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LITERATURA INFANTOJUVENIL Luciana Santos 2 SUMÁRIO 1 LITERATURA INFANTIL COMO PRÁTICA DE LINGUAGEM ......................... 3 2 FUNÇÕES DA LITERATURA ..................................................................... 11 3 LITERATURA INFANTIL: ORIGENS E HISTÓRIA ........................................ 21 4 HISTÓRIA DA LITERATURA INFANTIL NO BRASIL .................................... 28 5 LITERATURA INFANTIL E REFERENCIAIS CURRICULARES ........................ 35 6 GRANDES TEMAS E AUTORES(AS) DA LITERATURA INFANTIL NO BRASIL ................................................................................................................. 40 3 1 LITERATURA INFANTIL COMO PRÁTICA DE LINGUAGEM A literatura infantil representa importante acesso ao universo da linguagem e suas formas de representação da cultura e da sociedade. Afinal, diferentes formas de linguagem proporcionam o desenvolvimento da criança, tanto em aspectos cognitivos, como sociais e morais. No campo da linguagem verbal, a literatura infantil tem papel central como área de conhecimento, pois permite acesso às tradições e culturas as quais as crianças estão inseridas e domínio progressivo da norma padrão da língua. Cabe aos educadores das séries iniciais compreender a íntima relação entre desenvolvimento de linguagem e literatura infantil, sendo esta prática pedagógica qualificada e de grande importância para o desenvolvimento das práticas de ensino-aprendizagem. 1.1 Compreender a linguagem como expressão infantil Linguagem é uma expressão que pode remeter a padrões linguísticos e formas de expressão pertencentes aos processos interativos de uma dada cultura; pode-se também considerar a linguagem a partir dos padrões de estudos do campo da psicologia do desenvolvimento, que considera a centralidade da linguagem para a evolução das funções mentais superiores e do pensamento, tal como postulam referências célebres como Jean Piaget (1896 – 1980) e, especialmente, Lev Vygotsky (1896 – 1934). Estas perspectivas teóricas evidenciam que a linguagem verbal, foco do presente estudo, constitui parte importante do processo de desenvolvimento da criança, abrangendo aspectos do campo cognitivo e sensorial, uma vez que ela se integra às outras formas de linguagem no campo da expressão. Mas também ocorre a abrangência de aspectos do processo interativo com o mundo, considerando fatores simbólicos e externos à subjetividade dos sujeitos e que são centrais ao desenvolvimento e aquisição de linguagem, uma vez que a criança interage com o meio e constrói gradativamente seu aprendizado por meio dos conhecidos mecanismos de assimilação e acomodação, na perspectiva de Piaget. Os mecanismos de 4 assimilação e acomodação consistem na assimilação de novos conhecimentos, pela criança, a partir das experiências que ela desenvolve com o ambiente externo, e a consequente associação destes novos conhecimentos com os antigos, chamados de esquemas, por Piaget. Neste processo surge uma nova acomodação de conhecimentos, num processo interativo e construtivo entre o que a criança já sabe e o que ela passa a assimilar de novidade. Assim, é importante considerar que além de ter importância fulcral ao processo de desenvolvimento da criança, a linguagem verbal, de uma maneira abrangente, tem também relação direta com o processo interativo na perspectiva da comunicação. No contexto da escolarização e dos diferentes usos da linguagem verbal, este processo comunicativo não é concebido em sua totalidade enquanto instância de interação humana presente em todas as formas de cultura. Afinal, trata-se de uma parte da comunicação, de modo que o trabalho educativo deve considerar a mensagem a ser passada, como isso acontece, os meios pelos quais se comunica e o que se espera desta manifestação – um desejo, uma opinião, um sentimento, uma dúvida, uma incerteza ou uma ideia (GOBBI, 2010, p. 1). Em primeiro plano, cabe aos professores e professoras de educação infantil e séries iniciais considerar, portanto, a linguagem verbal desde a dupla perspectiva de desenvolvimento humano e da comunicação, como elemento a ser ressignificado pelo processo didático. 1.2 A linguagem verbal e as escolas brasileiras O eco O menino pergunta ao eco onde é que ele se esconde. Mas o eco só responde: “Onde? Onde?” O menino também lhe pede: “Eco, vem passear comigo!” Mas não sabe se o eco é amigo ou inimigo. Pois só lhe ouve dizer: “Migo!” (Cecília Meireles, Ou Isto ou Aquilo, 1964.) 5 As escolas brasileiras de educação infantil e ensino fundamental abrigam a diversidade sociocultural e étnica característica do país. As diferenças de idade e classe, somadas aos elementos étnico-culturais, demarcam um cenário peculiar para a expressão verbal das crianças e jovens em formação escolar, desenvolvendo contextos enriquecedores que viabilizam a troca de repertórios e aprendizagem a partir do conhecimento de novos contextos socioculturais. Deve-se, portanto, considerar que as crianças carregam consigo suas singularidades culturais, e cada uma possui um repertório linguístico que converge em diferentes narrativas e expressam o Capital Cultural, conforme Pierre Bourdieu (1998), sustentado e perpetuado por seu núcleo familiar. Cabe explicitar que Capital Cultural é o conhecimento que a criança carrega por herança familiar e que é determinante para o seu desenvolvimento em sociedade; as famílias o transmitem e perpetuam conhecimento entre seus pares. No contexto das escolas há uma circulação destes repertórios que são expressos pelas situações de usos de linguagem e comunicação. A literatura deve figurar, nessa perspectiva, uma importante via de acesso, tanto ao desenvolvimento e ampliação destes repertórios linguísticos do ponto de vista da padronização da linguagem, a partir do que é definido como norma culta ou padrão, mas também como acesso à linguagem verbal em sua forma artístico-literária, constituindo formas de expressão e processos criativos essenciais ao desenvolvimento humano, conforme salienta Antonio Candido, no importante texto “Direito à Literatura”, de 1995. Nesse sentido, para considerar o desenvolvimento linguístico e de usos da linguagem verbal da criança, é importante atentar para sua trajetória e também destacar o artigo 29 da Lei no 12.796/2013, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e pontua que “a educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, 2013). 6 Dessa forma, o contexto familiar se estende ao ambiente educacional, por meio dos usos da linguagem. Qual seria o papel da escola, nesta relação? Ampliar do conhecimento das crianças e jovens, por meio do acesso a materiais e situações de aprendizagem pré- concebidos. Cabe destacar que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010) instituem referências fundamentais para o desenvolvimento da criança, a partir do contato com os textos que fazem parte da realidade letrada na qual está inserida e que constituem as condições para que o letramento represente uma das mais importantes vias de interlocução entre a realidade social e a escolar, para o aprofundamento do processo de transposição didática e construção de repertórios e conteúdos escolares. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil vão, nesse sentido, destacar necessidades de situações educativas que proporcionem às crianças experiências de narrativas, de apreciação e interação com a linguagem oral e escrita e convívio com diferentes suportes e gêneros textuais orais eescritos. Pode-se destacar que é fundamental [...] que se amplie a confiança e a participação das crianças nas atividades individuais e coletivas, permeadas pelos usos do texto escrito ou oral, na sua condição literária, de modo que [...] possibilitem vivências éticas e estéticas com outras crianças e grupos culturais; alarguem seus padrões de referência e de identidades no diálogo e conhecimento da diversidade. Enfim, é fundamental que se incentive a curiosidade, a exploração, o encantamento, o questionamento, a indagação e o conhecimento das crianças em relação ao mundo físico e social, ao tempo e à natureza [...], como podemos reconhecer nas pontuações das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, importante guia para o trabalho do professor. (BRASIL, 2010, p. 27). 1.3 A linguagem verbal e suas formas de realização As escolas devem criar condições para que crianças e adolescentes possam falar, ou seja, contextos e situações de aprendizagem para que ocorram experiências dialógicas nas quais elas possam, de fato, se expressar. Os espaços escolares devem ser organizados com este objetivo, o que deve, de certa forma, condicionar a escolha de práticas, objetos e suportes escolares. 7 Para a literatura infantil, a primeira forma de materializar as condições de fala na escola é a oralidade e o livro. Todavia, os contextos comunicativos e de usos de fala também ocorrem nas contações de histórias, no uso de filmes, nas músicas, nos brinquedos, jogos e brincadeiras, na escolha de temas para rodas de conversa e nos mais diversos diálogos infantis que podem ser direcionados para uma forma poética, literária ou simplesmente expressiva. Do ponto de vista pedagógico, livros, músicas e filmes devem ser selecionados com critérios objetivos, tais como como diversidade, abundância, recorrência e gosto das crianças. Em relação às histórias, deve-se trabalhar com variados gêneros textuais, tais como contos, fábulas, poesia, novelas, parlendas, trava-línguas, advinhas, e temáticas, como drama, humor, terror, faz de conta, contos maravilhosos, entre outros. As músicas representam também formas de acesso à poesia e a usos da linguagem verbal oral e escrita, que podem ser ressignificados na escola. Podem provocar movimento, alegria e o conhecimento acerca da cultura regional ou de outros países, da mesma forma que o cinema amplia os usos de narrativas e ambientações por meio de enredos, contextos imaginários e ficcionais que fazem parte do universo literário e podem ser estendidos a experiências com filmes. Portanto, é possível ampliar a linguagem verbal instituindo espaços de diálogo por meio das vivências de atividades permeadas pela experiência narrativa, sobretudo literária. Cabe chamar a atenção para a postura mantida pela educadora ou pelo educador, que além de representar um leitor ou leitora referência para o estudante, deve também instigar curiosidade, raciocínio, reflexão, expressão e participação desde muito cedo. A criança deve perceber o espaço escolar como um ambiente em que deve e pode se expressar e aprender com estas situações. 1.4 Linguagem, imaginação e simbolismo As crianças são sujeitos históricos e sociais, já que as condições de cada contexto em que estão inseridas proporcionam diferentes formas de viver a infância e adentrar o mundo juvenil. É neste sentido em que se fala em “infâncias”, no plural, de modo a remeter-se à esta diversidade. Sarmento (2004) define esta colocação como “culturas 8 de infância”, de forma que estas “[...] constituem-se nas interações de pares e das crianças com os adultos, estruturando-se nessa relação formas e conteúdos representacionais distintos” (SARMENTO, 2004, p. 12). A crianças, a partir de suas interações interpessoais, buscam produzir outros sentidos e novas formas de ser e estar na sociedade, já que [...] as culturas de infância exprimem a cultura societal em que se inserem, mas fazem-no de modo distinto das culturas adultas, ao mesmo tempo que veiculam formas especificamente infantis de inteligibilidade, representação e simbolização de mundo (SARMENTO, 2004, p. 12). Ou seja, questões de representatividade, visão de mundo, compreensão de mundo são distintas entre crianças e adultos, e é neste ponto que as crianças apresentam certa liberdade diante de regras e condicionantes sociais. Para melhor compreender esta abordagem, de acordo ainda com Sarmento (2004), cabe pontuar quatro eixos estruturadores dos processos relacionais e interativos da criança: 1) Interatividade: processo que se refere às diversas relações estabelecidas pelas crianças, tanto com crianças, como adultos, com a comunidade e sociedade de maneira geral. É possível observar entre as próprias crianças a transmissão de práticas (por exemplo, as brincadeiras ou histórias) próprias de sua geração; da mesma maneira que também pode-se reconhecer situações de se: “[...] exorcizar medos, representar fantasias e cenas do cotidiano, que assim funcionam como terapias para lidar com experiências negativas” (SARMENTO, 2004, p. 14). 