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Psicologia e Processos
Psicossociais:
TEORIA, PESQUISA E EXTENSÃO
Cristiane Souza Borzuk
Rita de Cássia Andrade Martins
(organizadoras)
Editora da Imprensa Universitária
2019
Universidade Federal de Goiás
Reitor
Edward Madureira Brasil
 
Vice-Reitora
Sandramara Matias Chaves
 
Pró-Reitora de Graduação
Flávia Aparecida de Oliveira
 
Pró-Reitor de Pós-Graduação
Laerte Guimarães Ferreira Júnior
 
Pró-Reitor de Pesquisa e Inovação
Jesiel Freitas Carvalho
 
Pró-Reitora de Extensão e Cultura
Lucilene Maria de Sousa
 
Pró-Reitor de Administração e Finanças
Robson Maia Geraldine
 
Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas - Pró-Pessoas
Everton Wirbitzki da Silveira
 
Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis - Prae
Maisa Miralva da Silva
Conselho Editorial da Editora da Imprensa Universitária (*iU)
Coordenação Editorial – Conselho Editorial
Alice Maria Araújo Ferreira (UnB)
David Maciel (UFG)
Divina Aparecida Anunciação Vilhalba
Fernando de Freitas Fernandes (UFG)
Joana Plaza Pinto (UFG)
João Pires (UFG)
Julyana Aleixo Fragoso (UFG)
Maria Lucia Kons (UFG)
Pamora Mariz Silva de F. Cordeiro (PUC-Goiás)
Renan Nunes Leles (UFG)
Salustiano Álvarez Gómez (PUC-Minas)
Tadeu Pereira Alencar Arrais (UFG)
Tathiana Rodrigues Salgado (UEG)
Psicologia e Processos
Psicossociais:
TEORIA, PESQUISA E EXTENSÃO
Cristiane Souza Borzuk
Rita de Cássia Andrade Martins
(organizadoras)
Editora da Imprensa Universitária
2019
© 2019, Cristiane Souza Borzuk e Rita de Cássia Andrade Martins (Org).
Editoração Eletrônica:
Julyana Aleixo Fragoso
CAPA: 
Géssica Marques de Paulo
Revisão:
Eduarda Rodrigues Rosa e Didier Quevedo Cagnini
 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
 GPT/BC/UFG
Bibliotecária responsável: Adriana P. Aguiar / CRB1: 3172
S612 Psicologia e processos psicossociais: teoria, pesquisa e extensão /
 Organizadoras, Cristiane Souza Borzuk, Rita de Cássia
 Andrade Martins. – Goiânia : Editora da Imprensa
 Universitária, 2019.
 264 p.
 Inclui bibliografia
 ISBN: 978-85-93380-60-0
 1. Psicologia social - pesquisa. 2. Psicologia - interação social. 
I. Borzuk, Cristiane Souza. II. Martins, Rita de Cássia Andrade. III. 
Simpósio de psicologia social (3. : 2019 : Goiânia, GO). IV. Título.
 CDU: 316.6
 Sumário
PREFÁCIO 7
Embaraços em busca do público e do comum
EIXO I: TEORIA
CAPÍTULO I
Psicologias, famílias e sociedade: as contribuições 
da Psicologia Crítica 
CAPÍTULO II
A aliança entre ciência e progresso: a conversão 
da razão em domínio
CAPÍTULO III
O real ficcional e os processos identificatórios na 
formação humana subjacente à indústria cultural 
CAPÍTULO IV
As violências nas fronteiras do conflito em uma 
sociedade de contradições
7
15
35
61
81
CAPÍTULO V
Mulher Negra e o Saber Psicológico
CAPÍTULO VI
Sobre teoria e prática: observações sobre o texto 
“Notas Marginais sobre Teoria e Práxis” de 
Theodor W. Adorno
EIXO II: PESQUISA
CAPÍTULO VII
Alegações de alienação parental: uma revisão 
sobre a jurisprudência brasileira
CAPÍTULO VIII
Música sertaneja, consumo de álcool e juventude: 
relação das letras do sertanejo universitário com o 
uso de bebidas alcoólicas entre os jovens
CAPÍTULO IX
A influência do sistema carcerário no 
adoecimento mental dos detentos
EIXO III: EXTENSÃO
CAPÍTULO X
Interações entre Psicologia Social Comunitária, 
Saúde Mental e Atenção Psicossocial
CAPÍTULO XI
Intervenções psicossociais junto às mulheres em 
situação de violência a partir da Psicologia sócio-
histórica
129
145
167
189
207
231
105
PREFÁCIO
Embaraços em busca do público 
e do comum
Gosto de coletâneas, esses “seres bibliográficos” tão repudia-
dos pelas editoras brasileiras: não vendem, é o que dizem... Não sei 
se vendem ou não vendem, mas essa razão calculadora, cada vez 
mais, costuma lançar ao limbo os textos reunidos – valendo lem-
brar que já se acabou com esse espaço de espera pelo juízo final. 
Insisto na palavra reunidos: textos reunidos, pesquisadores reunidos, 
trabalho coletivo em busca de um público, de um comum, de uma 
imanência univocizante, des-hierarquizante.
Cumpre pensar nisso quando nos convidam a redigir um 
prefácio. Este “ordenador discursivo”, por sua mera existência, 
pode funcionar como aquilo que, justamente, dificulta ou 
impede o comum, por atenuar a aleatoriedade, o risco e, por isso 
mesmo, a potência dos discursos. Consciente dessa indesejável 
consequência, proponho-me a tentar transgredi-la mediante um 
prefácio-aliança. Aliança não indica necessariamente acordo total, 
mas faz esperar potencialização recíproca. É o que ao menos 
desejo com o presente escrito.
8 
Teoria, pesquisa e extensão: bem se vê que o livro provém da 
universidade pública, sempre ciosa em manter vivo esse tríptico e, 
talvez principalmente, em fazer da articulação entre os três termos 
mais do que um clichê ou retórica palavra de ordem. Aliás, e fazen-
do já de início uma inadiável menção ao momento que vivemos 
nesse Brasil pós-golpe, que não ousa dizer seu nome, talvez o que 
precisemos seja de palavras de desordem, pois “a” ordem (vigente) é de 
destruição sistemática, deliberada, das coisas e pessoas que amamos: 
a educação pública, Paulo Freire, as liberdades, as crianças, as ami-
zades, as conversas, as culturas populares, os modos de subjetivação 
múltiplos e singulares, as artes, as ficções, ...a...Psicologia Social?
Sim, trata-se de uma coletânea de artigos de Psicologia Social, 
derivada de um simpósio realizado na regional Jataí da Universidade 
Federal de Goiás, promovido em 2017. O primeiro artigo, contudo, 
ao mencionar um simpósio outro, datado do mesmo ano, me ajuda 
a começar este breve escrito: fala ele em “embaraços de percurso” 
e me sugere o nome e a aliança com uma “psicologia social emba-
raçada”, ou melhor, aquela que vejo presente nos textos que, em 
permanente tensão, recém acabo de ler. Ao contrário do que pode-
ria pensar um leitor desavisado, falar em “psicologia social embara-
çada” constitui um elogio, e é este elogio que me anima a tornar-me 
companheira discursiva dos escritores e escritoras aqui presentes.
Embaraçados em problemáticas urgentes e rigorosas, tais es-
critores e escritoras escrevem, como diriam Deleuze e Guattari, a 
N-1: jamais totalizam, sempre subtraem o Uno (ou o Único) daquilo 
que apreciam ou examinam, a fim de que este último se mantenha 
livre para estabelecer, sempre, novas conexões. Precisamos dessa 
Psicologia Social a N-1. Precisamos dela como um equipamento 
que esteja à mão e nos auxilie a “agir como se deve” em face dos 
desafios com que, no dia a dia de pessoas e psis, nos defrontamos 
nos cotidianos de vida e/ou de trabalho. 
A mesma escritora que me ofereceu os “embaraços” do tí-
9 
tulo e do andamento deste prefácio nos diz que “não há escolha”, 
visto que o Código de Ética Profissional dos Psicólogos exige que 
sejamos “críticos”. Porém a própria coletânea revela que, sim, há 
escolha. Ou, se não exatamente escolha – termo marcado pelo 
individualismo liberal –, que sempre podemos ser “colhidos” por 
formas restritivas, tristes e enfraquecedoras, as quais dizem natu-
ral o que nos enfraquece e condenam o que poderia ser, em nós, 
alegria e liberdade.
De exemplos disso, o livro está repleto. Não que os escrito-
res e escritoras presentes o façam, mas é bastante nítida a presença 
dos micro fascismos em certas teorias e práticas psi, como as que 
se seguem: aquelas que do indivíduo passaram à família unicamen-
te “para melhor te comer”, ou seja, para melhor cristalizar um cer-
to modo de vida, agora tristemente familiarista; aquelas que fazer 
da cientificidade razão de domínio, ou melhor, modo de invalidar 
formas de pensar e agir outras, diferentes, singulares; aquelas tão 
culturalmente industrializadas que, da literatura, só conhecem a 
ligada ao auto-empreendedorismo; aquelas que repetem,qual eco, 
as indignações midiáticas com certas formas de violência, sem pen-
sar que entre o que seja, ou não, tal coisa há toda uma tecnologia 
de gestão, apreciação, distribuição; aquelas que nunca pensaram 
sequer no quanto a psicologia tem contribuído para erigir racismos 
e colonialismos quando, com suas práticas teórico-metodológicas, 
supostamente assépticas, reproduzem diariamente, embora com 
menor alarde, a exibição do corpo de Saartjie Baartman em nome 
da ciência; aquelas que nem ao menos sabem que desconhecem 
Franz Fanon, Neuza Santos Souza, Angela Davis, bell hooks, Bea-
triz Nascimento, além de tantos outros e outras, submissas que 
estão às partições acadêmicas entre o que vale ou não a pena ser 
lido; aquelas que periciam alienações parentais, assédios, bullyings e 
quejandas, sem olhar para o próprio rabo em nenhum momento, 
ficando assim dispensadas de perceber a própria participação na 
10 
invenção daquilo que denunciam, patologizam e/ou criminalizam; 
aquelas que, da música sertaneja, por exemplo, só conhecem um 
“torcer o nariz” estético, nada se interessando por sua genealogia, 
nem pela presença da indústria cultural nas inflexões da mesma, 
ou por seus efeitos nos modos de subjetivação de juventudes no 
plural; aquelas que emparelham sem hesitações o crime e a lou-
cura, em um sempre reatualizado conluio entre médicos e juízes, 
no qual constituem o primo pobre da trama econômico-político-
-moral assim engendrada; aquelas que gestam ou gerenciam tudo, 
porque se pensam com maior valor do que os saberes dispersos, 
notadamente quando a questão é a saúde, inclusive a mental, mos-
trando-se, portanto, totalmente incapazes de efetivas interações 
em comunidade; aquelas que se querem e se julgam neutras e, as-
sim procedendo, tornam invisíveis os poderes que agem em certa 
direção inferiorizadora: dos negros, dos pobres, dos alunos, dos 
indígenas, dos não europeizados, das mulheres – no caso destas, 
a ponto de não se posicionarem jamais a favor do aborto, nem 
mesmo quando um certo estatuto (do “nascituro”) chama de “ge-
nitor” um eventual estuprador.
Há outras dessas psicologias sociais, cuja ação, no caso “de-
sembaraçada”, se divisa no horizonte quando os artigos que in-
tegram a presente coletânea são lidos. Todos estes, ao contrário, 
são críticos e, para tanto, recorrem a autores tão múltiplos como 
Vigotski, Adorno, Horckeimer, Paulo Freire, Benjamin, Arendt, 
Foucault, Beleval, Bourdieu, hooks, Bock, Slater, Tykanori, Hill 
Collins, Angela Davis, Simmel, Pêcheux, Butler, Rubin, Zizek, e 
Dona Ivonne Lara. Por crítica entendem, digam isso explicitamen-
te ou não, na linha da leitura foucaultiana de Kant, uma reflexão 
sobre os limites históricos de nosso saber, prática e profissão: não 
para respeitá-los, o que seria, na verdade, desembaraçar-se deles; 
mas, ao contrário, em meio ao embaraço que produzem (e nos 
produzem), para poder, a cada momento, segundo possibilidades 
11 
engendradas e alianças forjadas, transgredi-los um a um, sem pre-
cisar ignorá-los. Pois, como disse Foucault certa vez, as ciências 
são um pouco como as nações e não podem crescer a não ser 
quando seu passado não as envergonha mais, a ponto de precisa-
rem negá-lo permanentemente.
Acompanhei todas as ousadias críticas dos escritos, que são 
orientações teóricas, de pesquisa e de extensão. Com algumas me 
bati, mas sem rancor: talvez haja algo de moralizador em ver um 
indesejável incentivo ao consumo do álcool no sertanejo universi-
tário (ao passo que o artigo reconstitui de forma muito linda a ge-
nealogia da música sertaneja e, com isso, se alia a uma historiadora 
não mencionada, Maria Izilda Gomes de Mattos, que, entre outros 
livros, publicou “Meu lar é botequim”, na linha dos modos de sub-
jetivação); talvez haja riscos, ainda bem psicologizantes, em associar 
o enlouquecimento à vida na prisão, não apenas em ligar o crime 
cometido à loucura preexistente; quiçá a Lei Maria da Penha, com 
sua lógica punitiva, contribua bem mais para incrementar prisões e 
punições do que para a resistência das mulheres aos exercícios do 
poder. Talvez, sempre talvez, inevitáveis e mesmo desejáveis emba-
raços, presentes inclusive entre escritores-escritoras e uma prefacia-
dora que não pretende filiações, apenas alianças.
Porque somente alianças libertárias podem nos ajudar 
a construir a ética necessária para fazer frente a esse momento 
brasileiro (mundial?) em que, tal qual o psicólogo Richard Lynn, 
tantas pessoas defendem o conceito de eugenia e, através dele, a 
superioridade de alguns grupos – os homens, os europeus – em 
detrimento de outros – as mulheres, os africanos –, em decorrên-
cia da presumida superioridade de seus QIs. Jamais tinha ouvido 
falar de Richard Lynn antes de ler o presente livro, talvez porque, 
embora psicóloga, a literatura psi não goze de minha preferência. 
Mas conheço os racismos do “Conde de Gobineau” da esquina, da 
universidade e/ou do congresso nacional. Dada a coragem da ver-
12 
dade presente nos escritos desta coletânea, sinto a possibilidade de 
vencê-lo(s), se não pelos votos, decerto pela ética e pelos modos 
(embaraçados) de vida psi.
Obrigada por existirem e por escreverem.
Heliana de Barros Conde Rodrigues
Professora Associada do Departamento de Psicologia Social e Institucio-
nal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Teoria
CAPÍTULO I
Psicologias, famílias e sociedade: 
as contribuições da Psicologia 
Crítica1
Ana Cristina Nassif Soares
Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade dos olhos de um pai
Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
Quero a liberdade, quero tudo e mais
Quero ser amizade, quero amor, prazer
Quero nossa cidade sempre ensolarada
Os meninos e o povo no poder, eu quero ver
(Coração civil, Fernando Brant/Milton 
Nascimento).
1 Conferência de abertura do III Simpósio de Psicologia Social da Universidade Federal de 
Goiás/Regional Jataí, realizada em 05 de julho de 2017. 
16 
RESUMO
Construí o presente trabalho a partir de reflexões de expe-
riências profissionais, enquanto pesquisadora sobre o tema “famí-
lias”, de aspectos do Código de Ética Profissional do Psicólogo 
(CEPP), minha formação, bem como de ideias e considerações 
realizadas diante de minha participação em um simpósio nacio-
nal, na cidade de São Paulo, e, principalmente, da minha leitura da 
abordagem da Psicologia Sócio-Histórica. O objetivo primordial 
deste artigo foi, então, o de fortalecer o trabalho da/o psicóloga/o 
frente às diferenças sociais, acolhendo-as não como “anormalida-
des”, mas como outras possibilidades de vida, descristalizando pa-
drões e normas burgueses ainda presentes na psicologia brasileira. 
Pretendi, ainda, reforçar o compromisso da Psicologia, no Brasil, 
com o CEPP, na direção da atuação baseada na teoria crítica, da 
Psicologia Sócio-Histórica.
Palavras-chave: Psicologia Sócio-Histórica. Código de Ética 
Profissional do Psicólogo. Diferenças Sociais. Famílias.
INTRODUÇÃO
Para minha participação no III Simpósio de Psicologia Social 
da Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí, decidi focar em re-
flexões a partir de experiências profissionais, enquanto pesquisadora 
sobre o tema “famílias”, entre outros; do Código de Ética Profis-
sional do Psicólogo (CEPP), minha formação, bem como de minha 
participação no “I Simpósio Nacional Psicologia e Compromisso 
Social. Da Crítica à Psicologia à Psicologia Crítica: Embaraços no 
Percurso”, que aqui trago a partir de minhas anotações, promovi-
do pelo Instituto Sílvia Lane, na Pontifícia Universidade Católica 
(PUC-SP), em março de 2017 e, principalmente, da minha leitura da 
abordagem da Psicologia Sócio-Histórica.
17 
Acredito que estes elementos poderão situar o/a leitor/a/r, 
conforme vou construindo meu percurso nesta fala/escrita.
Ética profissional e psicologia crítica
Na Apresentação do Código de Ética Profissional do Psicó-
logo (CEPP), encontro:
Um Código de Ética profissional (...) procurafo-
mentar a autorreflexão exigida de cada indivíduo 
acerca da sua práxis, de modo a responsabilizá-lo, 
pessoal e coletivamente, por ações e suas conse-
quências no exercício profissional. A missão pri-
mordial de um código de ética profissional não é de 
normatizar a natureza técnica do trabalho, e, sim, a 
de assegurar, dentro de valores relevantes para a so-
ciedade e para as práticas desenvolvidas, um padrão 
de conduta que fortaleça o reconhecimento social 
daquela categoria. (BRASIL, 2005, p. 5).
A primeira frase já traz a ideia de que este Código se baseia 
em conceitos relacionais, pois faz uma correlação entre reflexões 
autodirigidas e heterodirigidas, ou seja, a si e aos outros, de modo 
entrelaçado, bem como a/o profissional deve se ater à sua prática 
profissional de modo referenciado em teorias, que modificarão sua 
prática e vice-versa. Segue dizendo que a prática profissional da/o 
psicóloga/o deve se pautar em valores indispensáveis para a socie-
dade em que esta ocorre, no trecho que me interessa ressaltar aqui. 
Continuando a leitura do CEPP, me deparo com os Princí-
pios Fundamentais do mesmo, dos quais destaco alguns, em ordem 
diferente: “II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a 
qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para 
a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, ex-
ploração, violência, crueldade e opressão.” (BRASIL, 2005, p. 7).
18 
A ideia aqui é que a pessoa que optar por ser psicóloga de-
verá agir totalmente contra qualquer tipo de preconceito; o próprio 
Princípio II já detalha contra o que deveremos trabalhar: contra 
qualquer tipo de ação que subjugue e submeta o ser humano. Além 
disso, a/o profissional estará a serviço da libertação/liberdade das 
pessoas. Não há escolha sobre sua ação profissional. 
Sobre o aprimoramento profissional, versa o Princípio IV: “O 
psicólogo atuará com responsabilidade, por meio do contínuo apri-
moramento profissional, contribuindo para o desenvolvimento da 
Psicologia como campo científico de conhecimento e de prática.” 
(BRASIL, 2005, p. 7). Também é outra afirmativa do contínuo aper-
feiçoamento profissional, que favoreça o crescimento da profissão 
pela qual se optou.
O Princípio V anuncia que “O psicólogo contribuirá para 
promover a universalização do acesso da população às informações, 
ao conhecimento da ciência psicológica, aos serviços e aos padrões 
éticos da profissão.” (BRASIL, p. 7, 2005). Fica explícita a transpa-
rência requerida pela/o profissional, com relação à Psicologia; fazer 
frente ao poder do saber é uma das assertivas do CEPP. Deter co-
nhecimento como forma de hierarquia é o que deve ser evitado a 
qualquer custo. 
O penúltimo Princípio sobre o qual me detenho é “(...) VII. 
O psicólogo considerará as relações de poder nos contextos em que 
atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissio-
nais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com os de-
mais princípios deste código.” (BRASIL, 2005, p. 7). Este Princípio 
chama a/o profissional a se posicionar de forma “crítica”, levando 
em conta o poder em todas as circunstâncias em que atua e os efei-
tos do mesmo no seu fazer profissional. 
O terceiro e último Princípio que analiso, e o considero como 
tão importante quanto o VII Princípio, propõe a atuação da/o psi-
cóloga/o: “(...) com responsabilidade social, analisando crítica e 
19 
historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.” 
(BRASIL, 2005, p. 7). Deste preceito entendo que a atuação se an-
corará na responsabilidade social, ou seja, o que falo, o que faço, é 
sempre voltado ao outro, nunca de modo ou voltado ao individual. 
Além disso, aqui está a direção dessa atuação: “(...) analisando crítica 
e historicamente a realidade (...)”; isto é, buscando sempre como 
base da atuação profissional a Psicologia Crítica e as análises con-
textuais, históricas.
Fica bastante explícito o comprometimento desde CEPP com 
uma determinada postura profissional: aquela comprometida com 
o outro, com o coletivo, tanto profissional, quanto da população 
atendida por esta profissão. Assim, aperfeiçoamento constante faz 
parte de qualquer área de atuação na Psicologia. 
Desde o século XVII, o conceito de indivíduo se consolida 
no mundo ocidental (SOARES, 2002); contraditoriamente, este traz 
a emancipação do conceito de “eu”, enevoado pela Idade Média, 
mas traz também o individualismo moderno. O ser humano passa 
a ser o centro do universo, com o declínio da Igreja, mas se torna 
individualista, autônomo, uma ilha; as consequências disso são o 
isolamento do outro, como se não se reconhecesse no outro. 
Esta condição se fortalece ainda mais com o capitalismo (ou 
vem através deste?) e atinge a todas/os; alcança profissionais, estu-
diosas/os sobre o tema, leigas/os, etc. Atinge, também, psicólogas/
os! A/o leitora/or pode dizer: “É óbvio!”, mas ideologicamente, 
muitas pessoas não se dão conta disso e ainda concebem esta con-
dição de individualista como natural do ser humano. Como se já 
nascêssemos assim... 
Ora, se o conceito somente surge a partir da data já dita, tra-
ta-se de uma construção social! 
O Princípio III do CEPP já aponta para a necessidade de se 
analisar o contexto da vida, da atuação profissional. Juntamente 
com o Princípio VII o complementa trazendo a questão do poder e 
20 
o comprometimento dessa/e profissional com o social, com a críti-
ca e com a História! 
Então, o que é a Psicologia Crítica? Muito do que está dito no 
CEPP está baseado na Psicologia Sócio-Histórica, que eu chamo de 
Psicologia Crítica, fundamentada em leituras e na minha participa-
ção no “I Simpósio Nacional Psicologia e Compromisso Social. Da 
Crítica à Psicologia à Psicologia Crítica: Embaraços no Percurso”2, 
ao qual já me referi. 
Recorro à Bock, Furtado e Teixeira (1999, p. 86) para contar 
sobre seu surgimento: 
Escolhemos apresentar-lhe uma vertente teóri-
ca que nasceu na ex-União Soviética, embalada 
pela Revolução de 1917 e pela teoria marxista. 
No Ocidente, a teoria Sócio-Histórica ganharia 
importância nos anos 70, tornando-se referência 
para a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicolo-
gia Social e para a Educação.
A teoria de Vygotsky se opõe à tradição positivista e busca 
compreender o mundo psíquico dentro do paradigma da constru-
ção social, isto é, “(...) o mundo psíquico que temos hoje não foi 
nem será sempre assim, pois sua caracterização está diretamente li-
gada ao mundo material e às formas de vida que os homens vão 
construindo no decorrer da história da humanidade.” (BOCK FUR-
TADO; TEIXEIRA, 1999, p. 86). 
Apesar de ter falecido muito cedo, a abordagem de Vygotsky 
tem significados permanentes; de acordo com Bock, Furtado e Tei-
xeira (1999), como os animais não têm vida social e cultural, o en-
tendimento das funções superiores humanas não pode se dar por 
meio desses seres; estas, as funções superiores humanas, não devem 
ser concebidas como resultantes apenas da maturação, de um orga-
2 Pela extensão do nome passo a me referir a este evento somente como “I Simpósio...”. 
21 
nismo que já as possuía potencialmente; e ainda:
A linguagem e o pensamento humano têm origem 
social. A cultura faz parte do desenvolvimento hu-
mano e deve ser integrada ao estudo e à explicação 
das funções superiores. A consciência e o compor-
tamento são aspectos integrados de uma unidade, 
não podendo ser isolados pela Psicologia. (BOCK; 
FURTADO; TEIXEIRA, 1999, p. 87).
A cultura e a sociedade têm, para ele, papel fundamental na 
vida humana; Vygotsky não aceita as cisões que eram feitas na Psi-
cologia de até então, separando elementos das funções superiores, 
como por exemplo, consciência e comportamento. 
As bases para sua teoria (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 
1999) encontram-se no Materialismo Histórico Dialético; para a Psi-
cologia, Vygotsky aprimorou pressupostos a serem seguidos. Desta-
cou o caráter de transformação e movimento de todos os fenôme-
nose esses devem ser seu contexto de estudos. Enfatizou também 
a categoria sujeito, ou seja, o ser humano é influenciado e influencia 
a natureza, por meio de sua atividade e seus instrumentos. Ir além 
das aparências foi outro foco dado por ele à construção do conhe-
cimento. Reforçou a concepção de que são as condições sociais que 
provocam mudanças individuais, ou seja, a vida concreta é que gera 
a consciência, e não o contrário. Estes fundamentos caracterizam 
sua abordagem como sócio-histórica. 
