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Maria Eduarda Fernandes – 6º Semestre 2020 [Hematopoese] Hematopoese é o processo pelo qual são formados os elementos do sangue. O tecido hematopoético, localizado no adulto predominantemente na medula óssea, é originado das células-tronco hematopoéticas, que apresentam 3 propriedades: 1. Autorrenovação: capacidade de produzir células idênticas; 2. Diferenciação: produção de todas as linhagens das células hematológicas maduras; 3. Plasticidade: capacidade de originar células de outros tecidos. A origem da Célula-Tronco Hematopoética (CTH) pode ser entendida relembrando os conceitos da embriogênese. A Célula-tronco totipotente (zigoto) é a que tem a capacidade de formar todos os tecidos embrionários e extraembrionários. A célula-tronco pluripotente – blastocisto, também chamada célula-tronco embrionária – tem a capacidade de formar qualquer tecido embrionário. A célula-tronco multipotente, também chamada célula-tronco adulta, forma tecidos específicos, como neurológico, epidérmico e sanguíneo, mas com propriedade de plasticidade. A CTH é uma célula multipotente que dá origem a todo componente celular sanguíneo pela sua propriedade de plasticidade. As células que povoam os espaços intertrabeculares da chamada medula óssea vermelha ou hematopoética são as CTHs (stem cells), além das células derivadas da sua diferenciação e maturação, que se desenvolvem devido ao microambiente medular – constituído de vasos sanguíneos, células estromais (fibroblastos e osteoblastos, por exemplo), matriz extracelular e citocinas. No processo de diferenciação celular, a CTH tem a capacidade de originar novas células, mais diferenciadas para uma linhagem específica, os chamados precursores mieloides e linfoides. Esses precursores, por meio de sucessivas divisões e maturação, chegam à formação dos elementos maduros que são, então, liberados para a circulação periférica. A divisão e a maturação dos elementos das diferentes linhagens devem-se à ação de mecanismos intracelulares e à atividade de mediadores humorais, fatores de crescimento e citocinas – stem cell factor, fator de crescimento granulocítico, eritropoetina (EPO), trombopoetina, interleucinas e o fator de necrose tumoral, entre outros –, além da ação das chamadas moléculas de adesão medulares. Assim, a ausência ou o excesso de algumas dessas substâncias pode levar a estados patológicos. [Eritropoiese] A eritropoese envolve a diferenciação e a maturação da linhagem eritroide. Os reticulócitos, já são células enucleadas e capazes de executar as atividades metabólicas de um eritrócito maduro. Os fatores necessários para uma eritropoese completa e eficiente são a presença de CTH normal, nutrientes, como ferro, vitaminas B12 e B6, ácido fólico, proteínas e lipídios, e do fator estimulante para a síntese eritroide, principalmente EPO e IL-3. A EPO (eritropoetina) é uma glicoproteína produzida no parênquima renal, pelas células justaglomerulares, por meio de mecanismo autorregulatório – uma alça de feedback cujo Maria Eduarda Fernandes – 6º Semestre 2020 estimulante principal é a hipóxia, e o nível de EPO circulante aumenta em proporção inversa à oxigenação tecidual e à massa eritrocitária. À medida que a anemia se desenvolve, o aparelho sensor dentro do rim aumenta a secreção de EPO, com aumento da síntese eritroide na medula óssea. Após 100 a 120 dias na circulação, o eritrócito senil é destruído pelo sistema reticuloendotelial, principalmente no baço. Cerca de 0,8 a 1% da massa eritroide circulante é reposta diariamente. [Composição do Eritrócito] O eritrócito é composto, essencialmente, por uma membrana envolvendo uma solução rica em eletrólitos (principalmente o potássio) e Hb. É altamente dependente de glicose como fonte de energia (ATP), quase exclusiva por meio da glicólise. A membrana eritrocitária é constituída por uma bicamada lipídica, na qual são inseridas proteínas transmembrana de disposição vertical, que têm como base de sustentação um citoesqueleto de proteínas de disposição horizontal. A integridade da membrana é responsável por propriedades importantes dos eritrócitos, que permitem sua passagem pelos vasos sem haver lise celular. A Hb é a macromolécula presente no interior dos eritrócitos, responsável diretamente pelo transporte de oxigênio até os tecidos. A cor vermelha das hemácias é dada por esse pigmento. **A concentração considerada normal de Hb para mulheres é de 12 a 16 g/dL e, para homens, de 14 a 18 g/dL.