação de politeísmo. Segundo, Josefo deseja remover dificuldades cronológicas. Talvez o melhor exemplo disso seja o da longevidade dos patriarcas. Embaraçado pelo relato bíblico de que eles viveram, cada um, perto de mil anos, Josefo tenta amainar a dificuldade citando exemplos de pessoas da Antiguidade, que, segundo os poetas gregos, viveram mais de mil anos, e mostrando que os patriarcas tinham uma dieta especial, que precisavam viver muito para aplicar e testar seus conhecimentos de astronomia e geometria, e que tinham méritos diante de Deus (Ant 1:107-108). Terceiro, Josefo procura sempre evitar antropomorfismos. No relato da criação Josefo altera a sentença “o espírito de Deus pairava sobre a face das águas” (a palavra “pairava” dá a ideia de “chocar”, como se o mundo fosse um gigantesco ovo), traduzindo por “um vento se movia…” (Ant 1:27). Similarmente, altera a ideia de que Deus “soprou” o fôlego da vida nas narinas do homem, e diz que Deus “colocou” no homem alma e espírito. Essas mudanças de Josefo tinham como objetivo evitar passar a ideia de que o Deus de Israel tivesse corpo físico. Quarto, ele desejava tornar a narrativa mais plausível. Segundo Josefo, Mordecai descobre a trama contra o rei Assuero (Et 2.22) por intermédio de certo judeu chamado Barnabazos, servo de um dos eunucos (Ant 11.207), informação de origem desconhecida até hoje. E para evitar que se pense que a esposa de Manoá tinha motivos errados ao pedir ao anjo que voltasse (Jz 13.2), Josefo acrescenta que ela fez isto para que seu marido o visse, e não ficasse enciumado (Ant 5.280). Por fim, ele visava esclarecer obscuridades do texto. O “fogo estranho” que Nadabe e Abiú trazem perante o Senhor (Lv 10.1) é interpretado por Josefo como sendo não o incenso prescrito por Deus, mas um já usado anteriormente, o que teria provocado a ira do Senhor contra os dois sacerdotes. As circunstâncias em que Josefo escreveu suas obras explicam porque frequentemente altera a narrativa das Escrituras, e nos mostra que intérpretes bíblicos estão sempre sujeitos a cair na tentação de alterar e adaptar a mensagem bíblica aos alvos que têm em mente. Josefo e alegoria Uma última questão que desejamos levantar é quanto ao uso da alegoria nos escritos de Josefo. Ele raramente usa alegoria para resolver problemas de interpretação, embora acredite que é um método bíblico (Ant 1.24). Ele também está ciente de que os estoicos usaram esse método para resolver os relatos de Hesíodo e Homero sobre as obscenidades dos deuses. Mas, no geral, Josefo se manifesta contra interpretações fantasiosas da Escritura. Talvez estivesse reagindo ao método de Filo, o qual ele conhecia. Josefo, entretanto, usa alegoria às vezes. Em Antiguidades, ele diz que o tabernáculo simboliza o céu e a terra (Ant 3.181). Já os doze pães da proposição representam os doze meses do ano (Ant 3.182); o candelabro com as sete lâmpadas representam os sete planetas (Ibid); as vestes do sumosacerdote representam as partes do universo (Ant 3.184). Neste aspecto, Josefo alegoriza o texto bíblico para encontrar ali referências a temas e assuntos que despertassem o interesse e a admiração de seus leitores greco-romanos. Os escritores do Novo Testamento e Josefo Concluindo, perguntemo-nos sobre a relação entre as obras de Josefo e os escritos do Novo Testamento, considerando que surgiram no mesmo século e no mesmo mundo. É difícil saber se Josefo tinha conhecimento dos evangelhos, das cartas de Paulo ou de outros apóstolos. Quando Josefo morreu (em Roma, cerca de 100 d.C.) já havia coleções dos evangelhos e das cartas de Paulo circulando no mundo antigo e especialmente em Roma. Por outro lado, considerando que a maioria dos autores bíblicos já havia morrido por ocasião da publicação e divulgação das obras de Josefo, é praticamente impossível afirmar que eles tivessem conhecimento delas. De qualquer modo, as diferenças entre os dois, quanto ao uso das Escrituras, são marcantes. Escatologia Esta é uma das grandes diferenças. Josefo é mais um historiador, recontando a história bíblica e, portanto, concentrando-se nos relatos históricos do Antigo Testamento. Ao interpretar a História, Josefo não demonstra qualquer interesse escatológico. Não vê nos eventos nada de tipológico aguardando consumação. Por outro lado, os escritores do Novo Testamento são mais como profetas, asseverando que tanto as partes haláchicas quanto as agádicas do Antigo Testamento encontram cumprimento em seus próprios dias. A abordagem escatológica do Cristianismo lhe permitiu ver o Antigo Testamento não simplesmente como um livro de leis e histórias, mas como promessa. Nisto reside a principal diferença. Atualização Quando Josefo “espiritualiza” e aplica o texto, ele o faz para mostrar a harmonia das Escrituras com o pensamento e a cultura helenísticas. Os escritores do Novo Testamento, por sua vez, aplicam as Escrituras “cristocentricamente”. A consciência da vinda do Messias determina a sua leitura do Antigo Testamento. Em outras palavras, Josefo interpreta o texto bíblico em termos da cultura grega, e os autores do Novo Testamento em termos de Cristo. Resolução de problemas do texto Enquanto Josefo está preocupado em remover as dificuldades do texto bíblico e adaptar a narrativa aos seus cultos leitores gregos, os autores bíblicos em nenhum momento adotam abordagem semelhante. Para eles, a Escritura, tal como está, é a Palavra de Deus, autoritativa e profética. Eles não se engajam em interpretação como se essa fosse um fim em si mesma, mas para trazer o texto à sua época, aos fins dos tempos, a Cristo. Conclusão Muito embora Flávio Josefo não tenha sido um cristão, sua maneira de abordar as Escrituras em suas obras, por contraste, contribui para nossa melhor compreensão e entendimento do uso cristão das Escrituras em sua época. Determinado a defender os costumes e a religião de Israel, numa época de antissemitismo crescente, ele reconta a história sagrada visando compatibilizar a história do povo de Deus com o que era aceitável na cultura greco-romana. Ele também interpreta essa história do ponto de vista da doutrina bíblica do governo de Deus sobre o mundo. Capítulo 6 Os autores do Novo Testamento Introdução Para os cristãos, o capítulo mais importante da história da interpretação das Escrituras é sem dúvida o que trata da interpretação do Antigo Testamento pelos autores do Novo. Ao longo dos séculos, os estudiosos do Antigo e do Novo Testamento têm se dedicado a esse assunto. O mesmo não tem apenas interesse acadêmico. Ele tem importância crucial para pelo menos duas áreas. Primeira, para nossa própria hermenêutica. Queremos uma hermenêutica bíblica. Mas até que ponto a hermenêutica dos autores do Novo Testamento pode nos servir de modelo? Segunda, para a questão da inerrância das Escrituras. Na maioria das vezes, os autores do Novo Testamento usam passagens do Antigo Testamento com o sentido original fornecido pelo contextogramático-histórico. Porém, às vezes, eles aparentam usar um texto sem respeito ao seu contexto veterotestamentário. Além disso, ocasionalmente mudam, substituem, omitem e adicionam palavras nas suas citações. Nosso objetivo neste capítulo é mostrar como os autores do Novo Testamento interpretaram o Antigo, à luz do seu ambiente cultural e teológico, e dos demais modelos interpretativos em vigor em sua época, dos quais já mostramos alguns exemplos. A maior limitação deste capítulo é que não teremos como nos aprofundar em várias das questões pertinentes ao assunto. Nosso interesse será somente mostrar como a interpretação dos autores do Novo Testamento se encaixa no milieu hermenêutico da época, explorando as semelhanças, as diferenças e, especialmente, entendendo quais os princípios que a controlavam. Nesse processo, várias questões serão levantadas e deixadas sem resposta detalhada e profunda. Outra limitação é imposta pela quantidade de autores do Novo Testamento. Se fôssemos dar atenção individual a Mateus, Marcos, Lucas, João, Paulo, Tiago, João, Pedro, Judas e ao autor de Hebreus, faríamos este capítulo desproporcionalmente longo. Procuraremos citar todos eles à medida que formos ilustrando os princípios dominantes da hermenêutica que lhes era comum. Porém, maior destaque será dado aos escritos de Paulo, pela razão simples de que ele foi quem mais escreveu. Temos alguns pressupostos que desejamos deixar claros antes de pros- seguir. Partimos da convicção da harmonia e unidade do Novo Testamento, da inspiração e infalibilidade de seus escritos, e da sua autoria apostólica ainda durante o século 1º da era cristã. Também reconhecemos que não temos resposta para algumas das intrigantes questões que aparecerão no curso de nossa pesquisa. Entretanto, rejeitamos a priori qualquer resposta que requeira engano ou erro por parte dos autores do Novo Testamento. Preferimos aguardar por respostas que expliquem as dificuldades sem ferir o princípio da autoridade e infalibilidade das Escrituras. A incredulidade impaciente de muitos estudiosos críticos acaba por levá-los a rejeitar a autoridade do Novo Testamento, propondo explicações que tornam seus autores em redatores desajeitados ou teólogos incoerentes e manipuladores irresponsáveis das Escrituras do Antigo Testamento. A Bíblia dos autores do Novo Testamento A Bíblia dos autores do Novo Testamento eram as Escrituras judaicas, que posteriormente vieram a se chamar Antigo Testamento. A Bíblia era central na vida deles, como também na dos rabinos, essênios e demais grupos e indivíduos que já estudamos. Era a autoridade máxima em termos de religião e conduta. O apóstolo Paulo a considerava como a Palavra de Deus, inspirada e autoritativa (2Tm 3.16). A maioria das suas citações vem do Pentateuco, Salmos e Isaías, como ocorre nos demais autores neotestamentários e entre os rabinos e nos escritos de Qumran. Uma importante questão é qual versão das Escrituras os intérpretes neotestamentários usaram em seus escritos. Tomemos o caso de Paulo como exemplo. Muito embora em muitos casos ele tenha citado as Escrituras de memória, permanece a pergunta: qual versão ele tinha memorizado? Sim, pois Paulo tinha diante de si várias opções: a versão grega (Septuaginta), a Bíblia hebraica e versões em aramaico. Um estudo cuidadoso demonstra que Paulo usou a Septuaginta, como Filo e, possivelmente, Josefo, que também utilizou-se do texto hebraico, como os rabinos e Qumran, e que ainda provavelmente usou targums (aramaico). Predominam as citações da Bíblia hebraica e da Septuaginta, nessa ordem. Pode-se distinguir quando Paulo cita uma ou outra porque nem sempre a Septuaginta seguiu o texto hebraico de maneira consistente. O caso de Paulo é uma boa amostragem do que ocorre com os demais autores do Novo Testamento. O Antigo Testamento no Novo Os autores do Novo Testamento em geral, e Paulo em particular, construíram seus escritos sobre a revelação escrita prévia, as Escrituras do Antigo Testamento, seguindo a mesma tradição hermenêutica que levou os autores posteriores do Antigo Testamento a construir sobre textos anteriores, conforme vimos no capítulo primeiro da nossa obra. O Novo Testamento está impregnado do Antigo e indissoluvelmente ligado a ele. O uso que os autores neotestamentários fazem das Escrituras em seus escritos é bem variado. Além de prover o arcabouço teológico, o Antigo Testamento é constantemente citado pelos autores do Novo. Há duas formas de citações: 1) Citações formais – Essas citações geralmente têm uma fórmula introdutória, como “está escrito” ou coisa semelhante, e são seguidas pela reprodução da passagem do Antigo Testamento à qual os autores se referem. Existem aproximadamente 104 citações formais do Antigo Testamento nas cartas de Paulo. De acordo com o índice de citações da quarta edição do texto grego da United Bible Society, temos 60 em Romanos, 17 em 1Coríntios, 10 em 2Coríntios, 10 em Gálatas, 5 em Efésios, 1 em 1Timóteo e mais 1 em 2Timóteo. 2) Alusões intencionais – São aquelas ocasiões em que os autores neotestamentários não se referem explicitamente às Escrituras, mas claramente estão dependendo de uma ou mais passagens do Antigo Testamento. Podemos considerar como alusões as citações livres, reminiscências, referências a eventos, paralelos de linguagem, ecos, etc. A característica comum é que as alusões não são precedidas por uma fórmula introdutória. Alguns exemplos das cartas de Paulo: (1) A exposição de Paulo dos efeitos da queda em Romanos 5.12-14 reflete Gênesis 2.16ss; 3.1ss; etc.; (2) As exortações em 1Coríntios 10.1-15 se baseiam em várias passagens sobre a desobediência dos israelitas no deserto (Nm 11.1ss; Êx 32.1ss; Nm 25.1ss; 21.1ss; 14.1ss); (3) A alegoria de Sara e Agar em Gálatas 4.21-31 é baseada em Gênesis 16.1ss. Dificuldades com as citações O que nos interessa no momento são as citações formais que os autores neotestamentários fazem, porque é aqui que a maneira como interpretam as Escrituras transparece de forma mais clara. No geral, eles reproduzem essas passagens respeitando o sentido das mesmas conforme seu contexto histórico, mantendo o sentido que tinham para os leitores originais. Porém, muitos críticos apontam para ocasiões em que eles parecem estar manipulando e torcendo as Escrituras para provar seus argumentos. Vejamos algumas dessas críticas feitas ao apóstolo Paulo. Localização ignorada Algumas vezes Paulo parece estar citando a Escritura, mas não conseguimos localizar a passagem do Antigo Testamento a que ele se refere. Por exemplo, em Efésios 5.14 ele faz uma citação introduzida pela palavra “diz”, que às vezes introduz uma citação formal do Antigo Testamento (cf. Rm 10.6 e 8). Só que não conseguimos encontrar no Antigo Testamento nenhuma passagem similar à que Paulo reproduz em sua carta. Alguns críticos dizem que o apóstolo simplesmente inventou uma passagem do Antigo Testamento para dar força ao seu argumento. Porém, há outras possibilidades além de acusar Paulo de charlatanice. Ele pode estar citando uma parte de um hino cristão, ou de uma fórmula usada no batismo. Ou melhor, ele pode simplesmente estar citando de memória uma combinação de passagens do Antigo Testamento. No caso, uma combinação de Isaías 26.19 e 60.1, duas passagens em que o profeta conclama o povo de Deus a despertarse diante da luz gloriosa da salvação: Efésios 5.14 - Pelo que diz: Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará. Isaías 26.19 - Os vossos mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho, ó Deus, será como o orvalho de vida, e a terra dará à luz os seus mortos. Isaías 60.1 – Dispõe-te, resplandece, porque vem a tua luz, e a glória do SENHOR nasce sobre ti. Outro exemplo é 1Coríntios 2.9. Aqui, claramente Paulo diz estar citando as Escrituras, usando sua fórmula introdutória preferida “está escrito”. Porém, não conseguimos encontrar no Antigo Testamento a passagem a que ele se refere. Nãoé necessário acusar Paulo de desonestidade. Mais uma vez, parece que o apóstolo está citando de memória duas passagens do Antigo Testamento, combinando o sentido de ambas numa única citação livre: 1Coríntios 2.9 - … mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam. Isaías 52.15 - … assim causará admiração às nações, e os reis fecharão a sua boca por causa dele; porque aquilo que não lhes foi anunciado verão, e aquilo que não ouviram entenderão. Isaías 64.4 – Porque desde a Antiguidade não se ouviu, nem com ouvidos se percebeu, nem com os olhos se viu Deus além de ti, que trabalha para aquele que nele espera. Outros exemplos poderiam ser citados, mas são realmente poucos (cf. 2Tm 2.19b). A melhor explicação para esses casos em que o apóstolo diz citar as Escrituras é que o faz de memória, fundindo textos e dando o sentido geral deles, sem fazer uma citação ipsis literis ou formal. Esse fenômeno não está restrito somente a Paulo, mas pode ser percebido em outros autores do Novo Testamento. Mateus, por exemplo, apela para os profetas para justificar que Jesus seria chamado de “nazareno” (Mt 2.23), mas não sabemos de onde ele tirou essa citação, que é provavelmente uma interpretação de várias profecias indicando que o Messias habitaria em Nazaré. É importante que levemos em conta que os padrões modernos a que estamos acostumados (aspas, notas de rodapé, indicação da fonte, etc.) exigem uma precisão muito maior na reprodução de textos em outros textos, do que os padrões da época apostólica. Além disso, em muitos casos, é possível que Paulo esteja citando de memória, sem a preocupação de reproduzir o texto bíblico de maneira exata. É bem verdade que, em um bom número de casos, as citações de Paulo seguem literalmente o texto do Antigo Testamento (cf. Gl 4.27; Rm 3.13; 4.17-18; etc.), o que sugere o uso de uma cópia da Bíblia. Porém, isso não precisa ser verdade em todos os casos. Mudanças intencionais do texto Um pouco mais complicados são aqueles casos em que Paulo cita o Antigo Testamento com mudanças aparentemente intencionais do texto original. Algumas são de menor importância, consistindo apenas na troca de uma ou outra palavra para adaptar a passagem ao seu novo contexto, sem alteração alguma do sentido original. Por exemplo, veja a citação que Paulo faz de Gênesis 15.6 em Romanos 4.3: Romanos 4.3 - Pois que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça. Gênesis 15.6 - Ele creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado para justiça. Na grande maioria dos casos, as alterações são como acima. Elas não mudam o sentido original da passagem do Antigo Testamento, e podem ser atribuídas a citações de memória (Paulo trocou “Senhor” por “Deus”) ou adaptação ao contexto do material que Paulo está escrevendo (trocou “ele” por “Abraão”). Porém, em outros casos, as alterações parecem mudar intencionalmente o sentido da passagem do Antigo Testamento. Os críticos de Paulo o acusam de torcer as Escrituras para servir aos seus propósitos. Veja a comparação abaixo de duas citações de Paulo em 1Coríntios. 1Coríntios 2.16 - Pois quem conheceu a mente do Senhor, que o possa instruir? Isaías 40.13 - Quem guiou o Espírito do SENHOR? Ou, como seu conselheiro, o ensinou? 1Coríntios 3.20 - E outra vez: O SENHOR conhece os pensamentos dos sábios, que são pensamentos vãos. Salmo 94.1 - O SENHOR conhece os pensamentos do homem, que são pensamentos vãos. No primeiro caso, Paulo citou Isaías trocando “Espírito” por “mente”. A troca poderia parecer normal, pois no pensamento de Paulo o Espírito é quem entende e transmite a mente do Senhor, conforme 1Coríntios 2.10-11. Por outro lado, a troca torna o argumento de Paulo em 1Coríntios mais pertinente, pois ele está tratando da mentalidade humana decaída em contraste com a mentalidade do homem regenerado. A troca, pois, parece intencional. No segundo caso, Paulo trocou “homem” por “sábios” e mais uma vez a troca parece intencional, com o objetivo de fortalecer seu argumento. Paulo está fazendo uma crítica à sabedoria humana e aos sábios deste mundo que não conhecem a Deus. Portanto, ao citar a passagem de Isaías, introduz a palavra “sábios”, como se os mesmos fossem o tipo de homens em que esse desconhecimento de Deus se mostra de maneira mais aguda. Esse procedimento não é exclusivo do apóstolo Paulo. Outros autores neotestamentários o utilizam igualmente. Pedro, por exemplo, ao citar Joel 2.28 no dia de Pentecostes, troca “depois” por “nos últimos dias” (cf. At 2.17). Em todos esses casos de troca intencional percebe-se que os autores neotestamentários estão dando uma versão interpretada da passagem do Antigo Testamento. Nos casos mencionados acima, não há realmente violência ao sentido do texto original. Pedro simplesmente interpreta Joel dizendo que o “depois” do profeta se referia à chegada dos últimos dias, com o derramamento do Espírito em Pentecostes. É preciso lembrar que Paulo nunca se propõe a dar uma citação verbatim do texto hebraico em suas cartas. Esse princípio é de extrema importância. Se Paulo tivesse a intenção de dar uma citação verbatim, e então trocasse as palavras, estaria cometendo um erro. Mas, se ele está se propondo apenas a reproduzir o sentido de um texto do Antigo Testamento, a situação é diferente. Com raras exceções, o argumento de Paulo nunca se baseia na fraseologia, gramática, sintaxe ou tempos verbais do hebraico, e sim no sentido do texto sendo citado. Assim, Paulo às vezes usa a fórmula “está escrito” mas reproduz o texto bíblico apenas de modo geral (cf. Rm 2.24). Uso da Septuaginta Na maioria dos casos em que cita o Antigo Testamento, Paulo reproduz a passagem bíblica em coerência com o texto hebraico e a Septuaginta, como, por exemplo, em Romanos 2.6; 2.16; 3.4; 1Coríntios 3.20; etc. Noutras ocasiões, ele segue o texto hebraico e não a Septuaginta, quando a mesma diverge do hebraico. Ver, por exemplo, Romanos 1.17; 11.4; Gálatas 3.11. Em algumas ocasiões, porém, Paulo segue a Septuaginta mesmo quando ela difere do texto hebraico, ou o traduz inadequadamente. O fato é estranho, acusam seus críticos, pois o apóstolo certamente conhecia o texto hebraico e também a Septuaginta e poderia saber quando a tradução não estava adequada. Há vários exemplos, como Romanos 2.24; 3.14; etc. Veja a comparação abaixo no caso de 1Coríntios 6.16, em que Paulo segue a Septuaginta, que introduziu a expressão “os dois” na passagem de Gênesis 2.24. 