Quais são, então, os aspectos contra os quais se volta a Psico-
logia Sócio-Histórica? 
Basicamente, com a visão liberal e positivista de ser humano; 
a principal delas, para mim, é a de que a pessoa é fonte de erros e o 
sistema é perfeito. Esta ideia dá total aval a qualquer modelo socie-
tário e responsabiliza o indivíduo por seu fracasso/sucesso, por sua 
bondade/maldade, por sua doença/saúde, por sua conduta certa/
22 
errada; preserva, assim, estruturas e valores societários conservado-
res. A meritocracia é um desses valores. Patrão tem que ganhar mais 
do que o trabalhador porque é patrão. 
O que também decorre dessas ideias é a visão do ser huma-
no como autônomo (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1999). Ele 
próprio se torna individualidade, ele próprio se autogera. 
Coloca-se, ainda, o ser humano em oposição à sociedade. De-
frontam-se necessidades “naturais” humanas e sociais; consolida-se, 
assim, o conceito de essência humana. Desta maneira, eterniza-se o 
que é humano, como se este fosse concebido como fora de contex-
to, como se estivesse no mundo das ideias, onde tudo vale.
Além disso, qualifica-se o fenômeno psicológico3 com abs-
trato, encerra-se o mesmo no próprio ser humano, como se fosse 
o “verdadeiro eu” (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1999, p. 88). 
Estas ideias liberais e positivistas acabaram por naturalizar 
e essencializar o “mundo psicológico”, tornando-o descolado das 
condições materiais de produção da vida e criando uma ilusão de 
oposição “individuo x sociedade”. Frases como “o ser humano 
sempre foi...”, “o homem é egoísta por natureza”, entre tantas ou-
tras exemplificam este perigo. Aceitam estas concepções como se 
não houvesse alternativa.
Naturaliza-se a divisão da sociedade em classes. Cristaliza-se a 
hierarquia social. Essencializa-se o humano, como se não houvesse 
possibilidade de mudança.
Ainda de acordo com Bock, Furtado e Teixeira (1999), a Psi-
cologia Sócio-Histórica no Brasil pretende edificar propostas que 
possam se contrapor às ideias liberais/positivistas referidas, resumi-
damente, acima; a primeira delas é a de que não há natureza humana. 
Não há essência humana, ou seja, já nascemos prontos e vamos nos 
3 Cf. BOCK, A. M. B. Aventuras do Barão de Münchhausen na Psicologia. São Paulo, Cortez/
EDUC, 1999. 
23 
alterando ao longo da vida; ora, se tomar como verdadeira esta ideia, 
o ser humano se autogere, se autodetermina, como se não vivesse 
em um mundo concreto. Assim, as condições materiais da vida pas-
sam a ocupar um lugar irrelevante no processo da formação da sub-
jetividade. A Psicologia Sócio-Histórica acredita que a subjetividade 
se forma a partir da realidade social, econômica, cultural, política. Se 
é assim, a relação com outros seres humanos é imprescindível, isto 
é, não somos seres autônomos, somos seres relacionais.
Se não existe a natureza humana, existe, então, a condição 
humana (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1999). Isto quer dizer 
que dependendo da nossa base material e nossa interferência sobre 
esta, nos construímos; historicamente, ao olharmos os seres huma-
nos, vamos identificando transformações ao longo do tempo. Des-
sa maneira, na Idade Média, por exemplo, o conceito de “eu” não 
existia, ou se existia rudimentarmente estava subjugado à Igreja. Já 
no Capitalismo, o conceito de “eu” está em primeiro plano. Ainda 
dentro desse raciocínio, estas concepções se desenvolvem de modo 
diferente em tempos e em espaços diversos.
O desenvolvimento humano sé dá a partir do humano. Somos 
seres relacionais e nos desenvolvemos “em relação”; não há uma 
psicologia “individual”. Esta dicotomia é superada pela Psicologia 
Sócio-Histórica, a partir do Materialismo Histórico Dialético.
O ser humano é concebido, então, por meio de suas relações e 
vínculos sociais, imerso em uma determinada sociedade, em um mo-
mento histórico peculiar (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1999).
Enfim, os fenômenos psíquicos vão se desenvolvendo a par-
tir da vivência do ser humano no mundo, juntamente a outros 
seres humanos. 
A importância do “I Simpósio...” para mim se dá desde sua 
proposição estrutural; em seu subtítulo aparece “(...) Embaraços no 
Percurso”; quais seriam, então, estes Embaraços? 
24 
O primeiro Embaraço é o do pensamento colonizado; nes-
te ciclo foram programadas falas de estudiosos interdisciplinares 
que focaram este tema. Basicamente, foram destacadas aqui análises 
desde a influência do colonialismo até o produtivismo acadêmico e 
a supervalorização da internacionalização do conhecimento. Foram 
lembrados o racismo, o sexismo, a religião e a bíblia como instru-
mentos de segregação e pensamento colonial, a colonialidade que 
nos entranha até hoje. 
O segundo Embaraço foi o da negação da historicidade. 
Historicizar foi um “ato” considerado fundamental ao pensamento 
crítico, por palestrantes deste ciclo. Se eu descontextualizo: pode 
tudo, porque vou para o nível das ideias; a História nos dá ideia de 
espaço e tempo, ou seja, de movimento, transformação, e não de 
eternização ou essencialização. A lógica do pensamento no Brasil é 
eurocêntrica, autoritária, colonial. A condição não branca é sinôni-
mo de atraso e subdesenvolvimento, assim, Brasil tem que ser bran-
co para progredir. A partir do século XIX, surge a ideia de demo-
cracia; as pessoas não brancas são expulsas para o “progresso” se 
realizar; são varridas porque os corpos só servem para exercer fun-
ções “pequenas”. A cultura pode ser instrumento de naturalização 
da desigualdade, pois culturas diferentes podem ser hierarquizadas. 
Além disso, este estudioso, Marcelo Paixão, critica a ideia de essen-
cialização, que já assinalei acima (PAIXÃO, 2017).
 Outras concepções interessantes foram levantadas por Luis 
Felipe Miguel. O mito da democracia racial, por exemplo, que de-
fende que só deixará de haver conflito se houver o consenso da 
“natural” condição da desigualdade. A reprodução do emprego das 
empregadas domésticas é ainda muito forte; essas pessoas só ser-
vem para fazer essas “tarefas”, e, em sua maioria, são negras. 
O mundo social precisa ser concebido como fruto do nosso 
fazer histórico; quanto mais o naturalizamos, menos participamos das 
manifestações para mudança. A naturalização é a ideologia da reprodu-
25 
ção; entender que os papeis sociais, por exemplo, são inatos, estão em 
nosso DNA, provoca a naturalização dos gêneros (MIGUEL, 2017).
A dicotomia indivíduo-sociedade foi elencada como o ter-
ceiro Embaraço, no último ciclo do “I Simpósio...”. Para Jessé de 
Souza, o indivíduo concebido como separado da sociedade não é 
visto como pertencente à uma família, à uma classe social, etc. A 
Psicologia assume a versão dominante da ordem quando descola 
o indivíduo do contexto; se torna a ciência da ordem: dominante, 
reprodutora da classe dominante. Não é “privilégio” somente da 
Psicologia, toda “ciência acrítica” assume esta postura separando o 
indivíduo do contexto (e, se não for crítica, não é ciência); distorce 
sistematicamente a realidade; são mentiras.
A individualidade é percebida como descolada da sociedade; 
dessa maneira, a desigualdade aparece como justa; “meritocracia”; é 
justo que eu produza mais e ganhe mais; quem pode mais deve ter 
mais prestígio, ideias que identifico com concepções positivistas de 
ser humano e mundo (SOUZA, 2017).
Segundo José Moura Gonçalves Filho (2017), o indivíduo é 
uma concepção burguesa; traz a individualidade e o individualismo; 
a noção de pessoa pressupõe estar em relação, fazer coisas juntos.Famílias e a psicologia sócio-histórica 
Conforme já me referi na Introdução deste texto, Famílias é 
um dos meus temas de pesquisa, juntamente com gênero e diversi-
dade sexual abordados como construções sociais. Para o objetivo 
presente, escolhi o primeiro tema para refletir sobre alguns pontos4 
relevantes, ao olhar as famílias sob o viés crítico ou da Psicologia 
Sócio-Histórica. 
4 Não estou querendo confeccionar um receituário sobre o assunto, mas apenas levantar 
questões que têm me parecido importantes.
26 
Há, por exemplo, algumas definições de família que trago para 
analisar:
(...) é o primeiro sujeito que referencia e totaliza 
a proteção e a socialização dos indivíduos. Inde-
pendente das múltiplas formas e desenhos que a 
família contemporânea apresente, ela se constitui 
num canal de iniciação e aprendizado dos afetos 
e das relações sociais. (CARVALHO, 1994, p. 93). 
Aqui há uma ênfase total na família como formadora do indi-
víduo; a família realizaria completamente “a proteção e a socializa-
ção dos indivíduos.” Mas, qual é o papel do Estado nesse processo? 
E da sociedade? Não seria um peso excessivo para este grupo? 
A próxima definição diz que a família é o (...) es-
paço privilegiado de socialização, de prática de to-
lerância e divisão de responsabilidades, de busca 
coletiva de estratégias de sobrevivência e lugar ini-
cial para o exercício da cidadania sob o parâmetro 
da igualdade, do respeito e dos direitos humanos. 
(FERRARI; KALOUSTIAN, 1994, p. 11).
Neste conceito, a vida depende da família!!! Socializar, tolerar, 
responsabilizar, buscar coletivamente, exercitar, respeitar... Será que 
isso tudo acontece nas famílias brasileiras? Em algumas? Em quais? 
Em que contexto? 
A próxima definição quase que somente descreve uma famí-
lia, sem atribuir à ela, e somente à ela, mil e uma funções: 
(...) a família tem uma importância fundamental 
não apenas no âmbito da reprodução biológica, 
mas principalmente, enquanto mediadora de seus 
membros com a sociedade. Ela proporciona a 
construção de nossa primeira identidade e nos 
27 
insere nas relações sociais, tanto em nível emo-
cional, cultural, como sócio econômico. A família 
é o primeiro referencial e permeia toda a nossa 
existência. (JOSÉ FILHO, 2002, p. 15).
No entanto, no final José Filho a concebe como “primeiro re-
ferencial” humano e a eterniza na existência da pessoa. O que con-
sidero motivo de reflexões aqui é a questão relativa a várias crianças 
que nascem e vivem em situação de abrigamento, bem como pes-
soas que deixam de ter contato com sua família de origem.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atra-
vés da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, assim definiu 
família em 2011:
Considerou-se como família o conjunto de pes-
soas ligadas por laços de parentesco, dependência 
doméstica ou normas de convivência, que resi-
dissem na mesma unidade domiciliar e, também, 
a pessoa que morasse só em uma unidade domi-
ciliar. (PNAD/IBGE, 2011).
Considero bastante interessante esta definição, visto que trata 
as descrições com o uso da conjunção “ou”, que dá abertura para 
várias possibilidades.
Como eu descrevo famílias? Desde 2002 venho definindo fa-
mílias, sendo que esta conceituação está em constante construção. 
Assim, para mim, a partir de muitas leituras, vivências, conversas, 
reflexões, famílias: 
• São como são;
• São como dizem ser;
• Podem construir o sentimento de pertencimento;
• Desenvolvem relações afetivas manifestas de diversas formas;
• Podem construir laços biológicos, afetivos, por afinidade, 
entre outros;
28 
• Constroem e /ou reproduzem crenças e valores, mais ou 
menos ligados ao contexto a que pertencem;
• Constroem funções eternas, mesmo deixando de exercê-
-las na prática (por exemplo: todo ser humano é filho de 
pai e mãe, mesmo que corte relações com esta/e);
• Podem assumir várias configurações, de acordo com mo-
mentos históricos. 
Acredito que, ao se falar sobre famílias seja mais coerente 
sempre usar o plural. Quero enfatizar as várias possibilidades de se 
vivenciar e ser família, tanto com relação às configurações, quanto 
ao que cada pessoa define como sendo a sua família. As configura-
ções familiares têm muito mais relação com o contexto no qual estas 
vivem, do que com escolhas realizadas pelas pessoas que compõem 
uma família. Há ainda a possibilidade real de não se considerar vi-
vendo em família, mas sim, em um grupo social. 
Na atualidade, por conta da Política Nacional de Assistência 
Social de 2005, as famílias brasileiras têm estado em evidência; esta 
posição traz aspectos positivos, relativos ao acesso das famílias à 
proteção do Estado, mas também estas têm sido mais focalizadas. A 
culpabilização das famílias por conta de seus “fracassos” leva muito 
mais a uma desqualificação de seus membros, do que à posturas de 
acolhimento aos mesmos. Ao adotar um olhar não crítico, positivis-
ta, o indivíduo é a fonte de erros, frente a um mundo que funciona 
perfeitamente. Assim, culpabilizá-lo ou à sua família se torna o ca-
minho mais fácil e simplista. 
Outra questão importante é a psicologização das famílias; ao 
invés de se analisar as condições socioeconômicas em que vivem, 
encontro ideias que simplesmente “interpretam” as famílias sem 
que estas possam participar da “interpretação” juntamente com a/o 
profissional. Dessa forma, reforçam-se a hierarquia profissional e o 
olhar unilateral sobre as famílias. 
29 
Junto a isso, ocorre a descontextualização dessas famílias. 
Analisá-las fora do contexto em que vivem é focá-las sob ponto de 
vista idealizado, onde tudo pode e fica descolado da realidade. São 
concepções que pairam sobre as condições concretas de vida, como 
se fossem entidades independentes. Definições do tipo: “Família é 
a união de pessoas do mesmo sangue, que se amam e se protegem, 
promovendo a estabilidade do grupo.” A/o leitora/or já deve ter 
lido/ouvido pelo menos uma vez descrições desse tipo; e quem se 
reconhece como pertencendo a uma família assim? “Família é lugar 
de amor.” Somente isso? De que amor estamos falando? 
Aponto, ainda, as contradições existentes entre as atribuições 
do Estado, da escola, dos Conselhos Tutelares (nível público) e da 
intimidade, do lar, da família (nível privado); quem é responsável 
pelas famílias? O Estado ou a/o provedora/or da família? Há sem-
pre acusações entre estes lados, como se estivessem em caminhos/
posições opostos. No entanto, estão todos inseridos em um mes-
mo contexto, sofrendo as mesmas influências e tentando resolver 
problemas. Atitudes de parceria e acolhimento seriam muito mais 
solidárias e solucionáveis. Além disso, às famílias tem sido delegado 
o lugar da construção de vínculos e confiança: mas, só na família? 
Por que se incumbe à família este lugar? Se pela Constituição da 
República Federativa do Brasil o Estado tem como obrigação pres-
tar assistência às famílias em todos os níveis de sua vida, por que o 
afeto deve vir para as crianças e adolescentes somente das famílias? 
Todos os adultos significativos são importantes para estas pessoas, 
na construção de vínculos importantes.
As questões de gênero também estão presentes nas famílias; 
nestas se cristalizam os “papéis” de como ser homem/mulher. Das 
mulheres, exige-se que se vista com decência, com cores de roupa 
apropriadas; cria-se a mulher para que ela seja “pura” e incentiva-se 
o homem a ser o “garanhão”, o sedutor; perpetua-se a reprodução 
do machismo por nós, mulheres, através de tarefas destinadas às 
mulheres. O sistema patriarcal predomina na família.
30 
De acordo com Piscitelli (2009, p 132):
“Patriarcado” é um sistema social na qual a dife-
rença sexual serve como base da opressão e da 
subordinação da mulher pelo homem. O poder 
patriarcal pode ser entendido em função do âm-
bito familiar, como poder do pai sobre a esposa 
e sobre os filhos. Originalmente o termo se re-
fere aos patriarcas do Velho Testamento, como 
Abrahão, que era um anciãocom poder absoluto 
sobre mulheres, crianças, rebanhos e subordina-
dos. O termo foi usado também pelo cientista so-
cial alemão Friedrich Engels (1820-1895) e poste-
riormente por teóricas do feminismo para outros 
contextos históricos (tais como sociedades feu-
dais e capitalistas) em que haveria uma hierarquia 
muito forte baseada na estrutura familiar e no 
poder paterno. Em termos mais amplos, o poder 
patriarcal diz respeito à capacidade masculina de 
controlar o corpo da mulher, para fins reproduti-
vos ou sexuais.
Conforme a autora descreve, o sistema patriarcal, então, 
confina a mulher ao espaço privado e o homem ao espaço público 
da vida, o que vem se transformando, desde que as mulheres pas-
saram a ter que trabalhar fora de casa e ocuparem o espaço antes, 
“dos homens”. 
Defendo que as pessoas/famílias/grupos se tornam como 
estão, em função de um contexto mais amplo e, no caso brasileiro, 
de insegurança afetiva, econômica, social, de valores; de critérios de 
punição diferentes para membros da classe dominante e da classe 
dominada; da falta de condições de saúde, educação, trabalho e la-
zer; da diferenciação brutal de raças, como privilégios para brancas/
os e discriminação para negras/os e o sexismo; de preconceitos ar-
31 
raigados contra pessoas com baixo nível de escolaridade, como se o 
saber só viesse a partir de um diploma; da discriminação de pessoas 
de orientações sexuais diversas e diferentes daquela eurocêntrica, a 
heterossexual; enfim, como escolher “interpretar” famílias que “fo-
gem” ao padrão burguês psicologicamente falando, sem levar em 
conta todos os aspectos elencados acima e outros tantos mais?
Considerações finais
Qual tem sido o lugar social de psicólogas/os em nível na-
cional? O que se tem seguido em termos teóricos para alimentar e 
transformar estas práticas? 
Segundo Bock et al.: “A Psicologia tem reforçado formas de 
vida e de desenvolvimento das elites como padrão de normalidade e 
de saúde (...) Tem transformado em anormal o diferente, o ‘fora do pa-
drão dominante’.” (BOCK; GONÇALVES; FURTADO, 2001, p. 25).
Conforme já afirmei acima, a Psicologia brasileira, mesmo 
que tenha passado por muitas mudanças, ainda reforça padrões 
burgueses de comportamento, excluindo pessoas que não se en-
quadram nos mesmos.
Ainda de acordo com Bock, Gonçalves e Furtado (2001, p. 25) 
Fala-se da mãe e do pai sem falar da família como 
instituição social marcada historicamente pela 
apropriação dos sujeitos; fala-se da sexualidade sem 
falar da tradição judaico-cristã de repressão à sexua-
lidade; fala-se da identidade das mulheres sem se 
falar das características machistas de nossa cultura; 
fala-se do corpo sem inseri-lo na cultura; fala-se de 
habilidade e aptidões de um sujeito sem se falar das 
suas reais possibilidades de acesso à cultura; fala-se 
do homem sem falar do trabalho; fala-se do psico-
lógico sem falar do cultural e do social. Na verdade, 
não se fala de nada. Faz-se ideologia.
32 
As categorias psicológicas e da vida são, então, estudadas por 
muitas/os psicólogas/os como algo abstrato, descontextualizado, 
que existe por si só. São estudadas sem um compromisso com a 
“descristalização” de regras e normas burguesas. São, assim, a pró-
pria ideologia, que mascara a realidade social, econômica, cultura, 
etc., em nome da “essência psicológica”. 
Não há, assim, escolha para quem quer se tornar profissional 
da Psicologia; o CEPP já aponta para uma atuação crítica por parte 
desta/e profissional; aquela/e voltado à contextualização de fatos 
e fenômenos, ao entendimento de comportamentos não abstratos 
ou neutros, mas construídos socialmente. Esta profissão mostra a 
construção horizontalizada do saber, da troca de conhecimentos en-
tre o acadêmico e o social. Indica a direção da análise crítica das re-
lações de poder e do posicionamento profissional frente às mesmas. 
A direção apontada pelo CEPP é para bem longe de análises positi-
vistas que culpabilizem pessoas/famílias como se fossem o motivo 
do fracasso ou do sucesso, como se isto viesse de esforço individual.
Finalizo com Bock, Gonçalves e Furtado (2001, p.35) nova-
mente, que pretendem que a ação profissional seja baseada na
(...) Psicologia Sócio-Histórica [que] produzirá 
conhecimentos com outros pressupostos, aban-
donando a pretensa neutralidade do positivismo, 
a enganosa objetividade do cientista, a positivi-
dade dos fenômenos e o idealismo, colando sua 
produção à materialidade do mundo e criando a 
possibilidade de uma ciência crítica à ideologia 
até então produzida e uma profissão posicionada 
a favor das melhores condições de vida, necessá-
rias à saúde psicológica dos homens [pessoas] de 
nossa sociedade.
33 
REFERÊNCIAS
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introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva, 1999.
BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M.; FURTADO, O. (orgs.) Psi-
cologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Pau-
lo: Cortez, 2001. 
CARVALHO, M. C. B. A priorização da família na agenda da política so-
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tudo. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNICEF, 1994.
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sional dos Psicólogos. Brasília, 2005.
FERRARI, M.; KALOUSTIAN, S. M. Introdução. In: KALOUSTIAN, S. 
M. (Org.) Família brasileira, a base de tudo. São Paulo: Cortez; Brasí-
lia, DF: UNICEF, 1994.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sín-
tese de indicadores sociais. Uma análise das condições de vida da po-
pulação brasileira. Rio de Janeiro, 2011.
JOSÉ FILHO, M. A família como espaço privilegiado para a constru-
ção da cidadania. Franca: UNESP – FHDSS, 2002. (Série Dissertações 
e Teses, n. 5).
PISCITELLI, A. Gênero: a história de um conceito. In: ALMEIDA, H. 
B.; SZWAKO, J. E. (orgs) Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & 
Vertecchia, 2009, p. 116-148.
SOARES, A. C. N. Mulheres chefes de família: narrativa e percurso ideo-
lógico. Franca: UNESP – FHDSS, 2002. (Série Dissertações e Teses, n. 8).
I SIMPÓSIO NACIONAL PSICOLOGIA E COMPROMISSO SO-
CIAL. Da Crítica à Psicologia à Psicologia Crítica: Embaraços no 
Percurso, PUC – SP, 2017. (anotações pessoais).
CAPÍTULO II
A aliança entre ciência e 
progresso: a conversão da 
razão em domínio
Larissa Leão de Castro
RESUMO
Este trabalho investigou a pré-história da razão de domínio 
na ciência na forma mais sofisticada do positivismo elaborado por 
Émile Durkheim. Vale ressaltar que os princípios epistemológicos 
construídos por essa corrente de pensamento formam a base do 
desenvolvimento do positivismo nas diferentes áreas das ciências 
humanas, com suas especificidades. Uma pergunta recolocada é por 
que o processo progressivo de compreensão pela razão se transfor-
mou em total dominação, especificamente por essa corrente que se 
mantém dominante na ciência? Objetivou-se compreender as duas 
principais bases sobre as quais o capitalismo se erigiu e se sedimen-
tou: o surgimento da ciência na modernidade e o surgimento e pre-
36 
domínio da nova figura social que é o indivíduo. Lê a problemática 
dessas bases que produziram fortunas e exclusão a partir de Belaval, 
Hobsbawm e Horkheimer. O estudo postula que há uma aliança 
necessária e imprescindível entre ciência, barbárie e constituição 
subjetiva individualista para a conservação do que a modernidade 
considera como progresso. Por isso a importância de analisar seus 
nexos constitutivos sob um ponto de vista histórico, na aposta de 
que, pela análise da razão de domínio na ciência e da constituição do 
indivíduo moderno seja possível revelar alguns elementos presen-
tes na razão de domínio da sociedade em geral. A partir da crítica 
da razão de domínio na sociedade por meio da análise da razão de 
domínio na ciência evidencia-se que essa corrente construiu meios 
sofisticados de legitimação da eliminação do outro, do racismo e da 
violência; sendo impossível reafirmar essesinteresses ao analisá-los, 
pelo irracional, desumano e violência que carrega.
Palavras-chave: Positivismo. Razão de domínio. Capitalismo. 
Indivíduo. Eliminação.
Introdução
Ao longo da história, a pergunta e curiosidade acerca do que 
é o conhecimento, se ele é possível e quais são as condições para se 
apreender a realidade sempre existiram. No entanto, nos diferentes 
momentos históricos, as respostas dadas diferem significativamente, 
o que, por sua vez, revela que a história mantém íntima relação com 
a elaboração das respostas obtidas. 
Na modernidade, perguntas acerca do conhecimento trans-
formam-se e ganham uma especificidade com o surgimento da ciên-
cia. Cabe ressaltar que a ciência nasceu no mundo moderno, cujo 
principal marco que sintetiza essa passagem se deu com o teórico 
René Descartes (1596-1650), sobretudo em sua obra O Discurso do 
Método (1996). A principal pergunta que o move é: o homem pode 
37 
conhecer? Já no início da obra, elabora suas primeiras e definitivas 
reflexões acerca dessa questão:
O bom senso é a coisa mais bem distribuída do 
mundo: pois cada um pensa estar tão bem pro-
vido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se 
satisfazerem com qualquer outra coisa não cos-
tumam desejar mais bom senso do que têm. As-
sim, não é verossímil que todos se enganem; mas, 
pelo contrário, isso demonstra que o poder de 
bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, 
que é propriamente o que se denomina de bom 
senso ou razão, é por natureza igual em todos os 
homens; e portanto que a diversidade de nossas 
opiniões não decorre de uns serem mais razoá-
veis que os outros, mas somente de que conduzi-
mos nossos pensamentos por diversas vias, e não 
consideramos as mesmas coisas (DESCARTES, 
1996, p. 5, grifo inserido).