** Cada molécula da Hb é composta por 4 cadeias heme e 4 cadeias de polipeptídios de globina. As cadeias globínicas, responsáveis pela caracterização do tipo de Hb, são formadas por 2 cadeias alfa e 2 cadeias não alfa (beta, gama e delta). Cada cadeia de globina envolve 1 único núcleo contendo ferro, denominado “porção heme da molécula”. O heme contém 1 anel de protoporfirina e 1 átomo de ferro em seu estado ferroso, e pode ligar-se a 1 única molécula de oxigênio. Portanto, cada molécula de Hb é capaz de ligar 4 moléculas de oxigênio. [Conceitos gerais em anemias] A anemia é definida como o estado em que há diminuição da concentração de hemoglobina (Hb) por unidade de sangue, abaixo da média considerada normal para a raça, o sexo, a idade do indivíduo e a altitude em que ele se encontra. Essa condição caracteriza-se pela redução da capacidade de transporte de oxigênio, resultando, nos quadros mais severos, em disfunções miocárdica e cerebral. Erroneamente, considera-se a anemia uma patologia, e não o sinal de uma doença de base. Alguns fatos devem ser citados no estudo da anemia: a causa mais comum de anemia é a deficiência de ferro, principal carência nutricional negligenciada no mundo. Má alimentação pode resultar em deficiência de ácido fólico e contribuir para deficiência de ferro, mas o sangramento é muito mais comumente a causa da deficiência de ferro em adultos. Sendo um dos principais problemas de saúde pública, a anemia afeta cerca de 2 bilhões de pessoas em todo mundo. Tem alta prevalência e incidência, sobretudo em países em desenvolvimento, mas também afeta os países industrializados. A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) de 2006 mostra que a prevalência de deficiência de ferro entre crianças menores de 5 anos no Brasil é de 20,9%, com prevalência de 24,1% em menores de 2 anos e de 29,4% das mulheres férteis. 🠖 Mecanismos Adaptativos ∘ Aumento do Débito Cardíaco Para aumentar o aporte de oxigênio aos tecidos, o sangue circula em maior volume por minuto. Tal procedimento é chamado “efeito hipercinético da anemia”, que é consequência da queda da resistência vascular periférica e do aumento da frequência cardíaca. ∘ Aumento do do 2,3-DPG no interior da hemácia O 2,3-difosfoglicerato é produzido e destruído enzimaticamente como intermediário da glicólise nos eritrócitos e liga-se à Hb desoxigenada, diminuindo, assim, a afinidade desta pelo oxigênio, liberando-o para os tecidos. Este metabólito reduz a afinidade da Hb pelo oxigênio, Maria Eduarda Fernandes – 6º Semestre 2020 facilitando a liberação de O2 nos tecidos e minimizando os sintomas. ∘ Aumento da perfusão “órgão-seletiva” Tal aumento forma shunts, para melhorar a perfusão de órgãos vitais. Na perda aguda, as maiores áreas de redistribuição são o leito vascular mesentérico e ilíaco; nas perdas crônicas,pele e rim. ∘ Aumento da função pulmonar Este consiste no aumento da frequência respiratória para elevar a oxigenação sanguínea. ∘ Aumento da produção de eritrócito Tal aumento é mediado pela produção de EPO (eritropoetina). A taxa da síntese desta é inversamente proporcional à concentração de Hb e estimulada pela hipóxia do tecido renal. 🠖 Quadro Clínico Os sintomas mais habitualmente associados à síndrome anêmica, independentemente de sua etiologia, são dispneia aos esforços, de forma progressiva, até dispneia em repouso, tontura postural, vertigem, cefaleia, palpitação, síncope, astenia, diminuição dos rendimentos físico e intelectual, alteração do sono, diminuição da libido, alteração do humor, anorexia, dor torácica e descompensação de patologias cardiovasculares, cerebrais ou respiratórias de base. No exame físico, encontram-se palidez da pele e das mucosas, taquicardia, aumento da pressão do pulso, sopros de ejeção sistólicos, diminuição da pressão diastólica e edema periférico leve. Nos casos mais graves, letargia, confusão mental, hipotensão arterial e arritmia cardíaca. [Investigação Etiológica e Classificação] A anemia é sinal de doença, portanto nunca deve ser admitida como normal, devendo-se sempre procurar uma causa. A abordagem inicial do paciente com anemia deve acontecer da seguinte forma: 1. História clínica completa: a) Questionar quanto aos sintomas e o tempo de evolução; b) Investigar história nutricional, incluindo ingestão alcoólica; c) Questionar sobre sintomas de doenças que, sabidamente, cursam com anemia (sangue nas fezes, dor epigástrica, artrite, características da diurese); d) Pesquisar comorbidades e medicamentos em uso; e) Investigar história familiar de anemia e origem étnica, considerando alterações hereditárias da Hb e do metabolismo do eritrócito (talassemias, anemia falciforme) f) Investigar história ocupacional, à procura de exposição a agentes tóxicos. 