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Código Logístico 59523 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6668-1 9 7 8 8 5 3 8 7 6 6 6 8 1 História da Educação Karen Fernanda Bortoloti IESDE BRASIL 2020 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Marek Poplawski/ 4 PM production/ Matej Kastelic/Shutterstock CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ B748h Bortoloti, Karen Fernanda História da educação / Karen Fernanda Bortoloti. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020. 154 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6668-1 1. Educação - História. I. Título. 20-65765 CDD: 370.9 CDU: 37(09) Karen Fernanda Bortoloti Vídeo Pós-doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestra, Bacharela e Licenciada em História pela mesma instituição. Especialista em Educação a Distância pelo Instituto de Ensino Superior COC. Pesquisadora e professora no ensino superior nas áreas de história da educação e ensino de História. Atua na educação a distância como produtora de conteúdos e materiais instrucionais para graduação e pós-graduação. Gestora responsável pela estruturação e avaliação de cursos. Atua também como avaliadora no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e no Ministério da Educação (MEC). Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. 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SUMÁRIO 1 A educação antes da escola 9 1.1 A educação nos primeiros agrupamentos humanos 10 1.2 A educação na Antiguidade Oriental: Egito e Mesopotâmia 12 1.3 Educação na Antiguidade Oriental: China, Índia e o povo hebreu 16 2 Educação na Antiguidade greco-romana 21 2.1 A educação grega na Antiguidade 22 2.2 Dois modelos de educação grega 25 2.3 A educação romana na Antiguidade 33 3 Idade Média: a educação mediada pela fé 38 3.1 As escolas cristãs 39 3.2 O imaginário cristão e a educação 46 3.3 Filosofia medieval e educação 50 4 Renascimento e educação 57 4.1 A importância da educação no Renascimento 58 4.2 Reformas religiosas e educação 65 4.3 O método e a educação 68 4.4 Brasil: colonização e catequese 71 5 Iluminismo e educação 79 5.1 Iluminismo e reflexão pedagógica 80 5.2 Jean-Jacques Rousseau 85 5.3 Brasil: as reformas pombalinas e a educação 90 6 Século XIX: a educação nacional 97 6.1 O ideário do século XIX 98 6.2 O pensamento pedagógico do século XIX 102 6.3 Brasil: de Colônia a Império 110 6.4 Reflexões pedagógicas no final do século XIX 119 6 História da Educação 7 A educação na contemporaneidade 123 7.1 Educação para a democracia 123 7.2 Brasil: como o século XX chega à República 128 7.3 Redemocratização e novo panorama educacional 144 7.4 Século XXI: desafios da educação 148 Nas últimas décadas, especialmente no Brasil, a educação e a escola têm sido pauta de diversas discussões. As práticas educativas e a estruturação da escola, assim como os métodos pedagógicos e a sua eficácia na preparação de crianças e de jovens para a sociedade, são frequentemente tratadas nos mais diferentes círculos, e não apenas no campo educacional. Mas para entendermos os pontos que permeiam essas discussões, bem como os objetivos constantemente repensados para a educação contemporânea, é imprescindível que saibamos quais argumentos são, de fato, novos e quais podem ser considerados apenas releituras, as quais muitas vezes são permeadas por interesses econômicos, políticos ou ideológicos. O posicionamento crítico somente será possível se conhecermos o que chamamos de história da educação. Essa disciplina, que também é um campo de pesquisa relativamente recente, oferece-nos um importante arcabouço para compreendermos disputas políticas e culturais, dinâmicas de conflitos presentes em diferentes sociedades, assim como os diferentes cenários educacionais atuais. Nesse sentido, a proposta desta obra, embasada em um quadro amplo da história da educação, é apresentar possibilidades de análises dos processos que culminaram no estabelecimento da educação formal no Brasil e em outros países. Para que esse objetivo seja alcançado, organizamos os temas e os períodos aqui abordados com base nas primeiras tentativas de elaboração da educação como algo necessário para a manutenção dos conhecimentos acumulados. Desse modo, no primeiro capítulo analisamos o processo educativo em comunidades não hierarquizadas. Nessas civilizações, embora ainda não tivessem uma instituição escolar, é possível notar a valorização e a preparação dos jovens. Também vamos verificar como as mudanças sociais e a elaboração de sistemas de escrita imediatamente impactaram a educação. Em seguida, no segundo capítulo, vamos discutir a educação na antiguidade greco-romana e conhecer as contribuições legadas pelas práticas educativas adotadas nessas civilizações, conhecidas por estruturarem a cultura ocidental. No terceiro capítulo, vamos compreender como a Igreja Católica influenciou a organização da educação durante a Idade Média, uma vez que esse longo período histórico proporcionou importantes reflexões sobre APRESENTAÇÃO 8 História da Educação a educação e assistiu o nascimento de uma nova e revolucionária camada social: a burguesia, grupo que influenciou diretamente na estruturação de uma educação não religiosa. No quarto capítulo, vamos verificar como o Renascimento Cultural lançou as sementes para a educação ser consolidada como um projeto de civilização em curso nas sociedades ocidentais a partir dos séculos XV e XVI, incluindo o território que hoje chamamos de Brasil, abordando também as práticas educativas que por aqui aportaram. Dando continuidade, no quinto capítulo buscaremos compreender a influência da filosofia e dos pensadores iluministas na educação e como seus ideários impactaram a educação brasileira. No sexto capítulo, vamos examinar como o desenvolvimento do capitalismo influenciou a educação, especialmente nos primeiros anos de escolarização dos indivíduos. Em relação ao Brasil, analisamos como a transferência da Família Real portuguesa foi significativa para a política, para a cultura e para a educação. Finalmente, no sétimo capítulo, verificamos como a educação e a escola tradicionais foram contrapostas, especialmente pela Escola Nova, colocando em discussão propostas que ainda estão em processo de consolidação. Bons estudos! A educação antes da escola 9 1 A educação antes da escola O desenvolvimento da agricultura, a organização do comércio e a estruturação do Estado oportunizaram a transformação dos agrupamentos humanos – até então nômades ou sedentários –, que sobreviviam basicamente da caça e da coleta. O aprimora- mento do trabalho foi responsável por uma vida mais estável, com mais segurança e sem tantas mudanças, como no nomadismo. O início da agricultura e a domesticação de animais proporcionaram condições para que as sociedades se tornassem mais complexas, organizadas e criativas. Da mesma forma que a filosofia, a arte e até mesmo a religião, a educação é um instrumento que homens e mulheres utilizam para compreender e modificar sua existência no mundo. Podemos até supor que a história da educação e de seus sujeitos é interessantee que, também, não é um simples desencadeamento de fatos, mas onde exatamente toda essa história começou? A prática educativa e a formação dos mais jovens começou an- tes mesmo da criação da escola. O que hoje chamamos de edu- cação formal surgiu quando os seres humanos se familiarizaram com fenômenos naturais, passaram a utilizar ossos e pedras como instrumentos para as atividades cotidianas, transformaram a na- tureza que os circundava e examinaram essa natureza e a si mes- mos. Nesse momento, o domínio do fogo talvez tenha sido o maior avanço técnico e social, porque fez com que esses indivíduos se agrupassem, tornando-os conscientes de sua comunidade Diante do exposto, antes de discutirmos a história da edu- cação ocidental, vamos analisar neste capítulo como era a educação antes da escola, isto é, nos primeiros agrupamentos humanos e nas civilizações orientais, as quais foram as respon- sáveis pela estruturação das primeiras sociedades hierárquicas de que temos conhecimento. 10 História da Educação 1.1 A educação nos primeiros agrupamentos humanos Vídeo Não é nada fácil historiarmos os primeiros tempos da educação, especialmente porque estamos diante de práticas realizadas por su- jeitos que desconheciam a escrita. O que sabemos hoje é que du- rante séculos homens e mulheres conviveram em pequenos grupos e pequenas comunidades nos quais não havia desigualdade entre as pessoas, tampouco propriedade exclusiva sobre as terras, as ferra- mentas e os conhecimentos, isto é, não havia nenhum tipo de privi- légio. Todos os bens eram coletivos e partilhados entre os membros da comunidade, existia apenas “o nosso”. O termo comunidade nos remete à existência de uma significativa cooperação entre todos os indivíduos. Porém, é importante ressaltar que para esses primeiros agrupamentos a antropologia associou o termo primitivo. Ao contrário do que nos leva a acreditar, a expressão comunidade primitiva não significa comunidade atrasada, mas apenas que eram sociedades menos complexas, não hierarquizadas e que re- presentavam outra forma de viver (PONCE, 1986). Essas comunidades, especialmente com o domínio de técnicas e a elaboração de outros instrumentos, também se modificaram de manei- ra diversa ao longo do tempo e nem todas se desenvolveram, ou, como preferem alguns, alcançaram a “civilização”, sendo um ótimo exemplo os povos encontrados na América no momento em que os europeus estiveram aqui pela primeira vez. Nessas primeiras sociedades, apesar da ausência da escrita e, consequentemente, de uma reflexão pedagógica e métodos educacionais sistematizados, existia uma maneira de ensinar os mais jovens. Essa educação “primitiva” objetivava, antes de tudo, ajustar as crianças e os jovens ao meio físico e social em que conviviam. Nessas sociedades, os conhecimentos acumulados e necessários para a manutenção do grupo eram transmitidos por meio da imitação. As crianças e os jovens participavam das atividades dos adultos, aprendendo, pouco a pouco, as diversas ocupações. A preparação dos mais jovens por meio da imitação era irrestrita, abrangendo todo o saber do grupo, bem como o saber universal, pois todos tinham acesso aos saberes (ARANHA, 2006). Para entender mais a respeito dos primeiros agrupamentos humanos, indicamos o filme A Guerra do Fogo. A obra mostra como era a convi- vência entre os primeiros hominídeos e como o fogo foi importante para o processo de sedentari- zação, ou seja, a fixação em um lugar. Direção: Jean-Jacques Annaud. França; Canadá; Estados Unidos: Lume Filmes, 1981. Filme A educação antes da escola 11 Nesse contexto, a formação dos mais novos era um instrumen- to de sobrevivência dessas comunidades, uma vez que era respon- sável pela transmissão dos conhecimentos até então acumulados pelo grupo e para o desenvolvimento cultural. Portanto, a educação – mesmo que sem uma reflexão, por meio do jogo-imitação e “para a vida e por meio da vida” (ARANHA, 2006, p. 35) – transformou-se em algo fundamental para a manutenção e o aprimoramento cultural desses grupos, pois os mais novos aprendiam o uso das armas, a caça, a colheita, o pastoreio ou a agricultura, o uso da linguagem, o culto aos mortos e as técnicas de domínio do meio ambiente. Tanto nas tribos nômades quanto naquelas que já se sedentarizavam, os pequenos aprendiam imitando os gestos dos adultos nas atividades diárias e nos rituais. Para alguns historiadores da educação, além da imitação, os rituais de iniciação devem ser compreendidos como uma forma de educação por se tratar de uma prática de incorporação ou aceitação do mais novo em um outro patamar: daquele que conhece o necessário para contribuir com o grupo. Segundo Clastres (1978), as leis transmitidas pelos rituais representam a não aceitação da sociedade primitiva em correr o risco da separação e o risco de um poder afastado dela mes- ma. A lei primitiva, friamente ensinada, é uma defesa à desigualdade de que todos lembrarão. Apesar da relevância da formação dos mais jovens, notamos, po- rém, a falta de uma figura expressiva do processo de ensino e apren- dizagem: o mestre. O traço ritualístico e iniciático de grande parte das sociedades primitivas era diretamente expresso na figura dos mais ve- lhos, dos feiticeiros, xamãs ou homens que consultavam os espíritos, que, por exemplo, transmitiam explicações e ensinamentos durante as cerimônias, sendo assim, considerados os primeiros professores. Cabe enfatizar que comunidades com essas características são ain- da existentes, por exemplo, em regiões da Amazônia brasileira e da África. Mesmo sendo diferentes entre si em termos de complexidade material e cultural, essas comunidades possuem em comum com os povos neolíticos da Europa, do Oriente Médio e do norte da África uma economia pautada em atividades de subsistência e estatutos de orga- nização social relativamente simples. A organização dos modos de vida dessas comunidades nos oferece um vislumbre de como era a educa- ção nas primeiras sociedades. “Coletividade pequena, assenta- da sobre a propriedade comum da terra e unida por laços de sangue, os seus membros eram indivíduos livres, com direitos iguais, que ajustaram suas vidas às resoluções de um conselho formado democraticamente por todos os adultos, homens e mulheres da tribo” (PONCE, 1986, p. 17). Com base na afirmação feita nesse excerto, discorra sobre como ocorria a educação nas sociedades denominadas primitivas. Atividade 1 12 História da Educação 1.2 A educação na Antiguidade Oriental: Egito e Mesopotâmia Vídeo Com o crescimento populacional dentro de algumas comunidades primitivas, as necessidades, assim como o que fazer com o excedente de produção, foram aumentando e exigindo adaptação por parte dos habitantes dessas comunidades. Para solucionar o “problema” dos pro- dutos excedentes e complementar o que não era produzido por razões climáticas ou por desconhecimento de técnicas, essas comunidades começaram a trocar o que tinham de bom e em excesso, dando os pri- meiros passos do que hoje denominamos de comércio. Para muitos desses agrupamentos, metais raros e bonitos, como o ouro, a prata e até o cobre, eram muito valiosos. Assim, os proto co- merciantes passaram a desejar receber e pagar com pedaços de metais preciosos. Essas partes valiosas que todos aceitavam era o que conhe- cemos como dinheiro. O dinheiro foi idealizado exatamente para pro- mover o comércio; com ele, era possível comprar qualquer mercadoria. Procurando sanar as necessidades que surgiram com o aumento da população, começaram a ser organizadas construções de templos religiosos, aberturas de estradas, escavações de canais de irrigação e construções de cercas e muros para defesa territorial – as comunidades, antes governadas por homens ligados pelos laços de parentesco, preci- saram de líderes para comandar e organizar o trabalho de centenas e até milhares de pessoas. Como esquematizar e controlar as pessoas que administravamas obras e arranjar efetivo para fazê-las? Como conseguir comida para esses trabalhadores? Gradualmente, em muitas sociedades foi surgindo um tipo de instituição que cumpria todas essas tarefas de administração das obras públicas e, também, de controle da população. Surgia o que posteriormente foi chamado de Estado. Esse novo modo de organização da comunidade passa a ser for- mado por grupos de pessoas que tinham, ao longo do tempo, se es- pecializado em tarefas muito importantes, como a sistematização e administração de obras públicas. Além de administrar, essa nova ins- tituição tinha como incumbência cobrar impostos para financiar todas as suas atividades e controlar um exército que tinha a dupla função de defender o território e conter a população. A educação antes da escola 13 Com a organização do Estado, verificamos também o isolamento dos núcleos familiares, uma vez que o grupo não era mais chefiado por um líder. Aos poucos, as famílias que prosperavam não desejavam mais partilhar suas riquezas com as outras famílias, originando, assim, a pro- priedade privada (PONCE, 1986). O que antes era partilhado passou a pertencer a uma única família, separando ainda mais as pessoas umas das outras. O resultado mais nítido da estruturação da propriedade pri- vada foi o aparecimento das diferenças, pois como a propriedade era hereditária, os pais passaram suas riquezas para seus filhos, e os filhos dos menos abastados herdavam o trabalho duro, a fome e o cansaço. Ainda que historiografia tenha enfatizado por muito tempo uma abor- dagem ocidentalizante, as primeiras civilizações com Estado organizado surgiram na região do Oriente Próximo 1 . Esses Estados construíram ci- dades com infraestrutura complexa, intricadas formas de organização econômica, do trabalho e da sociedade, além de governos com institui- ções bem determinadas. As leis que disciplinavam as relações sociais e os interesses elaboraram importantes obras artísticas e desenvolveram a escrita. Esses povos que viveram no Oriente Próximo, Oriente Médio e Extremo Oriente (África e Ásia) construíram sociedades mais complexas e deram mais atenção à formação de seus homens, especialmente os ligados ao governo. Assim, a instrução que antes era destinada a todos agora estava restrita com base na função do sujeito na sociedade, originando o dualis- mo escolar, ou seja, uma educação para a elite e outra para os demais. Apesar da preocupação com a formação dos homens, o que nos leva a considerar essas como sendo as primeiras tentativas de organização do ensino, não havia exatamente um pensamento pedagógico e a ins- titucionalização do ensino. As orientações sobre o fazer educativo eram retiradas dos livros sagrados de cada uma dessas sociedades e o ato de educar ocorria, na maior parte delas, no templo religioso. Essas civilizações apresentaram alguns pontos convergentes, como a elaboração da escrita; a substituição da organização genética da sociedade por uma organização política e/ou religiosa; a especiali- zação e divisão do trabalho; e a consciência do seu passado com base no domínio da escrita. Com relação à educação, houve o predomínio do que denominamos de tradicionalismo, uma vez que as mudanças eram lentas ou inexistentes. O Oriente Próximo – também chamado de Oriente Antigo – compreende a região da Ásia próxima ao mar Mediterrâneo e a oeste do rio Eufrates. Síria, Líbano, Israel, Palestina e Iraque são os países que compõem esta região. 1 Para conhecer mais a respeito de diversos aspectos das primeiras civilizações, sugerimos a leitura da obra de Jaime Pinsky, As primeiras civilizações. Nessa obra, o autor discorre desde as civilizações primitivas, Egito e Mesopotâmia até os hebreus. PINSKY, J. 25. ed. São Paulo: Contexto, 2001. Livro Verificamos que na Antiguidade Oriental, especialmente com o desenvolvimento da escrita, estruturou-se uma necessidade de preservar obras e informações, dando origem ao que atualmente chamaríamos de biblioteca. Em sua comunidade existe alguma biblioteca? Em caso positivo, você a frequenta? Pense na importância dessa preservação. Desafio 14 História da Educação Dentre as civilizações orientais, a que mais desperta o interesse de historiadores e arqueólogos e a curiosidade do público em geral é a egípcia. O celebrado Egito deixou para os historiadores alguns elemen- tos importantes para a compreensão de sua educação. Nessa civiliza- ção, os conhecimentos eram passados sem questionamentos e sem uma preocupação com questões teóricas e princípios científicos. Por existir um Estado teocrático e centralizador, o ensino era restrito a pou- cos, aos sacerdotes. Esses sacerdotes eram os representantes da elite intelectual de uma sociedade estratificada (ARANHA, 2006). As escolas no Egito funcionavam em templos e em casas e eram frequentadas por uma média de 15 alunos. O mestre agrupava os es- tudantes ao seu redor e os ensinamentos eram transmitidos, e cabia ao aluno a repetição até a memorização completa, sob pena de severo castigo físico (CAMBI, 1999). A atenção desses mestres também era voltada para as atividades físicas e preparação do corpo, especialmente para nobres e guerreiros. Essa forma de ensino pode parecer, em um primeiro momento, descontraída, mas era severa, autoritária e buscava apenas a obediência do aluno e a preparação de seu corpo. Em resumo, percebemos que a educação egípcia estava organizada segundo a divisão de classes e especiali- zada para a formação do intelectual do sacerdote e “desenvolvida em torno da aprendizagem escrita” (CAMBI, 1999, p. 68). Nas camadas sociais menos abastadas, as crianças acompanhavam os pais nas mais diversas tarefas. Os filhos dos agricultores, por exemplo, ficavam com seus pais no campo, os filhos dos artesãos circulavam pelas oficinas, até mesmo os soberanos viviam rodeados pelos filhos, o que nos remete a uma forte valorização da educação familiar. Os pais ou familia- res, como ocorria nas sociedades menos complexas, ensinavam aos filhos por meio da observação para depois reproduzir o processo ou processos observados (MANACORDA, 1992). Além de não frequentarem os locais destinados ao ensino, grande parte dos jovens egípcios era excluída da ginástica e da música, reservadas apenas aos guerreiros e consideradas uma espécie de adestramento para a guerra (CAMBI, 1999). Assim como a civilização egípcia, as civilizações que compuseram a Mesopotâmia também se estabeleceram em margens alagáveis, entre os rios Tigre e Eufrates em uma região de planícies no Oriente Médio (atual Iraque). Para facilitar a permanência nessa localidade, os grupos Figura 1 O Escriba sentado, de artista desconhecido (2600-2300 a.C.) O escriba foi uma figura muito importante na civilização egípcia, especialmente porque nos legaram informações para a escrita da história da educação. Museu do Louvre/Wikimedia Commons A educação antes da escola 15 que se fixaram na região desenvolveram diversas obras hidráulicas, como diques e canais de irrigação. Da mesma forma que o Egito, na Mesopotâmia o Estado era teocrático, ou seja, a política era atrelada à religião, que era politeísta. Os curas eram funcionários do Estado e os templos zelavam também pela administração e cobrança de impostos das famílias que trabalhavam nas terras. Os povos que compuseram a região – sumérios, semitas, assírios e babilônios – se revezaram no comando do território. Infelizmente, esses povos nos legaram poucas informações sobre a educação e seus métodos, mas podemos afirmar com certo grau de certeza que, dada a importância da religião, a função social dos sacerdotes e também de sua formação escolar. Inicialmente, esses grupos promoveram uma educação doméstica, posteriormente foram criadas escolas públicas com a intenção de im- por os valores aos povos que eram conquistados e precisavam aceitar a cultura dos dominadores. Essa escola pública, com o tempo, deu ori- gem ao ensino superior, cujosindícios foram os primeiros identificados com a Universidade Palatina da Babilônia (ARANHA, 2006). Além da estruturação da educação superior, na Mesopotâmia foi desenvolvido o sistema de escrita que, com a cidade de Ur (aproxima- damente 3500 a.C.), foi adotado pelos povos da região. A escrita ela- borada pelos mesopotâmicos era cuneiforme, em forma de cunha (Figura 2). Com uma espécie de palitinho, a pessoa cunhava os símbo- los na argila macia (ARANHA, 2006). Al ek sa nd r S te zh ki n/ Sh ut te rs to ck Figura 2 Escrita cuneiforme A escrita cuneiforme é a primeira forma de escrita sistematizada de que temos registro. 16 História da Educação O Egito e a Mesopotâmia, guardadas as devidas proporções, forma- ram civilizações grandiosas em diversos aspetos, porém com a estratifi- cação social, surgiu também o dualismo escolar, com um acesso restrito à educação, algo que ainda hoje permeia nosso sistema de ensino. Elabore um quadro comparativo da educação da criança nas civilizações do Oriente Antigo. Atividade 2 Vídeo Usuário-pato/Wikimedia Commons Figura 3 Retrato de um jovem eru- dita indiano, de Mir Sayyid Ali (ca. 1550) Assim como no Egito e na Mesopotâmia, a educação na Índia era destinada a um grupo seleto. 1.3 Educação na Antiguidade Oriental: China, Índia e o povo hebreu Por volta de 2000 a.C., na região da Índia, prosperou uma civilização também às margens de rios – Indo e Ganges – com grandiosas cidades que superavam a Babilônia em desenvolvimento urbano, pavimenta- ção e higiene pública. Nas civilizações que estudamos anteriormente, a separação entre as ca- madas sociais era muito marcante. Na Índia, a divisão era ainda mais clara, pois a sociedade hindu sempre esteve repartida em castas cerradas com mínima ou nenhuma expectativa de mobilidade. Portanto, como acontecia no Egito e na Mesopotâmia, a educação também era discriminadora e des- tinada apenas à casta dos brâmanes, os sacerdotes do bramanismo. casta: qualquer grupo social, ou sistema rígido de estratificação social, de caráter hereditário. bramanismo: organização religiosa, política e social dos brâmanes. Glossário O ensino acontecia por meio da memorização dos textos sagrados com aulas ao ar livre. O mestre, que não lançava mão de castigos físicos, era reverenciado e respeitado em uma relação afetiva com o discípulo, ou seja, em relação aos demais povos da Antiguidade Oriental, foi na Índia que as crianças receberam melhor tratamento. Livres dos castigos físicos, as crianças recebiam atenção e afeto de familiares e mestres, que viam a importância dessas atitudes para o desenvolvimento saudável das futuras gerações (ARANHA, 2006). No vale do rio Hoangô, ou Rio Amarelo, desde o terceiro milênio A educação antes da escola 17 a.C., em função das características geográficas, cresceu uma civilização agrícola com características neolíticas. Essa sociedade estruturou uma das mais tradicionais culturas da história, a cultura chinesa, que man- tém alguns aspectos sem grandes mudanças até os dias atuais. Na China, a religião e o poder estatal favoreceram o afastamento entre a população, os governados e a educação. Esta, inevitavelmente, espelhava esse caráter dualista e conservador, voltada exclusivamente para a difusão do conhecimento exposto nos livros clássicos, que opu- nha cultura e trabalho (CAMBI, 1999). Contudo, não eram os religiosos os principais detentores do conhe- cimento e do processo educativo. Diferentemente do que ocorreu em grande parte das civilizações orientais, na China os mandarins eram os mais importantes funcionários do Estado e, por isso, tinham acesso às escolas especializadas, restando à maioria da população o acesso ape- nas às oficinas e ao campo. A principal metodologia utilizada na educação chinesa era a imitação. Primeiramente, o estudante deveria decorar os conteúdos que eram ensinados por meio da repetição em voz alta até a completa memorização. Após decorar o que foi transmitido, o estudante deveria repetir para o mestre na mesma ordem apresentada no livro ou lição, mesmo que ignorasse o significado do que repetia (ARANHA, 2006). Nas escolas, os aprendizes recebiam uma educação dogmática por meio do método mnemônico, com leituras e escrita. A primeira educa- ção, é possível afirmar, procurava ensinar o cálculo e a alfabetização, que era muito difícil e demorada devido à complexidade do sistema de escrita. A formação moral se baseava na transmissão dos valores dos ancestrais (ARANHA, 2006). Para o ingresso na educação superior, cujo objetivo era a formação dos mandatários do governo, existia um severo processo seletivo. Tudo era feito de maneira rigorosa e tradicional, com ênfase, como já desta- camos, nas técnicas de memorização. Na organização social chinesa, desde muito jovens as crianças – em virtude do relevante papel da família, sob a chefia austera do pai – eram ensinadas para corresponder ao amor paterno e duramente castigadas pelos mandarins caso desrespeitassem os pais, contudo, ainda assim, sem gerar uma relação amistosa entre mestre (mandarim) e discípulo. Para conhecer mais a respeito da civilização chinesa, acesse o portal Só História. Nesse site, você poderá encontrar informações a respeito da China antiga e dados a respeito das demais instituições abordadas neste capítulo. Disponível em: https://www. sohistoria.com.br/ef2/china/. Acesso em: 7 ago. 2020. Site 18 História da Educação Para finalizar a nossa análise dos primórdios da educação no Orien- te, vamos verificar o único povo monoteísta dentre os apresentados. Os hebreus, também chamados de judeus ou israelitas, descendem de um antigo povo semita que povoava a Arábia. Os hebreus estavam sempre se deslocando à procura de um lugar mais adequado para vi- verem. Por volta de 1800 a.C., saíram da Mesopotâmia para a região da Palestina, onde atualmente está o estado de Israel, e, em acirrada dis- puta, conquistaram as terras que historicamente denominam de terra dos judeus (CAMBI, 1999). A principal característica da civilização hebraica sempre foi a reli- gião. Para começar, eram monoteístas, ou seja, acreditavam em um único deus que tinha criado o mundo e todas as coisas. No Antigo Tes- tamento do livro bíblico estão os principais mandamentos da religião judaica e a história do povo hebreu. Para a educação dos mais jovens, os hebreus valorizavam expressi- vamente o papel do núcleo familiar. No seio da família, o pai educava com severidade os filhos, e na escola recebiam uma instrução religiosa, voltada tanto para a palavra quanto para os costumes do povo. A escola dos hebreus se organizava em torno da interpretação da lei dentro da sinagoga, que era também local de instrução religiosa e moral. Apenas no início da era cristã é que os judeus se interessaram pela escrita. O que distingue significativamente os hebreus das demais civilizações desse período em relação à educação é o fato desse povo ter dado importância à educação para o trabalho em virtude da neces- sidade de manutenção do povo (ARANHA, 2006). A prática de jogos e esportes era proibida, pois era tida como con- traria aos preceitos religiosos. Porém, engana-se quem pensa que as crianças eram proibidas de brincar e jogar, ou seja, desde que respei- tassem os preceitos religiosos, os locais públicos também eram desti- nados para brincadeiras. CONSIDERAÇÕES FINAIS Antes do processo de estrutura de sociedades mais complexas, obser- vamos que a educação, ou melhor, a preparação dos mais jovens, estava relacionada à manutenção do grupo e de todos os conhecimentos até então acumulados, sem restrições ou exclusão. semita: individuo dos semitas, família etnográfica que abrange hebreus, assírios, arameus e árabes. Glossário Realize uma síntese a respeito da relação intrínseca existente entre religião e educação na maioria das civilizações Orientais. Atividade 3 A educação antes da escola 19 Contudo, as primeiras civilizações se estruturaramàs margens férteis de grandes rios, o que favoreceu o desenvolvimento da agricultura, do comércio e o acúmulo de riquezas. Este permitiu a organização de gran- des exércitos, complexas hierarquias sacerdotais e governamentais, bem como a criação de manifestações artísticas elaboradas. Nesse sentido, o desenvolvimento e a propagação do conhecimento levaram à estratificação social e à especialização dos indivíduos. Os sabe- res passaram a ser mais específicos e repassados de maneira desigual. A educação, sem dúvida, desempenhou um papel importante nessa trajetória civilizacional. No caso da maior parte dos indivíduos, a primeira educação ocorria no núcleo familiar, já aos mais velhos cabia a função de apresentar às crianças os valores de obediência e respeito. A aprendiza- gem era religiosa e cultural, além de fornecer as instruções necessárias para a realização dos tipos de trabalho já exercidos pelos pais. Entre as civilizações do Oriente Antigo, observamos que a complexi- dade da escrita tornava seu aprendizado um processo lento, oneroso e restrito, com técnicas de ensino que exigiam especialmente capacidades mnemônicas do aluno, isto é, de memorizar. O desenvolvimento da es- crita, relevante para o progresso cultural dessas civilizações e a sistema- tização da educação, também favoreceu o dualismo escolar ao tornar o acesso limitado a um grupo seleto de indivíduos que normalmente esta- vam na liderança dos Estados. Entre as primeiras civilizações da África e da Ásia, portanto, observa- mos dinâmicas muito semelhantes: formalização do processo de ensino e aprendizagem; e incorporação do método mnemônico ao processo de ensino e aprendizagem. Além destes, existem ainda: a figura do educador como o principal detentor do conhecimento a ser transmitido; a sistema- tização da escrita; a elaboração do ensino superior; a formação centrada no ritual; a educação dedicada à defesa e a continuidade do sistema so- ciopolítico e dos valores vigentes. REFERÊNCIAS ARANHA, M. L. A. História da educação e da pedagogia: geral e do Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006. CAMBI, F. História da pedagogia. São Paulo: Unesp, 1999. CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alces, 1978. MANACORDA, M. A. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1992. PONCE, A. Educação e luta de classes. 6. ed. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1986. 20 História da Educação GABARITO 1. A educação era caracterizada principalmente pela imitação, e as crianças aprendiam todas as informações e técnicas acumuladas por meio da observação. O papel de mes- tre era assumido pelos pais, pelos mais velhos da tribo/grupo e pelos que exerciam a função de guia religioso. 2. Esta é uma resposta pessoal, contudo você deve elaborar um quadro e inserir as ca- racterísticas da educação ou a ausência dela nas civilizações do Antigo Oriente. 3. A educação na antiguidade oriental era, na maioria dos povos, religiosa ou identifica- da com a atividade religiosa. Nesse sentido, procurava-se adequar os indivíduos de acordo com as crenças religiosas, considerando, em muitas vezes, o desdobramento da função dos sacerdotes. Assim, o caráter ritualístico de muitas comunidades estava diretamente expresso na figura do religioso. Educação na Antiguidade greco-romana 21 2 Educação na Antiguidade greco-romana Nós, homens e mulheres brasileiros, fazemos parte de uma sociedade construída nos moldes da cultura ocidental, por isso, somos herdeiros das civilizações grega e romana. Não podemos rejeitar a ideia de que somos continuadores das realizações desses povos, pois eles impactaram a filosofia, a medicina, a his- tória, as artes, a literatura, a arquitetura, a ciência e a educação. É na Grécia, ou por meio dela, que surgiu a estruturação do que denominamos cultura ocidental e que encontramos as pri- meiras tentativas de pensar ou racionalizar o universo. Os gregos e romanos elaboraram concepções antropocêntricas, desenvol- veram a reflexão, a argumentação e a dialética, incorporaram ele- mentos dos povos orientais e espalharam esses conhecimentos por diversos lugares. Na Grécia, a despeito das diferenças existentes entre algumas cidades-Estados, a educação foi fundamental para a construção e manutenção das características que permanecem na tradição ocidental. Os gregos idealizaram um saber da educação que construiu teorias e modelos de educar, os quais, há séculos, for- mam os pontos de referência para as discussões no tocante à formação humana. Os romanos, apesar de influenciados por seus antecessores gregos, não foram uma cópia destes; eram mais práticos, mas não deixaram de lado a teoria, o teatro, a poesia e, claro, a educação. Mas como esses povos pensaram a educação? Como ocorria a educação na Grécia e em Roma? O que pode ser reconhecido como influência desse modelo educacional na conjuntura do en- sino contemporâneo? Essas e outras questões são respondidas neste capítulo. 22 História da Educação 2.1 A educação grega na Antiguidade Vídeo Antes de analisarmos especificamente como era a educação na Grécia Antiga, é importante compreendermos que, politicamente, esse territó- rio não constituía, como observamos nas civilizações orientais, um país com unidade política, capital e governo central. A sociedade grega tinha como base as cidades-Estados, também conhecidas como pólis. Essas eram fortificadas com pequenos países e independentes, com governo e legislações específicos. Os únicos fatores que aproximavam esses povos era a religião e o idioma grego, pois, apesar dessa separação política, os helenos tinham consciência de que pertenciam a uma cultura comum, mas as cidades-Estados raramente se uniam. Em consonância com o sentimento de que possuíam questões cul- turais em comum, para os gregos o objetivo da educação deveria ser a paideia. Trata-se da necessidade de garantir uma formação integral ao indivíduo, pois buscava-se a preparação deste em todas as suas esfe- ras, equilibrando corpo (físico) e espírito (intelectual). Segundo Cambi (1999, p. 87, grifos nossos), com a paideia surge a dimensão teórica da educação como saber independente, ordenado e rigoroso. Nasce a educação como “episteme, e não mais como éthos e como práxis apenas”. Essa virada, de acordo o autor, foi crucial para a cultura ocidental, pois permitiu a elaboração e o enfrentamento das questões educacionais em um processo de universalidade racional, co- locando em circulação a noção de paideia que amparou por séculos a reflexão educativa. Assim, foi nesse momento que teve início a história da educação com o significado que hoje a atribuímos, pois os gregos a colocaram como problema e estatuto de questão filosófica. O artigo A Paideia grega: aproximações teóricas sobre o ideal de formação do homem grego, de Rosane Wanderscheer Bortolini e César Nunes, publicado no periódico Filosofia e Educação, em 2018, discute de modo aprofundado a elaboração do conceito grego de paideia. Acesso em: 26 ago. 2020. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rfe/article/view/8651997/17695 Artigo episteme: conhecimento verda- deiro, de natureza científica, em oposição à opinião infundada ou irrefletida. éthos: conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres etc.) e da cultura (valores, ideias ou crenças), característicos de determinada coletividade, época ou região. práxis: prática; ação concreta. Glossário https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rfe/article/view/8651997/17695 Educação na Antiguidade greco-romana 23 O homem grego apontado pela paideia seria aquele que se des- tacaria por suas perfeições intelectual, moral e física, o que refletia diretamente nos feitos atléticos e militares que o indivíduo se mos- traria capaz de realizar. Alcançar a areté nas competências físicas e intelectuais garantia a condição de “belo e bom”, ou kaloskagathos, status semelhanteà noção de gentleman que surgiria posteriormen- te (ARANHA, 2006). Esse ideal foi tão relevante e cultuado, especial- mente na cidade de Atenas, que hoje, por vivermos em busca de novos paradigmas educacionais, ressurge a ideia de superar a visão pragmática e utilitária da educação, voltada para a especialização do trabalho, na busca de uma formação mais equilibrada e abrangente. A visão antropocêntrica, isto é, centrada no ser humano, caracterizou a ideia de formação integral, pois a educação neces- sária não seria mais uma parte da religião, mas pautada na razão e não na mitologia. A valorização da capacidade humana de racio- nalizar permitiu o desenvolvimento da lógica de pensamento, da crítica e, especialmente, da filosofia. Apesar da valorização do ideal de formação integral indicado pela paideia, as autonomias política e territorial das cidades consequentemente levaram à estruturação de sociedades distintas entre si, diferenças que também podem ser observadas na organização educacional. O afastamento de uma mitologia dogmática e impositiva, como já destacamos, favoreceu as primeiras tentativas de racionalização do universo e de questionamento da realidade. Os gregos, de maneira geral, desenvolveram uma curiosidade intelectual, uma tendência à reflexão e à argumentação que os impelia a contrastar as ideias de cada indivíduo. Além disso, o contato com estrangeiros permitiu a incorporação de conhecimentos e técnicas de outras culturas. Os primeiros pensadores gregos, que ficaram conhecidos como pré-socráticos, tinham como objetivo a elaboração de uma cosmolo- gia, ou seja, um esclarecimento racional, completo e sistemático do universo que substituísse a antiga crença baseada nos mitos. Dessa maneira, tentaram encontrar, por meio da razão e não da mitologia, o elemento ou a substância primordial presente em todos os seres, não apenas os humanos. Os pré-socráticos desejavam, na realidade, achar a “matéria-prima”, a semente de tudo, inclusive dos indivíduos (MARCONDES, 2007). Defina com suas palavras o conceito de paideia. Atividade 1 24 História da Educação Eles, ao analisarem a realidade e indagarem a matéria, concluí- ram que o universo era constituído de uma substância básica, ou fundamental. Contudo, cada um desses pensadores escolheu uma substância como fundamental: água, fogo e ar tiveram um grande número de defensores. A cidade de Mileto – considerada por muitos o berço da ciência grega – abrigava pensadores como Tales, Anaximandro, Pitágoras, Heráclito, Parmênides, Empédocles e Demócrito. Esses, além de cunharem o termo filosofia e instaurarem a sua prática, foram res- ponsáveis pela elaboração da lógica, bem como pelo desenvolvi- mento da matemática, da astronomia, da química e da física. Nesse contexto, a educação representou o sentido de todo o esforço humano, era a justificativa da comunidade e individualida- de humanas. Foram os gregos que, pela primeira vez na história, apontaram a educação como um processo de construção gradual e consciente, esquematizando as primeiras linhas conscientes da ação pedagógica (JAEGER, 1986). Todavia, é importante entender que esse ideal de educação, que tanta influência exerceu no modelo ocidental, não foi elabo- rado de uma hora para outra; na verdade, foi um desenvolvimento lento e gradual. A educação helena passou por etapas e em cada uma delas é possível verificar o fortalecimento do ideal de forma- ção humana. Desde Homero, com seus poemas didáticos (Ilíada e Odisseia), passando pelos sofistas e pelos filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles, observamos o alargamento de uma concepção de educação baseada nos ideais de homem de ação e de sabedoria. Nesse movimento ascensionário, foi dentre os helenos que apa- receu o termo paidagogos, cujo significado literal era “aquele que dirige a criança”, no caso, o escravo que acompanhava a criança nas atividades educativas (ARANHA, 2006). Com o tempo, a acepção da palavra foi ampliada para indicar toda teoria de educação. Em meio aos desenvolvimentos filosófico, cultural, social e polí- tico, duas cidades, Atenas e Esparta, foram as que mais se destaca- ram em razão dos poderes político e econômico, mas também por apresentarem características muito distintas. Enquanto a primeira valorizou o desenvolvimento do intelecto, a segunda priorizou as virtudes guerreiras (MELLO, 2006). Os espartanos idealizaram o ho- Para saber mais a respei- to da origem da palavra pedagogia, visite o Portal Etimologia. Disponível em: https://etimologia. com.br/pedagogia/. Acesso em: 26 ago. 2020. Saiba mais https://etimologia.com.br/pedagogia/ https://etimologia.com.br/pedagogia/ Educação na Antiguidade greco-romana 25 mem como o produto da supervalorização do corpo, forte, corajoso e diligente. Os atenienses acreditavam que a liberdade, a racionali- dade e a retórica deveriam ser os principais valores humanos. Apesar das diferenças na organização da educação, veremos que essas cidades-Estados tinham pontos em comum, especialmente porque apenas os membros da aristocracia tinham direito à edu- cação. Mulheres, estrangeiros e escravos não possuíam os direitos, de modo que não recebiam instrução formal (ARANHA, 2006). Além disso, a escola não era o único local em que ocorria o processo de ensino e aprendizagem: as atividades coletivas, como o teatro, os jogos, os banquetes e as reuniões públicas, eram vistas como mo- mentos de aprendizagem. Os gregos, podemos sintetizar, apoiados no antropocentrismo e no amor pelo conhecimento (a filosofia), valorizaram a ideia de que a educação é a preparação para a cidadania. Por meio do intelecto, o indivíduo constrói a sua personalidade, ou seja, encontra a sua natureza racional e o direito de produzir os seus próprios fins na vida (PILETTI; PILETTI, 2004). Finalmente, é importante destacar que não existia uma aten- ção específica para a instrução profissional, ou, como preferia Aristóteles, as atividades servis. Os conhecimentos inerentes aos diversos ofícios deveriam ser aprendidos na prática e eram des- tinados aos menos abastados, estrangeiros e escravos. Em ou- tras palavras, os gregos desconsideravam a formação profissional e o trabalho manual: “enquanto a técnica se achava associada à atividade servil, o cultivo desinteressado da forma física e a ati- vidade intelectual permaneceram privilégio das classes ocio- sas” (ARANHA, 2006, p. 77). 