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_ 200
maio
A virada dos patrões
A troca de guarda na Fiesp e o fl erte dos
industriais com o PT, por Ricardo Balthazar
O epicentro místico
Por que Santa Catarina fascina tanto
os neonazistas, por Felippe Aníbal
“Não passo ninguém pra trás” 
As negociatas do maior grileiro de terras
da Amazônia Legal, por Allan de Abreu
A longa espera
Como a Comissão de Anistia tenta se reerguer 
depois de Bolsonaro, por Luigi Mazza
Tarifa Zero já!
A utopia do transporte público gratuito começa
a se tornar realidade, por Roberto Andrés
E mais:
Mulheres de presos no TikTok, por João Batista Jr.
River Claure recria O Pequeno Príncipe nos Andes
Um conto inédito de Jeferson Tenório
Poemas de Ana Martins Marques
A morte de María Kodama, por Alejandro Chacoff
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EXTRA! EXTRA! EDIÇÃO 200
QUASE IGUAL À 199 E MUITO 
PARECIDA COM A FUTURA 201
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A S A B E D O R I A I N D Í G E NA A S A B E D O R I A I N D Í G E NA 
P O D E M U DA R O M U N D O P O D E M U DA R O M U N D O 
Conheça o livro obrigatório para quem deseja se 
reconectar com a natureza, animais e tradições milenares
Extraordinário, inteligente e transformador.
The GuardianThe Guardian
Um hino de amor para o mundo.
Elizabeth GilbertElizabeth Gilbert
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piauí_maio 3
Na oficina do Brics, de Caio Borges
Quem fez o quê na edição de maio 
imagens Caio Borges
ABRIL DESPEDAÇADO 
A CPI e a volta da extrema direita ao centro da política nacional 
Fernando de Barros e Silva + imagem Allan Sieber
Mulher-gorila expõe a crueldade do machismo em monólogo que “abusa” do público masculino; 
Haroldo Ferretti, baterista do Skank, abre seu coração; fósseis sugerem que a humanidade 
chegou mais cedo às Américas; o traje tradicional da ABL se adapta a tempos de crise; 
estilista monta coleção de barracos judiciais; a arte em argila de Caruaru está em perigo; 
atriz de Vidas Secas, Maria Ribeiro faz 100 anos
imagens Andrés Sandoval
O BAILE DA FIESP 
Como os industriais paulistas, após longo namoro com o bolsonarismo, se reaproximaram do PT 
Ricardo Balthazar + imagem Nelson Almeida
ELDORADO DO EXTREMISMO 
Santa Catarina e a multiplicação de células neonazistas 
Felippe Aníbal + imagem Vito Quintans
OS FILHOS DO DELÍRIO 
Como as crianças nascidas de um projeto genético de Hitler 
enfrentam a descoberta sombria de suas raízes 
Valentine Faure + imagem Robert Capa
O GRILEIRO-MOR 
Como Altino Masson se apossou de tanta terra pública na Amazônia 
Allan de Abreu + imagem Marizilda Cruppe
A FILA DA REPARAÇÃO 
Os enroscos da Comissão de Anistia, que tenta se reerguer após Bolsonaro 
Luigi Mazza
UM MENINO VEIO DO CÉU 
Fotógrafo boliviano reinventa O Pequeno Príncipe nos Andes, com indígenas aimarás 
River Claure + texto Diego Mondaca
LOOK DO DIA NO XILINDRÓ 
Mulheres de presidiários se transformam em estrelas do TikTok e do Instagram
João Batista Jr. + imagem Flavia Valsani
A VEZ DA TARIFA ZERO
Como o transporte público gratuito passou de utopia 
a realidade e ajudou a salvaguardar a democracia no Brasil 
Roberto Andrés + imagem Beto Nejme
O PRAZER DAS PALAVRAS 
Os etimólogos e o amplo dicionário que a língua portuguesa não tem 
Paula Alkmim + imagem Beto Nejme
NA COMPANHIA DE RUFUS 
Deve haver alguma beleza nessa vida fodida de merda 
Jeferson Tenório + imagem Robinho Santana
DE UMA A OUTRA ILHA 
E não parece estranho que o próprio mar não enlouqueça?
Ana Martins Marques + imagens Carla Caffé
A cigana mandou queimar a capa da revista no quintal pra não assustar as almas puras
A HERANÇA 
María Kodama administrou a obra de Borges como se precisasse defendê-la de todos. 
O que ocorrerá agora que ela se foi? 
Alejandro Chacoff + imagem Juan M. Espinosa
capa 
colaboradores_4
questões vultosas_6
esquina_8
questões patronais_14
capítulos do nazismo I_22
capítulos do nazismo II_28
crimes fundiários_34
anais da ditadura_38
portfólio_44
questões carcerárias_52
questões republicanas_58
questões vernaculares_64
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A Volta do Fuzileiro, de Norman Rockwell, 1945
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colaboradores_maio
Caio Borges [Capa] é artista gráfico. 
Ilustrou o livro De A a Z, Eróticas, 
de Sheila Hafez, pelo selo Laranja 
Original (Neotropica).
Fernando de Barros e Silva [Abril 
despedaçado, p. 6] é repórter da piauí 
e apresentador do podcast Foro de 
Teresina. Ilustração de Allan Sieber.
Ricardo Balthazar [O baile da Fiesp, 
p. 14] é jornalista. Foi repórter e editor 
da Folha de S.Paulo e correspondente do 
Valor Econômico nos Estados Unidos. 
Andrício de Souza [Cartuns a partir da p. 20], 
cartunista e roteirista, publicou o livro de 
quadrinhos O Intestino Eloquente (Espirro).
Felippe Aníbal [Eldorado do extremismo, 
p. 22] é jornalista. Ilustração de Vito Quintans. 
Valentine Faure [Os filhos do delírio, p. 28] é 
escritora baseada em Paris e colaboradora 
do jornal Le Monde. Texto originalmente 
publicado na revista The Atlantic. ©2023 The 
Atlantic Monthly Group, Inc. Todos os direitos 
reservados. Distribuído por Tribune Content 
Agency. Tradução de Rogério Galindo. 
Allan de Abreu [O grileiro-mor, p. 34], 
repórter da piauí, é autor dos livros 
O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça 
Branca (Record). Colaboraram Jean-Noël 
Konan, de Abidjan (Costa do Marfim), e Luiz 
Fernando Toledo. Foto de Marizilda Cruppe.
Luigi Mazza [A fila da reparação, p. 38] 
é repórter da piauí. 
River Claure [Um menino veio do céu, 
p. 44] é fotógrafo e designer boliviano. As 
fotos integram o livro Warawar Wawa (Raya 
Editorial). Apresentação de Diego Mondaca. 
Tradução de Rubia Goldoni e Sérgio Molina.
João Batista Jr. [Look do dia no xilindró, 
p. 52], repórter da piauí, publicou A Beleza 
da Vida: A Biografia de Marco Antonio de 
Biaggi (Abril). Foto de Flavia Valsani.
Roberto Andrés [A vez da tarifa zero, 
p. 58] é urbanista e professor da UFMG. 
Fundador da revista Piseagrama e da 
iniciativa Nossa América Verde. Trecho 
do livro A Razão dos Centavos: Crise 
Urbana, Vida Democrática e as Revoltas 
de 2013, a ser lançado em junho pela 
Zahar. Ilustração de Beto Nejme.
Paula Alkmim [O prazer das palavras, 
p. 64] é jornalista com especialização em 
comunicação pública da ciência pela UFMG. 
Foi coordenadora de jornalismo na Rádio 
UFMG Educativa. Ilustração de Beto Nejme.
Jeferson Tenório [Na companhia de Rufus, 
p. 70] é escritor e!doutor em letras,!autor,! 
entre outros, de!Estela Sem Deus!e! 
O Avesso da Pele, ganhador!do prêmio 
Jabuti em 2021!(ambos pela!Companhia 
da Letras).!Ilustração de Robinho Santana.
Ana Martins Marques [De uma a outra ilha, 
p. 76] é poeta e autora de O Livro das 
Semelhanças, da Companhia das Letras. 
Poemas extraídos da plaquete De Uma 
a Outra Ilha, a ser lançada em junho na 
coleção Círculo de Poemas, publicada 
pelas editoras Luna Parque e Fósforo. 
Ilustrações de Carla Caffé. 
Alejandro Chacoff [A herança, p. 80] é 
escritor, ensaísta e editor de literatura 
da piauí. Autor do romance Apátridas 
(Companhia das Letras). 
Desenhos em homenagem à 200ª edição 
da piauí: Adão Iturrusgarai, Allan Sieber, 
Andrício de Souza, Ari Hisae, Caco Galhardo, 
Caio Borges, Carla Caffé, Carol Ito, Edson 
Ikê, Faw Carvalho, Gidalti Moura Jr., João 
Pinheiro, Laerte, Leandro Assis, Pedro Franz, 
Reinaldo Figueiredo, Robinho Santana, Val 
Pires, Valentina Fraiz, Vito Quintans.
Ilustrações de Esquina por Andrés Sandoval.
A ação faz referência aos 
marcos de !" de maio e #$ 
de novembro, propondo 
diálogos sobre a condição 
social da população negra. 
Oficinas, bate-papos e 
apresentações pelas unidades 
e plataformas digitais.
DE MAIO A NOVEMBRO 
SESCSP.ORG.BR!DO"#AO$%
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#NEGRITUDESESC
Paula Alkmim Ricardo Balthazar Luigi Mazza Jeferson TenórioAna Martins Marques Allan de Abreu
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#OBrasilVoltou
O Brasil voltou a cuidar da saúde,
da cultura, da sua natureza,
da sua gente. Voltou a combater
a fome, com programas e ações
para quem mais precisa. Voltou
a priorizar a educação e valorizar
os professores. Voltou a investir em
infraestrutura com a construção
de moradias e retomada de obras.
Voltou a respeitar o meio ambiente
e o seu povo e a ser respeitado
no exterior. E é só o começo,
vem muito mais por aí.
voltou.
Pra fazer mais
POR NOSSA GENTE. 
GOVERNO FEDERAL
100 DIAS DE
Confi ra as principais ações:
gov.br/obrasilvoltou
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fiscal à reforma tributária –, o que lhe 
confere hoje amplos poderes (além de 
uma paleta de cores bastante rica para 
que possa exercitar suas artes).
É dramático que a aquarela de Lula 3 
dependa nesse nível do pincel de um 
artista como Arthur Lira. A todo instan-
te, paira no ar a ameaça de que sua mão 
pesada (ou leve demais) venha danificar 
de forma indelével a paisagem. Mas 
Lira é um pintor que gosta de trabalhar 
sob encomenda. Cobra caro, e sabe de 
quem cobrar. Sua proeminência humi-
lha a cidadania, mas ele está longe de 
ser o pior dos problemas no momento. 
Logo depois do 8 de janeiro, o cientista social Marcos Nobre, autor do livro Limites da Democracia: De Junho de 
2013 ao Governo Bolsonaro, disse à Folha 
de S.Paulo que o país tinha uma chance 
histórica de isolar politicamente a ex-
trema direita. Vale citar: “Há uma oportu-
nidade sem igual para o sistema político, 
especialmente para o!governo Lula, en-
frentar e isolar essa extrema direita que 
quer o golpe já. É possível partir para uma 
defesa da democracia muito mais robusta 
do que a que foi feita até agora.” Menos 
de quatro meses depois, tem-se a sensa-
ção nítida de que essa oportunidade foi 
desperdiçada. Por várias razões.
É verdade que num primeiro momen-
to os Poderes encenaram o teatro da insti-
tucionalidade, como manda o figurino. 
Lula reuniu os governadores; o Congres-
so e o Supremo desempenharam seus 
papéis – e esse mínimo foi importante 
para demarcar o terreno. Logo, no entan-
to, a “defesa mais robusta da democracia” 
cedeu espaço às acomodações de praxe. 
Lula esvaziou a criação de uma "#$ 
no calor dos acontecimentos, quando 
havia se formado na opinião pública 
um sentimento quase unânime de re-
púdio aos vândalos. Se fosse instalada 
em fevereiro, na abertura do ano legis-
lativo, num ambiente ainda aquecido, a 
comissão seria um instrumento eficaz 
contra o golpismo. Haveria como trans-
formá-la num desdobramento da frente 
ampla pela democracia. 
Lula também evitou contrariar os mi-
litares, muitos deles àquela altura compro-
metidos até o pescoço com a sabotagem 
do novo governo. Exonerou com duas 
semanas de atraso o comandante do Exér-
cito que havia impedido a prisão dos 
manifestantes na noite do 8 de janeiro, 
contrariando uma determinação do mi-
nistro da Justiça, Flávio Dino. Manteve, 
contudo, à frente da Defesa um conser-
vador pusilânime como José Múcio, es-
colhido a dedo justamente para não 
melindrar os fardados. E praticamente 
não mexeu no Gabinete de Segurança 
Institucional (%&$), que havia se transfor-
mado pelas mãos do general Augusto 
Heleno, golpista contumaz, num ser-
pentário bolsonarista. 
A reação temperada do governo ti-
nha justificativas razoáveis. Lula quis 
evitar que o golpe bolsonarista viesse 
ocupar o centro da pauta política, amea-
çando paralisar a gestão que então se 
iniciava. Havia escombros demais acu-
mulados ao longo dos últimos quatro 
anos, além daqueles produzidos em 
poucas horas pela malta verde-amarela. 
As prisões em massa, os indiciamentos, 
o encarceramento de Anderson Torres, 
elo civil mais evidente entre Bolsonaro e 
os delinquentes, tudo isso pareceu ser 
resposta suficiente ao golpe por alguns 
meses. À falta de uma “defesa mais ro-
busta da democracia”, o temperamento 
intempestivo de Alexandre de Moraes, no 
Supremo Tribunal Federal, e a firmeza 
atuante de Flávio Dino, um orador de ta-
lento incomum, satisfizeram durante cer-
to tempo a demanda por justiça, reparação, 
punição dos criminosos. Essa fase acabou.
A criação da "#$ mista, na esteira das 
imagens que flagraram o general Gon-
çalves Dias, então chefe do %&$ de Lula, 
perambulando atônito pelo Palácio do 
Planalto, sem oferecer nenhuma resis-
tência aos invasores, representa evidente 
revés para o governo. A família Bolsona-
ro terá seu microfone. Damares Alves, 
Magno Malta, esses digníssimos repre-
sentantes do povo, terão voz, plateia e 
holofotes para dizer que menina veste 
rosa, menino veste azul, que é Brasil 
acima de tudo, Deus acima de todos, 
que a culpa é do #', que Lula é ladrão.
Criar tumulto no país e fabricar ma-
terial fantasioso para alimentar seus se-
guidores pelas redes sociais – eis dois 
objetivos bastante palpáveis para a extre-
ma direita na "#$. As conversas razoáveis 
sobre assuntos sérios, as discussões sobre 
políticas públicas, o arcabouço fiscal, as 
emergências sociais – tudo agora terá 
que disputar espaço com a artilharia dos 
jagunços do capitão no Congresso. 
 A "#$ do Golpe é o retorno do re-
calcado. A vitória eleitoral de Lula não 
é igual à vitória política da democra-
cia. Essa disputa ainda não acabou, e 
a extrema direita, que estava acuada 
na retranca, acaba de marcar um gol 
de contra-ataque. Entre as tantas ur-
gências brasileiras, derrotar politica-
mente o obscurantismo talvez seja a 
principal delas. Sem isso, não haverá 
Amazônia viva, não haverá menos ar-
mas e mais livros, não haverá redução 
da desigualdade. 
Sabemos que a viabilidade do governo 
depende de algum sucesso na economia, 
sem o que o resto tende a desmoronar. 
Mas o sentido histórico deste mandato 
é outro. Ao contrário do que supõem os 
senhores da imprensa, que se comovem 
mais com a autonomia do Banco Cen-
tral do que com o 8 de janeiro, a ques-
tão ainda é a democracia. J
C
omo dos casamentos e dos 
jogos do São Paulo, das comis-
sões parlamentares de inqué-
rito ("#$s) também se diz que 
a gente sabe como começam, 
mas não sabe como terminam. Também 
é verdade que não costumam acabar 
bem, como os casamentos e os jogos... 
Deixemos as comparações para lá.
As circunstâncias que envolvem a 
Comissão Parlamentar Mista de Inqué-
rito criada nos últimos dias de abril são 
únicas. A começar por seu objeto, que 
não diz respeito a eventuais malfeitos do 
governo em curso, como costuma ocor-
rer, mas a uma tentativa de golpe de 
Estado perpetrada por apoiadores do 
governo anterior, financiados e catequi-
zados em acampamentos ilegais protegi-
dos pelo Exército por meses a fio. Foram, 
na verdade, anos de realejo, se lembrar-
mos da insistência quase ininterrupta 
com que Jair Bolsonaro girou a manivela 
golpista, com palavras e gestos, durante 
todo o seu mandato. O inventário dos 
crimes que cometeu no exercício da Pre-
sidência não caberia neste artigo. Mais 
importante é frisar que a impunidade 
que o ex-presidente desfruta até hoje diz 
muito sobre a saúde, ou a debilidade, 
das instituições do país. Augusto Aras e 
Arthur Lira, esses grandes prevaricado-
res da República, entendem do assunto. 
Lira volta a ser personagem decisivo 
para arbitrar os rumos da "#$. Fortalecido 
pelo bloco que formou em torno de si, 
com nove partidos e mais de 170 deputa-
dos, o presidente da Câmara tem o poder 
de definir o perfil da comissão parlamen-
tar – se mais amigável ou se mais hostil 
aos interesses do governo. Além da ascen-
dência sobre as nomeações de pelo me-
nos 5 dos 16 parlamentares da comissão, 
Lira, como ninguém mais, pode facilitar 
ou dificultar a tramitação da pauta eco-
nômica no Congresso – do novo regime 
questões vultosas
A CPI e a volta da extrema direita ao centro da política nacional 
FERNANDO DE BARROS E SILVA 
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“ABRA OS PERNÕES, GOSTOSINHO!”
Mulher-gorila expõe acrueldade do machismo em monólogo que “abusa” do público masculino
absurdo! Por que você saiu de casa se 
não planejava mostrar o que interessa?!”
Cada vez mais afrontosa e destemida, 
a atriz sugere que os três homens fiquem 
de pé e se acariciem mutuamente. O de 
calça comprida não topa. Os de bermu-
da, ainda que embaraçados, aceitam 
compartilhar esfregadinhas nas costas. 
“Gosto quando vocês se pegam. Lindo, 
lindo!”, incentiva a artista. “Por que não 
se beijam?” Os rapazes, atônitos, suspen-
dem imediatamente os carinhos. A atriz 
se agarra à oportunidade e explica: “Mi-
nha peça acontece no limiar do cons-
trangimento e do terror. Mas apenas para 
metade da plateia... Para a outra metade, 
é só comédia, humor, curtição!”
Na verdade, o sarcasmo de King Kong 
Fran lava a alma de uns 80% do público. 
Desde a estreia, em novembro, as mulhe-
res ocuparam praticamente todos os as-
sentos dos teatros cariocas que receberam 
a montagem – o Ipanema, o Cesgranrio e 
o !" Investimentos, onde o monólogo es-
tará de novo neste mês, depois de passar 
por lá em março. Os poucos boys que 
ousam se defrontar com o espetáculo de 
setenta minutos dificilmente saem incólu-
mes da experiência. A protagonista inverte 
a ordem patriarcal e se transmuta em al-
goz dos “machos héteros” não somente 
porque assedia parte da audiência mascu-
lina. Ela também conta histórias reais de 
sexismo no showbiz, que desconcertam os 
marmanjos presentes. A intenção é fazê- 
los sentir empatia pelo sofrimento femini-
no. Claro que as espectadoras se entregam 
freneticamente à catarse e estimulam a 
artista o tempo inteiro, com uma profusão 
de gritos, assobios, gargalhadas e aplausos. 
Há, inclusive, as que antecipam certas fra-
ses da atriz, numa demonstração de que 
assistiram à peça mais de uma vez.
O boca a boca dentro e fora da inter-
net acabou tornando a encenação um 
inesperado sucesso. Dez mil pessoas já 
a prestigiaram – número elevadíssimo 
para os padrões brasileiros, sobretudo 
quando a produção é de baixo orçamen-
to. King Kong Fran custou 30 mil reais, 
garimpados numa vaquinha digital. 
E scrito e dirigido pela própria atriz e por Pedro Brício, o monólogo agrega várias linguagens: as do 
circo, do vaudeville, da performance e 
do cabaré burlesco. O espírito justi-
ceiro das redes sociais norteia to do o 
espetáculo, na medida em que a prota-
gonista adota um tom assertivo, lacra-
dor, e comanda um tribunal anár quico, 
onde nenhum homem goza da presun-
ção de inocência.
A montagem não tem exatamente 
uma trama. Em linhas gerais, apresenta 
a versão alongada de um velho quadro 
circense – o da Monga, mulher sen-
sual que vira gorila e ataca a plateia. Se 
a fera do passado apenas urrava, a do sé-
culo !!# fala pelos cotovelos e levanta 
sem trégua as bandeiras do feminismo. 
Curiosamente, quem se converte em 
gorila na peça é a palhaça Fran, alter 
ego de Rafaela Azevedo. A protagonis-
ta assume, portanto, duas facetas com-
plementares: a da macaca tagarela e a 
de uma clown tão mordaz quanto ego-
cêntrica, autoritária e perversa. Ela 
inicia a encenação numa jaula e rapi-
damente se liberta. Logo abaixo da 
cintura, exibe um dildo de 37 cm, ora 
utilizado como arremedo de microfo-
ne, ora como um simulacro de espada 
ou porrete. A música Dona do Prazer 
– adaptação de Toxic, sucesso de Brit-
ney Spears, gravada pelo grupo Forró 
na Veia – serve de trilha sonora. Um 
trechinho da letra: Bem que eu te avi-
sei/Para não me tocar/Cuidado, baby/
Você vai se queimar/É perigoso/Provar 
do meu amor. 
Carioca de Honório Gurgel, bairro 
periférico onde também nasceu a can-
tora Anitta, a atriz de 31 anos criou 
Fran em 2013, durante uma oficina 
de palhaçaria. Inspirou-se na mãe, que 
já morreu e padecia de uma doença 
mental grave, o transtorno de persona-
lidade limítrofe. “Ela não separava a 
fantasia da realidade. Dizia que iria 
telefonar para um galã de novela, por 
exemplo, e acreditava naquilo. Con-
versava horas pelo celular com absolu-
tamente ninguém. Era triste, singelo 
e engraçado. Tudo junto”, relembra 
a artista. “Minha mãe fazia coisas em 
casa que muitos atores não conseguem 
fazer em cena.”
Diferentemente dos palhaços tradi-
cionais, Fran evita pintar a face. Usa 
apenas uns cílios postiços enormes, 
uma peruca chanel preta e um batom 
vermelho, sempre borrado. Esforça-se 
para bancar a gata do pedaço, mas fre-
quentemente naufraga e soa desajeita-
da, excessiva ou ridícula. Entre 2018 e 
2019, a personagem estrelou o solo Fran 
World Tour, em que tentava executar 
diversos números de circo e fracassava.
 
Um terrível acontecimento está por trás do espetáculo que Rafaela Azevedo encabeça agora. Quan-
do tinha 21 anos, a atriz sofreu um es-
tupro. Ela se tratava com um osteopata, 
que a violentou durante uma consulta. 
“No momento da agressão, uma dúvida 
me atormentava: ‘Será que dei motivo 
para o cara se comportar assim? Será 
que agi de maneira inadequada?’ Eu 
me culpei... Por isso, não o denunciei.”
O ataque lhe deixou marcas profundas. 
“Meu útero adoeceu, parei de menstruar 
e senti cólicas horrorosas. Os sintomas 
me assombraram por um bom tempo.” 
Não bastasse, a moça se fechou para as 
relações amorosas. “Eu me enxergava 
como o problema. Então, pensava: qual-
quer homem que me atrair vai abusar de 
mim, já que sou fácil demais.”
Graças à psicoterapia e à leitura de 
ensaios feministas, a atriz reinterpretou 
o episódio. “Compreendi que posso rea-
gir. Os agredidos têm direito à violên-
cia. Por que nem cogitei esmurrar o 
médico na hora do estupro? Não seria 
impossível. Faço ginástica, cultivo os 
músculos, exercito minha agilidade. Só 
que, em vez de peitar o agressor, aceitei 
o papel de vítima como inerente à mu-
lher.” Uma década depois do ocorrido, 
com King Kong Fran, a artista final-
mente reagiu. J
Armando Antenore
 esquina
Inicialmente, a impressão é de que a atriz Rafaela Azevedo está fazendo um simples pedido. “Você... Sim, você 
mesmo. Por gentileza, poderia trocar de 
lugar com aquela moça?”, indaga a prota-
gonista do monólogo King Kong Fran 
para um jovem da plateia, num teatro do 
Rio de Janeiro. Surpreso, o rapaz de barba 
concorda sem reclamar. Ele usa camisa e 
bermuda claras. A atriz, posicionada no 
canto direito do palco, mira outro jovem 
e repete o apelo. Dessa vez, o alvo resiste. 
Também de bermuda, o homem não pre-
tende trocar de poltrona com mulher ne-
nhuma. “Ah, prefere continuar aí?”, 
certifica-se a artista. “Beleza. Mas você 
vai se arrepender...” Num piscar de olhos, 
o rapaz entende que não se trata de um 
pedido. É uma ordem, e só lhe resta ce-
der. “Método Paulo Freire... Funciona, 
viu?”, zomba a atriz.
O espetáculo mal começou e a estrela 
da noite já tem o público nas mãos. Ela 
desce languidamente do palco. Enver-
ga uma fantasia de gorila, bem peluda. 
A máscara do primata, no entanto, não 
lhe oculta o rosto. Repousa sobre a cabe-
ça da artista, como um boné. Os dois ra-
pazes estão, agora, em poltronas vizinhas, 
perto de um terceiro jovem, que traja 
uma elegante calça comprida. A atriz ca-
minha até o trio, equilibrando-se num 
salto plataforma de 10 cm, que a deixa 
com 1,80 metro de altura. Impetuosa, en-
cara um dos homens de bermuda: “Per-
não de fora, hein? E a camisa? Aberta 
no peito... Por que você se vestiu assim? 
É um código, né? Você deseja que a mu-
lherada avance. Confessa! Que tal dar 
uma levantadinha para todo mundo admi-
rar o material?” Completamente sem jeito, 
o jovem obedece. “Hmmmm... Resolveu 
meter o tímido, é?”, provoca a artista.
Ela aborda, então, o segundo rapaz 
de bermuda. “Outro gostosinho aqui. 
Você se incomodaria de abrir as pernas? 
Quero checar um negócio: a sua mala 
está marcando?”, pergunta com voz qua-
se ingênua, enquanto aponta o pênis do 
jovem. “Está marcando ou não? Preciso 
saber... Abra os pernões! Não está?! Que 
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BAQUETAS NA MESA
Haroldo Ferretti, baterista 
do Skank,abre seu coração
“Toda banda um dia acaba, me-nos os Rolling Stones.” Haroldo Ferretti dizia isso para si mes-
mo havia muito tempo. Mesmo assim, o 
baterista sentiu um baque forte quando 
seu companheiro de banda, o guitarrista 
e vocalista Samuel Rosa, avisou que pre-
tendia começar uma carreira solo, com 
novos parceiros e novas formas de com-
por. O anúncio foi feito em uma reunião 
de trabalho corriqueira, em uma tarde de 
agosto de 2019. Além de Ferretti e Rosa, 
estavam presentes o baixista Lelo Zaneti 
e o tecladista Henrique Portugal. O quar-
teto formava o Skank, uma das bandas de 
maior sucesso do pop rock brasileiro. 
Com o fim iminente do grupo, Fer-
retti passou a viver um “furacão de emo-
ções”. “Quando chega a hora, dá um 
vazio, uma coisa esquisita”, diz ele à 
piauí. A hora chegou em 26 de março 
passado, quando o Skank fez seu último 
show, no Estádio Mineirão, em Belo 
Horizonte, cidade onde a banda foi for-
mada, em 1991. Um público estimado 
em 50 mil pessoas acompanhou as três 
horas de apresentação. Em um misto de 
euforia e melancolia, os fãs ouviram hits 
como Te Ver, É uma Partida de Futebol, 
Jackie Tequila e Resposta. 
O baterista imaginava que, depois de 
uma noite como aquela, o quarteto se 
encontraria no camarim para lembrar 
seus êxitos e talvez até “estourar um 
champanhe e tocar a música do Ayrton 
Senna para comemorar”. Não foi o que 
aconteceu. “Brindamos com uma cerve-
jinha e falamos: ‘Pô, gente, valeu.’” Em 
retrospectiva, Ferretti acha que essa des-
pedida morna foi até adequada: “Você 
não solta foguete no velório de ninguém.”
Nos dias seguintes ao show final, o 
grupo de WhatsApp da banda silenciou. 
“A sensação que tenho é que todo mun-
do está com esse nó ainda na garganta”, 
diz Ferretti, que poucos dias depois da 
apresentação embarcou com a família 
para Londres. “Estou curioso para saber 
como vai estar meu coração, minha vida, 
minha cabeça daqui a um tempo.”
O coração, a vida e a cabeça de Fer-retti oscilaram entre a tristeza e a gratidão nos meses que antecede-
ram o show de despedida. Ele ainda ten-
tava superar o impacto provocado pela 
decisão de Samuel Rosa, principal com-
positor do Skank. Também se esforçava 
para “compreender as razões do outro” 
– e constatar, enfim, que não compreen-
dia nem mesmo suas próprias razões. 
Ele admite que manter a harmonia do 
quarteto depois da decisão do vocalista 
de encerrar a banda exigiu muito esforço. 
Recorrendo à incontornável analogia 
com o casamento, o baterista avalia que 
durante esse período os membros do 
Skank já estavam separados, embora vi-
vessem ainda na mesma casa. “Eu me 
policiei para não perder uma coerência 
que sempre tive em relação aos meus só-
cios, e para não ligar o foda-se”, afirma.!
Quando Samuel Rosa anunciou o 
fim do Skank, em 2019, a ideia era 
manter a banda em atividade ainda por 
um ano, para uma turnê de despedida. 
O prazo foi calculado também para 
cumprir os passos contratuais necessá-
rios à dissolução do grupo e para não 
deixar a equipe técnica do Skank sem 
emprego de uma hora para outra. Mas 
então a Covid adiou a turnê de 2020. 
Durante a pausa imposta pela pande-
mia, Ferretti se deu conta de que estava 
fazendo um “ensaio do que seria a vida 
depois, sem o compromisso do Skank”. 
Ele diz que foi “obrigado a entender que 
iria acordar na segunda-feira e não ia 
receber a programação do fim de sema-
na, não ia ter que pegar um avião ou um 
carro para ir a tal ou tal cidade”. Resul-
tado: “Na marra, aprendi, me acostumei 
com aquela ideia do fim.” 
Em março de 2022, quando a turnê 
de despedida finalmente teve início, as 
coisas se mostraram mais complexas do 
que ele pensou. “Parecia que cada show 
era o último. Era sempre carregado de 
uma emoção muito diferente da que a 
gente estava acostumado a sentir. E isso, 
sinceramente, me trazia uma sensação 
que, por Deus do céu, não era normal.” 
A decisão de Rosa tornou-se ainda 
mais incompreensível para Ferretti. “O 
Skank era tão produtivo e, porra, não é 
comum ver uma banda que consiga ser 
tão versátil.” Ele foi aceitando a ideia do 
fim do Skank à medida que a turnê pro-
gredia, mas teve uma recaída na virada 
do ano, quando se aproximava a despedi-
da no Mineirão. “A partir de janeiro, co-
mecei a sentir uma angústia gigante, um 
vazio. Foi péssimo”, diz. “Tentei achar as 
minhas formas de lidar com essa situação 
para não cair numa vala que pudesse ser 
prejudicial não só a mim, mas a todo 
mundo. Fiquei com medo de adoecer, 
entrei numa paranoia, mas seguimos.”
O dia 26 de março de 2023 chegou 
mais rápido do que ele esperava. Aos 
53 anos, Ferretti teve a sensação de que 
“os 32 anos de Skank haviam passado mui-
to rápido, de que a vida havia passado rá-
pido, de que a vida é mesmo um sopro”. 
Descrever o que sentiu no palco, em 
Belo Horizonte, não é fácil para ele. 
“Na hora em que sentei na bateria... Não 
sei se consigo explicar...”, diz, hesitante, 
para então se entusiasmar com a lem-
brança do público mineiro: “É clichê, 
mas parecia que cada um estava ali 
para nos dar um presente. Não era uma 
massa cinzenta de pessoas. Foi uma ca-
tarse, um negócio muito diferente. Só 
estando dentro do meu coração para 
sentir o que eu estava sentindo.”
O s ex-companheiros de banda pre-tendem se arriscar na carreira solo, mas Ferretti descarta essa possibili-
dade. Ele não fez planos detalhados para 
a vida pós-Skank. “Não vou ter pique de 
montar uma nova banda para tentar fa-
zer sucesso de novo. Não sou cantor, não 
sou compositor, não sou líder de banda. 
Minha posição é diferente, sempre tive 
consciência disso. É o lugar que eu quis: 
adoro ficar ali quietinho, nos bastidores.”
Sem pressa para se reorganizar profis-
sionalmente, ele se considera “pra lá do 
sucesso”, por tudo que o Skank alcançou. 
“Além disso, consegui ganhar grana”, 
acrescenta. “Não tenho uma corda no 
pescoço de ter que arrumar um emprego 
rápido para sobreviver.” Seus dois filhos 
– Júlia, de 23 anos, e João, de 20 – já têm, 
segundo o pai, “a vida deles”. “Agora, eu 
e minha mulher temos liberdade, a gente 
pode cuidar da gente”, afirma. 
Depois da viagem à Europa, o bate-
rista quer estudar produção musical e 
técnicas de gravação, para melhor uti-
lizar o estúdio que mantém em casa. 
“Sempre fui muito da prática e nunca 
tive tempo de parar para estudar. Sei 
que vou amar estudar isso.” 
Bem mais que o tempo/que nós perde-
mos,/ficou pra trás também o que nos 
juntou, diz a canção Resposta, do Skank. 
O tempo em que Ferretti esteve junto de 
Rosa, Zaneti e Portugal ficou para trás, 
e ele vai se permitir um período de des-
canso. “Vou sentir muita saudade”, diz. 
“Agora é dar o peso adequado para cada 
um desses sentimentos, para que isso 
não seja um problema para mim.” J
Silvana Arantes
A MARCA DA PREGUIÇA
Fósseis sugerem que a humanidade 
chegou mais cedo às Américas
C omo tem feito praticamente todos os verões nos últimos doze anos, o paleontólogo uruguaio Richard 
Fariña passou duas semanas, em feverei-
ro deste ano, escavando o sítio do Arroyo 
del Vizcaíno, nos arredores do município 
de Sauce, quase 40 km ao Norte de Mon-
tevidéu, no Uruguai. Milhares de fósseis 
de grandes mamíferos extintos já apare-
ceram ali desde 1997, quando os primei-
ros ossos vieram à tona em consequência 
de uma grande seca.
O sítio paleontológico fica embaixo do 
riacho (ou arroio) que lhe dá nome. A cada 
temporada, os pesquisadores precisam 
construir uma pequena barragem e des-
viar o curso do riacho, para que possam 
enfim abrir a escavação. Neste ano, eles 
eram aproximadamente quinze, entre co-
laboradores e alunos de Fariña na Univer-
sidade da República. Ficaram acampados 
nas imediações do sítio, e o paleontólogo 
era quem cozinhava para o grupo.
Quando apareceram os primeiros fós-
seis, os moradores locais estranharam. 
“Isso não é de boi”, disse um senhor ao se 
deparar com um osso comprido. E não 
era mesmo: pertencia a uma Lestodon, 
uma preguiça-gigante que podia medir 
quase 5 metros de comprimentoe pesar 
4 toneladas ou mais. O animal viveu na 
América do Sul durante a última Era 
Glacial e desapareceu por volta de 11,5 mil 
anos atrás, com outros mamíferos gigan-
tes que ficaram conhecidos como a me-
gafauna extinta. 
No Arroyo del Vizcaíno, foram en-
contrados vários desses animais. Vive-
ram naquela região o gliptodonte, um 
bicho que lembra um tatu de 1 tonelada 
com uma cauda pontuda; o mastodon-
te, um primo extinto do elefante; e o 
dentes-de-sabre, um felino de 2 metros 
de comprimento cujos caninos podiam 
medir mais de 20 cm. 
Quando os pesquisadores dataram o 
material, descobriram que os fósseis ti-
nham cerca de 30 mil anos. Até aí, nada 
de surpreendente. Mas algo notável se 
revelou quando um colaborador de Fa-
riña examinou de perto a clavícula de 
uma preguiça e encontrou marcas que, 
na sua avaliação, só podiam ter sido feitas 
por ferramentas de pedra fabricadas por 
humanos. Marcas similares apareceram 
também numa costela da Lestodon e em 
dezenas de outros ossos. Seriam um indí-
cio de que ali viveram humanos que tal-
vez comessem carne de preguiça-gigante. 
Não fosse por um detalhe: para boa parte 
dos arqueólogos, os primeiros humanos 
só chegaram ao continente americano 
entre 16 mil e 20 mil anos atrás – ou seja, 
muitos milênios depois da época em que 
aqueles ossos foram talhados.
Aos 65 anos, Richard Fariña é um ho-mem corpulento de farta cabeleira e barba grisalha. O cientista recebeu a 
piauí no começo de março num saguão 
da Universidade da República onde havia 
o esqueleto de uma preguiça-gigante e a 
carapaça de um gliptodonte descobertos 
no Uruguai. Falou em português fluente 
e com direito a mesóclise. Aprendeu a lín-
gua no final dos anos 1980, quando morou 
em Porto Alegre e fez mestrado na Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul.
Fariña explicou que as ferramentas de 
pedra costumam deixar marcas mais reti-
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líneas e em forma de !. Quando causadas 
por dentes de um animal, as marcas são 
irregulares e em forma de ". “Como a 
pedra é bem mais dura que o osso, a inci-
são é profunda e deixa uma deformação 
nas bordas” disse o paleontólogo. “O osso 
se comporta como se fosse plástico.”
As marcas misteriosas até poderiam 
ter outras causas. Os ossos talvez tenham 
sido pisoteados por outros animais. O de-
safio dos pesquisadores é descartar essa 
possibilidade acima de qualquer suspei-
ta. O uruguaio já calculou a probabilida-
de de todas as marcas identificadas nos 
ossos terem causas naturais, e concluiu 
que é baixíssima – um número que co-
meça com 0 e tem outros 43 zeros depois 
da vírgula e antes do 6, o último algaris-
mo. Num estudo de 2021, seu grupo re-
correu à inteligência artificial para 
interpretar a origem das marcas e, mais 
uma vez, concluiu que elas foram produ-
zidas por ferramentas de pedra. 
Alguns colegas não se convenceram. 
Desde 2014, quando o grupo de Fariña 
publicou seus achados numa revista bri-
tânica, várias refutações ao trabalho fo-
ram veiculadas na literatura especializada. 
Na crítica mais recente, publicada no ano 
passado na revista PaleoAmerica, oito 
cientistas de universidades norte-ameri-
canas apontaram fragilidades no estudo 
uruguaio. Para eles, trata-se do exemplo 
típico de um sítio formado por proces-
sos naturais, e não pela ação humana. 
Fariña e seus colegas publicaram na 
mesma revista uma réplica em tom 
meio desaforado, que fala de rigor na 
ciência e honestidade intelectual.
A vida dos uruguaios seria bem mais 
fácil se eles achassem no sítio as ferra-
mentas que produziram aquelas mar-
cas. Já apareceu ali uma peça que tem 
jeito de ser um raspador, mas nada pare-
cido com as facas de pedra que devem 
ter sido usadas para deixar aquelas mar-
cas, quem sabe tirando a carne dos os-
sos. Algumas peças notáveis apareceram 
nas escavações deste ano, mas é cedo 
para cravar que eram ferramentas. “Ain-
da estão sendo analisadas”, disse Fariña.
O Arroyo del Vizcaíno se junta a ou-tras ocupações de idade parecida espalhadas pelo continente ameri-
cano. Na Serra da Capivara, no Sul do 
Piauí, há vários sítios com mais de 20 mil 
anos de idade, sendo que um deles passa 
dos 40 mil. Em Santa Elina, em Mato 
Grosso, há indícios da presença humana 
com até 27 mil anos – incluindo ossos de 
preguiça-gigante modificados por ferra-
mentas. Em Chiquihuite, no Norte do 
México, há uma caverna a 2,7 mil metros 
de altitude que pode ter sido povoada há 
30 mil anos. Em comum, esses sítios têm 
também o fato de serem todos contesta-
dos por parte da comunidade científica. 
Enquanto não aparecer uma prova mais 
firme da presença humana no Arroyo del 
Vizcaíno, a situação não deve mudar. 
Fariña não se incomoda com as críti-
cas nem faz questão de convencer os 
incrédulos. Só não abre mão de ver as 
marcas de ossos tratadas com seriedade 
pelos seus pares. O paleontólogo gosta 
das controvérsias e acha que elas abrem 
espaço para a circulação de novas ideias. 
“Na ciência é bom deixar abertas todas 
as portas, porque tu não sabe por qual 
delas vai ter que atravessar”, disse Fariña. 
E a porta da chegada humana ao conti-
nente há mais de 25 mil anos, segundo 
ele, “está ficando escancarada”. J
Bernardo Esteves
REVOLUÇÃO NO FARDÃO!
O traje tradicional da ABL se 
adapta a tempos de crise
#
D iógenes Cardoso retira da caixa os fios de ouro, dispostos em um ar-ranjo que lembra um rabo de ca-
valo. “Olha só o peso”, diz o alfaiate de 
82 anos, ao passar o conjunto para as 
mãos do interlocutor. A cena traz um 
toque de melancolia: em 2018, o profis-
sional veterano perdeu a exclusividade 
que mantinha desde 2005 de confeccio-
nar os fardões dos integrantes da Acade-
mia Brasileira de Letras ($%&). #
A quebra do monopólio representou 
também o rompimento de uma tradição: 
não há mais ouro nos fardões. O que re-
luz no peito dos recém-chegados à $%& 
são paetês aplicados sobre o bordado. 
“Não tem ouro”, sentencia Cardoso ao ver 
fotos do novo modelo. Dependendo da 
incidência da luz, os fios produzem refle-
xos vermelhos ou verdes, mas não doura-
dos. O alfaiate também usava paetês, mas 
dava o acabamento com fios de ouro.
O fim da “era do ouro” começou com 
a posse do poeta e compositor Antonio 
Cicero, que optou por uma solução casei-
ra e mais barata. O novo fardão saiu do 
ateliê de seu marido, o figurinista Marce-
lo Pies, que há mais de vinte anos atua no 
cinema e no teatro. Fernanda Montene-
gro, Gilberto Gil, Godofredo de Oliveira 
Neto e Ruy Castro também entraram na 
academia com o modelo de Pies.
A mudança foi impulsionada pelo fim de outra tradição: há menos de dez anos, depois de alguns questiona-
mentos sobre o uso de verbas públicas, 
governos estaduais e prefeituras deixa-
ram de doar o traje de seus filhos torna-
dos imortais – um gasto público que não 
é mais aceitável em tempos de austerida-
de fiscal. Atas de sessões realizadas em 
2017 mostram que os acadêmicos discu-
tiram novos meios para financiar a roupa 
coruscante dos colegas novatos. As pro-
postas não avançaram. Como argumen-
tou na época o jornalista Cícero Sandroni, 
o problema é do acadêmico, não da aca-
demia. Desde então, alguns eleitos banca-
ram o traje com recursos próprios; outros 
o receberam de amigos, empresas ou en-
tidades profissionais.#
A diferença de preços entre os fardões 
de Cardoso e de Pies é grande. O novo 
sai por 30 mil reais. O de fios de ouro por 
quase o dobro e chegou a custar 78 mil 
reais na época do mecenato oficial – o 
alfaiate alega que os governos atrasavam 
o pagamento e exigiam custosas certi-
dões. Pies não respondeu aos pedidos de 
entrevista feitos pela piauí. Um amigo do 
estilista que o consultou sobre o tema 
confirma que os bordados de seu fardão 
são feitos com fios metalizados, mas res-
salvou que a falta do ouro não justifica a 
diferença de preço (segundo Cardoso, 
na sua última compra, cada grama do 
metal custou 3,8 mil reais). 
Presidente da $%&, o jornalista Merval 
Pereira não vê problemas na mudança. 
“O fardão mudoucom o tempo”, diz. Ele 
lembra que o escritor Ariano Suassuna 
encomendou seu traje a uma costureira 
e a uma bordadeira do Recife.#Machado 
de Assis, primeiro presidente da $%&, 
nunca vestiu fardão. O traje só foi intro-
duzido na instituição em 1910 – dois 
anos depois da morte de Machado –, na 
posse do escritor e jornalista Paulo Barre-
to, o João do Rio. Tornou-se obrigatório 
desde então, embora as normas para sua 
confecção só tenham sido oficializadas 
no regimento de 1964: deveria ter “bor-
dados a ouro, imitando louros”. 
As normas foram sendo relaxadas com 
o passar dos anos, como se pode constatar 
comparando três trajes mantidos no acer-
vo da $%&. Nos fardões do poeta e filólogo 
Amadeu Amaral (empossado em 1919) e 
do jurista, historiador e político Afonso 
Arinos de Melo Franco (cuja posse foi em 
1958), os louros são feitos inteiramente 
com fios de ouro. Já o#fardão do jornalista 
e escritor Carlos Heitor Cony, empossado 
em 2000, tem fios do metal apenas nos 
acabamentos, tal como faz#Cardoso.#
Houve acadêmicos que propuseram a extinção do fardão, como o poeta e deputado Afonso Celso, que acha-
va o traje pouco adequado ao nosso clima. 
Em 1928, o antropólogo Roquette-Pinto 
tentou, e não conseguiu, assumir sua ca-
deira sem envergar o uniforme. O poeta 
Manuel Bandeira, que não gostava do 
fardão, só o usou na sua posse. Em 1997, 
durante uma reunião da $%&, o também 
poeta Lêdo Ivo revelou que Bandeira 
usara um traje emprestado. Depois de 
ganhar alguns quilos, o romancista João 
Ubaldo Ribeiro deixou de ir às posses de 
acadêmicos e contribuiu para o anedotá-
rio em torno do uniforme. “Dizia que o 
fardão ficou tão apertado que ele se sen-
tia um queijo provolone quando o abotoa-
va”, conta a escritora e acadêmica Ana 
Maria Machado.#
A adoção da roupa com louros doura-
dos foi iniciativa do jornalista e escritor 
Medeiros e Albuquerque, com o propósi-
to de deixar a $%& mais parecida com seu 
modelo, a Academia Francesa. Em mais 
uma inconfidência nas sessões da acade-
mia brasileira, o romancista Josué Mon-
tello contou aos colegas, em 1993, que 
Medeiros e Albuquerque tinha razões 
ocultas para imitar os franceses: funcio-
nários da alfândega brasileira confun-
diam o fardão com o traje de gala usado 
por diplomatas e assim liberavam o ilustre 
passageiro sem revista de bagagem. “As 
coisas dele passavam tranquilamente”, 
disse Montello. Até onde se sabe, não ha-
via tesouros das arábias entre essas coisas.#
Em 1977, com a eleição de Rachel de 
Queiroz, primeira mulher a entrar na 
$%&, foi necessário criar uma versão femi-
nina do fardão. Foi adotado um vesti-
do longo com bordado em torno da gola. 
O modelo seria substituído, em 2010, por 
um parecido com o dos homens, dese-
nhado pelo estilista Guilherme Guima-
rães. A troca não foi pacífica. “Fui voto 
vencido”, lamenta Ana Maria Machado, 
que considera o vestido mais leve e fres-
co.#Novos imortais elogiam o traje assina-
do por Pies. Gilberto Gil afirmou que o 
considera elegante; Ruy Castro disse que 
ele é “muito confortável”. Para o roman-
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cista Godofredo de Oliveira Neto, o traje 
é “supercaprichado e bem cortado”.
Em seu ateliê com vista para a !"# – 
fica a 120 passos do Petit Trianon, sede 
da instituição, no Centro do Rio –, cer-
cado de ternos em produção e de fotos 
ao lado de acadêmicos, Diógenes Car-
doso admite ter ficado surpreso – mas 
não magoado – com a adoção do mode-
lo concorrente. Faz questão de lembrar 
que, no ano passado, foi dele a roupa que 
o neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho 
vestiu na posse. Numa das prateleiras de 
seu local de trabalho, repousam três pe-
ças de gabardine verde-escuras, material 
para a confecção de três fardões. “Se eles 
vierem...”, suspira o alfaiate, sonhando 
com os próximos imortais. J
Fernando Molica
MODA, CÓPIA E TRETA
Estilista monta coleção 
de barracos judiciais
Nati Vozza é um fenômeno. Paulista de Campinas, ela foi uma pioneira dos blogs de moda, com o Glam-
4You. Linda e bem articulada, tornou-se 
uma das primeiras influenciadoras a 
criar a própria grife, em parceria com 
Antonio Junqueira, seu marido na épo-
ca. Lançada em 2012 como by$% e hoje 
chamada apenas $%, a marca faz roupas 
para mulheres ricas. Em 2020, foi adqui-
rida por 210 milhões de reais pelo Grupo 
Soma, um dos maiores conglomerados 
de moda do Brasil – Animale, Farm e 
Hering estão em seu portfólio. 
Hoje divorciados, Vozza e Junqueira 
seguem no comando da $%, que alcançou 
uma receita bruta de 381,4 milhões de 
reais em 2022, um crescimento de 38,1% 
em relação ao ano anterior. A grife tem 
dezesseis lojas próprias, vende suas peças 
online e está nas prateleiras de noventa 
lojas multimarcas em todo o Brasil.
Enquanto isso, com 1,4 milhões de 
seguidores no Instagram e 320 mil no 
TikTok, a criadora da $% suscita contro-
vérsia nas redes. Suas brigas com outras 
influenciadoras foram parar no Judiciá-
rio, em três processos rumorosos. 
Num recente vídeo promocional da $%, a influenciadora Mônica Salga-do ironizou grifes que recorrem ao 
“ativismo” para “se legitimar”. Pegou 
mal: o Grupo Soma vangloria-se de plan-
tar mil árvores por dia. Na surdina, a em-
presa fez a peça publicitária com Salgado 
sumir das redes sociais. Uma diretora do 
Soma disse no Instagram que o vídeo 
“não reflete os valores do grupo”. 
Vozza engoliu a reprimenda em silên-
cio, o que não é do seu feitio – como 
bem sabe a publicitária Camila Toledo, 
da conta “Camila Fashion Tips”, com 
66 mil seguidores no Instagram. Em 
março, Toledo cotejou vestidos do esti-
lista Reinaldo Lourenço com peças pa-
recidas do norte-americano LaQuan 
Smith e da marca italiana Bottega Vene-
ta. Antes disso, apontou cópias de outras 
grifes estrangeiras feitas pelas brasileiras 
Skazi, Agilitá, Iorane – e $%. “Ela come-
çou copiando muito a Cris Barros, grife 
que também faz parte do Grupo Soma”, 
diz Toledo, sobre Vozza. “Mas adora Isa-
bel Marant, Courrèges, Givenchy...” 
Em 2020, Vozza entrou na Justiça 
com um pedido para que Toledo não 
mais citasse o seu nome e sua grife. O juiz 
Guilherme Ferreira da Cruz acatou as 
acusações, afirmando que houve “uso in-
devido do nome, da imagem e da voz” da 
estilista. A decisão foi reformada em uma 
instância superior, mas ficou mantido o 
veto à citação do nome de Vozza e de sua 
marca. Para driblar a ordem judicial, To-
ledo se refere à $% como byXerox. 
A disputa aguarda julgamento de re-
curso pelo &'(. “Uma influenciadora 
com milhões de seguidores, que faz da 
exposição de sua vida uma forma de 
gerar valor de mercado para a sua em-
presa, pode não querer ser alvo de críti-
cas?”, questiona a advogada Letícia 
Soster Arrosi, que representa Toledo. 
A defesa de Vozza diz que Toledo abu-
sou da liberdade de expressão. “Camila 
chegou a fazer 84 postagens em dois 
meses contra a marca e a pessoa física 
da Nati, usando termos pejorativos, 
como Raivozza e Trevozza”, diz a advo-
gada Priscila Cortez de Carvalho.
Formada em farmácia, Priscilla Re-
zende chacoalhou a internet entre os 
anos de 2011 e 2013, depois que criou o 
blog Blogueira Shame para revelar os bas-
tidores de uma profissão que ainda estava 
no berçário: a de influenciadora. “As me-
ninas faturavam alto com publicidade, 
fingindo estar dando dicas de amigas para 
as suas seguidoras”, conta Rezende, que 
na época não revelava a sua identidade.
O Blogueira Shame atingia entre 2 e 
3 milhões de visualizações por mês. Ta-
manha repercussão fez com que fosse 
responsável pela primeira autuação do 
Conselho de Autorregulamentação Pu-
blicitária (Conar) sobre publicidade di-
gital no Brasil, em 2012. Revelou que a 
Sephora tinha contratado as blogueiras 
Lala Rudge, Mariah Bernardes e Thás-
sia Naves para fazerem anúncio velado 
de um delineador da Yves Saint Lau-
rent. O caso ficou conhecido ironica-
mente como “mensalão da moda”. 
Rezende interrompeu o blog algum 
tempo depois,mas em 2020, quando es-
tava em quarentena no sítio de sua famí-
lia em Minas Gerais, resolveu criar uma 
conta no Instagram chamada “Desin.
Fluencer”, abordando o universo das in-
fluenciadoras. A fim de fazer uma grana, 
ela passou a cobrar de seguidores que 
quisessem fazer parte de seus “melhores 
amigos”, recurso do Instagram Stories 
para mostrar postagens a pessoas selecio-
nadas. Só que publicou ali intimidades 
sobre o divórcio de Vozza, usando termos 
chulos, e a mensagem vazou do grupo 
exclusivo. “Eu estava nervosa com a pan-
demia”, justifica-se Rezende. A criadora 
do $% apelou à Justiça, e Rezende foi 
condenada a pagar 40 mil reais (em valo-
res atuais). No fim de 2021, o Instagram 
tirou o “Desin.Fluencer” do ar, por su-
postamente infringir suas regras. Rezen-
de briga na Justiça para reativar o perfil.