2. Exame físico: realizar exame físico completo, além de estar atento para sinais de anemia, como glossite, queilite angular, icterícia (sinal de hemólise ou hepatopatia), sinais de neuropatia, esplenomegalia (hemólise ou outra doença de base) e sinais de doenças associadas como causa da anemia (adenomegalia, esplenomegalia, petéquias); 3. Exames laboratoriais na investigação inicial: a) Hemograma: é importante para a análise dos índices eritroides, auxiliando na classificação morfológica da anemia e na avaliação dos outros componentes celulares sanguíneos; b) Contagem de reticulócito: avalia a função medular, importante na classificação funcional das anemias; c) Avaliação do esfregaço de sangue periférico: contém informações importantes quanto à alteração na produção eritroide e nos mostra diferenças no tamanho e na forma das hemácias. 🠖 Classificação fisiopatológica (hemograma e contagem de reticulócitos) O número de reticulócitos (precursores das hemácias) ajuda a estimar a função medular e deve ser pedido na avaliação das anemias. A contagem normal de reticulócitos varia de 0,5 a 2%, e sua contagem absoluta de 25.000 a 75.000 μL, podendo ser utilizada como marcador da eritropoese eficaz, pois eles são formas jovens da hemácia recentemente liberados pela medula óssea. Diante do quadro de anemia, se a EPO e a função medular estiverem preservadas, a produção eritroide aumentará em 2 a 3 vezes o valor normal dentro de 10 dias do início da anemia. Com a avaliação dos reticulócitos, pode-se dividir a função medular em: 1. Medula hipoproliferativa: apresenta contagem de reticulócito corrigida < 2% ou < 100.000/mm3; 2. Medula hiperproliferativa: quando a contagem atinge valores ≥ 2% ou ≥ 100.000/mm3, indicando resposta medular normal à perda de sangue ou à destruição excessiva dos eritrócitos. Com esses dados, pode-se estabelecer a classificação fisiopatológica das anemias: 1. Anemias hipoproliferativas: diagnosticadas pela reticulocitopenia, resultam da baixa taxa de produção de hemácia. As causas mais comuns são: a) Deficiência nutritiva (em crianças e adultos) por falta de absorção, ingesta inadequada ou perda crônica (especialmente de ferro, folato e vitamina B12); b) Falta de estímulo com diminuição de hormônios estimulantes da eritropoese – EPO (disfunção renal), hormônio tireoidiano, androgênio; c) Doenças da célula-tronco (anemia aplásica, mielodisplasia) ou infiltração medular tumoral; Maria Eduarda Fernandes – 6º Semestre 2020 d) Supressão medular: quimioterápicos, medicamentos; e) Anemia de doença crônica secundária a processos inflamatórios, infecciosos ou neoplásicos. 2. Anemias hiperproliferativas: diagnosticadas pela reticulocitose, ocorrem em razão da perda ou destruição excessiva dos eritrócitos, com resposta adequada da medula óssea. Hemólise é a destruição prematura de hemácias e pode ser de causa congênita ou adquirida. Ex: Anemias hemolíticas. Dentre os vários tipos de anemia, estão: ∘ Anemia Falciforme: este tipo de anemia é genética e causa a destruição das células vermelhas do sangue e gera sintomas como icterícia, inchaço nas mãos e nos pés, dor em todo o corpo. Ela deve ser tratada com uma boa alimentação, transfusão de sangue e, por vezes, penicilina. ∘ Anemia Ferropriva: este tipo de anemia é causada pela baixo consumo de alimentos ricos em ferro ou hemorragias, e é identificada num simples hemograma. Seu tratamento consiste na boa alimentação e na suplementação de ferro. ∘ Anemia Perniciosa: a anemia perniciosa é causada pela deficiência de vitamina B12 no organismo e gera, além dos sintomas típicos da anemia, neuropatia e diminuição da concentração de ácido gástrico no estômago. Esta anemia pode resultar em graves danos neurológicos, se não houver o tratamento adequado. ∘ Anemia Aplástica: é uma doença auto-imune onde a medula óssea diminui a produção de células sanguíneas. Seu tratamento é feito com transplante de medula óssea e transfusão de sangue, quando não é devidamente tratada, pode levar à morte em menos de 1 ano. ∘ Anemia Hemolítica: este tipo de anemia produz anticorpos que destroem as células sanguíneas. Ela é mais comum em mulheres do que em homens e gera sintomas como palidez, tontura, marcas roxas na pele, pele e olhos secos e outros. Felizmente, ela tem cura e esta pode ser alcançada com medicamentos e, por vezes, é necessária a remoção do baço. ∘ Anemia de Fanconi: de origem genética, caracteriza-se por apresentar sintomas como anomalias nos dedos e na face. Pode ser diagnosticada por volta dos 6 anos de idade, ao observar os sinais clínicos da doença. Seu tratamento é feito com transplante de medula óssea e com imunossupressores. ∘ Anemia Megaloblástica: é um tipo de anemia caracterizado pelo tamanho anormal dos glóbulos vermelhos e diminuição dos glóbulos brancos e plaquetas, provocado pela deficiência de vitamina B12. Os sintomas incluem dor na barriga, queda de cabelo, cansaço e feridas na boca, por exemplo. 