Prévia do material em texto
CERÂMICA NTRODUÇÃO Prezado aluno, O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 1 NO PRINCÍPIO ERA A CERÂMICA: A VOLTA ÀS ORIGENS Nossos ancestrais pré-históricos “Há milênios, sob todas as suas formas – barro esmaltado ou não, faiança, porcelana – a cerâ- mica está presente em todos os lares, humildes ou aristocráticos. Tanto que os antigos egípcios diziam “meu pote” para dizer “meu bem”, e nós mesmos, quando falamos em reparar danos de qualquer espécie, ainda dizemos ‘pagar os vasos quebrados’ [payer les pots cusses].” Claude Lévi-Strauss No início era o barro – e não somente o verbo ou o Caos.1 Num tempo em que os seres humanos estavam mais próximos da natu- reza, ela era venerada e temida como uma divindade poderosa e respeitada como sendo algo sagrado e misterioso. Um dos modosde refletir sobre a história das civilizações ancestrais é através da cerâmica. Por ser um dos poucos materiais que sobreviveram ao tempo,2 os arqueólogos puderam ter subsídios consideráveis para identificar e explicar o modus vivendi dos nossos antepassados. A cerâmica era feita com finalidades objetivas e simples, sendo de uso cotidiano (recipientes usados para alimentar o corpo) ou ritualístico (recipientes usados para alimentar a alma). Lévi-Strauss, no livro A oleira ciumenta, relata diversos rituais de preparo da cerâmica, um deles chamado “ligadura dos potes” da aldeia de Awaxawi, era feito para obter-se chuva e consistia em preparar ritualisticamente dois potes decorados representando o homem e a mulher. Ambos per- maneciam boa parte do ano enterrados e quando retirados deveriam ser protegidos do sol e levados para uma cabana revestida de terra para que o ritual pudesse acontecer (Lévi-Strauss, 1985, p.43). Em muitos dos artefatos arqueológicos encontrados em várias partes do mundo podemos observar um fio condutor, uma busca pela beleza e perfeição.3 Na sua maioria eram artefatos adornados com diversos tipos de representações gráficas que ilustravam o co- tidiano real ou mitológico das pessoas daquela localidade e período (animais, caça, plantio, colheita, datas comemorativas etc.), assim como, também, grafismos abstratos e hieróglifos. No caso de urnas funerárias, não é raro encontrarmos nesses recipientes4 cerâmicos uma alusão direta ao corpo humano. As urnas eram bojudas na par- te inferior; e na parte superior, próxima à abertura, tinham feições estilizadas de um rosto. Lembravam cabeças e ventres maternos, pois essas urnas simbolizavam um “retorno ao útero materno”, à barriga da Mãe Terra, a Grande Deusa, e faziam parte dos rituais de sepultamento dos nossos antepassados. De acordo com Adele Getty (1997, p.8), há na região de Le Roc5 lajes de pedra com rele- vos de figuras femininas apoiadas na terra. Estas imagens poderiam indicar o culto à Mãe Terra, pois é possível acreditar que as grutas fossem relacionadas simbolicamente a um útero ou mesmo tumbas da humanidade, logo, eram considerados locais sagrados. Neste mesmo ponto, a autora ainda afirma que a experiência de adentrar numa gruta, seria equivalente a sentir múltiplas emoções simul- taneamente, como certo receio devido ao fato de compararmos o silêncio e a escuridão com nossa ancestralidade e com a sensação imemorial de estarmos dentro de outro corpo. Existe uma curiosidade acerca do manuseio e feitio da cerâmica em toda a América: o fato de ser esta uma atividade especialmente fei- ta por mulheres. Segundo Lévi-Strauss somente em algumas poucas comunidades tribais, a cerâmica era feita por homens. Ao descrever um mito dos Hidatsa, índios do alto do Missouri, de língua soiux, o autor mostra como o ato de fazer a cerâmica era uma ocupação sa- grada, misteriosa e ligada ao universo feminino. Apenas as mulheres que haviam herdado o direito de poder praticá-la através de outras mulheres, suas próprias ancestrais, até que se chegasse à ancestra- lidade mais longínqua que teria recebido das Serpentes esse direito, já que o mito dizia que unicamente as Serpentes podiam fazer cerâ- mica. Além disso, havia uma série de restrições durante a feitura da cerâmica: ninguém poderia se aproximar da ceramista enquanto ela celebrava os cânticos religiosos e nem tão pouco ter acesso a sua casa. Conhecida também como Mãe Terra, Avó da argila, Senhora da argila e dos potes de barro, a padroeira da cerâmica era consi- derada uma benfeitora já que a humanidade lhe devia não apenas a matéria-prima, mas as técnicas e a arte de decorar potes. Alguns mitos considerados por Lévis-Strauss, em contrapartida revelavam uma faceta temperamental ciumenta e rabugenta (Lévi-Strauss, 1985, p.40). A cerâmica era, portanto, uma atividade quase que restrita às mulheres, na maioria das vezes de caráter sagrado e envolta em uma série de especificidades, cuidados e proibições. Paralelo a tudo isso havia sempre inúmeros mitos que remetiam às expli- cações sobre a origem e a função da argila entre os humanos. Para ilustrar esse fato, Lévi-Strauss nos mostra uma das diversas origens mitológicas da argila na terra e a sua clara ligação com as mulheres através de um mito Jivaro.6 Para esse povo, a palavra nui significa argila e, no mito da origem da cerâmica, que ocorre junto ao mito da criação do mundo “[...] a abóboda celeste é uma grande tigela azul de cerâmica. Foi com barro que o Criador fez Nantu, a Lua, que irá se casar com Sol, e é com argila que ela modela um filho, em seguida destruído pelo Engolevento.” Esse filho recebe o nome de Nuhi (cf. nui, “argila”) e após sua morte, seu corpo transformou-se na terra em que hoje vivemos. O autor continua a descrição deste mesmo mito, afirmando que Sol e Lua tiveram como descendentes o Preguiça, o Boto, o Caititu e a Mandioca, uma filha e depois disso ficaram estéreis. A mãe de ambos lhes entregou dois ovos: um se perdeu e do outro nasceu Mika, uma menina. Mais tarde Mika se casaria com Unushi, seu irmão Preguiça. Mika além de ser a padroeira da cerâmica, é também o nome ritualístico dos grandes vasos cerâmicos em que se coloca a chicha7 a ser consumida nas cerimônias. 1 Le Roc é uma comuna francesa na região administrativa de Midi-Pyrénées, no departamento de Lot. 8. “Caso raro, mas não único na América do Sul, entre os Urubu, Tupi do Maranhão, a cerâmica é uma tarefa masculina. [...] Sem pretender remontar às origens, o fato é que, na América, o mais frequente é a cerâmica ser uma tarefa feminina.” (Lévi-Strauss, 1985, p.38). 2 Os Jivaro são uma tribo localizada na fronteira entre o Equador e o Peru, nas encostas orientais dos Andes e em seu sopé. São conhecidos pela antiga arte de “encolher cabeças”, arte atualmente não mais praticada (Lévi-Strauss, 1985, p.23). 3 Chicha. S.f.1. bebida alcoólica, geralmente feita com mandioca, mel e água, mas também com milho ou frutas fermentados.[...] ‘espécie de cerveja da América do Sul e da América Centralfeita principalmente de milho fermen- tado’, em muitos países da América Latina; no México, ‘aguardente de cana’, prov. de chichah (co-pah) [...] (Cf. Houaiss, 2001. p.699). Lévi-Strauss cita que o antropólogo Karsten destacou a proximidade fonética das palavras mulher “nua” e cerâmica “nui”. “Já apontei alhures” – diz ele – “para a interessante conexão entre a mulher, de quem a cerâmica é uma das atribuições, e a terra ou argila que ela utiliza. No pensamento dos índios, o vaso de argila é uma mulher.” O autor ainda ressalta que é tarefa da mulher fabricar e utilizar os recipientes cerâmicos, “[...] pois a argila de que são feitos é fêmea, como a terra – em outras palavras, tem alma de mulher.” (Lévi-Strauss, 1985, p.32 e 33) Para o povo Jivaro e para muitas outras sociedades tribais, a rela- ção entre a matéria argilosa e a mulher era evidente e facilmente ex- plicada através dos mitos. Entre as possíveis explicações para enten- dermos essa relação mítica entre a mulher e a cerâmica, uma delas seria o fato de ambas passarem por transformações: a mulher todos os meses transforma-se ao menstruar e, principalmente, ao engravi- dar; a cerâmica tem sua matéria transformada através do fogo e, de maleável e moldável, torna-se rígida e resistente até mesmo ao pró- prio fogo. Assim como no ventre das mulheres há uma espécie de recipiente gerador e mantenedor de vidas, os recipientes cerâmicos são usados para manter e preparar os alimentos. Ambas as formas são essencialmente semelhantes por serem convexas ou côncavas: os recipientes cerâmicos eram essencialmente feitos em formato de receptáculo, assim como o órgão reprodutor feminino. Ao redor da mitologia sobre a origem da cerâmica, também existiam rigorosos métodos de colheita e preparo do barro pelas mulheres. “Em todas as informações relativas à arte da cerâmica na América do Sul, fica evidente que ela é objeto de cuidados, preceitos e proibições múlti- plas.” Lévis-Strauss continua dizendo que os Yucararé, uma tribo que vive a beira sul dos Andes, também rodeavam as práticas da cerâmica com uma série de precauções rigorosas. “As mulheres, que são as únicas a praticar essa arte, iam solenemente buscar a argila durante o período do ano que não era dedicado às colheitas.” Elas es- condiam-se num lugar afastado para construir seu abrigo e celebrar seus ritos, um lugar em que ninguém as visse e que as protegesse dos trovões, pois elas acreditavam piamente que qualquer ruído pudes- se rachar os potes durante a queima (Lévi-Strauss, 1985, p.34 e 35) Desta forma as mulheres, apesar de serem as únicas a manipular a argila, eram submetidas à ela, simultaneamente. Mitos do povo Tacana, na Bolívia, ao sopé do Andes, reafirmam esse fato ao contar “que a avó da argila ensinou as mulheres a modelar vasos de terra, co- zê-los e torná-los resistentes.” O mito continua descrevendo como a divindade era exigente, pois “insistia para que as mulheres lhe fizes-sem companhia, convidava-as para vir à sua casa, e, para prendê-las junto a si provocava o deslizamento da terra que cobria os leitos de argila, enterrando-as.” Na Colômbia, “os Tainimuka ou Ofaina acreditam que a Terra Namatu, a mulher primordial, instituiu a arte da cerâmica. Ela é a senhora dos potes, que não podem ser fa- bricados sem sua permissão.” Para o feitio de determinadas panelas de barro (as de fazer beiju) existe uma série de precauções: o prepa- ro é feito em um local especifico da aldeia; as mulheres menstruadas e grávidas são proibidas de se aproximarem da argila, por serem “quentes demais”; as crianças são afastadas da queima se ela ocor- rer de dia; ninguém pode entrar molhado na aldeia e nem a ceramis- ta pode tomar banho, pois as panelas são sensíveis ao frio. Cabe à ceramista fazer abstinência sexual e manter o cabelo arrumado para que não caia nenhum fio em sua obra. Para se coser as panelas, eram feitos três suportes de barro (que representam os três pilares cósmi- cos) bem ao centro da casa coletiva. O centro da casa para eles é o centro do mundo e, se por acaso esse pilares “forem abalados pela cobra enrolada em torno deles, a estabilidade do mundo em que vivem os humanos, e também dos outros mundos, corre perigo.” (Lévi-Strauss, 1985, p.39 e 40) Lévi-Strauss, ainda no livro A oleira ciumenta, nos conta que as mulheres da tribo Jivaro não deveriam apenas saber fazer cerâmica, mas saber fazê-la de modo satisfatório: “Para merecer um marido bom caçador, uma mulher tem de saber fabricar uma louça de qua- lidade, para cozinhar e servir a caça. Mulheres incapazes de fazer cerâmica seriam, realmente, criaturas malditas.” (Lévi-Strauss, 1985, p.37) Também nesta citação fica evidente a relação dos papéis femininos e masculinos na aldeia: cabia à mulher o poder de gerar os frutos humanos, alimentícios (plantio e colheita) e cerâmicos. Eram as mulheres as responsáveis pelo plantio e colheita da lavoura, pela coleta, feitura e queima do barro, assim como pela gestação e o cuidado para com os filhos. Aos homens cabiam todos os esforços que exigissem a locomoção para fora da aldeia, seja a caça, a pesca, as lutas, as armas e tudo o que despendesse da força física. A diferenciação física entre homens e mulheres era evidente para os nossos ancestrais e este era, até então, o único modo de se explicar a dicotomia entre ambos. Capazes de gerar e manter novas vidas, as mulheres detinham certa magia e poder sobre os homens: o mistério da procriação as envolvia. Essa capacidade criadora era algo não só inexplicável, como também de extrema importância, por ser o modo de perpetuar a espécie. E essas primeiras sociedades estruturadas e mais estáveis, pelo fato de estarem aprendendo a dominar técnicas da agricultura e pastoreio, tinham em comum o culto à Grande Deusa, também conhecida por Mãe Terra ou Pachamama.8 A esse respeito a pro- fessora Lalada Dalglish explana, em poucas palavra, essa relação: Os vários povos primitivos que deixaram de ser nômades e pas- saram a praticar a agricultura desenvolveram técnicas artesanais com fins utilitários e ritualísticos. A terra, de onde brota a água e alimento, passou a ser associada a fertilidade da mulher, que, por sua vez, também podia gerar filhos; nasce aí o culto às “deusas da fertilidade”, associado ao ciclo das colheitas. Em todas as culturas por onde apareceram, estas deusas votivas adquiriram diferentes nomes, mas possuíam as mesmas intenções votivas associadas à fertilidade. (Dalglish, 2006, p.22) As comunidades tribais dependiam sobremaneira deste papel reprodutor, gerador, agregador, mantenedor das mulheres, para continuarem vivos. Essa capacidade criadora era algo não só inex- plicável, como também de extrema importância, visto que este era o único modo de perpetuar a espécie. Diz Joseph Campbell que até recentemente, papel social da mulher era o de garantir a preservação da nossa espécie – a relação do homem com essa função era qua- se inexistente. “E, à maneira dos homens primitivos, a função do macho nessa sociedade é preparar e preservar um ambiente no qual a fêmea possa gerar os espécimes futuros.” Fica evidente a diferen- ciação dos papéis de cada um. “E seus corpos são distintamente adequados para desempenhá-los.” (Campbell, 1990b, p.8-9) A im- portância da mulher nas sociedades ancestrais era também ressalta- da pela idéia de associação do nascimento dos frutos (na agricultu- ra) com o nascimento dos filhos (na procriação). Essas sociedades mais estruturadas e estáveis, pelo fato de estarem aprendendo a dominar técnicas de agricultura e pastoreio, tinham em comum o culto à Grande Deusa. Campbell compara o poder de procriação da mulher na era pagã, ao mesmo poder gerador existente no reino vegetal: “A mulher dá a luz, assim, como na terra se originam as plantas. A mãe alimenta como o fazem as plantas. Assim, a magia da mãe e a magiada terra são a mesma coisa. Relacionam-se.” O autor afirma que a “personificação da energia que dá origem às formas e as alimenta é essencialmente feminina. A Deusa é o próprio universo. Tudo quanto você vê, tudo aquilo em que possa pensar, é produto da Deusa.” (Campbell, 1990b, p.177) As mulheres não eram responsabilizadas por sua gravidez empovos que mantinham tais crenças, ou seja, de que a gravidez não dependia da relação sexual humana. Simone de Beauvoir (1987) afir- ma que nesse período era desconhecida a participação do pai na pro- criação, pois apenas a mãe gerava em seu ventre a criança e, depois de parida, era ela quem amamentava e nutria os filhos, garantindo assim, a perpetuação do clã. “Com, efeito, os povos primitivos não acreditam que o homem tenha alguma importância na reprodução” alguns, inclusive, acreditavam que o papel do homem na relação sexual era apenas o de romper o hímen para dilatar a passagem ao verdadeiro agente semeador: os raios lunares (Beauvoir, 1987, apud Santos). Se a mulher engravidasse era sempre por um motivo exter- no a ela, talvez pela ação da lua, por ter ingerido determinado ali- mento, ou mesmo por algo místico. Em sociedades ancestrais como essas que estamos considerando, não existia nenhuma restrição àrelação sexual, de maneira que a conexão entre a gravidez e o sexo poderia nem ser relacionada. E como a duração exata da gravidez foi conhecida apenas em um estágio de cultura mais recente, era plausí- vel que nossos antecessores não relacionassem esses fatos. Para Get- ty (1997) “não existiam filhos ilegítimos nem mulheres ‘marcadas’, porque não se atribuía valor nenhum à paternidade. ‘O filho de um é filho de todos’, como dizem os Ibos da África em certos cânticos.” Deste modo, não é difícil entender como e porque as culturas ancestrais valorizavam e cultuavam amplamente o universo femi- nino. Eram desconhecidos tanto os processos de germinação da semente quanto a gestação na mulher, logo, não seria estranho que se atribuíssem às mulheres poderes místicos e sagrados, também ligados a terra. 8 FLAVIA LEME DE ALMEIDA A Grande Mãe, Pachamama: um símbolo da fertilidade “Santa deusa Tellus, Mãe da Natureza Viva, alimento da vida; Tu dás em eterna lealdade e, quando a vida nos deixa, encontramos refúgio em Ti. Tudo quanto repartires a teu ventre retorna. Justamente Te chamam Mãe dos Deuses, porque com Tua lealdade conquistaste o poder dos Deuses. Na verdade és também Mãe dos povos e dos Deuses Ninguém pode florescer nem existir sem Ti; Tu és poderosa; dos Deuses Rainha e Deusa. A Ti e ao Teu poder invoco, oh, Deusa; Tu podes conceder-me tudo quanto pedir, e em troca prestar- Te-ei, oh, Deusa, os meus mais sinceros agradeci- mentos.” Loa, século II Hoje podemos saber, através das incontáveis estatuetas e ima- gens sagradas com formas femininas, como nossos antepassados veneravam a vida, focando particularmente o poder da Grande Mãe. Apesar de a Deusa ser apresentada sob diversas maneiras, diferindo-se no formato, nomenclatura ou materiais, sua conotação simbólica era sempre mantida: a responsabilidade pela vida no mundo. A Deusa era quem criava, nutria, sustentava e restabelecia a vida. As chamadas “vênus esteatopígicas”9 foram encontradas em diversas civilizações e épocas distintas,10 juntamente com ou- tros tantos artefatos dos períodos Paleolítico e Neolítico.11 Essas imagens podem ser consideradas a representação dos nossos mais antigos impulsos criadores dos mitos. Na América Latina, especialmente no Peru, Bolívia e norte da Argentina, a Deusa ou Grande Mãe era chamada por Pachamama, literalmente, Terra Mãe. Iconograficamente, a Pachamama, assim como a Grande Deusa no continente europeu, aparece de diversas formas: como grávida, é a deusa da fertilidade; como uma velha índia acompanhada de um cão feroz, é a Senhora da Terra. De tão forte que era a crença nesta divindade, mesmo após a colonização 9 “Estatuetas femininas dotadas de grandes seios e nádegas, a sugerir, provavel- mente, o culto à fertilidade.[...] Todas elas seguem um esquema semelhante – o de um losango, em que a cabeça e os pés, trabalhados sumariamente, ocupam as extremidades; no centro , os seios, a bacia e o ventre aparecem hipertrofia- dos” (Cunha, 2003. p. 71). 10 Estes artefatos foram encontrados em toda Europa e nas Américas, no período denominado de “pré-colombiano”, ou seja, antes da chegada de Colombo (idem, ibidem) . 