2) Ludicidade: cultura lúdica, que envolve o brincar e a relação com os brinquedos (não só objetos, mas jogos cantados, falados, com base em textos orais e escritos) e outros diversos materiais simbólicos ou transformados pela própria criança em simbólico. 9 3) Fantasia do real: trata-se do mundo do faz de conta, que envolve a ação da criança pautada na “não literalidade” dos objetos, das situações, dos papéis sociais, etc. A fantasia do real pode ser considerada um processo que permite às crianças criarem versões mais aceitáveis da realidade em que estão inseridas. 4) Reiteração: refere-se à “não linearidade” das ações e das situações de faz de conta: em um momento, uma menina é a professora; em seguida, é secretária; depois, investe em outros papéis conforme os desejos do processo interativo e criativo. 1.5 O tempo recursivo na criança Para compreender a fluência narrativa da criança, como processo intrínseco às suas condições interacionais e sociais, cabe destacar o tempo como elemento recursivo na infância, que tanto se exprime no plano sincrônico, com a contínua recriação das mesmas situações e rotinas, como no plano diacrônico, através da transmissão de brincadeiras, jogos, narrativas e rituais das crianças mais velhas para as crianças menores, de maneira contínua, tornando permanente o processo que reinventa e recria, e tudo de novo (SARMENTO, 2004, p. 18). O tempo recursivo consiste no processo de repetição, que atua como forma de aprendizado e assimilação de conhecimentos. A criança aprende pela imitação e pela repetição. Sobre estes aspectos, Gobbi afirma que: [...] crianças brincam individual e coletivamente e, neste ato, experimentam e descobrem a vida que pulsa em diferentes ritmos a partir das linguagens com as quais aprendem a relacionar-se com os outros: trata-se da extraordinária capacidade de provar a vida de modo intenso, com tudo o que isso envolve, como confrontos, tristezas, alegrias, amizades, tensões (GOBBI, 2010, p. 1). Para Sarmento (2004), a brincadeira, o lúdico e o processo criativo são espaços legítimos para que os aprendizados da infância ocorram em conformidade com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010). A criança age sobre o tempo e o espaço, sendo essencial a introdução de elementos que enriqueçam este processo criativo e recursivo, de forma que a literatura infantil representa uma forma essencial de proporcionar, no contexto escolar, o desenvolvimento do aspecto lúdico e criativo das interações humanas. 10 Conclusão Para compreender a abrangência da literatura infantil e juvenil no contexto escolar, é importante aprofundar a análise da literatura infantil como prática de linguagem. Neste aspecto, há elementos fundamentais como aspráticas orais e escritas de usos da linguagem verbal no cotidiano infantil e na escola que tanto influenciam determinantemente no desenvolvimento cognitivo e cultural da criança, quanto na ampliação de seus repertórios linguísticos, narrativos e literários. Referências Bibliográficas BOURDIEU, P. Escritos de Educação. Petrópolis: Editora Vozes, 1998. BRASIL, Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Secretaria de educação básica. Brasília: MEC, SEB, 2010. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=97 69-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192>. Acesso em 11 set 2019. ______. Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a formação dos profissionais da educação e dar outras providências. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2013/lei/l12796.htm>. Acesso em 11 set 2019. GOBBI, M. Múltiplas linguagens de meninos e meninas e a Educação Infantil. In: Anais do I Seminário Nacional: Currículo em Movimento – Perspectivas Atuais. Belo Horizonte, 2010. MEIRELES, C. Ou isto ou aquilo. Ilustrações de Maria Bonomi. São Paulo: Giroflé, 1964. PIAGET, J. Epistemologia Genética. São Paulo: Martins Fontes, 2002. SARMENTO, M. J.; CERISARA, A. B. Crianças e miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Porto: Asa, 2004. VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 11 2 FUNÇÕES DA LITERATURA O presente texto tratará do entendimento das funções do texto literário no contexto escolar, considerando suas especificidades enquanto produto textual e suas possibilidades no que diz respeito a sua função. É objetivo promover a reflexão sobre a importância dos professores compreenderem as funções do texto literário para pensar sobre como atuar metodologicamente, de acordo com seus objetivos didáticos. 2.1 Afinal, o que é literatura? O texto literário é um tipo de peça comunicativa que apresenta peculiaridades em relação aos textos científicos. Estes geralmente têm o objetivo de descrever a realidade apoiados no raciocínio lógico e no método científico. O texto literário, por sua vez, se fundamenta na construção de uma realidade paralela, que se apoia na imaginação. Este processo de invenção e criação representa a quebra de padrões de escrita e representação do mundo e do homem, já que transmite em sua essência o potencial imaginário da escrita. Neste contexto, a literatura infantil se define como aquela que se relaciona direta e exclusivamente com a arte da palavra, com a estética e com o imaginário. Sobre esta definição, vale destacar a observação de Aguiar: “O que é a literatura infantil? Objeto cultural. São histórias ou poemas que ao longo dos séculos cativam e seduzem as crianças. Alguns livros nem foram escritos para elas, mas passaram a ser considerados literatura infantil” (AGUIAR, 2001, p. 16). Os textos literários têm funções simultâneas relacionadas à razão, como o processo objetivo de padronização de um determinado gênero literário ou de uso da norma padrão da língua, hegemonicamente, e à emoção, que se direciona às abrangências subjetivas, emotivas e sensitivas da obra. 12 Por esta razão, sua organização provoca surpresa e outras sensações aos leitores, já que escapa ao padrão da maioria dos textos de maior circulação social, como os textos informativos. Quando o texto literário escapa do padrão textual dominante, há que se considerar que ocorre a emergência de um outro tipo de padrão, que é o padrão literário. É necessário que os leitores tenham conhecimento deste tipo de padrão textual. A partir de sua estrutura textual e das funções que exercem com o processo de leitura, o texto literário exige e relaciona-se com o conhecimento de mundo, o domínio da língua e de textos específicos ao universo de leitura de cada leitor, o que pode ser muito variado. A leitura do texto literário atua constantemente sobre todo este repertório e promove um processo de transformação e desestabilização, como consequência de sua pluralidade, ambiguidade e metalinguagem. Nesta proposta, se desenvolve a formação do leitor a partir da escola tendo como via desenvolvimento a criação literária, seja como processo criativo, seja como processo leitor. A constante vivência e contato com estes textos proporciona contextos metodológicos que resultam em conhecimentos mais objetivos e estratégias adequadas para a formação de leitores nas escolas. Pode-se destacar práticas como leituras individuais e coletivas, projetos de leitura, visitas à bibliotecas e livrarias, etc. No universo infantil, a natureza dos textos se define com base em sua racionalidade, funções, fantasia e do exercício do imaginário no contexto da ludicidade. Trata-se de uma linguagem específica que define um tipo de literatura que se apresenta em diferentes gêneros textuais. Há elementos de profundidade do ponto de vista cultural, social, simbólicos abordados pelo enredo da narrativa, mas sua lógica é a da fantasia. Um exemplo é a história de Os três porquinhos, que se desenvolve em torno de uma pequena narrativa com animais que falam e vivem situações de busca por proteção, amizade e parceria diante do perigo. Cria-se uma realidade ficcional para a qual é possível que porcos se comuniquem, criem casas e vivam situações de aventuras. 13 Um outro exemplo interessante é a história Os músicos de Bremem, que se refere a um grupo de animais – um burro, um cão, um gato e um galo – que fogem de sua vida de submissão ao seu proprietário para a cidade de Bremen, para se tornarem músicos. Há todo um desenvolvimento em torno da busca de uma nova vida por estas peculiares personagens, que criam também uma nova possibilidade de verdade na realidade do conto. Tais textos são muito diferentes de um texto informativo sobre como vivem os porcos, ou galos e burros de forma realista. Dessa forma, o caminho para desenvolver a leitura em sala de aula está, em primeiro lugar, relacionado à distinção dos gêneros textuais, sua compreensão e organização conforme os objetivos didáticos. Os gêneros textuais são textos diversos em seus aspectos formais, como fábulas, contos, receitas, poemas, cada um com suas especificidades estruturais e contextos de uso diferente. Eles auxiliam os professores na sala da aula, pois permitem relacionar os textos com seus papéis sociais, bem como evocar seus contextos de uso. Ao se tratar de gêneros literários, papéis e contextos de uso estão também relacionados com a função estética do texto. 