🠖 Avaliação da morfologia (hemograma e esfregaço do sangue periférico) A avaliação morfológica das anemias baseia-se, principalmente, na hemoglobina corpuscular média, no volume corpuscular médio e no red cell distribution width (RDW). O VCM (que mostra o tamanho médio dos eritrócitos) e a HCM (que mostra o valor médio de Hb nas hemácias – representado morfologicamente pela cor do eritrócito) podem ser calculados com base nos valores de hematócrito, número de eritrócitos e Hb. ∘ Hipocrômicas e microcíticas São caracterizadas por células pequenas e de coloração menos intensa, pelo pouco conteúdo de Hb, que pode ser decorrente de: 1. Diminuição da disponibilidade do ferro: deficiência de ferro, anemia de doença crônica, deficiênciade cobre; 2. Diminuição da síntese do heme: intoxicação por chumbo, anemia sideroblástica; 3. Diminuição na síntese de globinas: talassemia, outras hemoglobinopatias. ∘ Normocrômicas e normocíticas A média do tamanho e da coloração das hemácias é normal. Nessa situação, a análise do sangue periférico é importante, pois pode tratar-se de estágio inicial de anemia microcítica ou macrocítica. Pode também ocorrer pela falta de estímulo da eritropoese (insuficiência renal, endocrinopatia), pela anemia de doença crônica ou pelas anemias por infiltração medular, entre outros. ∘ Normocrômicas e macrocíticas Trata-se de hemácias grandes e de coloração normal, maiores que a média, porém com conteúdo globínico normal. Ocorrem frequentemente em: a) Anemias com metabolismo anormal do ácido nucleico – megaloblásticas por deficiência de vitamina B12 ou ácido fólico, medicamentos (zidovudina, hidroxiureia); b) Reticulocitose importante, pois o reticulócito é uma célula grande – anemia hemolítica, resposta à perda sanguínea aguda; c) Alteração da maturação do eritrócito (mielodisplasia); d) Outras causas, como hepatopatia, hipotireoidismo, alcoolismo. Podem-se ainda classificar as anemias, além dos pontos de vista fisiopatológico e morfológico: 1. Quanto à massa eritrocitária: Maria Eduarda Fernandes – 6º Semestre 2020 a) Relativas: aumento do volume plasmático, sem alteração da massa eritrocitária (gestante, macroglobulinemia); b) Absolutas: diminuição real da massa eritrocitária. 2. Quanto à velocidade de instalação: a) Agudas: de instalação rápida; b) Crônicas: de instalação lenta. Após a avaliação e a classificação inicial das anemias, muitas vezes são necessários exames específicos para confirmação diagnóstica, como na anemia hipocrômica e microcítica com RDW alto – analisar perfil de ferro; anemia macrocítica com RDW alto – analisar dosagem de vitamina B12 e folato; anemia normocrômica e normocítica com reticulócito baixo e RDW normal – dosar nível sérico de EPO, avaliar funções renal e tireoidiana e solicitar mielograma. A baixa resposta reticulocitária perante a anemia é sinal patognomônico das anemias por deficiência de produção ou hiporregenerativas. A faixa da normalidade no número de reticulócitos por volume de sangue varia entre 25.000 e 100.000/mm3, esperando-se contagens maiores ou iguais a 100.000/mm3 quando há regeneração medular, ou seja, nas anemias hiperproliferativas, e valores menores que 100.000/mm3 quando não há resposta medular eficaz, no caso das anemias hipoproliferativas ou por deficiência de produção. [Anemia Ferropriva] A anemia ferropênica é uma das doenças mais frequentes do mundo, acometendo 500 a 600 milhões de pessoas. É associada à redução da capacidade de trabalho em adultos e ao desenvolvimento mental e motor anormal na criança. É a principal causa de anemia microcítica e hipocrômica. O ferro é um mineral essencial ao organismo humano. Suas funções são as de mediador enzimático para a troca de elétrons e carreador de oxigênio (mioglobina e Hb). A deficiência de ferro é a causa mais comum de anemia no mundo e uma das doenças mais frequentes na prática médica. Sua distribuição geográfica é mais extensa nos países em desenvolvimento, onde o aporte dietético de ferro e o controle das parasitoses intestinais são insuficientes. Em adultos, as causas mais comuns de anemia por deficiência de ferro são ingestão insuficiente, déficit de absorção, perdas sanguíneas ou aumento rápido da demanda (como no crescimento rápido dos adolescentes e na gestação). O desenvolvimento da deficiência de ferro e a velocidade com que ela se instala dependem da reserva individual. O sexo, a idade e o balanço entre ingestão e perda diária do paciente influenciam nesse caso. 