11 A chamada Idade da Pedra da pré-história compreende os períodos Paleo- lítico, Mesolítico, Neolítico e Calcolítico. O período Paleolítico Superior se estendeu até 10.000 aC e foi a época que o chamado Homo sapiens começou a manipular e modificar objetos, especialmente as pedras. Cada tribo ou co- munidade criou ‘estilos’ na confecção de utensílios diferenciando-se. Graças à essas peculiaridades de manufatura, foi possível distinguir quatro eras: a Auri- naciana (30.000), a Gravetiana (25.000-20.000), a Solutriana (20.000-15.000) e a Magdaleniana (15.000-10.000). O período Neolítico é caracterizado pelo surgimento das primeiras edificações arquitetônicas monumentais com uma função religiosa, especialmente em Eridu ou Çatal Hüyük, na Turquia. Esse período também é caracterizado pela expansão da agricultura sedentária, do- mesticação de animais e criação de gado na Europa (ibidem, p. 71- 72) MULHERES RECIPIENTES 9 européia nas Américas, não apenas a representação, como, tam- bém, todo seu caráter simbólico, foi incorporado à imagem da Vir- gem Maria, mãe de Deus. O poder que a Deusa Mãe exercia em nossos ancestrais era imenso; refletia a ordem social e o papel privilegiado da mulher como procriadora, já que a reprodução era um grande mistério. Esse período foi denominado por alguns especialistas como ma- triarcado, pois a importância da mulher era tamanha que o núcleo familiar e social girava em torno dela. O mistério da gestação estava diretamente ligado ao poder misterioso do feminino. Assim como uma consequência da observação dos ciclos da natureza e de toda a magia que envolvia a criação das espécies, nossos antepassados co- meçaram a cultuar a Deusa Mãe que era geradora de vida, a Grande Mãe de todos os seres viventes. “São-lhe prestadas honras pela sua qualidade de dar e manter a vida: do seu ventre surge o grande mistério, e tudo volta a ela [...]” (Getty,1997, p.5) Foi através dos infindáveis mitos das mais diversas culturas que pudemos constatar o poder e o papel do feminino na estruturação do mundo. De acordo com Senna (2007), a veneração à Deusa co- briu amplo território e período da história da humanidade, cerca de 50.000 anos. Estudos antropológicos constatam esta veneração des- de o Paleolítico Superior europeu, o Neolítico no Oriente Médio, a idade do bronze nos vales dos grandes rios – Nilo, Eufrates, Tigre, Ganges – também ocorrendo no período formativo da América pré- colombiana. É interessante notar que, mesmo em comunidades tão distantes e em períodos tão longínquos, havia um fio condutor, um “cordão umbilical” que ligava a Grande Deusa Mãe com todos os seus filhos. As representações celebrando o corpo fértil da mu- lher apareciam não apenas nas pinturas e estatuetas, mas também em baixo relevos, amuletos ou possíveis objetos de veneração. Eram caracterizadas, principalmente, pela robustez de um estágio avançado de gravidez, com “caracteres sexuais, nádegas, ventre e seios, com excesso de volume e polidez, proclamando a admiração e o respeito dos primitivos diante dessas figuras portadoras do bem mais precioso – a vida.” (Senna, 2007, p.56). Segundo estudos de W. K. Gregory encontra-se entre 40.000 e 30.000 a.C., pela Europa e parte do Sudeste da Ásia e em alguns outros lugares, o homo sapiens tardio (o homem de Cro-Magnon), que é tido como o responsável pela criação destas estatuetas peque- nas – com cercade 3 a 22 cm – denominadas, pelos pesquisadores do século XIX, Vênus (Campbell, 1990a). Conforme o historiador Siegfried Giedion, a denominação poderia indicar um suposto sig- nificado erótico, uma vez que a deusa seria a versão latina da deusa grega Afrodite – que simboliza o amor e a beleza. Giedion também chegou a citar que alguns pesquisadores defenderam a idéia de que tais figuras não eram de modo algum imagens que representassem sensualidade, mas sim que essas estatuetas de mulheres maduras de seios pesados, ventre protuberante e nádegas exageradas eram representações simbólicas da fertilidade (Giedion, 1999); o que não anula, a nosso ver, suposição de que poderiam ser também um estímulo erótico, principalmente, se considerarmos o sentido de erotismo como voltado para a vida, como o conceito freudiano de libido. A partir de 35.000 a.C., desde a cultura aurinhacense do Pale- olítico até ao Neolítico agrícola, começaram a ser modeladas pe- quenas estátuas da Deusa com barro e cinza e depois cozidas, ou talhadas em osso, chifre ou marfim, na Espanha, França, Europa oriental, Rússia, Mediterrâneo e Oriente Médio. O arqueólogos têm vindo a descobrir numerosos amuletos que representam certos aspectos da Deusa, os peitos ou a vulva. Estas estátuas, juntamente com as imagens esteatopígicas e as figuras alargadas com cabeça de ave não constituem de modo nenhum uma forma de pornografia, como sugeriam muitos estudiosos. (Getty, 1997, p.7 e 8) De acordo com Getty, estas representações foram encontradas numa vasta região, que ia da França à Sibéria, e mantinham uma repetição quanto ao formato e ao tema: “representam a capacidade corporal da mulher para dar a luz, sangrar e curar-se em cada lua, para nutrir e amamentar e finalmente morrer e renascer.” A autora ainda afirma que essas oferendas votivas eram como uma ajuda mágica a todos os “indivíduos e à comunidade para garantir bom parto, leite e alimento abundantes, ou possivelmente fizessem parte de um ritual de trânsito para a feminilidade.” (Getty, 1997, p.8) Muitos dos locais que foram descobertos por estudiosos, como as cavernas ou em volumosas rochas, os vestígios destes “homens das cavernas” se apresentaram sob forma de grandiosas pinturas na parede ou mesmo objetos calcários. Essas imagens, por se localiza- rem nas partes mais profundas das cavernas, faziam parte de uma espécie de ritual mágico cujo propósito, muito provavelmente, era o de assegurar uma boa caça. “Aparentemente, para os homens do Paleolítico não havia uma distinção muito nítida entre imagem e realidade” (Janson, 1996, p.14-15). A mulher e a lua: representações e evocações “São seus atributos: a lua, indicando o ciclo menstrual e as estações do ano, a cornucópia re- pleta de flores, frutos e sementes, símbolo da fe- cundidade do solo, a serpente que sinaliza a liga- ção entre os dois mundos opostos, a espiral como símbolo da vida que se renova, que é cíclica, a concha e o triângulo, em alusão direta à vagina.” Nádia da Cruz Senna Amuletos ou estatuetas representavam a Grande Mãe, ou então, poderiam ser consideradas como a própria Deusa em si. O que se pode confabular é que, por sua pequenez e portabilidade, essas estatuetas fossem carregadas junto com as pessoas para que, as- sim, o poder da Deusa pudesse ser evocado em qualquer momento ou situação. As vênus portáteis da era paleolítica tinham apenas algumas polegadas de altura e, segundo Campbell (1990a, p.17- 18), foram encontradas, pelo menos duzentas, ao longo da costa atlântica, contudo este sítio arqueológico vai da França à Espanha, até a fronteira com a China. Na França, em uma prateleira rochosa, denominada Laussel, foi encontrada uma figura importante e sugestiva, uma pequena vênus que segura, na mão direita erguida, um chifre de bisão com treze traços verticais, que correspondem ao número de noites entre o primeiro crescente e a lua cheia. De acordo com o mitólogo seria o reconhecimento da equivalência dos ciclos menstrual e lunar. A Mãe da Vida não tem rosto, só quadris e seios volumosos, só dádiva maternal. Guardadas no que foram moradas, e não em grandes cavernas, com as pernas terminando em volume cônico, essas pequenas vênus foram feitas para adaptar-se aos locais de culto, apoiadas em buracos no chão. A outra mão sobre a barriga seria um indício das correlações entre os ritmos celestial e terreno da vida. No baixo relevo em pedra da Vênus de Laussel, é possível per- ceber, pelo modo como ela foi esculpida, a afirmação de Campbell sobre a ligação do ciclo menstrual da mulher com o ciclo ou fases da lua.12 “No mundo inteiro a Lua é associada ao eterno feminino, pois o ciclo mensal do nosso satélite lembra os ritmos da feminilidade” (Getty, 1997, p.11). MULHERES RECIPIENTES 11 No livro The once and future goddess: a symbol for our time, a escritora e pesquisadora Elinor Gadon nos conta, também, sobre essa relação do sangue menstrual com o ciclo lunar: “O sangue pe- riódico das mulheres era um evento cósmico, como os ciclos da lua e das marés baixas e altas. Nós esquecemos que as mulheres eram as condutoras do sagrado mistério da vida e da morte” (Gadon, 1989, p.2, tradução nossa). Deste modo, para esses povos, as mulheres e a lua eram originá- rias da mesma natureza, na medida em que ambas tinham a capa- cidade de ‘intumescer-se’ e de seus ciclos terem a mesma duração, ou seja, uma evidência direta da sintonia entre o corpo das mulheres e o corpo celeste. “A palavra para designar menstruação e a palavra para designar lua são iguais ou intimamente ligadas em várias línguas, fato que mostra a estreita conexão que é sentida entre as mulheres e a lua” (Harding, 1985, p.52). Como Senhora das mulheres, a lua era possuidora do poder divino da fertilidade, diretamente ligada às mulheres. Nesse modo de pensar, a lua tinha um poder benéfico e indispensável no cres- cimento e formação das coisas, desde a germinação das sementes na terra, como na concepção dos seres humanos e na procriação animal. Todo o mistério desta força geradora estava diretamente ligado à lua, aos ciclos lunares e, consequentemente à noite, em contraposição com o calor e a luminosidade do sol durante o dia. Para muitos povos ancestrais, o sol se configurava como uma força hostil ao desenvolvimento da vegetação e também à reprodu- ção das espécies. A luz da lua faria, então, um contraponto com a luz hostil do sol. Cabe ressaltar que este poder atribuído à lua é uma representação simbólica da fertilidade, já que, muito provavelmen- te, para esses povos ancestrais, o mito e sua simbologia explicavam a própria realidade. A lua para eles era possuidora e doadora da fertilidade, ou seja, os seres vivos apenas poderiam ser gerados e se desenvolverem sob a influência da energia lunar, conforme explica a autora Harding (1985). Esse modo de conceituar a fertilidade, pode nos soar um tanto absurdo, uma vez que, atualmente, sabe- mos exatamente como os seres vivos são gerados: as funções dos órgãos reprodutores, os processos de fecundação e desenvolvimen- to do feto, o tempo real da gestação e como se evita uma gestação.13 Assim, a lua em seu estágio crescente estaria diretamente ligada ao desenvolvimento e à fartura de bens e ao aumento e desenvolvi- mento da prole. Sua força, muito provavelmente, era invocada para o crescimento e expansão das plantações, rebanhos e da própria família. Vale lembrar que uma família grande, com muitos filhos e filhas, representava, aos que cultivavam a terra e dela dependiam,a garantia de segurança contra a falta de alimento e o amparo na velhice. No sul da Itália, a lua até hoje é usada como amuleto na hora do parto. “As mulheres católicas da Itália diziam que a Mãe que é a ‘Lua-da-nossa-Igreja’ é a ‘Mãe Maria’. Ao dizerem isso, elas podem ou não olhar a lua no céu e fazer reverência” (Harding,1985, p.53) A Vênus de Lespugue, estatueta encontrada próxima a Lespu- gue, mede aproximadamente 15 cm. Apesar de estar danificada, seu acabamento é mais elaborado nas formas e nos detalhes. Como de costume, essa Vênus não possuía traços no rosto, apenas as for- mas exageradamente enfatizadas dos seios, ventre, quadris e náde- gas. Os membros inferiores são delgados e finalizam em uma pon- ta. Por não terem uma base para se equilibrar em um plano reto, ou seja, seus pés e pernas eram juntos e pontiagudos, acredita-se que eram feitas para serem fincadas no solo ou mesmo colocadas em re- licários de pequenos altares domésticos (Câmara, 1999). Campbell ao descrever a Vênus de Lespugue, nos revela detalhes singelos, porém deveras interessantes, sobre o formato de seu corpo e o seu encantamento: “Toda a magia da mulher está contida dentro de um círculo. Os seios e os quadris são puxados para baixo; temos então o elegante movimento ascendente do tórax para a cabeça, e depois os pés os quais a colocaram num pequeno relicário”. A pequena peça se eleva na parte de cima em um “elegante movimento ascendente”, tornando-se mais reduzida e afunilada na parte inferior (Campbell, 1990a, p.19). Nela, podemos perceber traços extremamente esti- lizados na representação do corpo feminino. Seu formato faz uma alusão ao círculo, ao curvilíneo, possivelmente, por ser uma re- presentação simbólica da fertilidade: os seios, ventre (útero), glú- teos arredondados – ou seja, “toda a magia da mulher está contida no círculo” como afirmou Campbell. É possível que esses objetos não tendessem a um realismo simplista, apenas demonstrariam e destacariam alguns valores atrelados a uma realidade cotidiana: a gestação. Portanto, o corpo curvilíneo da mulher, especialmente, no caso da mulher grávida. Talvez porque as mulheres deste perío- do engravidavam ininterruptamente, tendo um filho após o outro.A Vênus de Willendorf é uma das mais conhecidas estatuetas deste período. Suas formas arredondadas e sinuosas foram escul- pidas em calcário colorido, numa cor aproximada ao ocre averme- lhado. Nela, podemos notar, claramente, características essenciais de uma gestação: as formas dos seios, coxas, ventre e nádegas bem proeminentes. Vemos também como é proeminente o umbigo e o púbis, os braços dobram-se sobre os seios, aparecendo como uma estreita linha, as feições do rosto estão completamente suprimidas e a cabeça foi adornada por uma série de pequenas protuberâncias que podem sugerir penteado trançado ou cabelo muito encaraco- lado. Seus pés não foram esculpidos, assim como não existe refe- rência de suporte ou pedestal que sustentasse a figura na vertical. Pressupõe-se que a estatueta era provavelmente usada como um amuleto de âmbito familiar, justamente pela facilidade de carregar uma peça tão pequena (Senna, 2007). Além da arte das cavernas feita em grandes proporções, os homens do Paleolítico também criaram pequenas esculturas do tamanho de uma mão, utilizando-se de osso, chifre ou pedra cor- tados com talhadeiras rudimentares. Essas esculturas também pa- recem dever sua origem a semelhanças casuais. Num estágio mais primitivo, os homens do Paleolítico tinham se alegrado ao coleta- rem seixos em cujo formato natural viam uma qualidade represen- tacional “mágica”; as peças mais minuciosamente trabalhadas dos tempos posteriores ainda refletem essa atitude. Assim, a chamada Vênus de Willendorf na Áustria, uma das inúmeras estatuetas da fertilidade, tem uma forma arredondada e bulbiforme que pode sugerir um “seixo sagrado” oval. (Janson, 1996, p.16 e 17) A deusa entronada, famosa estatueta datada na metade do século VI a.C., é originaria da Turquia, Çatal Höyük. A figura feminina está sentada no trono, acompanhada de MULHERES RECIPIENTES 13 dois felinos um de cada lado, dispostos a simularem os braços da poltrona. Pela robustez de seu corpo que enfatiza suas características sexuais, é provável que esta estátua esteja sugerindo uma gravidez. Por suas características formais, ela foi interpretada como um símbolo da fertilidade e fe- cundidade, direcionando uma leitura sobre os possíveis comporta- mentos religiosos do período Neolítico. Outro exemplo claro de culto ao feminino é a estatueta egípcia Deusa-Pássaro funerária, que data de 3500 a 3100 a.C. Com formas bem simplificadas, sugere quase uma abstração do corpo da mu- lher. Sua cabeça é pontiaguda, lembrando um bico de pássaro e seu pescoço é longo e proporcionalmente maior que a cabeça. Os braços estão levantados, formando uma delicada curvatura com as mãos – os dedos estão cuidadosamente entalhados em ambos os lados. Seu torso tem formato triangular e é ligeiramente inclinado para trás, os seios são pendentes e a cintura é estreita, formando uma sinuosa curva que segue pelos quadris e nádegas arredondados. Como na maioria das vezes, essas estatuetas não tinham pés modelados, esta parte do corpo (o que poderia ser considerado uma saia) foi pintada de branco. A figura inteira foi originalmente coberta com vermelho ocre. Sua postura sugere que a figura feminina esteja em uma espé- cie de dança ou em luto14 ou, até mesmo, que talvez esteja associada a algum um ritual de ressurreição (Phaidon, 2007, p.19 e 39). Qual seria a natureza dos ritos e símbolos pré-históricos? Al- guns autores pensam que essa função ultrapassaria uma mera ne- cessidade de manifestar a fertilidade.15 Suas observações apontam para uma relação muito mais integradora com a natureza, com o mundo como totalidade, onde todos os seres vivos e inanimados eram sagrados.16 Para eles, a natureza é una, sem a distinção de superioridade do humano. E, sem a dicotomia entre espiritualidade e natureza, religiosidade e profano, a arte também estava inserida em um contexto cotidiano e era, portanto, um reflexo desta visão de mundo – visão diametralmente oposta a da cultura judaico-cristã. Era um modo de enxergar a vida, celebrando não apenas a sexua- lidade como fonte de prazer, como também divinizando a mulher como fonte de vida. Segundo esses autores, tais sociedades basea- vam-se muito mais em relações de parceria, do que de dominação, enfatizando o cálice – símbolo feminino – e não a espada – símbolo masculino (Senna, 2007, p.57) Parece coerente cogitar a possibilidade de que ao observarem os seus próprios ciclos e o crescimento estacional das plantas, “fossem as mulheres as primeiras a tomarem consciência do ca- ráter periódico da natureza e o registro destes ritmos, internos e externos.”(Getty, 1997, p.8). Talvez isso possa ter contribuído para que fossem desenvolvidos os primórdios da ciência e da religião. Foram descobertos restos mortais dos homens de Neanderthal e o de Cromagnon, dispostos de modo a sugerir um rito cerimonial – um outro indício d a crença de vida após a morte. O pigmento ocre vermelho foi encontrado em várias ornamentações de efígies da Deusa (como no caso da Vênus de Willendorf e da Deusa-Pássaro funerária) e outros objetos. Indubitavelmente a cor vermelha está ligada ao sangue e, simbolicamente, representa a vida ou a morte em um estágio primário. “O ocre vermelho representa as qualida- des reafirmadoras da vida do sangue, a prima matéria. As pessoas só sangram enquanto vivas e as mulheres sangram todos os meses e no parto [...]” (Getty, 1997, 8). A relação entre sangue e vida era algo palpável, visível e presente em todos os animais de sangue quente.17 Assim, a cor vermelha representa a cor da vida, não só de modo simbólico (nas pinturas rupestres ou mesmo nas repre- sentações de divindades), mas principalmente de modo vívido: na menstruação feminina, no parto, em ferimentos ou em cortes que 12 Todos os mamíferos e todas as aves (com algumas exceções) são considerados animais de sangue quente devido à necessidade de manterem o corpo em uma temperaturaconstante (gerando calor em ambientes frios ou esfriando-se quando em locais mais quentes). Os animais com sangue frio não necessitam manter a temperatura estável do seu corpo, variando-a conforme a temperatu- ra ambiente – répteis, insetos, aracnídeos, anfíbios e peixes. mostrem o interior de um corpo. O fato é que nossos ancestrais entendiam que a vida no planeta era formada por ciclos, por esta- ções, por fases, com começo, meio e fim. O entendimento desse ciclo, parte do princípio de que vida e morte são complementares. A compreensão do que deve ser o processo natural das coisas, o ciclo de renovação, onde uma geração é substituída por outra, enfatiza a questão da dualidade convergente. Para se ter vida é necessário que haja a morte. “Ó Deusa Mãe, assim como a lua renasceu, possa eu também, meu corpo mortal, ser devolvido à fonte” (Campbell, 1990, p.53). Muitos mitos procuram explicar, cada um a seu modo, as diferenças entre a vida e a morte, entre o dia e a noite, entre ho- mens e mulheres, entre os opostos complementares. Ao observar e interferir na natureza, os seres humanos começaram a mudar seu modus vivendi. Talvez tenha sido o desenvolvi- mento da agricultura que ocasionou transformações consideráveis na sociedade. “Sem dúvida, as consequências da agricultura primitiva sobre a comunidade humana merecem o título de ‘revo- lução neolítica’, e é opinião geralmente aceita de que foram as mulheres que iniciaram tal revolução.” (Getty, 1997, p.15) Ocorre que com este tipo de desenvolvimento, as comunidades nômades passaram a se estabelecer em locais fixos, começaram a crescer demasiadamente, necessitando de uma demanda maior de alimento. Com períodos de secas e enchentes, esgotamento do solo, pragas, a humanidade percebeu a necessidade de armazenar a produção excedente. Essa transformação lenta que a humanidade passou, saindo da caverna e construindo o que seriam as futuras aldeias, a crença na Senhora dos Animais, na Grande Mãe, também modificou-se. Também foi no Neolítico que a domesticação de animais teve seu princípio e, nesse momento, observou-se a importância da pa- ternidade na concepção. Através MULHERES RECIPIENTES 15 da domesticação de animais, pas- samos a entender melhor o papel masculino no processo da criação da vida e gradualmente, a dominação dos animais derivou no impulso de ‘domesticação’ da terra (Getty, 1997, p.15). Evidente que, segundo essa autora, os animais passaram a ser os escravos e receber a carga que antes eram das pessoas. Os valores humanos começaram a mudar sob o exercício do poder. No momento em que se constatou a importância da semente e sua ligação com a fecundação da terra, os homens passam a ser valo- rizados no processo da fecundação e corresponsáveis pelo princípio da vida (Santos, 2006). Com a criação de técnicas mais avançadas de cultivo do solo (o arado), é que o homem assume o papel de cuidar da terra. Papel este executado inicialmente apenas pelas mulheres, pois elas eram consideradas possuidoras da mesma magia da terra: a de propiciar o nascimento e a de nutrir os novos seres. O homem assume a liderança e, segundo Campbell (1990 a), a analogia entre a simulação do coito e do arado penetrando a terra, torna-se a fi- guração mítica dominante deste período. Seu papel aos poucos se reduziu ao de procriadora e mantenedora da família – dos herdeiros do patriarca. A magia e o encantamento do poder de gerar uma nova vida vindo das entidades femininas deram lugar a crença que todos os seres vivos fossem advindos de uma entidade masculina, um único Deus. Paulatinamente, os homens começam a ministrar rituais sagra- dos que eram até então, prerrogativa das mulheres sacerdotisas. A deusa-Mãe foi aos poucos substituída por um deus-Pai, único, onipotente e onipresente, advindo originalmente da cultura ju- daica.18 O papel do feminino que outrora fora supremo e divino, foi aos poucos suprimido. Contudo, a despeito disso, a Deusa não desapareceu totalmente do subconsciente das pessoas. O culto à deusa-Mãe era tão forte e presente em povos de cultura agrária que o cristianismo, muito sabiamente, valorizou a imagem da Virgem Maria, a Madona, como uma transposição da Grande Mãe. “O ca- tolicismo vai suprimir a Deusa-mãe e criar o Deus-pai, mas devido à dificuldade de suprimir este culto, será criado o culto da Virgem Santíssima – a mãe de Deus e o Deus-filho.” (Santos, 2006). - A cerâmica Cerâmica é a argila (barro) que queimada em forno torna-se dura e pouco quebradiça. Os seus principais elementos constitutivos são a sílica e o alumínio. Existem inúmeros os tipos de argilas e elas são utilizadas para diversas finalidades como, por exemplo: ✓ Para confeccionar telhas, tijolos, manilhas, vasos de plantas e ✓ Para confeccionar pisos, azulejos, objetos. ✓ Para confeccionar a chamada “louça branca” - usada principalmente em banheiros (pias, vasos sanitários, etc.) ✓ Para confeccionar a cerâmica artística - artesanal onde são feitos objetos utilitários, objetos decorativos, esculturas etc. A Cerâmica compreende todos os materiais inorgânicos, não metálicos, obtidos geralmente após tratamento térmico em temperaturas elevadas. 