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AULA 1 JUSTIÇA E CÍRCULOS RESTAURATIVOS Profª Ane Elise Brandalise Gonçalves 2 INTRODUÇÃO Olá! Neste estudo, analisaremos a justiça e os círculos restaurativos, explanando a teoria e a prática da Justiça Restaurativa e os processos e instrumentos presentes, a exemplo maior dos círculos de construção de paz desenvolvidos por Kay Pranis. Inicialmente, para uma compreensão geral da Justiça Restaurativa, é imprescindível proceder à reflexão da sociedade contemporânea em que estamos inseridos e do papel e das necessidades dos indivíduos nessa estrutura social. Mais especificamente analisaremos a sociedade e a busca pela harmonia, pela paz e como se dá a questão entre sociedade e justiça, com ênfase nos estudos pertinentes à sociedade brasileira. Na sequência, elucidaremos que a Justiça que estamos a tratar é aquela que encontra significado de valor universal aos seres humanos, em combate às injustiças e ofensas perpetradas, sem deixar de lado que este significado plural de Justiça também possui correlação direta com o Poder Judiciário, dado que se constitui o principal agente estatal na resolução de conflitos. Nessa perspectiva, verificaremos as convergências e divergências entre a Justiça Restaurativa e a Justiça Retributiva, elucidando que não se tratam de conceitos contrapostos, mas, sim, apresentam-se como alternativas e escolhas a serem feitas. Após, faremos breves reflexões sobre a compreensão e oitiva da vítima, do ofensor e da comunidade. Por fim, analisaremos o papel da ética e da construção de responsabilidades em prol da Justiça. O objetivo geral desta etapa é refletir sobre a possibilidade concreta de convivência harmônica e pela paz em uma sociedade complexa e plural, mas na qual encontra o combate às injustiças um valor universal. Esperamos que você aproveite este material. Bons estudos! TEMA 1 – ENTENDENDO A SOCIEDADE EM QUE SE ESTÁ INSERIDO A humanidade, desde os tempos primórdios, não consegue viver isolada, sendo importante a vida em comunidade e em sociedade. Como já dizia o filósofo grego Aristóteles: o homem é um ser social, afinal, é um animal que precisa dos outros membros da espécie (Aristóteles, 1998). Assim, mesmo que algumas pessoas prefiram o isolamento e não sejam tão afeitas à vida social, não é possível realizar todas as atividades e exercer todo 3 o potencial humano sozinhas. Além disso, conforme lembra Kay Pranis, “todos os seres humanos têm um profundo desejo de estarem em bons relacionamentos” (Pranis, 2010, p. 24). Saiba mais O filme As vantagens de ser invisível (2012), baseado no livro homônimo, demonstra, de forma leve e reflexiva, a importância das relações sociais e das diversas formas de tratamento entre os jovens, no ambiente escolar. O filme conta a história fictícia de Charles, um jovem tímido que se esconde até conhecer dois amigos que o ajudam a viver novas experiências. Embora esteja feliz nessa nova fase, ele deve continuar a viver com traumas do seu passado. Vale refletir a respeito da importância da sociabilidade, do apoio entre pessoas próximas e de como os jovens podem lidar com questões conflituosas. Informações do filme: As Vantagens de Ser Invisível; Romance/Drama; 1h 45m. Direção de Stephen Chbosky. Disponível nas principais plataformas on-line, em inglês e em português. A compreensão da justiça enquanto valor relevante à humanidade pressupõe, pois, a ideia da possibilidade de convivência harmônica entre indivíduos plurais, com ideias, histórias e vontades diversas (Pranis, 2010; Zehr, 2008). Porém, vivemos atualmente em uma sociedade marcada pela lógica da competição e caracterizada pelo individualismo (Brancher, 2006; Zehr, 2012). Nessa perspectiva, ficam as seguintes perguntas para nossa reflexão: como nós, enquanto parte da sociedade, nos portamos diante de injustiças? Será possível convivermos em harmonia e paz com membros tão diversos? (Zehr, 2012). 