2.2 Dois modelos de educação grega Vídeo Como apontamos, mesmo com as variações regionais, uma vez que cada cidade-Estado constituía sua própria unidade política e or- ganizava seus assuntos, inclusive a educação, os gregos aderiram ao princípio da paideia. Na maioria das cidades-Estados, os meninos pertencentes à aristo- cracia iniciavam sua formação por volta dos 7 anos pelas mãos do pe- 26 História da Educação dagogo – escravo encarregado de guiar os jovens à escola. As meninas, excluídas do que chamaríamos hoje de educação formal, ficavam com as mulheres mais velhas reclusas no gineceu – espaço reservado a elas. Nesse local, de onde raramente saíam, aprendiam os rudimentos dos afazeres domésticos. Além do pedagogo – cuja função era acompanhar e conduzir as crian- ças, embora seu papel viesse posteriormente a englobar uma postura disciplinadora, servindo de parâmetro moral –, os meninos poderiam ser acompanhados por outros “especialistas” ao longo do processo educativo. Existiam os gramáticos, que transmitiam o conhecimento da escrita e dos poemas clássicos de Homero e Hesíodo, das fábulas de Esopo e das narrativas heroicas. Havia o instrutor de música, que apre- sentava aos alunos instrumentos como a cítara e a flauta. Atribuía-se também importância ao cálculo, ensinado por meio do uso do ábaco. A geometria e o desenho, por sua vez, passaram a fazer parte da educa- ção ateniense somente a partir do século IV a.C. (FERREIRA, 2003). Além disso, era imprescindível a frequência ao ginásio, onde a prática de es- portes visava condicionar os corpos(ARANHA, 2006). Com o crescimento da exigência de melhor formação intelectual, sem abandono das práticas esportivas e musicais, esboçaram-se três níveis de educação – elementar, secundário e superior –, especialmen- te nas cidades que seguiam um modelo semelhante ao ateniense. A educação superior existiu no modelo dos sofistas, que ofereciam seus serviços aos mais abastados, ensinando filosofia e retórica. Diversos filósofos, como Sócrates, Platão e Aristóteles, ofertaram esses serviços. Todavia, apesar desses pontos de intersecção, as cidades mais influentes da civilização grega, Atenas e Esparta, estruturaram dois ideais de educação: um com base no conformismo e no estatismo de uma perspectiva militar de preparação de cidadãos-guerreiros, ou- tro “na concepção de paideia, de formação humana livre e nutrida de experiências diversas, sociais mas também culturais e antropológicas” (CAMBI, 1999, p. 64). 2.2.1 Atenas O contraponto da educação espartana sem dúvida foi exercido em sua principal rival, Atenas. Essa foi fundada pelo povo jônio que habi- tava a região da Ática, península banhada pelo Mar Egeu, onde ficava A música Mulheres de Atenas, de Chico Buarque de Holanda, canta o cotidiano de grande parte das mulheres gregas. Você pode conferir a letra e escutar a melodia no link a seguir. Disponível em: https://youtu.be/ MabbVn0Rlv4. Acesso em: 26 ago. 2020. Música A cítara é um instrumento de cordas dedilhadas ou tocado com plectro, derivado da lira, que atravessou os séculos com muitas variantes, mantendo, no entanto, a característica de que as cordas atravessam toda a caixa de ressonância; timpanão. Curiosidade http:////youtu.be/MabbVn0Rlv4 http:////youtu.be/MabbVn0Rlv4 Educação na Antiguidade greco-romana 27 o porto do Pireu, o qual servia à cidade-Estado. Por volta de 509 a.C., em virtude da expansão econômica e consolidação política, foram ado- tadas reformas que acabaram com os privilégios políticos da aristocra- cia. Com isso, todos os cidadãos atenienses, o que não significa todos os moradores, passaram a participar das decisões nas assembleias (CAMBI, 1999). O regime político adotado na cidade de Atenas foi chamado de democracia, o governo do povo. Porém, era um governo para pou- cos, pois apenas os cidadãos atenienses, filhos de pai e mãe atenien- ses, podiam participar. Os escravos, as mulheres e os metecos, isto é, “estrangeiros”, homens livres que não eram nascidos em Atenas, não participavam das assembleias e votações. A democracia ate- niense era direta, os cidadãos compareciam às assembleias e vo- tavam pessoalmente as questões discutidas, e não representativa, como ocorre atualmente no Brasil. Os ideais estruturantes da paideia prevaleciam e, ao lado da edu- cação física, a formação intelectual assumiu grande relevância na for- mação do cidadão. Os sábios (sophos), que discutiam filosofia, retórica, arte, arquitetura, poesia e ciência, transformaram Atenas em um centro irradiador de cultura. Foi aqui que a educação grega ganhou as formas que foram transmitidas à civilização ocidental (MARCONDES, 2007). Mesmo Atenas tendo sido praticamente o nascedouro da paideia, com a elaboração das primeiras preocupações com a formação intelectual do cidadão, a educação na cidade não era obrigatória nem gratuita, mas, sim, restrita e excludente. Apenas aqueles que pudessem se dedicar às reflexões, abandonando toda e qualquer atividade ma- nual, teriam acesso à educação ateniense. Aos demais restava a prática manual, a qual era muito desprezada. A educação das crianças durante os primeiros anos ficava nas mãos de amas e escravos, que se incumbiam de instruir os filhos nessa fase. Após os sete anos, as meninas permaneciam sob os cuidados mater- nos e se dedicavam aos afazeres domésticos – as mulheres eram pouco valorizadas e deveriam ficar reclusas – e os meninos iniciavam a forma- ção intelectual e física. Em muitas cidades gregas e em Atenas, os meninos aristocratas eram iniciados no universo educacional sempre acompanhados de um escravo, o pedagogo, que os orientava em suas primeiras atividades 28 História da Educação escolares. A partir dos 13 anos eram encaminhados também aos giná- sios, onde recebiam uma formação musical e literária aliada à pratica das atividades físicas, com o objetivo de aprimorarem o corpo. Dos 16 aos 18 anos a educação do jovem tomava uma dimensão cívica de pre- paração militar, mas nada comparada à realizada pelos espartanos. A educação superior apareceu posteriormente com os sofistas e os filó- sofos, estes últimos representados por figuras como Sócrates, Platão e Aristóteles, cujas reflexões analisamos logo mais (ARANHA, 2006). Porém, antes de refletirmos a respeito das contribuições desses nomes para a educação, é importante conhecermos os sofistas. Tam- bém chamados de mestres da argumentação, como indicam alguns au- tores, surgiram como uma nova classe de professores que a sociedade necessitava, pois valorizavam a educação para a vida pública, a forma- ção do político e do orador. Os sofistas eram professores viajantes que, mediante pagamento, vendiam ensinamentos, davam aulas de eloquência, entre outros. En- sinavam conhecimentos úteis para o sucesso nos negócios públicos e privados e transmitiam, na verdade, todo um jogo de palavras, racio- cínios e concepções que poderia ser utilizado na arte de convencer o interlocutor, driblando as teses dos adversários. Sem dúvida, a influên- cia dos sofistas foi considerável na cultura e na educação do período, especialmente por destacarem a figura do professor. Obviamente, as críticas a eles foram constantes, principalmente por parte dos filósofos, não que os sofistas não o fossem. O pensador ateniense que se tornou um divisor de águas dentro da filosofia foi Sócrates, um dos principais críticos dos sofistas. Sócrates participou do movimento de renovação cultural ini- ciado pelos sofistas. Entretanto, usava em seus diálogos com os cidadãos um método bastante diferente do utilizado pe- los sofistas. Esse método parte de uma dinâmica de diálogo, na qual ideias são colocadas em oposição, com o objetivo de desarticular ideias preconcebidas e elaborar novos entendi- mentos, em um processo chamado de maiêutica, “parir/dar à luz” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006). Com a sua filosofia moral, Sócrates buscou, pela educação dos jovens, determinar a essência do ser humano, respondendo à questão sobre a natureza ou realidade dos indivíduos. Para o Figura 1 Sócrates Museu do Louvre/Wikimedia Commons Educação na Antiguidade greco-romana 29 filósofo, a essência das pessoas é a sua psyché, a sua alma, entendendo por esta a consciência, a personalidade intelectual e moral. Em conso- nância com o que era praticado em sua cidade, acreditava que o corpo, na condição de receptáculo da alma, deveria ser preservado e cuidado (MARCONDES, 2007). O mais conhecido dentre os discípulos de Sócrates, Platão destacou a reflexão pedagógica associada à política ao idea- lizar uma sofocracia, o governo dos sábios, que criaria a cidade perfeita pelo domínio da razão. A sofocracia apre- sentada no livro A República seria mais efetiva que a demo- cracia, pois colocaria as decisões nas mãos de um grupo de filósofos em vez de deixá-las nas mãos dos cidadãos. Para justificar por que os filósofos, esses homens mais sá- bios, seriam os escolhidos para liderar os demais, Platão uti- liza o mito ou a alegoria da caverna. Essa narra a história de um grupo que vivia acorrentado ao fundo de uma caverna de onde via apenas reflexos do mundo real nas paredes. Para essas pessoas, as sombras eram tudo o que existia, era o mundo real. Quando um dos prisioneiros se livra das correntes e sai da caverna, consegue perceber a realidade, vê toda a beleza do mundo, com suas cores, suas formas e seus movimentos. Quando ele retorna para a caverna para libertar seus compa- nheiros, acaba morto, pois não o compreenderam. Segundo Platão, aqueles que escapavam das amarrassaíam da ilusão e deveriam guiar os demais, aqueles incapazes de sair da escuridão. Esses líde- res eram os filósofos, os quais teriam condições de atingir o pleno conhecimento da realidade. Platão indica que a educação necessária é aquela que conduz à formação de cidadãos integrais, os guardiões do Estado, que saibam ordenar e obedecer de acordo com a justiça. Assim, para a efetivação de sua concepção de educação, indicou dois tipos de paideia: uma ligada à formação da alma individual e outra mais política, correspon- dente aos papéis sociais do indivíduo, os quais podiam ser distintos em virtude das classes sociais existentes. O discípulo de Sócrates explicava sua ideia de educação com base na alegoria da caverna: os sábios, verdadeiros filósofos, devem dirigir os demais, e os homens comuns devem ser governados, pois Figura 2 Platão Apresentado por Platão, o mito ou a alegoria da caverna narra a história de um grupo que vivia acorrentado ao fundo de uma caverna de onde via apenas reflexos do mundo real nas paredes. Para essas pessoas, as sombras eram tudo o que existia, isto é, era o mundo real. Como podemos relacionar essa alegoria com uma perspectiva educacional? Atividade 2 Museus Capitolinos/Wikimedia Commons 30 História da Educação são intelectualmente inferiores. A educação, dessa forma, seria mi- nistrada de acordo com as diferenças intelectuais que existem en- tre as pessoas, a fim de estas ocuparem suas posições dentro da sociedade, e o Estado se responsabilizaria por essa formação. Os mais fortes seriam educados para se tornarem trabalhadores; os mais corajosos para se tornarem soldados; e os mais sábios para se tornarem “reis filósofos” (ARANHA, 2006). Um dos discípulos de Platão, Aristóteles, que organizou sua própria escola, o Liceu, também foi uma base importante para pen- sadores posteriores ao refletir segundo um modelo realista, com base na investigação lógica do mundo concreto. Segundo Aristóteles, a educação deveria ajudar as pessoas a alcançarem o seu melhor e a felicidade. O Estado deveria se preo- cupar com a formação para a cidadania, pois o ser humano é um animal político, que encontra sua plenitude na prática política. O processo educativo deve ser um dos meios pelo qual o aluno aprende a exercitar o pensamento teórico, colocando este a servi- ço da ação política. Assim como seu mestre, Aristóteles não acreditava em uma educação igual para todos os indivíduos, mas em uma formação de acordo com as capacidades individuais. O que chama a atenção na pedagogia aristotélica é a importância dada ao núcleo familiar e aos exercícios físicos, que deveriam ser praticados desde o primei- ro ano de vida para o fortalecimento do corpo. De maneira geral, a proposta educacional do filósofo está próxima do modelo platônico, todavia, mostra-se mais realista e pragmática, pois se fundamenta na investigação e observação em- píricas, com destaque para a dimensão psicológica desse processo. O programa de estudos deveria ser dividido em ciências naturais, ciências normativas e filosofia com o objetivo de formar e amoldar as faculdades irracionais, colocando-as sob o domínio daquela fa- culdade que é peculiar ao indivíduo, a razão (CAMBI, 1999). Aristóteles, como Sócrates e Platão, une à reflexão pedagógica grande atividade de ensino e recomenda cinco etapas para a edu- cação (ARANHA, 2006): Figura 3 Aristóteles Museo nazionale romano di palazzo Altemps/Wikimedia Commons Educação na Antiguidade greco-romana 31 1 a 5 anos: exercícios leves para o fortalecimento do corpo da criança. 5 a 7 anos: o Estado deve acompanhar a educação da criança. Até a puberdade: enfatizam-se os exercícios de ginástica, música, poesia. 14 a 18 anos: frequência compulsória a uma escola oficial do Estado. Nesta fase, o processo educativo deve garantir a formação do bom cidadão, a formação do caráter e a utilidade econômica. 18 a 21 anos: treinamento físico severo e serviço militar. lu tfy ha sa n/ Sh ut te rs to ck A cidade de Atenas não foi apenas influente politicamente ao estrutu- rar uma forma de governo que até hoje é discutida, adaptada e seguida, também nos legou importantes reflexões no campo da educação. Ao for- talecer e expandir o sentido de paideia, contribuiu definitivamente para a universalização do conhecimento por meio da pedagogia. 2.2.2 Esparta A exceção ao modelo de paideia foi a cidade-Estado de Esparta, uma pólis completamente voltada para o militarismo e a formação de um exército. Os jovens espartanos eram reunidos e educados com base em um sistema público, a agoge, que valorizava o aprimoramen- to de habilidades físicas e rejeitava ou colocava em segundo plano as competências predominantemente intelectuais (GONZÁLES, 2016). Mas quais as origens dessas diferenças? O povo dório conquistou a região do Peloponeso, dominando os Aqueus que ali viviam, e nela fundou Esparta. Na cidade-Estado as terras eram estatais, cabendo ao Estado a distribuição aos cidadãos designados para o cultivo. Como a presença de escravos advindos de diferentes regiões ameaçava a es- trutura política, desde o início da ocupação os espartanos tiveram que se preparar militarmente para preservar seus domínios. Essa atenção à militarização fez com que o foco da sociedade, ao con- trário do que ocorria em Atenas, não fosse a discussão e o debate, mas a Para conhecer mais a res- peito da agoge espartana leia a matéria Agoge: a infância brutal em Esparta, publicada no portal da revista Aventuras na História. Disponível em: https:// aventurasnahistoria.uol.com.br/ noticias/reportagem/historia- agoge-infancia-esparta.phtml. Acesso em: 26 ago. 2020. Site https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-agoge-infancia-esparta.phtml https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-agoge-infancia-esparta.phtml https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-agoge-infancia-esparta.phtml https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-agoge-infancia-esparta.phtml 32 História da Educação preparação física para as guerras. Havia em Esparta três estratos sociais: os esparcíatas ou espartanos, que detinham o poder, dedicando-se às atividades militares e aos negócios públicos; os periecos (homens livres), que cultivavam as terras e praticavam o comércio, mas não possuíam di- reitos políticos; e os hilotas (escravos), que serviam ao Estado e também nas terras dos esparciatas (CAMBI, 1999). O sistema político de Esparta tinha como características a gerontocracia, ou poder controlado pelos mais velhos, e a diarquia, governo de dois reis, os quais cuidavam dos negócios internos e externos. Além disso, existia a apela, uma assembleia que avaliava e validava as normativas elaboradas pelo Conselho dos Anciões, pela Gerúsia e pelo Éforo, este último composto por magistrados que fiscalizavam e exerciam o poder, mas que hierarquicamente eram submetidos aos gerontes. A rígida hierarquia e o militarismo refletiram diretamente na orga- nização da educação de crianças e jovens. A educação espartana tinha como principal ideal pedagógico formar cidadãos-soldados, dotados de perfeição física, coragem e hábito de obediência às leis, assegurando a superioridade militar da cidade-Estado. Os espartanos valorizavam muito as atividades militares e a prática de exercícios físicos, com o objetivo de preparar o corpo para as mais variadas situações de guerra. Para garantir essa militarização, a educação ofertada era pública e obrigatória, o que a tornou menos dualista. Os espartanos desenvolviam o rigor físico e as habilidades guerreiras por meio da ginástica, prática na qual eram rigorosamente disciplinados e controlados pelos éforos, cinco magistrados que exerciam poder absoluto para essa prática. A preparação do corpo era tão importante que começava antes mesmo do nascimento, com uma rígida política de eugenia e de pre- paração das mães, as quais deveriamter o corpo forte para gerarem filhos robustos e sadios. Ao nascerem, as crianças passavam por uma espécie de vistoria por parte do Estado e aquelas que apresentassem imperfeições físicas ou que fossem frágeis eram sacrificadas, pois não seriam capazes de atingir a perfeição necessária (ARANHA, 2006). Até os sete anos de idade as crianças permaneciam sob os cuidados diretos de sua mãe, de quem já recebiam um treino rigoroso (PILETTI; PILETTI, 2004). Aos sete anos, a educação passava a ser responsabili- dade da cidade-Estado, que as recolhia, incluindo as meninas em uma espécie de caserna pública, onde estudavam, de maneira lúdica, mas Para entender mais a relevância do militarismo espartano que contribuiu para o fortalecimento da cidade-Estado e a expan- são de seu poder, assista ao filme 300. Observe, também, a questão da preservação dos mais for- tes desde o nascimento. Direção: Zack Snyder. Estados Unidos: Warner Bros Pictures, 2007. Filme Educação na Antiguidade greco-romana 33 sem atenção aos debates ou às longas discussões, música, canto e dan- ça até os 12 anos, quando começavam a receber um treinamento mais específico para a guerra. Nessa etapa da educação, os jovens espartanos eram preparados em uma espécie de comunidade para suportar a fome, a dor e o des- conforto. Essa preparação, além de física, era moral, para fortalecer os vínculos de amizade e o respeito aos mais velhos. A partir dos 18 anos os espartanos se dedicavam ao estudo das armas e manobras militares, e entre os 20 e 30 anos seu treino era na guerra (PILETTI; PILETTI, 2004). Apesar dessa escolarização pública desde os 7 anos, de maneira am- pla, a formação intelectual praticamente inexistia e poucos sabiam ler e contar. Um exemplo que ilustra bem esse desapego é o termo laconismo, o qual designa a forma breve e sucinta de se expressar, que “deriva de Lacônia, região onde viviam os espartanos” (ARANHA, 2006, p. 64). Assim, diferente do que observamos em Atenas, não encontramos em Esparta os chamados teóricos da educação. De toda a Grécia, eram nas cidades-Estados da Lacônia que as mu- lheres foram mais respeitadas e recebiam um pouco mais do que a educação para as tarefas domésticas. Conforme Aranha (2006), em Es- parta, elas eram vistas com mais importância, pois geravam aqueles que seriam os futuros guerreiros e participavam, desde muito jovens, dos exercícios de salto, lançamento de disco, corrida e dança. 2.3 A educação romana na Antiguidade Vídeo Há algumas lendas sobre a fundação da cidade de Roma, sendo a mais conhecida a versão que atribui essa empreitada aos gêmeos Rômulo e Remo, filhos do deus Marte e da princesa Rea Silvia. O que importa destacar é que essa cidade passou a dominar a estreita passagem pela qual os mercadores cruzavam o rio Tigre ao trans- portar o sal do litoral até a Etrúria e, ao contrário do que ocorreu na Grécia, desde o início fortaleceu a noção de império (PINSKY, 1997). Política e culturalmente foi durante o Império – momento em que Roma manteve contato direto com outros povos e deles assimilou muito do que nos foi transmitido com a denominação de cultura greco-romana – que a educação ganhou mais relevância, com a estruturação de escolas públicas e o desenvolvimento do ensino superior (CAMBI, 1999). 34 História da Educação As classes sociais se estruturaram por meio da posse da terra, sendo os patrícios os grandes proprietários, detentores também dos direitos políticos. Os pequenos proprietários, artesãos e estrangeiros formavam a plebe. Assim como em Esparta, a saúde perfeita era indispensável para que a criança pudesse em sua vida futura seguir os passos do pai, no caso dos meninos, ou conseguir um bom casamento, no caso das me- ninas, garantindo, portanto, a presença de homens e mulheres capazes de preservar e expandir os territórios romanos (PILETTI; PILETTI, 2004). Porém, apesar de parecer contraditório, a família tinha muita rele- vância na formação da criança romana, que até os 7 anos permanecia com a mãe. Após esse período, o pai se encarregava pessoalmente da educação dos meninos e as meninas eram educadas e preparadas para os trabalhos domésticos. Segundo Cambi (1999, p. 107), “as crianças romanas, através de sua educação familiar, entram em contato com os valores e os princípios da vida civil, incorporando-os como valores comuns e modelos de comportamento”. Os romanos também desenvolveram uma concepção de cultura fundamental, a humanitas, no sentido literal de humanidade, de edu- cação e de algo próximo à paideia dos gregos. Do mesmo modo que a areté grega, a virtus romana, origem da palavra virtude, era um princípio central do processo educativo (MARCONDES, 2007). A educação romana era elitista e objetivava preparar o indivíduo capaz de pensar de modo correto e expressar-se de maneira clara, direta e con- vincente. Por isso, o estudo da retórica era mais relevante do que o da filo- sofia. Os romanos adotavam uma postura mais pragmática, voltada para as atividades cotidianas e para a ação política. A pedagogia também esta- va direcionada às questões práticas, mas desencadeou reflexões muito importantes para a história da educação e que merecem nossa atenção. Quintiliano foi um dos pensadores romanos que mais atenção dedicou à educação, incentivando a formação do perfeito orador por meio da valorização dos aspectos técnicos da educação e do afasta- mento da filosofia. Sua principal contribuição foi a aproximação da re- creação e dos exercícios físicos ao estudo com a finalidade de tornar menos árdua a atividade escolar para o estudantes. Outra inovação proposta por ele foi a instrução simultânea em diversas matérias, e não em separado, como era costume (ARANHA, 2006). Figura 4 Quintiliano Vanzanten/Wikimedia Commons Educação na Antiguidade greco-romana 35 Figura 5 Cícero Figura 6 Sêneca Cícero, que se destaca entre os pensadores romanos, foi o res- ponsável pela elaboração do primeiro e mais importante escrito sobre a educação na tradição romana. O conteúdo do processo educativo apresentado em Sobre o Orador visava, em última instância, à vida pú- blica. O instrumento para a realização desse objetivo e ideal seria a habilidade no falar, ou seja, a retórica. Para o autor, a educação deveria priorizar a formação do bom orador, capaz de persuadir, o que reque- ria conhecimentos de retórica, filosofia, direito e, até mesmo, habilida- des teatrais (ARANHA, 2006). Manfred Werner/Wikimedia Commons Ca lid iu s/ W iki m ed ia C om m on s Tomisti/Wikimedia Commons Figura 7 Plutarco Outro representante da pedagogia ro- mana foi Sêneca, mentor de Nero. Para ele, a educação deveria ser prática e orientada principalmente pelo exemplo, por isso dá mais atenção à formação moral do que à retórica. O pensador “ocupou-se também com a psicologia como instrumento para a preservação da individualidade” (ARANHA, 2006, p. 93). A integração entre a cultura grega e a romana ficou a cargo de Plu- tarco, professor e escritor de origem grega que pensava a educação com base na família, na música e na beleza, sem esquecer a sólida for- mação moral. Os pais, segundo o autor, deveriam educar seus filhos com base em modelos para que a educação alcançasse êxito; eles pre- cisavam dar a seus filhos o exemplo de comedimento e do fiel cumpri- mento dos deveres. É interessante observar que mesmo sendo cosmopolita, com ra- mificações em províncias do Império, essa educação não era igualitá- ria, mas, sim, aristocrática, voltada para as atividades intelectuais que afastavam todo o tipo de trabalho manual realizado pelos escravos. Enquanto os homens da elite eram educados por preceptores, muitas vezes de origem grega, as crianças plebeias estudavam no ludus, uma escola simples que funcionava em cômodos residenciais ou em espa- ços públicos em que um professor ensinava por uma taxa. 36 História da Educação Com o desenvolvimento do cristianismo, a partir do século II, sur- giram, paralelamente àsescolas já existentes, as escolas cristãs que objetivavam a formação de seus futuros sacerdotes. Nesses espaços, que já prenunciavam mudanças, o foco era a formação da inteligência da fé por meio do estudo da filosofia, geometria e aritmética (CAMBI, 1999). Os romanos eram um povo prático, que não apreciava a teoria pura, por isso, não deram contribuição notável para as ciências nem para a matemática, em compensação, eram bons poetas e dramaturgos. É evidente que exerceram um papel fundamental na difusão e preserva- ção das ideias gregas que chegaram até nós, mas também deixaram sua própria marca. Em alguns campos, os romanos foram realmente originais, por exemplo, na arquitetura, construindo ótimas estradas pa- vimentadas e aquedutos. Edificar e utilizar grandes estádios também foi invenção deles. A originalidade romana se mostra nas táticas e estratégias militares. Não foi à toa que mantiveram uma invencibilidade bélica por séculos. Eles foram criativos na administração pública, sendo que muito do que os governos utilizam hoje em dia foi copiado deles. O direito romano é célebre. As leis, a maneira de fazê-las, as ideias jurídicas, tudo o que caracteriza a ciência do Direito nasceu com os romanos. Além de tudo, os romanos foram os primeiros a unificar a Europa. Segundo Aranha (2006), o idioma deles – o latim – é a base de várias lín- guas europeias; mesmo idiomas não latinos, como o inglês e o alemão, possuem palavras de origem latina. CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi na Grécia que teve início o que hoje denominamos história da educação, pois foram os gregos que colocaram, pela primeira vez, a educa- ção como um problema, ocorrência que se deve à visão antropocêntrica e universal. Contudo, foi por volta do século V a. C., com os sofistas e depois com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles, que o conceito de educação alcançou o estatuto de questão filosófica. Se os primeiros mestres profissionais foram os sofistas, o primeiro grande educador foi Sócrates. Platão foi o fundador da teoria da educa- ção e da pedagogia, sem abandonar as reflexões políticas de Atenas. E Aristóteles uniu à reflexão pedagógica uma intensa atividade educacional. Em Roma predominou uma educação de caráter prático, familiar e ci- vil, cujo principal objetivo era a formação do orador, sujeito ideal que agre- Quintiliano foi um dos estudiosos romanos que mais se dedicou à educação. Nesse sen- tido, quais foram as inovações educacionais propostas por esse pensador? Atividade 3 Educação na Antiguidade greco-romana 37 ga a capacidade da palavra, riqueza de cultura e habilidade de participar da vida social e política. A herança educacional greco-romana se revelaria basilar para os pen- sadores dos períodos posteriores, que utilizariam essa soma de conheci- mentos como alicerce. REFERÊNCIAS ARANHA, M. L. A. História da Educação e da Pedagogia: geral e do Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006. CAMBI, F. História da Pedagogia. São Paulo: Unesp, 1999. FERREIRA, O. L. Visita à Grécia Antiga. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2003. GONZÁLES, R. J. Militarizing culture: essays on the warfare state. Nova Iorque: Routledge, 2016. JAEGER, W. Paideia: A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1986. JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. MARCONDES, D. Introdução à história da filosofia. 10. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. MELLO, L. S. Educação na Antiguidade. In: SOUZA, N. M. M. (org.) História da educação. São Paulo: Avercamp, 2006. PILETTI, C.; PILETTI, N. Filosofia e História da educação. São Paulo: Ática, 2004. PINSKY, J. As primeiras civilizações. São Paulo: Atual, 1997. GABARITO 1. O conceito de paideia está relacionado com o ideal grego de formação geral, que tem como objetivo o desenvolvimento da pessoa como indivíduo e como cidadão, procu- rando formá-lo em todas as suas potencialidades de tal maneira que pudesse ser um melhor cidadão. 2. O mito ou a alegoria da caverna de Platão narra a história de um grupo que vivia preso ao fundo de uma caverna desde o nascimento, de onde conseguia enxergar apenas reflexos do mundo real projetados nas paredes do cárcere. Para esses indivíduos, de acordo com Platão, as sombras eram tudo o que existia, eram o mundo real. En- tretanto, quando um dos prisioneiros se liberta da caverna, consegue ver toda a be- leza e toda a imensidão do mundo, com cores, formas e movimentos. Ao retornar às trevas, é morto por seus companheiros que não o compreenderam. Aqueles que quebrassem as amarras e alcançassem a luz da realidade seriam libertados da ilu- são. Mas, acostumados a viver nas sombras e na ilusão, teriam que ir pouco a pouco habituando-se à realidade. Para Platão, somente os filósofos teriam condições de atin- gir o pleno conhecimento da realidade, cabendo aos demais a submissão. Portanto, nem todos deveriam ter acesso ao mesmo nível de instrução, pois não estariam pre- parados para tal. 3. O romano Quintiliano valorizava a formação do orador e, afastando-se da filosofia, priorizava aspectos técnicos da educação desde a primeira infância, com a junção da recreação e dos exercícios físicos ao estudo com a intenção de tornar menos árdua a atividade escolar para os pequenos. Apresentava, também, a proposta de instrução simultânea em diversas matérias, e não em separado, como era costume. 38 História da Educação 3 Idade Média: a educação mediada pela fé Antes de iniciarmos a reflexão sobre a educação no período que se convencionou chamar de Idade Média, é importante entender que esse não foi um período de trevas – como nos quiseram fazer acreditar os pensadores renascentistas –, tampouco um período que demonstra uma posição intermediária entre dois momentos relevantes da História: o mundo antigo e o mundo moderno. As inúmeras diferenças em relação ao mundo antigo, assim como da posterior Idade Moderna, não desqualificam esse momento como um tempo/espaço de produção de saberes, experiências e modos de convivência. A Igreja católica foi a principal, mas não a única instituição educa- tiva e cultural da Idade Média. Apesar do predomínio da concepção teocêntrica, ela trouxe para a educação novos sujeitos e concep- ções, aproximou – sem extinguir o dualismo escolar – a educação do trabalho, algo, inclusive, que não existia anteriormente. Esse momento – para além da institucionalização da Igreja ca- tólica – representou o período de organização das universidades; foi a época de gestação das nações e línguas modernas, bem como do surgimento daquilo que posteriormente seria o capitalismo. No Oriente, houve um grande progresso técnico e cultural; este se espalhou pelo Ocidente, e o mundo foi pontilhado por relevantes descobertas, como os algarismos, o astrolábio, a pólvora, o pa- pel, os diferentes medicamentos, o aço, a bússola e muito mais. Gradativamente, todas essas inovações proporcionaram novas possibilidades materiais. Idade Média: a educação mediada pela fé 39 3.1 As escolas cristãs Vídeo Para entendermos a estruturação e a expansão das escolas cristãs ao final do Império Romano e início do que se convencionou denomi- nar Idade Média, é importante entendermos que, como em outros pe- ríodos da história, as mudanças não ocorreram da noite para o dia, mas foram resultado de um processo complexo e gradual. As escolas cristãs surgiram ainda durante o Império e estavam fo- cadas na formação dos quadros religiosos da Igreja católica, ou seja, coexistiram com as escolas pagãs da mesma forma que a sociedade, posteriormente chamada medieval, coexistia com aspectos da socieda- de romana. Apesar das dificuldades e das perseguições, o movimento cristão, inicialmente compreendido como uma seita do judaísmo, desenvolveu- -se nos ambientes populares, conquistando partidários entre os despo- jados. Porém, o apoio de pessoas ricas e consideradas cultas foi bem mais lento: apenas no século IV foi aceito como um movimento legal e declarado religião oficial (KONDER,2006). A sociedade romana foi desarticulada, especialmente em razão das invasões, mas também em virtude de questões externas. As principais cidades foram despovoadas e ocorreu um processo de ruralização/ isolamento da população em grandes fazendas; estas, posteriormente, foram denominadas feudos. Entretanto, esse isolamento não perdurou por todo o período e nem tudo foi retração econômica, social e cultural. O poder político, como é possível notar, ficou descentralizado, e o guia da sociedade passou a ser os valores contidos no evangelho, es- pecialmente porque a religião oficial já era o cristianismo. A socieda- de passou a ser dirigida pelo poder da Igreja, que era dividido com os proprietários de grandes extensões de terra produtiva: os feudos e os senhores feudais. Observe que o principal elemento agregador dessa sociedade era a religião. Didaticamente, para facilitar a compreensão, esse período da his- tória do Ocidente foi delimitado entre a queda do Império Romano e o fim do Império Bizantino. Mas como todo o período não apresentou características fixas, foi subdividido pelos historiadores nos seguintes períodos: Normalmente, ao estudarmos a Idade Média, abordamos três so- ciedades: a sociedade ocidental, chamada de Cristandade Latina; a sociedade cristã ortodoxa do Oriente, denominada Império Bizantino; e as sociedades mu- çulmanas, no chamado Império Árabe. Todavia, foi a cristandade latina que sistematizou as insti- tuições escolares mais influentes; por esse motivo, analisamos as instituições latinas. Saiba mais 40 História da Educação Vy ac he sl av ik us /S hu tte rs to ck Alta Idade Média (séculos V – X) Período também chamado de Antiguidade tardia, no qual o processo de estruturação da sociedade medieval ainda se fazia por meio do contato com as instituições romanas. Idade Média Central (séculos XI – XIII) Período de apogeu do sistema social denominado feudalismo, em que houve o domínio político e religioso da Igreja católica. Baixa Idade Média (séculos XIV – XV) Desagregação do mundo feudal com a estruturação das cidades, o surgimento de novas instituições e a expansão territorial da cristandade latina. Trata-se do momento de queda do Império Bizantino, com a conquista de Constantinopla pelos turco-otomanos em 1453 (FRANCO JÚNIOR, 2001). Essa subdivisão é importante também para a história da educação, pois, conforme veremos, a educação e o pensamento pedagógico não foram homogêneos. Na verdade, foram, assim como a sociedade, mo- dificando-se e expandindo-se. Primeiramente, como apontamos, foram estruturadas escolas ain- da durante o domínio romano, as quais objetivavam a preparação de seus membros e a educação moral dos que então aderiam ao cristia- nismo. Nos catecumenatos, eram chamados catecúmenos os que se convertiam e passavam por um período de preparação; eles recebiam instruções na doutrina (PILETTI; PILETTI, 2004). Esse desenvolvimento da educação cristã, portanto, tem origem na conversão e na incorpo- ração da fé católica. É importante ressaltar que o enfraquecimento do Estado perante o processo de constituição do feudalismo também con- tribuiu para a valorização da Igreja como instituição formadora (MANA- CORDA, 1992). Gradativamente, houve a supressão da escola clássica em detri- mento da escola cristã, e essas escolas religiosas passaram a ser orga- nizadas pelos bispos, com a intenção de formar o clero para as igrejas que estavam sob sua direção. Essas escolas passaram a ser chamadas de escolas das catedrais, pois estavam localizadas no prédio da catedral. A partir daí, podemos afirmar que se estabeleceu a relação educa- tiva cristã com um modelo rígido de educação tradicional, com valores invariáveis de recusa à mudança, em que o conhecimento não significa catecumenatos: espaço para aprendizagem da fé católica durante a conversão. Glossário Na Idade Média, havia três principais estamentos sociais: os sacerdotes, os membros das ordens religiosas responsáveis pelo poder espiritual e político; a nobreza feudal, formada pelos grandes proprietários; e os servos, que trabalhavam nas terras de um senhor. Saiba mais Idade Média: a educação mediada pela fé 41 descoberta e compreensão, mas acesso e esclarecimento sem ques- tionamento (CAMBI, 1999). Fortalecia-se a subjetividade religiosa, que se constituía de verdades absolutas, inabaláveis, universais e eternas, confirmadas pela fé, desconsiderando diferenças individuais e propon- do uma educação uniformizadora (ARANHA, 2006). Após o grande êxodo urbano do fim do Império Romano do Ocidente, estruturaram-se as ordens religiosas do que ficou conheci- do como movimento cenobita. Este tinha como objetivo a formação de comunidades para a salvação das almas. Ao se agruparem, esses in- divíduos foram organizando os mosteiros, cujo marco fundador, para muitos historiadores, é a Ordem de São Bento, que apresentou para o mundo cristão instituído a novidade de uma Regra de Vida Comum. Fundar escolas não era o objetivo dos mosteiros, porém, a ativida- de pedagógica se tornou inevitável à medida que era necessário ins- truir e preparar os novos irmãos. Apareceram, desse modo, as escolas monacais ou monásticas, em que se ensinava latim e humanidades (ARANHA, 2006). Aos poucos, os mosteiros passaram a ocupar lugar de destaque na cultura e na educação durante a Idade Média. Eram praticamente as únicas instituições de ensino da época, centralizando as “pesquisas”, as conservações e a multiplicação das obras greco-romanas armazenadas em suas bibliotecas e, especialmente, formando os religiosos e sábios daquele momento. As escolas que funcionavam nos mosteiros certamente são as que melhor representam a educação do período, pois assumiram a tarefa de ensinar aos mais jovens, religiosos ou não, a ler e a escrever, quando as escolas pagãs deixaram de existir. No entanto, mais do que ensinar e catequizar, o que se realizava nesses lugares era um processo de acul- turação, uma vez que o objetivo primordial era a educação moral e a participação na liturgia. A submissão às regras rígidas tendia a enqua- drar os comportamentos e, desse modo, aprimorar a conduta de todos (MANACORDA, 1992). A instrução tinha um valor secundário em relação à leitura, me- morização dos textos sagrados, meditação e a um modo de vida com base no ascetismo. Os métodos de ensino giravam ao redor de leitura, memorização, canto e cálculo. Contudo, foram nos mosteiros que as A Regra de Vida Comum con- siste no conjunto de regras das ordens religiosas que norteiam as atividades cotidianas, internas e externas. Saiba mais 42 História da Educação primeiras bibliotecas foram organizadas. Nelas, os monges copistas re- produziam os manuscritos legados pela cultura greco-romana, garan- tindo a transmissão da cultura clássica e cristã (CAMBI, 1999). Dentre as inúmeras e rigorosamente controladas atividades dos monges, existia uma mais especial e especializada: a de copiar os antigos livros, nos quais se encontravam elucidações sobre ciências, teologia e normas sociais da antiguidade. Bi bl io th èq ue n at io na le d e Fr an ce /W ik im ed ia C om m on s Figura 1 Monge copista, obra de Jean Le Tavernier (século XV) Para os filhos dos senhores feudais, existia ainda a formação cava- leiresca, que, mesmo relacionada à religião, estava mais próxima da responsabilidade moral e da obrigação social, congregando religião e militarismo. A aprendizagem das armas, que ganhou mais relevância a partir do século XI, com o florescimento das cidades e das Cruzadas, se- guia um ritual muito austero que culminava na cerimônia de sagração (FRANCO JÚNIOR, 2001; ARANHA, 2006). Os jovens estudavam regras hierárquicas, técnicas do trato com armas e cavalos, equitação e leis dos combates medievais. A formação do cavaleiro não dava atenção à atividade intelectual; muitos deles não eram alfabetizados, mas eram rigorosamente prepa- radospara a guerra e para a caça com um aparato espiritual, pois as principais virtudes do cavaleiro eram a “honra, fidelidade, coragem, fé e cortesia” (ARANHA, 2006, p. 110). Idade Média: a educação mediada pela fé 43 Figura 2 Cavaleiro medieval, obra de Serafín María de Sotto (século XIX) Ar ac al i/ W ik im ed ia C om m on s Nessa sociedade, aqueles que não seguissem a vida religiosa eram destinados, conforme o lugar social que ocupassem ou a preparação militar, à formação do cavaleiro ou ao trabalho, no campo e nas ci- dades, quando estes tinham alguma expressão. Assim, os filhos dos senhores feudais que não seguissem a vocação religiosa recebiam um treino militar e exerceriam a segunda função mais importante na so- ciedade feudal (depois de rezar): lutar para proteger o feudo. Os traba- lhadores recebiam uma educação no interior da família, para trabalhar com a terra, ou poderiam aprender um ofício no próprio mundo do trabalho, ou seja, como aprendiz em alguma oficina. A educação dos servos era realizada no próprio feudo, junto à famí- lia. Eles aprendiam a trabalhar com a terra, a rezar e a preservar a fé por meio do medo. Esse grupo, portanto, não tinha acesso à educação institucionalizada; normalmente, eram analfabetos e subjugados pelos senhores feudais e pela Igreja. Tinham diversas obrigações com os se- nhores, devendo trabalhar nas terras senhoriais e pagar, com uma por- centagem das colheitas, pela terra disponibilizada para seu trabalho (FRANCO JÚNIOR, 2001). Com o desenvolvimento dos burgos e posteriormente das cidades, cuja principal atividade era o comércio, foi necessária a formação de profissionais que pudessem adequar as cidades a uma qualidade mí- nima de vida. Profissões antes não existentes nos feudos começaram a aparecer. Uma das obras que me- lhor retrata o ambiente intelectual da Idade Média é O nome da rosa, do autor italiano Umberto Eco. Caso tenha preferên- cia, o livro foi adaptado de maneira belíssima para o cinema, com um filme homônimo no ano de 1986. Para compreen- der a sociedade medieval e sua relação com a reli- gião e o conhecimento, O nome da rosa é uma obra que vale a pena ser lida e assistida. ECO, U. Rio de Janeiro: Record, 2019. Livro O cavaleiro era uma figura importante para a preservação dos feudos e para a defesa da fé católica. 