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JUSTIÇA E CÍRCULOS 1

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AULA 1 
JUSTIÇA E CÍRCULOS 
RESTAURATIVOS 
Profª Ane Elise Brandalise Gonçalves 
 
 
2 
INTRODUÇÃO 
Olá! Neste estudo, analisaremos a justiça e os círculos restaurativos, 
explanando a teoria e a prática da Justiça Restaurativa e os processos e 
instrumentos presentes, a exemplo maior dos círculos de construção de paz 
desenvolvidos por Kay Pranis. 
Inicialmente, para uma compreensão geral da Justiça Restaurativa, é 
imprescindível proceder à reflexão da sociedade contemporânea em que estamos 
inseridos e do papel e das necessidades dos indivíduos nessa estrutura social. 
Mais especificamente analisaremos a sociedade e a busca pela harmonia, 
pela paz e como se dá a questão entre sociedade e justiça, com ênfase nos 
estudos pertinentes à sociedade brasileira. Na sequência, elucidaremos que a 
Justiça que estamos a tratar é aquela que encontra significado de valor universal 
aos seres humanos, em combate às injustiças e ofensas perpetradas, sem deixar 
de lado que este significado plural de Justiça também possui correlação direta 
com o Poder Judiciário, dado que se constitui o principal agente estatal na 
resolução de conflitos. 
Nessa perspectiva, verificaremos as convergências e divergências entre a 
Justiça Restaurativa e a Justiça Retributiva, elucidando que não se tratam de 
conceitos contrapostos, mas, sim, apresentam-se como alternativas e escolhas a 
serem feitas. Após, faremos breves reflexões sobre a compreensão e oitiva da 
vítima, do ofensor e da comunidade. Por fim, analisaremos o papel da ética e da 
construção de responsabilidades em prol da Justiça. 
O objetivo geral desta etapa é refletir sobre a possibilidade concreta de 
convivência harmônica e pela paz em uma sociedade complexa e plural, mas na 
qual encontra o combate às injustiças um valor universal. 
Esperamos que você aproveite este material. Bons estudos! 
TEMA 1 – ENTENDENDO A SOCIEDADE EM QUE SE ESTÁ INSERIDO 
A humanidade, desde os tempos primórdios, não consegue viver isolada, 
sendo importante a vida em comunidade e em sociedade. Como já dizia o filósofo 
grego Aristóteles: o homem é um ser social, afinal, é um animal que precisa dos 
outros membros da espécie (Aristóteles, 1998). 
Assim, mesmo que algumas pessoas prefiram o isolamento e não sejam 
tão afeitas à vida social, não é possível realizar todas as atividades e exercer todo 
 
 
3 
o potencial humano sozinhas. Além disso, conforme lembra Kay Pranis, “todos os 
seres humanos têm um profundo desejo de estarem em bons relacionamentos” 
(Pranis, 2010, p. 24). 
Saiba mais 
O filme As vantagens de ser invisível (2012), baseado no livro homônimo, 
demonstra, de forma leve e reflexiva, a importância das relações sociais e das 
diversas formas de tratamento entre os jovens, no ambiente escolar. 
O filme conta a história fictícia de Charles, um jovem tímido que se esconde 
até conhecer dois amigos que o ajudam a viver novas experiências. Embora esteja 
feliz nessa nova fase, ele deve continuar a viver com traumas do seu passado. 
Vale refletir a respeito da importância da sociabilidade, do apoio entre 
pessoas próximas e de como os jovens podem lidar com questões conflituosas. 
Informações do filme: As Vantagens de Ser Invisível; Romance/Drama; 1h 
45m. Direção de Stephen Chbosky. Disponível nas principais plataformas on-line, 
em inglês e em português. 
A compreensão da justiça enquanto valor relevante à humanidade 
pressupõe, pois, a ideia da possibilidade de convivência harmônica entre 
indivíduos plurais, com ideias, histórias e vontades diversas (Pranis, 2010; Zehr, 
2008). 
Porém, vivemos atualmente em uma sociedade marcada pela lógica da 
competição e caracterizada pelo individualismo (Brancher, 2006; Zehr, 2012). 
Nessa perspectiva, ficam as seguintes perguntas para nossa reflexão: como nós, 
enquanto parte da sociedade, nos portamos diante de injustiças? Será possível 
convivermos em harmonia e paz com membros tão diversos? (Zehr, 2012). 
1.1 A sociedade e a possibilidade de convivência harmônica e pacífica 
Os seres humanos não conseguem viver em estado perene, perpétuo, de 
guerra e de violências, tendo-se a necessidade de manutenção da paz e da 
harmonia uns com os outros (Pranis, 2010). 
Não obstante se reconheça a paz como um valor universal, diante de tanta 
pluralidade de pensamentos, de sonhos, de filosofias e de ideais, tem-se que os 
conflitos nem sempre são armados, mas podem significar atritos presentes no 
cotidiano. Por isso mesmo, é preciso analisar como os conflitos são geridos e de 
que modo podemos lançar um novo olhar para sociedade, em prol da justiça. 
 
