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Martins Pena e a comédia de costumes Criador da comédia brasileira, Martins Pena também é reconhecido como o primeiro autor teatral a desenvolver temas nacionais naquilo que eles têm de mais específico e autêntico, sempre apresentando observações satíricas sobre algum aspecto da realidade brasileira. De modo geral, suas peças têm estrutura simples, muitas vezes um único ato, e apresentam caracteres e situações que não chegam a ser aprofundados. O resultado obtido era uma encenação leve, que provocava o riso da plateia ao mesmo tempo que apontava aspectos reprováveis em diferentes setores da sociedade brasileira. Embora Martins Pena trate de questões religiosas e políticas, discutindo o funcionamento dos três poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário —, destaca-se em sua obra o enfoque sobre as diferenças entre os tipos ser- tanejos e os metropolitanos, o confronto entre as realidades e os valores da capital e da província. O intuito do autor é ridicularizar, por meio da apresentação caricata, os tipos roceiros e provincianos, que se transformavam em fonte de riso fácil para o público fluminense. Em situações cômicas, Martins Pena criticava os comportamentos censuráveis dessas personagens, como é o caso do juiz venal da peça O juiz de paz da roça. [...] Juiz — [...] Sr. Escrivão, leia outro re- querimento. Escrivão, lendo — “O abaixo-assinado vem dar os parabéns a V. Sª. por ter entrado com saúde no novo ano financeiro. Eu, Ilmo Sr. Juiz de paz, sou senhor de um sítio que está na beira do rio, aonde dá muito boas bananas e laranjas, e como vem de encaixe, peço a V. Sª. o favor de aceitar um cestinho das mesmas que eu mandarei hoje à tarde. Mas, como ia dizendo, o dito sítio foi comprado com o dinheiro que minha mulher ganhou nas costuras e outras cousas mais; e, vai se- não quando, um meu vizinho, homem da raça do Judas, diz que metade do sítio é dele. E então, que lhe parece, Sr. Juiz, não é desaforo? Mas, como ia dizendo, peço a V. Sª. para vir assistir à marcação do sítio. Manuel André. E. R. M.” Juiz — Não posso deferir por estar muito atravancado com um roçado; portanto, re- queira ao suplente, que é o meu compadre Pantaleão. Manuel André — Mas, Sr. Juiz, ele também está ocupado com uma plantação. Juiz — Você replica? Olhe que o mando para a cadeia. Manuel André — Vossa Senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não manda. Martins Pena. Século XIX. Jovem de origem humilde, Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) viveu pouco e escreveu muito. Apoiado pelo ator João Caetano, produziu 17 comédias em apenas dois anos omo muitos rom nti- cos, morreu vítima da tuber- culose. Maior comediógra- fo brasileiro do século XIX, imortalizou-se com peças como O juiz de paz da roça (1838), Os dous ou O inglês maquinista (1845), O judas em sábado de aleluia (1844) e O noviço (1845), sua obra mais conhecida. 378 U n id ad e 4 • R om an ti sm o R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_cap18_C.indd 378 20/10/10 2:53:31 PM PENA, Martins. Comédias. Edição crítica por Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d., p. 28. (Fragmento). Recebendo como suborno cachos de banana, cestos de laranja, leitões e cuias de ovos, o juiz de paz representa a imoralidade dos funcionários do sistema judiciário que se favorecem do cargo que ocupam em lugar de cuidarem do cumprimento rigoroso das leis. O interessante é que, apesar de aceitar o “agrado”, o juiz não atende à solicitação feita pelo sitiante. E, quando Manuel André protesta, ameaça prendê-lo. A prepotência do juiz não recua ante o argumento de inconstitucio- nalidade apresentado por Manuel André. Ele simplemente “ordena” que a Constituição seja abolida. A cena ilustra o exercício voluntarioso e desmedido do poder. Do conjunto das comédias escritas por Martins Pena, emerge a imagem de um pa s ue, no s ulo , ia imperar em algumas inst n ias do poder público a safadeza, o mau-caratismo, a prevaricação. Embora melancólico, esse retrato se mostrou verdadeiro para o passado e premonitório para o futuro. Ainda hoje podemos reconhecer a atualidade de alguns tipos repre- sentados de modo caricato nas peças desse autor. O fundador da comédia brasileira Antes de Martins Pena, o teatro produzido no Brasil voltava-se quase exclusivamente para a encenação de passagens da Bíblia ou o desenvolvi- mento de pequenos autos religiosos. Embora a função fosse moralizante, a apresentação da mensagem era feita em tom solene. Ao apresentar o contraste entre a província e a corte, opondo tipos ru- rais e urbanos, Martins Pena se vale muitas vezes da imagem do sertanejo matuto que, com sua simplicidade ingênua, não só faz rir como expõe os vícios e as impropriedades da sociedade. A comédia de costumes ganhou as telas de televisão em programas humo- rísticos como A praça é nossa, em que tipos como