44 História da Educação Organizaram-se, desse modo, as corporações de ofício com um rígi- do sistema hierárquico. Nada podia ser produzido sem regulamentação rigorosa, e as corporações de ofício, além de agremiarem os artesãos que fabricavam produtos manufaturados, como tecidos ou sapatos, or- ganizaram um sistema de ensino entre os artesãos para a preparação de futuros profissionais. As crianças iniciavam como aprendizes e po- deriam chegar à posição de mestre, o que permitia que abrissem uma nova corporação (FRANCO JÚNIOR, 2001). Além da educação religiosa, predominantemente ministrada nos mosteiros, dos cavaleiros e dos servos, com a família, havia um tipo específico de educação sob a responsabilidade de um professor parti- cular: a preceptoria. Essa forma de instrução era semelhante ao que hoje chamaríamos de ensino particular, em que um professor se dedicava a ensinar os filhos de uma família mais abastada, geralmente dona do feudo. O preceptor mora- va na mesma casa que seu aluno ou grupo de alunos e, normalmente, não ensinava apenas os rudimentos das chamadas sete artes liberais, mas re- presentava um exemplo a ser seguido, um guia de vida para seus pupilos. Assim, nesse modelo de ensino que ultrapassou a Idade Média, as crianças recebiam uma educação sem a necessidade de mediação de outra instituição que não a organização familiar. Normalmente, os pre- ceptores eram homens com formação sacerdotal, pois a Igreja, como vimos, era a principal instituição responsável pelo conhecimento na- quele momento (MANACORDA, 1992). A formação puramente religiosa encontrou alguma concorrência apenas por volta do século XII, com o aparecimento de escolas não re- ligiosas que atendiam aos filhos nascente da camada de comerciantes, os burgueses. Esse grupo começava a se destacar e, por isso, exigiam uma boa formação para seus filhos. Como não se enquadravam na estratificação social de então, procuravam um novo espaço educativo. Porém, os professores dessas instituições eram em grande parte for- mados pelas escolas cristãs, contribuindo para que a desarticulação do tipo de ensino ministrado pelos religiosos fosse lenta. As corporações de ofício e as escolas não religiosas foram inovações sociais que abriram caminho para que outras instituições de caráter educacional aparecessem e revelassem as mudanças que ocorriam na sociedade medieval. O crescimento das cidades, sem dúvida, favoreceu As sete artes liberais eram conhecidas como trivium e quadrivium. No trivium, espécie de ensino médio, os alunos ti- nham contato com a Gramática, a Retórica e a Dialética. Já o quadrivium era algo semelhante ao ensino superior, em que se ensinava Geometria, Aritmética, Astronomia e Música (ARANHA, 2006). Curiosidade Idade Média: a educação mediada pela fé 45 a vida intelectual. A Igreja, por sua vez, não permaneceu estática e par- ticipou ativamente dessas alterações como fomentadora de diversas outras instituições sociais. Esse contexto, portanto, favoreceu a organização de uma nova instituição, representante de um novo e original modelo de educação superior: a universidade. O século XIII assistiu ao desenvolvimento de universidades como as de Salerno (Itália), Bolonha (Itália), Oxford (Inglaterra) e Paris (França). Essas instituições exerceram, e ainda exercem, importante papel no desenvolvimento cultural e científico (ARANHA, 2006). Elas também eram protegidas e patrocinadas, o que pode parecer contraditório, tanto pela Igreja quanto pelos senhores feudais e, posteriormente, pelos próprios burgueses. Figura 3 Universidade no período medieval, obra de Étienne Coulaud (século XVI) Ét ien ne Co ula ud /W iki m ed ia C om m on s As universidades caminhavam entre a fé e a razão. Contudo, o que se estudava nas universidades? Estudava-se Medicina, Direito, Teologia e Filosofia. As ciências da natureza não eram muito abordadas e, praticamente, só repetiam o que os gregos e os árabes já tinham dito. Os cursos eram ministrados em Latim, língua internacional da Europa à época. Os estudantes eram religiosos ou, em grande parte, filhos dos homens mais abastados da Europa. As primeiras universidades formavam pessoas per- tencentes à elite, em uma sociedade ainda medieval. O método de ensino era chamado de escolástico, o qual não havia questionamentos, a autoridade dos autores estudados era absoluta. Apesar de a Igreja ter participado ativamente da estruturação e do fomento das universidades, essas instituições representaram uma grande transforma- ção. Aos poucos, a vida intelectual foi deixando de ser totalmente ligada à Igreja, e o pensamento foi ganhando autonomia em relação à religião. A educação para os religiosos e senhores feudais e a educação para o povo revelam a dicotomia da educação medieval, uma disparidade que não se revela somente nos métodos e no conteúdo do en- sino, mas na formação do imaginário social, como veremos a seguir. Enquanto os mais abastados osci- 46 História da Educação lavam e atrelavam fé e razão aos ensinamentos emanados das sagra- das escrituras, a educação popular simplificava a mensagem religiosa, preparando para temer e obedecer. Trazendo a importância das universidades para nosso contexto, sugerimos a leitura do artigo O surgimento das universidades no mundo e sua importância para o contexto da formação docente, da professora Mara Leite Simões, para compreender a relevância das universidades na reflexão pedagógica e na formação de professores. Acesso em: 31 ago. 2020. https://periodicos.ufpb.br/index.php/rteo/article/view/17783/10148 Artigo 3.2 O imaginário cristão e a educação VídeoDurante a Idade Média, existia uma preocupação educacional vol- tada ao imaginário, com o objetivo de agregar o aspecto religioso a uma visão do mundo e, consequentemente, consolidar a dominação católica (CAMBI, 1999). A estruturação do imaginário, cujo estudo foi favorecido pelas con- cepções de história formuladas no século XX, está relacionada a uma vi- são do mundo como ordem, desejada por Deus e estabelecida de uma vez por todas, invariável, definitiva e sempre justa. Qualquer questionamento ou ruptura nessa ordem abria espaço para o pecado, isto é, um desvio culpado que deveria ser punido. A Igreja era a depositária do poder de expiação, de perdoar e impor san- ções, até a pena suprema de excomunhão, que colocava o indivíduo fora da comunidade cristã, privando-o de todo o direito à sociedade. Em termos de instrução, era a imposição de uma mentalidade de superação ou renúncia da vida mundana, com a valorização da religião. Cambi (1999) destaca que essa concepção de mundo deu vida a um du- plo imaginário: um aristocrático e um popular, com percursos e meios de difusão distintos. O primeiro imaginário, aristocrático, era veiculado pelo livro e pela educação; o segundo, popular, era veiculado pela palavra, pela ima- gem e pelo rito. O imaginário aristocrático está ligado, sobretudo, a uma visão mística e teológica da religião, voltada para valorizar ora as- pectos voluntários e de adesão por fé, ora o contrário; isto é, aspectos racionais, dando espaço a uma elaboração minuciosa da fé segundo Qual é a relevância do surgimen- to das universidades na Idade Média? Atividade 1 Idade Média: a educação mediada pela fé 47 um modelo lógico e sistemático. Já o imaginário popular é caracteri- zado por uma cultura que simplifica a mensagem religiosa e afasta a ritualização dos comportamentos humanos com o objetivo de olhar também para o “baixo” do ser humano: o corpo e o sexo. Todas as ações ligadas à difusão desse complexo imaginário eram processos educativos. Os religiosos educavam por meio da palavra pro- fética e com tom moralista, atuando sobre os costumes com a evoca- ção do pecado e da referência ao arrependimento. O cuidado educativo apontava a ideologia que perpassava aquela sociedade e adicionava ao aspecto religioso uma visão do mundo que sutilmente se difundia; tam- bém modelava expressões e comportamentos, temores e esperanças, convicções e ações, bem como o caráter autoritário, dogmático, con- formista dessa ação educativa, da qual eram depositários os homens cultos e poderosos, ou seja, os religiosos (CAMBI, 1999). Para ilustrar a relação entre a educação e o imaginário, podemos ve- rificar como os indivíduos do período entenderam a infância e a criança. Com a estruturação da sociedade feudal e a expansão do teocentrismo, houve uma significativa transformação na família e na visão dos adul- tos sobre a infância. As relações familiares se redefiniram em termos de amor e não mais apenas de autoridade patriarcal, como ocorria em Roma, em que o pai era autoritário, quase um patrão, do qual se tinha medo. O modelo familiar ideal, com o domínio cristão, passa a ser a sagrada família, na qual o pai é o guia e a figura de apoio, e a mãe, quem socorre com afeto as crianças e cuida da família e dos filhos. O infanticídio foi suprimido, e a infância passou a ocupar outro lugar social, deixando de estar “misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles” (ARIÈS, 1981, p. 11-12). Os mais jovens foram gradualmente separados dos adultos. Por um lado, as crianças tiveram a sua doçura destacada, mas por outro, eram vistas como seres irracionais, ainda brutos e cruéis. Segundo Airès (1981), a passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito diminuta, ela permanecia no anonimato para que não mobili- zassem os sentimentos. Caso morressem, o que era muito comum, o nascimento de outra criança logo a substituiria. Nos mosteiros, as crianças eram ensinadas até aproximadamente os 15 anos de idade. Essa educação, da mesma forma como ocorria na Antiguidade, era repleta de repreensões e castigos (CAMBI, 1999). Con- 48 História da Educação tudo, estes não eram recursos pedagógicos, faziam parte do universo teocêntrico do período, uma vez que eram comuns às práticas religiosas. Observamos, assim, que os sentimentos em relação à infância e à criança eram contraditórios, pois, ao mesmo tempo em que afirmava os valores humanos dos evangelhos, a criança era observada com te- mor, como representante daquilo que não era divino e humano. Essa contradição era comum no pensamento medieval, não apenas sobre a educação das crianças. Ao lado da criança, outra figura marginal era a da mulher, que era subalterna ao homem. Ao mesmo tempo marginalizada e exaltada, o papel da mulher também oscilou durante a Idade Média entre o mo- delo da Eva (corruptora) e da Virgem Maria (pura e casta). Porém, esse período libertou as progenitoras desses modelos e atribuiu-lhes um papel significativo na vida religiosa (CAMBI, 1999). Nesse período, as mulheres não tinham acesso à educação formal. As meninas da burguesia, por exemplo, começaram a frequentar a es- cola apenas quando surgiram as escolas seculares, isto é, escolas sem inspiração religiosa (ARANHA, 2006). As famílias que tinham um pre- ceptor, muitas vezes, permitiam que as meninas aprendessem música, religião, trabalhos manuais e rudimentos das artes liberais. Ac om a/ W ik im ed ia C om m on s Figura 4 Mulheres na Idade Média, artista desconhecido (século XIV) A figura feminina no período medieval transitava entre o sagrado e o profano. Idade Média: a educação mediada pela fé 49 Alguns mosteiros recebiam meninas pequenas – entre 6 ou 7 anos de idade – para serem consagradas a Deus. Lá, elas aprendiam a ler e a escrever e podiam até participar da atividade de cópia dos manuscritos. Os beneditinos, por exemplo, dedicaram-se à educa- ção das mulheres, não apenas as futuras religiosas (ARANHA, 2006). Embora alguns religiosos do período fossem hostis à educação das mulheres, outros a apoiavam por acreditarem que a figura femi- nina era a depositária dos valores da vida doméstica. Mesmo nesse caso, subtendia-se que essa formação se submeteria aos fins con- siderados maiores do casamento e da maternidade (CAMBI, 1999). A estrutura hierárquica em que a sociedade medieval se organi- zou não possibilitou, na prática, processos formativos que adotas- sem o ideal cristianizado de igualdade. As objetividades pedagógicas se deslocaram na formação de modelos educacionais e culturais di- ferenciados. Desse modo, existia uma educação do corpo e do ima- ginário, que resultou na cópia e na conservação de uma estrutura social altamente hierarquizada (CAMBI, 1999). Em síntese, ao verificarmos a relação entre o imaginário e a edu- cação, notamos uma tensão entre: as práticas educativas; a for- mação moral e a instrução; a razão e a fé; o estudo da Gramática, Retórica, Aritmética, Geometria e a formação espiritual e mística; e, por fim, entre a verbalização vazia e a prática cristã. Se a educação e os religiosos menearam entre pontos contraditórios e/ou comple- mentares, revelando a multiplicidade da educação medieval, esta, enfim, foi produtora de uma intensa coesão ideal pela propagação da fé cristã. Para compreender a origem do conceito de infância como construção social, sugerimos a leitura do texto A construção social do conceito de infância: uma tenta- tiva de reconstrução historiográfica, de Nascimento, Brancher e Oliveira (2008). Acesso em: 31 ago. 2020. http://www.periodicos.udesc.br/index.php/linhas/article/viewFile/1394/1191 Artigo Qual é o argumento utilizado pelo clero medieval para justificar seu domínio? Atividade 2 50 História da Educação 3.3 Filosofia medieval e educação Vídeo A Igreja católica exerceu um importante papel político na sociedade ao conciliar as elites e contornar os problemas das rivalidades internas dano- breza feudal. Ela conquistou, assim, muito poder econômico e tornou-se proprietária de quase um terço das áreas cultiváveis da Europa Ocidental; isso em um período em que a terra era a principal base de riqueza. Além do domínio econômico e político, a Igreja exerceu ampla in- fluência no plano cultural, sendo a responsável por traçar um quadro intelectual em que a fé cristã se revelou o pressuposto de toda a exis- tência. Preponderava a crença ou a adesão às verdades reveladas por Deus aos homens; verdades expressas nas sagradas escrituras e inter- pretadas de acordo com a autoridade da Igreja. Segundo a doutrina católica, a fé representava o único caminho para as respostas necessárias, especialmente aquelas verdades que diziam respeito à salvação. Nesse contexto, toda a filosofia e a investigação científica não poderiam contradizer esse conjunto de certezas abso- lutas. Os filósofos não deveriam mais se dedicar à busca da verdade, visto que esta já teria sido revelada por Deus; restava-lhes, exclusiva- mente, demonstrar racionalmente as verdades da fé ou nem isso, pois não foram poucos os que dispensaram a filosofia grega por acredita- rem que ela seria pagã e uma chave para o pecado, para a dúvida, para o descaminho ou para a heresia. A anuência a essas verdades, entretanto, não foi unânime e tam- pouco perdurou todo o período. Pensadores cristãos defenderam o conhecimento da filosofia grega, especialmente porque reconheciam a possibilidade de utilizá-la como um instrumento a serviço do cristianis- mo, procurando aproximar a fé da razão e converter os gentios. Embora a fé fosse mais importante e a razão fosse entendida ape- nas como seu instrumento, foi imposta uma sistemática que ficou conhecida como filosofia cristã e que se estendeu por dois grandes períodos, a saber (ARANHA, 2006): • Patrística: filosofia dos padres da Igreja – do século II ao século V. • Escolástica: filosofia das escolas cristãs ou dos doutores da Igre- ja – do século IX ao século XIV. Vejamos a seguir, em detalhes, cada corrente filosófica. gentios: aqueles que eram pagãos. Glossário Idade Média: a educação mediada pela fé 51 M useu Nacional de Arte/W ikim edia Com m ons 3.3.1 Patrística Figura 5 Santo Agostinho, pintura de António Perez de Águila (século XVII) Santo Agostinho, considerado por muitos como o pai da Igreja. Entre os representantes da patrística, podemos elencar Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertu- liano e Santo Agostinho. Este, conhecido também como Bispo de Hipona, sem dúvida foi o teórico mais importante e um dos principais intelectuais da histó- ria do cristianismo (ARANHA, 2006). Em linha gerais, a patrística pode ser compreen- dida como a teologia cristã elaborada após a morte dos apóstolos. Surgida no século I para converter os pagãos, combater as heresias e justificar a fé católi- ca, era a filosofia dos padres da Igreja católica. Os lí- deres cristãos, na época dos conflitos e perseguições no Império Romano, foram chamados pais da fé, por isso a denominação patrística. Esta teve seu fim com o desenvolvimento da escolástica, no Ocidente, por volta do século XI, como veremos adiante. Ao buscar conciliar o cristianismo com o pensa- mento greco-romano e pagão, Santo Agostinho, como ficou conhecido no cristianismo, transformou- -se no principal intelectual da patrística. Ele nasceu na África, no século IV, em uma família burguesa, cujo pai, Patrício, era pagão, e a mãe, Mônica, pelo contrário, era uma cristã fervorosa e exercia sobre o filho uma notável influência religiosa (COTRIM, 2006). Agostinho foi para a cidade de Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, contudo, entregou-se aos ceticismo: doutrina segundo a qual o espírito humano não pode atingir nenhuma certeza a respeito da verdade, o que resulta em um procedimento in- telectual de dúvida permanente e na abdicação, por inata inca- pacidade, de uma compreensão metafísica, religiosa ou absoluta do real. Glossário deleites sexuais que intelectualmente o aproximou do maniqueísmo, uma doutrina de origem persa; nessa concepção, o universo era do- minado por dois grandes princípios opostos: o bem e o mal, os quais estavam em constante luta entre si. Nas cidades de Roma e Milão, Agostinho teve contato com o ceticismo e com o neoplatonismo, esse último caracterizado por sentimentos religiosos e crenças místicas. Foi apenas aos 32 anos que, após contato com Santo Ambrósio, em Milão, Agostinho se converteu ao catolicismo, do qual não se afastou pelo res- to de sua vida. 52 História da Educação Agostinho buscou conciliar as ideias de Platão e a doutrina cristã ao alinhar possíveis contradições entre ambos, como a crença nas “ideias eternas”. A confiança na criação divina por meio do nada en- trava em choque com as ideias de Platão, que dizia que alguma coisa sempre existia antes, as chamadas ideias eternas. Assim, Agostinho afirmou que, antes da criação, as ideias já existiam “na cabeça de Deus”, encaminhando para o cristianismo a concepção de ideias eternas (CAMBI, 1999). Quanto à imortalidade da alma, Agostinho discordava totalmen- te de Platão, pois afirmava que o ser humano possui um corpo ma- terial, que pertence ao mundo físico, mas tem também uma alma capaz de reconhecer Deus. Negou, contudo, a redenção do peca- do original: apenas alguns escolhidos seriam salvos da maldição eterna, retornando, assim, às antigas crenças no destino e na pre- destinação. Segundo Cotrim (2006, p. 111): “a verdadeira liberdade estaria na harmonia das ações humanas com a vontade de Deus. ‘Ser livre é servir a Deus’, diz Agostinho, pois o prazer de pecar é a escravidão”. Em termos educacionais, em sua obra O Mestre, Agostinho de- sarticula a noção de que um homem pode aprender algo de outro. O autor aponta que a necessidade da aprendizagem, em última ins- tância, só pode ser satisfeita por Deus. Assim, fé e conhecimento devem ser a meta do processo educativo. A base do processo será sempre a inabalável convicção da realidade de Deus e da divindade de Cristo. O ponto de partida é o desejo de conhecer a Deus, pois este seria o único capaz de conduzir ao conhecimento deste mundo mutável, instável e imperfeito. Portanto, o conhecimento seria inato, aloca- do na alma humana por Deus. Segundo Agostinho, o conhecimen- to seria aquelas verdades que existem na mente, antes de virem à consciência, cuja educação o traria à percepção do aluno, um pro- cesso pelo qual as ideias obscuras e inconscientes seriam levadas à consciência e à clareza. Cabe ao mestre, assim, auxiliar o aluno a tornar aparente a verdade pré-existente, latente. Em outros termos, o processo educativo sugere a colaboração mútua entre o mestre terrestre e o mestre divino. Idade Média: a educação mediada pela fé 53 3.3.2 Escolástica Ao longo da Idade Média, os parâmetros da edu- cação se apoiaram na ideia de que o ser humano é uma criatura divina, de passagem pela Terra, e que deve zelar, antes de tudo, pela salvação da alma e da vida eterna. Assim, para fortalecer essa premissa, mas sem excluir a razão, a escolástica iniciou um movimento de sistematização da doutrina, tendo as universidades como principal espaço de fomentação intelectual. Conhecida como a Doutrina da escola, a escolástica se caracterizava principalmente pela tentativa de con- ciliar os dogmas da fé cristã e as verdades reveladas nas escrituras sagradas com as doutrinas filosóficas clássicas, destacando o platonismo e o aristotelismo. Um dos primeiros agentes da escolástica foi o mon- ge beneditino Santo Abelardo, autor de importantes escritos que visavam emparelhar a fé cristã com a ra- zão filosófica. No entanto, São Tomás de Aquino foi o principal formulador das teses escolásticas. Pinacoteca di Brera/W ikim edia Com m ons São Tomás de Aquino, principal nome da escolástica. Figura 6 São Tomás de Aquino, obra de Gentile da Fabriano (c. século XIV) Tomás de Aquino nasceu na Itália do século XIII. Doutor em teologia,passou a ensinar em diversas cidades italianas, dando origem a uma vasta obra, composta por comentários da Bíblia, dos santos padres, de Aristóteles e de outros autores pagãos. O ensino atrelado à reflexão fez com que Tomás de Aquino se transformasse em um dos mais impor- tantes filósofos da Alta Idade Média. Não contradizendo as concepções de Agostinho, inclusive concor- dando com a tese de que Deus ensina o homem partindo de seu inte- rior, Aquino voltou sua crítica para Platão, usando os pensamentos de Aristóteles como ferramenta argumentativa. Assim como Agostinho trouxe as ideias de Platão para perto do pen- samento cristão católico, Tomás de Aquino “cristianizou” o pensamento de Aristóteles. Com base nas ideias desse pensador, distinguiu e ne- gou as contradições irreconciliáveis entre o que diz a filosofia e o que 54 História da Educação prega a fé cristã. Tomás de Aquino apresentava, para referendar seus posicionamentos, que o homem pode chegar a Deus tanto pelo cami- nho da fé quanto pelo caminho da razão (COTRIM, 2006). De Aristóteles tomou emprestado todos os conceitos que não se confrontavam com a teologia da Igreja. Assim foi em relação à sua lógica, sua filosofia do conhecimento e sua filosofia da natureza. No pensamento aristotélico, Deus seria as “causas primordiais” que desencadeariam e coordenariam os processos naturais, em uma clara aliança entre a razão e a certeza cristã. Têm-se o que ficou conheci- do como teologia revelada e teologia natural, elementos que se aplicam também na conduta moral: seguir as sagradas escrituras para viver se- gundo a vontade do mestre. Contudo, considerava-se, também, que somos dotados (por Deus) de uma consciência que nos permite, pela razão, distinguirmos as coisas certas das coisas erradas. Em um de seus livros mais relevantes, Suma Teológica, Tomás de Aquino reflete sobre diversos assuntos nas esferas cultural, econômica e social, como a guerra, a paz, os lucros nas transações financeiras, a sexualidade, entre outros; sempre com uma ótica voltada ao cristianis- mo e ao raciocínio aristotélico (ARANHA, 2006). Tomás de Aquino, pela primeira vez na história do cristianismo, uniu a experiência dos sentidos e do intelecto às exigências da fé, fazendo justiça a ambas. A base de seu esforço foi a aceitação da realidade do mundo sen- sível como tal, não como se fosse uma sombra da verdadeira realidade. Para o filósofo católico, a aprendizagem, desde os primeiros anos de vida, consiste naquilo que a natureza proporciona: as faculdades sensí- veis e o intelecto, que permitem a descoberta da realidade concreta, e a instrução que vem do mestre, ou seja, a transmissão de novos conheci- mentos, indispensável ao processo educativo. Acreditando que a mente humana se adapta à recepção do conhecimento, afirmava que o aluno pode alcançar a certeza, embora se limite aos fenômenos terrestres, pois o reino divino permanecerá além do acesso racional (CAMBI, 1999). Tomás de Aquino foi teólogo e filósofo, todavia, seu trabalho mais significativo foi como organizador dos estudos e fundador de escolas superiores, enfim, um professor. O método de ensino proposto por ele era o escolástico, segundo o qual, em um jogo de perguntas e res- postas, o aluno deveria responder às perguntas do mestre. Seu bri- lhantismo didático e metodológico pode ser observado ainda na Suma Idade Média: a educação mediada pela fé 55 teológica, um verdadeiro manual para principiantes, obra na qual pre- tendia despertar a capacidade de admirar e perguntar como início do autêntico ensino (COTRIM, 2006). As reflexões de Agostinho e Tomás de Aquino influenciaram um longo período da história. Ambos partiam do pressuposto da fé cristã, buscando no conhecimento filosófico grego argumentos que a legitimassem. Apesar das divergências, é quase unânime o reconhecimento de que as obras de ambos representara,m o apogeu do pensamento católico medieval. En- tretanto, as afirmações de Aquino já eram um prelúdio dos novos tem- pos, que sobravam e orientavam os rumos da educação, da ciência e da literatura. A secularização do pensamento ou a retomada do pensamento greco-romano anunciavam o humanismo que se aproximava. Durante a Idade Média, existia uma preocupação educacional, proposta pela Igreja Católica, voltada ao aspecto religioso. Com base nessa premissa, como podemos descrever a concepção cristã de educação? Atividade 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em virtude das invasões dos povos não latinos, os chamados bárbaros, e a desarticulação do Império Romano, a cultura greco-romana quase foi dizimada, o que não ocorreu, em grande parte, graças à articulação pro- movida pela Igreja católica. Assim, o ponto de partida da educação dos povos da Idade Média foi a doutrina da Igreja, que substituiu o elemento racional expresso no con- ceito liberal e individualista dos gregos e a educação prática e social dos romanos pelo teocentrismo, influenciando todos os tipos de educação que se desenvolveram durante o longo período medieval. Enquanto os filósofos gregos enfatizavam o aspecto intelectual, os re- presentantes da Igreja destacavam o aspecto moral, pautado na ideia de caridade cristã ou amor, a expressão mais individual e completa da per- sonalidade humana. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, com base em Platão e Aristóteles, tentaram, cada um a seu modo, combater as heresias; contu- do, sem abandonar a reflexão filosófica e apoiando a fé na razão, buscan- do eliminar as dúvidas e controvérsias por meio da argumentação. Com a Igreja, estrutura-se um novo tipo de educação, com normas inéditas de vida e comportamento regrado, e utilizada como instrumento para um fim maior: a salvação da alma. Mesmo impregnada pelo teocen- trismo, a educação nesse período contribuiu para a preservação dos co- nhecimentos greco-romanos e para a estruturação das universidades, em uma tentativa de conciliar fé e razão. 56 História da Educação Por outro lado, a educação popular simplificou a mensagem religiosa, por meio de uma formação com base nos costumes, na autoridade, no controle do comportamento e pelo surgimento de uma consciência per- meada pelo pecado e pelo arrependimento. REFERÊNCIAS ARANHA, M. L. de A. História da Educação e da Pedagogia. Geral e do Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006. ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. CAMBI, F. História da Pedagogia. São Paulo: Editora Unesp, 1999. COTRIM, G. Fundamentos da filosofia: história e grandes temas. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. KONDER, L. Filosofia e educação: de Sócrates a Habermas. Rio de Janeiro: Forma & Ação, 2006. MANACORDA, M.A. História da educação. Da antiguidade aos nossos dias. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1992. PILETTI, C.; PILETTI, N. Filosofia e História da educação. São Paulo: Editora Ática, 2004. GABARITO 1. A Igreja colaborou para a criação das universidades na Europa do século XII, com o intuito de melhor fundamentar seus dogmas, não só no plano espiritual, mas também no campo teórico. Por meio dos chamados doutores da Igreja, o debate teológico se tornou intenso na Idade Média. 2. A Igreja, que acabou também se transformando em uma verdadeira senhora feudal, com muitos territórios e seus habitantes sob seu domínio, utilizava como principal argumento para manter seu poder a necessidade de submissão do poder temporal ao gládio espiritual, para que se cumprissem os desígnios de Deus. Assim, utilizava-se de uma concepção teocêntrica para subjugar o poder temporal. 3. Durante grande parte do período que ficou conhecido como Idade Média, não verifica- mos o fortalecimento de educadores, como os que apareceriam com a modernidade. Na verdade, existiram pensadores que refletiram sobre a questão pedagógica ligada a questões como interpretação de textos e conservação de princípios religiosos. A educação era, em grande medida, utilizada comouma ferramenta para a salvação da alma. Pensadores como Agostinho e Tomás de Aquino – representantes da patrística e da escolástica, respectivamente – contribuíram significativamente para o que enten- demos como educação nos dias de hoje. Nesse sentido, prevalecia uma concepção teocêntrica, tendo Deus como centro do universo e fundamento de toda a ação pe- dagógica. Renascimento e educação 57 4 Renascimento e educação Durante a nossa formação escolar, boa parte dos livros didáticos e dos professores abordavam o início da Idade Moderna – o perío- do histórico entre os anos 1453 e 1789 – como algo compreendido por todos. Usamos comumente o termo moderna porque, no mo- mento em que essa delimitação cronológica foi feita, acreditava-se que a sociedade que vivia na época moderna era mais evoluída e desenvolvida do que a que havia vivido no período imediatamente anterior. Apesar de continuarmos utilizando essa nomenclatura, a historiografia atual não concorda que a sociedade moderna é mais desenvolvida ou melhor que a medieval. A Idade Moderna também é chamada de Renascimento, pois foi com o questionamento do teocentrismo e do poder da Igreja que o racionalismo foi revitalizado como arma em um combate que se estendeu por mais de dois séculos. Contudo, isso não significa que o poderio católico não tenha tido reações vitoriosas, sobretudo no campo da educação. A educação, conforme vamos ver, transforma-se em um im- portante instrumento para a elaboração de uma nova realida- de, pois uma nova educação possibilitava descobrir, inventar e produzir. Nesse sentido, a característica que melhor define o Renascimento é o individualismo em oposição ao coletivismo me- dieval; é a partir desse momento que o indivíduo deveria buscar sozinho a satisfação de seus interesses. Esse foi, também, o período das grandes navegações, da expan- são territorial, da disputa pela hegemonia no novo mundo e da reforma protestante. Os pensadores desse período não fizeram apenas renascer os textos greco-romanos, eles procuraram da mesma forma melhorar a sociedade em que viviam, por meio de novas concepções religiosas e/ou filosóficas. 58 História da Educação 4.1 A importância da educação no Renascimento Vídeo Em síntese, o período do Renascimento pode ser compreendido como o renascer dos ideais greco-romanos. Todavia, não podemos res- tringir esse período a uma cópia fiel do mundo antigo, uma vez que o Renascimento não foi apenas o surgimento de pintores, poetas, arqui- tetos e escultores que criaram obras com formas totalmente novas. Esse período, também, significou o começo de novas maneiras de com- preender a política, a ciência, a moral, a religião, a educação e a criança. O modo de entender o ser humano e o universo foi transformado com o desenvolvimento da filosofia humanista. Por volta do século XV, a crise da sociedade medieval e da Igreja, guerras, agitações políticas, econômicas e as mudanças ideológicas e geográficas desenharam o cenário geral que estava em decadência. Contudo, essas crises despertaram novas ideias, anseios e desejos que circunscreveram, por sua vez, os primeiros traços do que seria com- preendido como Renascimento. As transformações deram novas feições ao mundo ocidental e coloca- ram um importante desafio para a educação: o surgimento de um novo ser humano, apto a compreender, aceitar e atuar nos novos modelos e paradigmas que se apresentavam. O teocentrismo e o sentido religio- so, que inspiravam a educação medieval, cederam lugar ao antropocen- trismo. Assim, a educação se baseou no modelo humanista, expresso pela ideia de homem universal, mas que ainda precisava ser construído. Este novo homem precisava de um novo modo de vida, de novos desafios e de novas conquistas, fazendo que o novo mundo gravitasse não ao redor da Terra, nem ao redor do Sol, mas ao redor do próprio ser humano. O novo movimento de toda essa cultura, até mesmo da educação, era antropocêntrico, isto é, centrado no ser humano. Fora das portas das universidades escolásticas se aprendia um universalis- mo novo, com um caráter mundano, livre e aberto. Embora alguns estudiosos questionem a relevância da educação deste período, foi nele que ocorreu uma guinada durante o Renasci- mento, graças ao que chamamos de ideais antropológicos – dos quais a educação se tornou expressão – e às novas exigências didáticas em circulação. Atribuíram-se ao plano didático os jogos e a educação física, Renascimento e educação 59 e valorizou-se a infância e sua especificidade, fatores que garantiram um novo lugar no contexto social (CAMBI, 1999). A educação buscou bases não religiosas com o objetivo de se tor- nar instrumento adequado para a transmissão dos valores burgueses. A educação não religiosa levaria a busca da verdade por meio da razão. A formação intelectual começou a ser valorizada e a burguesia, a mais nova camada social, exigia aproximação entre a educação e a realidade. Educar tornou-se essencial, quase uma moda. Na região das atuais Itália e Alemanha, por exemplo, surgiram escolas com o objetivo espe- cífico de formar os futuros criadores das artes e da ciência. As univer- sidades – que conservavam características medievais e que tardaram a serem “contaminadas” pelo espírito humanista – foram substituídas pelas academias, as quais permitiam um estudo livre e desinteressado. Todavia, ainda que fosse significativa a produção intelectual no Renascimento, não existia propriamente uma reflexão educacional, ou seja, não se compreendia a educação como parte de algo mais amplo. Os teóricos renascentistas apresentaram alguns apontamen- tos, os quais merecem a nossa atenção por mostrarem caminhos para a educação das crianças. Com o humanismo renascentista, ao contrário do que ocorria du- rante a Idade Média, há uma maior preocupação dos adultos com as crianças, o que refletia na elaboração de análises, de teorias sobre o desenvolvimento e nas medidas de higiene. Além disso, há o fortale- cimento do colégio, lugar social que presencia ruptura paradigmática. Segundo Boto (2002, p. 25): Os colégios, que na Idade Média eram apenas alojamentos para jovens estudantes das universidades europeias, passarão a significar, no mundo moderno, uma racionalidade institucio- nal extremamente sincronizada a uma dada concepção especi- ficamente moderna de infância e de adolescência, de tempo e de espaço escolar. Apesar dos pensadores dos séculos XV e XVI, muito exaltados pela produção artística e cultural, não terem elaborado obras classificadas propriamente pedagógicas, o espanhol Juan Luís Vives (1392-1540), aproximando-se do que hoje chamamos de Psicologia da Educação, de- senvolveu um estudo mais sistemático sobre a transmissão do conheci- mento, do qual o principal resultado é a obra Tratado do ensino, de 1530. 