Prévia do material em texto
1 ❖ Conceito de epidemiologia Atualmente a epidemiologia se preocupa com a agudização das doenças infecciosas, a qualidade dos cuidados de saúde, os problemas de saúde mental, as doenças do trabalho, os impactos ambientais e o bioterrorismo. Além de dispor de instrumental específico para análise do processo saúde-doença na população, a epidemiologia também possibilita aclarar questões levantadas pelas rotinas das ações de saúde, produzindo novos conhecimentos. Sua finalidade última é contribuir para a melhoria de vida e o soerguimento do nível de saúde das coletividades humanas. A definição de epidemiologia é complexa. Pode-se, de maneira simplificada, conceituá-la como “ciência que estuda o processo saúde-doença em coletividades humanas, analisando a distribuição e os fatores determinantes do risco de doenças, agravos e eventos associados à saúde, propondo medidas específicas de prevenção, controle ou erradicação de doenças, danos ou problemas de saúde e de proteção, promoção ou recuperação da saúde individual e coletiva, produzindo informação e conhecimento para apoiar a tomada de decisão no planejamento, administração e avaliação de sistemas, programas, serviços e ações de saúde.” Essa definição pode ser aclarada pelo aprofundamento de algumas concepções nela expressas: O processo saúde-doença é um qualificativo empregado para adjetivar genericamente um determinado contexto social, qual seja, a maneira específica de passar de um estado de saúde para um estado de doença e seu modo recíproco. Descontextualizada, a expressão saúde-doença refere-se a uma ampla gama, que vai desde “o estado de completo bem-estar físico, mental e social” até o de doença, passando pela coexistência de ambos em proporções diversas. A ausência gradativa ou completa de um desses estados corresponde ao espaço do outro, e vice-versa. Assim, a epidemiologia visa: 1. Descrever a distribuição e a magnitude dos problemas de saúde nas populações humanas. 2. Proporcionar dados essenciais para planejamento, execução e avaliação das ações de prevenção, controle e tratamento das doenças, bem como para estabelecer prioridades. 3. Identificar fatores etiológicos na gênese das enfermidades. ➢ Modelos explicativos do processo saúde- doença Logo após a II Guerra Mundial, mudanças políticas assumem posições estratégicas no cenário mundial, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), que, por sua vez, define um novo conceito para saúde: “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não mera ausência de moléstia ou enfermidade” (WHO, 1948). Entre os anos de 1970 e 1980, a saúde pública/saúde coletiva amplia seu escopo e, consequentemente, as explicações causais dos processos saúde-doença também são ampliadas, abandonando-se o modelo unicausal (biomédico) em favor do multicausal como o modelo explicativo da história natural da doença e da determinação social do processo saúde-doença. Na história natural da doença admite-se o conceito de saúde com uma estruturação explicativa proporcionada pela tríade ecológica (agente, suscetível e meio ambiente), enquanto na determinação social do processo saúde- doença admite-se um processo dinâmico, complexo e multidimensional que engloba dimensões biológicas, psicológicas, socioculturais, econômicas, ambientais e 2 políticas a fim de identificar uma complexa inter- relação quando se trata de saúde e doença de uma pessoa, de um grupo social ou de sociedades (CRUZ, 2011; PUTTINI et al., 2010). ❖ História natural da doença História natural da doença é o nome dado ao conjunto de processos interativos que compreendem “as inter-relações do agente, do suscetível e do meio ambiente que afetam o processo global e seu desenvolvimento, desde as primeiras forças que criam o estímulo patológico no meio ambiente, ou em qualquer outro lugar, passando pela resposta do ser humano ao estímulo, até as alterações que levam a um defeito, invalidez, recuperação ou morte” (LEAVELL & CLARK, 1976). A história natural da doença, portanto, tem desenvolvimento em dois períodos sequenciados: o período epidemiológico e o período patológico. No primeiro, o interesse é dirigido para as relações suscetível-ambiente; ao segundo interessam as modificações que se passam no organismo vivo. Abrange, portanto, dois domínios interagentes, consecutivos e mutuamente exclusivos, que se completam: o meio ambiente, onde ocorrem as pré- condições, e o meio interno, lócus da doença, onde se processaria, de maneira progressiva, uma série de modificações bioquímicas, fisiológicas e histológicas próprias de uma determinada enfermidade. Alguns fatores são limítrofes. Situam-se, de modo indefinido, entre os condicionantes pré-patogênicos e as patologias explícitas. São anteriores aos primeiros transtornos vinculados a uma doença específica, sem se confundir com esta, e ao mesmo tempo são intrínsecos ao organismo do suscetível. Numa situação normal, na ausência de estímulos, jamais se exteriorizariam como doenças. Em presença