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veja passageiroilustreO Atelier MirgA e Os CArtAzes de BOnde v eja ilustre passageiro O A t e l i e r M i r g A e O s C A r t A z e s d e B O n d e veja passageiroilustreO Atelier MirgA e Os CArtAzes de BOnde institutO tOMie OhtAke expOsiçãO 10 fevereirO A 10 ABril 2011 prOjetO Anônimos e ArtistAs Parte do ciclo de exposições anônimos e artistas, a exposição veja Ilustre Passageiro: o atelier Mirga e os cartazes de bonde apresenta a produção do importante Atelier Mirga, fábrica de imagens publicitárias que produziu mais de 8.500 anúncios para bondes e ônibus na cidade de São Paulo entre 1928 e 1970. Criado e dirigido por Henrique Mirgalowski, o ateliê formou e influenciou durante toda a sua existência artistas e publicitários paulistanos. Este ícone da história do design e da publicidade brasileira não foi importante apenas por sua intensa produção cartazística. O ateliê também servia como escola de iniciação e formação de artistas gráficos. O aprendiz, como era chamado o recém-contratado por Mirgalowski, passaria por todas as etapas da construção gráfica dos cartazes em sua carreira, a começar pela lavagem de pincéis, para depois avançar entre misturar cores, aprender a desenhar formas sólidas, construir perspectivas até, por fim, tornar-se ilustrador, figura que reunia, dominava e aplicava todas as técnicas previamente aprendidas e treinadas ad nauseum. Atividade de muitas mãos, dos aprendizes aos ilustradores, a dinâmica do ateliê funcionava como uma espécie de linha de produção em que todos trabalhavam paralelamente nos projetos. Isso garantia uma eficácia nos prazos, permitindo ao ateliê atender praticamente toda a expressiva demanda da companhia de transportes públicos da cidade de São Paulo. Referência publicitária para o design de cartazes brasileiros, o Atelier Mirga alternava suas influências entre as cartazísticas norte-americana, francesa e soviética, preocupando-se, acima de tudo, com a beleza e a capacidade de venda de suas mensagens, sem necessariamente se atrelar a uma ou outra ideia sobre o futuro. Com a expansão da cidade, a adaptação à modernidade era inevitável, por isso, necessariamente, a propaganda também precisou reformular-se para se comunicar com a massa. É nesse panorama que o Atelier Mirga se impõe, uma vez que ele foi um local de formação importante para essa modernização. A exposição veja Ilustre Passageiro: o atelier Mirga e os Cartazes de Bonde apresenta o design brasileiro de cartazes em seus primórdios e, ao mesmo tempo, traz, de maneira muito sutil, a passagem para essa modernidade contada pelas peças criadas no famigerado ateliê de Mirgalowski. Este projeto, realizado com o patrocínio da Mercedes-Benz, possibilitou a execução de um trabalho histórico, percurso imprescindível para melhor se compreender proposições futuras. Ao Ministério da Cultura, pela Lei Rouanet de Incentivo à Cultura, que permite a consolidação dos patrocínios empresariais, os agradecimentos. InStItutO tOMIE OHtAkE AS ARtES gRáfICAS dO tRAnSPORtE COLEtIvO uRBAnO A valorização da cultura brasileira é um compromisso intrínseco às atividades da Mercedes-Benz do Brasil. Ao fabricar veículos que cruzam todos os rincões do país, contribuir para o progresso e o desenvolvimento social, e apoiar as mais variadas expressões artísticas, a empresa se vê como parte desta nação. Imbuída desse espírito, a Mercedes-Benz, na comemoração do Ano 10 do Instituto tomie Ohtake, patrocina atividades voltadas a investigar as origens da criatividade e as fontes do design e da estética industrial do Brasil. Esta publicação decorre da pesquisa de preparativos para a mostra veja Ilustre Passageiro: o atelier Mirga e os cartazes de bonde, com peças concebidas, curiosamente, por um único escritório, entre 1920 e 1970 cujo modelo de atuação antecipava as atuais agências de publicidade. durante o período de quase meio século, cerca de 8 mil cartazes colocados nos bondes foram produzidos pelo Atelier Mirga. Os cartazes reunidos na exposição refletem uma primeira fase de influência europeia, com desenhos mais elaborados, seguida dos reflexos da corrente estética norte- americana, mais interessada na força de venda dos produtos. A Mercedes-Benz do Brasil, ao patrocinar o projeto anônimos e artistas, apoia o centro da investigação desse movimento que viria posteriormente a formar o design brasileiro. anônimos e artistas contempla um ciclo de quatro mostras, com duas exposições em 2011, sobre os anúncios de bonde e os rótulos de cachaça. Em 2012, serão apresentadas duas exposições que retratam a gráfica autoral brasileira. MERCEdES-BEnz dO BRASIL 3 4 55 6 7 8 9 10 11 anônimos e artistas investiga a gráfica praticada no Brasil há quase um século, pouco conhecida e praticamente sem nenhuma reflexão, sendo Rafael Cardoso o mais recente e um dos raros estudiosos, na companhia de pesquisadores e professores como Chico Homem de Melo e Ethel Leon. Os assuntos abordados por este projeto são decorrentes de proposições populares – os anônimos – e outras que chegaram a ter profissionais de formação técnica e eventualmente superior para desenvolver os desenhos – os artistas. O Instituto tomie Ohtake concretiza este estudo, em parte iniciado há mais de dez anos por um grupo de trabalho da Adg Brasil, Associação de designers gráficos, então formado por Ricardo Ohtake, Milton Cipis, Sylvia Monteiro, Augusto Lins Soares e Adriana Campos. O mesmo grupo chegou a organizar exposições como a de Rogério duarte, com levantamento extremamente trabalhoso, pois o artista não possuía sequer um exemplar de vários de seus projetos realizados em 1960-70. depois desta bem-sucedida iniciativa, o Brasil perceberia a importância de sua obra e, com isso, várias mostras e publicações foram merecidamente realizadas. neste período, os mesmos designers gráficos atuantes na Adg organizaram ainda Gráfico amador, exposição que reunia trabalhos do grupo formado nos anos 1950-60 por artistas gráficos em Pernambuco – gastão de Holanda, José Laurênio de Melo, Orlando da Costa ferreira e Aloísio Magalhães. Com