2.2 Funções da literatura infantil O contato com o texto literário infantil, que é difundido pela história da literatura para crianças, atravessa tempos, classes sociais e diferentes realidades escolares. Mas é comum conhecer as ambientações extremamente fantásticas, assustadoras ou melancólicas constituídas pelos contos infantis e populares de outrora. Por exemplo, a ambientação provocada por A pequena vendedora de fósforos, de Cristhian Andersen: Fazia um frio terrível. A neve caía e dali a pouco ficaria escuro. Era o último dia do ano: véspera de ano-novo. Nas ruas frias, escuras, você poderia ver uma pobre menininha sem nada para lhe cobrir a cabeça, e descalça. Bem, é verdade que estava usando chinelos quando saiu de casa. Mas de que adiantavam? Eram chinelos enormes, que pertenciam à sua mãe, o que lhe dá uma ideia de como eram grandes. A menina os perdera ao atravessar correndo uma estrada no instante em que duas carruagens avançavam ruidosamente e numa velocidade apavorante. Não conseguiu achar um pé dos chinelos em lugar nenhum, e um menino fugiu com o outro, dizendo que um dia, quando tivesse filhos,poderia usá-lo como berço. A menina caminhava com seus pezinhos descalços, que estavam rachados e ficando azuis de frio. Levava um molho de fósforos na mão e mais no avental. Não vendera nada o dia inteiro e ninguém lhe dera um níquel sequer. Pobre criaturinha, parecia a imagem da miséria a se arrastar, faminta e tiritando de frio. Flocos de neve se aninhavam em seu cabelo claro, comprido, que 14 ondulava suavemente em volta do pescoço. Mas você pode ter certeza de que ela não estava pensando em sua aparência. Em cada janela, luzes reluziam e um delicioso cheiro de ganso assado se espalhava pelas ruas. Veja bem, era véspera de ano-novo. Era nisso que ela pensava. (TATAR, 2004, p. 190. Hans Christian Andersen: A pequena vendedora de fósforos). Este texto apresenta a realidade difícil e melancólica de uma menina muito frágil, podendo remeter a aspectos profundamente sérios da realidade social de crianças europeias na Idade Média e Moderna. A construção de um imaginário pautado em cenas fantásticas e fantasiosas no decorrer do conto demonstra a adequação deste gênero, conto maravilhoso, ao universo leitor infantil. Convenciona-se que esta história é adequada à criança, mesmo tratando-se de uma narrativa de enredo melancólico e triste. Um aspecto importante é a personagem infantil como protagonista de uma história inicialmente popular, ou seja, para público variado. Richard Bamberger (2000), no texto “Como incentivar o hábito da leitura”, desenvolve interessante análise sobre as funções da leitura que pode ser positivamente aproveitada para o tratamento didático para a literatura infantil. O autor categoriza alguns tipos de leitura, nos seguintes termos: (1) Leitura informativa, materializada na forma de informação escrita, que sustenta mais confiança do que a oral, neste caso; (2) Leitura escapista, pautada na necessidade de satisfazer desejos, não presentes na vida real, e relacionados à autorrealização pelo êxito, prazer, prestígio; (3) Leitura literária, que busca para além da realidade significados endógenos ao texto, internos, de caráter simbólico nos acontecimentos cotidianos; (4) Leitura cognitiva, que apresenta motivação semelhante à da filosofia, isto é, conhecimento e de si mesmo, do outro e do mundo. Estas funções podem ser organizadas de maneira variada conforme os objetivos pedagógicos do educador ou educadora, desenvolvendo abrangências de duas instâncias diferentes como (1) a relação entre autor, mensagem e leitor e (2) os objetivos da formação de leitores. 15 A relação entre o autor, mensagem e leitor, em literatura infantil, remete à escolha de obras que melhor estabeleçam contato com objetivos pedagógicos definidos. Neste caso, é diferente trabalhar com um conto maravilhoso ou com uma história contemporânea, como textos e obras da conhecida autora brasileira Eva Furnari. Há diferentes aspectos culturais, formações lúdicas e alusões a realidades e padrões éticos. Este aspecto direciona-se também aos objetivos da formação de leitores, que vão incidir diretamente na escolha das obras. 2.3 Quanto à abrangência A escritora Eva Furnari diz que escrever é: É algo que faz parte de mim. Escrever me ocupa o tempo inteiro, não importa se é sábado ou domingo. Esse métier, essa profissão é uma sorte que tenho – e ela me traz sentido, muito prazer e sofrimento (a folha em branco, a resolução de uma frase ruim). Compartilho as minhas visões, as minhas brincadeiras, os meus jogos, os meus humores – e isso me norteia, é central. (FUNARI, 2018). Pode-se arriscar a dizer que individual ou social, a literatura infantil tem como primeiro momento entre leitor e autor um encontro silencioso, com isso o leitor começa a decifrar, compreender e interpretar as palavras do autor. Este processo se resume a uma interação individual que depois poderá ser socializada com outros potenciais leitores na forma de diálogo, resumos orais, debates, atividades coletivas. É essencial que a escola e as experiências escolares propiciem um encontro saudável com esta relação entre autor-texto-leitor ou autor-mensagem-leitor. É por meio deste encontro que se pode acessar parte dos objetivos expressos pelo autor em sua obra, bem como potencializar parte das projeções do leitor, por meio das suas impressões diante da leitura. A literatura tem característica social profundamente expressa por estas práticas de leitura, como bem coloca Roger Chartier (1996, p. 175). As crianças não são mais os novos leitores; a atualidade tem as crianças como leitores fluentes e cada vez mais habituados ao universo letrado. Um aspecto essencial da literatura presente também nas histórias infantis é a presença dos assuntos e temas humanos (sentimentos, medos, afetos, desejos, temores, memórias), que em grande parte das histórias são representados em formas de animais 16 ou objetos, sendo que eles representam a compreensão do ser humano sobre a realidade. Pode-se citar como exemplo a famosa história de O Patinho Feio, tão presente no imaginário infantil e adulto, que expressa reais temas de convívio e conflitos humanos e suas relações interpessoais. Ainda conforme Roger Chartier (1996, p. 175), as formas de leitura, como seu caráter privado ou público, também expressam diferentes formas de contato com o texto literário no universo infantil. A literatura infantil tem caráter privado na medida em que ocorrem experiências de leitura por meio de acesso pessoal, sendo tipicamente leituras silenciosas ou familiares. Já o caráter público ocorre em espaços públicos que, de maneira indireta, como no caso das bibliotecas, ou direta, no caso das escolas, direcionam o contato com os muitos livros, a leitura e o conhecimento. 2.4 Quanto à relação entre autor, mensagem e leitor infantil O trabalho de educadores e educadoras com literatura infantil em instituições educativas e escolares deve ser pensado considerando objetivos, concepções sobre leitura, literatura e possibilidades metodológicas com o texto literário na escola. O importante é que o texto literário seja concebido enquanto peça estética, que proporciona à criança prazer, crescimento, sensações, curiosidade, e não como um instrumento pedagógico que serve tão somente de apoio ao desenvolvimento da linguagem, conforme preconiza as práticas escolares (LAJOLO, 1998, p. 24). Nesse sentido, cabe aos educadores considerar as finalidades dos tipos e gêneros textuais com o qual trabalha, como os textos informativos ou textos educativos ou prescritivos, que definem técnicas, instruções, ações futuras. Há também os textos com a finalidade de entreter e de proporcionar prazer pela leitura, pelo divertimento, sendo a mensagem cômica, emotiva, trágica, musical, alegórica, fantástica. Os textos também têm a finalidade de persuadir, em alguns casos, um leitor que não está de acordo com o emissor, e a mensagem deve atuar em relação às reações do leitor. Estes são, portanto, exemplos de textos que, por meio de suas tipologias, inferem sentidos e significados no processo comunicativo erigido pela leitura (MARCUSCHI, 2002, p. 4). No caso do texto literário, pode-se localizar tipologias diferentes no 17 desenvolvimento de uma narrativa, ou seja, as finalidades de entretenimento e educativas podem aparecer em momentos diferentes dissolvidas na narrativa ou mesmo em um poema. É o que ocorre em “Lavar as mãos”, de Arnaldo Antunes, no qual há toda uma orientação, com definições de técnicas para uma ação futura, em um texto musicado ou um poema. Há tanto a transmissão de uma mensagem, o ensino de conhecimentos, e promoção de uma dada vivência sensorial por meio da música: Uma Lava outra, lava uma Lava outra, lava uma Mão Lava outra, lava uma Mão Lava outra, lava uma Depois de brincar no chão de areia a tarde inteira Antes de comer, beber, lamber, pegar na mamadeiraLava uma Lava outra, lava uma Lava outra, lava uma A doença vai embora junto com a sujeira Verme, bactéria, manda embora embaixo da torneira Água uma Água outra, água uma Água outra, água uma Na segunda, terça, quarta, quinta e sexta-feira Na beira da pia, tanque, bica, bacia, banheira Lava uma Mão Mão Mão Mão Água uma Lava outra, lava uma Lava outra, lava uma (Fundação Padre Anchieta, Lavar as Mãos, 2019). 18 2.5 Quanto aos objetivos da formação de leitores infantis Desde muito cedo, a criança entra em contato com a literatura infantil em suas condições de uso não escolares, nas brincadeiras, nas histórias contadas pela família, nas vivências culturais pelas quais ela tem a oportunidade de passar. Com o processo de escolarização, o acesso à diversidade de textos, em termos de tipologias e gêneros, e aos textos literários, permite que ela se familiarize com a linguagem escrita, ao mesmo tempo em que forma seu modo de pensar, padrões de comportamento de sua sociedade, princípios morais, e alimenta seu imaginário social e cultural. Dessa forma, os espaços escolares, seus currículos e matrizes de conhecimento devem propiciar o contato com o texto, mas não somente aquele texto de função utilitária ou técnica, mas o texto que tenha o teor artístico e estético evidente, a que chamamos de literário. O cotidiano da escola deve promover a convivência com narrativas, poemas, contos, textos dramáticos, épicos e fazer com que as crianças desenvolvam habilidades corporais e linguísticas, valorizando as referências simbólicas, afetivas e de conhecimento que vão permanecer na memória. Promover esta dinâmica com a criança é desenvolver a aprendizagem e o conhecimento como fonte de prazer, sendo que a literatura deve ser concebida como fonte de conhecimento, por trazer informação para a vida prática e em sociedade, assim como pode ensinar promovendo alegria, prazer e encanto. Ler e ouvir uma história precisa ser uma ação interessante para criança e que faça eco à sua vida real, pois é desta forma que ela aprende. O autor de um texto literário está profundamente relacionado à realidade social e à essência humana, e a literatura tem o potencial claro de promover formação pessoal e emocional (LAJOLO, 1998, p. 24). Além disso, educadores também devem incentivar e desenvolver o prazer da leitura sem compromisso. Existe uma debate entre autores como Jorge da Cunha Lima e Regina Zilberman (1985) acerca do uso da literatura infantil em sala de aula ou não, pois os assuntos tratados como paixão, morte, amizade, não fazem sentido em ambiente escolar (segundo Jorge da Cunha Lima). Entretanto, isso deve ser discutido, pois a literatura pode falar de qualquer tema e tem muitas faces, finalidades e objetos, de 19 forma que, de acordo com Regina Zilberman, é importante o uso da literatura na escola principalmente para se criar um hábito de leitura nas crianças que futuramente saibam dar valor e importância aos textos literários por compreender seu sentido e importância. Por fim, trabalhar com a literatura infantil representa contribuir para a formação integral da criança e com o contato do que é diferente dela, com o outro, seja pelo conhecimento obtido nos textos sobre a existência de pessoas e pensamentos diferentes do dela, seja no contato com outros leitores e interpretações sobre a história. Conclusão O trabalho de professores e professoras com a literatura infantil deve abranger compreensão sobre a função da literatura e de definições que são específicas ao campo, como tipologias, gêneros e a função em si. Este processo considera a relação autor, mensagem e leitor a partir de um agente externo, que é o professor. Referências Bibliográficas AGUIAR, V. T. de (coord) et al. Era uma vez... na escola: Formando educadores para formar leitores. Belo Horizonte: Formato editorial, 2001. BAMBERGER, R. Como incentivar o hábito de leitura. São Paulo: Ática, 2000. CHARTIER, R. (Org.) Práticas de leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Ed. Liberdade, 1996. FUNDAÇÃO Padre Anchieta. Lavar as Mãos – 20 anos de Castelo Rá-Tim-Bum. TV Cultura, mar 2019. Disponível em: <https://tvcultura.com.br/videos/43958_lavar-as- maos-20-anos-de-castelo-ra-tim-bum.html>. Acesso em 11 set 2019. FURNARI, E. Eva Furnari: “O faz de conta é importante para a criança. Ao simbolizar, o inconsciente manifesta-se”. [Entrevista concedida a] Heloísa Iaconis. Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <https://www.itaucultural.org.br/o-faz-de-conta-e-importante- para-a-crianca-ao-simbolizar-o-inconsciente-manifesta-se>. Acesso em 20 ago 2019. 20 LAJOLO, M. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, R. (org), Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Â. et al. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. TATAR, Maria (Org.). Contos de fadas. Edição comentada & ilustrada. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge ZAHAR, 2004. ZILBERMAN, R. Literatura infantil para crianças que aprendem a ler. Caderno de Pesquisa, 1985. 21 3 LITERATURA INFANTIL: ORIGENS E HISTÓRIA Este bloco tem o propósito de traçar o caminho da literatura infantil, como área de conhecimento voltada para a infância, que parte do contexto cultural e escolar europeu/ocidental para grande abrangência no mundo. Este percurso engloba tanto o conhecimento narrativo das histórias populares, que se tornam a chamada literatura infantil, quando o progressivo processo de inserção destes conteúdos nas escolas, definindo de maneira sistemática e metódica os textos para crianças no campo da literatura. 3.1 Conceito de Infância entre a Idade Média e Idade Moderna A história da literatura infantil remete, em primeiro lugar, ao conceito de infância como ideia construída ao longo dos séculos pelas culturas ocidentais, que por sua vez imprimiram certa forma hegemônica de ser criança no mundo. Há que se remeter, nesse sentido, ao período que confere à transição da Idade Média para a Idade Moderna, sobretudo a partir do século XV, o qual constitui um divisor de águas sobre pensamento acerca do sentido da infância na sociedade. De início, destaca-se que o próprio conceito de infância era noção inexistente na Idade Média; as crianças eram apêndices, pequenos adultos ou adultos em miniaturas, sem muitas necessidades específicas, exceto a de evitar problemas com mortalidade e consequente inserção em uma rede de aprendizado marcada pelo trabalho doméstico ou a preceptoria. Nessa época, que adentra a Idade Moderna a partir do século XV, não havia livros ou materiais escritos especificamente para a criança que fosse classificado como literatura infantil, exceto materiais didáticos para ensino, geralmente de caráter religioso ou prescritivo de conteúdos relacionados às primeiras letras. Estes materiais, em primeiro objetivo de caráter didático, foram sendo pouco a pouco pensados de maneira direcionada ao público infantil com o passar dos anos, e o amadurecimento das formas de ensino e, portanto, escolares. Este é o caso do pequeno livro Orbis Sensualium Pictus, de Comenius (1658), voltado ao ensino de latim com o uso de gravuras ou desenhos. 22 Em relação ao desenvolvimento desse conceito de infância e literatura infantil, é importante destacar obras fundamentais como Phillipe Ariès, A História Social da Criança e da Família, na qual se localiza uma análise histórica detalhada sobre a construção do conceito de infância no Ocidente, bem como o de família e a lenta inserção do processo de escolarização na sociedade moderna. Um aspecto muito importante salientado por Ariès (1978), que advém da Idade Média, é predominância da cultura popular, como fator presente em contextossociais não compactados por diferenças etárias. O convívio de práticas culturais populares não se restringia a determinados públicos em função de sua idade. As narrativas estavam presentes nas mais diversas formas de manifestação e representação da linguagem, se realizando na vida em comunidade por meio de jogos, brincadeiras, narrativas, festas, que eram comuns tanto a vida adulta quanto à vida infantil. Ariès (1978) destaca também que os temas da vida adulta estavam igualmente presentes no cotidiano da criança, sendo comum a criança presenciar situações que envolviam morte, sexualidade e diversas transgressões do cotidiano adulto. No que concerne às narrativas, de cunho popular, inicialmente oral, mas também progressivamente materializada na forma de conto, a narrativa também fazia parte de dois mundos, o infantil e o adulto, quando se tratava do universo popular, do anonimato ou das histórias que circulavam nos mais variados contextos com este caráter de autoria popular ou do povo. 3.2 Origem da literatura infantil Nelly Novaes Coelho (1991) e Denise Escarpit (1981), a primeira importante referência sobre a literatura infantil brasileira, e a segunda pesquisadora francesa sobre a infância e a literatura na e para a infância, apontam, no que concerne à história da literatura infantil, o uso constante de narrativas pequenas, breves e também anônimas (pois eram de autoria populares, portanto, sem autoria definida), que se referiam a assuntos triviais, cotidianos ou mesmo referentes à mitologia. Seriam as fábulas, muito comuns desde a Antiguidade Clássica, berço da civilização ocidental, donde já se pode evocar as conhecidas Fábulas de Esopo. Posteriormente, em um período mais moderno, o escritor francês Jean de La Fontaine fez muitas fábulas alusivas a questões sociais, em um 23 período concernente ao século XVII. Eram comuns entre os adultos, e as crianças presenciavam e participavam destas experiências narrativas, em geral anônimas, encantadas, misteriosas e inclusive representando a grande referência da literatura infantil, que é o conto maravilhoso. A vida coletiva medieval abrigava uma forte experiência com o imaginário e com o universo do fantástico. As superstições, crenças em seres mágicos e sobrenaturais, tesouros, bruxas, anões, fadas, fontes, encantamentos representam as características fundamentais do conto maravilhoso como característica predominante da experiência narrativa deste período. Sobre estas formas literárias, é importante destacar as obras de Bruno Bettelhein, A Psicologia do Conto de Fadas (1978) e Wladmir Propp, A Morfologia do Conto Maravilhoso (2006). Este último faz uma importante radiografia dos contos maravilhosos, comparando a estrutura das narrativas de diversas partes do mundo, a partir da região de origem russa do autor, e demonstrando que é recorrente a mesma estrutura narrativa que caracteriza o maravilhoso nestes contos tão popularizados no mundo. É sempre típico um conjunto de ações e histórias, como a saída de um herói para uma batalha ou para salvar uma jovem em perigo, ou ainda em busca de algum tesouro, vivência de situações de provação, encontro de uma jovem e um casamento no final da história; ou seja, as estruturas se repetem. Vladmir Propp explora profundamente estas características do conto maravilhoso de maneira inédita e fundamental à sua compreensão. Um fator fundamental para a compreensão da trajetória da literatura infantil como área de conhecimento é sua relação com o progressivo processo de escolarização que se consolida a partir do século XVII, de acordo com um padrão escolar idealizado e praticado pela burguesia. Os livros escolares voltados ao público infantil com o caráter pedagógico começam a representar dada formação escrita para o que chamamos de literatura infantil. Nesse sentido, a consolidação da literatura infantil como área de conhecimento passa pela sistematização de uma produção escrita direcionada exclusivamente para crianças com fins pedagógicos e didáticos, que permeavam o ensino de certa moral, conduta e normas vigentes na sociedade. A questão religiosa 24 como um fio condutor da moral, mesmo na constituição da escola laica a partir do século XVIII, também é marcada nos livros para crianças. Sabe-se que a escola moderna nasce com a referência da Igreja Católica como elemento permanente nas práticas escolares e nas formas de conceber o mundo. Isso se estende por livros, que promovem referências morais e religiosas, que são sustentadas pelas escolas. 3.3 Contexto infantil e juvenil Definir o direcionamento do texto literário para o universo infantil e juvenil é um processo tanto de adequação de expectativas leitoras e formativas quanto de instrumentalização da fruição literária em função de certos objetivos, a que podemos chamar de educacionais. Este fato pode ou não restringir o acesso a determinados textos, porque a criança de determinada idade pode estar mais indicada para certas formas e gêneros textuais que outras. A alfabetização pode ser um eixo que orienta o que reportar à criança como texto literário, no entanto, na perspectiva do letramento, ela está sempre em contato com o texto e, no caso da literatura, com as narrativas ficcionais que constituem o dia a dia de uma criança e fundamentam os usos da linguagem no processo interacional. Dessa forma, infantil e juvenil representam convenções sociais acerca de como classificar, sobretudo do ponto de vista pedagógico e escolar, os tipos de leituras que melhor se reportam às crianças. Em relação à fruição, conforme observa Antonio Candido em Direto à literatura (1995, p. 176), qualquer idade que a criança e o jovem vivenciam o contato com a literatura de maneira interessada e significativa para sua compreensão e formação é a idade correta para pensar em termos de adequação e público alvo. Cabe aos professores pensarem os contextos infantis e juvenis com o objetivo de promover o contato com o texto, valorizando a vivência estética para além da formação instrumental direcionada à questão da alfabetização por meio dos textos literários. Independente de se utilizar o texto literário com o propósito de alfabetizar, é direito da criança e do jovem conhecê-lo e saber interpretá-lo de maneira autônoma, crítica e estética. 25 3.4 A literatura infantil nasce do conto popular? Pode-se afirmar que a literatura infantil nasce do conto popular? Conforme toda a tradição historiográfica que trata do trajeto da literatura infantil no campo social e literário ocidental, pode-se afirmar que sim, a literatura infantil nasce do contexto de uso do conto popular, o que engloba uma gama extensa de classes sociais, faixas etárias e contextos de usos. A marca mais significativa desta forma de desenvolvimento narrativo é a oralidade. O conto popular era predominantemente oral, exposto por formas historicamente marcantes de contar histórias, que pontuam planos específicos de expressão verbal e oral, memória e transmissão entre gerações e classes sociais. Havia também os contadores das histórias por ofício como os menestréis e os bardos, que eram figuras profundamente trabalhadas na habilidade de contar os contos populares e manter os expectadores cativos. Alguns elementos são permanentes no conto popular e na literatura infantil, caracterizando o diálogo entre ambos, como a comicidade e a perspectiva da ludicidade, a metalinguagem, personagens singulares e interessados e desenvolver uma trajetória também singular e excêntrica, a fantasia no processo ficcional como marca destes tipos de conto, diferentes formas de personificação, animismo e antropoformizações, como animais e objetos que falam, final feliz como marca característica deste universo de histórias. Conforme mencionado anteriormente, Wladmir Propp (2006, p. 19) sistematiza todas estas característicasem funções que são organizadas nos contos maravilhosos na forma de constantes, fazendo com que estes contos apresentem tais especificidades e atuem seguindo determinadas funções junto ao imaginário infantil, como por exemplo a questão da reiteração, a qual caracteriza a condição comum da repetição entre as formas de narrativas infantis e voltadas para a infância. Nesse sentido, pode-se pensar uma forma de literatura infantil mais orgânica do ponto de vista cultural e social, que se fundamenta neste processo de evolução do conceito de infância e foi aos poucos direcionando os contos populares para o universo infantil, considerando tanto um como outro como um universo mais ingênuo, simples, tutelado, heterônomo, ou seja, popular e infantil. 