Prévia do material em texto
ASSOMBRAÇÕES DO RECIFE VELHO Ada Silva "Esta cidade é meio mágica, meio bruxa... Enfeitiça, quebranta, tira as forças". Nilo Pereira SUMÁRIO Assombrações do Recife Velho.......................................................................................................4 Praça Chora-Menino........................................................................................................................7 A Emparedada da Rua Nova...........................................................................................................8 Encanta-Moça..................................................................................................................................9 Fantasma da Debutante................................................................................................................10 O Papa-Figo e o Velho do Saco....................................................................................................12 Galega de Santo Amaro................................................................................................................14 Boca-de-Ouro................................................................................................................................15 Rio Capibaribe...............................................................................................................................17 Casa da Cultura.............................................................................................................................20 Maria Fulozinha.............................................................................................................................21 Perna Cabeluda.............................................................................................................................23 A Cruz do Patrão...........................................................................................................................25 Teatro Santa Isabel........................................................................................................................26 Faculdade de Direito......................................................................................................................28 Considerações Finais....................................................................................................................31 4 ASSOMBRAÇÕES DO RECIFE VELHO Pernambuco abriga povos de diversas crenças, credos, classes sociais, regiões e culturas diferentes, desde a sua fundação. Foi essa diversidade que proporcionou a formação de um estado rico culturalmente, que hoje pode ser considerado singular e múltiplo, tradicional e moderno do litoral ao interior do estado. A cidade do Recife tem sua origem ligada as Capitanias Hereditárias, em meados do século XIV (QUINTAS, 2008). Conhecida como a Veneza brasileira, essa cidade histórica é cortada por rios, tendo em sua formação geográfica diversas ilhas. O sobrenatural é algo que povoa a imaginação dos recifenses desde séculos passados. Até hoje, ainda há quem se lembre de histórias como a da ‘perna cabeluda’, o ‘papa-figo’ ou a da ‘emparedada da Rua Nova’. No prefácio da segunda edição do livro ‘Assombrações do Recife velho’, Gilberto Freyre relata que Os mistérios que se prendem á história do Recife são muitos: sem eles o passado recifense tomaria o frio aspecto de uma história natural. E pobre da cidade e ou do homem cuja história seja só história natural. (FREYRE, 1970) Segundo a escritora Fátima Quintas, as superstições ligam o homem a terra, reformulam emoções, mexem com o íntimo das pessoas, sentimentos que elas conseguem explicar. “Contribuem para estabelecer a empatia homem-cidade, circunstanciando o mosaico mítico e do lendário. Como se o lacre do tempo envolvesse a personalidade de cada um” (QUINTAS, 2008, p.144). É importante ressaltar que Gilberto Freyre carregava consigo a certeza de que os relatos que originaram seu livro eram reais. Para Roberto Beltrão, jornalista, escritor, roteirista e um dos idealizadores do Recife Assombrado, projeto que desde a década de 90 divulga a nossa cultura assombrada não só por Recife como também pelo estado, as histórias de assombração estão na essência histórica da nossa cidade. Segundo Beltrão, o que moldou Recife foi A sociedade canavieira patriarcal, essa sociedade segundo Gilberto Freyre e outros estudiosos possui uma espécie de catolicismo mediúnico, muito herdado dos portugueses, nossos colonizadores. O misticismo negro indígena também influenciam bastante nesse processo, porém, ele é uma herança dos portugueses, que é a crença de que os mortos não se afastem muito das suas famílias. Freyre diz o seguinte em Casa Grande e Senzala “dentro da crença das famílias estavam, Deus, os santos, os mortos e os vivos. Os mortos estavam entre os santos e os vivos”. Era muito comum que as pessoas vissem mortos, era muito comum existir aquela coisa do sonho, que é algo premonitório onde o morto volta pra lhe dizer alguma coisa importante, algum assunto inacabado. Historicamente os mortos não eram enterrados longe das suas famílias. Quando você tinha uma Casa Grande, os mortos da sua família eram enterrados lá. Quando alguém morria na cidade 5 os mortos eram enterrados dentro das igrejas, até por não existir cemitérios públicos na época. (Entrevista feita com Roberto Beltrão em 23/11/2019) Por falar em cemitério, o de Santo Amaro foi o primeiro do Recife a ser institucionalizado pelo governo brasileiro na província de Pernambuco. Sua inauguração data de 1851 a ele foi o primeiro cemitério público de nossa cidade, porém ele não foi o primeiro cemitério aqui construído. O Cemitério dos Ingleses, localizado também no bairro de Santo Amaro, foi o primeiro em nossa capital. Os ingleses são anglicanos e não podiam ser enterrados em um cemitério de católicos, logo, o governo permitiu que eles construíssem um local para enterrar seus parentes mortos. Segundo Beltrão A relação do sobrenatural com a sociedade recifense é muito estreita, diferente de outras cidades do nordeste que surgiu pelo sol e mar, o Recife surgiu em função do seu porto e sempre foi um local muito sinistro, pois, ali se misturavam pessoas de origens diferentes e de diversas influências e isso também influenciou esse imaginário coletivo. (Entrevista feita com Roberto Beltrão em 23/11/2019) Roberta Cirne, autora do projeto Sombras do Recife e quadrinistra desde a década de 90 traz a cidade do Recife como palco principal para as suas narrativas. Sobre a importância das lendas para a cidade do Recife ela afirma que Recife tem diversas lendas assombradas e todas são importantes. A relevância delas para a sociedade recifense é justamente o que elas podem fazer pela cidade: movimentar o