O filósofo nota que a razão, a capacidade de distinguir o ver-
dadeiro do falso, é uma faculdade de todos os homens e não um 
privilégio de poucos. Até então a razão era concebida como uma dá-
diva de Deus, destinada a poucos, reservada ao terreno da filosofia. 
A proposta cartesiana apresenta uma reflexão de alcance revolucio-
nário, marco do surgimento das ciências humanas e sociais.
A razão passou a ser concebida como uma prerrogativa hu-
mana universal que distingue os homens dos animais. A ressonância 
do pensamento contido na obra de Descartes foi definitiva para o 
nascimento e constituição das ciências humanas e sociais. Se a razão 
é uma faculdade humana, ela não está mais reservada aos poderes 
divinos ameaçadores e, muito menos, reservada a poucos. A ciência 
então surgiu como um fato novo, em um contexto de criação do 
mundo moderno e o que é fundamental: os acontecimentos do ho-
38 
mem passaram a ser estudados por ela (RESENDE, 2013).5
Ao mesmo tempo, essas reflexões são analisadas por Belaval 
(1976) em sua relação com uma transformação que ocorria no ter-
reno da história. O autor assinala que, até o século XV, a Europa 
era profundamente religiosa, mas essa característica se fragilizou, 
após as reformas de Lutero, de Calvino, da contrarreforma jesuíta, 
em um processo de fragmentação progressiva correlata à criação de 
uma multiplicidade de seitas. No século XVII, a religião e Deus já 
não eram capazes de explicar o mundo e nem garantir a verdade do 
conhecimento, como o era, até então.
 Ocorreu, portanto, um processo contínuo de dessacralização 
do mundo, ou seja, a razão passa a libertar o homem dos pode-
res sobrenaturais e punitivos, ao ser concebida como a capacidade 
de decifrar o mundo pelo próprio entendimento, que, por sua vez 
é inerente ao humano. A partir de Descartes (1996), sendo uma 
prerrogativa humana e não privilégio de alguns, a indagação sobre a 
possibilidade de o homem conhecer é respondida definitivamente, 
e então, a questão fundamental passa a ser: como se conhece? (RESEN-
DE, 2013)6.
Nesse sentido, na obra de Descartes (1996, p. 33) está pre-
sente uma discussão sobre como o homem pode conhecer, as pos-
sibilidades de “bem julgar”, as virtudes necessárias para o bem 
proceder, pela melhor maneira possível, pelo entendimento, sem 
que se imponha uma forma estanque e única para chegar ao co-
nhecimento verdadeiro.
Apesar dessa reflexão, a utilização da razão ao extremo criou 
uma corrente racionalista de pensamento que se desenvolveu e des-
cambou no apego e na idealização das regras como produtoras do 
conhecimento verdadeiro. Essa tendência de racionalismo chega ao 
5 Anita C. A. Resende, na disciplina Conhecimento e Sujeito, ministrada na Faculdade de Educa-
ção da Universidade Federal de Goiás, no primeiro semestre de 2013, na cidade de Goiânia.
6 Apontamentos analíticos de sala de aula (março, 2013)
39 
extremo de formalização de regras, de pressupostos e se atém à sua 
reprodução como garantia da verdade.7 Belaval (1976) analisa que 
esse movimento, correlato à progressiva dessacralização do mundo, 
acaba por se converter em pura fé na razão, em um extremo mecani-
cismo do cogito pela formalização de regras e sua reprodução: “Essa 
corrente cruzará o século XVIII e, através dos ideólogos, fecundará 
o positivismo e, nos nossos dias, o neopositivismo e a filosofia ana-
lítica” (BELAVAL, 1976, p. 7, tradução nossa).
Nessa perspectiva, as duas questões fundamentais que guia-
vam a reflexão sobre o conhecimento se converteram – no mundo 
moderno e como produto da ciência – na pergunta de como o co-
nhecimento deve proceder para ser reproduzido, segundo regras e 
pelo apreço à forma. O conhecimento passou a ser válido não mais 
por ser uma prerrogativa humana, mas por seguir determinadas re-
gras e procedimentos (e reproduzi-las como o único procedimento 
verdadeiro e seguro).
Em outros termos, uma questão epistemológica tornou-se 
uma questão metodológica. Dessa forma, com o surgimento da 
ciência, a razão converteu-se em forma. Nesse sentido, perdeu-se 
a capacidade de reflexão e a razão tornou-se um procedimento 
de reprodução da formalização produzida, portanto, um proces-
so de crença de que seguindo as regras existentes, garante-se a 
verdade. A dessacralização converteu-se em sacralização da razão8 
(RESENDE, 2013).
Atrelada a essa lógica, surgiu a ideia de progresso, com as 
transformações características que ocorreram nesse momento his-
tórico. A esse respeito, Belaval (1976) pontua que, no final do século 
XVII, só a Europa se tornou conquistadora em diversos âmbitos: na 
astronomia, no comércio, na conquista dos novos continentes, nos 
avanços tecnológicos, o que tem ressonância profunda na ciência. 
7 Apontamentos analíticos de sala de aula (março, 2013)
8 Apontamentos analíticos de sala de aula (março, 2013)
40 
Trata-se de transformações em um momento de dominação e que 
afetam até o processo de ensinamento.
Percebe-se as implicações dessas mudanças nos primórdios da 
ciência e Descartes (1996) já identifica suas tendências e contradições. 
Em sua obra O Discurso do método está presente a preocupação cientí-
fica com o progresso, com a produção de um conhecimento útil. A 
ideia do progresso estava ligada ao domínio da natureza, à pretensão 
do homem de ser senhor da natureza; e no caso da ciência, da produ-
ção de um conhecimento que tenha utilidade para a vida. 
Nessa nova época, prevalece a promessa de produzir o pro-
gresso útil para a vida. Na obra de Descartes (1996), essa promes-
sa aparece com o sentido da utilização adequada, de promoção da 
saúde para todos. Ao mesmo tempo em que se encantava com a 
aliança entre ciência e progresso, o filósofo francês receava que esse 
progresso pudesse não beneficiar a todos, mas a alguns poucos e, 
além disso, pressentia que, para beneficiar uns poucos, muitos se-
riam prejudicados, conforme a cadência da época:
De resto, não quero falar aqui em particular dos 
progressos que tenho esperança de fazer futura-
mente nas ciências, nem fazer ao público qual-
quer promessa que não tenha a certeza de cum-
prir; mas direi apenas que resolvi não empregar o 
tempo que me resta de vida em nada mais salvo 
procurar adquirir algumconhecimento da natu-
reza, que seja tal que dele se possam tirar regras 
mais seguras para a medicina do que as que tive-
mos até hoje; e que minha inclinação me afasta 
tanto de outros projetos, principalmente daque-
les que só poderiam ser úteis a uns prejudicando 
outros, que, se algumas circunstâncias me obri-
gassem a dedicar-me a eles, não creio que fos-
se capaz de ser bem-sucedido... (DESCARTES, 
1996, p. 85-86).
41 
Para o teórico, a aliança entre ciência e progresso fazia sentido 
se produzisse um avanço na saúde, se permitisse a fruição do lazer 
e não do luxo e se tivesse por objetivo o bem comum, ou seja, que 
favorecesse a todos e não a alguns e muito menos que prejudicasse 
a alguém. No entanto essa promessa, materializada também no ter-
reno da ciência, mostrou-se ilusória, converteu-se em puro domínio 
da natureza e exploração dos homens pelos seus semelhantes. “A 
razão passou a ser de utilidade para o desenvolvimento tecnológico 
e a distinção entre o verdadeiro e falso reduziu-se ao cumprimento 
ou não de regras e ao que é útil ou não” (RESENDE, 2013)9.
Uma pergunta que deve ser recolocada – porque ainda não 
foi superada na realidade até os dias atuais – é por que o processo 
progressivo de compreensão pela razão se transformou em total 
dominação, especificamente pela corrente dominante na ciência de-
nominada positivismo? E por que esse progresso se mantém como 
a lógica predominante do mundo moderno, produzindo fortunas? 
Qual é a lógica presente na razão de domínio característica do mun-
do moderno?
Pretende-se estudar essas questões tendo como objeto de es-
tudo a razão de domínio na ciência, especificamente objetivando 
a análise da corrente positivista, em virtude da ressonância que a 
razão de domínio teve nessa corrente que se mantém predominan-
te até a atualidade. Tendo em vista que a excessiva racionalização 
terminou se constituindo no positivismo francês, objeto de análise 
deste estudo, optou-se pelo estudo de alguns aspectos centrais da 
obra As regras do método sociológico (2001), de Émile Durkheim (1858-
1917), por ser um grande emblema do conhecimento reduzido à 
aplicação de regras. 
O presente trabalho parte da compreensão de que, para 
compreender e interpretar as profundas mudanças no processo de 
produção do conhecimento, é impossível não se debruçar sobre o 
9 Apontamentos analíticos de sala de aula (março, 2013)
42 
contexto de profundas mudanças na história, mentalidade e estilos 
de vida individuais em que esse pensamento se deu. Hobsbawm 
(1977) trabalha uma noção fundamental que permite lançar luzes 
sobre algumas das múltiplas determinações das profundas mudan-
ças ocorridas: o surgimento do indivíduo na história da humani-
dade. O resgate do surgimento do indivíduo no mundo moderno, 
que aparece como pano de fundo deste trabalho, em muito revela a 
forma de conhecer da ciência que é solidária ao seu surgimento ao 
longo da história.
Assim, percorrido brevemente o caminho que mostra o de-
clínio do pensamento filosófico e o pontapé do nascimento do 
pensamento científico moderno, a proposta de refletir sobre a ra-
zão de domínio na ciência é uma aposta de que, pela análise dessa 
escola de pensamento, o positivismo, que se mantém predominan-
te e que se alia com o progresso produzido no modo de produção 
capitalista do mundo moderno, seja possível estabelecer um diá-
logo e revelar alguns elementos presentes na razão de domínio da 
sociedade moderna. 
O SURGIMENTO DO INDIVÍDUO NA HISTÓRIA DA 
MODERNIDADE
Surgimento do indivíduo: processo lógico-histórico
Na obra A Era das Revoluções, o historiador Eric J. Hobsbawm 
(1977) analisa o período compreendido entre 1789-1848 e as duas 
revoluções que foram o marco do mundo moderno e do desenvol-
vimento do capitalismo. 
Percorre-se por meio dessa obra as transformações e seus 
entrelaçamentos nos diversos âmbitos da vida social, dos quais ne-
nhum deixou de ser afetado e constitutivo do desenvolvimento do 
capitalismo: na religião, na política, na ciência, alcançando até as ar-
tes, a forma de amar, de relacionar-se e se constituir do homem em 
43 
“um mundo no qual todos os laços sociais se desintegravam, exceto 
as relações entre ouro e papel-moeda” (HOBSBAWM, 1977, p.58).
Uma característica determinante dessa nova deu-se pelo fe-
nômeno da progressiva urbanização. O mundo europeu essencial-
mente rural foi ultrapassado definitivamente por volta de 1851, mas 
“por volta de 1789 podem ser chamadas de genuinamente grandes 
segundo os nossos padrões – Londres, com cerca de 1 milhão de 
habitantes, e Paris, com meio milhão – e umas 20 outras com uma 
população de 100 mil ou mais (...).” (HOBSBAWM, 1977, p. 33). 
Nessas cidades, que tinham como característica uma intensa 
produção econômica das fábricas, nasceram os subúrbios e o novo 
homem, denominado indivíduo pelos teóricos. Uma nova figura que 
remetia ao habitante da cidade, isolado no meio da multidão, com 
suas contradições constitutivas que se expressavam desde “jovens e 
ardentes ambiciosos para fazer fortuna ou revoluções (...)” (HOBS-
BAWM, 1977, p. 34), como Robespierre e Napoleão.
Ressalte-se que o surgimento do indivíduo se deu por um pro-
cesso lógico-histórico. Lógico, porque as ideias que ali estavam pre-
sentes se fizeram realidade e movimentavam a história; e histórico, 
já que intimamente relacionado com processos históricos definitivos, 
como o da Revolução Francesa, descambando na queda da Bastilha. 
Napoleão é bem emblemático desse processo que fez do conheci-
mento realidade, e da realidade conhecimento 10 (RESENDE, 2013). 
Nesse sentido, a nova forma de conhecer também é solidária do sur-
gimento do indivíduo, estudar seu surgimento ao longo da história 
possibilita revelar essa forma de produção do conhecimento.
Para entender o surgimento do indivíduo, considere-se como 
marco definitivo e criador da modernidade a Revolução Francesa de 
1979, por ser um grande emblema de como as transformações deter-
minaram a política e ideologia do século XIX, da qual a modernidade 
é herdeira. Essa foi a revolução social de massa mais radical, produto-
10 Apontamentos analíticos de sala de aula (março, 2013)
44 
ra de consequências profundas em todo o mundo, “(...) um marco em 
todos os países. Suas repercussões, ao contrário daquelas da Revolu-
ção Americana, ocasionaram os levantes que levaram à libertação da 
América Latina depois de 1808.” (HOBSBAWM, 1977, p. 100).
A grande promessa do progresso era inquestionável, alcan-
çando todas as correntes iluministas. Nesse sentido, Hobsbawm 
(1977, p.47) aponta que a ciência, a produção, a economia e o 
comércio se aliaram para produzir riquezas e avanço tecnológico 
de tal forma que a ciência passou a se dedicar “à solução dos pro-
blemas produtivos”.
O programa do liberalismo surgia nesse momento e se con-
solidava como característica fundamental do capitalismo, que era o 
cerne do ideal racional egoísta do novo habitante da cidade, o indi-
víduo, que dizia respeito a um espírito empreendedor e engajado no 
lucro privado como o supremo objetivo de vida. 
Corolário a esse quadro, a figura intrigante do indivíduo que 
estava surgindo ganhava força e se tornava predominante na socie-
dade. Napoleão (1769-1821) é o símbolo maior que sintetiza a cons-
tituição e consolidação do homem na forma de indivíduo na história 
da modernidade. Em uma época em que os grandes homens eram 
os herdeiros da coroa, ele representou a superação dessa tradição, 
pois era um homem comum que irradiava inteligência, ambição e 
que não dependia de hereditariedade para ter o céu como limite – 
como acontecia com os reis –, tornando-se um mito.
Napoleão surgiu em um momento fundamental da Revolução 
Francesa, pois o descontentamento e o desemprego aumentavam 
em grande medida e a promessa do progresso começava a mostrar 
sua falsidade, seus penosos e sérios custos sociais. 
O domínio, a inteligência, a conquista, a força e a grandeza de 
Napoleão, em todos os sentidos, adquiriram fundamentalimportân-
cia para a solidificação do capitalismo e para o desenvolvimento do 
indivíduo e de sua busca pelo interesse próprio. 
45 
Hobsbawm (1977) expõe que o ideal da Revolução France-
sa de liberdade – encarnada no indivíduo livre, que rompe com 
a tradição e a família, se dispondo a ser um Napoleão das finan-
ças, ou da indústria, do comércio, do intelecto, da ciência – que 
ganhava força avassaladora. Um dado intrigante desse processo 
pode ser constatado com a seguinte citação do historiador acerca 
da figura de Napoleão:
Ele trouxe estabilidade e prosperidade para to-
dos, exceto para os 250 mil franceses que não re-
tornaram de suas guerras, embora mesmo para 
os parentes deles tivesse trazido à glória (HOBS-
BAWM, 1977, p. 131, grifos inseridos).
Essa passagem é emblemática da força avassaladora de Napo-
leão e da consolidação da forma do novo homem como indivíduo, 
da profunda simpatia e admiração que causava. Conforme analisa 
Hobsbawn (1977), essa época já dava sinais de suas graves conse-
quências, uma vez que a vantagem econômica contida na busca do 
lucro e dominação sem amarras, pelo ideal de indivíduo livre, pro-
duzia um grande custo social, como a guerra. Ao mesmo tempo, o 
vislumbre do progresso era tão avassalador que, para os próprios 
parentes, cujos entes próximos pagaram essa busca com a própria 
vida, o progresso configurava-se como símbolo de glória.
O historiador traça então as principais bases, do ponto de vis-
ta da história, sobre as quais o capitalismo se erigiu e se sedimentou: 
pelo liberalismo e individualismo seculares, característicos e impres-
cindíveis para o desenvolvimento do modo de produção capitalista. 
Fica claro então que, por um penetrante individualismo, 
nada escapava ao império do interesse próprio, à utilização do que 
lhe aprouver a cada um na busca da felicidade egoísta. Assim, o 
historiador analisa que as formas de relacionamento sociais se da-
vam sobretudo pela competição e aproximação do outros e de 
46 
grupos, pela utilidade que delas poderia resultar. Conforme essa 
análise faz-se mister pesquisar a forma predominante que o pro-
cesso de reconhecimento ganhou na relação com o outro, como 
será aprofundado adiante.
Da individualidade e reconhecimento à individualização 
e pertencimento
Horkheimer (1895-1973), um dos grandes estudiosos do que 
se convencionou denominar teoria crítica da escola de Frankfurt, 
desenvolve questões fundamentais no que diz respeito ao contexto 
histórico analisado e a razão de domínio que o constitui. A sua obra, 
Eclipse da Razão (2002) tem por objetivo indagar acerca do conceito 
de racionalidade predominante no mundo moderno ocidental – um 
dos objetivos do presente trabalho. O caminho que o autor segue 
perpassa a discussão de “algumas escolas de pensamento predo-
minantes como refrações de alguns aspectos de nossa civilização.” 
(HORKHEIMER, 2002, p. 8), e o positivismo é uma delas.
O autor nessa obra analisa a íntima e coesa relação entre a 
lógica do indivíduo e do surgimento e da constituição da ciência 
moderna – que tem por objeto o indivíduo – no que dizem respeito 
às respectivas instrumentalizações de si mesmo e do outro, em bus-
ca do exclusivo interesse individual, próprio da ideologia neoliberal, 
da constituição do indivíduo isolado e da ciência funcional, utilitária.
A contradição fundamental da reflexão exposta pelo autor é 
que, nessa época, segundo sua própria lógica, havia a promessa fun-
dada na razão objetiva, ou seja, uma razão que prometia a realização 
pessoal indissociada dos valores universalmente humanos de digni-
dade, dos ideais universais de realização de fins humanos, em que se 
pesava o destino da humanidade e do bem comum. 
Os sonhos mais difíceis de serem realizados passaram a ser 
idealizados na forma do indivíduo, exigindo um imenso sacrifício de 
isolamento, de negação de si mesmo e dos outros. Nesse sentido, o 
47 
não reconhecimento, a fragmentação, o isolamento, tornaram-se va-
lores a serem buscados, isto é, tornar-se independente, não precisar 
de ninguém. Retomando o percurso de como a razão se converteu 
em forma (de Descartes ao positivismo), percebe-se claramente o 
alcance desse processo na ciência:
Os ideais e conceitos básicos dos metafísicos 
racionalistas estavam enraizados no conceito 
do universalmente humano, da espécie humana, 
e sua formalização implica que eles foram se-
parados do seu conteúdo humano. Como essa 
desumanização do pensamento tem afetado os 
próprios fundamentos da nossa civilização (...) 
(HORKHEIMER, 2002, p. 31).
A desumanização do pensamento caminhou, nesse mesmo 
sentido, solidária ao surgimento do indivíduo, para quem, por sua 
vez, há duas possibilidades contraditórias expressas pelo autor nos 
conceitos de “individualidade” e “individualização”. O indivíduo 
surgiu na modernidade como a pessoa que pensa por si mesma, 
fonte de autoria – tendo criatividade e potencialidade de desenvol-
vê-las na arte, na pintura, pelo poder da imaginação. Na literatura, 
aparecia a ideia nova de gênio, com originalidade e criação, próprias 
de alguém singular. 
Nesse sentido, o indivíduo tinha a possibilidade de efetivação 
da individualidade nos relacionamentos sociais, o que remete a ideia 
do reconhecimento e diferenciação na relação com o outro e com 
o mundo, à potencialidade do ser consciente, com capacidade de 
reflexão e juízo independentes, produtores de autonomia. 
Contraditoriamente, a individualidade – a nova promessa do 
homem moderno – convertia-se em extremo individualismo, como 
produto da pressão social e econômica. Horkheimer (2002,) adverte 
que a individualidade já existia e era pensada por Sócrates como va-
lorização da autonomia do indivíduo. A novidade, da modernidade, 
48 
porém é que a individualidade passou a ser uma forma predominan-
te de criação/formação. 
Sob a égide do liberalismo, na estratégia do lucro, da conquista 
e poder em busca do interesse próprio, o pesquisador analisa que se 
produzira o sintoma de forte ansiedade repressiva, motor da extre-
ma “preocupação com o sucesso” (HORKHEIMER, 2002, p. 76) e 
adaptação automática ao existente. Seguindo a trilha da tirania do pro-
veito próprio, em contraposição ao bem comum, o indivíduo é utiliza-
do como meio, em todos os aspectos, e a independência é associada à 
escolha automática dos fins, geralmente insensata, e que consiste em 
pura reprodução do existente. Nesse sentido, o espírito da utilidade 
e da funcionalidade tornam-se presentes em tudo o que a pessoa faz, 
penetrando a vida social em todos os setores e mantendo o “ideal de 
produtividade: em relação às estruturas de poder e não em relação às 
necessidades de todos” (HORKHEIMER, 2002, p. 158).
Os efeitos contraditórios desse processo é que, embora a for-
ma do indivíduo nunca tenha sido tão afirmada, atingindo seu maior 
apogeu, ao mesmo tempo, há sua completa negação, abolição.
O autor aponta que esse sistema embrutecedor idealiza o 
individualismo como um fim heroico de conquistas e realizações, 
mesmo que se pague com extermínio, miséria, pobreza, morte e 
a guerra, como analisado. Horkheimer (2002, p. 133) evidencia a 
íntima relação entre a crise da razão e do indivíduo, apresentando a 
seguinte tese: “A crise da razão se manifesta na crise do indivíduo 
por meio da qual se desenvolveu.”.
Há que se analisar um aspecto específico da forma do meca-
nismo de reconhecimento quando as leis do mercado alcançaram as 
relações afetivas, acarretando o que Horkheimer (2002) denomina 
resignação à insegurança, produtora da adesão ao existente e da não 
resistência a ele. 
Existe a tendência, em níveis cada vez maiores, de individua-
lização e de isolamento do indivíduo nas cidades, mantidos pelo 
49 
ideal de realização que se vislumbra. Ser livre, independente, não 
ter que ser reconhecido por ninguém, tornam-se valores. Ao mes-
mo tempo, como a necessidade humana de reconhecimento pelo 
outro é imanente, na particularidade histórica do capitalismo, essa 
busca sedá como “meio”, objeto de uso pelo outro para alcan-
çar os fins próprios da competição, de se isolar e se individualizar 
ainda mais. Os sentidos de solidariedade, de reconhecimento em 
causas coletivas não passam de mera ilusão, nem chegam a ser um 
ideal a ser vislumbrado.
Contraditoriamente, há uma necessidade maior de pertenci-
mento. As relações são estabelecidas predominantemente em razão 
dos cargos, de profissões fragmentadas, de funções que as pessoas 
ocupam, de tal forma que o reconhecimento pelo outro se dá pre-
dominantemente no pertencimento à uma classe, à uma moda, a 
um estilo arquitetônico, à ciência, a agrupamentos cada vez mais 
uniformes que constroem e afirmam a identidade do indivíduo pela 
negação de outros grupos não idênticos a ele. 
Nesse processo de individualização, os laços afetivos duradou-
ros tonam-se cada vez mais frágeis e reduzidos. A exacerbação desse 
processo, atrelado ao isolamento acentuado, leva a adesão a grandes 
sacrifícios. O indivíduo constitui-se afeito ao ideal da dor e de sua 
premiação, ao ideal do lucro, do sacrifício dos relacionamentos, do 
desprendimento da tradição e da família para poder ser livre e fazer o 
que quiser, sem depender de ninguém, de nenhum outro ou de algum 
reconhecimento, além de si mesmo, com um alto grau de egocentris-
mo. A busca é a uniformização nesse ideal, nas funções, nos cargos e 
grupos que se afirmam na negação de outros grupos. 
Como será analisado em profundidade adiante, o procedimen-
to racional e egoísta do indivíduo é correlato ao procedimento ra-
cional e científico do positivismo, que se consolida pela classificação 
progressiva, estabelece a uniformidade da média e a afirma, preten-
dendo eliminar qualquer diferença que vá além do normal que a mé-
50 
dia capta. O procedimento racional é o mesmo: o que não é o indiví-
duo, não é a média, deve ser transformado; como não é verdadeiro, 
deve ser negado, chegando ao ponto de pretender-se eliminá-lo. 