2 - A argila MULHERES RECIPIENTES 17 A argila também é conhecida popularmente como “barro”, em geral, tem uma textura terrosa e pode ser facilmente moldado ou deformado quando é umedecido (ou molhado). Essa característica de ser moldado é chamada de plasticidade. Outro ponto que caracteriza as argilas é o fato de elas serem constituídas por partículas muito finas. Você reparou que está escrito “as argilas”, no plural? Isso acontece porque existem vários tipos de argilas. E esses vários tipos são formados por componentes diferentes. Existem argilas que são vermelhas, argilas que são brancas, argilas que servem para fazer piso e azulejo, argilas que servem para fazer telha e tijolo, etc. Da mesma forma, também existem realmente muitos tipos de argilas, inclusive o que se chama de “argila gorda” e “argila magra”. Argila gorda é aquela que é muito pura e fácil de ser moldada e muito plástica. A argila magra é o contrário, mais difícil de ser trabalhada. O resultado final das peças que vão ser feitas depende muito, entre outras coisas, do tipo da argila usada. E sobre isso vamos falar um pouco mais à frente. Mas uma coisa todas essas argilas têm em comum: geralmente, elas são constituídas pelo mesmo material. Em geral, toda argila é formada por restos de rochas ou pedras, areia, restos de folhas, troncos ou animais e água. Cada tipo de argila tem uma quantidade maior ou menor de cada um desses componentes. Há também os compostos de ferro, que dão a cor vermelha a algumas argilas. A quantidade desses componentes também influencia as características das peças que estão sendo feitas. Se a argila tem muita areia, por exemplo, a peça pode ficar mais porosa, ou seja, com mais espaços vazios. E assim quebra mais fácil. Principais tipos de argilas, cores e temperaturas para queima. CREME: Consiste numa massa plástica para queima entre 800 e 1300ºC podendo ser usada em torno, para moldagem e modelagem. A cor de queima vai do rosado aos 800º C, até creme com pintas pretas a 1300 º C, quando esta perfeitamente sinterizada. A retração varia entre 15 e 17% a 1300 ºC. MARFIM: Massa plástica para queima entre 800 e 1300º C que pode ser usada em torno, moldagem e modelagem. A cor de queima vai do marfim claro a 800 º C até marfim a 1200 º C e cinza clara a 1300º C, quando esta totalmente sinterizada. A retração está entre 14 e 16% a 1300 ºC. BRANCA SHIRO: Massa plástica para queima entre 800 e 1300°C para uso em torno, modelagem e moldagem. A cor de queima vai do rosado a 1000°C até branca a 1300°C, quando está sintetizada. A retração varia entre 13 e 15%a 1300°C. TABACO: Massa de grande plasticidade para queima entre 800°C e 1200°C. Pode ser usada em torno ou para modelagem e moldagem. A cor de queima varia do bege a 800°C até marrom claro a 1200°C. A retração varia de 14 a 16% a 1200°C. FAIANÇA: Massa cálcica de queima branca, plástica para uso em torno, moldagem e modelagem, para queima a 980°C , ficando com uma porosidade em torno de 12%. A retração nesta temperatura está entre 13 e 15%. TERRACOTA: Massa de alta plasticidade e cor de queima vermelho característico, para queima entre 800 e 1200°C . Próprio para uso em torno, moldagem e modelagem. A retração fica em torno de 14%. PRETA: - Massa de boa plasticidade que quando queimada a 100°C fica preta, a temperaturas mais baixas fica de coloração marrom. Pode ser usada em torno, modelagem e moldagem. O que acontece com as peças de cerâmicas quando estão sendo fabricadas? MULHERES RECIPIENTES 19 Como já falamos, as argilas são compostas por diversos materiais, como areia, pedras, restos de folhas e animais (matéria orgânica), calcário, etc. Cada um desses componentes influencia de alguma forma na argila, e, conseqüentemente, na peça cerâmica. A matéria orgânica e a argila, propriamente dita, fazem com que o material seja mais plástico, mais fácil de modelar. Durante a queima, a matéria orgânica vira gás e tem que ser expulsa da peça. Quando o gás sai, podem-se formar espaços vazios e até mesmo trincas. Se houver muito espaço vazio, a peça vai quebrar facilmente. A areia, por outro lado, faz com que a argila fique menos plástica, mais difícil de moldar (é só lembrar que se você misturar apenas areia e água fica impossível moldar qualquer coisa). A areia, quando aquecida, aumenta de tamanho, e quando resfria volta ao seu tamanho normal. Isso também pode causar trincas. O calcário é outro tipo de material que solta gás durante a queima. Nesse caso, acontece o mesmo que com a matéria orgânica. Se o gás não consegue sair, a peça incha ou trinca. Por fim, as pedras, ou mesmo grandes “bolos de barro”, impedem que a peça fique bem lisinha, que a argila seja distribuída por igual. Isso, além de deixar a peça menos bem acabada, pode fazer com que ela se quebre facilmente. 3 - A argila e seus segredos Seja uma estátua, vasinho, bandeja, etc., há alguns cuidados essenciais que, se não forem tomados, podem colocar a perder todo o trabalho. Imagine só: você faz uma peça com todo o carinho e trabalho, uma obra de arte; mas, ao secar, ela começa a rachar toda. Ou, ainda pior, depois de queimar no forno você descobre que ela quebrou! Uma frustração dessas pode tirar até a vontade de trabalhar com argila, e justamente para evitar uma coisa dessas vamos aprender hoje alguns cuidados essenciais. Amassar o barro ou “bater o barro” é a necessidade que argila tem de ser bem amassada, com as mãos, ou mecanicamente, para compactar e eliminar todas as bolhas de ar existentes em seu interior. Isso por que as bolhas poderão fazer com que a peça exploda dentro do forno durante a queima, como também podem provocar rachaduras em peças que estejam secando. Pode-se também amassar o barro, jogando-o sobre uma superfície lisa por repetidas vezes. Não se deve esquecer que “bater o barro” é uma etapa da preparação que não pode deixar de ser realizada. Atente que... ✓ O segredo da cerâmica é uma massa de argila bem amassada. Ela não deve estar muito mole, mas sim maleável e ligeiramente firme, sem estar dura demais. ✓ Se a sua argila estiver mole demais, coloque-a num saco plástico com algumas bolas de jornal: elas chupam a umidade. Troque o jornal de vez em quando, e não o deixe ficar muito tempo. ✓ O processo de amassar argila é semelhante ao de amassar pão. Apóie a argila com uma das mãos e empurre para baixo com a outra. Estique a parte que foi pressionada e dobre-a por cima do resto da massa, depois volte a empurrar para baixo. MULHERES RECIPIENTES 21 Repita várias vezes. Durante o processo, você vai ouvir as bolhas de ar estalando, com a pressão. 4 - As rachaduras e bolhas de ar nas argilas Uma massa de argila bem trabalhada deve ser compacta e de sem bolhas, pois elas podem explodir durante a queima, estragando seu trabalho. Mesmo com a argila bem amassada, podem surgir bolhas de ar durante a confecção das peças de cerâmica. Bolhas superficiais são fáceis de perceber, pois formam saliências arredondadas sob a argila, e se abrem com a pressão do dedo. Faça sulcos com no buraco aberto pela bolha e preencha com barbotina* e argila, pressionando bem. As bolhas internas são tiradas ao “ocar” a peça, isso é, retirar o excesso de argila de seu interior. *Barbotina - É a argila misturada com água em estado pastoso. Usa-se para unir pedaços de argila, juntar duas placas, colocar alças, bicos ou aplicar decoração etc. Quando precisar acrescentar barro a uma peça, não o aperte simplesmente no local desejado: ele pode se soltar facilmente ou formar novas bolhas de ar. Depois, ponha a porção de barro desejada por cima. Repita várias vezes, se necessário. Às vezes, durante a secagem, uma peça pode rachar. Para consertar rachaduras, lixe a peça seca e recolha o pó que cair dela. Umedeça ligeiramente o local da rachadura com um pincel e risque-o com um palito ou um “esteco” de metal bem duro. Coloque numa vasilha o pó e faça uma pasta com alguns pingos de água. Aplique-a nas rachaduras com o palito. Detalhes muito finos e estreitos, como braços, folhas, etc., tendem a secar mais depressa que o resto da peça, e por isso tendem a rachar e cair. Para evitar que isso aconteça, aplique pequenos pedaços de pano úmido nesses locais. Umedeça-os ligeiramente quando estiverem secos, mas sem molhar demais. 5 - Modelagem Usando a placa - Fazer placa consiste em espalhar, com um rolo, uma porção de argila sobre uma superfície lisa, compactando-a. Usam- se duas réguas de madeira sobre as quais se movimenta o rolo com as mãos. As réguas servem também para calibrar a espessura da placa. Deve- se cobrir a argila, com um tecido ou plástico, para que não grude no rolo. Esta tarefa manual pode ser efetuada mecanicamente através de um abridor de placa, equipamento que permite espremer a argila através de dois rolos de borracha tracionados por uma manivela. Com placas pode-se construir a maioria das peças cerâmicas. Beliscando - Cria-se a forma da peça amassando a argila com os dedos de uma das mãos. A palma da outra mão ajuda a dar a forma desejada. Cobrinhas - São feita com tiras de argila que são roladas com as mãos sobre uma superfície lisa até que se tornem cilíndricas. Pode-se também produzi-las usando uma extrusora (equipamento que comprime o barro num tubo dando a forma que se quer na saída). Com as cobrinhas juntadas entre si, sobrepostas e trabalhadas, podem-se obter todas as formas que se queira, de acordo com a habilidade e técnica de cada um. MULHERES RECIPIENTES 23 ✓ Torno ou roda de oleiro - Usado para fazer peças torneadas como vasos, por exemplo. ✓ Como “ocar” peças de argila - Sempre que for fazer trabalhos com argila existirá a necessidade de ocar, isso é, retirar o excesso de argila de dentro das peças de cerâmica antes de secar para a queima. Pode parecer exagero, mas essa etapa é muito importante, principalmente nas peças grandes, porque diminui seu peso e reduz o risco de bolhas de ar. Além, é claro, de reduzir o tempo necessário para a queima. A peça a ser ocada deve estar em ponto de couro, isso é, quando a argila está mais dura, porém não totalmente seca. Uma dica para reconhecer o ponto de couro é passar o dedo pela argila: ela fica lustrosa. Em figuras de apenas um lado, como máscaras ou placas, ou que tenham aberturas, como casinhas, é mais fácil o processo. Mas em figuras fechadas, não há outro jeito senão cortar. ✓ Como cortar peças de argila - A peça deverser de preferência cortada em L, de modo a deixar a base intacta. Se cortar inteiramente a peça, fica mais difícil manter as duas metades na hora de costurá-las de volta. Dependendo da forma da peça a ser ocada, às vezes pode ser necessário fazer vários cortes. Para cortar argila maciça, deve-se usar um fio de náilon. Muitas vezes, amarram-se pedacinhos de madeira nas extremidades, para ajudar a segurar melhor o fio. Marque com um esteco* onde vai cortar, escolhendo de preferência uma área que não tenham muitos detalhes. Estique o fio de náilon e passe pelo meio da peça com cuidado, conforme o esquema. *Esteco - Espécie de palheta, parecida com um palito de picolé. Pode ser de madeira, plástico ou metal. ✓ Processo de “ocagem” - Depois de cortada a peça, segure um dos pedaços com uma das mãos enquanto retira a argila com uma colher de chá. Além do apoio, poderá sentir assim se está tirando argila demais. A camada que sobrar deve ter no mínimo 1 cm de largura. MULHERES RECIPIENTES 25 Faça sulcos com o esteco nas beiradas dos cortes e coloque barbotina, antes de juntar os pedaços. Aplique barbotina por toda a extensão do corte de um dos pedaços. ✓ A costura das peças Junte os dois pedaços e aperte bem. Selecione uma pequena área para a costura e, com um esteco de madeira, faça sulcos sobre o corte como aparece na ilustração, levando a argila de um pedaço a outro. Repita a operação no outro pedaço, de modo a cruzar os cortes anteriores, como aparece nas imagens. Nota: Você sabia que São denominados barros magros os que partem com facilidade quando trabalhados, e barros gordos os que possuem mais maleabilidade-plasticidade. Aplique barbotina sobre a costura e pressione-a, alisando a argila. Vá repetindo a operação, até o final. Se puder aperte os dois pedaços juntos com uma das mãos enquanto costura, para que não aconteça de uma parte já costurada abrir de novo. Alise a costura, cuidando para não deixar “cicatrizes”, e refaça os detalhes que possam ter sido danificados. Depois que a peça estiver totalmente fechada, não se esqueça de fazer um furo na base, para que os gases escapem durante a queima. Existe no mercado argilas que são colocadas à disposição dos consumidores na forma líquida, em pó e na mais usual - a forma plástica. Hoje em dia existe no mercado uma variedade enorme de argilas já prontas embaladas em blocos, pesando cerca de 10 quilos, algumas até trazidas do exterior, cada uma com características próprias de usos e aplicações. MULHERES RECIPIENTES 27 ✓ Vazar ou marcar peças cerâmicas Pode-se usar um simples palito de madeira e com ponta afiada para fazer essa etapa antes que a peça seja queimada. 6 - Endurecimento da argila e sua reciclagem Argila para ser trabalhada tem que estar úmida e maleável. Se for acondicionada num invólucro de plástico grosso, hermeticamente fechado, sua conservação se dará por longo período de tempo. Aberta a embalagem, a argila deverá ser mantida envolta em plástico e armazenada em recipiente fechado e em lugar fresco. Se isto não ocorrer seu endurecimento se dará em pouco tempo, dificultando seu uso e manuseio. Caso a argila endureça ela pode ser reciclada sem que perca suas características originais. Para tal deixa-se secar completamente e, em seguida, coloca-se o material, quebrado em pequenos pedaços, num recipiente, cobrindo-o com água. Após alguns dias, a massa resultante, já completamente amolecida, pode ser posta para secar sobre uma placa de gesso ou de madeira. No entanto precisa ser bem amassada para ficar novamente pronta para o uso. A reciclagem de grandes quantidades pode ser feita com um equipamento chamado “Maromba”. Aqueles que pretendem trabalhar com argilas devem saber que os trabalhos com argila não propiciam resultados imediatos. As etapas são sempre demoradas. Calma e paciência são qualidades que todo ceramista deve ter. 7 - Mistura de argilas As peças cerâmicas também podem ser confeccionadas misturando duas ou mais argilas desde que sejam compatíveis entre si. Entenda como compatíveis as que encolhem do mesmo modo, e no mesmo tempo. Por terem as mesmas reações não racham, com facilidade, durante a secagem e a queima. A confecção de peças com argilas de cores diferentes pode dar bons resultados estéticos. Após a queima de biscoito (veja sobre queima de biscoito no tópico “Queima e Técnicas de forno”) pode-se só aplicar um esmalte transparente. Outra solução é esmaltar por dentro, tornando-a impermeável, deixando a face externa sem esmalte, só com o efeito da queima na argila. 8 - Equipamentos utilizados por ceramistas MULHERES RECIPIENTES 29 OBS.: Nem todos os equipamentos e ferramentas são imprescindíveis para o ceramista iniciante. A seguir estão relacionados a maioria deles: forno com mobiliário interno (prateleiras e suportes refratários); torno de modelagem e torno de mesa para acabamento; mesa de trabalho e local para bater o barro; recipiente com tampa para a armazenagem da argila; baldes com tampas para guardar os esmaltes; placas de madeira para a secagem de peças; ferramentas para cortar, riscar, alisar, lixar,furar,amassar, polir (etc.) a argila; balança de precisão, peneira, espátula, funil etc. para confeccionar os esmaltes etc; cones pirométricos; bacia; pincel; esponja; rolo, réguas, pedaços de pano e plástico; avental; luva; máscara, óculos e etc etc. ✓ Ferramentas de acabamentos ✓ Ferramentas de torno ✓ Tornos (roda de oleiro)- Consiste num equipamento utilizado pelos oleiros* onde a argila é colocada em um prato giratório. A roda de oleiro foi inventada na Mesopotâmia no final do quarto milênio A C. Atualmente há no mercado inúmeros modelos de tornos, de variados tamanhos. A maioria é movida por motor elétrico e a regulagem da velocidade se dá por um pedal de acelerador, como nos carros. No passado era todas as rodas movimentadas com os pés e ajudadas com as mãos, caso necessário. Hoje em dia ainda existem regiões, bastante raras, que ainda usam este método tradicional. A atividade de um oleiro requer muita dedicação e prática. MULHERES RECIPIENTES 31 O caminho que conduz à perfeição é muito longo. A tarefa de um oleiro é dar forma a uma porção de barro com as mãos e umas poucas ferramentas. A argila é colocada no centro de um prato giratório e com os dedos posicionados, externa e internamente, levantam-se as paredes da peça na forma e altura desejada. Simples é descrever o processo, mas só quem é bastante habilidoso e dedicado é que consegue executar eficientemente o trabalho. *Oleiro é quem trabalha com o torno (roda de oleiro) e fabrica peças torneadas. ✓ Fornos - Os fornos usados nas queimas podem ser a lenha, elétricos ou a gás. Há inúmeros tipos e tamanhos para todas as necessidades. Encontram-se no mercado fornos elétricos cujo isolamento é feito com manta cerâmica, e por isto são menores, mais leves e ocupam menos espaço, facilitando enormemente uma futura mudança do local de instalação. Os fornos feitos com tijolos refratários são muito mais pesados e ocupam muito espaço físico, tornando bastante complexa uma possível mudança de local de instalação. OBS.: Há muitas opiniões contrárias ao emprego de mantas cerâmicas nos fornos, pois são sujeitas ao desgaste natural do uso, acarretando a conseqüente desagregação de partículas, que podem ser inaladas pelos usuários. Apesar deste ponto de vista contrário defendido por alguns, estes fornos são muito bem aceitos e vendidos em todo o mundo. ✓ Pirômetro - Usa-se para medir a temperatura interna dos fornos. É um instrumento imprescindível para a atividade cerâmica, pois serve para controlar o processamentoda queima. Atualmente a maioria dos fornos é equipada com pirômetros digitais que são precisos e possuem inúmeros recursos de regulagem. MULHERES RECIPIENTES 33 ✓ Cone Pirométrico - Foi Hermann Seger quem criou o cone pirométrico que permite saber em qual temperatura o esmalte se funde durante a queima. É feito com material cerâmico e tem a forma de uma pirâmide triangular alongada, medindo aproximadamente 7 cm de altura. Seu funcionamento ocorre da seguinte forma: quando o forno atinge uma temperatura, prefixada, o cone inclina-se completamente tocando com a ponta na prateleira em que está localizado. Deve o cone ser colocado em uma determinada posição que permita ser observado pelo ceramista através de um visor, que normalmente situa-se na porta do forno. Tais peças possuem números que indicam a temperatura. Como por exemplo: Cone 013=869oC; Cone 7=1215oC e assim por diante. A dificuldade de se enxergar os cones pirométricos no final das queimas em alta temperatura pode ser resolvida. Basta pincelar, na face do cone voltada para o visor, uma fina risca com óxido de ferro. Deste modo a visualização se torna bem mais fácil. Obs.: Veja no final a tabela de cones pirométricos. ✓ Moldes - Uma das maneiras de se confeccionar peças cerâmicas é usando moldes. Estes podem ser de gesso, de cerâmica (preferencialmente ainda em biscoito), de vidro, de plástico, de cimento, de silicone e outros materiais. O mais usual é o uso de moldes de gesso. Eles têm como principal vantagem o fato de absorverem rapidamente a umidade do barro. O processo é relativamente simples. Coloca-se uma placa de argila sobre o molde e pressiona-se para haver uma completa aderência à forma. A seguir espera-se secar até o ponto em que a peça saia facilmente, sem deformar. Um dos cuidados que deve ser observado é não deixar de passar na superfície interna do molde um desmoldante - talco, maisena ou sabão líquido fazem o mesmo efeito. Esta providência impedirá a adesão da argila ao molde dificultando sua retirada. Existem moldes especialmente concebidos para o uso de argila líquida. Neste caso derrama-se a argila, por um orifício, e espera-se secar. Uma parede, aos poucos, vai se formando internamente. Posteriormente abre- se o molde e retira-se a peça já perfeitamente moldada. Os passos seguintes serão: dar acabamento, secar, queimar biscoito, esmaltar etc como se procede habitualmente. O método da argila líquida é empregado em grande escala na produção industrial. ✓ Equipamentos de segurança - Deve-se usar sempre máscara quando se está lixando, formulando esmalte ou esmaltando, principalmente quando se aplica com pulverizador. Ao manusear os materiais cerâmicos use luvas e evite colocar as mãos na boca, nos olhos, e não fume, não beba e não coma enquanto estiver trabalhando, pois alguns dos materiais que se costumam usar são muito tóxicos. Deve-se proteger o corpo com roupas apropriadas e lavar bem as mãos no final do trabalho. MULHERES RECIPIENTES 35 9 - Queima e técnicas de forno 1ª Queima ou Biscoito - É a primeira queima. Serve para transformar a argila em cerâmica, tornando-a permanentemente dura. Geralmente eleva- se até 800/900o C. Esta queima deve ser bem lenta no seu início para que não haja risco das peças racharem ou empenarem, face a grande quantidade de água existente na argila até atingir 200o C. No final do cozimento constata-se uma diminuição, encolhimento, de mais ou menos 10% em seu tamanho e volume, ficando a peça porosa e não impermeável. Uma queima cuidadosa de biscoito dura cerca de oito horas e deve-se aguardar, pelo menos, outras oito horas para abrir totalmente a porta do forno, sob o risco das peças racharem em decorrência do choque térmico. Eliminação de água contida no barro durante a queima de biscoito O calor produzido pelo forno atua sobre a peça cerâmica de fora para dentro, ao contrário da evaporação da água que ocorre de dentro para fora. Já que a camada externa da peça seca mais rápido do que a interna ela se contrai primeiro, fechando os poros da argila. Isto dificulta a saída da água de seu interior, ocasionando uma tensão de sentido contrário: do interior para o exterior que pode ocasionar danos. Deve-se notar que se a temperatura do forno subir rapidamente, no início da queima, a camada externa irá se deformar (empenar) e rachar, em razão da argila conter muita água. Isto é que justifica a recomendação de que a queima de biscoito deva ser bastante lenta do seu período inicial - até atingir 200 graus aproximadamente. Existem artifícios para tornar o barro mais magro, com menos água na sua composição. Um deles é adicionar argila refratária à massa cerâmica. Com esta medida o barro vai se tornar mais poroso facilitando a saída da água durante o cozimento. Na indústria resolve-se este problema fazendo a secagem numa atmosfera úmida. A peça depois de aquecida é transferida do ambiente interior mais quente para o exterior mais frio. Isto induz a saída da água já que a camada exterior irá resfriar-se mais rápido do que a interior. 