curadoria do designer carioca guilherme Cunha Lima e coordenação de Augusto Lins Soares, Gráfico amador apresentava as proposições que iniciavam o modernismo gráfico brasileiro, nas quais despontava o racionalismo. anônimos e artistas, em que se focaliza um tempo ainda mais remoto, pôde finalmente ser realizado pelo Instituto tomie Ohtake. Em 2011, o projeto apresentou as mostras veja Ilustre Passageiro: o atelier Mirga e os cartazes de bonde, com curadoria do designer e professor norberto gaudêncio Junior, autor de dissertação de mestrado (2010) sobre o tema, e Caprichosamente engarrafada: rótulos de cachaça, com curadoria de Egeu Laus, designer e pesquisador. Com coordenação geral de Milton Cipis e participação do núcleo de pesquisa e curadoria do próprio Instituto, sob a orientação de Paulo Miyada, anônimos e artistas integra quatro exposições que focalizam diferentes temas: 1. os RótuLOS dE CACHAçA que, no Brasil, somam milhares, já que praticamente a cada pequena plantação de cana-de-açúcar correspondia um alambique produtor. de norte a sul do país, houve a necessidade do rótulo, uma vez que cada fabricante da bebida, quase sempre estabelecido em regiões rurais do país, dirigia-se ao centro urbano mais próximo para solicitar os serviços fornecidos por alguma pequena gráfica que tivesse um desenhista à mão para ajudar na criação. São rótulos mais ingênuos, que serviam simplesmente para distinguir um produto de outro. Os desenhos dessas peças, considerados de mau gosto pela estética racionalista consolidada no país e artistas anônimos riCArdO OhtAke MiltOn Cipis 12 nos anos 1960, trazem resquícios estéticos dos primórdios da indústria gráfica brasileira. 2. os AnúnCIOS dE BOndE executados em São Paulo, durante mais de quatrodécadas (1920-70), por um ateliê interno à Companhia de Annuncios em Bonds, o Atelier Mirga. O produtivo departamento de criação antecipou as agências de propaganda. Estes cartazes, apesar de tocarem emocionalmente aqueles que têm mais de sessenta anos, trazem muito pouco de uma estética genuinamente nacional. Os projetos foram fortemente influenciados pela estética da gráfica europeia nos primeiros momentos do ateliê, e pela estética norte-americana numa segunda fase, quando Henrique Mirgalowski deixa os pincéis para se dedicar com mais afinco à direção geral. Os materiais produzidos na terceira e última fase perdem a qualidade e objetividade da linguagem cartazística: os textos ganham maior importância, e os desenhos viram coadjuvantes. 3. a gRáfICA POPuLAR, a partir do levantamento realizado pelo fotógrafo Edson Meireles, do Rio de Janeiro, que registrou as placas e informações comerciais desenhadas à mão, nas décadas de 1970 a 1990, por pessoas que não tinham formação gráfica ou de letrista, mas que em inúmeros casos foram de uma criatividade tipográfica imensa. trata-se de uma atividade que infelizmente tende a desaparecer com a disseminação cada vez maior da impressão de placas e banners por meio de computadores e plotters. 4. a obra de RuBEn MARtInS, artista da primeira geração de designers gráficos (a partir do final da década de 1950) que adota o racionalismo como diretriz compositiva e gráfica, mas em paralelo absorve elementos da linguagem popular de então, como o psicodelismo, os temas políticos, a gráfica de baixo custo etc. Pode-se dizer que ele foi o primeiro a entender e a quebrar as regras do design moderno, o primeiro transgressor. Com sua morte prematura em 1968, o design nacional só foi retomar suas experimentações no final dos anos 1970 e início dos 1980. Estas quatro manifestações foram escolhidas em função da forte presença da estética popular e da brasilidade contida em parte da cultura barroca e eclética, características encontradas também em produtos de massa da época, como as embalagens de produtos comerciais e as publicações (jornais, revistas e livros). A nova onda que surge no período pós-guerra traz a internacionalização estética adotada por profissionais formados nas universidades, em sua maioria. Esse movimento é reflexo de acontecimentos no país que ocasionaram o enriquecimento da burguesia urbana brasileira. no teatro surge, trazido da Europa, o tBC – teatro Brasileiro de Comédia; nas artes plásticas, é criada a Bienal Internacional de Arte; no cinema, destaca-se a Companhia vera Cruz; e nasce ainda a tv tupi. Além disso, despontam movimentos artísticos como o concretismo e o abstracionismo, a dramaturgia de nelson Rodrigues, o Balé do Iv Centenário, as orquestras sinfônicas. neste cenário germina o design, através de cursos e do aparecimento de pequenos escritórios, criações das elites urbanas, principalmente de São Paulo. nas artes gráficas, esse movimento industrial faz desaparecer completamente, na classe média, os traços da criação brasileira. 13 14 15 Ele era muito querido aqui em São Paulo. Todo mundo conhecia o seu Mirga. Andava na rua, parava aqui, parava ali, e todo mundo dizia: “Ô, Mirga, ô, Mirga…” Henrique Mirgalowski. Mirga de Mirgalowski. Wilson Limongelli, desenhista do Atelier Mirga Não seria exagero afirmar que Henrique Mirgalowski, o Mirga, e o ateliê de desenho publicitário que comandou por quase meio século em São Paulo constituem uma espécie de “tesouro perdido” do design e da publicidade brasileira. Referenciado e raramente esquecido por qualquer autor que se aventure a traçar a história destas atividades profissionais, mas com um escopo de informação e conhecimento a seu respeito reduzido, Mirgalowski parece sobreviver com a devida propriedade apenas na lembrança daqueles que compartilharam sua amizade e vivência profissional. É com o intuito de suprir parte dessa lacuna que a exposição Veja Ilustre Passageiro: o Atelier Mirga e os Cartazes de Bonde vem a público. Mirgalowski nasceu em 25 de dezembro de 1899 em Vilna, atual capital da Lituânia, mas na época uma cidade com presença e influência cultural majoritariamente polonesa – e submetida à dominação do Império Russo. Sua mãe, flagrada ensinando o idioma polonês para um grupo de crianças, o que era terminantemente proibido pelos russos, foi deportada para a