Então, pode-se perguntar: o indivíduo que submete-se em 
grau elevado a esse procedimento racional, que nega o que é di-
ferente nele mesmo e no outro, pelo processo da individualização, 
que se submete ao que o normal e ao que a média lhe impõe, como 
poderia ter outros valores senão os que lhe são próprios? Já que o 
coletivo, como forma de pertencimento, exige do indivíduo a nega-
ção de si mesmo naquilo que o diferencia da norma padrão, quais 
são as possibilidades de ele se reconhecer e se constituir pelo outro, 
independentemente de classes, ou seja, qual a possibilidade de se 
reconhecer em uma causa coletiva, se esse coletivo é tão hostil a 
qualquer causa comum a todos?
A classificação exige a hierarquização e a negação do outro 
em graus diferenciados, requer a eliminação de tudo o que é diferen-
te da média. Esse é o “princípio da maioria” predominante na so-
ciedade, como analisa Horkheimer (2002, p. 31). Que causa comum 
o indivíduo constituído por essa lógica poderia ter com o coletivo, a 
não ser a mesma que oferece: negação do diferente em si e no outro 
como forma de pertencimento? 
Em suma, esse procedimento racional é uma expressão geral 
da sociedade, da qual nenhuma expressão de vida permanece imune, 
porém, em menor ou maior grau, resiste-se a ele. Em níveis e graus 
diferentes há espaços, até mesmo na ciência, que se opõe mais ou 
menos a esse procedimento. A família, por exemplo, segundo alguns 
autores, pode ser o maior emblema das possibilidades de uma maior 
resistência a essa lógica, pois o afeto sobrepõe-se à racionalidade 
da mercantilização e à coisificação das relações. Além disso, apesar 
de o reconhecimento ser convertido em pertencimento na forma 
predominante da sociabilidade moderna, não quer dizer que ele seja 
isento de contradições. 
51 
O POSITIVISMO FORMALIZADO POR ÉMILE 
DURKHEIM
Durkheim (1858-1917), pela formulação de suas obras e, espe-
cificamente, pela obra As Regras do Método Sociológico (2001) constitui 
um marco do surgimento das ciências sociais, sendo de fundamental 
importância seu estudo. O autor radicaliza e potencializa a aplicação 
do positivismo formulado por Comte (1798 - 1857) e Spencer (1820 
– 1903), superando-os no rigor do trato das regras de conhecimen-
to dos fenômenos sociais. Sua obra é a expressão mais elaborada 
da conversão do conhecimento em regra. Suas discussões centrais 
descrevem, com muita precisão, a sociedade em que vivemos, sendo 
imprescindível sua análise, pois possibilita a compreensão da razão 
de domínio na ciência e joga luz sobre a compreensão da razão de 
domínio da sociedade.
O a priori do positivismo que auxilia a compreender as ra-
zões de ele prescrever e pretender conservar as leis presentes na 
sociedade pode ser encontrado na concepção de história da tradição 
dessa corrente. A ideia de história, segundo em Durkheim (2001, p. 
45), tributária da concebida por Comte, concebe o desenvolvimento 
cronológico da história da humanidade como progresso e “evolução 
contínua do gênero humano”.
Para Durkheim (2002, p. 52), após as leis serem descritas, elas 
são prescritas “como moldes nos quais temos a necessidade de va-
zar as nossas ações”. Essa ideia solidifica-se, recolocando o seu en-
tendimento sobre a relação sujeito e objeto presente nessa tradição. 
Nela, os fatos sociais devem ser considerados como coisa, já que 
independem do indivíduo, pois neles se percebem frequência, regu-
laridade, constância, que devem ser analisados mais do que “fatos 
naturais”, como apontava Comte e Spencer, mas como coisa, na 
exterioridade que isso implica, pois nada depende de ninguém em 
suas leis. O autor cita a moda, os códigos do direito, as estatísticas, 
como exemplos das leis sociais.
52 
Nessa perspectiva, as variações dos sentidos envolvidos, por 
exemplo, na moral, política, economia, “não são menos fundadas na 
natureza das coisas do que as partes imutáveis; as variações por que 
passam as primeiras testemunham simplesmente que as próprias coi-
sas variam.” (DURKHEIM, p. 61). Nesse sentido, todas as transfor-
mações, ao longo do tempo, só constatam as leis da natureza de que 
as coisas se transformam e, nada há além disso. A superficialidade 
dessa análise revela a incapacidade de considerar as transformações 
da história como objeto de estudo, no que elas podem revelar delas 
mesmas, o que não é objeto de compreensão, mas somente de consta-
tação de seu aparecimento, sendo, elas, portanto, naturalizadas.
Assim, o autor aponta a necessidade de analisar com neutralida-
de os fatos sociais, no que comportam de naturais, não como nexos e 
mediações constitutivas próprios da história. Existe então uma lógica 
em deter-se nas características aparentes e semelhantes dos fenôme-
nos sociais, estritamente naquelas que afirmam o que pode ser consta-
tado como frequente, regular, e que podem ser comparadas pelo que 
de idêntico há na realidade e que se repete. Para Durkheim (2001,), 
as variações – que nada dizem em relação ao que ocorre com maior 
frequência nos fatos sociais – devem ser isoladas e eliminadas. 
Assim, alcança-se o “objeto fixo”, um “padrão constante”, ga-
rantindo a neutralidade científica e estabelecendo “as primeiras ba-
ses da ciência sobre um terreno firme e não sobre areias movediças.” 
(DURKHEIM, 2001, p.66). A aproximação do objeto dá-se pela se-
gurança, que, por sua vez, se caracteriza por se aproximar do idêntico 
e regular dos fenômenos e captá-lo, mediante o isolamento e a elimi-
nação do diferente, variável, daquilo que envolve a subjetividade.
Pode-se tentar compreender com maior clareza a busca do 
idêntico quando Durkheim (2001, p. 42) discute as regras fundamen-
tais da observação dos fenômenos, e como a ciência deve dirigir-se 
ao seu objeto de estudo: “Esta vai das ideias para as coisas, e não das 
coisas para as ideias.”. Nesse ponto, o autor revela uma dificuldade de 
53 
alcançar o objeto, já que as ideias estão prontas e, só se vai ao objeto 
para verificá-las e não para compreender o que ele revela. 
Nessa perspectiva,o que é constatado como de maior fre-
quência na sociedade é compreendido por essa corrente como sen-
do a natureza das coisas, e, por conter o igual, entre elas, é identifi-
cado no plano da ciência como bom, e, caso não seja encontrado no 
objeto de estudo específico que difere do frequente, é prejudicial, 
portanto, deve ser eliminado. Nesse sentido, pesquisa instrumental 
é um meio de utilidade da sociedade, para diferenciar o que na na-
tureza existe, e que é bom, e deve ser conservado, do que é mau e 
deve ser eliminado. As demandas que a ciência recebe da socieda-
de devem ser realizadas e não compreendidas; esta é a utilidade da 
ciência: “As carências que é chamada a aliviar são sempre prementes 
e, por conseguinte, incitam-na a concluir; reclamam remédios, não 
explicações” (DURKHEIM, 2001, p. 43).
Pode-se compreender a busca do idêntico do sociólogo quan-
do ele desenvolve; sobretudo, três definições centrais: definição de 
média, princípio de classificação e princípio de causalidade. O autor 
analisa que o fato social só pode ser classificado como normal ou 
anormal e o positivismo deve ter por objeto de estudo o tipo nor-
mal. Mas o que é o tipo normal? 
Durkheim (2001, p. 67), no estabelecimento das Regras relativas 
à distinção entre o normal e o patológico associa a ideia de saúde ao que é a 
média, e de doença, ao que foge da média, evidenciando sua inferio-
ridade. Um exemplo é a noção de inteligência. A estatística, ao cap-
tar o que na sociedade é apresentado pela maioria das pessoas como 
formulações de pensamento e lógica comum, forma a classificação 
da média, portanto, da normalidade. Já os que não se enquadram 
naquilo que, para a maioria da sociedade analisada é a inteligência, 
em suas estruturas lógicas, seja para menos ou para mais na curva de 
normalidade, possibilita a classificação do que é patológico. Nessa 
perspectiva, o normal e o patológico são:
54 
Duas ordens de fatos bastantes distintas sob al-
guns aspectos: aqueles que são tudo o que devem 
ser e aqueles que deveriam ser diferentes daquilo 
que são, os fenômenos normais e os fenômenos 
patológicos (DURKHEIM, 2001, p. 68).
A especificidade da análise positivista é que considera a mé-
dia, que, por sua vez, remete ao normal, como o que deveria ser, 
marcando sua superioridade sobre o que está fora dela. Nesse senti-
do, se a ciência tem por objeto o que é normal, ela também reivindi-
ca para si mesma ter fins superiores e secundários que, por sua vez, 
dizem respeito aos meios para alcançar os fins. Todos os fins dizem 
respeito ao normal, que considera saudável: “tal como para os indi-
víduos, a saúde é boa e desejável também às sociedades, ao contrário 
da doença, que é coisa má e de evitar.” (DURKHEIM, 2001, p. 69). 
Mesmo reconhecendo que a saúde, como a percebe, é difícil de ser 
alcançada, aponta a obrigatoriedade de orientar o comportamento 
tendo nela o referencial.
O patológico nessa corrente não é objeto de estudo, o que 
não significa que não se deva aproximar dele. O autor deixa bem 
claro que o objetivo de se aproximar do “patológico”, nesse caso, e 
conhecê-lo, não passa de uma forma de conseguir adaptá-lo a ser o 
que deve ser, ou seja, ao que é a média, ao que é a saúde. Com o ob-
jetivo de ajustamento do patológico, Durkheim (2001, p. 69) assim 
se expressa: “O fato de que em seguida se ser obrigado a ajustá-lo a 
cada caso especial não significa que não haja interesse em conhecê-
-lo. Muito pelo contrário, constitui a norma que deve servir de base 
a todos os nossos raciocínios práticos.”. Em outras palavras, a maior 
aproximação possível com o que o autor concebe com o patológico 
só se dá na medida em que nele se descobrem meios para modificá-
-lo no que contém de desajustamento. 
Afeito ao ideal da adaptação à média constatada, o que garante 
a sua superioridade e verdade, para Durkheim (2001, p. 70), configu-
55 
rava a saúde como o “desenvolvimento harmonioso das forças vi-
tais, se reconhece pela perfeita adaptação do organismo ao meio (...)”. 
O autor cita os velhos, as crianças e as mulheres como exemplos de 
maior acesso à doença. Ao mesmo tempo, pondera a dificuldade de 
se hipostasiar, ou seja, tornar forçosamente tudo e todos como tipos 
sãos, construindo as potencialidades de adaptação máximas, mesmo 
que isso seja o ideal. A respeito de um tipo humano excepcionalmente 
são, diz: “um grupo desta natureza é bastante difícil de constituir e de 
isolar de todos os outros, como seria necessário, de modo a observar 
a constituição orgânica que é seu privilégio e que é a causa suposta 
dessa superioridade.” (DURKHEIM, 2001, p. 72).
O método que o autor utiliza para agrupar o que é saudável 
ou doente é bem parecido com os já estabelecidos perceptivelmente 
e compartilhado por todos: agrupa os fenômenos conforme suas 
semelhanças e diferenças. Assim, o tipo normal corresponde ao 
que é mais frequente e constante, portanto, que tem uma causa que 
explica a sua superioridade (DURKHEIM, 2001), o que garante a 
superioridade da média, o que está fora dela não é o frequente e 
constante, é o inferior. 
Para instrumentalizar a modificação dos casos, faz-se neces-
sário compreender a noção descrita e categorizada do princípio de 
causalidade. Trata-se do estabelecimento de relações causais entre 
fatos consecutivos. Para Durkheim (2001, p.133), o “método com-
parativo é o método das variações concomitantes o instrumento por 
excelência da investigação sociológica; a sua superioridade.”. Em 
suma: “A explicação sociológica consiste exclusivamente em esta-
belecer relações de causalidade, quer se trate de ligar um fenômeno 
a sua causa, quer, inversamente, uma causa aos seus efeitos úteis” 
(DURKHEIM, 2001, p. 134). 
Para apreender a utilidade dos efeitos, com base na constata-
ção de sua causa, é preciso assinalar a especificidade de seu método 
comparativo de causa-efeito: “um mesmo efeito só poderá manter 
56 
essa relação com uma única causa, pois só pode exprimir uma única 
natureza.” (DURKHEIM, 2001, p. 135). Caso contrário não há in-
teligibilidade possível, pois não mantém nenhuma relação lógica. O 
autor postula: “A um mesmo efeito corresponde sempre uma mesma causa.” 
(DURKHEIM, 2001, p. 136, grifos do autor). 
Essa é a sua crítica a Mill, que estabeleceu que, para um efeito, 
podem existir uma multiplicidade de causas. Para Durkheim (2001), 
isso dá espaço para a indeterminação e complexidade, e não há es-
paço na ciência para esses atributos porque não permitem inteligibi-
lidade. Segundo Mill, citado por Durkheim (2001), não há nenhuma 
possibilidade de formular leis seguras – pretensão da ciência positi-
vista. Autodenominando-se racionalista, Durkheim (2001) explicita 
seu apego e clamor à realidade presente.
Assim, reduzindo o passado à compreensão de causa-efei-
to, podem-se formular regras e prescrição desses comportamentos 
para o futuro, e o que é realidade passa a ser o que deve ser buscado 
para permanecer a mesma realidade “racional”. Já que é possível 
traduzir a realidade em regras, não se deve ultrapassá-las, deve-se 
conservá-las recomendando-as e seguindo-as nas ações futuras, pois 
são inteligíveis. Por isso, o autor chama seu método de conservador, 
pois deve preservar o existente. O conhecimento converte-se então 
em descrição, formulação de leis, sua aplicação e prescrição.
Nesse sentido, para Durkheim (2001, p. 13), a ciência reduz-se 
à prática e não se deve ultrapassá-la no tocante aos fatos e à realida-
de: “Se eles [fatos] são inteiramente inteligíveis, tanto bastam à ciên-
cia como à prática: à ciência, pois não há motivo para procurar fora 
deles as suas razões de ser; à prática, pois seu valor utilitário é uma 
dessas razões.”. A ciência passa a ser a reprodução do que é útil ou 
não para a sociedade e não deve estar ligada ao processo de reflexão 
sobre o que é verdadeiro e falso, aliás, o pensamento não é recomen-
dado no processo de discriminação do que é útil e do que não o é. 
Nessa perspectiva, para formular uma matriz epistemológica57 
que garanta leis seguras, a categoria do princípio de classificação é 
imprescindível, pois garante o ideal da identidade, da não transfor-
mação, da conservação das gerações e identifica como força não se 
deixar constituir pela individualidade. As gerações devem manter-se 
“idênticas a si próprias, apesar da diversidade das circunstâncias ex-
teriores.” (DURKHEIM, 2001, p. 100). A colonização, por exem-
plo, só teria esse sentido se os colonizadores não se misturassem 
com as novas sociedades. A ideia é manter o igual, pois “a indeter-
minação acentua-se (...) quanto mais complexa é uma coisa (...).” 
(DURKHEIM, 2001, p. 101).
Durkheim (2001), aplicando suas regras ao caso do crime, 
afirma que ele se apresenta em todas as sociedades, em maior ou 
menor grau, conclui que ele é normal. 
Assim, Durkheim (2001, p. 83), ao constatar que a criminalidade 
aumenta em toda parte, aponta a normalidade desse avanço: “O que 
é normal é simplesmente que exista uma criminalidade, contanto que 
atinja e não ultrapasse, para cada tipo social, um certo nível que talvez 
não seja impossível fixar de acordo com as regras precedentes.” Nesse 
sentido, o crime é normal e faz parte da inevitabilidade a sua presença 
na vida coletiva “devido à incorrigível maldade dos homens”. Portan-
to o crime é imprescindível para “qualquer sociedade sã”. 
Nesse sentido, para Durkheim (2001, p. 86) o crime não é só 
necessário, mas fundamental e útil: “o crime é necessário; está ligado 
às condições fundamentais de qualquer vida social mas, precisamente 
por isso, é útil; porque estas condições de que é solidário são elas mes-
mas indispensáveis à evolução normal da moral e do direito.”. Seguin-
do sua teoria, o crime é indispensável para outras evoluções impres-
cindíveis acontecerem na sociedade, aliás, em relação aos sentimentos 
sociais, os crimes “predeterminam a forma que estes tomarão”.
Assim como a doença pode fazer parte de um corpo são, e, às 
vezes, ser imprescindível para a manutenção da saúde, o crime atua 
da mesma forma. Por exemplo, o autor cita que “a liberdade de pen-
58 
samento que gozamos hoje” advém de crimes de transgressão já co-
metidos, portanto “tal crime era útil, pois preludiava transformações 
que de dia para dia se tornavam mais necessárias.” (DURKHEIM, 
2001, p. 87).
Nota-se que o sociólogo, de seu jeito, reconhece ser o crime 
fundamental para a manutenção das sociedades, em suas respectivas 
taxas, e se ele não ocorrer, é um péssimo sinal, pois mostra que 
há algum problema na sociedade, pois o progresso é indissolúvel e 
tributário dele. Ao mesmo tempo que considera o crime normal e 
social, o autor não responsabiliza a sociedade por seu acontecimen-
to, mas o indivíduo. 
Pode-se fazer uma analogia desse entendimento com o que 
se supõe ser saudável e doente. A doença e a saúde não são carac-
terísticas imanentes a todos os seres, mas específicas da “natureza 
dos seres”, que os dividem em saudáveis e superiores e doentes e 
inferiores. Assim, legitima-se o pensamento de que, como citado 
anteriormente, as mulheres, os idosos são os de natureza mais re-
ceptiva às doenças. 
Da mesma forma, pode-se pensar a respeito da criminalidade. 
Assim como a criminalidade é normal, também é normal que se 
puna o criminoso. Portanto, além da análise do autor naturalizar o 
crime, considerando-o como normal na sociedade, também natu-
raliza a necessidade de sua punição. Assim tudo o que ocorre com 
frequência e regularidade nessa média, seja o crime ou a punição, é 
concebido como normal.
Pode-se perguntar, seguindo a lógica interna do autor: por 
que o foco da punição é o indivíduo, se o autor o considera crime 
um fenômeno social? Por que não considera a sua responsabilidade 
pelo crime como sendo de todos? Mesmo não colocando tanto em 
questão, nesse momento, essa teoria, pode-se dizer que ela revela 
algo de verdadeiro: há uma aliança necessária e imprescindível entre 
progresso e desgraça (barbárie) para a conservação do que a moder-
59 
nidade considera como progresso. O autor afirma que as pessoas 
que cometem os crimes e sofrem as penas são imprescindíveis, e 
que não devem ser curadas, pois a verdadeira função da pena “deve 
ser procurada noutro lugar.” (DURKHEIM, 2001, p. 88). Põe em 
relevo que o crime é imprescindível para a “boa saúde” da sociedade 
moderna. Assim, seja pela forma que o indivíduo ganha na mo-
dernidade ou pela corrente positivista de pensamento, legitima-se a 
exclusão e a violência, naturalizando-as.
Considerações finais
Nota-se então que o espírito de utilidade e funcionalidade al-
cança a constituição do indivíduo e da ciência na modernidade, so-
bretudo na corrente predominante do positivismo. Essas são duas 
bases, do ponto de vista da história, sobre as quais o capitalismo se 
erigiu e se sedimentou, estruturando o liberalismo e o individualis-
mo seculares. 
A forma que o indivíduo assume, constituindo-se por meio de 
um isolamento alcançado pela adesão a grandes sacrifícios, da vanta-
gem individual, do império do interesse próprio, da transformação do 
outro como meio para alcançar os fins próprios, da competição, da 
superficialidade e sacrifício das relações é solidária à forma assumida 
pela ciência, que transpõe esses valores em categorias aparentemente 
neutras para ser instrumento de dominação na sociedade. Seja por 
meio do princípio de classificação - que garante o ideal da identidade 
e da não transformação, seja pelo princípio de média - que hipostasia 
a multiplicidade das diferenças inerentes ao humano na busca pela 
manutenção das gerações como idênticas a si próprias, eliminando 
a possibilidade do diferente em si e no outro; seja pelo princípio de 
causalidade, que oculta a síntese das determinações históricas dos 
fenômenos; constituindo-se por um instrumento sofisticado para a 
dominação das minorias pelos grupos que já estão no poder. 
60 
O benefício que a crítica interna pode proporcionar, no que 
diz respeito à análise da constituição histórica que o sujeito ganha 
na modernidade pela forma predominante do indivíduo, está em 
desnaturalizar esse modo de vida e analisá-lo como próprio dessa 
particularidade histórica do modo de produção econômico e de vida 
do capitalismo que ainda não foi superado e que, a todo momento, 
obstaculariza as possibilidades de humanização e de construção de 
uma vida digna para si e para os outros. Pelo contrário, seja pelo 
modo de produção da vida ou da ciência, a desumanização da vida e 
do pensamento se torna regra ao reafirmar o ideal do isolamento e 
eliminação do diferente interminavelmente e pregar a uniformidade 
como saúde.
A partir da crítica da razão de domínio na sociedade por 
meio da análise da razão de domínio na ciência evidencia-se que 
essa corrente construiu meios sofisticados de legitimação da eli-
minação do outro, do racismo e da violência; sendo impossível 
reafirmar esses interesses ao analisá-los, pelo irracional, desumano 
e violência que carrega.
REFERÊNCIAS
BELAVAL, Y. Racionalismo, empirismo, ilustración. Tradução de Isi-
dro Gómez, Joaquín Sanz e Pablo Velasco. México, 1976, v. 6.
DESCARTES, R. Discurso do método. Tradução de Maria Ermantina 
Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
DURKHEIM, E. As Regras do método sociológico. São Paulo: Martin 
Claret, 2001.
HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções, 1989-1848. São Paulo: Paz e 
Terra. 1977.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Tradução de Sebastião Uchoa 
Leite. São Paulo: Centauro, 2002.
CAPÍTULO III
O real ficcional e os processos 
identificatórios na formação 
humana subjacente à 
indústria cultural 
Márcia Ferreira Torres Pereira
O real não está na saída nem na chegada
ele se dispõe pra gente é no meio da travessia.
João Guimarães Rosa - (Grande Sertão: veredas)
RESUMO
Neste artigo ressalta-se a importância do pensamento de 
Theodor Adorno, estudioso da relação entre os indivíduos e a rea-
lidade social, caracterizada pelo potencial de dominação ideológica, 
cuja indústria cultural produz e difundemecanismos que modelam 
comportamentos e as demais formas de produzir a vida social. Para 
este autor, a formação humana deve versar sobre a emancipação 
de sujeitos críticos e apostar numa educação democrática frente ao 
62 
contexto social, cuja lógica do consumo e da circulação de merca-
dorias determinam as relações sociais. Pautadas em processos iden-
tificatórios, socialmente determinados por representações sociais, 
capazes de dissuadir sujeitos a uma espécie de “ficção” da realidade, 
a discussão objetiva considerar as contribuições da literatura na for-
mação estética do indivíduo desde a sua mais tenra infância para a 
tomada de consciência do sujeito e de seu poder de resistência.
Palavras-chave: estética; literatura; infância; emancipação. 
INTRODUÇÃO
A literatura e a infância têm sido, há alguns anos, objeto de 
minhas reflexões realizadas na universidade, em especial no campo 
da educação infantil como docente, psicóloga e estudiosa da teoria 
crítica da Escola de Frankfurt que tem a psicologia social crítica 
como ciência parcelar, assim como a sociologia e a filosofia no cam-
po de referência com as quais Adorno e Horkheimer apreendem os 
objetos para estudo. A escolha da abordagem teórica não suprime 
a dimensão da psicologia social, mas verifica a importância de seu 
objeto para que, juntamente com os objetos da filosofia e da socio-
logia, as análises garantam a dimensão e apreensão necessárias sobre 
as distintas determinações que a realidade histórico-social confere. 
O breve texto aponta para um cenário em processo com vis-
tas ao diálogo, compõe o conjunto de estudos sobre as contribuições 
da literatura infantil na formação da criança na primeira infância e 
tem por propósito possibilitar ao leitor a experiência que, por razões 
heurísticas, perpassa pela reflexão sobre a formação dos processos 
identificatórios ancorada na teoria crítica da Escola de Frankfurt, es-
pecialmente em Adorno e Horkheimer (1985), que tem como funda-
mento a relação dialética entre universal e particular, teoria e prática, 
sujeito e objeto.
As análises de Adorno (2009) enfatizam uma conexão teórica 
63 
em que as transformações históricas produziram significativas con-
tribuições para a constituição do sujeito e seu potencial de ações, 
que remetem às condutas éticas e a capacidade de reflexão crítica. 
O referencial teórico frankfurtiano tem também as contribuições da 
psicologia social, de base psicanalítica, mas se difere da psicanálise 
porque precisa estar em unidade à uma teoria da sociedade. Abarcar 
questões psíquicas relacionadas à cultura é fundamental, posto que 
para Freud (2006) a psicologia individual é também social. Os co-
nhecimentos da sociologia e da filosofia, historicamente produzidos 
e suas contradições, são importantes para refletir sobre a constitui-
ção dos processos formativos do sujeito moderno, concebido histo-
ricamente como entidade substancial, capaz de autodeterminar sua 
própria essência e os seus atributos básicos referentes às determina-
ções da consciência, especialmente como sujeito livre e autônomo. 
Entrementes, nas esferas da vida humana entre as formas de 
produzi-la e o estabelecimento das relações sociais, recursos massi-
vos foram utilizados para realizar, contraditoriamente, a inversão da 
emancipação em dominação, consoante ao pensamento adorniano 
de que qualquer forma social carrega também a forma da domina-
ção. Isso significa dizer que o sujeito do esclarecimento na ordem 
inversa de seu sentido, que aceda à condição de objeto, expressa o 
fundamento da racionalidade moderna. 