2ª Queima ou queima de esmalte (vidrado) - É feita em temperatura mais alta do que a de biscoito. Ao contrário desta, seu final, deve ser lento para que haja tempo do esmalte fundir-se completamente. É o momento em que a peça obtém sua cor definitiva. Caso se utilize um esmalte transparente só será realçada a cor da argila. O vidrado torna a peça impermeável ficando a superfície bem lisa. Nesta queima podem-se usar esmaltes de alta (+ de 1200º C); média (até 1200º C) e baixa (até 1100º C). Monoqueima - É o método em que a peça ainda crua só vai uma vez ao forno, já com esmalte aplicado. Apesar do menor gasto com energia elétrica e da maior rapidez no resultado final, este tipo de queima envolve muitos riscos. As peças ficam mais quebradiças antes de enfornar porque a argila crua, quando esmaltada, assimila uma grande quantidade da água. Os esmaltes também costumam dar problemas no acabamento e na cor. O que se constata é que não são muitos os ceramistas que usam a queima única. Arrumação das peças no forno - Na queima de biscoito não há grande dificuldade quanto a isto. As peças podem ser colocadas em diversas posições e até empilhadas. O maior cuidado é não deixar de apoiá-las corretamente para que não empenem. Na queima de esmalte, deve-se ter o maior cuidado quanto à distância entre as peças. Uma boa medida é deixar cerca de 1 centímetro entre elas para que não grudem entre si, quando da fusão do esmalte. Uso da Vaselina - Passa-se vaselina na parte inferior da peça, local que fica em contato com a prateleira do forno, evitando que o esmalte ao se fundir MULHERES RECIPIENTES 37 grude. Pode-se usar também vaselina, na decoração de peças, para fazer máscaras. Em todas as queimas a arrumação deve ser uniforme, quanto ao tamanho e altura, visando otimizar o uso do espaço disponível e permitir a repartição do calor igualmente. Esmalte é um produto vitrificável resultado da mistura de substâncias minerais que, ao derreterem, se fundem a uma determinada temperatura, aderindo ao corpo cerâmico. Na sua composição química entram minerais naturais, substâncias extraídas de minerais e outras produzidas quimicamente. Qualquer esmalte, seja de baixa, média ou alta temperatura, contém três elementos básicos: ➢ Sílica - Por ser o elemento formador do vidro é o principal ingrediente do esmalte, chegando até a 50% de sua composição. É encontrada em areias, argilas e cinzas de madeira. Sua apresentação é em forma de um pó branco moído muito fino. ➢ Fundente - Material que faz a sílica fundir num grau inferior à sua temperatura normal de fusão que é de 1700ºC, muito acima da temperatura máxima dos fornos de cerâmica. Existem diversos tipos de fundentes que se adequam ao tipo de esmalte que se deseja, de baixa, média ou alta temperatura, foscoou brilhante, opaco ou transparente, áspero ou suave. ➢ Estabilizante - Serve para que o esmalte quando derretido, depois de fundido, permaneça na superfície da peça sem escorrer. O óxido de alumina é o controlador da viscosidade do esmalte, mantendo-o estável. O esmalte, após a queima e o esfriamento, forma uma camada dura e impermeável que deixa a peça mais resistente e bem acabada. NOTA: Não se deve deixar de passar nas prateleiras uma camada da mistura de caulim e quartzo, na base de 50 por 50, dissolvida em água, para que o esmalte, caso escorra, não grude de forma irreversível. Esmaltação - A aplicação do esmalte na peça ocorre de vários modos. Por imersão (segurando a peça com uma pinça ou com a própria mão e imergindo-a em um recipiente contendo esmalte); por "derramado" (derramando o esmalte sobre a peça); por pulverização (aplicando o esmalte com uma pistola de pintura acionada por um compressor de ar); ou utilizando pincéis, esponjas etc. Imersão Derramado Pulverização Celadon - O termo celadon talvez não seja conhecido de todos os ceramistas. Mais conhecido certamente de colecionadores de cerâmica e porcelana chinesas e antiquários. Talvez também haja um pouco de confusão em torno do termo, que, em geral, significa cerâmica chinesa antiga de cor verde clara, imitação da cor do jade. Os chineses nunca ouviram falar em celadon. A palavra celadon é o nome de um pastor de uma peça francesa, do século 17, L’Astrée, que se vestia com uma roupa verde acinzentada. Nessa época chegavam à França as cerâmicas e porcelanas chinesas desse verde ou verde acinzentado, que se MULHERES RECIPIENTES 39 tornaram imediatamente uma paixão dos europeus amantes do que os franceses chamavam de chinoiserie, a arte que vinha da China. Na China se distinguia a cerâmica comum, o que hoje chamamos de baixa temperatura, em inglês earthenware, e a queimada em alta temperatura, fosse ela feita de argila, stoneware inglês, grés, ou de porcelana. O importante é que fosse cozida a mais de 1200ºC. Naturalmente nem existia graus centígrados na época nem os nossos “cones” de nossos dias: funcionava o “olhômetro”, a coloração da atmosfera dentro do forno ou da chama que saía pela chaminé, branco-amarelado ou branco mesmo. Também antigamente retirava-se uma peça com ferros para verificar o grau de queima da peça. A porcelana seria uma categoria acima, mas não, como consideramos hoje no ocidente, uma categoria à parte do que chamamos de cerâmica. Para o chinês era tudo um produto do fogo. Naqueles tempos, um forno, construído pela comunidade, passava de geração a geração, durava algumas dezenas de anos e muitas vezes era destruído somente por tropas inimigas, pelas guerras. Materiais diferentes, fornos e técnicas também diferentes resultam que os fornos do norte da China produziam um celadon de tonalidade diferente do sul, num um verde claro, no outro um amarelado, ou então uma tonalidade azulada. Com o passar dos tempos os colecionadores e museus foram catalogando e encontrando celadons de tonalidades diferentes, características distintas e deram nomes, pelo lugar de fabricação, ou pela época, pelos Imperadores , os Ming, os Sung e tudo mais. Assim, Bernard Leach¹, em seu livro, que se tornou a bíblia dos ceramistas modernos, distingue uns 70 celadons. Ricardo Joppert², sinologista e colecionador brasileiro, em seus livros, analisa e define muitos celadons, os chamados Céladons do Norte, do Sul. Os especialistas consideram que a fase áurea do celadon na China foi entre os séculos 9 e 14, tendo havido como um renascimento no século 18. Características técnicas do celadon Basicamente é um esmalte feldspático, com diferentes formulações, mas em que a cor, seja o verde claro ou escuro, o amarelado, o verde-acinzentado, ou o azulado é fornecido simplesmente pelo óxido de ferro, ou mais simplesmente ainda, talvez pelo óxido de ferro contido na argila utilizada pelos chineses antigos. Em segundo lugar, a queima em redução. Naturalmente, os chineses não tinham idéia do que seria redução: seus fornos geralmente subindo encostas, que os japoneses depois chamaram de "anagama" e "noborigama", de uma ou mais câmaras, queimados com lenha, eram naturalmente queimas de redução, em que o oxigênio era forçado e retirado, quase à força, de dentro da própria argila para a realização da queima. A cor e a opalescência dos celadons resultam de um efeito ótico sobre as partículas ultrafinas em suspensão e ainda de um jogo de luz sobre os milhares de minúsculas bolinhas de ar, invisíveis a olho nu. Outra característica é o craquelado, os minúsculos veios que se espraiam pelo esmalte. Os verdes produzidos pelo óxido de ferro em redução são de tonalidades inteiramente diferentes dos verdes produzidos pelo cobre ou pelo cromo. Já nos fornos europeus mais antigos, como tradicional bottle kiln, forno de forma de garrafa da indústria inglesa dos últimos séculos, o fogo e o calor subiam natural e diretamente para a atmosfera. Nos fornos antigos chineses o mesmo fogo e o calor viajavam dentro do forno por dezenas de metros até atingir lá no final a saída ou a chaminé, quando havia. Nos fornos europeus o calor não era retido, condicionado, resultando na redução, saindo livremente, resultando no que hoje chamamos de atmosfera oxidante. Os gregos antigos conheceram a redução e a utilizaram para seus vasos negros. Mas, depois foi esquecida. Da China o celadon passou para a Coréia, para o Reino Koryo. Os coreanos não copiaram só os fornos chineses, mas também criaram e fizeram inovações próprias. Os japoneses eram mais atrasados em matéria de cerâmica, mas nas guerras com a Coréia, em que saíram vencedores (não em todas), levaram para o Japão centenas de oleiros coreanos como prisioneiros de guerra. Coisa parecida com o que fizeram os americanos: “importaram” depois da derrocada nazista na última guerra, “convidaram” (entre aspas) dezenas ou centenas de cientistas alemães. MULHERES RECIPIENTES 41 No século 16 um oleiro coreano tinha o mesmo valor para os Shoguns japoneses que um cientista alemão para os americanos de 1945. O celadon coreano tem características próprias como o nipônico. Os materiais eram diferentes. Mas, a paixão por aquele vidrado de um efeito todo especial delicado, poético, que realçava e dava encanto especial ao baixo- relevo, de flores, figuras e paisagens gravadas na cerâmica ou na porcelana. Era a beleza clama, sossegada, poética, monocromática, tão diferente da cerâmica multicolorida, de pintura de paisagens ou figurativa. Modernamente, os ceramistas procuram reproduzir as tonalidades e os encantos dos celadons. Como obter aqueles mesmo efeitos com técnicas, os materiais e os fornos de hoje? Muita pesquisa foi feita. Na China e no Japão analisaram os materiais antigos, pesquisaram as técnicas antigas e os fornos dessas épocas. Muito trabalho desde o livro básico de Bernard Leach. Hoje podemos reproduzir, com materiais vendidos nas lojas de cerâmica, um “Celadon do Norte”, lá do século 10, da dinastia Sung, ou um Lung-ch’üan da Quinta Dinastia. Não só o esmalte, mas também a massa cerâmica. A aplicação do esmalte celadon não é tão fácil - custa a pegar. Quando a peça é pequena, poderá mergulhar a peça e no caso das maiores, banhá-la (despejando o esmalte por cima da peça). Tenho utilizado o celadon para peças de esculturas para jardim. Aí despejo o esmalte sobre a peça, várias vezes. O ceramista francês Jacques Datcharry*, em seu trabalho sobre esmaltes em forma de “folhetim” pela Internet, lembra que, “em teoria (mas em teoria somente) obter um celadon é muito simples,” e acrescenta “fazer um belo celadon, é difícil, muito difícil, e se necessita de grande experiência (ou muita sorte) e humildade acima de tudo.” Fim da queima - Terminada a queima há a necessidade de que o resfriamento das peças se dê paulatinamentedurante, pelo menos, o mesmo tempo de sua duração. Só após a temperatura baixar até cerca de 200o C é que se poderá entreabrir a porta do forno. Passada uma hora, aproximadamente, pode-se iniciar a retirada das peças que, mesmo assim, ainda estarão bem quentes. O uso de luvas é recomendado para o manuseio, nesta ocasião. OBS. Se este procedimento não for obedecido (resfriamento lento) há o risco das peças racharem ao ocorrer o choque térmico - encontro com a atmosfera exterior mais fria. Assinatura - Assinatura. Há o costume de se assinar peças cerâmicas para identificar sua autoria. Isto é feito usando uma caneta com tinta indelével, após a queima; ou riscando, na argila ainda maleável, com uma ferramenta de ponta ou pressionando um carimbo com a marca do autor. Alguns ceramistas colocam, além da assinatura, também o local e a data da confecção da peça. Secagem - A água contida no interior da peça crua, evidentemente, tende a evaporar por influência da atmosfera exterior. O calor que dá origem à secagem, pelo contrário, age do exterior para o interior. Ou seja, a corrente quente do exterior movimenta-se em sentido contrário à água que procura sair do interior. Como a superfície externa seca mais rapidamente, ela se contrai e, em conseqüência, fecha os poros da argila, dificultando a saída da água ainda contida internamente. Isto gera tensões entre a parte interna e a externa. Se a diferença da temperatura for grande (parte seca/ parte úmida), a superfície exterior não apenas se deforma - ou seja, empena - como também racha, abre fendas. Depreende-se, portanto, que a secagem deve ocorrer sempre lenta principalmente na sua fase inicial. No entanto, pode-se facilitar a saída da água, acrescentando à massa/argila produtos que a tornem mais porosa. O chamote é uma boa solução. As peças devem ser colocadas para secar, preferencialmente, cobertas com pano, papel ou plástico, em local ventilado sem a incidência direta dos raios solares. É conveniente escolher uma posição que não receba corrente de ar unilateralmente, para que regiões mais expostas não sequem mais rapidamente do que as menos expostas. No caso de placas, o melhor é colocá-las para secar em cima de um estrado, já que isto permite a aeração também pela parte de baixo (inferior), fazendo com que a secagem ocorra, simultaneamente, em ambos os lados, diminuindo assim o risco de deformações e o aparecimento de rachaduras. Não é recomendável colocar um peso em cima de uma placa para evitar empenamento, já que a água contida no seu interior acaba procurando saída pelas arestas laterais, que secam primeiro por estarem em contato com o ar ambiente, acarretando tensões que poderão provocar rachaduras. OBS.: As peças cerâmicas, depois de prontas, devem ser colocadas para secar em local ventilado sem a incidência direta dos raios solares, para que não empenem nem rachem. É conveniente escolher um local sem corrente de ar para que as partes mais expostas não sequem mais rapidamente do que as menos expostas. MULHERES RECIPIENTES 43 O processo de secagem deve ser o mais lento possível, inclusive com as peças moldadas com barro magro e, também, com as que se tenha adicionado argila refratária. Não é recomendável colocar peso em cima de uma placa para evitar empeno. Isto porque a água contida no barro acaba saindo pelas arestas laterais que secam primeiro, podendo provocar rachaduras. Para retardar a secagem de uma peça deve-se envolvê-la em saco plástico, jornal ou pano úmido e colocá-la em lugar protegido para que a umidade se conserve por mais tempo. Este artifício costuma ser aplicado quando o término da confecção de uma peça, por quaisquer razões, tem que ser adiado para outra oportunidade. Queima de Raku - O Raku surgiu no Japão no século XVI e sempre foi ligado ao cerimonial do chá. Seu significado é felicidade e prazer. O modo da queima, hoje no ocidente, é diferente da efetuada originalmente pelos japoneses. Uma das grandes "vantagens" do Raku é que a queima final é bem mais rápida do que a habitual. O processo em si, na maioria dos aspectos, é idêntico ao da cerâmica tradicional. Secar, queimar biscoito, esmaltar e enfornar. Qualquer tipo de argila pode ser usada desde que contenha chamote (material imprescindível para resistir ao choque térmico). Esmaltes comerciais podem ser aplicados, mas se forem mais elaborados, podem-se obter resultados especiais e exclusivos. Estes diferenciais são, certamente, fatores positivos no momento da comercialização das peças. O uso de engobes* na queima de Raku garante um efeito decorativo muito satisfatório. O craquelado é uma das características desta queima. As rachaduras escurecem pelo efeito da fumaça e realçam claramente as pequenas fraturas na camada superficial do esmalte. No Raku, as partes não esmaltadas ficam com a tonalidade escura. *Engobe - É a argila em estado líquido podendo ter de várias tonalidades. Usada na decoração das peças. Pode ser acrescida de outros materiais - óxidos corantes ou pigmentos. Os fornos utilizados são a gás e de dois tipos: Os montados com tijolos refratários, fixos num determinado local, muito pesado; e os feitos de alumínio ou ferro e isolados com manta cerâmica. Estes são leves e fáceis de serem removidos. A temperatura do cozimento situa-se em torno de 900 a 1000 C°e leva cerca de uma hora. A combustão se dá com o uso do gás de botijão, com chama regulada por maçarico. As peças são retiradas do forno ainda incandescentes, com o esmalte no ponto de fusão, seguras por pinças, e são colocadas num recipiente com tampa contendo serragem, ou folhas, ou jornais. Neste momento o material entra em combustão e inicia-se a redução (queima do oxigênio) . Como resultado processa-se a transformação dos óxidos metálicos surgindo colorações, as mais inusitadas. Após algum tempo retira-se a tampa do recipiente e com luvas pegam-se as peças que necessitam ser lavadas e escovadas para a retirada dos resíduos. Outro processo também usado, diferente da redução, consiste em mergulhar a peça, ainda incandescente, em um recipiente com água. Ao contrário do que se possa pensar, isto geralmente não provoca rachadura face ao choque térmico, a não ser que a argila, quando da moldagem, tenha tido alguma emenda ou reparo feito incorretamente, ou a peça tenha uma parede bastante fina. Muito importante é não se esquecer de trabalhar com segurança neste tipo de queima. Não deixe de usar máscara, óculos, luvas, roupas adequadas, calçados etc. Deve-se notar que a fumaça originária da queima do Raku é tóxica devendo-se evitá-la o mais que se puder. Óxidos corantes - São minerais em sua maioria tóxicos. Deve- se ter muito cuidado ao manuseá-los. Recomenda-se muita atenção para não colocar as mãos na boca, nariz, olhos durante o trabalho e não deixar de lavá-las com sabão ao final. MULHERES RECIPIENTES 45 Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X Alguns dos resultados que podem ser obtidos com o uso de óxidos misturados ao engobe: ✓ Óxido de ferro - Pigmentos amarelos e marrons ✓ Óxido de cobalto - Tons azuis ✓ Óxido de cobre - Tons verdes ✓ Óxido de cromo - Tons verdes escuros e rosas quando associado ao estanho. Estes resultados não são precisos já que outros fatores interferem no processo: o tipo de argila usada; características da queima , sua temperatura, duração etc. Outro fator determinante, no que se refere aos matizes a serem obtidos, é o percentual do óxido agregado à argila. Por esta razão é aconselhável fazer testes começando com quantidades pequenas (entre 2 a 5%) e ir aumentando a dosagem até conseguir o resultado desejado. Quando se usam pigmentos, no entanto, o resultado final das cores torna-se previsível, já que ele s são estáveis. A ARTE DA CERÂMICA MARAJOARA: ENCONTROS ENTRE O PASSADO E O PRESENTEDENISE PAHL SCHAAN* A ARTE DAS SOCIEDADES DE TRADIÇÃO ORAL uso da palavra arte para designar manifestações estéticas de sociedades arqueológicas é visto com reserva pelos arqueólo- gos, porque se sabe que as sociedades indígenas não conside- ram seus objetos de uso cotidiano, festivo ou cerimonial como obras de arte. Por isso, denominações como “arte indígena” ou “etnoarte” (SILVER, 1979) têm sido usadas para diferen- ciar a arte dos povos indígenas da arte da sociedade ociden- tal. Mas talvez essa distinção não seja tão necessária. Costuma-se entender que a arte na sociedade ocidental incentiva a criatividade (como algo contrário à tradição), mas na verda- de também os ocidentais produzem a arte para o público e, nesse sentido, são de alguma forma também sujeitos à acei- tação social de suas produções estéticas (BOURDIEU, 1999; LÉVI-STRAUSS, 1989). Por outro lado, a idéia de que a produção indígena de vasilhas de cerâmica é “padronizada” e segue rigidamente a “tradição” é fruto de um olhar ocidental e não leva em conta que nas comunidades ceramistas os indi- víduos distinguem facilmente entre produções que, do pon- to de vista externo, pareceriam iguais. Para que possamos entender o sentido que possuíam as manifestações artísticas ou estéticas das antigas sociedades 99 amazônicas e de que maneira essas manifestações se relaciona- O vam com outros aspectos da cultura, os arqueólogos buscam estudar as sociedades descritas por etnógrafos – especialmente as sociedades de tradição oral¹. São grupos humanos que fa- zem uso da oralidade, da corporalidade e do gestual como maneiras de transmissão de conhecimentos e de compar- tilhamento de conceitos cosmológicos. O contato real entre as pessoas, o contar estórias, o representar e reviver acontecimen- tos mitológicos por meio