🠖 Metabolismo do ferro e fisiopatologia da carência O ferro total do organismo varia entre 2 e 4 g: por volta de 50 mg/kg nos homens e 35 mg/kg nas mulheres. Nos homens, 1 mL de concentrado de hemácias contém, aproximadamente, 1 mg de ferro, perfazendo um total estimado de 2.100 mg de ferro no sangue de um indivíduo que pesa 70 kg. Nas mulheres, a concentração é mais baixa; calcula-se encontrar cerca de 1.350 mg de ferro, o que pode ser explicado por perda menstrual, gravidez, lactação e menor ingestão. A produção do estoque de ferro é feita principalmente por 2 componentes: 1. Ferritina: formada pela proteína apoferritina + ferro, encontrada virtualmente em todas as células do organismo (principalmente fígado, baço e pulmões) e na corrente sanguínea, por ser hidrossolúvel. Sua dosagem sérica reflete o estoque total corpóreo, visto ser essa a forma de estoque mais abundante. É importante para disponibilizar ferro, conforme a necessidade corpórea; 2. Hemossiderina: não é hidrossolúvel, representando cerca de 25 a 30% do estoque corpóreo; nos indivíduos normais, encontra-se armazenada no sistema reticuloendotelial macrofágico e na medula óssea; porém, em condições patológicas, pode acumular-se em qualquer tecido, principalmente no fígado e no baço. ∘ Ingestão A dieta média nos países desenvolvidos contém aproximadamente 15 mg/d de ferro. No Brasil, calcula-se que a dieta das classes B e C apresente cerca de 10 mg/d de ferro nos alimentos. Está presente na forma de anéis heme (carnes, peixes, aves), a mais biodisponível, e na forma de complexos de hidróxido férrico (nos vegetais). Esta necessita do pH ácido do estômago para ser reduzida à forma ferrosa e para poder ser adequadamente absorvida. Maria Eduarda Fernandes – 6º Semestre 2020 ∘ Absorção Do total de ferro ingerido, 30% da forma heme e 10% da não heme são absorvidos; o restante é eliminado nas fezes. A absorção diária no homem varia de 0,5 a 1 mg/d, sendo o dobro na mulher, o que é justificado pela perda menstrual, e o quádruplo na gestante, em razão do consumo pelo feto. A absorção pode ser ajustada, de acordo com as necessidades orgânicas. Na deficiência de ferro, a eficácia da absorção do metal pode aumentar até 5 vezes em relação ao basal. O ferro, de maneira geral, é absorvido pela borda “em escova” das células epiteliais da vilosidade intestinal, especialmente no duodeno e no jejuno proximal. Os íons ferrosos (Fe++) são absorvidos mais eficientemente do que a forma férrica (Fe+++); esta, por sua vez, necessita da acidez gástrica para a estabilização e a ligação com a mucina. Com tal ligação, uma enzima chamada redutase férrica transmembrana converte a forma férrica em íon ferroso, o qual precisa atravessar a membrana apical da célula intestinal pela proteína DMT1 (transportador de metal divalente do tipo 1), saindo, assim, do lúmen intestinal e atingindo o interior celular. Existem substâncias capazes de interferir na absorção do ferro, como o ácido ascórbico, que modifica a valência de férrico para ferroso e melhora a absorção, ou como os fitatos (farelos, aveia, centeio), tanatos (chás), oxalatos (uvas- passas, figo, ameixa, batatas-doces, amêndoas, tomate, chocolate, cacau), fosfatos (leite e derivados), antiácidos, cálcio e até antibióticos (tetraciclina, quinolonas), que reduzem a absorção. O duodeno e a porção superior do jejuno são os locais de máxima absorção; consequentemente, síndromes disabsortivas ou bypass dessas áreas podem levar à deficiência de ferro. Uma vez no interior celular, o ferro tem 2 vias possíveis: é armazenado como ferritina, ou é transportado para o plasma, passando pela proteína transmembrana ferroportina, que, por suavez, atua em conjunto com a hefaestina para nova transformação de íon ferroso em férrico. A proteína de fase aguda chamada hepcidina; sintetizada no fígado, atua diretamente na inibição da absorção de ferro, bem como na diminuição da sua liberação do interior da célula intestinal, pelo feedback negativo do seu transportador na membrana basolateral Ferroportina. A hepcidina e a ferroportina são reguladoras da absorção de ferro: aumentam a absorção quando os estoques estão baixos ou ausentes e quando há aumento da eritropoese (principalmente em doenças que cursam com eritropoese ineficaz: mielodisplasia, betatalassemia e anemia sideroblástica); e diminuem a