Sibéria quando seu filho mal somava um ano de idade. O exílio só foi interrompido em 1914, quando uma anistia geral concedida pelo tsar Nicolau II permitiu que a família Mirgalowski retornasse para sua cidade natal, e Henrique iniciasse sua formação artística numa escola mantida pelo governo. No entanto, os conflitos russo-poloneses e a Primeira Guerra Mundial interfeririam nos anos de formação do artista, que ingressou nas fileiras de combate, sendo feito prisioneiro dos alemães por cerca de três anos. Com o fim da guerra, Mirgalowski mudou-se para Varsóvia, onde trabalhou em uma empresa de propaganda até 1924. Consta que nesse período teria frequentado a Academia de Belas-Artes de Varsóvia, instituição criada em 1903 com o intuito de conjugar o ensino das belas-artes com o das artes aplicadas, revelando, no período entreguerras, tanto artistas alinhados com a vanguarda modernista quanto a primeira geração da admirada escola cartazística polonesa. Infelizmente, a passagem de Mirgalowski por lá não é confirmada por aquela instituição nem mesmo por seus familiares. Também não se sabe ao certo se foi na Academia ou nos campos de combate que Mirgalowski conheceu o também polonês Bruno Lechowski, artista e professor cujo destino iria compartilhar num futuro próximo. veja passageiro ilustre O Atelier MirgA e Os CArtAzes de BOnde nOrBertO gAudênCiO juniOr 116 OS POLONeSeS ROdAM O MuNdO Lechowski nasceu em 1887 na cidade de Varsóvia. Pintor, desenhista, professor, arquiteto e músico, este artista polivalente estudou na Academia de Belas-Artes de Kiev, ucrânia, e completou seus estudos em São Petersburgo, Rússia, em 1913. No ano seguinte, tornou-se professor da Academia de Belas-Artes de Varsóvia, onde também organizou uma escola de orientação artística e profissional para crianças e jovens aprendizes sem recursos financeiros. entre 1914 e 1921 alistou-se como voluntário no exército polonês, socorrendo feridos na frente de batalha dos conflitos russo-poloneses. entre 1922 e 1924 desenvolveu o aventuroso projeto da Casa Internacional do Artista, instituição que teria sede no maior número possível de países, e onde qualquer artista poderia residir, trabalhar e receber uma parte da receita proveniente da venda de ingressos para exposições realizadas ao ar livre em uma tenda de lona com estruturas e armações desmontáveis. em 1924, após aceitar uma aposta para provar a viabilidade desse projeto, Lechowski finalmente pôde arrumar as malas. Mas não viajaria sozinho. durante o ano de 1925, Lechowski e Mirgalowski percorreram o interior da Polônia e diversos países europeus, expondo em parques e praças públicas. Sabe-se que passaram por Paris onde, além de expor pinturas, pintaram cenários de espetáculos e vitrines. Naquele mesmo ano, ao que consta a caminho da América do Norte, passaram pelo Rio de Janeiro, onde decidiram permanecer. O passaporte de Lechowski anota o embarque no navio Belvedere, na cidade italiana de Trieste, que chegou ao Rio de Janeiro em 4 de setembro de 1925 (Figura 1). Também pairam incertezas sobre o papel de Mirgalowski nessa viagem acompanhando Lechowski. uma hipótese válida é a de que, na condição de pupilo do artista mais experiente, Mirgalowski tê-lo-ia acompanhado com a tarefa de registrar os progressos daquele trajeto. entretanto, nas poucas entrevistas que concedeu, anos depois, Mirgalowski declarou ter exposto obras de sua autoria nessa “turnê” internacional. Como documento, resta hoje um cartão-postal que descreve, em quatro idiomas, os objetivos do projeto artístico de Lechowski. Além do texto, esse cartão apresentauma fotografia cuja hierarquia é evidente: Lechowski ocupa o centro da composição, tendo atrás de si um globo terrestre e a inscrição dos 130 mil quilômetros que pretendia percorrer. Tem em mãos o instrumental (pincel e cavalete) que o qualifica como o artista da imagem. Já Mirgalowski posiciona-se abaixo, à esquerda, com os olhos voltados para o que parece ser um diário. Pode-se flagrar em seu semblante um ar de orgulho e satisfação de compartilhar com o colega a aventura desse projeto, que culminaria com a permanência de ambos no Brasil (Figura 2). 1 2 17 A “chegada dos poloneses” é referenciada como um importante capítulo da história da publicidade brasileira, apesar dos rumos distintos de suas carreiras. Lechowski, à parte algumas investidas nas artes aplicadas, deu continuidade a sua trajetória artística, sendo enaltecido, décadas depois, como um excelente paisagista, cuja obra influenciou profundamente um dos seus alunos brasileiros: José Pancetti. Já Mirgalowski, paralelamente à tentativa de emplacar uma carreira como artista plástico, e por questões de sobrevivência material, começou a trabalhar com publicidade, pintando cartazes luminosos à base de têmpera. depoimentos apontam para uma curta colaboração com a Companhia de Annuncios em Bonds, no Rio de Janeiro, empresa especializada na criação e veiculação de cartazes de bonde. O CARTAz de BONde em seu livro de memórias, o diplomata Maurício Nabuco, filho de Joaquim Nabuco, relata os fatos e eventos que testemunhou durante décadas convivendo com a elite política, econômica e cultural brasileira. Nessa obra, um capítulo especial é dedicado ao “pessoal da Light”, que o diplomata conheceu e frequentou já na década de 1910, “um grupo social que satisfazia a si mesmo, num período que, socialmente, mal saíamos do colonialismo”, como fez questão de salientar. A esse seleto grupo, formado pelos diretores da empresa e por membros do consulado e da embaixada norte-americana, juntavam-se alguns “estrangeiros ilustres”, agregados do meio socioempresarial do período, entre os quais figuravam dois norte-americanos a quem Frederick Huntress, vice-presidente residente da Light no Brasil, cederia a concessão para os anúncios em bondes1. Surgia, em 1917, a Companhia de Annuncios em Bonds, a mais representativa das empresas brasileiras especializadas em anúncios de concessionários de energia e transporte público. estas concessões funcionavam da seguinte maneira: o poder público cedia, contratualmente, a exclusividade em explorar publicidade ao próprio concessionário da linha de bonde, que, por sua vez, repassava o contrato para uma empresa de publicidade, responsável por produzir e veicular os anúncios. Não surpreende a estrutura e os interesses comerciais envolvidos, pois o bonde foi um suporte privilegiado para a mensagem publicitária na primeira metade do século XX. O sociólogo Gilberto Freyre, que considerava o bonde uma “brasileiríssima instituição”, escreveu sobre a febre de réclame que tomou conta do Brasil ainda no século XIX e como “encheram-se os bondes de anúncios de sapatos, de roupas feitas, de drogas”. Já o historiador Nicolau Sevcenko afirma que o interior do bonde constituiu um “microcosmo da invasão publicitária”, que em escala ampliada se estendia por todas as superfícies disponíveis nas metrópoles em franco crescimento urbano e populacional. 