Jéssica Belcost, mais uma influencia-
dora do Instagram, com 592 mil seguido-
res, comprou por 3 mil reais uma calça de 
couro da $% e desconfiou do material 
depois que um passante do cinto se sol-
tou. Resolveu falar disso na rede e acabou 
processada por Vozza. 
Uma perícia judicial atestou que a par-
te externa da calça era feita de couro, mas 
a interna, de elastano. Pelo uso da palavra 
“falso” em uma postagem sobre a calça, 
Belcost foi condenada a pagar 5 mil reais 
de indenização. O caso aguarda julga-
mento em segunda instância. Em contra-
partida, Toledo e Belcost processaram 
Vozza por danos morais, mas perderam. 
No Reclame Aqui, plataforma criada 
para consumidores relatarem problemas, 
a $% consta na categoria “não recomen-
dada”. De quarenta reclamações entre 
outubro de 2022 e março deste ano, ne-
nhuma foi respondida pela grife.
 
N ati Vozza ainda encontra tempo para cultivar haters com posta-gens descalibradas, devido ao seu 
comportamento. Ao elogiar a eficácia 
de um bronzeador, ela afirmou ter mu-
dado de “raça”. Durante a pandemia, 
questionou a rapidez com que foi cria-
da a vacina contra a Covid e disse que 
o lockdown iria “matar mais do que o ví-
rus”. Também precisou pedir desculpas 
por ter relacionado marcas que esta-
riam copiando as suas peças com “fá-
bricas de chão sujo” do bairro do Bom 
Retiro, em São Paulo.
Para a advogada de Vozza, não con-
cordar com determinado posiciona-
mento político não dá direito a ninguém 
de fazer ataques pessoais. “O argumen-
to de que, por ser uma pessoa pública, 
pode ser xingada não tem cabimento.” 
Vozza em nenhum processo contes-
tou o fato de ser acusada de copiar esti-
listas estrangeiros. “Esse não é o objeto 
dos processos. Coincidências podem 
acontecer, e a moda está cheia disso”, 
diz a advogada. Camila Toledo rebate: 
“Qual é a diferença entre as roupas 
vendidas pela Shein e as dela [Vozza], 
que faz peças parecidas, só que custan-
do 1 mil reais?” J
João Batista Jr.
OUTRO OURO NEGRO
A arte em argila de Caruaru 
está em perigo
N o princípio era o barro. Foi graças ao solo rico que o Alto do Moura, bairro de Caruaru, ci-
dade do agreste pernambucano, come-
çou a ser povoado. Por volta de 1900, 
agricultores de regiões vizinhas foram 
atraídos por sua terra fértil banhada pelo 
Rio Ipojuca. O local abrigava também 
uma abundante jazida da argila e, com o 
tempo, esse material levou os moradores 
a trocarem a agricultura pelo artesanato. 
O amontoado de ruas ficou conhecido 
como “Terra dos Ceramistas” e foi lá que 
viveram os mestres Vitalino (1909-63) e 
Galdino (1929-96), precursores das artes 
figurativas em barro no Brasil. 
Logo na entrada do bairro, um por-
tal exibe o seu título principal, conferi-
do pe la Unesco: “Bem-vindo ao Alto do 
Moura, o maior centro de artes figura-
tivas das Américas.” As ruas calmas são 
repletas de ateliês. Pelas portas e janelas 
abertas se vê as mais diversas figuras de 
cerâmica dispostas em mesas, cadeiras 
e pranchas: casinhas e igrejas, bois e cães, 
lavradores, músicos e trabalhadores com 
roupas de padrões geométricos multico-
loridos. De acordo com a Associação 
dos Artesãos em Barro e Moradores do 
Alto do Moura (Abmam), cerca de oito-
centos ceramistas vivem atualmente da 
tradição do barro, passada de geração 
a geração. 
Para a modelagem de peças nas mais variadas dimensões –)desde figuras minúsculas cujos detalhes só se en-
xerga com lupa até figuras humanas em 
tamanho natural –, o barro precisa ter 
características específicas, como as en-
contradas nas margens do Rio Ipojuca. 
Essas jazidas locais, porém, estão quase 
esgotadas, de acordo com uma análise do 
geógrafo Laudenor Pereira da Silva.
Não foi o artesanato que as exauriu: 
olarias da área utilizam a argila dos ter-
renos para produzir telhas e tijolos des-
de os anos 1950. Houve épocas em que 
essas empresas até proibiram os arte-
sãos de terem acesso a sua matéria-pri-
ma – que devido à cor escura, recebeu 
o epíteto de “ouro negro” (normalmen-
te associado ao petróleo).
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Proveniente de fenômenos geológicos 
que duram milhares de anos, o barro só 
pode ser encontrado em partes da mar-
gem do rio. Até hoje, três reservas foram 
utilizadas pelos moradores do Alto do 
Moura. A primeira, comprada pelo gover-
no do estado, foi cedida para a comunida-
de de artesãos em 1981. O esgotamento da 
área ocorreu rapidamente, antes da libera-
ção da segunda jazida, adquirida em 1985 
e que acabou por volta de 2007. No mes-
mo ano, o governo comprou a atual reser-
va, de 4 hectares, também doada aos 
artesãos. Contudo, segundo relatos dos 
moradores, não há nenhuma proteção da 
jazida. Como sua porteira e suas cercas 
estão quebradas, qualquer um consegue 
ter acesso ao local, inclusive as olarias. 
Acredita-se que a argila dessa terceira 
jazida vá durar pouco mais de vinte anos 
– o que precisa ser confirmado por novos 
estudos geológicos. Mas os artesãos di-
zem que a situação é pior.!“Se retirásse-
mos só da área que pertence à associação, 
o barro já tinha acabado há muito tem-
po”, diz o artesão Helton Rodrigues, presi-
dente da Abmam. “Hoje em dia, tiramos 
só 10% do que utilizamos dessa jazida. 
Os outros 90% vêm de terrenos particu-
lares [à beira do Rio Ipojuca], mas a qua-
lidade é duvidosa.” A falta de estudos 
sobre o solo da região dificulta a desco-
berta de outras reservas que podem exis-
tir nos 320 km de percurso do rio.
Atendendo à reivindicação dos mora-
dores e da associação, a Prefeitura de 
Caruaru anunciou, no ano passado, a 
compra de um terreno que seria destina-
do à extração do barro. Mas até agora só 
existe a promessa da então prefeita Ra-
quel Lyra ("#$%), hoje governadora de 
Pernambuco. A doação ainda não foi 
oficializada, e os oitocentos artesãos, 
cuja renda depende inteiramente do 
barro, estão entregues à própria sorte.
Discípula e afilhada de Mestre Galdi-no, Cleonice Otília, de 65 anos, não acredita na sorte. Conhecida como 
Nicinha, a artesã começou a moldar o bar-
ro ainda criança, para ajudar no apertado 
orçamento da família. Foi graças ao barro 
que pôde comprar sua casa e sustentar seu 
filho após a morte precoce do marido. 
“O diploma que eu tenho é o bolo de 
barro. O meu ouro negro. A minha caneta 
sem bico”, recita Nicinha, que estudou até 
a quarta série e é poeta. No ano de 2021, 
ela teve um poema publicado pela primei-
ra vez, em uma coletânea intitulada Asas 
da Palavra do País de Caruaru. Agora está 
trabalhando em seu próprio livro. “Não 
aprendi a ler na escola, mas, através da 
arte do barro, até poesia eu faço”, diz. Suas 
esculturas de formas alongadas e imagina-
tivas quase sempre vêm acompanhadas de 
poemas que as explicam e reinventam.!
Mestre Galdino, Edvard Munch e Fri-
da Kahlo são alguns dos artistas que inspi-
ram Nicinha, além, é claro, de suas 
companheiras artesãs do Alto do Moura. 
Líder nata, ela fundou o grupo de mulhe-
res Flor do Barro, que realiza cursos e ofi-
cinas sobre a arte ceramista para as novas 
gerações. O grupo já recebeu importantes 
distinções estaduais, como o Prêmio Aria-
no Suassuna de Cultura Popular e Dra-
maturgia, em 2019, e o PrêmioCulturas 
Populares, em 2018. Na luta pelo reco-
nhecimento do trabalho feminino, o Flor 
do Barro protesta contra o fato de, quase 
sempre, somente homens serem reconhe-
cidos pelo título de mestre artesão. 
Tudo o que Nicinha construiu até 
hoje veio da intimidade entre suas mãos 
e o “ouro negro”. “A gente sobrevive da 
arte do barro. Precisamos saber quanto 
tempo ainda temos, e precisamos princi-
palmente de uma nova jazida, com estu-
dos que comprovem se ela é boa ou não”, 
diz. “Para que nossa arte não morra, pre-
cisamos ter o que deixar para as próximas 
gerações.” Esse é o único momento em 
que o rosto de Nicinha, cheio de peque-
nas rugas que atestam suas muitas risa-
das, deixa a tristeza transparecer. J
Maria Júlia Vieira
UM SÉCULO SOB O SOL
Atriz de Vidas Secas, 
Maria Ribeiro faz 100 anos
Aquela mulher que se arrasta pelo ser-tão no filme Vidas Secas, carregando o filho mais novo e com um baú de 
folha na cabeça, completou cem voltas ao 
redor do Sol no último dia 25 de março. 
Ela hoje mora em Genebra, na Suíça, mas 
nasceu cercada pela Caatinga, paisagem 
do livro de Graciliano Ramos e do filme 
homônimo de Nelson Pereira dos Santos. 
Seu povoado natal, Boqueirão, no municí-
pio baiano de Sento Sé, foi inundado nos 
anos 1970 para a criação do lago da barra-
gem de Sobradinho. No lugarejo hoje sub-
merso, começou o enredo singular que é 
a vida centenária da atriz Maria Ribeiro 
(no registro civil, Maria Ramos da Silva). 
Caçula de uma família de sete ir-
mãos, Ribeiro conta que tinha só 3 anos 
quando deixou Boqueirão, onde os pais 
eram trabalhadores rurais. Foi viver em 
Juazeiro, na Bahia, e depois em Pirapo-
ra, em Minas Gerais, com um casal de 
tios mineiros que cuidaria dela até a ida-
de adulta. Quando tinha 15 anos, mu-
dou-se com eles para o Rio de Janeiro. 
No Rio, trabalhou em fábricas e tipo-
grafias, até se fixar na Líder Cine La-
boratórios, onde chegou a chefe de 
expedição. A empresa fazia revelação de 
filmes e tinha entre seus clientes os jo-
vens diretores que criariam o Cinema 
Novo. “Eles me entregavam o filme para 
revelar, e eu entregava o copião. Tinham 
mais contato comigo do que com o dono 
do laboratório”, lembra Ribeiro. 
Ela nunca pensara em ser atriz, mas, 
aproximando-se dos 40 anos no início dos 
anos 1960, foi convidada por Pereira do 
Santos, durante um intervalo de almoço 
na Líder, para interpretar Sinha Vitória em 
Vidas Secas, o quinto longa-metragem do 
diretor (a tendência de buscar amadores 
para papéis centrais ganhou força no Ci-
nema Novo). “Nelson, peça tudo, menos 
isso”, disse ela. Mas ele estava convicto de 
ter encontrado nos traços e na firmeza da 
funcionária os atributos ideais para a com-
panheira do retirante Fabiano, persona-
gem de Átila Iório, ator já experiente. 
Ela cedeu à insistência do diretor. Os 
quatro sócios da Líder relutaram em libe-
rar sua funcionária, mas foram convenci-
dos por um dos produtores do filme, 
Herbert Richers, cliente assíduo do labora-
tório. Para não confundirem o sobrenome 
Ramos de Maria com o do escritor Graci-
liano, o dela foi mudado para Ribeiro. 
A s filmagens em Palmeira dos Ín-dios, no agreste alagoano, cidade onde Graciliano Ramos foi prefei-
to, duraram quatro meses. A equipe mo-
rou em um alojamento improvisado. 
“Como o filme era muito pobre, não 
tinha uma tenda no set para proteger do 
Sol”, conta Ribeiro à piauí, por telefone. 
“Eu me cobria com uma toalha de ba-
nho e ficava acocorada embaixo de um 
pé de catingueira esperando a minha 
vez de entrar em cena.” 
Houve outros desafios. Um deles foi a 
cena em que Sinha Vitória mata o papa-
gaio de estimação para comer. Ribeiro 
relembrou certa vez como a sequência foi 
feita: “Eu, os meninos e Fabiano comendo 
raiz seca com um restinho de farinha. E o 
papagaio em cima do baú, zanzando pra 
lá e pra cá. Quando Nelson disse: ‘Cena!’, 
eu fiquei tão assombrada que peguei o 
papagaio pelo pescoço e apertei, torcendo 
e não torcendo ao mesmo tempo para não 
matar. Nelson ficou apavorado e disse: 
‘Corta!’ Joguei o papagaio pra lá e ele caiu 
se debatendo. Pegaram, molharam e o 
descarado viveu. Ficou um dia tristinho, 
mas depois caiu na malandragem.” 
Lançado em 1963, Vidas Secas foi 
exibido no ano seguinte no Festival de 
Cannes, onde ganhou o prêmio da Orga-
nização Católica Internacional do Cine-
ma (Ocic). Lá, despertou preocupação 
com outro animal: uma condessa italiana 
acionou a Sociedade Protetora dos Ani-
mais para protestar contra o sacrifício da 
cadela Baleia. A reclamação foi tão vee-
mente que a Air France se dispôs a levar 
Baleia a Cannes, para provar que sua 
morte fora só encenação. Ao que consta, 
a cadelinha desfilou no festival toda facei-
ra, com um traje de gala azul- marinho e 
uma camélia branca. “Eu não fui a Can-
nes, mas Baleia foi”, diz Ribeiro. 
Em 1965, a agora atriz profissional iria 
a Cannes com A Hora e a Vez de Augusto 
Matraga, de Roberto Santos, no qual ela 
fez o papel de Dionóra. A essa altura, já 
havia deixado o emprego no laboratório. 
Na sequência, trabalhou em Os Herdeiros 
(1970), de Cacá Diegues; Soledade – A Ba-
gaceira (1976), de Paulo Thiago; Perdida 
(1974), de Carlos Alberto Prates Correa, e 
As Tranças de Maria (2003), de Pedro Car-
los Rovai. Ela conta que teve ainda uma 
curta passagem pela tevê, em O Rei do 
Gado (1996), da Rede Globo, mas suas 
cenas teriam sido cortadas na edição final. 
Com Nelson Pereira dos Santos, fez 
mais dois filmes: O Amuleto de Ogum 
(1974) e A Terceira Margem do Rio (1994). 
“Meu relacionamento com ele era mara-
vilhoso e vinha do laboratório, quando 
apresentou os primeiros filmes, sempre 
muito tímido, acanhado. Senti muito a 
morte dele”, diz. O diretor de Vidas Se-
cas morreu em abril de 2018. 
M aria Ribeiro vive em Genebra desde 2010. Foi sua filha única, Wilma Lindomar da Silva, que 
mora na Suíça há quase quarenta anos, 
quem a convenceu a se mudar para a 
cidade. A atriz sofreu um acidente vas-
cular cerebral (&'() em 2020. Com vi-
são e locomoção prejudicadas, ela hoje 
reside em uma casa de repouso para 
idosos, a Résidence Poterie. 
Foi lá que a Prefeitura de Genebra ce-
lebrou o centenário de Ribeiro, com a 
apresentação de um casal de dançarinos 
brasileiros e a entrega de um buquê de flo-
res amarelas. Em abril, a família estava 
organizando uma breve viagem da atriz ao 
Brasil, entre o final deste mês e o início de 
junho. Ela desejava rever seus familiares.
Forte como as personagens que costu-
mava interpretar, Ribeiro diz que a morte 
não a assusta. “Já comprei minha mortalha 
tem mais de 25 anos, em Roma. De vez 
em quando tem que lavar, porque vai ama-
relando”, conta. Ela até já planejou como 
será sua lápide no cemitério de Sobradi-
nho, no interior da Bahia. Haverá uma foto 
sua, com chapéu de palha e sorriso radian-
te, perto deste epitáfio: “Maria Ribeiro: 
atriz da tevê e do cinema brasileiro.” J
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Já nas livrarias
todavialivros.com.br 
O novo romance de 
Itamar Vieira Junior, 
autor de Torto Arado
Prepare-se para uma 
nova incursão na alma 
do povo brasileiro.
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fez 60 anos em janeiro, e Gomes comple-
tará a mesma idade em dezembro.
Feito o gracejo, o empresário foi à 
substância do seu discurso. Lamentou o 
declínio da indústria brasileira, reclamou 
dos impostos e criticou as taxas de juros. 
Segundo seu diagnóstico, o setor perdeu 
relevância econômica porque sucessivos 
governos adotaram políticas que extraem 
com tributos a maior parte da riqueza 
produzida pelas fábricas e encarecem 
excessivamente os custos de financia-
mento, a tal ponto que inviabilizam in-
vestimentos na produção. “O Brasil foi 
criando condições extremamente inóspi-
tas para o desenvolvimento da atividade 
da indústria de transformação”, disse.
A seguir, tratou da reforma tributária. 
As indústrias acreditam que as propostas 
em discussão no Congresso podem be-
neficiar seus negócios,e Gomes expres-
sou simpatia por elas. Como a votação 
ainda deve demorar, ele aproveitou a 
visita de Haddad para adiantar dois pe-
didos. Primeiro, criar um benefício es-
pecial que permita às indústrias deduzir 
mais rapidamente dos seus lucros gastos 
com máquinas e investimentos em no-
vas instalações, abatendo assim os im-
postos que são calculados sobre seus 
ganhos. Depois, zerar imediatamente o 
Imposto sobre Produtos Industrializados 
(!"!), principal tributo federal incidente 
sobre as vendas do setor. 
Vários produtos, inclusive do setor têx-
til, já têm o !"! zerado atualmente. O ou-
tro incentivo sugerido por Gomes já existe 
para certas despesas, como os investi-
mentos das indústrias em pesquisa e de-
senvolvimento tecnológico. Ampliar esses 
benefícios significaria perda imediata de 
arrecadação para o governo, sem garantia 
de compensação no futuro. Imaginando a 
resposta do ministro aos pedidos, Gomes 
encerrou sua fala com uma mensagem 
tranquilizadora: “Pode ter certeza que a 
indústria de transformação vai responder. 
Todas as experiências de redução de tribu-
tos para a indústria resultaram, na verda-
de, num aumento de arrecadação.”
Ao tomar a palavra, Haddad ignorou 
os dois pedidos de Gomes. Preferiu des-
tacar os pilares da sua estratégia para tirar 
a economia do marasmo: uma reforma 
tributária ampla, nos moldes das propos-
tas que o Congresso começou a debater 
em 2019, e um plano para equilibrar as 
contas do governo nos próximos anos, 
projeto que àquela altura ainda era obje-
to de estudo. O ministro estava entusias-
mado com os encontros que tivera no 
convescote anual do Fórum Econômico 
Mundial, em Davos, na Suíça, dias antes. 
Contou aos empresários ter notado gran-
de interesse dos investidores estrangei-
ros pelo Brasil e previu o surgimento, em 
breve, de oportunidades vantajosas para 
o país e suas indústrias.
Os microfones foram então abertos 
para os empresários na plateia. A primei-
ra alfinetada veio de Pedro Evangelinos, 
presidente do Sindicato da Indústria de 
Refrigeração, Aquecimento e Tratamen-
to de Ar do Estado de São Paulo. O em-
presário criticou a sugestão feita por 
Gomes. Como somente 2% das indús-
trias brasileiras têm ganhos tributados 
conforme o lucro contábil, apenas elas, 
as maiores empresas do país, poderiam 
aproveitar o benefício proposto pelo pre-
sidente da Fiesp. “Seria importante pen-
sar naquilo que pode ajudar os outros”, 
disse Evangelinos. Segundo a Receita 
Federal, 93% das indústrias brasileiras 
são de pequeno porte e se enquadram 
nas regras do Simples, e por isso não te-
riam como aproveitar o incentivo. 
Evangelinos é filho de um imigrante 
grego que veio para o Brasil após a Se-
gunda Guerra Mundial e começou a 
produzir componentes para aparelhos de 
refrigeração em São Paulo na década 
de 1970. O negócio prosperou até que, 
no ano 2000, um concorrente norte- 
americano comprou a empresa da famí-
lia e fechou a fábrica no Brasil. Cinco 
anos depois, Pedro e o irmão, Yanis, 
decidiram retomar as atividades. Cons-
tataram que não poderiam competir se 
produzissem no país e resolveram então 
se associar a um fabricante na China, de 
onde importam os produtos quase pron-
Q
uando o empresário Josué 
Christiano Gomes da Silva 
chegou ao salão nobre da Fe-
deração das Indústrias do Esta-
do de São Paulo, em 30 de 
janeiro, o local já estava lotado. No cami-
nho até a mesa principal, o presidente da 
Fiesp foi cercado por dirigentes de sindi-
catos associados à entidade, que faziam 
questão de cumprimentá-lo. Assim que 
os salamaleques terminaram, Gomes se 
aproximou da mesa, onde o esperavam 
de pé o ministro da Fazenda, Fernando 
Haddad, e outros convidados. Todos sen-
taram nos lugares indicados com seus 
nomes, e Gomes deu início aos trabalhos 
da última reunião da diretoria da Fiesp 
prevista no calendário de janeiro.
Ele começou contando como conhe-
ceu o ministro, empossado havia quatro 
semanas apenas. O encontro ocorreu dé-
cadas atrás, quando Gomes visitou a loja 
do pai de Haddad, cliente da indústria 
têxtil de sua família, a Companhia de Te-
cidos Norte de Minas (Coteminas). Khalil 
Haddad tinha negócios numa área de co-
mércio popular no Centro de São Paulo, 
a cujos lojistas o pai do empresário, José 
Alencar Gomes da Silva, vendia tecidos. 
Do jovem Fernando Haddad, o presidente 
da Fiesp guardou a lembrança de um ne-
gociador difícil: “Como comprador, ele 
judiava da gente brutalmente, porque 
sempre queria pagar mais baixo.” Haddad 
questões patronais
Como os industriais paulistas, após longo namoro com o bolsonarismo, se reaproximaram do PT
RICARDO BALTHAZAR
 
O BAILE DA FIESP
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tos para vender no mercado nacional 
com a marca !"# Brasil. Os irmãos tra-
zem uma fatia equivalente a apenas 6% 
da produção da fábrica chinesa. 
Na reunião da Fiesp, o ministro da 
Fazenda ouviu mais uma dúzia de per-
guntas e desviou das cascas de banana até 
o fim, mantendo o foco nas suas priorida-
des. Acrescentou que não tem planos de 
mexer agora nas regras do Simples, o pro-
grama que reduz impostos para empresas 
de pequeno porte, mas sugeriu que pode-
rá ser reavaliado no futuro. “A reforma 
tributária pode ajudar muito, muito”, in-
sistiu. Antes de encerrar o encontro, Go-
mes disse que as primeiras iniciativas do 
ministro mereciam aplausos e ofereceu 
seu apoio. “Conte com a indústria do Bra-
sil, com a indústria de São Paulo, e acre-
dite na indústria”, disse. E convidou todos 
para almoçar no restaurante no topo do 
edifício da Fiesp.
A presença de Haddad na sede da Fiesp teve significado especial pa-ra Gomes. Poucos dias antes, o 
salão nobre da entidade servira de palco 
para cenas de opereta, no auge de uma 
crise interna que deixara o empresário 
pendurado por um fio no comando da 
federação. A visita da maior autoridade 
econômica do país era uma maneira de 
demonstrar o prestígio político de Go-
mes e sua capacidade de diálogo com o 
novo governo, neutralizando assim os 
dissidentes que haviam tentado derru-
bá-lo. Para oferecer solidariedade a ele, 
dirigentes das federações industriais do 
Rio de Janeiro, de Minas Gerais e da 
Bahia também se deslocaram até São 
Paulo para a reunião de 30 de janeiro.
Com o mesmo objetivo, o vice-presi-
dente Geraldo Alckmin, que acumula as 
funções de ministro do Desenvolvimen-
to, Indústria, Comércio e Serviços, havia 
visitado a Fiesp dias antes, em 16 de ja-
neiro. Recém-empossado, ele ainda não 
completara a montagem de sua equipe e 
não tinha anúncio algum a fazer aos in-
dustriais. Entreteve a plateia com anedo-
tas de seus tempos como governador do 
estado de São Paulo e prefeito de Pinda-
monhangaba e disse que estava na Fiesp 
para colher sugestões. Ficou para o al-
moço e ouviu várias. Segundo um dos 
empresários que passaram pela mesa do 
vice-presidente, ele anotava os pedidos 
dos industriais no verso dos cartões de 
visita que lhe entregavam.
Um dos que conseguiram reter a 
atenção de Alckmin foi o presidente exe-
cutivo da Associação Nacional da Indús-
tria de Pneumáticos, Klaus Curt Müller. 
Ele queria reclamar de uma medida 
tomada no início de 2021 pelo governo 
Jair Bolsonaro, que zerou as tarifas de 
importação de pneus para cargas pesa-
das, com a alegação de que havia escas-
sez do produto no mercado nacional. 
Pneus feitos na China, no Vietnã e em 
outros países asiáticos passaram a entrar 
no Brasil livres da taxa de 16% que pa-
gavam antes, e as vendas das indústrias 
brasileiras despencaram. O vice-presi-
dente ouviu, anotou e ficou de analisar.
Assim que Alckmin foi embora, teve 
início uma assembleia convocada a pe-
dido dos desafetos de Gomes com o ob-
jetivo de destituir o empresário da 
presidência da entidade. Foram horas de 
tumulto, que terminaram no início da 
noite com a deposição de Gomes, apro-
vada por 47 representantes dos 131 sindi-
catos que compõem a Fiesp. Seguiram-se 
dias de indefinição sobre o futuro da 
organização patronal, até que osgrupos 
em conflito resolveram se encontrar 
para negociar um acordo. Celebrada a 
paz, anunciada por notas oficiais lacôni-
cas, Gomes pôde voltar a ocupar sua sala 
na Fiesp sem medo de ser despejado.
A aproximação com o novo governo 
ajudou o industrial a vencer a oposição 
interna. Pragmáticos, os industriais não 
têm interesse em criar uma relação 
conflituosa com os petistas, o que po-
deria obstruir seu acesso aos corredores 
de Brasília onde suas reivindicações são 
discutidas. No entorno de Lula tam-
bém não há ninguém interessado em 
ter no comando da Fiesp um adversário 
do governo, ainda que a entidade tenha 
perdido muito da influência de outros 
tempos. Dois dias após a destituição de 
Gomes, o presidente Luiz Inácio Lula 
da Silva fez questão de telefonar ao em-
presário para se solidarizar.
Gomes logo se posicionou como fiel 
escudeiro de Lula. No auge do confronto 
do presidente da República com o presi-
dente do Banco Central ($#), Roberto 
Campos Neto, por causa das altas taxas de 
juros, o industrial não hesitou. Em março, 
o governador de São Paulo, Tarcísio de 
Freitas, ex-ministro de Bolsonaro, disse na 
Fiesp que a gritaria contra os juros era 
contraproducente, por criar instabilidade 
nos mercados. Gomes respondeu que as 
taxas elevadas eram injustificáveis. Dias 
depois, ele ajudou a transformar um semi-
nário do Banco Nacional de Desenvolvi-
mento Econômico e Social ($%&'() em 
palco para os críticos da política monetá-
ria e ganhou aplausos ao classificar as ta-
xas fixadas pelo $# como “pornográficas”.
O Banco Central ignorou as pressões 
do governo e manteve a taxa básica de ju-
ros em 13,75%, nível em que está estacio-
nada desde agosto. É a taxa mais alta do 
mundo em termos reais, descontada a in-
flação. O $# diz que segurá-la nesse pata-
mar ajuda a conter os preços e que só vai 
afrouxar o torniquete quando o governo 
tiver um plano consistente para equilibrar 
suas contas. Gomes juntou-se aos que 
pensam que o $# e os tubarões do merca-
Lula e Josué Gomes, presidente da Fiesp: o caldo de insatisfação que borbulhava na entidade desde a posse do empresário transbordou quando ele aderiu à campanha em prol da democracia
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do financeiro exageram ao apontar o des-
controle orçamentário do governo como 
raiz das dificuldades que a economia atra-
vessa. Na sua concepção, qualquer esforço 
para reanimar a indústria e os negócios 
será inócuo se os juros não diminuírem.
Em 31 de março, Haddad chamou Go-
mes para lhe mostrar um esboço do seu 
plano fiscal, que tinha sido apresentado a 
jornalistas dias antes. A proposta cria re-
gras para conter o crescimento das despe-
sas do governo e evitar que continuem 
aumentando mais rapidamente do que as 
receitas. Na primeira reunião de diretoria 
da Fiesp em abril, Gomes sacou um peda-
ço de papel do bolso do paletó e disse que 
estavam registrados ali quatro compromis-
sos assumidos pelo ministro no encontro 
de fim de março. O empresário contou 
que Haddad prometeu implementar o be-
nefício fiscal defendido em janeiro pela 
Fiesp e lançar um programa de financia-
mentos subsidiados para a indústria, além 
de trabalhar pela reforma tributária e pela 
baixa dos juros. “Esse documento foi ini-
ciativa dele”, ressaltou Gomes, agitando o 
papel no ar. “Ele escreveu e ele assinou.” 
A distância, eram visíveis na folha de pa-
pel quatro linhas rabiscadas à mão e a as-
sinatura de Haddad. 
Gomes está no comando dos negó-cios de sua família desde que o pai se afastou das empresas para se 
dedicar à política. José Alencar foi sena-
dor por Minas Gerais, vice-presidente da 
República nos dois primeiros governos 
de Lula e ministro da Defesa por um 
breve período, entre 2004 e 2006. Mor-
reu em 2011, três meses após encerrar 
seu segundo mandato na Vice-Presidên-
cia. Alencar fundou a Coteminas em 
1967, em Montes Claros, e mais tarde 
expandiu suas atividades por fábricas no 
Rio Grande do Norte, na Paraíba e em 
Santa Catarina. A empresa produz len-
çóis, toalhas e outros artigos de cama, 
mesa e banho, além de fios e tecidos. No 
varejo, vende com três marcas próprias: 
Artex, mmartan e Casa Moysés. 
Em 2006, Gomes deu sua grande ta-
cada empresarial ao concluir uma fusão 
com a norte-americana Springs. A união 
resultou na formação da Springs Global, 
que é controlada pela Coteminas e ad-
ministra todas as atividades do grupo, 
incluindo nove fábricas no Brasil e uma 
na Argentina. Unidades industriais que 
funcionavam nos Estados Unidos foram 
fechadas, e suas máquinas transferidas 
para instalações no Brasil. A transação 
deu à Coteminas acesso a cadeias de va-
rejo no mercado norte-americano e for-
taleceu a musculatura da empresa 
brasileira para enfrentar o crescimento 
da avassaladora concorrência chinesa. 
Nos últimos anos, porém, a compa-
nhia vem acumulando prejuízos. Em 
2022, as perdas registradas até setembro 
somaram 466 milhões de reais, para re-
ceitas operacionais de 1,3 bilhão de reais, 
segundo as informações mais recentes da 
Coteminas. Seus custos subiram com os 
preços do algodão e do poliéster em alta. 
As vendas, que tinham aumentado du-
rante o isolamento imposto pelo combate 
à Covid, quando as pessoas passaram 
mais tempo dentro de casa, caíram quan-
do elas voltaram às ruas. A subida dos ju-
ros agravou a situação, fazendo estrago no 
balanço da empresa, que se endividou 
nos últimos tempos para desenvolver 
uma rede própria de varejo. “Uma tem-
pestade perfeita”, resumiu Gomes em 
agosto, em teleconferência 
com analistas do mercado. As 
ações da Coteminas despen-
caram, mas voltaram a desper-
tar interesse dos investidores 
no fim de abril, quando fechou um acor-
do com a varejista chinesa Shein que po-
derá ampliar o mercado para os seus 
produtos. Embora a Coteminas não te-
nha fábricas em São Paulo, ela mantém 
seus escritórios comerciais na capital pau-
lista há décadas e é filiada ao sindicato da 
indústria têxtil do estado.
Mineiro de Ubá, Gomes assumiu a 
presidência da Fiesp em janeiro de 2022, 
após vencer uma eleição em que sua cha-
pa era a única concorrente. O seu nome 
foi uma escolha pessoal do empresário 
Paulo Skaf, de 67 anos, que dirigiu a Fiesp 
por dezessete anos. Nesse longo domínio, 
Skaf promoveu sucessivas alterações nos 
estatutos da entidade para se manter no 
cargo e cogitou fazê-lo mais uma vez an-
tes de comunicar aos correligionários, no 
segundo semestre de 2020, que planejava 
sair. Não deu muitas explicações, dizendo 
apenas que queria encerrar o ciclo e se 
dedicar a negócios particulares. Mas sa-
bia-se que ele sonhava disputar as eleições 
para governador de São Paulo e apostava 
no apoio de Jair Bolsonaro para realizar 
suas ambições políticas e superar a frustra-
ção de três tentativas fracassadas de che-
gar ao Executivo do estado. 
Como outros dirigentes da federa-
ção, Skaf é um sem fábrica. Ele desati-
vou a tecelagem da família no início 
dos anos 2000, se desfez do maquinário 
e transformou as instalações num con-
domínio empresarial, alugando o espa-
ço para pequenas empresas. Pôde assim 
se dedicar exclusivamente à política 
empresarial, primeiro como presidente 
da Associação Brasileira da Indústria 
Têxtil e de Confecção (Abit) e, depois, 
da Fiesp. José Alencar foi um dos patro-
cinadores de sua candidatura à presi-
dência da federação, em 2004. Outros 
medalhões da indústria, como o presi-
dente da Companhia Siderúrgica Na-
cional, Benjamin Steinbruch, também 
apoiaram seus planos.
Em 2022, Skaf ajudou a montar a 
chapa de Gomes e organizou vários jan-
tares para apresentá-lo aos dirigentes dos 
sindicatos. Apesar de bem relacionado 
no meio, o dono da Coteminas conhecia 
poucos deles. O presidente da Associa-
ção Brasileira da Indústria do Plástico, 
José Ricardo Roriz Coelho, um ex-aliado 
de Skaf que se distanciou do dirigente com 
o tempo, organizou uma candidatura 
alternativa, mas falhas na documenta-
ção de dois apoiadores acabaraminviabi-
lizando o registro da chapa. Com a pista 
livre, a eleição de Gomes se transformou 
num passeio. Dos 113 delegados habili-
tados a participar do processo, 104 vota-
ram no seu nome.
Nas eleições da Fiesp, cada sindicato 
tem um voto. Em tese, não faz diferen-
ça se um delegado representa as monta-
doras de automóveis do !"# paulista ou 
simples oficinas mecânicas, que tam-
bém fazem parte da indús-
tria. Nas votações, ainda que 
a empresa tenha peso econô-
mico irrelevante, sua opi-
nião vale como a de um titã 
do capitalismo. Esse modelo, cristali-
zado na estrutura sindical criada por 
Getúlio Vargas nos anos 1930, pulveri-
za a representação das empresas do se-
tor e torna a política interna da entidade 
muito dependente de interesses miú-
dos. Dos 131 sindicatos filiados à Fiesp, 
49 funcionam em modestas salas alu-
gadas, distribuídas em 5 dos 16 andares 
do imponente edifício-sede da federa-
ção e separadas por paredes de madeira. 
O prédio em forma de pirâmide foi 
construído na década de 1970 e se tor-
nou uma das referências arquitetônicas 
da Avenida Paulista. 
A estrutura sindical concebida por 
Vargas segue quase intocada, quase um 
século depois. Ela prevê que patrões e 
empregados se organizem em sindicatos 
nos vários setores da economia para ne-
gociar salários e condições de trabalho. 
As entidades devem ser registradas no 
Ministério do Trabalho, e a lei impede 
que mais de um sindicato represente a 
mesma categoria no mesmo território. 
Todos devem ser filiados a federações es-
taduais, como a Fiesp, que se associam 
a entidades nacionais, como, no caso, a 
Confederação Nacional da Indústria 
(#$%). Cabe a elas a representação polí-
tica dos sindicatos e a gestão do chama-
do Sistema S, que administra serviços 
de assistência social e treinamento pro-
fissional, e de onde provém a verba que 
sustenta a Fiesp e #$%. Com a reforma 
trabalhista aprovada em 2017, no gover-
no Michel Temer, o imposto sindical 
compulsório que empresas e trabalha-
dores recolhiam para sustentar a es-
trutura foi extinto. Todos os sindicatos 
tiveram que buscar com associados ou-
tras fontes de recursos para financiar 
suas atividades, enquanto as federações 
e confederações patronais continuaram 
contando com repasses bilionários do 
Sistema S. 
A s diferenças entre Gomes e seu antecessor eram óbvias para todos que os conheciam, mas só se tor-
naram evidentes para os dirigentes da 
Fiesp mais tarde. Hiperativo e espalha-
fatoso, Skaf fazia questão de lembrar 
aniversários de diretores dos sindicatos 
e mandava entregar flores para as mu-
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lheres deles em ocasiões especiais. Go-
mes vivia ocupado com suas obrigações 
na Coteminas, passava algumas tardes 
por semana na Fiesp e não encontrava 
tempo para atender às variadas deman-
das dos filiados. “Skaf foi essencialmen-
te um despachante dos interesses deles, 
provavelmente um bom despachante”, 
disse Pedro Wongtschowski, acionista 
do Grupo Ultra, em entrevista à piauí 
em janeiro. “Josué sempre achou que 
seu papel à frente da Fiesp seria outro e 
não pensou que precisasse dedicar tem-
po a tantas miudezas.”
Gomes manteve vários funcionários 
contratados por Skaf, até mesmo a se-
cretária dele, mas recrutou gente de sua 
confiança para auxiliá-lo na gestão da 
Fiesp e das duas entidades do Sistema S 
que lhe cabe administrar: os departa-
mentos estaduais do Serviço Social da 
Indústria (Sesi) e do Serviço Nacional 
de Aprendizagem Industrial (Senai). 
Financiados por contribuições compul-
sórias das empresas, eles terão 4,4 bi-
lhões de reais para gastar neste ano e 
deverão repassar 130 milhões de reais 
para as atividades da Fiesp, o que cobre 
seu orçamento quase inteiro. Gomes 
também mexeu nos departamentos téc-
nicos que assessoram a diretoria da fe-
deração e nos quinze conselhos temáticos 
que integram sua estrutura, reduzindo o 
espaço que os sindicatos patronais ocu-
pavam nesses órgãos. 
Nos tempos de Skaf, esses conselhos 
chegaram a reunir cerca de 2 mil mem-
bros, incluindo empresários, políticos e 
dirigentes da federação. A ideia é que os 
colegiados promovam debates e auxi-
liem a federação a formular estratégias, 
mas o excesso de participantes muitas 
vezes torna as reuniões improdutivas. Os 
integrantes participam em caráter volun-
tário, sem remuneração, porém ganham 
acesso privilegiado à Fiesp, e muitos 
aproveitam os encontros apenas para 
ampliar relacionamentos e cavar oportu-
nidades. Gomes nomeou novos presi-
dentes para os conselhos e deu a todos 
carta branca para fazer mudanças. 
Wongtschowski, que sempre criticou pu-
blicamente a gestão de Skaf, assumiu o 
Conselho Superior de Inovação e Compe-
titividade, afastou os sindicatos e substi-
tuiu todos os membros do colegiado. 
O presidente do Sindicato da Indús-
tria Audiovisual do Estado de São Paulo, 
André Sturm, que presidia o Conselho 
Superior de Economia Criativa quando 
Skaf mandava no prédio, procurou Go-
mes para saber quais eram os seus planos 
e levou semanas para obter uma respos-
ta. Quando finalmente conseguiu ser 
recebido na sala de Gomes, foi informa-
do de que o apresentador de televisão 
Luciano Huck fora escolhido para subs-
tituí-lo, o que ocorreu dias depois. “Nin-
guém me deu um telefonema para 
conversar antes, e ninguém do setor foi 
chamado”, afirmou Sturm, que é amigo 
de Skaf, numa conversa com a piauí em 
janeiro. “Achei ofensivo.”
Em 2004, quando Skaf chegou ao co-mando da Fiesp, Lula concluía o segundo ano do seu primeiro man-
dato. O presidente da República ainda 
lutava contra desconfianças no meio em-
presarial e enfrentava críticas no próprio 
partido por ter adotado a política econô-
mica ortodoxa implementada pelo !"#$ 
no governo Fernando Henrique Cardoso. 
Para ajudar a eleger Skaf, petistas até ca-
balaram votos de delegados suscetíveis a 
pressões de Brasília. Lula o prestigiou le-
vando dez ministros à festa que celebrou 
sua vitória, num palco armado na frente 
do Museu do Ipiranga, em São Paulo. 
Skaf começou a se distanciar de Lula 
em 2007, quando patrocinou uma campa-
nha pela derrubada da %!&', o imposto 
que na época incidia sobre as movimen-
tações financeiras. Realinhou- se com os 
petistas no primeiro mandato de Dilma 
Rousseff, que concedeu desonerações e 
outros benefícios às indústrias. Mas afas-
tou-se outra vez quando percebeu que a 
direção do vento estava mudando. Pas-
sou a atacar a política econômica da pre-
sidente e usou a máquina da Fiesp para 
engrossar as manifestações pelo impeach-
ment, em 2016. 
Um símbolo grotesco desses tempos 
nasceu em 2015, quando Dilma cogitou 
recriar a %!&' para tapar buracos no or-
çamento e a Fiesp voltou a abrir fogo 
contra o imposto. Em meio a uma ofen-
siva publicitária que incluiu anúncios 
de tevê estrelados pelo próprio Skaf, a 
federação pôs nas ruas um imenso bo-
neco de borracha inflado, com 12 me-
tros de altura. Era um pato amarelo com 
cruzes no lugar dos olhos e o mote da 
campanha inscrito na barriga: “Não vou 
pagar o pato.” O bicho passou um dia na 
frente do Congresso Nacional antes de 
ser levado embora. Dilma jamais conse-
guiu apoio para ressuscitar a %!&'. 
Em março de 2016, três semanas an-
tes da abertura do processo de impeach-
ment de Dilma, uma nova versão do 
boneco foi inflada no gramado central 
da Esplanada dos Ministérios, em Brasí-
lia. Tinha 20 metros de altura e uma 
variante do lema original: “Chega de 
pagar o pato.” Umaréplica menor, mas 
ainda assim chamativa, de 5 metros de 
altura, ficou exposta na frente da Fiesp 
por meses e acabou se tornando um sím-
bolo para os que protestavam de verde e 
amarelo na Avenida Paulista, pedindo o 
afastamento da presidente. Alguns ma-
nifestantes chegaram a acampar por vá-
rios meses em torno do pato, aguardando 
a votação do impeachment, e milhares 
de réplicas foram distribuídas pela Fiesp 
nos protestos. A última aparição do bi-
cho ocorreu em 2017, no governo Mi-
chel Temer, quando ele foi inflado outra 
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vez na sede da federação, em protesto 
contra um aumento dos impostos sobre 
os combustíveis. 
Skaf nunca fez segredo de suas aspira-
ções políticas. Ele se licenciou da presi-
dência da Fiesp três vezes para disputar o 
governo do estado de São Paulo, mas per-
deu todas. Na primeira tentativa, em 2010, 
concorreu pelo !"# e terminou em quarto 
lugar. Perdeu para o então governador Ge-
raldo Alckmin, que estava no !"$# e já 
tinha exercido o cargo por dois mandatos. 
Em 2014, o empresário tentou de novo, 
agora filiado ao %$# de Michel Temer. 
Ficou em segundo lugar, derrotado outra 
vez por Alckmin, que foi reeleito no pri-
meiro turno. Na terceira tentativa, em 
2018, Skaf acabou em terceiro lugar. Ele 
percebeu que dificilmente teria outra 
chance na política se não buscasse aproxi-
mação com a nova direita e apoiou o go-
verno Bolsonaro com entusiasmo, mas 
não conseguiu viabilizar uma nova candi-
datura e ficou fora das eleições de 2022.
Gomes logo mostrou que seu esti-
lo era outro. Antes de assumir a Fiesp, 
desligou-se do %$#, sigla pela qual con-
correu uma vez ao Senado por Minas 
Gerais, sem sucesso. Num café da ma-
nhã com jornalistas após a posse na fe-
deração paulista, afirmou que ficaria 
longe das disputas partidárias na cam-
panha presidencial, mas cutucou Bol-
sonaro, dizendo que ele seria lembrado 
para sempre pelos ataques às institui-
ções democráticas e pela atuação desas-
trosa durante a pandemia de Covid. 
Em julho passado, reuniu banqueiros e 
outros figurões para um almoço com 
Lula na sede da federação, a portas fe-
chadas, e não convidou nenhum diri-
gente patronal para sentar à mesa. 
Depois, explicou a um diretor da enti-
dade que o almoço fora restrito a pou-
cos convidados porque tivera caráter 
pessoal, e acrescentou que havia reem-
bolsado a Fiesp de todas as despesas.
O caldo de insatisfação que vinha borbulhando na federação desde a posse de Gomes transbordou 
quando ele aderiu à campanha da so-
ciedade civil em defesa da democracia. 
Três dos primeiros articuladores do movi-
mento – o professor de direito Oscar Vi-
lhena Vieira, da Fundação Getulio 
Vargas, o ex- presidente do Banco Central 
Armínio Fraga e a socióloga Maria Alice 
Setubal, herdeira do Itaú Unibanco – fo-
ram à Fiesp em junho de 2022 para con-
versar com Gomes sobre a ofensiva de 
Bolsonaro contra o processo eleitoral e os 
tribunais superiores, e defenderam a ne-
cessidade de os empresários se posiciona-
rem contra os ataques. “Ele se mostrou 
muito afinado com nossas preocupações”, 
contou Vilhena à piauí. 
Surgiu então a ideia de escrever um 
manifesto, a ser submetido a outras en-
tidades depois. O presidente da Fiesp 
promoveu uma consulta sobre a inicia-
tiva numa das reuniões semanais de sua 
diretoria, apresentando-a de forma ge-
nérica. Ninguém se opôs. Quando o 
manifesto ficou pronto, no fim de ju-
lho, Gomes fez o texto circular entre os 
filiados para que indicassem se gosta-
riam de subscrevê-lo. Somente 18 dos 
131 sindicatos concordaram. As centrais 
sindicais dos trabalhadores, a Federação 
Brasileira de Bancos e outras organiza-
ções com força na sociedade assinaram 
o manifesto, mas a rejeição dentro de 
casa mostrou que a insatisfa-
ção dos sindicatos patronais 
com Gomes vinha tomando 
uma dimensão maior do que 
ele imaginava.
Bolsonaro desqualificou o 
documento, chamando-o de 
“cartinha”, disse que Gomes estava tra-
balhando pela candidatura de Lula e 
cancelou sua participação num evento 
organizado pela Fiesp. O texto foi pu-
blicado nos principais jornais e lido 
pelo advogado José Carlos Dias num 
ato público na Faculdade de Direito da 
Universidade de São Paulo no dia 11 de 
agosto, quando se celebra a criação dos 
cursos de direito no Brasil. Gomes par-
ticipou com discrição. Entrou mudo, 
sentou-se longe da mesa principal e 
saiu calado. O único representante do 
setor industrial que discursou no evento 
foi Horácio Lafer Piva, acionista da Kla-
bin, ex-presidente da Fiesp e crítico da 
gestão de Skaf. Outro manifesto, arti-
culado por ex-alunos da faculdade e 
reforçado pela adesão de 1 milhão de 
pessoas na internet, foi lido no mesmo 
dia no pátio da escola. 
Dois dias antes dos atos públicos em defesa da democracia, Lula foi rece-bido uma segunda vez na sede da 
Fiesp, agora para um debate com a dire-
toria. Lamentou o encolhimento da in-
dústria brasileira, disse ter ficado 
assustado com o avanço da China nos 
últimos anos e prometeu aos empresá-
rios reerguer o setor. “Perdemos muito 
espaço”, disse. “Os chineses ganharam, 
se não tudo, quase tudo.” Ele bateu com 
a mão na mesa ao lembrar José Alencar, 
o pai do anfitrião: “O único empresário 
que falava grosso para mim: ‘Eu não te-
nho medo da China.’” Gomes, que cogi-
tou abrir uma fábrica na China após a 
fusão com a Springs e acabou abando-
nando o projeto, murmurou ao lado do 
petista: “As coisas mudam.”
Nas últimas décadas, a indústria bra-
sileira sofreu um declínio muito intenso 
e difícil de reverter. De 1985 a 2022, a 
fatia que a produção nas fábricas repre-
senta no Produto Interno Bruto (!&#), o 
valor total dos bens e serviços produzidos 
no país, caiu de 36% para 13%. A derro-
cada da indústria foi acompanhada pela 
ascensão do setor de serviços, formado 
por bancos, escolas, hospitais e outras 
atividades que hoje representam 68% do 
!&#. A situação da indústria preocupa 
porque ela tende a ser um motor mais 
potente que os demais setores para puxar 
o crescimento econômico, com maior 
capacidade para estimular inovações tec-
nológicas e arrastar outras áreas. 
O problema não é exclusivo do Bra-
sil. Os economistas chamam o fenôme-
no de desindustrialização e o descrevem 
como uma etapa esperada do processo 
de desenvolvimento. À medida que os 
países se desenvolvem e as pessoas al-
cançam maior poder aquisitivo, elas 
passam a usufruir de diversos serviços 
aos quais não tinham acesso, e com isso 
o peso desse setor aumenta. 
Cálculos feitos pelo economis-
ta turco Dani Rodrik, profes-
sor da Universidade Harvard, 
nos Estados Unidos, indicam 
que nos países mais bem-suce-
didos a virada ocorreu depois 
que atingiram uma renda anual equiva-
lente a 20 mil dólares por habitante, 
cerca de 100 mil reais, ou 8 mil reais 
por mês. Nos países em que esse proces-
so se inicia de maneira prematura, an-
tes que as indústrias se desenvolvam 
plenamente, as vantagens proporciona-
das por uma fase econômica anterior 
capitaneada pelas fábricas se perdem e 
fica mais difícil alcançar níveis eleva-
dos de renda e bem-estar.
É o caso do Brasil, onde o declínio da 
indústria começou muito antes que a 
renda atingisse o patamar sugerido por 
Rodrik. Hoje, a renda por habitante no 
Brasil equivale a 1,4 mil dólares por mês, 
ou quase 7 mil reais, em valores ajusta-
dos pelo método de paridade do poder 
de compra, que permite comparações 
internacionais. Além disso, a indústria 
perdeu espaço mais rapidamente aqui 
do que em outros lugares. NosEstados 
Unidos, por exemplo, ela acompanhou 
o ritmo de crescimento da economia e 
manteve por décadas seu peso no !&#, o 
que ajudou o país a diversificar suas ati-
vidades e alcançar níveis de desenvolvi-
mento mais elevados. A renda por 
habitante nos Estados Unidos equivale 
hoje a quase 6 mil dólares por mês, ou 
30 mil reais. 
A indústria foi a principal alavanca do 
crescimento no Brasil na década de 1950, 
quando montadoras de automóveis e fa-
bricantes de máquinas e eletrodomésti-
cos começaram a produzir no país. Ela 
continuou em expansão até o fim dos 
anos 1970, com o estímulo dado pelos 
governos militares ao desenvolvimento 
de usinas siderúrgicas e polos petroquí-
micos. A decadência começou na década 
de 1980, época em que o descontrole dos 
gastos públicos, a aceleração da inflação 
e o endividamento crescente começaram 
a travar o desenvolvimento do Brasil.
Em 1980, o parque industrial brasileiro 
era maior do que os da China, da Coreia 
do Sul e da Índia, somados. Hoje, esses 
três países têm indústrias maiores do que 
a brasileira, individualmente. Em 2010, a 
China ultrapassou os Estados Unidos e se 
tornou a maior potência industrial do 
mundo. Uma análise comparativa do de-
sempenho de trinta nações mostra que 
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a indústria brasileira foi largamente ul-
trapassada por seus concorrentes desde 
então. O Brasil tinha o sexto maior par-
que industrial do mundo em 1980 e hoje 
ocupa a nona posição, segundo os econo-
mistas Paulo César Morceiro e Milene 
Simone Tessarin, pesquisadores da !"!. 
A indústria nacional paga o preço de 
uma estratégia equivocada, na visão do 
economista Francisco Vidal Luna, co-
autor de vários livros sobre a história 
econômica do Brasil e do estado de São 
Paulo com o historiador norte-america-
no Herbert Klein, da Universidade Co-
lumbia. “As indústrias tinham proteção 
excessiva, a abertura comercial dos anos 
1990 quebrou muitas empresas e poucas 
sobreviventes souberam agarrar a opor-
tunidade para se modernizar e se tornar 
mais competitivas”, disse Luna à piauí. 
“Foi o contrário do que aconteceu com 
o agronegócio, que aproveitou as condi-
ções criadas pela abertura para aumen-
tar sua produtividade e crescer no 
mercado internacional.” 
As dificuldades econômicas dos últi-
mos anos contribuíram para agravar o 
quadro, provocando queda acentuada 
de investimentos em inovação. “As 
transformações que a economia mun-
dial tem sofrido exigem de todas as em-
presas uma capacitação maior hoje, 
num ambiente de muita pressão com-
petitiva”, disse o sociólogo Glauco Ar-
bix, que presidiu a Financiadora de 
Estudos e Projetos (Finep), do Ministé-
rio da Ciência, Tecnologia e Inovação, 
no governo Dilma. “Do ponto de vista 
tecnológico, nossas fraquezas são gran-
des demais para pensar numa recupera-
ção rápida.” Basta um exemplo para 
entender. Segundo a Federação Inter-
nacional de Robótica, o Brasil tinha 
16 robôs industriais para cada 10 mil em-
pregados nas fábricas em 2021. A Co-
reia do Sul tinha 1 mil. 