absorção quando os estoques estão repletos. Além disso, a hepcidina regula a liberação de ferro pelos macrófagos que fagocitaram eritrócitos senescentes. A hepcidina está aumentada em infecções, inflamações, doença renal crônica e aumento do estoque de ferro, e diminuída em casos de hipóxia, anemia, deficiência de ferro, eritropoese inefetiva e altos níveis de eritropoetina. ∘ Transporte de ferro O ferro ferroso (Fe++), absorvido pelo enterócito, pode ser armazenado na forma de ferritina ou novamente ser oxidado em férrico (Fe+++), para ligar-se à transferrina e ser transportado aos diversos tecidos pela ação da hefaestina, enzima dependente de cobre. Os tecidos que necessitam de ferro possuem receptores de transferrina em quantidade proporcional e suficiente, pois, por meio deles, ligam-se à transferrina e recebem o ferro. Cerca de 20 a 25 mg de ferro são liberados diariamente pelas hemácias senescentes para os macrófagos. O núcleo heme da hemácia fagocitada pelo macrófago é metabolizado, deixando o ferro livre para a circulação sanguínea por meio da ferroportina ou para armazenamento na forma de ferritina, a depender das necessidades do organismo. ∘ Perda Não há nenhum mecanismo de regulação da perda de ferro. Este é perdido pelo suor e pela descamação da pele e do epitélio gastrintestinal, na taxa de, aproximadamente, 1 mg/d; na mulher, em cada ciclo menstrual, a perda é aumentada em 1 a 2 mg/d. A gravidez pode modificar tal equilíbrio, em razão do aumento da demanda de ferro de até 2 a 5 mg/d. A dieta normal, geralmente, não supre essas necessidades, e a suplementação de ferro é indispensável durante a gravidez. Maria Eduarda Fernandes – 6º Semestre 2020 Gestações repetidas, principalmente quando seguidas de amamentação, são causas frequentes de anemia ferropriva, caso não haja aporte de ferro adicional. As perdas crônicas desequilibram o cálculo entre o aporte diário e a absorção de ferro. Contudo, tal mecanismo nem sempre é suficiente, e os estoques de ferro são lentamente depletados, até que a deficiência se instale. O processo é frequente nas hipermenorreias, em que a mulher pode relatar fluxo intenso e duradouro por muitos anos e considerá-lo normal. A redução da absorção do ferro, como na gastrite atrófica ou na acloridria, na doença celíaca e na gastrite por Helicobacter pylori, leva à deficiência. Contudo, o sangramento em algum local do tubo digestivo é causa muito mais comum dessa condição. Reitera-se que a causa mais frequente de deficiência de ferro em adultos é a perda de sangue, seja menstrual, nas hipermenorreias ou polimenorreias, seja digestiva, em úlceras gástricas, doenças diverticulares ou tumores do trato gastrintestinal. 🠖 Quadro Clínico A apresentação clínica pode incluir tanto manifestações da doença de base como do próprio estado anêmico. A privação de ferro manifesta-se com sintomas em outros órgãos e tecidos, independentemente da presença ou não de anemia, como queda de cabelo, redução do rendimento intelectual e mialgia. São queixas frequentes na ferropenia: perversão do apetite (Vontade de ingerir alimentos não convencionais como comer terra, barro, arroz cru), pagofagia (compulsão por comer gelo), unhas quebradiças e finas, língua lisa, com perda das papilas, glossite (inflamação ou infecção da língua), queilite angular (processos inflamatórios dos lábios), gastrite atrófica e diminuição da saliva. Coiloníquia, que são as unhas em formato de colher também podem ocorrer na anemia ferropriva. Algumas manifestações clínicas são pouco frequentes, como disfagia, alteração nos mecanismos da imunidade e escleras azuladas. Os sintomas evoluem de maneira gradual e incluem fadiga, taquicardia, palpitação, irritabilidade, tontura, cefaleia e intolerância aos esforços de intensidade variável. Pela instalação insidiosa e prolongada, os mecanismos adaptativos do organismo permitem tolerância de níveis bastante baixos de Hb. 🠖 Achados Laboratoriais Os achados laboratoriais acompanham a evolução do quadro clínico, pois a deficiência de ferro se instala por etapas. Inicialmente, ocorre depleção dos estoques de ferro, com redução dos níveis de ferritina sérica abaixo de 30 ng/mL. A ferritina é o indicador mais confiável do status do ferro no organismo, por ser menos sensível às variações distributivas do que o ferro sérico e seus indicadores de transporte. Contudo, é uma proteína “de fase aguda”, ou seja, aumenta perante quadros inflamatórios, devendo ser considerada com cautela quando há concomitância da anemia com infecções ou inflamações severas. Para dosagens de ferritina extremamente baixas (< 15 