18 A ambiência particular do bonde colaborava para o sucesso comercial dos cartazes lá expostos. disponibilizado em diferentes formatos padronizados, o cartaz de bonde era um meio relativamente barato e bastante rentável para os anunciantes (não por acaso, a Companhia de Annuncios em Bonds anunciava-se nas revistas segmentadas com o slogan “Propaganda popular a preços populares”), além de combinar dois importantes fatores comunicacionais: uma grande circulação, que permitia atingir um número expressivo de pessoas, e a capacidade de despertar e manter a atenção do passageiro para as mensagens lá expostas (Figuras 3 e 4). dados referentes à cidade do Rio de Janeiro, em novembro de 1940, apontam que a quantidade de passageiros que circulou nos bondes da Light foi de 47.064.880, número superior à população brasileira do período. estatísticas operacionais das principais subsidiárias da Light, de 1912 a 1963, demonstram que a década de 1940 constitui os anos dourados da circulação de passageiros pelas linhas de bonde. O ano de 1945 é o que apresenta melhores índices, com 1.289.612.655 passageiros transportados na Região Sudeste do país. em uma reportagem do Anuário de Imprensa da Revista Publicidade e Negócios, o bonde é festejado como o veículo mais utilizado pelos cariocas no ano de 1945, com dados estatísticos que somam 672.597.000 pessoas transportadas naquele ano. Segundo esta mesma reportagem, o cartaz de plataforma (externo, localizado logo abaixo do condutor) gritava “o nome dos produtos anunciados em todas as esquinas, às donas de casa de todas as ruas, aos transeuntes de todos os pontos de bondes”, sendo visto pelo “maior número de pessoas”. Já os cartazes justapostos no interior do bonde serviam “de distração aos que viajam”. distração que a escritora zélia Gattai enalteceu em suas memórias, ao recordar-se de como ela e sua irmã “liam em voz alta os anúncios de remédios fixados no bonde”, sobretudo os versinhos que leitor com mais de sessenta anos de idade talvez não tenha dificuldade em acompanhar: “Veja, ilustre passageiro/ o belo tipo faceiro/ que o senhor tem ao seu lado./ E, no entanto, acredite/ quase morreu de bronquite/ salvou-o o Rhum Creosotado!”2 (Figura 5). 3 4 5 19 O ATeLIeR MIRGA Retoma-se a trajetória de Henrique Mirgalowski na Companhia de Annuncios em Bonds. Infelizmente, pouco se sabe até o momento sobre sua passagem pelo Rio de Janeiro, nem mesmo se teria trabalhado com o Barão Puttkamer e Geraldo Orthof, os lendários artistas imigrantes que também trabalharam nesta empresa. Impõe-se com maior exatidão o ano de 1928, em que foi convidado a organizar uma equipe de desenhistas e iniciar sua colaboração com a recém criada Companhia de Annuncios em Bonds paulistana. Nascia o Atelier Mirga. Segundo a pesquisadora Silvana Brunelli, Henrique Mirgalowski pode ser classificado, no período aqui abordado, como um artista técnico e racional, já especializado nas diretrizes de uma prática profissional, ao contrário dos artistas amadores, ilustradores ou mesmo artistas plásticos que ocasionalmente flertavam com a prática publicitária. Isso talvez explique a rapidez com que seu talento foi cooptado pelo mercado publicitário brasileiro, que na época ainda definia seus códigos e práticas. este é um ponto crucial para que se compreenda a relevância do Atelier Mirga. O italiano Oswaldo Morgantetti teria sido o primeiro desenhista contratado por Mirgalowski. Profissional experiente, Morgantetti já acumulava passagem por outros ateliês publicitários. Ainda na década de 1930, ingressou no ateliê o também experiente Rubens Albuquerque Vaz. Artista notável, dotado de um talento especial para o desenho da figura humana, e também para a caricatura, Vaz já havia trabalhado como cartazista de cinema e ilustrador para a grande imprensa. Figura central na configuração do núcleo principal do ateliê, Vaz colaborou com Mirgalowski até meados da década de 1960, tornando-se seu braço direito (Figura 6). É de sua autoria as divertidas caricaturas dos desenhistas do Atelier Mirga que servem hoje como importante testemunho do alegre e amigável convívio lá praticado. Outros importantes nomes são cogitados nestes anos de formação, entre eles o do francês Jean Gabriel Villin e o do italiano José Caruso, que marcariam época como desenhistas publicitários. Além do próprio Lechowski, a quem comumente se atribui uma passagem pelo Atelier Mirga. No entanto, a presença destes não é confirmada por nenhum dos (poucos) documentos remanescentes desse período inicial, portanto deve ser relativizada, pois o Atelier Mirgase notabilizaria como um amigável ponto de encontro para artistas e desenhistas, nacionais e estrangeiros. um bom exemplo é o do italiano danilo di Prete, vencedor do prêmio nacional de pintura da primeira Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, um amigo e habituée do ateliê, e que em reportagem de 1948 é retratado como um cartazista que “entrou na propaganda comercial através da orientação de Mirga, que viu nele um artista completo, de excepcional talento”. Graças ao apoio dado por Mirgalowski, di Prete foi um premiado cartazista freelancer, que colaborou com algumas das principais agências paulistanas, mas sem abandonar o desejo de consagrar-se