desses fatores intrínsecos preexistentes, os estímulos externos transformam-se em estímulos patogênicos. Dentre as precondições internas, citam-se os fatores hereditários, congênitos ou adquiridos em consequência de alterações orgânicas resultantes de doenças anteriores. Os estímulos externos, como pobreza, devem ser considerados fatores primários (FEE & KRIEGER, 1993). Sua utilidade maior é a de apontar os diferentes métodos de prevenção e controle, servindo de base para a compreensão de situações reais e específicas e tornando operacionais as medidas de prevenção. ➢ Período de pré-patogênese O primeiro período da história natural (denominado por Leavell & Clark [1976] período pré- patogênese) representa a própria evolução das inter- relações dinâmicas, que envolvem, de um lado, os condicionantes sociais e ambientais e, do outro, os fatores próprios do suscetível, até que chegue a uma configuração favorável à instalação da doença. É também a descrição dessa evolução. Envolve, como já referido antes, as relações entre os agentes etiológicos da doença, o suscetível e outros fatores ambientais que estimulam o desenvolvimento da enfermidade e as condições socioeconômico-culturais que possibilitam a existência desses fatores. 3 o Fatores sociais O estudo em nível pré-patogênico da produção da doença em termos coletivos, objetivando o estabelecimento de ações de ordem preventiva, deve considerar a doença como fluindo, originalmente, de processos sociais, crescendo por meio de relações ambientais e ecológicas desfavoráveis, atingindo o ser humano pela ação direta de agentes físicos, químicos, biológicos e psicológicos, ao se defrontarem, no indivíduo suscetível, com precondições genéticas ou somáticas desfavoráveis. Os fatores que constituem esse componente social podem ser agrupados didaticamente, com vistas a uma melhor compreensão, em quatro tipos gerais cujos limites não se pretende que sejam claros ou finamente definidos: (a) fatores socioeconômicos; (b) fatores sociopolíticos; (c) fatores socioculturais; e (d) fatores psicossociais. o Fatores socioeconômicos Existe uma associação inversa, que não é somente de ordem estatística, entre capacidade econômica e probabilidade de adquirir doença. Os grupos sociais economicamente privilegiados estão menos sujeitos à ação dos fatores ambientais que ensejam ou que estimulam a ocorrência de certos tipos de doenças cuja incidência é acintosamente elevada nos grupos economicamente desprivilegiados. Segundo Renaud (1992), os pobres são percebidos como mais doentios e mais velhos; são duas ou três vezes mais propensos a enfermidades graves; permanecem doentes mais amiúde; morrem mais jovens; procriam crianças de baixo peso em maior proporção; e sua taxa de mortalidade infantil é mais elevada. o Fatores sociopolíticosIdenticamente ao que acontece com os fatores econômicos, os fatores políticos são indissociáveis da totalidade que os condiciona. Se em estudos analíticos de pré-patogênese esses fatores, pela própria natureza do proceder científico, são isolados e desse modo analisados, isso jamais poderá ser interpretado e confundido como se se tratasse de uma maneira de traduzir a realidade, reconhecendo- a como resultante da interação dos fatores que serviram à sua análise. As categorias de análise não podem ser confundidas com as categorias de realidade. o Fatores socioculturais No contexto social, devem ser citados preconceitos, hábitos, crendices, comportamentos, normas e valores, valendo como fatores pré- patogênicos contribuintes para difusão e manutenção de doenças. Por exemplo, as características pré- patogênicas sobre o comportamento podem influenciar diretamente as percepções e práticas diante da doença, como a malária em uma comunidade de Gana que acreditava que o “asra” era causado por contato prolongado com o calor excessivo e muitos membros da comunidade não conectavam o vetor à doença e não reconheciam como doença (AGYEPONG, 1992). o Fatores psicossociais Dentre os fatores psicossociais aos quais pode ser imputada a característica de pré-patogênese, encontram-se: ausência de relações parentais estáveis, desconexão em relação à cultura de origem, falta de apoio no contexto social em que se vive, condições de trabalho extenuantes ou estressantes, promiscuidade, transtornos econômicos, sociais ou 4 pessoais, falta de cuidados maternos na infância, carência afetiva de ordem geral, competição desenfreada, agressividade vigente nos grandes centros urbanos e desemprego. Esses estímulos têm influência direta sobre o psiquismo humano, com consequências somáticas e mentais danosas. o Fatores ambientais Para efeito de análise estrutural epidemiológica, por ambiente deve ser entendido o conjunto de todos os fatores que mantêm relações interativas com o agente etiológico e o suscetível, incluindo-os, sem se confundir com os próprios. O termo tem maior abrangência do que lhe é dado no campo da ecologia. Além de incluir o ambiente físico, que abriga e torna possível a vida