26 O que era praticado no universo popular, com estas características, foi sendo direcionado às crianças justamente pelo julgamento destas supostas semelhanças. Entretanto, a escola coroa definitivamente esta adequação e direcionamento do que a criança deve ler e como devem ser viabilizado o conteúdo destes textos. Assim, conforme a noção de infância foi sendo consolidada, os contos foram também sendo transformados sobre o crivo da moralidade para a infância. Se a Gata Borralheira ou a Chapeuzinho Vermelho apresentavam cenas que poderiam ferir a moralidade para a infância, as versões que conceituam o que é a literatura infantil foram suavizadas em fatos, enredo, cenas fortes, que marcavam o universo adulto, na origem destes contos. Dessa forma, o que era popular perde muitos elementos do universo adulto e mundano para receber o status de infantil e moralmente adequado para este público. 3.5 A origem da literatura infantil precisa ser discutida A discussão sobre a origem da literatura infantil traz para si grandes obras como aquelas recolhidas da sabedoria popular, organizadas e publicadas pelos irmãos Grimm, que tiveram o importante papel de divulgar muitas histórias presentes no imaginário europeu para todo ocidente pelo crivo da literatura para crianças. Mas esta transição é a origem? Qual é a função da literatura infantil, na sociedade, de acordo com os propósitos dos irmãos Grimm? Pode-se afirmar que há o propósito de promover uma espécie de formação moral não escolar, bem como o contato com a fantasia. Neste aspecto, trata-se de elementos mais literários, estéticos e morais do que utilitários. Mas quando ocorre a ruptura entre o que é para criança, de acordo com um padrão escolar, didático associado às escolas, desde o seu surgimento, trata-se de uma forma estritamente utilitária de pensar a literatura infantil, como forma de acesso ao imaginário, com propósitos fundamentalmente educativos e escolares. Dessa forma, considerando a historicidade do termo e seu trânsito pelo tempo e pelo espaço histórico, é fundamental se discutir a origem e o desenvolvimento da literatura infantil, de forma a compreender seu papel na sociedade contemporânea. 27 Conclusão Este tópico teve o objetivo de traçar um breve panorama sobre o surgimento da literatura infantil no ocidente, sua íntima relação com o conto popular e com o surgimento da escola como instituição dominante no processo de formação moral e letrada. A literatura infantil requer, no entanto, maiores debates sobre suas origens e objetivos pedagógicos nas instituições escolares e morais nos lares, sendo cada vez mais importante que as famílias vivenciem momentos de leituras com as crianças. Referências Bibliográficas ARIÈS, P. História social da infância e da família. Tradução: D. Flaksman. Rio de Janeiro: LCT, 1978. BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. de Arlene Caetano, Rio de Janeiro, Paz-e Terra, 1978. CANDIDO, Antonio. O direito à Literatura. In: ______. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. COELHO, N. N. Literatura infantil. São Paulo: Ed. Moderna, 2000. ESCARPIT, D. La literatura infantil y juvenil en Europa. Trad. Diana Flores, México: Fondo de Cultura Económica, 1981. PROPP, V. Morfologia do conto maravilhoso. Tradução de Jasna Paravich Sarhan. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. 28 4 HISTÓRIA DA LITERATURA INFANTIL NO BRASIL A proposta deste bloco é comentar a história da literatura infantil no Brasil, considerando aspectos políticos, sociais e culturais que acompanham de maneira muito evidente as transformações ocorridas na literatura infantil ao longo dos tempos, principalmente em meados do século XIX e decorrer do século XX. 4.1 República Velha: os livros e o nacionalismo A literatura infantil no Brasil tem caminho marcado pelos processos ancestrais de contato com os povos originais no país, os indígenas, que se desenvolviam em torno de narrativas orais, música, poesia, mas sem a base da escrita. Com a educação jesuíta, formas de relação com o conhecimento e com a imposição religiosa trouxeram novas formas de relação com o texto, que foi aos poucos recebendo o caráter da escrita e a diversidade de gêneros, como o teatro, por exemplo, que era um recurso muito utilizado por padres jesuítas na catequização de indígenas. A medida que a escola foi se consolidando no país, ainda imperial, com as raras escolas régias e os professores leigos, no século XVIII, os livros de leitura, materiais para o ensino de primeiras letras e gramática do português foram sendo difundidos como materiais pedagógicos para a infância. As histórias de caráter mais simples, cômico, inocente, moral, vão aos poucos fazendo parte destes livros de leitura. A primeira República brasileira, que compreende o período de 1889 a 1930, teve como referência alguns autores que produziram obras destinadas exclusivamente ao público infantil; em primeiro lugar, há que se destacar Olavo Bilac, mas também Manoel Bomfim, Coelho Netto, João Köpke, Júlia Lopes de Almeida e Rocha Pombo. O teor dos livros é de grande ufanismo ou nacionalismo, de modo que se nota a utilização da literatura como fonte de direcionamento educativo, prescritivo e moral. 29 Alguns exemplos são os livros: Contos Pátrios (1904), de Olavo Bilac e Coelho Netto; Porque me ufano de meu país (1900), de Affonso Celso; Histórias da nossa terra (1907), de Júlia Lopes de Almeida; Segundo livro de leituras morais e instrutivas (1908), de João Köpke; Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bomfim; e Nossa Pátria (1917), de Rocha Pombo. Assim, este primeiro cenário da literatura infantil no Brasil expressa o teor de assuntos nacionais nestes livros para as crianças, que já seriam direcionadas pela vivência da leitura a um conjunto de símbolos patrióticos, que visavam criar o sentimento de unidade necessário à consolidação ou resgate de qualquer projeto de nação. Este momento também abriga a condição de que grande parte da população brasileira era analfabeta e não escolarizada, de modo que o contato com a integração nacional por meio de símbolos e pelo discurso da moralidade seria uma forma de associar a solução do problema do analfabetismo ao fortalecimento da nação. Os livros se prestaram de maneira integral a este propósito, neste período. 4.2 A Modernização – Era de Getúlio: Monteiro Lobato e a Modernização O período de modernização que converge na era getulista é marcado por uma conhecida expressão: o entusiasmo pela educação. É esse movimento de nacionalismo e por outro lado de efervescência das frentes políticas de esquerda, organização operária e movimentos sociais diversos que levam Getúlio Vargas ao poder em 1930. Bignotto (2019) destaca que: As primeiras manifestações nacionalistas apareceram, de maneira mais sistemática e mais influenciadora, no campo da educação escolar, com a ampla divulgação de livros didáticos de conteúdo moral e cívico, ou melhor, de acentuada nota patriótica. São obras que pretendem fornecer à criança e ao adolescenteuma imagem do País adquirida por via sentimental; de modo algum isso significa desprezar muitas afirmações nacionalistas de vários intelectuais brasileiros. Ocorre que a doutrinação iniciada no campo da educação escolar repercutiu, na época, muito mais do que quaisquer outras, além do que teve maior continuidade; e com a situação criada com as colônias de imigrantes, principalmente no sul do País, e cuja consequência mais significativa foi o desencadeamento do processo de nacionalização da escola primária, aparece outro foco desses sentimentos nacionalistas. (BIGNOTTO, 2019). 30 Monteiro Lobato, em 1919, escreve Urupês e Jeca Tatu, obras de conhecimento popular ainda nos dias de hoje. Com isso, ele relaciona na literatura leituras sócias que já expressam as condições de dualidade da escola brasileira, que ainda que no contexto do otimismo pedagógico, separava os jecas dos bacharéis, pelos espaços escolares e sociais. A Escola Nova foi um movimento que influenciou de maneira muito abrangente a escola no Brasil por buscar modelos e métodos de renovação das práticas, propostas e paradigmas escolares, conforme o movimento escolanovista europeu. Esse movimento surgiu na Europa no final do século XIX, relacionado ao ímpeto de renovar e modernizar as práticas escolares, bem como conferir às crianças a concepção de infância. A Escola Nova veio para o Brasil como movimento nas primeiras décadas do século XX. A criança passa a ser concebida de maneira centrada em seu processo de aprendizagem, desenvolvimento, considerando seus aspectos psicológicos, sua inteligência e perspicácia. É o que se pode perceber na famosa obra As Reinações de Narizinho, publicada em 1931, que inaugura as aventuras da turma do Sítio do Picapau Amarelo, e constitui uma das produções mais importantes da literatura nacional até os dias de hoje. Lobato trabalha com elementos diversos da cultura brasileira, seus matizes sociais pautados em aspectos da diversidade e da desigualdade, nos estereótipos. A obra de Lobato, se atualizada para os dias de hoje, recebe algumas críticas em relação à forma como trata de questões raciais e sociais. No entanto, é necessário considerar o fator da historicidade e Lobato como um homem de seu tempo, de grande importância para o desenvolvimento do imaginário infantil no Brasil. 4.3 Era Pós-Getúlio e a criação de um campo literário infantil A formação de uma literatura infantil no Brasil passou pelo crivo do Estado getulista como veículo ideológico, que tinha seu lugar já estabelecido nas escolas e junto à formação das crianças, no sentido de criar a percepção difusa de Vargas como o “amigo das crianças”, como eram intituladas as obras destinadas às escolas. 31 A imposição do governo com obras destinadas às crianças, com grande tiragem e diretamente relacionadas à figura paternal de Vargas, marcou um período dos textos escolares, que foram contrapostos somente por iniciativas de intelectuais contemporâneos, os quais se dedicaram à escrita de livros para crianças a partir do objetivo direto de se dedicar a este público e à educação. Lourenço Filho, importante educador relacionado ao movimento escolanovista no Brasil foi autor de obras que tratavam da formação de professores que trabalhariam com o texto e as crianças. Obras como O ensino e a Biblioteca, de 1945, O valor das bibliotecas infantis, de 1948, As crianças e a literatura brasileira, de 1948, e Literatura infantil e Juvenil, de 1957, marcam profundamente a produção teórica para se pensar uma literatura para crianças no país. Inclusive, como área de conhecimento escolar e que requer todo um trabalho específico de escolha e direcionamento pedagógico. Este processo sobrepõe-se àquele vigorado pelo governo Vargas, no qual o conhecimento e o contato com livros pela criança era cerceado por um projeto vertical de escola e sociedade. Ao refletir sobre bibliotecas, livros e literatura infantil, Lourenço Filho inaugura um importante período em que a criança é de fato concebida, por teorias escolares que pensam livros escolares, como leitora e produtora de conhecimento pela leitura. 