como artista plástico. em torno destes artistas experientes só restava a Mirgalowski uma alternativa para completar sua equipe: formar jovens talentos. Recrutados quase sempre de seu próprio círculo de sociabilidade, o ingresso dos aprendizes no ateliê de Mirgalowski assemelhava- se à transferência de paternidade típica da relação mestre-aprendiz medieval ou renascentista, em que se transferia ao mestre a autoridade masculina e a “educação completa” do jovem aprendiz. Como foi o caso, ainda nos anos 1930, do alemão Fritz Lessin, filho de um corretor da Companhia de Annuncios em Bonds, que foi “adotado” muito jovem por Mirgalowski (Figura 7). Talvez um dos mais talentosos pupilos lá formados, Lessin morou certo tempo no porão da casa dos Mirgalowski, desfrutando de um ambiente familiar marcado pela intimidade e cumplicidade com seu mestre. Outro exemplo esclarecedor é o de Wilson Limongelli, que ingressou no ateliê em 1944, levado por seu pai que, dispensando sutilezas, teria dito: “Sr. Mirga, entrego-lhe o futuro de meu filho. Faça dele um artista!” 6, 7 20 Além dos nomes acima é imprescindível acrescentar os de Czelan Romasko, João de Campos, José Luiz Guida, Ivo Araújo, Hélio de Arruda Guimarães e tantos outros talentos que, depois de devidamente lapidados, integrariam o fluxo migratório para as grandes agências de publicidade das décadas de 1940 e 1950. Como Fritz Lessin, que ao assumir o cargo de diretor de arte da Standard Propaganda levou para lá Oswaldo Morgantetti, João Cardacci, domingos Braga, Ivo Araújo, entre outros. Por isso, não surpreende que o Atelier Mirga fosse considerado por seus contemporâneos como uma “verdadeira academia de arte publicitária”, “a maior escola, sementeira, cadinho, estufa do talento artístico-comercial do Brasil”. em uma fotografia, registrada por ocasião do I Salão de Propaganda, realizado no Museu de Arte de São Paulo, em 1950, e que reuniu a fina flor do desenho publicitário brasileiro de então, oito de um total de 38 profissionais retratados (cerca de 20%) tiveram passagem especulada pelo Ateliê da rua do Carmo3 (Figura 8). Na linha de produção do ateliê, a manufatura de croquis e artes-finais dos cartazes exigia um alto grau de fragmentação e especialização de aptidões e gêneros. O trabalho encarnava três níveis hierárquicos: além do mestre, havia os assistentes mais experientes, como Oswaldo Morgantetti, João Cardacci e Rubens Vaz, que demonstravam competências especializadas e certa habilidade gerencial; e os aprendizes, cujo trabalho centrava-se basicamente no princípio da imitação, da cópia como aprendizado. Wilson Limongelli conta que Mirgalowski se considerava o “maestro” do ateliê. Rubens Vaz era chamado de “pianista”, e os assistentes, como ele próprio, eram chamados de “bumbos”. Como os conhecimentos de Mirgalowski eram transferidos para seus discípulos? (Figura 9) Invariavelmente, o aprendiz era iniciado nas tarefas mais rotineiras, para não dizer ordinárias, como lavar o banheiro e limpar os pincéis. Progressivamente era introduzido a fundamentos artísticos básicos, como a mistura de tintas para obtenção de cores e o traçado das chamadas “formas duras”, que os capacitavam para a marcação das letras dos cartazes. Passavam, então, para os primeiros experimentos com a perspectiva, necessária para a ilustração de embalagens. A individualidade artística daquele jovem não era incentivada num primeiro momento, pois ele aprendia, sobretudo, observando os colegas mais experientes e, aos poucos, se demonstrasse o talento e a dedicação necessários, eram confiados a ele pequenos trabalhos e tarefas. Neste estágio inicial, a formação daquele jovem desenhista era pautada por uma produção comunitária, capacitando-o tecnicamente para as etapas produtivas do desenho publicitário. daí a característica deste, e de outros ateliês publicitários naquelas décadas de profissionalização, de combinar o trabalho com a aprendizagem. Após cerca de três anos, era permitido que esse aprendiz se arriscasse nos primeiros croquis, mas ainda sob o total e irrestrito cerceamento do mestre ou dos assistentes mais experientes. Consta que Mirgalowski reagia aos impulsos excessivamente “artísticos” de Thomaz Ianelli (que se tornaria um renomado pintor) com reprimendas do tipo: “Isso são experiências modernistas. Você não domina direito o desenho de proporção”. esta conduta rígida era aparentemente compreendida e aceita com tranquilidade pela maioria de seus aprendizes, cientes de que somente a rotina diária do ateliê, com sua ênfase nos gestos repetidos e no longo aprendizado, proporcionar-lhes-ia a habilidade necessária para evoluir profissionalmente e consolidar sua prática. um longo aprendizado, calcado antes na capacitação e no desenvolvimento de habilidades específicas do que na busca de uma originalidade artística (Figuras 10 e 11). 8, 9 10, 11 21 A INFLuêNCIA eSTRANGeIRA No centro deste processo de formação de mão de obra especializada, era comum o exercício de apropriação, ou melhor, do empréstimo de diversos elementos formais, sobretudo de tendências estrangeiras. Não por acaso, revistas importadas, como Gebrauchsgraphik, alemã, e a Publimondial, francesa, serviam de referência e inspiração para os artistas do ateliê. um biógrafo de Thomaz Ianelli conta que foi por intermédio de algumas dessas revistas que o então jovem pintor travou contato com formas artísticas mais avançadas produzidas na europa e nos estados unidos. A observação atenta de alguns dos cartazes produzidos pelo Atelier Mirga aponta, dentre diversas influências detectáveis, duas predominantes. A primeira remonta à escola cartazística europeia, principalmente a francesa, representada por nomes como Cassandre, Loupot e Carlu, identificados com a art déco, que se caracterizava pelo uso de formas simples, geométricas e desprovidas de ornamentos. Inclusive, atribui-se a Mirgalowski, e a outros pioneiros como Geraldo Orthof, Barão Puttkamer e Ary Fagundes, o papel de propagadores, na década de 1930, do déco nas artes gráficas brasileiras, em substituição à grande influência da art nouveau, e servindo de