Na campanha eleitoral, Lula prome-
teu reerguer a indústria de olho no futu-
ro, mobilizando recursos para apoiar o 
desenvolvimento de novas fontes de 
energia renováveis e a digitalização da 
economia, mas falou também em res-
suscitar a construção de navios e outros 
projetos que fracassaram no passado. Há 
entre os petistas quem sonhe com polí-
ticas industriais audaciosas, como a que 
o governo Joe Biden começou a imple-
mentar nos Estados Unidos, que prevê 
trilhões de dólares para investimentos 
em infraestrutura, semicondutores e 
energia limpa. Até agora, o único passo 
dado por Lula para viabilizar a aspira-
ção foi reativar o Conselho Nacional de 
Desenvolvimento Industrial, que dei-
xou de se reunir nos governos Temer e 
Bolsonaro e agora será novamente en-
carregado de formular propostas para o 
presidente. O conselho será composto 
por 21 membros do governo e 21 repre-
sentantes da sociedade civil. 
Lula voltou de sua recente viagem à 
China, em abril, com quinze acordos 
diplomáticos assinados e promessas de 
cooperação em várias áreas. Uma das 
negociações que parecem mais promis-
soras envolve a "#$, uma das maiores 
fabricantes de carros elétricos do mun-
do. A montadora chinesa discute com o 
governo da Bahia incentivos para reati-
var a fábrica construída pela Ford em 
Camaçari, abandonada desde que a 
empresa norte-americana decidiu parar 
de produzir no Brasil, há dois anos. 
Com pátios cheios de carros que não 
conseguem vender, outras cinco gran-
des montadoras deram férias coletivas 
aos funcionários nos últimos meses. 
Lula ainda estava em Xangai quando a 
Mercedes-Benz anunciou uma medida 
mais drástica, a suspensão dos contratos 
de 1,2 mil trabalhadores de sua fábrica 
em São Bernardo do Campo, o berço 
político do !% e do presidente.
O s dilemas da indústria não estavam no centro das preocupações dos articuladores do levante que quase 
derrubou Gomes na Fiesp. Eles começa-
ram a se organizar dias após a leitura dos 
manifestos pela democracia, em agosto, 
quando faltavam sete semanas para o pri-
meiro turno da eleição presidencial. Um 
dos primeiros encontros dos revoltosos 
reuniu trinta pessoas na casa de Paulo 
Skaf, que se tornara alvo de cobranças 
dos correligionários por ter sido o fiador 
da eleição do sucessor. Todos reclama-
ram do distanciamento de Gomes, do 
desprezo com que seus interesses eram 
tratados e da perda de influência em con-
selhos e departamentos. Ninguém ali 
falou de desindustrialização. 
Duas semanas antes do segundo tur-
no, Skaf publicou nas redes sociais um 
vídeo em que pedia apoio à reeleição de 
Bolsonaro. “Ele pode falar o que não 
deve, mas ele faz o que deve ser feito”, 
disse o ex-presidente da Fiesp, que ficara 
de mãos abanando na campanha estadual 
e mesmo assim continuou abraçado ao 
bolsonarismo. “Eu prefiro isso do que 
aquele que fala bonitinho e faz errado, 
e tapeia a gente a vida toda.” Embora 
muitos empresários apoiassem Bolsona-
ro, nenhum outro representante do setor 
industrial falou tão alto. Poucos dias 
depois, cerca de oitenta dirigentes insa-
tisfeitos com Gomes se reuniram com 
Skaf num restaurante em São Paulo e 
decidiram propor a convocação de uma 
assembleia extraordinária dos sindicatos 
para discutir a situação na Fiesp. 
O requerimento foi apresentado a 
Gomes uma semana antes do segundo 
turno, endossado pelas assinaturas de 
78 dirigentes da federação. Segundo 
eles, o presidente da Fiesp havia se afas-
tado de suas responsabilidades ao pro-
mover o seu “desvirtuamento, mediante 
a defesa de ideias incompatíveis com os 
interesses dos sindicatos filiados e com 
os anseios das categorias industriais re-
presentadas”. Os três parágrafos do docu-
mento pareciam escritos em linguagem 
cifrada. Nenhum deles dizia com clare-
za o que justificava a acusação contra 
Gomes, embora muitos dirigentes ex-
pressassem reservadamente desgosto com 
Ministério da Cultura, Bradesco, Vivo e Mattos Filho apresentam
O 
 outro 
e eu
 Paul
Gauguin
Patrocinador Master
Patrocinadores Realização
Paul Gauguin, Pobre pescador, 
1896, doação Henrik Spitz-Jordan, 
Ricardo Jafet e João di Pietro, 1958
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o manifesto de agosto e as visitas de 
Lula à federação. 
No início de novembro, uma semana 
depois da vitória de Lula no segundo tur-
no, Gomes se reuniu com a diretoria da 
Fiesp e disse que não convocaria a assem-
bleia porque o requerimento dos amoti-
nados não incluía motivação detalhada, 
nos termos exigidos pelos estatutos da 
entidade. A resposta inflamou os insurre-
tos, que protestaram e bateram boca com 
os aliados de Gomes por horas, sem che-
gar a lugar nenhum. A certa altura, o pre-
sidente da Associação Brasileira dos 
Fabricantes de Brinquedos, Synésio Batis-
ta da Costa, levantou-se e saiu em defesa 
do empresário mineiro, citando os estatu-
tos e insistindopara saber, afinal, qual era 
a razão para a insatisfação dos dissidentes.
Em pé no meio do auditório, Costa 
resolveu contar uma anedota. “Eu sou 
um comprador de champanhe de mu-
lher que se separa do marido”, começou. 
“Eu recebo as cotações e eu compro 
tudo que eu puder. Porque o preço é a 
metade, por causa da raiva [que elas sen-
tem dos maridos].” Fez uma pausa e en-
tão explicou: “Aí tem uma razão. É uma 
razão lógica. Foi flagrado o cara com 
uma outra de 24 !" e então ela se rebe-
lou.” Um vídeo gravado durante a reu-
nião e vazado para o site de notícias 
Poder360 mostra dirigentes patronais 
gargalhando na plateia, enquanto Costa 
contava a história. Três mulheres que 
viram a cena apresentaram queixa a Go-
mes, acusando Costa de misoginia.
Uma semana mais tarde, os opositores 
de Gomes pediram a convocação de ou-
tra assembleia, agora apresentando uma 
dúzia de questionamentos e prevendo 
espaço para que o presidente da federação 
se defendesse, antes que sua destituição 
fosse discutida. Havia perguntas sobre a 
nova composição dos conselhos da Fiesp, 
o processo eleitoral da federação e a atua-
ção de colaboradores recrutados por Go-
mes para trabalhar na entidade. Algumas 
das questões pareciam picuinhas, mas 
também constavam da pauta questiona-
mentos sobre a adesão de Gomes à cam-
panha pela democracia. Como o novo 
requerimento era apoiado por 86 dirigen-
tes, foi impossível ignorá-lo.
O acirramento do conflito fez outros 
atores se movimentarem. Em dezem-
bro, quando faltavam duas semanas 
para a posse no Palácio do 
Planalto, Lula chamou Go-
mes para conversar sobre o 
Ministério do Desenvolvi-
mento, Indústria, Comércio e 
Serviços. O empresário argu-
mentou que não tinha condições de se 
afastar da direção de suas empresas e 
recusou o convite para assumir a pasta, 
mas se dispôs a ajudar o petista a en-
contrar outro nome. Incentivou Pedro 
Wongtschowski a conversar com Lula, 
mas os dois não se entenderam. Sem 
outra opção, o presidente decidiu no-
mear Alckmin.
A assembleia proposta pelos oposito-
res de Gomes na Fiesp ficou marcada 
para 16 de janeiro. O governo ainda 
lidava com o rescaldo dos ataques bol-
sonaristas de 8 de janeiro, em Brasília, 
quando Alckmin foi destacado para 
socorrer o empresário. A ida do vice- 
presidente à Fiesp, no mesmo dia do 
confronto decisivo do industrial com os 
adversários, foi a primeira visita de um 
integrante do novo governo desde a pos-
se de Lula. De nada adiantou. Assim 
que Alckmin foi embora com os cartões 
de visita que recolhera, os dirigentes dos 
sindicatos reiniciaram as hostilidades.
Gomes procurou responder a todos os 
questionamentos apresentados como pre-
texto pa ra sua destituição. Nas contas de 
um participante da reunião, ele foi inter-
rompido quinze vezes por questões de 
ordem, e pelo menos sete dirigentes fo-
ram aplaudidos ao pedir que renunciasse 
ao cargo. Alguns bocejaram e roncaram 
alto enquanto Gomes falava. Outros pu-
xaram vaias. Quando pediram que colo-
casse a própria destituição em votação, o 
empresário se recusou a fazê-lo. “Nin-
guém mais estava a fim de ser amigo 
dele”, disse André Sturm à piauí, ao relem-
brar os acontecimentos daquele dia. 
Quando se organizou uma votação 
para que os dirigentes opinassem sobre 
as explicações de Gomes, somente 24 de-
les disseram que eram satisfatórias, e 
62 afirmaram que não. Gomes levantou- 
se e foi embora com um grupo de alia-
dos. Já era noite quando o presidente do 
Sindicato da Indústria de Especialidades 
Têxteis do Estado de São Paulo, Paulo 
Henrique Schoueri, assumiu a direção 
dos trabalhos e colocou em votação a 
proposta de destituição. Com o salão es-
vaziado, contaram-se 47 votos a favor do 
afastamento, 1 contra e 2 abstenções.
Gomes começou a virar o jogo quando 
deixou claro que iria resistir. Convocado 
para reforçar sua defesa, o advogado Mi-
guel Reale Junior disse que a destituição 
era ilegal, por contrariar os estatutos da 
federação, e acusou os adversários do em-
presário de patrocinar “um golpe contra o 
espírito democrático”. Dos 18 sindicatos 
que haviam apoiado o manifesto pela 
democracia articulado por Gomes em 
agosto, 12 votaram pela sua destituição 
em janeiro, de acordo com a contabili-
dade de um empresário que acompa-
nhou as duas votações da assembleia. 
Quando Gomes mandou divulgar 
uma nota dizendo que conti-
nuava no exercício de suas 
funções, seus opositores 
aproveitaram um momento 
em que estava ausente e se 
reuniram na Fiesp para em-
possar como presidente interino o mais 
velho dos vice-presidentes da casa, Elias 
Miguel Haddad, que está com 95 anos 
de idade. Gomes então ameaçou recor-
rer à Justiça, abrindo o caminho para 
negociar um acordo que pacificasse a 
organização. O industrial sentou-se 
com Skaf no escritório do advogado Ives 
Gandra da Silva Martins, e eles fecha-
ram um acordo. “A briga podia se arras-
tar, e não ia ser bom para nenhum dos 
dois lados”, disse Schoueri em março. 
Nem Gomes nem Skaf quiseram dar 
entrevistas à piauí.
Na nota conjunta em que sacramen-
taram o acerto, os dois empresários se 
comprometeram a trabalhar pela “supe-
ração de divergências”, reconhecendo 
a importância dos sindicatos menores e a 
necessidade de uma “gestão mais ampla 
e abrangente”. No dia em que Gomes 
recebeu Fernando Haddad na federa-
ção, Skaf compareceu e sentou-se ao 
lado de um assessor do ministro na mesa 
principal. Nas semanas seguintes, Go-
mes anunciou a intenção de mexer no-
vamente nos conselhos da entidade e 
pediu a todos os sindicatos que indicas-
sem nomes. Os colegiados voltaram a 
inchar, e o conselho presidido por Pedro 
Wongtschowski dobrou de tamanho.
N um estudo clássico sobre a indus-trialização de São Paulo, o histo-riador norte-americano Warren 
Dean observou que os empresários do 
setor sempre buscaram a identificação 
com o bem comum como parte de uma 
estratégia útil para acumular força polí-
tica e defender seus negócios. “É óbvia 
a existência de uma absoluta correlação 
entre os fins almejados pelos industriais 
e os verdadeiros interesses da nação”, 
disse Francisco Matarazzo em 1928, ao 
tomar posse como o primeiro presiden-
te do Centro das Indústrias do Estado 
de São Paulo (Ciesp). “O aumento da 
capacidade de consumo da nação re-
presentará a abertura de um formidável 
mercado para os industriais brasileiros. 
Elevando-se harmoniosamente, o con-
sumo e a produção aumentarão a rique-
za, trarão grandeza ao país, bem-estar e 
tranquilidade à população.”
O Ciesp nasceu de um racha na Asso-
ciação Comercial de São Paulo, organi-
zação patronal em que os pioneiros da 
indústria paulista viviam às turras com 
comerciantes que traziam do exterior 
grande parte das mercadorias que satisfa-
ziam as necessidades de consumo da 
população. Os industriais paulistas que-
riam que o governo elevasse as tarifas de 
importação, para barrar a entrada de pro-
dutos estrangeiros mais baratos e evitar 
que concorrentes nacionais emergissem 
importando máquinas mais modernas. 
Os importadores culpavam o protecionis-
mo da indústria pela inflação, e isso fazia 
com que muitos empresários do setor 
fossem malvistos pela população. 
Nascido na Itália em 1854, numa fa-
mília de proprietários rurais, Matarazzo 
migrou para o Brasil em 1881 e se esta-
beleceu como comerciante em Soroca-
ba, no interior de São Paulo. Começou 
a produzir banha de porco e depois de 
alguns anos se mudou para a capital, 
onde construiu um império industrial 
que no início do século ## incluía uma 
tecelagem, um moinho de trigo, um en-
genho de arroz e fábricas de óleo e sabão. 
Matarazzo foi um dos homens mais ri-
cos do mundo no seu tempo e alimenta-
va a própria fama como imigrante que 
saiu de baixo e venceu. Admirador de 
Benito Mussolini, foi sepultado de acor-
do com um ritual fascista, em 1937.
Pouco restou dos seus empreendi-
mentos. Os negócios foram se desfazen-
do em meio a disputas familiares e 
dificuldades econômicas. A única in-
dústria em atividade que ainda é dirigi-
da porum Matarazzo é a Metalma, que 
faz embalagens, tampas e chapas para 
revestimento interno de refrigeradores. 
A empresa tem três fábricas, uma em 
São Carlos, no interior paulista, outra 
no Paraná, e uma terceira na Zona Fran-
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7 de 8 27/4/23 PROVA FINAL
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ca de Manaus. O ex-ministro Andrea 
Matarazzo, que chefiou a Secretaria de 
Comunicação Social no governo Fer-
nando Henrique Cardoso, está à frente 
da Metalma. Ele é sobrinho-bisneto de 
Francisco Matarazzo.
Muitas indústrias de São Paulo fize-
ram o mesmo caminho que a dele nos 
últimos anos, atraídas pelos generosos 
incentivos fiscais oferecidos às que se ins-
talam em Manaus. Criada em 1967 com 
a intenção de estimular o desenvolvimen-
to da região amazônica, a Zona Franca 
deve custar somente neste ano 20 bilhões 
de reais em renúncia fiscal para os cofres 
federais. Críticos da iniciativa apontam 
danos causados pela ocupação desorde-
nada de Manaus, ineficiências econômi-
cas e outros resultados indesejáveis, mas 
ninguém consegue mexer na Zona Fran-
ca. O distrito industrial emprega mais de 
100 mil pessoas e tem sua existência ga-
rantida pela Constituição até 2073.
O Ciesp do tempo de Matarazzo tam-
bém não existe mais. Em 1931, transfor-
mou-se na Fiesp, para se enquadrar na 
estrutura sindical criada por Getúlio 
Vargas. Os industriais paulistas resisti-
ram ao modelo no início, porque não 
queriam interferência do governo em 
suas organizações, mas logo perceberam 
as vantagens. O novo sistema submetia os 
sindicatos dos trabalhadores a controles 
rígidos e concedia mais autonomia às en-
tidades patronais, que podiam nomear 
representantes para conselhos e outros 
órgãos governamentais de caráter con-
sultivo. Em 1942, o Ciesp foi recriado 
como uma associação de caráter civil, 
com escritórios espalhados pelo interior, 
que promovem eventos e oferecem ser-
viços a milhares de empresários filiados.
A história dessas entidades ensina que, 
em quase um século, pouca coisa mudou 
ali. “Nas origens desse sistema, foi estabe-
lecido um pacto entre os empresários e o 
Estado, para garantir que as decisões do 
governo seriam compartilhadas com os 
representantes do setor privado, especial-
mente na definição da política tarifária 
no caso da indústria”, explica a cientista 
política Maria Antonieta Leopoldi, da 
Universidade Federal Fluminense, auto-
ra de uma tese de doutorado sobre as as-
sociações da indústria. “A representação 
desses interesses se fragmentou com o 
tempo e essas entidades se enfraquece-
ram, mas a lógica que preside suas rela-
ções com o governo se mantém.”
Nos últimos meses, o governo tomou 
algumas medidas pontuais para atender 
reivindicações de setores da indústria. 
Em março, como os fabricantes de 
pneus haviam solicitado a Alckmin, foi 
restabelecida a tarifa imposta aos pneus 
importados, que Bolsonaro tinha zerado. 
O mesmo ocorreu com as tarifas de resi-
nas plásticas, expondo interesses contra-
ditórios dentro da própria indústria. As 
tarifas tinham sido zeradas no governo 
Bolsonaro, a pedido de empresas que 
buscavam insumos mais baratos para 
produzir, e agora foram restabelecidas, 
para proteger os produtores nacionais de 
resinas da competição externa. As mon-
tadoras de automóveis também já volta-
ram ao guichê, em busca de incentivos 
para reativar o setor e produzir carros 
populares como em outros tempos. 
Se não falta boa vontade em Brasília 
para os pleitos da indústria, é evidente 
que não existe um plano consistente 
para reerguê-la. “O governo tem indica-
do a reindustrialização do país como 
uma prioridade, mas ainda não há uma 
estratégia para alcançar esse objetivo”, 
disse o empresário Pedro Passos, um dos 
fundadores da fabricante de cosméticos 
Natura e atualmente copresidente do 
Conselho de Administração da empresa, 
numa conversa em março. “Será preciso 
fazer escolhas difíceis para que a indús-
tria volte a progredir, porque nenhum 
país tem como ser competitivo em tudo”, 
acrescentou. “Entidades como a Fiesp 
não contribuem com esse debate porque 
têm uma visão muito conservadora e en-
contram dificuldades para conciliar os 
vários interesses dos associados.”
Com a reforma tributária, o principal 
objetivo do governo é criar um novo im-
posto sobre o consumo de bens e serviços 
para substituir cinco tributos que hoje são 
cobrados pela União, pelos estados e pe-
los municípios. A simplificação tende a 
beneficiar as indústrias, que são especial-
mente punidas pelo complexo sistema 
atual, mas o setor de serviços e a agrope-
cuária temem prejuízos e começaram a 
se mobilizar contra as mudanças. O deba-
te sobre o novo arcabouço fiscal proposto 
por Fernando Haddad também poderá 
provocar reavaliações dos benefícios que 
muitas indústrias recebem, porque o go-
verno está em busca de receitas que aju-
dem a colocar o plano em pé.
Em abril, no dia em que exibiu o bi-
lhete com os compromissos assumidos 
pelo ministro, Gomes recebeu na Fiesp 
membros da comissão que conduzirá a 
discussão da reforma tributária na Câ-
mara dos Deputados. Ao defender as 
mudanças, ele parecia ecoar o discurso 
de Francisco Matarazzo. “A indústria 
está abraçada a esta causa, mas não por-
que acredita que ela é boa para a indús-
tria”, disse aos parlamentares. “Ela é boa 
para a indústria porque é boa para todo 
mundo, é boa para o país.” Gomes reco-
nheceu a necessidade de abrir exceções 
para alguns setores, como a produção de 
alimentos básicos e os serviços de saúde, 
mas fez questão de traçar uma risca no 
chão: “A Fiesp não pode admitir que a 
alíquota [do novo imposto] suba para os 
bens da indústria de transformação de 
maneira a compensar as exceções.”
Soou como se o velho pato amarelo de 
borracha estivesse pronto para entrar em 
ação novamente, a qualquer momento. J
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Santa Catarina e a multiplicação de células neonazistas
FELIPPE ANÍBAL
capítulos do nazismo I
À 
medida que o comboio de 
cinco viaturas da Polícia Civil 
avançava pelas estradas de 
terra, molhadas pela garoa 
fina que caía no fim da ma-
drugada de 14 de novembro passado, o 
delegado Arthur de Oliveira Lopes 
sentia-se mais ansioso. Aquela era até 
então a operação mais importante da 
Delegacia de Repressão ao Racismo e De-
litos de Intolerância (!""!#), unidade 
criada oito meses antes para conter o 
avanço de células neonazistas em Santa 
Catarina. Nos dias anteriores, as inves-
tigações descobriram que integrantes 
de um desses grupos promoveriam um 
encontro secreto naquele fim de sema-
na, em um sítio na bucólica São Pedro 
de Alcântara, na Região Metropolita-
na de Florianópolis. O objetivo da ação 
era algo raro de se conseguir em uma 
operação policial: surpreender os suspei-
tos em flagrante. 
Ao amanhecer, os carros foram discre-
tamente estacionados a cerca de 200 me-
tros da entrada do sítio. Oliveira Lopes 
dividiu os dezesseis policiais em dois gru-
pos e, por lados opostos, eles contorna-
ram o sobrado, no centro da propriedade. 
Ao comando do delegado, um agente 
arrombou a porta principal, e os poli-
ciais invadiram a residência para cum-
prir o mandado de busca e apreensão 
expedido pela Justiça. Oito homens que 
dormiam na casa – cinco em cômodos 
inferiores e três na parte de cima – fo-
ram acordados pela ação dos agentes. 
Ninguém reagiu. Foram colocados na 
varanda, de joelhos, e algemados com as 
mãos para trás. O delegado relaxou, mas 
ainda teria surpresas pelo caminho.
Nas buscas no sítio, o material 
apreendido chamou a atenção. Entre os 
itens de apologia aonazismo, consta-
vam trinta camisetas, cinco jaquetas, 
duas blusas de moletom, duas bandeiras 
e treze adesivos, todos fazendo alusão 
a facções neonazistas, supremacistas 
brancas e racistas. Havia também 36 li-
vros, entre os quais, O Pensamento de 
Adolf Hitler e The Turner Diaries – uma 
distopia neonazista, ambientada nos Es-
tados Unidos, que conta sobre um golpe 
de Estado liderado por brancos que se 
voltam contra negros e judeus. Por fim, 
além de duas facas e um canivete, havia 
um cartucho calibre .38 e quatro estojos 
de projéteis já deflagrados. 
Quase todos os detidos tinham inú-
meras tatuagens, algumas explicita-
mente ligadas ao neonazismo, como a 
Totenkopf (a caveira símbolo da $$, bra-
ço armado do Partido Nazista), o “sol 
negro” (comum entre grupos neonazis-
tas), a cruz celta (insígnia usada por 
supremacistas brancos e neonazistas) e 
a inscrição White Power (também li-
gada a supremacistas). “Eles parecem 
gibis do neonazismo”, diz o delegado 
Oliveira Lopes. “São muitas tatuagens 
emblemáticas, inclusive em locais visí-
veis. É como se tivessem orgulho de ser 
neonazistas. Até ali, tudo já indicava 
que estávamos diante de algo grande.”
Porém havia mais. Em conversa pre-
liminar com os detidos, o delegado per-
cebeu que o grupo era mais relevante 
do que imaginara. Um deles revelou 
que respondia por um duplo homicídio. 
Era o personal trainer João Guilherme 
Correa, de 32 anos, acusado de partici-
pação no assassinato a tiros de um casal 
que voltava de uma festa em comemo-
ração aos 120 anos de Hitler, realizada 
em 2009, na Região Metropolitana de 
Curitiba. Segundo a polícia, o crime 
tinha sido motivado por uma disputa 
entre grupos extremistas. Uma das ví-
timas, Bernardo Dayrell Pedroso, de 
24 anos, era o fundador da revista online 
O Martelo, de temática neonazista.
Outro detido, Laureano Vieira Tosca-
ni, de 37 anos, usava uma tornozeleira 
eletrônica. Já tinha sido condenado a tre-
ze anos de prisão por tentativa de homi-
cídio no ataque a três jovens judeus, em 
Porto Alegre, em 2005. Segundo a polí-
cia, Toscani integrou o grupo skinhead 
Carecas do Brasil e tem uma extensa fi-
cha criminal, que inclui o espancamento 
de um jovem negro, a tentativa de homi-
cídio de um agente de segurança – tam-
bém negro – e tráfico internacional de 
armas. Outros dois presos também ti-
nham passagem pela polícia, inclusive 
por crime de preconceito religioso.
Ainda no sítio, os policiais acessaram 
os celulares dos acusados e encontra-
ram elementos sobre as conexões da cé-
lula neonazista. Todos faziam parte do 
grupo Support 38, criado por Correa, 
no Telegram, e administrado pelo em-
presário moçambicano Miguel Ângelo 
Gaspar Pacheco, de 48 anos, também 
detido na operação. O Support 38 é um 
grupo de apoio aos Hammerskins, célula 
ELDORADO 
DO EXTREMISMO
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Células do ódio: a proliferação de grupos neonazistas em Santa Catarina e outros estados do Brasil é indissociável da atual ascensão de ideias reacionárias nas democracias ocidentais
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de supremacistas brancos criada em 
Dallas, nos Estados Unidos, na década 
de 1980. (A codificação dessas organiza-
ções é toda uma elaboração: o número 
38, que sempre aparece, é uma referên-
cia à terceira letra do alfabeto – ! – e à 
oitava – " –, sendo que !" vem a ser a 
sigla de crossed hammers, ou martelos 
cruzados, o símbolo dos Hammerskins.)
O arquivo dos celulares mostrou as 
relações do grupo fora do Brasil, princi-
palmente com neonazistas na Europa e 
nos Estados Unidos. Em uma foto locali-
zada em seu aparelho, Correa aparece ao 
lado de quatro homens em frente à Torre 
Eiffel, em Paris, ostentando uma bandei-
ra com a cruz suástica. Há imagens dele 
em outros países, como Portugal, França 
e Rússia. Na delegacia, Correa foi o úni-
co a admitir que há seis anos o grupo 
todo integra uma rede internacional. 
E mais: sua célula acabou de subir um 
degrau na hierarquia dos Hammerskins, 
tornando-se um “capítulo” – uma espé-
cie de franquia, com autonomia para 
usar os símbolos da rede na América do 
Sul. Foram chamados de Southlands 
Hammerskins – e já tinham até camise-
tas estampadas com o nome da facção. 
“Prender esses grupos em flagrante é 
uma coisa muito rara, difícil de aconte-
cer. Mas quando o João Guilherme [Cor-
rea] se identificou, eu pensei: ‘Meu Deus! 
Pegamos um dos responsáveis pelo caso 
mais emblemático de disputa entre gru-
pos neonazistas’”, disse o delegado, refe-
rindo-se ao duplo assassinato cometido 
após a festa hitlerista. “Ele era um dos 
mais altos na hierarquia do grupo. Os ou-
tros perguntavam a ele que símbolos pode-
riam ser usados. O Laureano [Toscani] 
também é uma referência, inclusive men-
cionado em jornais neonazistas que cir-
culam na Alemanha”, completou Oliveira 
Lopes. “Naquele dia, saí da delegacia qua-
se à meia-noite. Mas fui dormir tranqui-
lo, com a sensação de dever cumprido. 
Era um grupo a menos.” Posteriormente, 
no fim de março, outros dois homens 
que participaram do encontro neonazis-
ta também foram presos. Todos os dez 
permanecem detidos aguardando julga-
mento por associação criminosa, apolo-
gia ao nazismo e racismo.
C om apenas 3% da população bra-sileira, Santa Catarina lidera o avanço do neonazismo no Brasil. 
Em um ano – de 2021 para 2022 –, o 
número de grupos neonazistas identi-
ficados em terras catarinenses mais 
do que dobrou: são 320 células ativas, o 
que representa mais de um quarto dos 
1 117 grupos catalogados no país. Ape-
nas em Blumenau, cidade de 365 mil 
habitantes, são 63. Só perde para São 
Paulo, a capital com 12 milhões de ha-
bitantes e 96 células neonazistas. Os 
dados não são oficiais. Fazem parte do 
monitoramento realizado pela antropó-
loga Adriana Dias, uma referência no 
estudo de grupos extremistas, que fa-
leceu de câncer em janeiro deste ano. 
O mapeamento vinha sendo feito a par-
tir de aplicativos, grupos e fóruns na 
internet e, principalmente, na deep web 
– a zona mais sombria da internet. 
A explicação para essa proliferação 
de células totalitárias tem raízes na his-
tória. São Pedro de Alcântara, escolhida 
como sede do encontro dos oito neo-
nazistas presos, tem apenas 6 mil ha-
bitantes, é crivada de construções de 
arquitetura germânica e detém um pio-
neirismo: é a primeira colônia alemã de 
Santa Catarina, fundada em 1829. Na 
praça em frente à prefeitura, uma está-
tua celebra os colonos, mostrando uma 
família de imigrantes – o casal, três 
crianças e um cachorro. Principalmente 
nas comunidades rurais, ainda se falam 
três dialetos, sobretudo o Hunsrückisch, 
originário do sudoeste da Alemanha, de 
onde vieram os pioneiros. Nos anos se-
guintes, outras colônias alemãs se for-
maram e deram origem a cidades como 
Blumenau, Joinville e Pomerode – esta, 
com 35 mil habitantes, conhecida como 
“a cidade mais alemã do Brasil”.
Quase ao mesmo tempo em que os 
primeiros alemães chegaram, Santa Cata-
rina passou a receber levas de imigrantes 
da Itália, vindos principalmente do Norte 
do país. As colônias italianas também vi-
raram municípios, como Nova Trento, 
Nova Veneza e Urussanga. Os alemães e 
italianos que aportaram no Brasil no curso 
do século #$# estavam fugindo de crises 
econômicas e vinham em busca de uma 
vida melhor. Chegaram por aqui muito 
antes do surgimento do nazismo na Ale-
manha ou do fascismo na Itália.
As coisas mudaram no início do sécu-
lo ##, quando Santa Catarina continuou 
a receber correntes migratórias da Itália 
e da Alemanha, mas agora como parte 
de um projeto do Estado brasileiro para 
“embranquecer” a população do país. 
“O branqueamento é explícito no projeto 
de colonização do Brasil”, observa o histo-
riador René Gertz, professor aposentado 
da Universidade Federal do Rio Grande 
do Sul, pós-doutor pela Universidade Li-
vre de Berlim e autor de O Fascismo no 
Sul do Brasil. Esses novos imigrantes 
chegaram ao Brasilcarregando na ba-
gagem o nacionalismo fervoroso que se 
espalhava pela Itália e a Alemanha.
Em 1928, cinco anos antes da ascen-
são de Hitler, o nazismo aportou oficial-
mente nas terras catarinenses. Foi então 
que Santa Catarina tornou-se o primei-
ro estado a ter uma seção do Partido 
Nazista no Brasil, fundada em Benedito 
Timbó, então um distrito de Blumenau. 
A seção também foi a primeira fora da 
Alemanha a ser reconhecida pelo %&'(), 
o partido de Hitler. Funcionava, na prá-
tica, como uma sucursal do %&'(). Não 
era inscrita na Justiça Eleitoral e não 
participava de eleições. A filiação era 
mais uma forma de manter vínculo com 
o país de origem e aproximar pessoas 
com a mesma identidade política. 
Nos anos seguintes, a seção brasilei-
ra do Partido Nazista expandiu sua in-
f luência para outras cidades catarinenses 
e outros estados, como Rio de Janeiro e 
Ingressos:
casanaturamusical.com.br
Cia Aérea Oficial: Apoio:
Nos
encontramos
na música
e muito +
18.05
João Donato e Jards Macalé
29.06
Bixarte
25 e 26.05
Russo Passapusso 
e Antônio Carlos 
& Jocafi
02.06
Zé Manoel e 
Amaro Freitas
04.06
Ana Gabriela
17.06
Anelis Assumpção
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Espírito Santo. Chegou a ter 2 903 fi-
liados – o que correspondia a cerca de 
3% do total de imigrantes alemães resi-
dentes no Brasil na época. Era pouca 
gente, mas as células tinham boa organi-
zação. O movimento chegou a contar 
com jornais – os mais conhecidos foram 
o Deutscher Morgen (Aurora alemã) e o 
Blumenauer Zeitung (Jornal de 
Blumenau) – e há inúmeras fotos 
em preto e branco mostrando des-
files com os integrantes do partido, 
todos paramentados com símbolos 
nazistas, nas cidades catarinenses 
de Blumenau e Ibirama. 
Até então, o controle político de 
Santa Catarina era disputado por 
duas oligarquias: a família Konder, 
cujo reduto ficava na região do Vale 
do Itajaí, onde se concentravam as 
colônias alemãs e italianas, e a famí-
lia Ramos, apoiada sobretudo pelo setor 
industrial. Na década de 1930, com a as-
censão de Getúlio Vargas – apoiado pelos 
Ramos –, passou a haver uma persegui-
ção violenta aos Konder e às regiões onde 
os colonos se estabeleceram. No meio da 
disputa entre as duas oligarquias, essas 
colônias encontraram uma alternativa 
política num grupo que ganhava adesão 
crescente no estado: a Ação Integralista 
Brasileira (!"#), a legenda do fascismo à 
brasileira, criada em 1932.
O integralismo uniu as colônias ale-
mãs e italianas e lhes proporcionou uma 
projeção no campo político, coisa que, por 
exemplo, não aconteceu no Rio Grande 
do Sul, apesar de também ali a imigração 
alemã e italiana ser tão relevante. O histo-
riador René Gertz colheu dados concre-
tos. Na eleição de novembro de 1935, por 
exemplo, as colônias alemãs em terras 
gaúchas elegeram apenas quatro vereado-
res integralistas. Em Santa Catari-
na, na disputa de março de 1936, 
foram 8 prefeitos e 72 vereadores. 
Com o fim do Estado Novo, em 
1945, os catarinenses continuaram 
na mesma toada e elegeram sete 
deputados estaduais integralistas. 
A novidade atraiu muitos jovens – 
entre 25 e 35 anos –, com aspira-
ções de ascensão social.
“A integração política dos ale-
mães em Santa Catarina foi muito 
mais profunda”, diz Gertz. “O Rio 
Grande do Sul até hoje não teve ne-
nhum governador titular de sobrenome 
alemão, apesar de toda importância so-
cioeconômica da colônia para o estado. 
Em Santa Catarina, desde a Procla-
mação da República, tivemos onze go-
vernadores titulares de sobrenome 
alemão.” Ele prossegue: “Os integralis-
tas catarinenses não eram colonos de 
‘picada’, que não falavam português. Isso 
é asneira. Eram jovens comerciantes ou 
que tinham uma fabriqueta e queriam 
ascender. Era um fenômeno essen-
cialmente urbano.” 
A proliferação atual de células neo-
nazistas em Santa Catarina, no entanto, 
não é por causa dos imigrantes alemães. 
Existe uma mística do passado catari-
nense – com suas colônias, a tradição, a 
arquitetura e mesmo a história política, 
desde a seção pioneira do Partido Nazis-
ta até a força dos integralistas locais – 
que fascina os neonazistas de todo o 
Brasil. (Outra mística está relacionada à 
velha lorota histórica de que Hitler não 
se suicidou no bunker em Berlim, mas 
fugiu para o Brasil e está enterrado em 
algum canto em Santa Catarina.) Para 
os neonazistas brasileiros, Santa Catari-
na é o eldorado. Entre os oito presos na 
operação em São Pedro de Alcântara, só 
um era catarinense. Além do moçambi-
cano, havia quatro gaúchos, um para-
naense e um mineiro.
“Tem casos de presos fazendo associa-
ções absurdas, colocando Santa Catari-
na como habitat de uma raça superior, 
por ter tido migração alemã e italiana. 
Essa mística é inerente a esses grupos”, 
diz o delegado$Oliveira Lopes.$Ele se 
lembra de um caso pitoresco: “Tivemos 
um preso que é pardo e pregava o neo-
nazismo. Virava chacota inclusive no 
próprio grupo.” Para o professor$Gertz,$“a 
falha educacional dessas pessoas parece 
ser$o ponto principal”.$$Ele também aler-
ta que$fazer uma associação direta entre 
a existência das colônias e os grupos neo-
nazistas é “um erro grotesco”. 
S anta Catarina virou o epicentro neonazista pela confluência desse equívoco histórico com uma rea-
lidade brasileiríssima – a impunidade. 
Pouco antes de morrer, a antropóloga 
Adriana Dias, que monitorava o movi-
mento no Brasil, deu entrevistas estabe-
lecendo uma relação direta entre a 
disseminação desses grupos totalitários 
e a leniência legal com que são tratados. 
Ela mencionou o fato de que João Gui-
lherme Correa, um dos oito presos em 
São Pedro de Alcântara, respondia em li-
berdade pelo duplo homicídio do qual é 
acusado há quase catorze anos. 
“As células no Sul do país começam 
em cidades pequenas, com a negação do 
Holocausto. Aí, vão se transformando 
em células hitleristas, da Ku Klux Klan 
ou outros tipos”, disse a antropóloga, 
ao canal %&' (), no YouTube. “Se você 
não pune os líderes, obviamente elas 
vão crescer mais.” Em Santa Catarina, 
além da criação da %**%", a delegacia 
de repressão, em março de 2022, o Mi-
nistério Público Estadual também op-
tou pela especialização. Em outubro 
do ano passado, designou a 40ª Promo-
toria de Justiça da Comarca da Capital 
para combater crimes de intolerância e 
racismo. “A intenção é aplicar a lei com 
agilidade para que tenha caráter educa-
tivo e punitivo”, disse o promotor Ro-
drigo Millen Carlin, responsável pela 
40ª Promotoria. 
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A estrutura, porém, é ainda precária. 
A !""!# tem um delegado, três investiga-
dores e uma escrivã. A pequena equipe 
trabalha com computadores emprestados 
pela Diretoria Estadual de Investigações 
Criminais (Deic), cuja capacidade de 
processamento não é adequada para ro-
dar dispositivos de extração de dados, tão 
importantes para agilizar as investigações. 
Os laudos do Instituto de Criminalística 
demoram. A perícia dos dez celulares, dois 
$!s, um pen drive e um cartão de me-
mória apreendidos na operação em São 
Pedro de Alcântara chegaram apenas na 
segunda semana de março, quatro meses 
depois da operação.
Comoacontece em todas as esferas do 
crime no Brasil, os criminosos são mais 
ágeis que os policiais. E o combate à ascen-
são de neonazistas não é exceção. “É uma 
realidade das polícias em todo o país”, la-
menta o delegado Oliveira Lopes. “Infeliz-
mente, esses grupos estão se organizando 
por aí. Tem muitas células em São Paulo, 
no Paraná... O Rio Grande do Sul tem um 
movimento skinhead muito forte. E aqui 
em Santa Catarina a atividade dessas cé-
lulas é histórica.” O pior é quando a impu-
nidade resulta em condescendência.
O historiador Michel Ehrlich, coorde-
nador de história do Museu do Holocaus-
to, em Curitiba, também se incomoda 
com a tolerância excessiva a esses crimes. 
“O neonazismo está profundamente rela-
cionado ao racismo contra negros e indí-
genas, na radicalização contra nordestinos, 
no ódio contra as mulheres e homosse-
xuais. Isso vai escalando. O Holocausto 
não começou com aquelas imagens horro-
rosas dos campos de concentração. Co-
meçou com a tolerância ao ódio.”
Em 2014, tornou-se público o caso 
do professor de história Wandercy An-
tônio Pugliesi, de Pomerode. Em sua 
casa, o fundo da piscina exibia o imen-
so desenho de uma suástica, uma evi-
dente apologia ao nazismo. Sete anos 
mais tarde, o caso foi arquivado, após 
Pugliesi descaracterizar o símbolo. Mas 
o processo foi reaberto depois que o 
professor fez uma nova obra e decorou 
o fundo da piscina com o número 88, 
considerado um código neonazista: a 
repetição da oitava letra do alfabeto 
($$) é uma referência à saudação Heil, 
Hitler. Nas últimas eleições, Pugliesi 
candidatou-se a vereador pelo %&, mas 
acabou retirando a candidatura.
Em outubro de 2020, Daniela Reinehr 
assumiu interinamente o governo de 
Santa Catarina, quando o titular, Carlos 
Moisés, foi afastado do cargo para res-
ponder a um processo de impeachment. 
Na entrevista depois da posse, saiu-se 
com uma evasiva quando perguntaram 
a ela se concordava com as posições de 
seu pai, o professor de história Altair Rei-
nehr, um notório negacionista do Holo-
causto. Foi preciso uma forte repercussão 
negativa, de âmbito nacional, para que a 
nova governadora voltasse a público para 
dizer, dessa vez de forma clara, que não 
compactuava com o nazismo.
Em novembro, noticiou-se o caso da 
universitária '.(., que, ao cruzar o por-
tão da Universidade Federal de Santa 
Catarina ()*+,), foi abordada por um 
rapaz que usava um bóton com a insíg-
nia da ++: “Sua suja! Volte para o Nor-
deste.” A moça não denunciou à polícia 
e nada aconteceu ao rapaz. Na semana 
anterior, circulara no campus uma car-
ta com uma coleção de intolerâncias: 
“Nós iremos destruir todos vocês. Gays, 
negros, mulheres feministas, gordas, 
amarelos. Iremos limpar a universidade 
e fazer um mundo melhor para nossos 
filhos e netos.” O texto vinha assinado 
por “++”. Os criminosos nem sequer fo-
ram identificados.
No mês seguinte, em Itajaí, também 
no litoral catarinense, começou a circu-
lar um e-mail que exigia o cancelamen-
to da Primeira Mostra Haiti de Cultura, 
organizada pelo município. Assinado 
por “Sieg Heil 14/88”, o texto pressiona-
va pela expulsão de todos os haitianos 
dos estados da região Sul e ameaçava: 
“Cancelem a Mostra Haiti ou faremos 
uma chacina. [...] Será o primeiro ato 
para a purificação racial do Reich Cata-
rinense. [...] Santa Catarina é terra !( 
-"./,0+ ( %.". -"./,0+.” Como a 
mostra foi mantida e transcorreu sem 
violência, os autores do e-mail não fo-
ram identificados. 
N a noite de 12 de abril do ano pas-sado, os policiais de São Miguel do Oeste, cidade de pouco mais 
de 40 mil habitantes, suspeitaram da 
movimentação de um carro com dois 
ocupantes. Na revista do carro, encon-
traram uma balança de precisão e di-
nheiro – sugerindo tráfico de drogas. Na 
casa de um deles, Douglas Alexandre 
Einsweiler da Conceição, encontram 
maconha e sementes de planta, mas 
também uma bandeira vermelha com a 
suástica, peças para a fabricação de uma 
arma de fogo feitas em impressora 3! e 
um manual para montagem do artefato.
Assim que recebeu os laudos peri-
ciais dos celulares, notebooks, pen drives 
e cartões de memória apreendidos, a 
!""!# encontrou indícios – fotos, vídeos, 
mensagens – indicando que Conceição 
integrava uma célula neonazista, com inte-
grantes espalhados pelo estado. A polícia 
identificou outros cinco. Numa opera-
ção deflagrada em 20 de outubro, seis 
meses depois da batida policial no carro, 
os cinco foram detidos, juntando-se a 
Conceição e seu comparsa. Presos pre-
ventivamente, os seis respondem pelos 
crimes de racismo e disseminação de 
ódio com arma de fogo. Quatro dos réus 
eram alunos da )*+,.
As investigações revelaram 
que a célula se reunia com fre-
quência desde pelo menos 
2020. Nos encontros, registra-
dos em fotos e vídeos, discu-
tiam a disseminação de ideias nazistas 
e pregavam o ódio contra judeus, ne-
gros, nordestinos, mulheres e homosse-
xuais. Um vídeo mostra um integrante 
tendo a cabeça raspada, no que parece 
ser um ritual de iniciação. Outro exibe 
uma bomba explodindo uma televisão 
em cuja tela havia a caricatura de um 
judeu. Em outro, ainda, vários inte-
grantes disparam armas de fogo e gri-
tam lemas em alemão.
Um integrante da célula, Thaylor 
Henrique Lambrecht Caldas, aparece 
nas imagens com colete balístico, uni-
forme militar e, aparentemente, um 
fuzil. No cotovelo esquerdo, ele tem a 
tatuagem do “sol negro”, um dos símbo-
los dos grupos neonazistas. O curioso é 
que, em 2015, a mãe de Caldas regis-
trou um boletim de ocorrência, alegan-
do que seu filho estaria sendo vítima de 
“ameaças e calúnias” na escola, ao ser 
chamado pelos colegas de nazista. 
Mas o que deixou a polícia mais preo-
cupada é que, no meio do material 
apreendido, havia mensagens entre os 
integrantes com ameaças a grupos di-
versos, e vasto conteúdo relacionado à 
fabricação de armas em impressoras 3!. 
As trocas de mensagens sugerem que 
eles preparavam um atentado terroris-
ta. “Ao que tudo indica, trata-se de um 
grupo armado, paramilitar, com claras 
intenções ideológicas de cunho neona-
zista, associados e reunidos com o mes-
mo fito, o de promover a divulgação na 
rede mundial de computadores, da exis-
tência em Santa Catarina de uma célu-
la da temida ++ (Schutzstaffel), pronta 
para agir a qualquer momento”, diz a 
denúncia aceita pela Justiça. 
Duas semanas depois da operação 
de 23 de outubro, o espectro do neona-
zismo reapareceu em São Miguel do 
Oeste. Em 2 de novembro, três dias de-
pois da vitória eleitoral do presidente 
Lula, uma multidão de bolsonaristas 
inconformados com a derrota de seu 
candidato não arredava pé da frente do 
14º Regimento de Cavalaria Mecaniza-
do, a base do Exército no município. 
No fim da manhã, os manifestantes – a 
maioria de verde-amarelo e portando 
bandeiras do Brasil – cantaram a plenos 
pulmões o Hino Nacional. O detalhe: 
todos com o braço direito estendido, à 
maneira da saudação nazista.
Um vídeo da manifestação viralizou 
em escala nacional. A Confederação 
Israelita do Brasil repudiou o ato dos bol-
sonaristas, o que também foi feito pelo 
Museu do Holocausto e pelas embaixa-
das de Israel e da Alemanha. O Grupo 
de Atuação Especial de Combate às 
Organizações Criminosas (Gaeco) do 
Ministério Público abriu uma investi-
gação. A vereadora Maria Tereza Capra 
(%1), que estava recolhida com uma vi-
rose, recebeu o vídeo e indig-
nou-se. Gravou uma resposta 
de 2 minutos e 49 segundos. 
Postou no Instagram, mas reti-
rou do ar uma hora depois: 
recebera uma avalanche de 
ameaças violentas.
Capra foi alvo de uma moção de re-
púdio, aprovada pela Câmara de Verea-
dores, numa sessão tumultuada pela 
presença de bolsonaristas inflamados 
no auditório. (O então presidente da 
Câmara, Vanirto Conrad, do %!1, foi 
apontado pela polícia como um dos or-
ganizadores da manifestação bolsona-
rista.) “Seguiram à risca o Malleus 
Maleficarum [O Martelo das Bruxas, 
um manual do século XV usado pela In-
quisição]”, disse Capra. “Foi um horror 
o que fizeramcomigo. Lotaram a Câ-
mara, violentos, gritando absurdos con-
tra mim, com a conivência dos meus 
colegas. Só faltou levarem as tochas.” 
Como as ameaças não recuaram, 
Capra deixou a cidade, levando consigo 
o pai, a filha, o filho e uma sobrinha de 
8 anos. Refugiou-se no Rio Grande do 
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Sul, de onde só voltou no dia 3 de fe-
vereiro, a tempo de participar da sessão 
que cassou seu mandato – placar de 
10 a 1. O voto contra foi o dela própria. 
Em seguida, tornou a sair da cidade. 
Quatro vereadoras catarinenses que 
apoiaram Capra também receberam 
ameaças de morte e uma enxurrada de 
agressões. Ana Lúcia Martins (!"), pri-
meira vereadora negra de Joinville, foi 
alvo de xingamentos racistas. A verea-
dora Giovana Mondardo (!#do$), de 
Criciúma, recebeu ofensas sexistas. “Eles 
combinaram de nos matar”, disse ela. 
“Mas nós combinamos de não morrer.” 
Mondardo vendeu seu carro e adotou 
medidas de segurança pessoal. 
Por fim, o Gaeco, numa investigação 
rápida, concluiu que a saudação nazista 
não era uma saudação nazista. O gesto 
aconteceu, segundo os investigadores, 
depois que os presentes foram “concla-
mados pelo locutor do evento, empresá-
rio local, a estenderem a mão sobre o 
ombro da pessoa à sua frente ou, se não 
houvesse, para que estendessem o bra-
ço, a fim de ‘emanar energias positivas’”. 
Ehrlich, do Museu do Holocausto, não 
entra no mérito da investigação, mas 
afirma: “Nunca saberemos as intenções 
de quem puxou esse gesto. Mas o que 
temos, de fato, é que esse gesto comu-
nica a mensagem de uma saudação na-
zista. As pessoas, no mínimo, não se 
importaram de parecer nazistas, o que, 
por si só, já é um problema. Preocupa 
pela mensagem que isso passa para as 
células neonazistas. Normaliza. Mostra 
que é possível fazer uma saudação na-
zista e sair impune.”
A multiplicação de grupos neonazis-tas em Santa Catarina e em outros estados do Brasil é parte indisso-
ciável da ascensão de ideias reacionárias 
nas democracias ocidentais. Em alguns 
países, como Hungria e Polônia, os auto-
cratas chegaram ao poder. Em outros, 
como Alemanha e França, os movimen-
tos extremistas de direita ganham cada 
vez mais expressão eleitoral. No Brasil, 
os quatro anos de governo de Jair Bolso-
naro impulsionaram a extrema direita – 
e, no seu rastro, vieram à tona todos os 
lixos do preconceito e da intolerância.
Em Santa Catarina, o bolsonarismo 
caiu no gosto da maioria. Em 2018, Jair 
Bolsonaro teve uma votação consagra-
dora no estado: 75,92%. Quatro anos 
depois, perdeu a eleição no país, mas 
fez 69,27% dos votos no eleitorado cata-
rinense. E Bolsonaro já era o que é mui-
to antes dos dois pleitos. Em 1998, duas 
décadas antes de chegar a presidente, 
ele colecionava episódios de flerte com 
ideias nazistas. Em discurso, defendeu 
alunos de uma escola gaúcha que elege-
ram Hitler como “personagem histórico 
mais admirado”. Deixou-se fotografar 
com um programador de computadores 
chamado Marco Antônio Santos, que 
vestia farda com adereços nazistas, 
cabelo e bigode no estilo hitlerista. 
Em 2011, depois de dar declarações ho-
mofóbicas ao extinto programa CQC, 
da Band, Bolsonaro recebeu – e não 
recusou – manifestação de apoio con-
vocada por um grupo nazista paulista-
no. Sete anos antes, em carta enviada a 
um grupo nazista, havia afirmado: “Vo-
cês são a razão da existência do meu 
mandato.” A carta foi publicada no The 
Intercept Brasil.
No Palácio do Planalto, Bolsonaro 
recebeu Beatrix von Storch, neta de 
um ministro de Hitler e uma das lide-
ranças da extrema direita alemã. Numa 
foto, aparece sorridente ao lado dela. 
Em visita a Israel, ainda como presi-
dente, visitou o Memorial do Holo-
causto e recorreu a uma falsificação 
histórica ao associar o nazismo à es-
querda – no que foi corrigido pelo pró-
prio museu. Nunca se constrangeu de 
cercar-se de uma estética fascista – 
seja usando o slogan desse movimento 
(“Deus, pátria e família”), bradando o 
bordão “Brasil acima de tudo” (que re-
mete ao Deutschland über alles, adota-
do pelo nazismo), fazendo motociatas 
à Mussolini ou bebendo, numa live, 
um copo de leite, o código usado pelos 
supremacistas brancos.
A extrema direita bolsonarista nun-
ca se apresentou como força de caráter 
neofascista ou neonazista, mas também 
nunca se preocupou em desestimular 
seu avanço. “O saldo é preocupante”, 
avalia Ehrlich, do Museu do Holo-
causto. “Vemos uma extrema direita 
se articulando dentro das instituições, 
principalmente em cargos eletivos. Ao 
mesmo tempo, existe uma direita neo-
nazista à margem da lei ou do que é 
aceito socialmente. Mesmo que não 
haja uma explicitação de vínculos en-
tre essas duas esferas, esses polos se 
fortalecem mutuamente. O discurso 
extremista ganha força.” 
Em meados de março, um aconteci-
mento trivial veio comprovar essa con-
taminação e a necessidade de combater 
as ideias neonazistas. Em Porto Belo, 
no litoral catarinense, a equipe do dele-
gado Arthur de Oliveira Lopes prendeu 
um jovem de 19 anos, que fazia apolo-
gia ao nazismo e disseminava ódio aos 
negros e judeus nas redes sociais. Seu 
histórico já era complicado. Ele promo-
veu um episódio de violência na escola 
– em que agrediu fisicamente uma pro-
fessora – e não admitia ser ensinado por 
um professor negro. O rapaz, cuja iden-
tidade não foi divulgada, estava envol-
vido com grupos neonazistas. Quando 
tinha 13 anos, foi recrutado enquanto 
jogava videogame. Os jogadores con-
versavam por meio de chats enquanto 
jogavam e, de conversa em conversa, 
criou-se um neonazista. J
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Como as crianças nascidas de um projeto genético de Hitler 
enfrentam a descoberta sombria de suas raízes
VALENTINE FAURE
capítulos do nazismo II
OS FILHOS 
DO DELÍRIO
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a pequena escola primária de 
Jouy-sous-les-Côtes, no nor-
deste da França, Gisèle Marc 
sabia dos boatos sobre ela: 
que tinha sido adotada e sua 
verdadeira mãe talvez fosse uma prosti-
tuta. Era o fim dos anos 1940, pouco 
depois da Segunda Guerra Mundial, 
uma época em que histórias como essa 
eram sussurradas de pais para filhos. 