60 História da Educação Nessa obra, o estudioso recomendava o cuidado com o corpo e a aten- ção ao aspecto psicológico no ensino. Reconhecia-se a importância da observação dos fatos e a ação como meio de aprendizagem. Além disso, insistia na necessidade do adequado estudo da língua nacional em detri- mento do latim (ARANHA, 2006). Segundo Cambi (1999, p. 265), “no ter- reno da organização da escola, entretanto, Vives é bem menos original e se inspira fundamentalmente em Quintiliano e na tradição humanística”. Outro nome muito lembrado, quando estudamos os princípios do Renascimento, é o do holandês Erasmo de Rotterdam (1466-1536). O pensador indicava que objetivo era retirar os jovens da estagnação da ignorância, imposta pelo ideário medieval e pela escolástica. Na obra Civilidade pueril (1530), abordou o ensino de boas maneiras para crian- ças e apresentou soluções para problemas do cotidiano infantil, que ainda era desconhecido pelos adultos. O professor, para Erasmo, de- veria conduzir o aluno para a aprendizagem, não para a imitação vazia, valorizando suas aptidões com atenção e respeito ao amadurecimento da criança (ARANHA, 2006). Na tio na lG al le ry /W ik im ed ia C om m on s Figura 1 Retrato de Juan Luís Vives, artista desco- nhecido (século XVII) Juan Luís Vives estudou aspectos relacionados à transmissão do conhecimento e ao ensino. M us eu d o Pr ad o/ W ik im ed ia C om m on s Figura 2 Retrato de Erasmo de Rotterdam, de Hans Holbein (século XVI) Conhecido pelo clássico Elogio da loucura (1511), Erasmo de Rotterdam também apresentou soluções para o cotidiano infantil. Renascimento e educação 61 Um dos críticos mais relevantes das tradições medievais, o francês François Rabelais (1494-1553), também direcionou suas apreciações ao processo educativo, posicionamento muito expressivo em um período de reestruturação da compreensão do mundo. Figura 3 Retrato de François Rabelais, artista desconhecido (século XVI) pa lá ci o de V er sa ill es /W ik im ed ia C om m on s Embora não tenha escrito uma obra dedicada ao estudo da educação, Rabelais criticou de maneira satírica o modelo da escolástica. Mesmo sem escrever uma obra detidamente pedagógica, Rabelais apresenta em Gargântua e Pantagruel (1532) uma clara sátira à escolás- tica, à memorização e à explicação de conteúdos abstratos e dogmá- ticos que deveriam ser substituídos por conhecimentos condizentes com as novas ideias. O autor propôs uma educação humanista caracte- rizada pelos estudos clássicos e pelo lúdico, destacando a importância de se aprender com alegria (ARANHA, 2006). Assim como seus contemporâneos, o francês Michel de Montaigne (1533-1592) censurava tanto as escolas quanto aos professores e aos métodos de ensino como o programa de estudos advindos da tradição medieval. Montaigne também não produziu uma obra especificamente pedagógica, todavia, seu Ensaio (1580) dedica algumas reflexões à educa- ção, repreendendo a prática de um ensino livresco e apartado da realida- de cotidiana, valorizando a educação integral e sem castigos. 62 História da Educação Figura 4 Retrato de Michel de Montaigne, artista desconhecido (século XVI) O du qu e do a bs ur do /W ik im ed ia C om m on s Montaigne criticou escolas, professores e métodos de ensino advindos da tradição medieval. Montaigne voltou seu olhar às crianças, polemizando contra as im- posições feitas a elas, as quais prejudicavam o desenvolvimento da ra- zão (MÄRZ, 1987). Criticava, portanto, o que classificava como brutais estilos de ensino, exigindo cuidado e bondade com as crianças a fim de despertar nelas o amor e o prazer pela escola e pelos estudos. Nesse sentido, observamos que mesmo quando não existia uma in- tensão pedagógica, os pensadores responsáveis pelos apontamentos iniciais a respeito do renascimento e do afastamento do ideário medie- val ressaltavam a necessidade de modificar métodos e conteúdos para a efetivação de uma nova sociedade. 4.1.1 O surgimento do colégio A ruptura ocasionada pela valorização do ser humano e da ciência apresenta-se também como uma revolução no âmbito pedagógico, uma vez que a prática pedagógica respondeu à passagem da Idade Média para o mundo moderno. Enquanto a nobreza continuava educando seus filhos em casa com preceptores, a burguesia encaminhava seus herdeiros para a escola com o objetivo de melhor prepará-los para a liderança e admi- Renascimento e educação 63 nistração dos negócios. Os interesses da maioria da população não eram levados em conta, visto que restringiam-se à aprendizagem de ofícios para atendimento do mercado em expansão. É neste período que observamos o aparecimento de expressões para designar a infância, contudo, ainda sem distinção entre as faixas etárias. Palavras como puer e adolescens eram usadas sem cuidado, pois se por um lado já existia uma preocupação e um vocabulário para os primeiros anos de vida, por outro não havia a noção do que hoje chamamos de adolescência. Considerava-se o fim da infância quando se saía da casa (e da dependência) dos pais (ARIÈS, 1981). A preocupação de distinção favoreceu o surgimento de espaços es- pecíficos para o ensino: os colégios. O desenvolvimento dessa institui- ção representou um passo significativo para a educação da criança e a organização do sistema educacional. A relevância conquistada pela educação no período pode ser observada na proliferação de colégios e manuais para alunos e professores. Petitat (1994) afirma que a separa- ção entre o mundo dos adultos e das crianças e adolescentes lançou as bases da pedagogia moderna. Os colégios trouxeram uma nova forma de sistematização para o processo de ensino e de aprendizagem, associados aos procedimentos de racionalização em curso. As principais novidades estavam relaciona- das ao espaço físico, tempo, estruturas de poder e seleção de conteú- dos e elementos socioculturais. O novo modelo supunha a existência de uma outra organização espacial, demonstrada em prédios com de- pendências especializadas de acordo com a função (VEIGA, 2007). JD/Shutterstock Com a sistematização dos colégios, sinos com sons chamativos e relógios foram incorporados ao universo escolar, elementos que presenciamos, de certa forma, até os dias de hoje nas escolas. 64 História da Educação Os estudantes começaram a ser agrupados em salas de acordo com o nível de conhecimento e a idade. A graduação dos estudos determi- nou uma nova organização do tempo escolar com a divisão dos dias em horários, além disso, o estabelecimento de tarefas e a organização dos meses de aula eram feitos conforme os conteúdos a serem ensinados em um determinado período, que antecederia à realização dos exames. Sinos com sons chamativos e relógios foram incorporados ao universo escolar, distanciando-se gradativamente das práticas utilizadas nas fa- culdades de artes ou mosteiros. O cuidado com os conteúdos e a aquisição dos conhecimentos torna- -se evidente, assim como o papel do mestre. Novas estruturas e relações de poder se esboçaram expressas na concentração dos estudos em um só local, na instituição de um domínio educacional, no controle dos estudos, na reordenação do uso do tempo e do espaço e no estabelecimento do ensino obrigatório, seriado e com conteúdo didaticamente hierarquizado. A rigidez pedagógica e administrativa dos colégios – algo herdado do período anterior e rechaçado pelos renascentistas – gradativamente produziu uma dimensão disciplinar que contrariava a liberdade deseja- da pelos pensadores renascentistas. As transformações iniciadas nessa nova organização integraram as reformulações sociais e políticas entre os séculos XVI e XVIII (VEIGA, 2007). A mudança no cenário educacional – originada pela organização dos colégios – integrou um novo ambiente cultural que se traduziu em altera- ções políticas, religiosas e novas práticas de mercado no desenvolvimen- to de uma ótica individualista e na necessidade de diferenciação social. Novos costumes e hábitos delimitaram o local do individual e do coletivo, bem como as formas de socialização. Esses fatores justificam a seleção de novos elementos socioculturais e o sucesso dos colégios entre as elites. Assim, mesmo com as discussões filosóficas, as escolas continua- ram ministrando um ensino que podemos classificar como conservador, o qual estava prioritariamente nas mãos dos religiosos. O que prevale- ceu, apesar do desenvolvimento do pensamento científico, foi uma for- mação pautada no modelo de uma nobreza aburguesada. Na verdade, esboçava-se na educação o dualismo escolar, ao destinar um tipo de escola para a elite e outro para o povo. Por que podemos afirmar que a educação no Renascimento não representou uma ruptura em relação à educação da Idade Média? Atividade 1 Renascimento e educação 65 4.2 Reformas religiosas e educação Vídeo Em meados do século XVI, diante da efervescência das mudanças, o religioso católico Martinho Lutero (1483-1546) organizou e sistematizou uma nova doutrina religiosa, que ficou conhecida como luteranismo. Com isso, iniciou-se um movimento de ação e reação religiosaque im- pactou significativamente a educação. Lutero traduziu a bíblia com o objetivo de difundir os ensinamentos bíblicos sem a necessidade de intermediários. Com a preservação ape- nas dos sacramentos do batismo e da eucaristia, rapidamente o lutera- nismo se espalhou pela Suíça, França, Dinamarca, Noruega e Hungria. Na Suíça, ele foi defendido pelo francês João Calvino (1509-1564), que, acrescentando-lhe as suas ideias, deu origem à outra doutrina protes- tante, o calvinismo. Na Inglaterra, o rei Henrique VIII (1491-1547) rom- peu com a Igreja, fundando a Igreja Anglicana em represália à recusa do papa ao pedido de divórcio que o rei lhe fizera. O monarca inglês passou a ser também a autoridade suprema da Igreja Anglicana. He ss is ch es L an de sm us eu m D ar m st ad t/ W ik im ed ia C om m on s Lutero organizou e sistematizou o luteranismo, uma nova doutrina religiosa. Figura 5 Retrato de Martinho Lutero, de Lucas Cranach (século XVI) Figura 6 Retrato de João Calvino, artista desconhe- cido (século XVI) Th om as G un /W ik im ed ia C om m on s Calvino deu origem à doutrina protestante, chamada calvinismo. O cristianismo católico não era mais o único representante da doutri- na na Europa Ocidental. No momento em que a Reforma Protestante mostrou que realmente era capaz de ameaçar o poder – e que, além de religioso, o movimento era político e cultural –, a Igreja Católica buscou 66 História da Educação maneiras de perpetuar sua força. Como destaca Cambi (1999), o mo- vimento protestante e a Contrarreforma católica assumiram desde o início relevante significado educativo. Lutero não somente elaborou uma nova religião, mais livre e me- nos dogmática, como também voltou suas atenções à educação. Para o reformador, a estabilidade da nova ordem espiritual dependia da ca- pacidade dos indivíduos de compreenderem as sagradas escrituras, a qual era obtida por meio de uma boa educação. Assim, a Igreja junto ao Estado deveria assumir a obra educativa. O modelo educacional apresentado pelos protestantes era se- melhante ao modelo humanista, isto é, pautado no ensino das lín- guas nacionais, na centralidade da educação gramatical para livre interpretação e na preparação para a vida cotidiana. Nesse contex- to, o aprendizado de um ofício não era deixado de lado, atrelando estudo e trabalho. Os colégios deveriam ser espaços agradáveis, não espaços de repreensão e castigo, dotados de boas e bem orga- nizadas bibliotecas. O mestre deveria equilibrar amor e severidade, sem punições excessivas, para que o estudo tivesse uma finalidade e uma motivação precisa. A expansão do movimento atrelada às mudanças políticas, cultu- rais, econômicas e sociais foi tão avassaladora que exigiu uma reação por parte da Igreja Católica, a qual presenciava dia após dia o arrefeci- mento de seu poderio. A reação ficou conhecida como Contrarreforma, em virtude do esforço empreendido para conter o avanço das doutri- nas protestantes. No Concílio de Trento (1545-1563), a Igreja, dentre as soluções para os problemas enfrentados naquele momento, definiu que o trabalho de catequese e a expansão, necessários para os novos territórios colo- nizados, ficariam a cargo de um clero renovado, instruído, preparado e dedicado ao trabalho pastoral. Apesar de não abordar diretamente a questão educacional, a Igreja, ao propor a criação de ordens religiosas para formação de seus novos quadros, abria espaço para a educação, uma vez que essas novas ordens deveriam repensar seus métodos de instrução e atingir um número maior de alunos/fiéis. A ordem religiosa mais importante na formulação de uma res- posta ao protestantismo, fundada nesse contexto histórico, e que al- cançou maior destaque no campo educacional foi a Companhia de O filme Lutero (2003) retrata a movimentação liderada pelo religioso contra a Igreja Católica, a qual resultou em excomunhão e fuga para defender seus ideais. Direção: Eric Till. Estados Unidos; Alemanha: Metro-Goldwyn-Mayer, 2003. Filme Foi com os reformadores que as iniciativas de educação profissional e alfabetização dos mais pobres conquistaram mais espaço, especialmente, porque a formação religiosa era mais libe- ral e pregava a livre interpretação das sagradas escrituras. Dentre os protestantes, a alfabetização se estendeu para meninos e meninas e foi, em grande parte, assumida pelas autoridades municipais, que partilhavam a ideia de que a língua materna deveria ser a base da educação (VEIGA, 2007). Saiba mais Renascimento e educação 67 Jesus. Os princípios sistematizados por Inácio de Loyola (1491-1556) nortearam boa parte da educação Europeia e do Novo Mundo por mais de dois séculos. Figura 7 Inácio de Loyola, obra de Peter Paul Rubens (século XVI) M us eu N or to n Si m on /W ik im ed ia C om m on s Inácio de Loyola foi o fundador da Companhia de Jesus, na qual seus membros eram conhecidos como jesuítas. Ao fundar a Companhia de Jesus, os jesuítas não cogitavam traba- lhar em colégios, mas a preocupação em dar uma formação sólida e de acordo com os preceitos da ordem fez Inácio de Loyola encaminhar a instituição para a educação. A princípio, o projeto dos jesuítas visava formar apenas os futuros membros da ordem, assim, voltados à for- mação destes, fundaram-se colégios-seminários de ensino integral. A abertura para externos foi consequência desses dois primeiros mo- mentos, tornando-se um dos traços da obra dos jesuítas, que com seu tato sempre alerta perceberam ser esta a melhor maneira de universa- lizar o trabalho e mantê-lo em constante expansão. Após todas as experiências e trocas de informações, em janei- ro de 1599 os jesuítas apresentaram “a primeira grande lei esco- 68 História da Educação lar aplicada, nos tempos modernos, a todo um conjunto de nações” (MADUREIRA, 1929, p. 370). Tão importante quanto a propagação dos colégios foi a adoção do Ratio Studiorum, pensado para ordenar as instituições de ensino de uma única maneira, com vistas a permi- tir uma formação uniforme a todos que frequentassem os colégios da ordem, em qualquer lugar do mundo. Basicamente, o Ratio Studiorum propunha um aprimoramento das práticas religiosas comuns aos mestres católicos com aulas expositi- vas para alunos expectadores. Como método de estudo, recomendava a repetição de todos os exercícios para a memorização. A disciplina era sempre muito rígida e lançava mão, até mesmo, de castigos físicos, sendo o único momento de descontração as competições intelectuais entre os alunos, que aconteciam aos sábados, chamadas sabatinas. Para compreender as propostas educacionais dos reformadores, com desta- que para seu precursor, leia o artigo As concepções educacionais de Martinho Lutero, de Luciane Muniz Ribeiro Barbosa, publicado no periódico Educação e Pesquisa (2007). Acesso em: 20 ago. 2020. https://www.scielo.br/pdf/ep/v33n1/a11v33n1.pdf Artigo 4.3 O método e a educação Vídeo Assim como os séculos XV e XVI, o século XVII foi palco de combates sangrentos, de disputas de ideias e de rearticulações que colaboraram para que a identidade do Estado Moderno se configurasse. A burguesia enriqueceu ainda mais com a expansão para o Novo Mundo e se forta- leceu politicamente, com isso surgiram as primeiras as fábricas – locais em que a mente do homem trabalhador foi remodelada. Foi um mo- mento determinante para o desenvolvimento cultural, pois os vestígios dos tempos medievais foram eliminados definitivamente, resolvendo problemas que os séculos anteriores haviam criado, como o afasta- mento entre teoria e prática. O desenvolvimento técnico-científico e o enriquecimento promovi- do pela expansão colonial permitiu à Inglaterra organizar a Revolução Industrial, um importante passo para o pensamento científico que deixa- va de ser meramente contemplativo e atendia às necessidades práticas. https://www.scielo.br/pdf/ep/v33n1/a11v33n1.pdf Renascimento e educação 69 Politicamentenão era mais plausível o poder monárquico centralizador e o liberalismo tanto político quanto econômico, uma vez que se nota- vam os primeiros passos rumo à consolidação do poder da burguesia. Nesse controverso contexto, a ciência e a educação oscilaram em conflito. Os jesuítas, em seus inúmeros colégios, representantes do antigo modelo social dominado pela força da Igreja Católica e as insti- tuições leigas procuravam a formação do homem novo, este capaz de se adequar à pesquisa e à técnica. Assim, o método, ferramenta para a produção do conhecimento, para pensar e para aprender, torna-se a marca do século XVII (BOTO, 2002). Apesar da forte presença religiosa, o pensamento pedagógico lai- co e da educação pública se desenvolveram de maneira significati- va. O pensamento filosófico desse período ganhou notoriedade com Descartes, Locke e Bacon. Porém, o mais importante pensador e edu- cador desse período foi Comenius, reconhecido como o “pai da peda- gogia” (CAMBI, 1999). 4.3.1 Comenius e a Didática Magna Ga le ria K ar ol M ilo sl av L eh ot sk ý/ W ik im ed ia C om m on s Para Comenius, todos os problemas da existência humana podiam ser resolvidos por meio da educação. Figura 8 Comenius, obra de Karol Miloslav Lehotský (século XIX) Para o educador e escritor tcheco Iohannis Amos Comenius (1592-1670), todos os problemas que conturbavam a existência humana seriam resol- vidos com o aprimoramento da educação. Para tanto, era necessário um plano bem elaborado de estu- dos, um método que valorizasse a revolução cientí- fica e a transmitisse a todos os indivíduos. Segundo Comenius, não existia nada que fazia do processo educativo atraente e interessante para os estudantes. Por isso, ele buscava expandir o programa de estudo para incluir o máximo de disciplinas possíveis até criar um sistema de conhecimento universal e aplicável em todos os contextos (CAMBI, 1999). Em sua emblemática obra Didática Magna, Comenius apresentou um método que deveria ser- vir para ensinar prazerosamente a todas as crianças. Tratava-se, na verdade, de um método com base no respeito ao desenvolvimento da criança. O estudioso pretendia facilitar o processo de aprendizagem tor- 70 História da Educação nando-o mais interessante e significativo para o aluno. Os princípios que apresentava substituiriam a estrutura formal lógica por uma configura- ção psicológica. Comenius realizou uma meticulosa sistematização das atividades se- gundo gradações das dificuldades e com ritmo adequado à capacidade de assimilação dos alunos (ARANHA, 2006). O ensino deveria ser realiza- do em instituições para este fim, organizado por etapas e com o auxílio de manuais (livros didáticos) adequados às principais disciplinas. Ao ado- tar temas práticos, o ensino deixava de ser somente “livresco”. O educador apresentou uma proposta de organização estruturada em quatro graus sucessivos. Para cada um, apontou os principais obje- tivos, conteúdos e métodos de ensino, com uma cautela e minúcia por vezes excessiva (CAMBI, 1990). Aos primeiros anos de escolarização, Comenius apontava a necessi- dade de cuidado e acompanhamento, pois destes momentos depen- deria todo o sucesso acadêmico do aluno. A escola maternal para a infância era considerada a mais importante, era a que preparava o “terreno da inteligência” e a qual estava ligada “toda a esperança da reforma universal das coisas” (CAMBI, 1999, p. 290). Comenius foi um dos primeiros a propor que na educação deve-se partir sempre do simples: do que é concreto para a criança e, posterior- mente, avançar para o mais complexo e abstrato. Desejamos que o método de ensinar atinja tal perfeição que, entre a forma de instruir habitualmente usada até hoje e a nossa nova forma, apareça claramente que vai a diferença que vemos entre a arte de multiplicar os livros, copiando-os ä pena, como era uso antigamente, e a arte da imprensa, que depois foi descoberta e agora é usada. Efetivamente, assim como a arte tipográfica, embora mais difícil, mais custosa e mais trabalhosa, todavia é mais acomodada para escrever livros com maior rapidez, pre- cisão e elegância, assim também este novo método, embora a princípio meta medo com as suas dificuldades, todavia, se for aceite nas escolas, servirá para instruir um número muito maior de alunos, com um aproveitamento muito mais certo e com maior prazer, que com a vulgar ausência de método. (COMENIUS, 2002, p. 455) É importante frisar que esse teórico foi um dos primeiros grandes defensores da educação universal. Ele tinha a pretensão de desenvol- ver uma metodologia que tornasse possível ensinar tudo a todos. Para Renascimento e educação 71 tanto, era preciso desenvolver um sistema educacional que oferecesse uma base sólida de conhecimentos, sem molestar ou entediar os estu- dantes. A aquisição de conhecimentos não deveria ser restrita a pou- cos, mas acessível para aprimorar o mundo. O pensador foi claramente inovador ao atender às especificida- des do ensino para a infância, colocando foco no ato de ensinar. Preocupava-se com a sistematização dos conhecimentos, chegan- do a criar um manual ilustrado sobre todas as coisas para facilitar a aprendizagem. Em suma, Comenius foi um dos mais significativos pedagogos do século XVII. Em sua obra, Didática Magna, mostrou a arte universal de “ensinar tudo a todos” e explicitou sua concepção do ser huma- no como um ser racional, guiado pelo intelecto, com condição para disciplinar à vontade e agir com autonomia (NARODOWSKI, 2001). Um dos pensadores que mais contribuiu para a configu- ração da escola moderna foi Iohannes Amos Comenius. Para compreender a relevância dele para a história da educação, elabore uma síntese dos pontos mais relevantes do pensamento educacional de Comenius. Atividade 2 4.4 Brasil: colonização e catequese Vídeo A história do Brasil como colônia portuguesa no início do século XVI não pode ser dissociada dos acontecimentos europeus, uma vez que a colonização resultou da necessidade de expansão comercial da burguesia mercantilista. Ao dissertarmos sobre a educação no período colonial brasileiro, precisamos inicialmente esclarecer que esse período faz parte de um processo histórico mais amplo: o de- senvolvimento da modernidade e, mais particularmente, da moder- nidade educacional (WEHLING, 2004). É relevante, também, adiantar que a incorporação da América portuguesa à dita modernidade fez-se sob o crivo seletivo da metrópo- le dominada pela mentalidade católica da Contrarreforma. Portanto, não encontramos por essas terras todas as novidades, em pensamento e em práticas, que os tempos modernos vão introduzir na escola. Aqui as novidades foram chegando conforme os interesses do colonizador. Finalmente, outro detalhe, a escola não contava com a importância social que a sociedade atual costuma lhe conferir. Nem entre a classe do- minante e muito menos entre os destituídos, os quais não eram apenas os indígenas e os escravos. A luta pela sobrevivência era tão cansativa, além dos obstáculos impostos à educação pela administração metropo- litana, que poucos alimentavam sonhos em relação aos estudos. 72 História da Educação Neste contexto de exploração comercial e agrícola, a educação não era prioridade, pois a agricultura não exige formação especial e o trabalho escravo era algo intrínseco à sociedade portuguesa. Todavia, Portugal enviou religiosos, com destaque aos jesuítas, para o trabalho missionário e pedagógico com a finalidade de manter a fé dos coloniza- dores e converter os indígenas seguindo as orientações do Concílio de Trento, reflexo da Contrarreforma. Para a monarquia portuguesa, a expansão não se traduzia apenas em exploração econômica em seus domínios coloniais, mas, também, como forma de levar a fé católica. Os europeus desejavam impor, ain- da, os valores morais, a religião e a língua, uma série de regras justifi- cadas como “civilizatórias”. A fé católica, de acordo com o ideário, seriaa responsável por esse processo de “civilização”, de conversão dos pa- gãos. Podemos entender essa imposição de valores cristãos como uma estratégia de fortalecimento da autoridade monárquica, que, segundo a necessidade, utilizava-se dos processos inquisitórios, das persegui- ções religiosas e da “guerra santa”. A fé e o poder político não estavam em esferas distintas. No dizer de José Maria de Paiva (1982), pesquisador da educação colonial, na sociedade portuguesa do século XVI a religião não era uma maneira de comportamento social, era o que regia todos os comportamentos. A cultura portuguesa era totalmente pautada na noção de sacralidade, na qual todas as esferas pertenciam ao âmbito do sagrado e se subme- tiam ao comando do rei e do papa. Nesse cenário, a Companhia de Jesus conseguiu o apoio das monar- quias ibéricas e cresceu quase na mesma velocidade que a expansão territorial portuguesa. Para melhor compreendermos o papel histórico dela, sobretudo no Brasil, é significativo entendermos que esse grupo religioso acatava concomitantemente a expansão da fé católica por par- te da Igreja e a expansão territorial ibérica. Para os religiosos desse grupo, o fundamental era garantir a obediên- cia aos preceitos cristãos entre os colonos e catequizar os nativos. E para a Igreja, os indígenas não deveriam ser escravizados, pois só eram passíveis de escravidão aqueles que se negavam ao cristianismo, como muçulma- nos e africanos. Os índios eram puros e estariam muito próximos dos prin- cípios cristãos. Com o aparecimento das missões jesuítas, entre os séculos XVI e XVII, logo surgiram também os primeiros conflitos entre os jesuítas e os colonos que capturavam e escravizavam os índios. Para compreender como as práticas católicas foram transformadas – em virtude da realidade econômica, social e até mesmo climática da colônia –, sugerimos a leitura do texto de Luiz Mott, Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA, L. M. (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v1, p. 164-166. Leitura Renascimento e educação 73 O papel da Companhia de Jesus no Brasil deve, portanto, ser desta- cado não apenas por aderirem ao ideal missionário contrarreformista, mas por serem, como veremos no tópico a seguir, os responsáveis pela organização dos primórdios da educação brasileira. Por isso, após a aportarem os missionários, os jesuítas já implantaram uma escola de “ler e escrever” na cidade de Salvador. 4.4.1 Educação jesuítica no Brasil Embora os homens da Companhia de Jesus recebessem formação religiosa e orientação segura do Ratio Studiorum, eles enfrentaram sé- rios desafios para se adaptarem às exigências locais, o que foi relata- do por Manuel da Nóbrega (1517-1570), José de Anchieta (1534-1597) e outros padres nas cartas que encaminhavam. Nesse ponto, é bom lembrar quanto lhes valia no Brasil a sua tão reconhecida flexibilidade. O padre Nóbrega estruturou o ensino atento às peculiaridades identifi- cadas na colônia (BORTOLOTI, 2003). O período inicial do trabalho dos jesuítas no Brasil é caracterizado pelo que chamamos de missionarismo heroico. Como sintetizou Savia- ni (2007), seguindo o que fora anteriormente apontado por outros au- tores, isso significava para os jesuítas conviver e trabalhar nas aldeias para conseguir atingir os catecúmenos. De acordo com essa ideia, os indígenas eram compreendidos como iguais, ou seja, todos eram gen- tios pacíficos. Essa representação os convencia de que os índios eram, como gostava de frisar Nóbrega, “papel em branco”, pois aprendiam sem resistência tudo que fosse “ensinado” pelos religiosos, a cultura e a fé católicas (BORTOLOTI, 2003). As missões tentavam reproduzir o regime de internato dos colégios que formavam os padres, modificando toda a organização social dos nativos, pois os índios eram segregados, as mulheres eram separadas dos homens, e submetidos a rigorosa disciplina e inspeção. Fazendo um balanço da obra dos jesuítas junto aos nativos, é possível afirmar que os efeitos de seu trabalho de catequese sobre os índios foram a deterioração de diversas etnias e a desintegração cultural. Quando os jesuítas perceberam que os indígenas brasileiros eram resistentes aos ensinamentos, mudaram a estratégia e começaram os aldeamentos de adultos e os recolhimentos de crianças. As missões previam um rígido programa de atividade que englobava o ensino do Para entender mais a respeito da atuação dos homens da Companhia de Jesus no Brasil, veja o filme Anchieta, José do Brasil (1978). Nesta produção, por meio da figura do padre José de Anchieta, é possível veri- ficar toda a mobilização dos padres e irmãos para catequizar os indígenas brasileiros e justificar a estada da ordem religiosa na colônia. Direção: Paulo Cesar Saraseni. Brasil: Sant’Anna Produtora Brasileira de Filmes Ltda.; Embrafilme, 1977. Filme 74 História da Educação português, do catecismo e da doutrina cristã, seguidas pelo aprendiza- do de ler e escrever o português e sua gramática para os candidatos à Companhia, além do ensino profissional de artesanato e agricultura para os demais. Essa programação permaneceu quase inalterada nos séculos seguintes, tanto com as crianças quanto com os adultos. Além do trabalho realizado com os indígenas, os jesuítas eram res- ponsáveis, como acontecia na Europa, pela educação dos filhos dos co- lonizadores. Segundo Paiva (1982), só é possível compreender o papel dos colégios se tivermos em mente como era a vida na colônia, ou seja, um ambiente de isolamento de perigo iminente, do desafio de conviver com mão-de-obra escrava, de guerras contra nativos/estrangeiros e de execuções sumárias. Schwartz (1988), que estudou a sociedade colonial, apontou que a educação dos filhos dos colonos mais abastados limitava-se basicamente aos rudimentos da leitura e escrita. As primeiras lições eram dadas em casa, onde o padre residente ou algum parente alfa- betizava a criança. A educação das meninas muitas vezes terminava aí, a dos meninos continuava no Colégio Jesuíta, com Teologia, Latim e as outras disciplinas do currículo previsto no Ratio Studiorum, em uma ma- tiz de estudos que depois de nove anos levaria à formação do letrado. Esses colégios, que também deveriam trabalhar para a Contrarreforma, na realidade aceitavam apenas os alunos brancos e ricos, rejeitando os mestiços, mamelucos e índios com a justificativa de que seu principal objetivo era formar os futuros padres da Ordem. A disciplina nos colégios, da mesma forma que em toda Companhia de Jesus, era severa. Para educar e aculturar os alunos, os padres e irmãos usavam de formas tradicionais de memorização, castigo físico, reclusão, repressão e exclusão. Os jesuítas eram apoiados oficialmente pela Coroa, que também os auxiliavam com doações de terras. Durante o século XVII, o ensino das crianças no Brasil não apresen- tou diferenças significativas com relação ao século anterior, mantendo uma escola conservadora, voltada à formação humanística e privile- giando muito o latim e o estudo dos clássicos e da religião – alheia à revolução intelectual que ocorria na Europa. As crianças menores con- tinuam em casa aos cuidados das amas, as quais eram escravas desti- nadas à amamentação e zelo das crianças (ALGRANTI, 1997). Renascimento e educação 75 Ao contrário do que já estava acontecendo no velho mundo, os re- ligiosos não incorporaram o ensino das ciências físicas ou naturais na colônia, bem como a formação técnica ou as artes, ou seja, a atuação da Igreja Católica permanecia muito forte e duradoura. O ensino inte- ressava apenas a poucos elementos da classe dirigente, e, além disso, mais como ornamento e erudição. Era extremamente literária, abstra- ta, afastada dos interesses materiais, utilitários e, ainda, sem acesso ao ensino superior, proibido desse lado do Atlântico. Apesar da tradicional periodização da história da educação na América portuguesagirar em torno do trabalho dos jesuítas, deve- mos ressaltar também a presença e o trabalho educacional de ou- tras ordens religiosas nesse período. Em terras coloniais atuaram franciscanos, beneditinos, carmelitas, oratorianos e outras ordens menores. Além dos religiosos, havia o governo real, corporações, confrarias e sociedades literárias. Como destaca Veiga (2007), existiram na colônia modelos educacio- nais não vinculados à Igreja e ao Estado. Professores que ensinavam nas residências dos alunos ou em suas próprias casas, em aulas que poderiam ser abertas ao público. Outra opção educacional do perío- do era a aprendizagem de ofício individualmente ou em corporações. Em pesquisas recentes, Fonseca (2006) identificou a presença de mes- tres de primeiras letras e de aritmética que recebiam pagamentos dos pais ou dos tutores de seus alunos. Mesmo com as pesquisas históricas em torno dessa modalidade de ensino na sociedade colonial ainda serem incipientes, verificamos a exis- tência dos ofícios mecânicos e artesanais em ateliês, em oficinas e nas residências não apenas dos escravos africanos. Silva (1986) indica que algumas associações se assemelharam às tradições das Corporações de Ofício de Portugal, que regulamentavam as atividades artesanais, o ensi- no de ofício e de aprendizes e a outorga dos títulos de mestre de ofício. A história da educação das mulheres no período colonial não se restringe, portanto, à noção – cada vez mais desarticula pela pesquisa histórica – de que elas viviam reclusas e se preparavam somente para exercer as funções do lar. A ociosidade e a formação religiosa hoje não devem ser tidas como traços típicos de todo o conjunto das mulheres do período. Isso pode ser considerado para as camadas abastadas, mas não se aplica às mulheres das classes trabalhadoras ou da classe média 76 História da Educação e, muito menos, às escravas (DEL PRIORE, 1993), considerando-se o nú- mero de mulheres brancas no Brasil. As meninas indígenas não recebiam dos jesuítas formação nos mes- mos moldes que os meninos, elas aprendiam algum ofício e eram prepa- radas para o “casamento legítimo” (VEIGA, 2007). As práticas educacionais que envolvem as mulheres livres abastadas são mais bem documenta- das, ainda que se relacione a conventos e recolhimentos. As brancas po- bres, pardas e mulatas tiveram opções de educação alternativas à da reclusão religiosa. Também, havia mulheres que administravam bens e negócios próprios ou de seus maridos falecidos (DEL PRIORE, 1993). Algumas meninas, porém, conseguiam escapar da situação de anal- fabetismo ao ingressarem nos conventos em Portugal ou nas ilhas atlânticas. Apesar de nos conventos a leitura se concentrar em obras de devoção, o ingresso na vida conventual significava uma alfabetização. Entretanto, com o tempo, a ida de jovens senhoritas aos conventos do reino ou para o que se organizaram na colônia foi tão intensa que, no início do século XVIII, chegou-se a temer que todas as moças do Brasil se tornassem freiras. Como no caso dos homens, a educação das mulheres variava de acordo com sua condição étnico-social que, consequentemente, condicionava a forma que eram educadas e os espaços onde essa educação ocorria. Observamos, portanto, que o alcance social do ensino foi extremamente limitado, elitista e, em grande parte, mar- ginalizava as mulheres. Essas características, infelizmente, caracteri- zaram a educação brasileira. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os teóricos do Renascimento não se limitaram a fazer renascer os tex- tos greco-romanos, eles procuraram observar e questionar a sociedade que, então, se delineava, especialmente a religião, característica da medie- validade. O inglês Thomas Morus (1478-1535), por exemplo, imaginou, em sua obra Utopia (1516), uma sociedade ideal com base na equidade e na tolerância. Erasmo de Rotterdam censurou os costumes e os abusos da Igreja, em sua obra Elogio da Loucura (1511). O italiano Nicolau Maquiavel (1463-1527), em sua obra O Príncipe (1513), estudou como se toma, se conserva e se perde o poder. François Rabelais defendeu a noção de que os homens deveriam se conduzir apenas pelas leis da natureza. Os jesuítas, ao encontrarem problemas para catequizar os nativos brasileiros, desen- volveram ações direcionadas especificamente para as crianças. Na concepção jesuítica, seria mais fácil catequizar e ensinar os pequenos enquanto a tradição indígena ainda não estava impregnada em sua mente. Assim, a educação das crianças foi uma das primeiras e princi- pais preocupações dos padres da Companhia de Jesus: ensinar a ler, a ter bons costumes e a orar. Diante do exposto, discorra sobre a atuação dos padres e irmãos jesuítas no Brasil. Atividade 3 Renascimento e educação 77 Seguindo esse movimento, a educação foi compreendida como instru- mento de transformação da sociedade, por meio da formação de um novo homem, o qual ansiava pela mudança com a ruptura das contra- dições do passado religioso, vontade que, também, pode ser observada na educação. A educação estruturou-se com o antropocentrismo, deixan- do de lado as bases religiosas para tornar-se instrumento adequado à transmissão de novas concepções e dos valores burgueses. A educação não religiosa dirigiria o aluno na busca de sua verdade por meio do uso da razão. A formação intelectual começou a ser valorizada e a burguesia, jovem camada social, estabeleceu a conexão entre a educação e as novas práticas cotidianas. O teocentrismo medieval perdeu parte de sua força e foi superado pelo racionalismo. REFERÊNCIAS ALGRANTI, L. M. Famílias e vida doméstica. In: MELLO E SOUZA, L. 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Com base em uma visão antropocêntrica, Comenius defendia uma educação universal e, para isso, elaborou uma metodologia que, segun- do suas proposições, poderia ensinar tudo a todos por meio de um sistema educacio- nal que oferecesse um suporte sólido de conhecimentos, sem entediar os estudantes. Comenius é tido como o “pai da Pedagogia”, pois foi o primeiro a propor um método para ensinar de maneira mais correta e mais segura, mediante cuidadosa organização das tarefas que deveriam ser aplicadas aos alunos. O filósofo combateu o sistema medieval, defendeu o ensino de “tudo para todos” e foi o primeiro teórico a respeitar a inteligência e os sentimentos da criança. 3. A Companhia de Jesus no Brasil deve ser lembrada não apenas por aderir ao ideal missionário da catequese dos gentios, mas pela organização dos primórdios do siste- ma educacional brasileiro. Porém, diante da diversidade encontrada na colônia por- tuguesa, os padres e irmãos da Companhia não conseguiram seguir todas as orien- tações do Ratio Studiorum e tiveram que organizar as estruturas do ensino atentos às peculiaridades aqui encontradas. Iluminismo e educação 79 5 Iluminismo e educação O século XVIII ficou conhecido como o século das luzes, pois, coroando movimentos iniciados nos séculos anteriores, foi um momento de intensa agitação intelectual em todas as áreas e de abalos políticos ocasionados pela burguesia. Os séculos an- teriores tinham assistido a eventos como a Revolução Inglesa a Revolução Francesa. Os pensadores iluministas procuraram por meio da razão eli- minar a repressão dos monarcas absolutistas e o despotismo do clero. O movimento pela liberdade individual iniciado anteriormen- te buscou abrigo no ideal de vida do bom selvagem, livre de todas as sujeições sociais. Evidentemente, essa liberdade só podia ser praticada por uma minoria. No campo da educação, o século XVIII foi o momento de forta- lecimento da tendência liberal e laica, que vislumbrava novos cami- nhos para o ensino colocando o aluno no centro do processo. Os iluministas valorizaram a educação e o conhecimento como instru- mentos de liberdade e progresso, que conduziriam os indivíduos à autonomia e a sociedade à democracia. Portugal, não acompanhando as transformações políticas eu- ropeias, tentava superar o atraso com o fortalecimento do Estado, expresso no despotismo esclarecido do Rei José I (1714-1777). Os ventos da mudança também sopraram no Brasil do século XVIII, que vivenciava a expansão territorial com a produção aurífera nas Minas Gerais. O governo do Marquês de Pombal (1699-1782) com- bateu os desmandos da Companhia de Jesus e impactou a educa- ção, mas nem de longe favoreceu a chegada do que se pensava e se praticava na Europa. 