contraponto ao avanço das agências norte- americanas em solo brasileiro. Os cartazes inspirados nesse estilo são extremamente “gráficos”, alguns com figuras sintetizadas no limite da abstração, num arrojo formal obtido antes pela apropriação descompromissada daquelas influências do que propriamente pela adesão ideológica direta a alguma das vanguardas modernistas que fertilizaram o design e a publicidade europeia nesse período (Figura 12). No entanto, a predominância da influência francesa pode (e deve) ser relativizada, pois é detectada na pequena amostragem sobrevivente da produção do Atelier Mirga, o que não exclui a possibilidade de outras influências terem sido muito exploradas, como a prestigiosa cartazística russa, ou mesmo nomes já consagrados na época, como o italiano Leonetto Cappiello, considerado um dos pais do cartaz moderno e uma das preferências de Mirgalowski (Figura 13). Isso sem que se esqueça da importância do desenho de humor, típico de nossa publicidade, e que tinha em Mirgalowski e Rubens Vaz dois talentos. Há indícios de que muitos dos cartazes do Atelier Mirga influenciados por essa vertente europeia foram criados pelo próprio Mirgalowski. Porém,já na década de 1940, esta influência começou a ceder espaço 12 13 22 para o avanço definitivo da publicidade norte-americana, que já vinha sendo gestada desde a década anterior nas agências multinacionais que se instalaram no Brasil. A julgar por alguns depoimentos, a partir de então Mirgalowski distanciou-se progressivamente da prática diária do desenho, recolhendo- se a funções de caráter gerencial, além, claro, de continuar formando os “seus” desenhistas. No entanto, também se atribui a Mirgalowski certo pioneirismo no uso da iconografia norte-americana que, ao contrário da tendência formalista e abstracionista dos europeus, era fortemente identificada pela predominância dos retratos realistas de pessoas, que o historiador norte-americano Roland Marchand chamou de “vinhetas detalhadas da vida pessoal”. em entrevista, o veterano publicitário Gerhard Wilda declarou que Mirgalowski foi, entre os ilustradores de formação acadêmica, o que introduziu a ilustração americana, “ambientada”, no Brasil. Obviamente, essas imagens não eram um reflexo literal da sociedade, mas sim um retrato distorcido e adocicado desta, excluindo aspectos mais amplos da realidade social em detrimento da dramatização do “sonho americano” e das aspirações do sistema capitalista. em muitos destes casos, o próprio consumidor é ilustrado como protagonista do anúncio, conferindo uma escala humana ao produto anunciado (Figura 14). Para compor estes tipos humanos, os desenhistas do Atelier Mirga (Rubens Vaz, acima de todos) recorriam a mostruários compostos de folhas com fragmentos de fotografias e ilustrações, recortados de revistas estrangeiras de notícias e variedades – como a norte-americana Life – e categorizados em seções, tais como figuras masculinas, figuras femininas, animais etc. A primeira constatação é de que dificilmente se encontrará o “Brasil” naquelas imagens. Trata-sede recortes específicos de um estilo de vida almejado pela parcela da população urbana do país que se sujeitava à nova circulação de mercadorias modificando seus comportamentos e criando novas expectativas com relação à propagação do que era considerado “moderno”. É sintomático, portanto, que as principais questões envolvidas na produção do Atelier Mirga estivessem presentes no cotidiano de outros ateliês e estruturas publicitárias do período, num exemplo paradigmático de uma busca por modelos estéticos passíveis de configurar uma modernidade brasileira em publicidade e design, apesar das fortes e necessárias ligações com os modelos estrangeiros. 14 23 dOS BONdeS PARA OS ôNIBuS: OS ANOS FINAIS Ainda na década de 1930, a Light demonstrou certo desinteresse pelo transporte coletivo de São Paulo. em 1937, a empresa comunicou à prefeitura paulistana sua intenção de encerrar a prestação daquele serviço a partir do ano seguinte, com o término de seu contrato. Mas a deflagração da Segunda Guerra Mundial, que dificultou a importação de materiais para a manutenção dos bondes, levou o então presidente da República, Getúlio Vargas, a emitir um decreto-lei obrigando-a a manter seus serviços até o fim do conflito. Nesse ínterim, foi anunciada a chegada dos primeiros auto-ônibus, apresentados como possível solução para o constante problema de transporte da cidade. Apenas em 14 de março de 1947 ocorreu a assinatura da escritura de constituição da Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), que adquiriria todo o acervo da Light ao custo de 60 milhões de cruzeiros velhos. A partir das décadas de 1950 e 60, com a redução progressiva das linhas de bondes, a Companhia de Annuncios em Bonds manteve o contrato com a CMTC para também veicular cartazes nos ônibus e trólebus paulistanos. um prospecto da década de 1960 define a Companhia como “concessionária exclusiva dos anúncios nos veículos da CMTC”. em 27 de março de 1968 ocorreu a última viagem de um bonde pelas ruas de São Paulo. Henrique Mirgalowski faleceu dois anos antes, em 11 de julho de 1966, vitimado por um atropelamento. O cartaz de bonde já perdera grande parte de seu “charme” e prestígio, e a Companhia de Annuncios em Bonds, que permaneceu ativa após a morte de Mirgalowski, tornara-se um tanto anacrônica ante as novas exigências da publicidade brasileira. Segundo um caderno de registros, a Companhia produziu 8.748 cartazes em toda sua existência. O último deles, para o conhaque Île de France, data de 21 de maio de 1970. O pedido anterior a este, para a loção reparadora Xambú, é de 27 de abril. em seu derradeiro mês, a empresa, outrora tão ativa, produziu apenas um cartaz. Ao encerrar suas atividades naquele mesmo ano, a equipe do ateliê fundado por Mirgalowski estava reduzida a três funcionários: Limongelli, último representante do período áureo, e os desenhistas Ari Guebara e Nemésio dias, além do apoio esporádico de um grupo de jovens estudantes. Com o fechamento iminente da empresa, Wilson Limongelli levou para sua casa muitos