Atentar para os mecanismos e processos de constituição do 
sujeito moderno tornou-se importante para compreender o signifi-
cado da submissão de toda a experiência do pensamento ao prima-
do da força cognitiva da mimèsis11, qual seja a exigência de adaptação 
dos sujeitos aos mecanismos promotores de bens simbólicos, de-
pendentes de um sistema fixo, projetado sobre as formas de pro-
duzir a vida social. Estes elementos acarretam, consequentemente, 
11 Amimèsis, termo aristotélico, é traduzido por “imitação” ou “representação”. No extremo, 
Adorno observa sentido inverso da mimese como mera adaptação do real, portanto, re-
pressiva, posto que ela consolida a realidade social por estar ligada à ideologia (a doxa) da 
qual, segundo Barthes apud Compagnon (2010), ela é instrumento. 
64 
a formação de identidades arbitrárias ao projeto emancipatório de 
formação do homem desde o Iluminismo. 
A fixidez de padronizações que a imitação oferece no con-
tínuo cultural do universo social objetivo, sob a pretensão de in-
vestir na liberdade de escolha, como se a produção cultural tivesse 
sua autoria das massas, sugere a sensação fetichizada de autonomia 
diante da liberdade delimitada pelos mecanismos de conformação 
social. Portanto, pensar a importância da interação entre indivíduo 
e sociedade pressupõe uma pseudo-individuação que se subjaz ao 
“envolvimento da produção cultural de massa com a auréola de li-
vre-escolha ou do mercado aberto, na base da própria estandardiza-
ção” (COHN, 1994, p. 123).
As ambiguidades presentes na realidade social implicam pen-
sar a formação dos indivíduos frente às representações sociais como 
instrumentos de dominação socialmente produzidas e capazes de 
dissuadir sujeitos à uma espécie de “ficção” da realidade, forjados 
por processos identificatórios e por generalizações próprias da ra-
zão mercadológica do capitalismo econômico, cujos efeitos são 
contínuos e imediatos. Estes instrumentos submetem, portanto, aos 
estudos da Psicologia Social para compreender que os próprios in-
divíduos a seu serviço são expostos à “constelação de traços como a 
rigidez e o conformismo que, combinados e gerados em condições 
sociais específicas, caracterizam a personalidade autoritária do indi-
víduo potencialmente fascista” (COHN, 1994, p. 16).
A proximidade da literatura para esta discussão referente à 
formação humana pode ser compreendida como construção cul-
tural para além de um mero reflexo da realidade, cuja narrativa 
ficcional, encarnada por subjetividades, possibilite refletir sobre o 
interno malogrado por frustrações e sonhos, frutos de experiên-
cias reais. Essa interconexão abre espaço para a reflexão sobre o 
intricamento de seus contextos narrativos, relacionados às deter-
minações sociais, na experiência simbólica e estética de seus con-
65 
teúdos entre o real ficcional e a narrativa literária. 
Assim, no âmbito da constituição do sujeito à emancipação, 
posto que a narrativa factual sobre a realidade encontra-se nutri-
da por uma racionalidade intumescida pela produção e reprodução 
do progresso, que subordinou o caráter espontâneo e autônomo da 
cultura à lógica do consumo e da circulação de mercadorias produ-
zidas com seus símbolos determinantes de pseudo valores, cabe 
indagar em que medida a literatura pode contribuir para a formação 
do indivíduo no âmbito das relações que constrói com o outro – o 
diferenciado? 
A questão apresentada sugere a organização do texto em três 
tópicos com o intuito de desenvolver alguns aspectos que versam 
sobre a temática e ressaltar que o sujeito deve ser pensado em sua 
objetividade, em sua determinação. Assim, a ciência tem fins po-
líticos e o conhecimento é produzido pelo sujeito em condições 
históricas determinadas. 
Indústria Cultural e os modelos identificatórios 
socialmente determinados
As reflexões e análises de Adorno e Horkheimer (1985) as-
sinalam fatores sociais que fornecem à formação dos indivíduos a 
força de seus determinantes correspondentes aos efeitos que es-
tes mecanismos, imanentes ao sistema, exercem sobre a totalidade 
a partir de interconexões que visam sedimentar o impedimento da 
educação para a transformação, mantendo uma regulação político 
cultural que alarga a relação entre comércio e indústria no jogo livre 
das forças econômicas. 
O apanágio de controle sobre os homens apresenta intenções 
quanto às aplicações dos meios de produçãopara cercear possibili-
66 
dades de autonomia12 na formação da consciência social, produzida 
pela complexidade eficaz da ideologia compreendida como “apa-
rência socialmente necessária, precisamente porque a consciência 
que produz nos integrantes da sociedade se atém à sua forma já 
acabada – a única que aparece” (COHN, 1994, p. 11). 
À exigência da formação objetiva-se pensar sobre como 
foram produzidas as ideias e representações culturais instauradas 
na prática social em distintas instâncias como a família, a escola e a 
comunidade em geral. São as incorporações de estruturas objetivas, 
oriundas dos esquemas de ação, que operam na contramão da 
experiência formativa, direcionando o pensamento em atividades 
instrumentalizadas13 e respostas imediatas a partir de uma forma 
política de identificação social, que incide diretamente na aprendiza-
gem e no desenvolvimento do indivíduo em formação. 
A promessa de socialização exige a reflexão crítica para a rea-
lização do esclarecimento14 e possibilidades de emancipação dos 
sujeitos. Com efeito, a cultura deslocada de seu sentido, em sua ta-
refa de fomentar questionamentos, reflexões e resistências contra o 
poder heterônomo em prol de uma educação estética, em sua dinâ-
mica política e histórica, em permanente experiência compartida, se 
manifesta para se fundir com a tecnologia que impôs, conforme cita 
Adorno e Horkheimer (1985), um caráter “sempre idêntico” em que 
a reprodutibilidade técnica se enaltece e determina materialmente as 
relações sociais, manipula as massas de consumidores por padro-
12 Autónomos – (grego) – independente, aquele que age por si mesmo, que define o próprio 
nómos, a lei, a norma que rege sua existência, conforme sua natureza (COÊLHO, 2004, p. 24).
13Atividades que estão subordinadas às dimensões de poder, como: “impotência, paralisia e 
incapacidade de reagir, comportamento convencional, conformismo, ausência de autorre-
flexão, enfim, ausência de aptidão à experiência.” (ADORNO, 1995b, p. 37).
14 A saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a 
incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. (...) Para 
esse esclarecimento [Aufklärung], porém, nada mais exigente senão liberdade e a mais 
inofensiva entre tudo aquilo que possa chamar de liberdade, a saber: a de fazer um uso 
público de sua razão em todas as questões (KANT, 2008, p. 63 - 65).
67 
nizações e se arroga contrariamente ao pensamento crítico em seu 
sentido dialético. 
A expressão “indústria cultural” cunhada por Adorno e 
Horkheimer (1985) refere-se à primazia da técnica sobre os conhe-
cimentos científicos promovendo assimilação acrítica contrastada 
pela estética formativa, que resiste à lívida réplica mental destituída 
de sensibilidade, do cultivo do espírito. Esse duplo conceito preten-
de mostrar a mudança de ênfase que os autores procuram esclarecer 
sobre a relação que os mesmos oferecem para pensar a indústria 
comparada à padronização e massificação de uma racionalidade me-
cânica, em que a cultura é configurada como expressão desta mesma 
razão, posto que:
Os interessados inclinam-se em dar uma explica-
ção tecnológica da indústria cultural. O fato de 
que milhões de pessoas participam dessa indús-
tria imporia métodos de reprodução que, por sua 
vez, tornam inevitável a disseminação de bens 
padronizados para a satisfação de necessidades 
iguais. [...]. Os padrões teriam resultado origina-
riamente das necessidades dos consumidores: eis 
porque são aceitos sem resistência. De fato, o que 
o explica é o círculo da manipulação e da neces-
sidade retroativa, no qual a unidade do sistema 
se torna cada vez mais coesa. O que não se diz 
é que o terreno no qual a técnica conquista seu 
poder sobre a sociedade é o poder que os econo-
micamente mais fortes exercem sobre a socieda-
de (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 100).
O enaltecimento, portanto, da cultura encontra-se nos de-
terminantes materiais, cuja necessidade torna-se o mote do que os 
homens produzem, e seu modelo identificatório, socialmente deter-
minado, age sobre o princípio do prazer no indivíduo, forja a imagi-
nação e a fantasia se materializa em identidade alheia e, esta última, 
68 
é destituída de sua própria singularidade. É pela possibilidade de 
realização dos desejos reprimidos que a reflexão é interditada pelos 
mecanismos de dominação da indústria cultural sobre a instância 
psíquica. Essa supremacia da falsa cultura desloca a realização da 
satisfação expressa na captura da libido e oferece o simulacro do 
desejo sob a forma de mercadoria. 
A indústria cultural gera o mito15 social, qual seja, a necessi-
dade do consumo da mercadoria cultural, desde então imposta pelo 
sistema produtivo pari passu a produção de constante insatisfação e 
falsa sublimação ao desenvolver traços de indiferenciação sobre seu 
próprio sofrimento e o do outro, negando a realidade. “Em última 
análise, a elogiada têmpera para a qual se é educado significa pura e 
simplesmente à dor (...). Aquele que é duro contra si mesmo adquire 
o direito de sê-lo contra os demais e se vinga da dor que não teve a li-
berdade de demonstrar, que precisou reprimir” (COHN, 1994, p. 92). 
A ideologia confirma proeminentemente a identidade ao ins-
tituído, do conceito e do fenômeno, numa apropriação distorcida 
de alteridade e constitutiva de falsa liberdade à semelhança de que:
(...) viver sob a censura de que a coisa não é idên-
tica ao seu conceito é a nostalgia do conceito em 
tornar-se idêntico com a coisa. É assim que o 
sentido de não-identidade contém a identidade. A 
suposição da identidade é na verdade o elemento 
ideológico do puro pensamento em todo o seu 
percurso até a lógica formal; mas, escondida nela 
está também o momento da verdade da ideologia, 
a pretensão de que não deveria haver contradição 
ou antagonismo (ADORNO, 2009, p. 149).
15 O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que 
os homens pagam pelo aumento do seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem 
o poder. “O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os 
homens. Ele conhece-o na medida em que pode manipulá-los” (ADORNO; HORKHEIMER, 
1985, p. 24). 
69 
Pensar as relações entre o universal e o particular na teo-
ria adorniana requer romper com a racionalidade opressiva e ins-
trumental, posto que o desvelar das contradições presentes na 
totalidade objetiva expressam a falsa unidade. Porém, para este 
rompimento, somente a cultura poderá ser válida se carregar im-
plicitamente uma crítica às condições de produção e como não-i-
dentidade frente à impossibilidade de coincidir consigo mesma, 
por isso é preciso que, para referir-se a si mesma, a cultura deve 
reconhecer sua cumplicidade com aquilo que se opõe para expres-
sar o seu momento utópico. 
Em síntese, para Adorno, a psicologia social deve 
ter como objeto os comportamentos, sentimen-
tos e pensamentos restringidos e contraditórios 
que expressam um ego frágil, pouco desenvolvi-
do e facilmente cooptado por um sistema totali-
tário; seus métodos devem ser os mais avançados 
desenvolvidos pela ciência. Diferencia-se de ou-
tras concepções de Psicologia Social por destacar 
a importância dos indivíduos nos fenômenos de 
massas, tal como Freud o fez, mas distinto desse, 
propõe entendê-los por meio da mediação social 
e não como tipos de estruturas psíquicas prévias, 
tal como alguns sucessores de Freud ainda insis-
tem em fazer (CROCHIK, 2008, p. 304).
O real ficcional e a estética literária das narrativas
Para Adorno (1970) as obras de arte, incluindo as literárias, 
testemunham a possibilidade do não-existente e expressa um desejo 
inconsciente de transformar a realidade. Simplesmente em virtude 
de suas formas, a arte fala pelo fortuito, o sensível, o não-idêntico, 
e dá testemunho dos direitos do reprimido contra a patologia com-
70 
pulsiva do princípio de identidade. Cabe, portanto, considerar que 
oautor, ao denunciar a cultura moderna produtora de uma falsa 
consciência, apresenta o conceito de mimèsis conforme a realidade se 
manifesta como adaptação repressiva, já que esta mesma realidade 
distorceu o seu sentido e realizou sua pseudo-identidade. 
A título de esclarecimento, segundo Compagnon (2010), ao 
final do século XIX e início do século XX a história da literatura 
ocidental e suas transformações de estilo deslocaram o sentido da 
mimèsis como representação da realidade, visto que a pretensão de 
relatar a aparente autenticidade da experiência dos indivíduos se im-
punha como verdade, impossibilitando autocrítica e a experiência 
da reflexão. A mimèsis, no âmbito das artes, em especial na própria 
literatura a partir de Aristóteles, se distingue, posto que “O sentido 
do termo mimèsis é, em Aristóteles, a verossimilhança em relação ao 
sentido natural (eikos, o possível), enquanto nos poéticos modernos, 
ela se tornou a verossimilhança em relação ao sentido cultural (doxa, 
a opinião)” (p. 100).
A mimèsis, no texto da Poética de Aristóteles (1980), portanto, 
difere da compreensão de que a literatura se refira à realidade, da imi-
tação em geral. O vínculo que cabe à mimèsis, tanto na epopeia como 
na tragédia, é a história como mimèsis da narração e não de descrição. 
A tragédia, escreve Aristóteles na Poética, “é mimèsis não do homem, 
mas da ação” (1450a 1456). Entende-se que essa representação da 
história não é analisada por ele como imitação da realidade, mas como 
produção que ocorre na ordem do verossímil ou sobre o provável 
(eikos), isto é, humano, e não na ordem das aparências. 
Essa condição abstrata, posta entre a literatura e a realidade, 
tem em Barthes (1970) significativa contribuição crítica, visto que 
esta interação no contexto histórico passou a ter como fórmula a 
“ilusão referencial” ou “efeito do real”. A representação se aproxima 
ao verossímil como convenção partilhada pelo autor e pelo leitor: 
“O realismo (muito nomeado, e de qualquer forma frequentemente 
71 
mal interpretado) consiste não em copiar o real, mas em copiar uma 
cópia (pintada) no real [...] É por isso que o realismo não pode ser 
chamado de ‘copiador’, melhor seria ‘pastichador’ (por uma segunda 
mimèsis, ele copia o que já é cópia)” (BARTHES, 1970, p. 61).
Com efeito, pode-se dizer que a referência está presente nos 
mundos ficcionais entre o real e a ficção, posto que a literatura se in-
teressa pelos personagens e contingências do mundo real e o mundo 
possível. Nessa relação entre as objetivações e as subjetivações que 
a produção literária se constitui, no que diz respeito à resistência 
contra o que nos resiste socialmente, ela se desloca para seu senti-
do político e narra coisas que a língua não está disposta a dizer. É 
exatamente, neste sentido, que a ficção fruto da imaginação criadora 
qualifica a reflexão crítica e a vida no âmbito da satisfação dos de-
sejos humanos.
De acordo com o pensamento adorniano, a estética se destaca 
na relação entre alteridade e a cisão do cerco da imanência da racio-
nalidade instrumental para realizar a experiência da reflexão, mo-
mento em que o sujeito deixa de estar totalmente preso às condições 
sociais objetivas que impede a consciência de agir. Estes princípios 
são expressos na obra Teoria Estética de Adorno (1970), a saber: 
As obras de arte representam as contradições 
como todo, a situação antagonista enquanto tota-
lidade. Só através de sua mediação, não mediante 
seu parti pris direto, é que são capazes de trans-
cender, graças à expressão, a situação antagonis-
ta. As contradições objetivas sulcam o sujeito; 
não são por ele postas, nem produzidas por sua 
consciência. Eis o verdadeiro primado do obje-
to na composição interna das obras de arte. (...) 
Os antagonismos são tecnicamente articulados: 
na composição imanente das obras, que toma a 
interpretação translúcida às relações de tensão no 
72 
exterior. As tensões não são copiadas, mas dão 
forma à coisa; só isto constitui o conceito estéti-
co da forma (ADORNO, 1970, p. 365).
A formação estética para o autor consiste, portanto, na toma-
da de consciência do sujeito e de seu poder de resistência perante as 
condições instituídas na realidade social, impedindo a autonomia e 
as interações sociais. Ao exigir que os indivíduos se posicionem em 
relação ao universo objetivo, o autor não pretende fomentar a ideia 
de que o indivíduo é livre, posto que suas dimensões sensíveis e 
pulsionais encontram-se relacionadas às contingências da realidade 
social que o domina historicamente. Para a realização da experiência 
é necessário passar pela historicidade, o que equivale dizer que esta 
elaboração do passado propõe compreender que uma determinada 
forma de consciência está vinculada ao processo histórico e de suas 
causas de constituição da realidade empírica.
Adorno (1995a) afirma que a experiência acumulada é funda-
mental para a formação da consciência, mas chama a atenção para 
reflexão sobre o modo pelo qual o passado é referido no presente, 
uma relação entre os conhecimentos da sociologia e da história, vis-
to que pensar em dimensões de autonomia levou a um juízo equi-
vocado da constituição da autoridade16, devido aos pressupostos 
sociais objetivos que mudou o conceito de autoridade em domina-
ção. “A necessidade de uma tal adaptação, identificando-se com o 
existente, com o dado, com o poder enquanto tal, gera o potencial 
autoritário” (p. 43).
16 A autoridade é um conceito essencialmente psicossocial, que não significa a própria reali-
dade social. Além disso existe a autoridade técnica – ou seja, o fato de que um homem en-
tende mais de algum assunto do que outro -, que não pode ser simplesmente descartada. 
Assim, o conceito de autoridade adquire seu significado no âmbito do contexto social em 
que se apresenta (ADORNO, 1995a, p. 176).
73 
Contribuições da literatura para a formação 
e emancipação humana
A importância da literatura como arte diz de sua força que 
interfere na cultura pelo contágio de seu aspecto crítico ou negativo, 
ainda que tenha em sua base um tanto da realidade social e contri-
bua como um objeto que tem função comunicativa e de transição da 
subjetividade para as relações com os demais. 
Para Hunt (2010), a literatura contribui com o cenário social e 
precisa de interação humana para ser compreendida. Isso justifica a 
primazia do modo estético, capaz de relacionar os valores que nele 
se aplica aos que pertencem ao sistema cultural. Mas ater-se a um 
grupo e um discurso significa alienar o resto, posto que usar uma 
concepção predeterminada interfere na formação dos indivíduos. 
Em relação à literatura infantil é importante ressaltar o status inferior 
atribuído a ela em relação aos demais tipos de literatura por conve-
niência da sociedade administrada pela lógica do mercado.. 
Essa compreensão está atrelada à concepção de criança alia-
da à ideologia, cujos conhecimentos ela se apropria para definir o 
termo. Apesar de todas as razões que existem entre a concepção de 
criança e a literatura, “a literatura da criança pode não ser a mesma 
que a literatura para a criança. Em suma a relação entre a criança – 
isto é, o leitor em desenvolvimento – e o texto é complexa e tem 
implicações no modo como discutimos, lecionamos e escolhemos 
materiais” (HUNT, 2010, p. 92, grifo do autor).
A literatura por meio da fantasia e das metáforas presentes em 
seus conteúdos possibilita refletir e compreender o mundo no campo 
do possível. Estas relações e descobertas, conquistas e conflitos que 
a literatura proporciona constitui um campo propício para a interpre-
tação, criação e leitura que somente a arte oferece. Assim, a literatura 
consiste em uma experiência identificatória na formação da criança 
quando a obra passa a ser aquela que dialoga com a subjetividade do 
leitor criança, um interlocutor imaginário que possibilita criação. 
74 
É nesse movimento dialético banhado por significados in-
conscientes sobre o que não está dito,mas presentes nas entreli-
nhas, é que os afetos se manifestam em conflitos propícios para 
a experiência da reflexão. A criança leitora tem em seu caminho a 
possibilidade de autoria, se vê como narradora e personagem de 
uma transformação subjetiva com possibilidades de objetivar sobre 
a realidade social. 
Pensar a formação da criança em seu sentido emancipató-
rio, segundo Adorno (1995a), equivale considerar possibilidades de 
constituição da criança como um sujeito desejante, ativo e político. 
Essa proximidade com a psicanálise reside na compreensão de que 
a linguagem é fundamental para a realização das experiências iden-
tificatórias, fundamentais e emergentes à formação de um ego ideal. 
Para Freud (2015, p. 329) “o ato de fantasiar nas pessoas 
não pode ser observado tão facilmente quanto o ato de brincar das 
crianças”. Essa atividade tão específica da criança tem como ob-
jetivo, para o autor, o investimento na organização de um mundo 
que lhe é favorável, momento em que investe intensas medidas de 
afeto. Contudo, a brincadeira, ainda que oposta à realidade, se apoia 
em acontecimentos e situações concretas do mundo real e é pre-
cisamente ancorada nessa circunstância que é possível distinguir a 
brincadeira da fantasia.
(...) É certo que a criança brinca também sozi-
nha, ou forma com outras crianças um sistema 
psíquico fechado para os fins de uma brincadeira 
(...) guiada por seus desejos, mais precisamente 
por um desejo específico que é de grande ajuda 
na sua educação: o de ser grande e adulto. Elas 
sempre brincam de ser grande, imitam nas brinca-
deiras o que sabem da vida real das pessoas gran-
des. Não tem motivo para esconder esse desejo 
(FREUD, 2015, p. 329, grifo do autor).
75 
A apreensão freudiana de que a fantasia está na base do brin-
car infantil, lugar que investe o que pretende ocupar, tem proximi-
dade com a literatura infantil, qual seja o personagem que irrompe 
espontaneamente de forma saudável, entre aquele que aparece no 
texto literário que o escritor criou e o recriado pela criança, propor-
cionando a riqueza da experiência estética. Ao recriar há contesta-
ção, relativização de ideias, discussão e aprendizagem. Essa metáfo-
ra freudiana do “ser grande”, em que há o desejo de ser adulto, tem 
como mote o desejo identificatório. 
Entrementes, o que se propõe neste estudo, sem a pretensão 
de esgotar a discussão, é “o ser grande” a partir da formação estética 
da criança em que as identificações ou rejeições que a criança realiza 
com os personagens das histórias infantis, incluindo o narrador e 
autor do texto, possam realizar o movimento dialético sobre o di-
ferenciado em suas brincadeiras e atividades para não recair apenas 
numa atividade de repetição, de mera adaptação, de memorização e 
de um eco de uma realidade já determinada por outro. 
Adorno (1995b) ao afirmar a força da alienação cultural que 
a indústria cultural exerce sobre os indivíduos, forjando liberdade17 
em que “a própria falta de emancipação é convertida em ideolo-
gia” (p. 35), esclarece a necessidade de uma educação democrática 
contra a barbárie: 
17 A liberdade é muito mais um fator em duplo sentido; ela não é isolável, mas acha-se en-
tretecida; e por enquanto ela não passa de um instante de espontaneidade, de um modo 
nodal histórico, encoberto pelas condições atuais. Assim como não impera a independên-
cia do indivíduo que é acentuada de maneira desmedida pela ideologia liberal, não se pode 
negar a sua separação extremamente real em relação à sociedade, uma separação que 
essa ideologia interpreta equivocadamente. Por vezes o indivíduo se contrapôs à sociedade 
como um ser autônomo ainda que particular, um ser capaz de perseguir com racionalidade 
os seus próprios interesses. Nessa fase e para além dela, a questão sobre a liberdade era a 
questão genuína de saber se a sociedade permite ao indivíduo ser tão livre quanto ela lhe 
promete; e com isso a questão de saber se ela mesma o é. O indivíduo extrapola a conexão 
cega da sociedade, mas ajuda então, propriamente, em seu isolamento privado de abertu-
ras, a reproduzir essa conexão. A tese da não-liberdade não anuncia menos a experiência 
histórica da não conciliação entre interior e exterior: os homens não são livres porque são 
escravos do exterior (ADORNO, 2009, p. 185).
76 
(...) a democracia não se estabeleceu a ponto de 
constar da experiência das pessoas como se fos-
se um assunto próprio delas, de modo que elas 
compreendessem a si mesmas como sendo su-
jeitos dos processos políticos. Ela é apreendida 
como sendo um sistema entre outros, como se 
num cardápio escolhêssemos entre comunismo, 
democracia, fascismo ou monarquia; ela não 
é aprendida como identificando-se ao próprio 
povo, como expressão de sua emancipação. Ela 
é avaliada conforme o sucesso ou o insucesso, 
de que participam também os interesses indivi-
duais, mas não como sendo a unidade entre os 
interesses individuais e o interesse coletivo (...) 
(ADORNO, 1995a, p. 85). 
Para este autor, a exigência de uma educação para a resistência 
consiste no encontro do sujeito com o outro, cujo pensamento e 
ação esclarecidos realizam a reflexão e autocrítica contra o soma-
tório de idealizações efetuadas pela ideologia. A força da alienação 
instrumentaliza a sua ação a partir de mecanismos que aumentam 
o seu poder, cujo objetivo é a realização de um desejo de morte do 
pensamento, exercício de heteronomia18 sobre as possibilidades de 
autonomia19 na totalidade do universo social. 