 
4 
De forma tradicional, tem-se que os conflitos são solucionados pelo Estado, 
via Poder Judiciário. Neste, diante de casos de infração da norma e dos deveres 
necessários, há uma punição em resposta, proporcional à ofensa realizada 
(Brancher, 2006; Pinto, 2009). 
Contudo, verificou-se ao longo do tempo que essa forma de justiça, feita 
sob uma lente retributiva (Zehr, 2008), culminava muitas vezes por não resolver 
as situações de violência e de violação de direitos perpetradas pelo ofensor. Seria 
necessário um esforço a mais, em uma verdadeira troca de lentes sobre a justiça, 
contando com a oitiva e a participação da própria vítima e análise, também, do 
ponto de vista do ofensor. 
Ora, as injustiças não pressupõem apenas uma questão de interesses 
distintos ou de luta, mas impõem uma reavaliação dos papéis exercidos pelos 
indivíduos na sociedade e em comunidade e um reconhecimento de 
responsabilidades. 
Por outro lado, práticas e instrumentos restaurativos diversos, 
implementados pelo Estado ou mesmo pela própria comunidade, demonstram que 
a paz e a harmonia na sociedade não é algo utópico, mas é algo possível a ser 
alçado, ainda que tais processos sejam complexos. Tais aplicações exigem, 
ainda, uma análise multi e interdisciplinar (Santos, 2014), pautada por princípios 
axiológicos e valores relevantes para todo ser humano, mas com atuação difusa 
e capilarizada na sociedade (Zehr, 2012). 
Saiba mais 
Veja o rápido vídeo curto, no YouTube, sobre os princípios guiadores da 
Justiça Restaurativa no Brasil. Disponível em: 
<https://www.youtube.com/watch?v=BiuwK7Fy4ms>. Acesso em: 11 jun. 2022. 
A sociedade contemporânea, apesar de impor novos desafios e novos 
dilemas, traz oportunidades múltiplas de diálogo e de compreensão, ao invés de 
batalhas sem solução prática. É o que devemos prezar, com propostas em prol 
da reparação nos casos de ofensas a direitos de outrem. 
TEMA 2 – A JUSTIÇA ENQUANTO VALOR SOCIAL E O PODER JUDICIÁRIO 
A sociedade atual é complexa, com variadas questões que perpassam pelo 
sentimento de justiça ou de injustiça (Zehr, 2012) e pela necessidade de união da 
humanidade pela paz, via cooperação (Pranis, 2010). Nesse sentido, estudar a 
 