1Coríntios 6.16b - Porque, como se diz, serão os dois uma só carne. Gênesis 2.24 (tradução literal do hebraico) - Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, e serão uma só carne. Gênesis 2.24 (LXX) - Portanto, deixará o homem seu pai e sua mãe e se unirá a sua mulher e serão os dois uma só carne. No caso acima o problema não parece tão grave, pois a adição da Septuaginta é óbvia e não muda em nada o sentido do texto. Mas, o fato indica que Paulo por vezes preferia seguir a tradução grega do Antigo Testamento, mesmo tendo o original hebraico ao seu alcance. Esse fato pode apresentar um problema teológico, ou seja, um apóstolo infalível usando uma interpretação falível. Devemos nos lembrar de algumas coisas, ao estudar esse assunto. Primeira, podemos admitir que as passagens da Septuaginta citadas por Paulo (bem como no restante do Novo Testamento) passaram a ter status de Escritura e, portanto, inspiradas, sem que tenhamos de admitir, como Filo, que toda a Septuaginta é inspirada. Nesse caso, o princípio é válido para citações extracanônicas, como a citação do apócrifo Ascensão de Moisés feita em Judas 9. Da mesma maneira, as citações que Paulo faz de autores pagãos, como Aratus e Cleantes (At 17.28), Epimenides (Tt 1.12) e Menander (1Co 15.33), não tornam os escritos deles inspirados. O uso que Paulo faz de tradições rabínicas em aramaico, que mais tarde receberam forma escrita nos targums, também não precisa nos preocupar. Aplica-se o mesmo princípio.Por meio da cultura hermenêutica do Judaísmo rabínico, Deus preservou aspectos da verdade, os quais foram posteriormente, por meio do apóstolo inspirado, incorporados na revelação escrita. Segunda, na grande parte das vezes em que a Septuaginta é citada, mesmo traduzindo inadequadamente o texto hebraico, pode-se argumentar que não existe violência ao sentido do texto original. Por exemplo, a citação em 1Coríntios 6.16 da Septuaginta em Gênesis 2.24, a qual acrescenta “os dois” ao texto hebraico, apenas reflete o fato que Paulo está preocupado, não em reproduzir o hebraico verbatim, mas em reproduzir e aplicar seu sentido. Calvino, comentando Hebreus 11.21, em que o autor segue a Septuaginta “bordão” e não o texto hebraico “cama”, afirma que o escritor de Hebreus se acomodou às versões em grego disponíveis aos seus leitores, que eram judeus da Dispersão, quando isso não alterava de maneira significativa o conteúdo do seu ensino. Terceira, não devemos exagerar a dimensão do problema. Boa parte do ataque que é feito à Septuaginta visa desacreditar a exegese apostólica e, por inferência, a exegese gramático-histórica. Para alguns estudiosos conservadores, pode-se achar, em cada caso em que a Septuaginta é citada diferentemente do hebraico, uma razão convincente, que se harmoniza com nossa crença na inspiração e inerrância da Bíblia. Tradução independente Por vezes Paulo cita uma passagem do Antigo Testamento de maneira diferente tanto do texto hebraico quanto da Septuaginta. Mais uma vez a acusação de torcer as Escrituras vem à tona. Porém, nesses casos, não é impossível que ele esteja fazendo sua própria tradução diretamente do hebraico ou simplesmente fazendo uma citação interpretada da passagem. Por exemplo, as citações em sequência que ele faz em Romanos 3.10-12 de vários salmos (Sl 14.1-3; 53.1-3) divergem do hebraico e da Septuaginta apenas na sequência das palavras e nos vocábulos, mas o sentido é absolutamente o mesmo. A mesma coisa em 1Coríntios 1.19, em que ele cita Isaías 29.14 (ver ainda Gl 3.10). Um exemplo clássico é a citação que o apóstolo faz, em Efésios 4.8, do salmo 68.19: Efésios 4.8 - Por isso, diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens. Salmo 67.19 (LXX) - Subiste às alturas, levaste cativo o cativeiro, recebestes dons para os homens, sim, pois foram rebeldes, para que possas habitar entre eles. Salmo 68.19 (hebraico) – Subiste às alturas, levaste cativo o cativeiro; recebeste ho-mens por dádivas, até mesmo rebeldes, para que o SENHOR Deus habite no meio deles. No exemplo acima vemos dois fenômenos: (1) A Septuaginta trocou o objeto direto do verbo “receber” de “homens” para “dádivas”. (2) Paulo seguiu a Septuaginta nisto, e também traduziu o verbo hebraico lacah, que significa “receber” como se fosse “conceder”, mudando assim aparentemente o sentido original do salmo. Existem várias explicações para esse fenômeno. Os críticos acham que Paulo simplesmente torceu o texto hebraico para poder acomodá-lo ao seu propósito, que era de mostrar que Cristo, ao subir às alturas e ser glorificado, concedeu dons espirituais à sua igreja. Mas o texto hebraico e sua versão grega da Septuaginta eram conhecidos dos leitores de Paulo e especialmente de seus inimigos, os judaizantes, que facilmente poderiam acusá-lo de desonestidade. O apóstolo deve ter se sentido seguro em fazer essa alteração. A melhor possibilidade é que Paulo está se referindo, sob a forma de citação, a um sentido implícito no tema geral do salmo. O mesmo trata da vitória de Deus sobre seus inimigos, a qual é descrita em termos do triunfo militar de um general vitorioso, que após capturar os inimigos entra em sua cidade, trazendo-os como seus escravos em cortejo triunfante, recebendo-os como despojo ou dádivas da guerra. Na mesma ocasião, ele distribui os despojos da vitória entre seu povo, como dádivas e dons graciosos. Paulo percebeu no salmo que o mesmo tratava não somente do fato de que Deus, ao vencer em Cristo o cativeiro da morte, levou-a cativa e ganhou homens para si, mas deu a estes homens dons e dádivas para o serviço na igreja, seguindo o costume militar. Que Paulo estava bastante familiarizado com este costume e que o usou para descrever a vitória de Cristo, percebe-se por Colossenses 2.15, “… e, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz”. Entendemos que a explicação acima resolve o problema satisfatoriamente. Texto em outro contexto Os críticos da hermenêutica de Paulo apontam o fato que existem ainda casos em que, mesmo não havendo alterações significativas nas citações, o texto referido é empregado pelo apóstolo num contexto e com um sentido aparentemente diferentes do original. Vejamos alguns exemplos: (1) Paulo aplica aos gentios em Romanos 9.25-29 passagens do Antigo Testamento que originalmente falam de Israel (cf. Os 2.23; 1.10; Is 10.22-23; 1.9). Entretanto, o problema se resolve quando esta aplicação é examinada à luz da teologia paulina de que os gentios cristãos são o Israel de Deus, o verdadeiro Israel, o remanescente fiel profetizado. (2) Em Romanos 10.5-8 Paulo usa Deuteronômio 30.12-14 para provar a justificação pela fé, enquanto que a passagem originalmente parece defender que não é difícil guardar as obras da Lei. Mais uma vez o uso do apóstolo pode ser justificado à luz da sua doutrina de que o sistema de salvação pela fé estava embutido dentro da Lei, e que o remanescente fiel foi justificado pela fé no Antigo Testamento, exatamente como os cristãos de seus dias. Em todos estes casos acima, e noutros, não é difícil provar que Paulo está fazendo um uso legítimo das passagens em suas cartas, desde que examinemos cada caso cuidadosamente à luz da teologia do apóstolo e dentro do contexto maior no Antigo Testamento do qual as passagens foram tiradas. Entretanto, é quando examinamos as características da hermenêutica de Paulo que passamos a compreender melhor seu uso do Antigo Testamento, bem como dos demais autores do Novo Testamento. Princípios controladores da hermenêutica neotestamentária Os escritores do Novo Testamento compartilham algumas características gerais do uso das Escrituras com os rabinos e essênios de sua época. Ao citar as Escrituras, eles geralmente fazem um comentário ligeiro (midrash?), visando aplicar o texto à situação presente. Raramente estão envolvidos em exegese do texto, à semelhança dos essênios e rabinos. Eles visam mais a aplicação do texto. Ainda assim, sua aplicação e sua ênfase são bem distintas do que os outros grupos estão fazendo, como veremos mais adiante. Os autores do Novo Testamento também utilizam fórmulas introdutórias, tais como “está escrito”, “a Escritura diz”, etc., que são comuns no material rabínico e de Qumran. A contribuição distinta dos cristãos para a hermenêutica bíblica é sua reinterpretação radical das Escrituras do Antigo Testamento à luz dos eventos históricos-redentores relacionados com a encarnação, vida, morte e ressurreição de Cristo, e o surgimento da igreja cristã. Neste sentido, a exegese deles representa um rompimento com o rabinismo judaico, com a comunidade do Mar Morto e com os demais indivíduos que estavam inter- pretando as Escrituras em seus dias fora do âmbito da igreja cristã. Vejamos agora o que tornou o resultado da interpretação do Antigo Testamento pelos autores neotestamentários tão diferente daquele produzido pelos demais grupos da época. Cristo é a chave das Escrituras Os escritores do Novo Testamento estão convencidos de que Cristo é a chave que abre o sentido do Antigo Testamento. Paulo, por exemplo, chegou a essa conclusão não por meio de exegese, mas por meio de revelação (cf. At 9.1-9; Gl 1.14-16). Uma vez que creu e entendeu que Jesus a quem perseguia era o Messias prometido de Israel, passa a ler sua Bíblia, não mais como um rabino, mas como um judeu que encontrou o cumprimento da promessa de Israel. O texto clássico em que o apóstolo explica esta conversão hermenêutica é 2Coríntios 3.13-17,no qual ele defende que a conversão a Cristo destranca a porta para o sentido das Escrituras. Para Paulo, até hoje, quando os judeus leem os livros da antiga aliança, a mente deles está coberta com o mesmo véu que havia sobre a face de Moisés, ao descer do monte com a Lei nas mãos, pois não enxergam Cristo neles (2Co 3.14a e 15). Este véu havia sido colocado por Moisés para que os israelitas não pudessem ver que o seu brilho, o brilho da antiga aliança, estava desaparecendo (3.13). O véu representa o caráter inferior da antiga aliança, em que a presença de Cristo era indicada de maneira velada nas Escrituras, e pressagiava a chegada da nova aliança. Jesus é aquele de quem elas falam, mas sob a forma de símbolos, figuras, tipos, instituições, profecias. A vinda de Jesus Cristo cumpre esses símbolos (3.14b). Assim, quando um judeu se converte a Jesus como Senhor, o véu é retirado pelo Espírito, e agora o judeu convertido goza de liberdade para finalmente ler as Escrituras sem véu e ver Jesus nelas (3.17). Em resumo, para Paulo e demais autores do Novo Testamento, a Lei de Moisés (Rm 10.4-9), os Profetas (Rm 1.2; 16.25-26), e os Escritos (Rm 4.7- 8), falavam de Cristo e da salvação por meio dele (cf. 1Co 15.1-4). O Antigo Testamento, com suas profecias e história, encontrava cumprimento pleno e final em Cristo e na nova era inaugurada por ele. Assim, com frequência, Paulo comprova este fato em suas cartas aludindo ou citando o Antigo Testamento: • Cristo como filho de Abraão (Gl 3.16); • A obediência e os sofrimentos de Cristo (Rm 15.3; Gl 3.13); • A ressurreição, senhorio e domínio de Cristo (1Co 15.25,27; 15.45; Ef 4.8). O caráter cristocêntrico da hermenêutica dos autores do Novo Testamento torna-a radicalmente diferente da hermenêutica dos rabinos e dos essênios, para quem, nas palavras de Paulo, os escritos da antiga aliança eram um livro velado. Os últimos dias já raiaram Os primeiros intérpretes cristãos estão convencidos de que seus dias são dias de cumprimento, de realização das promessas do Antigo Testamento, e que, em Cristo, a época futura predita pelos profetas havia raiado. Assim, para eles, as Escrituras se aplicam à sua própria geração (cf. 1Co 10.11) e o surgimento da Igreja Cristã é o cumprimento divino do Antigo Testamento (cf. 1Co 2.9; Rm 16.25-27). Deste modo, Paulo é capaz de defender os principais eventos e ensinos desta nova época citando as Escrituras. Como amostra, mencionaremos o tratamento que Paulo dá a dois eventos de sua época, para os quais ele encontra justificação nos escritos inspirados do Antigo Testamento: 1) Israel rejeitou o Messias – Um dos principais eventos relacionados com o raiar da era messiânica é o fato de que Israel não reconheceu Jesus como o Messias. Porém, para Paulo, essa rejeição não devia surpreender ninguém, pois já estava escrito que seria assim. Ele trata do assunto em sua carta aos Romanos e seu ponto é que tal rejeição pode ser encontrada nas páginas dos próprios escritos dos judeus. De acordo com Paulo, Gênesis 21.12 e 18.10 mostram que os verdadeiros descendentes de Abraão são aqueles que se apegam às promessas (Rm 9.6-10). A causa maior da rejeição, entretanto, é a soberania de Deus, que havia escolhido Jacó e aborrecido Esaú, conforme Gênesis 25.23 interpretado em Malaquias 1.2-3 (Rm 9.10-13). E, ao rejeitar os judeus, Deus estava exercendo de maneira justa a sua soberania, da mesma forma como rejeitou Faraó de acordo com Êxodo 33.19 e 9.16 (Rm 9.14-18). A queda de Israel foi o tropeço na rocha profetizado em Isaías 28.16 (Rm 9.33). Moisés (Dt 32.21) e Isaías (Is 65.1- 2) já haviam dito que Deus provocaria o ciúme de Israel com outro povo (Rm 10.19-21). Mas isso não significa que Deus abandonou definitivamente o povo da antiga aliança. Resta ainda uma futura salvação para Israel, conforme Isaías 59.20-21 e Jeremias 31.33-34 (Rm 11.26-27). 2) Os gentios são parte do povo de Deus – Outro evento momentoso da chegada da nova época é a entrada na igreja de pessoas não judaicas. Para Paulo, a futura inclusão dos gentios na igreja era algo que podia ser encontrado nas próprias Escrituras judaicas. Estava lá o tempo todo – os judeus é que não haviam percebido por causa da cegueira espiritual. Os profetas Oseias (Os 2.23; 1.10) e Isaías (Is 10.22-23; 1.9) haviam falado claramente de um remanescente fiel que seria tomado de entre os povos (Rm 9.25-29). Um remanescente de israelitas fiéis que Deus sempre conservou pela graça soberana em momentos de crise, como ocorreu na época de Elias (1Rs 19.10,14,18), é um tipo da igreja gentílica, enquanto que os demais judeus foram endurecidos, conforme profetizado em Isaías 29.10 e no salmo 69.22-23 (Rm 11.3,4,8-10). Vários outros textos são citados pelo apóstolo em Romanos para demonstrar que a entrada dos gentios no povo de Deus era algo previsto nas Escrituras (cf. Rm 15.9-12 em que o apóstolo cita passagens de 2Samuel, Deuteronômio, Salmos e Isaías). A justificação dos gentios pela fé é defendida por Paulo em Gálatas 3.6-14 com base na própria justificação de Abraão (Gn 15.6 e 12.3), na própria Lei de Moisés (Dt 27.26 e 21.23; Lv 18.5) e no profeta Habacuque (Hb 2.4). Para o apóstolo, a justificação pela fé em Cristo não era algo novo, mas ensinado nas Escrituras do próprio Antigo Testamento (cf. ainda Rm 10.6-8,11,13,15-16,18; 2Co 6.2). Tipologia Outro importante componente da hermenêutica neotestamentária é o conceito de tipologia. Estudiosos têm apontado para o fato de que Jesus e seus discípulos entendem a História em termos de Heilsgechichte, “história da salvação”, uma série de eventos salvadores determinados por Deus, que ocorrem numa determinada sequência histórica, tendo seu clímax na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. É desse modo que Paulo pode se referir à encarnação como tendo ocorrido na “plenitude do tempo” (Gl 4.4) e à ressurreição como tendo ocorrido na “dispensação [oikonomia] da plenitude dos tempos” (Ef 1.10). Ou seja, Deus vinha agindo salvadoramente no tempo e na História, de maneira planejada, calculada e secreta. Com a vinda de Cristo, é revelada a dispensação do mistério, desde os séculos, oculto em Deus (Ef 3.9). E tudo isso, naturalmente, “por meio das Escrituras proféticas” (Rm 16.25-26). A ideia predominante aqui é aquela da continuidade íntima entre os eventos narrados no Antigo Testamento e aqueles ocorrendo nos dias dos autores do Novo Testamento. São todos eventos da mesma grandeza, da mesma categoria. São eventos salvadores, manifestações do plano eterno de Deus. Por essa perspectiva, Paulo e demais autores do Novo Testamento assumem a correspondência entre as Escrituras do Antigo Testamento e os eventos históricos-redentivos ocorridos em Cristo Jesus. Essa correspondência é basicamente de promessa e tipo (Antigo Testamento) e cumprimento e antítipo (Novo Testamento). Os eventos, personagens e instituições registrados no Antigo Testamento são entendidos como “tipos” das realidades presentes em Cristo Jesus. Deste modo, Paulo considera a história de Israel no deserto como tendo acontecido de forma típica, para servir de exemplo aos cristãos (1Co 10.11). Adão é visto por ele como um tipo de Cristo, na qualidade de cabeça e representante da raça humana, por meio de quem o destino da mesma é determinado (Rm 5.14). Os demais autores do Novo Testamento seguem na mesma linha. O autor de Hebreus igualmente vê as experiências negativas de Israel no deserto como típicas para servir de exortação aos cristãos (Hb 4.11). Tiago vê os sofrimentos dos profetas também como tipo a ser imitado pelos cristãos (Tg 5.10). Pedro ensina que Deus, ao destruir Sodoma e Gomorra, colocou-as como exemplo (hupodeigma) aos ímpios (2Pe 2.6). A diferença entre tipologia e alegoria A diferença entre tipologia e alegoria tem sido largamente debatida pelos estudiosos. Se assumirmos que a tipologia pressupõe esta continuidade histórica e teológica entre os dois Testamentos, fica evidente que todos os casos em que os escritores do Novo Testamento estão “alegorizando” estão, naverdade, “tipologizando”, apontando para a correspondência histórica e teológica entre eventos, fatos, instituições do Antigo Testamento, e os novos fatos ocorridos recentemente em Cristo Jesus. E essa é uma das características dominantes da hermenêutica neotestamentária. Aqui podemos ver mais uma diferença entre a hermenêutica de Paulo e aquela dos demais grupos já estudados nos capítulos anteriores. Em comparação com a exegese judaica praticada em seus dias, Paulo é muito mais sensível às questões gramaticais, ao contexto histórico, e à intenção original do autor bíblico do que os monges de Qumran, do que Filo, e a maioria dos rabinos. O apóstolo sempre assume a historicidade dos eventos relatados no texto bíblico. Enquanto a realidade histórica do relato da tentação e da queda, por exemplo, é minimizada ou tornada supérflua pela alegoria de Filo, se constitui no próprio fundamento da argumentação de Paulo para justificar a necessidade da vinda de Cristo (ver Rm 5.12-21) e os diferentes papéis do homem e da mulher (1Tm 2.11-15). Também, os aspectos gramaticais do texto hebraico são importantes para ele: o fato de que em Gênesis 12.7 a promessa foi feita ao descendente de Abraão (singular) é notada por ele como sendo uma indicação messiânica, cf. Gálatas 3.16. O contexto em que a passagem bíblica foi escrita também é, no geral, respeitado por Paulo. A interpretação alegórica dos rabinos, essênios, e de Filo não respeita o texto como texto, mas busca apenas o sentido oculto, espiritual e mais profundo que ele supostamente carrega. Em contraste, a interpretação de nosso apóstolo é bem mais sóbria, natural, lógica e coerente. E como ele, também os demais intérpretes cristãos, autores do Novo Testamento. Interpretação como um dom espiritual apostólico Outra característica da interpretação neotestamentária do Antigo Testamento é a consciência que seus autores têm de que são levados pelo Espírito Santo a descobrir o verdadeiro sentido dos antigos escritos sagrados, sentido este que é consistentemente cristocêntrico. Essa característica fica clara quando o autor de Hebreus, ao explicar o sentido da disposição dos utensílios e departamentos do tabernáculo, bem como o fato de que somente o sumosacerdote entrava no santo dos Santos, com sangue, diz: … querendo com isto dar a entender o Espírito Santo que ainda o caminho do Santo Lugar não se manifestou, enquanto o primeiro tabernáculo continua erguido. É isto uma parábola para a época presente (Hb 9.8-9). O autor percebe na disposição do tabernáculo um sentido que o Espírito agora torna claro, ou seja, que as ofertas e os sacrifícios de animais oferecidos a Deus não eram capazes de santificar os ofertantes e que um maior e melhor sacrifício – o de Cristo – se fazia necessário. O Espírito como Mestre A ideia de que o Espírito guiaria ao conhecimento do verdadeiro sentido das Escrituras pode ser inferida da promessa feita por Jesus aos seus discípulos: o Espírito Santo os haveria de guiar a toda verdade (cf. Jo 15.26; 16.13). O próprio Jesus abriu o entendimento deles para compreenderem as Escrituras (Lc 24.45). Mais tarde, o apóstolo João se refere ao Espírito Santo como sendo a unção vinda de Deus que ensina todas as coisas aos cristãos (1Jo 2.20,27). O apóstolo Paulo declara que somente mediante o Espírito se pode conhecer o mistério de Cristo (1Co 2.10-12), e isso mediante a comparação de “coisas espirituais com espirituais” (2.13). Muito embora todo cristão seja participante do Espírito e, portanto, por ele guiado à verdade, parece que a revelação dos mistérios de Deus contidos nas Escrituras do Antigo Testamento era um dom apostólico, consignado aos autores do Novo Testamento como parte da inspiração divina para registrar infalivelmente a verdade de Deus. Quem sabe encontramos traços desse dom em 1Coríntios 13.2: “Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência…”. Ou ainda em 1 Coríntios 14.6: “Agora, porém, irmãos, se eu for ter convosco falando em outras línguas, em que vos aproveitarei, se vos não falar por meio de revelação, ou de ciência, ou de profecia, ou de doutrina?”. Aparentemente, Paulo entendia que o conhecimento dos mistérios e da ciência (espiritual), algo relacionado com revelação e doutrina, era um dom que ele mesmo possuía e que era para a edificação das igrejas. Esse charisma capacitava o intérprete a associar acontecimentos do Antigo Testamento ao presente, como Paulo faz em Gálatas 4.21-31, associando Sara e Agar respectivamente aos cristãos e aos judeus. Pelo Espírito, Paulo descobre como os fios ocultos nas Escrituras entre o passado e o presente se relacionam, e o manto que está sobre o passado é levantado. A relação tipológica entre o passado e o presente era o coração deste dom apostólico de interpretação. Nesse sentido, Paulo funciona como sucessor escatológico dos profetas do Antigo Testamento. Sua hermenêutica é similar à deles. Assim como Isaías, Paulo interpreta os escritos sagrados anteriores à luz dos eventos escatológicos e de sua nova situação histórica. Entretanto, por ser um apóstolo, ele anuncia o cumprimento das promessas feitas aos profetas do Antigo Testamento. Como os profetas do Antigo Testamento, ele reconhece estar incumbido dos mistérios de Deus (1Co 4.1). Essa característica transparece mais claramente quando encontramos Paulo revelando “mistérios” em suas cartas. A revelação dos mistérios Nessas ocasiões, Paulo expõe esses mistérios como se eles fossem contidos nas Escrituras do Antigo Testamento, e agora se tornaram claros por meio de sua exposição. Embora a revelação de Jesus Cristo que ele recebeu na estrada de Damasco, e que está no começo de sua carreira apostólica, tenha sido direta, sem qualquer mediação, é evidente que Paulo não aprendeu todas as profundezas do mistério de Cristo naquele momento e da mesma maneira. Outros aspectos do mistério, que ele expõe em suas cartas, quase certamente vieram progressivamente, e isto não à parte ou sem aquela outra revelação, as Escrituras do Antigo Testamento. O nosso ponto é que, ao revelar esses mistérios em suas cartas, como alguém que foi incumbido deles, Paulo o faz em ligação com citações interpretadas das Escrituras do Antigo Testamento. Vejamos alguns exemplos: a) Romanos 11.25-27 – O mistério do endurecimento de Israel e a completa inclusão dos gentios na igreja (Rm 11.25) são revelados em relação com a citação “está escrito” de Isaías 59.20-21 e 27.9, cf. salmo 14.7 e Jeremias 31.33-34. b) Romanos 16.25-27 – Na doxologia final da carta aos Romanos, Paulo faz referência ao seu evangelho como sendo a revelação do mistério guardado em silêncio nos tempos eternos, e que, agora, tornou-se manifesto e foi dado a conhecer por meio das Escrituras proféticas. Aqui transparece claramente a relação entre mistério, revelação e as Escrituras na hermenêutica do apóstolo. c) 1Coríntios 15.50-57 – Sua exposição do mistério do corpo da ressurreição é apresentada como o cumprimento de Isaías 25.8 e Oseias 13.14. d) Efésios 5.31-32 – O grande mistério de Cristo e a igreja, que é refletido na relação de marido e mulher, deve ser deduzido de Gênesis 2.24. É uma questão muito interessante como o conhecimento desses mistérios veio a Paulo. Não está claro quando e como Paulo recebeu o conhecimento deles. Talvez a revelação tenha vindo numa visão, como aquela de 2Coríntios 12.1-7. Mas ele nunca reivindica autoridade para sua exposição desses mistérios na base de uma experiência como aquela. Alguns sugerem que Paulo recebeu os mistérios e a interpretação deles por meio de um oráculo de um profeta cristão. Mas, isso também não pode ser confirmado pelos textos e vai contra a ênfase de Paulo na origem direta e imediata de seu evangelho. As referências às Escrituras do Antigo Testamento, logo após o desvendamento do mistério, por outro lado, podem indicar os meios pelos quais Paulo chegou a conhecer esses mistérios. É aparente que o mistério e sua revelação estão de alguma maneira relacionados com as Escrituras do AntigoTestamento. Provavelmente a revelação do sentido do mistério veio a Paulo enquanto ele examinava as Escrituras, numa espécie de discernimento inspirado, que lhe permitia ver o sentido do mistério no Antigo Testamento à luz dos eventos do evangelho. Nessa relação, podemos nos referir à relação especial de Paulo com o Espírito, como um apóstolo de Cristo. Seu apostolado explica satisfatoriamente os mistérios que ele recebeu e revelou nas suas cartas por meio de exposições inspiradas dos escritos do Antigo Testamento. Ele era antes de tudo um ministro do novo pacto, um pacto do Espírito, superior ao da letra, publicado sob Moisés (2Co 3.3-9). Ele fala como o ministro de um pacto cujos membros gozavam da liberdade hermenêutica trazida pelo Espírito, que lhes removeu o véu de seus corações quando eles voltaram-se ao Senhor pela primeira vez (2Co 3.14-18). Como apóstolo de Cristo, Paulo reivindica uma relação especial com o Espírito do Senhor. Seu apelo ao Espírito em 1Coríntios 7.40, “… penso que também eu tenho o Espírito de Deus”, é feito em sua função de apóstolo e visa silenciar os “espirituais” de Corinto que se gabavam de ter posse exclusiva do Espírito. A sua proclamação da palavra da cruz que produziu sua própria demonstração do Espírito e de poder (1Co 2.1-4), o seu gloriar-se acerca dos sinais de um verdadeiro apóstolo (2Co 12.12), e seu apelo aos seus leitores como fruto do seu trabalho no Senhor (1Co 9.1), que em 2Coríntios 3.1-3 é representado como uma carta escrita com o Espírito do Deus vivo, refletem esse apelo ao Espírito em conexão com seu apostolado. Conclusão Concluímos este estudo com uma pergunta crucial. Podemos aplicar a hermenêutica de Paulo e demais autores neotestamentários hoje? Ou seja, podemos interpretar as Escrituras em moldes similares àquele usado por eles? Alguns estudiosos consideram que Paulo e demais autores do Novo Testamento são arbitrários no uso das Escrituras do Antigo Testamento em seus escritos, como por exemplo, o conhecido estudioso alemão Ernest Käsemann, ao comentar Romanos 3 em seu Romerbrief. Para esses estudiosos, nada temos a aprender com os escritores do Novo Testamento, pois a exegese deles é inferior, rudimentar e totalmente inadequada aos nossos dias. Em nossa opinião, esse tipo de abordagem reflete a convicção já pré concebida que a Bíblia é somente um livro totalmente humano e cheio de erros. Percebe-se também uma má vontade em dar crédito aos escritores neotestamentários e em levar em conta o ambiente e contexto em que viveram. Rejeitamos, pois, essa abordagem do assunto. Outros, indo ao extremo oposto, tendem a usar a hermenêutica neotestamentária como modelo para a deles, sem qualquer percepção do seu caráter especial. Também usam a doutrina da inspiração e inerrância para descartar qualquer tentativa de entender os autores neotestamentários à luz do ambiente hermenêutico de