o “primo pobre” e o “primo rico” trazem para o terreno das dife- renças socioeconômicas o confronto antes protagonizado pelo sertanejo e pelo indivíduo da cidade. o teatro ontempor neo, tam m identificamos os desdobramentos da comédia de costumes em um gênero que tem sido chamado de “besteirol”. O trabalho de Mauro Rasi, por exemplo, provoca o riso solto das plateias que lotam as salas de espetáculo quando são apresentadas, de modo carica- tural, as agruras da vida a dois, em Batalha de arroz num ringue para dois (1982), ou quando são revisitados os tipos provincianos em Pérola (1995). Juiz — A Constituição... Está bem!... Eu, o Juiz de paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. Escrivão, tome termo que a Cons- tituição está derrogada, e mande-me prender este homem. [...] Cena de Jeca Tatu, de Milton Amaral. Brasil, 1959. Nesse filme, Mazzaropi retoma, por meio da personagem Jeca Tatu, a figura do sertanejo matuto criada por Martins Pena. O matuto Jeca Tatu O matuto voltará à cena da comédia brasileira na figu- ra inesquecível do Jeca Tatu dos filmes de Mazzaropi. Mazzaropi adotou uma “fórmula” muito semelhante à do teatro de Martins Pena e alcançou um enorme su- cesso. Seus filmes trataram de questões sociais impor- tantes, como o racismo, o divórcio, a religião, a política, sempre falando “a língua do povo”. Vera Holtz em cena da peça Pérola, de Mauro Rasi, São Paulo, 1996. Derrogar: abolir. 379 C ap ít u lo 1 8 • r om an e re gi on al is ta t ea tr o ro m nt i o R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_cap18_C.indd 379 20/10/10 2:53:33 PM Segundo ato — Cena III Na cena transcrita, Carlos está vestido de mulher, depois de ter trocado seu hábito com Rosa — primeira esposa de Ambrósio —, para se livrar de ser reconduzido ao convento. A mulher, que viera atrás do marido desaparecido havia anos, é levada no lugar do noviço. O bígamo entra na sala e julga estar falando com sua antiga companheira. Entra Carlos, cobrindo o rosto com um lenço. Ambrósio encaminha-se para o meio da sala, sem olhar para ele, e assim lhe fala. Ambrósio — Senhora, muito bem conheço as vossas intenções; porém previno-vos que muito vos enganastes. Carlos (suspirando) — Ai, ai! Ambrósio — Há seis anos que vos deixei; tive para isso motivos muito poderosos... Carlos (à parte) — Que tratante! Ambrósio — E o meu silêncio, depois desse tempo, devia ter-vos feito co- nhecer que nada mais existe de comum entre nós. Carlos (fingindo que chora) — Hi, hi, hi... Ambrósio — O pranto não me comove. Jamais podemos viver juntos... Fomos casados, é verdade, mas que importa? Carlos (no mesmo) — Hi, hi, hi... Ambrósio — Estou resolvido a viver separado de vós. Carlos (à parte) — E eu também... Ambrósio — E para esse fim, empreguei todos os meios, todos, entendeis- -me?(Carlos cai de joelhos aos pés de Ambrósio, e agarra-se às pernas dele, chorando.) Não valem súplicas. Hoje mesmo deixareis esta cidade; senão, serei capaz de um grande crime. O sangue não me aterra, e ai de quem resiste! Levantai-vos e parti. (Carlos puxa as pernas de Ambrósio, dá com ele no chão e levanta-se, rindo-se.) — Ai! Carlos — Ah, ah, ah! Ambrósio (levanta-se muito devagar, olhando muito admirado para Carlos, que se ri) — Carlos! Carlos! Carlos — Senhor meu tio! Ah, ah, ah! […] Ambrósio — Como te achas aqui assim vestido? Carlos — Este vestido, senhor meu tio... Ah, ah! Ambrósio — Maroto! Carlos — Tenha-se lá! Olhe que eu chamo por ela. Ambrósio — Ela quem, brejeiro? Carlos — Sua primeira mulher. Ambrósio — Minha primeira mulher? É falso. Carlos — É falso? Ambrósio — É. Carlos — E será também falsa esta certidão do vigário da freguesia de... (Olhando para a certidão.) Maranguape, no Ceará, em que se prova que o senhor meu tio recebeu-se...(lendo) em santo matrimônio, à face da Igreja, com D. Rosa Escolástica, filha de Antônio Lemos etc., etc.? Sendo testemunhas etc. Leia o texto a seguir. Miriam Muniz e Juca de Oliveira em cena na peça O noviço. Teatro Arena, São Paulo, 1963. O noviço O noviço trata do casamen- to por interesse. Ambrósio, o vilão, casa-se com a rica viúva Florência para tomar posse de sua fortuna. Entre ele e seu objetivo, encontram-se os dois filhos dela, Emília e Juca, e o sobrinho Carlos, o noviço do título, de quem Florência é tutora. A solução encontrada por Ambrósio é providenciar que todos ingressem na vida religiosa. Com Carlos, esse objetivo já tinha sido alcançado: Florên- cia, convencida pelo esposo, enviara o sobrinho para um seminário. Mas os planos de Ambrósio serão frustra- dos pelo jovem noviço, que foge do seminário para fazer carreira militar e casar-se com Emília, por quem está apaixonado. No final, Ambró- sio é desmascarado, preso por bigamia, e os dois jovens podem ficar juntos. TEXTO PARA ANÁLISE 380 U n id ad e 4 • R om an ti sm o R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_cap18_C.indd 380 20/10/10 2:53:33 PM