 
5 
Justiça Restaurativa implica trazer ao diálogo o que entendemos por justiça e qual 
é a sua importância na atualidade. 
Ora, diversas são as ofensas perpetradas em sociedade, o que ocasionam 
diferentes reações e respostas por parte das vítimas e dos demais envolvidos. 
Além disso, vários são os sentimentos diante de injustiças, fazendo-nos 
questionar qual o nosso papel e qual é o papel do Estado diante dessas ofensas 
e dos conflitos que nos atingem direta ou indiretamente (Zehr, 2012). 
Por certo, não há um conceito exclusivo ou imutável do que seja a justiça, 
apesar de toda humanidade reconhecer sua importância e sua necessidade de 
observação, pois não há pessoa alguma que queria viver sob o manto de injustiças 
para si ou sob uma estrutura social de diuturnos conflitos e sem qualquer 
segurança mínima de convivência. 
2.1 Justiça como valor universal e como instrumento prático 
É de se notar que a justiça que estamos a tratar aqui pode ser vislumbrada 
tanto como um valor maior e universal, inerente à humanidade, como pode ser 
estudada sob o prisma doPoder Judiciário, instituição responsável pela resolução 
dos conflitos e pelo uso da força, nos casos previstos em lei. 
De todo modo, é importante notar que a justiça, seja enquanto valor ou 
enquanto instrumento, pode e deve estar presente em todas as áreas da vida 
humana em sociedade. Na atualidade, sobressaem práticas e instrumentos que 
tomaram a nomenclatura de restaurativas (Zehr, 2012), por visarem trazer à tona 
o diálogo e a análise das responsabilidades individuais e coletivas em prol de 
soluções concretas e que visem satisfazer as necessidades básicas das pessoas. 
Nessa perspectiva, a Justiça Restaurativa apresenta-se como uma 
alternativa à análise das resoluções do conflito, chamando para si a participação 
dos indivíduos e da sociedade no diálogo da questão posta e das respostas 
possíveis. Conforme explica Zehr (2012, p. 24), a “Justiça Restaurativa amplia o 
círculo dos interessados no processo (aqueles que foram afetados ou têm uma 
posição em relação ao evento ou ao caso) para além do Estado e do ofensor, 
incluindo também as vítimas e os membros da comunidade”. 
Cuida-se de uma via alternativa e uma resposta ao sistema tradicional de 
resolução de conflitos, que foi (e ainda é, em variados casos) marcado pela 
competição, pelo estímulo ao litígio e pelo desencorajamento da conciliação (CNJ, 
2017). Tal sistema tradicional parecia relegar ao Juiz o papel de condenar ou não 
 
 
6 
condenar uma ofensa, cuja resposta, em realidade, iria muito além de uma 
decisão judicial, pois influenciaria de diversas maneiras uma pessoa, uma 
comunidade e toda uma sociedade (Zehr, 2008; Brancher, 2006). 
Para Zehr (2012, p. 49), um dos principais teóricos a respeito do assunto, 
a Justiça Restaurativa pode ser assim conceituada: 
Justiça Restaurativa é um processo para envolver, tanto quanto 
possível, todos aqueles que têm interesse em determinada ofensa, num 
processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e 
obrigações decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento 
das pessoas e endireitar as coisas, na medida do possível. 
Portanto, a Justiça Restaurativa trabalha com o viés não apenas do 
acusador, mas também analisa o papel da vítima, o papel do ofensor e também o 
papel da comunidade para fins de restauração da ofensa já perpetrada e 
recuperação social do ofendido, bem como em prol da prevenção de novos 
conflitos semelhantes (CNJ, 2017). 
A Justiça Restaurativa busca a paz social e harmônica entre indivíduos tão 
plurais e em uma sociedade tão complexa quanto é a nossa nos dias atuais 
(Pranis, 2010). Assim, além da reparação em si, há um papel transformador sobre 
os indivíduos e sobre o próprio ofensor (Pranis, 2010) e um empoderamento das 
vítimas para que possam seguir em frente (Zehr, 2012). 
Na prática, a Justiça Restaurativa se faz presente por meio de variadas 
formas e instrumentos, não havendo um modelo único ou exclusivo de aplicação 
dos ideais da Justiça Restaurativa (Pranis, 2010; Zehr, 2012; CNJ, 2017). No 
âmbito do Poder Judiciário Brasileiro, por exemplo, já é possível notar 
considerável avanço no uso da Justiça Restaurativa nas demandas relacionadas 
à Família, Infância e Juventude, na apuração de atos infracionais cometidos por 
adolescentes e na esfera dos Juizados Especiais Estaduais ou Federais. 
Saiba mais 
O caso Elmira (The Elmira Case) é reconhecidamente um dos marcos 
iniciais do uso intencional, programado e planejado da Justiça Restaurativa, por 
meio do uso da mediação penal entre vítima e ofensor, feita no Canadá, no 
povoado de Elmira — local que sofreu, no ano de 1974, com atos de vandalismo 
e de dano perpetrados por dois adolescentes. 
O caso e o uso da Justiça Restaurativa pode ser visto por meio do 
documentário-filme The Elmira Case (O Caso Elmira) (2015), em inglês, com 
legendas em português. Sobre o documentário, confira a rápida explanação. 
 