Chama à atenção os conteúdos que infringem as possibilida-
des de autonomia nos livros de literatura infantil, entre a produção 
e a criança, considerando que o adulto é quem adquire e escolhe o 
livro que, via de regra, é ilustrado. Este elemento a mais da narrativa 
cria um potencial mais complexo, visto que o autor pode incidir 
sobre a interpretação do leitor na relação entre ilustrações e a nar-
18 Contrapõe a autonomia no sentido da moralidade kantiana, que é o princípio da vontade 
independente, sendo “o homem dessa vontade não um simples objeto da legislação uni-
versal imposta pela lei moral, é necessário que ele seja o seu autor” (PASCAL, 2005, p.132).
19 Kant defende a autonomia da razão que torna os homens independentes de outros pode-
res (KANT, 2008).
77 
rativa, assim como poderão causar efeitos que não se completam de 
forma desejante ou não, tendo em vista que a instrumentalização da 
cultura versa sobre a “falsa consciência de hoje, socialmente condi-
cionada (...) trata-se de algo cientificamente adaptado à sociedade” 
(ADORNO e HORKHEIMER, 1973, p. 200).
Considerações finais
As contribuições da literatura para a formação humana, na 
perspectiva de uma educação para a emancipação20, ainda se en-
contram em “suspenso” se forem pensadas no campo da dimensão 
expressiva da revelação da subjetividade e de criação de si mesmo, 
visto que o seu valor estético e formativo estão à serviço do in-
consciente, do não revelado, do desconhecido e dos conflitos que 
habitam na criança – o sujeito da falta. Contudo, a partir do que foi 
apresentado, a discussão volta-se para as possibilidades de formação 
para autonomia a partir de uma educação estética na infância, con-
siderando as contribuições da literatura infantil e sua relação com 
a brincadeira, o que reinaugura a vida e o potencial de criação, da 
imaginação e da reflexão. 
Cabe compreender a dimensão estética da produção dos livros 
de literatura infantil, sobre o valor formativo que versa a formação 
para a autonomia, comprometida com o imaginário da infância e 
seus afetos em desenvolvimento. Compreendida em sua função 
dialética, na relação entre adulto e criança, a literatura infantil pode 
possibilitar o que é familiar e o que é diferenciado e acolhe, confor-
me citou Freud (2006), o estranho, o surpreendente. 
20 (...) aquilo que caracteriza propriamente a consciência é o pensar em relação à realidade, 
ao conteúdo – a relação entre as formas e estruturas de pensamento do sujeito e aquiloque não é. Esse sentido mais profundo de consciência ou faculdade de pensar não é apenas 
o desenvolvimento lógico formal, mas ele corresponde literalmente à capacidade de fazer 
experiências intelectuais. (...) Nesta medida e nos termos que procuramos expor, a educa-
ção para a experiência é idêntica à educação para a emancipação (ADORNO, 1995a, p. 151).
78 
É importante salientar a literatura como expressão artística da 
criança, mas é igualmente necessário ressaltar que a produção dos 
livros de literatura é fruto do mercado editorial e tem suas intencio-
nalidades correspondentes à indústria cultural, que não cessa de in-
vestir em conteúdos reforçadores da formação para a identificação 
ao socialmente instituído. Negar a experiência formativa, no sentido 
de resgatar o caráter espontâneo e autônomo da cultura, significa 
apresentar a necessidade de uma outra prática.
A formação para uma outra prática reclama a 
consciência crítica sobre a realidade, os conceitos 
distorcidos e a formação cultural ideologizante, 
conciliada com a indústria cultural que, em termos 
mais gerais, coloca-se como funcionamento da 
cultura moderna e administra por via da assimila-
ção os conteúdos e a estética social, constituindo 
vínculos e representações na formação dos sujei-
tos. Seus elementos determinam valores, compor-
tamentos, linguagem, uma verdadeira aprendiza-
gem que a escola parece não alcançar condições 
para desmistificar (PEREIRA, 2011, p. 151).
A emancipação estética expressa seu caráter ambivalente e, 
portanto, contraditório na base da realidade social. Desafios postos, 
a formação carece de reflexão filosófica, ressignificando historica-
mente conceitos determinantes em estudos e pesquisas para des-
mistificar ideologias e transcender a narrativa factual da realidade na 
possibilidade de confrontar valores que neguem a falsa identificação. 
79 
REFERÊNCIAS
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1995a. 
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São Paulo: Cultrix, 1973.
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Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1985. 
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Éd. Du Seuil, 1980.
BARTHES, R. S/Z. Paris. Éd. Du Seuil, 1970.
COÊLHO, I. M. Ensino, pesquisa e formação de estudantes e professores. 
In: Revista da PUC, Campinas, SP, nº18, jan. 2004, p. 65 – 98.
COHN, G. (Org.) Theodor W. Adorno: Sociologia. São Paulo: Ática, 
1994. 
COMPAGNON, A. O demônio da teoria: literatura e senso comum. 
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
CROCHIK, J. L. T. W. Adorno e a psicologia social. Revista Psicologia 
e Sociedade. Vol. 20, São Paulo, 2008, p. 297-305.
HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. Paulo: Cosac Naify, 2010. 
FREUD, S. O escritor e a fantasia [1908] In: FREUD, Sigmund. Obras 
completas, 1 ed., volume 8. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 
80 
 . O estranho, [1919]. In: FREUD, Sigmund. Obras Com-
pletas, 1 ed., volume 17. Rio de Janeiro: Imago, 2006. 
KANT, I. A Metafísica dos Costumes, 3 ed., Bauru - SP: Edipro, 2008.
PASCAL, G. Para compreender Kant. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
PEREIRA, M. F. T. Sobre as relações de autoridade e poder na do-
cência: contextos (des)autorizados pela formação, ano 2011, pp. 168. Dis-
sertação de mestrado em Educação. Faculdade de Educação, Universidade 
Federal de Goiás, Goiânia, 2011.
CAPÍTULO IV
As violências nas fronteiras 
do conflito em uma sociedade 
de contradições
Simone Lisniowski
Sandra Francesca Conte de Almeida
Viviane Neves Legnani
RESUMO
Este trabalho apresenta uma discussão teórico-conceitual 
acerca da violência, problematizando o conceito linear e jurídico 
do termo, por meio de concepções que privilegiam uma perspecti-
va psicossocial e crítica. Dada a complexidade do fenômeno violên-
cia, abordam-se no texto diferentes dimensões implicadas na difícil 
conceituação desse termo, quais sejam: a dimensão penal (violên-
cia como criminalidade); a socioeconômica (a violência como fe-
nômeno sistêmico); a política (a violência como significante-mestre 
e prática institucionalizada/legitimada); a cultural (violência como 
estratégia de opressão) e a dimensão subjetiva e das relações sociais 
(a violência como aniquilação do outro/das diferenças). É preciso 
que os profissionais que atuam nos campos da educação e da saúde 
82 
mental levem em consideração, na atenção, no cuidado e no trata-
mento das diversas manifestações da violência, as condições social, 
cultural e subjetiva de sua produção para que não calem o sofrimen-
to dos sujeitos e as contradições sociais em nome da manutenção e 
da reprodução das relações sociais vigentes, operadas por mecanis-
mos de controle e de exclusão sociais. 
Palavras-chave: violência, criminalização, sofrimento psíquico.
INTRODUÇÃO
Este capítulo apresenta algumas concepções de violência, 
procurando problematizar o conceito linear e jurídico do termo, 
resgatando, para isso, concepções que privilegiam uma perspecti-
va psicossocial e crítica. Com o intuito de pensar a unilateralidade 
na definição de violência, propomos, neste trabalho, uma reflexão 
acerca: a) dos discursos em que a ênfase recai ou se limita a aspectos 
jurídicos; b) de outras possibilidades de compreensão sobre a vio-
lência; c) de como essas diferentes concepções implicam diferentes 
modos de enfrentamento da violência e de intervenção psicossocial.
Em nossa ótica, buscaremos uma perspectiva teórica que 
aproxime violência e sociabilidade, assim como violência e subjeti-
vidade. Trata-se de um estudo de revisão teórica que tem como ob-
jetivo identificar como a violência é predominantemente significada 
por diversos autores, no campo das ciências psicossociais, visando 
compreender como esses sentidos se constroem, considerando as 
contradições inerentes aos contextos social, econômico e político da 
sociedade contemporânea.
83 
Dimensão conceitual: a dificuldade de definir um fenô-
meno complexo
O conceito de violência é polissêmico, com difícil fixação de 
seu referente e com diversidade de usos e finalidades quando apro-
priado nas relações sociais, podendo ser ressignificado a depender 
da contextualização e das circunstâncias que implicaram na sua no-
meação. Entretanto, algumas significações sobre violência são trata-
das como fixas e os autores tendem a normatizar e a padronizar sen-
tidos. Inclusive, alguns dicionários, ao definirem violência, parecem 
transformar a polissemia e a ambiguidade de sua heterogeneidade 
em um conceito único e com uma aparente neutralidade linguística 
(MOREIRA, 2012). Essa tentativa de neutralização e objetivação 
visa universalizar processos cujo apagamento do sujeito é uma das 
consequências, um “apagamento do fato de que o sujeito resulta 
de um processo, pois a ideologia recruta o sentido do que ouvem e 
dizem, leem ou escrevem” (PÊCHEUX, 1988, p.157). 
Segundo o dicionário Houaiss (2009, p. 1948), violência é:
Qualidade do que é violento <a v. da guerra> 
2. ação ou efeito de violentar, de empregar for-
ça física (contra alguém ou algo) ou intimidação 
moral contra (alguém); ato violento, crueldade, 
força <sem lei, a polícia pratica violências con-
tra o indivíduo> <o gigante derrubou a porta 
com sua v.> 3. exercício injusto ou discricioná-
rio, ger. ilegal, de força ou de poder <v. de um 
golpe de Estado> 3.1. cerceamento da justiça e 
do direito, coação, opressão, tirania <viver num 
regime de v.> 4. força súbita que se faz sentir 
com intensidade; fúria, veemência <a v. de um 
furacão> <uma v. de sentimentos> <a v. de sua 
linguagem> 5. dano causado por uma distorção 
ou alteração não autorizada <v. da censura pouco 
84 
esclarecida> 6. o gênio irascível de quem se en-
coleriza facilmente, e o demonstra com palavras 
e/ou ações <temiaa v. com que o avô recebia 
tais notícias> 7. JUR. Constrangimento físico 
ou moral exercido sobre alguém, para obrigá-lo 
a submeter-se à vontade de outrem; coação. V. 
arbitrária DIR. PEN. crime que consiste em pra-
ticar a violência, no exercício de uma função ou 
a pretexto de exercê-la. V. carnal DIR.PEN. rela-
ção sexual mantida com uma mulher mediante a 
utilização de força; estupro.
Na definição supracitada, vemos contempladas diferentes 
concepções de violência, incluindo aspectos individuais, sociais, po-
líticos e históricos. A violência deixa de ser apenas uma caracterís-
tica individual, definida pela “natureza” daquele ou daquilo que é 
violento, remetendo a um contexto. Logo, a violência pode ser pen-
sada como modo de relação e não somente como uma característica 
inerente ao sujeito. Entretanto, o que chama a atenção de Moreira 
(2012, p. 46) é que a definição do Houaiss recorre ao saber jurídico 
para garantir universalidade, pois se utiliza de: 
(...) definições que extrapolam a margem simbó-
lica e ganham uma materialidade legal: o cons-
trangimento físico ou moral que se diluem ou 
na prática arbitrária do poder ou no abuso físico 
(e aqui se encaixa também a violência carnal) e 
psicológico de alguém para alguém. Novamente 
vemos a noção de violência como ato individual 
retomada, que não é somente atualizada pelo dis-
curso jurídico, mas legitimada.
Desse modo, o esforço de definição do Houaiss acaba por 
revelar, para Moreira (2012), uma tentativa de linearização sobre a 
questão para se construir uma referência homogênea e universal. 
85 
Esforço que pode ser reprodutor também de violência por achatar 
um fenômeno social tão complexo e heterogêneo. Não se pode 
perder de vista que as violências e os conflitos aparecem como parte 
da ordem social, vividos como mal-estar cotidiano, insidioso e natu-
ralizado, e constituem uma questão política, carregando toda com-
plexidade do nosso contexto histórico, econômico, cultural e social.
Žižek (2014) afirma que se faz necessária uma oposição con-
tundente à todas as formas de violência. A primeira forma que o 
autor destaca é a violência física e direta, que é exercida claramente 
por um agente que amedronta e intimida e que pode, em última ins-
tância, causar terror e extermínio em massa. A segunda é a violência 
ideológica, que cria uma ambiência latente e imperceptível, muitas 
vezes naturalizada, e que se manifesta por atos racistas, homofóbi-
cos e machistas. E, finalmente, a violência sistêmica, de um capita-
lismo que se funda nas desigualdades e na injustiça e que tem efeitos 
catastróficos na sociedade.
Apesar dos vários esforços para definir a violência, ao se falar 
desse fenômeno não podemos desconsiderar as relações de poder e 
as ideologias presentes no debate em torno da questão, pois, afinal, 
violência é uma interpretação, uma atribuição de sentido de uma 
descontinuidade daquilo que entendemos como normal e previsível.
Martuccelli (1999) afirma que na modernidade há uma predo-
minância do caráter negativado da violência, opostamente à legiti-
midade da ação violenta para superar um regime opressor, como a 
que ocorreu na Revolução Francesa. Segundo o autor, a percepção 
da violência como racional ou primitiva é que vai dar o aspecto ne-
gativado ou positivado da violência na sociedade moderna, quando 
e como ela será legitimada ou não. Martuccelli (1999) propõe a dis-
tinção entre alguns tipos de violência e como ela é percebida pelos 
cidadãos. Por exemplo, há uma maior aceitação de uma violência 
moderna, especialmente ligada à atividade militar, que tornou midia-
ticamente aceitáveis as ações militares por meio de um discurso de 
eficiência racional e de atuação ‘cirúrgica’. 
86 
A violência que visa a controlar rebelião e movimentos so-
ciais também tenta conquistar a mesma legitimidade. Contudo, é 
questionada em sua ‘racionalidade’ justamente por ficar mais evi-
dente a sua materialidade. Martuccelli (1999, p. 164) insiste sobre 
o fato “que o que é recusado é menos o caráter ‘institucional’ des-
sa violência do que sua manifestação ‘física’, por demais ‘física’”. 
Assim, a “violência aparece como tanto mais aceitável quanto se 
apresente sob uma face ‘asséptica’, quanto ela mesma participe 
deste trabalho de redefinição das fronteiras do ‘real’ e de recalca-
mento da energia, pela via da informação”. Isto ocorre porque o 
grupo que domina discursivamente a delimitação do que é ‘real’ 
socialmente vive na égide da imaterialidade, tomando decisões 
sem contato concreto com os efeitos dessas mesmas decisões. 
Uma imaterialidade vivida principalmente em relação ao controle 
da informação, do dinheiro (SIMMEL, 1987) e do sentimento de 
dominação espacial e da falta de tempo que gera uma tentativa de 
racionalização e de economia nas relações sociais visando a “criar 
um ambiente de ação feito de escolhas passíveis de serem ‘desem-
penhadas discursivamente’, que se concentra no cálculo racional 
de ganhos e perdas” (BAUMAN, 1997, p. 138). 
Essa classe social cria uma barreira para isolar-se da sua pró-
pria concepção de violência. A violência fica limitada à população 
que vive a materialidade da vida, inclusive a sua falta, na ausência de 
condições que garantam essa vida isolada e materialmente excluída. 
Para além da definição conceitual, que opera na negatividade 
ou positividade da violência, este trabalho apresenta outras dimen-
sões da concepção de violência: a dimensão penal; a dimensão so-
cioeconômica; a dimensão política; a dimensão cultural e, por fim, a 
dimensão social e subjetiva. 
87 
A dimensão penal: violência como criminalidade
A forma mais comum de identificar a violência é por meio da 
judicialização, quando o ato ganha visibilidade ao ser tipificado no 
código penal. Isto não esclarece apenas o quanto a concepção de 
direito penal é vingativa e punitiva, mas como a sociedade se tornou 
incapaz de reconhecer e dar visibilidade às violências que não seja 
por meio da legitimidade legal/criminal.
A equivalência entre crime e violência é um engodo, pois nem 
todo crime é violência e nem toda violência é crime. Insistir nessa 
correspondência reduz o conceito de violência e limita a compreen-
são do fenômeno. Além disso, induz à crença equivocada de que o 
direito penal é o único mecanismo social que pode servir para com-
bater a violência, sendo que esta não pode ser combatida apenas 
com penalidades. 
A sociedade não pode prescindir de diversos meios para en-
frentar a violência em todas as suas manifestações, mas os campos 
jurídico e penal são acionados, prioritariamente, com o intuito de 
combater aquela violência vista como ‘irracional’. Entretanto, cen-
trar a questão da violência unicamente no direito penal dá margem 
às criminalizações estigmatizadas e descontextualizadas. É preciso 
compreender como a representação social da violência, na socieda-
de contemporânea, tem servido para oprimir e reprimir uma popu-
lação já excluída, legitimando uma ação do Estado que pode ser tão 
ou mais violenta do que a suposta violência que intenta combater. 
Uma sociedade individualista e marginalizante defende que o Esta-
do pode conceber o crime como uma ação criminosa contra a po-
pulação ou como um crime contra o próprio Estado. No primeiro 
modelo, o indivíduo tem direito à ampla defesa, possui garantias 
penais e processuais; no segundo modelo, ele é considerado um ini-
migo do Estado (MORAES, 2006, p. 200). A segunda concepção dá 
margem à flexibilizações e expansões de práticas punitivas que antes 
eram consideradas exceções, como nos casos de terrorismo. Um 
88 
alargamento conceitual que tem servido para generalizar ações ba-
seadas no direito penal. Aprofunda-se, assim, o uso do direito penal, 
agora com os indivíduos sem direitos amplos de defesa e garantindo 
às forças repressoras a perseguição àqueles que são considerados 
um risco ao Estado. 
A construção histórica da tentativa de homogeneização nega-
tiva de grupos sociais marginalizados se funda na concepçãode um 
humano universal, mas que não existe concretamente, assim como 
não existe um crime ontológico universal. O ‘ser humano universal’ 
toma decisões que tem consequências, logo a violência é fruto de 
decisões individuais erradas, ou seja, um fracasso pessoal. Tal con-
cepção acaba por centrar as preocupações nas ações individuais, evi-
denciando “um erro de perspectiva – 80% da criminalidade perma-
necem manifestando-se como criminalidade dos marginalizados” 
(SANCHEZ, 2002, p. 53). Em uma perspectiva societária indivi-
dualizante, a responsabilidade é unicamente do sujeito que cometeu 
o ato violento; assim, a única maneira de controlar o ato violento 
é combatendo seu agente por meio da punição. Em uma sociedade 
individualista, é a partir dessa lógica que a violência se centra na ação 
individual, isolada, descontextualizada. 
Nessa direção, as estratégias de violência impetradas por ins-
tituições estatais revelam um Estado com uma concepção belicis-
ta, com pouco diálogo com a sociedade ou com outros setores da 
administração pública, e que impõe a lei do silêncio diante de uma 
gama de violências cotidianas que podem culminar em homicídios. 
Mas tratam-se de violências cotidianas, que se não tiverem visibili-
dade, converterão as análises da violência, a partir de homicídios, em 
um processo de alienação em massa que só favorece o aumento da 
repressão. A pobreza, a exclusão, a falta de oportunidade de traba-
lho, de direitos mínimos garantidos constituem uma violência que 
antecede todas as outras. 
A representação social cada vez mais individualizada e negativa-
89 
da da violência inviabiliza a compreensão de uma sociedade dividida 
em classes, injusta, e que se concentra em controlar aqueles que se le-
vantam contra a ordem social vigente estabelecida. Contudo, mesmo 
com essa perspectiva em primazia, as estatísticas acerca da violência a 
apresentam à sociedade como uma realidade impossível de controlar 
para que assim ganhe mais efeito de controle e de punição.
Dimensão socioeconômica: a violência como 
fenômeno sistêmico
A violência identificada pelo ato objetivo, pela violência física 
que amedronta, não deve ser desconsiderada, mas nomeá-la e natu-
ralizá-la como a principal forma de violência é voltar à questão da 
legitimidade do aspecto criminal e legal da violência, reduzindo as 
relações sociais às tragédias individuais. Se houvesse a comparação 
do aumento de casos de homicídio com as perdas de direitos da 
população, fragilização das condições sociais, desemprego e falta de 
condições materiais, poder-se-ia esclarecer que são essas as violên-
cias fundantes da nossa sociedade, a qual se baseia na exploração da 
mão de obra, na concentração de riquezas e na desigualdade social. 
Alguns autores não se referem à violência de forma generali-
zada, mas especificam que se tratam de homicídios. Exemplifican-
do: ao analisarem dados estatísticos desde 1980, Cerqueira e Moura 
(2015) afirmam que “a cada 1% de diminuição na taxa de desempre-
go de homens faz com que a taxa de homicídio diminua de 2,1%”. 
O desemprego não só causa violência, ele é uma violência em si 
mesma. Parcelas cada vez maiores de trabalhadores não encontram 
alternativas de inserção social estável na sociedade, transitam à mar-
gem do trabalho e das formas de trocas socialmente reconhecidas 
ou estão desempregados, procurando um primeiro emprego, ou 
sendo terceirizados em trabalhos precários e intermitentes.
Para Engels (1979) é a apropriação privada que produz a vio-
90 
lência, portanto, a exploração do trabalho humano produz uma or-
dem violenta. Para o autor, não é natural dispor de meios para ter 
poder sobre a vida e o sustento do escravo:
Pressupõe, assim de qualquer maneira, um certo 
nível patrimonial superior ao grau médio de for-
tuna. Perguntamos, agora, de onde é que saiu esta 
diferença? É fora de dúvida que pôde ter saído do 
roubo, isto é, da violência, mas esta não é a úni-
ca explicação possível, pode também ser o fruto 
do trabalho, do furto, ou de uma transação co-
mercial ou de uma fraude. Ainda mais: para que 
alguma coisa possa ser roubada é mister tenha 
alguém criado, com o seu trabalho, aquilo que se 
lhe rouba (p. 139).
E quando o ser humano se torna não-empregável? Quando 
seu trabalho é considerado supérfluo? Quando o sujeito é colocado 
no lugar de ‘inútil para o mundo’, pode-se dizer que vivemos em 
uma sociedade fundamentalmente violenta? Torna-se inútil na con-
vergência entre o encolhimento dos empregos e as novas competên-
cias e qualificações exigidas no ciclo atual de reorganização do capi-
talismo mundial. E a responsabilidade é de quem? Não há ninguém 
a quem se possa responsabilizar em uma sociedade que afirma que 
cada um é responsável por seu próprio processo de inclusão social. 
O desemprego é uma solução do capitalismo para a intensifi-
cação da oferta de mão de obra e seu barateamento. É a formação 
de uma massa de ‘inúteis para o mundo’ que força os trabalhadores 
empregáveis a se submeterem a condições extenuantes de explora-
ção. Essa racionalização do capitalismo, que organiza as relações de 
trabalho, não é percebida socialmente como tendo consequências 
nas ‘escolhas’ dos sujeitos, mas é vista como um fato inexorável da 
realidade social. A consequência dessa realidade é que a vulnerabi-
lidade e a falta de segurança em meios desfavorecidos levam à uma 
91 
experiência intensa de insegurança e perigo, que também não tem 
perspectiva de mudar, nas sociedades capitalistas.
Para Castel (2001, p. 523) “se é suicida ser ‘contra’ o mercado, 
daí não resulta que seja necessário entregar-se a ele. A problemática 
da coesão social não é do mercado, a solidariedade não se cons-
trói em termos de competitividade e de rentabilidade”. No entanto, 
a integração social depende da “interiorização pelos indivíduos de 
disposições normativas de ação, não existem alternativas de sobre-
vivência fora das relações já instituídas” (MARTUCCELLI, 1999, p. 
169). O indivíduo, isoladamente, é chamado a encontrar uma saída 
social legítima para a sua condição de exclusão. 
Na violência também se trata disso, de estar socializado e, 
portanto, de aceitar e de se submeter a um modo de organização 
do trabalho que não dá sustentação às relações sociais. Logo, não é 
o argumento utilitarista que possibilitará o vínculo social. As condi-
ções de sociabilidade precisam ser pensadas e vividas acima da lógi-
ca de mercado, pois a servidão a esse sistema coloca em risco a vida 
em uma sociedade cuja violência sistêmica é ignorada, naturalizada. 
Mas, para esse modelo de organização social, não interessa questio-
nar se há um fracasso no processo de socialização, uma negação do 
outro como parte da sociedade. Para conter a crise desse fracasso 
apela-se à família, à escola e à igreja, cujo papel seria o de criar as 
condições para que os sujeitos dominem as suas pulsões destrutivas. 
Assim, “os sujeitos livres, por meio da interiorização das normas, 
tornavam-se sujeitos morais aceitando livremente realizar os valores 
da sociedade” (MARTUCCELLI, 1999, p.169). Essa internalização 
permitiria, então, reduzir o uso da violência. A violência, aqui, está 
sendo entendida como um fracasso pessoal do sujeito de se con-
trolar. E, no caso da sua exclusão econômica, de se incluir, de ser 
empregável. É de sua responsabilidade cumprir seu destino de ser 
o humano universal, idealizado pelo modelo político de sociedade 
democrática em um sistema capitalista.
92 
Alguns autores defendem a busca de espaços de negociação e 
diálogo como fundamental para a transformação social, afirmando 
que isto seria possível por meio do consenso. 