dos croquis e documentos sobreviventes que, somados àqueles preservados por parentes e amigos de Mirgalowski, contribuem para a preservação deste legado de quase meio século de história e tradição. Notas 1. estes norte-americanos eram drury Albert McMillen e William van Brunt. McMillen permaneceria durante décadas como diretor da Companhia de Annuncios em Bonds. engenheiro de formação, e aviador, em 1950 McMillen foi convidado pelo governo brasileiro a participar de uma expedição aérea que visava viabilizar a colonização do Brasil Central, tornando a região segura para a aviação comercial, cobrindo uma área de ocupação predominantemente indígena que incluía Goiânia, Xingu e Manaus. Sua principal tarefa era descobrir locais até então inacessíveis a partir de bases aéreas específicas. Mirgalowski acompanhou-o nessa viagem, auxiliando no mapeamento dessas rotas. Sobre essa viagem, resta hoje um bonito álbum de fotografias de Mirgalowski, retratando a população indígena que residia nessas áreas. 2. A famosa sextilha do Rhum Creosotado tem autoria controversa, sendo mais comumente atribuída ao poeta, e também publicitário, Bastos Tigre. Mas também postulam essa autoria ernesto de Souza, Martins Fontes, Basílio Viana e Alvaro Moreyra. Boris Fausto afirma em suas memórias que a popularidade desses versos era tamanha que seus contemporâneos eram capazes de tropeçar na letra do Hino Nacional, mas não nos dizeres daquele anúncio. Foi um dos maiores recalls da publicidade brasileira, veiculado durante décadas com o mesmo texto e diferentes layouts. No cartaz aqui reproduzido, a ilustração é de Rubens Vaz (e não de J. Carlos, como atribuído por algumas fontes) e retrata os próprios desenhistas do Atelier Mirga como passageiros do bonde. Mirgalowski seria o passageiro que lê o jornal. 3. O primeiro endereço da Companhia de Annuncios em Bonds paulistana/ Atelier Mirga foi na antiga rua do Carmo, 41, no trecho que vai do Pátio do Colégio (marco inicial da cidade de São Paulo) até a avenida Rangel Pestana, anteriormente conhecida por ladeira do Carmo. A rua abriga importantes casarões do período colonial, como o Solar da Marquesa de Santos. em 1952, o trecho inicial da rua do Carmo teve sua denominação alterada para rua Roberto Simonsen. Com esta alteração, a numeração do prédio da Companhia de Annuncios em Bonds foi alterada para 108. No final da década de 1940, a Companhia transferiu-se para a rua Aurora, 511. Wilson Limongelli recorda- se de lá “como um ateliê bonito, moderno”. O terceiro e último endereço da empresa, já na década de 1950, foi na rua Conselheiro Nébias, 553. dos três, certamente o casarão da rua do Carmo, com sua charmosa sacada que figura em tantos retratos, é carinhosamente o mais lembrado. Norberto Gaudêncio Junior é designer gráfico e professor da Universidade Mackenzie. Coordena o curso de pós-graduação Planejamento e Produção de Mídia Impressa na Escola Senai Theobaldo de Nigris. É autor dos livros A Herança Escultórica da Tipografiae Cultura Gráfica, pela Editora Rosari. Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Mackenzie, defendeu em 2010 uma dissertação sobre o Atelier Mirga. 24 “Para todos os que partilharam do ‘Atelier Mirga’, este é um momento histórico. Relembrar aquela grande escola de anúncios, unida família que conviveu ao longo do tempo com aquele senhor enérgico e ao mesmo tempo profundamente humano, era o imigrante polonês Henrique Mirgalowski, para nós, o Mirga. Sem a pretensão de aprofundar-me na memória e na vivência profissional daquele grupo, lembro-me como se fosse hoje, ainda menino, subindo as escadas do velho prédio da antiga rua do Carmo e passando por aquela porta nos fundos de um corredor escuro, do pequeno aviso: ‘Atelier entre sem bater’ e, entrando, deparava-me com os ‘layouts’, arte finalistas, executores, ajudantes e aprendizes, todos usando aventais beges ou brancos, fechados, que iam até abaixo dos joelhos, cooperando num clima de descontração e liberdade, porém sempre dependentes da palavra final do Mirga. Visitavam-nos artistas, desenhistas que já haviam passado pelo Atelier, brasileiros e estrangeiros, todos em torno de uma missão criativa. Os novos, em busca de aprendizado. Todos participantes daquela orientação. Falávamos de pintura, fotografia, questionávamos nossas buscas, discutíamos, ríamos... Sempre que um de nós era convidado para outra agência, sentíamos como que diplomados por aquela escola! Por tudo isso, a Companhia de Annuncios em Bonds, fundada no final dos anos 1920 em São Paulo, foi, até seu desaparecimento, a casa do Mirga, que tão fortemente nos marcou, ensinou e preparou para a vida.” depoimento de Thomaz Ianelli, originalmente escrito para o texto de apresentação de um catálogo da I Quadrienal de Propaganda, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), de outubro a novembro de 1986, e que contou com uma sala especial intitulada “Mirgalowski e Atelier Mirga”. 25 26 Primeira mídia de comunicação em massa estabelecida em um contexto urbano, majoritariamente habitado por cidadãos analfabetos – fala-se de fins do século XiX e primeira metade do século XX –, o cartaz se propõe dizer muito mais através de sua imagem do que por palavras. Quando associado ao bonde, outro elemento marcante das cidades industriais daquele período, o cartaz pôde se relacionar com o fluxo das pessoas em trânsito na cidade de formas variadas. Quando exposto em sua parte externa, normalmente à frente do motorista, passou a deslocar-se pelas ruas, lado a lado com os pedestres, valendo-se da atenção que o bonde chama ao passar próximo ao corpo, ou quando alcança uma parada de embarque e desembarque. no interior do bonde, por outro lado, o cartaz pode propor imagens mais complexas, já que, durante a viagem, o passageiro terá tempo de sobra para observar todos os seus detalhes. no bonde, o habitante das cidades teve uma das primeiras experiências cotidianas de convívio tão próximo com desconhecidos – formava-se a ideia de multidão –, e ali estavam também os cartazes a tomar proveito dessa oportunidade. o famigerado cartaz do Rhum Creosotado, ampliação presente na exposição, uma vez que não foi possível encontrar impressões do original, brinca com esse ambiente, e com a mistura de familiaridade e estranheza que existe no transporte público das grandes cidades, tanto entre os passageiros quanto entre o público e as imagens a seu redor. 