sua época. Porém, o fato de crermos na inspiração desses autores e na sua inerrância ao escrever não elimina a possibilidade de estudar seus métodos hermenêuticos, e mesmo de constatar que eram filhos da sua época, e que, como tal, estavam condicionados ao ambiente hermenêutico em que escreveram e labutaram. Outra possibilidade envolveria as seguintes considerações. Primeira, devemos nos aproximar das Escrituras com as mesmas perspectivas que dominavam a leitura dos autores neotestamentários: • Cristo é o tema das Escrituras. • As Escrituras falam a nós, que estamos vivendo nos últimos tempos, e devem ser aplicadas às nossas circunstâncias. • Devemos depender do Espírito para nos iluminar em nosso entendimento do texto sagrado. Nesse sentido, sem dúvida alguma, seremos seguidores dos discípulos de Cristo em nossa hermenêutica. Segunda, devemos praticar uma hermenêutica que leve em conta a sensibilidade dos autores neotestamentários ao contexto histórico das Escrituras do Antigo Testamento e geralmente às peculiaridades da gramática hebraica e grega. Devemos ainda lembrar que suas interpretações levavam quase sempre em conta a intenção do autor antigo, e que eram extremamente sóbrias e geralmente literais, em comparação com os grupos ao seu redor. Terceira, devemos considerar o fato de que os autores do Novo Testamento eram apóstolos ou associados apostólicos e, como tal, gozavam de uma relação especial com o Espírito Santo, a qual envolvia revelação e interpretação das Escrituras. Como vimos no caso de Paulo, ele estava plenamente consciente desse fato. A tipologia que ele emprega em suas cartas é resultado do caráter apostólico-pneumático da sua hermenêutica. É esse aspecto que o capacita a relacionar Sara e Agar com realidades da nova era em Cristo, a relacionar Adão e Cristo, o véu de Moisés com a cegueira dos judeus, e a desvendar os “mistérios”. Neste ponto, devemos reconhecer humildemente que nos cabe estudar e entender o que Deus falou por meio do seu apóstolo inspirado, e aplicar, no temor do Senhor, à nossa vida e às nossas igrejas. Parte 3 OS INTÉRPRETES DA BÍBLIA NA HISTÓRIA DA IGREJA CRISTÃ Introdução Nesta segunda parte da nossa pesquisa, procuraremos entender as maneiras pelas quais a Igreja Cristã abordou as Escrituras durante o período que vai da época apostólica até a chamada pós-modernidade. Alguém poderia perguntar qual o valor de investigarmos o modo pelo qual os antigos cristãos liam a Bíblia. A resposta é que praticamente todos os problemas e questões hermenêuticas com os quais nos deparamos hoje já afligiram os cristãos dessas épocas. Muito embora existam hoje novas metodologias e ferramentas de interpretação bíblica, recorrem problemas de interpretação que são fundamentalmente os mesmos da época de Orígines e Agostinho. À medida que formos estudando a história da interpretação das Escrituras nesse período, questões relacionadas diretamente com a natureza da hermenêutica, sua finalidade, bem como com pontos práticos relacionados com princípios de interpretação serão levantadas e discutidas. Algumas delas já foram abordadas na primeira parte deste livro. Nosso método será esboçar os principais eventos e nomes que fizeram a história da interpretação das Escrituras, a partir do período pós-apostólico até nossos dias, comentando pontos fortes e fracos. Conforme já afirmamos na primeira parte de nossa obra, nosso objetivo é proporcionar uma visão global das principais questões interpretativas com as quais a igreja ocupou-se em sua história e assim preparar o leitor para melhor entender as questões hermenêuticas modernas. Estudar a história dos intérpretes da Bíblia desde seus primórdios ajuda a colocar-nos na perspectiva correta e a não cair na tentação da arrogância. Capítulo 7 Alexandrinos e antioquianos Introdução Após a morte dos apóstolos inicia-se a chamada era pós-apostólica, que vai do século 2º até o século 4º, época dos grandes concílios ecumênicos na igreja. Nesse período, a Igreja de Cristo era liderada por pastores e bispos que vieram a exercer considerável influência sobre a cristandade daquela época. São os chamados “pais da igreja”. É uma época de intensos debates teológicos sobre questões doutrinárias vitais para a sobrevivência da igreja. Os pais da igreja procuram entender qual a verdade de Deus examinando as Escrituras. Debates vigorosos acontecem quanto ao sentido exato das palavras dos apóstolos e profetas. Uma das questões hermenêuticas centrais é como a Igreja Cristã poderia interpretar as profecias, instituições, personagens e eventos do Antigo Testamento de modo que refletissem a Cristo. Duas linhas nítidas e diferentes de interpretação surgem nessa época. A primeira, mais alegórica, está relacionada com a cidade de Alexandria. A outra, que surge depois em Antioquia como reação à primeira, é mais voltada para o sentido literal do texto bíblico. Os problemas que os intérpretes dessas escolas enfrentaram, de certa maneira, anteciparam as questões de interpretação que a igreja iria encarar ao longo da sua história, até o dia de hoje. A escola de Alexandria O sistema interpretativo que veio aassociar-se com a cidade de Alexandria tem suas raízes históricas nas ideias de dois importantes filósofos gregos. O primeiro é Heráclito (Éfeso, 540?–475? a.C.). Ele estabeleceu o conceito de huponóia, ou sentido mais profundo, como uma nova abordagem às obras de Homero (A Ilíada e a Odisseia). Conforme já vimos no nosso estudo sobre Filo de Alexandria (Capítulo Quatro), nessas obras os deuses gregos são descritos cometendo traição, imoralidades, vingança, mentindo e praticando outros vícios. Para fugir das implicações óbvias de se interpretar literalmente o que Homero escreveu acerca dos deuses, Heráclito sugeriu que o verdadeiro sentido estava além das palavras (huponóia). Os escritos de Homero não eram para ser entendidos literalmente, como estavam escritos, mas como apontando para conceitos mais profundos, além da letra. Assim ele salvou os deuses da acusação de “imorais”. O segundo é Platão (Atenas, 427?–347? a.C.). Ele formou o conceito de que o mundo em que vivemos é apenas uma representação do que existe no mundo perfeito das realidades imateriais, o “mundo das ideias”. Uma cadeira, por exemplo, é apenas o reflexo da cadeira perfeita que existe nesse mundo ideal. Conceitos e verdades espirituais, próprios do “mundo das ideias”, são representados por alegorias. O conceito de que a verdade se encontra alegoricamente oculta além da letra e da realidade visível, como haviam ensinado Heráclito e Platão, influenciou mais tarde o famoso judeu de Alexandria, Filo. Conforme vimos, Filo tinha uma formação judaica e era leal às instituições e costumes de seu povo; ele tinha também uma formação filosófica, especialmente no platonismo. Esta formação platônica levou-o a tentar uma síntese entre as ideias de Platão e de Moisés. Filo dedicou sua vida a reconciliar o ensino de Moisés nas Escrituras com as ideias de Platão. O método que ele empregou para isso foi a alegorese. Filo escreveu diversas obras e comentários sobre a Lei de Moisés interpretando as Escrituras alegoricamente, em termos das ideias, virtudes e moralidade do platonismo. Sua influência foi decisiva na hermenêutica da escola de Alexandria. Surgimento da escola catequética de Alexandria Quando o evangelho alcançou Alexandria, muitos se tornaram cristãos. Uma forte comunidade floresceu rapidamente naquela cidade. De acordo com alguns estudiosos, havia ali um professor-catequista chamado Barnabé (150? d.C.) que seria o autor da chamada Carta de Barnabé, com tendências gnósticas e uma interpretação altamente alegórica do Antigo Testamento, seguindo os métodos de Filo. Provavelmente a Carta de Barnabé tenha sido forjada em nome do famoso companheiro de Paulo. De qualquer maneira, ela é oriunda de Alexandria, por volta do século 2º ou 3º, e serve como exemplo da exegese que ali passaria a predominar. Uma das passagens mais famosas da carta é a interpretação que Barnabé faz de Gênesis 14.14 (na qual se mencionam os 318 homens de Abraão) para provar que Abraão sabia não somente o nome de Cristo, mas até que ele haveria de morrer na cruz: Filhos do amor, aprendei mais particularmente estas coisas: Abraão, praticando por primeiro a circuncisão, circuncidava porque o Espírito dirigia profeticamente seu olhar para Jesus, dando-lhe o conhecimento das três letras. Com efeito, ele diz: “E Abraão circuncidou entre os homens de sua casa trezentos e dezoito homens”. Qual é, portanto, o conhecimento que lhe foi dado? Notai que ele menciona em primeiro lugar os dezoito e depois, fazendo distinção, os trezentos. Dezoito se escreve: I que vale dez, e H, que representa oito. Tens aí: IH(sous) = Jesus. E como a cruz em forma de T devia trazer a graça, ele menciona também trezentos (= T). Portanto, ele designa claramente Jesus pelas duas primeiras letras e a cruz pela terceira (Barnabé 9.7-8). Barnabé entendia que “318” dizia outra coisa que não um número fixo. Para ele, era uma referência proposital que Deus havia feito a Abraão acerca de Jesus, e que só poderia ter sido decifrada “espiritualmente”, interpretando-se a passagem alegoricamente. Um conhecido líder de Alexandria foi Pantenus. Inicialmente um filósofo estoico, Pantenus converteu-se ao Cristianismo e fundou uma escola cristã catequética na cidade no século 2º. O sistema utilizado na escola para interpretar a Bíblia era o sistema alegórico. Principais representantes da escola de Alexandria Um dos convertidos de Pantenus foi Clemente de Alexandria (150-215 d.C.), de quem alguns escritos foram preservados. Clemente substituiu Pantenus na direção da escola em 180 d.C. Ele foi um dos primeiros a lidar seriamente com questões de interpretação bíblica. Usava a interpretação alegórica, característica da escola, para descobrir o sentido oculto das passagens bíblicas e para harmonizar os dois Testamentos. Para ele, a alegoria revelava a verdade ao verdadeiro discípulo, mas a escondia dos outros. Insistia especialmente que o objetivo de Deus em revelar-se alegoricamente era ocultar a verdade dos incrédulos em geral e descortiná- la apenas para os espirituais. Clemente interpretava a parábola do filho pródigo alegoricamente, atribuindo sentido a cada detalhe da parábola: O pai, então, confere-lhe a glória e a honra que eram necessárias e convenientes, colocando sobre ele o melhor manto, o manto da imortalidade, e um anel, um sinete real e um selo divino – um sinete de consagração, assinatura da glória, segurança do testemunho (pois está escrito: “Aquele que aceitou o seu testemunho, esse confirmou que Deus é verdadeiro”, Jo 3.33), e sandálias, não aquelas que perecem, que devem ser retiradas quando se entra em solo santo (Êx 3.5), e nem aquelas que Jesus proibiu que seus discípulos carregassem quando fossem pregar (Mt 10.10), mas aquelas que não se gastam, que são apropriadas para a jornada aos céus e que adornam o caminho celestial, e que somente pés lavados pelo Senhor podem calçar (Jo 3.33). Orígines (185–253 d.C.) é a mais importante figura nesse período. Era um estudioso muito respeitado, muito capaz e provavelmente o mais erudito de sua época. Infelizmente, Orígines seguiu e propagou diversos ensinamentos estranhos ao Cristianismo bíblico. No século 4º, Jerônimo, que tinha sido inicialmente um seguidor do método alegórico de Orígines, resgistrou em sua obra Contra Johannem Hierosolymitanum um sumário conveniente dos erros atribuídos a Orígines. Segundo Jerônimo, Orígines negou que Cristo pudesse ver o Pai ou o Espírito Santo; afirmou que a alma estava aprisionada no corpo, como uma prisão, como castigo; afirmou que os demônios se arrependeriam e finalmente reinariam com os santos no final dos tempos; que as folhas que Deus deu a Adão e Eva no Jardim após a queda eram na verdade o corpo humano deles, pois antes eram espíritos puros; e que o homem, após a queda, havia perdido a imagem de Deus na qual havia sido criado. Existe hoje controvérsia se Orígines desenvolveu essas ideias ou se foram seus seguidores e inimigos que adulteraram seus escritos. De qualquer modo, essas ideias atribuídas ao patriarca foram condenadas depois de sua morte por um decreto do Imperador Justino em 543 d.C. Orígines tinha apenas 18 anos de idade quando assumiu a liderança da Escola Catequética de Alexandria. Ele acreditava que a melhor maneira de se entender a Bíblia é por meio da perspectiva platônica. Nesse sentido, ele é um verdadeiro discípulo de Filo de Alexandria. A hermenêutica de Orígines é mais bem refletida no capítulo IV de sua obra Primeiros Princípios, escrita quando ele tinha 23 anos de idade. É considerada a primeira obra de teologia sistemática produzida no âmbito da Igreja Cristã. Nessa obra, Orígines ataca os “literalistas” de seus dias, acusando-os de negar que a Bíblia contém um sentido mais profundo do que aquele permitido pelo texto em si. Para ele, a Bíblia contém segredos que somente a mente espiritual pode compreender. O sentido literal é valioso, mas algumas vezes obscurece o sentido primário, que é o espiritual. O literal é para iniciantes, mas o espiritual é para os maduros nafé. Orígines entende que se Deus é o autor da Bíblia, ela deve ter um sentido mais profundo. Assim, a interpretação literal é própria dos judeus e não dos cristãos. A esses foi revelado o sentido mais profundo das Escrituras que havia sido ocultado dos judeus incrédulos. Orígines desenvolveu a ideia de que há três níveis de sentido nas Escrituras, correspondentes às três dimensões da personalidade humana, em sua obra Primeiros Princípios, no Livro 4, Capítulo 1, parágrafo 11. Ele toma como base uma tradução própria que faz do texto grego de Provérbios 22.20: Parece-nos que o modo com que devemos tratar as Escrituras e extrair delas o seu sentido é aquele prescrito pela própria Escritura. Encontramos a seguinte regra proposta por Salomão em Provérbios com respeito às doutrinas divinas da Escritura: “E tu representas estas coisas de maneira tripla, em conselho e conhecimento, para que possas responder palavras de verdade aos que propõem estas palavras a ti” [Pv 22.20, LXX?]. O indivíduo deve, portanto, expressar de forma tripla à sua alma as ideias da Santa Escritura; para que o homem simples seja edificado pela “carne” da Escritura, por assim dizer, pois assim consideramos o sentido óbvio delas; aquele que já progrediu um pouco mais pode ser edificado pela “alma”, por assim dizer. O homem perfeito, que se assemelha às palavras do apóstolo, “expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém, a sabedoria deste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada; mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória” [1Co 2.6-7], este homem recebe edificação da lei espiritual, a qual é sombra das coisas boas ainda por vir. Pois da mesma forma que o homem consiste em corpo, alma e espírito, assim também a Escritura, a qual foi assim arranjada para ser dada por Deus para a salvação dos homens. Orígines, porém, nunca seguiu consistentemente essa distinção tripla. Na verdade, em suas obras, ele acaba discutindo somente dois níveis, aqueles da letra e os do espírito. Seguindo o método alegórico, Orígines interpretava o relato de Gênesis 24.15-17, no qual Rebeca vem tirar água do poço e encontra os servos de Abraão, como significando que diariamente devemos vir aos poços da Escritura para ali nos encontrarmos com Cristo. Faraó, mandando matar os meninos e preservando as meninas hebreias (Êx 1.15- 16), era interpretado por Orígines em verdadeiro estilo filônico, os meninos significando o espírito intelectual e sentidos racionais e as meninas significando as paixões carnais. As seis talhas de pedra, que os judeus usavam para as purificações (Jo 2.6), significam os sentidos moral e literal das Escrituras e, às vezes, o espiritual. O sentido verdadeiro (alegórico) da passagem sobre o divórcio (Mt 19.6) é a separação da alma do seu anjo da guarda. Devemos nos lembrar que Orígines e outros estavam tentando defender a igreja dos ataques dos judeus e dos pagãos, e achavam que alegorizar as passagens difíceis da Bíblia era o caminho. Por exemplo, quando os pagãos acusavam Deus de ser desumano por mandar matar mulheres e crianças, Orígines respondia com uma interpretação alegórica das passagens, dizendo que não era para serem entendidas literalmente. Podemos ainda mencionar Atanásio, o patriarca de Alexandria, campeão da ortodoxia na luta contra a heresia ariana no século 4º. Em sua carta a um cristão chamado Marcelino sobre a interpretação dos Salmos, Atanásio reflete claramente a convicção dos intérpretes alexandrinos de que praticamente todas as passagens do Antigo Testamento falam de Cristo, ainda que de maneira alegórica. Vejamos alguns exemplos de sua interpretação: Praticamente cada salmo remete aos profetas. Sobre a vinda do Salvador e daquele que devia vir a ser Deus, assim se expressa o salmo 50: “Vem o nosso Deus e não guarda silêncio” [Sl 50.3]… Ele é o Verbo do Pai, como o canta o 107: “Enviou-lhes a sua palavra, e os sarou, e os livrou do que lhes era mortal” [Sl 107.20]. O Deus que vem é ele mesmo o Verbo enviado… Conhecendo, igualmente, o nascimento virginal, o Salmista não se calou, senão que o expressou claramente no salmo 45, ao dizer: “Ouve, filha; vê, dá atenção; esquece o teu povo e a casa de teu pai. Então, o Rei cobiçará a tua formosura” [Sl 45.11-12]… Por isso predisse também sua ascensão aos céus, dizendo no salmo 24: “Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória” [Sl 25.7]… Até a destruição do diabo se anuncia a vocês no salmo 9: “no trono te assentas e julgas retamente. Repreendes as nações, destróis o ímpio e para todo o sempre lhes apagas o nome” [Sl 9.4-5]… Tudo isto o cantam os Salmos e se anuncia em cada um dos outros Livros. De todos os intérpretes alexandrinos, Orígines, sem dúvida, foi o mais influente. Ele influenciou muitos pais da igreja como Dionísio, o Grande, Eusébio de Cesareia, Dídimo, o Cego e Cirilo de Alexandria, que seguiram sua interpretação alegórica. Embora Orígines tivesse um alto apreço pelas Escrituras (que ele considerava como Palavra de Deus inspirada) e reconhecesse a presença de Cristo nas Escrituras do Antigo Testamento, defendeu, sistematizou e promoveu um sistema de interpretação que ao fim diminuía o caráter histórico de algumas passagens e que não dispunha de controles adequados contra o subjetivismo. Entretanto, a reação viria alguns séculos depois, em Antioquia. A escola de Antioquia Como vimos no início deste capítulo, a interpretação dos pais da igreja seguia duas linhas distintas. A primeira, mais alegórica, relacionada com a cidade de Alexandria. A outra, que surgiu depois em Antioquia da Síria em reação à primeira, mais voltada para o sentido literal do texto bíblico. Essa última foi fundada por Luciano de Antioquia (240-312 d.C.), teólogo cristão nascido em Samosata, que deu origem a uma tradição de estudos bíblicos que ficou conhecida pela erudição e conhecimento das línguas originais. Atribui-se a Luciano (embora sem evidências concretas) uma recensão e uniformização dos textos gregos da sua época, dando origem ao texto Bizantino ou Sírio, que foi o texto grego do Novo Testamento adotado pela igreja até meados do século passado. Apesar de ser heterodoxo em seu entendimento sobre Cristo, Luciano tinha profundas convicções com relação ao Cristianismo. Morreu martirizado por torturas e fome, por se negar a comer carne sacrificada aos deuses romanos. Luciano fundou em Antioquia uma escola de estudos bíblicos em oposição consciente ao método alegórico ligado a Alexandria, particularmente ao método de Orígines. Essa escola tornou-se famosa por sua abordagem literal das Escrituras. Foi formada no início do século 4º, embora já no século 2º houvesse em Antioquia estudiosos como Teófilo, com uma interpretação mais sóbria das Escrituras. No exemplo abaixo, tirado do capítulo XVI de sua obra A Autólico, vemos como ele entendia as profecias bíblicas em seu sentido natural e óbvio: Eu leio as Sagradas Escrituras dos santos profetas, os quais pelo Espírito de Deus predisseram as coisas que têm realmente acontecido, exatamente como vieram a ocorrer, e as coisas que agora estão ocorrendo no presente, e as coisas futuras na ordem em que ocorrerão. Aceitando, portanto, a prova evidente com a ocorrência de coisas preditas anteriormente, eu não descreio. Ao contrário, creio, obediente a Deus, a quem você deveria também se sujeitar, crendo nele, para que não seja condenado depois e atormentado com a punição eterna. A interpretação literal defendida em Antioquia predominou durante muito tempo nas igrejas orientais e em muitos sentidos foi precursora da exegese praticada na Reforma. A hermenêutica dos intérpretes reformados foi, em muitos aspectos, um retorno aos princípios de Antioquia. Calvino não se reportou diretamente a Antioquia, mas certamente usou o sistema de interpretação que eles defenderam. O sistema de interpretação adotado por Antioquia teve muitos e ilustres defensores entre os pais da igreja.Alguns dos mais conhecidos e importantes foram: Deodoro de Tarso (morto em 390 d.C.), Teodoro de Mopsuéstia (morto em 428 d.C.) e João Crisóstomo (morto em 407 d.C.). Os grandes antioquianos não foram contemporâneos de Orígines, mas dos alexandrinos posteriores como Atanásio (morto em 373 d.C.) e Dídimo, o Cego (morto em 398 d.C.). De muitas formas, o próprio Cirilo de Alexandria (morto em 444 d.C.) demonstrou perceptividade para com a exegese literal, o que o coloque talvez entre as duas escolas. Princípios de interpretação A escola de Antioquia e seus representantes seguiam princípios de interpretação que estabeleciam, em muitos aspectos, uma diferença crucial da exegese de Alexandria. Sensibilidade e atenção ao sentido literal do texto Era uma abordagem que em rigor não poderia ser chamada de “gramático-histórica”, visto que esse termo só apareceu após a Reforma. Entretanto, os princípios que caracterizavam esse tipo de interpretação já estavam presentes em Antioquia: procurar alcançar o sentido do texto por meio da busca da intenção do seu autor (daí estudar-se o sentido óbvio das palavras, gramma em grego) considerando o contexto histórico em que foi escrito. Theoria Desenvolveu-se em Antioquia o conceito de theoria. Esse termo designa o estado mental dos profetas que recebiam as visões, em oposição à alegoria. É uma intuição ou visão pela qual o profeta pode ver o futuro por meio das circunstâncias presentes. Depois da visão, é possível para ele descrever em seus escritos tanto o significado contemporâneo dos eventos bem como seu cumprimento futuro. A theoria era o princípio usado pelos antioquianos para descobrir um sentido mais que literal nas palavras dos profetas do Antigo Testamento, permanecendo-se fiel ao seu sentido literal. Entretanto, embora reconhecessem que havia um sentido mais profundo e completo nas palavras dos profetas, estavam bem distantes da alegorese alexandrina. A questão que os antioquianos se perguntavam era a seguinte: quanto os profetas estavam conscientes do sentido mais pleno (sensus plenior) daquilo que diziam? Eles chegaram à conclusão de que os profetas sabiam todas as implicações do que diziam, do sensus plenior de suas palavras. Assim, Isaías sabia perfeitamente, ao escrever o capítulo 53 de sua obra, que estava falando da morte do Messias. Bem como Oseias, ao dizer: “do Egito chamei meu filho” (Mt 2.15), como uma referência à viagem do menino Jesus. Com este conceito, os antioquianos queriam evitar o perigo do subjetivismo do sistema alegórico, que achava sentidos proféticos fora da intenção autoral. Os antioquianos diziam que todo sentido legítimo e possível já era conhecido do profeta. Era isso que chamavam de theoria. Historicidade dos relatos Os antioquianos não negavam o caráter metafórico de algumas passagens: reconheciam que havia um sentido mais profundo nas profecias do Antigo Testamento e que havia tipologias, como a que Paulo fez em Gálatas 4.21-31. Entretanto, afirmavam a historicidade da narrativa veterotestamentária e procuravam em seguida descobrir o sentido teológico da mesma. Intenção autoral Ainda buscavam determinar a intenção do autor pela atenção cuidadosa ao sentido histórico das palavras em seu contexto original. Nesse sentido, eram contra descobertas arbitrárias de Cristo no Antigo Testamento, como as feitas pela alegorese alexandrina. Concordavam que Cristo estava presente nas Escrituras do Antigo Testamento, mas reagiam contra a ideia de que cada palavra, evento, número, personagem ou instituição das mesmas poderia ser interpretado de forma alegórica de maneira a sempre se encontrar a Cristo neles. Exemplos de interpretação Teófilo de Antioquia, um dos precursores da escola de Antioquia, na sua obra intitulada A Autólico, enfatiza