Porém, espaços de negociação e de diálogo são construídos 
coletivamente e dependem do reconhecimento das diferenças, in-
clusive da impossibilidade de acordo e de consenso sobre determi-
nadas questões. Se é que um consenso é possível, é de que há injus-
tiça social e que a sociedade precisa ser reorganizada. Do contrário, 
o consenso poderiaser, então, violento, apaziguando a consciência 
da injustiça e promovendo a reprodução da exclusão social, já que 
nossa sociedade legitima os mecanismos que promovem a exclusão 
social e naturaliza suas mazelas. A formação de regras e de consen-
sos, na sociedade capitalista, regida pelo sistema disciplinar, objetiva 
controlar e regular os sujeitos para que todos estejam voltados para 
o mesmo projeto coletivo, o crescimento econômico capitalista, 
como se este representasse a verdade última sobre os indivíduos 
e a sociedade. Habermas (1975, p. 300) considera fundamental um 
processo de emancipação no qual o ideal do consenso só pode se 
realizar em sociedade real, concreta e emancipada:
É lógico que o processo de comunicação só pode 
realizar-se numa sociedade emancipada, que pro-
picie as condições para que seus membros atin-
jam a maturidade, criando possibilidades para a 
existência de um modelo de identidade do Ego 
formado na reciprocidade e na ideia de um ver-
dadeiro consenso.
Há uma aposta em códigos morais capazes de criar tais es-
paços de negociação. No entanto, se esses espaços já existissem, na 
prática social, logo não haveria divisão de classes e exclusão social. 
A dialética construída a partir do diálogo possibilitaria, idealmente, 
o fim da violência. Contudo, observa-se uma dinâmica social que se 
93 
destina a controlar e a reprimir qualquer manifestação contrária ao 
modelo de sociedade atual.
Dimensão política: a violência como significante-mestre 
e prática institucionalizada - legitimada
O que fazer quando não há consenso? O que acontece quando 
uma parte significativa da população questiona as decisões e o modo 
de funcionamento das instituições sociais e de governos, enquanto 
outra parte insiste em manter o funcionamento tal como está? É 
inerente ao modelo capitalista de Estado legitimar o uso da força 
para aqueles que detêm o poder de reprimir quem se opõe a ele. 
Ou seja, o processo político desse modo de funcionamento implica 
em silenciar quem está excluído e quem luta por uma sociedade não 
excludente. O Estado tem na sua base a legitimidade para reprimir 
aqueles que se manifestam e se posicionam contra o Estado. Nesse 
processo, quem diz o que é violência?
Em circunstâncias de conflitos sociais, o discurso político 
é o de aumentar a repressão, argumentando que está trabalhando 
para a segurança da população. Vale-se inclusive do termo ‘violên-
cia’ como significante-mestre no entrelaçamento de um discurso 
estratégico com o intuito de produzir medo e insegurança. A partir 
da incorporação da violência como significante-mestre torna-se 
naturalizado o poder legitimador do Estado de colocar as insti-
tuições policiais para conter a violência da população que contes-
ta. Diante da instabilidade provocada pelo discurso midiático do 
medo da violência, os representantes do Estado passam a ser os 
defensores da segurança e da estabilidade. 
Quando os representantes políticos usam o termo ‘violência’ 
para aumentar a insegurança da população, tentam unificar os dife-
rentes sentidos sociais atribuídos ao fenômeno e, assim, o Estado 
conquista um senso de unidade fictícia, principalmente porque a mí-
94 
dia colabora nas formações discursivas que dão valor de verdade a 
esse pretenso ‘consenso social’, apagando as diferenças e silencian-
do as contradições. A mídia tem cumprido a função de nomear o 
mal-estar social como sendo causado pela violência, ocultando suas 
causas e legitimando práticas de opressão direcionadas sobretudo à 
população negra e da periferia das cidades.
Para Vico (2006, p. 29),
La violencia en las historias relatadas o retrata-
das por los medios está directamente relacionada 
con el realismo y con la capacidad de reflejar la 
realidad tal cual es, por parte de los medios de 
comunicación. Desgraciadamente el ser humano 
asocia la violencia y el crimen con lo innegab-
le, con lo insoslayable, con la muerte, y de ahí, 
con la realidad última, la materialidad de nuestra 
existencia. La representación de la muerte y de la 
violencia se convierte en el sello de los informa-
dores, como mensaje de lo real, de lo que no se 
puede negar ni evitar.
O uso do sensacionalismo pelos meios de comunicação serve 
para atrair o interesse da população, que fica atenta à intimidade e ao 
realismo da cena trágica. Esse mecanismo é usado de forma recor-
rente para desviar a atenção de outros problemas sociais e políticos 
e, assim, controlar a opinião pública. O discurso sobre a violência, 
na mídia, culmina com a legitimação de práticas repressivas e abu-
sivas da polícia, práticas de intervenção de uma hegemonia política, 
social e econômica diante de uma sociedade de excluídos. Vê-se, por 
exemplo, a mídia se valer do discurso da violência para deslegitimar 
propostas de transformação social que visam ao interesse comum, 
como a luta pela reforma agrária, por moradia, educação, saúde e 
direitos humanos, e que uma parcela da população privilegiada en-
tende como risco de perda de privilégios e de poder. 
95 
A violência institucionalizada é uma forma de violência do 
Estado. O uso dos mecanismos de poder e repressão, para ma-
nutenção da ordem vigente e do funcionamento social, beneficia 
alguns, em detrimento de muitos. O Estado coloca as forças poli-
ciais para reprimir, por exemplo, manifestações oriundas de movi-
mentos sociais, apoiado em justificativas que legitimam a opressão 
e a repressão. Uma das ideias que fundamentam esse discurso, por 
exemplo, é a de eficiência. Um Estado “eficiente” reduz gastos 
- não investe em educação, saúde, saneamento, moradia, direitos 
- para conseguir economizar, restringindo ao máximo a atenção 
primária e o atendimento à população. Mas não economiza nos 
aparatos de controle e repressão das instituições jurídicas e de se-
gurança pública, justamente porque sustenta um agir racional le-
gitimado pelo discurso da eficiência. Para o combate à violência, 
nessa perspectiva, se o Estado não dispuser de recursos suficien-
tes, pode mesmo, em algumas situações, se utilizar do aparato mili-
tar para alcançar seus objetivos. O próprio conceito de democracia 
é questionado no contexto de perda da soberania, de sujeição a 
interesses econômicos que alienam os princípios que embasariam 
a democracia, sejam a igualdade ou a liberdade.
Para Benjamin (1986), a interpretação do que é violência 
depende do lugar social de quem atribui esse sentido à ação, por 
exemplo, de quem institui o Estado. Aqueles que instituem o Es-
tado também definem o que é e o que não é violência. Um Estado 
que, segundo Weber (2004), tem a legitimidade no uso da violência 
e transfere esse poder para as instituições. Um Estado que exige do 
cidadão o respeito ao direito de propriedade, mesmo em detrimento 
de suas condições mais básicas de vida, e que se legitima a perpetrar 
atos violentos, com a força da lei, contra sujeitos que, supostamente, 
colocariam em risco a ordem social. Tal visão, centrada no aspecto 
legal de determinados atos, contribui para a individualização da vio-
lência e estigmatização de grupos sociais que não são, historicamen-
te, reconhecidos como sujeitos de direito. 
96 
O problema da definição de violência nos remete a uma ques-
tão axiológica ou valorativa. Assim, para Castro (2005, p. 246), a 
maneira mais objetiva de definir violência é “assumir um compro-
misso com as maiorias (que são uma categoria quantitativa), assim 
como com uma orientação permanente no sentido da obtenção da 
maior quantidade possível de liberdade. Não é nada fácil, porquanto 
dissemos que a tensão presente na violência se produz precisamente 
entre os polos liberdade e igualdade. Obter o equilíbrio no enfrenta-
mento entre os opostos para detectar os espaços coincidentes é uma 
opção que valeria a pena adotar.” Nessa direção, poderíamos encon-
trar a paz nos espaços coincidentes entre igualdade e liberdade, um 
exercício difícil, mas necessário ao processo civilizatório.
Ao afirmar que a violência ocorre entre os polosda liberdade 
e da igualdade, Castro (2005) está dizendo que “as instituições são 
violência. Que o direito, portanto, é violência. Que o exercício do 
poder é violência. Os limites éticos deveriam, portanto, ser postos pe-
los parâmetros [...entre]: um equilíbrio necessariamente instável entre 
compromisso, maioria, liberdade e discurso intersubjetivo” (p. 247).
Quem está em posição de dizer o que é violência é quem 
está em posição de poder (DUNKER, 2011). Quem diz o que é 
violência na mídia são os agenciadores que pagam para que essa 
mídia veicule o que lhes interessa. Violência não é simplesmente 
um fato, é uma interpretação, é uma atribuição de sentido. A vio-
lência é algo que sai da previsibilidade e se, por um lado, ela viola 
nossas expectativas, ela também transforma, é uma descontinui-
dade, ela traz uma mudança, ao mesmo tempo em que questiona 
expectativas também confirma expectativas. 
A dimensão cultural: violência como estratégia de opressão
O controle social instituído vai legitimar o que a sociedade 
entende ou não por violência. As relações de poder determinam 
97 
que violências serão reconhecidas e quais serão silenciadas. Portan-
to, não dá para se referir à violência sem tocar na questão do con-
trole social e das relações de poder. Após o colapso da revolução 
de 1917, o sistema capitalista desatou sua violência “legal, legítima 
e letal” contra suas vítimas (DUSSEL, 2000, p. 544). A violência do 
sistema foi legitimada, enquanto a violência individual foi abrangen-
temente visibilizada. 
Para Arendt (apud DUSSEL, 2000, p. 545) “uma teoria da 
guerra ou uma teoria da revolução podem somente ser justificação 
da violência, porém o que é glorificação ou justificação da violência, 
enquanto tal, já não é política, mas antipolítica”. Ou seja, nessa pers-
pectiva, nada justifica o uso da violência, da coerção, pelo Estado. 
Qualquer uso da força seria antipolítico. 
Žižek (2014) defende que apregoar a tolerância à exclusão é 
uma forma de violência. O que significa pedir para que as vítimas 
de uma sociedade injusta e exploratória não reajam? A reação dos 
excluídos é decorrente do abafamento dos conflitos por um mito 
de igualdade que foi instituído por um Estado fundado em contra-
dições, silenciando a muitos, criando uma suposta normalidade. A 
ação contra essa exclusão pode ser nomeada como violência? Le-
vantar-se contra o sistema capitalista significa não aceitar mais o 
silenciamento da violência sistêmica e aceitar as consequências da 
revolução. No entanto, não identificamos na sociedade atual movi-
mentos de transformação pela via da revolução, seja para mudar a 
forma de organização econômica ou o modelo político que a sus-
tenta. E, como afirmava Arendt, “a paz reina em Berlim”. 
A modernidade impôs um discurso único, uma discursividade 
que implementou jogos de poder baseados na verdade, no saber 
científico, no controle, nas estratégias de legitimação e nos modos 
de servidão. Para Canavêz (2012, p. 10), mesmo os discursos na mo-
dernidade que evocam a diferença e são os 
98 
mais afeitos ao sujeito não se mostram totalmen-
te imunes ao enredo da tirania do Um, bem como 
à violência inerente à sua instauração, como pro-
vam determinados usos da medicina, a princípio 
aventada em defesa da vida; o caráter contra-
ditório da bandeira dos direitos humanos, nem 
sempre respeitados para privilegiar a soberania 
dos Estados e de grupos específicos; ou até o 
próprio exercício da filosofia, que também pode 
estar sujeito ao ‘totalitarismo do mesmo’ (DER-
RIDA,1964/2009, p. 130), outro nome do Um.
De forma mais ou menos autoritária, alguns grupos cons-
troem, por meio de um consenso aparente, os discursos que fundam 
um sentido existencial e os indivíduos podem reger suas práticas a 
partir dessa base, rejeitando o que coloca esse fundamento em risco. 
Foucault (1999) afirma que é preciso analisar as estratégias e formas 
de ‘lutas’ que se estabelecem, pois o que mudaria se os indivíduos 
trocassem de posição entre si, mas permanecessem usando os me-
canismos de poder e dominação, repetindo os mesmos modelos de 
relação social utilitária e impessoal? A perspectiva da transformação 
social deve permitir novas formas existenciais e para isso os sujeitos 
devem encontrar e construir novas formas de relação, de produção 
das condições materiais. É preciso sair do registro da servidão, do 
assujeitamento, da anulação do outro. É importante compreender 
os mecanismos que os sujeitos utilizam para solucionar os conflitos 
internos, entre a servidão e a dominação, e evitar a violência oriunda 
desse mal-estar inerente à civilização, violência que silencia, nega e 
exclui social e economicamente determinados seres humanos. 
99 
Dimensão subjetiva e das relações sociais: a violência 
como aniquilação do outro/das diferenças
Em uma perspectiva tanto subjetiva quanto social é impor-
tante diferenciar a violência da agressividade, sendo a violência o 
não reconhecimento do outro, na medida em que nele se apresenta 
a marca da diferença e a impossibilidade, para o sujeito, de canalizar 
sublimatoriamente a pulsão de morte.
Do ponto de vista subjetivo, a pulsão de morte, origem da 
agressividade necessária à vida, mas também da violência, enquanto 
passagem ao ato, pode encontrar uma via de expressão subjetiva e 
socialmente aceita pela simbolização, pela palavra, pela sublimação, 
mas pode também ser impedida de encontrar sentido e vir a tomar 
formas sintomáticas como os atos violentos e outras tantas formas 
de expressar o gozo advindo da compulsão à repetição. Assim, a 
violência do sujeito expressa algo que não vai bem na sua própria 
subjetividade e no processo civilizatório da constituição dos laços 
sociais com o Outro. Ela se expressa sob forma de sintoma, como 
uma demanda ou reivindicação. Para Lacan (1999, p. 471), a violên-
cia “é, certamente, o essencial na agressão, pelo menos no plano 
humano. Não é a palavra; inclusive, é exatamente o contrário. O 
que se pode produzir em uma relação inter-humana é a violência ou 
a palavra”. A possibilidade de simbolização exige, contudo, que “o 
sujeito sacrifique algo de si, tal como ensina a teoria do falo e da an-
gústia de castração simbólica” (FERRARI, 2006, p. 59). Do ponto 
de vista das relações sociais, para a psicanálise a “própria noção de 
contrato social, ato simbólico, supõe uma violência ao real, pois seu 
principio é o de uma ordem univeralizante. Como se sabe, o real não 
é o mesmo para todos” (FERRARI, 2006, p. 59).
 Em uma sociedade fundada na exploração, na concentração 
de capital e na desigualdade social e econômica, a violência está na 
base dessa sociedade, pois é a negação do outro como sujeito e a 
inserção objetificada do trabalhador na reprodução das condições 
100 
materiais. Simmel (1983) aponta que o conflito se transforma em 
violência quando passa a ser central para o coletivo, sendo mais 
importante o conflito do que qualquer outro objetivo ou acordo 
comum. Para a sociedade capitalista é mais importante manter a 
exclusão do que estabelecer laços sociais sem violência.
Na violência que funda uma sociedade excludente, a coexis-
tência de sentidos é percebida como impossível e o objetivo não é 
buscar soluções para uma integração, um consenso ou um diálogo, 
mas a aniquilação do outro e, consequentemente, a aniquilação da 
diferença e dos sentidos que se contradizem. Silenciar as contradi-
ções, as desigualdades e as injustiças é um mecanismo de aniquilação 
da diferença, do outro social. 
Para evitar o confronto em uma sociedade fundada na desi-
gualdade injusta, só a alienação e a servidão voluntária sustentariam 
sua permanência. Assim, os indivíduos recuam no discurso para 
uma ambiguidade que permite os silenciamentos e o apagamento 
das contradições. A indiferenciação dos sentidos, especialmente da 
exploração social, que é naturalizada pelas relações sociais, legitima-
da pela legislação, ocorre por meio da alienação que protege a so-
ciedade do confronto e da fragmentação,criando um falso sentido 
de unidade social. A alienação protege do medo de reconhecer as 
diferenças, as contradições, as injustiças, as exclusões e a legitimida-
de das revoltas, concentrando o medo na violência direta e objetiva, 
individualizada e estigmatizada. 
Para Wieviorka (2004), se a sociedade não tem uma base que 
medeie a relação entre os sujeitos, então estes ficam à mercê de seus 
movimentos e interesses pessoais. O conflito, quando é mediado por 
um princípio comum, apresenta possibilidade de construção subje-
tiva, mas sem a mediação de um sentido compartilhado não conse-
gue estabelecer um reconhecimento mútuo e “a violência encontra 
rapidamente suas brechas” (p. 206). A violência é então percebida 
como uma ameaça constante, mas também como única possibilida-
101 
de diante da indiferença. Para Simmel (1983), a violência é a própria 
negação da interação, é a negação do social. Quando não existe pos-
sibilidade de regulação do conflito, as relações sociais ficam prestes 
ao confronto e à aniquilação do outro, a violência tornando-se a 
forma do social. O conflito, levado às últimas consequências, é um 
objetivo em si mesmo: o combate até a aniquilação do outro. 
Segundo Simmel (1983), se o movimento do sujeito for no 
sentido de impossibilitar o diálogo, ele está excluindo todas as pos-
sibilidades de questionamento das contradições. O silenciamento 
imposto pela violência sistêmica ocorre em meio à negação das 
contradições sociais, em meio à negação do outro e, portanto, da 
diferença em si mesma.
Para Martuccelli (1999), a violência pode estar expressando o 
conflito entre duas realidades que revelam a negação e desfiliação 
social: por um lado, a ideia de que o sujeito deve se controlar, inte-
riorizar as normas e reprimir as pulsões, e, por outro, a constatação 
implícita de que se é controlado por redes de coação material do 
exterior ou fica desfiliado, como no caso dos jovens e dos desem-
pregados, que são “constrangidos a se controlar a partir do seu inte-
rior” (p. 171). Há, para estes, uma “distância entre a fraca materiali-
dade da coação social legítima, portanto ‘real’ de seu universo, e um 
modelo normativo de indivíduo segundo o qual eles devem chegar a 
ser, no maior vazio, senhores de si mesmos” (p. 171). 
Para a psicanálise, a dimensão da violência não está no irra-
cional ou desumano, mas na dimensão propriamente humana do 
sofrimento, da subjetividade e do saber. Não apenas na moderni-
dade, mas desde a fundação da civilização, a violência desempe-
nhou uma função constitutiva nas relações afetivas. A violência, 
ao mesmo tempo em que cria, destrói. Por um lado, a violência 
constitutiva das relações sociais, por outro lado, a violência em sua 
negatividade, de aniquilamento do outro, tal como se configura em 
uma sociedade excludente.
102 
Considerações finais
A violência é um conceito definido e interpretado conforme a 
posição de poder de quem o articula. A polêmica sobre o questiona-
mento de sua positividade é uma característica da nossa sociedade. 
Pode-se pensar a violência para além da negatividade que confere a 
ela uma ilegitimidade fundante? O combate à toda forma de violên-
cia tem como horizonte a preservação da vida concreta dos sujeitos 
excluídos em uma sociedade que se funda na servidão voluntária. 
Uma sociedade que expande a consciência de que vivemos em um 
modelo que tem limites, mas que devemos aceitá-los. Uma cons-
ciência que alerta para o risco de lutar por uma transformação social 
que exija confrontação. 
Pode-se perceber que as violências legitimadas na sociedade 
atual são aquelas que visam a conter os indivíduos ‘irracionais’, a 
deslegitimar as ações que questionam o modo de organização social, 
impedindo o questionamento da instituição das normas e da desfi-
liação social que garante o controle social externo.
A realidade da exclusão implica em lidar com um sistema nor-
mativo desconectado da sua materialidade, do seu real concreto, e 
que oferece uma fraca filiação social. A violência pode ser com-
preendida, então, fundamentalmente, na sua expressão subjetiva e 
social, como um grito, um apelo por uma realidade material que 
possibilitaria uma filiação social, simbólica e real. Mas, diante desse 
grito, a resposta, legitimada socialmente, faz calar as denúncias e sin-
tomas de exclusão social e de luta individual e coletiva contra o siste-
ma de opressão. Os profissionais que atuam nos campos da educa-
ção e da saúde mental precisam levar em consideração, na atenção, 
no cuidado e no tratamento das diversas manifestações da violência, 
as condições social, cultural e subjetiva de sua produção para que 
não calem o sofrimento dos sujeitos e as contradições sociais em 
nome da manutenção e da reprodução das relações sociais vigentes, 
operadas por mecanismos de controle e de exclusão sociais. 
103 
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CAPÍTULO V
Mulher Negra21 e 
o Saber Psicológico
Elcimar Dias Pereira
Enoe Isabela Baía de Moraes
RESUMO
Conforme discorrido por muitas pesquisadoras brasileiras 
(GONZALEZ, 1982; CARNEIRO, 2003; NASCIMENTO, 2008; 
WERNECK, 2010; PRESTES, 2013), as mulheres negras na his-
tória do país sempre tiveram um papel ativo no que diz respeito 
ao trabalho, estratégias de luta, cuidado e disseminação de saberes. 
Contudo, a história e conhecimentos hegemônicos construíram 
uma imagem estereotipada e subalternizada dessas mulheres, não le-
gitimando os saberes por elas produzidos. Há algumas décadas que 
21 Embora o título esteja no singular o termo “mulher negra” , as autoras não desconsideram 
a multiplicidade e diversidade de mulheres negras e suas diversas estratégias que podem 
ser dialogadas com o que estamos nomeando de saber psicológico, ou saber psi. 
106 
o exercício para visibilização das mulheres negras como produtoras 
e disseminadoras de saberes vem sendo feito, na sua maior parte 
por mulheres negras que estão ocupando espaços de construção 
dos saberes legitimados, como as universidades. A psicologia, como 
um campo de saber que hoje se configura de maneira diversa, na sua 
história já contribuiu de várias formas na construção de um olhar 
sobre o corpo negro em uma perspectiva desumanizante, mas tam-
bém existe, na sua história, perspectivas críticas do saber psicológico 
que problematizaram as relações de desigualdades, discriminação e 
estereotipificação e consideram a alteridade como componente im-
portante na constituição do saber psicológico. Portanto, este texto 
visa apresentar como a práxis das mulheres negras permeada pela 
alteridade, cuidado e valorização da comunidade pode ser conside-
rada um tipo de saber psi. 
Palavras-chaves: mulheres negras, psicologia, cuidado, saber 
ancestral, alteridade.
INTRODUÇÃO
A construção deste texto é fruto do diálogo entre mulheres22. 
O passo inicial foi dado por meio do aceite do convite a proferir a 
conferência Mulheres Negras, sexualidades, corpos e poder23. Embora o 
convite tenha sido individual, a construção das reflexões foi coletiva. 
Nesta conferência, o mote da fala teve por referência o em-
blemático caso de Sarah Bartman24, já discutido por várias auto-
22 Para além das duas autoras, tivemos outras conversas , que contribuíram na construção 
deste texto, com Charllote Emanuele da Silva Sousa, Rita de Cássia de Andrade Martins, 
Marília Rodrigues da Silva, dentre outras. 
23 Convite foi feito à Profa. Dra. Elcimar Dias Pereira para ministrar a conferência no III Sim-
pósio sobre Psicologia Social realizado na Universidade Federal de Goiás - Unidade Jataí, 
dias 04 a 06 de julho de 2017. 
24 Saartjie Baartman, Sul africana que foi levada para a Europa no século XIX para realizar 
apresentações nos freaks shows da época. 
107 
ras25, história que se tornou filme26. Na conferência, o recorte da 
vida dessa mulher teve como objetivo olhar como se estruturava 
a ideia de ciência no século XIX e como esta perspectiva incidia 
sobre os corpos negros. Um olhar científico que desumanizava e 
tentava destituir de saber todos aqueles que não eram considera-
dos iguais a partir da visão europeia. Em seguida, foram relatadas 
as influências deste pensamento europeu no Brasil, sobretudo, no 
saber psicológico. Entre estas influências, Santos, Shucman e Mar-
tins (2012) discutem a escola de Nina Rodrigues, que apresentam 
como um espaço que considera negros(as) como sujeitos psicoló-
gicos e reforçando o pensamento eugenista e higienista, tendo um 
papel fundamental na disseminação destas lentes científicas. Como 
contraponto a este tipo de pensamento, tomou-se a discussão de 
autoras negras que criticaram a visão racista do pensamento dito 
científico, como bell hooks 27(1995), Beatriz Nascimento (1989, 
apud RATTS, 2007 p.41), Patricia Hill Collins (2002) dentre ou-
tras. Bem como, estudos realizados por mulheres negras e sobre 
mulheres negras no interior da Psicologia28. 
Ao adentrar nas críticas à forma como o pensamento eugêni-
co é produzido, abre-se possibilidades de outras indagações como, 
por exemplo, por quem e como o conhecimento sobre os/as ne-
gros/as é produzido. Como se dá a construção do conhecimento e 
como ele é exercido e legitimado? Há separação entre conhecimen-
to e prática? Estas perguntas são utilizadas como ponto de partida 
para situar o conhecimento produzido por mulheres negras baseado 
25 Excelente trabalho de Janaína Damasceno (2007), filósofa, pós-doutora em sociologia. 
26 Vênus Negra. Direção: Abdellatif kechiche, França/Bélgica/Tunísia, 2010.
27 6 Embora este texto não tenha como foco discussão acerca da obra de bell hooks, vale a 
pena situar para as/os leitores/as que ainda não a conhecem. bell hooks é o pseudônimo 
de Glória Jean Watkins, escritora, professora, negra e norte-americana. Ela escolheu este 
nome para assinar as suas obras para homenagear os sobrenomes da sua mãe e da sua avó. 
