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Natalia Quintino Dias Acalasia e megaesôfago Anatomia O esôfago consiste na primeira porção do tubo digestivo. Ele é um tubo muscular (aproximadamente 25 cm de comprimento) com um diâmetro médio de 2 cm, que conduz alimento da faringe para o estômago. Ao longo de toda a sua extensão, sua mucosa apresenta numerosas pregas longitudinais com sulcos intermediários que dão a impressão de seu lúmen estar obstruído. Entretanto, quando o esôfago é distendido, as pregas desaparecem e o lúmen torna-se evidente. O esôfago tem três constrições: - Constrição cervical (esfíncter superior do esôfago): Tem seu início, na junção faringoesofágica, a aproximadamente 15 cm dos dentes incisivos. É causada pela parte cricofaríngea do músculo constritor inferior da faringe. - Constrição broncoaórtica (torácica): Uma constrição dupla combinada, no local onde ocorre primeiro o cruzamento do arco da aorta, a 22,5 cm dos dentes incisivos, e depois o cruzamento pelo brônquio principal esquerdo, a 27,5 cm dos dentes incisivos. - Constrição diafragmática: No local onde atravessa o hiato esofágico do diafragma, a aproximadamente 40 cm dos dentes incisivos. Definição A acalásia advém de um transtorno motor esofágico, que promove disfunção do esfíncter esofagiano inferior (déficit do relaxamento + hipertonia) e do corpo esofágico (hipocontratilidade e aperistalse). Fisiopatologia A doença decorre de transtorno motor no esôfago, nos plexos mioentéricos, que irá promover disfagia mecânica. Através da destruição do Plexo de Auerbach (é conhecido como plexo mioentérico formado por uma cadeia de neurônios e celulas da glia interconectados atuando no controle do peristaltismo), ocorre déficit do relaxamento do esfíncter esofagiano inferior, que passa a se comportar como um obstáculo mecânico à progressão do bolo alimentar. Com o progredir da doença, pode ocorrer ainda hipertonia do esfíncter esofagiano inferior e a hipocontratilidade do corpo esofágico, agravando ainda mais o quadro. Com o corpo esofágico doente, ele passa a se dilatar patologicamente, promovendo o megaesôfago. Etiologia A doença pode ser idiopática primária (principal causa no mundo) ou, em casos de exposição a áreas endêmicas, pode ser secundária à Doença de Chagas, ao T. cruzi (principal causa no Brasil). Epidemiologia Em áreas endêmicas para a Doença de Chagas, é uma doença razoavelmente frequente, embora de estatística incerta. Sua forma idiopática, porém, tem prevalência baixa. Manifestações clínicas O principal sintoma é a disfagia mecânica, de condução, baixa (na altura da transição toracoabdominal), é progressiva, inicialmente para sólidos, e seguindo até afetar a ingestão de alimentos líquidos. De forma associada, ocorrem: regurgitação de alimento não digerido, pirose, tosse e halitose. O paciente passa a fazer recurso de coluna d’água (ingestão de grande quantidade de água junto da refeição), para promover a deglutição. Como há estase de material esofágico, o alimento por vezes retorna na forma de regurgitação de material não digerido e promove tosse e halitose. A estase esofágica também é irritativa e promove pirose e/ou dor torácica. Natalia Quintino Dias A dificuldade de se alimentar gera graves perdas ponderais. Abordagem diagnóstica 1º passo: realizar EDA, com o objetivo de afastar doença maligna do esôfago. Após endoscopia com resultado negativo, está indicado o esofagograma contrastado (radiografia contrastada do esôfago), que é capaz de evidenciar achados característicos da doença e classificá-la de acordo com o grau de dilatação do esôfago. O esofagograma, além de fornecer tais achados característicos, pode, de acordo com o grau de dilatação (ou seja, com o calibre do megaesôfago), classificar a acalásia em: Quando, especialmente no grau IV, há perda do eixo do esôfago (e ele “dobra”), pode-se denominá-lo de dolicomegaesôfago. O exame padrão-ouro para o diagnóstico de acalásia é a esofagomanometria. Demonstra: déficit do relaxamento e hipertonia do esfíncter esofagiano inferior + hipocontratilidade e aperistalse do corpo esofágico. A manometria é um exame que consiste na avaliação manométrica dinâmica do processo da deglutição e é capaz de encontrar justamente os achados fisiopatológicos de: primeiro o déficit do relaxamento do esfíncter esofagiano inferior, seguido de sua hipertonia e, com o avançar da doença, o acometimento do corpo esofágico, com aperistalse e hipocontratilidade. Segundo a manometria, a doença pode ser classificada em: incipiente, não avançada e avançada. Doença de Chagas - investigação A Doença de Chagas é uma doença infectoparasitária, crônica. É causada pelo T. cruzi, um protozoário flagelado que tem diversas formas celulares no seu ciclo biológico. A forma amastigota é a intracelular, e é a responsável pela doença clínica. O T. cruzi, em sua forma amastigota, tem predileção por locais onde há células musculares e nervosas muito interligadas: coração, esôfago e cólon. Se afastar doença de Chagas -> denomina-se a acalásia como idiopática. Natalia Quintino Dias Tratamento Há várias modalidades terapêuticas: ● Dilatação pneumática endoscópica da cárdia, seriada: consiste num procedimento de tentativa de ruptura das fibras do esfíncter esofágico inferior por dilatação da cárdia com um balão endoscópico. O procedimento é, em geral, de baixo risco e bem tolerado. Tem eficácia intermediária e tem que ser repetido periodicamente para tentar sustentar seu resultado. ● Esofagocardiomiotomia a Heller Pinotti (cirurgia): é o tratamento de escolha da acalásia. Consiste na miotomia a Heller (secção do músculo) do esfíncter esofagiano inferior, que é a cárdia, de forma cirúrgica, tratando a fisiopatologia inicial da doença. Como há um refluxo esperado ao se romper o esfíncter esofagiano inferior, faz-se em conjunto uma válvula antirrefluxo à Pinotti. Essa é uma válvula parcial, para evitar disfagia numa válvula total “aperdada”, dado que o esôfago não é tão eficaz em sua peristalse. ● Toxina botulínica – injeção cárdica: A toxina botulínica promove paralisia muscular e, ao ser injetado na cárdia, paralisa o esfíncter esofagiano inferior. Portanto, pode ser utilizada na acalásia. ● POEM – Miotomia Endoscópica Peroral: É uma cirurgia endoscópica avançada, com seus riscos (notoriamente o de perfuração esofágica inadvertida). Em termos de eficácia em controlar a disfagia, funciona bem. Todavia, ela NÃO promove uma válvula antirrefluxo, e com isso o refluxo pós- POEM é o seu principal defeito. ● Esofagectomia: é uma cirurgia enorme, consistindo na retirada do esôfago e na reconstituição do trânsito digestivo com o estômago tubilizado (esofagogastroplastia) ou o cólon (esofagocólonplastia). É uma cirurgia mórbida, de alto risco, reservada a casos avançados → última linha de tratamento. As + utilizadas são: esofagocardiomiotomia a Heller Pinotti ou dilatação endoscópica seriada. Os megaesôfagos iniciais – grau I, incipientes – podem ser tratados por cardiomiotomia ou dilatação endoscópica, em equivalência Os megaesôfagos graus II e III, formas não avançadas, são tratados por cardiomiotomia, e a dilatação endoscópica fica como alternativa na impossibilidade do tratamento cirúrgico. O megaesôfago grau IV, avançado, deve ser tratado por esofagectomia. Existem outras cirurgias, usadas regionalmente. Consistem na Cirurgia de Serra Dória (esofagogastrostomia) e Thal Hatafuko. São pouco usuais. As demais modalidades, como a de toxina botulínica e POEM, ainda não têm papel bem definido na literatura e devem ser utilizadas individualmente. Outras doenças disfágicas benignas Anéis e membranas Anéis e membranas são constrições benignas circunferenciais