4.4 Indústria cultural e renovação literária – a Literatura pós 60 A indústria cultural desenvolve um novo ritmo de produção literária, que não seria mais aquele do projeto educativo com o entusiasmo educacional, nem o do projeto nacionalista de um governo coercitivo. A indústria cultural inaugura a literatura infantil como objeto de consumo, os livros infantis como artigo que circula entre as classes sociais mais abastadas, cabendo às classes populares os livros escolares. Trata-se de um ambiente cultural marcado pela visão do mercado e consumo de livros, daí a expressão indústria cultural. Entretanto, instituições muito importantes para a produção de livros são criadas neste período, muito marcantes para a difusão dos livros no país, tais como: o Instituto Nacional do Livro, fundado em 1937; a Fundação do Livro Escolar, criada em 1966; a 32 Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, de 1968; o Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil, criado em 1973; as várias Associações de Professores de Língua e Literatura, e Academia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil, criada em São Paulo, em 1979. São instituições de peso, que marcam positivamente a produção de livros deste gênero e que criam um mercado de escritores e leitores da literatura infantil. Para além dos livros escolares, de caráter mais voltado à questão pedagógica, a escrita pela escrita para o público infantil passa a se consolidar a partir destas instituições, que também vêm acompanhadas da abertura de editoras comerciais. Este processo representa a preocupação do Estado com o baixo índice de leitores no país e as persistentes dificuldades com alfabetização e escolarização, sendo muito importante a difusão do livro para a elevação intelectual. O período que compreende a ditadura civil-militar recua significativamente esta preocupação com a diversidade de livros e acesso à informação, de modo que o movimento contrário é que marca o período, o qual o conhecimento e as obras de circulação são controlados pelo governo. Para os jovens, as mesmas orientações se aplicam no sentido de promover uma formação leitora mais voltada à autonomia em certos momentos históricos de maior abertura intelectual e, por outro lado, maior “adestramento” por meio de livros e disciplinas típicas das estratégias de controle de governos centralizadores. Por exemplo, os livros para crianças associados à figura de Getúlio Vargas, como o livro Getúlio Vargas para crianças, de 1942, e Getúlio Vargas, o amigo das crianças, de 1940. Em Getúlio Vargas para crianças há a seguinte apresentação do presidente- personagem: Nesse município de belas paisagens e de gente robusta nasceu o menino Getúlio Vargas, filho de um bravo gaucho-soldado (sic) de Passo Fundo, o General Manuel do Nascimento Vargas e de Dona Cândida Dornelles Vargas. O General, firme e sorridente, já passou da casa dos 90 anos. Dona Cândida morreu perto dos 70. Cinco filhos teve o casal, todos eles dotados de fortaleza física e de inteireza de espírito. Getulio Vargas nasceu, assim, numa terra de gente destemida e forte, de uma família de almas afeitas ao trabalho e à bondade. No jovem gaucho floriam todas as belas qualidades humanas de energia e boa vontade. (BARROSO, 1942, p. 8). 33 4.5 As narrativas infantojuvenis contemporâneas A atualidade tem a marca da liberdade de comunicação por meio do texto impresso. É muito simples acessar um livro nos dias de hoje. Mais simples ainda é acessar um livro virtual. O mundo virtual imprime grande concorrência ao livro impresso, sobretudo quando se trata das crianças contemporâneas que são os nativos digitais, ou seja, já nascem inseridas na cibercultura. Pode-se definir como cibercultura todomovimento de acesso à conhecimento, informação e interação social mediado pelas redes sociais e pela internet. Trata-se de um processo presente nos últimos anos do século XX e que se popularizou pelo mundo no século XXI, por meio da ampliação do mundo virtual e da necessidade cultural de adaptação a esta nova realidade, em várias instâncias sociais. O mundo virtual e a cibercultura proporcionam para a cultura atual novos suportes que divulgam textos antigos e novos textos, mas sobretudo novas formas de ler e sentir o prazer da leitura. Os apelos sensoriais presentes nestes novos suportes são múltiplos, como tablets, celulares, computadores, e exigem da criança grande descarga cognitiva. Mas, por outro lado, possibilitam uma infinidade de aprendizados pelos saberes em redes. Jovens e crianças são, portanto, direcionados a um universo infinito de textos, literários ou não, onde têm protagonismo neste processo de busca e escolha. A questão importante é o fato de serem textos literários ou não, pois a concorrência de formas textuais, e mesmo a hegemonia de umas sobre outras, tiram muitas possibilidades de contato do jovem e da criança com textos literários na internet. Conclusão A proposta deste bloco foi tratar de alguns aspectos históricos da literatura infantil no Brasil, destacando sua forte relação com a formação de um Estado Nacional que atravessou anos, gerando obras de caráter patriótico, como no caso de Olavo Bilac e obras de caráter expressivo da cultura brasileira, como no caso de Monteiro Lobato. O avanço das tecnologias representa mudanças nestes contextos, mas o Brasil ainda requer maior difusão da leitura entre seus cidadãos. 34 Referências Bibliográficas AGUIAR, V. T. (coord.). Era um vez... na escola. Belo Horizonte: Formato Editorial, 2002. BARROSO, A. Getúlio Vargas para crianças. RJ, Grande Consórcio Suplementos Nacionais, 1942. BIGNOTTO, C. C. Monteiro Lobato e a infância na república velha. HISTDBR. Disponível em: <https://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/RepublicaVelha.htm>. Acesso em 12 set 2019. LOBATO, Monteiro. Obras Completas de Monteiro Lobato – série Literatura Infantil (17 volumes). São Paulo: Brasiliense, 1957. https://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/RepublicaVelha.htm 35 5 LITERATURA INFANTIL E REFERENCIAIS CURRICULARES Este bloco tem o propósito de comentar aspectos relacionados às orientações curriculares para o uso da literatura infantil na escola, conforme documentação legal vigente no país. 5.1 Diretrizes Curriculares Nacionais – Educação Infantil As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, com versão vigente a partir do ano de 2010, correspondem a toda uma construção sobre a educação infantil e as temáticas necessárias à construção de um currículo escolar que propicie o desenvolvimento integral das crianças. Pode-se notar raras menções no documento ao termo literatura, de modo que o espaço para a literatura infantil, conforme exprime o documento, deve ser localizado por caminhos diversos. No ponto “Práticas Pedagógicas da Educação Infantil”, os eixos do currículo, além de garantir interação e brincadeira, que são seus norteadores, no que concerne a literatura, devem garantir condições que “promovam o relacionamento e a interação das crianças com diversificadas manifestações de música, artes plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura” (BRASIL, 2010, p. 26). Há também a menção às experiências com o texto em si, independente da sua composição literária: o currículo deve criar condições que “possibilitem às crianças experiências de narrativas, de apreciação e interação com a linguagem oral e escrita, e convívio com diferentes suportes e gêneros textuais orais e escritos” (BRASIL, 2010, p. 26). Assim, nota-se que, no que concerne às diretrizes curriculares, cabe ao professor relacionar a literatura infantil nestes aspectos acima destacados, como conteúdo, recurso pedagógico e vivência necessária ao desenvolvimento curricular da educação infantil. Certamente, as diretrizes trazem apenas orientações, cabendo às escolas e professores definir o caminho a ser tomado. 36 5.2 Referenciais Curriculares Nacionais – Educação Infantil Os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (RCNEIs) são documentos referenciais que dão importantes orientações para os currículos das escolas infantis. Ao se analisar estes documentos, localiza-se algumas menções à literatura, sempre relacionada a propostas de vivência com a leitura e a formação de pequenos leitores. Mas também são considerados, de maneira central, o aspecto lúdico que pode ser associado à narrativa, uma vez que a educação infantil preconiza a vivência, o contato com o brincar, com o outro e com a socialização adequada para esta faixa etária. O RCNEI afirma que: A narrativa pode e deve ser a porta de entrada de toda criança para os mundos criados pela literatura. A criança aprende a narrar por meio de jogos de contar e de histórias. Como jogos de contar entendem-se as situações em parceria com o adulto, os jogos de perguntar e responder, em que o adulto, inicialmente, assume a condução dos relatos sobre acontecimentos, fatos e experiências da vida pessoal da criança. (RCNEI, 1998, p. 140). Dessa forma, o contato com as narrativas e a leitura, mediada pelo professor uma vez que as crianças ainda estão em processo de aquisição da linguagem e contato com situações de letramento pela escola, deve ser permeado pelo lúdico, pelas brincadeiras e pela fantasia característica da literatura infantil. Isso faz com que os livros de literatura infantil sejam muito importantes como recurso pedagógico e possibilidade de contato com a fantasia e com a apreciação estética. Por isso, cabe aos professores o cuidado com a seleção destes livros, pois seja para as crianças pequenas, seja para os jovens, a exigência de um bom produto literário e estético deve ser a mesma: Ter acesso à boa literatura é dispor de uma informação cultural que alimenta a imaginação e desperta o prazer pela leitura. A intenção de fazer com que as crianças, desde cedo, apreciem o momento de sentar para ouvir histórias exige que o professor, como leitor, preocupe-se em lê-la com interesse, criando um ambiente agradável e convidativo à escuta atenta, mobilizando a expectativa das crianças, permitindo que elas olhem o texto e as ilustrações enquanto a história é lida. (RCNEI, 1998, p. 140). 37 Portanto, a escolha dos textos, a organização em situações didáticas e o aproveitamento das situações espontâneas de uso pelas crianças devem ser considerados como importantes caminhos para a organização didática pelo professor. 5.3 Base Nacional Comum Curricular – Etapa da Educação Infantil A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é o documento atual que define as diretrizes para os currículos escolares; assim, para cada etapa, a abrangência em relação à literatura infantil e juvenil é concebida de forma distinta, porém dialógica. Neste documento, podemos localizar a menção à literatura como importante elemento das formas de ações que envolvem os alunos na escola. Um fator importante destacado é o da intencionalidade educativa, que deve ser colocada de maneira determinante nas práticas pedagógicas de Educação Infantil, conforme preconiza a BNCC. Sobre isto, a base acentua que: Essa intencionalidade consiste na organização e proposição, pelo educador, de experiências que permitam às crianças conhecer a si e ao outro e de conhecer e compreender as relações com a natureza, com a cultura e com a produção científica, que se traduzem nas práticas de cuidados pessoais (alimentar-se, vestir-se, higienizar-se), nas brincadeiras, nas experimentações com materiais variados, na aproximação com a literatura e no encontro com as pessoas. (BNCC, 2017, p. 35).Assim, associando intencionalidade e práticas pedagógicas pré-concebidas, a BNCC para a educação infantil valoriza a compreensão do indivíduo e do grupo, das relações de subjetividade e de integração, de modo que a leitura e os textos literários devem promover formas de compreensão e respeito às subjetividades e integração do grupo, por meio de narrativas e vivências que os unam. 5.4 Base Nacional Comum Curricular – Etapa da Educação Fundamental O ensino de língua e literatura no ensino fundamental é concebido como duas áreas de conhecimento que podem ser articuladas do ponto de vista metodológico. A BNCC, fazendo eco a esta visão, propõe a literatura como prática educativa, a partir do campo práticas artístico-literárias, que relaciona a formação das crianças, desde as séries iniciais do ensino fundamental, até a perspectiva do letramento, da relação dos contextos sociais e culturais com os usos da literatura e da linguagem. 