80 História da Educação 5.1 Iluminismo e reflexão pedagógica Vídeo Antes de abordarmos especificamente a relação entre iluminismo e educação, é relevante compreendermos o contexto que favoreceu a elaboração e a disseminação deste ideário. A estruturação dos Estados absolutistas na Europa pode ser obser- vada desde o fim da Idade Média, no momento de transição para a Idade Moderna, quando se definiram os limites e as fronteiras destes Estados. Assim, acentuou-se com o fortalecimento da burguesia e do mercantilismo. No momento de centralização política, as relações so- ciais foram caracterizadas por elementos feudais e por atributos em- brionários das relações burguesas. Ao contrário do que possa parecer, o fim ou o declínio da servidão não significou a completa abolição das relações feudais no campo, principalmente por se tratar de um período de transição. O Estado cen- tralizado surgiu, desse modo, ligado às agitações políticas da nobreza e da burguesia, além das disputas políticas entre príncipes e Igreja Cató- lica, visto que durante o período medieval o papado teve grande força internacional. Perry Anderson (1995), um dos principais historiadores do abso- lutismo, destaca que nos primeiros momentos do Estado absoluto – quando a época moderna ainda se delineava –, a classe dominante, econômica e politicamente, era a mesma da Idade Média: a aristocracia feudal. Inicialmente, o absolutismo era um mecanismo de dominação feudal, utilizado para fixar as massas camponesas na sua posição social tradicional. Esse modelo de monarquia, podemos afirmar, lançou mão de instrumentos modernizadores para a conservação da autoridade da nobreza sobre a massa camponesa. Apesar de algumas características comuns como a concentração de poder na figura do rei, a burocracia, o exército e a mercantilização da economia, o absolutismo apresentou variações regionais, cada uma delas com suas particularidades, como Espanha, Portugal e Rússia. O declínio do Estado absolutista ocorreu com a ascensão políti- ca das burguesias nos Estados europeus modernos no século XVIII, o que favoreceu o aparecimento de teorias que, opostas ao absolu- tismo, defendiam um governo constitucional, representativo e uma economia sem a interferência do Estado. A burguesia se infiltrou gra- O termo absolutismo foi utiliza- do pela primeira vez no século XVIII para indicar toda a doutrina que defendia o poder absoluto do Estado. Neste sistema de governo, o poder monárquico é exercido sem restrições ou limites por seu detentor – o rei (ABBAGNANO, 2000). Saiba mais O filme Elizabeth (1998) retrata a Inglaterra do sé- culo XVI quando Elizabeth I é coroada rainha e luta pelo poder de seu país na Europa. O filme permite compreendermos o pro- cesso de consolidação do absolutismo. Direção: Shekhar Kapur. Inglaterra; Estados Unidos: 20th Century Fox, 1998. Filme Iluminismo e educação 81 dualmente no Estado por meio do financiamento estatal ou com a compra de cargos e títulos nobiliários, por exemplo, e exigiu parti- cipar do poder. Nesse contexto, como mencionamos, a filosofia iluminista foi um dos traços do século XVIII; o iluminismo também conhecido como sécu- lo das luzes em virtude do poder da razão de interpretar o mundo por meio do próprio indivíduo. Na economia, o liberalismo representava os anseios da burguesia, que, vale ressaltar, desejava afastar o Estado de suas transações. Na política, as ideias liberais opunham-se ao ab- solutismo real. Na moral, também se procuravam formas laicas para a naturalização do comportamento humano. Já na religião, é possível verificar o afastamento dos dogmas e fanatismos, bem como a busca de uma religião natural. O pensamento iluminista esteve presente, inclusive, em territórios como Prússia, Áustria, Rússia e Península Ibérica, nos quais persistia o absolutismo, então chamado de despotismo esclarecido. Os monarcas se cercavam de pensadores e adotavam o discurso dos filósofos ilumi- nistas, criando a imagem de racionalidade e tolerância, o que dissimu- lava o caráter absoluto do poder que exerciam. Os reis esclarecidos mantiveram o absolutismo, porém, com pitadas de modernização e anticlericalismo. Os pensadores conseguiram espaço tanto dentre a nobreza e a burguesia quanto entre a população comum, influenciado a socie- dade como um todo. Filósofos e educadores ocuparam o centro das discussões, e a educação, especialmente aquela relacionada à necessi- dade formal de instrução, converteu-se em assunto de amplo debate (FALCON, 1993). Esses pensadores passaram a dialogar com as autoridades, primei- ro como críticos do status quo, depois comoconselheiros em busca da concretização de reformas e efetivação de mudanças. Essas reformas representavam uma grande transição, na medida em que propunham a liberdade de imprensa, a liberdade não religiosa e novas formas de pensar o direito e a educação. Gottfried Wilhelm Leibniz (1646- 1716), Voltaire (1694-1778), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Denis Diderot (1713-1784) e Immanuel Kant (1724-1804) foram os principais responsáveis pela expansão dos ideais iluministas e por operarem esse diálogo. títulos nobiliários: títulos de nobreza. despotismo esclarecido: união do absolutismo com a filosofia iluminista. Glossário 82 História da Educação Figura 1 Leibniz, Voltaire, Diderot e Kant He rz og A nt on U lri ch -M us eu m B ra un sc hw ei g/ DI RE KT OR / Th eL ar ch /U pd at eN er d/ W ik im ed ia C om m on s Leibniz, Voltaire, Diderot e Kant: cada um desenvolveu importantes reflexões sobre a sociedade em que viveram. Para esses pensadores, a educação era crucial para a difusão de ideias e para o desenvolvimento de um novo pensamento social, que valorizasse a razão, a ciência e a busca individual pelo entendimen- to. Eliminar o obscurantismo religioso era o maior empecilho que se apresentava para a concretização dessas propostas; para isso, era fun- damental que a educação deixasse de ser monopólio da Igreja, tornan- do-se leiga e estatal. Contudo, não existia consenso entre os iluministas quanto à uni- versalização da escola. Voltaire, por exemplo, tinha medo de que a expansão da instrução desorganizasse os afazeres e os ofícios manuais prejudicassem a economia. Não havia, nesse sentido, a expectativa de uma escola única; esse ideário foi elaborado ao longo da Revolução Francesa quando o Marquês de Condorcet (1743-1794) foi encami- nhado ao posto de presidente do Comitê de Instrução Pública da As- sembleia Legislativa Francesa. Condorcet percebeu a oportunidade de traçar uma escolarização para as camadas menos privilegiadas o que, para ele, conduziria progressivamente à equalização das oportunida- des de acesso à escola (BOTO, 2009). No século XVIII, especialmente na França, vislumbrou-se o apareci- mento de um espírito público no qual a pedagogia tornou-se o princi- Iluminismo e educação 83 pal ponto de debate, pois existia, sem dúvida, um Estado-Nação a ser moldado e, consequentemente, tanto o sentimento de pátria quanto a unificação linguística eram dispositivos imprescindíveis para esse em- preendimento. A emancipação pelas luzes da razão, processo no qual estava subentendido o avanço, o progresso e a civilização, exigia a de- sarraigamento das trevas impostas pela ignorância e, desse modo, a reivindicação de uma escola única, laica, gratuita e universalizada para todas as crianças de ambos os sexos (BOTO, 2006). Para o século do iluminismo, levar o indivíduo à maioridade inte- lectual era tarefa relevante e urgente. Para Kant, esclarecer um povo era educá-lo, assim, educá-lo era nada mais do que providenciar ins- trumentos para a saída da menoridade à maioridade autônoma. Nesse período, o desenvolvimento da cultura da civilidade, com base ainda na referência da sociedade de corte, constituirá a acepção do que os pensadores chamariam de civilização; essa concepção alude também juízo valorativo, agora mais desenvolvido. O conceito de civilização traz implícita a suposição de superioridade dessa cultura, que se qualifica por civilizada perante as demais, que eram compreendidas e situadas em patamar socialmente inferior (BOTO, 2006). Assim como Kant, John Locke (1632-1704) também apontou a educação como um elemento imprescin- dível para a formação burguesa, necessária ao mo- mento. A educação teria a finalidade de exercitar e desenvolver as capacidades naturais do ser humano, ser posta a serviço do prazer duradouro e da felicida- de. Para atingir esse objetivo, ele elaborou um méto- do fundamentado em rígida disciplina cujo resultado seria formação de hábitos e de boas maneiras. Rousseau, como vamos ver na seção a seguir, se opunha à educação racionalizada praticada nos colégios e às regras de etiqueta social, con- sideradas por ele máscaras de uma civilização na qual saberes e atitudes criavam indivíduos fúteis, artificiais e tirânicos. O filósofo almejava o ama- durecimento do indivíduo até o ponto em que pu- desse governar a si mesmo e permitir a realização de um contrato social. Figura 2 Retrato de John Locke, de Godfrey Kneller (século XVIII) M us eu H er m ita ge /W ik im ed ia C om m on s John Locke também considerava a educação como um elemento imprescindível para a formação do homem burguês. 84 História da Educação É importante ressaltar que essa ideia não era totalmente uma novidade, pois a instituição escolar emergiu na Europa Ocidental ao mesmo tempo que o Estado moderno. Isso tornou a escola sujeita aos interesses do Estado, trabalhando para implantar a disciplina individual e social, criando, desse modo, condições para que o Esta- do se tornasse uma estrutura dominante na sociedade. Com isso, se forjaram as funções integrativa e coercitiva da escola moderna para adequar o indivíduo ao meio. Como aponta a professora Carlota Boto (2009), o processo de escolarização assumiu um aspecto civilizador no sentido de tentar imprimir nas crianças e jovens um dado modelo cultural. A escola moderna iluminista se edificou como a portadora dos códigos de civilização. A Assembleia Legislativa francesa apresentou um plano educacional expondo níveis e métodos de ensino, a organização do ensino, os proce- dimentos de políticas públicas e de avaliação da rede escolar. Tratou-se de um prospecto de modelo para a composição de uma escola nacional, tal como esta se organizaria a partir do século XIX (BOTO, 2003). A Revolução Francesa – com seus ideais de igualdade, liberdade e fraternidade – contribuiu fortemente para que a educação passasse a ser um dos direitos do homem e do cidadão. Segundo Cotrim e Pa- risi (1984, p. 222), a educação, nos fins do século XVIII, passou a ter objetivos nacionalistas e “visaria, predominantemente, os princípios democráticos de liberdade. Era a educação como preparação para o exercício da cidadania”. Foi este contexto de transição que, como defendem Hamilton (2001) e Narodowski (2001), originou o que podemos denominar de processo de desenho dos padrões pedagógicos modernos. A tendência era a constituição de outra abordagem da educação, a qual indica- va uma ruptura em relação ao modelo anterior (medieval) e propu- nha novos dispositivos educacionais que conferiram a identidade de uma escolarização moderna. Em síntese, o século XVIII representou o ápice de um longo pro- cesso de expansão de horizontes para o pensamento europeu. A estabilização dos estados nacionais, que teve início na Idade Moder- na, promoveu a ascensão de monarquias absolutistas. Simultanea- mente, existia a circulação de pessoas e mercadorias do capitalismo emergente, assim como de ideias, promovendo uma reconfiguração do pensamento e da moral. Iluminismo e educação 85 Uma burguesia enriquecida em busca incessante de seu lugar em um cenário ainda liderado por uma aristocracia eclesiástica e palacia- na se delineavam claramente como estamentos opressores. A virada significativa para a laicidade, para o liberalismo e para o individualis- mo tornou evidente o caráter desse século como um período limítrofe entre a Idade Moderna e a Contemporânea, e muitos conflitos foram provenientes desse cenário. Reflita sobre o impacto dos princípios iluministas no cenário educacional europeu do século XVIII. Atividade 1 5.2 Jean-Jacques Rousseau Vídeo Dentre os pensadores iluministas, o que mais tem relevância para a história da educação é o franco-suíço Jean-Jacques Rousseau, pois o pensador foi precursor de uma série de reflexões que contribuíram para importantes mudanças no campo da educação. Para alguns estudiosos, a obra de Rousseau estabeleceu um verda-deiro marco que separa a velha da nova escola. Como destaca Gadotti (2000), a educação nova, que nasce com a obra de Rousseau, desenvol- ve-se trazendo diversas conquistas, especialmente no campo das ciên- cias da educação e das metodologias de ensino. Figura 3 Retrato de Jean-Jacques Rousseau, de Maurice Quentin de La Tour (século XVIII) Rousseau viveu o ápice do iluminismo, contudo, realizou severas críticas ao modelo filosófico. M us eé A nt on ie -L éc uy er /W ik im ed ia C om m on s Rousseau deixou sua terra natal para viver em Paris, cidade considerada “em ebulição”, fato que favoreceu o convívio direto com as movimentações políticas, culturais e sociais de seu tempo. O traço mais marcante de sua vida e, consequentemente, de sua obra foi a contradição: o filósofo não conseguiu se libertar da rebeldia. Apesar de vivenciar o iluminismo e conviver com seus pensadores, Rousseau foi um crítico severo do racionalismo iluminado como principal ponto de evo- lução da humanidade. Segundo ele, ao nascer, os ho- mens seriam bons, mas eram corrompidos ao longo da vida em sociedade, pois a origem do mal e das de- sigualdades estaria na moral e na política, sendo este um dos principais fundamentos de seu pensamento político-pedagógico. Dentre as suas obras, duas me- recem destaque: O contrato social e Emílio, ou Da Edu- cação, ambas publicadas em 1762. Estas obras foram 86 História da Educação tão impactantes que acarretaram a condenação de Rousseau em Paris e a queima de seus livros em Genebra, fazendo com que o escritor se refugiasse na Prússia (VEIGA, 2007). O conceito de Rousseau de firmar um contrato social para o apare- lhamento da sociedade era uma grande inovação diante das propostas de reforma política do momento. Para o filósofo, não era necessário apenas submeter as vontades individuais a uma lei geral que repre- sentasse a vontade de todos, era preciso uma educação ética que for- masse os indivíduos e os preparasse para renunciar suas vontades e particularidades em prol do bem comum e dos interesses coletivos. Desse modo, Rousseau indicou o isolamento do indivíduo da so- ciedade – que era corrupta – e o retorno a um modo de vida natural, ligado à natureza e com uma educação essencialmente natural. Ele en- fatizou, nessa perspectiva, a importância da infância e da juventude, com incentivo à criatividade, à espontaneidade e ao trabalho manual, contribuindo para as reflexões que posteriormente culminariam na elaboração da psicologia do desenvolvimento. Na obra Emílio ou Da Educação, Rousseau nega a validade da educação que até então era praticada, criticando sua artificialidade, seu autoritarismo e o excesso de intelectualidade – características da edu- cação jesuíta –, bem como o desrespeito pela infân- cia, que fazia da criança um adulto em miniatura. A reflexão pedagógica de Rousseau e a sua proposta educacional está presente na obra Emí- lio, na qual aponta os limites do liberalismo e examina o papel dos colégios religiosos e o uso exagerado da razão na educação dos mais jovens. Emílio, personagem e aluno imaginário, órfão de origem nobre, contribui para a elaboração da me- táfora crítica, recomendada para mães e educado- res (preceptores). Fi ve di t/ W ik im ed ia C om m on s Primeira edição de Emílio, ou da Educação, obra de Rousseau publicada no ano de 1762. Iluminismo e educação 87 Na obra, a infância é apresentada como um longo processo, em que a criança é educada na natureza, sem lições verbais, sem horários fixos e principalmente, sem castigo físico; Emílio aprende por meio de seus interesses e curiosidades, sob o cuidado do preceptor. Essa postura, segundo o filósofo, indicava que a criança deveria aprender a lidar com seus próprios desejos e conhecer os limites para se tornar um adulto autônomo. Da mesma forma, deveria ocorrer o processo de construção da cidadania, em que o cidadão se submete à vontade geral: a criança descobrirá por si própria as leis das coisas e das relações interpessoais. Cabe ressaltar que a concepção de infância apresentada por Rousseau – a qual considera que esse momento do desenvolvimen- to se distingue da vida adulta – é uma inovação na medida em que o autor compreende a criança como detentora da bondade natural e dimensiona cada etapa da vida de acordo com suas especificidades, o que demanda ações educativas diferentes. Para ele, a criança deve ser respeitada como tal, e não como um futuro adulto. O preceptor, como preferia Rousseau, passa a ocupar um segundo plano no processo de ensino e aprendizagem, uma vez que o interesse pedagógico deveria estar voltado totalmente para o aluno, que deveria ser compreendido em sua especificidade e não mais, como já destaca- mos, como um “adulto em miniatura” (ARANHA, 2006). Censurando a socialização dos costumes urbanos, o menino Emílio, como mencionamos, é educado no campo em meio à natureza e de acordo com sua curiosidade e espontaneidade. Assim, expressa clara- mente sua oposição à educação racionalizada, que era praticada nos colégios, e às regras de etiqueta social, consideradas por Rousseau máscaras de uma sociedade na qual saberes e atitudes formavam in- divíduos fúteis, artificiais e tirânicos. Rousseau aspirava ao amadureci- mento até o ponto em que o homem pudesse governar a si mesmo e admitir a concretização do contrato social (CAMBI, 1999). A educação idealizada por Rousseau é denominada naturalista, mas também podemos chamá-la de negativa, em razão de desconfiar da so- ciedade constituída e negar seus preceitos. O filósofo temia a educação que colocava as crianças em contato com vícios e com a hipocrisia, por isso defendia que elas deveriam ser ensinadas por preceptores longe dos colégios, locais que não ensinavam a virtude e a verdade. 88 História da Educação Emílio, ou Da Educação, elucida o ideal de formação do indivíduo em diferentes etapas da vida: infância, puerícia, puberdade, adolescência e jovem adulto. Na primeira fase, que ocorre durante a infância e puerí- cia, a educação deveria orientar o autoconhecimento, a descoberta do próprio corpo, dos objetos e da natureza. A prioridade neste momento seria a educação dos sentidos, pois apenas desse modo seria possível amadurecer a razão. Predominariam nessa fase a exploração, a expe- riência e a descoberta. A segunda fase, a puberdade, ou o que hoje chamaríamos de ado- lescência, seria o momento de reconhecimento do outro e de formação da razão por meio do estudo da história clássica e biografias, da moral (por meio de fábulas) e da religião. É neste momento, inclusive, que o jovem Emílio conhece a agricultura e os trabalhos manuais. Seria o momento em que o indivíduo teria condições de se tornar um cidadão e também estaria pronto para o matrimônio. Na obra, Rousseau fala sobre a mulher ideal, a qual ele chama de Sofia, que seria uma boa es- posa, boa mãe e dona de casa exemplar, não fugindo muito do ponto de vista predominante em seu tempo (CAMBI, 1999). Nas palavras do próprio filósofo: A primeira educação deve ser puramente negativa, ela consiste não em ensinar a virtude e a verdade, mas em proteger o cora- ção do vício e a mente do erro. Se puderdes não fazer nada e não deixar fazer nada; se puderdes levar vosso aluno sadio e robusto até a idade de doze anos [...] sem preconceitos, sem hábitos [...] muito logo terei entre as mãos o mais sensato dos homens; e, começando com não fazer nada, tereis feito um prodígio de edu- cação. (ROUSSEAU, 1968, p. 178) Em síntese, Rousseau propunha que a educação ideal deveria ser estruturada do seguinte modo (ARANHA, 2006): • Até os 5 anos de idade: a educação deve ser direcionada para, com base na liberdade, preparar crianças fortes. • Entre 5 e 12 anos de idade: a educação deve ser negativa, isto é, negar imposições sociais e valorizar a forma- ção moral com base no desenvolvimento natural da criança. • Entre 12 e 15 anos de idade: momento ideal para a aquisição de conhecimentos pormeio dos interesses e curiosidades naturais. A prova da aprendizagem seria o emprego prático; aprender um ofício traz vantagens sociais e contribui para o processo educacional. • Dos 15 aos 20 anos: período de “educação do coração”, da vida em comum e das relações sociais. Momento em que se desen- volvem as noções de bem e de mal. radoma/Shutterstock Iluminismo e educação 89 Os estudos atuais a respeito das propostas pedagógicas de Rousseau destacaram, na realidade, a existência de dois modelos edu- cativos bem distintos entre si e, em alguns aspectos, até mesmo opos- tos. De um lado estaria a educação natural e libertária, que privilegia a formação do indivíduo, como aparece na obra Emílio. Do outro lado estaria a educação social e política, desenvolvida pelo Estado e mais ligada ao princípio da “conformação social” do que ao de liberdade, e que encontramos desenvolvida, em particular, na obra Considerações sobre o governo da Polônia, obra póstuma de 1782. Nesse sentido, a educação do ser humano e a educação do cida- dão são contrapostas por Rousseau já no início de Emílio, em que a se- gunda aparece desvalorizada (CAMBI, 1999). Contudo, foi o Rousseau de Emílio que influenciou profundamente o pensamento educacio- nal moderno, oferecendo à tradição pedagógica alguns novos mi- tos, como o da bondade da infância e a não intervenção educativa. Rousseau pode ser visto quase como o “pai” da pedagogia moderna, seja por propor uma nova concepção de infância e uma nova atitude pedagógica, seja pelos temas profundamente inovadores que trouxe para o debate educacional (CAMBI, 1999). Após as reflexões apresentadas pelo filósofo, a pedagogia tomou decididamente outro caminho, tornou-se atenta e sensível a uma sé- rie de problemas antes considerados irrelevantes e substancialmente ignorados. Além disso, ligar-se a Rousseau era uma referência obri- gatória de todo pedagogo posterior, seja para se associar às teses do filósofo, ou seja para se opor ao seu libertarismo e sua rejeição da au- toridade estatal (CAMBI, 1999). A concepção de infância, o papel do educador, a própria consciên- cia, por parte do pedagogo, das estruturas e da função (até social e política) do próprio discurso mudaram profundamente. Com as lições de Rousseau, a pedagogia adquiriu uma dimensão mais abertamente antropológica e filosófica, distanciando-se de um tradicional vínculo em relação às instituições pedagógicas e às práticas didáticas. Jun- tamente com Comenius, mas com disposições claramente díspares, Rousseau é uma chave mestra do pensamento pedagógico e, além disso, é o primeiro autor do seu mais inquieto e contraditório percur- so contemporâneo (CAMBI, 1999). Para além das críticas, pertinentes em alguns aspectos, o que de- vemos destacar sobre a Rousseau é sua ênfase no valor da infância e Comente as principais contribuições de Rousseau para a educação. Atividade 2 Para conhecer mais a respeito da trajetória e entender as contribuições de Rousseau para a educação sugerimos a leitura da obra Jean-Jacques Rousseau, da autoria de Michel Soëtard. O livro compõe a Coleção Educadora, disponibilizada pelo Ministério da Educação (MEC). Disponível em: http://www. dominiopublico.gov.br/download/ texto/me4675.pdf. Acesso em: 5 set. 2020. Leitura 90 História da Educação da juventude, sua significativa contribuição para a elaboração da psi- cologia do desenvolvimento, seus princípios de contato com a vida, a referência ao presente e a importância dada à criatividade, à esponta- neidade e ao trabalho manual. 5.3 Brasil: as reformas pombalinas e a educação Vídeo No século XVIII, o Brasil assistia à expansão territorial favorecida pela exploração aurífera em Minas Gerais. A metrópole (Portugal), por sua vez, apesar da riqueza produzida por sua principal colônia, não seguia as transformações políticas europeias e tentava superar o atraso com o fortalecimento do Estado, expresso no despotismo esclarecido do Rei D. José I. O estrategista dessas transformações ad- ministrativas, políticas e econômicas, cujo principal objetivo era con- ter as expressões da burguesia, foi o primeiro-ministro Marquês de Pombal, que procurou modernizar o reino a fim de manter o poder real tanto na metrópole quanto na colônia. Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, realizou diversas reformas políticas, econômicas e sociais tanto em Portugal quanto no Brasil. M us eu N ac io na l S oa re s do s Re is /W ik im ed ia C om m on s Uma das principais preocupações do primeiro-mi- nistro era diminuir o domínio da Inglaterra sobre a economia, por isso apoiou as manufaturas portugue- sas com atitudes como a ampliação das taxas alfande- gárias. Marquês de Pombal promoveu a reorganização do Estado e, com isso, diminuiu o poder da nobreza e do clero, transferindo-o para as suas mãos. Em relação à colônia, também lançou mão do pensamento mer- cantilista para garantir o monopólio comercial e acabar com o contrabando. Para tanto, criou as Companhias de Comércio para o Grão-Pará e Maranhão (1755) e para Pernambuco e Paraíba (1759). Seguindo a prioridade de constituir um Esta- do cuja força estivesse com uma elite financeira e liberal, ao invés de aristocrática ou sacerdotal, a capital da colônia foi transferida para o Rio de Ja- neiro, local mais adequado para receber e escoar o ouro que vinha das Minas Gerais. Para povoar a nova capital e agradar a elite, distribuiu-se impor- Figura 4 Retrato de Marquês de Pombal, artista desco- nhecido (século XVIII) Iluminismo e educação 91 tantes postos da administração colonial a pessoas das famílias de grandes proprietários. Uma das medidas da reforma pombalina que mais gerou debates e afetou diretamente a educação foi a expulsão dos jesuítas de todo o Império português. Os homens da Companha de Jesus eram acusa- dos de montarem um reino próprio, desobedecendo o monarca. Os jesuítas possuíam terras, plantações, gados e até mesmo escravos, ou seja, acumulavam muito poder e, teoricamente, representavam o atra- so que era repudiado pela filosofia iluminista. Bi bl io te ca N ac io na l D ig ita l d o Br as il/ W ik im ed ia C om m on s A expulsão dos jesuítas, arte do século XIX. No século XVIII, é importante destacarmos, argumentava-se que era imprescindível retirar a educação do seio da Igreja Católica e situá-la sob a tutela do Estado, para formar cidadãos mais aptos a compor um Estado forte, unificado e voltado para o fortalecimento das fronteiras e dos valores nacionais; Portugal deu um significativo primeiro passo nesse campo. Nesse contexto, e de acordo com sua estratégia de mo- dernização do reino (apoiada nas ideias do despotismo esclarecido), Marquês de Pombal impôs medidas para afastar os homens da Com- 92 História da Educação panhia de Jesus de seus cargos educacionais, administrativos e ecle- siásticos. Com o objetivo de estabelecer novas práticas pedagógicas e culturais, fechou em 28 de junho de 1759 todas as casas, missões e colégios jesuítas nos territórios portugueses (FALCON, 1993). Em substituição a todo o sistema educacional organizado pelos jesuítas em dois séculos no Brasil, Pombal instituiu as aulas régias, nome que indicava o vínculo com o rei, ou seja, o Estado, e não mais com a Igreja. As aulas régias funcionavam como uma espécie de unida- de de ensino, sob a responsabilidade de um único professor de cada disciplina. Esses professores eram selecionados em concurso público, portanto, eram funcionários do Estado. O projeto pombalino para a educação estatal consistia em duas eta- pas: estudos menores e estudos maiores. A primeira fase, de estudos menores, tratava das escolas de primeiras letras, nas quais noções gerais de leitura e escrita eram transmitidas, e das escolas secundá- rias, dedicadas principalmente ao estudo das humanidades. A segunda fase, a dos estudos maiores, compreendia a educação universitária ministrada apenas na metrópole, ainda mais voltadapara uma forma- ção erudita do que para estudos científicos do modo, como é esperado das universidades pelos iluministas. As reformas procuravam desarticular o ensino ministrado até en- tão, pois este era compreendido como pouco experimental aplicável ou científico. De maneira geral, o problema verificado em todas as insti- tuições de ensino – das primeiras letras ao ensino superior – era o pre- domínio da religião. A educação era pautada apenas em catecismos, dava-se prioridade ao Latim em detrimento da Língua Portuguesa e o ensino de Filosofia, não autônomo, descrevia-se na prática como um desdobramento dos cursos de Teologia. O método proposto para essa nova fase da educação brasileira pode ser designado neoclássico, pois expunha uma nova forma de aprender Latim, evidenciava o estudo da gramática da língua portu- guesa, proibindo-se o uso da chamada língua geral: o Tupi. Os livros até então utilizados pelos jesuítas foram descartados e trocados pelas cartilhas e gramáticas de língua portuguesa e de latim, compostas e impressas segundo o método simplificado. O governo lusitano adotou planos de estudos e alterou o curso de humanidades, típico do ensino jesuítico, para o sistema de aulas régias, Iluminismo e educação 93 como acontecia na metrópole. A educação objetivava oferecer, ainda, aulas de línguas modernas como o Francês e o Inglês, além de Dese- nho, Aritmética, Geometria, Ciências Naturais, no espírito dos novos tempos e contra o dogmatismo católico (VEIGA, 2007). No caso da colônia, isto é, o Brasil, após o desmantelamento da Companhia de Jesus e o confisco de seus bens, não houve medida ime- diata para a substituição dos serviços. Em 1772, as reformas se con- cretizaram de fato, com a introdução do subsídio literário, um imposto que deveria prover recursos para remunerar os professores e manter as aulas régias. Foram instituídas as aulas de Primeiras Letras e de al- fabetização; além da Ortografia e da Gramática, ensinavam história de Portugal, Aritmética e Normas de Etiqueta (ARANHA, 2006). É importante observar que, mesmo depois de implementadas as mudanças arquitetadas pelo primeiro-ministro, não surgiu de ime- diato uma estrutura tão organizada e bem equipada de ensino quan- to à oferecida pelos colégios jesuíticos. Muitas vezes, os ambientes de ensino eram improvisados em residências, edifícios públicos e lojas maçônicas, uma vez que os prédios dos jesuítas não foram destinados para a educação. A educação doméstica, em que os mais abastados pagavam preceptores para seus filhos, continuou comum ao lado do trabalho de outras ordens religiosas, como carmelitas e franciscanos, que continuaram a oferecer serviços educacionais a particulares, embora não na mesma escala que os jesuítas haviam feito previamente (ARANHA, 2006). É inegável que as reformas pombalinas trouxeram avanços, como o ensino de português em substituição ao latim. A difusão dos princípios liberais e iluministas pelas lojas maçônicas e alguns centros religiosos intelectuais remanescentes, como o Seminário de Olinda, também de- sencadeariam transformações na vida política da colônia, especialmen- te as inquietações que se materializaram nas revoltas separatistas nos fins do século XVIII. Porém, de modo geral, os efeitos das aulas régias não foram sen- tidos pela maioria da população em razão de seus recursos limitados, persistindo um quadro de analfabetismo e do ensino precário e res- trito, o que favoreceu a formação de uma elite intelectual cujo saber voltava-se mais para o bacharelismo, a burocracia e as profissões libe- rais do que para a ciência. loja maçônica: espaço onde os maçons se reúnem periodicamente. Glossário 94 História da Educação No tocante ao ensino infantil, para as camadas menos favoreci- das que não contavam com amas, preceptores e com o ensino profis- sionalizante, no decorrer do século XVIII, várias lojas de ofícios foram fundadas. Esses espaços funcionavam com mestres, artesãos e seus aprendizes que, após alguns anos, recebiam o certificado de oficiais e de artesãos. Contudo, não podemos esquecer que existia o domínio de um pensamento escravocrata que desvalorizava todas as atividades manuais. Desse modo, a formação dos artesãos era mais informal, ou seja, não havia propriamente uma escola que fosse denominada profis- sionalizante (PILETTI; PILETTI, 2004). Com todo esse contexto de mudança, é preciso notar que, se por um lado a visão pessimista aponta para um desmonte das instituições religiosas bem organizadas dos dois séculos precedentes (seguido de uma substituição insuficiente), os parâmetros educacionais jesuíticos estavam, em muitos sentidos, em descompasso com o pensamento dominante e com as ambições nacionalistas e econômicas da época. Seriam necessários muitos anos para que planos mais amplos e com- preensivos de educação pública fossem estabelecidos no território brasileiro, o que apenas ocorreria de maneira mais clara após a eman- cipação política em 1822. Para entender as propostas da reforma educacional realizada pelo Marquês de Pombal, bem como as suas consequências, leia o artigo A educação brasileira no período pombalino: uma análise histórica das reformas pombalinas do ensino, de Lizete Shizue Bomura Maciel e Alexandre Shigunov Neto, e publicado no periódico Educação e pesquisa (2006). Acesso em: 10 set. 2020. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022006000300003&lng=en&nrm=iso Artigo CONSIDERAÇÕES FINAIS O século XVIII foi cenário para o desenvolvimento do capitalismo e a consolidação da burguesia como classe social dominante. O pensamento burguês se colocou como pensamento dominante, pautado na atividade comercial, na igualdade jurídica, na liberdade pessoal e social e na pro- priedade privada. O século XVIII representou a desestruturação categórica do que ainda restava do pensamento e do mundo feudal, aristocrático e religioso. O Qual foi o impacto da expulsão dos jesuítas na educação brasi- leira? Justifique sua resposta. Atividade 3 https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022006000300003&lng=en&nrm=iso Iluminismo e educação 95 século das luzes abriu as portas para as reflexões pedagógicas do período subsequente. Jean-Jacques Rousseau propôs o desenvolvimento natural e espontâneo. Respeitando o desenvolvimento individual, o filósofo abor- dou questões que não eram consideradas fundamentais nas reflexões pedagógicas até então elaboradas. No Brasil do século XVIII, contrariando o que acontecia simultanea- mente na Europa, persistia uma aristocracia agrária e escravista, cercea- da por uma economia agroexportadora e submetida à política colonial. Na educação continuavam os elevadíssimos índices de analfabetismo, consequência direta de um ensino precário e excludente, pois a atuação mais eficaz dos jesuítas serviu para a burguesia e na formação das cama- das dirigentes, além da tarefa dos missionários entre os nativos. Com as propostas do Marquês de Pombal houve a ampliação do abismo entre os letrados e a maioria da população analfabeta. O objetivo do ensino continuava sendo a formação religiosa-humanista, seguindo muitos dos métodos utilizados pela Companhia de Jesus. As reformas pombalinas, embora não tivessem eliminado a educação religiosa, favoreceram o desenvolvimento de um ensino laico e público, desvinculado da influência obscurantista da Companhia de Jesus. O pen- samento liberal conseguiu muitos adeptos, coincidindo com os interesses da burguesia em ascensão na Europa, os quais, em muitos aspetos, coli- diam com os tradicionais valores aristocráticos e eclesiásticos que cons- tituíam a base tanto do absolutismo quanto do despotismo esclarecido. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ANDERSON, P. Linhagens do Estado absolutista. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. ARANHA, M. L. A. História da educação e da pedagogia. Geral e do Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna,2006. BOTO, C. Civilizar a infância na Renascença: estratégia de distinção de classe. Revista Tempos e Espaços em Educação, v. 2, p. 119-140, jan./jun. 2009. BOTO, C. Na Revolução Francesa, os princípios democráticos da escola pública, laica e gratuita: o relatório de Condorcet. Educação e sociedade, v. 24, n. 84, Campinas, set. 2003. BOTO, C. O aparecimento da escola moderna: uma história ilustrada. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. CAMBI, F. História da Pedagogia. São Paulo: Editora UNESP, 1999. COTRIM, G.; PARISI, M. Fundamentos da educação. História E Filosofia Da Educação. São Paulo: Saraiva, 1984. FALCON, F. J. C. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1993. GADOTTI, M. Perspectivas atuais da educação. São Paulo em perspectiva, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 3-11, 2000. 96 História da Educação HAMILTON, D. Notas de Lugar Nenhum: sobre os primórdios da escolarização moderna. Revista brasileira de história da educação, n. 1, jan./jun. 2001. NARODOWSKI, M. Comenius & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. PILETTI, C.; PILETTI, N. Filosofia e História da educação. São Paulo: Editora Ática, 2004. ROUSSEAU, J. J. Emílio, ou Da Educação. São Paulo: Difel, 1968. VEIGA, C. G. História da educação. São Paulo: Ática, 2007. GABARITO 1. Para responder a esta questão, você deve destacar que foram significativos os efeitos do pensamento iluminista na educação, especialmente porque, a partir deste momen- to, a educação deveria não apenas instruir, mas contribuir efetivamente para a eman- cipação intelectual do indivíduo. 2. Jean-Jacques Rousseau, especialmente em sua obra Emílio, ou Da Educação, apresentou a educação como um processo natural, que não precisava de imposições para aconte- cer, portanto deveria ser simplificado para preservar a curiosidade natural da criança, a qual era considerada o principal sujeito do processo de ensino e aprendizagem. 