 
7 
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=i7FB45OnmOM>. Acesso 
em: 11 jun. 2022. 
Ademais, é importante ressaltarmos que a Justiça Restaurativa pode estar 
presente no Poder Judiciário, em determinados casos, bem como pode ser a via 
implementada em locais como o trabalho e as escolas (Santos; Gomide, 2014), 
das mais diversas maneiras, a exemplo maior do uso da comunicação não violenta 
e da promoção dos círculos de paz (Pranis, 2010). 
Não obstante tratar a Justiça Restaurativa de um modelo aberto e em 
constante construção, não se cuida de tema sem estudos ou com fórmulas 
simples ou “mágicas”. Tampouco trata-se de simplesmente conceder um “perdão” 
ao ofensor e de se ter ausência de reconhecimento de responsabilidades, 
conforme observa o escritor Howard Zehr, um dos principais teóricos a respeito 
da Justiça Restaurativa (Zehr, 2012). 
Ademais, esclarece o mesmo autor que há de se averiguar as 
peculiaridades do caso concreto, pois a Justiça Restaurativa nem sempre será o 
melhor caminho a ser adotado. Além disso, sob o ponto de vista do acusado, a 
Justiça Restaurativa não deve ser a única via para ressocialização do ofensor e 
não é a alternativa única ou exclusiva ao aprisionamento (Zehr, 2012, p. 1-23). 
A Justiça Restaurativa, em realidade, apresenta-se como convite aberto a 
todos, a fim de repensar o próprio funcionamento da sociedade e dos problemas 
vivenciados. Por isso mesmo, é essencial proceder aos estudos focados na 
Justiça Restaurativa em suas variadas dimensões e possibilidades, de modo a 
permitir um diálogo e uma via alternativa ao sistema de resolução de conflitos 
tradicionalmente aplicado. Fique tranquilo, é o que analisaremos ao longo desse 
estudo. 
TEMA 3 – JUSTIÇA RESTAURATIVA E JUSTIÇA RETRIBUTIVA 
Infelizmente, vivemos em um momento e em um país em que muitos falam 
de crise generalizada e crise do sistema judiciário, vez que este se mostra cada 
vez mais incapaz de prevenir e de resolver os conflitos e os delitos decorrentes, 
assim como não se mostra completamente hábil a considerar as dores 
vivenciadas pela vítima nem a ser via apta ao reconhecimento de 
autorresponsabilidade por parte do ofensor (Brancher, 2006; Zehr, 2008). 
 