turismo, preservar nossa memória e recontar os lugares onde elas aconteceram que já não existem mais. Infelizmente recife é uma cidade que não possui memória, pois nós a demolimos para a reconstruirmos novamente. Apesar de todas as políticas de preservação existentes, nós ainda fazemos isso, cometemos esse crime nossa história destruindo nossa identidade cultural e os patrimônios materiais que ainda restam de pé em nossa cidade. A assombração e as lendas elas tem esse princípio, esse poder de preservar um lapso do tempo, da imaginação das pessoas. (Entrevista feita com Roberta Cirne em 23/11/2019) Através dos séculos o medo sempre foi associado à vergonha, a covardia, a fraqueza. Admitir sentir medo de algo é como expor para sociedade um ponto fraco, e ninguém admite ser fraco sobre o que quer que seja. Muitos não sabem, mas Recife abriga a única instituição de parapsicologia do Nordeste e uma das mais antigas do Brasil. Trata-se do Instituto Pernambucano de Pesquisas Psicobiofísicas, (IPPP), fundado em 1973. O instituto foiresponsável por investigar alguns casos famosos de poltergeisters famosos em nossa cidade. São chamados de poltergeister eventos paranormais que acontecem sem nenhuma explicação. Comumente, os e exemplos de poltergeisters mais conhecidos são os deslocamentos de objetos. (ARAÚJO, 2009, p.. 83) 6 Conhecer nosso passado e nossa história é muito importante para a preservação tanto dos nossos bens culturais materiais quanto imateriais. Foi pensando nisso, na preservação de um bem imaterial que poucos conhecem e valorizam que esse projeto começou a ganhar forma. As lendas antigas da nossa cidade povoaram a imaginação da sociedade pernambucana por longos anos, e hoje, praticamente não se fala mais nelas. Este projeto é importante socialmente para incentivar o resgate dessa memória coletiva que se perdeu com o tempo. 7 • Praça Chora-Menino Localizada no bairro da Boa Vista, o local foi palco de um grandioso massacre e poucos devem conhecer a história que deu origem ao nome da praça. Em meados do século XIX a cidade do Recife presenciou uma violenta revolta de soldados militares de baixa patente. A revolta dos praças (soldados) se dava contra os maus tratos que eles sofriam por parte dos seus superiores e os abusos sofridos pelo rigor extremo da disciplina militar iam desde castigos físicos até atrasos em seus pagamentos. Claro, esses não foram os únicos motivos que culminaram na “Setembrizada”, como a revolta ficou conhecida. Nos dias 14, 15 e 15 de setembro de 1831, Recife viveu dias de pânico. Não foram apenas soldados que participaram do levante, civis associados ao motim também se envolveram nos saques que foram realizados por toda capital do estado. Tanto os soldados quanto os civis movidos na força do ódio acabaram por cometer diversos crimes durante os três dias que durou toda a revolta, crimes que além de saques também incluíram o assassinato de centenas de inocentes, entre eles muitas crianças. As ruas da nossa cidade ficaram cobertas por sangue e corpos daqueles que nada tinham a ver com tanto ódio e fúria dos rebelados. 8 Os mortos nesse episódio foram enterrados em um local abandonado, que seria as terras do Sítio Mondengo. Onde hoje localiza-se a praça Chora Menino no século XIX abrigou o tal sítio onde os corpos dos assassinatos na revolta foram enterrados. Após a Setembrizada, começou a circular uma história que quem passasse tarde da noite pelo local ouvia um choro de menino e foi por este motivo que a praça ficou com este nome. O choro ouvido seria das crianças mortas no conflito que ali foram sepultadas, pequenas vítimas de um massacre sangrento provocado pela tirania de adultos. • A Emparedada da Rua Nova A história contada por Carneiro Vilela em seu livro é uma das mais conhecidas em toda a cidade do Recife. O fato é que jamais saberemos com exatidão se o escritor narrou ao longo das 555 páginas de seu livro um acontecimento verídico ou tudo não passa de ficção. O fato é que os emparedamentos eram mesmo uma prática comum em séculos passados. Eles aconteciam tanto por forma de castigo (era comum que os aristocratas da época emparedassem suas filhas, esposas, se elas fizessem algo que manchassem a honra da família) quanto para se livrar de algum familiar que causasse vergonha diante a sociedade (pessoas com 9 doenças como hanseníase, doenças mentais, deformações físicas eram emparedadas para não causar nenhum constrangimento social). Na história de Vilela, Jaime Favais é um rico comerciante português. Além de rico, Favais é deveras raivoso, rancoroso e vingativo. Ao descobrir que sua única filha, Clotilde, está grávida de Leandro, um sedutor famoso no centro da cidade naquela época, ele decide casar a filha com um de seus sobrinhos, que recusa a proposta feita pelo tio. Um detalhe importante da história é que Leandro além de engravidar Josefina, desonrando assim a família, também é amante de Josefina, esposa de Jaime e mãe de Clotilde. Quando João, sobrinho que foi cotado para casar com Clotilde recusa a proposta feita pelo tio, Jaime então movido ao ódio que lhe tomara no momento manda matar Leandro, ao saber da decisão do marido Josefina enlouquece. É neste momento que o rico e poderoso comerciante sentencia a filha ao medonho castigo: ser emparedada viva. E assim foi feito, Clotilde foi emparedada em um dos cômodos do sobrado onde a família residia, na Rua Nova, um dos locais mais importantes do Recife no século XIX, época em que toda trama é narrada. O sobrado onde especula-se que tenha acontecido tal tragédia ainda existe, hoje ele é o número 200 e resiste ao tempo e as reformas que nele foram feitos. Ele ainda funciona tal qual no século XIX: uma loja no pavimento térreo e nos andares superiores que outrora serviram como residência, hoje abriga o estoque do comércio que ali está instalado. Funcionários que já trabalham no local afirmam que ali existe uma presença estranha, macabra. No último andar do sobrado ninguém se atreve mais a chegar, por lá já foram vistos vultos, ouvidos gemidos e atrever-se a subir ali sozinho é pedir para ver o que não se deseja. Ao que tudo indica, a alma de Clotilde ficou presa naquele lugar onde teve a vida ceifada de forma tão brutal. • Encanta-moça Esta triste e melancólica lenda conta a história de uma jovem moça que ao que tudo indica foi vítima de um crime passional como alguns acreditam. Se a história se passasse em nossos dias atuais ele seria considerado um feminicídio. O fato é que uma iaiá (nome pelo qual meninas e moças eram comumente chamadas na época da escravidão), bela, branca, rica e casada com um ciumento aristocrata gostava de passear a noite. Certo dia, ela passeava numa região do Recife pouco habitada quando percebeu que estava sendo seguida pelo seu ciumento marido, que