As mulheres que segundo se dizia ha-
viam dormido com soldados alemães 
durante a Ocupação da França – cha-
madas de “colaboradoras horizontais” 
– tinham a cabeça raspada e eram humi-
lhadas publicamente por turbas furio-
sas. No jardim da escolinha, as crianças 
zombavam daqueles supostos filhos de 
“pais desconhecidos”. 
A ideia de que teria sido abandonada 
por alguém de má reputação deixava 
Gisèle Marc terrivelmente envergonha-
da. Aos 10 anos, ela tomou coragem e 
confrontou sua mãe, que contou a ver-
dade: “Nós te adotamos quando você 
tinha 4 anos; você falava alemão, mas 
agora você é francesa.” As duas pouco 
falaram sobre esse assunto depois.
Gisèle encontrou os papéis de sua 
adoção escondidos em uma gaveta no 
quarto dos pais e, de tempos em tempos, 
dava uma espiada no que estava escrito 
ali. Quando fez 18 anos, queimou todos 
eles no fogão. “Eu disse para mim mes-
ma: se quiser continuar vivendo, preciso 
me livrar disso tudo”, contou. Hoje ela 
tem 79 anos e não se arrepende de ter 
queimado os documentos. 
Por um tempo, Gisèle conseguiu 
deixar de lado a questão de suas ori-
gens. Aos 17 anos, aceitou um emprego 
num abrigo que também funcionava 
como hospital infantil e percebeu que 
tinha encontrado sua vocação. Passou 
toda a carreira trabalhando principal-
mente em creches. Depois, abriu a sua 
própria creche. Em 1972, casou-se com 
Justin Niango, um estudante de quími-
ca da Costa do Marfim. Eles compra-
ram um hotel nos fundos da Praça 
Stanislas, na cidade de Nancy, também 
no nordeste da França, e o transforma-
ram numa casa.
Visitei Gisèle em junho passado. 
Foi fácil imaginar a vida familiar vi-
brante que havia em sua casa no passa-
do, com os seus quatro filhos – Virginie, 
Gabriel, Grégoire e Matthieu– subin-
do e descendo as escadas, correndo 
para lá e para cá, tocando instrumen-
tos nos quartos. Na escola, eles costu-
mavam ser as únicas crianças negras 
da turma. Gisèle tem muitas histórias 
sobre os comentários cruéis que ouviu 
ao longo dos anos, nas quais sempre 
acabava confrontando o culpado. Ela 
demorou a contar para os filhos que foi 
adotada. Tinha medo que a revelação 
pudesse enfraquecer o vínculo deles 
com os avós. Mas, às vezes, o segredo 
“doía um pouco”. Gisèle sabia que 
uma hora teria que contar. Fábrica de arianos: em foto de Robert Capa para a 
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revista Life em 1945, bebês encontrados pelos Aliados no fim da Segunda Guerra, em maternidade em Hohenhorst, na Alemanha; pelo menos 9,2 mil crianças nasceram nos abrigos criados pelos nazistas
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Quando sua mãe morreu, em 2004, 
ela reuniu os filhos e revelou tudo. Eles 
ficaram chocados, e fizeram perguntas 
que ela não sabia responder.
Depois de anos de negação, Gisèle 
desejava encontrar essas respostas. Ela 
lembrava o nome e o local de nascimen-
to que apareciam nos documentos de 
sua adoção: Gisela Magula, nascida em 
Bar-le-Duc, no nordeste da França. Co-
meçou sua pesquisa com isso. Escreveu 
para os Arquivos Arolsen, o centro in-
ternacional sobre perseguição nazista, 
na Alemanha, perguntando se havia men-
ção a ela no vasto conjunto de documen-
tos da organização.
Em março de 2005, veio a resposta: 
ela não tinha nascido em Bar-le-Duc, 
mas perto de Liège, na Bélgica, em uma 
maternidade nazista instalada no Cas-
telo de Wégimont. Esse abrigo e outros 
do gênero tinham sido criados pela !!, 
o braço paramilitar do Partido Nazista, 
sob o guarda-chuva da associação Le-
bensborn, com a qual o regime tentou 
incentivar o nascimento de bebês de “san-
gue bom” para apressar a meta final da 
pureza racial ariana.
Tudo que Gisèle acreditava ser ver-
dade sobre si mesma desandou. A sua 
família, que ela passou parte da vida 
defendendo contra o racismo, descen-
dia de um dos projetos raciais mais som-
brios da história.
O nazismo é uma ideologia de des-truição, cujo objetivo final é a eli-minação das “raças inferiores”. 
Mas outro aspecto igualmente intenso 
desse credo consistiu em uma forma 
imaginária de restauração: assim que 
chegaram ao poder, os nazistas começa-
ram a produzir uma nova geração de 
alemães de sangue puro. A Lebens-
born era uma parte fundamental do 
plano. Criada em 1935 sob os auspícios 
da !!, a associação incentivava a pro-
criação entre membros da raça ariana, 
oferecendo conforto, apoio financei-
ro e, quando necessário, discrição para 
mães que davam à luz. O quartel-ge-
neral da entidade ficava em Muni-
que, na antiga casa do escritor Thomas 
Mann, que deixou a Alemanha em 1933. 
Em 1936, a Lebensborn abriu sua pri-
meira maternidade, na cidade vizi-
nha de Steinhöring.
A !! era supervisionada por Heinrich 
Himmler, comandante militar dessa 
organização e um dos líderes centrais 
do Partido Nazista, que esperava que 
seus soldados de elite servissem como 
vanguarda racial de uma germanidade 
revitalizada. “No que diz respeito ao 
valor de nosso sangue e à quantidade de 
nossa população, estamos morrendo”, 
disse ele, num discurso à !!, em 1931. 
“Estamos sendo convocados a criar as 
bases para que a próxima geração possa 
fazer história.” Agrônomo de formação, 
Himmler acompanhava a iniciativa 
com um nível de atenção que beirava o 
voyeurismo. De início, todos os pedidos 
de casamento de líderes da !! tinham de 
ser levados a ele. Esperava-se que todos 
reproduzissem. Quatro filhos era consi-
derada “a quantidade mínima [...] para 
um casamento bom e sólido”. Himmler 
não tinha problemas com a geração de 
filhos fora do casamento e criticava a 
hostilidade da Igreja Católica aos nasci-
mentos ilegítimos. Criar “filhos ilegíti-
mos ou órfãos de bom sangue” deveria 
ser um “costume aceito”, escreveu ele. 
Em 1939, emitiu uma ordem que in-
citava os membros das !! a procriar 
do modo que lhes fosse possível, inclu-
sive com mulheres com as quais não 
fossem casados. 
De acordo com Himmler, os abrigos 
da Lebensborn deveriam servir “em 
primeiro lugar às noivas e esposas de 
nossos jovens homens das !! e, em se-
gundo lugar, às mães ilegítimas de 
bom sangue”. Na prática, as “mães ile-
gítimas” eram a maioria. Longe dos 
olhos do mundo, mulheres solteiras 
podiam dar à luz em maternidades da 
Lebensborn, e caso quisessem abando-
nar seus bebês, eles receberiam os melho-
res cuidados antes de serem entregues 
a uma família adotiva – desde que os 
pais biológicos satisfizessem os crité-
rios raciais (exigiam-se fotos do pai e da 
mãe). As primeiras candidatas precisa-
vam ter uma altura mínima e provar 
que tinham boa saúde e adequação 
racial, retrocedendo às duas últimas 
gerações. O historiador alemão Georg 
Lilienthal descobriu que, no começo, 
mais da metade das mulheres que se 
candidataram foram rejeitadas.
Os funcionários da Lebensborn ano-
tavam sobre o comportamento das mães 
durante o parto e faziam questão que 
elas amamentassem seus filhos, se fosse 
possível. “A mulher tem seu próprio 
campo de batalha”, disse Adolf Hitler, 
em 1935. “A cada filho que traz ao mun-
do, ela luta uma batalha pela nação.”
As mulheres também recebiam “edu-
cação ideológica” diariamente, de acor-
do com a historiadora britânica Lisa 
Pine. Funcionários da Lebensborn da-
vam a alguns bebês nomes não cristãos, 
durante uma cerimônia inspirada em 
antigos costumes nórdicos. Sob uma ban-
deira nazista e um retrato do Führer, 
em frente de um grupo de 
adeptos, o mestre de cerimô-
nias empunhava uma adaga 
da !! sobre o recém-nascido e 
recitava: “Nós te aceitamos 
em nossa comunidade como um mem-
bro de nosso corpo. Tu deves crescer 
sob nossa proteção e honrar teu nome, 
dar orgulho a teus irmãos e glória inex-
tinguível à tua raça.” Por meio dessa 
cerimônia, a criança se tornava um 
membro do clã da !!, ligada para sem-
pre ao Reich.
Em 11 de outubro de 1943, quando 
Gisèle nasceu, havia dezesseis unida-
des da Lebensborn espalhadas pelos 
territórios ocupados pelos nazistas na 
Europa. Tivesse nascido quatro dias an-
tes, ela teria Himmler como padrinho. 
O Reichsführer da !! fazia questão de 
apadrinhar pessoalmente as crianças 
que compartilhavam seu aniversário, 
em 7 de outubro. 
C onversei com Gisèle Marc na sala de estar de sua casa, com deze-nas de documentos e fotos espalha-
das diante de nós. Baixinha e de cabelos 
brancos recortados por uma mecha 
castanha, ela é uma mulher ao mesmo 
tempo reservada e direta, com uma pi-
tada de senso de humor. “Himmler foi 
bem incompetente comigo”, brincou, 
numa referência a seu casamento com 
um homem negro da Costa do Marfim 
e à família miscigenada que tiveram. 
Gisèle rejeita a ideia de que exista 
uma conexão entre sua carreira profis-
sional, como dona de creche, e seus 
anos iniciais de vida, passados em um 
tipo tão diferente de maternidade. Afi-
nal, ela escolheu o próprio caminho 
muito antes de saber de onde tinha vin-
do. Mas não minimiza o fato de sua 
história de vida estar visceralmente liga-
da à história do nazismo. Gisèle muitas 
vezes se perguntou como suas origens 
podem ter moldado o que chama de 
“memória interna”. Ela sempre teve um 
medo terrível de caminhões, trens mili-
tares e coturnos. Também não tolera 
ouvir bebês chorando – era comum que 
deixasse sua sala na creche para conso-
lar as crianças. Além disso, receia ter 
passado algo ruim para seus filhos por 
meio dos genes.
Um encontro casual ajudou Gisèle 
Marc a retraçar suas origens, poucos 
meses depois da morte de sua mãe, logo 
que começou a sua pesquisa. Um pri-
mo dela foi a um velório e ouviu um 
sujeito alto e louro discursar em home-
nagem ao falecido, um professor que o 
havia incentivado.O tal sujeito, Walter 
Beausert, contou que chegou à França 
ainda criança, em um trem vindo da 
Alemanha. O primo, que tinha idade 
suficiente para se lembrar da adoção 
de Gisèle e sabia que ela viera da Ale-
manha, se perguntou se a parente não 
teria chegado no mesmo trem. Ele re-
solveu conversar com Beausert depois 
do funeral. 
Beausert era uma das crianças nasci-
das na Lebensborn. Em 
1994, ele foi a primeira pessoa 
na França a dar um depoimen-
to sobre a associação nazista, 
em uma reportagem de tevê 
que registrou sua busca pela Europa do 
lugar onde havia nascido. O primo colo-
cou os dois em contato, e Beausert aju-
dou Gisèle a resgatar o próprio passado. 
Ela montou uma história que ainda 
tem muitos furos, mas agora sabe ao 
menos a identidade de sua mãe biológi-
ca. Marguerite Magula era uma hún-
gara que imigrou para Bruxelas com os 
pais e a irmã, em 1926. Mais tarde, se 
mudou para a Alemanha com o objeti-
vo de trabalhar, com a mãe e a irmã, 
numa fábrica em Saarbrücken. Em 
1943, ela engravidou e fugiu de vol-
ta para Bruxelas. A jornalista alemã 
Dorothee Schmitz-Köster, autora de 
Lebenslang Lebensborn. Die Wunsch-
kinder der SS und was aus Ihnen Wurde 
(Lebensborn para sempre: os deseja-
dos filhos das !! e o que aconteceu 
com eles), me disse que, àquela altura, 
o programa Lebensborn tinha afrouxa-
do um pouco seus critérios: uma cren-
ça fervorosa no nacional-socialismo 
poderia compensar a baixa estatura de 
mulheres, como era o caso de Margue-
rite, embora um certificado de ariana, 
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um atestado de saúde e outro de saúde 
hereditária ainda fossem obrigatórios 
para ambos os pais.
O sentimento de Gisèle por Margue-
rite mudou ao longo do tempo. Quando 
descobriu nos arquivos Steinhöring que 
algumas mães foram atrás dos filhos 
depois da guerra, tentando reavê-los, 
Gisèle passou a odiá-la. “Ela nunca veio 
atrás de mim”, disse. “Eu não tenho pie-
dade, nada, muito pelo contrário. Isso 
não é uma mãe.” Um documento do 
pós-guerra negando o pedido de cida-
dania húngara para Marguerite (ela e a 
irmã haviam se tornado apátridas) men-
ciona sua “má vida”. Caso tivessem se 
encontrado, talvez a mãe biológica pu-
desse dar mais explicações. Mas Mar-
guerite morreu em 2001, poucos anos 
antes de a filha começar suas buscas.
Gisèle teve menos curiosidade pela 
identidade do pai, que imagina como o 
estereótipo do oficial da !! – sem dúvi-
da, “um cretino”.
Em 2009, ela conheceu um meio-ir-
mão, Claude, nascido depois da guerra e 
criado por Marguerite. Os dois ainda se 
visitam de tempos em tempos. Ele contou 
a Gisèle que foi maltratado pela mãe e 
certa vez comentou que a irmã teve sorte 
em crescer longe de Marguerite. 
A ssim como Gisèle, Walter Beau-sert deve ao acaso a descoberta de suas origens. Em 1966, quando 
nasceu a primeira filha dele, Valérie, a 
parteira olhou fixamente para Beausert, 
na época com 22 anos. Debaixo dos ca-
belos louros e lisos, tombados sobre a 
testa, ela percebeu os olhos azul-claros 
do rapaz – um deles era um olho de 
vidro que jamais fechava – e se lembrou 
das dezessete crianças pequenas que, 
em 1946, tinham chegado de trem em 
Commercy e foram levadas ao hospital 
da cidade. “Eu acho que você é ale-
mão”, disse a parteira. Isso confirmou 
uma antiga desconfiança dele.
Única criança daquele comboio que 
jamais foi adotada, Beausert cresceu em 
abrigos infantis e se tornou um adoles-
cente circunspecto, difícil. Algo pouco 
comum entre os nascidos nas Lebens-
born, ele tinha sido circuncidado, fato 
que nunca soube explicar. “Meu pai era 
obcecado com a busca pela família. Ele 
procurou pela mãe dele a vida toda”, 
me contou Valérie, sua filha de 56 anos, 
quando nos encontramos em uma cer-
vejaria art nouveau, em Nancy. Em 
1994, quando participou daquela repor-
tagem de tevê sobre sua busca, Beausert 
viajou até o Castelo de Wégimont, o 
lugar que foi um dos abrigos da Lebens-
born. Ali, ouviu os habitantes falarem 
sobre uma mulher chamada Rita, uma 
cozinheira da associação, que deu à luz 
um menino de nome Walter. Segundo 
a história contada, no momento em que 
os soldados tentaram tirar o bebê dos 
braços da mãe, ele caiu e feriu o olho 
esquerdo. Aí estava a pista que Walter 
esperava encontrar – e ele passou a 
acreditar que Rita era sua mãe.
“O problema é que isso não é verda-
de”, disse Valérie. “Nós encontramos 
essa Rita. Sabemos que o bebê Walter 
da história não é meu pai. Mas ele não 
queria ouvir nada a respeito disso. Dizia 
que Rita teve um segundo bebê, tam-
bém chamado Walter. Eu falava que 
isso não fazia sentido. Mas a negação 
dele era patológica.” Na infância, Valé-
rie, que tem olhos azul-claros e cabelos 
louros iguais aos do pai, era chamada 
de boche imunda.1 Seu pai, na infân-
cia, era chamado de “rato branco”. Em 
1986, Valérie se apaixonou por um re-
fugiado do Vietnã. “O pai do meu filho 
foi a primeira pessoa não branca na nos-
sa vila”, disse ela. “Para mim isso não 
tinha a menor importância. Eu tam-
bém me sentia uma forasteira.”
O filho do casal, Lâm, nasceu com 
um olho castanho e o outro azul. Um 
dos olhos – o azul – tinha uma deficiên-
cia. O médico identificou que se trata-
va de uma anormalidade congênita, 
que poderia causar cegueira. Valérie ti-
nha a mesma anormalidade e passou-a 
para o filho. Assim, ela se deu conta de 
que o olho de vidro do pai não era re-
sultado de um ferimento, no fim das 
contas. “Quando meu filho precisou ser 
operado, eu disse para meu pai: ‘Está 
vendo? É congênito.’” Ele ficou indig-
nado: “Que bobagem! Você não pode 
dizer isso!”
Walter Beausert queria acreditar que 
seu olho de vidro era resultado da luta de 
sua mãe biológica para protegê-lo dos 
soldados alemães, e tinha pavor de doen-
ças e da possibilidade de ser “um vetor 
de defeitos”, disse Valérie. Por isso, fazia 
enorme esforço para dar provas de sua 
força superior e seu estoicismo. Um dia, 
um amigo que cortava um tronco com 
uma motosserra atravessou a madeira 
com o instrumento e cortou as duas pan-
turrilhas de Beausert até perto do osso. 
Ele fez dois torniquetes e voltou para 
casa dirigindo. Valérie se lembra do pai 
subindo as escadas com as duas pernas 
ensanguentadas, como se nada tivesse 
acontecido, e pedindo com toda a calma 
que ela chamasse uma ambulância.
Beausert achava insuportável a fragi-
lidade dos outros. Foi assim com sua 
mulher. Quando a mãe de Valérie rece-
beu um diagnóstico de câncer, a filha 
tinha que empurrar o pai para fora do 
quarto da doente. “Ele ficava dizendo: 
‘Você tem que lutar, você tem que co-
mer, é assim que você melhora.’ Era 
uma forma de assédio psicológico.”
Para Valérie, essa característica do 
pai era um eco perturbador da ênfase 
dada pelos nazistas à superioridade físi-
ca. “Um jovem alemão precisa ser rápi-
do como um galgo, resistente como o 
couro e duro como aço Krupp”, procla-
mou Hitler, em 1935. As crianças nasci-
das nas Lebensborn com síndrome de 
1 Boche é uma gíria ofensiva com a qual os franceses 
designam os alemães desde o fim do século XIX. 
A etimologia do termo é polêmica. Uma das hipóteses 
é que boche tem origem dialetal, significando “cabe-
ça dura” ou “repolho”.
Down, lábio leporino ou pés tortos eram 
expulsas dos abrigos ou assassinadas.
Às vezes, Valérie se preocupa com 
aquilo que ela mesma e seu filho pos-
sam ter herdado de Walter Beausert. 
“Quando vejo alguns traços de persona-
lidade do meu filho – meio rude, meio 
autoritário –, que podem ter sido herda-
dos do meu pai, mas também de mim, 
eu sempre tenho um momento de an-
siedade: será que nós passamos para 
frente algo das Lebensborn?”.
Em agosto de 1945, a revista Lifepublicou uma reportagem, ilus-trada com fotos de Robert Capa 
(1913-54), sobre os “superbebês” de um 
abrigo Lebensborn, em Hohenhorst, na 
Alemanha. “Os filhos bastardos dos 
homens de Hitler em Hohenhorst têm 
olhos azuis, cabelos lourose são gordos 
como porcos”, dizia uma das legendas. 
Outra afirmava: “Excesso de comida e 
fartura de Sol deixaram esse bebê nazis-
ta, vestido com roupinha e sapatinhos 
de crochê, tão gordo e saudável que ele 
ocupa totalmente seu enorme carrinho.” 
Mais uma: “Engordados como porcos, 
sob os cuidados de enfermeiras nazis-
tas, esses bebês representam hoje um 
problema que ainda terá de ser resol-
vido pelos Aliados.” O tom dá uma ideia 
do nível de ressentimento que os nor-
te-americanos e europeus nutriam em 
1945 em relação a todos que haviam 
sido poupados dos horrores da guerra 
– até mesmo as crianças.
Mas nem todos os bebês das Lebens-
born tinham olhos azuis, cabelos louros. 
Para falar a verdade, nem eram todos 
“gordos como porcos”. Provavelmente 
devido à falta de vínculo com uma úni-
ca cuidadora, algumas crianças sofriam 
de atraso de desenvolvimento. Exames 
médicos feitos depois da guerra indi-
cam que Beausert tinha peso abaixo do 
normal. Um documento de assistentes 
sociais franceses diz que Gisèle costu-
mava ter acessos de raiva quando che-
gou à França. 
Quando a Bélgica foi libertada pelos 
Aliados, ela e outras crianças das Le-
bensborn começaram uma jornada 
pela Europa devastada, levadas dentro 
de berços de vime na traseira de cami-
nhões militares. Em Lebensborn: La 
Fabrique des Enfants Parfaits – Enquête 
Sur Ces Français qui Sont Nés dans une 
Maternité SS (Lebensborn: a fábrica de 
crianças perfeitas – investigação sobre 
esses franceses que nasceram em uma 
maternidade !!), o jornalista francês Bo-
ris Thiolay relata que os soldados alemães 
em retirada deixaram o abrigo da Le-
bensborn perto de Liège com cerca de 
vinte bebês, em 1º de setembro de 1944. 
Depois de várias paradas na Alemanha 
e na Polônia, as crianças chegaram à 
primeira Lebensborn, em Steinhöring, 
cidade vizinha de Munique. Walter 
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Beausert também foi parar lá. No mes-
mo local, oficiais da !! ficaram amon-
toados com crianças e grávidas, vindas 
de outras instituições que haviam sido 
fechadas. Caixas de documentos abar-
rotavam os corredores da ala da ma-
ternidade, onde mulheres seguiam 
dando à luz. 
Quando chegaram as notícias sobre 
a morte de Hitler, os oficiais queima-
ram o máximo possível de documen-
tos. Thiolay descreve os objetivos desse 
expurgo: “As certidões de nascimento, 
a identidade das crianças, dos pais, o 
prontuário da organização, os nomes 
das pessoas encarregadas: tudo devia 
sumir. As evidências da própria exis-
tência das Lebensborn precisavam ser 
apagadas.” Mas a obsessão dos nazis-
tas com documentos inviabilizou a ta-
refa de eliminar todos os registros – havia 
papéis demais.
Poucos dias depois da morte de Hi-
tler, ocorrida em 30 de abril de 1945, um 
pequeno destacamento de soldados dos 
Estados Unidos chegou a Steinhöring, e 
as crianças mudaram de mãos: 
agora, elas eram responsabili-
dade dos norte-americanos. 
Mais tarde, no mesmo 
ano, Gisèle e Beausert foram 
transferidos para Kloster In-
dersdorf, a cerca de 15 km de 
Dachau, um monastério do século "##
que o Exército norte-americano re-
quisitara para a Administração de As-
sistência e Reabilitação das Nações 
Unidas (Unrra, na sigla em inglês). O lo-
cal passou a abrigar um centro de re-
cepção para crianças deslocadas. Ali, os 
filhos das Lebensborn viviam junto com 
outros sobreviventes: crianças judias 
libertadas dos campos de concentra-
ção e adolescentes cristãos da Europa 
Oriental e Central usados em traba-
lhos forçados durante a guerra.
Os mais velhos eram incentivados a 
ajudar os mais novos. Há uma fotogra-
fia que mostra três menininhas loiras 
penteando bebês delicadamente e lhes 
dando comida com colherinhas, como 
se estivessem brincando de boneca. 
Outra foto exibe um grupo de bebês em 
um acolchoado xadrez sob a supervisão 
de uma assistente social, a norte-ameri-
cana Lillian Robbins, e de uma irmã de 
caridade. No canto da imagem, sentado 
no chão longe das outras crianças, está 
o pequeno Walter, com um olho fecha-
do, sorrindo para o fotógrafo. 
Os funcionários da Unrra tentaram 
encontrar parentes das crianças sobrevi-
ventes, embora elas não tivessem regis-
tro de identidade. Em alguns casos, 
estabeleceu-se uma data aproximada de 
nascimento. Foi o que, talvez, tenha 
ocorrido com Walter Beausert, cuja da-
ta oficial é um dia suspeito, ainda que 
evidentemente possível: 1º de janeiro de 
1944. Seu local de nascimento é desco-
nhecido, mas, como acreditavam que 
ele vivera antes num abrigo Lebensborn 
na França, os funcionários da Unrra 
decidiram mandá-lo para lá.
No caso da pequena Gisela, os arqui-
vos mostravam que ela havia nascido em 
“Wégimont” (o registro omite o nome 
completo do castelo). Os funcionários 
pensaram que se tratava de uma cidade-
zinha francesa. Assim, ela e Walter fo-
ram juntos em um comboio enviado 
para a região francesa de Mosa, cuja 
população jamais havia se recuperado 
da Primeira Guerra Mundial.2 Gisela 
então se tornou Gisèle, e assim começou 
sua vida como uma criança francesa.
S erá que esses bebês, cuja existên-cia se deve à política de natalidade dos nazistas e que comiam fru-
tas frescas e mingau, enquanto outras 
crianças eram assassinadas com gás ou 
morriam de fome, podem ser conside-
rados “sobreviventes”?
Em 10 de outubro de 1947, quatro 
líderes da Lebensborn compareceram 
perante um tribunal especial militar 
norte-americano como parte dos Pro-
cessos Subsequentes de Nuremberg, 
nos quais foram julgados oficiais nazis-
tas de escalão inferior. Eram 
três as acusações contra eles: 
crime contra a humanidade, 
crimes de guerra e participa-
ção em organização crimino-
sa. Três dos quatro líderes da 
organização foram conside-
rados culpados da terceira acusação. 
O tribunal, porém, estabeleceu que a Le-
bensborn foi apenas uma “instituição de 
cuidados” e que, por isso, as crianças não 
deviam ser consideradas vítimas.
Até a década de 1970, os abrigos da 
Lebensborn foram tratados como um 
boato, ou descritos como um local de 
procriação, onde homens da !! acasa-
lavam com mulheres selecionadas por 
critérios raciais. Em 1975, na França, 
saiu o primeiro livro sobre a Lebens-
born. A obra contribuiu para perpe-
tuar esse equívoco, pois sugeria que as 
“enfermeiras”, na verdade, eram esco-
lhidas para serem reprodutoras. O his-
toriador Georg Lilienthal escreveu o 
primeiro trabalho acadêmico sobre 
o programa em 1986. 
Nos nove anos de duração da política 
da Lebensborn, pelo menos 9,2 mil crian-
ças nasceram nos abrigos – cerca de 
1,2 mil na Noruega, onde ficava a maio-
ria das maternidades da !! fora da Alema-
nha. Depois da guerra, essas crianças, 
assim como as mulheres suspeitas de 
terem casos com soldados alemães, fo-
ram estigmatizadas. Algumas mulheres 
chegaram a ser internadas em campos. 
Como a França teve apenas um abrigo da 
Lebensborn, que funcionou por menos 
de um ano, as crianças nascidas ali ti-
nham menos probabilidade de serem re-
conhecidas como tais. 
2 Na região de Mosa (Meuse, em francês) ocorreu um 
dos principais confrontos da Primeira Guerra Mun-
dial. A Batalha de Verdun foi também uma das mais 
longas (de 21 de fevereiro a 18 de dezembro de 1916) 
e mais sangrentas, com um saldo estimado de cerca 
de 250 mil mortos e desaparecidos do lado francês, 
e 300 mil do lado alemão. A cidade de Verdun e seus 
arredores foram devastados pelos bombardeios.
Em 2011, Gisèle e Beausert foram a 
Indersdorf para participar da celebração 
anual dos antigos residentes do centro de 
recepção da Unrra. Ela descreveu os or-
ganizadores como “crianças judaicas”, 
do mesmo modo como ela ainda se refe-
re a si mesma como uma “criança da 
Lebensborn”. “Foi extraordinário ser in-
cluída na cerimônia”, me disse. Enquan-
to estava em Indersdorf, visitou Dachau 
duas vezes. Sentiu necessidade de se con-
frontar com as crenças que talvez carre-
gasse, caso tivesse sido criada pela família 
de um membro da !!. Juntos, Gisèle e 
Beausert fundaram, em 2016, aAssocia-
ção pela Memória das Crianças Vítimas 
da Lebensborn, um esforço para incen-
tivar o reconhecimento público de que 
elas são vítimas da guerra.
Beausert, de sua parte, tornou-se 
obcecado com a ideia de ser aceito 
pela comunidade judaica. Estudou a 
Torá e se identificava como sionista. 
“Ele celebrava os feriados judaicos”, 
lembra Valérie. “Os amigos judeus de 
meu pai o ajudaram muito. Para ele, 
dizer ‘Você também é uma vítima, 
Walter’ era o maior dos presentes.” 
Beausert morreu em 2021, aos 77 anos, 
portando uma estrela de Davi no pes-
coço. Ele morava numa casa de repou-
so para idosos e não estava bem de 
saúde. Poucos dias antes de sua morte, 
admitiu, pela primeira vez na vida, que 
Rita talvez não fosse sua mãe. Valérie 
guardou um pente com fios de cabelo de 
seu pai. Ela espera descobrir um dia os 
segredos ocultos no $%& de Beausert.
O marido de Gisèle, Justin, morreu há quinze anos, mas ela ainda passa quase todos os invernos na 
vila onde ele nasceu, na Costa do Mar-
fim. Gisèle disse que é “famosa” por 
lá, em parte porque os moradores a 
viram na tevê, numa reportagem sobre 
a Lebensborn.
Em sua casa em Nancy, na França, 
ela tem uma foto de sua mãe biológica 
à vista, embora não olhe mais para ela. 
“É minha herança. Não quero esque-
cer que nasci dessa mulher”, me disse. 
Tudo que ela quer agora é que sua his-
tória seja contada. “Sou modesta”, 
brincou. “Só quero que o mundo intei-
ro saiba disso.”
Um dos seus filhos, Gabriel, casou 
com uma alemã, e seus filhos falam 
alemão, uma língua que Gisèle esque-
ceu completamente. “Isso mostra que a 
história segue em frente”, afirmou ela. 
Matthieu, seu outro filho, prepara um 
livro sobre a Lebensborn e escreveu com 
sua mulher, Camille, uma peça sobre a 
história das crianças. Recentemente, fui 
a uma sessão de leitura da peça num pe-
queno teatro em Paris. Gisèle estava lá, 
sentada ao lado da filha Virginie, assis-
tindo à encenação de sua própria vida.
“Falam que a história é escrita pelos 
vencedores”, disse um dos atores. “Mas 
acima de tudo ela é escrita pelos adul-
tos.” Discretamente, Gisèle enxugou as 
lágrimas por trás dos óculos. J
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son propõe ficar com metade dos lucros. 
“Tem muita madeira lá. Dá para ficar 
cem anos tirando e você não consegue 
tirar tudo. A madeira sai até no Rio Tapa-
jós, para ir para os portos, sabe?”, diz. 
A exploração madeireira nessa região 
é um crime, já que a fazenda fica dentro 
de duas áreas de preservação ambiental 
vizinhas – um parque e uma reserva, 
ambos criados em 2005. Mas há um de-
lito adicional: a Portal da Amazônia, 
com sua abundância de madeiras no-
bres, nem pertence a Altino Masson. 
É uma terra grilada – mais uma da car-
teira de Masson, um homem franzino, 
de cabelos ralos e bigode bem aparado. 
Carismático, tem boa lábia para atrair 
suas presas e nenhum escrúpulo, tanto 
que já passou a perna na própria mãe e 
A
ltino Masson está à procura de 
um sócio para explorar a fa-
zenda Portal da Amazônia. São 
180 151 hectares, uma área equi-
valente à cidade de São Paulo. 
A fazenda fica entre os rios Juruena e 
Sucunduri, em Apuí, no estado do Ama-
zonas, município próximo à divisa com 
Pará e Mato Grosso. Tem mata nativa 
intacta e uma fauna variada, inclusive 
com treze espécies de primatas. É uma 
riqueza natural exuberante. Mas a socie-
dade proposta por Masson, um catari-
nense de 76 anos que mora em Curitiba, 
não contempla preocupações ambientais. 
Ele deseja arrendar a fazenda para a ex-
tração de madeira, pois a área é farta em 
mogno, cedro e andiroba, espécies muito 
valorizadas no mercado. Em troca, Mas-
crimes fundiários
Como Altino Masson se apossou de tanta terra pública na Amazônia
ALLAN DE ABREU
O GRILEIRO-MOR
carrega uma longa ficha policial. “É um 
mentiroso querido”, define um parente, 
que pede o anonimato para não se indis-
por com ele. 
Mais do que querido e mentiroso, 
Masson é, neste momento, o maior gri-
leiro vivo de terras da Amazônia Legal, 
região imensa que engloba nove estados 
e corresponde a quase 60% do território 
nacional. Em seu nome, constam onze 
fazendas no Amazonas e no Pará. Ne-
nhuma está amparada em documentos 
verdadeiros ou juridicamente válidos. 
Somadas, as terras griladas chegam a 
458 mil hectares, o equivalente a três ve-
zes a cidade de São Paulo. (O campeão 
da lista é José Roberto Dal Porto, que 
grilou uma única área de 496 mil hecta-
res no Pará, mas morreu em 2016.)
Para chegar a esse dado, a piauí, em 
parceira com o Center for Climate Crime 
Analysis (!!!"), uma #$% que combate 
crimes ambientais, e o Data Fixers, que 
trabalha com dados públicos sobre esse 
tipo de crime, examinou durante seis me-
ses todos os 678 mil cadastros ambientais 
rurais, conhecidos pela sigla !"&, na 
Amazônia. A piauí e seus parceiros sele-
cionaram os !"&s que registram alguma 
propriedade encravada em terra indígena 
ou em unidade de conservação. Por defi-
nição, são terras griladas, pois a lei impe-
de a compra e venda de terras nessas 
zonas de preservação.
Identificadas as terras griladas, recor-
remos aos dados do Instituto Nacional 
de Pesquisas Espaciais (Inpe) para sele-
cionar apenas as fazendas em que os 
Garimpo ilegal na fazenda Bela Vista, no Pará, a 
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grileiros já haviam causado algum dano 
ambiental – ou seja: o grileiro desmata-
dor. De posse do nome dos cinco maio-
res, verificamos em cartórios de todo o 
Brasil se, além dos !"#s, esses grileiros 
desmatadores haviam registrado em seus 
nomes alguma outra área irregular. E, as-
sim, chegamos ao falecido Dal Porto e a 
Altino Masson, o maior grileiro vivo.
Onze fazendas de Masson estão em 
áreas públicas. O !!!" obteve a locali-
zação aproximada de sete e a localiza-
ção exata de quatro – nas quais 10% da 
mata nativa deu lugar a pastos e garimpos 
de ouro ilegais. Com apoio do Green-
peace, a piauí sobrevoou parte dessas 
áreas no sudoeste do Pará, no fim de 
novembro do ano passado. O cenário é 
lamentável. Do alto, pode-se ver vários 
pontos de queimadas recentes, próximas 
a grandes criações de gado de corte. Em 
outras partes, são visíveis os córregos 
transformados pelos garimpeiros em 
grandes tanques retangulares d’água, o 
que facilita o trabalho das dragas e, ao 
mesmo tempo, arrasa a mata ciliar.
“T enho um negócio bom para você.” Na família de Masson, essa fra-
se tornou-se anedótica, tamanha a fre-
quência com que Altino Masson costuma 
utilizá-la. Ele começou cedo a farejar 
oportunidades. Quinto filho dos onze de 
um casal de agricultores pobres de Ibira-
ma, no interior de Santa Catarina, Mas-
son tinha 10 anos quando perdeu o pai, 
vítima de varíola. “Tive de me virar para 
ajudar no sustento da mãe e dos irmãos”, 
contou, em fevereiro, durante uma longa 
conversa por telefone com a piauí, na qual 
descreveu sua trajetória fundiária.
Seu primeiro trabalho foi na colheita de 
inhame e guanxuma. Depois, na adoles-
cência, arriscou-se no futebol. Aos 17 anos, 
tornou-se ponta-esquerda do Esporte Clu-
be Metropol, de Criciúma, que foi cinco 
vezes campeão catarinense nos anos 1960. 
Mas o baixo salário (“a gente só ganhava 
um trocado se vencesse a partida”) o fez 
retomar a vida no campo. Diz que deu 
início à sua carreira de proprietário de terras 
quando ganhou de um primouma cháca-
ra em São Miguel do Iguaçu, no sudoeste 
do Paraná, onde plantava hortelã. De lá, 
rumou para Três Corações, no Sul de Mi-
nas Gerais, onde afirma ter comprado um 
sítio coberto com café. Uma praga na la-
voura, no entanto, obrigou-o a mudar-se 
para Curitiba, no início dos anos 1970.
Na capital paranaense, soube do proje-
to do governo federal, na época comanda-
do pelos militares, de abrir uma rodovia 
entre Cuiabá e Santarém, a $#-163. Alis-
tou-se para integrar uma das turmas que 
rasgaram, na base da serra manual, os 
1,7 mil km de floresta que separavam as 
duas cidades. Em troca do serviço, diz que 
ganhou do governo sua primeira proprie-
dade amazônica: a fazenda Bela Vista, 
com 50 mil hectares, em Itaituba, onde 
instalou seu primeiro garimpo de ouro. 
Masson alega que a União lhe deu um 
documento sobre a área. É uma forma de 
pagamento estranhíssima. “Desconheço 
que o governo federal tenha dado terras 
primeira grilagem feita por Altino Masson: ele agora tomou gosto por negócios na África e quer usar o dinheiro da venda de parte de uma fazenda para investir num frigorífico de aves em Angola
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para pagar quem abriu a !!-163”, diz Giro-
lamo Domenico Treccani, especialista 
em direito agrário da Universidade Fede-
ral do Pará ("#$%). A piauí não encontrou 
qualquer documento da União sobre a 
transação, apenas um contrato, datado de 
2001 e registrado em cartório de Curitiba, 
no qual Masson compra a fazenda de um 
particular. O papel não é prova de posse.
Masson conta que começou a com-
prar terras baratas na Amazônia pagan-
do com o ouro que extraía na Bela Vista. 
“A terra era quase de graça. Eu chegava 
para o dono com saquinhos de 200 ou 
300 gramas de ouro e levava centenas 
de hectares. Um contador batia os do-
cumentos e pronto”, diz. Comprava e 
vendia terras – na verdade, sem lastro 
documental – para posseiros menores, 
que “abriam as áreas”, um eufemismo 
para o desmatamento. Em paralelo à 
grilagem e ao garimpo, Masson tentou 
a política. Em 1982, concorreu a verea-
dor em Curitiba pelo $&'(. Perdeu. Em 
1990, candidatou-se a deputado esta-
dual pelo $)(. Perdeu de novo e desistiu 
da política. “É muita bandidagem”, diz.
Em paralelo à grilagem amazônica e 
à política, Altino Masson não tirava o 
olho do Sul do Brasil. Por volta de 1990, 
começou a grilar grandes áreas públi-
cas em Guaratuba, no litoral do Paraná, 
e em Itapoá, na costa catarinense. Seu 
objetivo era construir loteamentos urba-
nos nesses locais. Na prática, os terrenos 
acabaram abastecendo suas artimanhas 
fundiárias na Amazônia Legal. Os su-
postos lotes nos estados sulistas eram 
usados por Masson na troca por imensas 
áreas no Pará e Amazonas.
Como os loteamentos eram irregula-
res, Masson negociava os terrenos por 
meio de contratos de gaveta. Assim, ven-
dia um mesmo lote para mais de uma 
pessoa. Foi nessa mutreta que enganou 
uma das irmãs e a própria mãe. Vendeu 
para as duas três terrenos em Itapoá que 
já haviam sido vendidos para outras pes-
soas. (Masson responde a uma ação civil 
pública – ainda não julgada – por ven-
der esses terrenos sem nem mesmo pos-
suir o alvará da prefeitura ou uma rede 
de saneamento básico instalada.) 
Na mesma década de 1990, ele fez um 
grande garimpo no Norte de Mato Gros-
so, em uma região conhecida como Bai-
xão da Pepita, no município de Peixoto de 
Azevedo. “Aí já não era mais na bateia, 
era maquinário pesado. Eu tirava uns 
3 kg de ouro por dia, na média”, afirma. 
Em julho de 1993, segundo contratos de 
compra e venda registrados em Curitiba, 
comprou, de uma vez, cinco fazendas em 
Itaituba, no Pará, um total de 114 mil hec-
tares. Pagou míseros mil reais, em valores 
corrigidos, ou 0,009 centavo o hectare. 
“Tive olho gordo. Não podia ver um pe-
daço de terra que corria lá para comprar”, 
diz. Daí em diante, nunca mais deixou de 
adquirir e vender terras na região amazô-
nica até se tornar o maior grileiro de que 
se tem notícia em toda essa região. 
“É tudo documentado”, insiste Mas-
son. Até mesmo a fazenda Portal da Ama-
zônia, aquela que tem o tamanho da 
cidade de São Paulo. Ele diz que com-
prou as terras de um amigo, o madeireiro 
Arlindo Fiedler, em 1996, nove anos an-
tes de a região ser transformada em área 
de proteção ambiental. No entanto, o 
único documento sobre a transação é um 
contrato, celebrado entre Masson e Fied-
ler, e arquivado no 3º Ofício de Registro 
de Títulos e Documentos (!)'), em Curi-
tiba. O papel informa que Masson pagou 
pela fazenda a pechincha de 1,93 milhão 
de reais, em valores corrigidos – o equiva-
lente a 10,7 reais por hectare. O docu-
mento, no entanto, não comprova que o 
imóvel pertence, de fato, a Masson.
“É como se fosse um contrato de ga-
veta”, explica o advogado Marco Antonio 
Ribeiro Feitosa, especialista em direito 
imobiliário. “Eles fazem um acordo em 
!)' [cartórios de registro de títulos e docu-
mentos] para alegar boa-fé, justificar 
eventual circulação financeira e a res-
pectiva questão fiscal. Mas o documen-
to não regulariza a propriedade.” Ou 
seja: a terra continua suspeita de grila-
gem, pois, pelas leis brasileiras, é preciso 
registrar a propriedade em um cartório 
de imóveis, o que não ocorreu nesse caso.
O fato de a região ter virado área de 
proteção ambiental depois da chegada 
de Masson também não o isenta. O Su-
perior Tribunal de Justiça (*)+), em 
casos semelhantes, já decidiu que o gri-
leiro deve ser retirado da área, sem pa-
gamento de indenização. “Para ele ser 
indenizado, tem de provar a posse legal 
do imóvel, o que raramente se conse-
gue, pois antes da criação da unidade 
de conservação aquela terra já era pú-
blica, ainda que sem destinação”, expli-
ca Domenico Treccani, da "#$%.
Entre os 458 mil hectares que Altino Masson grilou na Amazônia, estão apenas propriedades instaladas em 
áreas de conservação e cuja mata já foi 
parcialmente destruída. Mas a atuação 
de Masson não está circunscrita a isso. 
Ele também se apresenta como dono de 
outras 21 fazendas – duas no Pará e ou-
tras dezenove em Mato Grosso. As pro-
priedades, que juntas somam 284,7 mil 
hectares, não ficam em áreas públicas, 
mas também são griladas. 
A Santa Rosa, por exemplo, uma fa-
zenda de 35 mil hectares em Brasnorte, 
em Mato Grosso, é um exemplo de outro 
tipo de grilagem – a documental. Na 
época da safra da soja, a Santa Rosa é um 
tapete verde-oliva e, há pelo menos duas 
décadas, a terra fértil é alvo de cobiça. 
Sua história bizarra começou em 1999, 
quando morreu o dono da fazenda, Dal-
tro Guimarães Roderjan. Um ano e pou-
co depois, um empresário de Curitiba, 
Iverson Obroslak, informou ao inventa-
riante que havia comprado as terras em 
1985. O documento que apresentou, po-
rém, era falso. Em 2003, foi a vez Mas-
son dizer que era o verdadeiro dono da 
fazenda. Apresentou um contrato de com-
pra e venda datado de janeiro de 1990. 
O papel, registrado num cartório de Gua-
ratuba, no litoral do Paraná, dizia que 
Roderjan trocara a Santa Rosa por 45 ter-
renos em um loteamento de Masson, tam-
bém em Guaratuba. Masson apresentou 
um recibo – registrado num cartório de 
Uberaba, em Minas Gerais – no qual 
Daltro Roderjan informava ter recebido 
os tais 45 terrenos. Era outro rolo.
Os advogados, inicialmente, ficaram 
desconfiados, porque o contrato de 
1990 fora registrado no cartório apenas 
em 2001, onze anos depois do suposto 
negócio. Em seguida, descobriu-se que 
o escrevente do documento nunca tra-
balhou no cartório de Guaratuba. Logo 
veio à tona que a assinatura da cartorá-
ria de Uberaba era falsa. Quando o juiz 
do caso intimou Masson a apresentar os 
documentos originais, o processo judi-
cial – cujos autos estavam com o advo-
gado do grileiro – simplesmente havia 
desaparecido. (Curiosamente, três anos 
antes, também sumiu do Fórum de 
Curitiba um processo em que Masson 
era acusado de estelionato.)
Com o sumiço dos papéis, a Justiça 
precisou reconstituir toda a ação judicial 
a partir de cópiasem poder dos advoga-
dos da família Roderjan. O caso só voltou 
a tramitar quatro anos depois. Até hoje 
não foi julgado. No meio do caminho, 
em 2016, surgiu outro complicador. Mas-
son registrou os 35 mil hectares da Santa 
Rosa em seu nome no ,%!, o primeiro 
passo dos grileiros para se apossar de uma 
área, e resolveu vender 600 hectares da fa-
zenda para Vilson Blasios Schmitz e José 
Eugênio Sartoretto por 400 mil reais, mas 
nunca deu posse das terras aos compra-
dores. Masson justifica a medida dizendo 
que não recebeu o dinheiro do negócio. 
Procurados, Schmitz e Sartoretto não 
quiseram se manifestar.
Em conversa com a piauí, Masson deu 
de ombros à barafunda judicial em torno 
da Santa Rosa. “Daqui a dois ou três me-
ses, eu assumo a fazenda. Vou para cima 
e vou tirá-los de lá, tranquilo. Não é pela 
fazenda, nem por dinheiro”, diz ele, para 
emendar em seguida uma reprimenda 
moral: “É só pelo gosto de tirar eles [a fa-
mília Roderjan] de cima [da terra], mostrar 
que tem que respeitar o que é dos outros.” 
Entre os “outros”, certamente não se 
inclui o casal Shigueiti e Mieko Utumi.
M ieko Utumi chamou-se Mieko Utu-mi até 1990, quando se divorciou de Shigueiti. Desde então, adotou 
seu nome anterior e voltou a chamar-se 
Mieko Towata. E foi com sua nova deno-
minação pós-divórcio que ela levou um 
susto em 2019, ao ser convocada para 
prestar esclarecimentos sobre um proces-
so judicial que corria em Mato Grosso. 
O processo versava sobre uma disputa 
pela fazenda Japan, uma área de 10 mil 
hectares coberta com mata nativa, em 
Vila Rica, Norte de Mato Grosso, onde 
vivem mais bois do que pessoas.
Entre os documentos anexados ao pro-
cesso estavam procurações que Mieko 
teria assinado. Uma delas era em favor de 
Avenor Pimentel de Souza, que consegui-
ra registrar as terras em seu nome num 
cartório de Vila Rica. A outra beneficiava 
Altino Masson, que dizia ser o verdadeiro 
proprietário daquelas terras desde 1987. 
Apresentada aos documentos, Mieko, 
uma senhora octogenária, ficou espanta-
da. Ela nunca colocara os pés em Mato 
Grosso, nunca fora dona de nenhuma 
fazenda Japan e não fazia a menor ideia 
de quem eram Avenor de Souza e Altino 
Masson. Ainda por cima, as procurações 
traziam o nome de “Mieko Utumi”, sen-
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do que, na data em que os documentos 
foram supostamente assinados, ela já se 
chamava Mieko Towata.
A disputa pela Japan não se limitava 
ao âmbito judicial. Era coisa violenta. 
Em outubro de 2017, Masson mandou 
três capangas invadirem a propriedade 
para derrubar a mata e construir uma 
sede para a fazenda. Foram expulsos por 
outro bando armado. Para provar que era 
dono das terras, Masson apresentou dois 
documentos: um contrato de compra e 
venda de 1987, no qual o casal Utumi 
trocava a fazenda por quarenta terrenos 
em um loteamento não especificado, e 
uma procuração, assinada por “Mieko 
Utumi” e datada de 1990, que lhe dava 
plenos poderes para gerir a propriedade. 
O contrato e a procuração eram falsos.
Entretanto, a Justiça de Mato Grosso 
acreditou em Masson e lhe deu uma li-
minar garantindo sua posse dos 10 mil 
hectares. Em agosto de 2018, ele então 
despachou quinze homens, alguns ar-
mados, para começar o desmate da área. 
Dois meses depois, o juiz do caso, Carlos 
Eduardo de Moraes e Silva, visitou o local. 
Só então constatou que a fazenda Japan 
era, na verdade, uma área de mata preser-
vada que fazia parte de outra fazenda, a 
Pontal do Rio Areia, um imóvel legalizado 
que pertence a David de Oliveira Gouvea. 
A liminar de Masson foi derrubada.
Com a ajuda de seus advogados, 
Mieko descobriu que a tal fazenda Japan 
– que na verdade era uma invenção, pois 
ficava situada sobre a área regularizada de 
outra fazenda – vinha sendo alvo frequen-
te de falsários. Outras três procurações 
vendiam a propriedade para mais três 
pessoas, entre elas uma mulher condena-
da por tráfico internacional de drogas. 
Eram tantas “procurações” e “comprado-
res” que o tabelião do cartório de Vila 
Rica pediu à Justiça que cancelasse uma 
matrícula da fazenda, “tendo em vista 
que pessoas de boa-fé correm 
o risco de adquirirem nova-
mente este imóvel”. A matrí-
cula foi anulada. O verdadeiro 
dono, David Gouvêa, retomou 
a posse dos 10 mil hectares, mas os pro-
cessos não foram julgados até hoje. Towa-
ta morreu em abril de 2022.
Suspeita-se que Masson só conseguiu 
tantos documentos registrados em cartó-
rio – e falsos – porque tinha um cúmplice 
providencial: o tabelião Edson Lopes dos 
Santos, do cartório de Mandirituba, no Pa-
raná. Anos antes, em 2002, o tabelião re-
gistrou em seu cartório uma procuração 
em que um industrial dava poderes para 
Masson vender suas dezesseis fazendas, 
que somavam 142 mil hectares em No-
bres (!!). A perícia constatou que a assi-
natura do industrial fora falsificada. (Em 
2017, o tabelião foi preso por falsificação 
de documento e afastado do cartório.)
“T ive que fazer a transferência depois desse probleminha que eu tive.”
A transferência a que Altino Masson 
se refere foi uma operação pela qual 
colocou duas de suas fazendas mais va-
liosas no nome de uma empresa de fa-
chada que, por sua vez, está em nome 
de cinco pessoas: três de suas filhas, um 
empresário e um advogado. (Nos últi-
mos dois anos, a empresa foi multada 
em 25,7 milhões de reais pelo Ibama 
devido ao desmatamento de 5 138 hec-
tares de mata nativa nas duas proprieda-
des.) O que ele chama de “probleminha” 
é coisa muito séria: a condenação por 
homicídio, que o levou a passar nove 
anos na cadeia.
Nos termos da sentença, Masson 
contratou um pistoleiro para matar seu 
sócio na imobiliária que cuidava dos 
loteamentos em Guaratuba. O grileiro 
de Curitiba suspeitava que o sócio, Da-
niel Rodrigues dos Santos, estava des-
viando parte do patrimônio da empresa. 
Em maio de 2003, mostrou ao matador 
onde ficava a casa do sócio e a sede da 
imobiliária, e lhe entregou um revólver 
calibre .38 carregado. O matador cum-
priu o serviço. Entrou na imobiliária, 
rendeu quatro pessoas – entre elas, o 
sócio e a secretária –, levou-os para um 
local escuro, mandou que se despis-
sem, amarrou-lhes as mãos, estuprou a 
secretária e meteu três tiros na cabeça 
de Daniel dos Santos.
O assassinato foi desvendado porque 
Masson não entregou a casa e o automó-
vel que prometera ao pistoleiro. Ao ser 
preso, o matador confessou o crime e 
acusou Masson. Os dois foram condena-
dos por homicídio qualificado. Masson 
deixou a prisão em 2012. O matador de 
aluguel, dois anos depois de ser solto, foi 
assassinado em Santa Catarina. Mas-
son, apesar da condenação, até hoje jura 
inocência. E garante que não tem nada 
a ver com o assassinato do pistoleiro. 
“Era como um filho para mim. E nem 
conheço quem matou ele.”
A transferência das fazendas para a 
empresa de fachada em razão 
do “probleminha” de Masson 
não encerrou sua carreira 
grileira. As duas fazendas, 
ambas localizadas dentro da 
Floresta Nacional do Jamanxim, em 
Novo Progresso, no Pará, seguiram sen-
do objeto de negociatas, sobretudo a Rio 
Novo, de 38,7 mil hectares. “Eu tinha 
um sítio escriturado de 48 hectares em 
Mato Grosso. Troquei por mil hectares 
da Rio Novo. Ele falou que eu tinha de 
abrir a área [desmatar], para ninguém 
invadir. Quando percebi que não pode-
ria mexer na área porque não era do 
Altino, ele já havia vendido o meu sítio 
e não tinha mais como voltar para trás 
no negócio”, lamenta Valmir Bertoldi, 
produtor rural em Mato Grosso.
Arthur Neiverth é outro que foi lu-
dibriado. Ele comprou mil hectares de 
Masson na Rio Novo por 200 mil reais. 
Afirma que, usando o dinheiro da he-
rança que seu pai deixou, pagou a 
primeira prestação de 50 mil e gastou 
150 mil para derrubar parte da floresta. 
“Quis abrir para dizer que era meu. 