 
8 
Há um sentimento generalizado de impunidade e de não ressocialização 
do ofensor, por mais que tenhamos leis penais rigorosas e um sistema penal que 
cada vez mais aprisiona (Pinto, 2009). 
Neste sentido, basta analisarmos os casos criminais e as situações 
prisionais, nas quais falar em ressocialização das pessoas privadas da liberdade 
parece um ideal sem muitas possibilidades de concretização (Brancher, 2006). 
Além disso, as vítimas por vezes ainda sofrem muito com o ocorrido, não tendo 
informação sobre o processo criminal nem obtendo voz para que se considere seu 
ponto de vista e suas necessidades (Zehr, 2012). 
Ainda, não raro, por vezes sequer os crimes sofridos pelas vítimas chegam 
ao conhecimento das autoridades judiciárias, por variadas razões, incluindo o 
julgamento moral da própria sociedade e das consequências sofridas dentro da 
comunidade. São os crimes denominados de cifras negras ou cifras ocultas. 
Saiba mais 
O filme Spotlight – segredos revelados (2015), baseado em fatos reais, 
aborda uma investigação jornalística que revelou severos crimes de abuso sexual 
de crianças e adolescentes cometidos por padres. A obra conta depoimentos de 
vítimas e um extenso levantamento de informações a respeito de julgamentos. 
É interessante notar como as vítimas e suas famílias, aliadas à imprensa, 
sofrem com os crimes cometidos e nos quais muitos sequer chegaram a 
conhecimento por parte do Poder Judiciário. 
Informações: Spotlight; Direção de Tom McCarthy. Disponível nas 
principais plataformas de streaming. 
Por outro lado, não se pode deixar de acreditar na justiça enquanto um 
valor axiológico relevante para toda a humanidade. Sem a justiça, o mundo não 
tem como avançar. 
É neste diapasão que a antiga lógica clássica retributiva,que, como o 
próprio nome diz, possui como fim retribuir o mal ocasionado pelo ofensor, passa 
a ser reanalisada e refletida. Passa-se a verificar alternativas possíveis de 
implementação, em prol da paz e da efetiva resolução de conflitos e que ganham 
a denominação de Justiça Restaurativa. 
Inclusive, vale frisar que a Justiça Restaurativa não é propriamente uma 
novidade, já restando, desde muito, presente em comunidades nativas, como em 
 
 
9 
regiões povoadas por tribos no Canadá e por comunidades na Nova Zelândia 
(Zehr, 2012). 
Por isso mesmo, vale conhecermos as duas principais lentes de análise da 
justiça (Lentes restaurativas e Lentes retributivas) e dos papéis do Poder 
Judiciário e dos envolvidos em um conflito. 
3.1 Lentes restaurativas e lentes retributivas 
A Justiça Restaurativa apresenta-se como uma alternativa às formas 
tradicionais de resolução de conflitos, denominadas de Justiça Retributiva. Na 
formatação clássica de sociedade, com resquícios até os dias atuais, os conflitos 
são geridos pelo Estado, por meio do Poder Judiciário, que pune, por meio de um 
processo regrado, aquele que infringe as normas (Brancher, 2006; Pinto, 2009). 
Já a Justiça Restaurativa traz à lume os papéis da vítima, do ofensor e da 
participação da comunidade para resolução do caso. 
Para simplificar tais conceitos, assim explana Zehr (2008, p. 9): 
• Justiça Retributiva: o crime é uma violação contra o Estado, definida pela 
desobediência à lei e pela culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor 
no contexto de uma disputa entre ofensor e Estado, regida por regras 
sistemáticas. 
• Justiça Restaurativa: o crime é uma violação de pessoas e 
relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve 
a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam 
reparação, reconciliação e segurança. 
O que diferencia a Justiça Retributiva e a Justiça Restaurativa, pois, é a 
lente com a qual vai ser analisada a ofensa e os pontos de partida de análise 
(Zehr, 2008). Conforme visto, a Justiça Restaurativa apresenta-se não como uma 
retribuição e uma punição do mal ocasionado, mas, sim, como uma alternativa e 
reanálise dos papéis exercidos pelo ofensor, pela vítima e pela própria 
comunidade. 
No Brasil, a Justiça Restaurativa já vem sendo implementada gradualmente 
no âmbito judiciário, em demandas infracionais de adolescentes e causas 
atinentes à família ou aos Juizados Especiais, obtendo respostas positivas em 
prol das vítimas e das necessidades dos indivíduos. Como exemplo, podemos 
mencionar que de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), segundo 
dados divulgados, 23,9% dos adolescentes que cometeram atos infracionais 
 