38 A escola deve criar condições educativas para que se realize este tipo de relação de conhecimento, ou seja, o estudo da língua, da sua transformação estética (literatura), e a percepção sobre os seus contextos de uso. A literatura em si já é um contexto específico e com regras peculiares, que se referem a questões de, por exemplo, gêneros textuais, ou seja, cada formato textual se relaciona com situações sociais diferentes. A BNCC propõe práticas que consolidem a integração de língua e literatura, superando o uso do texto literário apenas como texto para o estudo de aspectos gramaticais. A integração de língua e literatura propõe um estudo mais aprofundado sobre os campos de relação das duas áreas, contendo sentido pedagógico para a situação de aprendizagem em que se encontra o aluno, e que também crie condições para o texto literário ser trabalhado em seu sentido humanizador e cultural, e não como um conjunto de frases com sentido gramatical e semântico. 5.5 O que o professor precisa para trabalhar com literatura na escola? Os referenciais e bases curriculares têm o objetivo de trazer orientações e eixos norteadores para o desenvolvimento de currículos escolares. Com isto, conhecimentos básicos são garantidos nos currículos e nas aulas, uma vez que representam a seleção de conteúdos que os professores devem trabalhar. No livro A literatura infantil na escola, publicado em 1981, a autora Regina Zilberman destaca que o professor deve estar apto “à escolha de obras apropriadas ao leitor infantil; ao emprego de recursos metodológicos eficazes, que estimulem a leitura, suscitando a compreensão das obras e a verbalização pelos alunos, do sentido apreendido” (ZILBERMAN, 1981, p. 26). Um exemplo seria a relação da escolha das obras com elementos como idade do grupo, espaço adequado para o desenvolvimento de uma atividade específica, procedimento a ser realizado, como diferentes formas de ler um texto, entre outras ações possíveis. Para tanto, é necessário que o professor tenha o domínio de uma série de elementos conceituais, procedimentais e avaliativos em relação ao ensino de literatura infantil e juvenil, como: um acervo literário representativo; o domínio de critérios de julgamento estético; o conhecimento do conjunto literário destinado às crianças e adolescentes, 39 que permitam certo conhecimento sobre a cultura e a literatura; a manipulação de técnicas e métodos de ensino que socorram e auxiliem o mestre no processo de incremento e estímulo à leitura. Os professores devem buscar estas referências a partir de sua formação inicial, mas também a partir de um processo de formação continuada, participando de cursos de especialização, de experiência formativas livres em bibliotecas, livrarias e espaços públicos, além de serem leitores ativos, o que facilita seu sendo de conhecimento e escolha sobre o assunto. Conclusão O objetivo deste bloco foi desenvolver alguns aspectos do ensino de literatura infantil e juvenil presentes em documentos oficiais que fazem orientações legais, como é o caso dos referenciais e bases curriculares. Para o desenvolvimento de qualquer abordagem no campo da literatura infantil e juvenil, é necessário que o professor esteja atento às orientações que a cultura, a história e a sociedade na qual estão inseridos professores, alunos e escola. Referências Bibliográficas BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil. Brasília: MEC; SEB, 2010. Disponível em: <https://bit.ly/2N1Cx1l >. Acesso em: 30 out. 2019. ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: MEC; SEF, 1998. Disponível em: <https://bit.ly/36mTMl5>. Acesso em: 30 out. 2019. ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular para a educação infantil. Brasília: MEC; SEB, 2017. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/>. Acesso em: 30 out. 2019. ______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. Disponível em: <https://bit.ly/2N1KJOW>. Acesso em: 30 out. 2019. ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1981. 40 6 GRANDES TEMAS E AUTORES DA LITERATURA INFANTIL NO BRASIL Este bloco tem a proposta de comentar objetivos de ensino da literatura infantil e apresentar alguns dos grandes temas e autores no Brasil, buscando trazer desde Clarice Lispector e autores indígenas importantes para a literatura infantil, como Daniel Munduruku. Além disso, serão apresentados também aspectos da literatura infantil contemporânea que estão entre o campo de abrangência destes dois autores. 6.1 A prontidão para a leitura e a sala de aula Sabe-se que é de grande importância que a escola crie um ambiente que propicie à criança, desde o primeiro dia de aula, o contato com leitura e literatura. Para tanto, é determinante a participação do professor como representação do que é ser leitor e ter o contato humanizador com a literatura. O professor alfabetizador deve ser um profissional humanizado, em relação ao conjunto de conhecimentos, que deve ter um domínio também humanizado, ou seja, que trabalhe de maneira criativa e comprometida com a formação de seus alunos e não de maneira reprodutora, repetindo os mesmos comandos e propostas de sempre. Logo, para que promova a vivência humanizadora pela literatura, o professor deve ser leitor e falar sobre livros para seus alunos, além de realmente contar histórias, mostrando e permitindo que as crianças se relacionem com o texto e a história por meio de sentidos diversos, de modo a construir em sua mente a imagem de uma atividade enriquecedora e prazerosa. Um exemplo deste processo é a leitura individual e silenciosa. Mesmo antes de alfabetizada, é importante esse tipo de contato, de modo que as ilustrações dos livros são linguagem fundamental a esse tipo de leitura. Com isso, as crianças exercitam o olhar e a imaginação e se preparam para a leitura de textos maiores e mais complexos no futuro. O professor deve também ler e contar em voz alta os textos para crianças ainda não alfabetizadas, pois assim o repertório infantil começa a ser construído e enriquecido, para, mais tarde, cada criança interpretar de sua forma futuras leituras. 41 6.2 Ensino individualizado e habilidades envolvidas na leitura Há diferentes tipos de processos e procedimentos de leituras dos textos literários nas escolas. A alternância entre a prática da leitura coletiva e leitura individual é uma questão que causa hesitação entre docentes, que percebem por práticas já consolidadas que o interesse na leitura e o desenvolvimento do hábito de ler é alcançado mais facilmente pelo método individualizado de ensinoda leitura do que pelo ensino sistemático de toda a classe. Apesar disso, existem situações nas quais o professor trabalha com a leitura uníssona, com a classe inteira, com muito êxito. São processos muito distintos, cada um com seus benefícios para a interação com texto, professor e conjunto de alunos. Entretanto, a alternância é recomendada, como forma de valorizar os aspectos mais intimistas e subjetivos da leitura, evocar repertórios pessoais e, ao mesmo tempo, promover a integração, trabalhar com modelos e trocas de experiências. Um exemplo interessante é quando o professor faz a leitura em voz alta de forma entusiasmada e com encanto, isso faz com que os alunos se interessam pela futura leitura do livro de forma individual. Assim, à medida que o leitor ganha autonomia na leitura, sua prática individual lhe proporciona maior rapidez e compreensão daquilo que se lê. De acordo com Richard Bamberger (1977, p. 50), uma prática pedagógica muitas vezes esquecida é a de adequar a escolha dos textos a serem apresentados a objetivos claros e definidos de formação do leitor e a de preparar essas apresentações, levando em conta as diferenças entre contos poemas, contos maravilhosos e os do cotidiano. Com isto, o professor pode pensar mais objetivamente em suas intencionalidades pedagógicas e nos possíveis procedimentos que a viabilizam, como a leitura em voz alta, que é um exercício de interpretação e necessita de leitura prévia e preparação vocal e gestual. Se for dada à criança a tarefa de ler em voz alta, cabe ao professor preparar esse leitor para que a interpretação em voz alta seja a mais adequada ao texto, sem improvisações, balbucios, erros de prosódia e defeitos de dicção. 42 6.3 Treinamento sistemático da leitura e avaliação do progresso O processo de leitura sistematizado pelas práticas escolares visa ao domínio amplo do leitor, em diferentes contextos, formas de leitura e usos de gêneros textuais, o qual é adquirido na trajetória escolar do estudante. Richard Bamberger (1977, p. 50) define velocidade e compreensão como aspectos fundamentais a este processo de domínio, para que o eleitor tenha autonomia de usos da leitura, individual e coletiva, silenciosa ou em voz alta, em contatos diversos. Bamberger (1977, p. 50) pontua velocidade como o treinamento das habilidades na leitura, como ampliação do período de fixação no processo de leitura em si e aumento da concentração, o que repercute em menos regressão, paradas e retornos. E define compreensão como o contato com o conteúdo que deve progredir à proporção que amadurece a concepção de leitura, avançando da compreensão de palavras para a leitura interpretada, informativa, crítica, criativa e estética. É importante a condição de motivações e interesse por parte dos alunos, mas também dos professores, que podem estimular uma atitude questionadora que favoreça a leitura como processo mental. Como avaliar o processo? É importante que o professor faça perguntas, formuladas anteriormente ou mesmo aquelas que surgem ao acaso, pelo momento pedagógico. As perguntas geram discussões sobre o que acaba de ser lido, sendo que a qualidade de compreensão é obviamente mais importante do que a velocidade da leitura. A leitura silenciosa ou em voz alta não deve ser encarada como avaliação do estágio de domínio da ortografia e da decodificação das crianças, elas devem ser um momento de contato prazeroso, sendo que o prazer não dispensa o conhecimento. A avaliação do trabalho com a literatura infantil demanda atividades e critérios diferenciados. As avaliações pontuais não conferem resultados objetivos deste tipo de estudo, pois os efeitos da literatura sobre a formação pessoal e escolar dos alunos são percebidos em longo prazo, à medida que se desenvolvem metodologicamente os objetivos e intencionalidades pedagógicos pré-concebidos. 43 6.4 Seleção de material de leitura para o ensino Para a seleção de materiais, o professor deve ter sensibilidade para o texto literário, o conhecimento a respeito das obras, edições e autores da história e conhecer as funções da literatura para que tenha condições de escolha adequada de textos para desenvolver atividades de formação de leitores. Este é um pressuposto. Como foi salientado anteriormente, o professor deve ser um leitor e conhecer seus materiais de ensino. O texto literário para crianças deve ser lido pelo professor de maneira analítica, crítica, fazendo uso de conceitos e interpretações de seu tempo. A forma de trabalhar o texto vai ser ponderada por este conhecimento amplo sustentado pelo professor no exercício de sua docência. Também é essencial que o professor tenha abertura para promover espaços para o conhecimento dos interesses dos alunos, bem como o conhecimento da produção literária clássica e canônica para crianças; o conhecimento de lançamentos recentes por intermédio de visitas a livrarias, leitura de catálogos, sites; atendimento à filosofia e aos princípios da educação contemporânea; atendimento às qualidades estéticas da literatura, sem preconceitos nem moralismos e a preferência por textos inovadores e emancipatórios. 