que o Antigo Testamento é um livro histórico contendo a história autêntica dos atos de Deus para com Israel. Ele esforçase para traçar uma cronologia bíblica da criação até seus dias. A mensagem do Antigo Testamento é que o Deus de quem ele dá testemunho é o criador dos céus e da terra. Isso é possível porque os autores humanos foram inspirados por Deus e podiam, portanto, escrever sobre coisas que aconteceram antes e depois de sua época. Lembremos que muitos intérpretes alexandrinos tendiam a rejeitar a importância da historicidade do relato da criação (Gn 1 e 2), valorizando o sentido mais profundo ou espiritual do mesmo. Segue abaixo sua explicação de Gênesis 3.8, que diz: “… ouviram a voz do SENHOR Deus, que andava no jardim pela viração do dia”. Em vez de tentar alegorizar ou achar um sentido mais profundo na declaração que Deus “andava”, Teófilo adota a explicação teológica da pré- cristofania: Você me dirá, então: “Você disse que Deus não pode ser contido num único lugar, e como é que agora diz que ele andava no jardim?” Ouça minha resposta. Deus Pai, na verdade, não pode ser contido, e não pode ser encontrado em determinado lugar, pois não há lugar algum que lhe sirva de descanso; mas sua Palavra, pela qual ele fez todas as coisas, sendo seu poder e sua sabedoria, assumindo a pessoa do Pai e Senhor de todos, foi ao jardim na pessoa de Deus e conversou com Adão. Pois a Escritura nos diz que Adão ouviu sua voz. E que voz é esta senão a Palavra de Deus, que também é seu Filho? Deodoro de Tarso, que viveu 200 anos após Teófilo, deixou-nos um comentário dos Salmos em que a interpretação cristológica moderada de Antioquia reflete-se claramente. Ali vemos em ação o princípio antioquiano de não atribuir a um texto do Antigo Testamento uma interpretação cristológica que não possa ser provada e demonstrada pelo Novo Testamento. Comentando o salmo 22, Deodoro nega que o mesmo seja messiânico, pois as descrições literais dos sofrimentos do autor do salmo não combinam com os sofrimentos de Cristo. O salmo 24 também não é messiânico, mas referese aos judeus que voltaram do cativeiro babilônico. Teodoro de Mopsuéstia é provavelmente o intérprete que seguiu mais rigidamente os princípios de interpretação da escola de Antioquia quanto à abordagem cristológica do Antigo Testamento. Para ele, uma passagem no Antigo Testamento só pode ser considerada messiânica se for usada como tal no Novo Testamento. Meras alusões não são suficientes. Assim, passagens como o sacrifício de Isaque, que nunca são usadas no Novo Testamento como se referindo a Cristo, não são consideradas messiânicas. Influência e fracasso Podemos perceber vários aspectos positivos na obra dos antioquianos. A escola de Antioquia adotou uma leitura das Escrituras que buscava principalmente descobrir a intenção do autor humano (que seria idêntica à do autor divino) como meio de determinar-se o sentido de uma passagem bíblica. Os antioquianos procuravam fazer justiça ao caráter histórico da Escritura. Mais tarde, a interpretação reformada retornaria a esse princípio. Por outro lado, às vezes, seus representantes eram incoerentes com esse princípio e recaíam na alegoria. Um exemplo disso é a interpretação alegórica que João Crisóstomo faz do milagre de Caná da Galileia, em sua Homília em João. Ao concluir a exposição (bastante sóbria e literal) da mesma, Crisóstomo interpreta a água como sendo pessoas frias e fracas, cujas vontades Cristo muda, como fez ao vinho. E aí, perde-se em uma longa digressão expondo o caráter dessas pessoas. Embora seja verdade que Cristo muda as pessoas, a pergunta é se este é o ponto ensinado pelo relato do milagre de Caná da Galileia. O próprio apóstolo João nos diz que o objetivo do milagre era mostrar a glória de Jesus para que seus discípulos cressem nele. Crisóstomo ensinou uma doutrina certa, mas usando o texto errado. Em que pese a influência de sua interpretação, especialmente nas igrejas sírias, a escola de Antioquia não prevaleceu na Igreja Cristã como o sistema interpretativo mais aceito. Uma das razões foi que alguns líderes heterodoxos ou heréticos condenados pelos concílios ecumênicos eram seguidores do método de Antioquia. Por exemplo, Nestório (morto em 451 d.C.), o patriarca sírio deConstantinopla, era um grande defensor da exegese antioquiana. Porém, foi condenado pelo Concílio de Éfeso por fazer uma distinção por demais exagerada entre as duas naturezas de Cristo, a ponto de quase admitir a existência de duas pessoas no mesmo Cristo. No Ocidente, por sua vez, Juliano, o bispo de Eclano (morto em 454 d.C.), que era o principal defensor dos princípios de Antioquia, tornou-se pelagiano em sua teologia. A condenação desses homens por heresia contribuiu em parte para o descrédito da hermenêutica de Antioquia. Conclusão Podemos nos perguntar como o conhecimento da história dos intérpretes de Alexandria nos afeta hoje. No mínimo, faz-nos entender que o tipo de interpretação que prevalece na igreja evangélica brasileira de hoje segue o mesmo caminho de Alexandria, mesmo sem ter a sofisticação e a erudição de um Orígines, por exemplo. É somente por meio de uma interpretação altamente “espiritualizante” das Escrituras que muitos mestres, pastores e líderes evangélicos conseguem convencer seus rebanhos de que estão ensinando a verdade da Palavra de Deus. Em termos práticos, Alexandria nos ensina a ter cautela com a ideia de que a verdade da Bíblia só pode ser alcançada por “espirituais” que tenham acesso privilegiado a um conhecimento que está além do sentido claro, simples e evidente das Escrituras. Apesar do fracasso da escola de Antioquia em estabelecer o seu método de interpretação, sua influência foi muito além dos limites da cidade de Antioquia. Os pais latinos, estudiosos que escreveram em latim e cuja influência haveria de perpetuar-se na igreja, seguiram via de regra um sistema de interpretação semelhante ao desenvolvido pelos antioquianos. A escola de Antioquia nos ensina duas coisas importantes: (1) o melhor caminho para evitar a subjetividade descontrolada de uma interpretação alegorista é nos atermos ao texto das Escrituras, ao seu sentido simples e evidente; (2) precisamos cuidar para não cair no extremo de nos tornarmos tão presos à busca do que o texto significou no passado que esqueçamos de perguntar o que ele significa no presente. Capítulo 8 Os pais latinos Introdução Neste capítulo abordaremos a hermenêutica dos pais latinos. Essa é a designação que se dá aos pais da igreja que viveram nos séculos 4º e 5º, cujas obras foram escritas em latim. Dentre eles, destacaremos aqueles trabalhos que são mais relevantes na história da interpretação da Bíblia: Tertuliano (155–após 220 d.C.), considerado o pai do Cristianismo latino; Jerônimo (c. 347–420 d.C.), tradutor da Vulgata Latina, que viveu na Palestina (Belém) e Agostinho (354–430 d.C.), o famoso bispo de Hipona, no norte da África. Principais características hermenêuticas Preferência pela interpretação literal Os pais latinos seguiram, embora nem sempre de modo coerente, a linha de interpretação representada pela escola de Antioquia. Eles favoreciam a interpretação literal, sendo geralmente atentos ao sentido natural do texto bíblico. Tertuliano, por exemplo, não alegorizou Gênesis 1 e 2 em sua exposição da passagem, como era costumeiro se fazer, mas considerou a passagem como histórica. Vemos isso em sua defesa da universalidade da Lei de Deus para todas as nações, em sua obra Resposta aos Judeus, no capítulo 2: No início do mundo, Deus deu a Adão e Eva uma lei: eles não deveriam comer do fruto da árvore plantada no meio do Paraíso; e se eles desobedecessem, morreriam. Esta lei teria permanecido como sendo suficiente para eles, caso tivesse sido guardada. Nesta lei dada a Adão, percebemos em forma embrionária todos os preceitos que mais tarde brotaram ao serem dados a Moisés. Pois a lei primordial foi dada a Adão e Eva no Paraíso, como a madre de todos os preceitos de Deus. Tertuliano, nesse sentido, seguiu o método de Antioquia. A alegorese via de regra procurava sentidos além do literal no relato da criação e os relacionava com aspectos do platonismo, com virtudes morais do estoicismo ou com aspectos da doutrina cristã. Ele, porém, não foi por esse caminho. Já Jerônimo, que a princípio era um seguidor de Orígines, deixou seu método pelo literal. Sua tradução das Escrituras para o latim (Vulgata), feita quando já havia abandonado o método alegórico, é um exemplo de interpretação quase literal das Escrituras. Agostinho, ao interpretar o relato da criação no livro XI da sua obra Cidade de Deus, considera os dias da criação como sendo dias literais, apesar de confessar não saber como poderia ter havido manhã e tarde nos primeiros dias antes da criação do sol. Outra demonstração de sua preferência pela interpretação natural do texto é a crítica que ele faz, em sua Doutrina Cristã, às sete regras de interpretação de Ticônio, um donatista de sua época. Após analisar uma por uma, Agostinho conclui: Todas estas regras, com exceção daquela sobre as promessas e a Lei, fazem com que um sentido seja compreendido onde outro é expresso, que é a característica da linguagem figurada. Esse tipo de linguagem, assim me parece, está por demais disseminada para poder ser compreendida por alguém. Pois, onde uma coisa é dita com a intenção de que outra seja entendida, ali temos uma expressão figurada. Quando uma expressão desse tipo ocorre onde é costumeiro, não temos problema em entendê-la. Mas quando ocorre onde não é costumeiro, torna-se laborioso compreendê-la, dependendo dos dons intelectuais que as pessoas receberam de Deus. Contexto histórico Os pais latinos também davam atenção ao contexto histórico da passagem. Os intérpretes alegoristas, muito embora respeitassem as Escrituras como a Palavra de Deus, tendiam a desprezar o contexto histórico e cultural em que elas foram escritas, tratando-as via de regra quase que como um livro que havia caído já pronto do céu. Os pais latinos eram mais sensíveis ao contexto em que as Escrituras foram produzidas. Disto podemos citar diversos exemplos. Jerônimo declarou que o Antigo Testamento era um livro oriental, escrito numa língua oriental e num contexto oriental – coisas que precisavam ser levadas em consideração pelo intérprete. Ele escreveu um comentário no livro de Daniel para refutar a crítica do pagão Porfírio de que as profecias do livro teriam sido escritas por alguém vivendo após o tempo de Antíoco Epifânio e dos Macabeus. Jerônimo demonstra a historicidade e veracidade do livro. Em sua obra Cidade de Deus, Agostinho, tentando explicar o mais terrível evento de sua época – a queda de Roma – demonstra sensibilidade para com a maneira pela qual, de acordo com a Bíblia, Deus age na História. Agostinho traça historicamente, de Caim e Abel ao fim do mundo (livros XV a XIX), o surgimento e desenvolvimento da civitas dei (cidade de Deus), a Jerusalém celestial, construída para o louvor e glória de Deus, em contraste com a “cidade terrena” (civitas terrena) representada por Roma mas energizada pelos desejos humanos de receber glória e honra. Esse desenvolvimento teológico só é possível a partir do entendimento de Agostinho de que o relato do Antigo Testamento era histórico. Intenção do autor Muito embora conscientes dos diversos sentidos que se poderia atribuir a um único texto, os intérpretes latinos manifestam preferência por aquele que melhor reflete a intenção do autor bíblico. Nas Confissões, temos uma admirável declaração de Agostinho quanto a isso numa seção cujo título é: “Primeiro, o sentido do escritor deve ser descoberto, e então, a verdade divina por ela pretendida deve ser exposta” (Livro XII, cap. 32, par. 43): Vede, ó Senhor meu Deus, quantas coisas temos escrito concernentes a umas poucas palavras [da Bíblia] – vede quantas, peço-Te! Quanta força e quantas eras necessitaríamos se fôssemos tratar desta maneira todos os Teus livros? Permite-me, selecionar um único sentido que seja verdadeiro, certo e bom, que Tu inspires, apesar de que muitos sentidos se ofereçam e eu possa selecioná-los; que seja a fé da minha confissão, que eu lute para dizer da forma correta e proveitosa aquilo que o Teu ministro [o autor do texto bíblico] sentiu. Como intérpretee expositor bíblico, Agostinho desejava ardentemente ser fiel à intenção original das Escrituras, que ele entendia ser aquele único sentido inspirado por Deus. Alegorias ocasionais Algumas vezes os intérpretes alegorizavam o Antigo Testamento. Eles não estavam de todo livres da maior tentação hermenêutica da sua época, que era interpretar as Escrituras alegoricamente. Uma das ocasiões em que acabavam alegorizando o texto bíblico era quando respondiam aos ataques dos judeus de que os cristãos torciam o sentido do Antigo Testamento para provar que Cristo era o Messias. Para os intérpretes latinos, Cristo estava no Antigo Testamento, e só não era percebido pelos judeus por causa de sua incredulidade. Jerônimo, por exemplo, no prefácio da sua obra Sobre Questões Judaicas, acusou os judeus tradutores da Septuaginta de propositalmente omitir passagens que claramente se referiam à vinda de Jesus Cristo: Não é meu propósito acusar a Septuaginta de erro, nem vejo meu próprio trabalho [a tradução da Vulgata] como um desprezo contra ela. O fato é que eles [os tradutores da Septuaginta], já que estavam trabalhando debaixo do rei Ptolomeu de Alexandria, decidiram não trazer à luz todos os mistérios que os escritos sagrados contêm, e especialmente aqueles que nos dão a promessa do advento de Cristo, com medo de que o rei, que tinha grande estima pelos judeus por adorarem um único Deus, viesse a pensar que adoravam um segundo Deus. Mas percebemos que os autores dos evangelhos, e mesmo nosso Senhor e Salvador, e também o apóstolo Paulo, citam muitas passagens do Antigo Testamento que não se acham em nossas cópias [da Septuaginta]. No afã de provar que Cristo estava em todas as passagens do Antigo Testamento, alguns intérpretes latinos acabavam forçando algumas passagens, dando-lhes uma interpretação alegórica, para “achar” Cristo nelas. De qualquer maneira, isso era menos complicado do que alegorizar os textos bíblicos para encontrar neles as virtudes e as teses do platonismo. Tertuliano, por exemplo, que se envolveu em muitas disputas com os judeus, mesmo sendo um sóbrio intérprete das Escrituras, às vezes usou a alegorese para substanciar seus argumentos. Às vezes, os intérpretes latinos achavam sentidos figurados nos textos por outros motivos. Agostinho, por exemplo, defende que Deus criou o mundo em seis dias por causa da perfeição do número seis, pois Deus não precisaria de tempo para criar o mundo. Ele emprega o capítulo 30 do livro XI de Cidade de Deus para demonstrar por que o número seis é o número perfeito e também que os números bíblicos estão cheios de significado. Nesse mesmo capítulo, Agostinho, que entende literalmente os dias da criação, acaba sugerindo também uma interpretação figurada: Podemos falar [apropriadamente] de manhã e tarde. Pois o conhecimento da criatura, em comparação com o conhecimento do Criador, é somente um entardecer, que se transforma em amanhecer quando ela é atraída a louvar e amar o Criador; e a noite nunca cai quando o Criador não é esquecido pelo amor da criatura. Em outras palavras, quando a Escritura registra os dias da criação, nunca menciona a palavra “noite”. Nunca diz “houve noite…”, mas sim “houve tarde e manhã, o primeiro dia”… portanto, a tarde é uma figura mais adequada do que a noite; e como eu disse, a manhã retorna quando a criatura tem um conhecimento de si mesmo: este é o primeiro dia. Quando ela adquire conhecimento do firmamento, que é o nome dado ao céu entre as águas acima e abaixo, este é o segundo dia; e que todas as coisas crescem da terra, este é o terceiro dia. O quarto dia é quando a criatura adquire conhecimento dos luminares maiores e menores e das estrelas. O conhecimento dos animais que nadam nas águas e voam nos ares, é o quinto dia. O dos animais da terra, e do próprio homem, é o sexto dia. Ao comentar Gênesis 22, que trata da prova à qual Abraão foi submetido por Deus, ordenando-lhe sacrificar Isaque, Agostinho não nega a historicidade da passagem, mas interpreta seus detalhes de forma cristológica: [Tudo isto] é uma similitude daquele de quem o apóstolo diz: “Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou” [Rm 8.32]. Nesse sentido, Isaque também levou ao local de sacrifício a madeira na qual seria oferecido, exatamente como o Senhor carregou sua própria cruz. Finalmente, já que Isaque não foi sacrificado, depois que seu pai foi proibido de fazer-lhe mal, quem era o cordeiro cujo sangue, como uma representação, completou o sacrifício? Pois quando Abraão o viu, ele estava preso pelos chifres entre os arbustos [Gn 22.13]. O que ele, então, representa, senão Jesus, o qual, antes de ser oferecido na cruz, foi corado com espinhos pelos judeus? Atribui-se a Agostinho o conceito de que existem quatro níveis de sentido nas Escrituras: um sentido literal e três sentidos espirituais: moral, alegórico e anagógico. O sentido literal seria o registro do que aconteceu (o fato); o sentido moral conteria uma exortação quanto à conduta (o que fazer); o sentido alegórico ensinaria uma doutrina a ser crida (o que crer); e o sentido anagógico apontaria para uma promessa a ser cumprida (o que esperar). Existem outros candidatos a autores dessa famosa “quadriga”, como veremos mais adiante. Até mesmo Jerônimo, que traduziu a Vulgata quase que literalmente, permitiu-se evitar o sentido natural de textos bíblicos que fossem contrários às suas ideias. Um dos melhores exemplos é sua obra Contra Joviniano, em que procura refutar um tratado escrito em latim e publicado em Roma por um tal Joviniano, que era contra a virtude monástica da virgindade e perpétua virgindade de Maria. Em seu afã de defender essas doutrinas, que já começavam a ser recebidas oficialmente na igreja, Jerônimo força a interpretação de algumas passagens das Escrituras usadas por Joviniano. Joviniano cita “crescei e multiplicai-vos” e Jerônimo replica: “O casamento enche a terra, mas a virgindade enche os céus”. Joviniano apela para Cantares, e Jerônimo replica que o mesmo é totalmente alegórico e espiritual. Joviniano diz que Pedro era casado e Jerônimo responde que Pedro lavouse da sujeira do casamento pelo sangue do seu martírio! Notemos que a espiritualização do Antigo Testamento se dava principalmente por causa da convicção dos pais latinos de que o Novo Testamento está oculto no Antigo, e o Antigo Testamento é iluminado pelo Novo. Nas palavras de Agostinho, In vetere novum lateat, et in novo vetus pateat (“No Velho o Novo está oculto e no Novo o Velho é explicado”, Quaest. in Heptateuchum 2.73). Escritura com Escritura Outra característica da interpretação dos pais latinos era a observância da regra que passagens mais obscuras devem ser interpretadas à luz das mais claras. Para muitos intérpretes nessa época, a solução para resolver contradições entre passagens das Escrituras era alegorizar as que fossem mais obscuras. Os pais latinos, ao contrário, adotam outra solução. Procuravam interpretar uma passagem obscura e difícil à luz de outras que tratem do mesmo assunto e que sejam mais claras. Era essa a regra que procuravam seguir. O que estava por detrás dessa regra era a crença na unidade da Escritura, ponto que Agostinho faz explicitamente em seu comentário em Gênesis 22. Regra de fé da igreja Os pais latinos viveram numa época em que a igreja estava começando a adquirir uma estrutura fixa em Roma. Ao contrário da tradição oriental, que era influenciada por Alexandria e que via o texto como “aberto” (no sentido de ser uma rica mina de sentidos), os pais latinos praticavam uma exegese “fechada”, seguindo os dogmas dos concílios da época, nos quais o texto aceitava apenas uma interpretação, que devia ser crida e recebida por todos. Um dos exemplos disso foram as tentativas de Jerônimo de defender o ensino sobre as virtudes da castidade e de se permanecer solteiro, que já começava a ser aceito como doutrina da igreja. Além disso, na época deles, já começava a formar-se uma tradição eclesiástica reconhecida e aceita pela igreja. Os pais latinosdemonstram ter consciência de uma tradição de intérpretes antes deles. Jerônimo cita frequentemente em suas obras comentaristas antes dele que têm a mesma interpretação. Agostinho e Jerônimo Um episódio interessante deste período é a correspondência trocada durante muitos anos entre Agostinho e Jerônimo sobre a interpretação de uma passagem polêmica de Gálatas. As cartas foram preservadas e se constituem em um dos capítulos mais interessantes da história da interpretação no período patrístico. A disputa ilustra bem o apreço que Agostinho tinha pela interpretação mais literal das Escrituras. Um dos inimigos do Cristianismo em seu início foi Porfírio, um filósofo pagão. Ele escreveu um livro, “Contra os Cristãos”, no qual usa Gálatas 2 para mostrar que havia uma disputa entre os principais líderes do Cristianismo, Pedro e Paulo. Nesta passagem, Paulo registra que em certa ocasião repreendeu Pedro na cara, porque o mesmo usou de desfaçatez para com os cristãos gentios (Gl 2.11). Porfírio usou essa passagem para provar que Pedro e Paulo eram inimigos. Muitos cristãos escreveram refutando Porfírio. E Jerônimo foi um deles. Em seu comentário aos Gálatas, Jerônimo afirma que Paulo estava apenas fingindo, e que o conflito entre os dois não deve ser tomado como algo sério. Agostinho era mais moço que Jerônimo, e morava em Hipona. Jerônimo, por sua vez, morava na Palestina, onde estava ocupado traduzindo as Escrituras (Vulgata). Agostinho enviou-lhe diversas cartas, cobrando uma exegese mais correta da passagem. O problema que Agostinho sentia com a interpretação de Jerônimo era que ela acabava por fazer de Paulo um mentiroso. Para Agostinho isso era sério, pois não era somente um ataque à autoridade moral de Paulo, mas um ataque à autoridade da própria Bíblia. Jerônimo ficou aborrecido com Agostinho e os dois começaram uma troca de correspondência que durou muitos anos. Jerônimo defendia-se dizendo que sua interpretação “espiritual” da passagem era válida, pois servia para esvaziar as acusações que Porfírio estava fazendo contra as Escrituras. Mas Agostinho não se deixava convencer. Para ele, o que estava em jogo era a própria autoridade da Escritura. Isso tudo nos mostra um ponto muito importante. Agostinho, apesar da influência platônica que sofreu, foi um mestre da exegese bíblica. É verdade que ele não conhecia nem o grego nem o hebraico, mas uma coisa o destaca: seu desejo de interpretar a Palavra em seu sentido óbvio, simples e evidente, mesmo que isso trouxesse algumas dificuldades. Conclusão Dentre os pais latinos, aquele cujas ideias e cuja hermenêutica mais influenciou a igreja ocidental foi Agostinho. Infelizmente, foi somente um aspecto da sua hermenêutica que prevaleceu, o reconhecimento de que havia um sentido além do literal nas palavras da Bíblia. Na Idade Média, a preocupação por sentidos além do literal dominou quase que completamente, como veremos no capítulo seguinte. Isso não quer dizer que houve somente interpretações alegóricas da Bíblia durante a Idade Média. Em meio a esse período, uma pequena, mas forte tradição interpretativa, em muito similar à de Antioquia, surgiu e acabou por preparar o caminho da hermenêutica utilizada pelos reformadores. Uma lição que podemos aprender com os intérpretes latinos, especialmente com Jerônimo, é evitar que nossas crenças prediletas acabem por controlar nossa interpretação das Escrituras. Frequentemente somos tentados a interpretar textos bíblicos de modo a concordarem com nosso pensamento. Sabemos que é impossível ler a Bíblia sem pressupostos. Nosso dever, entretanto, é assegurar que esses pressupostos são somente aqueles exigidos pela própria Escritura. Capítulo 9 Os intérpretes da Idade Média Introdução Ao contrário do que geralmente se pensa, houve intensa atividade hermenêutica durante a Idade Média. Há muita coisa a ser estudada nesse longo período (séculos 5º a 16). No geral, prevaleceu o sistema de interpretação difundido por Alexandria, apesar da grande influência moderadora de Agostinho, cujo sistema de interpretação só foi lembrado pelos lapsos alegóricos. Entretanto, nem toda exegese dessa época foi alegórica. Como veremos, subsistiu um núcleo que, em alguns sentidos, antecipou os princípios histórico-gramaticais dos reformadores, os quais valorizavam o sentido primário e textual das Escrituras e procuravam encontrar a intenção do autor como o sentido real da passagem. Embora ocasionalmente surgissem estudiosos reconhecendo o valor da interpretação natural das Escrituras, predominou na