 
10 
retornaram ao menos uma vez ao sistema socioeducativo no período entre janeiro 
de 2015 e junho de 2019. De outro lado, quando observado o sistema prisional, 
contemplando, portanto, os indivíduos com 18 anos ou mais de idade, a taxa de 
retorno ao sistema atingiu o patamar de 42,5%1. 
Ou seja: a pesquisa demonstra que a reincidência no sistema 
socioeducativo para adolescentes infratores, no qual há mecanismos de Justiça 
Restaurativa, é menor do que no sistema prisional, guiado, regra geral, pela ideia 
de Justiça Redistributiva. 
Por outro lado, é importante frisarmos que não temos até o presente 
momento um sistema judiciário completamente centrado na Justiça Restaurativa, 
apresentando-se esta muito mais como um viés adicional, e não como algo 
contraposto. Nesse sentido, conforme explica Zehr (2012, p. 71), “a retribuição e 
a restauração não são polos opostos como em geral se presume. Na verdade, as 
duas modalidades têm muito em comum”. 
A respeito, quanto às semelhanças e aproximações, tem-se que tanto a 
Justiça Retributiva quanto a Justiça Restaurativa reconhecem que o mal 
ocasionado tende a desequilibrar as relações sociais e deve ser objeto de 
respostas (Zehr, 2012). Além disso, ambas reconhecem a importância da 
proporcionalidade no combate às injustiças2. 
Em suma: as palavras-chaves da Justiça Restaurativa, pois, podem ser 
definidas em atendimento de necessidades; participação; restauração; 
empoderamento, cooperação — todas carregadas de significações positivas em 
prol dos indivíduos e de toda sociedade. Já a Justiça Redistributiva foca na lei, na 
retribuição do mal ocasionado, na punição do ofensor. 
 
 
1 Relatório disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/Panorama-das-
Reentradas-no-Sistema-Socioeducativo.pdf>. 
2 Sobre o assunto, no meio jurídico: <https://www.conjur.com.br/2021-out-05/andre-callegari-
direito-penal-proporcionalidade>. 
 
 
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TEMA 4 – NECESSIDADES E PAPÉIS DA VÍTIMA, DO OFENSOR E DA 
COMUNIDADE PARA JUSTIÇA RESTAURATIVA 
A Justiça Restaurativa apenas se faz possível se contar com a participação 
efetiva das partes (ofensor-vítima) e da comunidade, assim como do Estado, em 
reconhecimento de seus papéis e necessidades, bem como no senso de 
autoavaliação e de autorresponsabilidade pelos atos ocasionados (Zehr, 2012). 
Lembra Kay Pranis, neste sentido, que todos nós estamos interligados uns com 
os outros, de modo que as injustiças que ocorrem com uns culminam por impactar 
toda a sociedade (Pranis, 2010). 
Assim, a atuação conjunta e guiada pela cooperação, em prol da paz e da 
convivência harmônica e pacífica em sociedade, pode trazer benefícios à própria 
natureza humana e ao combate aos diversos problemas sociais que nos cercam. 
A criatividade e o comprometimento humano são nossos maiores tesouros e 
nossa maior esperança (Pranis, 2010). Ainda, é relevante notar que tal 
comprometimento humano deve estar atrelado ao atendimento, por parte da 
justiça, de necessidades básicas desses atores (Zehr, 2012). 
4.1 Vítima, ofensor e comunidade em prol das lentes restaurativas 
Todos nós exercemos variados papéis na sociedade e com os nossos 
próximos. Somos pais/filhos, vizinhos, estudantes/professores, consumidores, 
etc. Por isso mesmo, estudar os atores em prol das lentes restaurativas impõe 
reconhecer uma ampliação do círculo de interessados no processo tradicional, 
bem como impõe a verificação das necessidades e de tais papéis exercidos pelos 
envolvidos e interessados (Zehr, 2012). Em especial, a Justiça Restaurativa visa 
abarcar, em oitiva e análise, os papéis da vítima, do ofensor e da própria 
comunidade envolvida. 
Quanto à vítima, na perspectiva tradicional, o “crime é definido como ato 
cometido contra o estado, e por isso o Estado toma o lugar da vítima no processo. 
No entanto, em geral, as vítimas têm uma série de necessidades a serem 
atendidas pelo processo judicial” (Zehr, 2012, p. 25). Já na Justiça Restaurativa, 
quatro tipos de necessidades ganham enfoque, quais sejam (Zehr, 2012, p. 25-
26): 
• Informação; 
• Falar a verdade; 
 