6.5. Autores contemporâneos A literatura infantil tem uma grande referência, como já foi observado, que consiste na presenta de Monteiro Lobato neste campo literário como um grande intérprete da cultura brasileira e um importante comunicador da linguagem para as crianças. Suas obras são muito marcantes em todo o imaginário infantil e inauguram a centralidade da criança em obras que consideram suas características psicológicas, o caráter lúdico e as formas que as culturas se configuraram no Brasil, tornando-se o verdadeiro precursor da Literatura Infantil no Brasil. 44 Em termos de pensamento e corrente literária, Lobato circulou pelo ambiente do modernismo, mas travou muitas situações polêmicas entre os modernistas quanto à publicação do conhecido texto Paranóia ou Mistificação, em 1917, influenciando as correntes vanguardistas europeias no modernismo brasileiro, o que poderia configurar uma nova forma de colonização. Após isso, Lobato escreveu Urupês, um livro de contos que é sua obra mais representativa fora do contexto da literatura para as crianças, e criou a figura do Jeca Tatu, difusa no pensamento brasileiro acerca dos conflitos culturais e morais que o compõem: Pobre Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na realidade! Jeca Tatu é um Piraquara do Paraíba, maravilhoso epitome de carne onde se resumem todas as características da espécie. O fato mais importante da vida do Jeca é votar no governo. A modinha, como as demais manifestações de arte popular existente no país, é obra do mulato, em cujas veias o sangue recente do europeu, rico de ativismos estéticos, borbulha d’envolta com o sangue selvagem, alegre e são do negro. (LOBATO, 1959). O fato é que, a partir da primeira parte do século XX e durante todo o decorrer deste século, Lobato criou um imaginário infantil na literatura brasileira, trouxe para a criança seu lugar de protagonista da história e colocou seu pensamento como a engrenagem das regras que figuraram em suas obras; como Emília, aquela boneca com vida que pensa e age de maneira tão singular, criativa e que ganhou a atenção e o interesse de todo o país em termos e reconhecimento e fruição literária. Nesta linha precursora trilhada por Lobato, deve-se destacar que ao longo da década de 1970 a literatura infantil inaugura um período extremamente fértil no Brasil. Mas essa tradição já foi enriquecida anteriormente com obras de autores atuantes na literatura em geral, como Mário Quintana e Clarice Lispector – do primeiro, destacam-se os livros clássicos: Pé de Pilão (1968), Lili inventa o mundo (1983) e Sapo Amarelo (1983, um livro de poesias). Dessa forma, as histórias de Lobato povoaram o imaginário infantilbrasileiro e abriram um espaço de referência para a Literatura Infantil no país para além de sua referência escolar. Ocorrem novas formas de agrupamento temáticos das obras em relação à estilo, formas de narrativas, gêneros textuais, mas seguindo a tradição do projeto 45 estético e criativo aberto por Lobato. Dentre estes nomes, deve-se destacar como grandes referências os nomes de Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga Nunes, Ziraldo, João Carlos Marinho, entre outros, que desenvolveram, assim como Lobato, aspectos da crítica social, do humor, da aventura e de formas criativas de uso da linguagem. Em relação aos gêneros literários, a poesia infantil também se renovou apresentando trabalho específicos para as crianças a partir das obras de artistas renomados, como Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Sidônio Muralha e Vinícius de Moraes. Ocorre também a mudança de paradigmas em relação à imagem exemplar da criança obediente e a cobrança pela sua passividade como forma de comportamento a ser alcançado e estimulado pelos livros. A criança passa a ser compreendida nas obras como aquele ser que requer espaço para expressão e para a criatividade diante das regras que a sociedade lhe impõe. Nesta trilha, Ruth Rocha e Ana Maria Machado são referências muito importantes, pois valorizam a capacidade de criatividade da criança como ser em crescimento que necessita da valorização da sua liberdade. Ruth Rocha é autora de muitos livros infantis e tornou-se, assim como Ana Maria Machado, um grande reduto de abordagens qualitativas sobre o universo infantil, que passou a configurar o campo da literatura infantil tanto nas escolas quanto nos lares das crianças. Além disso, os livros de Ruth Rocha também são muito comercializados, assim como o escritor Ziraldo, com sua obra O menino maluquinho, que rompe completamente com qualquer referência de obediência e submissão das crianças às regras da sociedade e do mundo adulto. Vale citar o Marcelo Marmelo Martelo, de Ruth Rocha, e visualizar um pouco da imagem da criança, concebida nos livros infantis a partir de uma ótica muito próxima de sua realidade: Marcelo vivia fazendo perguntas a todo mundo: — Papai, por que é que a chuva cai? — Mamãe, por que é que o mar não derrama? — Vovó, por que é que o cachorro tem quatro pernas? As pessoas grandes às vezes respondiam. Às vezes, não sabiam como responder. 46 — Ah, Marcelo, sei lá... Uma vez, Marcelo cismou com o nome das coisas: — Mamãe, por que é que eu me chamo Marcelo? — Ora, Marcelo foi o nome que eu e seu pai escolhemos. — E por que é que não escolheram martelo? — Ah, meu filho, martelo não é nome de gente! É nome de ferramenta... — Por que é que não escolheram marmelo? — Porque marmelo é nome de fruta, menino! — E a fruta não podia chamar Marcelo, e eu chamar marmelo? (ROCHA, 1976, p. 1-2). Nesse sentido, pode-se destacar algumas obras destes autores como: Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga, publicado em 1976, que conta a história de uma menina que tem 3 grandes vontades interessantes para a época – crescer, ser menino e escrever; Bisa Bia, Bisa Bel de Ana Maria Machado, que conta a história de uma menina chamada Isabel e sua relação com a sua bisavó Bia, que conheceu em um retrato de quando ela era pequena; a famosa história Lúcia Já-Vou-Indo de Maria Heloísa Penteado, de 1978, conta a história de uma lesma dirigindo-se com muita vagarosidade a uma festa; O Fantástico Mistério da Feiurinha, escrito por Pedro Bandeira e publicado em 1986, questiona os padrões da vida familiar nos moldes dos heróis e heroínas para o casamento e para os felizes para sempre; A Fada Que Tinha Ideias, de Fernanda Lopes de Ameida, de 1971, que adentra o imaginário das fadas e tem uma linda ilustração; o Clássico Ou Isto ou Aquilo de Cecília Meireles, publicado em 1964, representa ainda hoje uma obra magistral da literatura infantil brasileira; e o belíssimo Poemas Para Brincar de José Paulo Paes, de 1990. Outra autora muito interessante que se deve destacar neste rol é a Angela Lago, que escreveu, entre outras obras, alguns livros para crianças. Além de escritora, também foi ilustradora. Pode-se destacar: A festa no Céu (1995), que é uma linda adaptação desta história clássica; A flauta do Tatu (2005); O bicho Folharal (2005); e A casa da onça e do bode (2005), que fazem parte da coleção “Virando Onça”, elaborada pela autora a partir de uma bela associação entre palavra e ilustração. Neste mesmo caminho da relação entre palavra e ilustração, texto e desenho, vale destacar as obras de Eva Furnari, que recebeu alguns prêmios Jabuti na década de 1990, com obras muito interessantes sobre uma revisão acerca da figura das bruxas no 47 imaginário infantil; é o caso da publicação de 2006, com a Bruxinha Atrapalhada e as outras bruxinhas, compostas com o humor dos desenhos e dos textos. Eva Furnari é uma grande ilustradora e escritora, e possui uma intensa produção de livros infantis, que figuram as obras contemporâneas e abrangem diversos assuntos do cotidiano das crianças. Eva Furnari também foi somente ilustradora na perspectiva do livro infantil, e, neste caso, vale destacar a obra de Mário Quintana, chamada O Batalhão das Letras, publicado originalmente em 1948. Mário Quintana é um autor brasileiro que flerta com a literatura infantil, assim como podemos destacar autores estrangeiros que escreveram livros para as crianças, como Fernando Pessoa e Leon Tolstói. Dentre os brasileiros, pode-se destacar: O Menino Mágico, de Rachel de Queiroz, de 1969; Uma ideia toda azul, de Marina Colasanti, publicado em 1979; e Graciliano Ramos, que foi precedente a tudo isso ao publicar A Terra dos Meninos Pelados, em 1939, Histórias de Alexandre, em 1944, e O Estribo de Prata, uma obra póstuma destinada às crianças, publicada em 1984. 6.6 De Clarice Lispector a Daniel Munduruku Diante da grande diversidade de obras infantis, vale fazer o exercício de valorizar a produção da literatura nacional e analisar suas facetas. As escolhas das obras devem abranger o arcabouço literário nacional e internacional, uma vez que há riqueza infinita de histórias populares e infantis oriundas da cultura brasileira, que exprime matrizes portuguesas, indígenas e africanas, bem como histórias universais que fazem parte do imaginário mundial da literatura infantil. Atualmente, muitos livros infantis são traduções de obras estrangeiras e que representam a diversidade do mercado editorial na área da literatura infantil. Diante disto, serão expostos dois exemplos interessantes: Clarice Lispector para crianças e Daniel Munduruku, indígena da etnia mundurucu que escreve muitos livros sobre sua cultura e livros para crianças. 48 Clarice escreveu as obras O mistério do coelho pensante (1967), A mulher que matou os peixes (1968), A vida íntima de Laura (1999), Quase de verdade (1978), Doze lendas brasileiras – Como nasceram as estrelas (1977). Muitas vezes não se imagina que Clarice tenha publicado tantos livros para o público infantil e, o mais interessante, são obras em um padrão narrativo e estético extremamente valorizado pela literatura nacional e seu repertório cultural, social e psicológico. Daniel Munduruku, escritor indígena, graduado em Filosofia e Psicologia, escreve há vinte anos obras referentes a sua cultura, à cultura indígena em termos genéricos e textos direcionados especificamente às crianças. Há que se desfazer o tratamento dado à literatura indígena como literatura para crianças ou lendas, são tipos e gêneros de texto diferentes. Os textos indígenas pensados para as crianças têm objetivos diferentes daqueles que concebem uma cultura e são chamados pela cultura dominante de lenda. Daniel escreveu obras como Kabá Darebu (2008), Como surgiu, mitos indígenas brasileiros (2011), O Banquete dos Deuses (2009), entremuitas outras. Conclusão A proposta deste bloco foi comentar aspectos dos procedimentos e avaliação da leitura, focalizando em aspectos do texto literário. Ao final, são citados alguns exemplos de autores que escreveram e escrevem para crianças, mas também para adultos, e representam importante arcabouço da cultura literária brasileira na sua configuração moderna. Referências Bibliográficas BAMBERGER, R. Como incentivar o hábito da leitura. Tradução de Octavio Mendes Cajado. SP: Cultrix, 1977. ROCHA, R. Marcelo Marmelo Martelo e outras histórias. Salamandra Editorial, Rio de Janeiro, 1976. LOBATO, J. B. R. de M. (1959). Urupês. Obras Completas, 1. São Paulo: Brasiliense, pp. 277.