Dei as motosserras para os piás [traba-
lhadores]”, afirma. Só depois é que des-
cobriu que a área pertencia à União.
O policialcivil Luís Gustavo Müller 
foi duplamente enganado. Primeiro, 
pagou 400 mil reais para Masson em 
troca de um lote de Letras do Tesouro 
Nacional, um título prefixado que, se-
gundo Masson, valeria uma fortuna. 
“Eu tenho essas "!!s desde a década 
de 1970. Esses papéis valem 10 bilhões de 
reais, mas precisa pagar uma taxa para 
regularizar tudo”, afirma Masson. Nem 
é preciso dizer que as "#!s são da sé-
rie $, todas falsificadas, conforme alerta 
o site do Banco Central. 
Quando descobriu o golpe, Müller 
pressionou Masson para lhe devolver 
os 400 mil. Masson então lhe prometeu 
10 mil hectares na Rio Novo. Foi o segun-
do golpe. “Quando eu fui lá, descobri que 
era tudo mato e que só dava para chegar 
atravessando um rio de barco. E ele ti-
nha vendido a mesma área para várias 
pessoas”, diz a vítima, que denunciou o 
caso à Polícia Civil do Paraná. Altino 
Masson é investigado por estelionato e 
formação de quadrilha. Até meados de 
abril o inquérito seguia em andamento.
Mesmo assim, Masson não desistiu 
das "#!s. Em 2021, ele foi apresentado a 
Odette Kouman, pastora evangélica e 
rainha de um povo da Costa do Marfim, 
também suspeita de praticar esteliona-
to no país africano. Deu-lhe uma pro-
curação com “poderes para encontrar 
melhores opções para financiamento 
e monetização” das tais "#!s. No bojo 
desse negócio, Masson passou dez me-
ses administrando um garimpo de ouro 
de Kouman, nos arredores de Abidjan, a 
capital marfinense. “Eu cuidava da tur-
ma [de garimpeiros]. Eles ainda tiram 
ouro na picareta por lá, não é muito me-
canizado.” Masson não soube dizer se o 
garimpo era legal. “Só voltei para o Bra-
sil depois que peguei malária brava.”
A ltino Masson é pai de doze filhos (dez deles mulheres) e está no se-gundo casamento, desta vez com 
uma missionária evangélica. Estudou 
apenas até o equivalente ao quinto ano do 
ensino fundamental. Em 2020, ele sofreu 
um acidente vascular cerebral, que afetou 
ligeiramente sua fala. Masson, que atual-
mente leva uma vida confortável no bair-
ro de classe média Campo Comprido, 
em Curitiba, diz que não cria mais ga-
do de corte e há tempos deixou de garim-
par na Amazônia. Tornou-se, na prática, 
apenas um grileiro puro-sangue, que toma 
terras públicas e passa adiante. Mas a pri-
são, os processos, o %&', nada disso o de-
tém. Masson é incansável na defesa da 
lisura dos seus negócios e, claro, na pro-
cura de novas oportunidades. 
Depois de sua passagem pelo garimpo 
perto de Abidjan, ele tomou gosto pelos 
negócios na África. Seu plano atual é usar 
o dinheiro da venda de parte de uma de 
suas fazendas – a Curuaés, que fica den-
tro da reserva biológica Nascentes da Ser-
ra do Cachimbo, no Pará – para investir 
em um frigorífico de aves em Luanda, 
capital de Angola, onde esteve há cinco 
anos. E segue com a consciência tranqui-
la. “Não passo ninguém para trás. Sem-
pre atuei na legalidade. Uma vez, quando 
era criança, furtei uma bolinha de gude. 
Meu pai descobriu e me fez devolver. 
‘Nunca mais pegue o que não seja seu.’ 
Eu guardei essas palavras”, diz. J
Com a colaboração de Jean-Noël Konan, 
de Abidjan (Costa do Marfim), e Luiz Fer-
nando Toledo.
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calista, apontando os pelos eriçados do 
braço. Sentado num café em Brasília, 
Zé Pedro reconstitui sua trajetória e 
descreve minuciosamente o que fazia 
quando era caldeireiro – “um serviço 
apaixonante, porque você trabalha mui-
to com os braços, mas também precisa 
fazer cálculos”. Com 81 anos de idade, 
ele é um homem alto, corpulento e de 
cabelos brancos. Ao concluir o falató-
rio, explica por que pleiteia uma inde-
nização do Estado brasileiro: “O Estado 
errou conosco. Fez muita coisa errada, 
fez barbaridades durante a ditadura. 
Então é justo que peça desculpas. E uma 
reparação econômica, porque atrapa-
lharam muito a nossa vida.”
Zé Pedro foi um sindicalista ilustre 
no !"#. Reunia-se frequentemente com 
o então líder sindical Luiz Inácio Lula da 
Silva e era respeitado pelos pares. A para-
lisação da Brown Boveri, da qual partici-
pou, deu gás ao movimento grevista que 
enfraqueceu a ditadura. Mas a militância 
lhe cobrou um preço. Semanas depois da 
paralisação, Zé Pedro foi surpreendido 
por um colega de fábrica que, sem mais 
nem menos, lhe entregou uma passagem 
de avião para o Recife, marcada para o 
dia seguinte: “A empresa está te transfe-
rindo pra lá.” Zé Pedro tinha motivos para 
achar aquilo muito estranho. Embora 
fosse um caldeireiro especializado, não 
havia caldeiras na filial pernambucana 
da Brown Boveri. Além disso, tinha mu-
lher e cinco filhos, todos vivendo em 
Osasco. Desconfiou, por isso, que os mi-
litares quisessem tirá-lo da cidade.
Por entender que se tratava de uma 
intimidação, não só a Zé Pedro, mas a 
todos os grevistas, o sindicato convocou 
uma plenária na fábrica e pôs em vota-
ção: ele deveria ir ou não ir para o Re-
cife? Seiscentos e tantos votos foram 
unânimes em dizer não. “É papo-fura-
do, querem te matar lá”, ouviu Zé Pe-
dro de colegas mais escaldados. Fazia 
dois anos que Manoel Fiel Filho, ope-
rário metalúrgico de São Paulo, tam-
bém filiado ao $#", fora preso e morto 
pelos militares. A repressão aos sindica-
tos estava em alta. Dali a um ano, em 
1979, o operário Santo Dias seria morto 
pela Polícia Militar com um tiro nas 
costas em frente à fábrica da Sylvania, 
onde trabalhava, em São Paulo. 
Recusando-se a viajar, Zé Pedro foi 
demitido na mesma semana. Contes-
tou: como disputara a última eleição 
do sindicato, tinha imunidade sindical 
até o ano seguinte e não poderia ser 
demitido. A Brown Boveri não quis sa-
ber da lei. Os operários então convoca-
ram uma paralisação, em protesto. Zé 
Pedro apareceu na fábrica para prestar 
apoio aos colegas, porém foi barrado. 
Alguns sindicalistas se revoltaram, 
houve empurra-empurra, e uma viatu-
ra da $% se materializou em frente à 
Brown Boveri. Zé Pedro foi algemado 
e preso. Ficou detido por um dia no 
14º Batalhão da $%, ouvindo sermão de 
um coronel. Não sofreu sevícias, como 
tantos presos da ditadura, mas viu sua 
vida piorar dali em diante. 
Desempregado, oriundo de uma fa-
mília muito pobre do interior de Minas, 
o operário passou a procurar serviço em 
outras metalúrgicas de Osasco, mas a 
fama de esquerdista o precedia. Quan-
do conseguia trabalho, era demitido 
pouco depois, assim que a chefia desco-
bria seu histórico de militante. Ele esti-
ma ter passado por quinze empregos em 
J
osé Pedro da Silva era um veterano 
do sindicalismo quando estoura-
ram as greves do !"#, na Grande 
São Paulo, em 1978. Dezesseis 
anos antes, havia participado das jor-
nadas do governo João Goulart (1961-64), 
quando milhares de operários cruzaram 
os braços exigindo a implantação do dé-
cimo terceiro salário. Militante do Parti-
do Comunista Brasileiro ($#"), Zé Pedro, 
como era conhecido, fez propaganda e 
passeata. Submergiu depois do golpe de 
1964 e passou a atuar por vias clandesti-
nas, organizando grupos secretos nas 
fábricas por onde passou em Osasco, 
quase todas do setor metalúrgico. Era 
um líder inconteste. De modo que, 
quando os trabalhadores da montadora 
sueca Scania desligaram as máquinas 
na cidade vizinha de São Bernardo do 
Campo, em 12 de maio de 1978, defla-
grando a primeira greve em catorze anos 
de ditadura, Zé Pedro mobilizou os ope-
rários da fábrica onde trabalhava, a suíça 
Brown Boveri, de sistemas de automa-
ção. Aderiram à greve.
“Paramos a fábrica inteirinha, foi 
uma coisa de arrepiar”, lembra o sindi-
anais da ditadura
Os enroscos da Comissão de Anistia, que tenta se reerguer após Bolsonaro 
LUIGI MAZZA 
A FILA DA REPARAÇÃO
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quatro anos. Numa das vezes, foi demi-
tido no dia de seu aniversário. “Não pas-
sei fome porque meus colegas faziam 
uma cotização e levavam dinheiro pra 
mim”, ele conta, meio comovido. 
Certavez, Torradinho – operário 
mineiro que recebeu o apelido por cau-
sa de seu jeito agitado – foi à casa de Zé 
Pedro entregar uma vaquinha feita 
pelos trabalhadores da Brown Boveri. 
O sindicalista se surpreendeu ao ver 
que a quantia amealhada era maior 
do que o salário que recebia como cal-
deireiro. “Você acredita? Isso é do cara-
lho...” Em 1982, ano em que o !" foi 
oficialmente registrado, Zé Pedro deci-
diu se candidatar a deputado federal 
pelo partido. Teve 17 mil votos, mas não 
se elegeu. Depois disso, foi, como ele 
próprio diz, “perdendo o nome”. Saiu 
de cena. Fez bicos no Sindicato dos Ban-
cários de São Paulo, Osasco e Região, 
chefiou o gabinete da vereadora petista 
Sônia Rainho, em Osasco, e assessorou 
Rui Falcão, também do !", quando ele 
era deputado estadual. 
Em 2010, já aposentado, Zé Pedro 
pediu à Comissão de Anistia reconhe-
cimento e indenização como persegui-
do político. O órgão foi criado pelo 
governo federal em 2001, quase vinte 
anos depois da redemocratização, num 
esforço tardio de reparar vítimas da di-
tadura e seus familiares. Mas nunca 
teve orçamento à altura de sua tarefa his-
tórica e, por isso, acumula pilhas de pro-
cessos até hoje não analisados. O de Zé 
Pedro entrou para a fila inglória. 
O ex-sindicalista precisou trocar 
de advogado e impetrar um mandado de 
segurança para que o caso andasse. No 
fim de 2018, depois de analisar as evi-
dências – entre elas, relatórios policiais 
que comprovam que Zé Pedro era co-
nhecido, seguido e fotografado pelos 
aparelhos de repressão da ditadura –, a 
comissão acatou o pedido de anistia. 
Para oficializar a decisão, faltava só a 
assinatura do então ministro da Justiça 
do governo Michel Temer, Torquato 
Jardim. Como o ministro estava fora 
do país, a papelada caiu no colo de seu 
braço direito, o coronel da reserva Gil-
son Libório. O militar indeferiu o pe-
dido. Alegou que não havia motivação 
política clara na demissão de Zé Pedro 
da Brown Boveri e, portanto, nenhu-
ma razão para anistia.
Frustrados, Zé Pedro e seu advoga-
do, Humberto Falrene Junior, entraram 
com um processo na Justiça pedindo a 
revisão do caso. O litígio não prospe-
rou, eles recorreram, e o caso emperrou 
na segunda instância. No meio do ca-
minho, Bolsonaro tomou posse, a Co-
missão de Anistia foi reconfigurada, e o 
processo de Zé Pedro caiu no esqueci-
mento. Cliente e advogado acharam 
melhor não cutucar a comissão, que 
passou a ser composta por militares e 
bolsonaristas simpáticos à ditadura – 
entre eles, um general da reserva que 
prefaciou um livro escrito pelo tortura-
dor Carlos Alberto Brilhante Ustra. 
Entre 2002 e 2018, mais da metade 
dos pedidos de anistia analisados pela 
comissão foram concedidos. Nos quatro 
anos de Bolsonaro, segundo levanta-
mento da piauí, só 4,8%. Zé Pedro cal-
culou que, se chamasse atenção para o 
seu processo, corria o risco de os novos 
conselheiros desfazerem a decisão da 
turma anterior, que concedeu a ele sta-
tus de anistiado. Achou melhor esperar. 
C om a vitória de Lula em 2022, a Comissão de Anistia retomou ares de normalidade. Foram nomea-
dos 21 conselheiros para compor o ór-
gão – na gestão anterior eram 27 –, a 
maioria especializada em direitos hu-
manos e justiça de transição (que busca 
reparar, por vias judiciais ou não, viola-
ções de direitos humanos cometidas 
num período ditatorial). Muitos já ha-
viam sido conselheiros no passado. Ne-
nhum deles é remunerado pelo trabalho. 
O grupo fez sua primeira sessão pública 
em 30 de março, véspera do aniversário 
do golpe de 1964, data que não foi esco-
lhida ao acaso. No novo governo, a co-
missão ganhou força simbólica, após ter 
servido durante quatro anos à negação 
dos crimes da ditadura militar. 
O ministro dos Direitos Humanos, 
Silvio Almeida, compareceu ao primei-
ro encontro, para prestigiá-lo. Leu um 
discurso contundente, dizendo que ti-
nha início, ali, “uma nova fase desse 
país, de restauração da memória, da ver-
dade e da justiça”. Foi aplaudido de pé 
no auditório lotado do subsolo do Minis-
tério dos Direitos Humanos e da Cida-
Cartaz da PUC-SP pela anistia: a nova comissão quer revisar quase todos os processos julgados durante o governo Bolsonaro, quando foram indeferidos 95% dos cerca de 9 mil pedidos de anistia
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dania. Presidente recém-empossada da 
comissão, a professora de direito Eneá 
de Stutz e Almeida, da Universidade de 
Brasília (sem parentesco com o minis-
tro), dirigiu-se às vítimas da ditadura e 
seus parentes: “Sintam-se acolhidos.”
O primeiro processo julgado pela 
nova Comissão de Anistia naquele dia 
foi o de Romário Cezar Schettino. Um 
caso que, com idas e vindas, se arrasta 
desde 2004, quando Schettino – ex- 
funcionário do Banco do Brasil que vi-
rou repórter e presidiu o Sindicato dos 
Jornalistas do Distrito Federal – pediu 
reconhecimento como anistiado.
Schettino foi sequestrado e preso por 
uma patrulha policial quando saía do 
trabalho, em 1973. Tinha 22 anos, estu-
dava história na !n" e fazia parte do 
Grupo Caratinga, uma turma de estu-
dantes vindos da cidade mineira de Ca-
ratinga interessados em discutir política 
e marxismo. Entre eles estava a jorna-
lista Miriam Leitão. “Romário ligou-se 
a homossexuais e viciados em tóxicos”, 
diz um relatório escrito naquele ano pelo 
general Olavo Vianna Moog. O jovem 
estudante, prossegue Moog, visitava 
casas de amigos “onde o ambiente era 
caracterizado pela presença do tóxico, 
das ideias subversivas e corrupção de 
costumes”. Além disso, afirma o gene-
ral, Schettino “possuía vasta biblioteca 
marxista” e mantinha “relações íntimas 
com pederastas”.
Por causa dessas acusações, o jovem 
estudante ficou preso por 25 dias e foi 
submetido a tortura. Encapuzado, rece-
beu choques elétricos nos testículos. 
Seus familiares o davam como desapa-
recido. Foi solto num descampado de 
Brasília, mas nunca se recuperou do 
trauma: passou a viver em constante 
estado de paranoia. Como outros cole-
gas, optou por largar o emprego (na 
época, estava cedido ao Banco Central) 
e sair do Brasil. Sem um tostão, mudou- 
se para o Sul da França e passou a viver 
de trabalhos braçais no campo. No co-
meço da reabertura democrática, retor-
nou ao Brasil e se tornou jornalista.
O pedido de anistia, protocolado em 
2004, só foi julgado em 2008. A comis-
são, na época, concordou em reconhe-
cer Schettino como anistiado, mas 
aprovou uma indenização em presta-
ção única – e não a prestação mensal, 
que havia sido solicitada. “Ele tinha 
um dos melhores empregos da época, 
que era o de servidor concursado do 
Banco do Brasil, e teve de fugir do país, 
ameaçado pela ditadura”, argumenta 
seu advogado, Max Telesca. O jornalis-
ta entrou com um recurso que, durante 
dez anos, tramitou “igual tartaruga em 
marcha a ré”, nas palavras de Telesca. 
Só em 2018 o caso foi reavaliado, e a 
comissão acatou o pedido. Mas a deci-
são nunca saiu no Diário Oficial – e, 
portanto, nunca se concretizou. 
À espera da indenização, Schettino 
adoeceu. Passou a ter convulsões por 
causa de um edema no cérebro que ha-
via sido detectado em 2010, e que agora 
representava risco de derrame. Em fe-
vereiro de 2023, se internou no Hospital 
Copa D’Or, no Rio de Janeiro, para re-
mover o edema. Por puro acaso, a cirur-
gia delicada foi marcada justamente 
para a manhã de 30 de março – dia do 
julgamento de seu pedido de anistia. 
Nenhum dos familiares pôde compare-
cer à sessão. Telesca, o advogado, os 
representou. “Durante os quatro anos 
que foram a maior tragédia deste país, 
este advogado esteve na Comissão de 
Anistia para tentar fazer com que a por-
taria fosse publicada”, discursou Teles-
ca, no púlpito do auditório. Segundo 
ele, a resposta que ouviu dos antigos 
conselheiros foi: “Não mexa nesse re-
querimento. Nós não vamos publicá-lo 
e isso já é muito bom.” O pedido de 
anistia ficou estacionado desde então.
Naquela quinta-feira, 30 de março, 
enquanto Schettino se submetiaà ope-
ração, a Comissão de Anistia aprovou o 
pedido por unanimidade. O processo 
foi o primeiro a ser julgado porque, adoe-
cido, Schettino passou a ter prioridade 
legal. Os conselheiros concordaram em 
conceder ao jornalista uma prestação 
mensal de 2,7 mil reais e uma indeni-
zação retroativa de 828 mil reais. Ao 
encerrar a votação, a presidente da co-
missão, Eneá de Stutz e Almeida, sus-
pirou e pediu que todos no auditório se 
levantassem num ato simbólico. Viran-
do-se para Telesca, disse, em tom de 
desagravo: “Vou me dirigir ao advoga-
do, mas também a toda a sociedade. 
Em nome do Estado brasileiro, eu peço 
desculpas por toda a perseguição sofri-
da – não só a do passado, como também 
essa nova perseguição, essas ameaças, 
essas barbaridades que foram cometi-
das na última gestão.”
Com o resultado em mãos, a primei-
ra coisa que o advogado fez foi enviar 
uma mensagem para a mulher de 
Schettino, que acompanhava o marido 
no Copa D’Or. “Ela me disse que ficou 
desidratada de tanto cho-
rar”, contou Telesca. A ci-
rurgia foi bem-sucedida, e 
o jornalista está em casa se 
recuperando. A mulher só 
pôde lhe dar a notícia no 
dia seguinte à operação. Ao relembrar o 
momento, ele se emociona. “Fiquei 
muito comovido. É uma história forte”, 
disse Schettino à piauí, segurando o 
choro. “Esse reconhecimento é impor-
tante. Espero que meus amigos que 
passaram por coisas parecidas também 
tenham direito a isso.” 
C riada um ano antes do fim do go-verno Fernando Henrique Cardo-so (1995-2002), a Comissão de 
Anistia promoveu uma das maiores po-
líticas de reparação a violações de direi-
tos humanos do mundo. Foi uma 
iniciativa tardia: a Constituição de 1988 
já dizia que o Estado deveria reconhe-
cer e indenizar as vítimas da ditadura. 
A fragilidade da transição democrática 
no Brasil, conduzida pelos militares, re-
tardou em treze anos o processo.
Pouco antes da criação da Comissão 
de Anistia, o Congresso havia implanta-
do, em 1995, a Comissão Especial sobre 
Mortos e Desaparecidos Políticos. Seu 
escopo, no entanto, sempre foi mais res-
trito: como diz o nome, ela está focada 
na busca de pessoas assassinadas e/ou 
desaparecidas durante a ditadura – e 
apenas daquelas que militavam politica-
mente. As duas comissões são irmãs e se 
complementam, mas a de Anistia é 
mais abrangente e muito mais robusta. 
Julgou, desde 2001, em torno de 70 mil 
processos. Até 2023, segundo dados 
do governo federal, haviam sido pagos 
16,4 bilhões de reais, em valores nomi-
nais, a cerca de 14 mil anistiados políti-
cos. Apesar da cifra impressionante, os 
processos que envolvem reparação eco-
nômica são minoria – cerca de um terço 
do total. Os pagamentos podem ser de 
dois tipos: a prestação mensal (para 
aqueles que perderam o ganha-pão por 
motivações políticas) e a prestação úni-
ca (para os demais anistiados). 
O valor das indenizações, algumas 
na casa de centenas de milhares de reais, 
sempre foi alvo de questionamentos, à 
direita e à esquerda. O jornalista Elio 
Gaspari, num artigo de 2009, tratou a 
anistia como “bolsa ditadura” – termo 
que por muito tempo foi adotado por 
críticos da comissão. Segundo ele, um 
estudioso do regime militar, as indeni-
zações milionárias haviam conseguido 
“desmoralizar a esquerda sexagenária 
brasileira”. Em 2010, o Tribunal de 
Contas da União (#$!) anunciou que 
iria revisar os valores pagos pela comis-
são, apontados como arbitrários, mas 
acabou engavetando a proposta.
Em parte, as cifras tão grandes se ex-
plicam pela lentidão com que se deu o 
processo de transição no Brasil. Como 
o governo federal demorou treze anos 
para criar a Comissão de Anistia, muitas 
pessoas recorreram à Justiça para plei-
tear as indenizações garan-
tidas pela Constituição de 
1988. Consequentemente, o 
valor das reparações acabou 
sendo definido sem padroni-
zação, em decisões isoladas 
de juízes e desembargadores – que, na 
maioria dos casos, decidiam por indeni-
zações robustas. “Isso foi um erro das 
autoridades brasileiras, por omissão. Não 
é culpa da Comissão de Anistia ou do 
nosso modelo legal. É culpa da procras-
tinação histórica”, diz Paulo Abrão, pro-
fessor de direito, especialista em direitos 
humanos, que presidiu a comissão entre 
2007 e 2016 e ainda hoje é a maior refe-
rência no assunto. Ele explica que, quan-
do finalmente o órgão foi criado, em 
2001, o governo teve de seguir o padrão 
de pagamentos adotado pelos tribunais. 
“Caso contrário, a comissão seria inó-
cua. As pessoas iriam para o Judiciário 
buscar o dinheiro a que tinham direito.” 
Como a Comissão de Anistia, além 
do mais, nunca teve orçamento ou equi-
pe para lidar com uma quantidade tão 
grande de processos, o problema só se 
agravou. Os pedidos de anistia demora-
vam anos para ir a julgamento. Quando 
entravam em pauta, o órgão se via obri-
gado a pagar uma bolada em valores re-
troativos. Havia ainda outro complicador: 
a Comissão Especial de Mortos e Desa-
parecidos Políticos, criada anos antes, 
adotava um cálculo diferente de indeni-
zação: familiares daqueles que haviam-
sido mortos pela ditadura tinham direito 
a uma compensação única, que variava 
entre 100 mil e 150 mil reais. Isso porque 
as duas comissões são oriundas de leis 
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diferentes. Criou-se, assim, um cenário 
em que perseguidos políticos ainda vivos 
recebiam muito mais do que os parentes 
daqueles que haviam morrido. O qui-
proquó foi parar nos tribunais.
Escolhido para o cargo pelo então 
ministro da Justiça, Tarso Genro, Abrão 
assumiu a presidência da Comissão de 
Anistia no momento em que ela mais 
sofria críticas. “Havia um desconforto 
generalizado”, ele relembra. Sua primei-
ra preocupação foi aumentar o corpo 
técnico da comissão, que passou a ter 
mais servidores dedicados à análise de 
processos. A mudança rapidamente deu 
frutos: a média de pedidos de anistia jul-
gados por ano passou de 5 mil para 10 mil. 
Além disso, Abrão atuou em duas fren-
tes. Primeiro, “politizou” – em suas pala-
vras – o processo da anistia. A comissão 
adotou o rito de pedir desculpas em no-
me do Estado brasileiro aos anistiados – 
“uma virada hermenêutica”, segundo ele, 
já que, até então, a Lei de Anistia era com-
preendida apenas como um ato por meio 
do qual o Estado “perdoava” as pessoas 
pelo que haviam feito na ditadura. 
Abrão, assim como outros conselhei-
ros, conta ter ouvido de alguns anistia-
dos que, para eles, bastava o pedido de 
desculpas. “Isso politizou o debate. As 
pessoas pararam de brigar para receber 
a mesma indenização que outros ti-
nham recebido.” Cresceu o número de 
anistias concedidas sem indenização. 
E aí entra a segunda frente: a comissão 
passou a adotar um princípio de razoa-
bilidade ao conceder indenizações por 
prestação mensal. Em vez de seguir ao 
pé da letra o que está na lei, calculando 
o valor exato que o anistiado receberia 
caso estivesse na ativa e tivesse progre-
dido na carreira, o órgão passou a usar 
como referência, simplesmente, a mé-
dia salarial da profissão. Resultado: o 
valor médio das indenizações mensais, 
que na gestão do ministro Márcio Tho-
maz Bastos (2003-2007) havia sido de 
3,9 mil reais, caiu para 2,9 mil reais na 
gestão Tarso Genro (2007-2010).
A reparação pela via econômica foi 
uma particularidade da transição brasilei-
ra, que não se repetiu na mesma escala 
em países vizinhos. Chile e Argen-
tina, quando derrubaram suas di-
taduras, criaram comissões para 
investigar e punir militares que par-
ticiparam direta e indiretamente de 
violações a direitos humanos. Nes-
ses países, falava-se mais em justiça 
do que em reparação. O Brasil to-
mou o caminho oposto. O que, para 
Abrão, “não é um modelo nem pior 
nem melhor” que o dos vizinhos 
latino-americanos. “É um processo que, 
inclusive, tem suas vantagens”, argumen-
ta. “Isso mostra que a preocupação central 
da nossa transição sempre foi com as víti-mas, com a reconstrução das condições 
materiais e dos projetos de vida que foram 
interrompidos pela ditadura. É uma res-
posta objetiva para quem foi injustiçado.” 
Abrão reconhece, no entanto, que há 
dois lados dessa moeda. A Lei de Anis-
tia, sancionada em 1979, ao mesmo 
tempo que abriu caminho para a repara-
ção às vítimas, funcionou como garantia 
de impunidade aos militares. A situação 
ensaiou mudar de figura em 2011, 
quando foi criada a Comissão Nacional 
da Verdade, para esclarecer os crimes da 
ditadura e apontar culpados. Mas o re-
latório final da comissão, apresentado 
em 2014, embora tenha grande valor 
como documento histórico, resultou 
em poucos desdobramentos práticos. 
O órgão listou 377 agentes do Estado 
como responsáveis por violações graves 
aos direitos humanos. Até 2021, o Mi-
nistério Público Federal havia apresen-
tado 53 denúncias à Justiça, pedindo a 
punição de alguns desses agentes. Se-
gundo levantamento do Instituto Vladi-
mir Herzog, dos 53 processos, 43 ainda 
tramitam em diferentes instâncias. Os 
outros dez já transitaram em julgado, 
sem condenação dos réus – que quase 
sempre são inocentados com base na 
Lei de Anistia. 
Passados quase dez anos do fim da Co-
missão da Verdade, nenhum criminoso 
da ditadura cumpre pena. Dos 377 agen-
tes do Estado apontados como criminosos 
em 2014, a maioria (270) já morreu.
D esde o governo Temer, as políticas de memória da ditadura definha-ram, em sintonia com o momen-
to político. As comissões de Anistia e de 
Mortos e Desaparecidos Políticos tive-
ram de reduzir o ritmo de trabalho por 
falta de verba – reflexo da crise econô-
mica, mas também da guinada do go-
verno para a direita. Em 2017, o então 
presidente da Comissão de Anistia, o 
advogado Arlindo Fernandes de Olivei-
ra, renunciou ao cargo, em protesto 
contra uma mudança no funcionamen-
to do órgão, que passou a ter suas deci-
sões revisadas por juristas do Ministério 
da Justiça. Cresceu significativamente 
a recusa de pedidos de anistia. Projetos 
importantes da comissão, como o aten-
dimento psíquico a vítimas da violência 
de Estado, foram encerrados. 
Apesar do desmonte, as coisas transcor-
reram em clima de civilidade no governo 
Temer. Com a eleição de Bolsonaro, 
os órgãos, embora mantidos, muda-
ram flagrantemente seu foco: em 
vez de servir de amparo às vítimas, 
passaram a minimizar os crimes da 
ditadura. Ambas as comissões foram 
transferidas para o Ministério da 
Mulher, da Família e dos Direitos 
Humanos, comandado por Da-
mares Alves (hoje senadora pelo 
Republicanos), e recheadas com 
simpatizantes da ditadura. A nomeação do 
general Luiz Eduardo Rocha Paiva – que 
prefaciou um livro de Brilhante Ustra – 
para a Comissão de Anistia foi o ato de 
maior carga simbólica, mas não o único. 
A presidência do colegiado passou a ser 
exercida por um ex-assessor de Flávio 
Bolsonaro que, anos antes, trabalhando 
como advogado, se dedicara a tentar anu-
lar pedidos de anistia aprovados pela co-
missão – entre eles, um que beneficiava 
a viúva do guerrilheiro Carlos Lamarca. 
A lista de novos conselheiros incluía, 
ainda, dois coronéis reformados do Exér-
cito, um tenente-coronel da Aeronáuti-
ca, um coronel da !" de Santa Catarina, 
um advogado bolsonarista que se can-
didatou a deputado pelo antigo !#$ e, 
surpreendentemente, um cardiologista. 
Formou-se assim uma comissão revisio-
nista da ditadura, que praticava o se-
guinte raciocínio: grupos clandestinos 
de esquerda, por serem clandestinos, ti-
nham mais é de ser punidos na época. 
Pelo mesmo motivo, seus integrantes 
não mereciam hoje qualquer reparação 
econômica do Estado (os novos conse-
lheiros fecharam os olhos ao fato de que 
os grupos só eram clandestinos porque o 
país vivia numa ditadura). A perseguição 
a sindicalistas que faziam greves tam-
bém não era, aos olhos da nova comis-
são, motivo para anistia. Tratava-se de 
questão exclusivamente trabalhista.
Em julho do ano passado, a ministra 
Cristiane Britto – que substituiu Dama-
res Alves depois do início da campanha 
eleitoral – indeferiu o pedido de uma 
professora mineira, filiada ao !%& nos 
anos 1960, que foi presa, torturada e 
demitida por força do Ato Institucional 
nº 5. Ela não pegou em armas ou parti-
cipou de qualquer ato violento. Era ape-
nas comunista e se opunha à ditadura 
– coisa que, para Britto, é crime sufi-
ciente. A ministra alegou que a professo-
ra foi detida “para apuração de atividades 
subversivas”, e que, portanto, sua prisão 
não poderia ser caracterizada como per-
seguição política, mas como “investiga-
ção policial, sem abusos ou excessos, 
seguindo regramento vigente à época”.
Os argumentos dos novos conselhei-
ros provocaram, não raro, bate-bocas 
com os familiares de anistiados. Certa 
vez, em novembro de 2019, durante 
uma reunião da comissão num prédio 
comercial de Brasília, o general Rocha 
Paiva compartilhou com os colegas sua vi-
são sobre o regime militar. Disse que não 
se podia chamar de ditadura o que vigo-
rou no Brasil de 1964 a 1985, já que o 
país “tinha eleições livres, tinha festivais 
da canção com canções de protesto, tinha 
livrarias que vendiam livros marxistas”. 
(Os militares acabaram com as eleições 
diretas para presidente e para governa-
dor; extinguiram os partidos políticos 
que existiam até então, estabelecendo o 
bipartidarismo; e impuseram censura 
prévia à imprensa, às gravadoras e às edi-
toras.) Rocha Paiva concluiu sua análise 
dizendo que a Lei da Anistia, de 1979, 
foi tão boa que anistiou tanto torturado-
res quanto “terroristas”.
“Terrorista, não: revolucionários”, 
protestou Rosa Cimiana dos Santos, re-
presentante das famílias dos anistiados. 
A piauí teve acesso a uma gravação em 
áudio de parte da reunião. Rocha Paiva 
respondeu: “Eu não estou chamando a 
senhora de terrorista. Estou falando ‘os 
terroristas’. Se a senhora não foi, a senho-
ra não precisa falar.” Nesse momento, o 
presidente da comissão, o advogado João 
Henrique Nascimento de Freitas, inter-
cedeu a favor do militar: “Ele não no-
meou ninguém. O que tô percebendo é 
que a carapuça está servindo.” Santos 
não arredou pé: “Vivi calada a vida toda, 
mas agora eu não tenho que ficar calada. 
Se o senhor quiser me tirar daqui, o se-
nhor me tira. Então nos respeite. Pare de 
chamar a gente de terrorista. Porque se-
não só vou me dirigir ao general como 
tarado. Quem deu choque nos testículos 
do meu pai e de muitos companheiros 
nossos – pra mim isso é tara!” (Santos se 
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excedeu: o general Rocha Paiva não é 
acusado de envolvimento em nenhum 
caso de tortura). A sala mergulhou em 
silêncio por alguns segundos, e o presi-
dente chamou a próxima pauta.
Santos tinha 4 anos de idade quando 
seu pai, Arthur Pereira da Silva, foi preso 
e torturado na cidade gaúcha de Santa 
Maria. “Ele tinha muitos defeitos: era 
negro, pobre, ferroviário e comunista”, 
diz ela à piauí. Depois de deixar a cadeia, 
Silva passou a viver na clandestinidade. 
Mandou a mulher e os quatro filhos – 
entre eles, Santos – para a Argentina. 
Queria, com isso, enganar os órgãos de 
repressão, para que pensassem que ele 
não estava mais no Brasil. Quando a si-
tuação ficou mais tranquila, Silva se re-
encontrou com a família e foram todos 
morar em Goiânia. Os filhos, ainda mui-
to jovens, viviam em estado de alerta. 
Quando alguém na vizinhança pergun-
tava sobre o pai deles, respondiam, trei-
nados: “Não temos pai.”
O irmão mais velho de Santos, Luís 
Carlos – chamado assim em homena-
gem a Prestes, o líder comunista – tra-
balhava em Goiânia como tesoureiro 
no Estádio Serra Dourada. Em 1976, 
ele pulou da janela do escritório. En-
trou em coma e morreu oito dias de-
pois. Semanas antes, tivera uma crise 
nervosa: chorava muito e dizia que a 
polícia estava atrás de seu pai, para 
prendê-lo novamente. 
Arthur Pereira da Silva morreu em 
1982, devido a complicações da diabe-te. A Lei da Anistia já estava em vigor, 
mas, filiado ao !"#, Silva não constava 
entre os perdoados. O Partidão ainda se 
encontrava na ilegalidade e só foi auto-
rizado a funcionar no país no ano se-
guinte. Silva foi anistiado em 2003, 
vinte anos depois de sua morte. Rosa 
Cimiana dos Santos – o prenome ho-
menageia a revolucionária Rosa Lu-
xemburgo – foi anistiada em 2011 (a 
comissão entendia, na época, que fami-
liares de perseguidos políticos que so-
freram impactos diretos ou indiretos da 
perseguição política também tinham 
direito à anistia). Só então ela comprou 
uma lápide para os túmulos do pai e do 
irmão, que haviam sido enterrados 
como indigentes, lado a lado, no Cemi-
tério Municipal Santana, em Goiânia. 
“Dá pra entender o apego que tenho 
com a comissão?”, pergunta.
A Comissão de Anistia funciona no sexto andar de uma antiga sede do Banco do Brasil, na Asa Sul, em 
Brasília. No começo de abril, na placa 
da entrada ainda constava o nome do 
extinto Ministério da Mulher, da Famí-
lia e dos Direitos Humanos. É uma re-
partição ampla, com mais computadores 
do que pessoas. Em 2008, época de 
maior bonança, chegou a ter 89 funcio-
nários dedicados em tempo integral, 
levando em conta servidores e terceiri-
zados. Hoje, são pouco mais de 20.
“Estamos com um déficit de recursos 
humanos”, reconhece Eneá de Stutz e 
Almeida, presidente da comissão. Com 
pouca gente para examinar uma papela-
da enorme, até meados de abril não se 
sabia quantos pedidos de anistia ainda 
esperavam por análise – nem quantos 
precisariam ser revistos por conter, aos 
olhos da nova gestão, decisões ilegais. 
Certo é que a comissão promete revisar 
quase todos os pedidos de anistia julga-
dos na era Bolsonaro – mas, novamente, 
ninguém sabe ao certo quantos são. Du-
rante a transição de governo, estimou-se 
que seriam 4 mil processos. Uma con-
sulta ao Diário Oficial da União, no en-
tanto, revela que quase 9 mil pedidos de 
anistia foram julgados pela gestão passa-
da, sendo 95% indeferidos. 
Uma mudança no regimento da co-
missão, em 2019, facilitou a recusa de 
pedidos. Até então, quando alguém pe-
dia reconhecimento como anistiado, o 
processo era primeiro analisado por uma 
turma de, no mínimo, três conselheiros. 
Caso o pedido fosse negado por essa tur-
ma, era possível recorrer ao plenário (for-
mado por nove conselheiros ou mais). 
Numa canetada, Damares Alves acabou 
com essa possibilidade: todos os casos 
passaram a ser julgados diretamente no 
plenário, e pedidos de recurso deveriam 
ser endereçados à própria ministra. Dos 
646 pedidos de reconsideração que che-
garam a Damares e a sua sucessora no 
cargo, Cristiane Britto, 645 foram rejei-
tados. As anistias que prosperaram nos 
últimos quatro anos, pouco mais de qua-
trocentas, tratavam, em sua maioria, de 
casos em que se comprovou um ato for-
mal de perseguição política: um verea-
dor cassado em Ouro Preto depois do 
golpe, um desembargador afastado do car-
go na Paraíba, um sargento comunista 
destituído de seus direitos políticos por 
força de um ato institucional.
“Eles indeferiam tudo. A intenção era 
acabar com a fila de processos e, com 
isso, dizer que a comissão já podia ser 
fechada”, diz Roberta Alvarenga, atual 
coordenadora-geral da Comissão de 
Anistia. Ela exerceu essa mesma função 
entre 2008 e 2011, durante os governos 
Lula e Dilma (na época, o cargo que 
ocupava tinha nome diferente: era se-
cretária-executiva). Alvarenga conhece 
como ninguém a burocracia do colegia-
do e carrega um caderno cheio de gar-
ranchos onde faz anotações sobre os 
processos. Ela conta que, desde janeiro, 
têm pipocado e-mails e telefonemas de 
pessoas pedindo para terem seus pedidos 
reconsiderados pela comissão. 
“São muitos casos, centenas. 
Todo mundo que não teve a 
mínima possibilidade de con-
seguir anistia nos últimos qua-
tro anos está pedindo agora.”
O problema é que faltam não só ser-
vidores para analisar os casos. Falta, 
principalmente, orçamento. O dinheiro 
das indenizações sai dos cofres de dois 
ministérios: o da Gestão e da Inovação 
em Serviços Públicos (caso o anistiado 
seja civil) e o da Defesa (caso seja mili-
tar). Ao menos no Ministério da Gestão, 
onde está concentrada a maioria das 
indenizações, a situação é austera. Os 
quatro anistiados na primeira sessão da 
comissão no governo Lula já têm seu 
dinheiro reservado no orçamento, em-
bora ninguém saiba ainda quando ele 
será efetivamente pago. As indenizações 
dos casos que vêm pela frente, no entan-
to, são uma incógnita. A comissão está 
elaborando um calendário de julgamen-
tos para levar ao Ministério da Gestão e, 
a partir daí, pleitear mais verbas. Mesmo 
num cenário otimista, não será um ca-
minhão de dinheiro. Ninguém espera 
que sejam julgados mais do que cem 
pedidos de anistia até o fim do ano.
No Ministério dos Direitos Huma-
nos – que não paga as indenizações, 
mas mantém o funcionamento do ór-
gão –, o miserê é ainda maior. O orça-
mento aprovado para a Comissão de 
Anistia bancar suas atividades em 2023 
é de apenas 164 mil reais (em 2014, a 
título de comparação, o orçamento foi 
de 10,8 milhões). Segundo Alvarenga, 
um terço dos 164 mil reais já foi gasto 
na primeira sessão do conselho, no dia 
30 de março, quando foi preciso pagar 
passagens de avião e diárias para 18 dos 
21 conselheiros, pois eles não moram 
em Brasília. A penúria é tão grande 
que, dias antes da reunião, a comissão 
resolveu ir até o Congresso passar o pi-
res entre deputados e senadores. Numa 
mesma tarde, os conselheiros se dividi-
ram na visita a 25 parlamentares para 
amealhar emendas que banquem o 
funcionamento da comissão. Segundo 
Almeida, a estratégia deu certo: haverá 
dinheiro para bancar mais seis reuniões 
presenciais até o fim do ano. (Os conse-
lheiros argumentam que reuniões virtuais 
não funcionam com a mesma fluidez 
e não são acolhedoras com quem está 
pleiteando anistia.) 
Embora ainda não dê conta de lidar 
com o passivo da gestão Bolsonaro, a 
comissão já faz planos para a chegada 
de novos pedidos de anistia. Isso por-
que, pela primeira vez desde a criação 
do colegiado, será possível protocolar 
pedidos coletivos. “Não vai implicar ne-
nhuma reparação financeira. Mas, por 
exemplo: uma comunidade indígena 
que sofreu com a ação do Estado na di-
tadura vai poder entrar com pedido”, 
explica Almeida, orgulhosa. “Se ficar 
provado que houve perseguição polí-
tica, vamos anistiar e talvez recomen-
dar à Funai que comece o processo de 
demarcação de terras daque-
le grupo. Quer dizer que isso 
vai acontecer? Não. Mas po-
demos recomendar.”
“A verdade é que esta-mos nos erigindo so-bre escombros”, diz 
Nilmário Miranda, em seu gabinete no 
Ministério dos Direitos Humanos. É uma 
sala apertada, com espaço para uma me-
sinha, um computador e um armário 
embutido. Sob seu guarda- chuva estão as 
comissões de Anistia e de Mortos e De-
saparecidos Políticos. Miranda foi depu-
tado federal pelo !$ por cinco mandatos. 
No primeiro governo Lula, comandou a 
Secretaria de Direitos Humanos, que até 
2005 tinha status ministerial. No ano 
passado, se candidatou novamente à Câ-
mara dos Deputados por Minas Gerais, 
mas não foi eleito. Ajudou na transição 
de governo e, em janeiro, foi nomeado 
para um cargo de nome comprido: asses-
sor especial de Defesa da Democracia, 
Memória e Verdade. 
Miranda foi colega de escola de Dil-
ma Rousseff em Belo Horizonte e, a 
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pública da Comissão de Anistia, em 
30 de março. Ao seu lado, o advogado 
Humberto Falrene Junior folheava aten-
tamente as 150 páginas do pedido de 
reconsideração de anistia que havia pro-
tocolado dias antes. Por causa da idade 
avançada de Zé Pedro, que lhe confere 
prioridade legal, o pedido foi posto em 
pauta na primeira sessão do ano, junto 
com o do jornalista e ex-bancário Ro-
mário Schettino e outros dois. O caso 
do sindicalista foi o últimoa ser julgado, 
numa cerimônia prevista para durar três 
horas, mas que acabou durando seis.
Poucas pessoas ali o conheciam. O ca-
so mais ilustre a ir a votação naquela 
manhã de quinta-feira foi o do deputa-
do federal Ivan Valente (Psol-!"), que, 
torturado barbaramente no #$%-Codi 
do Rio de Janeiro, em 1977, teve seu 
pedido de anistia negado pela comis-
são durante o governo Bolsonaro. Va-
lente fez um longo discurso. Deputados 
e assessores do Psol enchiam as primei-
ras fileiras do salão.
A única pessoa a cumprimentar Zé 
Pedro, num intervalo da sessão, foi Rosa 
Cimiana dos Santos, representante das 
famílias de anistiados. “Ô, seu Zé!”, dis-
se ela, abraçando o sindicalista. Baixi-
nha, sua cabeça não alcançou o queixo 
de Zé Pedro. “Minha filha me falou: 
‘Mãe, hoje você não vai ver ninguém 
carregando livro do Ustra’”, disse San-
tos, exultante. “Passei por tudo que se 
possa imaginar na época do va-ga-bun- 
do desse Bolsonaro”, ela contou. Zé 
Pedro riu timidamente e assentiu.
Depois de ouvir um longo relatório 
sobre suas agruras, Zé Pedro pôde dis-
cursar no púlpito. Levantou da cadeira 
carregando um livro sobre o educador 
Paulo Freire, publicado pela própria 
Comissão de Anistia anos atrás. “Tenho 
7 filhos, 16 netos e 9 bisnetos”, começou 
dizendo ao auditório, já bastante esvazia-
do àquela altura, quase três da tarde. “Eu 
tô aqui pleiteando a minha anistia, com 
reparação, que não é só pra mim: é pra 
mim, minha família, meus amigos e, 
mais do que isso, é pela questão políti-
ca.” Depois de vinte minutos discursan-
do um tanto nervoso, concluiu, erguendo 
o braço direito: “Eu ainda moro bem na 
periferia de Osasco, e quero dizer pra 
vocês: Ditadura nunca mais! Tortura 
nunca mais! Democracia sempre!”
Os conselheiros aplaudiram e, una-
nimemente, concordaram em conceder 
a ele anistia com uma indenização 
mensal de 2 mil reais – salário médio 
de um caldeireiro, considerando valores 
da época e mudanças inflacionárias – e 
pagamento retroativo de 464 mil reais. 
Como haviam feito nos demais casos, 
ficaram de pé ao final do julgamento e 
se viraram para Zé Pedro. A presidente 
Eneá de Stutz e Almeida tomou o mi-
crofone e disse: “Em nome do Estado 
brasileiro, peço desculpas pela perse-
guição sofrida no período ditatorial, 
bem como por sua revitimização sofri-
da com o despacho do ministro substi-
tuto [Gilson Libório, da Justiça, que 
indeferiu o pedido de anistia em 2018].” 
Zé Pedro abraçou os conselheiros, tro-
cou afagos, e a sessão foi encerrada.
Na véspera, perguntei a Zé Pedro 
como se sentia agora que a indenização 
estava para sair. Antes que ele pudesse 
responder, o advogado, experiente, se 
apressou em cortar o barato. “É... a in-
denização, na verdade, ainda demora”, 
disse, virando-se para Zé Pedro, como 
se fosse ele quem precisasse entender. 
“Ele já passou por essa expectativa e 
levou um balde de água fria. Mas esta-
mos confiantes. Vamos ver.” J
convite dela, entrou para a organização 
clandestina Polop (Organização Revolu-
cionária Marxista – Política Operária). 
Mais tarde, Dilma aderiu ao Colina, 
grupo guerrilheiro fundado por estu-
dantes mineiros, e Miranda entrou para 
o Partido Operário Comunista ("$&), 
derivado da Polop. Como ela, foi preso 
e torturado. Perdeu a audição do ouvido 
esquerdo por causa das agressões que 
sofreu. Depois da redemocratização, 
ajudou na elaboração do projeto de lei 
que criou a Comissão Especial sobre 
Mortos e Desaparecidos Políticos, em 
1995. Foi anistiado em 2009.
Em quase trinta anos de trabalho, 
essa comissão reconheceu 228 mortes 
e desaparecimentos ocorridos por mo-
tivos políticos entre 1964 e 1979 (quan-
do foi promulgada a Lei de Anistia). 
Somados os casos que já eram conhe-
cidos antes do projeto de lei e os que 
depois foram esclarecidos pela Comis-
são da Verdade, chega-se ao número 
de 434 mortos e desaparecidos na dita-
dura. Desse total, 208 nunca tiveram 
seus corpos encontrados. 
É papel da comissão comandar a 
busca por ossadas em cemitérios clan-
destinos – um trabalho penoso, que se 
arrasta desde o fim da ditadura por falta 
de colaboração dos militares e do parco 
orçamento. Nos últimos quatro anos, 
essa busca ficou paralisada, embora se 
tenha conhecimento da existência de 
valas clandestinas no Rio de Janeiro, em 
São Paulo e no Recife. A análise genéti-
ca de ossadas encontradas do bairro de 
Perus, em São Paulo, avançou graças a 
um convênio com uma instituição espe-
cializada nesse trabalho, sediada em 
Haia, na Holanda. Já as ossadas encon-
tradas na região do Araguaia estão mo-
fando há mais de dez anos numa 
sala-cofre do Hospital Universitário da 
'n(, em Brasília, aguardando análise.
Apesar disso, em dezembro do ano 
passado, 4 dos 7 conselheiros que for-
mam a Comissão Especial sobre Mortos 
e Desaparecidos Políticos concluíram 
que haviam feito tudo o que estava ao 
seu alcance e que, por isso, o órgão não 
precisava mais existir. Os quatro conse-
lheiros eram um ex-assessor de Damares 
Alves – Marco Vinicius Pereira de Car-
valho, presidente do colegiado –, o de-
putado federal Filipe Barros (")-"*), um 
ex-assessor do senador Magno Malta 
(")-+!) e um tenente-coronel reformado 
do Exército. Formando maioria, eles vo-
taram pelo fim da comissão, e Bolsona-
ro assinou embaixo, em 2022.
“Ainda há milhares de ossadas. Como 
é que a comissão ‘perdeu seu objeto’?”, 
protesta Nilmário Miranda, citando o 
argumento usado pelos últimos conse-
lheiros. A autoextinção do colegiado 
criou um quiproquó jurídico para o go-
verno Lula. Desde janeiro, a Casa Civil 
estuda de que maneira poderá recriar a 
comissão – o que até o fim de abril ainda 
não tinha acontecido. E, uma vez recria-
da, ela terá ainda que se ver com proble-
mas financeiros: como foi extinta no ano 
passado, a comissão não consta no plano 
orçamentário de 2023. Ou seja: terá zero 
reais para gastar ao longo deste ano.
“Na verdade, nós nunca tivemos ver-
ba que fizesse jus à comissão. Claro que 
tínhamos muito mais espaço em gover-
nos anteriores, mas sempre foi difícil. 
Nada disso deveria ter chegado ao sécu-
lo ,,%”, diz a procuradora federal Eugê-
nia Gonzaga. Ela tornou-se presidente 
dessa comissão em 2014. Foi, porém, 
demitida em agosto de 2019, quando, 
sob sua orientação, o órgão publicou 
uma nota atestando que Fernando San-
ta Cruz – pai do ex-presidente da Or-
dem dos Advogados do Brasil ($-(), 
Felipe Santa Cruz – havia sido morto 
pela ditadura. A nota foi uma resposta a 
Bolsonaro, que, dias antes, irritado com 
críticas de Felipe Santa Cruz ao gover-
no, dissera: “Se o presidente da $-( 
quiser saber como o pai desapareceu 
no período militar, eu conto para ele.” 
A convite de Nilmário Miranda, Eugênia 
Gonzaga vai reassumir a comissão nes-
te ano, assim que o grupo for recriado.
Mesmo em “escombros”, a assessoria 
de Defesa da Democracia, Memória e 
Verdade, comandada por Miranda, tem 
planos ambiciosos. Além das comissões, 
o ex-deputado coordena dois grupos de 
trabalho criados pelo novo governo: um 
para tratar de Memória e Verdade sobre 
a Escravidão e o Tráfico Transatlântico 
– iniciativa inédita, cujos trabalhos ainda 
estão em fase inicial –, outro para dar 
prosseguimento às 29 recomendações 
feitas no relatório final da Comissão da 
Verdade, publicado em 2014.
Num discurso recente, durante um 
evento da $.' em Genebra, o ministro 
Silvio Almeida prometeu dar andamen-
to às recomendações. Algumas delas, 
como a proibição de eventos oficiais que 
comemorem o golpe de 1964, são exe-
quíveis e já estão sendo postas em práti-
ca. Outras, como a desmilitarização das 
"/s, fogem à alçada do ministério. Mes-
mo o reconhecimento dos crimes da 
ditadura por parte das Forças Armadas 
– primeira recomendação da lista – não 
é tarefa simples. Quatro décadas se pas-
saram sem que as instituições civis con-
seguissem espremer uma confissão de 
culpa dos militares, e a relação frágil 
entre Lula e as Forças Armadas não faz 
crer que isso acontecerá tão cedo. 
Ao ser indagado sobre isso, Miran-da sorri, com uma expressão resignada. 
“O 8 de janeiro foi uma coisa terrível para 
o Brasil, mas teve também um lado po-
sitivo. A atitude do presidente Lula e do 
Flávio Dino foi rápida e reforçou a auto-
ridade do governo”, diz, dando a enten-
der que as Forças Armadas estão sendo 
colocadas no seu devido lugar. “Não é 
fácil, mas está tudo em movimento. 
Acho que só na prática vamos ver.”
S entado em uma das últimas fileiras do auditório, vestindo calça jeans e camisa social branca, o ex-meta-
lúrgico e sindicalista Zé Pedro assistiu 
de braços cruzados à primeira sessão 
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UM MENINO VEIO DO CÉU
O 
fotógrafo boliviano River Clau-
re é neto de camponeses aima-
rás que migraram para centros 
de mineração e depois se esta-
beleceram na cidade de Co-
chabamba, onde ele nasceu há 25 anos. 