1.1 A sociedade e a possibilidade de convivência harmônica e pacífica Os seres humanos não conseguem viver em estado perene, perpétuo, de guerra e de violências, tendo-se a necessidade de manutenção da paz e da harmonia uns com os outros (Pranis, 2010). Não obstante se reconheça a paz como um valor universal, diante de tanta pluralidade de pensamentos, de sonhos, de filosofias e de ideais, tem-se que os conflitos nem sempre são armados, mas podem significar atritos presentes no cotidiano. Por isso mesmo, é preciso analisar como os conflitos são geridos e de que modo podemos lançar um novo olhar para sociedade, em prol da justiça. 4 De forma tradicional, tem-se que os conflitos são solucionados pelo Estado, via Poder Judiciário. Neste, diante de casos de infração da norma e dos deveres necessários, há uma punição em resposta, proporcional à ofensa realizada (Brancher, 2006; Pinto, 2009). Contudo, verificou-se ao longo do tempo que essa forma de justiça, feita sob uma lente retributiva (Zehr, 2008), culminava muitas vezes por não resolver as situações de violência e de violação de direitos perpetradas pelo ofensor. Seria necessário um esforço a mais, em uma verdadeira troca de lentes sobre a justiça, contando com a oitiva e a participação da própria vítima e análise, também, do ponto de vista do ofensor. Ora, as injustiças não pressupõem apenas uma questão de interesses distintos ou de luta, mas impõem uma reavaliação dos papéis exercidos pelos indivíduos na sociedade e em comunidade e um reconhecimento de responsabilidades. Por outro lado, práticas e instrumentos restaurativos diversos, implementados pelo Estado ou mesmo pela própria comunidade, demonstram que a paz e a harmonia na sociedade não é algo utópico, mas é algo possível a ser alçado, ainda que tais processos sejam complexos. Tais aplicações exigem, ainda, uma análise multi e interdisciplinar (Santos, 2014), pautada por princípios axiológicos e valores relevantes para todo ser humano, mas com atuação difusa e capilarizada na sociedade (Zehr, 2012). Saiba mais Veja o rápido vídeo curto, no YouTube, sobre os princípios guiadores da Justiça Restaurativa no Brasil. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=BiuwK7Fy4ms>. Acesso em: 11 jun. 2022. A sociedade contemporânea, apesar de impor novos desafios e novos dilemas, traz oportunidades múltiplas de diálogo e de compreensão, ao invés de batalhas sem solução prática. É o que devemos prezar, com propostas em prol da reparação nos casos de ofensas a direitos de outrem. TEMA 2 – A JUSTIÇA ENQUANTO VALOR SOCIAL E O PODER JUDICIÁRIO A sociedade atual é complexa, com variadas questões que perpassam pelo sentimento de justiça ou de injustiça (Zehr, 2012) e pela necessidade de união da humanidade pela paz, via cooperação (Pranis, 2010). Nesse sentido, estudar a 5 Justiça Restaurativa implica trazer ao diálogo o que entendemos por justiça e qual é a sua importância na atualidade. Ora, diversas são as ofensas perpetradas em sociedade, o que ocasionam diferentes reações e respostas por parte das vítimas e dos demais envolvidos. Além disso, vários são os sentimentos diante de injustiças, fazendo-nos questionar qual o nosso papel e qual é o papel do Estado diante dessas ofensas e dos conflitos que nos atingem direta ou indiretamente (Zehr, 2012). Por certo, não há um conceito exclusivo ou imutável do que seja a justiça, apesar de toda humanidade reconhecer sua importância e sua necessidade de observação, pois não há pessoa alguma que queria viver sob o manto de injustiças para si ou sob uma estrutura social de diuturnos conflitos e sem qualquer segurança mínima de convivência. 2.1 Justiça como valor universal e como instrumento prático É de se notar que a justiça que estamos a tratar aqui pode ser vislumbrada tanto como um valor maior e universal, inerente à humanidade, como pode ser estudada sob o prisma doPoder Judiciário, instituição responsável pela resolução dos conflitos e pelo uso da força, nos casos previstos em lei. De todo modo, é importante notar que a justiça, seja enquanto valor ou enquanto instrumento, pode e deve estar presente em todas as áreas da vida humana em sociedade. Na atualidade, sobressaem práticas e instrumentos que tomaram a nomenclatura de restaurativas (Zehr, 2012), por visarem trazer à tona o diálogo e a análise das responsabilidades individuais e coletivas em prol de soluções concretas e que visem satisfazer as necessidades básicas das pessoas. Nessa