havia cismado que ela estava o traindo com um escravo que ele iria mata-la. Tentando fugir desesperadamente do seu abusador, a moça entra no mangue e desaparece. Como num passe de mágica ela teria se “encantado” no manguezal. A área onde a tal jovem desapareceu hoje pertence ao Bairro do Pina, localiza-se próximo ao RioMar Shopping. A história da encantada ainda conta que ela retorna do além tomada por uma espécie de vingança contra o machismo que a sociedade reproduzira na época (e se formos parar para 10 pensar talvez esse machismo ainda se encontre muito presente nos dias atuais e em costumes da nossa sociedade hoje). Em noites de lua cheia a iaiá retorna do seu mundo assombrado para seduzir os desavisados que circulam pelas adjacências. Ao ver o espectro da jovem e bela moça desnuda, eles se sentem imediatamente atraídos por ela e vão ao seu encontro, mas, ao se aproximarem dela, os homens começam a perceber que a encantada desaparece em meio à névoa discreta que forma-se durante a madrugada. Alguns acabam presos no manguezal e morrem atolados por lá. Durante décadas essa lenda foi levada muito a sério, tanto que evitavase passar pelo local em horas mortas para que o destino cruel de ser encantando e morrer preso no mangue não se tornasse uma realidade para qualquer um ousasse passar pelo local., que era conhecido como “EncantaMoça” até meados do século XX. O sociólogo e escritor Gilberto Freyre também traz relatos dessa história em seu livro “Assombrações do Recife Velho”: Nunca mais se viu a iaiá que devia ser mulher bonita, além de branca, para ser tão oprimida pelo senhor seu marido. Talvez tenha se tornado alamoa: e ruiva como uma alemãzinha apareça nas noites de lua a homens morenos e até pretos, assombrando-os e enfeitiçando-os com sua nudez de branca de neve. Mas desmanchando-se como sorvete quando alguém se afoita a chegar perto de seu nu de fantasma. Desmanchando-se como sorvete e deixando no ar um frio ou um gelo de morte. Frio ou gelo que é aliás característicode quase toda a assombração recifense em que um morto aparece a um vivo. (FREYRE, 1955) O fato é que jamais saberemos se a história da iaiá que se encantou no manguezal para escapar da tirania do seu poderoso marido é ou não verdade, pois, não se tem nem certeza em que ano a história teria acontecido. A lenda do Encanta-moça é a versão recifense para as lendas de sereias, que utilizam toda sua beleza para seduzir desavisados e leva-los a perdição e 11 a morte. Tanto as sereias quanto a iaiá encantada são entidades femininas ligadas ás águas e é comum ter a figura do sagrado feminino relacionadas a tais histórias assustadoras. No livro, Freyre (1955) também faz uma analogia da encantada com a Alamoa, figura de uma loira sinistra que apavora os visitantes da Ilha de Fernando de Noronha, atraindo-os para o mar e os matando afogados tal qual as sereias faziam segundo a mitologia grega. • Fantasma da Debutante Outra história verídica e triste. No prédio onde se localiza o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM, na Rua da Aurora, cartão postal da nossa cidade foi palco para uma história medonha. As paredes do museu não abrigam somente exposições e atividades culturais diversas, em seu interior o espírito de uma jovem assombra os cômodos do local. No início do século XX o MAMAM já foi sede do Clube Internacional do Recife, recebendo importantes eventos em seu salão. Festas de casamento, bailes de carnaval, saraus, festas de debutantes. E foi justamente em uma festa de debutante que uma tragédia aconteceu no antigo clube. Em 1920, conta-se que filha de um rico aristocrata da época iria comemorar seu décimo quinto aniversário no local. A jovem chamada Ana Lúcia entrou no salão de festas com seu traje de gala imponentíssimo chamando a atenção de todos os presentes para ela. Porém, algo totalmente inesperado aconteceu: a jovem que vestia um longo vestido branco tropeçou nas escadas que ligavam o primeiro pavimento ao salão principal, rolando escada a baixo por vários degraus até chegar ao chão. A jovem quebrara o pescoço e morrera ali, na frente de todos os convidados, no dia do seu aniversário. Acredita-se que pela morte trágica e precoce da jovem seu espírito tenha ficado preso no casarão histórico e que hoje ele ainda habita o local. Funcionários do museu afirmam que a 12 noite a adolescente caminha pelos corredores do local, assustando quem ela encontrar pelo caminho. Alguns servidores públicos que trabalharam na localidade pediram afastamento do trabalho por medo do Fantasma da Debutante, como a assombração é conhecida. • O Papa-Figo e o Velho do Saco Era comum ouvir em tempos passados mães falarem a filhos desobedientes e rebeldes que queriam brincar por horas na rua sem ir para casa a seguinte frase: “- Menino, entre agora antes que o velho do saco venha te pegar e te levar para o papa- figo!” Pois bem, essa é uma das lendas urbanas mais conhecidas em todo o nosso estado. Segundo relatos populares, o Papa-figo seria um rico senhor acometido por uma doença no sangue, tal doença misteriosa deformava a aparência do sujeito. Há ainda a descrição de que existiam duas espécies dessa aberração: a primeira, o indivíduo infectado pela enfermidade possuía uma aparência praticamente normal e poderia até ser confundido com qualquer pessoa, pois, ele conseguia disfarçar as lesões em sua pele com roupas totalmente fechadas. Já a segunda espécie da doença transfigurava o sujeito por ela acometido: suas orelhas e unhas cresciam excessivamente que o normal, além de seu corpo possuir uma quantidade bizarra de pelos. Suas unhas além de enormes estavam sempre sujas. Ao fim do século XIX um forte boato começou a circular pela cidade do Recife. O que se conta é que um nobre senhor de uma rica, poderosa e influente família da nossa capital contraiu a doença que ninguém sabia ao certo do que se tratava e assim que contraiu a enfermidade rapidamente sua feição começou a transforma-se devido a ela: os sintomas da moléstia incluíam um desânimo total para qualquer atividade, pele amarelada e ele não aguentava se expor ao sol, sua pele enchia-se de pústulas. Pela sintomatologia diziam ao homem que ele tinha uma séria infecção no sangue. 