de comportamentos rituais é sua forma de memorizar e transmitir conhecimentos. Como complemento e reforço a esse modo de transmissão oral, são utilizados obje- tos materiais que carregam de modo acessível aos olhos os mesmos conceitos, ensinamentos e conhecimentos (GEERTZ, 1989). A estética própria de um grupo social – as pinturas corporais, os ornamentos, as roupas, os objetos que carregam – comuni- ca sobre o grupo a que o indivíduo pertence, sobre sua identi- dade individual e social. São códigos compartilhados por indivíduos que lhes atribuem significados semelhantes e, nes- se sentido, esses objetos vêm a fazer parte de um mesmo siste- ma de significações (RIBEIRO, 1987; VELTHEM, 1994; VIDAL, 1992). É justamente o fato de se constituírem nesse sistema coerente de significados que nos permite, a nós arque- ólogos, dispor de um referencial teórico que nos capacita a investigar essas manifestações estéticas e comportamentos do passado, quando não temos mais os indivíduos para nos apon- tar o significado das coisas e esclarecê-lo. As sociedades de tradição oral possuem em geral uma relação muito particular com os outros seres da natureza, o que observamos na cerâmica, por exemplo, através da representação de animais (os zoomorfos) e humanos/animais (os antropo- zoomorfos). Essas não são representações meramente ilustrativas da fauna, mas possuem um sentido metafórico. Esses são ani- mais ligados de maneira muito íntima com a história cultural do grupo social que os utiliza. Seria simplificar demais dizer que essas populações possuem uma concepção animista de mundo; de fato, a situação é bastante mais complexa. Segundo Viveiros de Castro (2005), os ameríndios acreditam que cada espécie animal se vê a si mesma como humana. Assim sendo, as onças veriam os humanos como caça (como se fossem, por exemplo, porcos selvagens) e, por isso, os atacariam. A isso ele chama de “perspectivismo ameríndio”. De acordo com suas observações, os ameríndios percebem os grupos de animais como se fossem sociedades, com organização social, chefes, pajés, etc. Ou seja, eles entendem que esses animais estão organizados e pensam da mesma forma que eles, humanos. Viveiros de Castro explica que, enquanto nós, ocidentais, percebemos que temos uma na- tureza comum com os animais – por sermos também animais – mas que nos diferenciamos deles por possuirmos cultura, os ameríndios entendem que compartilham com os outros ani- mais a cultura e que se diferenciam deles pela natureza, por se- rem de espécies diferentes. Há uma enorme complexidade por trás das relações entre humanos e animais nas sociedades ameríndias e essa complexidade deve estar representada nos mitos, na deco- ração da cerâmica e dos demais artefatos. Temos que ter isso em mente, portanto, quando nos atrevemos a interpretar e buscar significados para as manifestações estéticas das sociedades ameríndias do passado. Um dos trabalhos que mais influenciou antropólo- gos e arqueólogos dedicados a estudar a “arte” indígena foram as pesquisas realizadas pela antropóloga Nancy Munn com os Walbiri da Austrália. Munn (1962; 1973) observou que sempre que os Walbiri relatavam suas viagens faziam rabiscos com um galho no chão ou em paredes de cavernas, rabiscos que para ela não tinham significado algum. Entrevistando-os, ela veio a descobrir que os rabiscos eram representações padroni- zadas de conceitos, uma espécie de código visual que auxiliava o contador de estórias a tornar mais clara e verídica sua narra- tiva. Os grafismos, como vou chamá-los (Munn os chama de , G o iâ n ia , v . 5 , n .1 , p . 9 9 -1 1 7 , ja n ./ ju n . 2 0 0 7 . , G o iâ n ia , v . 5 , n .1 , p . 9 9 -1 1 7 , ja n ./ ju n . 2 0 0 7 . MULHERES RECIPIENTES 47 Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X strokes, em inglês), representavam conceitos como caminho, jornada, reunião, fogo etc, ou seja, eram uma espécie de códi- go mnemônico que ajudava a tornar visual e materializar, por- tanto, a estória. Vamos encontrar na literatura antropológica diversos estudos sobre estética de grupos ameríndios que se- guem essa mesma linha de entendimento e que vieram a des- 101 crever fenômenos semelhantes. Um outro caso ilustrativo proveio da pesquisa de Regina Pólo Müller (1990) sobre os Asurini do Xingu. Ela descobriu que representações aparentemente abstratas na pintura corpo- ral e na cerâmica, que eram vistos por observadores externos como motivos decorativos estilizados, veiculavam também in- formações e conceitos de importância fundamental para o grupo. Além disso, muitos deles eram também metonímias, ou seja, utilizavam a representação de apenas parte do referente, esta parte carregando, então, o significado do objeto completo. Esse tipo de entendimento, obviamente, só foi possível pela possi- bilidade de entrevistar os nativos e obter deles as interpreta- ções dos motivos decorativos, o que é impossível quando se trata de sociedades do passado distante. Reichel-Dolmatoff (1971; 1976), por sua vez, per- cebeu que grafismos reproduzidos pelos Tukano estavam re- lacionados a visões luminosas produzidas pelo estímulo fisiológico de drogas como o yajé. O próprio pesquisador ingeriu a droga e viu as mesmas imagens, que identificou como sendo os “fosfenos de Knoll”. Max Knoll (1963) iden- tificou imagens mais ou menos padronizadas que se formam na retina do olho, produzidas por estímulos químicos e neu- rológicos, a que chamou de fosfenos. Essas imagens, por se- rem produzidas por substâncias químicas e processos fisiológicos, são vistas de maneira semelhante por todas as pessoas; por isso pensa-se que a ingestão de drogas alucinó- genas em rituais pode provocar a identificação de padrões culturais nessas visões e, a partir daí, reproduzi-las em obje tos materiais, como a cerâmica. CERÂMICA MARAJOARA Inspirada em trabalhos como os citados anteriormente, comecei a estudar a cerâmica marajoara e a tentar interpretar, ou entender melhor no que consistia aquela es- tética. Fiz associações que mepermitissem uma aproximação dos possíveis significados sociais das representações gráficas e plásticas nos objetos. Uma das características mais marcantes da cerâmica marajoara é o convívio, em um mesmo objeto, de representações naturalistas e representações geometrizantes, estas últimas chamadas usualmente de grafismos. Geralmen- te quando aparecem no entorno de uma representação natu- ralista, os grafismos tendem a ser interpretados como enchimento do campo visual, ou seja, algo que se coloca para preencher os espaços entre as representações a que se dá des- taque (Figura 1). Na verdade comecei a perceber que os grafismos não eram simplesmente figuras aleatórias, mas que eles, também, representavam os mesmos personagens natu- ralistas. Se prestarmos atenção, então, vamos perceber que estão representadas caudas, cabeças, patas, cascos de tartaru- ga, couro de cobras, o que podemos associar com as repre- sentações metonímicas que Müller (1990) identificou entre os Asurini. Alguns desses grafismos são semelhantes aos uti- lizados por outras sociedades ameríndias e, além disso, al- guns deles correspondem aos padrões e formas que se formam na retina do olho quando o indivíduo está em transe aluci nógeno, ou seja, quando está “vendo” em realidade os fosfenos identificados por Knoll (1963). Alguns dos animais mais freqüentemente representados não são animais dóceis ou que fazem parte da dieta, mas justamente animais venenosos e temidos, como cobras, jacarés e escorpiões. Isso nos leva a associar esses tipos de representações com estórias mitológi- cas. Lévi-Strauss (1997) chamou a atenção para o fato de que os animais que povoam as estórias mitológicas não são aque- les “bons para comer”, mas os que são “bons para pensar”. Nesse sentido, conclui-se que os animais representados na iconografia marajoara são justamente aqueles mais provavel- mente relacionados à história cultural do grupo, cuja repre- sentação os ajuda a memorizar e reviver essa história em ocasiões festivas e ritualísticas. Figura 1: Urna funerária decorada com apliques modelados e linhas incisas sobre engobo branco, com retoque vermelho. Peça do acervo do Museu Nacional, aquarela de Manoel Pastana, acervo do Museu do Forte, Belém. Geralmente estudamos a cerâmica de uma deter- minada sociedade do passado com base em coleções exis- tentes em museus as quais se formaram ao longo dos anos e que são fruto, na maioria das vezes, da retirada ilegal de peças arqueológicas dos sítios. Elas são coletadas principal- mente por seu valor estético e não vêm acompanhadas, via de regra, por informações sobre o local de procedência ou do contexto arqueológico em que foram encontradas. Nos museus, a cerâmica acaba considerada como objeto que é parte do dia-a-dia de determinado grupo social. Quando se escava um sítio, no entanto, se percebe que a cerâmica de- corada é apenas 10% do que se produzia em termos de pa- nelas e outros utensílios. Ou seja, a cerâmica decorada era utilizada apenas em festas, cerimônias e rituais; não era a louça do cotidiano. Além disso, outros objetos feitos de penas, ossos, madeiras, peles, tecidos ou fibras vegetais eram tam- bém usados, com importância igual ou superior à cerâmi- ca, quem sabe, mas não podemos estudá-los, MULHERES RECIPIENTES 49 Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X pois não resistiram ao tempo. Estudando a cerâmica marajoara como uma forma de comunicação visual de significados socialmente comparti- lhados, deparamo-nos com a representação recorrente de co- bras (em vários estilos) sobre todos os objetos (Figuras 2 e 3). Elas são representadas, como outros animais, de maneira na- turalista e também de maneira gráfica, pictórica, meto- nímica, por meio da reprodução de suas partes: corpo, rabo, cabeça, pele. Essa ubiqüidade da representação de cobras nos indica que esse ser era muito importante para aquelas popu- lações, provavelmente uma personagem relacionada à histó- ria cultural do grupo, à sua formação, surgimento, ao início dos tempos. Investigando mitos e cosmologias de popula- ções ameríndias da Amazônia, constatamos realmente que a cobra grande, a anaconda, em suas diversas formas, desem- penha um papel fundamental para a criação física do grupo e obtenção de conhecimentos. Figura 2: Vaso com aplique representando cobra e decoração excisa sobre o bojo. Desenho de Tom Wildi (1897-1984), de vaso de sua coleção particular. Os Tukano do noroeste amazônico, por exemplo, contam que seus antepassados chegaram dentro do corpo de uma cobra-canoa, com a função de povoar o mundo. A co- bra os largou ao longo do rio, nos lugares onde ainda hoje habitam, e, por serem uma sociedade hierárquica, os diver- sos estratos sociais têm sua posição social e geográfica justificadas Figura 3: Exemplos de representações de cobras encontradas na cerâmica marajoara. Desenhos da autora. por esse acontecimento mítico. A cobra é ainda considerada a mãe de todos os peixes, o que remete à relação muito ínti- ma que existe entre as cosmologias apoiadas na personagem da cobra grande e uma subsistência baseada na pesca, como é o caso das populações amazônicas (CHERNELA, 1989; REICHEL-DOLMATOFF,1971). Vemos então que o estu- do da iconografia nos permite chegar a um quadro mais apro- ximado da relação entre representações estéticas – a arte – e aspectos de organização social e subsistência. A iconografia marajoara é muito rica e não haveria espaço aqui para explorar suas diversas manifestações. Por isso, vou me deter, a título de ilustração, na iconografia das urnas funerárias, das estatuetas e das tangas de cerâmica. ICONOGRAFIA Quando os primeiros exploradores, homens da ciên- cia do século XIX, escavaram os sítios arqueológicos na área dos campos da ilha de Marajó, depararam-se com verdadeiros cemi- térios: eram grandes urnas funerárias que continham ossos e objetos cerâmicos e líticos diversos. Essas urnas se diferencia- vam entre si pela exuberância da decoração. Havia urnas de esti- los decorativos diferentes e havia urnas sem nenhum tipo de decoração. Como se sabe que as sociedades humanas tendem a reproduzir no contexto funerário as relações sociais que manti- nham em vida, concluiu-se que aquela era uma sociedade hie- rárquica, que tratava de maneira diferenciada seus membros até depois da morte (FERREIRA PENNA, 1877; 1885; NETTO, 1885). MULHERES RECIPIENTES 51 Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X Ao encontrarem cemitérios semelhantes em diversos pontos da área dos campos – tratava-se de tesos (enormes plataformas de terra) construídos artificialmente, onde se verificava a exis- tência de práticas funerárias de mesmo tipo –, caracterizaram aquela como se fosse uma mesma cultura, a que chamaram de “marajoara”. Ao mesmo tempo, perceberam que havia diferen- ças tanto cronológicas como geográficas entre os sepultamen- tos: havia diferentes estilos de urnas funerárias, dependendo da região onde eram encontradas, e as práticas funerárias pareciam variar com o tempo; mais recentemente, o enterramento secun- dário teria dado lugar à cremação como prática mais corrente. No decorrer dos estudos arqueológicos no Marajó, pesquisado- res descobriram que não havia apenas cemitérios, mas outros tesos onde a cerâmica decorada e os sepultamentos eram prati- camente ausentes; logo esses foram entendidos como locais de habitação (MEGGERS; EVANS, 1957). Mais tarde, Anna Roosevelt (1991), ao escavar dois desses tesos-cemitérios (Teso dos Bichos e Guajará), desco- briu que continham também estruturas habitacionais; por isso, entendeu que aqueles eram os locais de moradia da eli- te, que sepultavaseus antepassados no mesmo local em que moravam, como forma de manter sua relação com aqueles que eram os donos do lugar e assim garantir e justificar sua posição social diferenciada. Estudando um grupo de sepul- tamentos no teso Belém, no rio Camutins, escavamos várias urnas funerárias que mostravam padrões iconográficos mui- to semelhantes, indicando tratar-se de objetos pertencentes a pessoas de uma mesma linhagem ou família (SCHAAN, 2003, 2004). Nesse sentido, podemos entender a decoração das urnas funerárias como sinal de uma identidade social. Ao percebermos as variações de estilo nas diversas áreas da ilha, entendemos que havia na verdade não apenas uma grande sociedade marajoara, mas diversos grupos sociais regionais, ou diversos cacicados, que dominavam em sua região, relaci- onando-se uns com os outros através de casamentos, alian- ças, festas e, talvez, até de guerras. As urnas funerárias da cultura marajoara trazem em geral a figura humana em destaque, mas sempre associada com animais como a cobra, o escorpião, o urubu-rei, o jacaré ou o lagarto, entre outros (Figura 4). Além disso, a figura humana é predominantemente feminina, quando o sexo pode ser identificado, o que pode indicar que a matrilinearidade era a maneira organizativa do parentesco. Um dos exemplos Figura 4: Urna funerária decorada com aplique modelados na forma de lagarto e motivos excisos sobre engobo vermelho. Peça do acervo do Museu Nacional, aquarela de Manoel Pastana, acervo do Museu do Forte, Belém mais conhecidos é uma urna que congrega características da ave (coruja) e do gênero feminino (representado pela vagina e útero, às vezes grávido) (Figura 5). Figura 5: Urna funerária decorada com apliques modelados e pintura vermelha e preta sobre engobo branco. Acervo Museu Paraense Emílio Goeldi, ilustração do livro Unknown Amazon, editado por C. McEwan, Cristiana Barreto e Eduardo Neves, Londres: British Museum Press, 2001. As representações femininas estão presentes também nas estatuetas que, pensa-se, teriam tido uso ritual em ceri- mônias de cura, se entendermos como válida a analogia com o uso desses objetos pelos grupos Cuna e Chocó, da Colôm- bia (REICHEL-DOLMATOFF, 1961). A maneira como aqueles grupos ameríndios utilizavam suas estatuetas explica determinadas características físicas observadas nas estatuetas marajoaras. Por exemplo, os Cuna e Chocó utilizam as estatuetas como veículos em que se encarnam os espíritos protetores, suspendendo-as sobre o corpo do paciente, ou chacoalhando- as. Realmente diversas estatuetas marajoaras possuem furos que permitiriam utilizá-las suspensas e, ainda, possuem em seu interior pedrinhas que produzem barulho quando agita- das, o que indica também que teriam a função de maracás (espécie de chocalho usado por pajés amazônicos). Uma ou- tra coisa que me chamou a atenção, estudando estatuetas e fragmentos de estatuetas, foi o fato de muitas estarem que- bradas na altura do pescoço, o que poderia indicar também uma quebra ritual. Os Cuna e Chocó, por exemplo, têm o costume de quebrar suas estatuetas ao final do ritual e, por- tanto, temos um exemplo etnográfico que apóia esse tipo de interpretação (SCHAAN, 2001). Não é somente com a representação do feminino que a cerâmica marajoara mostra o simbolismo sexual, mas também na produção e no uso de tangas de cerâmica por parte das mulheres. As tangas são triângulos convexos de ce- râmica que possuem perfurações nas extremidades, indican- do seu uso como vestimenta. Em algumas urnas funerárias, se percebe que a personagem feminina está usando uma tan- ga, e há relatos de que tangas teriam sido encontradas amar- radas por fora de urnas funerárias, na altura da vagina da personagem representada (PALMATARY, 1950). As tangas são encontradas somente nos tesos da elite, ou seja, naqueles em que há sepultamentos e cerâmica decorada. São encon- tradas inteiras dentro de urnas, nos sepultamentos que, se deduz, sejam de mulheres. Também são encontradas frag- mentadas nas escavações em áreas de moradia, em áreas de descarte e em áreas de circulação e produção de cerâmica. Inicialmente, as tangas foram classificadas pelos es- tudiosos em duas categorias distintas: as decoradas e as não- decoradas. As decoradas apresentam motivos decorativos pintados em vermelho e, menos freqüentemente, em preto, sobre engobo branco, ao passo que as não-decoradas geralmente recebem um engobo vermelho, com polimento, de forma a avivar a cor. Pensou-se inicialmente que as decoradas pertenceriam à elite, às mulheres mais importantes, ao passo que as não-deco- radas pertenceriam às mulheres comuns. No entanto, o fato de serem encontradas somente nos tesos da elite, sustenta a tese de que ambas eram usadas pela elite, mas que haveria cer- tamente uma diferenciação entre essas mulheres. Ao estudá- las, percebemos que são principalmente as tangas sem decoração que são encontradas dentro de urnas funerárias grandes e cui- dadosamente decoradas; por isso, sugerimos que o que dife- renciaria as usuárias de um e outro tipo poderia ser a idade ou o ciclo de vida pelo qual passavam. Nesse sentido, é possível que as tangas decoradas fossem usadas por meninas em rituais de iniciação, durante a puberdade (em razão de seu tamanho, em geral menor), ao passo que as não-decoradas seriam usadas por mulheres mais velhas, casadas. MULHERES RECIPIENTES 53 Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X Percebe-se nas tangas a existência de três campos decorativos principais (Figura 6). Uma faixa superior, que é semelhante na maioria das tangas, que poderia representar o princípio feminino, já que mostra um retângulo que, em estatuetas, representa a vagina (SCHAAN, 2003). Uma se- gunda faixa mostra os motivos da pele da cobra grande, e vemos aqui a associação entre feminino e cobras, o que é comum na mitologia amazônica. A cobra é considerada um ser feminino, assim como a água está relacionada também ao princípio feminino. Em estatuetas femininas se vê a repre- sentação da cobra sobre o ventre e, em algumas urnas fune- rárias, cobras abraçam o ventre como se fossem braços. Figura 6: Reprodução de tangas em cerâmica. A tanga da direita foi colorida para indicar os diferentes campos decorativos. Acervo Museu Paraense Emílio Goeldi, desenho da autora. Em um terceiro campo decorativo, há representa- ções mais variadas e, portanto, consideramos que este estaria relacionado à identidade da usuária. Estamos trabalhando ainda para identificar que animais poderiam estar representados neste terceiro campo decorativo. O estudo da iconografia nos permite entender, de forma mais holística, o funcionamento da sociedade e perce- ber mais coerência nessa “arte” indígena, ao ligá-la às outras categorias de informações que temos sobre a sociedade O USO CONTEMPORÂNEO DA ARTE MARAJOARA Atualmente, a “arte” marajoara não está mais restri- ta aos museus ou aos gabinetes de pesquisa, mas ganha espa- ço nas ruas através do artesanato, em que motivos decorativos são reproduzidos com uma grande variedade de suportes. Seu grande apelo popular e sua rápida disseminação em contex- tos de produção e venda dentro do mercado capitalista têm chamado a atenção dos cientistas sociais. O público leigo tende a confundir a arte marajoara atual com a pré-colonial, e assiste-se à apropriação de um estilo estético e de símbolos visuais do passado em contextos contemporâneos, travestidos de novos significados. Essa revivescência do passado passa a servir como forma de valorizar produtos artesanais que, a partir dessa nova identidade, tornam-se mais atrativos ao mercado, possibilitando o sustento de dezenas senão de cen- tenas de famílias no estado do Pará. A arte marajoara contemporânea começou a emergir na década de 1970,capitaneada por dois artesãos populares: mestre Cardoso e mestre Cabeludo. Por diversas razões, mes- tre Cardoso tornou-se mais conhecido e foi tido como o pre- cursor da produção artesanal de cerâmica inspirada na cerâmica arqueológica (FRADE, 2002). Mestre Cardoso conta que, ao visitar uma exposição de arqueologia no Museu Goeldi, ficou fascinado com a cerâmica arqueológica, especialmente a marajoara. Nascido de mãe ceramista e vindo de uma comu- nidade em que havia muitas olarias, Cardoso interessou-se em reproduzir as peças que viu. Partiu então para o estudo das técnicas de produção indígenas e solicitou permissão para ver as peças e copiá-las dentro do museu. A partir de então come- çou a produzir réplicas de cerâmica marajoara e a , G o iâ n ia , v . 