Idade Média a interpretação alegórica defendida por Orígines. Características da interpretação bíblica dessa época O uso da quadriga Um dos primeiros intérpretes da Idade Média é João Cassiano, que morreu no século 5º. Monge e escritor asceta do sul da Gália, Cassiano foi um dos maiores defensores do semi pelagianismo naquela época. Ele escreveu um livro intitulado Institutas de Coenobia, no qual explica e regulamenta a vida nos mosteiros no Egito valendo-se de uma interpretação bastante alegórica das Escrituras. Nessa obra vemos claramente a preocupação principal dos intérpretes daquela época, que era justificar biblicamente as inovações, costumes e doutrinas que estavam surgindo na igreja, fazendo um uso inadequado das Escrituras. É atribuída a João Cassiano a famosa distinção entre os quatro sentidos da Escritura, também chamada de “quadriga”: • Histórico ou literal – o sentido evidente e óbvio do texto. • Alegórico ou cristológico – o sentido mais profundo, geralmente apontando para Cristo. • Tropológico ou moral – o sentido que determinava as obrigações do cristão e a sua conduta. • Anagógico ou escatológico – o sentido que apontava para as coisas vindouras que o cristão deveria esperar. Bernardo de Claraval, escritor prolífico do século 11, era adepto da quadriga. Em sua obra Sobre o Amor a Deus, ele expõe o amor da igreja a Cristo interpretando Cantares no uso alegórico da quadriga: Nem os judeus nem os pagãos sentem as dores do amor como a igreja, que diz: “Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, pois desfaleço de amor” [Ct 2.5]. Ela contempla o Rei Salomão, com a coroa com a qual sua mãe o coroou no dia do casamento; ela vê o unigênito do Pai carregando o fardo pesado da sua cruz. Contemplando isto, a espada do amor traspassa sua própria alma e ela clama: “Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, pois desfaleço de amor”. Os frutos que a esposa colhe da Árvore da Vida no meio do jardim de seu Amado são romãs [Ct 4.13], que tomam seu gosto do Pão da Vida, e sua cor do sangue de Cristo. Nicolau de Lira, um dos grandes estudiosos do século 13, resumiu a quadriga na famosa rima: Littera gesta docet (a letra ensina os fatos) Quid credas allegoria (a alegoria, o que deves crer) Moralis quid agas (a moral, o que deves fazer) Quo tendas anagogia (a anagogia, a direção) A perspectiva de que as Escrituras têm três ou quatro níveis de sentidos, conforme expressa a quadriga, dominou a interpretação bíblica no período da Idade Média. Alguns, como Bonaventura, teólogo católico franciscano do século 13, chegaram até a defender que havia sete níveis de sentido em cada passagem. Apoio às inovações da Igreja Medieval Uma das preocupações dos intérpretes medievais era justificar as inovações litúrgicas. O ponto interpretativo central era o lugar da Lei de Moisés nas cerimônias litúrgicas da igreja. Para justificar o seu uso, era preciso alegorizar o texto do Antigo Testamento de modo a permitir que as cerimônias do culto do Antigo Testamento pudessem ser aplicadas ao contexto cristão. Práticas como uso de corais, velas, imagens, bem como doutrinas que tornavam os sacerdotes católicos em mediadores entre Deus e os homens e com poderes para efetuar a transubstanciação, passaram a ser justificadas com base em textos da Escritura interpretados alegoricamente. Por exemplo, no salmo 74.13: “Esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos” era usado para defender a expulsão de demônios pelo batismo. Já o sistemalevítico do Antigo Testamento era empregado para defender a ideia de que cada presbítero cristão era um sacerdote apto a realizar o santo sacrifício da missa. Outro objetivo dos intérpretes era justificar os dogmas eclesiásticos, ou seja, a regula fidei da igreja. Para isso, era preciso muitas vezes alegorizar o texto sagrado. Por exemplo, a ressurreição da filha de Jairo na presença de umas poucas testemunhas provava a confissão auricular privada a um sacerdote. De acordo com os monges comentaristas, a passagem “Do SENHOR são as colunas da terra” (1Sm 2.8) defendia a existência de cardeais. E no salmo 8.7-8: “Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo; as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as sendas dos mares” foi usado por Antônio, bispo de Florença, para provar que Deus havia posto todas as coisas debaixo dos pés do papa: as ovelhas são os cristãos; os bois são os judeus e os heréticos; os animais do campo são os pagãos; os peixes do mar são as almas no purgatório. Ainda outro objetivo era justificar o surgimento das ordens monásticas. Por exemplo, as duas varas mencionadas em Zacarias 11.7 eram interpretadas como se referindo aos franciscanos e aos dominicanos. João Cassiano, em suas Institutas de Coenobia, regulamenta no Livro 1 os trajes que o monge deve usar. Cada detalhe da indumentária monástica, das sandálias ao capuz, é “provado” biblicamente, como por exemplo, o uso da cinta, que era um cordão grosso amarrado ao redor da roupa de peles: O monge, como soldado de Jesus Cristo sempre pronto para a batalha, deve sempre caminhar com os lombos cingidos com uma cinta. Pois foi nesta maneira, como a autoridade da Santa Escritura nos mostra, que andaram aqueles no Antigo Testamento que deram início a este costume – refiro-me a Elias e Eliseu; além disto, sabemos que os líderes e autores do Novo Testamento, ou seja, João, Pedro e Paulo, e outros do mesmo nível, andaram da mesma forma… Quando Pedro foi preso por Herodes e estava para ser morto no dia seguinte, o anjo chegou-se a ele de noite e disselhe: “Cinge-te e calça as sandálias” [At 12.8]. O anjo do Senhor não teria dito isto se não tivesse percebido que Pedro, por causa do descanso da noite, havia por um pouco aliviado seus lombos cansados afrouxando a sua cinta. Quando o profeta Ágabo tomou a cinta de Paulo para profetizar, com isto demonstrou que Paulo sempre usava uma cinta à sua cintura [At 21.11] (Cap. I)… A cinta ao redor do monge o protege e representa o grande mistério que se exige dele, que é a mortificação daqueles membros que estão contidos nas sementes da cobiça e da lascívia, conforme está escrito “Cingido esteja o vosso corpo” [Lc 12.35], que é interpretado pelo apóstolo Paulo como sendo “Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno e a avareza, que é idolatria” [Cl 3.5] (Cap. XI). Aplicações práticas Outra preocupação dos intérpretes desse período era prática. O período das polêmicas havia passado após o Concílio de Calcedônia (451 d.C., sobre a pessoa de Cristo). No desejo de aplicar as Escrituras, espiritualizava-se seu sentido para permitir a acomodação. Como exemplo, podemos citar Gregório, o Grande (Papa, séc. VI). Gregório tinha um alto apreço pela Escritura como a Palavra de Deus, dada para instruir os homens quanto à salvação. Porém, era seguidor do método alegórico de Orígines. Isso o levou a procurar o sentido espiritual, interior, oculto por detrás da letra, determinando três níveis de sentido para cada passagem (histórico ou literal, alegórico ou típico e moral). Desses, estava mais preocupado com o sentido moral, pois era um pregador com uma audiência enorme. Um bom exemplo são suas palestras sobre o livro de Jó, Moralia. Cada palestra tem uma exposição literal, uma alegórica e outra moral. Na exposição literal de Jó 1.1-5, ele usa o Jó histórico como exemplo de um homem de grande fé, cuja piedade deve ser imitada. Na exposição alegórica, explora os detalhes da narrativa interpretando-os simbolicamente e aplicando-os a Cristo. E na exposição moral, ele identifica Jó com a alma do cristão e suas posses com as virtudes dessa alma. Ênfase na obscuridade das Escrituras Com o objetivo de proteger a usurpação hierárquica, os monges, bispos e padres exageraram o fato de que existem passagens obscuras na Bíblia e assim a mantiveram longe das multidões. Transformaram-na em um livro fechado, cujo sentido somente os bispos e monges podiam desvendar. A interpretação alegórica de Jó 1.1-5 feita por Gregório é bem representativa: Jó teve 7 filhos e 3 filhas; o número 7 representa os apóstolos, já que 7 é composto de 4 e 3, que multiplicados dão 12. Os números 3 e 4 indicam que a Trindade é pregada nos 4 cantos da terra. As 3 filhas representam os 3 santos de Ezequiel 14.14, Noé, Daniel e Jó, que por sua vez representam os sacerdotes, o celibato e o que é fiel no casamento. Presença de uma tradição hermenêutica gramático-histórica O tipo de interpretação praticado durante a Idade Média era na maioria dos casos arbitrariamente alegórico, como os exemplos anteriores demonstram. Isso não quer dizer que não havia nesse período quem defendesse uma leitura da Bíblia em seu sentido natural e óbvio. Por exemplo, o monge alemão Tomás à Kempis, do século 15, famoso por sua obra Imitação de Cristo, recomenda no capítulo V deste livro que se leia a Bíblia com simplicidade: Devemos buscar a verdade e não a eloquência na leitura das Santas Escrituras; e cada parte dela deve ser lida no espírito em que foi escrita… Nossa curiosidade frequentemente prejudica nossa leitura das Escrituras, quando queremos compreender e ponderar aquilo que simplesmente deveríamos ler e seguir adiante. Portanto, é proveitoso que leiamos com humildade, simplicidade e fé. Procure e ouça atentamente as palavras dos santos. Podemos dizer que uma nova apreciação pelo sentido literal das Escrituras surgiu no período medieval, graças a alguns fatores, alguns dos quais mencionamos em seguida. Surgimento das escolas de teologia Na Idade Média Alta surgiram as escolas de teologia nas catedrais, onde se estudava a Bíblia mais academicamente. Elas adotavam um sistema de leitura da Bíblia chamado quaestio, como contraponto ao sistema dos mosteiros, que eram centros de estudos devocionais (lectio). Um bom representante de um intérprete nesta linha é Hugo, abade da catedral de São Vitor, na França, no século 12. Não somente ele, mas também outros vitorianos, como André e Herberto, escreveram obras teológicas e comentários em que a intenção do autor determinava o sentido do texto e se dava atenção ao contexto histórico e à gramática. Hugo escreveu um comentário à carta aos Romanos utilizando-se do sistema de quaestio, que consistia em responder perguntas feitas ao texto bíblico. Vejamos o exemplo abaixo: Questão Quinquagésima Sexta. Como pode o Apóstolo dizer que “Deus há de dar a cada um segundo as suas obras”, [Rm 2.6] se as obras de um homem são boas enquanto sua intenção é má, e as obras de outro são más enquanto sua intenção é boa, e é pelo afeto que se impõe o nome à obra? Não é condenado pelas boas obras aquele cuja intenção é má, enquanto que se salva pelas más obras aquele cuja intenção é boa? Solução. Não é suficiente a intenção para que as obras sejam ditas boas, mas sempre é exigido que sejam boas para aquele que as faz. Se, de fato, as obras são boas em si, mas a intenção é má, o homem é punido pela má intenção, não pelas boas obras, nem será remunerado por elas, porque se lhe tornaram inúteis pela má intenção. Para que, porém, as obras lhe sejam más, não se exige a má intenção. A intenção pode ser boa ou má e existir em obras más; qualquer que for a intenção de uma obra má, causará esta dano ao que a fizer. O julgamento deve referir-se à intenção nas coisas que são indiferentes, isto é, nem boas nem más em si mesmas. Embora a teologia de Hugo seja estritamente medieval e as respostasque ele fornece às perguntas estejam influenciadas pelo escolasticismo católico, seu método inevitavelmente leva à valorização do sentido natural e óbvio das Escrituras. A influência de Rashi Outro fator foi o contato de eruditos cristãos com estudiosos judeus que tinham uma abordagem das Escrituras influenciada pelo literalismo de Rashi (Rabino Salomão ben Isaque, 1040-1105). Rashi era um judeu erudito famoso que escreveu comentários influentes na Bíblia Hebraica e na maior parte do Talmude Babilônico. É considerado uma das maiores autoridades na Lei Judaica. Muito embora ainda estivesse apegado à interpretação alegórica dos rabinos antigos, Rashi foi um mestre da brevidade que aplicou o método da simplicidade ao máximo, evitando em sua exegese do Antigo Testamento complicações desnecessárias, enfatizando a gramática e a exposição racional das Escrituras. Vejamos, por exemplo, sua interpretação de Gênesis 2.25: “Ora, um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus e não se envergonhavam”: Eles não conheciam o caminho da modéstia para distinguir entre o bem e mal. Apesar de Adão ter recebido a sabedoria de chamar todas as criaturas pelo nome, ele não estava imbuído de qualquer inclinação maligna, até que comeu da árvore e a inclinação para o mal entrou nele e ele tornou-se capaz de distinguir entre o bem e o mal. No exemplo acima, Rashi é bastante sóbrio, sem procurar sentidos ocultos na passagem. Seu estilo e suas obras acabaram por chegar ao conhecimento de estudiosos cristãos das escolas de teologia e por produzir um novo apreço por uma exegese mais simples e direta. Publicação de obras que favoreciam a interpretação literal As obras de Aristóteles traduzidas do árabe foram publicadas na Idade Média Alta. O interesse por Aristóteles havia desaparecido no Ocidente depois do declínio de Roma; suas obras foram preservadas em árabe por estudiosos siríacos. Aristóteles percebia o sentido e a realidade, não num mundo de ideias, como Platão, mas nas coisas em si. Sua filosofia foi inclusive acusada de levar ao materialismo pela Igreja Católica, mas acabou servindo de base para o pensamento de Tomás de Aquino. Outro fator foi a publicação da obra de Maimônides, Guia para os Perplexos, em que ele defende que a Lei pode ser interpretada e aplicada literalmente. Maimônides foi um destacado filósofo judeu medieval do século 12. Foi médico do Sultão Saladim e líder da comunidade judaica no Egito, bem como um importante contribuidor para a codificação da Lei Judaica. Ele provocou uma grande controvérsia ao publicar um resumo dos princípios do Judaísmo em 13 declarações (como um credo), com o objetivo de clarificar as principais diferenças entre o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Mas, desde então, esse “credo” passou a ser incorporado à maioria dos livros de oração judaicos. Abaixo, temos um exemplo da interpretação sóbria de Maimônides, tirada de sua obra As Leis dos Princípios Básicos da Torá, capítulo I: O que a Torá quer dizer com expressões como “… o dedo de Deus” [Êx 31.18], “a mão do SENHOR” [Êx 9.3], “os olhos do SENHOR” [Dt 11.12], “os ouvidos do SENHOR” [Nm 11.1], etc.? Estas frases estão em consonância com o nível de compreensão do povo, que só concebe a existência física. A Torá fala em termos que possamos compreender. Todos os exemplos dessa natureza são atributivos. Por exemplo, quando se diz “se eu afiar a minha espada reluzente” [Dt 32.41] – isto significa realmente que Deus tem uma espada e que ele realmente mata com ela? Tais frases são figuradas. Surgimento das ordens mendicantes O que levou Francisco de Assis a vender tudo o que tinha, dar aos pobres e sair pelo mundo pregando o evangelho como ele o entendia foi sua interpretação literal das palavras de Jesus nos evangelhos. Muito embora possamos discordar dessa interpretação, é forçoso reconhecer que o surgimento das ordens mendicantes, como a dos Franciscanos, com sua interpretação simples, direta e literal dos evangelhos manteve viva a tradição da interpretação literal, muito embora os Franciscanos e demais mendicantes fossem filhos de sua época quanto ao entendimento teológico. A tradução das Escrituras para o vernáculo Não podemos deixar de dar crédito também à obra pioneira de João Wycliffe, que foi traduzir a Vulgata (em latim) para o inglês, a língua do seu povo, desafiando a hierarquia católica. A divulgação da Bíblia em língua vernácula contribuiu para uma leitura simples e direta por parte do povo. O apreço renovado pelo sentido literal por parte de estudiosos e monges não representou o abandono do método alegórico. Esse permaneceu intocado na Idade Média, como o principal método empregado. Os que haviam descoberto a importância do sentido literal mantiveram também o sistema alegórico de interpretação, como Tomás de Aquino (século 13). Debaixo da influência de Aristóteles – pelo que foi inicialmente questionado pela igreja de seus dias – ele deu total atenção e prioridade ao sentido literal, buscando a intenção do autor e usando todas as ferramentas disponíveis para o estudo do texto. Ele estava convencido que metáforas, alegorias e similitudes eram parte da intenção original. Chegou mesmo a ensaiar uma análise de discurso de Gálatas 3. Via também no Antigo Testamento um sentido mais profundo que prefigurava Cristo. Apesar desse aparente retorno ao método antioquiano, Aquino permaneceu leal ao método alegórico. Vejamos abaixo a defesa que ele faz da quadriga na Suma Teológica (1a.1.10): As coisas são representadas por palavras, e estas coisas também têm, elas mesmas, um significado. Portanto, aquele sentido no qual as palavras representam coisas pertence propriamente ao primeiro sentido, o histórico ou literal. E aquele sentido no qual as coisas representadas pelas palavras também têm seu próprio sentido, é chamado de espiritual. Esse sentido espiritual tem uma divisão tripla. Pois o Apóstolo diz [Hb 10.1] que a Antiga Aliança era uma figura da Nova, e Dionísio diz em sua obra que “a Nova Aliança é uma figura da futura glória”. Nessa Nova Aliança, aquilo que Cristo fez é um tipo do que devemos fazer. Portanto, naquilo em que as coisas da Antiga Aliança representam as coisas da Nova, temos o sentido alegórico; naquilo em que as coisas realizadas em Cristo representam o que devemos fazer, temos o sentido moral. No que elas significam o que tem a ver com a glória eterna, eis o sentido anagógico. A luta dos huerguenses na Espanha Uma das mais destacadas exceções quanto à aplicação do método alegórico na Idade Média foi o caso, não muito conhecido hoje, do espanhol Cipriano de la Huerga, cujo vasto comentário de livros da Bíblia foi recentemente publicado pela Universidade de Leão sob a direção de G. Morocho Gayo. Os Huerguenses, como são chamados seus seguidores, romperam com a abordagem dos quatro sentidos da Bíblia (quadriga) e abordaram o texto de acordo com pressupostos que em tudo nos lembra a hermenêutica de Antioquia. Entre esses pressupostos ou princípios de interpretação, mencionamos, primeiro, o retorno ao estudo da Bíblia utilizando-se as línguas originais dos textos bíblicos, hebraico e aramaico para o Antigo Testamento e grego para o Novo Testamento. Segundo, os huerguenses se dedicaram a uma análise textual das Escrituras usando princípios similares ao que hoje se conhece como filologia poligráfica. Na área da manuscritologia, eles procuraram corrigir e fixar os textos das cópias antigas da Bíblia, eliminando as interpolações e variantes até conseguir as leituras mais próximas do original. Também dedicaram atenção especial às varietas lectionum, quer dizer, as passagens com leituras distintas, que oferecem diversidades de interpretações. Quanto à interpretação, procuravam explicar as figuras poéticas, metáforas e parábolas segundo as normas da retórica clássica. Ilustravam os textos que contêm termos geográficos, acontecimentos históricos, instituições e elementos ilustrados pelos novos conhecimentos trazidos pelas disciplinas correspondentes, rejeitando o “sentido espiritual” da interpretaçãoalegórica. Faziam frequente uso de citações de escritores clássicos gregos e romanos, desde Homero, passando por Cícero e Sêneca, até os autores gregos e latinos dos séculos 4º e 5º. Usavam também textos dos pais da igreja, tratando de explicar a multiplicidade de sentidos. A principal novidade introduzida por Cipriano e seus seguidores foi o abandono do escolasticismo dos doutores da igreja medieval e a incorporação dos métodos do humanismo. Como resultado, se deu um dos maiores debates ideológicos já conhecidos pela universidade espanhola, quando seus seguidores começaram a colocar em prática esse modo de abordar as Escrituras. Os catedráticos escolásticos da Universidade de Salamanca, com o apoio da inquisição, conseguiram encarcerar os discípulos de Cipriano (Frei Luís de Leão e seus companheiros) e as suas obras foram condenadas e colocadas no Índice de Livros Proibidos e nos Expúrios. Em 1612 também os Comentários ao Livro de Jó foram colocados no Index. Conclusão O ressurgimento do interesse no final da Idade Média pela interpretação gramático-histórica preparou, em certo sentido, a grande revolução hermenêutica que foi a Reforma Protestante. É o que veremos em seguida. A história da interpretação da Bíblia durante a Idade Média nos mostra de maneira muito clara como uma hermenêutica alegórica sem controles e a decadência doutrinária da igreja andam juntas. É verdade que não podemos responsabilizar o método alegórico por todos os desvios doutrinários ocorridos nesse período, mas com certeza ele teve participação decisiva. Semelhantemente, podemos inferir que a crise doutrinária e a falta de rumos claros na teologia da igreja evangélica brasileira em nossos dias se devem em alguma medida à predominância de uma exegese que não se preocupa com o sentido primário, literal e evidente da Bíblia, mas com sentidos que estão além da mesma e disponíveis apenas a intérpretes que se julgam “espirituais”. Capítulo 10 Os reformadores Introdução A Reforma Protestante foi, em muitos sentidos, um movimento hermenêutico. Representa um momento crucial na história da interpretação cristã das Escrituras. O domínio de séculos de interpretação alegórica é finalmente quebrado. O retorno aos princípios de interpretação defendidos pela escola de antioquia marca a pregação, o ensino e os princípios dos reformadores. Portanto, procuraremos resumir as principais contribuições da Reforma para a história da hermenêutica bíblica. A Bíblia na Reforma Para melhor entender a hermenêutica dos reformadores, devemos começar entendendo a posição que as Escrituras passaram a ocupar em seu pensamento. Os reformadores rejeitaram e combateram o conceito de que a hierarquia da igreja era a autoridade máxima em questões religiosas. Eles insistiram que a Bíblia era o juiz maior de todas as controvérsias religiosas, interpretando-se a si mesma ao longo de suas partes. Ela passou a ser central e crucial no pensamento e na prática dos seguidores da Reforma, ao contrário do lugar secundário que ocupava no catolicismo da Idade Média. Com o resgate da posição central da Bíblia na fé e na prática da igreja, a sua certeza, divindade, veracidade e autoridade ganharam ainda mais destaque, já que os cristãos agora tinham de apelar a ela para resolver debates teológicos. Antes, era uma hierarquia infalível encabeçada por um papa infalível que decidia todas as questões religiosas. A Reforma Protestante, agora, sabia que a decisão dessas questões somente podia ser alcançada pelo Espírito Santo falando por meio da Palavra de Deus inspirada e infalível. A tendência então passou a ser a harmonização das passagens difíceis da Bíblia. Na época medieval as passagens difíceis eram interpretadas e resolvidas em harmonia com a tradição e os dogmas da igreja. No passado, Orígines havia recorrido à alegoria nesses casos. Mas os reformadores tinham de achar outra solução, já que rejeitavam a autoridade da hierarquia eclesiástica sobre as Escrituras e a alegorese. O caminho foi o de interpretar a Escritura com a Escritura visando harmonizar as aparentes contradições. A ênfase à infalibilidade da Escritura – doutrina nunca negada por Roma, mas reduzida a plano secundário pela prevalência da tradição – evitou que ela recebesse dos reformadores um tratamento crítico como um livro comum de religião. Os reformadores estavam conscientes de que a Bíblia era um livro humano, isto é, foi escrita por homens em uma linguagem humana, vivendo numa época e cultura específicas. Por outro lado, reconheciam o caráter divino da mesma. Empregaram todos os recursos disponíveis na época para o estudo bíblico, mas suas conclusões eram controladas pela doutrina da inspiração, veracidade e infalibilidade das Escrituras. Um bom exemplo disso é o tratamento que Calvino dá às citações aparentemente deturpadas que os autores do Novo Testamento fizeram do Antigo. Comentando Mateus 2.6, “E tu, Belém, terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as principais de Judá; porque de ti sairá o Guia que há de apascentar a meu povo, Israel”, ele diz: Não há dúvida de que os escribas citaram as palavras dessa passagem [Mq 5.2] fielmente, em sua própria língua, como se encontram no Profeta. Mas Mateus estava escrevendo em grego, e seguiu a leitura que era aceita em sua época… Devemos observar que quando os apóstolos citam um testemunho das Escrituras, eles não o fazem