 
12 
• Empoderamento; 
• Restituição patrimonial ou vindicação. 
Quanto ao ofensor, ao seu turno, é importante que reconheça as suas 
responsabilidades. Tal tarefa, contudo, não é estimulada pelo processo 
tradicional, pois neste o réu defende seus próprios interesses (Zehr, 2012). Por 
outro lado, a Justiça Restaurativa mostra-se uma via apta a trazer a 
conscientização sobre os limites legais e sobre os passos necessários à 
reparação (Brancher, 2006; Zehr, 2012). 
Segundo Zehr (2012, p. 28), o ofensor também possui necessidades a 
serem atendidas pela Justiça, quais sejam: 
• Responsabilização que cuide dos danos resultantes, que estimule a 
empatia e a responsabilidade e que transforme a vergonha. 
• Estímulo para experiência de transformação pessoal, incluindo a cura dos 
males que contribuíram para o comportamento lesivo, as oportunidades de 
tratamento para dependências químicas e/ou outros problemas e o 
aprimoramento de competências pessoais. 
• Estímulo e apoio para reintegração à comunidade. 
• Para alguns, detenção, ao menos temporária. 
Por fim,os membros das comunidades também exercem papéis relevantes 
na reparação e na prevenção de novos conflitos. Suas necessidades perante a 
justiça seriam (Zehr, 2012, p. 29): 
• Atenção às suas preocupações enquanto vítimas; 
• Oportunidades para construir um senso comunitário e de responsabilidade 
mútua; 
• Estímulo para assumir suas obrigações em favor do bem-estar de seus 
membros, inclusive vítimas e ofensores, e fomento das condições que 
promovam convívio saudável. 
Conforme se nota, a Justiça Restaurativa procura apresentar-se como um 
convite à participação ou ao engajamento de todos os envolvidos (direta ou 
indiretamente) na resolução dos conflitos e na prevenção de novas ofensas. As 
pessoas envolvidas no processo passam a ganhar relevância e atenção, sem 
necessariamente colocar em campo um sistema adversarial e de competição 
(Zehr, 2012). 
 
 
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TEMA 5 – O PAPEL DA ÉTICA E DA CONSTRUÇÃO DE RESPONSABILIDADES 
EM PROL DA JUSTIÇA 
A Justiça Restaurativa apoia-se na justiça enquanto valor universal e básico 
e enquanto instrumento pela paz, assim como guia-se por princípios éticos 
imprescindíveis ao atendimento das necessidades básicas do ser humano. Em 
outros termos: o estudo da ética e da construção de responsabilidades são 
pontos-chave para compreensão geral assim como para própria implementação 
da Justiça Restaurativa na prática cotidiana. 
Nossa ênfase, portanto, é na ética do cuidado e da responsabilidade e no 
poder da empatia, aptos a produzirem o empoderamento individual e coletivo, a 
assegurar que as vítimas de conflitos consigam superar os traumas pelos quais 
sofreram e a trazer efetivas transformações na sociedade (Brancher, 2006; Pranis, 
2010). 
5.1 Entendendo a ética e a compreensão de responsabilidades em prol da 
Justiça 
A Justiça Restaurativa possui em seus ideais a prática ética de cuidado e 
de responsabilidades, em uma posição de irresignação com as violências e 
injustiças sociais e ciente de que é possível atuar pela mudança em prol da paz 
social (Brancher, 2006). 
Ora, como a ética é tema em constante evolução (afinal, a título de 
exemplo, não se aceita mais a escravidão como seria cabível em tempos antigos), 
a interação com a Justiça Restaurativa também é algo em construção cotidiana. 
Proceder com a ética é primordial para fins de alcançar a Justiça Restaurativa. 
Para tanto, diante de um conflito, é preciso questionar-se (Zehr, 2012, p. 50): 
• Quem sofreu o dano? 
• Quais são suas necessidades? 
• De quem é a obrigação de atendê-las? 
• Quem são os legítimos interessados no caso? 
• Qual o processo adequado para envolver os interessados num esforço para 
consertar a situação? 
Tais perguntas podem ser feitas a nível estatal, no âmbito do Poder 
Judiciário, bem como podem utilizar de métodos e processos decorrentes da 
 