5 , n .1 , p . 9 9 -1 1 7 , ja n ./ ju n . 2 0 0 7 . comercializá- las. Sua produção fez escola e surgiu, dentro do bairro do Paracuri, em Icoaraci, estado do Pará, um pólo de produção cerâmica cujos diversos estilos, hoje, são livremente inspirados na cerâ- mica arqueológica. A réplica em si não tem muita saída no mercado, por ser uma peça mais cara, dado o fato de ser pro- duzida individualmente e demandar mais tempo em sua confecção. As peças de inspiração livre, ao contrário, são produzi- das em série. Nas oficinas do Paracuri há divisão de tarefas: existem empregados para formar as peças, outros para decorar, outros para queimar etc. Os motivos decorativos utilizados são copiados de livros e revistas, as formas são reinventadas. Hoje em dia, os artesãos misturam grafismos rupestres com os da cerâmica, em novas formas, muitas vezes utilitárias. Alguns vasos apresentam motivos marajoaras ao lado de paisagens e representações contemporâneas de pássaros e outros animais, inexistentes na cerâmica arqueológica. Apesar disso, a cerâmi- ca é vendida como marajoara, na explícita intenção de dar-lhe uma profundidade temporal e, com isso, agregar-lhe valor, negociando sua antigüidade como algo valioso. Ao serem in- dagados sobre os significados dos grafismos na cerâmica, os artesãos e vendedores dão suas próprias interpretações. É as- sim que um vaso tapajônico, em que aparece uma mulher se- gurando uma vasilha, foi chamado de “deusa bacia”. Da mesma forma, estórias inventadas na hora são contadas para explicar a ocorrência de sapos, cobras e lagartos na cerâmica. A publicação do Padre Giovanni Gallo do livro Motivos ornamentais da cerâmica marajoara: modelos para o artesanato de hoje, em 1990, veio trazer tais motivos para outros suportes (GALLO, 2005). Em Belém e no Marajó, principalmente, os motivos marajoaras são vistos na decora- ção de ônibus, prédios, ruas, lojas, no estádio de futebol, enfim em tudo que se deseja caracterizar como “regional” ou “da terra” (Figura 7). Pode-se dizer que essa tradição cerâmica contem- porânea é uma tradição inventada, um conceito de Hobsbawm (1983) para explicar práticas que se referenciam no passado para adquirir legitimidade (SCHAAN, 2006). Na verdade, todas as tradições são, em certa medida, invenções, e essa tem o sentido de buscar legitimidade em um passado arque- ológico, de forma a conferir valor de mercado para objetos artesanais. Uma vez que atualmente a disseminação de práti- cas, comportamentos, produtos e marcas é muito rápida e não conhece fronteiras, observa-se que determinados grupossociais sentem a necessidade de acentuar o local, o regional, como marca de identidade, buscando justamente uma dife- renciação no mundo globalizado. Figura 7: Fachada de loja de artesanato em Soure, ilha do Marajó. Búsfalos, cavalos e a cerâmica marajoara evocam a identidade local. Foto da autora, outubro de 2006. Grama MULHERES RECIPIENTES 55 Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X do – RS De 29 de setembro a 2 de outubro de 2014 SABERES TRADICIONAIS E INTERAÇÕES NA PRODUÇÃO DE ARTEFATOS CERÂMICOS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE ITAMATATIUA – MA. Cestari , Glauba Alves do Vale; Mestranda PPGDg.Universidade Federal do Maranhão glauba.cestari@terra.com.br Guimarães, Márcio J. Soares; Mestrando PPGDg.Universidade Federal do Maranhão falecommg@gmail.com Caracas, Luciana Bugarin; Ms. Universidade Federal do Maranhão l.caracas@uol.com.br Santos, Denilson Moreira; Dr. Universidade Federal do Maranhão denilson.santos@ufma.br Resumo: Este artigo trata do registro dos processos de produção artesanal em cerâmica adotados pela comunidade quilombola de Itamatatiua, localizada em Alcântara, no estado do Maranhão. Aborda as práticas tradicionais que caracterizam esse povoado e seus moradores que guardam o saber de modelar a argila a mais de três séculos. Apresenta, também, as mudanças introduzidas nas últimas décadas. Trata de tradição, inovação e valorização da cultura e de seus modos de produzir tijolos, telhas, potes, panelas, bonecas, placas decorativas, entre outros. Em suas especificidades e simbolismo, os artefatos são portadores da identidade local e representam importante fonte de renda. Considera, também, os diálogos entre técnicas e artefatos e as interações entre artesãs e outros atores, entre esses, o designer. Palavras-chave: artesanato, tradicional, cerâmica, design, interações. mailto:glauba.cestari@terra.com.br mailto:falecommg@gmail.com mailto:l.caracas@uol.com.br mailto:denilson@ufma.br Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X 85 1. INTRODUÇÃO “O artesanato revive e se recria quando encontra novas demandas e novas relações com os materiais, novas formas de produção e novas tipologias de produtos, que com a participação do design pode adequar-se às práticas sociais contemporâneas.”1(MORALES,2008.p.309) 1 tradução do texto: Glauba Cestari. Este trabalho trata de produção artesanal tendo Itamatatiua, uma comunidade tradicional quilombola localizada no município de Alcântara ao norte do Estado do Maranhão, como estudo de caso. É uma investigação acerca da produção de artefatos em cerâmica iniciada na localidade há aproximadamente três séculos. Remete-nos a um passado ainda presente, onde artefatos e práticas passaram a diferenciar a localidade como um território de saberes e modos de produzir. Importa refletir quanto ao futuro dessa comunidade de artesãos onde tradição e atualidade se apresentam nos materiais, nos processos, nas idéias e no cotidiano de seu trabalho. Produções artesanais nos direcionam à tradição, à identidade2e à intervenção do design, sendo estes alguns dos temas recorrentes quando se pensa na construção da cultura3 material de um povo. Fazer design é utilizar conhecimentos em busca de relações sociais mais democráticas e solidárias, voltadas não só ao crescimento capitalista, mas principalmente ao bem-estar comum. O papel do designer como facilitador de melhorias na cadeia produtiva4 do artesanato vem se desenvolvendo nos mais variados âmbitos. Em equipe, o designer contribui para o registro de atividades, o resgate e a valorização de atributos e especificidades, a promoção de mudanças relacionadas aos materiais e processos, à sustentabilidade, à estética e, entre outros, à comunicação. A relevância deste trabalho está no registro do artesanato de Itamatatiua no qual destacamos aspectos do processo produtivo tradicional e, também, das mudanças realizadas nas últimas décadas. 2. INTERVENÇÃO: artesanato e design O artesanato é fruto do acúmulo de saberes transmitidos por gerações. Os artesãos são herdeiros e detentores de um conhecimento tácito de inúmeras técnicas de extração e manipulação das mais diversas matérias-primas que sob sua expertise, são transformadas em artefatos cuja inspiração exprime os valores e a visão de mundo destes sujeitos, criando assim representações de sua identidade cultural. No intuito de mantervivo este saber, instituições de fomento e de pesquisa têm se dedicado ao planejamento de ações que possibilitem a continuidade do artesanato tanto por seu valor cultural quanto por sua capacidade de ocupação e geração de renda. O design, por sua vez, em sua ampla atuação na pesquisa e no desenvolvimento de projetos de produtos, tem sido um instrumento de apoio neste processo de valorização do artesanato brasileiro. No entanto, qualquer forma de intervenção, seja no intuito de realizar uma apresentação de soluções técnicas para o uso da matéria-prima, na renovação da oferta de produtos ou em sua logística de comercialização, implica em uma abordagem delicada: o risco da possibilidade de descaracterização dos produtos é contundente e deve ser seriamente avaliado. 2 Todavia, algumas experiências têm de certa forma gerado resultados significativos. Projetos desenvolvidos por pessoas que conhecem as realidades locais das regiões e que reconhecem os referenciais que distinguem os artefatos e sua importância enquanto representações culturais são responsáveis por uma aproximação benéfica, que tem como condição obrigatória a intervenção pautada na assimilação e manutenção dos símbolos e conceitos que conferem distintividade à forma de produção e ao produto. 3. A COMUNIDADE DE ITAMATATIUA: quilombo e cerâmica A formação de comunidades remanescentes de quilombos no Estado do Maranhão tem sua origem no período de crise na produção e comércio do algodão e do açúcar, ocorrido entre os séculos XVIII e XIX (PAIXÃO, 2011), desencadeando um processo de abandono das terras por seus fazendeiros, o que favoreceu a ocupação e o uso destas terras pelos escravos. Ao contrário de outras áreas, Itamatatiua, não surgiu a partir de um grupo de fugitivos, mas daqueles que permaneceram nas terras abandonadas. O povoado também conhecido como “Terra dos Pretos” ou “Terra de Santa Tereza” pertencia a Ordem das Carmelitas e possuía um espaço de produção artesanal de artefatos cerâmicos destinados à construção civil. A produção artesanal ao longo de três séculos tornou-se base de desenvolvimento do povoado (OOSTERBEEK, REIS, 2012). As peças de cerâmicas usadas como utensílios domésticos eram fabricadas em meio a telhas e tijolos, sendo importante seu uso nas casas dos moradores. Com o fim do empreendimento das Carmelitas a produção desses artefatos ganha uma nova dinâmica, como a separação da produção de utensílios domésticos da cerâmica voltada para a construção civil. Essa separação resultou também em uma divisão de gêneros de forma que tijolos e telhas são produzidos pelos homens, e potes, panelas, outros, passam a ser executados nos fundos das casas pelas mulheres (PEREIRA JUNIOR, 2011). Essa distinção permanece até a atualidade, visto que a produção de artefatos cerâmicos se divide entre o galpão de moldagem de tijolos e telhas, espaço instalado na casa de um dos moradores onde 2 a 3 homens exercem a prática e o Centro de Produção de Cerâmica, local onde cerca de 10 artesãs se reúnem para realizar a confecção de diversos artefatos artesanais, símbolos de sua cultura imaterial, enquanto ofício tradicional, que proporciona como resultado representações da rica cultura material elaborada por gerações. O centro constitui-se como espaço de produção, troca de experiências e de visitação, tornando-se atrativo turístico visitado por pessoas de diversas regiões do Brasil e de outros países. Existem várias técnicas de fabricação de peças, porém a mais tradicional é a moldagem utilizando rolos ou serpentinas de argila. Produzem potes, vasos, panelas, travessas e outros artefatos. Já as artesãs mais jovens se encarregam da confecção de bonecas que representam as mulheres da região, seus costumes, hábitos e participações em manifestações folclóricas como o tambor de crioula e a dança do negro. As artesãs mais experientes dominam com precisão as técnicas de modelagem e de suas hábeis mãos nascem em instantes peças que deixam os expectadores perplexos com a destreza destas artesãs. Hoje a aplicação de novas técnicas, como por exemplo, a conformação de placas decorativas em cerâmica utilizando moldes de gesso, demostram que a tradição convive em equilíbrio com a inovação. Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X 87 4. ABORDAGEM METODOLÓGICA. Este trabalho apresenta uma pesquisa de abordagem qualitativa descritiva, visto que a investigação ocorreu de forma direta e prolongada, in locum, com os atores envolvidos (LACATOS, MARCONI, 2011). Mediante contato mais próximo com os informantes (as artesãs) foi possível descrever as práticas locais. Os registros dessas foram realizados utilizando-se a técnica de observação assistemática participante. Para Marconi e Lacatos (2011), essa é uma técnica não estruturada, também denominada espontânea. É mais utilizada em estudos exploratórios e consiste em recolher e registrar fatos da realidade sem perguntas diretas ou planejadas. Para os autores, quando a observação é participante ocorre interação entre investigador e pesquisados ou colaboradores permitindo, desta forma, aproximação e maior confiança entre os indivíduos. Outros meios e técnicas também foram importantes à essa fase. Um diário de Campo (MINAYO,1993) para anotações, filmes e fotografias foram ferramentas essenciais. Optamos, também, por realizar entrevistas abertas sem planejamento prévio ou perguntas pré-estabelecidas. Estas aprofundaram o entendimento de aspectos particulares às práticas envolvendo: estruturas físicas, modo de produzir e suas etapas, mudanças e inovações ocorridas no processo. A pesquisa bibliográfica foi essencial para fundamentar o trabalho quanto as formas de interações entre artesanato e design e ao objeto de estudo. 5. PROCESSOS PRODUTIVOS DE ARTEFATOS CERÂMICOS EM ITAMATATIUA A produção de cerâmica de Itamatatiua caracteriza e identifica esse povoado e seus moradores que guardam o saber de produzir objetos de barro a cerca de três séculos. Em sua diversidade identificamos principalmente quatro processos, três tradicionais e um inserido recentemente, sendo eles respectivamente: a moldagem de tijolos e telhas em formas de madeira; a modelação com rolos na execução de potes e outros utensílios; a modelagem manual de bonecas e a modelação de placas decorativas sobre formas de gesso. Esses processos seguem etapas tradicionais: extração, beneficiamento, modelagem, secagem e queima. Inicialmente, a extração da argila no barreiro, localizado na própria comunidade, é realizada pelas artesãs. Segundo relatos de Canuta5, a extração ocorre no verão e o destino do material é definido conforme a qualidade e uso na produção, pois em seu entendimento empírico, o barro da superfície é dispensado, a segunda camada é usada em telhas e tijolos e o mais profundo, considerado de maior plasticidade, é aplicado nos diversos artefatos do Centro de Produção de Cerâmica6. O transporte deste material ocorre por intermédio de cofo7 sobre a cabeça ou com ajuda de animal (jumento ou boi) ou ainda carro, dependendo da quantidade retirada. Em seguida é armazenado em dois locais: no espaço de produção de tijolos e telhas, organizado pelos homens; e no Centro de produção conduzida pelas mulheres, onde criam potes, vasos, bonecas, placas decorativas, etc. Os processos após o transporte são realizados de forma independente nos locais citados. 5Artesã entrevistada durante pesquisa em Itamatatiua, no dia 29 de novembro de 2012. 6Segundo relatos em entrevista realizada com ceramista da comunidade o Centro de Produção de Cerâmica de Itamatatiua foi construído em 2004 por intermédio do governo do Estado. 7Cesto tipicamente utilizado na localidade e feito artesanalmente com fibras vegetais da região. 5.1 Sobre a prática de moldar tijolos e telhas A conformação de tijolos e telhas consiste em uma das práticas mais antigas. Além dosrelatos que indicam a ocorrência dessa atividade desde a formação da comunidade, Registros históricos apontam para a produção de artefatos voltados à construção civil quando esse quilombo pertencia a Ordem das Irmãs Carmelitas (PEREIRA JÚNIOR, 2011) Como já dito, na região esta é uma atividade masculina, no entanto, atualmente apenas dois a três indivíduos realizam a tarefa, garantindo a continuidade do ofício, que resiste ao tempo mesmo considerando o fato de várias residências da localidade serem atualmente construídas com materiais industrializados. As etapas de produção acontecem em um barracão com estrutura de madeira coberto com palha de babaçu implantado na propriedade do artesão responsável. Neste a argila é depositada em um tanque escavado no próprio piso do local, sendo amassada de forma rudimentar com o artesão pressionando o material repetidamente com os pés e simultaneamente umedecendo-o com água. Esse procedimento tem como objetivo homogeneizar a massa, melhorando a plasticidade. Em seguida, esta matéria-prima é depositada próxima ao tanque sob sacos plásticos que devem manter umidade até serem modeladas em bancadas. A conformação dos tijolos e telhas é feita com moldes de madeira. Para a telha é utilizado um molde côncavo com comprimento aproximado de cinquenta centímetros, chamado de “calha”. Já o tijolo é modelado em um molde em formato de prisma retangular. Um instrumento chamado de garfo determina os furos dos tijolos após desmoldagem. Ao final desses procedimentos, os produtos estão prontos para secagem que ocorre por cerca de quatro dias em tempo de sol ou até 10 dias durante inverno. A queima é realizada em forno à lenha feito de tijolos, no próprio espaço. Segundo Pereira Junior (2011), na queima, os tijolos ficam ao fundo, servindo de base para as telhas. A duração da cozedura é de aproximadamente 12 horas. 5.2 A prática no Centro de Produção de Cerâmica: utilitários e decorativos As tradicionais técnicas aplicadas na produção de potes, panelas, bonecas e outros utilitários, acontecem paralelamente à conformação de placas decorativas, no Centro de Produção de Cerâmica de Itamatatiua (CPCI). Figura1-Potes, bonecas e placas decorativas feitos no CPCI. Fonte: elaborada pelo autor. Esse espaço coletivo e essencialmente feminino, onde é possível fazer a estocagem, a preparação da argila para uso, a modelagem, a secagem, a cozedura e a venda. No processo, os diversos produtos têm várias etapas em comum. Apenas a modelagem é especifica à cada artefato. O procedimento inicial consiste na estocagem da argila em um tanque de Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X 89 alvenaria com capacidade de armazenamento de 2,50m3. Segundo relatos das artesãs8 o material extraído no verão, dependendo do volume de produção, é suficiente para uso durante todo o ano, inclusive no inverno9, época em que não ocorrem retiradas. Para conservarem condições de uso, a argila é umedecida diariamente com água e coberta com sacos plásticos. No beneficiamento manual retiram-se pedras ou eventuais detritos e inicia-se o amassamento que é feito sobre a mesa de alvenaria, adicionando areia e água na preparação de porções de argila que são inseridas em uma maromba10. Os relatos das artesãs apontam para significativas melhorias no material após extrudado no equipamento. Anteriormente essa etapa era realizada apenas amassando a argila no piso com os pés11. Após extrusão, a massa é armazenada, para uso posterior, em baldes plásticos com tampa visando manter a umidade. Pode também ser imediatamente direcionada à produção. Nesse momento as artesãs colocam o material, sobre uma fina camada de areia, na bancada para evitar que a pasta12adira na mesma e em seguida é novamente amassada e umedecida aos poucos, sendo submetida a repetidas batidas a fim de reduzir a formação de bolhas13 e torná-la macia. Percebe-se que as proporções são medidas pela prática e essa pasta é destinada à moldagem de todos os tipos de produtos do Centro. A partir desta etapa, surgem especificidades na execução das tarefas, conforme tipo de produto. Os produtos utilitários, como os potes e vasos, tem acentuado valor simbólico, pois advém da técnica com rolos, a mais tradicional de todas. 5.2.1 Sobre a prática de moldar potes e vasos Historicamente o pote é o utilitário de maior representatividade na produção local. Por séculos tinha função objetiva de transportar e armazenar água, no entanto, as inovações e mudanças na infraestrutura da comunidade, como a chegada da água encanada e dos modernos produtos de alumínio e plástico, o pote perde a utilidade prática chegando ao desuso. Segundo Noronha (2012), na década de 1990 o pote é resgatado como símbolo de identidade local através de projetos de intervenção que visavam a manutenção do artesanato local. Designers consultores do SEBRAE-MA compreenderam que este seria um autêntico produto do quilombo de Itamatatiua. A modelagem dos utilitários é feita com a técnica de união de rolos, serpentinas ou tiras14, que são construídas manualmente e encaixadas num disco, mais precisamente num rebaixo junto ao seu contorno. Ali se coloca a primeira corda, seguida das demais por sobreposição. As cordas são unidas entre si por meio da pressão exercida pelas mãos. Nesta etapa, detalhes cuidadosos se apresentam com a experiência secular, por exemplo, as artesãs explicam que a ponta de cada corda é mais fina para que a união fique perfeita (sem volume no ponto de emenda entre 8 Informação oral. Entrevista realizada no dia 29/11/2012. 9 Na região norte e nordeste do Brasil as estações são regidas por período de chuva (inverno) que se inicia no final do mês de dezembro até o mês de junho e período de seca (verão) que dura de julho a dezembro. 10 A aquisição do equipamento, segundo Marcio Guimarães (designer pesquisador e consultor) ocorreu mediante projetos de aperfeiçoamento de arranjos físicos destinados a produção artesanal intermediados pelo SEBRAE-MA. 11 Informação oral. Entrevista realizada no dia 29/11/2012. 12 Compósito formado por argila, areia e água. 13 Segundo Frigola (2002), as argilas são amassadas, seja de forma mecânica ou manual, para se eliminar as bolhas de ar e torná-las macias, plásticas e homogêneas. 