palavra por palavra, e algumas vezes chegam mesmo a distanciar-se bastante da linguagem original. Eles, entretanto, acomodam a passagem de forma adequada ao propósito que tinham em mente… Os evangelistas nunca torturam as Escrituras dando-lhes um falso sentido, mas a aplicam de forma própria a um uso genuíno. Foi somente após o Iluminismo e a chegada do racionalismo na igreja que o método histórico-crítico foi desenvolvido. A partir daí, a Bíblia passou a ser examinada sem os pressupostos que controlavam a exegese da Reforma e com os pressupostos do racionalismo. Passagens como essa examinada acima passaram a ser consideradas como erros grosseiros dos autores neotestamentários, enquanto que Calvino as via como um uso adaptado e genuíno. Características da interpretação dos reformadores Partindo dessa perspectiva das Escrituras, e mesmo em decorrência dela, os reformadores desenvolveram um sistema de interpretação que representou um rompimento radical com a hermenêutica alegórica medieval. Vejamos as suas principais características. Ênfase no sentido literal, gramático-histórico do texto Havia a preocupação dos reformadores em chegar ao sentido óbvio, claro e simples de cada passagem das Escrituras. E isto seria feito pela observação cuidadosa da gramática e do contexto, conforme Lutero expõe em uma crítica aos intérpretes escolásticos da Idade Média, em seu comentário aos Gálatas (1535): O que eles [os sofistas] deveriam fazer é vir ao texto vazios, derivar suas ideias da Escritura Sagrada, e então prestar atenção cuidadosa às palavras, comparar o que precede com o que vem em seguida, e se esforçar para agarrar o sentido autêntico de uma passagem em particular, em vez de ler as suas próprias noções nas palavras e passagens da Escritura, que eles geralmente arrancam do seu contexto. De acordo, os reformadores ensinavam que cada texto tem um só sentido, que é o literal — a não ser que o próprio contexto ou outro texto das Escrituras requeiram claramente uma interpretação figurada ou metafórica. Nesse sentido, os reformadores não eram originais, pois durante a Idade Média havia essa consciência por parte de alguns, conforme vimos no capítulo anterior. Sua contribuição está no fato de que, além disso, romperam drasticamente com a alegorese medieval que prevaleceu na Idade Média, a qual via o texto bíblico como tendo diversos sentidos, sendo o alegórico o mais importante. Rejeitaram o uso da alegorese por parte dos escolásticos medievais. Lutero costumava referir-se às alegorias dos escolásticos em termos fortes. Vejamos, por exemplo, alguns extratos sobre o assunto tirados da obra Conversas de Lutero à Mesa:A alegoria de um sofista é sempre retorcida; ela rasteja e se curva como uma cobra, que nunca se endireita, quer caminhe, quer se arraste, quer fique parada; somente quando morre é que uma cobra fica direita… Quando eu era um monge, era muito versado em significados espirituais e alegorias. Mais tarde, porém, quando cheguei ao conhecimento de Cristo através da carta aos Romanos, vi que todas as alegorias são vãs, exceto aquelas que Cristo usou… Jerônimo e Orígines, Deus os perdoe, são os responsáveis pela alegoria ser tão estimada [na Igreja]. Tudo o que Orígines escreveu não vale uma única palavra de Cristo. Quanto a mim, já abandonei essas bobagens, e minha melhor arte é pregar a Escritura em seu sentido único. O fato de que os reformadores rejeitaram a alegorese escolástica não os levou à conclusão de que não havia passagens de sentido figurado nas Escrituras. Calvino, por exemplo, estava perfeitamente consciente da existência de passagens figuradas e metáforas na Escritura. Ao interpretar 1João 4.1, “Amados, não deis crédito a qualquer espírito”, ele diz: Entendo a palavra espírito como uma metáfora, significando a pessoa que reivindica ter o dom do Espírito para assumir o ofício de profeta… Os profetas são chamados de espíritos porque pronunciaram os oráculos do Espírito. A dificuldade era, porém, que nem sempre concordavam quanto a essas passagens, como fica bem demonstrado na disputa entre Lutero e Zuínglio quanto à interpretação de Mateus 26.26, “Tomai, comei; isto é o meu corpo”. Enquanto que Lutero interpretava literalmente esta passagem, Zuínglio interpretava literalmente Marcos 16.19, “O Senhor Jesus, depois de lhes ter falado, foi recebido no céu e assentou-se à destra de Deus”. Para ele, conforme defendeu em seu tratado Sobre a Ceia do Senhor, Cristo estava localizado no céu em sua natureza humana física. Logo, ele estava presente na Ceia somente de maneira espiritual, sem identificar-se com o pão e o vinho. A resposta de Lutero, em um tratado publicado no ano seguinte ao tratado de Zuínglio, foi que a frase “assentou-se à destra de Deus” em Marcos 16.19 não era para ser entendida literalmente. É uma metáfora para explicar o governo de Deus e sua esfera de ação. Cristo não está em nenhum lugar fisicamente e nem está preso por limites de tempo e de espaço. Portanto, poderia estar fisicamente na Ceia. A necessidade da iluminação do Espírito Santo Os reformadores enfatizaram a natureza divina das Escrituras, isto é, que elas foram dadas por inspiração divina. A natureza espiritual da mensagem das Escrituras era a principal barreira à sua compreensão por parte de pessoas que não tinham o Espírito. A cegueira espiritual do homem em decorrência da Queda havia afetado inclusive a capacidade dele de conhecer as coisas de Deus e recebê-las. Para quem não tinha o Espírito, as Escrituras eram um livro fechado. Assim, enfatizaram o papel indispensável do Espírito Santo no processo de interpretação da mensagem da Bíblia. Tanto para Lutero, como para Calvino, nenhuma pessoa poderia interpretar corretamente as Escrituras sem a ação iluminadora do Espírito Santo por meio da própria Palavra. É interessante observar que nos manuais de culto produzidos pelos reformadores havia sempre uma oração na liturgia na qual se pedia a iluminação do Espírito para a compreensão das Escrituras. A necessidade de estudar as Escrituras Igualmente, os reformadores reconheciam que a Bíblia era um livro humano. Muito embora insistissem na clareza das Escrituras, já que eram divinas quanto à origem, reconheciam por outro lado a necessidade de serem estudadas e pesquisadas, visto que também eram humanas. Isto é, havia alguns pontos obscuros nelas que precisavam de maior atenção para serem elucidados. Essas obscuridades residiam no fato de que as Escrituras foram escritas em línguas orientais já mortas, em culturas distantes e em épocas já passadas. Pelo estudo cuidadoso das línguas originais, pelo conhecimento da cultura e da época em que foram escritas, poder-se-ia chegar ao sentido provável das passagens obscuras. Assim, Lutero, no prefácio ao seu Comentário em Romanos, explica primeiro o sentido das palavras-chave da carta, como fé, justiça e carne, como sendo o caminho para a sua compreensão: Você não deve entender carne aqui como denotando somente lascívia, ou espírito como denotando somente a parte interior do coração. Aqui, São Paulo chama a carne (como faz Cristo em João 3) tudo que nasceu da carne, i.e., todo ser humano com corpo e alma, razão e sentidos, desde que tudo dentro dele se inclina para a carne. Isto é o porquê você deveria saber o suficiente para chamar aquela pessoa de “carnal” quem, sem a graça, fabrica, ensina e tagarela sobre assuntos altamente espirituais. Você pode aprender a mesma coisa em Gálatas, capítulo 5, em que São Paulo chama a heresia e obras odiadas da carne. E em Romanos, capítulo 8, ele diz que, através da carne, a lei é enfraquecida. Ele diz isso, não da lascívia, mas de todos os pecados, muitos deles da incredulidade, a qual é o mais espiritual dos defeitos… A menos que você entenda essas palavras desta maneira, você nunca entenderá nem essa carta de São Paulo nem o livro das Escrituras. Esteja atento, por isso, contra os professores que usam essas palavras diferentemente, não importa quem ele seja, seja Jerônimo, Agostinho, Ambrósio, Orígines ou qualquer outro tão grande como grande eles são. É importante observar que apesar de reconhecer os pontos de difícil interpretação nas Escrituras, os reformadores estavam convencidos de que o sentido geral das mesmas era claro e disponível a todo cristão verdadeiro. Escritura com Escritura “Se são obscuras num lugar, são claras em outros”, disse Lutero com referência às Escrituras. Esse princípio da Reforma estabeleceu que a única regra infalível de interpretação das Escrituras é a própria Escritura. Ela se autointerpreta, elucidando, assim, suas passagens mais difíceis. O ponto de Lutero e dos demais reformadores era que o sentido das Escrituras não poderia mais ser determinado por tradição, nem por decisão eclesiástica, nem por argumento filosófico, nem por intuição espiritual, mas unicamente por outras partes das mesmas que explicam e esclarecem o seu sentido. Vemos esse princípio em operação no comentário de Gálatas, de Lutero. Ele regularmente procura entender o que Paulo está dizendo em Gálatas à luz do restante do Corpus Paulinus. Seu comentário está cheio de referências a outras cartas do apóstolo, principalmente Romanos, 1 e 2Coríntios. Por exemplo, ao explicar Gálatas 2.3, que trata da quase circuncisão de Tito, Lutero apela para 1Coríntios 7.18, em que Paulo declara sua prática missionária de amoldar-se às necessidades dos que o ouvem. Mais adiante, comentando Gálatas 3.1, “Ó gálatas insensatos”, Lutero explica que a aparente rudeza de Paulo se explica pelo fato de que o apóstolo está simplesmente praticando o que ele ensina em 2Timóteo 4.2: “prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende e exorta”. Além disso, nesse comentário aos Gálatas, Lutero cita passagens de vinte e três livros do Antigo Testamento, especialmente de Gênesis, Deuteronômio, Salmos e Isaías. Ele usa o Antigo Testamento como uma fonte abundante de evidências, exemplos, e exortações. Para ele, a analogia scripturae (“analogia das Escrituras”) justifica o aplicar-se a Cristo “todas as maldições coletivas da Lei de Moisés”, como Paulo faz em Gálatas 3.13, aplicando a Cristo a maldição de Deuteronômio 21.23. Intenção do autor humano Em lugar do conceito da alegorese medieval de que um único texto da Bíblia tinha quatro sentidos, os reformadores insistiram que havia apenas um sentido em cada texto, que era o pretendido pelo seu autor humano. Já que o autor humano havia sido inspirado por Deus, havia a coincidência de intenções. Logo, achar o sentido do autor humano era achar o sentido pretendido por Deus. Como intérpretes bíblicos, eles se preocuparam, no geral, em determinar a intenção do autor, que era geralmente osentido literal de uma passagem, a não ser que o próprio autor indicasse o contrário. Essa era a chave que abria o sentido do texto e determinava o seu sentido. Em seu comentário aos Gálatas, Lutero esforça-se continuamente para colocar di-ante dos leitores a intenção de Paulo, como no exemplo abaixo, em que ele interpreta Gálatas 2.6, “E, quanto àqueles que pareciam ser de maior influência, quais tenham sido, outrora, não me interessa”: Esse é um bom argumento na refutação de Paulo. Ele rebaixa a autoridade e a dignidade dos verdadeiros apóstolos, dizendo: “aqueles que pareciam ser de maior influência”. A autoridade dos apóstolos era realmente grande em todas as igrejas. Paulo não queria diminuir essa autoridade, mas ele tinha de falar dessa forma derrogatória para conservar a verdade do evangelho e a liberdade de consciência. Isso não quer dizer que os reformadores fossem sempre consistentes na aplicação deste princípio. Às vezes, eles acham sentidos nas passagens bíblicas que não parecem evidentes de uma leitura normal e simples do texto. Por exemplo, ao interpretar a passagem de Mateus 27.35, em que os soldados rasgaram as roupas de Jesus, Calvino declara: O evangelista nos apresenta Cristo despido de suas roupas para transmitirnos o fato de que, pela sua nudez, somos cobertos com as riquezas que nos adornam diante de Deus. O Filho foi desnudado pela vontade de Deus, para nos vestir da sua justiça e da abundância de toda riqueza. Assim, onde antes nossos trapos e imundícias nos tornavam indignos do céu, agora podemos aparecer, com os anjos de Deus, na sua presença, com ousadia e sem temor. O próprio Cristo permitiu que os soldados rasgassem a sua túnica que não tinha costura, como animais dilaceram sua presa, para nos enriquecer com as riquezas da sua vitória. Aqui, o grande reformador declara a intenção de Mateus sem que haja um indício na passagem de que tenha sido esta a intenção do evangelista. A teologia bíblica de Calvino, porém, faz que essa interpretação do texto não seja inconsistente com o ensino geral da Escritura. E esse é geralmente o caso quando os reformadores iam além do sentido óbvio do texto. Na busca pela intenção autoral, os reformadores empregaram os recursos disponíveis, como o conhecimento da língua que o autor empregou, usos gramaticais, conhecimento das circunstâncias em que o autor escreveu sua obra, entre outras coisas. Vejamos, por exemplo, a interpretação que Calvino faz em seu comentário de Mateus da difícil passagem “E foi habitar numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que fora dito por intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno” (Mt 2.23): Mateus não deriva “nazareno” de “Nazaré”, como se existisse uma conexão etimológica real e certa entre as duas palavras. O que temos aqui é uma mera alusão. Nazir [em hebraico] significa santo e devotado a Deus, e por sua vez deriva-se de nazar, que significa separado. É certo que os judeus chamavam certa flor (aliás, a insígnia da coroa real) de nazar. Mas não há qualquer dúvida de que aqui Mateus usou a palavra no sentido de santo. Em nenhuma passagem lemos que os nazarenos floresceram; mas lemos em Números 6.4 que eles eram separados para Deus conforme prescrito na Lei. Portanto, devemos entender a declaração de Mateus da seguinte forma: apesar de que José foi habitar em um canto da Galileia [isto é, em Nazaré] por medo, Deus tinha um propósito maior; pois Nazaré havia sido determinada para ser o lar de Cristo, de forma que ele pudesse portar o nome de nazareno, que era apropriadamente seu. Uso de outras obras Os reformadores fizeram uso abundante da erudição antiga, citando comentaristas medievais, as obras dos pais apostólicos e obras de contemporâneos. Apesar de insistirem na necessidade da iluminação do Espírito para a correta interpretação das Escrituras, não desprezaram o que o Espírito já havia revelado a outros antes deles. Os reformadores defendiam-se da acusação dos papistas de que estavam introduzindo novos ensinos na igreja de Cristo, apontando para a doutrina da justificação pela fé nos escritos de Agostinho e de outros Pais da igreja. E não somente com relação a essa doutrina, mas também em relação às demais, sempre citavam as obras antigas para mostrar que estavam em harmonia com as antigas doutrinas apostólicas da graça. O ideal do ad fontes, o retorno às fontes documentais, do Sola Scriptura, levou-os a realizar uma análise crítica do pensamento teológico da igreja antiga e medieval. Lutero, na verdade, era bastante crítico dos escritos dos pais: Devemos ler os Pais cautelosamente, e pesá-los na balança dourada, pois frequentemente tropeçam e se desviam, e misturam com seus livros muitas coisas dos monges. Agostinho teve mais trabalho para se livrar dos escritos dos Pais do que combater os heréticos… Quanto mais leio os escritos dos Pais, mais me ofendo, pois apesar da sua reputação e autoridade, diminuíram o valor dos livros e escritos dos santos apóstolos de Cristo. Embora colocassem em primeiro plano a autoridade das Escrituras, os reformadores não tinham a intenção de negar a História e seu desenvolvimento. O princípio escriturístico não consistia em negar a História, mas em introduzir, no próprio seio dessa, um princípio crítico que permitisse julgá-la, bem como as doutrinas dos pais. Para os reformadores e seus sucessores, os pais e os escolásticos tinham autoridade na medida em que concordavam com a Escritura. Linguagem figurada Embora preferissem uma leitura literal das Escrituras, os reformadores estavam perfeitamente conscientes de que determinados textos eram mais bem interpretados como sendo figurados. Curiosamente, a Igreja Católica às vezes preferia seguir uma interpretação literal desses mesmos textos. Dois exemplos podem ser dados. Primeiro, os textos referentes à Ceia do Senhor. Os reformadores em geral, à exceção de Lutero, entenderam que a expressão “isto é o meu corpo” devia ser entendida não literalmente, ao contrário dos adeptos da transubstanciação. Segundo, a controvérsia entre religião e ciência que surgia já naqueles dias. A tese de Copérnico, de que a Terra se movia em torno do sol, estava ganhando grande aceitação. Curiosamente, a Igreja Católica preferiu seguir aqui uma interpretação literal dos textos bíblicos que falavam sobre o movimento do sol em torno da terra (Js 10.13; Sl 19.6; etc.). Na Contrarreforma, o cardeal jesuíta Roberto Belarmino (1615) rebateu um monge carmelita que sustentava, como Galileu, a teoria do movimento da terra. Belarmino argumentou que os pais da igreja entendiam as passagens bíblicas sobre o movimento do sol em torno da Terra no sentido literal. Para ele, isso era matéria de fé, pois quem negava esses textos era tão herético como quem negava que Jesus nasceu de uma virgem. E essa foi a posição da Igreja Católica. Em oposição a essa interpretação literalista, Calvino, mesmo seguindo o sistema astronômico prevalente na época (geocêntrico), entendia que a diferença entre os autores bíblicos e os astrônomos era que, na sua opinião, os primeiros escreveram de maneira popular, descrevendo as aparências, aquilo que pessoas de bom senso fossem capazes de compreender, sem usar aquela linguagem e descrições científicas que os astrônomos usam em suas pesquisas. Ou seja, Calvino não entendia literalmente tais passagens bíblicas, preferindo ver nelas uma acomodação do Espírito Santo ao entendimento popular. Essa teoria da acomodação de Calvino influenciou grandemente astrônomos seguidores de Copérnico, nos países protestantes, como Edward Wright e provavelmente Johannes Kepler. Erasmo de Roterdã Não podemos deixar aqui de mencionar a obra de Erasmo de Roterdã, conhecido humanista católico. Ele teve importante contribuição para a hermenêutica que se desenvolveu após a Reforma. Ele desejava alcançar o sentido simples e original do texto bíblico e torná-lo significante para as pessoas comuns de sua época. Seu alvo era simplificar o Cristianismo, exaltar a razão e enfatizar a moralidade em vez do ritualismo que prevaleceuna Idade Média. A hermenêutica de Erasmo tinha três pontos fundamentais: (1) estabelecer qual o texto original pelo trabalho de manuscritologia bíblica; (2) achar o sentido histórico, literal e original; (3) usar o sentido tropológico ou moral, ao qual ele dava importância fundamental, até mais que o sentido literal. Por causa de suas posições teológicas controversas, especialmente sua defesa do pleno livre-arbítrio do homem, Erasmo não recebeu apoio nem de calvinistas nem de luteranos, isolando-se do movimento da Reforma. Conclusão Os princípios interpretativos dos reformadores que vimos neste capítulo serviram de base para o surgimento da interpretação gramático-histórica que veio a prevalecer na igreja após a Reforma. Eles viriam a ser desenvolvidos e adotados pelo protestantismo ortodoxo em geral desde então, e se tornaram conhecidos pelo nome de método gramático-histórico de interpretação bíblica. Entretanto, o grande ímpeto hermenêutico da Reforma, que representou um retorno às Escrituras, sofreu diversas influências no período Pós-Reforma, como veremos a seguir. Podemos ver, a esta altura de nosso estudo, que Deus não permitiu que sua igreja ficasse indefinidamente privada da verdade. Podemos também ver que apesar dos desvios hermenêuticos e doutrinários que prevaleceram na Idade Média, Deus preservou uma semente, pequenos oásis aqui e acolá. E podemos ainda ver que Deus levanta homens no tempo oportuno, para guiar e abençoar o seu povo. Uma lição importante para nós é o equilíbrio hermenêutico alcançado pelos reformadores. Eles conseguiram manter juntas a resposta a duas perguntas importantes: o que a Bíblia significou no passado (exegese) e o que ela significa para nós hoje (aplicação). Essa relação entre a busca do sentido literal e a aplicação desse sentido aos nossos dias representa a união do que havia de melhor nas escolas de Alexandria e Antioquia. Capítulo 11 Escolásticos e puritanos Introdução Alguns estudiosos consideram que o período após a Reforma, também conhecido como escolasticismo protestante, foi negativo para a interpretação cristã das Escrituras e representou, em vários aspectos, um retrocesso das conquistas hermenêuticas dos reformadores. Podemos concordar que nem tudo correu bem nos arraiais protestantes nessa área, mas seria uma radicalização injustificada rejeitar in totum o trabalho dos estudiosos protestantes escolásticos. Dogmatismo e controvérsias Um dos estudiosos mais críticos dos intérpretes dessa época é o estudioso liberal Frederic Farrar. Sua obra History of Interpretation (1961) analisa e critica virulentamente toda a exegese feita pela Igreja Cristã antes do surgimento do método histórico-crítico, defendendo que a igreja havia se confundido na compreensão das Escrituras até então. O preconceito de Farrar foi corretamente corrigido por Moisés Silva, na obra Has the Church Misread the Bible? [A Igreja tem lido a Bíblia incorretamente?], 1987. Apesar disso, as ideias de Farrar têm influenciado os estudiosos da história da interpretação da Bíblia. Sua opinião negativa do período do escolasticismo protestante representa bem a de outros estudiosos, que podemos resumir em quatro pontos: 1) A academia Pós-Reforma reintroduziu o escolasticismo cristão da Idade Média, pois promoveu o confessionalismo, o sobrenaturalismo, em detrimento do aspecto humano das Escrituras, e a crença num conceito de inspiração verbal das Escrituras que ia além daquele dos reformadores. Um exemplo citado é a Formula Consensus Helvetica, elaborada em 1675, na qual se afirma que até mesmo os sinais usados para a vocalização do texto hebraico – que nem faziam parte dos manuscritos originais do Antigo Testamento – foram divinamente inspirados e por isso eram inerrantes. 2) Segundo Farrar, a exegese passou a ser controlada pela dogmática, isto é, pelo conjunto de doutrinas características dos reformadores. Com isso, o lado humano das Escrituras foi minimizado e foram impostos limites doutrinários à liberdade de investigação. 3) Além disso, já que a autoridade da hierarquia da Igreja Católica para interpretar corretamente as Escrituras havia sido rejeitada, o caos instalou- se com as muitas e diferentes interpretações e ideias entre os protestantes. 