Em suas fotos, Claure reinventa as-
pectos tradicionais de seu povo – que 
habita os Andes argentinos, chilenos, 
peruanos e, sobretudo, bolivianos –, 
combinando-os com elementos atuais, 
como tecidos sintéticos ou objetos de 
plástico. A presença desses novos ele-
mentos está longe de implicar uma 
crise de identidade para os aimarás: é 
muito mais um modo de eles afirma-
rem seu lugar e sua cultura mestiça nos 
tempos atuais. Embora ameaçado há 
séculos, esse po vo soube atravessar es-
paços entre o campo e a cidade, e assim 
sobreviver, se renovar e participar do 
mundo contemporâneo globalizado.
Em 2020, Claure publicou seu pri-
meiro livro de fotos, Warawar Wawa 
(Filho das Estrelas), que o confirmou 
como um dos artistas mais relevantes 
da Bolívia. Na obra – da qual foram ex-
traídas as fotos que a piauí publica nesta 
edição –, ele cruza a cultura aimará 
com a história de O Pequeno Príncipe, 
numa ousada reescrita do clássico de 
Antoine de Saint-Exupéry (1900-44). 
Buscando recompor e recodificar a 
imagem desse povo dos Andes, Claure 
especula muito livremente a partir de 
personagens, planetas, desertos e situa-
ções imaginadas por Saint-Exupéry, 
localizando-os agora na imensidão do 
altiplano boliviano. 
Em seu trabalho para entender como 
os aimarás nomeiam as coisas, Claure se 
deparou com um fato paradoxal e boni-
to: eles não têm a palavra “rei”. Portanto, 
não é possível encontrar em sua língua 
um termo equivalente para “príncipe”. 
Foi assim que nasceu o nome do proje-
to, Warawar Wawa – em vez de um prín-
cipe, um menino que veio do céu, 
ungido com algum tipo de nobreza. 
Nesse choque de contrários, com uma 
criança aimará transformada em “pe-
queno príncipe”, o fotógrafo gera espa-
ços de ficção e jogo que iluminam todo 
um contexto social e oferecem novas 
perspectivas de compreensão das dife-
rentes realidades que atravessam nossas 
culturas. As fotos cristalizam a crítica 
aos essencialismos culturais feita por 
Claure, que prefere abraçar a ideia de 
“miscigenação ch’ixi” (cinza, em aima-
rá). Esse conceito cunhado pela socióloga 
e ativista boliviana Silvia Rivera Cusi-
canqui propõe a possibilidade de as cultu-
ras habitarem variados mundos ao mesmo 
tempo, libertando-se da tentação de 
negar o contemporâneo. 
Claure dedicou mais de três anos a 
pensar e delinear a nova contextualiza-
ção e a ressignificação de O Pequeno 
Príncipe nos Andes bolivianos, afastan-
do o personagem dos clichês e do des-
dém colonialista. “O que meu livro traz 
são questões como ‘quem sou eu’ e ‘com 
o que me identifico’. O dilema e o pro-
blema de pensar sobre a nossa identida-
de é que devemos enfrentar o outro. 
Não enfrentarmos de forma violenta, 
mas nos atrevermos a olhar e sermos 
olhados”, diz o fotógrafo. 
No livro, o Pequeno Príncipe, natural 
do asteroide !-612, viaja por espaços 
áridos e infindáveis planícies, em meio a 
cristais de sal e minérios acobreados, ti-
jolos e telhas, lagos violáceos e enormes 
monólitos entalhados por gigantes, cons-
truindo uma história cujo código está no 
amor, na solidão e na passagem do tem-
po. Aos poucos, as relações entre o per-
sonagem de Saint-Exupéry e o de Claure 
se aprofundam e começam a construir 
metáforas mais complexas, incorporan-
do, por exemplo, personagens da cultura 
andina urbana boliviana, como o Apara-
pita, um camponês indígena que vai 
para a cidade e não encontra outro desti-
no senão o de ser carregador nos merca-
dos populares. “O Aparapita é um homem 
livre, tanto quanto um homem como ele 
pode ser”, observou o escritor boliviano 
Jaime Sáenz (1921-86). O trabalho do fo-
tógrafo também acena a obras fundamen-
tais da história boliviana, como A Virgem 
do Cerro, uma pintura do século "#$$$, 
de autoria anônima, representando a 
padroeira dos mineiros. 
Antes de apertar o disparador da câ-
mera, Claure desenha a lápis tudo que 
almeja obter em cada fotografia. Nesses 
esboços podemos ver algumas das ideias 
que serão fixadas posteriormente nas 
fotos, que vão se cristalizar na encena-
ção. Em suas criações visuais, o fotógra-
fo procura colocar de lado as imagens 
folclóricas de seu país, ampliando e exa-
gerando dimensões e permitindo-se as-
sim subverter a hierarquia das visões 
oficiais e hegemônicas. 
O trabalho de Claure se empenha 
em formular uma proposta estética que 
acompanhe e molde um novo espírito 
andino e exponha as maneiras que exis-
tem na Bolívia de habitar e atravessar o 
atual espaço aimará, bem como as di-
versas contradições que o constroem, 
constituem e renovam. Suas imagens 
são um mergulho no tecido de comple-
xas relações sociais, culturais e familia-
res acumuladas no país. São também 
uma tela aberta para a infância, a fim 
de que possamos sonhar e criar nossa 
própria materialidade cultural, descolo-
nizando assim a imaginação. J
Fotógrafo boliviano reinventa O Pequeno Príncipe nos Andes, com indígenas aimarás
DIEGO MONDACA
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Mulher representando Ekeko, divindade andina da abundância e da prosperidade, na região do Lago Titicaca, na Bolívia
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Duas figuras sagradas reunidas em uma imagem: a Virgem do Cerro, padroeira dos mineiros bolivianos, e Pachamama (Mãe Terra), entidade dos povos andinos, em Kallutaca, na capital La Paz
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Um velho caminhão em Kallutaca, coberto de gangochos (sacos usados para transportar mercadorias) feitos de material sintético
A chegada do Pequeno Príncipe, vestindo uma camisa do Barcelona, no Vale da Lua, em La Paz
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O Pequeno Príncipe dorme sobre gangochos no Vale das Almas, em La Paz
Ruínas pré-colombianas em Puma Punku, parte do sítio arqueológico de Tiahuanaco
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“Por favor, desenha-me um carneiro”, pediu o Pequeno Príncipe ao aviador
O pequeno planeta no meio do deserto, em San Cristóbal
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Jardim de roseiras, representadas por mulheres indígenas aimarás, na cidade de El Alto
No Salar de Uyuni, deserto de sal na Bolívia, o Pequeno Príncipe parte para seu asteroide
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Depois de se despedir do filho, Ribei-
ro voltou apressada para casa porque 
ainda precisava fazer muita coisa naque-
le sábado. Inspecionou a cozinha e me-
morizou os mantimentos que faltavam. 
Correu até o mercado do bairro para 
comprar molho de tomate, macarrão do 
tipo fusilli, meio quilo de carne moída, 
pão de forma e frios variados. Gastou 
180 reais. Num fogão de quatro bocas, 
preparou a massa à bolonhesa com es-
mero. Ajeitou-a num tupperware, que 
colocou na geladeira. Em outro reci-
piente, botou fatias de pão, muçarela e 
presunto. Só concluiu as tarefas culiná-
rias às dez da noite. Pôde, então, cuidar 
de si mesma. Pintou as unhas longuíssi-
mas de lilás e passouuma máscara hi-
dratante nos cabelos alisados. Bonita e 
curvilínea, a moça tem catorze tatua-
gens e diz adotar “o estilo funkeira”. 
Quase às duas da madrugada, antes de 
finalmente se deitar, separou a calcinha 
e o sutiã que usaria pela manhã: um 
conjunto branco e vermelho, de renda. 
Como todos os domingos, o celular 
da cabeleireira despertou às 5 horas. Ela 
pulou da cama, tomou um banho rápi-
do, se vestiu e borrifou no pescoço seu 
perfume favorito – o Luna, da Natura. 
Em seguida, retirou os recipientes da 
geladeira e os acomodou dentro de saco-
las plásticas. Às 5h30, ouviu a buzina de 
um EcoSport. Era o motorista que iria 
levá-la até Franco da Rocha, outro mu-
nicípio da Grande São Paulo. A jovem 
viajaria com três mulheres. Cada uma 
pagou 60 reais pelo transporte.
O carro rodou por setenta minutos e 
parou em frente à Penitenciária Franco 
da Rocha !!. As passageiras desceram. 
Enquanto se espreguiçava, Ribeiro avis-
tou a barraca da Tia Tê, a mais disputa-
da entre as inúmeras que se espalham 
pelos arredores do presídio. No ramo há 
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o último 1º de abril, logo 
após o expediente, a cabelei-
reira e manicure Marta Ca-
rolina de Oliveira Ribeiro 
buscou o filho na escolinha 
de futebol e o deixou com os avós. Ela 
e a criança vivem num sobrado em 
Osasco, na Grande São Paulo. Embora 
tenha somente um quarto, a residência 
é espaçosa e arejada. O revestimento 
marrom da fachada imita tijolinhos 
aparentes. Um portão alto, de lanças, 
protege a garagem, que conduz à sala, 
onde funciona o salão de beleza em que 
a jovem de 25 anos trabalha.
questões carcerárias
Mulheres de presidiários se transformam em estrelas do TikTok e do Instagram!
JOÃO BATISTA JR.
LOOK DO DIA NO XILINDRÓ 
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A influenciadora Marta Carolina de Oliveira Ribeiro: “As pessoas adoram saber qual a lingerie que escolhi usar quando visito meu marido na cadeia e o que botei na marmita dele”
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22 anos, Tercília de Paula toca o negó-
cio com a irmã e quatro funcionários. 
Vende uma infinidade de produtos, 
como marmita que serve até oito pes-
soas (170 reais), sanduíche de salpicão 
(5 reais), chinelos Havaianas (a partir de 
35 reais) e lingeries (as mais baratas cus-
tam 40 reais). 
Assim que alcançou a barraca, a ca-
beleireira desligou o iPhone e o pôs na 
bolsa, junto da aliança e dois colares 
prateados. Entregou tudo à Tia Tê. Fi-
cou apenas com o !" e os dois recipien-
tes. A vendedora estima guardar umas 
cem bolsas por domingo. “São quase 
sempre de mães ou mulheres dos presos. 
Não cobro nada porque a gentileza aca-
ba fazendo com que as visitantes deem 
preferência para o meu comércio.” 
Na fila de acesso à penitenciária, Ri-
beiro ocupava a 47ª posição. As visitas 
dominicais vão das 8 às 16 horas, mas a 
entrada na cadeia só é permitida até as 
11 horas. A moça conseguiu atravessar os 
portões de ferro por volta das 9h30. Desde 
2014, não existe mais a revista vexatória, 
em que as visitantes ficavam nuas e de 
cócoras diante das seguranças. Hoje, nin-
guém precisa tirar a roupa. Basta cruzar 
um scanner, como nos aeroportos. As co-
midas que as visitantes levam para os pri-
sioneiros também passam pelo dispositivo. 
O marido da cabeleireira, Gustavo 
Rodrigues, de 26 anos, conhecido por 
Magrelo, tomava banho de Sol no pátio 
quando o informaram que sua mulher 
havia chegado. Ele caminhou até a jo-
vem, lhe deu um selinho e pegou os 
recipientes. De mãos entrelaçadas, o 
casal seguiu para a cela de Magrelo, no 
térreo. O detento compartilha o espaço 
de 8 m2 com onze homens. Naquele 
dia, porém, somente Magrelo recebeu 
visita íntima. A cabeleireira e o marido 
conversaram, almoçaram e namoraram 
numa das seis camas de concreto. Mes-
mo sozinhos na cela, tiveram o cuidado 
de resguardar a própria intimidade. Es-
tenderam dois lençóis na frente da 
cama que ocupavam e os transforma-
ram em paredes. Ribeiro saiu da cadeia 
às 16 horas. Pegou a bolsa na barraca da 
Tia Tê e regressou para Osasco com o 
motorista contratado. 
O périplo da moça lembra o de ou-
tras tantas companheiras de presidiá-
rios. Mas há uma diferença significativa: 
depois da prisão de Magrelo por tráfico 
de drogas, em maio de 2021, a cabe-
leireira se tornou influenciadora digi-
tal. Ela acumula 300 mil seguidores no 
TikTok e 56 mil no Instagram. Seu 
atrativo é justamente mostrar em deta-
lhes o cotidiano de quem está casada 
com um detento. Todas as imagens pu-
blicadas pela jovem trazem a hashtag 
#mulherdepreso, acompanhada do 
emoji de cadeado. 
O s posts de Ribeiro fazem parte de uma onda que surgiu há dois anos. O TikTok manifestou o fe-
nômeno primeiro, por se tratar de uma 
rede social que valoriza registros esteti-
camente simples, na linha “vida real”. 
Não à toa, os vídeos das mulheres de 
presos – que, em geral, empregam uma 
linguagem mais caseira – somam 2,6 bi-
lhões de visualizações na plata-
forma chinesa. Os algoritmos 
do Instagram, em contraparti-
da, preferem destacar imagens 
bem produzidas, que edulco-
ram a rotina dos internautas. 
Mesmo assim, a mídia controlada por 
Mark Zuckerberg também caiu nas gra-
ças das companheiras de presidiários, 
que não se interessam nem pelo Face-
book, nem pelo Twitter.
As principais influenciadoras do gê-
nero têm entre 20 e 30 anos. Muito vai-
dosas, usam roupas justas, gostam de 
dançar em frente à câmera e costumam 
divulgar zilhões de selfies. Não raro, 
exibem pernas e barriga nas fotos. São 
nativas digitais e operam com desen-
voltura os recursos de edição que as 
redes sociais proporcionam. Falam a 
respeito de diversos temas, mas alcan-
çam mais engajamento quando ex-
põem os dilemas vividos na relação 
com um encarcerado ou quando retra-
tam os preparativos para o dia de visita 
às penitenciárias. “As pessoas adoram 
saber qual lingerie vou vestir e o que 
colocarei nas marmitas do Magrelo. 
Também curtem me ver escolhendo os 
itens do jumbo”, diz a cabeleireira. 
“Jumbo” é a caixa que os prisioneiros 
recebem periodicamente dos familia-
res com artigos de higiene pessoal, co-
mida e produtos de limpeza.
Às vezes, as influenciadoras tiram 
dúvidas dos seguidores. Respondem a 
questões sobre os perrengues que en-
frentam para se encontrar com os par-
ceiros, a rotina dentro das cadeias e os 
códigos dos presídios. Se alguém lhes 
pergunta quais os crimes praticados por 
seus companheiros, elas normalmente 
mudam de assunto. 
Em 1º de abril, Ribeiro gravou todo o 
preparo da massa à bolonhesa que levou 
para o marido no dia seguinte. Enquan-
to cozinhava, cantava o funk Vários 
Abandona, dos #$s Leozinho %& e Ne-
guinho do Kaxeta: E aí, veinho, sabadão 
tô chegando com o jumbo/Vou te visitar, 
saber como você tá, como você tá/Não tá 
sozinho, sexta-feira na madruga eu tô 
partindo/Pode, pá, nós vai se trombar, se 
trombar. Ela postou o vídeo com o título 
Almoço no Presídio quando viajava para 
Franco da Rocha. Conquistou 7 mi-
lhões de visualizações, 400 mil curtidas 
e 4,6 mil comentários no TikTok.
Em outra ocasião, a cabeleireira e duas 
mulheres não conseguiram entrar na pe-
nitenciária por razões burocráticas. Ribei-
ro, desolada, narrou o ocorrido num 
vídeo e, mais uma vez, teve um retorno 
excelente: 4,4 milhões de visualizações e 
212 mil curtidas, também no TikTok. 
A lingerie de renda que a jovem esco-
lheu no dia 1º de abril trazia o logotipo 
da Cau Modas $'(. A pequena confec-
ção de São Paulo, especializada em roupas 
e acessórios para presos e seus familiares, 
patrocina a cabeleireira. Paga-lhe um va-
lor mensal, e a influenciadora faz posta-
gens divulgando os produtos da marca. 
No mundo digital, a estratégia recebe o 
nome de “publi”. Desde a pri-
são do marido, Ribeiro nunca 
repetiu uma calcinha ou sutiã 
nas visitas íntimas. Ele aprecia 
modelos rendados nas cores pre-
ta, branca e vermelha. Há pou-
co tempo, a moça pediu a outra confecção 
que lhe fabricasseuma calcinha de algo-
dão com o apelido Magrelo bordado na 
parte frontal.
A cabeleireira também realiza publis 
para o ))!bet, um cassino online, e o 
Espaço Sanches, empresa de Osasco 
que oferece bronzeamento artificial. 
A fim de promovê-la, a jovem já postou 
um vídeo em que dançava vestindo um 
biquíni de fita isolante. Ela se vale, ain-
da, das chamadas “parcerias”. Uma 
consultora da Mary Kay, por exemplo, 
lhe ofertou algumas caixas de maquia-
gem. Para retribuir, a influenciadora 
difundiu os perfis digitais da “parceira”.
Até Magrelo acaba ganhando uns brin-
des graças à projeção de sua esposa. Mar-
cas interessadas em aparecer nos posts de 
Ribeiro presenteiam o detento com cal-
ças, meias, camisetas e bermudas.
A cabeleireira fatura aproximada-
mente 2 mil reais por mês no salão de 
beleza. Em razão das publis, elevou sua 
renda mensal para algo entre 5 mil e 
10 mil reais. Ela não imaginava chegar 
tão longe quando iniciou as postagens 
sobre o universo carcerário. “Foi um ne-
gócio gradativo. Primeiro, atraí seguido-
res. Depois, as curtidas e os comentários 
aumentaram. A partir daí, as marcas 
começaram a me procurar.” Embora dê 
muita visibilidade, o TikTok não traz di-
nheiro. “A gente gosta de bombar por lá. 
Mas, para conseguir publis, precisamos 
ter um bom desempenho no Instagram, 
a rede social preferida dos patrocinado-
res”, explica Ribeiro. 
Atualmente, a moça é quase uma 
celebridade nas imediações da Peniten-
ciária Franco da Rocha **. Várias “cunha-
das” (como as mulheres de presos se 
tratam entre si) a reconhecem. “Elas 
amam tirar foto comigo. Eu acho o má-
ximo! Fico muito feliz.”
M ichelle Santos Lemos, a Mischa, pretende deixar de lecionar in-glês o quanto antes para se con-
centrar na carreira de influenciadora. 
Seu marido, Edson Sant’Anna Neto, 
esteve preso entre maio de 2020 e mar-
ço de 2023. Condenado por tráfico de 
drogas, cumpriu a maior parte da pena 
em Itapetininga, no interior paulista. 
Ele tem 30 anos e é conhecido como 
Slim, pois se parece com o rapper norte- 
americano Eminem, também chamado 
de Slim Shady. Quando seu parceiro foi 
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para a cadeia, Mischa mantinha um ca-
nal no YouTube em que opinava sobre 
uma série de assuntos fortuitos, como 
o uso de maconha durante a gravidez. 
Paralelamente, fazia dancinhas engra-
çadas no TikTok, que lhe rendiam cer-
ca de 20 mil seguidores. Se uma de suas 
postagens batesse quinhentas visualiza-
ções, a professora particular de 33 anos 
já comemorava.
Logo após a detenção de Slim, Mis-
cha – que mora em São Paulo – se viu 
sozinha com a filha pequena, fruto de 
outro relacionamento. Na época, as vi-
sitas aos presídios estavam suspensas 
devido à pandemia do coronavírus. De-
primida, a professora decidiu abrir o 
jogo no canal do YouTube e revelou to-
dos os perrengues que enfrentava. O de-
sabafo gerou uma cizânia familiar. A mãe 
de Slim telefonou para a nora e exigiu 
que o vídeo saísse do ar. Caso Mischa não 
o deletasse, a sogra cortaria os 150 reais 
que enviava mensalmente ao filho. “Mui-
ta gente ainda se envergonha de ter pa-
rentes presos. É um tabu, mas não para 
mim. Por isso, gravei o depoimento”, 
afirma a professora.
A exigência da sogra surtiu efeito e, 
mesmo a contragosto, Mischa apagou o 
testemunho. Entretanto, em maio de 
2021, uma seguidora perguntou no Tik-
Tok se Slim continuava na cadeia. Ela 
assistira à gravação no YouTube antes 
de a professora a deletar. Mischa res-
pondeu com franqueza e a postagem 
totalizou 125 mil visualizações.
Um ano depois, a professora retomou 
o assunto. Estava ganhando melhor com 
as aulas de inglês e poderia ajudar o ma-
rido financeiramente se a sogra cortasse 
a mesada. “Publiquei um vídeo no Tik-
Tok contando uma porção de coisas: 
quanto eu gastava de ônibus para ver o 
Slim, quais roupas vestia nessas ocasiões 
e o que punha no jumbo dele.” A posta-
gem, intitulada Dia de Visita no Xilin-
dró, teve 6,1 milhões de visualizações, 
450 mil curtidas e 2 755 comentários.
Hoje, Mischa contabiliza 1 milhão 
de seguidores no TikTok, 110 mil no 
Instagram e 62 mil no YouTube. Ela 
chegou a faturar 30 mil reais com publis 
em março. Entre seus patrocinadores, 
destacam-se a !!"bet, a Papelito (fabri-
cante de seda e acessórios para cigarros) 
e a Prime Video, que a contratou como 
garota-propaganda da série Dom, sobre 
o líder de uma quadrilha que roubava 
edifícios de luxo no Rio de Janeiro.# 
Em junho de 2022, Slim pôde usu-
fruir de uma “saidinha” – isto é, adqui-
riu o direito de deixar a prisão por seis 
dias. Mischa aproveitou a oportunidade 
e publicou um vídeo no TikTok com a 
legenda “Levando meu amor de volta 
para a cadeia”. Abocanhou 27,6 mi-
lhões de visualizações e 1,9 milhão de 
curtidas. Foi seu recorde. Outro vídeo, 
produzido durante a mesma “saidinha”, 
mostrava Slim em casa, recarregando a 
tornozeleira eletrônica numa tomada. 
Uma seguidora indagou: “E se a bateria 
acabar, o que acontece?” A professora 
respondeu: “Não pode acabar de jeito 
nenhum! Senão dá !.$.” 
Desde que ganhou a liberdade defi-
nitiva, Slim virou personagem recor-
rente nos posts da mulher. “Estou 
fazendo o pós-prisão, né? Vou surfar 
nesse hype porque não sou otária”, diz 
Mischa. Já Slim não planeja criar perfis 
nas redes sociais. “Prefiro aparecer nos 
dela.” Loiro de olhos azuis, o jovem faz 
o estilo hétero descontruído e gosta de 
pintar as unhas. Há dez anos, cantava 
rap num trio, o Sujeito a Guincho. Ago-
ra, pretende retomar a carreira musical, 
lançando-se em dupla com a professo-
ra. Nome provisório do duo: 2Old4Di-
Caprio (“muito velho para DiCaprio”). 
Trata-se de uma piada com o fato de o 
ator hollywoodiano não namorar mu-
lheres que tenham mais de 24 anos.
E nquanto ia buscar o marido para a “saidinha” de junho passado, Mis-cha divulgou um vídeo no Tik-
Tok: “São 5h46, já tô aqui pronta. Tô 
em Indaiatuba [cidade do interior de 
São Paulo]. Eu vim na casa de uma 
cunhada para irmos juntas pegar os bo-
fes. A outra já tá aqui se maquiando. 
Está doze graus.” Ela e as duas “cunha-
das” queriam festejar com cerveja a li-
berdade temporária dos parceiros. Por 
isso, mal chegou ao presídio, Mischa 
fez uma gravação em que Slim segura-
va uma lata da bebida. 
A direção da penitenciária tomou co-
nhecimento da postagem e não aprovou 
o que viu. Durante as “saidinhas”, os 
presos devem respeitar certas regras: não 
podem se envolver em brigas, frequentar 
bares ou casas noturnas, andar armados 
nem consumir álcool. Slim cometeu, 
portanto, uma falta considerada grave – 
e pagou bem caro pelo deslize, confor-
me prevê a legislação brasileira. Quando 
retornou à cadeia, amargou trinta dias 
numa solitária, sem direito a banho de 
Sol. Também deixou o regime semiaber-
to e voltou para o fechado. Não bastas-
se, Mischa ficou impedida de visitá-lo 
por um ano. O advogado Marcelo Avila 
Quartieri entrou com recurso para anu-
lar a punição. Argumentou que Slim 
não bebera a cerveja. Ele teria apenas 
segurado a latinha. A justificativa não 
surtiu efeito.
“Foi horrível! Quase destruíram o 
nosso casamento”, recorda Mischa. Os 
parceiros intensificaram a troca de car-
tas durante o período em que não se 
encontraram. No alto de cada corres-
pondência, Slim indicava uma canção 
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ENRIQUE BRAVO
Peri
DÉBORA FAUSTINO
Ceci
DAVID MARCONDES
Gonzales
TODAS AS DATAS
DAVID VERA POPYGUA JU
Peri (ator)
ZAHY TENTEHAR GUAJAJARA
Ceci (atriz)
LÍCIO BRUNO
Cacique
GUILHERME MOREIRA
Don Alvaro
ANDREY MIRA
Don Antonio
CARLOS EDUARDO SANTOS
Ruy
ORLANDO MARCOS
Pedro
GUSTAVO LASSEN
Alonso
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para a mulher escutar enquanto lesse 
a mensagem. “Lembro que ele sugeriu 
Miss You, dos Rolling Stones, Rock 
with You, do Michael Jackson, e De 
Novo, da Majur.” 
A professora de inglês aponta a mo-
delo, socialite e influenciadora califor-
niana Kim Kardashian como sua maior 
inspiração. Morena de cabelos longos, 
Mischa ostenta tatuagens 
em boa parte do corpo. Nos 
dentes incisivos, colocou 
dois piercings – um repre-
senta uma arma e o outro, 
um cifrão. Filha de um ex- 
pastor que se tornou ateu, a jovem che-
gou a estudar fotografia, moda e letras, 
mas não se formou em nenhum dos 
cursos. “Eu até ia para a faculdade. Só 
que ficava mais nos bares, fumando 
maconha e bebendo.” 
D e acordo com o Instagram e o Tik-Tok, 85% do público que segue as mulheres de presos é femini-
no. Aproximadamente 80% tem de 18 a 
34 anos. Os perfis dessas influenciado-
ras acabaram se transformando em ca-
nais de informação tanto para outras 
parceiras de presidiários quanto para as 
mães e filhos deles, o que ajuda a expli-
car o grande alcance de determinadas 
postagens. Afinal, o Brasil possui a ter-
ceira maior população carcerária do pla-
neta, com 909 061 detentos. Fica atrás 
somente dos Estados Unidos e da China.
Várias seguidoras procuram os per-
fis para saber quais são as regras de 
visita nas cadeias e como tirar a cartei-
rinha de visitante. Há também as que 
mandam incentivos do tipo: “Lindas 
cunhadas! Deus é com vocês!” ou “For-
ça, meninas! Tudo isso vai passar”. Mis-
cha diz que “uma influenciadora bem 
famosa” já lhe escreveu para confessar 
que seu pai está preso. “Ela não toca 
no assunto publicamente porque teme 
perder patrocinadores.”
O psicanalista Adriano Zago, autor 
do livro Amor Bandido: Mulheres que 
Buscam o Presidiário para Parceiro Amo-
roso, vê como natural o sucesso das 
“cunhadas” nas redes sociais. “O TikTok 
e o Instagram não inventaram a espeta-
cularização da vida bandida. Novelas, 
seriados e filmes se interessavam pelo 
mundo do crime bem antes da internet.” 
Para Zago, as “cunhadas” que se orgu-
lham de suas relações conjugais transmi-
tem a impressão de empoderamento. 
Elas se apresentam como mulheres co-
rajosas e abnegadas, que não abrem mão 
dos próprios desejos. “É uma ideia muito 
fascinante. Até mesmo quem não orbita 
em torno do universo prisional se deixa 
seduzir por tamanha dedicação.”
Segundo o psicanalista, parte das 
“cunhadas” imagina que seus parceiros 
não irão traí-las na prisão. Por isso, se 
sentem mais seguras do que quando 
eles estão livres. Muitas gostam de se 
enxergar como as principais responsá-
veis pelo aconchego dos maridos ou 
namorados, já que lhes garantem rou-
pas, alimentos, produtos de higiene, 
cigarros e sobretudo afeto. “Há, ainda, 
o aspecto comunitário”, acrescenta 
Zago. “As companheiras de presos ten-
dem a ficar amigas e criar laços fortes 
de cumplicidade.” 
Em meio às mensagens de apoio, as 
influenciadoras também recebem uma 
saraivada de xingamentos e ironias. Por 
exemplo: “Criar filha para 
isso não é fácil, não”; “Visi-
tando o namorado na pós- 
graduação...”; “Você curte 
ser marmita de preso?”; 
“Muita humilhação! Depois, 
a ingratidão do cara virá com força”. 
Mischa diz que lê os comentários, mas 
não liga. “Eu a-do-ro os haters! En-
quanto destilam ódio, eles me dão au-
diência. Fazem o meu algoritmo ir lá 
para cima!”
A segurança de condomínio Moli-ne Pereira dos Santos tinha se separado do companheiro havia 
três meses quando, em fevereiro de 
2020, o rapaz assaltou uma residência, 
fez os moradores de reféns e terminou 
na prisão. Por ainda estar apaixonada, a 
jovem de 24 anos – que vive em Guaru-
lhos, na Grande São Paulo – decidiu se 
corresponder com o ex enquanto ele 
permanecesse na cadeia. Os dois acaba-
ram reatando. Como não são oficial-
mente casados, precisaram comprovar 
o relacionamento para a direção da Pe-
nitenciária Franco da Rocha !!!. Eles 
mostraram trocas de mensagens pelo 
Facebook e fotos antigas. Só assim a se-
gurança pôde visitar o parceiro. 
“Gostaria de vê-lo toda semana. Pena 
que o dinheiro não permite...”, lamenta 
Santos. Se lhe falta grana para preparar 
o macarrão que o companheiro adora, 
a moça prefere nem ir ao presídio. Ela 
conta que vestiu uma camiseta especial 
na visita do último dia 19 de março. 
“Botei uma blusa por cima antes de 
entrar na cadeia. Não queria que os car-
cereiros me zoassem. Mas, quando fi-
quei sozinha com meu namorado na 
cela, tirei a blusa e mostrei a camiseta.” 
A peça exibia a frase: “Você vai ser pa-
pai.” O detento vibrou: “Deus ouviu as 
minhas orações!” 
A segurança diz que resolveu postar 
sua rotina como mulher de presidiário 
para se sentir acolhida. “Muita gente da 
minha família rejeita o nosso namoro.” 
Fã de Mischa, a jovem tem planos de se 
dedicar mais às postagens. “Eu já ga-
nhei uns presentes, mas ninguém nun-
ca me pagou para divulgar nada. Quem 
sabe um dia paguem...” Por enquanto, 
ela reúne 30 mil seguidores no TikTok. 
Sua publicação de maior alcance ensi-
na a fazer “macarrão de preso” e soma 
2,4 milhões de visualizações. 
A té o início da pandemia, quem desejasse visitar um encarcerado precisava aparecer bem cedo nas 
penitenciárias paulistas para conseguir 
uma posição favorável na fila de entra-
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NÃO É SÓ O PINGUIM
DE GELADEIRA QUE
VIROU UM CLÁSSICO
Foro de Teresina, o podcast de política da piauí. 
Às sextas, a partir das 11h, em todos os tocadores.
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piauí_maio 57
A Jumbo Online adota a estratégia de 
firmar parcerias com as influenciadoras. 
“Eu envio os kits para o meu marido sem 
pagar nada e, em troca, faço propaganda 
da empresa”, conta a auxiliar de dentista 
Letícia Nascimento, de 28 anos, que 
possui 149 mil seguidores no TikTok e 
37 mil no Instagram. Seu companheiro, 
Matheus Nascimento, está preso por trá-
fico de drogas em Balbinos, no interior. 
Moradora de Carapicuíba, na Grande 
São Paulo, a jovem viaja semanalmente 
de lotação para visitá-lo. Percorre quase 
800 km, considerando a ida e a volta. 
Ela morre de ciúmes do marido, que 
tem um par de tatuagens com o nome 
da mulher (“uma no braço esquerdo e 
a outra na costela, mas se dependesse 
de mim ele faria mais uma na testa”). 
Os dois se casaram por procuração em 
junho de 2021, quando Matheus já 
cumpria pena. “Preparei um almoço 
top para as nossas famílias”, relembra a 
auxiliar de dentista.
A Cau Modas !"#, por sua vez, per-
tence à esposa de um ex-presidiário. 
Shirley Maria Napoli Aires começou a 
confecção em São Paulo durante a pan-
demia. Ela vendia balas nos ônibus que 
trafegavam pelo bairro de Moema. Com 
o isolamento social, ficou praticamente 
sem trabalho e precisou se virar. À épo-
ca, o marido dela – Lucas Gama Mel-
quizedeque – ainda estava detido em$ 
Dracena (%#). A vendedora teve, então, a 
ideia de mandar uma costureira fazer 
roupas e acessórios que pudessem in-
teressar aos presos e seus parentes. De 
início, encomendou lingeries sem nenhu-
ma peça metálica para que asvisitantes 
não fossem barradas pelos detectores de 
metal na entrada dos presídios. Hoje o 
item mais requisitado da marca é uma 
calça feminina de elastano com costuras 
semelhantes a escamas. Aires jura que o 
modelito de 98 reais empina o bumbum 
das “cunhadas”.$ $ 
A dona da confecção se diz muito 
satisfeita por patrocinar a cabeleireira 
Marta Carolina de Oliveira Ribeiro. 
“Ela me traz uma porção de clientes. 
Minha vida melhorou bastante desde 
que criei a empresa. Consegui até sair 
do aluguel porque construí uma casa 
num terreno que meu marido já tinha.” 
Melquizedeque deixou a cadeia em 
abril de 2021 e agora faz chinelos custo-
mizados para presidiários.
A cabeleireira também se declara fe-
liz com o patrocínio. “Divulgar marcas 
é comigo mesma! Ainda bem que a Cau 
Modas confiou em mim.” Ela só não 
gosta de divulgar o número da cela onde 
seu marido se encontra na Penitenciária 
Franco da Rocha &&. “Você está doido? 
Iria chover mulher enviando carta para 
ele.” A moça aceita ter “cunhadas” nu-
ma boa, mas sócias… Jamais! J
da. Muitos, inclusive, passavam a noite 
acampados nas cercanias dos presídios. 
O Primeiro Comando da Capital (#!!), 
facção criminosa que controla quase 
todas as cadeias de São Paulo, organi-
zava o fluxo presencialmente, por or-
dem de chegada. Com as restrições 
sanitárias impostas pela Covid, resol-
veu coordenar as filas via Telegram 
para evitar aglomerações. A Secretaria 
da Administração Penitenciária está 
ciente do esquema, mas não se pronun-
cia sobre o assunto.
Cada unidade prisional tem um gru-
po no aplicativo, criado pelo próprio 
#!!. Os interessados em visitar os pre-
sos entram lá e avisam quando preten-
dem ir. A facção determina a data e o 
período em que as mensagens devem 
ser mandadas. Os que se manifestam 
mais rapidamente obtêm senhas meno-
res – os números variam de 1 a 250. Nos 
dias de visita,$a moderadora (ou guia) 
de cada grupo comparece na porta das 
cadeias e cuida para que a estratégia 
funcione. Sabendo com antecedência o 
lugar que ocuparão na fila, os visitantes 
podem se planejar e não necessitam 
passar horas diante dos presídios.
“Quando chega a data de mandar mi-
nha solicitação para o grupo do Tele-
gram, fico bem esperta”, diz a cabeleireira 
Marta Carolina de Oliveira Ribeiro. “No 
momento em que o relógio indica 6h55, 
já escrevo a mensagem no aplicativo. As-
sim que bate sete da manhã, horário em 
que a moderadora começa a trabalhar, 
aperto o botão de enviar.”$
Boa parte das marcas que investem nas “cunhadas” influenciadoras conhece de perto a realidade car-
cerária. É o caso da Jumbo Online, es-
pécie de Rappi das cadeias. Fundada há 
seis anos, a empresa despacha para todo 
o estado de São Paulo os kits com ali-
mentos, produtos de limpeza e artigos de 
higiene que os presos recebem dos fami-
liares. Os clientes fazem os pedidos por 
WhatsApp ou numa loja física localiza-
da na Zona Norte paulistana. “Atende-
mos 181 prisões e realizamos, em média, 
trinta entregas diárias”, afirma Ana Pau-
la Alegria, dona da empresa.
Os kits padrões da Jumbo Online cus-
tam entre 199 e 258 reais. Mas existe 
a possibilidade de o cliente montar 
um pacote personalizado. Já houve, por 
exemplo, quem requeresse um jumbo de 
949 reais. Cada presidiário pode receber 
um kit de até doze quilos por semana. 
“Conheço mulheres que tiram da pró-
pria boca para não deixar faltar nada aos 
companheiros”, diz Alegria. Apenas 3% 
das encomendas se destinam a presas, 
em mais uma prova de que maridos, na-
morados e parentes de detentas costu-
mam esquecê-las nas cadeias. 
exposição 
COM PROJETOS 
SELECIONADOS
Ministério da Cultura, AkzoNobel 
e Instituto Tomie Ohtake convidam para
de 09/05 a 02/07
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Como o transporte público gratuito passou de utopia a realidade e ajudou a salvaguardar a democracia no Brasil
ROBERTO ANDRÉS
questões republicanas
A VEZ DA TARIFA ZERO
F
evereiro de 2021. Sede da pre-
feitura de Caeté, cidade de 
45 mil habitantes em Minas 
Gerais. O prefeito Lucas Coe-
lho, do Avante, senta-se à fren-
te do proprietário da empresa que opera 
o transporte público na cidade. A situa-
ção é crítica. A pandemia de Covid-19 
fez cair pela metade o número de via-
gens nos ônibus. Com isso, a arrecada-
ção da tarifa deixou de sustentar o serviço. 
A empresa havia reduzido a oferta, e 
estava com frota ociosa. Aquela conver-
sa já ocorrera no ano anterior, e Coelho 
convencera o empresário a manter o 
serviço sem aumentar a tarifa, que esta-
va em 4 reais –!um valor um tanto alto 
para os padrões econômicos locais.
Naquela tarde de verão, não teve jeito. 
O empresário afirmou que iria encerrar 
o contrato de concessão e abandonar o 
serviço. A prefeitura tinha uma bomba 
no colo. Não se vislumbrava outra em-
presa para assumir o contrato naquelas 
condições. Ficar marcada como a gestão 
em que o transporte público faliu na ci-
dade não parecia promissor. Lucas Coe-
lho terminou o encontro preocupado.
Ao seu lado estava Fúlvio Brandão, 
vereador do Avante que era líder do go-
verno na Câmara. Assim que o empre-
sário saiu da sala, o parlamentar disse 
que tinham ali uma oportunidade. Ou-
viu uma exclamação de surpresa, e co-
meçou a explicar. O financiamento 
pela tarifa estava exaurido, mas a prefei-
tura poderia arcar com os custos do sis-
tema e oferecer ônibus com tarifa zero. 
Contratariam a empresa por quilôme-
tro rodado, o que caberia no orçamento 
do município. Ainda mais porque a pre-
feitura deixaria de gastar com o vale 
transporte dos seus funcionários. 
Coelho pediu ao vereador que deta-
lhasse a proposta. Ele então buscou em 
seu celular alguns contatos antigos, 
pessoas com as quais não falava havia 
algum tempo. Em meados de 2014, o 
movimento Tarifa Zero !" criara uma 
frente metropolitana, para abordar a 
situação do transporte coletivo nas 
mais de trinta cidades do entorno da 
capital mineira. O movimento surgira 
durante as Revoltas de Junho de 2013, 
na ocupação da Câmara Municipal de 
Belo Horizonte. Um dos integrantes da 
frente metropolitana era Brandão, à 
época um estudante universitário que 
havia organizado protestos pelo trans-
porte em Caeté. 
Depois de um tempo, a frente metro-
politana se desmobilizou, mas alguns 
de seus integrantes seguiram conecta-
dos ao debate do transporte público. Em 
2015, aconteceu em Belo Horizonte 
uma palestra de Lúcio Gregori, ex-se-
cretário de Transportes da cidade de São 
Paulo que havia proposto a Tarifa Zero 
à prefeita Luiza Erundina no início dos 
anos 1990. Brandão compareceu. Fez 
anotações em seu caderno e ao final ti-
rou uma fotografia com Gregori. Passa-
riam cinco anos até que o rapaz voltasse 
a se envolver com o tema. Durante esse 
período, ele foi secretário de Esporte, 
Juventude, Turismo, Cultura e Patrimô-
nio da prefeitura de Caeté, elegeu-se 
vereador e tornou-se líder de governo. 
Depois da tensa reunião com o em-
presário de transporte, Brandão passou 
a contactar seus conhecidos do Tarifa 
Zero !". Junto com André Veloso, um 
economista integrante do movimento, 
elaborou uma nova proposta de conces-
são para o transporte público da cidade. 
O prefeito gostou da proposta, e enviou 
um projeto de lei à Câmara de Vereado-
res, aprovado com unanimidade. Assim 
foi feito um piloto de seis meses. Deu 
certo. A população estava satisfeita, e o 
gasto coube no bolso do município. Em 
seguida a prefeitura assinou um contra-
to de cinco anos com a empresa. 
Os resultados da política têm sido ex-
pressivos. Segundo o vereador, em 2019 os 
ônibus de Caeté atendiam cerca de 40 mil 
viagens por mês. Durante a pandemia, 
esse número caiu para cerca de 18 mil. 
Com a Tarifa Zero, no final de 2022 o 
sistema já atendia mais de 80 mil viagens 
por mês. As pessoas passaram a se des-
locar para fazer uma série de coisas que 
antes não faziam. Em média, 1 300 via-
gens eram represadas diariamente devido 
ao custo da tarifa. Ao contrário das pre-
visões feitas por opositores da proposta,não houve nenhum indício de aumento 
de depredação nos ônibus. 
Embora não tenham sido feitas pes-
quisas de opinião, a população parece 
avaliar bem a política. O problema que 
costuma ser apontado são os ônibus mais 
cheios, já que a oferta de veículos não 
cresceu na mesma proporção da deman-
da por viagens. Brandão enumera histó-
rias que ouviu de pessoas que tiveram a 
vida transformada pela mudança – um 
paciente de hemodiálise retomou o trata-
mento que havia interrompido por não 
ter dinheiro para a passagem; uma vende-
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Direito à mobilidade: a priorização do transporte público pode fortalecer a coesão social, ao contrário dos veículos particulares, que levam ao isolamento e à atomização
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dora de marmitex pôde contratar um fun-
cionário com a economia que fez; alunos 
de um curso técnico que estava com alta 
evasão voltaram a frequentar as aulas. 
O slogan usado pela prefeitura na 
propaganda da Tarifa Zero é “a maior 
política pública da história” de Caeté. 
O que os criadores da peça publicitária 
talvez não saibam é que a cidade parti-
cipa da maior onda de gratuidade do 
transporte da história do Brasil. 
Quando Lúcio Gregori apresentou a Luiza Erundina a ideia de implan-tar a Tarifa Zero nos ônibus de São 
Paulo, não havia nenhuma cidade no 
Brasil que praticasse a política. Os regis-
tros indicam que era oferecida em apenas 
sete cidades no mundo – três na França e 
quatro nos Estados Unidos, todas com 
menos de 100 mil habitantes, e uma delas 
oferecia a gratuidade somente durante o 
verão. Foram notáveis a ousadia e o espí-
rito desbravador da prefeita e sua equipe, 
que buscaram implementar, na maior 
cidade da América Latina, uma política 
pública pouquíssimo testada e muito des-
conhecida. Mas a proposta não foi apro-
vada pela Câmara de Vereadores, em um 
momento de fortalecimento da oposição. 
Quatro anos depois nasceu, meio que 
por acidente, a primeira experiência de 
gratuidade do transporte no Brasil. Foi 
em Monte Carmelo, uma cidade de pe-
queno porte na Região Oeste de Minas 
Gerais. O município abriga um polo de 
fabricação de telhas e produtos cerâmicos 
que remonta à primeira metade do sé-
culo !! e se consolidou abastecendo a 
construção de Brasília. Em 1970, Monte 
Carmelo tinha cerca de 13 mil moradores 
na área urbana; em 1980, eram quase 
22 mil. O crescimento populacional levou 
a prefeitura a fazer, em 1983, o primeiro 
contrato para o serviço de ônibus urbano, 
que tinha apenas uma linha. A empresa 
concessionária era composta pelo pro-
prietário e um par de funcionários.
Dez anos depois o contrato expirou, e 
o serviço já não atendia as então quase 
30 mil pessoas que residiam na zona ur-
bana, além de 5 mil na área rural. Com 
a expansão territorial, o deslocamento 
passou a ser um problema. Trabalhadores 
tinham dificuldades de chegar às fábricas 
e de retornar às suas casas na hora do 
almoço. Estudantes de cursos noturnos 
estavam abandonando os estudos. Para 
atender à demanda crescente, começa-
ram a pipocar operadores clandestinos de 
transporte, que atuavam de forma irregu-
lar e oscilante. Quando percebiam que o 
lucro não estava a contento, simplesmen-
te abandonavam o serviço. 
A situação estava nesse ponto quando 
Gilson Brandão, um médico da cidade, 
iniciou sua gestão como prefeito. Rapida-
mente, formou-se consenso entre a prefei-
tura e a Câmara de Vereadores de que 
deveria haver um sistema público na cida-
de que não ficasse a reboque das oscila-
ções das empresas. A prefeitura contratou 
onze motoristas e adquiriu cinco ônibus, 
que começaram a circular em 14 de se-
tembro de 1994. Como era um sistema 
novo, optou-se por iniciar a oferta gratui-
tamente – dessa maneira, seria possível 
medir a demanda, comparar com os cus-
tos e estabelecer o valor da tarifa. 
Mas, assim que os ônibus começa-
ram a circular sem tarifa, percebeu-se 
que seria impopular passar a cobrar pelo 
serviço. Além disso, um consultor aler-
tou que a cobrança não poderia ser feita 
diretamente pela prefeitura. Seria ne-
cessário, para gerir os recursos, criar 
uma autarquia, cujos custos de opera-
ção seriam mais altos do que a arrecada-
ção tarifária. Nesse contexto, manter o 
sistema gratuito era a solução mais sim-
ples e lógica, embora não fosse o plano 
inicial. Foi assim que nasceu a primeira 
experiência de Tarifa Zero do Brasil, 
também uma das primeiras do mundo.
Nos anos seguintes, a adoção da polí-
tica no país seguiu lenta, com casos es-
porádicos aqui ou acolá. Em 2012, eram 
catorze cidades, todas elas de pequeno 
porte, segundo levantamento feito pelo 
jornalista Daniel Santini, da Fundação 
Rosa Luxemburgo. Nessa época, quan-
do falava de gratuidade no transporte 
em suas palestras, Lúcio Gregori costu-
mava dar o exemplo da cidade de Has-
selt, na Bélgica, pois não havia nem 
mesmo conhecimento difundido e acu-
mulado sobre as experiências brasileiras. 
Esse cenário começou a mudar de-
pois das revoltas de 2013, que colocaram 
o tema na ordem do dia. Em 2014, a ci-
dade de Maricá, na Região Metropolita-
na do Rio de Janeiro, iniciou a adoção da 
política. Em resposta aos anseios expres-
sos nas ruas, o município implantou a 
gratuidade em novas linhas já no final 
daquele ano. Rapidamente começaram 
os conflitos entre a prefeitura, que tinha 
à frente Washington Quaquá, do "#, e as 
empresas que operavam a concessão do 
transporte público na cidade. 
A mais poderosa delas se chamava 
Viação Nossa Senhora do Amparo, nome 
dado em homenagem à padroeira de 
Maricá. O comando da companhia ti-
nha o perfil típico do empresário de ôni-
bus brasileiro. Seu fundador, Jacintho 
Luiz Caetano, filho de uma família hu-
milde, começou a trabalhar na adoles-
cência, transportando produtos a cavalo. 
Em 1950, fundou a empresa de ônibus, 
que cresceu com a intensa urbanização 
dos anos seguintes. Em 2019 chegava a 
280 ônibus e mais de 1 mil empregados. 
Para se ter ideia do poder político da 
família, o terminal de ônibus e uma es-
cola pública em Maricá levam o nome 
do empresário, falecido em 1986.
Em 2015, as concessionárias de ônibus 
de Maricá acionaram a Justiça, alegando 
que os ônibus gratuitos da prefeitura con-
figuravam concorrência desleal. Iniciou- 
se então uma batalha judicial pesada, 
com idas e vindas. A primeira vitória foi 
da empresa, que conseguiu paralisar os 
“vermelhinhos” – como ficaram conheci-
dos os ônibus gratuitos. Quinze dias de-
pois, a prefeitura derrubou a liminar, e o 
serviço voltou a operar. Em 2016, houve 
nova paralisação por ordem judicial, des-
sa vez por seis meses. 
Só em abril de 2017 a prefeitura con-
seguiu retomar definitivamente o servi-
ço. O prefeito havia feito seu sucessor, 
Fabiano Horta (também do "#), que 
prometeu ampliar a política de gratuida-
de do transporte. Ao término do primei-
ro governo de Horta, em 2020, chegou 
ao fim o contrato de concessão priva-
da do transporte. A prefeitura realizou 
nova licitação e passou a implementar o 
transporte gratuito em toda a cidade. 
A nova licitação tinha o mesmo modelo 
concebido por Gregori e equipe na São 
Paulo de 1990: as empresas são contra-
tadas para operarem linhas e recebem 
pelo serviço prestado, enquanto os re-
cursos públicos sustentam o sistema, e a 
população utiliza o serviço livremente.
Maricá trouxe uma nova escala para 
a Tarifa Zero no Brasil. Com mais de 
150 mil habitantes, mostrou que a po-
lítica poderia funcionar em cidades 
médias. Entre 2013 e 2019, mesmo com 
a crise econômica e o caos político, o 
número de municípios com transporte 
gratuito dobrou no país, enquanto a po-
pulação atendida por essa política au-
mentou em 2,6 vezes. Um crescimento 
considerável, mas ainda pequeno frente 
ao que viria em seguida. 
Com o início da pandemia, os siste-
mas de transporte no Brasil entraram 
em colapso. A queda do número de passa-
geiros foi abrupta, já que muitaspessoas 
deixaram de circular e outras migraram 
para o transporte particular. Só seguiu 
usando os ônibus, trens e barcas quem 
não tinha outra opção. 
Nos países em que o transporte é fi-
nanciado majoritariamente por recursos 
públicos, a oferta foi mantida durante a 
pandemia, o que resultou na redução do 
número de usuários por veículo. Já no 
Brasil e em outros lugares onde o custo é 
bancado sobretudo pela tarifa, o transpor-
te não possui capacidade de se adaptar à 
queda de demanda. Com menos usuá-
rios, a receita despencou e, para compen-
sar, as empresas reduziram a oferta e os 
veículos ficaram mais cheios. As pessoas 
mais pobres tiveram que se aglomerar em 
veículos lotados. Pesquisas mostraram 
correlação entre mortes e internações por 
Covid e maior taxa de utilização do trans-
porte público. Os ônibus e trens torna-
ram-se engrenagens de um matadouro, 
enquanto as classes mais ricas circulavam 
em automóveis ou faziam home office. 
Ainda que tenham adaptado suas 
ofertas, os sistemas de transporte no Bra-
sil entraram em uma situação muito di-
fícil. A queda abrupta de receita não era 
totalmente compensada pelas reduções 
de linhas e horários, mesmo porque as 
empresas ficavam com frota e funcioná-
rios ociosos. A grande Recife reduziu em 
quase 50% sua oferta de transporte pú-
blico. No Rio de Janeiro, 176 linhas dei-
xaram de circular. Teresina entrou em 
uma crise crônica, com interrupção do 
serviço e a população impedida de se 
deslocar. Devido à grande força política 
das empresas de ônibus, em muitas des-
sas cidades o poder público perdera a 
capacidade de controlar as receitas e cus-
tos e de regular a oferta. 
A crise fez o sapo pular. Mais e mais 
cidades passaram a buscar outras for-
mas de financiamento, gestão e oferta 
do transporte. E aí a Tarifa Zero, con-
forme concebida em São Paulo em 
1990 e implantada em duas dúzias de 
cidades desde então, mostrou-se uma 
boa opção, como foi o caso do municí-
pio de Caeté. Somente em 2021, treze 
cidades aderiram à gratuidade do trans-
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porte, fazendo com que essa política 
passasse a atender 1,9 milhão de pessoas. 
A maior delas foi Caucaia, na Região 
Metropolitana de Fortaleza, com mais 
de 350 mil habitantes. 
Além de ser a maior cidade do Brasil 
com Tarifa Zero, Caucaia trouxe uma 
novidade. Até aquele momento, a política 
só era implantada em cidades com menos 
de 100 mil habitantes ou que tivessem 
orçamentos acima da média, como Mari-
cá – cujo caixa da prefeitura é beneficia-
do pelos royalties do petróleo. Caucaia 
não possui fontes especiais de recursos e 
financiou o transporte com o aumento da 
arrecadação gerado por reajustes de im-
postos. A cidade tampouco é gerida pela 
esquerda, mas por um prefeito que foi 
apresentador de programas de tevê de 
cunho policialesco, eleito pelo Pros.
Em 2022, outras doze cidades aderi-
ram à gratuidade do transporte no Brasil. 
A maior delas foi Paranaguá, no estado 
do Paraná, com mais de 150 mil habitan-
tes. Nos primeiros meses de 2023, outras 
dez cidades adotaram a política –! in-
cluindo Palmas, a primeira capital a 
testá-la. Até o fechamento desta edição, 
a Tarifa Zero havia chegado a 69 cida-
des, onde vivem 3,15 milhões de pessoas. 
Em 2012, antes das Revoltas de Junho, 
eram catorze cidades, nas quais vivem 
360 mil pessoas. Apenas quatro cidades 
reviram a gratuidade depois de implan-
tá-la –!a taxa de manutenção da política 
é, até o momento, de 93%. 