 
14 
própria comunidade, em protagonismo e assunção do papel. Ademais, as 
questões devem ser postas, em via dialógica e comunicação não violenta, a 
ofensor e à vítima (Pranis, 2010), a fim de que haja a efetiva responsabilização e 
reparação. 
Assim, por exemplo, para Pranis (2010), o instituto dos círculos de paz, 
componentes da Justiça Restaurativa, mostra-se uma via que simboliza liderança 
partilhada, igualdade, conexão e inclusão, além da promoção da 
responsabilização e participação efetiva e focada entre todos os envolvidos. 
É com o senso de responsabilização do ofensor que se consegue modificar 
um quadro, fazendo com que este compreenda efetivamente as consequências 
gravosas e não mais realize atos semelhantes com outrem, reparando os danos 
já ocasionados para com a vítima (Brancher, 2006). Além disso, a 
responsabilização também pode se dar a nível da própria coletividade, no que 
chamamos de corresponsabilização, com o reconhecimento de erros e prevenção 
de novos conflitos (Pranis, 2010). 
A própria vítima também participa do processo ético da Justiça 
Restaurativa, em fases de empoderamento e de atendimento de suas 
necessidades, como de informação e da busca pela verdade, sem que haja 
pressão no sentido de perdoar ou reconciliar-se com o ofensor (Zehr, 2012). 
Na Justiça Restaurativa, portanto, há um compartilhamento de 
responsabilidades e obrigações entre ofensor, vítima e comunidade, em 
superação das causas e consequências da ofensa ocorrida (CNJ, 2017). 
Infelizmente, ainda se nota que o funcionamento do sistema judicial leva, 
como regra geral, a consequências danosas tanto ao ofensor quanto à própria 
vítima e à sociedade em geral (Brancher, 2006). Perdem-se os laços mais 
próximos e perde-se até a esperança de um futuro melhor e de uma sociedade 
saudável e pacificada. 
Não obstante, a implementação gradativa da Justiça Restaurativa no 
mundo e, em especial, no Brasil, pode trazer novos horizontes em prol de uma 
sociedade e de indivíduos guiados, em todos os ramos da vida, pelo cuidado e 
pelo senso de responsabilização, com resultados pela paz e pelo diálogo. 
FINALIZANDO 
Nesta etapa, conhecemos o “pano de fundo” da Justiça Restaurativa, 
mediante uma análise panorâmica da sociedade e da possibilidade de convivência 
 
 
15 
em harmonia. A lógica de competição e de conflitos pode e deve ser transformada 
na busca coletiva pela paz, via cooperação. É neste diapasão que a Justiça 
Restaurativa se apresenta como uma alternativa, como uma via de diálogo entre 
indivíduo e a comunidade, não se confundindo com a ênfase na retribuição pelo 
mal ocasionado, característica da Justiça Retributiva. Ainda, na Justiça 
Restaurativa, verificamos a importância dos diversos atores sociais, em especial 
a vítima, o ofensor e a comunidade, em seus papéis e necessidades, todos 
responsáveis, direta ou indiretamente, por proporcionar uma convivência 
harmônica e pela paz. 
 
 
 
16 
REFERÊNCIAS 
BRANCHER, Leoberto Narciso. Justiça Restaurativa. A cultura da paz na prática 
da Justiça, 2006. Disponível em: 
http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/just_restaur/vis%C3o+geral+jr_0.htm. 
PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da Justiça Restaurativa no Brasil: 
O impacto no sistema de justiça criminal. Revista Paradigma, n. 18, 2009. 
Disponível em: https://revistas.unaerp.br/paradigma/article/view/54. 
PRANIS, Kay. Processos Circulares. Teoria e Prática. Série da reflexão a prática. 
Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2010. 
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. 
Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008. 
ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. São Paulo: Palas Athena, 2012.

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