13 As poucas pessoas que o viam ficavam apavoradas, nenhum médico conseguia com exatidão indicar um medicamento eficiente para o caso. Com o tempo, o homem passou a enclausurar-se cada vez mais em sua residência, cada dia mais doente, mais amargurado com a vida. Havia quem acreditasse e dissesse que ele estava se tornando um lobisomem. Ele já havia perdido as esperanças de um dia retomar a sua vida normalmente quando um preto velho empregado há anos de sua família lhe disse que o caso dele ainda tinha solução, mas que a solução era um tanto quanto inusitada. Fazendo qualquer coisa para se curar daquele mal, o homem disse quem não importava o que seria a cura, que ele estava disposto a fazer o que fosse para conquistá-la. Foi nesse exato momento que o empregado disse ao seu senhor: a cura para o seu caso é comer fígado de criança novinha, quanto mais nova melhor. Posso sair para caçar se o senhor permitir que eu faça. E assim foi feito, o homem autorizou que o seu empregado fosse à busca da sua cura. Atraindo as crianças com doces, o preto velho pegava um por um, colocava em um saco e os lavava para o seu senhor. Para não chamar atenção desnecessária, o velho do saco como ele ficou conhecido, usava sacos grandes e sujos usados para transportar açúcar. Quando indagado sobre o conteúdo do saco, ele explicava que em seu interior ele carregava ossos de animais que serviriam para o refinamento de açúcar. Recém-nascidos também eram subtraídos pelo velho para que o seu senhor pudesse comer o fígado. Em casos assim, era como se uma troca nada justa acontecesse: o velho levava o bebê sem que os pais percebessem e deixavam uma quantia em dinheiro no lugar, quase uma reparação de danos por ter retirado o recém-nascido do seu lar. Quando o velho do saco chegava á residência do Papa-Figo, ele retirava os fígados das crianças raptadas e os dava ao seu patrão para que ele degustasse os órgãos ainda frescos e crus, pois só assim a doença seria curada. O estranho remédio de seu empregado foi fazendo efeito até que um dia o seu patrão estava completamente recuperado. 14 Essa foi apenas uma de tantas histórias de papa-figos e velhos do saco que surgiram em nossa cidade. Com o passar dos anos a lenda foi modificando-se a realidade da sociedade atual. No século XX, o boato que surgiu e fez lembrar a história do velho do saco foi um carro preto (prata, branco, existem variações para a história), que andava pelos bairros da cidade raptando crianças para traficarem órgãos. É importante ressaltar a diferença entre o Papa-Figo e o Velho do Saco: o primeiro era um senhor rico e vindo de uma família nobre, que foi acometido por uma estranha enfermidade, sua única cura seria comer o fígado de crianças. Já o segundo era empregado do primeiro, e era ele que realizava os raptos das crianças e retirava seus órgãos para que seu patrão pudesse comer comê-los. • Galega de Santo Amaro Inaugurado em 1851, o Cemitério de Santo Amaro abriga túmulos luxuosos, muitos deles talhados em mármore, com letras em bronze e estátuas em tamanho natural. Visitar o Santo Amaro é mergulhar numa galeria de arte a céu aberto tamanha a riqueza de detalhes das peças que lá se encontram. O cemitério é a morada eterna de personagens célebres como Joaquim Nabuco, que foi jornalista, diplomata, historiador. Além dele, também estão por lá o famoso compositor de tantos frevos Capiba e o cantor Chico Science, que morreu vítima de um terrível acidente de carro. Além dessas personalidades o Santo Amaro também abriga causos encantados sem explicação. Como explicar a devoção a Menina SemNome? A ela, são atribuídos milagres de fiéis que acreditam que a menina seja milagrosa. Em seu túmulo são deixados votos em agradecimento por graças alcançadas. Ninguém sabe quem foi a criança: a menina de oito anos de idade foi vítima de um crime bárbaro na década de 70, ainda na época da ditadura. Assassinada, seu corpo foi encontrado na praia do Pina amarrado e sem roupas e sua identidade jamais foi conhecida. Até hoje, seu túmulo é o mais visitado em Santo Amaro. 15 Mas o cemitério é o lar de uma assombração que por muito tempo amedrontou homens que passassem pelas redondezas. A tal assombração trata-se de uma mulher loira, sedutora, que chamava a atenção pela sua beleza e que por este motivo seduzia facilmente quem atravessasse seu caminho levando-os até o cemitério. A figura fantasmagórica era sempre vista por volta da meia-noite no entorno do Santo Amaro, e era nas horas mortas que ela convidava os homens que encontrava para um passeio. Foi na década de 70 à história ganhou força e se espalhou pela cidade. As vítimas da assombração geralmente eram os motoristas e cobradores da antiga companhia municipal de transporte, a CTU, pois a garagem da companhia funcionava em frente ao cemitério. De salto, vestido vermelho curto e sensual, a tal mulher misteriosa levava os sujeitos para dar uma volta dentro do cemitério (que passeio inusitado!) e ao chegar ao seu túmulo ela olhava para a vítima e se transformava em uma caveira na sua frente dizendo “eu moro aqui”, apontando para o jazigo onde fora sepultada e que seria sua morada eterna. Os pobres homens fugiam desesperados do local e nunca mais queriam saber de passar por ali sozinhos durante a madrugada. • Boca-de-Ouro Esta assombração é vista durante a madrugada pelas ruas do bairro do Recife Antigo. Ao ver a figura de um boêmio bem vestido e de branco, pode ter certeza que se trata do Boca- de-Ouro, o boêmio que pode ser considerado a mistura de um zumbi com um demônio. A figura encantada muito se assemelha a entidade conhecida por “Zé Pilintra”, cultuada pela Umbanda. Citado do livro de Gilberto Freyre “Assombrações do Recife Velho”, o sociólogo afirma que assombração não pertence exclusivamente ao Recife, aparições fantasmagóricas do espectro também foram catalogados em outras cidades do Brasil. 16 A figura do boêmio começou a ter relatos de sua aparição no início do século XX, ele é visto caminhando vagarosamente fumando seu cigarro e como já foi mencionado está sempre muito bem vestido: paletó branco, sapatos lustrosos e bem engraxados e na cabeça um chapéu no estilo “Panamá”. A assombração interpela caminhantes desavisados que caminham despreocupados pelas ruas vazias do centro da cidade voltando para casa após uma noite de farra. Ao encontrar alguém, ele pede “fogo” para acender seu cigarro. Possuindo ou não fósforo ou isqueiro para emprestar ao mal assombro, a vítima leva um grandioso susto ao olhar mais atentamente para Boca-de-Ouro: seu rosto é inteiro carcomido, como o de um cadáver e dele um forte cheiro de enxofre é emanado. Com o susto, a pessoa sai correndo em disparada para o mais longe possível daquela aparição sobrenatural, mas, a fuga é em vão. O demônio libera uma gargalhada nefasta e expõe sua boca repleta de dentes de ouro, assustando ainda mais a sua vítima que não consegue ir muito longe, em questão de segundos ao chegar à outra esquina ou em uma encruzilhada, o espectro já está à espera novamente do sujeito, aguardando-o chegar com outra risada maléfica. A situação angustiante vivida pela pobre vítima se repete a cada esquina que ela tente fugir para escapar da aparição, até que não aguentando mais de horror e tomado pelo pânico e uma fadiga intensa, ele desfaleça e desmaie. O sujeito é encontrado na manhã seguinte caído no chão no meio da rua e é socorrido pelos que passam no local, que curiosos perguntam o que aconteceu e não acreditam na resposta: o encontro com o Boca-de-Ouro é considerado pelos que ouvem história de bêbado ou de uma pessoa que não possui seu juízo normal. A assombração não é vista importunando grupos de homens ou casais passeando pelas ruas à noite, Boca-de-Ouro prefere mesmo é afligir boêmios em busca de aventuras noturnas ou simplesmente aqueles que vagam por aí sozinhos pela noite. 