perspectiva, a Justiça Restaurativa apresenta-se como uma alternativa à análise das resoluções do conflito, chamando para si a participação dos indivíduos e da sociedade no diálogo da questão posta e das respostas possíveis. Conforme explica Zehr (2012, p. 24), a “Justiça Restaurativa amplia o círculo dos interessados no processo (aqueles que foram afetados ou têm uma posição em relação ao evento ou ao caso) para além do Estado e do ofensor, incluindo também as vítimas e os membros da comunidade”. Cuida-se de uma via alternativa e uma resposta ao sistema tradicional de resolução de conflitos, que foi (e ainda é, em variados casos) marcado pela competição, pelo estímulo ao litígio e pelo desencorajamento da conciliação (CNJ, 2017). Tal sistema tradicional parecia relegar ao Juiz o papel de condenar ou não 6 condenar uma ofensa, cuja resposta, em realidade, iria muito além de uma decisão judicial, pois influenciaria de diversas maneiras uma pessoa, uma comunidade e toda uma sociedade (Zehr, 2008; Brancher, 2006). Para Zehr (2012, p. 49), um dos principais teóricos a respeito do assunto, a Justiça Restaurativa pode ser assim conceituada: Justiça Restaurativa é um processo para envolver, tanto quanto possível, todos aqueles que têm interesse em determinada ofensa, num processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na medida do possível. Portanto, a Justiça Restaurativa trabalha com o viés não apenas do acusador, mas também analisa o papel da vítima, o papel do ofensor e também o papel da comunidade para fins de restauração da ofensa já perpetrada e recuperação social do ofendido, bem como em prol da prevenção de novos conflitos semelhantes (CNJ, 2017). A Justiça Restaurativa busca a paz social e harmônica entre indivíduos tão plurais e em uma sociedade tão complexa quanto é a nossa nos dias atuais (Pranis, 2010). Assim, além da reparação em si, há um papel transformador sobre os indivíduos e sobre o próprio ofensor (Pranis, 2010) e um empoderamento das vítimas para que possam seguir em frente (Zehr, 2012). Na prática, a Justiça Restaurativa se faz presente por meio de variadas formas e instrumentos, não havendo um modelo único ou exclusivo de aplicação dos ideais da Justiça Restaurativa (Pranis, 2010; Zehr, 2012; CNJ, 2017). No âmbito do Poder Judiciário Brasileiro, por exemplo, já é possível notar considerável avanço no uso da Justiça Restaurativa nas demandas relacionadas à Família, Infância e Juventude, na apuração de atos infracionais cometidos por adolescentes e na esfera dos Juizados Especiais Estaduais ou Federais. Saiba mais O caso Elmira (The Elmira Case) é reconhecidamente um dos marcos iniciais do uso intencional, programado e planejado da Justiça Restaurativa, por meio do uso da mediação penal entre vítima e ofensor, feita no Canadá, no povoado de Elmira — local que sofreu, no ano de 1974, com atos de vandalismo e de dano perpetrados por dois adolescentes. O caso e o uso da Justiça Restaurativa pode ser visto por meio do documentário-filme The Elmira Case (O Caso Elmira) (2015), em inglês, com legendas em português. Sobre o documentário, confira a rápida explanação. 7 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=i7FB45OnmOM>. Acesso em: 11 jun. 2022. Ademais, é importante ressaltarmos que a Justiça Restaurativa pode estar presente no Poder Judiciário, em determinados casos, bem como pode ser a via implementada em locais como o trabalho e as escolas (Santos; Gomide, 2014), das mais diversas maneiras, a exemplo maior do uso da comunicação não violenta e da promoção dos círculos de paz (Pranis, 2010). Não obstante tratar a Justiça Restaurativa de um modelo aberto e em constante construção, não se cuida de tema sem estudos ou com fórmulas simples ou “mágicas”. Tampouco trata-se de simplesmente conceder um “perdão” ao ofensor e de se ter ausência de reconhecimento de responsabilidades, conforme observa o escritor Howard Zehr, um dos principais teóricos a respeito da Justiça Restaurativa (Zehr, 2012). Ademais, esclarece o mesmo autor que há de se averiguar as peculiaridades do caso concreto, pois a Justiça Restaurativa nem sempre será o melhor caminho a ser adotado. Além disso, sob o ponto de