3. Como os homens da Companhia de Jesus constituíam uma poderosa organização em Portugal e suas colônias, detendo muitos bens e um monopólio sobre a educação, a saída da ordem religiosa representou uma significativa redução no alcance da educa- ção na Colônia, posto que as aulas régias não dispunham da mesma estrutura. Século XIX: a educação nacional 97 6 Século XIX: a educação nacional O século XIX foi caracterizado pelas transformações ocorridas no século XVIII, desencadeadas com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial Inglesa, as quais abriram o caminho para o avanço do capitalismo para outros países. Do ponto de vista da educação formal, esse século tam- bém contribuiu para o que podemos chamar de modernidade educacional, especialmente em razão da concepção de educação para as camadas menos abastadas. Simultaneamente, ocorreu a laicização e o controle estatal; em função desse processo, a edu- cação tornou-se uma questão social, vista como dever do Estado e direito do cidadão. Em 1808, devido às invasões napoleônicas, a Família Real por- tuguesa transferiu-se para o Brasil desencadeando uma série de mudanças na colônia. Posteriormente, a independência política do país também contribuiu para mudanças no campo educacional. Foram criadas diversas instituições de ensino para qualificar pro- fissionais necessários à nova realidade e, também, cursos de nível superior, até então proibidos. Durante quase todo o século XIX, o país permaneceu como a única monarquia da América. Com a emancipação conquistada em 1822, foi feito um balanço do que herdamos da colonização, em contrapartida, iniciou-se uma nova fase da nossa história, em que as sementes da nação foram plantadas, configurando-se, assim, o que chamamos de caráter nacional. Contudo, é importante frisar que o Brasil oitocentista permaneceu com a mentalidade herdada da cultura portuguesa, isto é, de relacio- nar-se com a modernidade de maneira cautelosa. Isso fez com que a escola moderna encontrasse resistência para se instalar no país. 98 História da Educação 6.1 O ideário do século XIX Vídeo O século XIX pode ser caracterizado pelo desenvolvimento científico. Foi o momento da retomada do modelo atômico de Demócrito, por John Dalton (1766-1844), de consolidação da física e da química, bem como da expansão e da emancipação de outras ciências, como a bio- logia, a psicologia e as ciências sociais. A intensa experimentação cien- tífica favoreceu, também, a expansão do conhecimento e seu acesso por grupos os quais eram antes vetados ou dificultados por questões financeiras e/ou sociais. As denominadas ciências experimentais já estavam estabelecidas e, até o século XIX, já tinham avançado significativamente em relação ao mé- todo. Desse modo, a questão passou a ser outra: seria possível transpor tudo da ciência experimental para pensar o ser humano e o problema social? Esta foi, de certa maneira, a tentativa de Auguste Comte (1798- 1857) ao elaborar sua ciência positiva ou o positivismo (COTRIM, 2006). Auguste Comte é o maior nome da ciência denominada positivismo. Ae gi s M ae ls tro m /W ik im ed ia C om m on s Como nesse momento o cientificismo, ou seja, a ideia de que a ciência seria salvadora ao solucionar to- dos os problemas do mundo, é possível verificar, por exemplo, no pensamento de Comte, uma teoria evo- lutiva nos mesmos moldes da teoria de Charles Dar- win (1809-1882), porém, aplicada à sociedade. Para Comte, a sociedade se desenvolve por um processo evolutivo que pode ser identificado em seus estágios: teológico, metafísico e científico (positivo). É uma ten- tativa de pensar a sociedade, mas a crítica pode ser feita no aspecto de que determinada sociedade seria identificada como último estágio de evolução. De outro lado, Georg W. F. Hegel (1770-1831) também construiu um pensamento para explicar a realidade, sendo autor do auge do idealismo ale- mão. Ele procurou esclarecer a realidade como um todo, mostrando que essa realidade é a realização da ideia, do Espírito Absoluto. Dessa forma, notamos uma crise de paradigmas filosóficos e cien- tíficos para o pensamento da realidade e, principalmente, da realidade humana e social. Desse contexto trazemos um pensador singular que debruçou-se sobre o problema: Wilhelm Dilthey (1833-1911). Para ele, Figura 1 Retrato de Auguste Comte, artista desco- nhecido (século XIX) Século XIX: a educação nacional 99 Hegel, teórico do idealismo alemão, buscou explicar a realidade de sua época. Al te N at io ng al er ie /W ik im ed ia C om m on s nesse momento, era necessário buscar uma base adequada para a ciência sobre o ser humano, solo so- bre o qual a verdade filosófica pudesse ser alcançada. O que podemos perceber é que existia uma difi- culdade para estabelecer um método próprio para esse âmbito do conhecimento. Os fenômenos hu- manos resistem a qualquer forma de enquadramen- to estático, ou seja, apresentam complexidades que não se sujeitam a simplificações – não há constância nos fenômenos humanos do mesmo modo em que há nos fenômenos naturais. O método científico deveria, por sua vez, proporcio- nar experiências diversas (testes) por meio das quais seria possível pensar uma generalização. Com isso, percebemos outra dificuldade: como dirigir experiên- cias com objetos que se modificam constantemente em razão de inúmeros fatores? E a linguagem para falar sobre esses objetos, como pensá-la? As ciências naturais se pautam, principalmente, na linguagem matemática, mas este não é o caminho para falar da experiência humana. Essas questões, como veremos, influenciaram naturalmente as reflexões pedagógicas. Após a queda de Napoleão Bonaparte (1769- 1821), as grandes nações europeias reuniram-se no Congresso de Viena (1815) para restaurar a velha ordem do Antigo Regime (absolutismo). Entretanto, quanto mais a indústria se desenvolvia e as cidades cresciam, mais força tinham a burguesia, os intelec- tuais e os operários, principais opositores ao Antigo Regime. Em 1820,1830 e 1848 ocorreramdiversas revoluções em nome dos ideais políticos do liberalis- mo e do nacionalismo, fazendo desses períodos uns dos mais violentos da história. Progressos significativos, nos campos da comunica- ção e dos transportes, ampliaram o potencial para a divulgação de ideias e a propagação de conhecimen- tos. Fatores, como urbanização, crescimento industrial e capitalismo, exigiam uma educação mais próxima Figura 2 Retrato de Georg Hegel, de Jakob Schle- singer (século XIX) Wilhelm Dilthey buscou estabelecer uma ciência para compreender o ser humano e, com isso, alcançar a verdade. Es tú di o (A te lie r) Dü hr ko pp (B er lim )/ W ik im ed ia C om m on s Figura 3 Wilhelm Dilthey (século XIX) 100 História da Educação das atividades que surgiam e com foco na qualificação da mão de obra. Escolas politécnicas foram criadas na tentativa de suprir a demanda pro- fissional e o Estado nacional, preocupado em manter seu poder, começou a intervir de modo mais direto para estabelecer a escola elementar univer- sal, laica, gratuita e mandatória. As discussões sobre os métodos, iniciadas nos séculos anteriores, conquistaram ainda mais espaço. O século XIX representou a consolidação do poder político da burguesia e da luta dos trabalhadores contra a dominação e a exploração. Foi nesse período que surgiram as ideologias as quais em- basaram as críticas ao liberalismo burguês, como o socialismo utópi- co, de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), o anarquismo, de Mikhail Bakunin (1814-1876), e o socialismo científico, de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). As condições de trabalho e de vida do proletariado, em oposição ao modo de vida burguês, fizeram com que muitos pensadores questionas- sem as desigualdades impostas pelo capitalismo. Teóricos socialistas reali- zavam críticas ao individualismo e propunham a criação de uma sociedade com base na igualdade e no trabalho cooperativo (PILETTI; PILETTI, 2004). Os pensadores socialistas Karl Marx e Friedrich Engels – consi- derados dois dos maiores nomes dessa vertente – afirmavam que o capitalismo sempre sistematizava uma sociedade injusta e irracional. Para esses pensadores, o proletariado deveria se organizar, tomar o poder, aniquilar o capitalismo e a burguesia, construindo uma socieda- de fundamentada na propriedade social. Embora não tenha elaborado uma obra sobre a educação, Marx afir- mou que o trabalho é um prin- cípio educativo (MANACORDA, 2007). Segundo Cambi (1999), a educação marxista tem as seguin- tes características: • junção dialética entre edu- cação e sociedade; • vínculo entre educação e política; • centralidade do trabalho na formação do indivíduo e seu papel prioritário na escola; • formação integralmente hu- mana, que recorre explicita- mente à teorização marxista do homem multilateral; • oposição a toda forma de espontaneísmo e de natura- lismo ingênuo. Saiba mais Marx e Engels são considerados os maiores pensadores socialistas de todos os tempos. Ins tit ut o In ter na cio na l de Hi stó ria So cia l/B ro nk s/ W iki m ed ia C om m on s Figura 4 Karl Marx e Friedrich Engels Século XIX: a educação nacional 101 Outra doutrina política revolucionária do sé- culo XIX foi o anarquismo, do qual o principal defensor foi Mikhail Bakunin. Os anarquistas re- chaçavam qualquer instituição hierárquica. Para eles, ninguém tem o direito de dar ordens a outro ser humano, por isso, eram contrários à proprie- dade privada, ao capitalismo e ao Estado. Seus doutrinadores não participavam das eleições e não agremiavam-se a partidos políticos. Alguns grupos eram totalmente pacíficos, já outros recor- riam ao terrorismo contra as autoridades estatais. Entre os séculos XIX e XX, os conceitos de nação e de nacionalismo receberam incrementos e sofreram transformações. Tanto a Revolução Francesa quanto a independência dos Estados Unidos alteraram diversas concepções políticas. As revoluções de 1848 – conheci- das como Primavera dos Povos – impulsionaram ainda mais a busca pela definição de nação, bem como lan- çaram diferentes reflexões sobre o cotidiano. Bi bl io te ca P úb lic a de N ov a Yo rk /W ik im ed ia C om m on s As propagandas, a literatura e a cultura em geral foram utilizadas para disseminar ideias e, de alguma forma, também chegaram às massas, que começaram a questionar alguns princípios. Com o for- talecimento do nacionalismo, a Europa presenciou a unificação da Alemanha e da Itália, ambas em 1870. Na América, as colônias espa- nholas e a portuguesa tornaram-se independentes e, com exceção do Brasil, repúblicas. Observamos, dessa maneira, que as grandes mudanças econômi- cas, políticas e sociais consolidadas no século XIX foram seguidas por doutrinas e por proposições que procuravam, por um lado, explicar e regular a sociedade capitalista burguesa que se estabelecia, como fez o liberalismo, e, por outro lado, combatê-la ou aperfeiçoá-la, como os anarquistas e os socialistas. Essas teorias, conforme estudaremos, influenciaram as concepções pedagógicas do período. O ano de 1848 foi o mais revolucio- nário do século em muitas regiões do globo, ficando conhecido como Primavera dos Povos. Nas principais cidades europeias, homens e mu- lheres ocuparam as ruas, ergueram barricadas e enfrentaram as tropas dos governos (HOBSBAWN, 2009). A onda revolucionária liberal e nacionalista cruzou o Oceano Atlântico e influenciou a oposição política na América. No Brasil, eclodiu em Pernambuco a Revolução Praieira (1848), a qual revelou a influência das ideias libe- rais e nacionalistas que agitavam a Europa na mesma época. Curiosidade Mikhail Bakunin é considerado um dos maiores nomes do anarquismo. Figura 5 Mikhail Bakunin 102 História da Educação 6.2 O pensamento pedagógico do século XIX Vídeo As agitações políticas, científicas e culturais, que permearam o sécu- lo XIX desde seu princípio, impactaram a prática educacional. A tradição clássica, em oposição à visão científica, não oferecia mais bases sólidas, especialmente para se pensar a sociedade. O progresso, vindo com as ciências exatas, teve consequências para a educação: em primeiro lugar, foi inevitável integrar o estudo dessas ciências ao programa de ensino; em segundo lugar, fez com que o próprio processo educativo incorporasse o método das ciências exatas. O fenômeno do capitalismo industrial e a consequente urbaniza- ção geraram expectativas e indagações em relação à educação, pois a modificação do trabalho exigiu habilidades que, até então, o homem trabalhador desconhecia (ARANHA, 2006). O deslocamento de grandes contingentes de trabalhadores das ofi- cinas artesanais para as fábricas, bem como do campo para a cidade, gerou embates sociais e mudanças culturais e morais que transforma- ram as condições e as necessidades instrucionais. Nesse contexto, a educação precisou ser repensada, uma vez que os modelos existentes – em que prevalecia a produção artesanal – destoavam da nova organi- zação econômica, social e cultural (MANACORDA, 1992). Essas mudanças geraram uma laicização da sociedade e uma con- sequente estatização da educação. Os princípios religiosos que, apesar de mais de dois séculos de questionamento, ainda coordenavam a so- ciedade de maneira rígida foram definitivamente discutidos e substituí- dos pela centralidade do ser humano e do uso da razão para chegar ao conhecimento verdadeiro. Destacaram-se outros valores vinculados à autonomia, à liberdade e à independência em detrimento dos poderes tradicionais (VEIGA, 2007). Consolidou-se o processo de expansão do ensino, especialmente com a intervenção crescente do Estado e o estabelecimento da escola universal, leiga, gratuita e obrigatória (ARANHA, 2006). Porém, a Igreja Católica não aceitou passivamente a progressiva exclusão de suas fun- ções tradicionais de assistência e de educação. Ela e o Estado moderno aparecem em contestação, no que se refere ao tema da educação,à medida em que a Igreja continuou considerando sua função exclusiva à educação dos jovens (MANACORDA, 1992). Século XIX: a educação nacional 103 Com novos espaços, objetivos e sujeitos educativos se aguça a problematização dos métodos pedagógicos. Isso ocorre em razão, também, do surgimento das ciências humanas, como a psicologia e a história (ARANHA, 2006). O pensamento pedagógico também sofreu a influência da revolu- ção cultural caracterizada pelos ideais românticos que se opunham, em grande medida, ao racionalismo iluminista. Para os românticos, a razão era apenas um dos aspectos da força espiritual humana. Em síntese, as principais tendências filosóficas desse século eram: Materialismo Críticos do idealismo, os teóricos desta concepção afirmavam que todos os fenômenos perceptíveis são resultados de interações materiais. Os materialistas influenciaram os teóricos socialistas, sobretudo, Marx e Engels. Positivismo Segundo essa corrente filosófica, o trabalho do filósofo é sintetizar as diversas ciências particulares e não teorizar sobre ideias vagas. Auguste Comte acreditava que todas as grandes mudanças na história da humanidade ocorreram em razão do desenvolvimento do conhecimento. Para o estudioso, quanto mais os indivíduos aprendem, mais felizes eles se tornam; para os positivistas, o progresso é filho do conhecimento. Adaptando-se às mudanças dos novos tempos, o positivismo interferiu na concepção de mundo e, sobretudo, constituiu o pressuposto filosófico das ciências humanas de tendência naturalista, como a sociologia de Emile Durkheim (1858-1917) e a psicologia behaviorista. Idealismo Os teóricos idealistas destacaram a capacidade que Immanuel Kant atribuía à razão de impor formas a priori ao conteúdo dado pela experiência. A realidade seria determinada pela consciência e são as ideias que a produzem, pois “ser” significa ser dado na consciência. O caráter fundamental o qual a escola passa a ter na sociedade do século XIX (decorrente de seus novos objetivos que não visava somente à instrução, mas à formação do cidadão conhecedor dos seus direitos e cumpridor de seus deveres, o cidadão cívico, possuidor de uma cons- ciência nacional e que teve como consequência a expansão da rede escolar, escolarizando toda a sociedade) não se eximiu do caráter se- gregador do sistema educacional, com uma escola para o povo e outra para a elite. Desse modo, apesar de aprimorar e expandir a escola básica e criar as escolas da primeira infância e as escolas normais para a formação de professores, a reorganização da escola secundária mantém uma duali- dade, pela qual se destina à elite burguesa uma formação clássica, e, 104 História da Educação aos trabalhadores, um ensino técnico para trabalho na indústria ou no comércio. O ensino superior sofreu expansão e reformulação, es- pecialmente com a fundação das escolas politécnicas, que atendiam ao processo de desenvolvimento tecnológico (ARANHA, 2006). Os principais nomes do pensamento pedagógico, cujas ideias ani- maram o século XIX e continuaram a tradição iniciada por Rousseau, isto é, a valorização da educação desde os primeiros anos de vida, fo- ram Pestalozzi, Fröbel e Herbart. Pestalozzi defendeu os conceitos de criança, de família e de instrução e objetivou estabelecer a junção entre o indivíduo e a realidade histórica. W ik i0 5/ W ik im ed ia C om m on s 6.2.1 Johann Heinrich Pestalozzi O suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1826), influen- ciado pelas leituras de Rousseau, especialmente por Emílio, ou Da Educação, buscou aprimorar seus apontamentos e co- locá-los em prática para um número maior de alunos, de- fendendo os conceitos de criança, de família e de instrução. Sua ambição, na verdade, foi de “juntar aquilo que Rousseau separava”, isto é, o homem natural e a realidade histórica (MANACORDA, 1992, p. 261). Pestalozzi atraiu a atenção do mundo como mestre, lite- rato e organizador de escolas. Durante grande parte de sua vida e em suas obras literárias, preocupou-se com os proble- mas da existência humana buscando sempre uma resposta. Além de estabelecer proteção, afirmava o valor da educação e da família para o desenvolvimento das crianças. Ele con- siderava o ser humano de seu tempo excessivamente cer- ceado pelo meio, distanciado de sua índole original que, ao contrário de Rousseau, achava ser essencialmente egoísta e submissa aos cinco sentidos – visão, audição, paladar, olfato e tato (CAMBI, 1999). Para Pestalozzi, cada criança nasce com um conjunto de faculdades, precisando de um desenvolvimento harmonioso e amparado, sendo dever do processo educativo desenvolver essas capacidades. O estudioso apresenta três aspectos fun- damentais desse processo: o desenvolvimento intelectual, o desenvolvimento moral e o relacionamento professor- -aluno. Em sua teoria pedagógica, a moral é o principal obje- tivo de todo o processo educativo e tanto os pais quanto os Durante a invasão da Suíça pelos franceses, Pestalozzi reuniu os órfãos do conflito no prédio de um antigo convento, onde passou a educá-los pessoalmente. Segundo ele, esse foi o verdadeiro trabalho de sua vida. Pestalozzi aliou a formação geral e profissional, esta e suas outras iniciativas atraíram estudiosos que que- riam conhecer seu trabalho. Curiosidade Figura 6 Retrato de Johann Pestalozzi, artista desconhecido (séculos XVIII-XIX) Século XIX: a educação nacional 105 professores devem fazer de tudo para inculcar isso nos mais jovens. Em síntese, seu pensamento apresentou a ideia de que a vida educa, mas que esta não é uma questão de palavras, e sim de ação, de atitude. Nesse sentido, a educação familiar é valorizada como primeira edu- cação, ressaltando a importância dos pais para a criança e a casa fami- liar como a base de toda a educação natural e pura. Por esse motivo, Pestalozzi tornou-se um dos mais ferrenhos defensores da escola po- pular por reconhecer a função social da educação, mas de uma edu- cação que conduzisse à formação completa, pela qual cada indivíduo seria levado à plenitude do seu ser. É desse ponto que surge a impor- tância dos métodos para a organização do trabalho intelectual e ma- nual, segundo ele, partindo sempre da vivência intuitiva, para só depois introduzir conceitos (ARANHA, 2006). A tarefa do professor seria, junto à família, entender a infância para favorecer o desenvolvimento espontâneo do aluno, posição que o distancia do ensino dogmático e autoritário. A experiência religiosa é compreendida como algo positivo quando relacionada à religiosidade íntima e não confessional, isto é, que diz respeito à pessoa. Não se con- siderava benéfica a submissão a dogmas e a seitas. Despertar o senti- mento religioso, para Pestalozzi, portanto, “não significava memorizar o catecismo” (ARANHA, 2006, p. 210). Pestalozzi confere ao amor os contornos do conceito filosófico, ligan- do profundamente à sua concepção do ser. A uma cegueira amorosa ele vai opor o amor vidente. Embora toda sua reflexão derive do mode- lo do amor materno, procura ao mesmo tempo influir sobre o amor das mães, por isso, em diversos textos, constantemente dirige-se a elas ou examina seu papel, pedindo às mães que operassem seu amor com a maior força possível e o regulasse com a reflexão. O estudioso deseja, por um lado, emprestar mais racionalidade às mães e, por outro, mais amor aos educadores. A racionalidade que propõe como coadjuvante do amor materno estará intrinsecamente relacionada com seu método, pois permite se- guir o desenvolvimento infantil, proporcionando à criança os estímulos necessários e adequados a cada etapa. Está também aportada uma modificação de perspectiva do próprio objetivo da educação, a qual ul- trapassa a mera aquisição de uma profissão ou de um ajustamento dos padrões sociais para projetar na formação do homem moral e autôno- inculcar: “gravar, imprimir (algo) no espírito de alguém; repetir seguidamente (algo) a (alguém)” (HOUAISS, 2009). Glossário106 História da Educação mo que se cumpre em todas as dimensões. Para o suíço, a educação não se limita à existência: deve agir sobre a essência, visando autono- mia moral e transcendência espiritual do indivíduo. Conforme Pestalozzi, a formação integral permite o desenvolvimen- to de todas as potencialidades e depende, antes de tudo, da capacida- de de amor dos educadores. Com isso, busca-se uma espécie de clima espiritual positivo, despontado em forma de afeição, entusiasmo e compreensão, que, circundando a criança, faça vir à tona sentimentos de reciprocidade e, ao mesmo tempo, incite o seu potencial de desen- volvimento moral e intelectual. Finalmente, é necessário reconhecer que a maioria dos intérpre- tes de Pestalozzi o compreende sob o prisma do idealismo alemão. Os autores do século XIX se apropriaram de tal maneira que ele se tornou um dos principais pontos de referência do pensamento pe- dagógico alemão, perdendo-se com isso parte de sua originalidade e apagando as heranças iluministas do seu pensamento. O resul- tado dessa abordagem é o falseamento de alguns conceitos-chave, por exemplo, a tendência de tornar panteísta a sua concepção de Deus e a sua própria proposta de educação popular. O idealismo alemão perdeu de vista a importância do indivíduo, coletivizando excessivamente. Para entender mais a respeito das teorias de Pestalozzi, especialmente com relação à valorização dos sentimentos, leia o artigo Pestalozzi: o teórico que incorporou o afeto à sala de aula, de Márcio Ferrari, publicado na revista Nova Escola. Acesso em: 17 set. 2020. https://novaescola.org.br/conteudo/1941/pestalozzi-o-teorico-que-incorporou-o-afeto-a-sala-de-aula Artigo 6.2.2 Friedrich Fröbel A pedagogia do neo-humanismo, compilada na Alemanha, repre- sentou uma referência explícita ao humanismo dos séculos XV e XVI, apresentou uma reflexão natural em torno do indivíduo e influenciou alguns pensadores do século XIX. Dentre estes, podemos citar Friedri- ch Wilhelm August Fröbel (1782-1852), conhecido como o pedagogo do romantismo (CAMBI, 1999). Influenciado pelas leituras de Jean-Jacques Rousseau, Johann Heinrich Pestalozzi buscou aprimo- rar os apontamentos de Rousseau e colocá-los em prática para um número maior de alunos. Nesse sentido, quais foram as principais contribuições de Pestalozzi para a educação? Atividade 1 panteísta: de panteísmo; “doutrina filosófica caracterizada por uma extrema aproximação ou identificação total entre Deus e o universo, concebidos como realidades conexas ou como uma única realidade integrada” (HOUAISS, 2009). Glossário O cuidado e a educação para as crianças até 3 anos de idade não ocorriam nos jardins de infância, e, ao contrário do que muitos pensam, foi mencionada apenas por Fröbel. As primeiras instituições responsáveis por crianças de até 3 anos foram as creches, que surgiram na França a partir de 1870. Estas, chamadas também de escolas maternais, recebiam as crianças cujas mães adentravam o mercado de trabalho – o qual crescia rapidamente, em virtude das transformações econômicas e das novas relações de trabalho. Curiosidade Século XIX: a educação nacional 107 O alemão, também pautado nas reflexões de Rousseau e de Pestalozzi, voltou a sua atenção espe- cialmente para a primeira infância, período anterior ao ensino elementar. Nesse momento da vida, as crianças não tinham um espaço reservado para seu cuidado e educação – especialmente com o ingresso cada vez maior das mulheres no mercado de traba- lho –, o que chamou a atenção do pensador. Fröbel pode ser considerado o idealizador da pe- dagogia do brinquedo, pois incorporou o lúdico ao processo de ensino e aprendizagem, e do jardim de infância (kindergarten), pois queria abolir os asilos de crianças de seu tempo e organizar uma instituição modelo, em que jovens mulheres preparassem es- sas crianças para o futuro educacional. Como em um jardim, as crianças seriam “cultiva- das” em sintonia com a natureza, em locais não só de recolhimento de crianças (abrigos), mas, também, espaços para o jogo e o trabalho infantil, para as ati- vidades de grupo (canto). Segundo Cambi (199, p. Ao voltar suas reflexões para a primeira infância, Fröbel ficou conhecido como o pedagogo do romantismo. CW B ar de en , e di to r/ W ik im ed ia C om m on s Figura 7 Retrato de Friedrich Fröbel, artista desco- nhecido (século XIX) 426), Fröbel objetivava estabelecer o ensino “por [meio de] uma profes- sora especializada que orienta as atividades, sem que estas jamais as- sumam uma forma orgânica e programática, como ocorre nas escolas”. Além do lúdico, o estudioso destacava a importância de atividades que favorecessem e auxiliassem no desenvolvimento físico – que hoje chamamos de motor, intelectual, moral e religioso – dos alunos, por exemplo, a tecelagem, a dobradura, o recorte e a poesia. Sempre valorizando a relevância das brincadeiras e da música como centro das atividades nos jardins de infância, o educador alemão de- senvolveu o que ficou conhecido como teoria dos dados. Os dados, de acordo com Fröbel, eram materiais didáticos formados por objetos geométricos que auxiliavam as crianças na compreensão da natureza e eram dotados de valor simbólico, além de didático. Esses materiais poderiam ser utilizados de diversas maneiras, favorecendo uma leitura filosófica (simbólica) do mundo, referindo-se à unidade, ao dinamismo e fixando na mente infantil esses princípios. Ao brincar com os dados, compondo-os e decompondo-os, a crian- ça aprende as formas elementares do real e, também, demonstra sua 108 História da Educação atividade criadora. Conforme Cambi (1999, p. 426), “os ‘dados’ são a esfera (símbolo da unidade e do movimento); um cubo e um cilindro; um cubo dividido em oito cubinhos; um cubo dividido em 27 tijolinhos; depois, outras figuras geométricas sólidas, de variada composição”. Nesse sentido, podemos apontar três aspectos preponderantes no pensamento de Fröbel: Concepção de infância Didática especial para a primeira infância, sendo esta o coração } da proposta fröbeliana e que tanta influenciou a práxis escolar a partir do século XIX (CAMBI, 1999). Sistematização dos jardins de infância O educador imaginava a infância como uma idade criativa e fantásti- ca, por esse motivo, privilegiava o uso do brinquedo no processo de ensi- no e aprendizagem. A educação, para ele, constituía-se em um processo pelo qual desenvolve-se a condição humana, com todos os seus poderes funcionando completa e harmoniosamente em relação à natureza e à so- ciedade. Apesar dessas importantes reflexões, ao contrário de Pestalozzi, Fröbel não se interessava pela relevância social da educação. Seu pensa- mento pedagógico revelava uma posição um pouco mais conservadora. Para entender a importância das contribuições de Pestalozzi e Fröbel para a educação infantil, leia o artigo Os Pedagogos da Primeira Infância: Pestalozzi e Fröbel – uma análise de suas obras educacionais, da professora Alessandra Arce. Acesso em: 22 set. 2020. http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe2/pdfs/Tema4/0472.pdf Artigo Século XIX: a educação nacional 109 6.2.3 Johann Herbart Johann Friedrich Herbart (1776-1841) também foi defensor da moralidade como objetivo maior do ato educativo. Para o filósofo, psicólogo, peda- gogista alemão, assim como para Kant, a filosofia é uma “elaboração de conceitos” e fundação de uma metafísica crítica realística (CAMBI, 1999). Herbart deu grande contribuição para a pedago- gia como ciência, buscando maior rigor de méto- do e a elevando como disciplina acadêmica. Desde muito jovem destacava-se nos estudos, especial- mente em matemática e em filosofia, com isso, vol- tou sua atenção para a filosofia e a educação, na Universidade de Jena (Alemanha), onde conviveu com filósofos notórios da época, e posteriormente atuou como preceptor. Na apreciação de Herbart, muitos princípios da teoria pedagó- gicabaseavam-se em ilusões, o que geravam insegurança na edu- cação. A conduta pedagógica deveria seguir três princípios básicos – governo, instrução e disciplina – para garantir a formação do ser humano, tendo como base a moral e a virtude. Essa proposição, que ultrapassa a simples instrução, propendia para adaptar os desejos e a vontade das pessoas (ARANHA, 2006). O governo refere-se ao controle da agitação das crianças, espe- cialmente na primeira infância, com o objetivo de submeter os pe- quenos às regras do mundo e tornar possível o início do processo de ensino e aprendizagem. Não se deixariam de lado castigos pondera- dos, desse modo, combinados com autoridade, carinho e cuidado. A instrução versaria sobre o desenvolvimento dos interesses, um poder ativo que gera quais ideias e experiências receberão atenção. Compreendida como construção, não se afasta da formação moral, uma vez que uma seria a condição para a outra. Finalmente, a disciplina, terceiro procedimento básico para uma boa conduta pedagógica, conservaria a vontade, educando-a no pro- pósito da virtude. Ela conduziria a autodeterminação característica Herbart contribuiu de maneira significativa para o que compreendemos como pedagogia como ciência. M ag un s M an sk e/ W ik im ed ia C om m on s Figura 8 Retrato de Johann Herbart, artista desconhecido (século XIX) 110 História da Educação da maturidade moral, que culminaria na formação do caráter – ele- mento mais importante. Herbart considerava a mente como uma estrutura que se apro- ximava, sem plano preestabelecido, do contínuo estético, o qual era oriundo do mundo externo. Para o filósofo, a mente elaborava e de- senvolvia uma aspiração inexplicável rumo à perfeição moral per- meada por cinco ideais, são eles: liberdade interior, perfeição, boa vontade, justiça e equidade (GILES, 1987). Para conhecer mais sobre as propostas e contribuições legadas pelo funda- dor da pedagogia como disciplina acadêmica, leia o texto Herbart, o organiza- dor da pedagogia como ciência, publicado na Revista Nova Escola. Acesso em: 30 set. 2020. https://novaescola.org.br/conteudo/1775/herbart-o-organizador-da-pedagogia-como-ciencia Artigo 6.3 Brasil: de Colônia a Império Vídeo Com o auxílio de navios ingleses, a corte portuguesa chegou ao Bra- sil em 1808 e desde o princípio, com a abertura dos portos às nações amigas, favoreceu inúmeras mudanças e intercâmbio não apenas de mercadorias, mas, também, de conhecimento. Com mais de 15 pes- soas, a presença inusitada em uma colônia ensejou uma transformação cultural, pois os contatos com a produção cultural de outras localida- des, até mesmo de Portugal, não eram mais proibidos. Juntamente às mercadorias, vieram ao Brasil viajantes estrangeiros que queriam conhecer a natureza e os costumes tão diferentes. Em 1816, chegou a Missão Artística Francesa com mestres que ensinariam na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Um desses mestres era o pintor Jean-Baptiste Debret (1768-1848), o qual também fez pinturas do cotidiano do Brasil nesse período. Em razão das agitações ocorridas em Portugal, D. João VI (1767-1826) foi obrigado a retornar à metrópole, deixando no Brasil seu herdeiro (o príncipe), que proclamou a independência política em 1822 e adotou o nome de D. Pedro I (1798-1834). Enquanto na Europa o liberalismo caminhava a passos largos e a industrialização ganhava terrenos mais Discorra a respeito da diferença entre governo e disciplina, de acordo com Herbart. Atividade 2 Assista ao vídeo História do Brasil - Dom João VI, produzido pelo canal Univesp, especialmente o trecho de 11’32” até 14’37”, para compreender as mudanças provocadas pela transferência da Família Real. Disponível em: https://youtu.be/ syXf3WHQRPM. Acesso em: 29 set. 2020. Vídeo https://youtu.be/syXf3WHQRPM https://youtu.be/syXf3WHQRPM Século XIX: a educação nacional 111 vastos, no Brasil a reforma política não propiciou mudanças econômi- cas e sociais significativas. Em 1831, D. Pedro I, em meio a muitas discussões, abdicou e, em virtude da idade de seu filho e sucessor, o Brasil foi governado por re- gentes até 1840, quando teve início o Segundo Império, com D. Pedro II (1825-1891). O Segundo Império, ao contrário dos períodos anteriores, foi carac- terizado pela estabilidade política e econômica. O trabalho assalariado de milhares de imigrantes tornou-se significativo a partir da década de 1870, substituindo gradativamente a mão de obra escrava. Embora a industrialização ainda fosse fraca, as cidades cresciam e a sociedade tornava-se mais complexa com a ampliação da burguesia urbana. Em 1870, após a Guerra do Paraguai, a monarquia viu suas bases abaladas e acarretou, em 1888, a abolição da escravatura e, em 1889, a Procla- mação da República. 6.3.1 A educação brasileira durante o Império Após a formalização da independência política, era necessária a or- ganização de um Estado Nacional, o que só poderia ser feito por meio de uma Constituição. A despeito das divergências políticas e dos inte- resses contraditórios, os setores das camadas dirigentes tinham um objetivo em comum: implantar um Estado forte. Além disso, D. Pedro I enfrentava o problema da autoridade política interna e o reconheci- mento externo de uma jovem nação. Embora a historiografia de inspiração republicana – na qual pode ser verificada em Almeida (1989) – ter delineado um quadro da si- tuação educacional no Império mais trágico do que na realidade, se consumaram as condições da instrução pública naquela época. Atualmente, as pesquisas, como afirma o historiador da educação Faria Filho (2007), têm demonstrado que havia, em várias províncias, uma intensa discussão sobre a necessidade de escolarização da po- pulação e da superação da acentuada deficiência educacional, apesar das restrições materiais. A primeira tarefa do Império quanto à educação foi o ordenamento jurídico: a urgência da situação influenciou as primeiras medidas toma- das em relação ela. No ano de 1823, foi criada no Rio de Janeiro uma regentes: homens escolhidos para assumirem o governo do país até que o príncipe, futuro D. Pedro II, atingisse a maioridade. Glossário A Guerra do Paraguai é conside- rada o conflito mais sangrento da América Latina. O Brasil saiu vitorioso e o Paraguai teve sua população masculina praticamente aniquilada. Saiba mais Para conhecer mais sobre Família Real portuguesa e compreender os impactos de sua chegada ao Brasil, assista ao filme Carlota Joaquina, princesa do Brasil. Direção: Carla Camurati. Brasil: Warner Bros Pictures, 1995. Filme 112 História da Educação escola de primeiras letras fundamentada no método de ensino mútuo, chamado de método lancasteriano (VILLELA, 1999). O método lancaster era pensado para atender ao maior número possível de alunos pelo menor custo, haja vista que o professor passava a lição aos alunos considerados mais adiantados, que atuavam como monitores e auxiliavam aqueles que apresentavam dificuldades no conteúdo transmitido. Entretanto, já no início dos anos 1830, as autoridades do Impé- rio reconheceram o fracasso do método em razão da ausência de pessoal qualificado e de instalações adequadas. Em 1824, Pedro I estabeleceu, por meio de uma carta, que “a instrução primária é gratuita a todos ci- dadãos”. Contudo, a regulamentação da lei ocorreu apenas com a Lei de 15 de Outubro de 1827. Essa foi a primeira e única lei geral relativa ao ensino primá- rio durante o Império (FÁVERO, 2005). M useu Nacional de Belas Artes/W ikim edia Com m ons Além de pintar o cotidiano da colônia, Debret retratou o monarca português D. João VI. Observamos, assim, que no Primeiro Império, apesar do debate inte- lectual e político em torno da educação, pouquíssimo foi feito para o seu progresso; basta identificar a ausência de referências na Constituição de 1824. Para completar, com o ato adicional de 1834 (o qual foi transfor- mado na Lei n. 16, de 12 de agostode 1834) se atribuiu competência às assembleias provinciais para legislar sobre o ensino elementar e médio. Essas medidas significaram a descentralização precoce das políticas e do controle educacional, dificultando a unificação dos sistemas edu- cacionais e criando uma dualidade destes. Os representantes políticos locais poderiam instituir a criação de impostos, controlar as finanças e determinar os professores Porém, embora houvesse desinteresse do governo central com a educação primária e secundária em diversas províncias do Império, for- maram-se redes de escolas públicas e privadas. Além disso, a educação doméstica continuou ocorrendo da mesma forma que era praticada desde o período colonial. Segundo Faria Filho (2007, p. 145), o número de escolas domésticas era elevado e “atendia a um número de pessoas bem superior ao da rede pública estatal”. Século XIX: a educação nacional 113 O método mútuo, cuja falibilidade já fora constatada, especialmente em razão das condições materiais e pela falta de professores formados para a realização do ensino, cede lugar em várias províncias e em di- versos textos legais aos chamados de métodos mistos, os quais busca- vam ora aliar as vantagens do método individual às do mútuo, ora aliar aspectos positivos deste último às inovações propostas pelo método simultâneo. Este com o tempo se estabeleceu como o mais vantajoso, ao favorecer a organização da classe de modo mais homogêneo, a ação do professor sobre vários alunos, a otimização do tempo e a disposição dos conteúdos em diversos níveis. As discussões sobre os métodos suscitaram a reflexão sobre as rela- ções pedagógicas de ensino e aprendizagem, que no chamado método intuitivo, conhecido como lições de coisas e defendido por Pestalozzi, lançará luzes sobre a importância da escola na observação dos ritmos de aprendizagens dos estudantes. Mesmo com essas discussões e apontamentos, a presença do Estado na educação no período imperial era irrisória, pois ainda se tratava de uma sociedade escravagista e autoritária que atendia aos interesses de uma minoria encarregada do controle sobre as novas gerações. Era evidente a incoerência da lei que propugnava pela educação primária para todos, mas que na prática não se concretizava. O governo imperial atribuía às províncias a responsabilidade pelo ensino primário e secundário por meio das leis e dos decretos criados, mas que não eram colocados em prática. Embora as críticas existissem desde a primeira metade do século, es- pecialmente em relação ao ensino elementar, o Brasil teve que esperar até os princípios do século XX para ter espaços pensados para a instrução primária, os chamados grupos escolares (FARIA FILHO, 2007). No início do Império, o ensino secundário era fragmentado em aulas isoladas de Latim, Retórica, Filosofia, Geometria, Francês e Comércio. Em diferentes províncias do Império, as aulas públicas pro- movidas somavam uma centena ou pouco mais. A organização dos estudos secundários havia somente em poucos seminários, ainda de tradição jesuítica (VECHIA, 2005). Com o Ato Adicional de 1834, o panorama da educação secundária co- meçou a se modificar. Graças à reunião de disciplinas avulsas existentes nas principais das províncias, surgiram os primeiros liceus provinciais. Para analisar a estrutura- ção do ensino secundário com a transferência da Família Real, assista ao vídeo No Império chega o Ensino Secundário (1/3), produzido pelo canal Univesp. Disponível em: https://youtu.be/ mNMvgOHkDPA. Acesso em: 25 set. 2020. Vídeo https://youtu.be/mNMvgOHkDPA https://youtu.be/mNMvgOHkDPA 114 História da Educação Embora o Governo Central delegasse o cuidado com o ensino se- cundário (como o elementar), criou-se ainda todo um conjunto de leis e ações que apontavam controlar e direcionar o ensino nas províncias. Nesse contexto, percebemos a criação do Colégio Pedro II em 1837 para o estabelecimento dos exames preparatórios para ingresso no ensino superior. O governo imperial se esforçou para manter o padrão do ensino a partir da criação do Colégio Pedro II como um modelo a ser seguido em todo o país. Por adotar o modelo dos famosos liceus franceses, o currículo do Pedro II possuía uma forte ênfase humanista, ao contrário do que ocorria em outros países. Buscou-se programar a modernidade educacional importando o modelo de funcionamento e de plano de estudos da Europa e dos Estados Unidos. Cy ro A . S ilv a/ W ik im ed ia C om m on s A instituição outorgava o grau de bacharel, título necessário para o ingresso em algum curso superior. Foram também criados, nessa épo- ca, os colégios religiosos e alguns cursos de magistério de nível secun- dário, exclusivamente masculinos. O Colégio Pedro II era frequentado pela elite, nele era oferecida a melhor educação e a melhor cultura, com o objetivo de formar as camadas dirigentes. Por esse motivo, era considerado uma instituição modelo para as demais escolas no país. Situado na cidade do Rio de Janeiro, o Colégio Pedro II surgiu no ano de 1837 com a premissa de ser um modelo para todo o país. A figura mostra o prédio do colégio na atualidade. Século XIX: a educação nacional 115 An tô ni o M el co p/ Pr ef .O lin da /W ik im ed ia C om m on s Contudo, ainda se criava um ensino secundário pouco significativo e preparatório em essência, esvaziado de sentido formativo. Poucas eram as exceções, por exemplo, o Seminário de Olinda, que atuou como um local de intensa divulgação das ideias que emergiam da Europa. O ensino secundário, durante o Império, foi um privilégio da elite. Os liceus e os ateneus provinciais atraíam a alta sociedade de cada província, reunindo os melhores professores e gozando de autoridade. Por outro lado, essa demanda por formação secundária impulsionou a expansão de iniciativas educacionais privadas, especialmente a pro- testante. Outros liceus provinciais surgiram, contudo, sem alcançar o mesmo prestígio dos colégios particulares de ensino secundário. Nesta sociedade fundamentada no trabalho escravo, os poucos alu- nos que frequentavam o ensino profissional eram oriundos das cama- das pobres e, na sua maioria, eram mestiços. Por essa razão, o ensino profissional foi bastante marginalizado durante o século XIX, no Brasil. A tradição humanística, retórica e literária, apartada da realidade, não valorizava a educação atenta aos problemas práticos e econô- micos, além da mentalidade escravocrata, que desprezava todos os trabalhos manuais. Assim, o ensino profissionalizante, destinado às ati- vidades técnicas, era ainda mais desprezado que o elementar. Os mestres artesãos – que se dedicavam a atividades, como a de ferreiros, mecânicos, pedreiros, carpinteiros, marceneiros, alfaiates ou Situado na cidade de Olinda, o seminário, que levava o nome da cidade, foi importante para a divulgação das ideias que circulavam na Europa. 