ng/mL), a especificidade do teste é de 99%. Devido à falta de ferro, a formação de hemoglobina é deficiente, fazendo que o conteúdo das hemácias seja pequeno, acarretando volumes corpusculares médios mais baixos e anisocitose importante, o que eleva o valor do red cell distribution width (RDW). Posteriormente, a formação dos eritrócitos continua, porém os níveis de ferro circulante e a saturação da transferrina caem, mostrando que não resta mais ferro para ser mobilizado. A Capacidade Total de Ligação do Ferro (CTLF) e a quantidade de receptor de transferrina solúvel aumentam, mostrando que os receptores do ferro estão “vazios”. Outros parâmetros menos utilizados no cotidiano, porém de valor acadêmico, são: receptor de transferrina solúvel, produzido pelos eritrócitos de forma aumentada na carência de ferro, conferindo a essas células maior capacidade de absorção do ferro, e protoporfirina eritrocitária livre, que reflete diretamente a substituição do ferro pelo zinco na formação do heme, estando aumentada nas ferropenias. A falta de ferro para formar Hb leva à formação de hemácias com pouco conteúdo (hipocromia: Hemoglobina Corpuscular Média – HCM – baixa), que, ao se adaptarem a essa situação, alcançam volumes corpusculares mais baixos (microcitose: Volume Corpuscular Médio – VCM – baixo), resultando em anisocitose importante e RDW aumentado. Nas formas mais severas, podem ser notadas formas bizarras das hemácias, apresentando poiquilocitose intensa. A contagem de reticulócitos está diminuída, pois a eritropoese também está. A contagem de plaquetas pode elevar-se em razão do aumento da secreção de eritropoetina (EPO) pela anemia. O padrão-ouro para a avaliação direta do estoque de ferro é a análise da medula óssea com pesquisa do ferro medular, por meio da coloração com azul da Prússia (Perls). Dessa forma, é possível avaliar semiquantitativamente o estoque de ferro nos macrófagos; porém, como sua aplicabilidade é limitada, opta-se por medidas indiretas; Deve-se sempre lembrar de investigar a causa: diante de ferropenia ou anemia ferropriva, sem causa aparente (hipermenorreia, gestação, adolescência ou infância), avaliar inicialmente: endoscopia digestiva alta e colonoscopia, caso não seja identificada nenhuma anomalia, avaliar intestino delgado (exame de imagem – tomografia de abdome e cápsula endoscópica).Diante de situações como gastroplastia redutora, gastrectomia, doença gastrintestinal inflamatória crônica, nas quais se suspeita de resposta insatisfatória com o tratamento com ferro por via oral devido à má absorção deste elemento, um dos métodos preconizados que pode ajudar a confirmar essa alteração é o teste de absorção intestinal do ferro por via oral. Nesse teste, é realizada a dosagem de ferro sérico em jejum, feita a ingestão de ferro elementar por via oral e, após cerca de 2 horas, é dosado Maria Eduarda Fernandes – 6º Semestre 2020 novamente o nível de ferro sérico para comparação com o anterior. 🠖 Diagnóstico Diferencial Outras causas de anemia hipocrômica microcítica devem ser consideradas na avaliação clínica. Contudo, a história e o exame físico geralmente são suficientes para confirmar o diagnóstico. São diagnósticos diferenciais: a) Anemia de doença crônica; b) Talassemia; c) Anemia sideroblástica; d) Hemoglobinopatia C; e) Intoxicação por chumbo. É importante ressaltar que, no hipotireoidismo e na deficiência de vitamina C, existe diminuição de ferritina sem depleção dos estoques de ferro. 🠖 Tratamento Além de oferecer o aporte de ferro para o tratamento da deficiência subjacente, deve-se tratar a causa, ou seja, investigar a fonte de perda sanguínea e tratá-la, já que a persistência da perda é o principal motivo de manutenção e até piora da anemia ferropriva. É extremamente rara a necessidade de transfusão para a correção de anemia ferropriva, pois esta é de instalação lenta, e o organismo adapta-se a níveis bastante baixos de Hb. Deve ser reservada a quadros de instabilidade hemodinâmica por sangramento excessivo ou situações que apresentem sinais de isquemia tecidual/cor anêmico. A primeira opção para o tratamento da anemia ferropriva é o ferro oral, pois é de custo bastante baixo, de fácil administração e sem efeitos adversos graves. O ferro parenteral, por ser mais custoso, com necessidade de infusão em ambiente hospitalar e risco de reações adversas graves e até fatais, deve ser reservado para casos especiais. ∘ Ferro oral Apesar do aparecimento de várias formas diferentes de ferro oral, o melhor tratamento para a deficiência continua a ser o sulfato ferroso na dose de 300 mg (60 mg de ferro