vista do acusado, a Justiça Restaurativa não deve ser a única via para ressocialização do ofensor e não é a alternativa única ou exclusiva ao aprisionamento (Zehr, 2012, p. 1-23). A Justiça Restaurativa, em realidade, apresenta-se como convite aberto a todos, a fim de repensar o próprio funcionamento da sociedade e dos problemas vivenciados. Por isso mesmo, é essencial proceder aos estudos focados na Justiça Restaurativa em suas variadas dimensões e possibilidades, de modo a permitir um diálogo e uma via alternativa ao sistema de resolução de conflitos tradicionalmente aplicado. Fique tranquilo, é o que analisaremos ao longo desse estudo. TEMA 3 – JUSTIÇA RESTAURATIVA E JUSTIÇA RETRIBUTIVA Infelizmente, vivemos em um momento e em um país em que muitos falam de crise generalizada e crise do sistema judiciário, vez que este se mostra cada vez mais incapaz de prevenir e de resolver os conflitos e os delitos decorrentes, assim como não se mostra completamente hábil a considerar as dores vivenciadas pela vítima nem a ser via apta ao reconhecimento de autorresponsabilidade por parte do ofensor (Brancher, 2006; Zehr, 2008). 8 Há um sentimento generalizado de impunidade e de não ressocialização do ofensor, por mais que tenhamos leis penais rigorosas e um sistema penal que cada vez mais aprisiona (Pinto, 2009). Neste sentido, basta analisarmos os casos criminais e as situações prisionais, nas quais falar em ressocialização das pessoas privadas da liberdade parece um ideal sem muitas possibilidades de concretização (Brancher, 2006). Além disso, as vítimas por vezes ainda sofrem muito com o ocorrido, não tendo informação sobre o processo criminal nem obtendo voz para que se considere seu ponto de vista e suas necessidades (Zehr, 2012). Ainda, não raro, por vezes sequer os crimes sofridos pelas vítimas chegam ao conhecimento das autoridades judiciárias, por variadas razões, incluindo o julgamento moral da própria sociedade e das consequências sofridas dentro da comunidade. São os crimes denominados de cifras negras ou cifras ocultas. Saiba mais O filme Spotlight – segredos revelados (2015), baseado em fatos reais, aborda uma investigação jornalística que revelou severos crimes de abuso sexual de crianças e adolescentes cometidos por padres. A obra conta depoimentos de vítimas e um extenso levantamento de informações a respeito de julgamentos. É interessante notar como as vítimas e suas famílias, aliadas à imprensa, sofrem com os crimes cometidos e nos quais muitos sequer chegaram a conhecimento por parte do Poder Judiciário. Informações: Spotlight; Direção de Tom McCarthy. Disponível nas principais plataformas de streaming. Por outro lado, não se pode deixar de acreditar na justiça enquanto um valor axiológico relevante para toda a humanidade. Sem a justiça, o mundo não tem como avançar. É neste diapasão que a antiga lógica clássica retributiva,que, como o próprio nome diz, possui como fim retribuir o mal ocasionado pelo ofensor, passa a ser reanalisada e refletida. Passa-se a verificar alternativas possíveis de implementação, em prol da paz e da efetiva resolução de conflitos e que ganham a denominação de Justiça Restaurativa. Inclusive, vale frisar que a Justiça Restaurativa não é propriamente uma novidade, já restando, desde muito, presente em comunidades nativas, como em 9 regiões povoadas por tribos no Canadá e por comunidades na Nova Zelândia (Zehr, 2012). Por isso mesmo, vale conhecermos as duas principais lentes de análise da justiça (Lentes restaurativas e Lentes retributivas) e dos papéis do Poder Judiciário e dos envolvidos em um conflito. 