autotrófica, e o ambiente biológico, que abrange todos os seres vivos, inclui também a sociedade evolvente, sede das interações sociais, políticas, econômicas e culturais. São componentes do ambiente físico: situação geográfica, solo, clima, recursos hídricos e topografia, agentes químicos e físicos. Deve ser entendido por ambiente o conjunto de todos os fatores agressivos presentes no ambiente físico e aí colocados por meio de atividades do ser humano, não devendo ser esquecido o uso, às vezes exagerado, de pesticidas na proteção dos cultivos. o Fatores genéticos Os fatores genéticos provavelmente determinam a maior ou menor suscetibilidade das pessoas à aquisição de doenças, embora isso permaneça na fronteira da pesquisa genética. O fato é que, em relação à incidência de doenças, percebe-se que, quando ocorre a exposição a um fator patogênico externo, alguns dos expostos são acometidos e outros permanecem isentos. o Multifatorialidade Ao se considerarem as condições para que a doença tenha início em um indivíduo suscetível, é necessário levar em conta que nenhuma delas será, por si, suficiente. A eclosão da doença é, na verdade, dependente da estruturação dos fatores contribuintes, de modo que se pode pensar em uma configuração de mínima probabilidade ou mínimo risco e em uma configuração de máxima probabilidade ou máximo risco e, entre elas, estruturações de fatores cujo risco varia entre os dois extremos. Quanto mais estruturados estiverem os fatores, maior força terá o estímulo patológico. O estado final provocador de doença é, portanto, resultado da sinergia de uma multiplicidade de fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, psicológicos, genéticos, biológicos, físicos e químicos. ❖ Período de patogênese Os fatores genéticos provavelmente determinam a maior ou menor suscetibilidade das pessoas à aquisição de doenças, embora isso permaneça na fronteira da pesquisa genética. O fato é que, em relação à incidência de doenças, percebe-se que, quando ocorre a exposição a um fator patogênico externo, alguns dos expostos são acometidos e outros permanecem isentos. Neste texto serão considerados quatro níveis de evolução no período de patogênese: (a) interação estímulo-suscetível; (b) alterações bioquímicas, histológicas e fisiológicas; (c) sinais e sintomas; e (d) cronicidade. ❖ Prevenção de doença Somos levados a considerar a saúde pública como uma tecnologia, mais do que uma ciência, isto é, adaptando Winslow, saúde pública é técnica e é arte. 5 Por outro lado, a saúde pública e epidemiologia são indissociáveis quanto a seus objetivos sociais e quanto à sua prática, sendo a epidemiologia o instrumento privilegiado para orientar a atuação da saúde pública. Se a saúde pública é a face tecnológica, a epidemiologia será a face científica. A saúde pública intervém buscando evitar doenças, prolongar a vida e desenvolver a saúde física e mental e a eficiência. A epidemiologia persegue a observação exata, a interpretação correta, a explicação racional e a sistematização científica dos eventos de saúde- doença em nível coletivo, orientando, portanto, as ações de intervenção. A epidemiologia é a ciência que estabelece ou indica e avalia os métodos e processos usados pela saúde pública para prevenir as doenças. A prevenção primária que se faz com a intercepção dos fatores pré-patogênicos inclui: (a) promoção da saúde; (b) proteção específica. A prevenção secundária é realizada no indivíduo, já sob a ação do agente patogênico, no nível do estado de doença, e inclui: (a) diagnóstico; (b) tratamento precoce; (c) limitação da invalidez. A prevenção terciária consiste na prevenção da incapacidade mediante a adoção de medidas destinadas à reabilitação. ❖ Promoção da saúde A saúde, enquanto estado vital, setor de produção e campo do saber, está articulada à estrutura da sociedade através das suas instâncias econômicas, político-ideológicas e históricas. As ações de saúde (promoção, proteção, recuperação e reabilitação) constituem uma prática social e trazem consigo as influências do relacionamento dos grupos sociais. A atuação na perspectiva da promoção da saúde visa a: • Atuar no campo das políticas públicas saudáveis e advogar um compromisso político claro em relação à saúde e à equidade em todos os setores. • Agir contra a produção de produtos prejudiciais à saúde, a degradação dos recursos naturais, as condições ambientais e de vida não saudáveis e a má nutrição e centrar sua atenção nos novos temas da saúde pública, como a poluição, o trabalho perigoso e as questões da habitação e dos assentamentos rurais; atuar pela diminuição do fosso existente, quanto às condições de saúde, entre diferentes sociedades e distintos grupos sociais, bem como lutar contra as desigualdades em saúde produzidas pelas regras e práticas dessa mesma sociedade. • Reconhecer a saúde e sua manutenção como o maior desafio e o principal investimento social dos governos; e dedicar-se ao tema da ecologia em geral e das diferentes maneiras de vida.