17 • Rio Capibaribe O Capibaribe possui 248 quilômetros de extensão desde o seu nascimento até desaguar no oceano. Ele nasce como um simples riacho no município de Poção, Agreste de Pernambuco, e ao chegar a capital do estado, atravessa diversos bairros do subúrbio do Recife. O Rio Capibaribe continua sendo um dos cartões postais da nossa cidade: em meio ao caos e agitação da vida urbana ele segue seu curso natural sem ser interrompido. Suas águas refletem tanto a arquitetura local quanto as nuvens no céu durante o dia, ou o brilho natural da lua as luzes da cidade à noite. O certo é que apesar de toda sua beleza majestosa, o Capibaribe provocou medo - se é que ainda não provoca – aos recifenses por longos anos. Há quem ainda defenda atualmente que suas águas são mal assombradas e que ali habitam diversos espíritos. Segundo histórias antigas, o Capibaribe guarda a alma daqueles que utilizaram suas águas para abreviarem a sua vida: ao se suicidarem, o corpo deixava este mundo, mas, a alma jamais sairia dele. Fantasmas habitam o rio, pois, ao realizar o suicídio eles ficaram presos no purgatório entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, sendo assim, jamais encontrariam descanso eterno nem no céu e nem no inferno. Em décadas passadas, muitos afirmam que presenciaram aparições sobrenaturais pelo rio, é comum que vultos sejam vistos flutuando em suas águas. É durante a madrugada que as aparições surgem com mais frequência nas margens ermas do Capibaribe. Nem só almas que partiram desse mundo por livre e espontânea escolha habitam o Capibaribe. Há também aqueles que o próprio rio ceifou a vida. Era comum até o início do século XX as pessoas se banharem em suas águas, muitos acreditavam até que elas tinham poderes medicinais e quem banhar-se no trecho próximo ao bairro do Poço da Panela poderia auxiliar na recuperação de algumas enfermidades. 18 O fato é que hoje devido a poluição de suas é praticamente impossível imaginar que há décadas atrás suas águas ainda eram límpidas. Muitos dos que se banharam no Capibaribe por lá mesmo ficavam: acabavam arrastados pela força das de suas águas e nelas desapareciam. Seus corpos eram achados metros de distância de onde o afogamento acontecera. As almas das vítimas do Capibaribe também estão presas nas águas do rio, mesmo que elas não tivessem morrido por vontade própria. Ao que dizem essas almas não se conformam com sua partida e assombram o rio como fantasmas, que aparecem em nosso mundo para pedir ajudam a quem está vivo. Um fantasma que também se ouviu muito falar e que assombrou as lavadeiras que iam até o Capibaribe para realizarem seu ofício foi o ViraRoupas. O espectro ficou conhecido por este nome por ser um fantasma zombeiro: a assombração não dava paz as pobres lavadeiras que usavam as margens do rio para lavarem roupas. Segundo Gilberto Freyre, que cita o fantasma em seu livro “Assombrações do Recife Velho”, o Vira-roupas era expert em “roubar trouxas das pobres mulheres, camisas finas de doutores, toalhas de casas lordes, lenços caros de iaiazinhas”. Se o tal fantasma zombeteiro ainda habita as águas do Capibaribe não sabemos, uma vez que suas águas não são mais usadas para a lavagem de roupas. Não podemos esquecer de mencionar que as águas do Capibaribe foram altamente destrutivas para a nossa cidade na década de 70: o rio inundara Recife nos períodos chuvosos, causando destruição por todos os lados onde as águas invadiram. Em 1975 aconteceu a pior enchente da história do nosso estado.Quando o rio começou a baixar grande foram os estragos feitos pela violência das águas. Foi neste ano também que o maior boato da história de Pernambuco se espalhou causando um pânico generalizado nas pessoas em todo o estado. Devido à inundação que deixou dezenas de pessoas sem casas para morar e até mortos e desaparecidos, surgiu o boato que a barragem de Tapacurá havia se rompido e que com isso a cidade seria invadida pelas águas do Capibaribe e desapareceria. O corre-corre após rumor do 19 rompimento da barragem ganhar cada vez mais força, o caos havia se instalado pelas ruas do Recife. Todos tentavam de alguma maneira escapar das águas que invadiriam a cidade. No fim, o falatório foi desfeito e aos poucos a vida na capital voltou a entrar no eixo. Com a construção de barragens de contenção para o Capibaribe, nunca mais houve na capital uma enchente com essa proporção. O principal rio da nossa cidade segue quieto desde então, mas nada impede que a qualquer momento ele possa se enfurecer e causar grandes estragos com suas águas cruéis. As histórias medonhas que rondam o Capibaribe não param por aí. Em julho de 2004, um gari trabalhava na limpeza do rio nas proximidades da ponte Maurício de Nassau, no centro da nossa cidade, quando encontrou um saco de lixo preto. Rapidamente o local começou a aglomerar uma grande quantidade de pessoas e logo as autoridades chegaram até o local. O motivo de tanta balbúrdia? O saco continha sete crânios humanos. De acordo com as testemunhas que ali estiveram presentes, o gari ficou bastante inquieto e apavorado ao perceber o que saco abandonado as águas do rio continha. A Polícia Militar foi acionada para atender a ocorrência junto com o Corpo de Bombeiros e peritos do Instituto de Criminalística, que recolheram o material para análise no Instituto de Medicina. Nunca se descobriu a verdade sobre os restos mortais encontrados no Capibaribe. Na época especulações de que as ossadas teriam sido utilizadas em “rituais de magia negra” ou que seriam “restos de algum crime antigo” foram levantadas. De certo é que as almas dessas caveiras poderiam assombrar também as águas do rio, já carregadas de histórias macabras para contar. 