3.1 Lentes restaurativas e lentes retributivas A Justiça Restaurativa apresenta-se como uma alternativa às formas tradicionais de resolução de conflitos, denominadas de Justiça Retributiva. Na formatação clássica de sociedade, com resquícios até os dias atuais, os conflitos são geridos pelo Estado, por meio do Poder Judiciário, que pune, por meio de um processo regrado, aquele que infringe as normas (Brancher, 2006; Pinto, 2009). Já a Justiça Restaurativa traz à lume os papéis da vítima, do ofensor e da participação da comunidade para resolução do caso. Para simplificar tais conceitos, assim explana Zehr (2008, p. 9): • Justiça Retributiva: o crime é uma violação contra o Estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre ofensor e Estado, regida por regras sistemáticas. • Justiça Restaurativa: o crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança. O que diferencia a Justiça Retributiva e a Justiça Restaurativa, pois, é a lente com a qual vai ser analisada a ofensa e os pontos de partida de análise (Zehr, 2008). Conforme visto, a Justiça Restaurativa apresenta-se não como uma retribuição e uma punição do mal ocasionado, mas, sim, como uma alternativa e reanálise dos papéis exercidos pelo ofensor, pela vítima e pela própria comunidade. No Brasil, a Justiça Restaurativa já vem sendo implementada gradualmente no âmbito judiciário, em demandas infracionais de adolescentes e causas atinentes à família ou aos Juizados Especiais, obtendo respostas positivas em prol das vítimas e das necessidades dos indivíduos. Como exemplo, podemos mencionar que de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), segundo dados divulgados, 23,9% dos adolescentes que cometeram atos infracionais 10 retornaram ao menos uma vez ao sistema socioeducativo no período entre janeiro de 2015 e junho de 2019. De outro lado, quando observado o sistema prisional, contemplando, portanto, os indivíduos com 18 anos ou mais de idade, a taxa de retorno ao sistema atingiu o patamar de 42,5%1. Ou seja: a pesquisa demonstra que a reincidência no sistema socioeducativo para adolescentes infratores, no qual há mecanismos de Justiça Restaurativa, é menor do que no sistema prisional, guiado, regra geral, pela ideia de Justiça Redistributiva. Por outro lado, é importante frisarmos que não temos até o presente momento um sistema judiciário completamente centrado na Justiça Restaurativa, apresentando-se esta muito mais como um viés adicional, e não como algo contraposto. Nesse sentido, conforme explica Zehr (2012, p. 71), “a retribuição e a restauração não são polos opostos como em geral se presume. Na verdade, as duas modalidades têm muito em comum”. A respeito, quanto às semelhanças e aproximações, tem-se que tanto a Justiça Retributiva quanto a Justiça Restaurativa reconhecem que o mal ocasionado tende a desequilibrar as relações sociais e deve ser objeto de respostas (Zehr, 2012). Além disso, ambas reconhecem a importância da proporcionalidade no combate às injustiças2. Em suma: as palavras-chaves da Justiça Restaurativa, pois, podem ser definidas em atendimento de necessidades; participação; restauração; empoderamento, cooperação — todas carregadas de significações positivas em prol dos indivíduos e de toda sociedade. Já a Justiça Redistributiva foca na lei, na retribuição do mal ocasionado, na punição do ofensor. 1 Relatório disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/Panorama-das- Reentradas-no-Sistema-Socioeducativo.pdf>. 2 Sobre o assunto, no meio jurídico: <https://www.conjur.com.br/2021-out-05/andre-callegari- direito-penal-proporcionalidade>. 11 TEMA 4 – NECESSIDADES E PAPÉIS DA VÍTIMA, DO OFENSOR E DA COMUNIDADE PARA JUSTIÇA RESTAURATIVA A Justiça Restaurativa apenas se faz possível se contar com a participação efetiva das partes (ofensor-vítima) e da comunidade, assim como do Estado, em reconhecimento de seus papéis e necessidades, bem como no senso de autoavaliação e de autorresponsabilidade pelos atos ocasionados (Zehr, 2012). Lembra Kay Pranis, neste sentido, que todos nós estamos interligados uns com os outros, de modo que as injustiças que ocorrem com uns culminam por impactar toda a sociedade (Pranis, 2010). Assim, a atuação conjunta e guiada pela cooperação, em prol da paz e da convivência harmônica e pacífica em sociedade, pode trazer benefícios à própria natureza humana e ao combate aos diversos problemas sociais que nos cercam. A criatividade e o comprometimento humano são nossos maiores tesouros e nossa maior esperança (Pranis, 2010). Ainda, é relevante notar que tal comprometimento humano deve estar atrelado ao atendimento, por parte da justiça, de necessidades básicas desses atores (Zehr, 2012). 