14 A técnica de união de tiras ou serpentinas, formas cilíndricas alongadas de argila, é utilizada também para fazer vasos, panelas, pratos, travessas. Segundo artesãs uma modelagem se diferencia da outra pela abertura que é determinada a medida em que se realiza os procedimentos. (observação de diário de campo em 29/11/2012) cordas). As dimensões dos produtos são variadas. Quando de grande porte, ao chegar à altura aproximada de 20 cm no decorrer da moldagem, é apoiado no piso e a artesã passa a girar em sua volta, sobrepondo as cordas e simultaneamente dando acabamento interno com as mãos que deslizam sobre a superfície ou com o auxílio da cuiupéua15. É um procedimento peculiar que desperta interesse em todos os visitantes, pois o movimento em círculos é incomum, belo e exige habilidade e esforço. Por fim, as artesãs utilizam também lâminas de metal (facas ou estiletes) para dar acabamento final às bordas das peças. Finalizada essa etapa aguarda-se a secagem e após esta, segue-se a queima, juntamente com todos os outros artefatos, entre eles as bonecas e peças decorativas. 5.2.2 Sobre a prática de moldar bonecas Entre as peças decorativas, as bonecas detém grande importância, pois ilustram a história dessa comunidade expressando as festas, as danças típicas, a religiosidade, as cenas do cotidiano, os personagens reais da localidade. Além das feições, algumas adquirem um nome próprio, atribuído pela artesã que a confeccionou. Não se sabe ao certo quando ou quem iniciou essa prática, mas a arte de modelar as bonecas de cerâmica tem forte simbolismo, sendo admirada por muitos,inclusive por visitantes de outros países. Em certo momento houveram abordagens externas à comunidade, ocasionando modificações não necessariamente favoráveis, como uma oficina em que se instruiu a confecção de imagens de sereias e iemanjás16 que resultaram num forma de descaracterização dos produtos e sua identidade. Mais adiante, instituições de apoio ao artesanato, entre outros, resgataram a modelagem das bonecas tradicionais. Seu processo de conformação inicia pelo compartimento da bola de argila já em dureza de couro17, em quatro partes iguais para bonecas menores (cerca de 25cm de altura) e duas partes para bonecas maiores (entre 30 e 45cm). O procedimento inicia- se apenas com o uso das mãos. Cabeça, tronco e membros são uma peça única, para logo em seguida, com o auxílio de agulhas de crochê, serem realizados traços e vincos que definem o detalhamento das feições do rosto, mãos, pés ou sapatos (quando estes se apresentam, é comum que a peça tenha como base apenas o vestido). Orelhas, nariz, queixo e o afunilamento do pescoço são moldados à mão e para seus detalhes utilizam também palitos de madeira. Turbantes, cabelos ou brincos em formas de argola são feitos à parte e fixados com o uso da barbotina. Para cabelos crespos, recorre-se ao uso de um crivo. Constantemente a peça é levemente molhada para que se mantenha a plasticidade do barro e se evite o aparecimento de fissuras. Após a conformação completa, a boneca fica em repouso por cerca de duas a três horas e em seguida, com o auxílio de um fio de nylon, é feito um corte transversal que separa a peça em duas metades: a da frente conserva os braços e a de detrás apenas uma seção da cabeça e tronco. Com o auxílio de uma colher ou espátula retira- se parte da argila do interior da peça, deixando-a com uma espessura que permita a queima adequada e lhe confira leveza. Depois, as seções são unidas com barbotina. 15espátula feita com cabaça com dimensões de aproximadamente 10 x 15 cm. Essa ferramenta é empregada para deixar as superfícies dos potes, tanto no interior como exterior, mais lisas no decorrer da modelagem. 16O reconhecido artesanato tradicional de Itamatatiua tem sido alvo de diversas instituições de fomento ao artesanato, que esporadicamente oferecem oficinas de criatividade, ministradas por designers ou artistas plásticos. 17 Dureza ou consistência de couro diz respeito ao estado em que a argila está parcialmente endurecida, quando ainda conserva alguma umidade (FRIGOLA, 2002). Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X 91 Com a modelagem pronta, a boneca fica na secagem aguardando a cozedura. Após queima, as peças intactas permanecem na cor natural da cerâmica. Já as peças que porventura apresentam fissuras ou quebras são restauradas com o auxílio de gesso e cola, sendo pintadas em tinta látex com adição de pigmento líquido. Ainda no que se refere aos decorativos as placas com a imagem da igreja local - Santa Tereza D`Ávila - se diferenciam dos demais objetos por representarem uma técnica recentemente adotada pelas artesãs e por ser um artefato resultante das interações dos visitantes com a comunidade. 5.2.3 Sobre a prática de moldar placas decorativas Ao longo do tempo foram inseridas algumas inovações na produção. Entre essas destacamos a conformação por molde de gesso. Com base em entrevista com as ceramistas identificamos que a origem desse artefato é atribuída às interações ocorridas com os turistas, que sugeriram a criação de novas peças. Segundo relatos, os turistas perguntavam, em visitas a loja do centro de produção durante a festa de Santa Tereza18, se havia para vender uma igrejinha19de cerâmica como souvenir. Surgiu assim a idéia de produzir algo que suprisse essa demanda, resultando em placas decorativas em cerâmica com a imagem da igreja de Santa Teresa D`Ávilla. A inserção da técnica de conformação por molde de gesso ocorreu mediante oficina de capacitação oferecida pelo SEBRAE-MA e coordenada por uma artista maranhense (em 2012) a pedido das próprias artesãs20. Esse procedimento, que consiste em estampagem sobre molde por pressão manual é realizado de duas formas diferentes. A primeira consiste na formação de um disco de argila com espessura de aproximadamente 18 milímetros. Esse disco é colocado sobre o molde de gesso e pressionado no molde até preencher por completo toda a área interna. Após desmoldagem, de posse de uma lâmina de metal, cortam-se as rebarbas e com uma linha de nylon reduz-se a espessura para cerca de 15 milímetros. A segunda forma de moldagem se diferencia da primeira ao aplicar a argila em pequenas quantidades dentro do molde, pressionando o material contra as paredes deste. Com a área toda preenchida faz-se uma pequena bola de argila e pressionando-a contra a massa ainda dentro do molde, remove-se a placa decorativa. As etapas seguintes à desmoldagem são secagem e cozedura. 5.2.4 Secagem dos artefatos A etapa da secagem é comum a todas as peças do Centro de Produção de Cerâmica. Nesta, os artefatos dispostos em prateleiras de madeira à sombra, tem variação no tempo de secagem. A artesã explica: “Depois de um dia, em tempo de sol, dá para levar ao forno. Em tempo de chuva, pode leva até uma semana”21. Quando secos são levados ao acabamento final com instrumentos específicos: lâminas de estilete ou faca para raspar rebarbas; lixa para eliminar defeitos na superfície; esponja 18 Segundo Souza Filho e Andrade (2012), a festa de Santa Teresa D'Ávila, em Itamatatiua, ocorre anualmente desde o século XIX. No mês de outubro, durante três dias, recebe centenas de pessoas de São Luís, de povoados e municípios vizinhos. 19 A igreja Santa Teresa de Ávila tem grande significado e muita representatividade na história do quilombo de Itamatatiua. A padroeira, considerada pelos quilombolas itamatatiuenses como protetora e dona das terras, foi trazida pela ordem das irmãs Carmelitas no Século XVIII. (PEREIRA, 2011) 20Informação oral obtida em entrevista com artesas realizada no dia 23/05/2013. 21Informação oral em entrevista realizada no dia 29/11/2012. levemente umedecida para reduzir imperfeições; polimento empedra22 (seixo rolado) e escova de cerdas de nylon para deixar a superfície lisa e com brilho acetinado. 5.2.5 Queima dos artefatos Figura 2 – Forno e procedimentos da queima. Fonte: elaborada pelo autor. Finalmente ocorre a queima em forno a lenha, construído com tijolos fabricados na própria comunidade, que se subdivide em 3 (três) espaços com acessos específicos: uma boca com abertura frontal dá acesso ao maior espaço interno; a localizada à direita dá acesso ao menor espaço; e outra abertura superior, localizada aos fundos, leva ao espaço de médio porte. Cada compartimento possui sua própria câmara externa de abastecimento de lenha e desta é gerado o calor que circula pelo interior do forno atravessando as pilhas de artefatos cerâmicos. O processo de queima ocorre como um ritual onde as peças são carregadas sobre a cabeça ou/e encaixadas na cintura e ao se aproximarem do forno as mulheres começam a passar os artefatos de mão à mão até chegar ao interior do forno onde, uma artesã aguarda e organiza as peças. Primeiro são colocadas peças quebradas em fornadas anteriores para forrar a base do forno ou são colocadas as peças grandes como potes, panelas, travessas e alguidares. Dentro das peças de maior porte ficam as pequenas como: canecas, colheres, as bonecas, as placas decorativas, entre outras. Ao preencher o forno as artesãs fazem o fechamento com chapas de metal, normalmente sucatas como peças de fogão. Finalizada a tarefa descrita, exercida essencialmente pelas mulheres, inicia-se o trabalho do homem contratado para acompanhar a queima. O queimador23 providencia a lenha e acompanha as três etapas24 essenciais da queima: o esquente (aquecimento do forno), a cozedura e oesfriamento. O tempo necessário para estas é de no mínimo 4 (quatro) dias. Um dia para esquentar o forno, acrescentando lenha ao fogo aos poucos para aquecer gradativamente até chegar o ponto de cozedura25 que ocorre no segundo dia. O terceiro dia é destinado ao esfriamento, dentro do forno. Somente no quarto dia retiram-se as peças. A retirada das peças é um momento de surpresas, pois conforme o posicionamento no interior do forno estas obtêm características diferenciadas quanto 22 A pedra, comumente utilizada no polimento dos artefatos de Itamatatiua, não faz parte das etapas de acabamento das placas decorativas com a imagem da igreja de Santa Teresa D`Ávilla para evitar danos à imagem em alto relevo devido esforço exercido sobre a superfície. 23Denominação dada, na localidades, ao homem responsável por acompanhar as etapas de cozedura. 24As etapas de queima foram descritas com base em observação e entrevista com as artesas e com o Sr.Joty, responsável atualmente pelo procedimento de queima dos produtos do Centro de Produção. As entrevistas foram realizadas em duas etapas: em visita no dia 23/05/2013 e em visita de 17/06/2013 à 19/06/2013. 25Segundo dados obtidos com consultores do SEBRAE-MA o forno do Centro de Produção atinge o pico de 9000C. A medição foi feita com pirômetro de cerâmica.(informação oral obtida em entrevista com a ceramista consultora do SEBRAE-MA em novembro de 2012). Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X 93 a coloração, ou seja, algumas peças ficam mais claras, outras mais escuras e outras com manchas pretas26. O fato não consiste em defeito, mas sim, em um efeito belo que agrada a uma parcela dos compradores, como as artesãs dizem “tem gente que gosta das queimadinhas.27” 5.3 Escoamento dos artefatos de Itamatatiua Fechando a descrição da cadeia produtiva dos artefatos cerâmicos de Itamatatiua, observa-se diferenciações entre o escoamento do produto final dos espaços citados. Segundo relatos dos artesãos28, a venda dos artefatos para construção civil ocorre por encomendas ou compra dos produtos disponíveis no local e os consumidores são principalmente moradores das comunidades próximas. Identificamos que em decorrência do projeto do governo “minha casa minha vida” muitas casas têm sido construídas com produtos industrializados em detrimento aos produtos feitos na localidade, fato que possivelmente trouxe impactos na comercialização desses. No Centro de Produção de Cerâmica os artefatos são expostos na loja que faz parte da estrutura do local. O curioso na organização dos artefatos na loja é o fato de, mesmo sem nenhum tipo de sinalização nas peças, após misturá-las as artesãs sabem exatamente de quem é cada uma delas. Esse fato, provavelmente, deve-se às particularidades no modo de cada artesã produzir. “Apesar de as mulheres trabalharem de forma coletiva e terem um centro de produção, a produção é individual. Na hora da venda as peças são separadas e a renda é revertida para as respectivas donas das peças, mesmo quando a associação detém um contrato de produção. As peças são colocadas no forno todas juntas sem separação, depois de pronta, cada mulher reconhece as suas, mesmo que sejam o mesmo tipo de peça, como potes e panelas”. (PEREIRA JUNIOR, 2011. Pg. 41) É importante destacar que a venda dos produtos que antes eram feitas nas próprias casas, na tradicional festa de Santa Tereza e também eram levadas através de barco ou animais à outras comunidades. Hoje, além de haver a possibilidade de escoamento dos produtos por variados meios de transporte (carros e ferry boat), a venda ocorre no Centro de Produção, em lojas existentes no município de Alcântara e em feiras de artesanato. Segundo dados de Pereira Junior (2011), hoje as artesãs recebem encomendas de outros estados e até de outros países. No entanto observa-se que a encomenda parece não definir a questão produzir ou não produzir. A produção é diária e o ritmo se modifica conforme a existência de encomendas, ou seja, a encomenda não é obrigatoriamente o início do processo. Em Itamatatiua tudo começa com o desejo de produzir. Um fluxograma apresenta a cadeia produtiva de Itamatatiua contemplando as etapas supracitadas( figura 3). 26O forno do Centro de Produção é caracterizado como intermitente. Neste o material nao é cozido uniformemente, havendo até necessidade de desprezar algumas peças por falta ou excesso de queima (PETRUCCI, 1979). 27Narrativa de artesã em entrevista realizada em 23/05/2013. 28Iformação oral. Entrevista: Raquel Noronha, transcrição: Glauba Cestari. Data: 18/06/2013. Figura 3 – Fluxograma. Fonte: elaborada pelo autor, com base na pesquisa realizada. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A produção de artefatos cerâmicos em Itamatatiua tem representatividade e veiculação comercial, expressa o imaginário de mulheres artesãs e torna-se importante como referência identitária do quilombo. Ao longo do tempo, mudanças foram marcadas principalmente por dois momentos: o primeiro é caracterizado pelas transformações ocorridas na estrutura da produção com a saída das Irmãs Carmelitas; e um segundo momento configura-se na organização das mulheres de forma associativa resultando em inúmeras conquistas como a construção do Centro de Produção. Esse local fomentou interações com “o outro”: artesãs, designers, pesquisadores, consultores, representantes de programas de incentivo ao artesanato, turistas, etc. Estas interações foram em geral positivas, considerando as ações reconhecidas pelas artesãs29 como benéficas, gerando melhorias e favorecendo a manutenção das práticas artesanais. Entende-se que as interações entre o artesão, o designer e outros atores, considerando como premissa o entendimento da realidade local e sua cultura, podem ser valorosas tendo em vista que resultam em conquistas como melhor estrutura física para trabalhar, divulgar e transmitir seus conhecimentos. Além disso, artefatos em vias de esquecimento ou desuso foram resgatados e valorizados no mercado atual. O contato com o turista, direta ou indiretamente, resultou em novos caminhos para o escoamento da produção assim como favoreceu o interesse por novas formas e técnicas. Por fim, o registro dessa prática indica que mesmo diante das inovações e inevitáveis evoluções, o antigo e o novo coexistem como símbolos da história, 29Informação oral resultante de entrevistas in locum. Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X I identidade e resistência cultural dessa comunidade remanescente dos quilombos e ainda assim conseguem conquistar mercados. Acredita-se que esse trabalho contribuirá para desenvolvimento de novas pesquisas que venham beneficiar essa comunidade e seus valores culturais imateriais e materiais, enquanto tradicional. REFERÊNCIAS BORGES, Adélia. Design + Artesanato: o caminho brasileiro. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011. COELHO, L. A. L. Coelho (org.). Conceitos-chave em Design. Rio de Janeiro: Ed. PUC - Rio. Novas Idéias, 2008. FRIGOLA, D.R.I. Cerâmica: técnicas decorativas. Lisboa: Editorial estampa, 2002. LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Técnicas de pesquisa: planejamento e execução de pesquisa, elaboração, análise e interpretação de dados. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2011. MORALES, F. S. Diseño y artesanía. In:BONSIEPE, G.; FERNÁNDEZ, S. (coord.) História del diseño en América Latina y el Caribe: Industrialización y comunicación visual para la autonomía. São Paulo: Editora Blücher. 2008.p 308-322. MINAYO, Maria Cecília de Souza. O Desafio do conhecimento. 2.ed. São Paulo: Hucitec-Abrasco, 1993. OOSTERBEEK,L.;REIS,M.G.O. Terra de preto em terras da santa: Itamatatiua e as suas dinâmicas quilombolas. Cad. Pesq., São Luís, v.19, n.01, jan. / abr. 2012. Disponível em: <http://www.pppg.ufma.br/cadernosdepesquisa>. Acesso em:26 de março de 2014. PAIXAO, R. M. M. Reflexões sobre os quilombos e as mobilizações no Maranhão. In: MARTINS, C. C.; CANTANHÊDE FILHO, A.; GAIOSO, A. V.; ARAUJO, H. F. A. (org.). Insurreição de saberes: práticas de pesquisa em comunidades tradicionais. Interpretações do Maranhão. Manaus: Universidade do Estado do Amazonas - UEA, 2011. p 53-60. PEREIRA JÚNIOR, Davi. Tradição e identidade: a feitura de louça no processo de construção de identidade da comunidade de Itamatatiua – Alcântara maranhão. In: MARTINS, C. C.; CANTANHÊDE FILHO, A.; GAIOSO, A. V.; ARAUJO, H. F. A. (org.). Insurreição de saberes: práticas de pesquisa em comunidades tradicionais. Interpretações do Maranhão. Manaus: Universidade do Estado do Amazonas - UEA, 2011. p 20-52. NORONHA, R. G. Artesanato e consumo: comoditização da identidade étnica como estratégia territorial em Alcântara (MA). In: Reunião Brasileira de Antropologia, 2012, São Paulo. Anais da 280 Reunião Brasileira de Antropologia. São Paulo: ABA, 2012. SOUZA FILHO, B.; ANDRADE, M. P. Patrimônio Imaterial De Quilombolas – Limites Da Metodologia De Inventário De Referências Culturais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 38, p. 75-99, jul./dez. 2012. PICHLERA, R. F.; MELLOB, C. I. O. Design e a Valorização da http://www.pppg.ufma.br/cadernosdepesquisa Identidade Local. Design e Tecnologia 04. Pgdesign. UFRGS. Disponível em: http://www.pgdesign.ufrgs.br>. Acesso em: 21 de abril de 2014. Reflexões e relato de uma experiência de ensino de cerâmica nos anos iniciais do Ensino Fundamental Suzanne G. M. Mazzamati (Suca M. Mazzamati) Resumo O presente texto faz uma reflexão sobre a relevância do ensino de cerâmica nos anos iniciais do Ensino Fundamental. O foco de atenção dessa reflexão está nas relações de contato que o fazer cerâmico promove entre: as crianças, a argila e suas criações; as crianças, o barro e as técnicas de modelagem; as crianças, suas criações e a queima. Essas observações estão apoiadas em uma experiência de ensino de cerâmica que acontece desde 1992, em uma escola em São Paulo, capital, com crianças do terceiro ao quinto ano do Ensino Fundamental. Palavras chave: cerâmica, Ensino Fundamental, arte educação, argila, criação, técnica Abstract This manuscript is a reflection on the relevance of ceramic education in the early years of elementary school. It is focused on the contact relationships that ceramic promotes between: children, clay and their creations; children, clay and modelling techniques; children, their creations and burning. These observations are supported by a ceramic teaching experience that happens since 1992, with children from the third to the fifth year of an elementary school in Sao Paulo state, Brazil. Keywords: elementary school, pottery, art education, technique http://www.pgdesign.ufrgs.br/ Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X III Introdução Conta-se que em tempos antigos houve um deus que decidiu modelar um homem com o barro da terra que antes havia criado, e logo, para que ele tivesse respiração e vida, lhe deu um sopro nas narinas. Alguns espíritos contumazes e negativos, ensinam à boca pequena, quando não ousam proclamá-lo com escândalo, que, depois daquele ato criativo supremo, o tal deus não voltou nunca mais a dedicar-se às artes da olaria, maneira retorcida de denunciá-lo por ter, simplesmente, deixado de trabalhar. O assunto, pela transcendência de que se reveste, é sério demais para que o tratemos de forma simples, exige ponderação, muita imparcialidade, muito espírito objetivo. É um fato histórico que o trabalho de modelagem, a partir daquele memorável dia, deixou de ser um atributo exclusivo do criador para passar à incipiente competência das criaturas, as quais, escusado seria dizer, não estão apetrechadas de suficiente sopro ventilador. O resultado foi ter-se assinado ao fogo a responsabilidade de todas as operações subsidiárias capazes de dar, tanto pela cor como pelo brilho, e até mesmo pelo som, uma razoável semelhança de coisa viva a quanto viesse a sair dos fornos. Era julgar pelas aparências. O fogo faz muito, isso não há quem o negue, mas não pode fazer tudo, tem sérias limitações, e até mesmo algum grave defeito, como seja, por exemplo, a insaciável bulimia de que padece e que o leva a devorar e reduzir a cinzas tudo quanto encontra pela frente. Voltando porém ao tema que nos ocupa, à olaria e seu funcionamento, todos sabemos que barro úmido metido no forno é barro estourado em menos tempo do que aquele que levará a contar. Uma primeira e irrevogável condição estabelece o fogo se quisermos que faça o que dele esperamos, que o barro entre o mais possível seco no forno. E é aqui que humildes regressamos ao sopro das narinas, é aqui que teremos de reconhecer a que ponto havíamos sido injustos e imprudentes quando perfilamos e tomamos para nós a ímpia ideia de que o dito deus teria virado as costas, indiferente, à sua própria obra. Sim, é certo, depois disso ninguém o tornou mais a ver, mas deixou- nos o que talvez fosse o melhor de si mesmo, o sopro, a aragem, a viração, a brisa, o zéfiro, esses que já estão entrando suavemente pelas narinas dos seis bonecos de barro que Cipriano Algor e a filha acabam de colocar, com todo o cuidado, em cima de uma das pranchas de secagem. (SARAMAGO. A Caverna, 2000, pp182,184) A cerâmica, é um estado da terra aliada ao fogo que é de extrema utilidade em vários setores industriais e atende a diferentes áreas do conhecimento humano. De peças de foguetes à reparações odontológicas, de pisos e louças sanitárias a tubulões de água e esgoto e muitos outros produtos, a cerâmica é, por sua dureza e durabilidade, um material de extrema importância no nosso viver contemporâneo. Talvez por essas qualidades, que envolvem utilidades voltadas para funcionamentos e necessidades diversas, que a cerâmica como material artístico, histórico, antropológico, seja tão pouco difundida nas escolas aqui no Brasil. Potes e figuras que contam a história, a nossa história. Porque falar sobre eles? Introduzir o ensino de cerâmica em uma escola não é coisa simples. Primeiro há que ter o barro. Mas onde encontrar o barro? Além disso, o professor, para ensinar cerâmica, tem que saber sobre o processo de modelagem, de pintura, de construção das peças. Deve saber como as peças devem ser construídas e secas para poderem suportar as temperaturas durante as queimas. Depois, é necessário um forno. E alguém que saiba ensinar como se queima. Mas para que mesmo ensinar cerâmica na escola? E o que fazer com todos aqueles trabalhos feitos pelos alunos depois de prontos? Todas essas perguntas trazem em seu oculto uma representação do ensino da cerâmica nas escolas. Se a área de arte já enfrenta ferrenhas batalhas na escola para ocupar seu lugar ao sol entre a matemática, língua portuguesa e ciências, etc. o que dizer então do ensino da cerâmica? Em seu ensaio Trabalho das representações na formação dos professores, Simone de Baillauquès (1998) ao citar Évelyn Charlier, considera as representações como instrumentos cognitivos de apreensão da realidade e de orientação de condutas. Assim sendo, entender a arte como algo supérfluo ou alienado do conhecimento humano, como um apêndice da sensibilidade, sem utilidade e portanto nessa representação, sem valor; essa forma de pensamento traz consequências inevitáveis para o tipo de ensino aplicado nas escolas. Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X V Fig. 1. Ateliê livre onde os alunos aprofundam-se nas diferentes técnicas de modelagem, cada um na sua investigação. Aqui, a menina modela um cavalo. Arquivo da autora. 2012. A criação por meio da argila nos coloca em contato comhistórias ancestrais. Como em um hiperlink elas são atualizadas em nós pelo toque de nossas mãos na massa. O fazer cerâmico favorece aos nossos pequenos alunos contatos com a terra, a água, o fogo e o ar, elementos essenciais de nosso viver e carregados de ancestralidade. Em um mundo em que muitos homens negligenciam seus saberes mais profundos e estão mais preocupados com seu enriquecimento superficial e com um desejo insaciável de consumo, isso já demonstra a importância em valorizar este fazer entre os pequenos - oferecer-lhes a oportunidade de conhecerem a produção cerâmica no Brasil e no mundo em diferentes tempos, aplicarem suas marcas, expressarem suas ideias e dialogarem com os gestos humanos e símbolos ali contidos. Atualizado pelo toque, o conhecimento ressurge sem dificuldade. Com esse espírito de aproximação segue a descrição de uma experiência de ensino de cerâmica com crianças de sete a dez anos que se dá em uma instituição escolar em São Paulo desde 1992. A estrutura Para contar a experiência é necessário situarmos nesse momento em qual estrutura ela se desenvolve: Fig. 2. Grupo de meninos cobre com parafina um vulcão modelado por eles. Arquivo da autora. 2009. Os alunos têm aulas semanais de arte, com duração de uma hora. São, em média, 13 alunos por grupo. O mesmo professor acompanha os alunos nos três anos do processo, do terceiro ao quinto ano do Ensino Fundamental, dos sete aos dez anos de idade. A escola tem um ateliê bem montado e, desde o ano passado (2014) possui um forno elétrico que atinge 1000o C. Antes disso, as peças dos alunos eram queimadas em um ateliê de cerâmica em Cotia, São Paulo. Com a chegada do forno, pudemos introduzir a queima com esmaltes na própria escola, e proporcionar às crianças a experiência do processo completo. Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X VII Fig. 3. Exposição de peças esmaltadas elaboradas pelos alunos do terceiro ao quinto anos do Ensino Fundamental. Arquivo da autora. 2014. Além da cerâmica os alunos vivenciam processos de pintura, desenho, gravura, escultura, marcenaria e construção com sucata. Fazem uma visita a um espaço cultural por ano e têm momentos sistemáticos de apreciação da produção do grupo e da produção de alguns artistas brasileiros e estrangeiros. A metodologia de trabalho está apoiada em uma rotina permeável de cinco momentos: centralização inicial; momento de desenho ou introdução de uma técnica; aula livre onde escolhem e desenvolvem projetos próprios sob os cuidados do professor com todos os cantos disponíveis - modelagem em argila, pintura, desenho, construção com sucata, etc.; arrumação e centralização final. Durante o ano participam de construções coletivas quando há festas que envolvem toda a comunidade escolar, como as festas juninas, aniversário da escola, encerramento de ciclos, etc. A avaliação é processual e acontece durante todo o percurso de trabalho, no acompanhamento individual e coletivo. Os focos de avaliação são o envolvimento com as investigações que o aluno escolhe desenvolver, o enfrentamento das dificuldades e as soluções que o aluno cria, o respeito pelo seu trabalho e pelo dos seus colegas, o aprendizado das técnicas, o respeito aos combinados de limpeza e arrumação, a curiosidade pelo conhecimento. Entendendo a criança como um ser cultural, que transforma a cultura com o seu fazer, a avaliação tem como princípio o diálogo. Tem como meta ajudar o aluno a interessar-se e aprofundar-se com o aprendizado de forma significativa. Avaliar aquilo que aprende pode ajudá-lo a ter uma consciência mais abrangente do que é capaz, sobre suas escolhas e atenções e sobre sua responsabilidade com o que cria no mundo, mesmo que pequena. As crianças, a argila e suas criações Como explicar algo tão sutil? Esta é a primeira pergunta que vem à mente quando a tarefa é relatar momentos tão intensos entre as crianças quando trabalham com a argila. Para descrever essa experiência é preciso deixar-nos ser tocados pelos gestos das pequenas mãos pressionando e pinçando a argila para transformarem-na em algo. Fig. 4. Menino pinta seu trabalho com muita atenção. Arquivo da autora. 2009. Experienciar a argila é assunto para um bom tempo. A maioria das crianças tem bastante prazer em mexer na massa. Quando menores, gostam Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X IX de amassar, fazer bolinhas, minhocas, deixar suas marcas. Entre sete e dez anos, as crianças, ao pegarem um pedaço de argila parecem já ter claro quais são suas intenções. Logo percebem a maleabilidade do material e espontaneamente começam a criar objetos do dia a dia, figuras humanas, animais ou objetos volumosos, cheios de massa que elas podem furar com os instrumentos ou os dedos, ou bem achatados formando pizzas e placas. Fig. 5. Escultura de argila pintada com engobe, aguardando na prateleira, junto com outras peças, ser queimada. Arquivo da autora, 2012. Os momentos em volta da mesa de modelagem são muito animados, são sempre acompanhados por uma conversa constante entre as crianças ao trabalhar. Em volta da mesa de argila, de pé - pois gostam de trabalhar de pé - contam casos da família, dos passeios, comentam das professoras, daquilo que aconteceu na classe, dos cachorros, gatos, falam da vida e, enquanto isso, as crianças vão materializando suas ideias de forma integrada e simbólica. Neste momento, todo um processo de conversa com e sobre a vida se desenvolve nesta relação entre matéria, criança e o grupo. E isso é arte, isso é vida e está materializado nos trabalhos que realizam. As crianças, o barro e as técnicas de modelagem O que as crianças aprendem? A ter olhos nas pontas dos dedos. Que o tempo transforma. Que não pode ter pressa. Que o fogo é forte. Que a água ajuda. Que a água atrapalha. Que o vento seca. Que é bom aprender umas técnicas que o outro já sabe. Que o homem muito antigo já fazia cerâmica e que tem artistas ceramistas no mundo todo. Que cada etapa tem um tempo. Que tem que cuidar das ferramentas. Que dá prá desenhar com palito. Que dá prá cavar, prá esticar, prá enrolar, dobrar, amassar, alisar. Que pode pintar com tinta feita de argila e corante. Que mesmo que estoure, dá prá fazer outro. Que tem que entender quando a argila precisa de um pouquinho de água. Quando não. Que fica bonito. Que fica feio. (MAZZAMATI, 2013, p.12) Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X XI Fig. 6. Menino copia na placa de argila o desenho que projetou para o trabalho. Arquivo da autora. Foto de Maurício Cavallari, 2013. Nesse mesmo fazer tão prazeroso começam os desafios a serem enfrentados. Como bem diz a ceramista Lirdi Muller Jorge, A cerâmica modelada não se baseia sobre um único princípio de construção. Teremos a possibilidade de conhecer um certo número de processos que são básicos; cada um dos quais vai determinar um certo aspecto e sensação. As combinações e associações das diversas técnicas irão nos proporcionar uma gama infinita de resultados. Sem esquecer que a argila pode ser trabalhada em diferentes consistências. (JORGE, 1987,p.83) Ao enfrentá-los, a criança percebe que a argila começa a rachar e a figura criada está prestes a desestruturar-se. A parede construída está tão fininha que ao carregar a peça da mesa para a prateleira, todo o trabalho pode se despedaçar. A criança, em sua vontade de chegar ao resultado que imaginou, quer subir uma peça alta, mas não consegue. Pretende fazer o pescoço de uma girafa e busca várias tentativas para conseguir seu intento, às vezes dá certo,outras não. E como resolver a junção da cabeça ao corpo? Se colocar cada vez mais água o que acontece? Não deu certo. Outra tentativa. É nessas horas que o professor pode orientar seu aluno para conseguir realizar o que imaginou. Nessa fase dos sete aos dez, a cabeça parece ir mais rápido que as mãos e há muita coisa a aprender. Fig. 7. Professora ajuda e ensina a aluna, por meio de gestos, a tirar as rachaduras das bordas de seu pote. Arquivo da autora. 2010. Para ajudá-los no seu desenvolvimento na modelagem em argila as crianças têm, nessa experiência nas aulas de arte, momentos coletivos ao longo dos três anos onde são ensinadas as técnicas principais de modelagem. São também orientados a trabalharem de forma cuidadosa para as peças poderem ir ao forno. Para isto todo o cuidado é pouco. As técnicas ensinadas são da bola, da placa, rolo, cavar e pinçagem. Além das aulas coletivas de introdução das técnicas, os alunos têm semanalmente a oportunidade de trabalhar em média 40 minutos com o material que quiserem e isto inclui o trabalho com a modelagem em argila. É o momento que as crianças chamam de aula livre: os materiais ficam dispostos de forma a delimitar espaços de escolha e os alunos são livres para percorrer estes espaços usando os materiais que precisarem para realizar suas invenções. Nestas horas, o professor orienta os projetos que estão sendo Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X XIII realizados nos diferentes cantos – modelagem, desenho, construção com sucata, pintura, marcenaria e outros. No caso da mesa de modelagem, o professor ajuda seus alunos relembrando as técnicas ensinadas, puxa conversa, segura partes de algum trabalho para que o aluno possa estruturar o resto de sua construção, oferece algum instrumento específico, observa o desenrolar do momento e as múltiplas conexões que ali acontecem em todos os níveis: emocional, cognitivo, lógico, social, físico, poético. Trabalham um ao lado do outro, em dupla, trios, agrupamentos espontâneos ou sozinhos. A fruição poética - do grego poien: inventar, criar, gerar - que ali acontece é olho d’água, brota ininterruptamente. Tudo integrado acontecendo ao mesmo tempo. As crianças, suas criações e a queima Uma vez que alguém descobriu que barro queimado não dava para comer mas que segurava bem a comida, começaram as invenções e variações. (VIDAL, 1997, p.10) Em algumas turmas, nas quais há mais interesse e ousadia, as crianças estão prontas para uma aproximação mais real com o fogo, e é possível introduzir experiências como quando os alunos fizeram um grande vulcão e acenderam seu fogo. Foi um acontecimento e tanto para eles. O conhecimento que a queima e o contato com o fogo traz, mesmo que não vivenciado tão de perto, proporciona ao aluno muitos ganhos na compreensão do processo, principalmente ao perceber que as coisas nem sempre saem como queremos e que o fogo e a alta temperatura são coisas que devem ser respeitadas. Ao longo de todo esse processo de cuidado de preparação das peças para irem para o forno, da construção de suas peças de forma que tenham mais estrutura e durabilidade e, como no caso das panelas e canequinhas, uma utilidade, as crianças aprendem também sobre o cuidado em si e percebem a necessidade de construir seus projetos com poesia, emoção, raciocínio e estética. E isso interessa ensinar. Em seu imaginário muitas coisas passam pela cabeça. Assim, algumas perguntas aparecem na fala das crianças: O professor falou que o fogo do forno é tão quente que se tiver alguma bolha de ar dentro da massa de minha peça, pode ser que ela estoure feito uma bomba! Ah não, eu não quero que minha peça vá queimar. Eu quero. E se estourar? Não tem importância. Eu não quero. Esta vai estourar? Quando as peças voltam do forno a ansiedade é grande: A minha estourou? Fig.6 Esculturas em argila escolar e engobe, cozidas a 980o, alunos do 3o ano. Arquivo da autora, 2012. E que alívio quando a peça volta cor de tijolo, linda, mas diferente, transformada. As crianças ficam muito contentes, pegam a peça na mão como se fosse um tesouro e, ora escolhem pintar bem colorida ou levam para casa assim mesmo, terra cozida. E quando descobrem que podem colocar água e beber na caneca que fizeram!? Seus olhos brilham e se enchem de orgulho mostrando uns aos outros a produção recém-chegada. Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X XV Fig.7. Conjunto de potes e xícaras em argila escolar já queimados. Arquivo da autora, 2013. Conclusão Na tentativa de relatar momentos de aprendizado tão ricos desenvolvidos junto às crianças nesses anos, fica clara a importância de refletir sobre a necessidade de incentivar e implantar o ensino de cerâmica nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Ao trabalharem a argila, uma matéria preciosa - nosso chão, de homens, mulheres e toda a fauna e flora – as crianças entram em contato com o conhecimento desenvolvido por diferentes povos na produção de peças em cerâmica tanto escultóricas como utilitárias e que contam parte da nossa história na Terra. Ademais, as crianças, a partir da cerâmica, têm a oportunidade de entrar em contato com a poesia, a estética, de perceber a fragilidade e a durabilidade das coisas, de perceber o efeito de seus atos e de perceber a sua capacidade criativa. Esse conjunto de aprendizados transforma não só o sujeito na sua ação, mas todo o seu contexto. Cultivar a produção cerâmica própria dos povos indígenas, das comunidades ceramistas, dos quilombos, das cidades e dos produtores contemporâneos é preservar uma cultura rica de símbolos, causos e contações, dramas e espiritualidade, que consegue integrar o presente e o passado de forma tão duradoura e atualizada. Vale a pena refletir e buscar soluções para as ideias pré- estabelecidas que se tem no que se refere às dificuldades do ensino de cerâmica nas escolas, como as apresentadas no início desse texto, a dificuldade de encontrar o material, possibilidades de construção de fornos não tão dispendiosos, fabricação de tintas, etc. Para que isso ocorra, é tarefa dos arte educadores, ceramistas e instituições de ensino promover essas discussões nas escolas, ateliês e universidades com foco na Educação Básica, tão carente no nosso país e, sem dúvida, isso seria de grande ganho para todos. Como contribuição para o significado do que é a argila segue, em anexo, uma história para contar para as crianças: Coisas da Terra. Quem conta um conto, aumenta um ponto. Referências BAILLAUQUÈS, Simone. Trabalho das representações na formação dos professores. In: PAQUAY, Léopold et al. (Org.). Formando professores profissionais: quais estratégias, quais competências. 2. ed. rev. Porto Alegre, RS: Artmed, 2001. JORGE, Lirdi Muller. A modelagem em argila. In: GABBAI, Miriam B. Birmann. Cerâmica a arte da terra. São Paulo, SP: Callis, 1987. MAZZAMATI, Suca (Org.). Almanaque da oficina: cerâmica. Ano 3. Escola Vera Cruz, 2013. RHODES, Daniel. La poterie. Terres et glaçures. Traduction: François Soubeyran. Paris: Edition Dessain et Tolra, 1976. SARAMAGO, José. A caverna. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2000. VIDAL, Jean Jacques; JAMES, Paulo. Ceramicando. São Paulo, SP: Callis, 1997. 48 p. Estudos em Design | Revista (online). Rio de Janeiro: v. 23 | nº. 1 [2015], p. 84 – 95 | ISSN 1983-196X XVII Anexo 1 : História para contar para as crianças- Coisas da terra. Suca Mazzamati. Texto direcionado para as crianças, produzido para uma formação na cidade de Hortolândia, SP, em 2006 e não publicado. História para contar às crianças: Coisas da Terra, Suca Mattos Mazzamati, 2006 Há milhares e milhões, milhões e milhares de anos atrás,solta no infinito, era uma vez uma bola de fogo. Vagava no espaço brilhante! Esta bola de fogo era a Terra, o planeta onde vivemos. O tempo foi passando. Por fora a Terra começava a esfriar, por dentro ainda era só fogo. O fogo, tão quente e violento, arranjava um jeito de sair de dentro da terra, empurrando a camada dura que havia na superfície, criando assim as primeiras montanhas e vulcões. Não havia ainda nenhum ser vivo na superfície do nosso planeta. Só havia rochas e atmosfera gasosa. A superfície da Terra, com os gases e as lavas que ela expelia por causa do calor intenso, era como um caldeirão de bruxa, prestes a realizar grandes transformações... As lavas resfriadas há pouco, exalavam vapor sem parar. Este vapor constante condensava também sem parar, transformando-se em uma chuva que duraria por muitos e muitos anos: MILHÕES de anos. Imagine! Lembra de quando você toma banho muito quente e todo aquele vapor fica no ar do banheiro? Quando você se olha no espelho, passa o dedo e percebe que aquilo é água, vapor condensado?! Lembra quando pequenas gotas de água caem do teto do banheiro, de tanto vapor que foi parar lá? Imagine agora um chuveiro de água quente ligado durante milhões de anos. O quanto juntou de gotas de água, que caíam como uma chuva sem fim? Pois foi assim que aconteceu. A paisagem era essa. Montanhas fumegantes e chuva sem parar. De tanto chover, o espaço entre as montanhas começou a encher, encher, encher e foi então que surgiram os primeiros oceanos. A água que caía não só criou os mares como também derreteu imensas montanhas. Levou com ela resíduos de todos os tipos de rochas, depositando- os no fundo desses mares recém criados. O sal é uma mistura de resíduos e prova desses acontecimentos. Calcula-se que há centenas de milhões de toneladas de sal nos mares. A água não só carregou as pequenas partículas de rochas. Em sua missão de misturar-se e misturar tudo, modificou-as quimicamente, transformando-se em um líquido cada vez mais concentrado de diferentes elementos. Correndo pelos rios e pelas geleiras com velocidade constante, a água foi modificando completamente as superfícies, os materiais que encontrava pela frente - a água dividiu as já pequenas partículas das rochas em partículas cada vez menores. Mas as incríveis transformações não pararam por aí. Apareceram os seres vivos. A terra viveu também uma época de gelo. A água depositada entre as rochas, ao se congelar aumentava de volume e se quebrava. As plantas penetraram entre as rochas fazendo por sua vez também o papel de quebrá-las mais ainda. As geleiras derretidas transportavam estes pedaços, carregando com elas restos de folhas, animais, tudo o que encontrassem. O vento levava pelos ares outros resíduos, poeiras, sementes. O fogo vez ou outra continuava expelindo lavas, abrindo grandes fendas e provocando terremotos. Outras montanhas se elevaram, mudando os oceanos de lugar. A paisagem da Terra mudava, e ainda muda, conforme os acontecimentos vindos do ar, da terra, do fogo e da água. O caldeirão não parava e não para de criar transformações.