20 • Casa da Cultura A antiga Casa de Detenção do Recife foi inaugurada no ano de 1855. O prédio possui o formato de uma cruz e foi construído obedecendo a um modelo comum de segurança para época, o “panopticon”. Localizada a beira do Rio Capibaribe, o monumento histórico funcionou por 118 anos como presídio até ser desativado em 1973, por ordem de Eraldo Gueiros Leite, governador do nosso estado na época. Imponente, suntuoso e único, o prédio que em outro século abrigou a penitenciária mais importante de Pernambuco hoje passa longe do seu passado nefasto. As selas que outrora abrigaram os mais diferentes tipos de maus elementos, hoje são ocupadas por lojas de artesanato com os mais diferentes tipos de materiais vindos de todo o estado, além de associações culturais e lanchonetes. O espaço que foi transformado em um moderno centro de compras respeitando as nossas tradições, hoje é referência para a cultura pernambucana. A Casa também conta com um anfiteatro que recebe todo tipo de manifestação cultural popular, como espetáculos de dança e teatro, música, capoeira, entre outras atividades. Mas, como nem tudo são flores, o local também abriga histórias de horror. Você seria capaz de imaginar quantas histórias apavorantes ele pode esconder? Nem todas as selas da antiga Casa de Detenção foram reformadas e transformadas em loja. A cela de número 106 foi mantida em seu estado original como era quando o espaço ainda era um presídio: a atmosfera dela é pesada e quem passa alguns minutos a observando diz que sente um incômodo como se algo ruim ali estivesse presente. Talvez seja a energia pesada que o local ainda possa conter, devido há todos os anos que abrigou tantos homens desesperados por sua liberdade. Conta-se que o prédio abriga as almas dos presos que ali vieram a óbito sem jamais conhecer novamente a sensação de ser livre. Artesões que trabalham no local afirmam que vez 21 ou outras vozes ecoam dentro das selas, é como se os fantasmas presentes no local pedissem socorro para sair dali. Um caso verídico de uma tentativa de fuga acabou deixando dois detentos mortos e conta-se que as almas das duas vítimas ainda vagam pelo local. Nenhum prisioneiro conseguiu fugir da penitenciária em todo o tempo que ela funcionou como casa de reclusão. Ela era tão segura que os únicos homens que tentaram fugir de lá morreram na tentativa e serviram como exemplo para que outros detentos não tentassem cometer o mesmo erro. Os sujeitos tentaram fugir pela tubulação de esgoto do lugar, porém, eles não contavam que a tubulação fosse afunilando à medida que se aproximava do mangue em frente a penitenciária, local onde o esgoto era despejado. Os homens acabaram morrendo entalados nos encanamentos e os seus corpos foram encontrados dias depois do acontecido. Acredita-se que as almas deles vagam perdidas pela Casa da Cultura atormentando os passantes que por lá costumam ir. • Maria Fulozinha As florestas da Zona da Mata do nosso estado possuem uma guardiã: a Cumade Fulôzinha. Se você é do tipo de pessoa que maltrata animais ou é caçador por diversão é bom ficar atento: a protetora das matas executa severas punições para quem é cruel com a natureza. E os castigos podem ir desde desorientar a pessoa para que assim ela possa se perder dentro da mata sem saber como achar o caminho que lhe levará para longe daquele suplício, quanto dar uma surra com os cipós das árvores da floresta que faz utiliza como chicote ao executar o castigo. A Cumade Fulozinha, também conhecida por Maria Fulozinha é uma entidade das matas. Além de atormentar caçadores, ela também ela também gosta de aborrecer agricultores e 22 fazendeiros. Seu passatempo favorito é trançar crinas e caudas de cavalos pertencentes aos senhores do campo de maneira tal que seja muito difícil desembaraça-los depois. Outra travessura realizada por Fulozinha é soltar animais presos nos currais das fazendas para que eles fujam dos seus donos. Ela costuma ajudar quem está perdido nas matas quando é reverenciada. Se você não souber qual caminho seguir é só pedir ajuda a ela, mesmo acanhado, peça pra ela te orientar na direção certa que dessa forma você conseguirá achar seu rumo. E fique sempre atento para um detalhe: quando a entidade está nas redondezas, ela solta um forte assobio. Fulozinha costuma castigar crianças mal criadas e desobedientes que não respeitam os pais e os mais velhos. Ela gosta de receber presentes e você quiser ganhar sua confiança pode deixar bolos de rolo pela mata ou pratos de papa, com certeza você ganhará sua admiração. A entidade detesta formalidades, então, não a chame por “Comadre Florzinha”, ela pode irritar-se e até te dar uma surra por isso. Acredita-se que a entidade já tenha sido uma criança em carne e osso. O que se ouve em alguns lugares do interior do nosso Estado é que a menina sofria maus tratos pelo seu pai que vivia bêbado e a batia sem nenhuma motivação específica, após ter ficado órfã de mãe. Num determinado dia, o homem chegou em casa muito bêbado, com fome, estressado e não encontrou a garota, tampouco comida pronta. A menina tinha saído para brincar no mato próximo da sua residência como costumava fazer diariamente, ela adorava trançar e destrançar seus longos cabelos em meio à mata. Além disso ela sempre amou os animais e se sentia protegida quando estava na presença deles. Ao chegar a casa o pai descarregou toda a sua fúria na garota, que foi espancada até desmaiar, após isso o seu pai a enterrou viva na mata. Sua morte foi tão brutal que seu espírito não teve mais paz, ficando presona mata e perturbando seu pai, que não suportando as aparições sobrenaturais da garota acabou se suicidando. 23 Após toda essa tragédia que culminou com o fim da vida da garota, sua alma vive pelas matas para proteger os animais de caçadores que tentem fazer as criaturas sofrerem. Não temos como comprovar se foi assim que a história aconteceu, mas, uma coisa nós podemos afirmar: nossas matas são muito bem protegidas pela garota que fez da floresta seu lar eterno. • Perna Cabeluda Na década de 70, uma medonha assombração começou a causar um pânico generalizado nos moradores da Região Metropolitana do Recife. As histórias que se ouviam sobre a Perna Cabeluda causam espanto até nos mais céticos dos homens. Onde já se viu uma perna desmembrada de um corpo atacando pessoas durante a noite? O caso é que assombração fez diversas vítimas. As rasteiras que a tal perna assombrada da nas pessoas as levava a cair no chão e após isso, o ataque continuava. Com a vítima em pânico e caída ao chão, a Perna Cabeluda continuava o ataque com inúmeros pontapés até que a pessoa entrava em estado de semiconsciência. Ao ser encontrada jogada na rua após a agressão, a vítima custava a dizer o que tinha acontecido, temendo que ninguém acreditasse: uma perna que ataca pessoas a noite? Muitas pessoas foram testemunhas dos ataques da perna, que possui um pé tosco com as unhas cumpridas e podres, além de ser coberta por pelos negros totalmente ensebados. Mas, sempre que um novo caso em que a tal perna fosse protagonista surgisse, um novo detalhe horrendo era adicionado a história. De crianças a velhos, não há sequer uma pessoa que não conheça relatos assombrosos sobre a perna. E ninguém nunca soube de onde vem tanto ódio e o porque da perna atacar pessoas. 