completas(anéis) ou incompletas (membranas) do tubo esofágico. Podem acontecer em quaisquer porções do esôfago e não têm gênese bem clara. São condições benignas e não têm caráter invasivo. Promovem disfagia, usualmente de evolução arrastada, como clínica principal. Quadro clínico: disfagia, além do tratamento de uma eventual condição associada. Diagnóstico: Deve-se realizar EDA para afastar doença maligna, e a biópsia tem papel relevante em afastar tecido neoplásico na região do anel/membrana. A própria endoscopia pode observar a presença do anel/membrana, ou então, na sequência, esofagograma contrastado evidencia a presença de região de estenose. Tratamento: é endoscópico, com dilatação, e tem taxas satisfatórias de controle do sintoma disfágico. Outras estratégias endoscópicas incluem: injeção de corticoide e incisão elétrica. Natalia Quintino Dias Alguns anéis e membranas possuem denominação específica: ● Anel de Schatzki: é um anel do esôfago distal, presente em 5% da população, e está associado à doença do refluxo gastroesofágico e à hérnia de hiato. TTO: IBP em dose plena + cirurgia se necessário (hiatoplastia com fundoaplicatura). ● Síndrome de Plummer Vinson: relaciona-se à presença de uma membrana esofágica cervical alta, em contexto de anemia ferropriva. Nessa síndrome, é importante controlar a deficiência de ferro. Ocorre disfagia alta, cervical, semelhante à que ocorre no divertículo de Zenker. Divertículo de Zenker É o divertículo esofágico + comum. Ocorre no Trígono de Killian, geralmente à esquerda. Sua gênese está relacionada a uma disfunção do cricofaríngeo. O Divertículo Faringoesofágico de Zenker é um pseudodivertículo cervical de pulsão, que ocorre do Trígono de Killian, região de fraqueza logo acima do músculo cricofaríngeo (que faz parte do esfíncter esofágico superior) – músculo que apresenta transtorno motor (hipertonia e distonia), presente na gênese do Divertículo de Zenker. Quadro clínico: disfagia de condução, mecânica, cervical, associada a sensação de corpo estranho. Ocorre halitose e retorno do alimento não digerido, pode haver tosse e disfonia (alteração da voz). Diagnóstico: EDA (para descartar câncer e pode detectar a presença do óstio do divertículo). O esofagograma contrastado, por sua vez, evidenciará a saculação cervical alta. Tratamento: depende do tamanho do divertículo e envolve, essencialmente, a miotomia do músculo cricofaríngeo, que se encontra hipertônico. Isso pode ser feito de forma cirúrgica ou endoscópica. A cirurgia apresenta a vantagem de permitir a ressecção do divertículo (diverticulectomia). O tratamento de escolha é cirúrgico, com miotomia do músculo cricofaríngeo e diverticulectomia, aplicando-se a todos os casos. A endoscopia também pode tratar o Zenker, com miotomia endoscópica do músculo cricofaríngeo (ou “diverticulotomia”), que trata divertículos pequenos, de até 3 cm, com menor morbidez e razoável eficácia. Complicações do tratamento endoscópico: perfuração esofágica, abscesso cervical e sangramento local. Divertículo de epifrênico Consiste num divertículo de pulsão, também relacionado a transtornos motores esofágicos. Ocorre no esôfago distal e promove um quadro de disfagia. Seu diagnóstico, assim como os demais, vem de forma endoscópica (que também afasta tumor esofágico) e/ou radioscópica (esofagograma contrastado). O tratamento é controverso. Os transtornos motores aqui associados são menos compreendidos. Medidas comportamentais são úteis. A ressecção reserva-se a casos mais graves. Na mesma cirurgia, pode-se completar o procedimento com uma miotomia e fundoplicatura (à semelhança da acalásia). Existem outros divertículos esofágicos, raros, podendo ter alguma associação a transtornos funcionais esofágico, e com clínica associável de disfagia. Quando sintomáticos, elegem tratamento cirúrgico (miotomias e/ou ressecções).