27 28 29 30 31 32 33 a sedução em torno de um Produto constitui um dos elementos básicos da publicidade. o primeiro procedimento adotado por mirgalowski ao fundar seu ateliê foi apostar na qualidade e beleza de soluções gráficas e compositivas, como se vê no cartaz do creme dental Ecia. Para tanto, todo o repertório das artes gráficas modernas europeias poderia ser utilizado: dos planos de cor expansivos à tipografia simples e comunicativa; das estruturas em rede ortogonal às diagonais dinâmicas e eixos de composição. 34 35 36 37 38 39 40 os croQuis aPresentados na eXPosição trazem exemplos de formas mais e menos sutis das estratégias de aproximação entre público e produto. Veja-se o croqui para o Óleo Ya-Yá, em que uma baiana, figura famosa associada à venda de bolinhos de acarajé, mostra-se orgulhosa, talvez por ter utilizado o produto. ou então se notam as carismáticas crianças do Café e Assucar União, que se divertem dentro de uma xícara, numa brincadeira entre raças e cores das crianças e produtos – algo que hoje faria tremer os censores da correção política e moral. com essas figuras, os cartazes propunham ao público um jogo lúdico de reconhecimento através da caricatura e, por vezes, do preconceito. 41 42 43 44 45 conforme se aProXimaVam as décadas de 1950 e 1960, a referência da iconografia da cultura de massa norte-americana começou a ganhar espaço na produção do atelier mirga, importada diretamente das páginas de revistas como a Times Magazine. as crianças do cartaz do Licor de Cacau Xavier, um licor utilizado para tratar de lombrigueiros, por exemplo, aparecem contentes e sadias, tal qual nos cartazes vintage de coca-cola e outros produtos tipicamente norte- americanos. é uma imagem linda de crianças felizes que olham para um futuro brilhante, não há dúvida, já que a própria luz que os ilumina vem de lá, e que não mais terão problema algum de saúde. ou então se pode notar o quão apaixonado está o casal na imagem da água facial Babalú. um casal belo, enamorado e cercado de informações escritas que, sem dúvida, saberá tirar tamanha felicidade do uso cotidiano de um produto tão banal como um creme facial. o recurso da metáfora, nesses cartazes, alcança uma nova escala, associando produtos a emoções que, a rigor, nada têm em comum com os benefícios que eles podem trazer. nesse caso, o que se está prometendo ao público é a imagem de um modo de vida e certo status social. 46 47 48 49 50 51 52 53 54 a linguagem da cartazística Pode ser visualmente metafórica, uma vez que o objeto representado deve ter seus elementos apresentados de forma sintética. o cartaz Lavolho, que praticamente abre a exposição, é exemplar nesse sentido. criando uma imagem que remete à função do produto, os desenhistas e ilustradores do atelier mirga substituíram o funcionamento real do produto por uma metáfora, pautada na figura bem-humorada de um limpador de vidros aplicado em tornar o olhar cristalino. com o passar do tempo, o cartaz de bonde, que então também era utilizado em ônibus, aproximou-se da lógica dos anúncios e, assim, tornou-se mais prolixo, utilizando muito mais as palavras e enumerando qualidades reais e inventadas. retornando-se ao outro cartaz de anos depois, do formidavel desinfectante Leucoform, vê-se como um cartaz posterior apresenta a imagem como ilustração de uma lista de qualidades que procuram convencer o público da eficiência do produto, chegando a prometer “satisfação e alegria”. 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 SuGeSTõeS de BIBLIOGRAFIA e FONTeS de PeSQuISA LIVROS e TRABALHOS ACAdêMICOS ABReu, Alzira Alves de; PAuLA, Cristiane Jalles de. dicionário histórico-biográfico da propaganda no Brasil. 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Publicidade nos anos 50, TR-2650. 71 institutO tOMie OhtAke Direção Geral ricardo Ohtake paula signorelli assistente Curador Agnaldo farias consultor Produção vitoria Arruda diretora tobias May sonia leme Claudio Oliveira priscyla gomes Bruna pedrosa nina gomes lucas fabrizzio André luiz Bella Montagem ricardo soares da silva fabio Campanhola Carlos eduardo ferreira Wolfgang glöckner Iluminação Marcos franja Assessoria de Imprensa pool de Comunicação Marcy junqueira Design Gráfico ricardo Ohtake Monica pasinato rodrigo pasinato nazareth Baños Educação stela Barbieri diretora fernanda Beraldi sandra pandelo Angela Castelo Branco Maurício homma Yoneya lilian dias Bob Borges Educadores Mariana serri francoio coordenadora do Atendimento ao Público helenira paulino assistente de coordenação jana Marigo fragata júlia Maria Werner pellicciotti Marina pappa taygoara schiavinoto felipe josé ferraro felix White toro rodolfo Borbel pitarello Melina Martinho núcleo de pesquisa e Curadoria paulo Miyada coordenador Ana Maria Maia diego Matos julia Buenaventura paulo gallina Administração e Finanças roberto souza leão veiga diretor Anna Machado Carlito de Oliveira junior Michelli romão ferreira de Almeida elaine Cristina joseilda Conceição erika nakamura Negócios joão pedro diretor Camila de lourenzi Bandeliauskas pâmella Bussine thais sing Informática Andre Biacca Documentação Marcos Massayuki neuza narimatsu Secretaria deolinda Correia de Almeida Maria de fátima da silva rocha Wesley silva Coordenação Operacional Alexandre lopes pereira Apoio Técnico silvio santos lima jacildo Antonio de paula Adilson Oliveira da silva pedro Mario veja passageiroilustreO Atelier MirgA e Os CArtAzes de BOnde institutO tOMie OhtAke expOsiçãO 10 fevereirO A 10 ABril 2011 prOjetO Anônimos e ArtistAs agradecimentos guaracy mirgalowska, adriana mattoso e família Wilson limongelli e Kátia limongelli ivo araújo (in memoriam) alex Periscinoto associação dos Profissionais de Propaganda (aPP) fábio morgantetti gary B. 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