4.1 Vítima, ofensor e comunidade em prol das lentes restaurativas Todos nós exercemos variados papéis na sociedade e com os nossos próximos. Somos pais/filhos, vizinhos, estudantes/professores, consumidores, etc. Por isso mesmo, estudar os atores em prol das lentes restaurativas impõe reconhecer uma ampliação do círculo de interessados no processo tradicional, bem como impõe a verificação das necessidades e de tais papéis exercidos pelos envolvidos e interessados (Zehr, 2012). Em especial, a Justiça Restaurativa visa abarcar, em oitiva e análise, os papéis da vítima, do ofensor e da própria comunidade envolvida. Quanto à vítima, na perspectiva tradicional, o “crime é definido como ato cometido contra o estado, e por isso o Estado toma o lugar da vítima no processo. No entanto, em geral, as vítimas têm uma série de necessidades a serem atendidas pelo processo judicial” (Zehr, 2012, p. 25). Já na Justiça Restaurativa, quatro tipos de necessidades ganham enfoque, quais sejam (Zehr, 2012, p. 25- 26): • Informação; • Falar a verdade; 12 • Empoderamento; • Restituição patrimonial ou vindicação. Quanto ao ofensor, ao seu turno, é importante que reconheça as suas responsabilidades. Tal tarefa, contudo, não é estimulada pelo processo tradicional, pois neste o réu defende seus próprios interesses (Zehr, 2012). Por outro lado, a Justiça Restaurativa mostra-se uma via apta a trazer a conscientização sobre os limites legais e sobre os passos necessários à reparação (Brancher, 2006; Zehr, 2012). Segundo Zehr (2012, p. 28), o ofensor também possui necessidades a serem atendidas pela Justiça, quais sejam: • Responsabilização que cuide dos danos resultantes, que estimule a empatia e a responsabilidade e que transforme a vergonha. • Estímulo para experiência de transformação pessoal, incluindo a cura dos males que contribuíram para o comportamento lesivo, as oportunidades de tratamento para dependências químicas e/ou outros problemas e o aprimoramento de competências pessoais. • Estímulo e apoio para reintegração à comunidade. • Para alguns, detenção, ao menos temporária. Por fim,os membros das comunidades também exercem papéis relevantes na reparação e na prevenção de novos conflitos. Suas necessidades perante a justiça seriam (Zehr, 2012, p. 29): • Atenção às suas preocupações enquanto vítimas; • Oportunidades para construir um senso comunitário e de responsabilidade mútua; • Estímulo para assumir suas obrigações em favor do bem-estar de seus membros, inclusive vítimas e ofensores, e fomento das condições que promovam convívio saudável. Conforme se nota, a Justiça Restaurativa procura apresentar-se como um convite à participação ou ao engajamento de todos os envolvidos (direta ou indiretamente) na resolução dos conflitos e na prevenção de novas ofensas. As pessoas envolvidas no processo passam a ganhar relevância e atenção, sem necessariamente colocar em campo um sistema adversarial e de competição (Zehr, 2012). 13 TEMA 5 – O PAPEL DA ÉTICA E DA CONSTRUÇÃO DE RESPONSABILIDADES EM PROL DA JUSTIÇA A Justiça Restaurativa apoia-se na justiça enquanto valor universal e básico e enquanto instrumento pela paz, assim como guia-se por princípios éticos imprescindíveis ao atendimento das necessidades básicas do ser humano. Em outros termos: o estudo da ética e da construção de responsabilidades são pontos-chave para compreensão geral assim como para própria implementação da Justiça Restaurativa na prática cotidiana. Nossa ênfase, portanto, é na ética do cuidado e da responsabilidade e no poder da empatia, aptos a produzirem o empoderamento individual e coletivo, a assegurar que as vítimas de conflitos consigam superar os traumas pelos quais sofreram e a trazer efetivas transformações na sociedade (Brancher, 2006; Pranis, 2010). 