C iclos de manifestações que apre-sentam propostas transformado-ras enfrentam uma contradição 
de partida. Os manifestantes levam às 
ruas ideias ousadas, colocadas com 
força na cena pública, mas raramente 
a mudança almejada acontece no cur-
to prazo. É preciso defender a propos-
ta como se fosse possível implementá-la 
amanhã – do contrário, a mobilização 
não terá força –, mas a verdade é que 
as mudanças sociais são lentas. Cria- 
se, então, um descompasso, que costu-
ma gerar a percepção de que 
o saldo da revolta é nulo ou 
até contraproducente. 
Mas, quando os protestos 
não se desdobram em resulta-
dos práticos e conquistas institucionais, 
eles servem para quê? Para mudar a 
mentalidade da sociedade. Dentre os 
autores que utilizam esse mesmo argu-
mento está o antropólogo norte- 
americano David Graeber, que cita 
movimentos que geraram importantes 
transformações nos Estados Unidos, 
como o abolicionista e o feminista, mas 
“levaram um bom tempo” para obter 
resultados. As mudanças que almejavam 
–!o fim da escravidão, o sufrágio univer-
sal – costumavam ser vistas como uto-
pias inalcançáveis, mas, a cada sacudida 
social gerada por ciclos de manifestações 
e seus desdobramentos, essas ideias ga-
nhavam mais espaço na sociedade. 
Nesse sentido, o que grandes ciclos de 
revoltas são capazes de fazer é transfor-
mar ideias vistas como impossíveis em 
ideias aceitáveis. É tirar a utopia do cam-
po do irrealismo. Essa perspectiva ganha 
escala na abordagem do sociólogo Imma-
nuel Wallerstein, para quem as revolu-
ções dos últimos séculos consistiram em 
transformações globais do senso comum 
da política, constituindo movimentos de 
mudança de mentalidade que alteraram 
profundamente, em médio prazo, socie-
dades de diferentes continentes.
Nesse sentido, é possível ver o ciclo de 
revoltas de 2011 a 2013 como um movi-
mento global que fez com que ideias 
consideradas absurdas ou pouco relevan-
tes ganhassem espaço no debate público. 
O Occupy Wall Street, embora não te-
nha tido nenhuma vitória institucional 
imediata, parece ter contribuído para uma 
mudança de mentalidade nos Estados 
Unidos. O número de norte-americanos 
que consideravam graves os problemas 
de concentração de riqueza no país deu 
um salto após os acampamentos de 2011, 
iniciados em Nova York e que depois se 
espalharam por todo o país. Isso desem-
bocou, alguns anos depois, na forte can-
didatura de Bernie Sanders nas primárias 
do Partido Democrata e na emergência 
de novos parlamentares dessa legenda, 
que colocam a desigualdade e a captura 
da política pelos mais ricos no centro 
de suas agendas. 
Quando os ativistas do Movimento 
Passe Livre (!"#) e de outros movimen-
tos incendiaram o Brasil com suas fai-
xas pedindo “$%&'(% )*&+” ou “"+& 
,!% -'.%.* /*! -%$&%-%/”, a gratui-
dade do transporte era uma política 
marginal. Mesmo as pessoas envolvidas 
no assunto conheciam pouco sobre os 
casos existentes. O mais comum era 
considerar a proposta impossível e uma 
agenda de lunáticos. Em 13 de junho de 
2013, na escalada das manifestações 
de rua, a Folha de S.Paulo, em um edi-
torial em que propunha à Polícia Mili-
tar “retomar a Paulista” dos vândalos, 
colocou a coisa nos seguintes termos:
Pior que isso, só o declarado objetivo 
central do grupelho: transporte 
público de graça. O irrealismo 
da bandeira já trai a intenção 
oculta de vandalizar equipa-
mentos públicos e o que se 
toma por símbolos do poder capitalista.
A realidade foi cruel com o editoria-
lista. Após as revoltas de 2013 veio uma 
onda de “transporte público de graça” 
no Brasil. Essa onda começou devagar, 
e foi ganhando força. Foi preciso que as 
ideias se assentassem, se ramificassem 
no tecido social, conquistassem mentes 
e corações, e de repente o milagre acon-
tecesse: “Ideias consideradas verdadei-
ras insanidades rápida e naturalmente 
se tornam o principal tema de debate”, 
escreveu Graeber no livro Um Projeto 
de Democracia: Uma História, uma Cri-
se, um Movimento. 
Nas eleições de 2020, nada menos do 
que metade dos candidatos à prefeitura 
em capitais brasileiras apresentou al-
gum tipo de proposta de redução da 
tarifa de ônibus – em eleições anterio-
res, essa era uma agenda pouco aborda-
da. Mais do que isso, a proposta Tarifa 
Zero ganhou terrenos políticos insus-
peitos. Ensaiada pelo governo Erundi-
na em 1990 e levada ao debate público 
nacional pelo !"# em 2013, a proposta 
nunca havia sido abraçada majoritaria-mente pelo "$. Em 2020, candidatos 
desse partido em capitais como São 
Paulo e Belo Horizonte propuseram a 
política em seus programas de governo.
Em uma estação de embarque de ônibus de Porto Alegre, um ho-mem negro caminha enquanto 
fala para a câmera. Ele denuncia a ex-
tinção da gratuidade do transporte na 
cidade no primeiro turno das eleições 
de 2022, que ocorreria em poucos dias. 
Desde 1995, a capital gaúcha oferecia 
passe livre em doze dias do ano, incluin-
do os de votação. Em 2021, o prefeito 
Sebastião Melo, do !.0, da base do en-
tão presidente Jair Bolsonaro, aprovou 
uma lei que desobrigava o município de 
oferecer a política. Às vésperas do pleito 
de 2022, a prefeitura anunciou que seria 
cobrada a passagem. Se o prefeito ima-
ginasse o que viria em seguida, teria 
mantido a gratuidade. 
O rapaz que denunciava a situação 
estava acostumado a frequentar aquele 
terminal. Matheus Gomes atuava nos 
movimentos pelo transporte na cidade 
desde 2010; diversas vezes esteve na es-
tação, mobilizando pessoas para protes-
tos. Na luta que derrubou o aumento da 
tarifa em 2013, ele foi uma das princi-
pais lideranças. Foi também um dos 
ativistas processados na Justiça, teve sua 
casa invadida por forças de segurança e 
policiais à paisana o ameaçaram. Em 
2020, Gomes se elegeu vereador pelo 
"/+#. E, dois anos depois, esteve no 
front inicial de uma mobilização que 
levou a uma surpreendente onda pelo 
passe livre nas eleições.
As denúncias contra a extinção do 
passe livre em Porto Alegre rapidamen-
te ganharam corpo. O senador Randol-
fe Rodrigues, da Rede, entrou com 
uma ação no Supremo Tribunal Fede-
ral (/$() requerendo que as cidades que 
tivessem políticas de gratuidade no trans-
porte fossem obrigadas a mantê-las. Pa-
recia haver um movimento de prefeitos 
alinhados a Jair Bolsonaro para redução 
do transporte –1o que tenderia a aumen-
tar a abstenção da população mais po-
bre, segmento em que o candidato tinha 
baixa votação. 
O caso ganhou destaque nacional. 
Prefeitos de algumas capitais, como Rio 
de Janeiro e Salvador, anunciaram a 
implementação inédita do passe livre 
nas eleições. O ministro Luís Roberto 
Barroso, do /$(, concedeu uma liminar 
que obrigava os municípios a manterem 
a oferta de transporte e proibia aqueles 
que praticavam a gratuidade de retirar 
a política. Após pressão social e diálo-
gos com o Ministério Público, o prefei-
to de Porto Alegre teve que recuar e 
garantir o transporte gratuito no dia do 
pleito. A adesão chegou a 14 capitais e 
50 outras cidades no primeiro turno. 
Para o segundo turno, foi realizada 
uma campanha pela causa. A partir da 
mobilização inicial de organizações 
como a Quid e o Nossas, formou-se 
uma grande coalizão. E a coesão social 
que permitiu isso remetia a 2013. Ativis-
tas e movimentos sociais que participa-
ram das lutas pelo transporte então 
seguiram em contato nos anos seguintes 
e foram constituindo uma rede, acresci-
da de novos atores que passaram a abor-
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dar o tema. Dois encontros presenciais, 
em Niterói (2019) e em Belo Horizonte 
(2022), fortaleceram os laços dessa rede. 
Isso ajudou na rapidez e na força com 
que a coalizão da campanha do Passe 
Livre pela Democracia foi formada. 
Aderiram também organizações ligadas 
às agendas da democracia, do feminis-
mo e da juventude, além de centrais sin-
dicais. A pauta do passe livre estava na 
ordem do dia. No dia 19 de outubro de 
2022, foi lançada a campanha (da qual 
fui um dos coordenadores) que pedia 
transporte gratuito nas 27 capitais. A reu-
nião de lançamento contou com repre-
sentantes de mais de cinquenta entidades. 
Por intermédio do site da campanha, mi-
lhares de pessoas passaram a enviar 
e-mails para os prefeitos de suas cidades 
exigindo a política.
O que veio em seguida foi uma 
avalanche. Parlamentares e partidos po-
líticos se somaram à mobilização, pres-
sionando os prefeitos. Alguns acionaram 
a Justiça para obrigar as prefeituras a 
oferecer o passe livre no segundo turno. 
A cada dia, mais e mais cidades anuncia-
vam que adotariam a política. Assim que 
o site da campanha era atualizado, vinha 
a notícia de uma nova adesão. Em São 
Paulo, foi feito um ato em frente à prefei-
tura, no dia 24. Na tarde do mesmo dia, 
sentindo que seria obrigado pela Justiça 
a fazê-lo, o prefeito Ricardo Nunes (!"#) 
anunciou o passe livre.
Por fim, todas as$capitais adotaram a 
política, além de mais de trezentas outras 
cidades em oito estados, abarcando mais 
de 100 milhões de habitantes. Criou-se 
uma onda irreversível, a que até aliados 
ferrenhos de Jair Bolsonaro, como os go-
vernadores Rodrigo Garcia (%&"#-&%) e 
Romeu Zema (Novo-!'), tiveram de ade-
rir. Para milhares de pessoas que antes 
teriam que escolher entre almoçar ou 
pagar o transporte, o direito ao voto pôde 
ser exercido de forma igualitária.
O resultado foi significativo. Pela pri-
meira vez na história do país, a absten-
ção caiu entre o primeiro e o segundo 
turno (em outros pleitos, ela foi de 1% a 
3,5% maior). Antes da votação, nenhum 
analista cogitava a possibilidade de que-
da do número de abstenções. Uma com-
paração preliminar, que avaliou a taxa 
de abstenção nas cidades que adotaram 
o passe livre, estimou que a política pode 
ter resultado em pelo menos 250 mil 
votos a mais no segundo turno. 
Tudo isso ocorreu apesar dos esforços 
do governo Bolsonaro de reduzir a vota-
ção da população mais pobre. Ações 
ilegais da Polícia Rodoviária Federal 
tentaram cercear o acesso de pessoas da 
base da sociedade às urnas. Aparelhado 
pelo presidente, o órgão achou por bem 
realizar uma série de blitze no dia do 
pleito –$um procedimento atípico, mar-
cado pela inspeção vagarosa em regiões 
onde Bolsonaro teria baixa votação, se-
gundo pesquisas de opinião.
Ao final, quem venceu a “batalha dos 
ônibus”, como o episódio ficou chamado, 
foi a democracia. Segundo o jornalista 
Guilherme Amado, Bolsonaro chegou a 
dizer que o passe livre nas eleições foi res-
ponsável por sua derrota. À parte o fato 
curioso de um político afirmar que per-
deu a eleição porque a população pôde ir 
votar, o episódio acabou por formar um 
consenso no campo progressista em torno 
da essencialidade do transporte para a 
população mais pobre (que, sim, de fato 
majoritariamente votou em Lula no se-
gundo turno). E, em uma eleição aperta-
da e de suma importância para o país, o 
transporte público gratuito deu sua con-
tribuição para salvaguardar a democracia. 
Tudo isso acabou por selar um reen-
contro simbólico entre atores que já se 
estranharam bastante: Lula e a Tarifa 
Zero; o núcleo duro do %( e os movi-
mentos que lutam pela gratuidade do 
transporte. Em dezembro de 2022, mem-
bros da equipe de transição do governo 
Lula no grupo de trabalho das Cidades 
propuseram ao governo levar adiante 
estudos para implementar a gratuidade 
do transporte no país. Isso ganhou for-
ça após o prefeito de São Paulo anun-
ciar um par de vezes que avalia adotar 
a Tarifa Zero.
O que parecia utopia inalcançável 
passou a habitar o campo do possível. 
O entendimento de que o direito à mobilidade é essencial para a concretização dos direitos funda-
mentais e elemento-chave da vida de-
mocrática é bastante recente.
A ideia de que seria socialmente justo 
e aceitável ter escolas, hospitais, postos 
de saúde, praças e parques acessíveis sem 
ônus para os usuários – ou seja, pagos 
indiretamente por recursos públicos – 
tornou-se hegemônica em muitas socie-
dades, especialmente nas democracias 
ocidentais do pós-Segunda Guerra. O mes-
mo não ocorreu com a ideia de que o 
transporte para acessar essas atividades e 
equipamentos deveria ser também gra-
tuito. Especialmente em sociedades com 
elevada desigualdade, o financiamento 
do transporte somente pela tarifa produz 
a exclusão de segmentos importantes dos 
direitos substantivos, resultando na situ-
ação-limitedaqueles que o geógrafo Mil-
ton Santos definiu como “prisioneiros do 
espaço local”. 
A tarifa cobrada do usuário opera 
como barreira ao uso do transporte pú-
blico, o que não ocorre em serviços de 
educação, saúde, tratamento de lixo, ilu-
minação pública, manutenção de praças 
etc. Assim como o transporte, todos esses 
serviços têm custos, mas que são financia-
dos por recursos públicos ou por taxas – de 
todo modo, pagos de forma indireta, des-
vinculando o uso do financiamento.
O caso do passe livre nas eleições 
brasileiras de 2022 evidencia que a ta-
rifa do transporte não é apenas uma 
barreira para o acesso a direi-
tos substantivos, mas também 
a direitos civis e políticos. Vo-
tar é o mais elementar desses 
direitos. Mas uma democra-
cia plena vai muito além do 
voto. É preciso se mover pelas 
cidades para ter acesso a reuniões, au-
diências, encontros, manifestações e 
todo tipo de atividade política.
Uma síntese interessante do papel do 
transporte na concretização de direi-
tos é feita por Magali Giovannangeli e 
Jean-Louis Sagot-Duvauroux no livro 
Voyageurs Sans Ticket: Liberté, Égalité, 
Gratuité (Viajantes sem bilhete: Liber-
dade, igualdade, gratuidade). O título 
faz uma brincadeira com o lema da Re-
volução Francesa, substituindo a pala-
vra “fraternidade” por “gratuidade”. Os 
autores argumentam que o transporte 
público de acesso universal é essencial 
para a concretização efetiva da liberda-
de (ligada aos direitos civis) e da igual-
dade (ligada aos direitos substantivos).
O livro apresenta a experiência da ci-
dade de Aubagne, no Sul da França, que 
implementou a gratuidade no transporte 
público em 2009 e assistiu a um relevan-
te incremento no uso do serviço desde 
então. Mais do que isso, argumentam os 
autores, “a instauração da gratuidade to-
cou a vida social em toda sua complexi-
dade”, já que, além de “aumentar a 
frequentação dos ônibus e liberar o po-
der de compra dos mais pobres”, levou 
ao aumento da confiança social, aproxi-
mou grupos sociais diferentes e ativou 
dinâmicas de trocas entre eles. 
Eis um ponto geralmente pouco ob-
servado no debate sobre transportes: 
além de prover o acesso a serviços ele-
mentares e concretizar o direito de ir e 
vir, o transporte público é, ele mesmo, 
espaço da vida cotidiana nas cidades. 
Nos centros urbanos, dada a significativa 
quantidade de horas passadas no trânsi-
to, as formas de deslocamento consti-
tuem parte relevante da experiência de 
vida das pessoas. Por isso a priorização 
do transporte público tem potencial de 
fortalecer a coesão social, ao contrário 
dos veículos particulares, que levam ao 
isolamento e à atomização.
Além de ser um espaço público em si, 
o transporte público tem uma relação 
positiva com os demais lugares das cida-
des. Por serem meios de deslocamento 
eficientes no uso de espaço e energia, os 
ônibus, bondes e metrôs minimizam 
os impactos na vida pedestre. Mais do 
que isso, acabam por fortalecer a vida nas 
calçadas, já que pressupõem a comple-
mentação dos trajetos a pé. Automóveis, 
ao contrário, maximizam as externalida-
des negativas na vida pedestre – polui-
ção sonora e do ar, acidentes, ocupação 
de espaço urbano. Além disso, ao faze-
rem trajetos porta a porta (ou garagem a 
garagem), automóveis retiram pessoas 
das ruas, contribuindo para o esvazia-
mento da vida urbana. 
Quando pensamos a democracia 
como forma de vida que se faz no coti-
diano das cidades, nota-se 
que a ênfase nos automóveis 
produz uma rotina de compe-
tição, desagregação social e 
esvaziamento dos espaços pú-
blicos. Já a priorização do 
transporte coletivo tende a 
gerar convivência social e senso de co-
letividade, além de intensificar a vida 
pedestre. Nesse sentido, a Tarifa Zero é 
um elemento de aprimoramento da 
vida democrática e se liga ao conjunto 
de demandas colocado nas ruas em 
2013, que buscava, em sua maioria, a 
melhoria das condições de vida em co-
letividade e a participação efetiva da 
população nas decisões políticas. J
Trecho do livro A Razão dos Centavos – 
Crise Urbana, Vida Democrática e as Re-
voltas de 2013, a ser lançado em junho 
pela Editora Zahar.
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OUÇA JÁ:
Um podcast original da Rádio Novelo
apresentado por Branca Vianna
Toda quinta-feira, histórias que você 
nem sabia que precisava ouvir.
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questões vernaculares
“A
bacaxi: seu feitio é 
como uma linda pi-
râmide, mas redonda 
tecida à maneira de 
pinha, e tem por coroa 
e remate um galante pedaço de folhas, 
em lugar de plumas.” Assim o padre João 
Daniel descreve um abacaxi em 1776 em 
sua obra Tesouro Descoberto no Rio 
Amazonas. Trata-se do primeiro docu-
mento em que o termo “abacaxi” apare-
ce designando uma variedade de fruta. 
De acordo com os dicionários, o vocábu-
lo tem origem tupi e significa “fruta que 
exala cheiro”, a partir da junção dos ter-
mos ybá (“fruta”) e kati (“que recende”). 
Antes de nomear a planta, porém, a 
palavra foi usada para se referir a um 
povo indígena, um rio e uma missão je-
suítica, como descobriu o professor Bru-
no Maroneze, do curso de letras da 
Universidade Federal da Grande Doura-
dos (!"#$), em Mato Grosso do Sul. E é 
pouco provável que o nome de um povo, 
de um rio ou de uma missão jesuítica sig-
nifique “fruta que exala cheiro”, afirma o 
professor em um artigo no qual propõe 
reavaliar a etimologia da palavra.
Maroneze é um etimólogo, dedica-se a 
pesquisar a origem das palavras, sua his-
tória e as mudanças de forma e significa-
do por que passaram ao longo dos anos, 
séculos e até milênios. Nascido em São 
Bernardo do Campo, na Grande São Pau-
lo, ele tem 42 anos e estuda o léxico desde 
os 19, quando começou a investigar neolo-
gismos e a formação de palavras. Já pesqui-
sou a datação de 94 termos ou acepções. 
Descobriu, por exemplo, que é de 1793 o 
registro mais antigo da palavra “pétala” 
encontrado até o momento. Seu artigo 
sobre a etimologia de “abacaxi”, resultado 
de uma pesquisa iniciada em 2017 em do-
cumentos antigos, foi publicado três anos 
depois na revista Filologia e Linguística 
Portuguesa, da !%&. 
O etimólogo descobriu que, mais de 
um século antes do Tesouro Descoberto 
no Rio Amazonas, precisamente em 1663, 
a Chronica da Companhia de Jesu do Es-
tado do Brasil, do padre Simão de Vas-
concellos, já menciona os abacaxis em 
uma lista de povos indígenas. Os abacaxis 
habitavam um território entre os rios Ta-
pajós e Madeira, no estado do Amazonas, 
e teriam sido extintos provavelmente em 
decorrência de epidemias ou guerras. Em 
1691, o primeiro registro conhecido do 
Rio Abacaxis aparece em um mapa, de-
nominando um afluente do Rio Madeira 
que deságua na margem direita do Ama-
zonas. Em um catálogo de 1760 – dezes-
seis anos antes de o padre João Daniel 
falar da fruta exótica –, há notações a res-
peito de uma missão jesuítica com o 
nome Abacaxi, que se instalou às mar-
gens do Rio Abacaxis a fim de catequizar 
não só o povo do mesmo nome como 
também os barés e jumas, entre outros.
Por causa de todo esse passado da pa-
lavra pesquisado por Maroneze, ele pro-
põe a revisão da etimologia consensual de 
“abacaxi” como sendo “fruta que exala 
cheiro”, tal como registrada nos dicioná-
rios desde 1889, já que isso é incompatível 
com a sua primeira atestação – ou seja, a 
primeira vez em que aparece registrada na 
língua portuguesa. Para o pesquisador, 
deve-se buscar no povo indígena, e não na 
fruta, a origem do vocábulo. “Não é exa-
tamente um problema dos dicionários. 
É que, simplesmente, ninguém tinha ana-
lisado ainda os dados históricos, ninguém 
tinha posto em dúvida a etimologia de 
‘abacaxi’”, diz Maroneze. Ele ressalta que 
tudo pode mudar se for encontrado al-
gum documento fazendo referência à fru-
ta que seja anterior aos que ele encontrou 
empregando a palavra para designar o rio, 
a missão jesuítica e o povo Abacaxis.
Os documentos que o pesquisadorle-
vantou não esclarecem, contudo, a respei-
to de um ponto crucial: se a palavra 
“abacaxi” foi usada pela primeira vez para 
designar um povo indígena e seu rio, qual 
a relação entre eles e a fruta? Maroneze 
tem algumas hipóteses, como a de que 
a fruta talvez fosse comum na região ou 
cultivada pelos indígenas. Mas a questão 
continua em aberto, pois ainda não se des-
cobriram documentos que comprovem 
essa correlação. Se esses documentos exis-
tiram, mas foram destruídos, é possível 
que o nexo entre o povo Abacaxis e a fruta 
permaneça para sempre um enigma. 
Para um etimólogo, encontrar a data 
de nascimento de uma palavra é um feito 
importante, parecido com a de um biólo-
go que consegue descrever uma nova es-
pécie. Não à toa, o professor Mário Viaro, 
do Departamento de Letras Clássicas e 
Vernáculas da !%&, queria ser um entomó-
logo, um pesquisador dos insetos, quando 
era criança em Botucatu, cidade do in-
terior paulista onde nasceu. Por volta dos 
12 anos, começou a estudar latim por conta 
própria para ler tratados científicos sobre 
opiliões (um tipo de aracnídeo) e tomou 
gosto por outras línguas, como o alemão 
e o russo. Acabou trocando os insetos pe-
las palavras. Formou-se em letras pela !%&, 
e a entomologia se tornou para ele apenas 
um hobby. “Ainda me embrenho pelas 
matas para fotografar insetos e consigo às 
vezes achar opiliões me valendo só do ol-
fato [pois exalam um cheiro forte], talento 
que devo ter adquirido desde pequeno”, 
conta o pesquisador de 54 anos, conside-
rado por seus pares o maior especialista 
em etimologia da língua portuguesa. 
Essa especialidade entrou em sua vida 
na pós-graduação, quando ele foi convi-
Os etimólogos e o amplo dicionário que a língua portuguesa não tem
PAULA ALKMIM 
O PRAZER DAS PALAVRAS
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Origem das palavras: “Da mesma forma que um paleontólogo recupera a vida de um período por meio dos fósseis, a etimologia só dispõe do que foi escrito”, diz o etimólogo Mário Viaro
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dado para fazer a revisão da parte etimo-
lógica do Dicionário Michaelis. Depois 
disso, escreveu dois manuais que viraram 
referência para pesquisadores da área e 
passou a sonhar com a criação de um 
novo e robusto dicionário etimológico de 
língua portuguesa – algo que não existe 
no Brasil, nem em Portugal, ou qualquer 
outro país que fala o idioma.
Para levar adiante a empreitada de 
um Dicionário Etimológico da Língua 
Portuguesa – título que escolheu para a 
obra –, Viaro juntou-se a Maroneze em 
2012. A ideia era, a partir do Núcleo de 
Apoio à Pesquisa em Etimologia e Histó-
ria da Língua Portuguesa (!"#i$%), da &'%, 
desenvolver um dicionário com os re-
cursos do século ((), buscando a ori-
gem das palavras com a ajuda das 
ferramentas computacionais, de modo 
a preencher as lacunas históricas que 
existem nos dicionários etimológicos 
de língua portuguesa. Aos dois pesqui-
sadores, foram-se agregando dezenas 
de outros, inclusive portugueses, fran-
ceses e alemães, de áreas como filologia 
(que estuda escritos antigos), morfolo-
gia (que investiga a estrutura e formação 
de palavras) e lexicografia (que se dedi-
ca à elaboração e organização de dicio-
nários). Nos primeiros estágios da 
pesquisa foram coletados dados sobre a 
datação de mais de 25 mil verbetes. De-
pois disso, só avançaram os problemas.
F azer um dicionário, qualquer di-cionário, é uma tarefa titânica. Exige numerosas pesquisas, leitu-
ras e consultas, muito rigor e vigor in-
telectual, extremo cuidado, paciência 
infinita, além de fartos recursos mate-
riais, pois é um trabalho que se alonga 
no tempo – às vezes, a perder de vista. 
Por exemplo: o primeiro dicionário ge-
ral da língua portuguesa projetado pela 
Academia Real de Ciências de Lisboa (o 
nome da Academia das Ciências de Lis-
boa na época) começou a ser feito no 
século !!"" e só foi finalizado neste sécu-
lo. Em 1793, a academia planejou fazer 
uma obra colossal, nos moldes do que 
fizera a Academia Francesa em 1694 e 
a Real Academia Espanhola em 1780. 
A empreitada dos eruditos portugueses 
não saiu da letra “a”, parando na palavra 
“azurrar”. Quase dois séculos mais tarde, 
em 1976, uma nova tentativa empacou, 
outra vez na primeira letra do alfabeto. 
O dicionário completo da Academia, de 
“a” a “z”, só foi concluído em 2001 – ou 
208 anos depois da primeira tentativa.
Apesar disso, a história da lexicografia 
portuguesa seguiu em frente. 
No século #!", foram publica-
dos os dicionários bilíngues 
(português-latim e latim-por-
tuguês) de Jerónimo Cardoso 
(1508-69), um latinista cujos trabalhos 
são fundamentais para os estudos etimoló-
gicos. Outra obra notável foi a do monge 
Raphael Bluteau (1638-1734), londrino 
de pais franceses que passou a maior parte 
da vida em Portugal e entre 1712 e 1728 
publicou o enciclopédico Vocabulario 
Portuguez e Latino, em oito volumes e 
dois suplementos, abarcando vários cam-
pos do conhecimento.
Dicionários etimológicos do portu-
guês, que trazem a genealogia da palavra, 
são raros até hoje. O primeiro foi lançado 
em 1836, feito pelo filólogo, médico e jor-
nalista lisboeta Francisco Solano Cons-
tancio (1777-1846), um autor prolífico que 
chegou a escrever uma História do Brasil, 
em dois volumes. Outra referência im-
portante data de 1890: o Diccionario Ma-
nual Etymologico da Lingua Portugueza, 
do filólogo Francisco Adolpho Coelho 
(1847-1919) – nascido em Coimbra –, 
cuja primeira edição tinha 1,2 mil pági-
nas. “O mérito desses autores é inquestio-
nável, sobretudo o de Adolpho Coelho”, 
diz Viaro. Da parte dos portugueses, há 
ainda o dicionário feito por José Pedro 
Machado (1914-2005), publicado em 
1952 e pioneiro na datação da origem das 
palavras, embora se limite a indicar o sé-
culo em que entraram no léxico.
No Brasil, uma das principais obras na 
área é o Dicionário Etimológico da Lín-
gua Portuguesa, publicado em 1932 pelo 
filólogo carioca Antenor Nascentes (1886-
1972). Mas nas livrarias é muito provável 
que o leitor interessado na matéria só en-
contre o trabalho de Antônio Geraldo da 
Cunha (1924-1999), Dicionário Etimoló-
gico da Língua Portuguesa. O Dicionário 
Houaiss da Língua Portuguesa, embora 
não se dedique à etimologia propriamen-
te dita, é uma referência relevante, pois 
traz informações sobre a datação e a ori-
gem de vocábulos, incluindo alguns só 
recentemente incorporados à língua.
Cunha foi um erudito do idioma que 
também fez um dicionário histórico das 
palavras portuguesas de origem tupi e es-
creveu livros sobre o português medieval, 
entre outros temas. As duas primeiras edi-
ções de seu Dicionário Etimológico foram 
publicadas na década de 1980 pela Edito-
ra Nova Fronteira, quando o autor ainda 
estava vivo. Depois disso, a obra só voltou 
a ter uma nova edição em 2007, lançada 
pela Lexikon, editora especializada em 
títulos sobre a língua portuguesa. A edi-
ção atualmente à venda é de 2010, com 
744 páginas, e traz poucas atualizações. 
“O Cunha trabalhou praticamente de for-
ma solitária”, diz Viaro. “Ele foi muito 
bem com os textos medievais até o Renas-
cimento, mas nós já começamos a perce-
ber falhas a partir do século #!"". Muita 
palavra entrou no século ##, mas sem que 
ninguém tenha estudado.”
Viaro conta que Cunha fez seu tra-
balho de maneira inteiramente manual. 
A cada palavra o etimólogo 
dedicava uma ficha de papel, 
na qual registrava todas as in-
formações de que dispunha. 
Sempre que fazia uma nova 
descoberta, ele revia as anotações. 
“Quantas palavras o Cunha pode ter 
perdido por distração, porque não asso-
ciou na hora que a ocorrência era mais 
antiga do que aquela que tinha lá na fi-
cha?”, especula Viaro. O conjunto das 
fichas formava um arquivo gigantesco. 
Para se ter uma ideia, somente a pesqui-
sa sobre o português medieval resultou 
na elaboração de cerca de 170 mil fichas. 
A Lexikon não sabe ainda quando 
haverá uma novaedição do dicionário de 
Cunha. Mas assegura que é “certamen-
te o mais atualizado dos dicionários 
etimológicos em língua portuguesa” e 
que tem acrescentado à obra novas pa-
lavras e novas acepções de termos já re-
gistrados. A editora também disse à piauí 
que está aberta a corrigir as datações dos 
vocábulos, mediante pesquisas com-
provatórias, mas que esses casos são raros. 
De 2007 até 2021, o dicionário vendeu 
17 mil exemplares.
Presidente da Comissão de Lexicolo-
gia e Lexicografia da Academia Brasilei-
ra de Letras ($%&), o gramático e filólogo 
pernambucano Evanildo Bechara consi-
dera que os dicionários do português 
José Pedro Machado e dos brasileiros 
Antenor Nascentes e Antônio Geraldo 
da Cunha são robustos e não estão tão 
desatualizados como se pensa. “Um di-
cionário geral, por natureza, estará sem-
pre atrasado ao tomar-se em consideração 
a ilimitada produtividade de uma língua 
viva”, diz Bechara, que foi assistente de 
Antenor Nascentes na cátedra de filolo-
gia românica da Universidade do Estado 
da Guanabara, atual '()*. Ele observa 
que o processo de globalização, “acelera-
do e avassalador”, só acentua esse atraso.
Bechara coordena atualmente a ela-
boração do Dicionário da Língua Portu-
guesa, da $%&, cujo conteúdo vem sendo 
disponibilizado gratuitamente no site da 
entidade, à medida que os verbetes fi-
cam prontos. A expectativa é que tenha 
mais de 200 mil entradas. Até agora, o 
dicionário traz a etimologia de apenas 
algumas palavras, e não inclui a datação 
delas. A $%& não deu detalhes de como 
tem trabalhado a parte etimológica do 
dicionário nem quis informar o valor 
investido na obra. 
Quando se fala em dicionários, uma 
das principais referências dos pesquisado-
res é o Oxford Dictionary of English, edi-
tado há mais de 150 anos pela Oxford 
University Press, a maior editora univer-
sitária do mundo. Na versão impressa, 
tem vinte volumes e, embora não se ate-
nha apenas à etimologia, esta ocupa um 
lugar importante na obra. A versão digi-
tal traz o significado de cerca de 600 mil 
palavras da língua inglesa e é atualizada 
a cada três meses, num processo que in-
clui a revisão dos verbetes já existentes e o 
acréscimo de novos. Cada palavra é acom-
panhada de informações sobre a pronún-
cia, o significado atual e a forma mais 
antiga em inglês escrito. Contém ainda a 
primeira datação dos vocábulos e a data 
das diferentes acepções que adquiriram 
ao longo da história. O dicionário traz 
mais de 3,5 milhões de abonações – ou 
seja, frases que ilustram o significado da 
palavra em determinado contexto –, ga-
rimpadas em textos literários, periódicos 
especializados, roteiros de filmes, livros de 
culinária etc. “Ninguém consegue vencer 
a qualidade do dicionário Oxford, que traz 
informações riquíssimas e é muito bem 
organizado”, avalia Maroneze. 
Há outros dicionários de qualidade, 
em outros idiomas, que também são re-
ferência para os etimólogos em geral e 
para o grupo da '+,. Um deles é o Trésor 
de la Langue Française, obra coletiva em 
dezesseis volumes (do qual existe uma 
versão digital de acesso gratuito), e o Dic-
cionario Crítico Etimológico de la Len-
gua Castellana, do filólogo catalão Joan 
Corominas (1905-97). Um dos méritos 
desses dicionários é que eles esmiúçam 
tanto a história das palavras que, às ve-
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zes, chegam a dedicar mais de uma pá-
gina a um único verbete.
Os dicionários da língua portuguesa 
costumam ser bem sumários. É comum 
que tragam a informação de que a palavra 
veio do latim ou do grego, por exemplo, 
mas sem dizer como ela chegou até a nos-
sa língua. É o caso de “fotografia”. Em 
geral, os dicionários registram somente 
que a palavra é formada pela composição 
dos elementos gregos phõs, photós (luz) e 
gráphein (escrever, registrar), acrescida 
do sufixo -ia, para formar o substantivo. 
“O leigo, ao se deparar com essa explica-
ção, terá a impressão de que a palavra ‘fo-
tografia’ foi criada na língua portuguesa a 
partir de radicais gregos. Mas não foi o que 
ocorreu”, diz o linguista Aldo Bizzocchi, 
de 61 anos, pesquisador do !"#i$% e inte-
grante do projeto do novo dicionário eti-
mológico. “A palavra foi criada na língua 
francesa em 1826, pelos inventores dessa 
técnica: photographie. A palavra portu-
guesa é um empréstimo do francês. Esse 
tipo de informação histórica você não 
encontra nos nossos dicionários.”
A etimologia entrou na vida de Aldo Bizzocchi durante a pós-graduação. Quando cursava a disciplina de lexi-
cologia, durante o mestrado em linguísti-
ca na &'%, ele teve a ideia de desenvolver 
uma pesquisa sobre os processos de cria-
ção de palavras em cinco idiomas: inglês, 
francês, italiano, alemão e português. 
O trabalho virou seu tema de doutorado 
e resultou no livro Léxico e Ideologia na 
Europa Ocidental, publicado em 1998. 
Bizzocchi conheceu Viaro em um con-
gresso e passou a colaborar com ele, tra-
balhando na implantação do sistema 
informatizado do dicionário etimológico.
A ambição do grupo de etimólogos da 
&'% era fazer um dicionário à altura dos 
maiores do mundo. Para tanto, seria pre-
ciso incorporar as novas ferramentas da 
informática à pesquisa, o que levou Via-
ro e seus colegas a fazer uma parceria 
com o Instituto de Matemática e Estatís-
tica da &'%. Em um primeiro momento, 
a grande aposta foi no Moedor. Trata-se 
de um software, desenvolvido para o pro-
jeto, com a habilidade de distinguir as 
palavras de um documento e catalogar os 
diferentes contextos em que elas são usa-
das. “Parece um moedor de carne. Você 
pega um texto, joga no programa, e ele 
vai desmembrar o texto em todas as pala-
vras que o compõem”, diz Bizzocchi. 
À medida que o material é inserido no 
Moedor, a ferramenta checa se a datação 
das palavras é anterior àquela que já está 
registrada no seu banco de dados e faz as 
atualizações necessárias. O programa 
permitiu rever, por exemplo, a data de 
nascimento da palavra “brigadeiro”, na 
acepção de doce de leite condensado 
com chocolate. Datado pelo Dicionário 
Houaiss como sendo da década de 1950, 
o vocábulo foi identificado em um livro 
de receitas de 1948. O nome talvez esteja 
relacionado ao brigadeiro Eduardo Go-
mes, que concorreu à Presidência da Re-
pública dois anos antes.
O ponto de partida para a construção 
do banco de dados no Moedor foi a inser-
ção do dicionário de Jerônimo Cardoso, 
do século ()*, o primeiro registro diciona-
rizado das palavras da língua portuguesa. 
Depois, foram acrescentados o dicionário 
do monge Raphael Bluteau e outras 
obras, além de textos de publicações di-
versas, disponíveis na Hemeroteca Digi-
tal, da Fundação Biblioteca Nacional. 
Foram tantos textos inseridos no Moedor 
que o programa começou a dar sinais de 
lentidão, e o trabalho foi reduzido.
Outra vantagem do Moedor é o uso de 
inteligência artificial. Essa ferramenta 
consegue, por exemplo, converter para o 
masculino singular (que é a forma do di-
cionário) uma palavra que aparece em 
um texto no feminino plural. Faz operação 
similar com os verbos, reduzindo ao infi-
nitivo o que aparece no texto – suponha-se 
– no pretérito imperfeito do subjuntivo. 
“Ao mesmo tempo, o programa registra a 
grafia original da palavra ou a flexão, tal 
como está no texto”, diz Bizzocchi.
Com a ajuda da ferramenta, os pesqui-
sadores já conseguiram coletar dados so-
bre a datação de mais de 25 mil palavras, 
o que pode ajudar a refinar as informa-
ções encontradas atualmente nos dicio-
nários. Eles descobriram, por exemplo, 
que a palavra “uranologia” (estudo do 
céu), que consta nos dicionários de 
Cunha e Houaiss como tendo surgido em 
1858, é bem mais antiga. Aparece, mais 
de um século antes, no frontispício do 
próprio dicionário de Bluteau, cujo título 
completo na escrita original é: 
Vocabulario Portuguez e Latino, Auli-
co, Anatomico, Architectonico, Bellico, 
Botanico, Brasilico, Comico,Critico, Chi-
mico, Dogmatico, Dialectico, Dendrologi-
co, Ecclesiastico, Etymologico, Economico, 
Florifero, Forense, Fructifero, Geogra-
phico, Geometrico, Gnomonico, Hy-
drographico, Homonymico, Hierologico, 
Ichtyologico, Indico, Isagogico, Laconico, 
Liturgico, Lithologico, Medico, Musico, 
Meteorologico, Nautico, Numerico, Neo-
terico, Ortographico, Optico, Ornithologi-
co, Poetico, Philologico, Pharmaceutico, 
Quidditativo, Qualitativo, Quantitativo, 
Rethorico, Rustico, Romano, Symbolico, 
Synonimico, Syllabico, Theologico, Tera-
peutico, Technologico, Uranologico, Xe-
nophonico, Zoologico, AUTORIZADO COM 
EXEMPLOS dos Melhores Escritores Portu-
guezes, [et] Latinos, E OFFERECIDO A ELREY 
DE PORTUGAL DOM JOAN V. 
A datação de um vocábulo é só o co-meço do trabalho do etimólogo. O especialista precisa também ela-
borar hipóteses sobre como foi a transmis-
são das palavras ao longo do tempo. Isso 
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mudanças sonoras que ocorreram na in-
corporação à língua estudada. A expressão 
latina silvam forestem, que significa “bos-
que do lado de fora (das muralhas)”, redu-
zida para forestem apenas, gerou forêt, no 
francês, foresta, no italiano, mas, no por-
tuguês, significando o mesmo que nessas 
duas línguas, virou floresta, provavelmen-
te por uma analogia com a palavra “flor”. 
Segundo Viaro, compreender as mudan-
ças fonéticas “é expediente imprescindível 
para separar as boas etimologias das más”. 
Por isso, outra aposta do projeto da 
!"# no campo da informática foi o desen-
volvimento do Metaplasmador, uma fer-
ramenta que utiliza algoritmos para 
testar se a evolução da palavra segue ou 
não as leis fonéticas – no caso específico 
do programa, do latim para o português. 
Ou seja, se na passagem de uma língua 
a outra, o vocábulo sofreu modificações 
conforme os padrões esperados. É o caso 
do “p” entre vogais, que se transformou 
em “b”, como em lupum/lobo ou sapo-
nem/sabão. “As leis fonéticas são comple-
xas para a nossa cabeça, mas para uma 
máquina é superfácil”, diz Viaro.
Quando a palavra latina é inserida, o 
Metaplasmador mostra, na ordem em que 
ocorreram historicamente, todas as modi-
ficações fonéticas pelas quais o vocábulo 
passou até a forma que tem no português 
atual. Isso permite levantar hipóteses so-
bre sua origem. Se o resultado das trans-
formações coincidir, de fato, com a forma 
portuguesa atual do vocábulo – como 
ocorre com lupum/lobo –, pode-se dizer 
que a origem da palavra foi provada. Se o 
resultado for diferente, será preciso encon-
trar provas em outras línguas ou outros 
contextos similares da mesma língua para 
explicar por que a mudança ocorreu. 
É o caso da palavra “raposa”, cuja ori-
gem pode estar no verbo latino rapere, que 
significa roubar (em latim, a raposa mes-
mo é vulpes). O problema é que, nesse 
caso, pelo padrão, o esperado seria a forma 
“rabosa”. Assim, ainda é preciso fazer mais 
investigações para elucidar por que, nesse 
caso, o “p” não se transformou em “b”, ou 
buscar outra etimologia para o termo “ra-
posa”. “Não há até agora nenhuma outra 
hipótese, mas também não conseguimos 
explicar por que essa palavra seria uma ex-
ceção da língua portuguesa. Portanto, a 
origem é controversa”, diz Maroneze.
Viaro vê limites para as contribuições 
que as ferramentas computacionais po-
dem dar às pesquisas. “Não acho que as 
etimologias sem respostas suficientes hoje 
em dia terão algo mais palpável no futuro, 
com o avanço de técnicas. Isso me soa 
demasiadamente positivista”, argumenta. 
“A falta de dados muitas vezes é algo irre-
cuperável. Da mesma forma que um pa-
leontólogo se consola em recuperar parte 
da vida de um período por meio dos fós-
seis, a etimologia também só tem o que 
foi escrito e o que foi encontrado.”
Além de ferramentas automatizadas, 
outra novidade que tem impulsionado os 
estudos etimológicos em geral, e tem aju-
dado bastante os pesquisadores da !"#, é 
a digitalização das fontes históricas. Anti-
gamente, para ter acesso às obras mais 
antigas escritas em língua portuguesa, era 
preciso consultá-las em bibliotecas e ar-
quivos públicos. Hoje, estão disponíveis 
na internet milhões de obras, documen-
tos históricos e dicionários antigos, como 
o de Bluteau. No Google Livros, platafor-
ma com mais 10 milhões de obras digita-
lizadas em vários idiomas, é possível 
pesquisar textos em língua portuguesa do 
século $%& até o $&$ que já estão em domí-
nio público. Esse acervo ajuda a identifi-
car os contextos mais antigos do uso das 
palavras e apurar as datações. Mas o regis-
tro de livros por idioma pode apresentar 
falhas, com as publicações em português 
sendo classificadas em outras línguas. “Se 
colocamos o filtro de pesquisa só em li-
vros em português, acabamos não encon-
trando tudo”, diz Maroneze.
Ele utilizou o Google Livros na pes-
quisa sobre a palavra “abacaxi”. “Quase 
todos os dados de datações sobre os usos 
da palavra foram encontrados ali. Mas 
não é só digitar e pronto. É preciso ima-
ginar que o vocábulo pode estar grafado 
de outra forma e tentar ortografias alter-
nativas, como ‘abacachi’ ou ‘avacaxi’”, 
conta. Maroneze optou pela plataforma 
do Google porque'ela permite encontrar 
todas as ocorrências de'uma dada'pala-
vra em milhares de obras disponíveis no 
seu banco de dados.'Já o Moedor é mais 
útil para comparar, nas'obras inseridas 
no programa, as diferentes datas em que 
os vocábulos aparecem nos textos.'“Para 
procurar o termo ‘abacaxi’ usando o Moe-
dor,'eu já preciso saber de antemão qual 
texto tem essa palavra, para poder inseri- 
lo no programa, que depois'vai registrar 
sua datação”, diz o professor.
É difícil afirmar com precisão em que momento surgiu a curiosidade hu-mana pela origem das palavras. No 
Ocidente, textos do filósofo grego Herá-
clito de Éfeso, escritos há mais de 2,5 mil 
anos, são talvez os primeiros registros 
desse interesse, de acordo com Viaro, e 
mais ainda o diálogo Crátilo, de Platão. 
Mas a etimologia só se tornou objeto de 
estudos na virada do século $%&&& para o 
$&$, quando os pesquisadores passaram 
a fazer comparações sistemáticas entre 
vários idiomas. Na segunda metade do 
século $$, as pesquisas etimológicas per-
deram prestígio entre os linguistas. Isso 
ocorreu porque, sobretudo a partir do 
movimento estruturalista, a linguística 
deixou de se interessar pelo passado para 
se dedicar aos fenômenos contemporâ-
neos da linguagem, à descrição de línguas 
minoritárias (principalmente as indíge-
nas) e às suas relações com outras áreas 
do conhecimento, como a antropologia, 
a psicanálise, a neurologia e 
os estudos literários. Somente 
no fim do século $$, a linguís-
tica histórica recuperou seu 
espaço nas universidades. 
Mesmo com a retomada, 
existem poucos pesquisadores no mun-
do que se dedicam exclusivamente ao 
assunto e podem ser considerados etimó-
logos em tempo integral. Em geral, eles 
se dividem entre a etimologia e outros 
ramos da linguística. No Brasil, os eti-
mólogos não enchem uma sala de aula. 
Na base de dados do Conselho Nacional 
de Desenvolvimento Científico e Tecno-
lógico (()#q), a busca pelos termos “eti-
mologia” e “etimológico” resulta em 
apenas sete grupos de pesquisa. Desses, 
somente quatro têm desenvolvido traba-
lhos específicos sobre etimologia: dois 
grupos da !"#, ambos ligados ao pro-
fessor Viaro, o grupo da !*+,, ao qual 
o professor Maroneze é vinculado, e o 
Grupo de Pesquisa Nêmesis: Estudos 
do Léxico e da História daLíngua Por-
tuguesa, da Universidade Federal da 
Bahia (!*-.), que está desenvolvendo 
dois projetos, o Dicionário Etimológico 
de Português Arcaico e o Dicionário 
Dialetal Brasileiro. Nos cursos de letras, 
a etimologia é abordada como um tópi-
co dentro da disciplina de linguística 
histórica. Na !"#, apenas a pós-graduação 
tem um curso específico.
Na avaliação de Viaro, o cenário é de-
sértico. “Não é como em outras áreas, 
como a sintaxe, por exemplo, que tem 
centenas de pessoas estudando e dá para 
fazer um congresso”, diz. Para Bizzocchi, 
a interrupção dos estudos ao longo do sé-
culo $$ tem reflexos até hoje na formação 
de novos pesquisadores. No caso brasilei-
ro, ele atribui a escassez de etimólogos 
também a outro motivo: “Para você traba-
lhar com etimologia, precisa ser poliglota, 
ter uma cultura geral e uma cultura lite-
rária muito grande. E, infelizmente, a 
maioria das universidades hoje não está 
formando pessoas com esse perfil.” 
O problema se agrava quando se trata 
de investigar palavras cuja origem está 
assentada nas línguas dos povos da África, 
pois nas universidades brasileiras faltam 
especialistas nesses idiomas. A palavra 
“cafundó”, por exemplo, é registrada em 
dicionários, como os de Cunha e Aurélio, 
como sendo “de origem africana”, sem 
especificar o idioma, ao contrário do 
que ocorre com vocábulos de origem 
europeia. E até hoje ainda restam dúvi-
das sobre a origem do termo “cafundó”. 
O Dicionário Houaiss traz a informação 
de que a etimologia da palavra é contro-
versa, mas registra a hipótese do linguista 
Jacques Raimundo (1889-1959) de que 
viria do idioma ambundo. “Não tem nin-
guém que trabalhe com as línguas africanas, 
que são muitas e têm estruturas muito 
diferentes umas da outras. Então, não dá 
pa ra generalizar”, lamenta Viaro. 
Na !"#, a Faculdade de Letras oferece 
apenas a disciplina linguística não indo- 
europeia, que trata, de forma alternada 
a cada ano, de línguas indígenas bra-
sileiras e línguas africanas. 
Nesta última área existem 
as obras pioneiras de Jacques 
Raimundo, como O Elemen-
to Afro-Negro na Língua Por-
tuguesa (1933), e de Renato 
Mendonça, autor de A Influência Africa-
na no Português do Brasil (lançado no mes-
mo ano). Mais recentes são os trabalhos 
do africanista Nei Braz Lopes, que pu-
blicou sete dicionários, entre eles o Novo 
Dicionário Banto do Brasil e o Dicioná-
rio Literário Afro-Brasileiro. O Dicionário 
Houaiss incorporou a explicação etimo-
lógica de Lopes em 250 verbetes.
Um obstáculo aos novos pesquisado-
res nos estudos da etimologia é a extre-
ma dedicação que a disciplina exige. 
Somente para explicar a origem da pa-
lavra “zebra”, Viaro e o zoólogo Nelson 
Papavero dedicaram longo tempo ao 
assunto e escreveram um livro de quase 
duzentas páginas, intitulado O “Zebro”: 
Considerações Históricas, Sua Identifi-
cação e Distribuição Geográfica, Ori-
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gem da Palavra “Zebra” e Considerações 
sobre Etimologia, publicado de forma 
online pelo !"#i$%. O trabalho desmon-
ta hipóteses de que a palavra – registra-
da pela primeira vez no século &' – teria 
origem hebraica, árabe ou latina. Afir-
ma que o mais provável é que venha do 
suevo, uma língua germânica já extinta. 
A origem estaria em uma palavra sueva 
da qual não há registro escrito e que se 
pronunciava assim, no alfabeto fonético: 
tseβra, com o significado genérico de “ani-
mal que serve para o sacrifício”. A partir 
do século '(&, o vocábulo, que por sécu-
los designou diferentes tipos de equíde-
os, se espalhou do português para o 
resto do mundo (como zebra, em inglês, 
italiano, sueco, turco ou húngaro), já 
associado aos animais africanos famosos 
por suas listras. “É um trabalho de for-
miga. Cada palavra leva a uma pesquisa 
especial”, diz Viaro. 
O Dicionário Etimológico da Língua 
Portuguesa dos pesquisadores da )*% pre-
tendia contribuir também para combater 
as pseudoetimologias que tanto preocu-
pam os pesquisadores. São explicações 
fantasiosas para a origem das palavras 
que circulam na mídia e na internet. Por 
exemplo: a lorota de que a palavra 
“aluno” significa “sem luz”, pois seria 
formada pelo prefixo -a (que indica 
privação) e o termo latino lumni (luz). 
Ou que “criado-mudo” tem origem ra-
cista porque seria uma referência aos 
negros escravizados que faziam trabalhos 
domésticos. Na verdade, “aluno” vem do 
verbo latino alere, que significa “alimen-
tar”. O aluno é, então, metaforicamente, 
uma pessoa a ser alimentada com conhe-
cimento. A origem de “criado-mudo” 
ainda não foi fixada, mas uma das hipó-
teses é que vem do vocábulo inglês dumb-
waiter (formado pelas palavras dumb, 
mudo, no inglês antigo, e waiter, garçom) 
e que designa uma plataforma móvel 
para passar os alimentos entre a cozinha 
e a sala de jantar. Pode ser ainda que ve-
nha de dumb servant (literalmente “cria-
do ou servente mudo”), que designa um 
tipo de cabideiro, ou do francês serviteur 
muet (de novo, “criado ou servente 
mudo”), que se refere a uma espécie de 
mesa expositora de alimentos.
Em alguns casos, os próprios dicio-
nários acabam sendo fonte de etimolo-
gias imaginárias. É atribuída a Antenor 
Nascentes a difusão da etimologia errô-
nea da palavra “larápio”. Segundo o fi-
lólogo, “houve em Roma um pretor que 
dava sentenças favoráveis a quem me-
lhor pagava. Chamava-se ele Lucius 
Antonius Rufus Appius. Sua rubrica era 
$.+.,. +ppius. Daí chamar-lhe o povo 
larappius, nome que ficou sinônimo de 
gatuno”. Essa história, no entanto, não 
tem comprovação em nenhum docu-
mento histórico. Até hoje a origem da 
palavra é considerada obscura.
O ambicioso projeto de criar o Dicio-nário Etimológico da Língua Por-tuguesa, concebido por Mário 
Viaro, Bruno Maroneze, Aldo Bizzoc-
chi e seus colegas, começou há dez anos, 
mas ainda vai demorar a preencher as 
lacunas. Há nove anos, o projeto não 
conta com financiamento público. A prin-
cípio, os recursos para as pesquisas vi-
riam da )*%, que, de acordo com Viaro, 
se comprometeu a repassar 300 mil reais 
por ano, durante três anos.
 Ele conta que, em 2014, foi preciso 
negociar para que fossem assegurados ao 
menos os recursos para o pagamento dos 
bolsistas e do programador, de cerca de 
100 mil reais, com o que a-)*%-concordou. 
Em nota à- piauí, a- )*%- informou que, 
naquele ano, em razão da crise econômica 
no país, houve uma “consequente redução 
de recursos destinados ao orçamento da 
)*% pelo governo estadual” e por isso a 
verba destinada aos Núcleos de Apoio 
à Pesquisa – como o de etimologia – teve 
que ser contingenciada, para que a insti-
tuição tivesse condições de arcar com as 
despesas obrigatórias.