116 História da Educação funileiros – geralmente eram europeus. Essa modalidade de ensino não ocorria nas escolas formais, mas sim em oficinas, sem a preocupa- ção de alfabetizar os aprendizes. Apenas ao final do século XIX foram fundados os Liceus de Artes e Ofícios, os quais deveriam ensinar algum ofício, mas na prática assu- miram um caráter mais assistencialista e disciplinar que profissionali- zante. No entanto, com o avanço do capitalismo, a pressão resultante da Revolução Industrial vivenciada na Europa, a imigração de traba- lhadores europeus e o crescimento urbano, surgiram pressões para o desenvolvimento de escolas que atendessem, também, às classes po- pulares. Em função dessas demandas, nas últimas décadas do século XIX, foram apresentados vários projetos de reforma educacional, nos quais aumentava-se o compromisso do Estado em oferecer instrução para o povo, como a reforma implementada por Leôncio de Carvalho (1847-1912) (MACHADO, 2005). Outra modalidade de ensino que sofreu com a falta de empenho das autoridades foi o magistério. Apesardas primeiras escolas nor- mais do país terem sido fundadas no período regencial, quando che- gou a década de 1860 existiam poucas escolas para a formação de professores em todo o Império. A legislação não fazia referência à cria- ção de escolas normais, mas menciona a formação de professores nas escolas das capitais das províncias. Assim, apenas após 1834 podemos verificar a prescrição para a criação dessas escolas, o que ocorreu de modo irregular até 1870 (TANURI, 2000). A formação de professores era precária mesmo com a existên- cia de algumas escolas normais, em virtude da falta de professores qualificados, de recursos e, principalmente, de alunos interessados. Comumente, as escolas ofereciam somente dois ou três anos de cur- so, muitas vezes de nível inferior ao secundário, uma vez que o ensi- no normal se propunha mais a ensinar o professor a saber se portar do que saber o que e como ensinar. Cabe salientarmos que o desin- teresse pelo preparo do mestre é compreensível em uma sociedade em que a educação elementar não era priorizada. Cynthia Greive Veiga (2007) lembra que houve um incentivo para a criação de aulas nas escolas normais integradas a instituições de abrigo de órfãos e meninas desvalidas, como no Seminário da Glória. Além disso, a crescente participação feminina na sociedade contribuiu Século XIX: a educação nacional 117 para o incremento das escolas normais que, com a difusão das teses higienistas, favoreceu a presença feminina no magistério. Segundo en- fatiza Tanuri (2000), paralelamente à valorização das escolas normais ocorreu também o enriquecimento de seu currículo e a ampliação dos requisitos para ingresso. Em relação à educação superior, o sonho alimentado pela eli- te nacional, desde a chegada da Família Real, recobrou ânimo em 1834. Por volta de 1835 surgiu a ideia de reunir no Rio de Janeiro as Faculdades de Direito e Medicina, complementadas por um curso de Matemática, e, assim, iniciar uma universidade. Com o desenvolvimento econômico, político e social do século XIX, a demanda por letrados aumentou. Desse modo, quando instalou-se a República no Brasil, a criação de uma universidade era uma urgência, contudo, ainda demorou para ser realizada. À parte das críticas recebidas nesse período e no posterior, cabe destacar que as faculdades foram importantes espaços de debate e difusão das ideias abolicionistas e republicanas. Durante todo o Império, o ensino superior ganhou mais densidade, mas o pano- rama não se alterou significativamente. Os exames para ingresso ao ensino superior eram rígidos e, a partir de 1837, os concluintes do ensino secundário do Colégio Pedro II passaram a ter privilégio de matrícula, sem exames em qualquer escola superior do Império (CUNHA, 2007). Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico Raízes do Brasil, censu- rou o “vício do bacharelismo” existente no país, apontando essa práti- ca como herança do acesso restrito a esse nível de ensino quando de sua implementação e expansão. O autor reconheceu nessa prática a tendência nacional para exaltar a personalidade individual como valor próprio, superior às contingências (HOLANDA, 1995). Em consonância com o que ocorria no período anterior, as mulhe- res viviam no período imperial em situação de dependência intelectual, portanto, tinham poucas chances de escolarização. Em famílias da elite, as meninas recebiam as primeiras noções de ler e escrever, mas se dedicavam mais às prendas domésticas e à formação moral e religiosa, necessárias ao casamento. Apenas em 1827 foram devidamente organizadas as aulas para me- ninas, embora ainda se justificasse que sua educação tinha por objetivo 118 História da Educação o melhor exercício das atividades domésticas e maternais que exerce- riam. Na década de 1880, o Colégio Pedro II admitiu algumas mulheres e, posteriormente, o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro inau- gurou cursos para moças. Com a criação da seção feminina na Escola Normal da Província, em 1875, as moças poderiam seguir na carreira do magistério. Todavia, dada a precariedade desses cursos, o resultado era ruim e insatisfatório. Apesar dessa subordinação, já no século XIX identificamos, espe- cialmente por meio da imprensa, iniciativas que preconizavam a par- ticipação social feminina, bem como o acesso aos cursos superiores (HAHNER,1996). De qualquer forma, as mulheres eram excluídas do en- sino superior, mesmo que se preparassem adequadamente em escolas particulares ou com preceptores, como era comum. Em 1879, a Reforma Leôncio de Carvalho estabeleceu regras para o ensino primário, secundário e superior, defendendo a liberdade de ensino, de frequência e de credo, a criação das escolas normais e o fim da proibição da matrícula de escravos. A instrução religiosa seria facul- tativa, os meninos poderiam ser matriculados nas escolas femininas. Em todas as escolas do primeiro grau do sexo masculino haveria cur- sos noturnos ou ensino primário. Pela reforma em questão, as escolas normais teriam prática do ensino intuitivo ou lições de coisas, além de prática do ensino primário geral. Jurista, diplomata, escritor e político, Ruy Barbosa promoveu uma verdadeira revolução na educação brasileira. F. Di az /W ik im ed ia C om m on s Figura 9 Ruy Barbosa Em substituição à reforma instituída por Leôncio de Carvalho, o parlamentar brasileiro Ruy Barbosa (1849-1923) apresentou, em 1882, dois pareceres so- bre a educação nacional para servirem de subsídio à discussão do projeto de Reforma do Ensino. Esses documentos podem ser considerados um projeto de reforma global da educação brasileira, compreen- dendo praticamente todos os aspectos da educação: filosofia, política, administração, didática, psicologia, educação comparada etc (MACHADO, 2005). Influenciado pelas ideias que logravam impor- tância à educação dentro da sociedade, o diplomata preconizou a reforma social pela reforma da educa- ção. Ele acreditava que a educação seria o caminho para o desenvolvimento do homem e o progresso do país (SOUZA, 2000). Século XIX: a educação nacional 119 Observamos que, assim como acontecia em outros países, no fim do século XIX, a escola popular, compreendida como instrumento de mo- dernização por excelência, era elevada à condição de salvadora da nação. Conforme aponta Souza (1998), nestes verdadeiros “templos de civiliza- ção”, que a modernização e a transformação do país seriam construídas. Por que nós podemos afirmar que ao final do Império o Brasil não dispunha de um sistema articulado de ensino? Atividade 3 6.4 Reflexões pedagógicas no final do século XIX Vídeo Diante de todos os problemas enfrentados pela educação brasilei- ra até então, alguns intelectuais – inspirados pelas ideias europeias e norte-americanas – buscavam, no final do século, novos rumos para a educação ao apresentar projetos de leis, criar escolas e promover acirrados debates com a sociedade. Intelectuais como Ruy Barbosa acreditavam que as transformações na educação eram capazes de possibilitar o atendimento às aspirações de modernidade, inclusive a da formação dos trabalhadores nacionais e estrangeiros. Todavia, es- sas manifestações eram ações isoladas e com poucos resultados positi- vos, pois a mentalidade agrária e escravocrata resistia às ideias liberais implantadas na Europa. Militar e professor, Benjamin Constant defendeu a educação pública e gratuita. Ar qu ivo N ac io na l/W ik im ed ia C om m on s Figura 10 Benjamin Constant Nesse período, a orientação positivista do ensino, cuja principal figura era Benjamin Constant (1836- 1891), intensificou a luta pela escola pública, leiga e gratuita, bem como o ensino das ciências, tão valo- rizado por essa corrente filosófica. Além dos méto- dos possíveis, eram discutidos assuntos diversos, por exemplo, higiene escolar, castigos corporais, atuação do Estado na educação, formação de professores, es- cola popular, entre outros. Nesse contexto, aparecem, como jáhavia ocorri- do na Europa e nos EUA, as pedagogias higienistas que criticavam as péssimas condições das moradias e dos demais prédios para a saúde da população em geral, assim como o mal causado às crianças pelas péssimas instalações escolares. Com essa pressão, criam-se os grupos escolares, concebidos e construídos como verdadeiros templos do saber. Esse modelo apontava para um futuro em 120 História da Educação que a república do povo, reconciliada com a nação, apresentaria uma pátria ordeira e progressista. Conforme destaca a professora Rosa Fátima de Souza (2000), as duas últimas décadas do Império foram um período de emergência de ideias, de expansão das filosofias cientificistas e liberais e, mais, de valorização da educação. Entre 1873 e 1888, realizaram-se no Rio de Ja- neiro as conferências pedagógicas, iniciativas que contaram com con- ferencistas ilustres, educadores, parlamentares e ministros os quais abordaram problemas da educação. Essa fermentação de ideias alimentou, durante algum tempo, as es- peranças de transformação da sociedade por meio de uma escola mais democrática, no espírito que mais tarde caracterizaria o otimismo da Escola Nova. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse capítulo, pudemos observar que no século XIX o Estado assu- miu mais responsabilidades em relação à escolarização, especialmente das crianças menores de 7 anos de idade, expandindo o número de es- colas e estruturando sistemas públicos de ensino. A educação elementar recebeu mais atenção, contrariando a tendência até então vigente, de va- lorização dos níveis secundário e superior. A atenção à criança, idealizada por Rousseau, fez crescer o interesse em aplicar a psicologia, que se estruturava nesse mesmo período no pro- cesso de ensino e aprendizagem. Ficaram claras as preocupações com os fins sociais da educação e a necessidade de preparar os jovens para a vida em sociedade. A relação entre educação e estabilidade, progresso e mudança, era expressa também no interesse pelo ensino técnico ou pela expansão das disciplinas científicas. Ao estruturar sistemas nacionais de ensino, os Estados demonstraram interesse em formar seus cidadãos. No Brasil, apesar da independência política, a educação presenciava uma alarmante contradição nos fins do século XIX: de um lado existia uma importante movimentação intelectual e política para a melhoria da qualidade pedagógica do ensino, de outro, as escolas públicas primárias funcionavam em condições precárias em grande parte do país. Em todo o período houve a iniciativa política de clelaborar leis, regulamentos e de- cretos para a normatização de procedimentos, contudo, sem alterar signi- ficativamente a realidade concreta do ensino nas escolas. Século XIX: a educação nacional 121 No final do século XIX, notamos o aparecimento de novos ares no quadro educacional, em razão do intenso debate sobre a educação. Entretanto, a situação do ensino continuava muito precária, sendo essa precariedade identificada, por exemplo, na difícil trajetória da escola nor- mal, com um sistema elitista e excludente em todos os níveis. REFERÊNCIAS ALMEIDA, J. R. P. de. 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O ensino mútuo na origem da primeira escola normal do Brasil. In: BASTOS, M. H. C.; FARIA FILHO, L. M. de (org.). A escola elementar: o método monitorial/mútuo. Passo Fundo: Ediupf, 1999. GABARITO 1. Pestalozzi é significativo para a história da educação, porque procurou colocar em prática as ideias apresentadas por Rousseau. Ele também foi um dos primeiros defensores da escola popular, por acreditar que a educação é o principal meio para a reforma social ao libertar o povo da miséria e da ignorância. 2. Para Herbart, o governo seria o controle da agitação infantil com o objetivo de submeter a criança às regras do mundo, o que favoreceria a instrução. Já a disciplina buscaria o amadurecimento moral e educaria as vontades. 3. Ao final do Império não existia, em nosso país, uma conexão entre a educação primária e o ensino secundário sem a necessidade de conclusão do primário para ingresso no secundário. O curso secundário era excludente e acessível a uma minoria, apesar da estruturação do Colégio Pedro II. Além disso, esse nível de ensino não possuía uma seriação ordenada, sendo formado por disciplinas avulsas direcionadas para os exames de ingresso aos cursos em escolas isoladas de nível superior, pois não existiam universidades. A educação na contemporaneidade 123 7 A educação na contemporaneidade O século XX foi, não apenas no Brasil, repleto de teorias, expe- riências e ações no campo educacional. Desde as primeiras déca- das, uma pedagogia científica se confrontou com novas propostas, consideradas não tradicionais, que pregavam como primordial a reconstrução social por intermédio da educação para a democra- cia. Esses modelos opositores à educação dita tradicional encon- traram respaldo teórico no socialismo, que ganhava força no início do século, e nas novas perspectivas de responsabilidade coletiva – traços do século XX. Paramuitos educadores e filósofos, era evidente a necessida- de de garantir o desenvolvimento tecnológico sem abandonar as questões sociais, redimensionando-o em termos mais humanos. O empirismo, o darwinismo social e o capitalismo levavam apenas à opressão do povo com o auxílio de um sistema educacional que mantinha o proletariado subjugado. No final desse século, várias forças – socialistas, religiosas e ético-científicas – se organizaram para sistematizar uma nova so- ciedade, na qual o processo educativo desempenhasse papel total- mente diverso daquele realizado no passado, lançando diferentes luzes para o século XXI. 7.1 Educação para a democracia Vídeo Conhecido como o século das técnicas, das crianças, dos deficien- tes, das mulheres e das massas, o século XX foi um período caracteri- zado pela busca pela dissolução das desigualdades sociais advindas do capitalismo. Desse modo, apesar das contradições, ocorreram ao lon- go do século diversos momentos de inovação na vida social, tanto em relação a aspectos político-econômicos quanto a aspectos culturais. Os 124 História da Educação choques entre potências imperialistas, as doutrinas totalitárias, a pre- sença do capital americano e a ascensão dos EUA foram, certamente, os grandes acontecimentos do século. Ocorreu também nesse período a solidificação dos espaços pri- vados, especialmente na esfera familiar, que se definiu como refe- rência na elaboração da identidade moral dos indivíduos e se tornou célula-base da sociedade que então se estruturava. O individualismo determinou o homem desse século, que rompeu com o passado e fo- cou no futuro com base na ideia de felicidade. Essa felicidade passou a ser aferida pelo consumo e pela acumulação de experiências, de bens e de relações (CAMBI, 1999). Com relação à educação, a escola sofreu processos de intensa e ra- dical transformação. Com a valorização iniciada no século anterior, a escola se colocou como instituição crucial da sociedade democrática e, se alimentando de um ideal libertário, deu vida às experimentações escolares e didáticas baseadas na criança, assim como em suas neces- sidades e em suas capacidades. Foi nesse período que houve a emer- gência da chamada Escola Nova (que surgiu em oposição a educação tradicional), o ativismo, o modelo totalitário de educação e o cresci- mento científico da pedagogia (CAMBI, 1999). O alicerce desse pensamento educacional inovador estava não ape- nas nas contribuições da psicologia, que vinham apontando a diver- sidade da psique infantil em relação à psique adulta, mas também no movimento de emancipação das massas, que procurava ressignificar o papel da escola e o seu aspecto educativo, rechaçando o seu aspecto elitista e excludente. As “escolas novas”, embora surjam como tentati- vas isoladas, conquistaram vasta ressonância no mundo pedagógico. A Escola Nova – ou movimento escolanovista, como ficou conheci- do graças à historiografia da educação brasileira – resultou diretamente de uma tentativa de superar a escola tradicional excessivamente rígida, pautada na memorização e que tinha o professor como detentor de verdades absolutas. Desde o início da Revolução Industrial, a burguesia exigia uma escola que se adequasse ao mundo prático em constante transformação. Diversos pensadores propuseram concepções renova- das de educação em oposição à pedagogia tradicional. Eventualmen- te, essa trajetória resultou no estabelecimento de linhas pedagógicas progressistas. A educação na contemporaneidade 125 Entre esses filósofos e educadores de visão reformista, Adolphe Ferrière (1879-1960) foi pioneiro da educação progressista e fundador do movimento da Escola Nova em 1921 (ARANHA, 2006). Afastando-se da proposta intelectualista e disciplinadora de Johann Herbart, o edu- cador suíço propunha que a criança tivesse liberdade para assimilar o conhecimento por meio da exploração e que desenvolvesse sua criati- vidade com base em atividades mais práticas e menos teóricas. M HM 55 /W ik im ed ia C om m on s Figura 1 Adolphe Ferrière Ferrière foi pioneiro no surgimento da educação progressista e fundador do movimento da Escola Nova. O movimento iniciado por Ferrière contribuiu para as reflexões sobre expansão do ensino por meio de métodos ativos e da ênfase nos processos do conhe- cimento, e não apenas no produto. Para a concreti- zação dessa nova proposta, as atividades deveriam ser focadas no aluno, para favorecer sua própria ini- ciativa. As escolas deveriam valorizar, ao contrário do que ocorria, a recreação, os jogos, os exercícios físi- cos, as práticas de desenvolvimento da motricidade e da curiosidade; o objetivo era aperfeiçoar as mais variadas habilidades dos alunos, e não apenas as intelectuais em detrimento das manuais. Além dis- so, incorporou-se as proposições da psicologia que orientavam a busca de métodos para estimular o interesse sem cercear a espontaneidade. O principal responsável pela expansão do ideário escolanovista foi o estadunidense John Dewey (1859-1952) – teórico que veremos em detalhe ainda neste capítulo. Contestando o que era classificado como ensino tradicional, a escola nesse se momento viu colocada no centro de uma ampla e acirrada discussão que interrogava sua adequação aos novos tempos e às no- vas realidades. A sala de aula com certeiras enfileiradas, lousa, giz e o professor expondo conteúdos herméticos não atendia mais às necessi- dades da sociedade, da ciência e da tecnologia do início de século. Para os idealizadores da Escola Nova, o aluno deveria ser o ponto de atenção, ou seja, deveria ser o principal sujeito do processo edu- cativo, cujos métodos, classificados como ativos por solicitarem a sua participação, seriam os mais adequados para o sucesso do processo. Os teóricos dessa vertente afirmavam que os alunos aprenderiam se fosse ensinado algo com significado para eles, satisfazendo suas curio- sidades e dúvidas. 126 História da Educação O aluno aprenderia de maneira mais rápida e significativa se apren- desse também fazendo, deixando de ser um mero ouvinte e repro- dutor de informações, isto é, participando ativamente por meio de experimentos e pesquisas. A busca por respostas para os problemas apresentados pelo professor deveriam ser ligados ao cotidiano dos alu- nos, construindo, desse modo, o próprio conhecimento. Em síntese, todos os programas de ensino deveriam ter como ponto de partida o contexto do mundo em que os alunos vivem para posteriormente se- rem trabalhados objetivos educacionais mais amplos. Da mesma forma que a psicologia, a sociologia instrumentalizou os pensadores do século XX para entender melhor a educação para o desenvolvimento da sociedade, quer para formar bons cidadãos e pre- pará-los para a participação produtiva nas atividades sociais, quer para discutir diferentes modos de recusa do conformismo. Daí o interesse não só pelo ensino técnico, mas pela educação para o trabalho. Assim como na psicologia, variou-se o uso que os educadores fizeram da sociologia, conforme se apoiaram e se apoiam na perspectiva positi- vista de Émile Durkheim, na dialética de Karl Marx, na teoria crítica dos pensadores da Escola de Frankfurt 1 , na linha crítico-reprodutivista 2 etc. (ARANHA, 2006). A pedagogia do século XX, além de ter importantes contribuições da psicologia, da sociologia e de outras ciências, como a economia, a linguística e a antropologia, destacou a exigência da inclusão da cul- tura científica como parte do conteúdo a ser ensinado. A Escola de Frankfurt é uma vertente filosófica alemã. Com a teoria crítica, ao longo do século XX, também contribuiu para a construção do campo temático da sociologia da educação, abordando as formas de controle e de dominação existentes na sociedade e as possibilidades de alternativas via cultura. 1 A teoria crítico-reprodutivista, que tem em Louis Althusser (1918-1990) um de seus principais representantes, indica que a educação reproduz a sociedade, asdiferenças sociais e o chamado status quo. 2 Pedagogo, filósofo e psicólogo, John Dewey é um dos maiores nomes da pedagogia contemporânea. Do nt wo rry /W ik im ed ia C om m on s Figura 2 John Dewey 7.1.1 John Dewey e a Escola Nova Respeitado como um dos mais importantes pedagogos es- tadunidenses, John Dewey (1859-1952) foi também filósofo e psicólogo e exerceu grande influência sobre toda a pedagogia contemporânea. Após ter estruturado uma escola-laboratório na Universidade de Chicago em 1905, Dewey se tornou professor na Universida- de de Columbia e no Teacher’s College, ambos em Nova Iorque, entrando em contato com um novo ambiente filosófico onde A educação na contemporaneidade 127 predominava a vertente chamada de realismo 3 . Segundo Pitombo (1974, p. 34), Dewey “teve [nesse novo ambiente] a concepção de uma teoria metafísica que se baseasse em princípios empiricamente verificáveis”. As preocupações com questões sociais e a confiança na solução democrática, iniciadas em Chicago, ampliaram-se em Nova Iorque e nas viagens realizadas nesse período. Dewey contribuiu efetivamente para a divulgação dos princípios da Escola Nova. Para tanto, fez críticas à educação tradicional, com ênfa- se na preponderância do intelectualismo e da memorização rejeitou a educação pela instrução (proposta por Herbart) e propôs, como contra- ponto, a educação ativa, ou seja, uma educação que favoreça a ação, tirando o aluno da passividade por meio da teoria do learning by doing (aprender fazendo, em tradução livre). Para Dewey, a finalidade da escola e da educação é oferecer con- dições para que o aluno solucione de maneira autônoma diferentes tipos de problema. O teórico conclui que a escola não pode ser uma preparação para a vida, mas sim a própria vida. Em consonância com as expectativas do século XX, a escola deveria preparar o aluno para a sociedade do desenvolvimento tecnológico e formar cidadãos para a convivência democrática. Dewey entendia que a criança deveria ser preparada para atuar na futura vida democrática e, para isso, deveria, desde o início de sua es- colarização, ser o centro das atividades desenvolvidas na escola, sen- do as suas curiosidades e necessidades (físicas, intelectuais e sociais) a motivação de toda a aprendizagem. A escola deveria, nessa perspecti- va, integrar-se à comunidade, pois os pequenos não poderiam perma- necer em uma instituição apartada da vida social. Nessa nova escola, o professor desempenharia um novo papel, deixando de ser a figura central e autoritária do processo de ensino e aprendizagem, transfor- mando-se em um guia que sistematiza e anima as atividades escolares, aquele que estimula a criatividade da criança. A proposta filosófica e pedagógica de Dewey é repleta de elementos inovadores e sua principal característica está na oposição sempre de- clarada à escola tradicional, bem como na estreita relação entre teoria e prática e na valorização das ciências experimentais, não apenas para fundamentar a psicologia infantil, mas também como conteúdo cogni- Realismo é uma vertente filosó- fica segundo a qual, do ponto de vista prático, deve-se reconhecer a existência dos fatos e agir em conformidade a estes. 3 128 História da Educação tivo importante para as atividades escolares. Dewey foi um dos primei- ros pensadores, desde Rousseau, que elaborou um ideal pedagógico pautado pela e na ação, afastando-se da instrução. Segundo Gadotti (2003, p. 143), o estudioso considerava que “a educação continuamente reconstruía a experiência concreta, ativa, produtiva, de cada um”. Embora afastado dos vínculos partidários, Dewey se pronunciava aber- tamente e denunciava o que considerava antiético e antidemocrático; por isso, pode ser considerado um intelectual engajado. O teórico desempe- nhou um papel notável como educador até a sua morte, em 1952, aos 92 anos, e influenciou significativamente também a educação brasileira. Para compreender o alcance das ideias de John Dewey em nosso país, leia o texto A receptividade e a difusão do pensamento de John Dewey no Brasil entre 1930 e 1960, de Samuel Mendonça e José Aguiar Nobre, publicado no periódico Espaço Pedagógico. Acesso em: 1 out. 2020. http://seer.upf.br/index.php/rep/article/view/10584/114115119 Artigo 7.2 Brasil: como o século XX chega à República Vídeo Com a chegada da República em 15 novembro de 1889, o Brasil en- trou em uma nova fase, contudo sem significativas mudanças políticas e econômicas. Ainda não estava claro para as forças políticas do país como seria o novo regime. Os positivistas, que em muitos momentos encabeçaram a defesa do republicanismo, pensavam na ditadura da ciência; alguns militares desejavam um governo exclusivamente mili- tar; os cafeicultores paulistas estavam enamorados pelo liberalismo político que emanava dos EUA e pelo darwinismo social, algo muito próximo do ditado “cada um por si e Deus para todos”. Os republicanos mais radicais concebiam um novo regime que faria com o Brasil o que a Revolução de 1789 tinha feito na França: estabelecer a igualdade e a liberdade e garantir direitos aos cidadãos. Entretanto, essas ideias, tão vivas nos momentos que antecederam o fim da monarquia, não foram colocadas em debate; assim, as ques- tões nacionais foram decididas autoritariamente. Sobressaíram-se as opiniões dos que tiveram mais força para impor sua vontade. As tropas foram mobilizadas, muitos foram presos, jornais, fechados, políticos, Como pode ser compreendida a relação entre o movimento escolanovista e a democracia? Justifique. Atividade 1 http://seer.upf.br/index.php/rep/article/view/10584/114115119 A educação na contemporaneidade 129 ameaçados e pessoas, assassinadas. Após essa turbulência, viu-se que o poder estava nas mãos dos grandes fazendeiros. 7.2.1 A educação no início do século XX no Brasil O final do século XIX impactou profundamente a sociedade brasi- leira, levando a reformulações nos mais diferentes níveis e a um repo- sicionamento dos principais atores na cena nacional. Na política, não foram menos intensas as mudanças. Ocorreram diversas reformas nos anos 1880, o que culminou na proclamação da República em 1889. No campo socioeconômico, o fim da escravidão exigiu adequações nas relações de trabalho e tratativas de inclusão dos libertos e dos novos trabalhadores que aqui chegavam com a imigração. Entretanto, o as- pecto que nos interessa mais proximamente se refere às relações que se estruturaram na área da educação. Como destaca Souza (2006), as duas últimas décadas do Império foram um período de efervescência de ideias, de difusão de filosofias cientificistas e liberais e, sobretudo, de valorização da educação e preo- cupação com a sua problemática. Entre 1873 e 1888, realizaram-se na cidade do Rio de Janeiro as Conferências Pedagógicas, iniciativas que contaram com conferencistas ilustres, educadores, parlamentares e ministros que abordaram problemas e soluções para a educação. A chegada de novas ideias, as influências do cientificismo dos par- tidários do positivismo e questões políticas ocasionaram uma ruptura também em relação à Igreja Católica. Logo após a proclamação da Repú- blica, o governo provisório determinou, entre outras coisas, a separação completa entre Estado e Igreja, a exclusão do ensino religioso nas esco- las públicas, a liberdade dos cultos, o casamento civil e a laicização dos cemitérios. A Igreja Católica se viu forçada a uma reação rápida, tanto pelo inusitado das iniciativas quanto pela necessidade de se posicionar nos novos tempos. A exclusão do ensino religioso representava a perda de espaço no campo educacional, principalmente entre as camadas mais populares, as quais não podiam frequentar as escolas vocacionais. Desde o final do Segundo Império e início do período republicano, o debate sobre as mudanças no campo da educação necessárias ao Brasil foi uma constante entre políticos e intelectuais. As discussões tiveram impactos especialmentenas reformas realizadas por Benjamin Constant nos anos 1890 (LOURENÇO FILHO, 1953), bem como nos 130 História da Educação movimentos denominados entusiasmo pela educação e otimismo peda- gógico, favoráveis à expansão educacional por meio da ampliação do acesso aos bancos escolares e da busca por métodos de ensino mais efetivos (VEIGA, 2007). Procurava-se elaborar uma resposta para os en- traves políticos, sociais e culturais da sociedade brasileira com projetos político-educativos que traziam em seu bojo concepções sobre o povo brasileiro; o desejo era de instaurar a modernidade, isto é, a “civilidade, a racionalidade” (NUNES, 2000, p. 11). Nesse contexto, os educadores passaram a ocupar lugar de desta- que, buscando legitimar a sua esfera de atuação com a valorização da escola e do ensino. Mesmo pertencentes a diferentes correntes ideo- lógicas, esses educadores começaram a partilhar a crença de que seria possível reformar a sociedade brasileira por intermédio do aprimora- mento do ensino, e atribuíram a si mesmos o papel de liderança moral, expressando os anseios, as intenções, as propostas e as intervenções sociais que vinham ocorrendo isoladamente (XAVIER, 1999). No Brasil, a escola discutida por esses educadores era a que, no- tadamente a partir da segunda década do século XX, mostrava pro- blemas urbanos como habitação precária e ausência de saneamento e empregos, bem como problemáticas étnicas e higiênicas. As esco- las deviam atender aos interesses dos governos municiais e estaduais para compor sistemas de ensinos, pois eram compreendidas como o local adequado para a formação do espírito moderno nas novas gera- ções (NUNES, 2007). Nesse sentido, a educação era elevada à posição de principal pro- blema brasileiro, mas ao mesmo tempo era compreendida como o caminho mais importante para a superação dos males do país e o pro- gresso. Na década de 1920, essa crença se fortaleceu e contribuiu para a estruturação, no ano de 1924, da Associação Brasileira de Educação (ABE), instituição que passou a ser, em grande medida, porta-voz desse problema, apesar de sua composição heterogênea. A ABE realizou as Conferências Nacionais de Educação, a partir de 1927, e foi determi- nante para a materialização das movimentações realizadas no âmbito dessa associação (VIEIRA, 2017). Nas discussões educacionais, apareceram como atores privilegiados e adversários os educadores comumente identificados pela historiogra- fia como escolanovistas e os chamados educadores católicos. Com o sur- gimento da ABE, acirrou-se o confronto entre esses atores, sobretudo A educação na contemporaneidade 131 em relação à feição assumida pela escola pública. Entrou em disputa, ao longo de todo o período, o princípio da laicidade, estabelecido a partir da Constituição de 1891. Esse fato, alimentado pela recente separação entre Igreja e Estado, confrontava-se com a longa tradição da presença do ensino religioso de base católica, produzindo a organização de um movimento católico que pretendia promover a reversão desse quadro. O grupo dos liberais ou renovadores da educação (inspirados pelas formulações de pensadores norte-americanos e europeus imbuídos de princípios de renovação pedagógica), que buscava preparar o aluno para a sociedade democrática, para a mudança, ganhou notoriedade no Brasil em fins do século XIX e início do XX, quando a questão da mo- dernização e da escolarização se fez presente. Os responsáveis pela difusão das ideias no Brasil, com destaque para Anísio Teixeira (1900-1971), Lourenço Filho (1897-1970) e Fernando de Azevedo (1894-1974), estudaram em instituições estrangeiras ou es- tudaram autores europeus e americanos vinculados ao movimento, os quais exaltavam em maior ou menor grau os seus ideais, como in- dividualidade e igualdade de oportunidades. Esses teóricos vislumbra- vam a democratização do ensino, a escola do trabalho, a psicologização e a administração pedagógicas dentro da escola, e propunham que o ensino elementar fosse público, gratuito e laico, assim como atribuíam ao Estado o papel de conduzir o processo de renovação educacional por eles proposto. Influenciados por teóricos estrangeiros, Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo idealizavam a democratização do ensino no Brasil. Ar qu ivo N ac io na l B ra si le iro /B ib lio te ca N ac io na l-H em er ot ec a Di gi ta l B ra si le ira / W ik im ed ia C om m on s Figura 3 Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo Fo nt e: Ine p, 20 20 . Ar qu ivo N ac io na l B ra si le iro /B ib lio te ca N ac io na l-H em er ot ec a Di gi ta l B ra si le ira /W ik im ed ia C om m on s 132 História da Educação Os adeptos do movimento renovador compreendiam a educação como fator de desenvolvimento dos indivíduos e de modernização da sociedade, o que favoreceu a inserção das ciências na educação. Na realidade, eles buscavam a implementação de meios que favoreces- sem o melhor aproveitamento das energias do indivíduo, integrando cada pessoa à função em que mais se mostrasse eficiente. Os teóricos do movimento renovador acreditavam que a filosofia, a psicologia, a biologia e a medicina, uma vez incorporadas ao trabalho das professoras primárias, desenvolveriam as mais altas prerrogati- vas humanas para que o indivíduo ocupasse o melhor lugar dentro do grupo social. Isso vinha ao encontro das necessidades econômicas do momento, ou seja, o desenvolvimento industrial que requeria mão de obra qualificada e ajustamento a um novo ambiente social. Por estarem em lugares de destaque dentro da administração públi- ca, os membros desse grupo foram responsáveis pela implementação de reformas da instrução pública em vários estados da jovem fede- ração. Em 1922, por exemplo, para realizar a reforma educacional no Ceará, Antônio de Sampaio Dória (1883-1964) indicou Lourenço Filho, cujo trabalho seguiu o padrão moderno de intervenção, com uma pes- quisa inicial da situação educacional do estado, levantando os recursos disponíveis e combatendo a resistência da população. Apesar do envolvimento dos renovadores no cenário educacional do período, é relevante frisar que, no Brasil, a denominação Escola Nova é geralmente utilizada para significar determinadas práticas discursivas e certas iniciativas de atuação no espaço escolar, deixando a impressão de que houve um movimento renovador homogêneo, composto por categorias cuja unificação é problemática (CARVALHO, 2006). 7.2.2 A Escola Nova no Brasil Entre as décadas de 1920 e 1930, as discussões sobre a educação, seus métodos e a sua expansão para a transformação do país se tor- naram mais presentes no Brasil. Liberais, conservadores, socialistas, anarquistas e militares procuravam materializar seus posicionamentos por meio da prática educacional. A ala conservadora era, em grande parte, representada pelos edu- cadores católicos, que defendiam a chamada pedagogia tradicional, pautada na teoria de Herbart. Os liberais, por outro lado, eram de- A educação na contemporaneidade 133 claradamente simpatizantes da Escola Nova e acreditavam que, para ocorrer a modificação da sociedade tão almejada naquele momento, seria necessário, primeiramente, o abandono da escola tradicional e intelectualista que até então predominava. Desejava-se a implemen- tação da escola única, obrigatória, gratuita e com novas metodologias amparadas no caráter científico dos conhecimentos da psicologia, da sociologia e da biologia. A Escola Nova estava em contraposição à escola denominada antiga, tradicional (VEIGA, 2007). Os simpatizantes da Escola Nova no Brasil ficaram conhecidos como educadores profissionais, em virtude das especializações de seus inte- resses educacionais e, também, porque muitos foram responsáveis pela produção de obras significativas para a educação brasileira, como Carneiro Leão (1887-1966) e Francisco Campos (1891-1968) e os já mencionados Lourenço Filho, AnísioTeixeira e Fernando de Azevedo. Diante as discussões arroladas pela introdução do pensamento escolanovista no Brasil, mesmo antes de esse ideário ficar conhecido, diversos estados tiveram significativas transformações na educação por meio de reformas apoiadas nas propostas desses educadores. Podemos citar as reformas ocorridas em 1923 no Ceará (idealizada por Lourenço Filho), em 1925 na Bahia (idealizada por Anísio Teixeira), em 1927 no estado de Minas Gerais (idealizada por Francisco Campos e Mário Casasanta), em 1928 no Distrito Federal 4 (idealizada por Fernando de Azevedo) e no mesmo ano em Pernambuco (idealizada por Carneiro Leão). Em 1932, intelectuais liderados pelos partidários da Escola Nova pu- blicaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. O documen- to foi assinado por 26 intelectuais e educadores, entre eles Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, defendendo abertamente a educação obrigatória, pública, gratuita e leiga como dever do Estado e implan- tada em todo o território nacional. Na realidade, um dos objetivos do Manifesto era eliminar o caráter discriminatório e antidemocrático da educação brasileira. Os signatários do Manifesto propunham uma es- cola secundária unitária, com uma base comum de cultura geral e de formação profissional, propósito que, infelizmente, não foi incorpora- do à Constituição de 1934. O documento apresentava ideias de clara inspiração deweyana, como a defesa de uma escola conectada ao meio social que resguar- Entre 1889 e 1960, o Distrito federal estava localizado na atual área da cidade do Rio de Janeiro. 4 134 História da Educação dasse as disposições naturais dos estudantes, uma pedagogia fun- damentada na atividade espontânea da criança que satisfizesse as necessidades individuais e sociais (CUNHA, 2002). Entre as preocupações do grupo, estava o fato de que mesmo após décadas da Proclamação da República ainda não tínhamos o Manifesto como um marco na educação brasileira, reiterando a necessidade de o Estado assumir a responsabilidade da educação, que se achava em defasagem com as exigências do desenvolvimento. Todavia, o grupo receava que o governo de Getúlio Vargas (1882-1954), embora pedisse diretrizes para a melhoria do ensino, já tivesse definido os parâmetros da reforma. A publicação nacional do documento exaltou ainda mais o confli- to entre educadores católicos e liberais. A defesa de uma escola pú- blica laica regida pelos princípios de obrigatoriedade, gratuidade e coeducação agravou a discussão teórica e política dos dois grupos; am- bos buscavam exibir validade e competência para conduzir o aparato educacional do país. Contudo, é importante destacar que, apesar da difusão do ideário escolanovista em nosso país, nem sempre foi possível a seus partidá- rios a plena aplicação; as experiências ficaram restritas a alguns locais. 7.2.3 O governo de Getúlio Vargas e a educação Como mencionamos, a partir da década de 1930 a educação des- pertou mais interesse dos brasileiros tanto pelos movimentos dos educadores de diversas correntes ideológicas quanto pelas iniciativas do governo. Em 1930, o governo provisório 5 de Getúlio Vargas criou o Ministério da Educação e Saúde Pública, nomeando Francisco Campos (1891-1968) para o cargo de ministro. Simpatizante da Escola Nova, Campos imprimiu uma orientação renovadora nos diversos decretos de 1931 e 1932, porém, por ser um conciliador, atendeu também aos interesses do governo e do grupo dos católicos, os quais não corres- pondiam diretamente aos anseios escolanovistas. Apesar do caráter conciliador, Francisco Campos conseguiu, pela primeira vez em nossa nação, orquestrar uma ação planejada que al- mejava à organização da educação nacional, já que as reformas dos anos 1920 ocorreram em nível estadual. Como Getúlio Vargas não ganhou as eleições presidenciais e chegou ao poder por meio de um golpe, até 1932 seu governo foi chamado de provisório. 