4) Para os críticos, os intérpretes da Pós-Reforma tornaram a Bíblia num “papa de papel”, ao colocá-la no lugar da interpretação infalível da igreja. Como anteriormente vimos, os reformadores rejeitaram a doutrina de que a interpretação final das Escrituras era dada pela hierarquia católica, encabeçada pelo papa, e sujeitaram-se à autoridade unicamente das Escrituras, como a melhor intérprete de si mesma. Para Farrar e outros, isso representou apenas a transferência do conceito de infalibilidade do papa para um livro, ou seja, a troca de um “papa” humano por outro de papel. Segundo alguns críticos, foi esse tipo de interpretação que veio a dominar o período subsequente e a marcar a hermenêutica reformada. Entendendo a hermenêutica da Pós-Reforma Sem negar que houve extremos e radicalizações em setores da academia Pós-Reforma, dizemos que o momento em que ela viveu não permitia caminhos muito diferentes dos que ela tomou. As controvérsias internas A tendência à sistematização do ensino bíblico e o surgimento de confissões e tratados teológicos nasceram das controvérsias doutrinárias entre os protestantes. Essas controvérsias eram inevitáveis, desde que a Reforma havia rejeitado a autoridade final da hierarquia da Igreja de Roma e introduzido o conceito do livre exame das Escrituras. Com isso, vários entendimentos diferentes apareceram, provocando o desejo de uma formulação sistemática cada vez mais detalhada. Um exemplo é a produção da já mencionada Formula Consensus Helvetica, cujo maior proponente foi Francis Turretine (1623-1687), também conhecido como Turretin ou Turretini, um teólogo italiano que ensinou em Genebra. Foi o maior oponente de ideias universalistas (que todos serão salvos) que apareceram em sua época. É geralmente considerado como o melhor representante do escolasticismo reformado do século 17. A Formula Consensus Helvetica é uma espécie de confissão de fé contra as tendências teológicas universalistas e liberais de sua época. Elaborada pelos franceses calvinistas da Suíça, ela defendia a inspiração das Escrituras e sua inerrância, a depravação total do homem, a imputação da culpa de Adão, a impossibilidade de salvação por meio da revelação natural e que a expiação de Cristo foi restrita aos eleitos. É importante lembrar que não foram eles quem “inventaram” essas doutrinas, apenas lhes deram ênfase diante do momento que atravessavam. A Contrarreforma O desejo de sistematizar em detalhes a doutrina cristã era também uma questão de sobrevivência: a Contrarreforma, movimento católico de reação aos protestantes, vinha desde o século 16 recuperando o terreno perdido, por meio dos jesuítas. Era preciso que as igrejas reformadas tivessem respostas claras e prontas para seus membros. Catecismos e tratados eram a saída mais rápida e fácil. Fazer credos em resposta a questões polêmicas já era costume da igreja antiga, que em quatro concílios ecumênicos produziu vasto material teológico confessional. Portanto, a produção confessional dos intérpretes da Pós-Reforma não representa uma inovação na igreja, mas o retorno a uma prática antiga. Necessidade de catequese Também devemos lembrar que no período da Pós-Reforma havia uma preocupação maior entre os estudiosos protestantes de harmonizar e sintetizar o ensino das Escrituras de forma racional, para que o mesmo pudesse ser mais bem compreendido e ensinado. Os catecismos foram produzidos também com esse objetivo. Em 16 de março de 1529 Martinho Lutero publicou a primeira edição do seu Enchridion, ou Catecismo Menor, com o objetivo de transmitir o evangelho de maneira clara e direta aos jovens de sua época, que viviam em estado lamentável de imoralidade e desconhecimento de Deus. Esse catecismo estava dividido em perguntas e respostas; contribuiu grandemente paralevar avante a obra de reforma religiosa, sendo largamente usado nas escolas públicas e nos lares. Preservação da doutrina reformada Outro fator a ser lembrado é o profundo desejo dos estudiosos protestantes daquela época de preservar a doutrina bíblica e rechaçar os falsos ensinos de Roma. A melhor maneira era organizar cuidadosamente a doutrina protestante, de forma sistemática, para que pudesse servir de manual doutrinal e confessional da igreja. Foi nesse contexto que apareceram as confissões protestantes mais importantes, que serviriam mais tarde para a preservação doutrinária do Protestantismo histórico. Papa de papel? Finalmente, existem profundas diferenças entre a doutrina reformada da autoridade das Escrituras e a católica da infalibilidade papal, e as consequências de ambas para a vida da igreja. A crítica de que os reformadores adotaram um “papa de papel” parece-nos na verdade dirigida à doutrina reformada da infalibilidade das Escrituras. Qualquer que seja o sistema religioso ou hermenêutico, a questão final é quem decide qual a interpretação correta. A Igreja Católica resolveu essa questão criando a ideia de uma hierarquia eclesiástica encabeçada por um papa infalível e descendente espiritual dos apóstolos de Cristo. Seitas geralmente têm seus líderes e fundadores. Para os reformados, a autoridade máxima é o Espírito de Deus falando por meio das Escrituras. Por mais subjetivo que isso possa parecer, essa abordagem tem garantido nos anos de existência da igreja reformada uma coesão de pensamento nos pontos fundamentais do Cristianismo, em meio à enorme variedade que caracteriza os protestantes. Os puritanos Em nossa história dos intérpretes da Pós-Reforma não podemos deixar de mencionar os puritanos, que viveram na parte final desse período. Além de vastíssima obra literária, elaboraram a última das grandes confissões de fé reformadas, a Confissão de Fé de Westminster. Como intérpretes das Escrituras, eles merecem atenção à parte. O apelido “puritanos” foi colocado por seus inimigos, para ironizar o ideal de pureza que defendiam. O puritanismo não era uma denominação, mas um movimento dentro da igreja da Inglaterra e das igrejas independentes, que desejava maior pureza na igreja, no Estado e na sociedade. Queriam que a Reforma, iniciada antes, fosse completa. Acusavam que a igreja inglesa havia parado entre Roma e Genebra. Estavam insatisfeitos porque ela havia se reformado apenas parcialmente, conservando ainda muitas coisas do catolicismo que consideravam como contrárias às Escrituras. Muitos puritanos eram ministros ordenados da igreja da Inglaterra e das Igrejas Presbiterianas, Batistas e congregacionais. Escreveram e produziram muito material teológico, em que encontramos claramente seu método hermenêutico. Nosso objetivo é procurar resumir as principais características do seu sistema de interpretação bíblico. Características da interpretação dos puritanos Não podemos falar em rigor que havia um método hermenêutico adotado conscientemente por todos os autores puritanos. Na verdade, existe até alguma diversidade entre eles. No geral, eles continuaram na tradição exegética dos reformadores, a qual estava estampada na literatura que os mesmos produziram e que alimentava o movimento puritano. Destaquemos alguns aspectos do modo pelo qual, no geral, eles liam e entendiam as Escrituras. Alto apreço pelas Escrituras À semelhança dos reformadores, os intérpretes puritanos tinham alto apreço pelas Escrituras, mantendo a sua divindade, autoridade e centralidade na vida da igreja e do cristão individualmente. Eis alguns exemplos do que disseram a esse respeito: As coisas que estão escritas são extratos e cópia da Bíblia que Deus tem no seu coração, e que foi escrita desde a eternidade (Thomas Goodwin). Cristo desempenhou o ofício de profeta, entre outras coisas, pelo ministério de homens santos, movidos por seu Espírito. Dessa forma, ele entregou a sua Palavra, que foi escrita para ser uma regra eterna de fé e obediência para a igreja (John Owen). Pense, a cada linha que você lê, que Deus lhe está falando (Thomas Watson). Escritura com Escritura Um dos impactos da doutrina das Escrituras em sua hermenêutica foi o de sempre entender uma passagem das Escrituras à luz de outras que tratassem do mesmo assunto. Nisso, eram seguidores dos reformadores, que adotavam o mesmo procedimento, conforme visto no capítulo anterior. Num sermão sobre a agonia de Cristo, em Lucas 22.44, Jonathan Edwards, o mais conhecido e influente dos puritanos americanos, expõe o sentido do verbo “agonizar” à luz do seu uso em diversas partes do Novo Testamento e do seu sentido na época de Cristo: A palavra “agonizar” significa propriamente um conflito intenso, como o que se percebe nas corridas e nas lutas. Portanto, em Lucas 13.24, “Esforçai- vos por entrar pela porta estreita”, a palavra traduzida como “esforçai-vos” é literalmente agonizesthe, “agonizai por entrar pela porta estreita”. Esta palavra é especialmente usada para o tipo de conflito que naqueles dias era exibido nos Jogos Olímpicos, nos quais os homens lutavam para dominar os demais nas corridas e lutas e outras modalidades. Nesse mesmo sermão, Edwards declara aos seus ouvintes: Quando você ler as Escrituras, observe como as coisas são apresentadas. Atente para o fluxo do discurso e compare uma Escritura com outra. Pois a Escritura, pela harmonia das suas diferentes partes, lança uma grande luz sobre si própria. Os puritanos apegaram-se a uma regra que veio a ser conhecida como o “princípio regulador”: todas as coisas na vida, na igreja (especialmente no culto) e no Estado devem estar debaixo da autoridade da Escritura. Ao elaborarem a Confissão de Fé de Westminster fizeram abundante uso das Escrituras para provar praticamente cada frase que escreveram. Em seu Comentário Bíblico o puritano Matthew Henry explica Êxodo 26.31, “Farás também um véu de estofo azul, e púrpura, e carmesim, e linho fino retorcido”, à luz do Novo Testamento: Esse véu servia como partição entre o Lugar Santo e o Santo dos Santos, o que impedia que alguém olhasse dentro do Santo dos Santos. O apóstolo nos diz qual o sentido deste véu, Hebreus 9.8: que a lei cerimonial não poderia aperfeiçoar os adoradores, e que sua observância não levaria pessoas ao céu. Predominância do sentido natural Em suas obras, os intérpretes puritanos fazem abundantes citações da Bíblia e, via de regra, citam-na de acordo com o sentido natural das palavras. O alvo deles era entender o sentido original do texto, extrair as doutrinas ali contidas, e aplicá-las aos seus leitores. Citemos o exemplo do conhecido puritano John Bunyan em sua obra A Salvação do Pecador de Jerusalém. Esse tratado evangelístico é baseado nas palavras de Lucas 24.47, “e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Jerusalém”. Bunyan extrai da passagem o princípio da graça e da misericórdia de Deus para com os piores pecadores, pois Jerusalém era a cidade que, desde a Antiguidade, havia rejeitado e matado os enviados de Deus, e havia acabado de rejeitar e matar o Filho de Deus. Apesar disso, Jesus determinou aos seus apóstolos que fossem prioritariamente anunciar a salvação aos pecadores de Jerusalém. Nessa abordagem, Bunyan interpreta o texto literalmente, sem alegorizar ou espiritualizar a cidade de Jerusalém, extrai a doutrina ali contida, e aplica-a aos seus dias. Em sua obra A Serious Call to a Devote Life (Um Sério Apelo a Uma Vida Devotada), William Law disse o seguinte sobre a interpretação de João 17.16, “Eles não são do mundo, como também eu não sou”: Podemos nos enganar quanto quisermos com comentários vãos e brandos sobre essas palavras; mas elas são entendidas, e devem ser entendidas, em sua simplicidade e clareza por todo aquele que as lê, no mesmo espírito que nosso Salvador as pronunciou. Entendê-las como tendo um sentido diferente e menos significativo, é deixar a sabedoria carnal repelir aquilo pelo qual seria destruída. Isso nãoquer dizer que os intérpretes puritanos não estavam atentos para alegorias e sentidos figurados na Bíblia. Eis a opinião do grande John Owen, em sua obra Christologia, acerca do livro de Cantares de Salomão: Alguns argumentam que as descrições de Cristo dadas nesse livro são alegóricas, do que nada se pode concluir. As expressões são figurativas e a estrutura do livro é alegórica. Mas as coisas significadas são reais e substanciais; e as metáforas usadas são apropriadas, de acordo com a analogia da fé, com o alvo de transmitir uma compreensão espiritual e o sentido das coisas propostas nesse livro. O que Owen está dizendo é que o sentido alegórico e figurado já fazia parte da intenção autoral, e que ler Cantares em seu sentido natural é lê-lo alegoricamente. A Bíblia é sobre Cristo Continuando a ênfase dos reformadores, os puritanos entendiam que Cristo era o tema central das Escrituras. Nos comentários que escreveram sempre procuravam mostrar como esta ou aquela passagem se relaciona com Cristo. Veja, por exemplo, o que escreveu Isaac Ambrose, um renomado intérprete puritano, acerca do tema central das Escrituras: (1) Cristo é a verdade e a substância de todos os tipos e símbolos do AT; (2) Cristo é a substância e o conteúdo do pacto da graça; (3) Cristo é o centro e o ponto de encontro de todas as promessas; (4) Todos os sacramentos do AT e NT apontam para Cristo; (5) As genealogias da Escritura apontam para Cristo; (6) As cronologias da Escritura nos mostram as épocas e tempos de Cristo; (7) As leis do AT servem como aio (pedagogo) para nos levar a Cristo; (8) Cristo, portanto, é a própria substância, centro, escopo e alma das Escrituras. De modo similar, Owen, em sua Christologia, entende que Cantares de Salomão é um livro sobre Cristo: O livro inteiro de Cantares é uma declaração mística do amor mútuo entre Cristo e a igreja… uma grande parte do livro consiste em descrições da pessoa e do amor de Cristo que têm como alvo tornar Cristo desejável à nossa alma. Necessidade de conversão e iluminação do Espírito Santo Os intérpretes puritanos insistiam na necessidade da conversão a Cristo como condição para uma salvadora compreensão das Escrituras. Em sua famosa obra, Tratado sobre os Sentimentos Religiosos, Jonathan Edwards escreveu sobre a possibilidade de alguém não convertido interpretar corretamente o sentido da Escritura: Muitas pessoas sem conhecimento espiritual podem explicar os tipos [da Bíblia]. É possível que alguém seja capaz de interpretar todos os tipos e parábolas, enigmas e alegorias da Bíblia, e não ter um único raio de luz espiritual em sua mente. Nesse contexto, a iluminação do Espírito Santo era requerida para essa salvadora compreensão da mensagem da Bíblia. À semelhança dos reformadores, os intérpretes puritanos insistiam que sem a iluminação do Espírito ninguém pode compreender e aceitar o sentido das sagradas letras. Eis o que dois famosos estudiosos puritanos escreveram sobre o assunto: Um princípio claro do Cristianismo é que oração constante e fervorosa pela assistência do Espírito é um meio indispensável para se obter o conhecimento da mente de Deus revelada na Escritura, e que sem oração, os demais meios (métodos) de nada nos valerão (John Owen). Antes e depois de ler as Escrituras, ore fervorosamente para que o Espírito que a inspirou exponha o seu sentido a você e o guie na verdade (Richard Baxter). Isso não quer dizer que os estudiosos puritanos desprezavam o uso de métodos de interpretação e o estudo das línguas originais. Bem ao contrário, a grande maioria deles era composta de homens treinados nas línguas originais, em latim, filosofia, literatura, artes e música. Outros ainda eram treinados em matemática e astronomia. Intenção autoral A regra geral dos estudiosos puritanos era esta: o sentido de uma passagem é o sentido literal, natural, óbvio e que era a intenção do autor. Também nesse ponto eram seguidores dos reformadores, que haviam reagido contra o conceito medieval de que havia vários sentidos num único texto. Para eles, cada texto tinha apenas um sentido, que era o pretendido pelo autor humano: Se você deseja descobrir o sentido correto de uma passagem difícil, preste atenção ao seu contexto, coerência e escopo (William Bridge). Para Owen “Não existe nenhum sentido numa passagem além daquele que está contido nas palavras”. Deste modo, em uma carta a um clérigo de Westmoreland, ele diz: “Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia” (Rm 9.16). Quanta controvérsia acadêmica tem havido sobre o sentido dessas palavras! Mas elas não significam um til a mais ou a menos daquilo que o apóstolo disse. Como era o caso com os intérpretes antioquianos e reformados, os puritanos entendiam que a intenção do autor humano era coincidente com a intenção do Espírito Santo ao inspirar o texto. Essa intenção, que podia ser percebida nas palavras usadas pelo autor humano, às vezes era referida como sendo do autor humano ou do próprio Espírito, como na análise de Owen em sua Christologia, do texto de Isaías 28.16, “Portanto, assim diz o SENHOR Deus: Eis que eu assentei em Sião uma pedra, pedra já provada, pedra preciosa, angular, solidamente assentada; aquele que crer não foge”: Entre as mais ousadas tentativas da presente época contra os princípios vitais da religião está a de alguns que se associam aos judeus e tentam aplicar esta promessa ao rei Ezequias. A violência que fazem dessa forma à mente do Espírito Santo [ou seja, o sentido da passagem] pode ser evidenciada por cada palavra do contexto, bem como pela interpretação e aplicação dessas últimas palavras pelos apóstolos. Desejo de aplicar as Escrituras A interpretação dos puritanos era marcada pela dimensão pastoral do ministério deles. Lembremos que quase todos os puritanos que se destacaram pelos seus escritos eram também ministros do evangelho, com preocupações pastorais e práticas. Eles sempre procuravam entender as Escrituras para em seguida tirar aplicações e “usos” práticos para seu rebanho. O sermão puritano clássico tinha uma primeira parte em que a interpretação do texto bíblico era feita e uma segunda parte, na qual se anunciavam os “usos” práticos da passagem. Havia sermões com até mais de 30 “usos” e “subusos”! John Bunyan, mais conhecido por sua obra O Peregrino, escreveu diversos outros livros voltados para a orientação da vida cristã. Vemos abaixo um exemplo, tirado de O Comportamento Cristão, de como ele procura extrair das Escrituras princípios para o modo como o homem cristão deveria tratar sua esposa crente: Tens tu uma esposa? Se ela é crente, então, deves agradecer a Deus por ela, pois “a mulher virtuosa é a coroa do seu marido” (Pv 12.4); e “o seu valor muito excede o de finas joias” (Pv 31.10). Ela foi dada por Deus para tua glória, “a mulher é glória do homem” (1Co 11.7). Deves amá-la com dupla consideração, pois, primeiro, ela é tua carne e ossos, “porque ninguém jamais odiou a própria carne” (Ef 5.29), e segundo, pois sois “herdeiros da mesma graça de vida” (1Pe 3.7). Observemos que Bunyan toma as Escrituras em seu sentido natural e óbvio, extraindo delas os princípios práticos que regem a atitude dos maridos. Owen, escrevendo sobre a doutrina da justificação pela fé, disse: Nosso alvo com a exposição dessa doutrina é orientar, instruir e apaziguar as consciências dos homens, e não uma mera curiosidade intelectual ou desejo polêmico. Eles também desejavam interpretar a vida e as experiências à luz das Escrituras. Um exemplo é o sermão do pastor puritano Thomas Prince (1727), pregado em Boston, no Salmo 18.7 “Terremoto: Obra de Deus e Sinal da sua Indignação”. Prince pregou esse sermão após um terremoto ter sacudido a região. Ele interpretou-o como sinal da ira de Deus contra seu povo e pregou sobre a necessidade de arrependimento. Alguns problemas com a interpretação puritana Os puritanos produziram abundante material teológico, firmados em princípios sólidos de interpretação bíblica cuja raiz estava na hermenêuticados reformadores. Entretanto, apesar de unânimes nos pontos que caracterizaram o puritanismo, seus maiores intérpretes divergiam por vezes entre si em questões polêmicas, o que seria de se esperar. Por exemplo, na interpretação de Romanos 11.25-26, “… e assim, todo o Israel será salvo”: • Richard Baxter: não concordava que Paulo se referia à futura conversão dos judeus. • Thomas Goodwin: achava que Paulo se referia à conversão dos ju-deus e ao reinado literal de mil anos. • William Perkins: Paulo se referia à conversão dos judeus, mas não a um milênio literal. Porém, é importante notar que essas divergências não se deviam a diferentes modelos de interpretação que usavam. Todos seguiam basicamente o mesmo padrão. Mas, outros fatores, como temperamento, experiências diferentes, ministérios e interesses diferentes. Controle da exegese pela dogmática Um problema que aparecia às vezes na interpretação de alguns puritanos era o de permitir que sua exegese fosse controlada por um aspecto teológico dominante. Em alguns casos, a interpretação do Antigo Testamento foi dominada pela ideia de que tudo que se aplicava a Israel no passado se aplica à igreja no presente, havendo uma identificação quase total da igreja com o povo de Israel no Antigo Testamento. Muitos puritanos que vieram fugidos da Europa para os Estados Unidos (na época chamada de Nova Inglaterra) viram a terra nova como Canaã, a terra prometida e a igreja ali, como Israel. Como resultado, à semelhança de Israel, promoveram dias de oração e jejum para buscar a Deus por causa das catástrofes como secas e terremotos, interpretados como sinal da ira de Deus sobre eles. Também implementaram em suas comunidades determinadas leis do Antigo Testamento, promovendo a intolerância religiosa, a morte aos heréticos e às bruxas e a observância legalista do dia de descanso. Inconsistência Outro problema era a inconsistência para com o método gramáticohistórico. Como vimos, esse método tem como princípio fundamental que o texto tem somente um sentido, que é o seu sentido natural, aquele pretendido pelo autor humano. Embora aderissem de coração a esse princípio, os intérpretes puritanos por vezes achavam sentidos num texto que certamente não eram aparentes de uma leitura natural, simples e óbvia. Um exemplo é a análise que John Bunyan faz de Efésios 4.4, “há somente um corpo”, em sua obra Exortação à Unidade e Paz. Após declarar que Paulo exorta os cristãos a manterem a unidade da igreja, como corpo de Cristo, ele diz: O apóstolo alude nessas palavras ao estado e composição do corpo natural, e portanto nos informa aqui que existe uma analogia entre o corpo de Cristo e o corpo natural do homem. No corpo natural deve haver um espírito, para que ele viva (Tg 2.26). Assim é também no corpo místico de Cristo, cujo Espírito é o Santo Espírito. O corpo tem juntas que unem todas as partes; assim, o corpo místico de Cristo (Cl 2.19). O que une o corpo de Cristo é aquele vínculo da paz, mencionado no verso 16 desse capítulo. O corpo natural recebe nutrição e conselho da cabeça; assim, o corpo místico de Cristo; ele é seu conselheiro e a igreja deve ouvi-lo. O corpo natural não pode subsistir, caso seu espírito ou seu corpo esteja quebrado ou ferido, e as juntas deslocadas. O corpo não suporta um espírito ferido ou machucado, “o espírito abatido faz secar os ossos” (Pv 17.22). Da mesma forma acontece com o corpo místico de Cristo. Não nos parece que Bunyan tenha dito qualquer coisa contrária à fé bíblica. O caso é que ele leu no texto muito mais do que o apóstolo Paulo teria querido dizer naquele momento e com aquelas palavras. Embora a analogia entre o corpo humano e o corpo místico de Cristo esteja correta, a pergunta é se Paulo tinha todos esses pontos de analogia em mente ao escrever a passagem. Por vezes, alguns dos melhores intérpretes puritanos alegorizavam demasiadamente o texto do Antigo Testamento em seu desejo de ver a Cristo e a dispensação evangélica ali. Um exemplo é a abordagem do famoso comentarista puritano John Gill ao salmo 19.1: “Os céus declaram a glória de Deus…”. Escreve Gill: Não devemos entender os céus literalmente, apesar destes, como trabalhos manuais de Deus, declararem a glória das suas perfeições, especialmente a sabedoria dele e seu poder. Essas coisas mostram que há um Deus, e que ele é um Deus glorioso. Mas, devemos entender essa passagem como se referindo a uma dessas três coisas (ou todas elas): (1) Às igrejas evangélicas, frequentemente representadas pelo reino do céu, no Novo Testamento; (2) Aos membros delas, como pessoas nascidas do alto, e cujas doutrinas são provindas dos céus. Há uma semelhança muito grande entre eles e os céus, pois ambos proclamam a glória das perfeições divinas. (3) Aos apóstolos e primeiros pregadores da palavra, como aparece em Romanos 10.18; tinham uma posição fixa no lugar mais alto na igreja. Aqui, Gill interpreta, a princípio, literalmente, mas em seguida alegoriza a passagem tendo como referência a dispensação do evangelho. A influência da interpretação dos puritanos A hermenêutica dos intérpretes puritanos é a continuação daquela dos reformadores, especialmente dos calvinistas. Ela ficou preservada na vasta literatura produzida pelos puritanos. Sua influência sobre os seguimentos conservadores da Igreja Cristã se fez sentir nas décadas subsequentes, porém logo caiu em desuso. Charles Spurgeon, o famoso pregador batista reformado, considerado como o último dos puritanos, em meados do século 19, advertia aos seus estudantes de teologia contra as alegorizações do texto bíblico que haviam se tornado prevalente em seus dias. No capítulo VII de sua obra Lectures to My Students (Lições aos meus estudantes) ele menciona vários exemplos. Determinado pregador usou o texto “Eu também sonhei, e eis que três cestos de pão alvo me estavam sobre a cabeça” (Gn 40.16) para discursar sobre a Trindade. Outro pregou em “Quando te assentares a comer com um governador, atenta bem para aquele que está diante de ti; mete uma faca à tua garganta, se és homem glutão” (Pv 23.1-2), interpretando o glutão como o novo convertido, o governador como sendo o pregador legalista, e o meter a faca na garganta como o prejuízo que a pregação legalista causa aos novos crentes. William Huntingdon, por sua vez, havia pregado em Isaías 11.8, “A criança de peito brincará sobre a toca da áspide, e o já desmamado meterá a mão na cova do basilisco”, interpretando a criança de peito como o novo convertido, a áspide como os arminianos, a toca da áspide como a boca dos arminianos. Em sua própria pregação Spurgeon era um seguidor da hermenêutica dos intérpretes puritanos, mas era praticamente o último. Já em seus dias havia surgido uma nova abordagem às Escrituras que haveria de mudar profundamente a história da interpretação da Bíblia, que foi o método histórico-crítico. A influência da hermenêutica dos puritanos se percebe também na Confissão de Fé de Westminster. Essa Confissão tornou-se a expressão de fé