24 Recebendo destaque em diversos noticiários policiais, sendo tema de diversas reportagens em rádios e jornais na época de seu aparecimento em meio a ditadura militar, quando era proibido falar em perseguições políticas, injustiças sociais, torturas, era sobre a perna cabeluda que se falava. Raimundo Carrero, escritor e jornalista, afirma que ele é o pai da tal assombração e que tudo teve início ao ouvir de um colega de trabalho na redação do Diário de Pernambuco a seguinte confissão: “Entrei em casa de madrugada e vi uma perna cabeluda debaixo da minha cama...”. Nós sabemos que o resto do corpo do indivíduo também estava em baixo da cama. O certo é que o amante da sua mulher ao tentar se livrar de ser flagrado pelo marido traído, não se escondeu o suficiente. Se a conversa existiu ou não, de fato não saberemos, mas o comentário inusitado foi à motivação para o escritor criar todo um universo ao redor da estranha figura, que virou até personagem principal sendo tema de uma crônica publicada em 1976 no jornal do Diário de Pernambuco pelo escritor. Outro suposto criador da história da Perna Cabeluda é o conhecido radialista e apresentador de televisão Jota Ferreira. Ele garante ser o “pai” da criatura. A sua explicação para o fato? Simples, durante um plantão na época em que trabalhava como repórter policial no programa do ilustre Geraldo Freire, ele não tinha nada a noticiar. Foi daí que surgiu a ideia por meio de uma ordem de seu chefe, inventar uma falsa notícia para que fosse ao ar durante um flash, e o que Jota deu como informação urgente de primeira mão? Que uma vítima acabara de dar entrada no Hospital da Restauração vítima de uma agressão da Perna Cabeluda! E após esse episódio surreal, vários outros relatos de ataques com a perna assombrada surgiram, pois todos os ouvintes da história ficaram apavorados com aquilo e aí não teve outra: o 25 que era apenas uma invenção pra tapar um buraco na programação virou uma boataria amedrontando os moradores do Recife e cidades como Olinda, Paulista Jaboatão dos Guararapes e Camaragibe. Por longos anos, a Perna Cabeluda amedrontou o imaginário coletivo das pessoas fazendo com que muitos evitassem sair em altas horas da noite, horário e que os ataques costumavam ser comuns. • A Cruz do Patrão A torre de alvenaria construída em estilo dórico mede seis metros de altura por dois de diâmetro. Com uma cruz em seu topo, ela era utilizada para sinalizar os navios que chegavam ao porto de nossa capital há séculos atrás para que eles aqui atracassem. O nome do monumento faz referência ao “patrão da embarcação”, esse era o termo náutico que era usado para se referir ao chefe da guarnição de um pequeno barco e daí surgiu o nome pelo qual a construção ficou conhecida. O monumento histórico que hoje está numa área pertencente ao Porto da Cidade do Recife já foi palco para as mais diversas histórias de terror. A Cruz do Patrão é o monumento histórico mais antigo do estado de Pernambuco. Acredita-se que o local tenha sido um cemitério para enterrar os corpos dos escravos que morriam nos porões dos navios negreiros durante a longa viagem que realizavam em péssimas condições da África até o Brasil e aqui eram escravizados a força. Foi a partir deste relato que os boatos sobre o local ser mal-assombrado e possuir uma atmosfera pesada começaram a se espalhar. A Cruz localizava-se no antigo istmo que ligava Recife a Olinda e esse era o caminho mais rápido para ir de uma cidade a outra. Quando o local começou a ganhar fama de mal- assombrado ninguém se atrevia a passar por ali à noite, com medo do que poderia acontecer. 26 Não há como precisar o momento exato em que a Cruz foi erguida, porém, em mapas datados de 1759, já é possível notar que a estrutura estava sinalizada na representação gráfica. O célebre sociólogo Gilberto Freyre em seu livro “Assombrações do Recife Velho” cita a Cruz como um local sobrenatural, e afirma que quem passar por lá em “horas mortas” pode acabar sendo perseguido por espíritos malignos ou até vendo fantasmas, que muitos acreditam serem as almas dos antigos escravos que ali foram sepultados. O fato é que nunca foi confirmado à hipótese dos tais sepultamentos terem ocorrido mesmo no local. Pesquisas arqueológicas recentes realizadas no entorno da Cruz não encontraram nenhum indício que pudesse comprovar a teoria de que ali tivesse sido um cemitério clandestino. Quem visita o local pode sentir de perto a atmosfera sombria que ele carrega e é recomendado conhecer o local durante o dia, no máximo permanecer ali até o pôr-do-sol. Nunca se sabe que tipo de assombração pode-se encontrar por lá, não é mesmo? • Teatro Santa Isabel Construído pelo engenheiro francês Louis Lérger Vauthier entre 1841 e 1850, o teatro pode acomodar em seu interior aproximadamente 900 expectadores. Localizado na área central do Recife, ele possui como vizinhos a Praça da República, o Palácio do Governo e Palácio da Justiça. Em 169 anos de história o Santa Isabel não foi palco apenas de manifestações artísticas como grandiosos e luxuosos concertos e espetáculos, o também possui sua história marcada debates cívicos, que contaram com a presença de personalidades como Joaquim Nabuco, Castro Alves e Tobias Barreto, além de um grandioso incêndio que quase o destruiu por completo. Após o episódio do incêndio, que nunca foi provado se foi acidental ou criminoso, ele passou por mais de dez reformas até ser o que é hoje. Seu nome é uma homenagem à princesa Isabel, filha do imperador Dom Pedro II. 27 A faixada do imponente prédio histórico que vem resistindo bravamente à passagem do tempo e chama atenção pela beleza grandiosidade. De influência arquitetônica Neoclássica, contudo em seu interior ele esconde mistérios que poucos conhecem. Sons estranhos são ouvidos nos camarins, corredores do teatro e até nos camarotes. Vultos também já foram vistos por quem trabalha no local e por artistas que nele estavam para se apresentar. Gilberto Freyre também cita o Santa Isabel em seulivro “Assombrações do Recife Velho”, Freyre afirma que os acontecimentos que já foram relatados são inexplicáveis. O que se murmura entre os empregados antigos e discretos do Santa Isabel é que em noites burocraticamente silenciosas se ouvem, no ilustre recinto, ruídos e aplausos, palmas, gritos de entusiasmo de uma multidão apenas psíquica. Mas sem que se possa precisar a que ou a quem são os seus aplausos de bocas e mãos que não aparecem (FREYRE, 1955, p.199) Conta-se que o piano do teatro localizado no salão de bailes toca sozinho. É possível ouvir o som das teclas de ecoando por todos os cômodos, mas, quem se aproxima do objeto musical se assusta ainda mais: ele para de tocar repentinamente como num passe de mágica. Os sons de aplausos vindos da plateia também podem ser ouvidos. O vulto de uma bela e jovem bailaria já foi visto diversas vezes dançando no palco. Ao que se pode notar o Teatro de Santa Isabel guarda mais segredos do que nós somos capazes de imaginar. 