Depois disso, o projeto do dicionário 
praticamente não recebeu mais recursos. 
Os pesquisadores passaram a buscar então 
fontes alternativas de financiamento e in-
vestiram até recursos próprios, como fez 
Viaro, que doou 3,8 mil reais para contra-
tar uma empresa que ajudasse com o pro-
grama Metaplasmador. Os pesquisadores 
também foram atrás de recursos privados, 
sem sucesso. “Acabei desistindo de buscar 
parcerias desse tipo, pois achei muito com-
plicado aliar os interesses dos financiado-
res e os do núcleo”, afirma o professor.
Bizzocchi diz que a falta de investi-
mento em um projeto como o dicionário 
da )*% está relacionada à visão de que as 
pesquisas em ciências humanas não tra-
zem benefícios práticos. “Não existe uma 
aplicação tecnológica para esse nosso co-
nhecimento, o que a gente gera é basica-
mente cultura”, afirma. “Os burocratas de 
plantão vão dizer que é preciso investir 
dinheiro em coisas que tragam soluções 
para os grandes problemas do país e saber 
a origem das palavras não é uma delas.” 
Ex-professor de português na Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul e 
criador do site Sua Língua, Cláudio Mo-
reno, de 75 anos, é pessimista sobre o 
Brasil ter um dicionário etimológicoà 
altura dos melhores do mundo. “Um di-
cionário etimológico envolve um merca-
do rico que compre e financie. Mas o 
português é uma língua muito paro-
quial”, diz Moreno, que publicou livros 
de divulgação, como Guia Prático do 
Português Correto, e mantém o bem-su-
cedido podcast Noites Gregas, sobre mi-
tologia grega, sua outra especialidade. 
Ele ressalta que o dicionário Oxford tem 
por trás uma grande empresa, a Oxford 
University Press, com mais de 6 mil fun-
cionários em 53 países, que vende produ-
tos e serviços em quase cem idiomas. Só 
no atual projeto de revisão do dicionário 
inglês estão sendo investidos 34 milhões 
de libras (cerca de 200 milhões de reais). 
Moreno planeja lançar um podcast 
sobre a língua portuguesa, em que a eti-
mologia será um dos tópicos. “Quero con-
tar histórias como a da palavra ‘búzio’, 
que se usa para fazer adivinhação ou pul-
seirinha. E mostrar como ‘buzina’ vem de 
‘búzio’, porque esta palavra designa ‘cara-
mujo’ na origem. Antigamente, se usavam 
búzios como trombetas. Até hoje nós ve-
mos na Polinésia aquela figura do nativo 
soprando búzio”, diz Moreno. “Cada pa-
lavra contém a história de uma vida, de 
uma cultura. Tudo isso para mim dá pra-
zer, é o prazer das palavras.”
O que ajudou a manter parcialmente, e por um tempo, os trabalhos do di-cionário planejado na )*% foram os 
estudantes com bolsas, que se incumbi-
ram da tarefa pesada de alimentar o banco 
de dados. Entre 2017 e 2018, o !"#i$% 
chegou a ter dez bolsistas, reduzidos a 
quatro no biênio seguinte – dois deles sob 
orientação do professor Viaro. A )*% expli-
ca que, nesse último período, houve um 
aumento expressivo no número de solici-
tações de bolsas, sem que houvesse um 
aumento equivalente no número de bol-
sas disponíveis. Isso “resultou na redução 
do número de bolsas distribuídas por pro-
jeto”, segundo a universidade. 
De 2019 em diante, o número de bol-
sas no !"#&$% oscilou de quatro a seis e, 
com a interrupção do projeto do dicio-
nário, os bolsistas passaram a se dedicar 
exclusivamente à produção de conteúdo 
sobre linguística para as redes sociais do 
núcleo. Aos poucos, os pesquisadores 
que integravam inicialmente a rede do 
projeto se dispersaram em razão de ou-
tros compromissos acadêmicos. “As pes-
soas não podem ficar disponíveis para 
sempre”, diz Viaro. Em paralelo, os pro-
gramas computacionais desenvolvidos 
para a elaboração do dicionário começa-
ram a apresentar problemas, como len-
tidão no banco de dados. 
A situação se agravou quando adoe-
ceu o professor Marco Dimas Gubitoso, 
do Instituto de Matemática e Estatísti-
ca da )*%, responsável por coordenar, 
desde o início, todo o braço computa-
cional do projeto. Os pesquisadores 
levaram um susto, pois os dados cole-
tados estavam até então no computa-
dor de Gubitoso e por pouco não se 
perderam. Foram recuperados, mas, 
em fevereiro do ano passado, o profes-
sor morreu, levando com ele boa parte 
do conhecimento sobre a programa-
ção do dicionário.
Para dar continuidade ao projeto da 
forma como foi idealizado, seria preciso 
fazer uma revisão dos cerca de 25 mil 
verbetes que foram retrodatados e conti-
nuar ampliando a base de dados. Além 
disso, com os problemas que aparece-
ram, nem chegaram a ser desenvolvidas 
as etapas mais complexas da elaboração 
do dicionário, como a história das pala-
vras coletadas. A parte de programação 
também precisaria ser toda refeita. Viaro 
considera que a única saída para conse-
guir recursos é rever o projeto original, de 
modo que possa se enquadrar em moda-
lidades públicas de financiamento. Sua 
referência é o Dictionnaire Étymologique 
Roman, um projeto internacional que se 
dedica a pesquisar a etimologia do léxico 
comum às línguas românicas. A iniciati-
va já recebeu, desde 2008, mais de 700 mil 
euros de financiamento (em torno de 
3,5 milhões de reais).
Depois que os programas começa-
ram a apresentar problemas, em 2019, 
Viaro voltou a fazer pesquisas com mé-
todos manuais. “Isso tomou muito tem-
po meu, até me prejudicou em alguns 
momentos do ponto de vista acadêmi-
co.” Por fim, a plataforma usada pelos 
pesquisadores para atualizar o banco 
de dados do dicionário acabou sendo 
desativada – e Viaro diz que nem se 
lembra mais da senha de acesso. J
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críticos. Escrever, para Joaquim, era 
uma atitude íntima e, portanto, a man-
tinha em segredo exercendo uma letra 
ruim. Quanto à interpretação, talvez a 
professora também estivesse certa. Joa-
quim nunca sabia o que responder 
diante de um texto literário, por exem-
plo. Mesmo as perguntas mais básicas, 
como o tipo de narrador ou o significa-
do de determinada frase. Os poemas 
eram os piores para entender. Interpre-
tar exigia certas informações do mundo 
que Joaquim ainda não tinha, ou não 
estava na idade de prestar atenção. Não 
se interpreta texto sem um mínimo de 
experiência de vida. Mesmo que ele já 
tivesse sofrido bastante até ali. Mas so-
frer não significa acúmulo de sabedoria 
ou de inteligência. Ninguém escreve ou 
interpreta bem porque sofre, ele pensa-
ria mais tarde. A única coisa que Joa-
quim discordava era a de que não sabia 
escrever redação, pois ele sabia. Cum-
pria todas as ordens e orientações da 
professora. Executava com esmero e 
afinco as tarefas, porque, para Joaquim, 
inventar histórias era o seu modo de 
resistir à escola. Porém, sua letra ruim, 
aliada ao cansaço da professora e à ima-
gem preestabelecida de aluno negro 
mediano colada nele, contribuíram para 
que fosse reprovado. Mesmo assim, 
Joaquim não guardava rancores do en-
sino. Foi apenas um estágio traumático 
que teve de passar na vida e do qual 
ninguém escapa. 
A pesar da escola, Joaquim escolheu os livros como modo de viver. Ele poderia ter dirigido sua vida para 
qualquer trabalho manual ou subal-
terno e que lhe desse um mínimo de 
estabilidade financeira, mas preferiu 
dirigi-la para a literatura. E pagou um 
preço alto por isso. Foi com a poesia 
que Joaquim criou a ilusão de que po-
deria conspirar contra o mundo e ainda 
o vencer. Na vida adulta, cada poema 
que lia, o fortalecia pela fragilidade. 
Havia uma precariedade nos versos que 
nada podiam diante da violência, ele 
pensava. Ainda assim, a palavra “poe-
sia” o resgatava. O rigor poético o sal-
vou de alguma coisa que poderia 
matá-lo. Era um exagero, ele pensava, 
mas era assim que conseguia lidar com 
as adversidades. Para quem não tem mui-
tos recursos, a pobreza nunca tem uma 
explicação. A vida simplesmente se 
apresenta tal como é. Aceita-se. E as 
dificuldades para sobreviver passam a 
fazer parte do cotidiano. Resmunga-se, 
mas nunca se questiona por que as pes-
soas são pobres. Leva-se a vida e não 
importa que a geração anterior tenha 
sido miserável, apenas segue-se o fluxo. 
E foi por esses e outros motivos que 
Joaquim nunca disse à sua avó que que-
ria ser poeta. Poderia soar como uma 
ofensa. Ou uma grande falta de respei-
to. Depois de tudo que passaram. Depois 
de todas as dificuldades era como se ela 
dissesse: Olha, guri, a gente se fodeu a 
vida toda. Meus avós se foderam. Meus 
pais se foderam. A sua mãe se fodeu. 
Uma geração inteira se fodeu. Por sécu-
los os negros se foderam para que você 
chegasse até aqui. E então é isso que 
você vai fazer da sua vida? Tornar-se um 
poeta? Que não vai ajudar os negros a 
sair dessa merda toda? Não se tornará 
a porra de um advogado? Nem a porra de 
um médico? Até onde você vai com isso? 
Você não tem esse direito, entendeu? 
Embora o mundo das letras não fizesse 
parte do seu universo, Joaquim intuía 
que a literatura não dava dinheiro. Ele 
D
izem que há no sofrimento 
algum tipo de aprendizado. 
A escola o fez sofrer, mas não 
o educou. Joaquim conhe-
ceu poucos professores dis-
postos a ajudá-lo. Hoje, no entanto, 
percebe que talvez eles não tivessem 
culpa pelo seu martírio, só estavam ali 
tentando salvar a própria dignidade 
diante da estrutura precária doensino. 
Joaquim sempre foi um aluno triste e 
mediano. Não chamava a atenção dos 
professores. Só quando ia mal nas pro-
vas de matemática ou de ciências. Aí, 
no conselho de classe, ele era lembrado. 
Sentiam pena dele e o passavam de 
ano, na maioria das vezes. Entretanto, 
certa vez, na sexta série, Joaquim foi 
reprovado na disciplina de língua por-
tuguesa. A professora Enilda alegou três 
motivos: que ele não sabia interpretar 
textos, que não sabia escrever redação e 
que não entendia a letra dele. Joaquim 
admitia que a sua caligrafia sempre foi 
difícil para os outros, suas garatujas 
eram entendidas, muitas vezes, apenas 
por ele. O que poderia servir como uma 
espécie de defesa para que sua escrita 
estivesse a salvo dos olhos de possíveis 
ficção
Deve haver alguma beleza nessa vida fodida de merda
JEFERSON TENÓRIO 
NA COMPANHIA DE RUFUS
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No elevador: “Ficou se olhando no espelho. Seu coração acelerava, mas ele não poderia parecer nervoso. Tentava se tranquilizar. Em poucos segundos, o mistério iria se revelar”
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tinha razão. No entanto, a sua impres-
são era a de que tudo que ele mais 
gostava de fazer não dava dinheiro. 
Descobriu ainda que as coisas difíceis e 
inúteis sempre o atraíam. E pensava 
que talvez ele estivesse condenado a 
continuar se fodendo como todos os ou-
tros negros que se foderam antes dele. 
Além disso, sua mãe havia morrido um 
ano atrás, e a avó, com quem morava, 
começava a apresentar os primeiros sin-
tomas de demência. Com tudo isso, 
Joaquim deveria naturalmente nutrir 
um ressentimento pela vida. Mas na 
época ele era novo demais para ser res-
sentido. Tinha 24 anos e não podia ser 
triste. O ressentimento exige certa ma-
turidade. Joaquim estava sem empre-
go e sustentava-se com a aposentaria 
da avó. Era muito pouco. Ele tinha de 
arranjar logo um emprego. Seu plano 
era juntar dinheiro, entrar num cursi-
nho pré-vestibular e tentar passar numa 
universidade federal, pois tinha espe-
rança de aprender alguma coisa sobre a 
escrita num curso de letras e quem sabe 
se tornaria um escritor ou poeta. Entre-
tanto, antes disso, ele realmente preci-
sava de um emprego. Sua carteira de 
trabalho era um mosaico de carimbos 
de serviços subalternos. Como não ti-
nha experiência, a não ser trabalhar com 
atendimento ao público, precisava achar 
algo nessa mesma área. Um dia, fez 
uma entrevista para atendente de tele-
marketing na Conecta – uma empresa 
de planos de internet. Joaquim iria ga-
nhar pouco mais de um salário míni-
mo. A empresa oferecia vale-transporte 
e tíquete-refeição, e o expediente era de 
seis horas por dia. Ele não tinha dúvi-
das de que era um emprego ruim. Sabia 
que continuaria a viver uma vida de 
exploração. Mas não havia o que fazer. 
A s primeiras semanas de treinamen-to foram lamentáveis. Joaquim não tinha qualquer habilidade para con-
vencer as pessoas a comprar um produto. 
No primeiro dia, o colocaram para ficar 
ao lado da Suelen. Era uma funcionária- 
padrão. E padrão significava que ela es-
tava próxima das características de uma 
máquina. Suelen tinha um texto deco-
rado e impessoal na ponta da língua. 
Falava com os clientes sem transparecer 
qualquer emoção. Sabia todos os planos 
de vendas de internet de cor e tinha sido 
eleita a funcionária do mês. Eu já ganhei 
duas raquetes de frescobol por ter batido 
a meta esse mês, ela disse orgulhosa. Por 
que raquetes?, perguntou Joaquim. Ela 
disse que eram brindes para quem bate 
as metas da semana. Tem gente que ga-
nha uma agenda, uma caneca ou boné. 
Eu ganhei raquetes. Eu gostei porque no 
próximo verão vou com meu namorado 
para a Praia de Tramandaí jogar fresco-
bol. O nome dele é Marcos e ele já é su-
pervisor em outra filial. Nos conhecemos 
aqui na Conecta. Vamos nos casar no 
ano que vem e comprar um terreno em 
Viamão. Ter nossa família e um cachorro, 
ela disse, com orgulho. Mas o verão ain-
da está tão longe, ele interrompeu. Não 
entendi, disse Suelen. O verão está tão 
longe para você usar as raquetes, ele com-
pletou. Suelen olhou esquisito para Joa-
quim e disse que tudo bem, que ela não 
se importava, que o importante mesmo 
era guardar dinheiro para as férias e ba-
ter as metas. Não se preocupe, você um 
dia vai conseguir bater as suas também. 
Um dia você e sua namorada vão se casar, 
ter filhos e uma casa em Alvorada ou Via-
mão. Lá os terrenos são mais baratos e as 
casas também, ela disse. Mas eu não te-
nho, ele falou, interrompendo novamen-
te. Não tem o quê?, ela perguntou. Não 
tenho namorada, disse Joaquim, ela ter-
minou comigo para ficar com outro cara. 
Suelen olhou para ele com tristeza e dis-
se: Puxa, sinto muito. Mas não importa. 
Isso passa. Logo você arruma outra. Aqui 
você vai poder crescer e virar supervisor. 
Vai poder comprar seu carro e visitar sua 
mãe aos domingos. Eu ainda não tenho 
carro, mas acho que no ano que vem vou 
ser promovida e posso tirar minha cartei-
ra. Meu namorado já tem carteira, ele 
quer dar entrada num Uno. Você gosta de 
Uno?, perguntou. Ela morreu, disse Joa-
quim. Quem morreu? Sua namorada?, 
perguntou Suelen. Não, a minha mãe, 
ele disse. Ela morreu, repetiu. Suelen o 
olhou triste novamente e disse que era 
melhor focarem no trabalho. Joaquim 
concordou. Não queria parecer trágico 
nem dramático, ele só precisava de coi-
sas objetivas que não o fizessem pensar 
na perda da mãe e no recente término 
do namoro. Logo Joaquim compreen-
deu que bater as metas significava várias 
coisas. Uma delas era convencer um cer-
to números de clientes que ligavam pu-
tos da vida querendo o cancelamento 
do plano. Os funcionários tinham que 
atender o maior número de pessoas, ser 
altamente persuasivos e fazer um atendi-
mento-padrão. E isso significava atender 
de maneira impessoal, usando frases pron-
tas como “Senhora, eu vou estar efe-
tuando seu plano”. Além disso, alguns 
atendimentos eram vigiados por um su-
pervisor, ou seja, enquanto você falava 
com o cliente, alguém do Controle de 
Qualidade escutava todo atendimento 
sem você saber. E, assim que você desli-
gava, seu telefone tocava, e o supervisor 
avaliava seu desempenho. Quase sem-
pre Joaquim recebia uma nota baixa por 
não convencer quase ninguém a ficar no 
plano. As pessoas ligavam furiosas pe-
dindo para cancelar, então ele pergunta-
va qual era o motivo e já cancelava sem 
qualquer contra-argumento. Joaquim 
sempre achava que os clientes estavam 
certos. Mas esse não era o atendimento- 
padrão. Desse jeito você não vai conseguir 
bater as metas e não vai conse-
guir seus brindes nem ser pro-
movido, disse Suelen. Assim, 
aos poucos, Joaquim foi se en-
caixando no perfil da empresa 
porque ele precisava ajudar sua avó. Pre-
cisa pagar as contas e tentar um cursi-
nho pré- vestibular. Além disso, ganhava 
os tíquetes-refeição, que utilizava para 
fazer compras nos supermercados, e isso 
era mais um incentivo. 
Semanas após o treinamento, Joaquim passou a fazer o atendimento sozi-nho. Entretanto, para sobreviver na-
quele lugar, ele precisava da companhia 
de um livro. Na época, Joaquim havia 
começado a ler Terra Estranha, do James 
Baldwin. Ele se identificava com a deca-
dência do personagem Rufus. O fracasso 
dele era o seu também, Joaquim pensava. 
Rufus o ajudava a suportar aquela rotina. 
Todos os dias ele colocava o livro em cima 
da mesa onde fazia os atendimentos. Mas 
Cristiano, o supervisor, da mesma idade 
de Joaquim, disse que não podia ter nada 
em cima da !" (Posição de Atendimento). 
Joaquim contra-argumentou dizendo que 
não ia ler durante o expediente. Se não vai 
ler, então pra que ficar com ele em cima da 
mesa?, perguntou o supervisor. Para eu 
não esquecer dele, Joaquim disse. Cristia-
no achou a resposta estranha. Acho que 
é mais fácil você esquecer o livro em cima 
da mesa, deixa em casa, disse o supervisor. 
É que o Rufus me faz companhia, ele dis-
se.Quem é Rufus?, perguntou Cristiano. 
O personagem principal, eu preciso da 
companhia dele para eu não esquecer que 
gosto de livros, ele disse. Cristiano não o 
entendia. Disse apenas para Joaquim 
guardar o livro, senão ele tomaria uma 
advertência, e tomar três advertências era 
motivo para ser demitido por justa causa, 
embora Joaquim não achasse nada justo 
ser mandado embora por colocar um livro 
sobre a mesa. Por isso, quando Cristiano 
virava as costas, ele tornava a colocar o li-
vro na !". Joaquim achava que a presença 
do livro em cima da mesa lhe conferia 
certa humanidade. Era um modo de dizer 
a si mesmo que os livros ainda faziam par-
te da sua vida, mesmo que tudo o estivesse 
levando para outra direção. 
Joaquim estava deprimido e aos pou-cos parou de se importar com a apa-rência e com as roupas que usava. 
Evitava se olhar no espelho. Tinha a sen-
sação de estar vivo, mas como se estivesse 
morrendo. A perda de tempo com coisas 
que não gostava de fazer era dolorosa. 
Aquele trabalho não fazia o menor senti-
do para ele. Desperdiçava o seu tempo e 
mesmo assim tinha consciência de que 
era necessário aceitar aquela condição. 
É o melhor a fazer, ele pensava. O mais 
honesto era se ver como um doente que 
aceita o diagnóstico grave e procura um 
tratamento, não mais para se curar, mas 
para atravessar a doença com dignidade. 
Na época, Joaquim já havia se tornado 
um bom leitor e, embora ignorasse uma 
série de autores, uma série de livros im-
portantes, ele havia lido o sufi-
ciente para se revoltar. Joaquim 
tinha os instrumentos neces-
sários para uma insurgência 
contra a vida. Mas seu ímpeto 
revolucionário era constantemente atrope-
lado pela vida prática. Sentia-se incapaz 
de contestar as coisas e, na maioria das 
vezes, preferia se acomodar. Além disso, 
sentia, sem que se desse conta, um certo 
prazer com o seu próprio sofrimento. 
Apegava-se à solidão e à pena que sentia 
de si mesmo. Como se aquele lugar de 
resignação e apatia trouxesse algum tipo 
de recompensa interna. Joaquim se sen-
tia triste e injustiçado. Nesse meio-tem-
po, passou a beber com mais frequência. 
Saía do trabalho, passava no bar onde 
estavam os seus amigos e bebia com eles. 
Eram todos negros e pobres, e estavam 
fodidos como ele, pensava Joaquim. As-
sim, enquanto bebia, às vezes sentia raiva 
de si por aceitar que não era especial 
como se achava, que era mais um ho-
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mem negro comum e que iria morrer 
como um homem negro comum. Ter 
uma vida ordinária era a regra, assim 
como acontece com milhões e milhões 
de pessoas. Joaquim morreria e ninguém 
se incomodaria com isso, ele pensava. 
Além disso, ele se aproximava cada vez 
mais de Rufus, o personagem de Terra 
Estranha. Sentia que Rufus era a única 
companhia possível para suportar todas 
aquelas horas atendendo telefonemas de 
pessoas desconhecidas e furiosas com 
seus planos de internet. Rufus se apresen-
tava como alguém capaz de compreen-
dê-lo, porque Joaquim o compreendia. 
Era uma relação mútua de ternura e que 
nenhuma pessoa branca, por mais que se 
esforçasse, entenderia. O que sentiam 
em relação ao mundo e à vida apenas os 
dois sabiam, aquela relação estranha era 
um triunfo da delicadeza. Porque exis-
tiam um para o outro. E foi desse jeito 
que Joaquim suportou e se enquadrou na 
Conecta, até se tornar um funcionário- 
padrão. Atendia com as frases decoradas 
e impessoais. Também se aproximou dos 
colegas e partilhava com eles os atendi-
mentos que fazia. Joaquim tentava se in-
tegrar. Tentava bater as metas. E um dia, 
enfim, ganhou seu par de raquetes da 
marca Conecta. E veio a Suelen lhe dar 
parabéns. Você conseguiu, Joaquim, você 
conseguiu, agora você é um Conectado, 
ela disse com alegria, e ao ouvir aquilo 
Joaquim teve vontade de chorar porque 
era uma espécie de vitória dentro da der-
rota. Ele havia conseguido fazer algo que 
para ele não tinha importância, mas mes-
mo assim ficou comovido. Quando che-
gou em casa colocou as raquetes em 
cima da mesa e as contemplou por al-
gum tempo. Eram o seu troféu. Dali em 
diante, sua vida entrou numa rotina da 
qual ele não conseguia escapar. Bater me-
tas tornou-se seu maior objetivo. Já não 
cogitava fazer vestibular. Não teria tempo 
para tanto. Além disso, deixou de trazer 
Rufus para a !", na verdade Joaquim se 
afastou da leitura. Começou a desistir da 
escrita. Tornar-se escritor passou a ser um 
plano tão distante e descabido. A rotina e 
a precariedade venciam o seu futuro. 
Certo dia, durante o atendimento na Conecta, Joaquim recebeu a liga-ção de uma moça pedindo para 
mudar de plano porque a internet dela 
estava muito lenta. Joaquim pediu que 
ela aguardasse um pouco, pois ia verifi-
car o cadastro. Enquanto procurava os 
dados, Joaquim teve a impressão de que 
ela chorava baixinho. Pensou em que-
brar o protocolo de atendimento e per-
guntar se estava tudo bem. Mas se 
conteve. Quando voltou a ligação, disse: 
Senhora, desculpe a demora, vou ter de 
confirmar seus dados e assim poderei se-
guir com o atendimento. A senhora po-
deria me confirmar seu CPF? Ela não 
respondeu, estava com o nariz fungando. 
Joaquim insistiu, dizendo: Senhora, está 
me ouvindo? Poderia me confirmar seu 
CPF? Silêncio do outro lado, até que, após 
alguns segundos, ouviu a voz fraca e frá-
gil, quase infantil: Eu quero morrer, me 
ajuda. Escutou aquela frase com assom-
bro. Quando pensou em perguntar se 
estava tudo bem, ela desligou. Logo o 
telefone tocou e já era outro cliente. Joa-
quim derrubou a ligação. Deixou no 
modo pausa e foi conversar com Cristia-
no, o supervisor. Para Joaquim pareceu 
uma situação grave e precisava dizer isso 
a alguém. Chegou até a mesa dele e nar-
rou o que havia acontecido. Cristiano 
sorriu e falou para Joaquim não se preo-
cupar. Que é muito comum as pessoas 
ligarem dizendo coisas como essas. Essa 
aí liga toda semana. Ela só quer chamar 
a atenção. Fica tranquilo e volte para o 
atendimento, estamos com uma fila grande 
de espera na linha. Não esqueça, precisa-
mos do procedimento-padrão para bater 
as metas, hoje tá valendo uma caneca da 
Conecta vai lá, não perca tempo. Joa-
quim fez uma cara de desapontamento, 
Cristiano deve ter percebido e, talvez 
para o confortar, completou: Meu, você 
não pode salvar o mundo. Se ela quer se 
matar, que se mate, você nem eu temos 
nada a ver com isso. Joaquim escutou 
aquilo com tristeza e voltou para a !". 
Tentou continuar o atendimento. Mas 
aquela voz e aquelas frases ficaram mar-
telando em sua cabeça: Eu quero morrer, 
me ajuda. Pensou: e se fosse verdade? E se 
de fato ela estivesse precisando de ajuda, 
como ele poderia ignorar aquele pedido? 
Que merda de vida era essa em que uma 
caneca era mais importante do que saber 
como aquela mulher estava? Teve vonta-
de de vomitar. Joaquim não estava bem. 
Ele tinha uma fúria adormecida que pa-
recia dar sinais em seu corpo. Foi ao ba-
nheiro e jogou água no rosto. Voltou 
decidido a entrar em contato com ela. 
Quando chegou na !", recuperou o aten-
dimento anterior na tela e foi pesquisar 
os dados. Nome: Mariana Alves. Idade: 
26 anos. Cor: branca. Estado civil: soltei-
ra. Depois fez uma ligação para o resi-
dencial. Fez três chamadas e ninguém 
atendeu. Também tentou o celular. Caiu 
na caixa postal. Então anotou o endereço 
e decidiu que iria na casa dela ver o que 
tinha acontecido. Iria naquele dia mes-
mo, depois do expediente. Aquela atitude 
o fez regressar à sua própria vida. Era 
como se ele tivesse acordado da letargia. 
Uma vontade de viver passou a vigorar 
dentro dele. O resto do dia ficou olhando 
para o relógio e querendo que as horas 
passassem logo. Ele queria ir até Maria-
na. Talvez salvá-la. Entre um atendimen-
to e outro, Joaquim imaginava como 
seria a vida dela. E se perguntava por que 
ela queria morrer e por que tinha dito 
aquilo para um desconhecido. Tentouprocurá-la nas redes sociais, queria que o 
seu rosto tivesse uma forma. Mas não 
encontrou nada. 
A ssim que o expediente terminou, ele foi para a parada de ônibus. Ma-riana morava num bairro próximo 
ao Centro. Ao chegar na frente do prédio, 
apertou o interfone e ficou esperando. 
Nada. Começou a pensar que o pior já Museu do Futebol
Exposição Temporária 
Rainhas de Copas
Gestão
Patrocínio Máster
Apoio Patrocínio 
Concepção Realização Parceria de Mídia
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tivesse acontecido. Por outro lado, sentiu 
um certo alívio porque não saberia o que 
dizer caso ela atendesse. E se ela achasse 
que Joaquim a estivesse perseguindo? 
E se ela ligasse para a Conecta e fizesse 
uma reclamação? Seu funcionário esteve 
aqui me importunando. Pensou em de-
sistir, mas a vontade de vê-la era maior 
que qualquer ética profissional. Achou 
melhor falar com o porteiro. Interfonou 
para a portaria. Oi, tudo bem, estou ten-
tando falar com Mariana Alves, do 801, o 
senhor poderia me dizer se ela se encon-
tra? O porteiro pediu um minuto, mas 
antes perguntou seu nome. Joaquim, ele 
disse, sou da empresa Conecta, vim fazer 
uma visita técnica. Mostrou o crachá de 
atendente pela câmera de segurança do 
prédio. Arriscou que o porteiro não des-
confiaria de que estava mentindo. Logo 
ouviu o clique de abertura do portão. Ao 
entrar no edifício, ele ainda se pergun-
tava o que estava fazendo ali. Quando 
chegou ao saguão, o porteiro estava inter-
fonando para o apartamento de Mariana. 
Joaquim esperava pelo pior. Na segunda 
tentativa do porteiro, ela atendeu. Dona 
Mari, tem um técnico da Conecta queren-
do falar com a senhora. Ela disse alguma 
coisa e logo em seguida desligou. Dona 
Mari disse que não pediu visita técnica. 
Joaquim preferiu não insistir. Bom, deve 
ter sido um engano, disse, ou talvez ela já 
tenha resolvido o problema. Despediu-se 
do porteiro e já ia saindo quando o inter-
fone tocou. Era Mariana perguntando se 
o técnico ainda estava ali. Meu jovem, a 
dona Mari disse que você pode subir. Joa-
quim entrou no elevador e apertou o 
número 8. Ficou se olhando no espelho. 
Conforme o elevador subia, seu coração 
acelerava, mas ele não poderia parecer 
nervoso. Tentava se tranquilizar. O pré-
dio tinha poucos apartamentos por an-
dar, de modo que foi fácil encontrar o de 
Mariana. Tocou a campainha, em pou-
cos segundos escutou o tambor da fecha-
dura girando, logo o mistério iria se 
revelar. Quando a porta se abriu, Joa-
quim foi surpreendido pela imagem de 
um homem, de uns 30 e poucos anos. 
Era branco, usava barba grande e um 
coque ridículo no cabelo. Estava sem ca-
misa. E aí?, ele disse. Tudo certo? Entra 
aí. Com o olhar, Joaquim procurou Ma-
riana pelo apartamento, mas não a viu. 
O aparelho da Conecta tá ali, disse o ho-
mem, apontando para a estante. Joaquim 
fingiu que sabia o estava fazendo. Abriu 
a mochila como se fosse usar algum ins-
trumento. Pegou um chaveiro porque era 
a única coisa que tinha. Quando se aga-
chou para mexer no aparelho, pôde ver a 
porta do quarto entreaberta. Ao se mover 
mais para esquerda, viu a metade das 
pernas de Mariana, deitada na cama. 
Enquanto isso, o homem na cozinha pa-
recia preparar alguma coisa para comer. 
Joaquim não sabia como fazer para ve-
rificar como Mariana estava. Pensou em 
dizer que precisava conferir a conecti-
vidade no quarto. No entanto, quando 
pensou em dizer isso, Mariana gritou: 
Traz um sanduíche pra mim também, 
amor. Aquela frase o surpreendeu. Talvez 
fosse a prova de que ela estava bem e que 
talvez seu supervisor tivesse razão. O ho-
mem de coque se chamava Juliano, e ao 
voltar para sala disse apenas: Essa empre-
sa de vocês é uma merda, hein? Sempre 
dando problema, fora o atendimento que 
também é uma merda. Joaquim não 
olhou para Juliano, apenas resmungou 
um “pois é”. Esperou mais alguns minu-
tos e disse a Juliano que a situação era 
mais complicada que imaginara e a Co-
necta precisaria mandar outro técnico 
para conferir a conexão. Juliano riu com 
deboche. Depois completou, dizendo que 
ia ligar para cancelar tudo. Joaquim disse 
que tudo bem. Que não seria difícil. Julia-
no ficou olhando para Joaquim e pensou: 
mas que trabalho de merda desse cara, 
nem pra me convencer a ficar com o pla-
no. Em seguida, Juliano abriu a porta, em 
silêncio, para Joaquim ir embora. A porta 
bateu forte. Ao fundo, enquanto esperava 
o elevador, ainda pôde ouvir risadas vin-
das do apartamento. No caminho, ele 
pensou por que fizera aquilo. No entanto, 
algo novo e pulsante reverberava nele. 
A volta para casa foi infernal. Era ple-no mês de março. Importante dizer que o Rio Grande do Sul é um lugar 
de extremos: no esporte, na política, e na 
temperatura não era diferente. O calor 
quase chegava a ser sobrenatural. Em pé 
e apertado no ônibus da linha Jardim 
São Pedro, Joaquim olhava para fora e 
quase poderia ter certeza de que o asfalto 
derretia. Naquele dia, a temperatura che-
gou a 42ºC. Ele estava com sede e suava. 
Aos poucos, começou a sentir um assomo 
de enjoo. Sempre ficava enjoado quando 
era exposto a temperaturas extremas. Já era 
de tardinha, mas o Sol entrava violento 
dentro do ônibus. Algumas pessoas tenta-
vam se defender, usando o que tinham 
para se abanar. Outras apenas aceitavam 
aquela condição e cochilavam, porque 
talvez fosse a melhor coisa a fazer. Joa-
quim estava num lugar caótico indo para 
um lugar caótico. A viagem durava cerca 
de uma hora, isso quando não havia en-
garrafamento na Avenida Assis Brasil. 
Para controlar o enjoo, Joaquim procurou 
desviar a atenção. Ele precisava distrair a 
ânsia. Lançou um olhar pela janela, e o 
cenário da rua também lhe pareceu caó-
tico e triste. Como se não houvesse saída. 
Seus olhos aprisionados. Não era possível, 
ele pensou. Não era possível. Deve haver 
algo de bonito nisso tudo. Não era possí-
vel que a síntese da sua vida era um ôni-
bus cheio num dia insuportável de verão. 
Então, em cada prédio, cada pessoa, cada 
rua que passava, Joaquim empreendia a 
busca por algo bonito que o fizesse doer. 
Não a dor física. Mas uma dor sutil e in-
visível, que o atingisse e o de-
sabrigasse. E naquele ônibus 
suado, com cheiro de gente, 
apinhado de trabalhadores que 
rumavam para suas casas com 
seus sonhos partidos, Joaquim entendeu 
que aquele microcosmo caótico era o ce-
nário que ele tinha. Deve haver alguma 
beleza nessa vida fodida de merda, ele 
pensou. Fechou os olhos. E ele se achava 
um idiota tateando no escuro em busca de 
beleza num ônibus lotado a caminho 
de Alvorada. Era em momentos como 
aquele que a vida se revelava. Ele teve, ali, 
a consciência de que a beleza era a coisa 
mais imprecisa do mundo. Desceu duas 
paradas antes da sua. Precisava se recupe-
rar. Caminhar o devolvia à dignidade. 
Joaquim tinha de chegar inteiro em casa 
porque sua avó precisava do melhor dele. 
Acontece que ele não tinha o melhor de 
si. Ele procurava dar o que tinha, o que 
não era muito. Mas era o que ele tinha. 
Quando chegou, sua tia Rosalva recla-
mou que ele havia demorado, que ela já 
estava atrasada para o plantão no hospital. 
Joaquim pediu desculpas e mentiu que o 
ônibus havia quebrado no meio do cami-
nho. Ela o beijou no rosto e disse que já 
havia da do o remédio das 18 horas. Ago-
ra, os outros, só às 21 horas, não esquece, 
ela disse. Se despediram e Joaquim fe-
chou a porta. Sua avó estava na sala sen-
tada na cadeira de rodas, assistindo tevê. 
E Joaquim disse: Oi, vó. Em seguida ela o 
olhou com certo espanto e perguntou 
quem era ele. Joaquim já estava acostuma-
do com aquela pergunta nos últimos me-
ses. Sou eu, vó, o Joaquim, seu neto, ele 
disse com gentileza. Ser gentil era uma 
das poucas coisas que ainda poderia fazer 
por ela. A avó o olhou novamente, perple-
xa, e perguntou onde estava a mãe dele. 
Para Joaquim era dolorido repetir que a 
própria mãe havia morrido. Mas ele dizia, 
porque sempre era preciso dizer. Depois 
que Joaquim respondia todas as pergun-
tas, sua avóregressava a ela mesma, e o 
reconhecia, e pedia desculpas por não se 
lembrar dele e por ter esquecido da morte 
da própria filha. Não precisa pedir descul-
pas, vó. Às vezes é bom esquecer das pes-
soas que se foram, senão a vida fica 
insuportável. A vó Fininha pôs a mão no 
rosto do neto e disse que Joaquim era mui-
to inteligente e que ela gostava dele. Joa-
quim retribuiu dizendo que gostava dela 
também. Depois ele a colocou na cama. 
A avó Fininha era pequena e magra de 
modo que isso facilitava na locomoção. 
Em seguida, Joaquim tirou a roupa da avó 
e a ajudou a vestir uma camisola. Ajeitou 
o cabelo dela com grampos. Toda essa ro-
tina o incomodava, não apenas porque 
tinha de ver a avó nua, mas porque era ele 
quem fazia aquilo. O neto dela. Era uma 
cena que o fazia doer, porque a velhice é 
sempre uma luta pela dignidade. E pen-
sou que um dia ela fora jovem como ele. 
Deve ter tido sonhos como ele. E com 
assombro percebeu que sabia muito pou-
co de sua avó. Incomodava-o mais ainda 
saber que em breve ela desapareceria. 
E que sua ausência não seria mais notada. 
A não ser por ele e pela tia Ro-
salva. Uma vida inteira de pai-
xões, angústias, perdas e afetos 
desaparecerá, e o mundo segui-
rá ignorando essa vida desperdi-
çada. Foi quando olhou para a mesa onde 
ainda estavam as raquetes. O seu troféu 
por ter batido as metas. Olhou-as atenta-
mente. E por algum motivo sentiu-se de-
samparado, e veio a lembrança daquela 
professora que o reprovara na sexta série. 
Não sentia qualquer rancor por ela, mas 
tinha vontade de um dia encontrá-la e di-
zer que havia se tornado poeta. Um acerto 
de contas, não com a professora, mas com 
ele mesmo. Foi então que Joaquim se le-
vantou, pegou as raquetes, foi até a cozinha 
e jogou-as no lixo. Depois foi para o quar-
to, deitou-se, não sem antes voltar a ler, 
após tanto tempo, o livro Terra Estranha. 
Na manhã seguinte, Rufus e Joaquim fo-
ram juntos para o trabalho, conectados. J
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DE UMA A OUTRA ILHA
Seus poemas nos chegaram
em pedaços
quebrados como vasos de cerâmica
ou conchas espatifadas na praia
 palavras como ilhas 
cercadas de silêncio 
por todos os lados
*
Palavras
em frangalhos
como se também a língua 
tivesse passado
pelo domínio de Eros
 que dilacera
– o quebra-
-membros
– e da fala
 estilhaçada
restasse
um arquipélago
desejo
perfumes
 ] tuas roupas
com certeza um sinal
*
Nascida em Lesbos
é possível que Safo
tenha sido obrigada 
a se exilar na Sicília
com sua família
por volta de 590 a.C.
provavelmente por razões políticas
a décima musa
segundo Platão
de uma a outra ilha
cercada de água e luz
como uma cabeça
por uma grinalda
poesia_ANA MARTINS MARQUES
Quando a fronteira é o mar
movente
verde violento
subindo e descendo
com a maré
quando uma árvore não pode crescer
sobre a fronteira
quando não só a nuvem não só o pássaro
também o peixe pode atravessá-la
e uma jovem com os cabelos
flutuantes
num colete salva-vidas
que não atendia
às normas de fabricação
*
Em 2015
cerca de 800 mil refugiados
em sua maioria sírios e iraquianos
transitaram por Lesbos
com a esperança de chegar aos países
da Europa setentrional
As praias de Molinos, Etfalou
e Skala Sikamia
ficaram cobertas
de coletes salva-vidas
*
O mar não escolhe entre a nau
e o naufrágio
como para a primavera é indiferente 
o mel ou a abelha
*
Milhares de imigrantes dormiram ao relento 
na ilha grega de Lesbos 
depois que um incêndio arrasou 
seu acampamento
deixando-os sem ter para onde ir.
Segundo o governo grego, o incêndio 
foi causado pelos próprios imigrantes 
em protesto contra a quarentena imposta 
para impedir a transmissão do coronavírus.
Autoridades da Grécia transferiram 
mais de 400 crianças e adolescentes 
desacompanhados 
para o território continental 
em três voos fretados.
Uma menina congolesa de 8 anos 
chamada Valencia, que estava descalça, 
gesticulou para um repórter da Reuters 
para demonstrar que estava com fome 
e pediu um biscoito.
Nossa casa pegou fogo,
meus sapatos pegaram fogo 
não temos comida nem água.
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Existem muitos modos de guardar
escrever embalsamar gravar
mas também: esquecer abandonar
estilhaçar
*
Uma coisa é incendiar-se o coração
outra coisa, incendiarem-se os sapatos.
*
 quase tudo perderam
mas não a memória do tempo
em que algo ainda tinham
e a carregam consigo
como um segundo coração
enraizados na errância
 e com quase só as vagas
por valises
*
Escrita no papiro
que é planta
ou na cerâmica
que é terra
copiada por um colegial distraído
ou citada por um gramático
como um exemplo do uso 
de advérbios negativos
a mesma palavra muda
quando muda
seu modo de chegar?
*
[ ] será preciso então
quebrar-se
para que se produza
uma mínima canção
queimar por um só poema
incompleto e imprestável
 sua pequena chama
Às vezes parece possível
colocar sobre uma mesma mesa
uma lira e um colete salva-vidas
uma concha e um isqueiro
um poema e um passaporte
uma guirlanda de flores
uma pedra vulcânica
dinheiro, celular, cigarros
mas não é bem assim
o passado
não é uma mesa
é antes um sótão
um armário
com gavetas
incrustadas 
em você, no mundo
encravadas na carne
nos livros nos dias
já estava assim
quando cheguei
o mundo
mobiliado
*
[ ] e não parece estranho
que o próprio mar
não enlouqueça?
ao contrário resta quieto
como um hospital
mais antigo que os papiros
que as árvores calcinadas
pintado de azul nos mapas
como os mantos
das estátuas
*
Aconteceu de as coisas se destruírem 
mas que algo delas não se destruísse.
Aconteceu de os lugares se espatifarem contra o tempo 
mas que algo deles perseverasse no tempo.
Aconteceu de algo acontecer 
deixando um rastro do acontecido.
Aconteceu com uma pegada de animal,
com o resto de um rosto num pano esgarçado, 
com pentes, panelas, uma unha de urso.
Aconteceu com o que mais se amou e com o que menos se amou 
e com o mais útil e com o mais inútil 
e com uma árvore e com um camundongo e com um coral
e com uma pedra e com um pneu e com um poema. J
Poemas extraídos da plaquete De Uma a Outra Ilha, a ser lançada em 
junho na coleção Círculo de Poemas, publicada pelas editoras Luna 
Parque e Fósforo.
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poderiam ter colocado a frase de Lour-
des Barreto mais próxima dos lábios da 
imagem. Trocaria com a frase que cha-
ma a matéria de João Batista Jr. (Tesão 
doido). No texto, ao menos a química 
ficou retratada mais próxima do que 
realmente é, fazendo jus ao uso de subs-
tâncias que impactam no sexo. Bem 
diferente do falso jargão “a química en-
tre nós” para denotar proximidade, uma 
vez que a existência de substâncias distin-
tas só é possível porque ocorre repulsão 
entre os átomos. Se tudo fosse atração, 
haveria apenas um único tipo de subs-
tância. Fica a dica! 
Sigo na interlocução, agora com os 
demais missivistas, assumindo que é per-
mitida, certo? Dos milhares de leitores, 
entre meia dezena e uma dúzia apare-
cem mensalmente aqui. Privilégio de 
uma forte seleção, imagino. Júlio Emílio 
Braz relata sua descoberta de Lima Bar-
reto (Cartas) e espero que ele leia tudo, 
inclusive os inéditos, acerca do preferido 
preto preterido da Academia Brasileira 
de Letras. Por fim, Xuxa, quem diria, 
tornou-se cult e cultuada. Tiago Coelho 
conseguiu fazer um perfil amplo (Ela 
está em paz) em que se pôde saber um 
pouco mais sobre a Rainha dos Baixi-
nhos para além das atividades imbecili-
zantes à infância e da vida de modelo e 
namorada de outras celebridades.
ADILSON ROBERTO GONÇALVES_CAMPINAS/SP
A EXTREMA DIREITA
João Gabriel de Lima, na reportagem 
A internacional da ultradireita (piauí_199, 
abril) traçou um panorama da atuação 
da extrema direita naEuropa, focando 
especialmente em Portugal e Espanha, 
onde partidos como Chega!e Vox torna-
ram-se a terceira força política em seus 
países, provocando uma séria ameaça à 
democracia na Península Ibérica.!A Eu-
ropa, que tanto sofreu com o fascismo e 
o nazismo, está sendo seduzida por um 
populismo nacionalista, que teme as imi-
grações. Se no passado o bode expiatório 
era o judeu, agora pretendem fechar suas 
fronteiras, esquecendo-se que as potên-
cias colonialistas foram!as que provoca-
ram os problemas atuais na exploração 
da África e na partilha do que restou do 
Império Otomano no Oriente Médio, 
criando nações fictícias e seus governos 
fantoches. Agora estão sentindo a volta 
do cipó de aroeira, como na música do 
Geraldo Vandré.
DIRCEU!LUIZ NATAL_RIO DE JANEIRO/RJ
CLUBISTAS DA ESQUINA
Em uma edição recente da piauí, vi 
uma carta comentando que a seção Es-
quina talvez fosse a mais “esquecível” 
da revista. Meu colega que me perdoe, 
mas me permita discordar.
Quando comecei a ler a piauí, nosso 
país estava iniciando sua lenta caminha-
da para o vale da sombra, do qual esta-
mos tentando sair a passos lentos. Eu não 
era assinante, mas lia esporadicamente 
quando minha mesada de estudante se-
cundarista permitia, e na faculdade tive 
o privilégio de contar com a assinatura 
da revista na biblioteca. A seção Esquina 
sempre foi a que mais me chamou a aten-
ção. Em meio às notícias de derrocada 
socioeconômica, dissolução social, histó-
rias de crimes notórios, feitos de grandes 
figuras, críticas literárias e excertos de li-
vros, percebia que a seção trazia algo de 
distinto, e não era só por causa de seu 
tamanho mais enxuto. Havia também 
uma certa sensação de calma. Entre tan-
tas grandes histórias, a Esquina se desta-
cava com sua cobertura singela de fatos 
cotidianos, que sempre impressionavam 
por seu caráter extraordinário. O recado 
era: líderes podem ascender e cair, sím-
bolos podem ser criados e destruídos, 
sociedades podem surgir e desaparecer, 
os bons tempos podem chegar e partir. 
Ainda assim, a vida continuará. 
Isso me fazia voltar à razão e não ceder 
ao catastrofismo. Eu me lembro de mui-
tas notícias que li na Esquina: a cozinha 
rastafári numa comunidade belo-hori-
zontina, o mordomo homossexual dos 
príncipes árabes, a menina que sonhava 
com a Medalha Fields e foi estimulada 
por seu ídolo, e o senhor Yamashita, que 
escutava seus legumes. Enquanto isso, 
grandes reportagens que li já caíram no 
esquecimento, ao contrário das esquinas, 
das quais me lembro em detalhes.
Além de contar as histórias mais exó-
ticas, as esquinas têm sempre as lindas 
ilustrações de Andrés Sandoval. Essa 
seção tão essencial para a identidade da 
revista não deve ser tomada por irrele-
vante apenas porque as pessoas não se 
manifestam muito sobre ela. Enquanto 
as reportagens mais longas podem nos des-
pertar mais paixões, a Esquina nos traz 
de volta à terra firme e nos provoca uma 
atitude mais contemplativa em relação 
à passagem do tempo.
RODRIGO BARCELLOS MENDES_SÃO PAULO /SP
!"#$ % &"'$ '$ ESQUINA: Já não era de 
hoje que a indignação consumia Rodrigo 
Barcellos Mendes. Morador de São Pau-
lo, Mendes gostava de pedalar pela Ave-
nida Paulista e pelo Centro aos domingos, 
para observar, com raiva, os edifícios al-
tos. “Por que dão tanta atenção ao Edi-
fício Itália e nenhuma à Cantina Itália, 
que serve o melhor polpetone da cida-
de?”, questionava-se. “Por que tantas fotos 
do Edifício Banespa e nenhuma da agên-
cia do Banespa que ficava na esquina da 
minha casa? Só por ela ser menor?” Men-
des sabia que líderes podem ascender e 
cair, símbolos podem ser criados e des-
truídos, sociedades podem surgir e desa-
parecer, os bons tempos podem chegar e 
partir. Mas ainda assim, a vida continua-
ria. E era na Cantina Itália e na ex-agên-
cia do Banespa que a vida acontecia. 
XUXA
Xinguem-me até, se for o caso, mas estou 
com Drummond, em seu livro de máxi-
mas O Avesso das Coisas, quando diz que 
um quinhão do prestígio de Kafka vem 
do fascínio despertado pela letra !. Par-
te do prestígio de Xuxa vem do fascínio 
do ", e a matéria Ela está em paz, de Tia-
go Coelho (piauí_199, abril), se aproveitou 
bem dessa “verdade” quando usou o " em 
várias de suas capitulares.#Mas outras ra-
zões do fascínio também estão lá, delicio-
samente apresentadas. Lembro-me de 
que, criança, consultando a Enciclopédia 
Barsa na escola, me deparei com um pe-
queno verbete dedicado a Xuxa. Confes-
so que me causou estranhamento. Não 
que eu não a curtisse, que não tivesse al-
guns de seus $%s. Mas vê-la ali, naquela 
obra dedicada a filósofos e escritores, 
me pareceu exagero. Lendo a matéria de 
Coelho, hoje, percebo o quão acertada foi 
a decisão daquela obra de referência. E o 
que faltou no verbete, tão reduzido, Coe-
lho nos oferece agora. Vejo que a história 
de Xuxa é também a história do Brasil, ou 
a história de um povo cuja vida não é 
sempre um mel/que escorre da boca feito 
um doce, mas que também tem isso. 
Quanto às dores, quem não sabe que é 
necessário decidir ser invencível a cada 
dia? Talvez seja essa a percepção expressa 
na Lua de Cristal. Ao fim da leitura, por 
que negar que desempoeirei meus $%s e 
me pus a dançar? A piauí mostrou que 
aquele " no coração não estava tão apaga-
do quanto pensávamos.#
ALEX SANDER LUIZ CAMPOS_ SANTO ANTÔNIO DO RETIRO/MG
!"#$ ()(*+,$ '$ -*'$./": Tumba-
lacatumba tumba tá. Tumbalacatumba 
tumba tá.
O ERETO
Já de muito, algumas dúvidas me assom-
bram. Será que Ereto da Brocha (O cro-
nista misterioso do Itamaraty, piauí_171, 
dezembro de 2020) ou Ernesto Araú-
jo (A escolinha do professor Ernesto, 
piauí_199, abril) passaria sem restrições 
por um simples eletroencefalograma? 
Como alguém assim conseguiu ingres-
sar na nossa carreira diplomática?
LUIZ ALBERTO DOS REIS GONÇALVES_NITERÓI/RJ
CARTUNS
Os cartuns de Caco Galhardo (piauí_199, 
abril) nos dão um panorama do passado e 
presente da humanidade empedernida em 
seu desdém quanto ao futuro. 
É muito comum a justa crítica ao capi-
talismo e aos economistas que montaram 
uma dinâmica de crescimento infinito 
num mundo finito; no entanto, a maior 
parcela de culpa é dos ecologistas que nun-
ca tiveram a coragem de dizer que a única 
saída é diminuir a população, enquanto 
todas as projeções indicam aumento.
Qualquer espécie que tenha alimen-
to e não tenha predador se torna uma 
CONSELHO DA CIGANA
Assim que coloquei a piauí_199, abril, na 
mesa de casa, a Cigana que me protege 
baixou e mandou cortar a capa da revista, 
enrolar e queimar no quintal. Depois eu 
podia ler sem susto o conteúdo. Ela pediu 
pra dizer que aconselha todos os que se 
sentirem incomodados com o olhar da 
moça a fazerem o mesmo, pois na sua ino-
cência criativa o artista configurou um 
portal para certa neoentidade da falange 
das trevas que se nomeia Pastora Crente 
espalhar maldade e intriga nos lares dos 
leitores mais sensíveis e desavisados. 
Foi a primeira vez que mutilei um nú-
mero da revista. Espero que seja a última. 
Comprei o número 0 na extinta banca da 
esquina do extinto Centro Cultural da Cai-
xa no extinto Centro do Rio, em setem-
bro de 2006, e o número 1 numa banca 
pra turista na orla da Praia de Jatiúca, 
Maceió, onde fui trabalhar com a regu-
larização fundiária de um território qui-
lombola na área da Serra da Barriga. Os 
primeiros 24 números ficaram por lá, na 
casa de amigos que tão bem me acolheram 
no atávico Alagoas. Na volta para Niterói 
assinei por um tempo, mas nem sempre 
chegava, então passei a comprar nas ban-
cas que restaram. 
Uma vez tive que explicar pra um 
professor de antropologia, que não co-
nhecia a revista e foi procurar onde es-
tava a “matéria da capa”, que a “capa” é 
em si mesma a matéria, ou é uma espé-
cie de metamatéria ou o totem astroló-
gico do mês, digamos assim. 
MÔNICA CAVALCANTI LEPRI_NITERÓI/RJ 
DA LOIRA AO NEGRO
A piauí0chega à edição de número 200, 
parabéns! Vamos ver com qual capa nos 
presenteiam. Na capa da#piauí_199, abril, 
Caio Borges

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