não somente das igrejas reformadas da Escócia, mas das principais Igrejas Presbiterianas no mundo. Nela percebemos com clareza traços da sua hermenêutica. Os puritanos começaram a Confissão com um capítulo sobre as Escrituras, o que já demonstra que para eles a Bíblia era a autoridade final e máxima sobre todas as questões da vida. Nesse capítulo vemos refletidas algumas das características da doutrina puritana das Escrituras e do método pelo qual elas devem ser interpretadas, como por exemplo, a inspiração, veracidade e autoridade das Escrituras (I, 1), a necessidade da iluminação do Espírito para a compreensão salvadora da Bíblia (I, 6), a Escritura é a sua melhor intérprete (interpretar Escritura com Escritura) (I, 7 e 9) e o texto só tem um sentido, que é o pretendido pelo autor humano (I, 9). Conclusão A interpretação Pós-Reforma representa, em muitos sentidos, a maturação dos princípios hermenêuticos desenvolvidos na Reforma. Os escolásticos e puritanos tinham pressupostos teológicos quanto às Escrituras que eramos mesmos pressupostos dos reformadores, especialmente João Calvino. Para Calvino, o conhecimento de Deus nos chega por intermédio das Escrituras, pela iluminação do Espírito, e esse conhecimento é seguro e certo. Esse fundamento teológico claramente influenciou a hermenêutica escolástica e puritana. Podemos nos indagar o que a experiência hermenêutica Pós-Reforma nos ensina. Algumas lições podem ser tiradas. Uma delas é a forte ênfase na pureza da igreja de acordo com as Escrituras somente. Também em nossos dias existem muitas práticas religiosas que são impostas ao povo por líderes e igrejas que se arrogam como porta-vozes de Deus. Aprendemos com os escolásticos e puritanos que não podemos sujeitar nossa consciência a não ser ao ensino claro das Escrituras em matéria de fé e prática. E esse ensino pode ser alcançado por meio do modelo de interpretação iniciado pelos reformadores e desenvolvido por eles, buscando o sentido único do texto, que é o pretendido por seu autor. Aprendemos também que, mais que nunca, a Igreja Evangélica deve retornar à doutrina fundamental da Reforma, Sola Scriptura (somente a Escritura). Somente isso evitaria a proliferação de líderes carismáticos arrogando-se em canais inspirados de revelação divina. Outra lição prática é que a iluminação do Espírito na leitura e interpretação das Escrituras não garante a mesma compreensão a todos os cristãos quanto a matérias secundárias à fé, como a História tem demonstrado. Isso nos deve levar a duas coisas: entender e nos apegar ao que realmente é fundamental no Cristianismo e ser tolerante quanto à interpretação de pontos secundários. Capítulo 12 A interpretação das Escrituras na modernidade Introdução O Iluminismo, movimento surgido no início do século 18, foi em vários aspectos uma revolta contra o poder da religião institucionalizada e contra a religião em geral. As pressuposições filosóficas do movimento foram moldadas, em primeiro lugar, pelo racionalismo de Descartes, Spinoza e Leibniz, e pelo empirismo de Locke, Berkeley e Hume. Mesmo sendo teoricamente contrárias entre si, as duas filosofias concordavam que Deus tem de ficar de fora do conhecimento humano. Os efeitos combinados de ambas produziu profundo impacto na hermenêutica bíblica. Alguns dos filósofos mencionados acima não eram ateus. Berkeley, por exemplo, atribuía às leis da natureza a vontade livre de Deus e afirmava que não há absolutamente nenhuma existência afora Deus. Entretanto, a sua visão mecanicista do mundo, se bem que adaptada à concepção de Deus como criador, acabou no empirismo racional que se tornou o método da ciência moderna, no qual não há espaço para o Deus que intervém. Descartes, por sua vez, cria que o homem tinha sido feito à imagem de Deus e atribuía ao Criador soberania e liberdade na criação das leis naturais. Porém, ao entender que Deus havia dado a razão ao homem como instrumento pelo qual reconhecer como racional e possível o que há na natureza, terminou contribuindo para a elaboração de um método dedutivo de investigação que afastou Deus para fora do conhecimento humano. Da mesma maneira, os teólogos que adotaram as perspectivas filosóficas da época não eram necessariamente agnósticos. Porém, a tentativa de combinar o racionalismo com as verdades da fé cristã acabou num sistema teológico chamado deísmo. Esse termo foi aplicado ao pensamento dos livre pensadores dos séculos 17 e 18 que procuraram compatibilizar a crença em Deus e os conceitos do Iluminismo. O deísmo afirma a existência de Deus, mas nega sua intervenção na História humana, quer por meio de revelação, quer por meio de milagres ou da providência. Uma nova escola de pensamento teológico surgiu como resultado do pensamento humanista, do racionalismo inerente na teologia inglesa, das ideias mais abertas dos arminianos holandeses, e da luta dos latitudinários ingleses contra a ortodoxia da Igreja Estatal inglesa. É claro, não foram todas as universidades, seminários e igrejas da Europa que adotaram esta nova escola de teologia. Houve reações e inclusive divisões, como na Igreja Luterana na Alemanha, com o surgimento do liberalismo teológico, nome que foi dado a esta nova hermenêutica ou metodologia. Mas ao final de algumas décadas, a nova escola dominava os estudos acadêmicos da Bíblia. Impacto do Iluminismo na interpretação da Bíblia Podemos destacar diversos importantes resultados da influência do Iluminismo sobre a interpretação bíblica. O principal, sem dúvida, foi a negação da intervenção divina, quer na História, quer nos registros bíblicos. A História passou a ser vista como simplesmente uma relação natural de causas e efeitos. O conceito de que Deus se revela ao homem e de que intervém e atua sobrenaturalmente na História humana foi excluído a priori. As consequências deste conceito para a hermenêutica foram de tremenda importância. Rejeição dos relatos miraculosos Os relatos bíblicos envolvendo a atuação miraculosa de Deus na História, como a criação do mundo, os milagres de Moisés e os milagres de Jesus, passaram a ser desacreditados e frequentemente explicados como fenômenos naturais. Já que milagres não existem, segue-se que esses relatos são fabricações do povo de Israel e depois da igreja, que atribuiu a Jesus atos sobrenaturais que nunca aconteceram historicamente. Em sua obra Das Leben Jesu [A vida de Jesus], o racionalista Heinrich Paulus rechaça a importância dos milagres de Cristo, argumentando: A coisa verdadeiramente miraculosa a respeito de Jesus é ele mesmo, a pureza e santidade serena de seu caráter, o qual é genuinamente humano e adaptado para ser imitado e emulado pela humanidade. Tratando das ressurreições registradas nos evangelhos, ele diz que se trata de “libertação de enterros prematuros”. Ele explica a existência desses casos do seguinte modo: O apego judaico por milagres fazia com que tudo fosse atribuído imediatamente a Deus, esquecendo-se as causas secundárias; consequentemente, não se pensava em como evitar esses casos horríveis de enterros prematuros. Distinção entre fé e História Os milagres registrados na Bíblia passaram a ser vistos como criação da fé dos israelitas e da igreja primitiva e não como fatos históricos. Os críticos não pouparam inclusive a ressurreição de Jesus, pilar central da fé cristã. Bruno Bauer, o polêmico teólogo liberal alemão, reduziu a ressurreição de Cristo à fé dos discípulos: É somente dessa forma indireta que sua Pessoa – que ele livremente ofereceu na causa de sua vocação histórica e pelos ideais pelos quais viveu – continuou a viver, à medida que seus ideais foram aceitos. Quando, na crença de seus seguidores, ele reviveu e continuou a viver na comunidade cristã, era o Filho de Deus que havia conquistado e vencido a grande antítese. Ainda de acordo com Bauer, os milagres de Jesus foram inventados pelos seus discípulos após a morte dele, quando passaram a crer que ele era o Messias: Jesus tinha que realizar esses milagres, esses milagres espantosos, pois de acordo com o que os evangelhos apresentam, ele é o Messias. Portanto, ele precisa realizá-los para provar que é o Messias… Mas ele só começou a fazer milagres quando, na fé da igreja primitiva, ele ressurgiu dos mortos como Messias. Os fatos que ele ressurgiu dos mortos como Messias e que fez milagres são um único e mesmo fato. Num panfleto intitulado O Alvo de Jesus e seus Discípulos (1778), Herman Reimarus, estudioso alemão, crítico radical e polêmico, defende que os apóstolos haviam criado suas próprias ideias: “Estaremos justificados em traçar uma absoluta distinção entre o ensino dos apóstolos e o ensino que o próprio Jesus proclamou e ensinou em sua vida”. David Strauss, influenciado pela obra de Reimarus, declara em sua obra Vida de Jesus: A declaração explícita que os Sinóticos atribuem a Jesus descrevendo a sua morte como um sacrifício propiciatório, pode muito bem pertencer àquele sistema de pensamento que se desenvolveu após a morte de Jesus. E o dito que o Quarto Evangelho coloca em sua boca sobre a relaçãoentre sua morte e a vinda do Parácleto parece ser uma profecia após o evento ter acontecido. Erros nas Escrituras A reação contra o dogmatismo que, segundo os racionalistas, havia prevalecido no período do escolasticismo da Pós-Reforma, se fez sentir especialmente na área da interpretação das Escrituras. Estudiosos racionalistas começaram a insistir que o “dogma” da inspiração divina da Bíblia deveria ser deixado fora da exegese, para que a mesma pudesse ser feita de forma “neutra”. Eram contra qualquer dogma em geral como pressuposto de leitura da Bíblia, pois entendiam que todas as convicções de caráter teológico tendem a viciar os resultados da pesquisa bíblica. Eram especialmente contrários à doutrina da inspiração pois a mesma impedia que a Bíblia recebesse tratamento crítico, como um livro humano. Para se interpretar corretamente a Bíblia, seria necessária uma abordagem “não religiosa”, desprovida de conceitos do tipo “Deus se revela”, ou “a Bíblia é a revelação infalível de Deus” ou ainda “a Bíblia não pode errar”. Gradativamente, o conceito que a Bíblia é a infalível Palavra de Deus foi sendo abandonado. Os próprios críticos “cristãos” começaram a vê-la como um livro cheio de erros e contradições. Em um dos Wolfenbüttel Fragment, Reimarus afirma: Nenhum milagre pode provar que dois mais dois fazem cinco, ou que um círculo tem quatro cantos. E milagres, por mais numerosos que sejam, poderão remover a contradição que jaz na superfície e registros do Cristianismo. Johann Semler, alemão, teólogo luterano da Universidade de Hale, fez a separação entre palavra de Deus e Escritura Sagrada. A palavra de Deus está contida nas Escrituras, mas isto não significa que cada livro canônico das Escrituras é a palavra de Deus. A Escritura Sagrada foi o registro escrito, por homens falíveis, da palavra de Deus falada por estes homens. Era falível e sujeita a erros. Com isso ele rejeitou o conceito da inspiração e infalibilidade da Bíblia. A mesma deveria ser entendida somente como testemunha de uma época histórica específica – sem relevância para hoje. Karl Hase, teólogo alemão do início do século 19, declara em sua Leben Jesu: Os três primeiros evangelhos são compilações de várias narrativas que surgiram independentemente. Suas narrativas são estruturas compostas e a apresentação delas da História é de tal forma que ninguém pode ter uma ideia de como ajuntar os eventos. David Strauss, em um artigo sobre os evangelhos sinóticos, declara: Podemos ver que os ditos de Jesus não foram dissolvidos pelo dilúvio da tradição oral, mas foram levados pela torrente de suas posições originais e, como pedregulhos rolados pelas águas, depositados em lugares [no relato dos evangelhos] aos quais não pertencem propriamente. Intérpretes protestantes que adotaram a abordagem crítica consideravam- na como “neutra”, e justificavam-se afirmando que a Igreja Cristã, pelos seus dogmas e decretos, havia obscurecido a verdadeira mensagem das Escrituras. No caso dos evangelhos, os dogmas dos grandes concílios ecumênicos acerca da divindade de Jesus haviam obscurecido a sua figura humana, e tornaram impossível, durante muito tempo, uma reconstrução histórica da sua vida. Essa impossibilidade, insistiam eles, tornou-se ainda maior após a Reforma, quando a exegese dos evangelhos e da Bíblia passou a ser controlada pelas confissões de fé e pela teologia sistemática. Exegese controlada pela razão Outro efeito da predominância do racionalismo na hermenêutica foi o estabelecimento da razão como medida da verdade em questões teológicas. Os intérpretes críticos argumentaram que para se chegar aos fatos por detrás do surgimento da religião de Israel e do Cristianismo seria necessário reconstruir os fatos daquela época, que estavam por detrás do texto bíblico, mediante métodos racionais. O principal critério a ser empregado nessa empreitada seria a razão, que os racionalistas entendiam como sendo a medida suprema da verdade. Por exemplo, Franz Reinhard, estudioso alemão desta época, numa obra que versava sobre os planos de Jesus para a humanidade, assim se referiu aos milagres bíblicos: Tudo o que chamamos de miraculoso e sobrenatural é para ser entendido somente de forma relativa, e não é nada mais que uma exceção óbvia ao que pode ser produzido por causas naturais. Um pensador cauteloso não deveria se aventurar a pronunciar que um evento é tão milagroso que Deus não poderia tê-lo produzido mediante causas naturais. Alguns intérpretes que ainda criam que a Bíblia era a Palavra de Deus, mas que estavam influenciados pelo espírito da época, tentaram defender a presença do sobrenatural nas Escrituras. Estes deístas tentavam sustentar ao mesmo tempo sua fé em Deus e nas Escrituras e um compromisso com o racionalismo. É o caso de Karl Hase. Sua tentativa de manter as duas coisas acaba destruindo o valor histórico e teológico dos milagres, como podemos ver abaixo no seu pensamento sobre a ressurreição de Jesus. Para ele, tanto faz se Jesus ressuscitou dos mortos ou simplesmente reviveu – ambos os casos são compatíveis com a fé cristã: Ambas as perspectivas históricas possíveis – que o Criador deu uma nova vida a um corpo que estava realmente morto, ou que a vida latente em um corpo que estava aparentemente morto reacendeu-se – reconhecem a ressurreição como uma prova manifesta da Providência por causa de Jesus, e ambas devem ser reconhecidas como cristãs. O critério para a determinação da veracidade dos milagres passou a ser a ciência racionalista que começava a predominar nas academias e universidades. Ernest Renan, o cético francês, em sua obra polêmica La Vie de Jesus, que lhe custou o emprego como professor de línguas semíticas no College de France, afirmou: Nenhum dos milagres, dos quais as antigas histórias estão repletas, aconteceu sob condições científicas. A observação, que nunca foi contradita sequer uma vez, nos ensina que milagres nunca acontecem, a não ser em épocas e lugares nos quais as pessoas acreditam neles. Nenhum milagre jamais ocorreu diante de um homem capaz de testar seu caráter miraculoso. As pessoas comuns e os leigos não estão preparados para fazer isto. Requer grande precaução e longos hábitos de pesquisa científica. Mito O conceito de “mito” começa a ser aplicado aos relatos miraculosos do Antigo e Novo Testamentos. Mito era a maneira pela qual a raça humana, em tempos primitivos, articulava aquilo que não conseguia compreender. Segundo os intérpretes críticos, as fontes que os autores bíblicos usaram estavam revestidas de mitos. Surge o termo “alta crítica” para se referir a essa tarefa de “criticar” o relato bíblico e “limpá-lo” dos acréscimos mitológicos. Outros estudiosos preferiram usar o termo “saga” para se referir às lendas criadas por Israel sobre suas origens e pela Igreja apostólica sobre Jesus. Um dos pioneiros em explicar os evangelhos consistentemente como sendo mitológicos foi David Strauss. Para ele, nenhum evangelho foi escrito por uma testemunha ocular. Portanto, são misturas de História e mito: Apesar de que a vida terrena do Senhor cai dentro dos tempos históricos, se assumirmos que somente uma geração passou entre sua morte e a composição dos evangelhos, tal período teria sido suficiente para permitir que o material histórico se misturasse com mitos. Tão logo um grande homem morre as lendas se ocupam da sua vida. Ernest Renan, o crítico francês, declarou: “Que os evangelhos são em parte legendários é evidente, visto que estão cheios de milagres e do sobrenatural”. Separação dos dois Testamentos Houve ainda uma reação dos estudiosos críticos contra a interpretação do Antigo Testamento feita do ponto de vista do Novo, que era a interpretação cristológica defendida e desenvolvida pelos reformadores. Argumentavam que não se podia usar o Cristianismo como pressuposto para entendimento dos escritos do Antigo Testamento, o qual deveria ser lido como um livro judaico. Os críticos insistiam na separação dos Testamentos para que o Antigo pudesse ser lido sem a interferência do Novoe para que o Novo fosse lido sem a interferência das doutrinas e dogmas da igreja. Disseram que só assim poderiam fazer justiça aos autores bíblicos. A influência da dialética de Hegel A filosofia hegeliana marcou o final desse período. Esse “método” (assim considerado por Hegel) oferecia uma visão da História sem Deus, explicando os acontecimentos, não em termos da intervenção divina, mas em termos de um movimento conjunto do pensamento, fazendo sínteses entre os movimentos contraditórios (tese e antítese). Hegel afirmava que o processo dialético contínuo leva ao conhecimento absoluto. Um importante teólogo alemão, Ferdinand Baur, usando a dialética de Hegel, tentou explicar a história da igreja primitiva como sendo o embate entre o Cristianismo de Pedro (legalista) e o de Paulo (mais aberto). A síntese desses movimentos opostos foi o surgimento da Igreja Católica incipiente no século 2º. Principais metodologias críticas Debaixo da influência do racionalismo, a tarefa da hermenêutica passou a ser considerada como metodológica, ou seja, competia à hermenêutica elaborar um método por meio do qual se pudesse, de maneira isenta de pressupostos, e tendo a razão e a ciência moderna como ferramentas, alcançar o sentido verdadeiro de um texto. Esse método ficou conhecido como histórico-crítico. Podemos considerar que o método histórico-crítico nasceu no final do século 17, debaixo da influência do Iluminismo e do deísmo, desenvolveu-se durante os séculos 18 e 19, tendo seu fim, historicamente, no século 20. Apesar de seu falecimento já ter sido decretado desde a década de 1970, uma boa parte dos supostos resultados “infalíveis” desse método continua ainda hoje a influenciar os estudos acadêmicos da Bíblia, como fatos provados, em vez do que são na realidade: meras hipóteses. Alguns diferentes métodos de interpretação foram desenvolvidos durante esse período. Eles divergiam entre si quanto ao propósito e metodologia, porém tinham como pressupostos comuns as características da hermenêutica racionalista. São eles a crítica das fontes, da forma, da redação, literária, histórica, da tradição, etc. Nem sempre a nomenclatura reflete unanimidade entre os estudiosos. Crítica das fontes Negando a integridade e a autoria tradicional dos livros bíblicos, a crítica das fontes tem como objetivo identificar e isolar as supostas fontes escritas que foram usadas pelos arquivistas, colecionadores ou editores para compor o texto bíblico como o temos hoje, e estudar a “teologia” dessas fontes. A forma mais popular é a “Hipótese documentária” de Graff-Wellhausen que defende a existência de quatro fontes documentárias por detrás da composição do Pentateuco. De acordo com esta hipótese, essas supostas fontes foram produzidas em diferentes períodos e por diferentes autores, que foram o Javista (J), o Eloísta (E), o Deuteronomista (D) e o Sacerdotal (P). J P O Senhor planeja o Dilúvio. Viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração; então, se arrependeu o SENHOR de ter feito o homem na terra, e isso lhe pesou no coração. Disse o SENHOR: Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito. Porém Noé achou graça diante do SENHOR (Gn 6.5-8). O Senhor planeja o Dilúvio. A terra estava corrompida à vista de Deus e cheia de violência. Viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque todo ser vivente havia corrompido o seu caminho na terra. Então, disse Deus a Noé: Resolvi dar cabo de toda carne, porque a terra está cheia da violência dos homens; eis que os farei perecer juntamente com a terra. Faze uma arca de tábuas de cipreste; nela farás compartimentos e a calafetarás com betume por dentro e por fora. Deste modo a farás: de trezentos côvados será o comprimento; de cinquenta, a largura; e a altura, de trinta. Farás ao seu redor uma abertura de um côvado de altura; a porta da arca colocarás lateralmente; farás pavimentos na arca: um em baixo, um segundo e um terceiro (Gn 6.11-16). A situação especial de Noé. Disse o SENHOR a Noé: Entra na arca, tu e toda a tua casa, porque reconheço que tens sido justo diante de mim no meio desta geração (Gn 7.1). A situação especial de Noé. Porque estou para derramar águas em dilúvio sobre a terra para consumir toda carne em que há fôlego de vida debaixo dos céus; tudo o que há na terra perecerá. Contigo, porém, estabelecerei a minha aliança; entrarás na arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos (Gn 6.17-18). Animais em pares e sete pares. De todo animal limpo levarás contigo sete pares: o macho e sua fêmea; mas dos animais imundos, um par: o macho e sua fêmea. Também das aves dos céus, sete pares: macho e fêmea; para se conservar a semente sobre a face da terra. Porque, daqui a sete dias, farei chover sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites; e da superfície da terra exterminarei todos os seres que fiz. E tudo fez Noé, segundo o SENHOR lhe ordenara (Gn 7.2-5). Animais em pares. De tudo o que vive, de toda carne, dois de cada espécie, macho e fêmea, farás entrar na arca, para os conservares vivos contigo. Das aves segundo as suas espécies, do gado segundo as suas espécies, de todo réptil da terra segundo as suas espécies, dois de cada espécie virão a ti, para os conservares em vida. Leva contigo de tudo o que se come, ajunta-o contigo; ser-te -á para alimento, a ti e a eles. Assim fez Noé, consoante a tudo o que Deus lhe ordenara (Gn 6.19-22). Início do Dilúvio. E aconteceu que, depois de sete dias, vieram sobre a terra as águas do dilúvio (Gn 7.10). Início do Dilúvio. No ano seiscentos da vida de Noé, aos dezessete dias do segundo mês, nesse dia romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as comportas dos céus se abriram (Gn 7.11). Duração do Dilúvio. E houve copiosa chuva sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites (Gn 7.12). Duração do Dilúvio. E as águas durante cento e cinquenta dias predominaram sobre a terra (Gn 7.24). Fim do Dilúvio. Ao cabo de quarenta dias, abriu Noé a janela que fizera na arca e soltou um corvo, o qual, tendo saído, ia e voltava, até que se secaram as águas de sobre a terra. Depois, soltou uma pomba para ver se as águas teriam já minguado da superfície da terra; mas a pomba, não achando onde pousar o pé, tornou a ele para a arca; porque as águas cobriam ainda a terra. Noé, estendendo a mão, tomou-a e a recolheu consigo na arca. Esperou ainda outros Fim do Dilúvio. Sucedeu que, no primeiro dia do primeiro mês, do ano seiscentos e um, as águas se secaram de sobre a terra. Então, Noé removeu a cobertura da arca e olhou, e eis que o solo estava enxuto. E, aos vinte e sete dias do segundo mês, a terra estava seca. Então, disse Deus a Noé: Sai da arca, e, contigo, tua mulher, e teus filhos, e as mulheres de teus filhos (Gn 8.13-16). sete dias e de novo soltou a pomba fora da arca. À tarde, ela voltou a ele; trazia no bico uma folha nova de oliveira; assim entendeu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra. Então, esperou ainda mais sete dias e soltou a pomba; ela, porém, já não tornou a ele (Gn 8.6-12). A promessa de Deus de não mais amaldiçoar a terra. Levantou Noé um altar ao SENHOR e, tomando de animais limpos e de aves limpas, ofereceu holocaustos sobre o altar. E o SENHOR aspirou o suave cheiro e disse consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade; nem tornarei a ferir todo vivente, como fiz. Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite (Gn 8.20-22). A promessa de Deus: a aliança do arcoíris. Disse também Deus a Noé e a seus filhos: Eis que estabeleço a minha aliança convosco, e com a vossa descendência, e com todos os seres viventes que estão convosco: tanto as aves, os animais domésticos e os animais selváticos que saíram da arca como todos os animais da terra.