5.1 Entendendo a ética e a compreensão de responsabilidades em prol da Justiça A Justiça Restaurativa possui em seus ideais a prática ética de cuidado e de responsabilidades, em uma posição de irresignação com as violências e injustiças sociais e ciente de que é possível atuar pela mudança em prol da paz social (Brancher, 2006). Ora, como a ética é tema em constante evolução (afinal, a título de exemplo, não se aceita mais a escravidão como seria cabível em tempos antigos), a interação com a Justiça Restaurativa também é algo em construção cotidiana. Proceder com a ética é primordial para fins de alcançar a Justiça Restaurativa. Para tanto, diante de um conflito, é preciso questionar-se (Zehr, 2012, p. 50): • Quem sofreu o dano? • Quais são suas necessidades? • De quem é a obrigação de atendê-las? • Quem são os legítimos interessados no caso? • Qual o processo adequado para envolver os interessados num esforço para consertar a situação? Tais perguntas podem ser feitas a nível estatal, no âmbito do Poder Judiciário, bem como podem utilizar de métodos e processos decorrentes da 14 própria comunidade, em protagonismo e assunção do papel. Ademais, as questões devem ser postas, em via dialógica e comunicação não violenta, a ofensor e à vítima (Pranis, 2010), a fim de que haja a efetiva responsabilização e reparação. Assim, por exemplo, para Pranis (2010), o instituto dos círculos de paz, componentes da Justiça Restaurativa, mostra-se uma via que simboliza liderança partilhada, igualdade, conexão e inclusão, além da promoção da responsabilização e participação efetiva e focada entre todos os envolvidos. É com o senso de responsabilização do ofensor que se consegue modificar um quadro, fazendo com que este compreenda efetivamente as consequências gravosas e não mais realize atos semelhantes com outrem, reparando os danos já ocasionados para com a vítima (Brancher, 2006). Além disso, a responsabilização também pode se dar a nível da própria coletividade, no que chamamos de corresponsabilização, com o reconhecimento de erros e prevenção de novos conflitos (Pranis, 2010). A própria vítima também participa do processo ético da Justiça Restaurativa, em fases de empoderamento e de atendimento de suas necessidades, como de informação e da busca pela verdade, sem que haja pressão no sentido de perdoar ou reconciliar-se com o ofensor (Zehr, 2012). Na Justiça Restaurativa, portanto, há um compartilhamento de responsabilidades e obrigações entre ofensor, vítima e comunidade, em superação das causas e consequências da ofensa ocorrida (CNJ, 2017). Infelizmente, ainda se nota que o funcionamento do sistema judicial leva, como regra geral, a consequências danosas tanto ao ofensor quanto à própria vítima e à sociedade em geral (Brancher, 2006). Perdem-se os laços mais próximos e perde-se até a esperança de um futuro melhor e de uma sociedade saudável e pacificada. Não obstante, a implementação gradativa da Justiça Restaurativa no mundo e, em especial, no Brasil, pode trazer novos horizontes em prol de uma sociedade e de indivíduos guiados, em todos os ramos da vida, pelo cuidado e pelo senso de responsabilização, com resultados pela paz e pelo diálogo. FINALIZANDO Nesta etapa, conhecemos o “pano de fundo” da Justiça Restaurativa, mediante uma análise panorâmica da sociedade e da possibilidade de convivência 15 em harmonia. A lógica de competição e de conflitos pode e deve ser transformada na busca coletiva pela paz, via cooperação. É neste diapasão que a Justiça Restaurativa se apresenta como uma alternativa, como uma via de diálogo entre indivíduo e a comunidade, não se confundindo com a ênfase na retribuição pelo mal ocasionado, característica da Justiça Retributiva. Ainda, na Justiça Restaurativa, verificamos a importância dos diversos atores sociais, em especial a vítima, o ofensor e a comunidade, em seus papéis e necessidades, todos responsáveis, direta ou indiretamente, por proporcionar uma convivência harmônica e pela paz. 16 REFERÊNCIAS BRANCHER, Leoberto Narciso. Justiça Restaurativa. A cultura da paz na prática da Justiça, 2006. Disponível em: http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/just_restaur/vis%C3o+geral+jr_0.htm. PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da Justiça Restaurativa no Brasil: O impacto no sistema de justiça criminal. Revista Paradigma, n. 18, 2009. Disponível em: https://revistas.unaerp.br/paradigma/article/view/54. PRANIS, Kay. Processos Circulares. Teoria e Prática. Série da reflexão a prática. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2010. ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008. ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. São Paulo: Palas Athena, 2012.