elementar), 3 a 4x/d, que deve ser ingerido longe das refeições, para garantir o máximo aproveitamento. Em crianças, preconiza-se o uso de 2 mg/kg/d, procurando não ultrapassar 15 mg/d, para não aumentar a toxicidade. Os principais problemas no uso do sulfato ferroso são os possíveis efeitos colaterais: intolerância digestiva, com dispepsia, dor epigástrica, diarreia, constipação, gosto amargo na boca e escurecimento das fezes. Muitas vezes, conseguem-se controlar os efeitos adversos com a ingestão do medicamento junto às refeições, fracionamento ou redução da dose diária, lembrando, porém, que essas medidas podem reduzir o aporte terapêutico de ferro elementar em até 50%, resultando em maior tempo de tratamento. O aporte de ferro oral deverá ser mantido por, pelo menos, 4 a 6 meses após a normalização da Hb, para garantir a repleção dos estoques do mineral. Contudo, recomenda-se realizar nova dosagem de ferritina sérica após o término da reposição, a fim de confirmar a normalização das reservas, que devem estar acima de 50 ng/mL e com saturação de transferrina > 20%, deixando um intervalo de pelo menos 7 dias entre a última dose da medicação e a coleta do exame, já que a ingesta de suplementos de ferro é a principal causa de resultados falsamente normais de ferro sérico e ferritina. Algumas vezes, pode ser necessário manter o aporte de ferro oral por mais tempo, principalmente quando a causa da deficiência ainda não foi resolvida ou ultrapassada. Atualmente, existe o ferro quelato ou quelatado, superior ao sulfato ferroso quanto às queixas de intercorrências gastrintestinais, pois não ocorre liberação de íons ferro no trato gastrintestinal, como acontece com o uso de outros sais de ferro, o que pode estar relacionado ao fato de a absorção desse tipo acontecer principalmente no jejuno. A eficácia da reposição pode ser avaliada por meio do pico reticulocitário, que ocorre de 5 a 7 dias após o início do tratamento, e pela elevação de Hb, em 3 semanas, de pelo menos 2 g/dL (0,2 g/dL/d). Em casos de refratariedade ao tratamento, deve-se pensar em dose inadequada da medicação prescrita, falta de adesão, falta de absorção e persistência da causa da ferropenia. ∘ Ferro parenteral O grau de anemia não faz parte das indicações de ferro parenteral; assim, mesmo que o paciente esteja com baixos níveis de hemoglobina, se não estiver sintomático a ponto de realizar transfusão de hemácias e não houver nenhuma contraindicação ao uso de ferro oral, opta-se por essa modalidade de reposição. Em virtude de efeitos adversos Maria Eduarda Fernandes – 6º Semestre 2020 graves (choque anafilático em 1% dos casos), a administração de ferro parenteral deve ser reservada a casos estritos: a) Na intolerância ao ferro oral, apesar da alteração da posologia ou da mudança na apresentação; b) Na falta de absorção do ferro oral, como em alguns casos pós- gastrectomia; c) Na vigência de doença gastrintestinal (como as doenças inflamatórias intestinais), pois pode haver piora dos sintomas; d) Nos casos em que há perda intensa, com o ferro oral não sendo suficiente para suprir as necessidades; e) Pacientes em hemodiálise, que apresentam perdas constantes pelo procedimento e pelo déficit de absorção intestinal. Até pouco tempo, a única apresentação comercial de ferro parenteral no Brasil era o sacarato de hidróxido de ferro III (Noripurum®), que se encontra em formulação tanto para aplicação intramuscular quanto para infusão intravenosa após diluição, sendo preferível esta última. A administração de ferro intramuscular é dolorosa, de absorção lenta e incompleta, podendo impregnar-se na região da aplicação, e não é menos tóxica ou mais segura do que a outra administração, estando atualmente proscrito o seu uso rotineiro. O déficit de ferro é calculado pela determinação do decréscimo em massa de células vermelhas do sangue normal, reconhecendo que há 1 mg de ferro em cada mL de células vermelhas do sangue. Foi lançada no mercado uma apresentação de ferro para uso intravenoso, a carboximaltose férrica (Ferinject®), a qual propicia mais comodidade e apresenta posologia e cálculo de dose que levam em conta somente o peso do paciente. Ela oferece excelentes resultados, porém com maior custo para aquisição. FONTE: 1. Souza, M.H.L. Elias, D.O. Princípios de Hematologia e Hemoterapia. 2 ed. Centro de Estudos Alfa Rio Perfusion Line - Rio de Janeiro – RJ, 2005. 2. Martins, M.A. Clínica médica, volume 3: doenças hematológicas e oncológicas. – Barueri, SP: Manole, 2009. 3. http://livros01.livrosgratis.com.br/cp104508.pdf http://livros01.livrosgratis.com.br/cp104508.pdf