5 A educação na contemporaneidade 135 Conhecida como Reforma Francisco Campos, a sistematização implantada pelo educador mineiro foi responsável pela organização do regime univer- sitário com a fundação de universidades, a criação do Conselho Nacional de Educação (CNE) e a criação do ensino secundário e do ensino comercial. O ensi- no secundário passou a ter dois ciclos: um de cinco anos e outro de dois. Apesar dos avanços significativos, a educação bá- sica ficou em segundo plano, o que gerou muita crí- tica, e representava, especialmente para o olhar dos escolanovistas, um grande entrave para a real demo- cratização do ensino. Além disso, a Constituição de 1934, embora tenha considerado algumas exigên- cias dos renovadores, não deixou de fora, em uma atitude conciliadora, os apelos dos representantes católicos ao instituir o ensino religioso facultativo e o reconhecimento dos efeitos civis para o casamento. Figura 4 Francisco Campos Simpatizante da Escola Nova, mas dotado de um caráter conciliador, Francisco Campos conseguiu algo inédito na história brasileira: a organização nacional da educação. Ca ss io S ab ac ão /W ik im ed ia C om m on s Embora os projetos relacionados à laicidade do ensino tenham sido derrotados no processo constituinte, os escolanovistas também incorporaram parte das suas propostas à Constituição. Aliás, desde o estabelecimento do Governo Provisório até a Constituição de 1934, conseguiram a criação do Ministério de Educação e Saúde Pública e do CNE e a reorganização dos ensinos secundário e superior, além da ins- tituição e criação de universidades. A Constituição adotou boa parte do ideário político educacional presente no Manifesto, consagrando todo um capítulo às questões educacionais. A grande conquista, contudo, foi da ala de educadores mais conservado- res, com a nomeação, em 1934, de Gustavo Capanema (1900-1985) para o Ministério da Educação. Essa estratégia, arquitetada pelos católicos, colocou Alceu Amoroso Lima (1893-1983) como mentor espiritual e intelectual do ministro e de toda a atividade educacional no país (SCHWARTZMAN, 1985). A Constituição de 1934, apesar de sua curta validade, mediou o em- bate incorporando os interesses dos católicos e donos de escolas pri- vadas, como a reivindicação quanto ao ensino religioso, e posições dos escolanovistas, como a de conferir à União a competência de traçar as diretrizes educacionais para o país. Para conhecer mais sobre Getúlio Vargas, importante figura para a história do Brasil, assista ao filme Getúlio. Com Tony Ramos no papel de Getúlio Vargas, essa produção nacional conta grande elenco. Direção: João Jardim. Brasil: Copacabana Filmes, 2014. Filme 136 História da Educação Os conflitos, contudo, não se encerraram nesse momento; eles to- maram formas distintas nas décadas seguintes. A influência da men- talidade conservadora continuaria com a instalação do Estado Novo, a elaboração do novo texto constitucional de 1937 e a presença do privatismo no setor educacional. Os católicos foram se adaptando aos constantes desafios representados, principalmente, pelo grande cres- cimento populacional. Com a imposição de uma nova forma de governo menos demo- crática – o Estado Novo –, o Ministro Gustavo Capanema realizou algumas reformas no ensino nacional regulamentadas por diversos decretos assinados entre 1942 e 1945, denominados Leis Orgânicas do Ensino. Por razões políticas e ideológicas, a influência do movi- mento renovador se fez pouco presente, favorecendo o planeja- mento escolar, além de proporcionar a previsão de recursos para implantar a reforma. Essas reformas, a despeito de restrições ideológicas, trouxeram al- gumas mudanças realmente significativas para a educação brasileira, como a criação do ensino supletivo de dois anos, a estruturação da car- reira docente com a regulamentação do curso de formação de profes- sores e a organização do curso secundário em quatro anos de ginásio e três anos de colegial, esse último dividido em clássico (humanidades)ou científico (VEIGA, 2007). Para o ministro de Getúlio Vargas, o ensino secundário deveria ser mais valorizado por ser fundamental para a preparação dos fu- turos cidadãos. Educar, durante boa parte do governo Vargas, foi interpretado como educar para a nação, influenciando um currí- culo de acentuado conteúdo humanístico, necessário para a pre- paração das individualidades condutoras do povo e da nação (VEIGA, 2007). Para compreender algumas interpretações culturais sobre o período Vargas, leia o texto Estado, cultura e identidade nacional no tempo de Vargas, de João Henrique Zanelatto. Acesso em: 13 out. 2020. http://periodicos.unesc.net/historia/article/view/418/427 Artigo http://periodicos.unesc.net/historia/article/view/418/427 A educação na contemporaneidade 137 7.2.4 Democracia, desenvolvimentismo e educação (1946-1964) Ao iniciarmos a discussão a respeito da educação e da escola no pe- ríodo do desenvolvimentismo nacional e no governo civil-militar, cabe destacar que essa época foi parte de um contexto econômico, social e político mais amplo e que se insere em um segundo ciclo do capitalis- mo monopolista (1930-1973). Após um longo período de crises sucessivas e que implicava, por um lado, na reorganização imperialista internacional e, por outro, na con- solidação e ampliação da revolução socialista, o mundo desembocou em um grave conflito internacional. A Segunda Guerra Mundial pro- vocou, além da destruição de forças produtivas, o desequilíbrio entre forças que se opunham no contexto internacional, o que forjou uma profunda mudança no quadro de relações políticas e econômicas inter- nacionais (LOMBARDI, 2014). Os Estados Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) surgiram como as duas grandes potências mundiais, alterando as relações e o mapa geopolítico internacional, já marcado pelo surgi- mento de novas nações (por exemplo, Israel) e organizações internacio- nais como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Essas instituições foram criadas para garantir a paz mundial e a cooperação entre países. O ciclo de desenvolvimento recebeu seu maior acréscimo com base no lançamento do Programa de Reconstrução da Europa (ERP), apre- sentado em 1947 pelo secretário de estado norte-americano George C. Marshall (1880-1959). Pautado na Doutrina Truman, que objetiva- va, entre outras coisas, impedir o avanço do comunismo, o plano fi- cou historicamente conhecido como Plano Marshall. Nesse contexto, os Estados Unidos passaram a intervir em regiões e países de todas as partes do mundo, bastando a justificativa de que a democracia estava sendo ameaçada pela expansão comunista, representada pela URSS. Nesse cenário, o Brasil acompanhou o acelerado processo de desen- volvimento econômico e a industrialização realizada sob as condições de mundialização de um capital monopólico e de controle crescente da economia mundial. Foram muitas e completas as mudanças da educa- ção nacional, notadamente após 1930, com o fim da chamada Repúbli- 138 História da Educação ca das Oligarquias, época conhecida como a alternância de poder entre os estados de São Paulo e Minas Gerais (MARCÍLIO, 2005). No período de 1946 a 1964, garantiu-se o direito constitucional à educação. Assim, foi elaborada e aprovada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1961) e se organizou um complexo pla- no estratégico de desenvolvimento educacional, científico, tecnológico e cultural. Com isso, redirecionou-se o papel de instituições educacio- nais, como o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), e criou-se novas instituições voltadas ao desen- volvimento científico e à formação de quadros para o ensino superior, como a Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Supe- rior (Capes) e o Conselho Federal de Educação (atualmente Conselho Nacional de Educação – CNE). Além disso, houve a realização de cam- panhas e movimentos voltados à alfabetização de adultos, à educação, à cultura popular etc. (MARCÍLIO, 2005). É importante ressaltar que essas ações e encaminhamentos expressavam a incor- poração das diretrizes estabelecidas pelos organismos multilaterais internacionais. Esse novo período democrático foi fortemente influenciado pela ideologia do desenvolvimento, implementadora do domínio norte-americano em todos os níveis da economia, da política, da cultu- ra, da segurança e da educação. Não é por outro motivo que o período que se abriu na história brasileira é usualmente chamado de desen- volvimentismo (ou nacional-desenvolvimentismo). Essa nomenclatura é adotada em razão da política econômica que prevaleceu entre o segun- do governo de Getúlio Vargas e a chegada dos militares ao governo, em especial na gestão de Juscelino Kubitschek (1902-1976). A concepção nacional-desenvolvimentista, expressa pela transi- ção do capital agrícola para o capital industrial, foi considerada por au- tores como Florestan Fernandes (1920-1995), Octávio Ianni (1926-2004), Caio Prado Jr. (1907-1990) e Francisco de Oliveira (1933-2019) a concre- tização do processo de industrialização. Esse processo foi fundamenta- do na ideologia da burguesia industrial em ascensão, a qual estendeu seu poder econômico para o campo político, tomando o desenvolvi- mentismo como princípio capaz de equilibrar desigualdades econômi- cas, sociais e culturais. Por que podemos afirmar que a situação educacional brasileira sofreu mudanças significativas com o processo industrializa- ção nacional? Justifique sua resposta. Atividade 2 A educação na contemporaneidade 139 Foi nesse contexto que, nos anos 1950, estruturou-se a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), propagadora da ver- tente chamada teoria do desenvolvimento. A contribuição da Cepal ocor- reu em razão da proposta de uma industrialização latino-americana como caminho para a superação do atraso e do subdesenvolvimento do continente. A Comissão propunha uma industrialização aliada ao crescimento econômico sustentável e melhor distribuição de renda. Entre as estratégias de desenvolvimento então apresentadas, a educação deveria exercer um papel essencial. Assim, também no campo educacional, a visão de planejamento para todos os setores da vida social, da economia à assistência, passou a ser recomendada pelos organismos internacionais. Alguns intelectuais com trânsito nos Estados Unidos e em organismos internacionais – como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) – passaram a ter crescente im- portância. Por exemplo, no governo do militar Eurico Gaspar Dutra (1883- 1974), ocorrido entre os anos de 1946 e 1951, intelectuais cuja bandeira era a educação, como Lourenço Filho e Anísio Teixeira, atuaram como as- sessores de primeira linha para questões educacionais (MARCÍLIO, 2005). Foi diante desse quadro de reorganização política e institucional que, em 1946, uma nova Constituição foi aprovada. Para Romanelli (2007), a nova Constituição expressava o espírito liberal e democráti- co e estipulava que a União deveria legislar sobre as diretrizes e ba- ses da educação nacional. Assim, o então ministro do governo Dutra, Clemente Mariani (1900-1981), nomeou uma comissão de “eminentes educadores” para estudar e propor um anteprojeto de reforma. Após longos e exaustivos debates, o principal benefício que a le- gislação educacional acabou trazendo foi respaldar uma perspectiva conservadora da educação, caracterizada pela contraditória defesa de posições aparentemente antagônicas entre uma educação pública (mais propriamente estatal) e a escola privada (BUFFA; NOSELLA, 1997). A primeira LDB atendia, portanto, mais a interesses de ordem política do que a interesses sociais (ROMANELLI, 2007). Cabe destacar que a educação nacional não foi tratada de modo idêntico ao longo do período do nacional-desenvolvimentismo. Por um lado, ainda era latente a ideologiaestadonovista, fortemente articula- dora do populismo. Por outro, havia a ideologia liberal e escolanovista, que retornou as discussões dos anos 1930 e apontou a educação como fundamental a um projeto de reconstrução nacional (GANDINI, 1995). 140 História da Educação Slobodan Dim itrov/W ikim edia Com m ons Considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial, Paulo Freire é o patrono da educação brasileira. Figura 5 Paulo Freire Em 1959, os educadores progressistas e o jornal O Estado de S. Paulo desencadearam a Campanha de Defesa da Escola Pública, sendo divul- gado no jornal o Manifesto dos Educadores Mais Uma vez Convoca- dos, o qual recorria e revisava as ideias presentes no Manifesto de 1932. surgiu a principal proposta pedagógica libertadora no Brasil, confor- mada pelo educador Paulo Freire (1921-1997). Articulando pressupos- tos fenomenológicos, políticos, cristãos e marxistas, Freire se firmou como um pensador que é referência de uma pedagogia progressista e de esquerda. O sucesso do método de alfabetização elaborado pelo professor Paulo Freire no Nordeste fez com que o Presidente da República João Goulart (1919-1976) estabelecesse, no início de 1964, o Plano Nacional de Alfabetização, coordenado pelo educador pernambucano com o ob- jetivo de alfabetizar mais de dois milhões de jovens e adultos. Ao lado do Movimento de Cultura Popular (MCP), liderado por Freire, coexistiram com relevância o Centro Populares de Cultura (CPC) e os Movimentos de Educação de Base (MEB). Todavia, com a chegada dos militares ao governo, todos os trabalhos desses programas foram interrompidos e substituídos por iniciativas conservadoras e assisten- cialistas. Nesse contexto, surge o Movimento Brasileiro de Alfabetiza- ção (Mobral), em 1967, e o ensino supletivo, em 1971 (VEIGA, 2007). Para entender como ocorreu a expansão da alfabetização por meio da proposta de Paulo Freire, assista ao vídeo Al- fabetização em Angicos: a pedagogia de Paulo Freire, publicado pelo canal Sala de Notícias. Disponível em: https://youtu.be/ ENks3CJeJ5E. Acesso em: 13 out. 2020. Vídeo Adiante, o desalento causado pelo longo percur- so da LDB de 1961 e a falta de correspondência no campo da educação do sucesso desenvolvimentista que se desenhou para a indústria favoreceu o apa- recimento de movimentos de educação popular, que, expressando a mobilização das massas, foram defendidos por campanhas e programas de cultura e de educação popular. Esses movimentos, além de mostrarem a falta de abrangência da educação nacional, espelhavam a ebulição ideológica daquele momento e estavam empenhados não apenas na alfabetização, mas tam- bém no enriquecimento cultural e na conscientiza- ção política do povo. Com composição ideológica diversificada e influências de liberais progressistas, social-democratas, socialistas, comunistas e da es- querda cristã, foi no interior desses movimentos que https://youtu.be/ENks3CJeJ5E https://youtu.be/ENks3CJeJ5E A educação na contemporaneidade 141 Talvez um aspecto marcante do período que antecedeu 1964 seja justamente o entrelaçamento entre o cultural e o educacional. Em ou- tras palavras, os movimentos culturais adquiriram certo sentido peda- gógico; afinal, não podemos esquecer que na esfera cultural esses anos também foram de grande agitação e repletos de grandes realizações no campo da música, do teatro e do cinema (RIDENTI, 2000). 7.2.5 Educação e governo civil-militar Os acontecimentos políticos que culminaram com a tomada do go- vernos pelos militares em 1964 são conhecidos e servem de pano de fundo para o entendimento da história da educação no período. Nesse sentido, convém lembrar que desde o governo de Juscelino Kubitschek, no período entre 1956 e 1961, o desenvolvimento se tornou a palavra de ordem. O ideal de modernidade foi consolidado com a construção de Brasília, inaugurada em 21 de abril de 1960, e com a introdução da indústria automobilística no país. Concomitantemente, a Revolução Cubana de 1959 reforçou o olhar cauteloso dos Estados Unidos para a América Latina, o que contribuiu para que o governo criasse, em 1961, a Aliança para o Progresso, um instrumento de combate ao comunismo. Para executar esse programa, foi fundada em 1961 a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvi- mento Internacional (USAID). É importante ressaltar que os militares estabeleceram diversos acor- dos de cooperação entre o MEC e a USAID com o objetivo de reformar a educação brasileira. Esses acordos, com evidente caráter ideológico, entregavam-se à influência norte-americana não somente em relação ao treinamento dos professores e administradores educacionais bra- sileiros, mas também no que diz respeito ao controle do conteúdo do que deveria ser ensinado pelo intermédio de programas que previam a publicação de livros didáticos e técnicos. Esse posicionamento revelou o anseio de uma educação predomi- nantemente “técnica”, que seria equacionada por meio de medidas burocráticas, despolitizadas e sob a orientação de tecnocratas. O tecni- cismo, que passou a prevalecer nas questões educacionais brasileiras, estava pautado em uma concepção de mundo que considerava os alu- nos como capital, o qual deveria ser treinado para garantir o almejado desenvolvimento econômico do país. 142 História da Educação A parceria firmada procurava garantir aos alunos brasileiros uma instrução baseada nos moldes da educação norte-americana, cujo re- sultado era, na verdade, um sistema educacional tecnicista, excludente e sem nenhuma atenção à educação básica pública. Tratava-se de uma política que não favorecia o desenvolvimento do senso crítico dos estu- dantes, e menos ainda um entendimento real do seu quadro social; ao contrário, favorecia o sentimento involuntário de individualismo, mani- festado por meio da competitividade gerada pelo sistema, uma vez que as teorias reprodutivistas propagavam a ideia de uma escola que fosse o reflexo da sociedade capitalista. Ao mesmo tempo, o ano de 1968 foi palco de uma grande reforma universitária no Brasil. Consolidada com a Lei n. 5.540, além de refor- mular a educação superior no país, essa reforma visava minimizar as possibilidades de protesto. A reforma universitária foi responsável pela estruturação geral que ainda hoje o ensino superior no Brasil apresenta, com a departamen- talização, a matrícula por disciplinas, o regime de créditos, o acesso ao ensino superior por meio do vestibular unificado e classificatório, a criação da carreira docente incluindo a dedicação exclusiva ao ma- gistério, uma nova política de pós-graduação e a indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão. Ainda em 1967, foi criado o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabe- tização), que se destinava à alfabetização de jovens e adultos, mas sem o conteúdo político e cultural dos movimentos da década de 1950 e início da década de 1960. Foi uma tentativa de reduzir drasticamente os índices de analfabetismo do país sob o impulso da ideia de alfabetização funcional. O desenvolvimento econômico determinou um aumento da deman- da por educação. Como ocorrera em outros momentos da República, novamente lançou-se mão do instrumento utilizado pelos governos para promover mudanças educacionais no país, a legislação. Em função des- se contexto é que foi aprovada a Lei da Reforma do Ensino de 1º e 2º Graus – Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971 –, que, ao contrário do que afirmam alguns manuais didáticos, não foi uma Lei de Diretrizes e Bases (LDB), apesar das inúmeras mudanças sancionadas (ARANHA, 2006). Com relação à formação de professores, o sistema tratou de distan- ciar cada vez mais “o profissional” da realidade que enfrentaria após sair da graduação. Havia, dentro dos próprios centros de formação su- A educação na contemporaneidade 143 perior e universidades, uma importância maior nas produções frutos de pesquisas científicas do que na formação pedagógica do professor (FONSECA,2015). Nesse sentido, predominou o modelo que combina- va licenciaturas curtas e plenas de um lado e o bacharelado de outro, o que geravam dicotomias como: conhecimentos específicos da discipli- na x conhecimentos pedagógicos; preparação para o ensino x prepara- ção para a pesquisa; conhecimentos teóricos x prática. Além disso, atendendo às novas exigências do capitalismo indus- trial, a legislação estabeleceu que todos deveriam escolher um cur- so profissionalizante para cursar concomitante ao segundo grau, em uma relação direta da política educacional com a produção capitalista. Cunha e Góes (1989) consideram que a política educacional do Gover- no Federal se caracterizou por um processo de contenção no ensino de segundo grau e no ensino superior, e por um processo de liberação no âmbito do ensino de segundo grau. No âmbito do ensino do en- tão segundo grau, as principais medidas propostas tenderam a frear a demanda crescente pelo ensino superior. Os formuladores da política educacional temiam que caso a expansão não fosse contida, criaria um exército de desempregados de nível superior. Logo, a solução proposta foi a profissionalização do ensino médio. Com as reformas, ficou expresso o esforço por parte do Estado em submeter o sistema educacional a uma progressiva desvalorização. A Lei n. 5.692/1971, da mesma forma que a reforma universitária de 1968, representava a materialização dos objetivos da elite econômica e polí- tica em colocar a educação brasileira completamente sob os seus do- mínios, inserindo-a em uma política cada vez mais rígida e burocrática. Na prática, os grandes prejudicados foram os estudantes das esco- las públicas de segundo grau, que passaram a frequentar cursos des- providos de planejamento e instrumentos de qualificação técnica e de conteúdos de educação geral que, aliás, continuavam a ser cobrados nos vestibulares. Os cursos eram, na realidade, cópias de cursos técni- cos que não preparavam nem para o acesso ao ensino superior e nem para o mercado de trabalho. A situação se tornou insustentável e, em 1982, já no governo do Ge- neral João Batista Figueiredo (1918-1999), a Lei n. 5.692 foi reformada pela Lei n. 7.044, eliminando o ensino de segundo grau compulsoria- mente profissionalizante. Era o reconhecimento tardio de que as mu- 144 História da Educação danças propostas para o ensino de segundo grau não estavam dando bons resultados. De maneira quase unânime, avalia-se negativamente a atuação do governo civil-militar para a educação. Contudo, não é possível negar que houve a expansão da escola pública. Paradoxalmente, durante esse período, a escola pública expandiu sua abrangência, especialmente em virtude da própria base produtiva do modelo econômico instaurado, que exigia um mínimo de escolari- dade para que o país ingressasse na fase do Brasil potência, conforme veiculavam alguns slogans. Infelizmente, o crescimento quantitativo não foi acompanhado pelo qualitativo. Esse descompasso entre expansão e qualidade favoreceu a privatiza- ção crescente do ensino, com a criação quase indiscriminada de cursos superiores de baixa qualidade, a persistência dos elevados índices de analfabetismo, a diminuição relativa dos recursos aplicados à educação, a decadência da profissão docente com os salários aviltados e a formação inadequada, comprometendo ainda mais a qualidade da educação pública. 7.3 Redemocratização e novo panorama educacional Vídeo A reforma da LDB de 1971, que com a edição da Lei n. 7.044 (BRASIL, 1982) deixou de obrigar a profissionalização compulsória no ensino de segundo grau (atual ensino médio), mostrava o fracasso assumido do governo com a tentativa de tornar o ensino médio profissionalizante. Os números da educação deixavam muito a desejar, com um alto índi- ce de analfabetismo e inexpressiva tentativa de universalização do ensino de primeiro grau (atual ensino fundamental). No âmbito curricular, o Con- selho Federal de Educação repensava a disciplina de Estudos Sociais – que substituiu as disciplinas de História e Geografia, Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil (OSPB) – e a possibilidade de a disciplina de Filosofia voltar a integrar o currículo escolar (ARANHA, 2006). Com a redemocratização, a partir de 1985, a questão da escola pública entrou novamente em pauta e ocupou lugar importante nas discussões da Assembleia Constituinte de 1987-1988. Eram grandes os anseios de diferentes setores quanto aos rumos necessários para a educação nacional. A educação na contemporaneidade 145 O ensino seria, ao menos ideologicamente, ajuizado como uma peça essencial das reformas, e também seria basilar para a formação de um cidadão ciente, para a dinâmica do estado democrático e para sua pre- servação, valorizando o caráter plural, complexo e livre de cidadania. Símbolo da redemocratização, a Constituição Federal de 1988 é considerada um marco da defesa da democracia e da garantia de direitos fundamentais. Ed er P or to /W ik im ed ia C om m on s O Congresso Nacional foi palco de um embate inédito, e, apesar da forte presença conservadora da elite brasileira, a constituinte mostrou uma profunda polarização ideológica. Assim, os intensos embates não permitiram que a Constituição (BRASIL, 1988) as- sumisse uma ideologia única, o que repercutiria no texto final. Como não poderia deixar de ser, no campo da educação também ocorreram muitos avanços. O texto constitucional (BRASIL, 1988) estabeleceu, em seu artigo 22, que continuaria sendo competência privativa da União legislar em matéria de diretrizes e bases da educação nacional. Os principais disposi- tivos relacionados à educação integram o capítulo III (artigos 205 a 214), que expressa que a educação é vista como um direito de todos, dever do Estado e da família, devendo ainda contar com a colaboração de toda a sociedade (art. 205). As inovações mais importantes, contudo, foram o estabelecimento do acesso ao ensino público obrigatório e gratuito como direito público subjetivo, o que importa responsabilidade da autoridade pública caso o mesmo não seja oferecido, ou seja, irregular a sua oferta (art. 208, § 1º e 2º). O financiamento da educação passa a figurar como obrigação da União, que, a partir de então, deve investir anualmente na área nunca menos que 18% da receita resultante dos impostos, e os estados e mu- nicípios nunca menos que 25% (FÁVERO, 2005). O artigo 210 (BRASIL, 1988) estabelece a obrigatoriedade da fixação de conteúdos mínimos, em âmbito nacional, para o ensino fundamen- tal, tendo em vista o respeito aos valores nacionais e regionais, o que, como veremos, será referendado pelos Parâmetros Curriculares Nacio- nais (PCN). A Constituição de 1988 mantinha, como verificamos, a competência da União para a aprovação pelo Congresso Nacional das Diretrizes e 146 História da Educação Bases para a Educação Nacional. Assim, em uma iniciativa da Câmara Federal, por meio do anteprojeto apresentado em dezembro de 1988 pelo então deputado federal Octávio Elísio (PMDB-MG), ex-secretário da Educação durante o governo Tancredo Neves (1910-1985), ocorrido entre os anos de 1983 e 1987, teve início as discussões a respeito da nova lei da educação. Ao todo, o anteprojeto contempla 83 artigos distribuídos em 10 tí- tulos. O título mais desenvolvido é o que trata da questão do finan- ciamento da educação (artigos 58 a 77), o que demonstra o esforço do legislador em prover os recursos necessários para que a lei seja cumprida, bem como que essa obrigação não fique “apenas no papel”, como já ocorrera no passado. Em março de 1989, o deputado Ubiratan Aguiar, então presidente da Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara Federal, es- truturou um grupo de trabalho para discutir as proposições da nova LDB sob a coordenação do deputado Florestan Fernandes, tendo como relator o deputado Jorge Hage (VEIGA, 2007). Ao projeto original, foram anexados sete projetos completos e mais17 que cuidavam de aspectos específicos correlacionados, de algum modo, com a LDB, além de 978 emendas de parlamentares (SAVIANI, 2006). Em 1990, o plenário da Comissão de Educação aprovava o pare- cer do relator Jorge Hage, resultando em um projeto que deveria ir ao plenário da Câmara Federal com 172 artigos. Tratava-se, na verdade, de um texto extremamente detalhista e, em muitos dos seus aspectos, de difícil realização. A partir de 1991, os defensores da escola pública enfrentam difi- culdades para assegurar seus pontos de vista nas discussões, uma vez que a bancada que defendia esses princípios se encontra desfalcada de importantes parlamentares, que não conseguiram se reeleger nas eleições de 1990. Em reação, a partir de 1991, os defensores do ensi- no privado realizaram uma manobra regimental, visando colocar em votação nessa comissão o parecer do relator Edevaldo Alves da Silva, amplamente favorável aos interesses das escolas privadas. De fato, tra- tava-se de um novo projeto de LDB; todavia, graças à mobilização do Fórum em Defesa da Escola Pública na LDB, a manobra não logrou êxi- to, e já tramitava no Senado Federal um anteprojeto apresentado em 1992, de autoria do Senador Darcy Ribeiro (SAVIANI, 2006). A educação na contemporaneidade 147 Após longas discussões e acordos que foram coordenados pelos de- putados Ubiratan Aguiar e Roberto Freire, a Câmara Federal aprovou o projeto substitutivo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Nesse substitutivo, foi excluído o Sistema Nacional de Educação, embora boa parte do conteúdo desse título tenha sido preservada sob a denominação de Da Organização da Educação Nacional. A partir desse momento, o projeto foi direcionado para apreciação do Senado Federal, permanecendo em discussão até fevereiro de 1995. O relator, Senador Cid Saboia de Carvalho, promoveu várias audiências públicas e incorporou alguns dispositivos da proposta apresentada por Darcy Ribeiro (SAVIANI, 2006). Em novembro 1994, a Comissão de Educação do Senado Federal aprovou o substitutivo e o enviou ao plenário do Senado, com indicativo de que seria aprovado. Mas, a partir de fevereiro de 1995, o governo seria outro, e também outra seria a composição do Congresso Nacional. O novo ministro da Educação, Paulo Renato Souza, manifestou publicamente a sua posição contrária ao substitutivo do Senador Cid Saboia. No Senado, Beni Veras solicitou que o projeto de LDB retornas- se à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Nessa comissão, a relatoria foi entregue ao Senador Darcy Ribeiro. Estava consumado o golpe contra o projeto que já havia sido anteriormente aprovado na Comissão de Educação do Senado Federal. Em seu parecer, Darcy Ribeiro alegava que o projeto da Câmara, na sua maior parte, era inconstitucional. Tanto o senador quanto o Minis- tério da Educação (MEC) ressaltavam que nos termos em que o projeto colocava a atuação do Conselho Nacional de Educação se configurava um cerceamento da ação do Poder Executivo. Em fevereiro de 1996, o parecer foi aprovado pelo plenário do Senado Federal, mantendo a espinha dorsal da primeira versão apresentada por Darcy Ribeiro, en- tretanto com algumas concessões ao projeto da Câmara dos Deputa- dos. Aprovado no Senado, o projeto retornou à Câmara na forma do substitutivo de Darcy Ribeiro, tendo sido designado relator o Deputado José Jorge, que não alterou substancialmente o substitutivo. Apesar do período de discussão e das idas e vindas, a nova LDB (Lei n. 9.394, de 1996) foi inovadora em inúmeros pontos, pois estabele- ceu uma efetiva coordenação do MEC, criando, desse modo, condições para o desenvolvimento de uma política para o setor da educação em âmbito nacional. 148 História da Educação O artigo 9º da LDB atribui à União a responsabilidade pela elabora- ção de um Plano Nacional de Educação, aliás, já aprovado e em vigor desde 2001. Atribui, também, à União, em colaboração com os entes fe- derativos, a responsabilidade pela elaboração de diretrizes para a edu- cação básica (educação infantil, ensino fundamental e médio), as quais norteiam os currículos e seus conteúdos mínimos para assegurar for- mação básica comum. Especificamente quanto à educação básica, a LDB contempla alguns princípios que flexibilizam a organização dos estudos escolares, o que possibilita a diversidade na construção dos espaços e dos tempos es- colares e, assim, propicia condições para o exercício de uma autonomia por parte das escolas. Pela primeira vez, estabelece-se, como desejava Anísio Teixeira des- de a década de 1950, a criação de um processo nacional de avaliação do rendimento escolar tanto na educação básica quanto no ensino su- perior. Nessa mesma linha, prevê-se também o estabelecimento de um processo nacional de avaliação das instituições de ensino superior. Apesar de não ter atendido a todas as expectativas, especialmente em relação à educação pública, essa foi a lei que conseguimos aprovar, sobretudo se considerarmos o conservadorismo que ainda permeia o Poder Legislativo. Muito ainda precisa ser discutido a respeito da lei e de seus complementos, contudo o que vale ser ressaltado é o impor- tante passo que foi dado rumo à democratização do ensino após anos de negligência. De acordo com Saviani 2006, p. 238), “com ela nos em- penharemos em construir uma nova relação hegemônica que viabilize as transformações indispensáveis para adequar a educação às necessi- dades e aspirações da população brasileira”. 7.4 Século XXI: desafios da educação Vídeo O que podemos esperar da educação para as próximas décadas do século XXI? Como analisamos, jamais tivemos um momento realmente favorável para a concretização de um modelo educacional abrangente. As tradições escolares, cujas características ainda são visíveis nos currícu- los contemporâneos, valorizavam os modelos herdados de uma instru- ção elitista, enquanto as políticas de Estado buscavam ampliar o acesso à educação, difundindo-a para toda a sociedade. Séries de reformas e desvios de foco procuraram priorizar ora uma escola intelectualista, ora Ao analisar a tramitação que cul- minou na aprovação da LDB em 1996, cujo principal destaque está na polêmica entre o projeto apresentado por Jorge Hage e aquele aprovado por Darcy Ribeiro, qual a principal perda do texto aprovado em relação ao texto inicial? Justifique. Atividade 3 A educação na contemporaneidade 149 a formação profissional, ora a formação humana. Como resultado, a educação brasileira ainda se colide para decidir qual é sua prioridade. Outro ponto que deve ainda ser desenvolvido é a formação de professores. A política educacional brasileira tem levantado questio- namentos sobre a concepção de conhecimento escolar e sobre o papel dos professores no atual modelo pedagógico em que os métodos de ensino tendem a uma submissão tecnológica controlada pelas mídias. Adiante, vemos que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018) aponta para a modernização de conteúdos e métodos, tendo como premissa as novas vivências da geração das mídias e do indivi- dualismo do jovem cidadão brasileiro. Diversas circunstâncias fazem o exercício do magistério ser um desafio no Brasil. Go ro de nk of f/ Sh ut te rs to ck Em 2009, foi criado o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação (PARFOR) e implantado em regime de colaboração entre Capes, entes federados e Instituições de Educação Superior (IES), cujo principal objetivo é oferecer cursos superiores a professores que não possuem formação adequada e estão em exercício nas escolas públi- cas (GATTI; BARRETO; ANDRÉ, 2011). A política do Plano Nacional de Educação (PNE) tem como meta as- segurar que os profissionais da educação escolar tenham sua remu- neração equiparada com a dos demais profissionais com escolaridade equivalente. Nota-se, desse modo, que se requer mais ações pautadas na luta pela melhoria dos salários e das condições de trabalho para que esses profissionaisvenham a ser valorizados. Nesse sentido, há muito pelo que lutar, pois a desvalorização do trabalho dos professores, bem como a desvalorização de suas contri- 150 História da Educação buições para o desenvolvimento cultural e social, é latente. Não é de assustar, portanto, que os docentes sofram um desencanto que os fa- çam migrar para outras profissões e seja pequeno o percentual dos estudantes que queiram seguir a carreira do magistério. Nas últimas décadas, nenhuma profissão foi tão discutida como o magistério: ela está no bojo dos principais eventos e publicações da área de educação, sejam nacionais ou internacionais; trata-se de um tema intensamente abordado dado a sua relevância. Um número signi- ficativo de trabalhos, documentos, planos, diretrizes e produções têm sido elaborados com o objetivo de se repensar e ressignificar a atuação do professor, não apenas em nosso país. Nesse sentido, é preciso repensar modelos formativos de profes- sores que atendam às necessidades da sociedade; há uma lacuna en- tre o perfil de professor de que a realidade precisa e o que se forma. A dicotomia entre teoria e prática, currículos estanques e a não relação entre as disciplinas tornam os cursos de formação pouco eficientes, o que faz o professor ter mais dificuldades no exercício de sua profissão. As transformações que ocorreram na sociedade e, consequente- mente, no campo educacional afetaram diretamente o exercício do pro- fissional docente. É impossível pensar no professor dos tempos atuais sem estabelecer uma relação com as práticas passadas. O modelo de professor pretendido hoje é fruto da necessidade de uma educação de qualidade e especialmente de uma educação que tenha respostas a todos os problemas vivenciados pela sociedade contemporânea. Atualmente, o ato de educar ultrapassou o processo de meramente instruir. O trabalho docente deixou de ser operacional e passou a zelar pela formação integral dos educandos. Por essa razão, deve pressupor uma educação crítica, intercultural e comprometida com a transforma- ção da sociedade (CANDAU; SACAVINO, 2015). As resultantes dessa nova proposta ainda estão em maturação e só o tempo irá permitir uma análise mais aprofundada de seus efeitos. Ain- da há controvérsias em torno das atribuições mais importantes e das propostas de trabalho oferecidas, revelando as crises de identidade que tanto afligiram a educação brasileira e que ainda não foram superadas. Finalmente, é imprescindível destacarmos que a construção histó- rica da nossa educação escolar não foi uma obra monolítica, e sim o resultado das medições de forças das diferentes correntes. O modelo A educação na contemporaneidade 151 educacional implantado ou em implantação não surge pronto e acaba- do, é fruto da ação de indivíduos historicamente posicionados. A exis- tência de diferentes discursos sobre o sistema educacional representa igualmente diferentes projetos de classes ou frações de classes. Observamos na configuração da escola pública brasileira, por con- seguinte, que diferentes grupos elaboraram seus respectivos discursos em consonância com seus interesses de classe, procurando associar seus objetivos aos interesses de todo o “povo brasileiro”, como se fos- sem, em todos os aspectos, um só. Além disso, é fato que os governos que sucederam aos arbítrios do governo militar também não solucionaram a questão da universaliza- ção da escola pública, tarefa realizada pela maioria dos países ociden- tais na passagem do século XIX para o XX. O Brasil ingressou no século XXI com a triste herança do analfabetismo. A democracia brasileira continuará carente de conteúdo social enquan- to o desafio de se configurar uma escola pública e de qualidade não for cumprido. Uma população letrada e uma escola básica que cumpra a sua função de proporcionar aprendizagem e formação crítica são requisitos indispensáveis para a real participação na vida nacional, estabelecendo a relação entre educação e política na sua forma mais plena, garantindo o fim das dicotomias. Parafraseando Anísio Teixeira (1999), a democracia verdadeiramente existirá em nosso país apenas quando se montar a má- quina de preparar democracias; essa máquina é a escola pública. Com base no que foi discutido neste capítulo, como podemos relacionar os impactos existentes na educação brasileira à desvalo- rização dos professores no Brasil? Justifique sua resposta. Atividade 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Não é nada fácil elaborar uma síntese dos últimos 150 anos aborda- dos neste capítulo, os quais foram repletos de transformações econô- micas, políticas, sociais e culturais. A educação passou, nesse ínterim, por mudanças expressivamente profundas que ainda, em alguns casos, não concluíram seus ciclos de desenvolvimento por estarem presentes no pensamento pedagógico contemporâneo. O modelo moderno de escola que se desenvolvia desde o século XVI foi questionado por aspectos que não se adequavam mais à sociedade do desenvolvimento. A Escola Nova, passando pelos pensamentos socia- lista e anarquista, colocou em xeque essa escola. Contudo, as propostas do século XX não conseguiram solucionar muitos problemas que foram “empurrados” para o século XXI, especialmente no Brasil. 152 História da Educação A educação ainda está atrelada aos interesses do capital e da clas- se dirigente, preparando indivíduos pouco críticos para exercerem suas funções dentro do sistema. A nossa escola, mesmo com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), não é democrática no pleno sentido do termo, pois não atingiu todos os indivíduos. Em síntese, ainda não há uma política educacional que volte suas atenções para o ensino público com diretri- zes educacionais coerentes, e os professores, em muitos países, são des- valorizados e pouco capacitados. Todos esses pontos contribuem para a perpetuação dos interesses do capital e transformam a educação em mercadoria que qualifica minimamente o capital humano. REFERÊNCIAS ARANHA, M. L. A. História da educação e da pedagogia: geral e Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site. pdf. Acesso em: 5 nov. 2020. BRASIL. Constituição Federal (1988). 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Nesse sentido, a educação precisou se organizar para atender a essa demanda, ampliando a oferta de vagas, a qualidade e a modalidade de ensino. 3. Embora detalhista, o texto apresentado por Jorge Hage contou com a participação democrática dos professores e fazia menos concessões aos privatistas. Foram exata- mente esses aspectos que, em grande parte, foram ignorados por Darcy Ribeiro, o que ocasionou uma perda significativa. 4. A desvalorização dos professores faz com que pouca ou nenhuma mudança ocorra na situação da escola brasileira, acarretando resultados negativos na sociedade. Código Logístico 59523 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6668-1 9 7 8 8 5 3 8 7 6 6 6 8 1 Página em branco Página em branco Página em branco