28 • Faculdade de Direito do Recife Localizada em frente à Praça 13 de Maio, no Bairro da Boa Vista, centro da Cidade do Recife, a Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco foi criada em 1827. Sua primeira sede funcionou em Olinda, e, junto com a Faculdade de Direito de São Paulo, ela é uma das duas faculdades de direito do Brasil ainda em funcionamento desde a época de sua fundação. O centro acadêmico é um dos mais tradicionais do nosso Estado. A faculdade foi palco para acontecimentos históricos, embates políticos e possui ex-alunos renomados como Barão do Rio Branco, Paulo Freire, Joaquim Nabuco, Castro Alves, Ruy Barbosa, Rosa e Silva, Augusto dos Anjos, Ariano Suassuna, Miguel Arraes, Assis Chateubriand, entre outros. Os corredores da faculdade guardam histórias que poucos conhecem. Roberta Cirne, ex-aluna da instituição relatou que presenciou um caso sobrenatural dentro da faculdade. Após descobrir um terraço secreto na faculdade, ela passou a frequentar o local escondida, pois os alunos não tinham permissão para ir até lá. Certo dia acompanhada por um grupo de amigos de fora do Estado, ela resolveu leva- los até o seu refúgio secreto, o tal terraço na faculdade, para verem o pôr-do-sol. Guiando o grupo que não conhecia o prédio, ela foi na frente subindo as escadas de acesso para mostrar o 29 caminho. Seus amigos ficaram um pouco para trás na subida enquanto Roberta caminhava em direção ao terraço. Dado um certo momento em que ela parou para esperar o grupo, ela sentiu que alguém se aproximara dela, um homem, que ela nunca tinha visto e que de longe não era possível ver o rosto. Ela estava todo de negro, bem vestido, e ao se aproximar de Roberta, ela pode perceber que não se tratava de uma pessoa em carne e osso, mas sim de um espectro. Ao ver aquela assombração apavorante, Roberta desceu as escadas correndo sentindo que “a coisa” como ela definiu estava no seu encalço. Vendo que ela fugira de algo, todo o grupo correu atrás dela. Ao chegarem ao pátio da instituição ela contou o havia visto e todos foram embora. Outros casos sobrenaturais foram relatados na instituição. Há quem afirme que o fantasma do filósofo, jurista e poeta Tobias Barreto, assombre os corredores da faculdade. O trecho abaixo foi retirado de um artigo escrito pelo historiador Leonardo Dantas Silva em 1975. O caso do fantasma da Faculdade de Direito do Recife é um a mais que se inscreve na grande lista de casos de assombrações desta cidade: Segundo alguns alunos e professores daquela casa, um tipo misterioso, que se diz chamar Santana Filho, comparece sempre às aulas daquela escola e some de maneiras as mais estranhas. Alunos e professores chegam a afirmar estórias de vultos que perambulam pelos corredores do prédio da Faculdade de Direito, pontificam e desaparecem misteriosamente dos bebedouros e, agora, comparecem às aulas, sentando ao lado de professores e, no final, ainda estendem a mão para um aperto gélido demonstrando a sua identidade alienígena. O fantasma da Faculdade de Direito, segundo versões de funcionários antigos, pode ser o do servente José Francisco de Souza, 'que morreu na hora do expediente há alguns anos”, não sendo tal “aparição novidade'. (SILVA, 1975) Funcionários mais antigos da instituição afirmam que dentro dos departamentos que funcionam no porão da unidade, vultos e vozes são ouvidos com frequência. 30 Durante a época da ditadura vários presos políticos ficaram no local e até hoje afirma-se que durante a madrugada os gritos daqueles que sofreram presos durante este triste capítulo de nossa história pode ser ouvido. Outra lenda do local é que o relógio que funciona em uma das torres deixou de ser consertado há anos por um simples motivo: sempre que ele voltava a parar um professor da unidade morria. Existem mais coisas entre o real e o sobrenatural do que nós meros humanos somos capazes de entender e explicar. 31 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para Rostand (2011), as ruas estreitas e a escuridão, que antigamente reinavam o Recife com toda certeza alimentavam com suas sombras o imaginário popular. A abertura de novas e largas avenidas, o ritmo inquietante da vida atual e a iluminação pública nas ruas parecem ter acabado com todos ou com praticamente a maior parte dos fantasmas que habitavam no Recife antigo, ou não foram os fantasmas que deixaram de existir, e sim as pessoas que tenham deixado de temê-los. Com esta pesquisa podemos perceber que quando a sociedade muda, seus costumes, crendices tudo muda junto. Toda sociedade se transforma, se moderniza e talvez as lendas de assombrações do Recife tenham sido deixadas de lado por este motivo, devido às mudanças de comportamento da sociedade, uma vez que os hábitos e costumes do povo mudaram com a modernização das tecnologias. A questão não é só o fato das pessoas não acreditarem mais nas lendas, passou a ser também a relação de sentido entre o passado e o presente, uma vez que tais assombrações já não possuem a mesma força para assustar as pessoas como possuíam no passado. É nítido que pouco se fale sobre o folclore recifense, pois pouco se conhece dele. Conhecer nosso passado é preservar as nossas memórias para gerações futuras. Este trabalho é importante para que essas memórias não sejam esquecidas. O resgate cultural de um legado que apavorou gerações é hoje desconhecido a grande parte dos populares. Talvez por nunca tivessem tido a curiosidade em saber sobre o assunto, talvez por nunca tivessem ouvido falar sobre isso. O fato é que as assombrações do Recife fazem parte da nossa identidade cultural enquanto sociedade e não podemos simplesmente deixar que elas se percam. O jornalismo pode contribuir para o resgate dessas histórias que estão ficando para trás. Para que isso aconteça, é necessário trabalhar coletivamente o imaginário popular resgatando as narrativas antigas. Já que a função social do jornalismo é informar, através dele seria possível fazer com as pessoas tomassem conhecimento do seu próprio passado. É possível trabalhar esse universo lúdico através da atividade turística e jornalística, e, dessa forma, as lendas poderiam se transformar em algo popular e atrativo, próximo da realidade das pessoas. As lendas estão ajudando a fomentar turismo na nossa cidade de forma positiva, uma vez que um roteiro mal assombrado é um diferencial e tanto para uma cidade que praticamente só comercializa turismo de sol e mar. Quem participa de atividades turísticas com o 32 tema, através de passeios nos lugares assombrados, além de conhecer nossa história, incentiva outras pessoas a conhecerem também. Só temos a ganhar com a preservação da nossa história.