O nome é grafado em letras minúsculas porque, segundo a própria autora, o mais impor-
tante é a substâncias de seus livros e não quem ela é.
27 7 Serão citados/as adiante.
108 
em ensinamentos ancestrais como algo que pode ser tomado como 
um tipo de saber psicológico, embora não reconhecido como tal. 
Na defesa deste argumento, consideramos que na trajetória das mu-
lheres negras existe uma práxis que contribui, mesmo em situações 
adversas, para a sobrevivência, o fortalecimento e a mediação das 
relações de cuidado em prol de uma saúde integral.
Para isto, consideramos que reflexão e ação não são polos 
opostos. Adotamos então o conceito de Práxis como interpretado 
por Paulo Freire (2002, p. 92), que afirma que ela, “sendo reflexão 
e ação verdadeiramente transformadora da realidade, é fonte de 
conhecimento reflexivo e criação”. Tal interpretação é tida como 
coerente com nossos propósitos por aproximar-se da ideia pro-
posta de que as mulheres negras, a partir de diversas práticas, em-
basadas em saberes milenares sobre alteridade, criaram e recriaram 
formas de cuidado.
A filósofa e professora Angela Davis, em conferência pro-
ferida na Universidade Federal da Bahia29, fez apontamentos para 
problematizar questões relativas ao debate sobre mulheres negras, 
relações raciais, de classe e de gênero, nos quais abordou o elemento 
importante da valorização do conhecimento ancestral das mulheres 
negras brasileiras e enfatizou como o mundo precisa aprender com 
as experiências das mulheres negras brasileiras, citando mulheres ne-
gras acadêmicas, mães de santo, sambadeiras, dentre outras. Angela 
Davis alude à existência da ideia de interseccionalidade entre mulheres 
negras antes mesmo da nomeação do conceito30. Com esta reflexão 
de Davis, é possível demonstrar que as sistematizações das ideias 
por meio de nomeações conceituais podem representar uma ideia já 
em circulação. Quem nomeia não necessariamente é o/a criador/a 
29 Conferência proferida no dia 25 de julho de 2017, na UFBA, em comemoração ao dia da 
Mulher Negra Latino Americana.
30 A intenção não é discutir a sistematização do conceito interseccionalidade, que tem uma 
vasta produção, mas usá-lo como exemplo para falar sobre a dinâmica da construção de 
um conceito. 
109 
daquele conceito, ou seja, os conceitos podem ser construídos e 
sistematizados coletivamente. 
Esta reflexão pode abrir uma série de possibilidades, contudo, 
neste texto, enfatizamos dois aspectos. Um deles é a produção do 
conhecimento coletivo, que ainda é um desafio, mesmo por parte de 
grupos organizados, e que se relaciona intimamente com a prática 
da alteridade. Outro aspecto é que por vezes desconsideramos que 
algumas práticas que conceituamos e teorizamos sobre, são conhe-
cimentos já produzidos anteriormente, mas temos a tranquilidade 
de as considerarmos como novidade, desconsiderando suas origens 
e/ou processo histórico, valorizando apenas o espaço acadêmico 
como espaço únicode construção de saber.
A questão que trazemos aqui é que independentemente de 
estar no espaço acadêmico, a trajetória das mulheres negras na cons-
trução do Brasil está entrelaçada a um saber ancestral/milenar que 
pode ser um elemento a ser apreendido pelas ciências, dentre elas, a 
Psicologia, no que diz respeito à esfera do cuidado/alteridade com 
o outro. Consideramos então que este é um dos desafios da Psico-
logia, para além de estar atenta e de ressignificar o olhar racista e 
misógino sobre as mulheres negras, construído historicamente. 
Portanto, apresentaremos componentes históricos da consti-
tuição da Psicologia e apontamentos elencados por estudiosos re-
lativos ao desafio de delinear e definir o que é o saber psicológico, 
diante de tanta diversidade. Ainda trataremos da inserção do debate 
sobre relações raciais na produção da psicologia e a possibilidade de 
olhar para esse saber de uma maneira que contemple o que nomea-
mos como saber ancestral das mulheres negras. Na segunda parte 
do texto apresentamos alguns exemplos de elementos da práxis das 
mulheres negras que pode se assemelhar a um saber psicológico que 
leve em conta a alteridade como princípio. 
110 
Saber psicológico e alteridade
No Brasil, o conhecimento psicológico “oficial” se constituiu 
por meio da medicina e da educação. Em meados de 1930, a euge-
nia começou a exercer grande influência na psiquiatria e educação, 
tendo como base a busca pela “prevenção” de doenças mentais e 
problemas sociais a partir de um ideal de normalidade. Assim, ini-
ciou-se um processo de avaliação psicológica dos sujeitos de acordo 
com suas características físicas e comportamentos indesejáveis. A 
desvalorização dos conhecimentos dos povos africanos, em associa-
ção à sua falta de domínio sobre a escolarização europeia, culminou 
com a interpretação desses povos como responsáveis pelos proble-
mas socioeconômicos do país (ANTUNES, 2014). Porém, se olhar-
mos para a população negra brasileira no início do século XX, o 
saber deste povo era útil a todos/as, sendo, porém, desconsiderado 
em sua origem e desvalorizado/deslegitimado em seus produtores. 
Algumas teses, como a de Bento (2002, p. 7), apontam para o 
fato de que houve um incentivo à imigração de 3,99 milhões de euro-
peus, “um número equivalente ao de africanos (4 milhões) que haviam 
sido trazidos ao longo de três séculos”, com a intenção de “clarear” 
a população até que se tornasse, enfim, branca, como desejado. Ho-
fbauer (2003) indica que tais projetos, influentes ainda no século XX, 
tinham como objetivo exterminar a população negra em três gera-
ções. Portanto, não bastava desconsiderar as pessoas que produziram 
os conhecimentos que estruturaram o país, era preciso eliminar quem 
o construiu, bem como ignorar determinadas práticas como sendo 
conhecimento. O pensamento psicológico já se fazia presente no país 
e buscava demarcar-se como um saber científico. 
Mas o que configura o saber psicológico? Como ele se cons-
tituiu e a quem ele serve? Estas duas questões perpassam toda a 
história da psicologia como pensamento filosófico e científico. E 
responder esta questão não é tão simples, como já apontaram alguns 
autores que se desdobram para discutir a história e o saber psico-
111 
lógico em suas diversas faces (FARR, 2004; FIGUEIREDO,2009; 
GUARESCHI, 2012). Seja na busca de discutir sobre esta temáti-
ca, considerando o saber psicológico independente da abordagem, 
como Figueiredo (2009), ou na especificidade da Psicologia Social, 
conforme aponta, Guareschi (2012). 
O que parece ser consenso é que o advento da “necessidade” 
da Psicologia se afirmar como ciência na passagem do século XIX 
para o século XX fez com que concepções do que vem a ser o saber 
psicológico surgissem. E assim, o saber psicológico que antes se ba-
seava na ideia de entender o que é o ser humano, com a adoção das 
ideias eugenistas, passa a se constituir em campos de saber que se 
preocupam, além de entender, analisar, classificar, com hierarquizar. 
Para isto, lança-se mão de experimentos, inicialmente considerando 
sensações, percepções e em seguida o comportamento, com viés 
biologicista, individualista e/ou sociológico, mas, ambos, no princí-
pio, com um viés essencialista. Tanto é que a dicotomia individual/
coletivo marca significativamente a história da psicologia (CAM-
POS; GUARESCHI, 2000). Tais perspectivas foram criticadas pos-
teriormente e novas lentes construídas para enxergar o ser humano, 
o que se nomeou como uma perspectiva crítica da psicologia. 
No que tange ao período de consolidação da Psicologia como 
ciência, Foucault (1999) nos explica que o destaque alcançado pelo 
saber psicológico está intimamente relacionado à mudança da socie-
dade disciplinar para a sociedade de controle. Foi um período em 
que, segundo o autor, a medida tomou o lugar do status, “substituindo 
a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, 
esse momento em que as ciências do homem se tornaram possível” 
(FOUCAULT, 1999, pg. 161). Nesta mesma direção, Nardi e Silva 
(2004) discutem a emergência do saber psicológico a partir de uma 
lógica de individualização, considerando que a lógica da construção 
de um saber psicológico se dá pelo viés individualizante constituída 
a partir de uma ética normativa com intuito de adaptar a pessoa às 
112 
normas, valores e crenças informadas pela sociedade na qual a pes-
soa está inserida. 
É importante lembrar que a construção da psicologia na 
América Latina se deu a partir da importação do conhecimento 
psicológico de fora do país, isto é, sem levar em consideração 
o contexto latino americano. Em uma tentativa de olhar para 
a realidade dos países colonizados sob olhar dos/as nativos/
as, estudos começam a considerar as realidades incluindo temas 
referentes a ideologias, desigualdades sociais, identidades. A maioria 
destes estudos, tendo como base o materialismo dialético, no seu 
início não considerava questões que constituem a realidade da 
população latino-americana no que diz respeito às relações étnicos 
raciais e de gênero (CAMPOS, GUARESCHI, 2000). 
Na tentativa de conhecer e controlar as diferenças individuais, 
os primeiros esforços de definir a área como ciência terminaram 
por desconsiderar como um ser possuidor de humanidade todos 
os que não se enquadraram dentro da lógica do que se entendia 
como o “normal”, ou seja, o europeu, perspectiva ainda bastante 
difundida. Criticar a importação de teorias e abordagens europeias e 
estadunidenses não significou necessariamente considerar todas as 
desigualdades dos países latino americanos exatamente. Mas, contri-
buiu para que estudos relacionados ao racismo e Psicologia tivesse 
uma continuidade e uma ampliação gradativa.
Na década de 1970 e 80, a discussão sobre relações raciais31 
ganha mais espaço na Psicologia, não só como tema de pesquisa, 
mas com a inserção de negras na profissão32. Em 1983, foi lançado 
o livro Tornar-se negro, da Psicanalista Neusa Santos Souza, importan-
te contribuição para a discussão sobre as consequências psicológicas 
31 Vale ressaltar a importância de estudos anteriores a este período, como os das psicólogas 
Aniela Ginsberg e Virgínia Bicudo que realizaram pesquisas no Projeto Unesco, na década 
de 1950. Foi um marco importante para a discussão da temática no Brasil. 
32 MOURA, Olga. Eu, mulher, psicóloga e negra. Psicologia, Ciência e Profissão, Brasília, v. 4, 
n. 2, p. 10-15, 1984. 
113 
do racismo e indicativo de possibilidades de superação.
Nos anos 1990 e 2000, aumentou consideravelmente a produ-
ção de trabalhos na psicologia com a temática racial, como, por exem-
plo, a dissertação de Ferreira (1999) sobre identidade e a importante 
produção de trabalhos desenvolvidos no NEGRI (Núcleo de Estu-
dos de Gênero, Raça e Idade), coordenado por Fúlvia Rosemberg, um 
dos espaços pioneiros para discussão sobre relações raciais na Psico-
logia, com temas relativos à literatura, ação afirmativa, branquitude, 
dentreoutras. Silva (2014) fez um importante balanço abordando as 
produções realizadas no NEGRI no seu período de existência33. Ou-
tros importantes trabalhos e temas na história da Psicologia brasileira 
foram discutidos e situados no texto de Santos, Schucman e Martins 
(2012). Na área da saúde mental e racismo muitas produções têm sido 
sistematizadas não só no âmbito acadêmico34.
A maioria dos trabalhos construídos no âmbito da Psicolo-
gia Social ou Clínica, apresentam, de maneiras diversas, a estrutura, 
os processos e consequências do racismo institucional, individual e 
algumas possibilidades de enfrentamento. Considerando a impor-
tância da Psicologia fazer seu papel de reconhecer a diversidade, 
exercitar o acolhimento e sua práxis voltada para o reconhecimento 
da diversidade e o exercício de acolhimento do tema do racismo, 
permanece pouco discutido e ainda perpetuado um estado de igno-
rância letal que inibe o desenvolvimento de uma psicologia mais crí-
tica, já inclusive incorporada como pauta fundamental de discussão 
33 O núcleo esteve ativo de 1992 até 2014, encerrou após o falecimento de Fúlvia Rosemberg. 
34 Em paralelo com os estudos acadêmicos, algumas ações no campo profissional ganharam 
formas, dentre elas, o Instituto AMMA PSIQUÊ, fundado em 1995, cujo trabalho tem bus-
cado por meio de formação e prática clínica, identificar, elaborar e desconstruir o racismo e 
seus efeitos psicossociais. O racismo, além de violar direitos sociais, prejudica a saúde psí-
quica dos indivíduos: podendo fazê-los desenvolver sintomas psicossomáticos, inibições, 
impedimentos (de acesso, de participação), especialmente na experiência de negritude; e/
ou desenvolver uma autoimagem distorcida, descolada da própria realidade e racialidade, 
como ocorre principalmente na experiência de branquitude.
114 
pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP)35. 
A ampliação de estudos que discutem o tema das relações ra-
ciais se fez presente em diferentes abordagens da Psicologia e mes-
mo pesquisando o mesmo tema, a noção do saber psicológico não 
é única sobre ele. E como o olhar de que cada abordagem por si 
só não dá conta da perspectiva racial no Brasil, há algumas décadas 
foi proposta a Psicologia Africana, que além de criticar a psicologia 
ocidental e a maneira que foi criada sob uma perspectiva racista, 
apresenta também a proposta de uma
(...) psicologia centrada em nossas essência e in-
tegridade africanas, o que exige irmos além de 
desenvolver uma perspectiva negra, ou mesmo 
afrocêntrica, sobre a psicologia ocidental. Funda-
mental a essa tarefa é criar e criticar um corpo de 
ideias, teorias e práticas destinado a favorecer a 
compreensão, a explicação e, quando necessário, 
a cura do ser, do vir a ser e da pertença africa-
nos em todas as expressões históricas e desdo-
bramentos contemporâneos. Não se trata de um 
pensamento europeu revisado ou rearranjado, 
busca raízes profundas no pensamento africano. 
(NOBLES, 2009, p. 279).
Poderíamos considerar a Psicologia Africana como mais 
uma abordagem da psicologia para criticar e explicar o saber psi-
cológico? E, com tantas fragmentações, será que existe uma unida-
de no que se refere a este saber psicológico? Sobretudo, um saber 
psicológico que considere a possibilidade de aprender sobre si a 
partir de um determinado grupo, nomeado como subalternizado 
na constituição no país? 
35 Por meio da campanha, em 2002, O Preconceito Racial Humilha, a Humilhação Social faz 
sofrer. E com a Resolução nº 18, que estabelece normas de atuação para psicólogas e psi-
cólogos em relação ao preconceito de discriminação racial 
115 
Figueiredo (2009) considera que a Psicologia pode ser vista 
como um espaço de dispersão no que se refere à construção de teorias 
e práticas e, em paralelo, busca algum tipo de unidade. Com a inten-
ção de encontrar uma forma de diálogo entre os vários caminhos que 
o pensamento psicológico percorreu, Figueiredo (2002) constrói o 
que ele nomeia de Matrizes do pensamento psicológico a partir das quais são 
organizadas teorias e sistemas hoje acessíveis. A partir dessa lógica, o 
autor considerou possível reagrupar e confrontar teorias, apontando 
assim, possíveis afinidades insuspeitáveis e oposições imprevisíveis. 
Mas, segundo o mesmo autor, mesmo com ganho, este trabalho ainda 
foi insuficiente para a compreensão da área e aponta e problematiza 
que a questão não seria o “embate” epistemológico e sim a dimensão 
ética. E considera a “transição de uma cultura regida pelo tribunal 
epistemológico para uma cultura em que a ética assume uma posição 
central” (FIGUEIREDO, 2004, p. 46). 
Freire (2003) apresentou uma discussão sobre a ética na 
prática psicológica a partir da perspectiva da filosofia de Levinas 
(1988), considerando a alteridade radical e compreendendo a éti-
ca como anterior à ontologia. Freire afirma, a partir da leitura de 
Levinas, que há uma alteridade radical que nos intima a assumir a 
responsabilidade total com os outros. Essa seria a dimensão ética 
por excelência, estar a serviço do outro, por ele e para ele, sendo 
assim, o exercício desse modelo ético no atendimento psicológico 
seria uma possibilidade de 
 (...) oferecer um lugar para o outro - lugar este 
que desde sempre já seria dele -, abrindo portas 
e janelas para sua visitação, oferecendo o melhor 
cômodo e a melhor comida, garantindo-lhe um 
espaço de habilidade, ou seja, um ethos, uma mo-
rada confiada e serena onde ele possa renovar-se 
para retornar suas dores no mundo. (FREIRE, 
2003, p. 13).
116 
Esta proposta de Freire traz um desafio para o saber psico-
lógico e um sentido de alteridade que possibilita o encontro com 
a pessoa, com os outros e suas diferenças. Para este autor, este 
caminho ainda precisa ser percorrido pela Psicologia e que para 
isso seria preciso rever teorizações e práticas. E para ele também 
seria crucial falar de ética e de democracia para, assim, pensar em 
si e pensar no outro. 
O debate proposto por Freire abre caminho para fortalecer 
a reflexão proposta aqui, pois é este o viés que consideramos que 
as mulheres negras têm de conhecimento acumulado, contudo o 
que se diferencia é que o exercício do olhar para o outro e do olhar 
para si não é algo separado, porque o outro também faz parte de 
mim e, consequentemente, da minha comunidade. A alteridade, 
então, não seria somente o exercício de olhar para o outro, seria 
olhar para o nós em uma perspectiva do cuidado, pois, caso contrá-
rio, seria vazia ou apenas uma possibilidade a mais de considerar o 
outro, sem se envolver. Portanto, as bases desta práxis se aproxima 
da perspectiva ética proposta por Freire, mas, soma-se aos conhe-
cimentos baseados em uma ancestralidade africana. Segundo Sa-
bune (2010), a construção da Psicologia Africana está baseada na 
centralidade da comunidade, o respeito pela tradição, espirituali-
dade, envolvimento ético, harmonia com a natureza e a reverência 
aos ancestrais, sendo assim, a noção de direito e democracia anun-
ciada por Freire não faria sentido, pois os valores fazem parte da 
comunidade e não do indivíduo. A noção de que eu não existo sem 
a minha comunidade é um dos ensinamentos dos/as ancestrais 
africanos/as explicitados no livro Espírito da Intimidade: ensinamentos 
ancestrais africanos sobre relacionamentos,cuja autora é Sobonfu Somé, 
escritora pertencente a tribo Dagara de Burquina Faso. E assim, 
defendemos que estes ensinamentos são elementos que movem o 
saber ancestral expressado por meio das atividades desenvolvidas 
por mulheres negras, que pode ser considerado como um saber 
psicológico na perspectiva da alteridade. 
117 
A comunidade é o espírito, a luz-guia (...) é onde 
as pessoas se reúnem para realizar um objetivo 
específico, para ajudar os outros e realizarem o 
seu propósito e para cuidar umas das outras. O 
objetivo da comunidade é assegurar que cada 
membro seja ouvido e consiga contribuir com 
seus dons que trouxe ao mundo, da forma a ser 
apropriada. Sem essa doação,a comunidade mor-
re. E sem a comunidade, o indivíduo fica sem um 
espaço para contribuir. A comunidade é uma base 
na qual as pessoas vão compartilhar seus dons e 
recebem as dádivas dos outros. (...) quando você 
não tem uma comunidade, não é ouvido; não tem 
um lugar em que possa ir e sentir que realmen-
te pertence a ele; não tem pessoas para afirmar 
quem você é e ajudá-lo a expressar os seus dons. 
(SOMÉ, 2007, p. 35).
E é neste caminho que afirmamos que o saber psicológico 
tendo como base a alteridade e o cuidado só se materializa se re-
pensarmos a forma de ver o outro. E as bases que fundamentam a 
maioria das teorias psicológicas têm como sustentação a lógica indi-
vidualista. Repensar o saber psicológico perpassa pela necessidade 
de rever qual o modelo de relação que sustenta a nossa sociedade. 
Ressaltamos que mesmo com toda violência sofrida por negros/
as a partir do período colonial, o que possibilitou a sobrevivência e 
disseminação de saberes, embora pouco legitimados, foi a conexão 
de uma parcela significativa deste grupo com as bases que susten-
tam um modo de relação que está ancorada em um saber ancestral. 
E esta conexão tem fundamentos e metodologias que, por vezes, 
quando tenta-se incorporar no espaço acadêmico é destituído do 
seu sentido. Consideramos que é importante identificar o que tem 
deste saber ancestral nas práticas e como ele contribuiu para o en-
frentamento de uma lógica massacrante, em resistência e força.
118 
Práxis das mulheres negras no Brasil
O conhecimento científico africano é vasto e ainda pouco 
legitimado e reconhecido no espaço acadêmico ocidental. Os co-
nhecimentos provenientes do Egito, como a matemática e a geo-
metria, por exemplo, são mais antigos e muitos deles fundamentam 
o conhecimento grego (BERNAL,1987; JAMES, 2013), diferente 
do que é frequentemente ensinado ou, quando há reconhecimento 
dos conhecimentos egípcios, eles não são identificados como oriun-
dos do continente africano. A origem de conhecimentos como as 
ciências exatas e diversas tecnologias são ignoradas ou atribuídas a 
outrem, inclusive na própria construção do Brasil onde ainda há um 
pensamento circulante de que os/as negros/as contribuíram apenas 
nas artes, culinária, dança, isto é, conhecimentos que são conside-
rados de menor valia para o “progresso da ciência”. Mas, sabemos 
que africanos/as e afrodescendentes tiveram várias contribuições 
em diversas tecnologias para a construção do país (CUNHA JR, 
2010; MACHADO, 2017). 
Machado (2017) em seu trabalho, apresenta as várias contri-
buições do pensamento africano e/ou de trabalhos produzidos por 
negros/as e explicita o desconhecimento e a deslegitimação sobre 
eles, bem como outras formas de expressão de racismo. No campo 
da Psicologia, este autor, dentre outros/as, critica trabalhos como os 
de Richard Linn36, que criou o mapa de inteligência humana consi-
derando o continente africano como um dos que estavam em pior 
patamar. Embora estas pesquisas já tenham sido problematizadas, 
nas ciências humanas, como a Psicologia, ainda há um silêncio em 
relação ao pensamento advindo de matriz africana. Ainda que al-
36 Richard Lynn é professor e pesquisador em Psicologia em diversas instituições europeias 
e tem como principal interesse a investigações sobre inteligência. Há anos produz traba-
lhos que atualizam o conceito de eugenia, evidenciando a superioridade no Coeficiente de 
Inteligência (QI) de alguns grupos em detrimento de outros. Lynn afirma o QI superior de 
homens em relação ao das mulheres e classifica os países do continente africano com os 
menores QI’s do mundo.
119 
guns autores da Psicologia antes de construir suas teorias tenham 
tido aproximações no continente, são desconsiderados que conhe-
cimentos relativos aos saberes “psi” também possam ter elementos 
da cultura africana.
Portanto, para além do conhecimento voltado para a tec-
nologia e ciências exatas, consideramos que conhecimentos rela-
cionados às ciências humanas e saberes “psi” circulam em nosso 
meio como práxis que poucas vezes são legitimadas. Porque o sa-
ber legitimado no espaço acadêmico o naturaliza com um espaço 
de disputa, práticas que fogem dessa lógica parecem de menor 
valor. Quando olhamos para a trajetória das mulheres negras, que 
parecem marcadas somente por muita dor, suas estratégias de so-
brevivência, articulação e doação são pouco consideradas com um 
fundamento que embasa seu modo de fazer. Afirmamos que, mes-
mo em situação de vulnerabilidades, a história das mulheres negras 
foi construída a partir de elementos fundantes do pensamento da 
filosofia africana. Se não existe separação entre o pensar e o fazer, 
o que se faz e como se faz já é. 
A trajetória das mulheres negras no Brasil foi tematizada a 
partir de várias perspectivas. Sobre as mulheres negras escravizadas 
e o universo de opressão, violência e resistências no sistema, den-
tre os vários estudiosos/as destacamos Giacomini (1988), Pereira 
(2008), Silva (2010), entre outros/as. A partir de 2000 tivemos pro-
duções como as de Shumaher (2007) Xavier, Farias, Gomes (2014) 
e Carneiro (2011), que dos seus percursos ressaltaram a trajetória 
das mulheres negras dando mais ênfase aos seus saberes a partir de 
sua trajetória. 
No contexto destas produções ressaltamos a construção do 
120 
Curso Produção Intelectual das Mulheres Negras no Brasil37. Neste espaço a 
produção intelectual não foi considerada apenas como saber acadêmico 
legitimado, mas todo o saber produzido que continha um modo de 
fazer no seu cotidiano. O curso foi construído com sete módulos38, 
cada módulo representando um determinado período da história do 
Brasil, e a cada período elegemos uma mulher e/ou coletivo articu-
lado por mulheres negras para exemplificar a atuação das mulheres 
em um lugar estratégico e de contribuições diversas. Três dos sete 
módulos evidenciavam os coletivos de mulheres como promotores 
de saber. Para exemplificar, expomos dois módulos: no primeiro 
discorremos sobre os saberes das mulheres negras na época Brasil 
Colônia por meio do módulo nomeado Contando o conto sem retirar um 
ponto: a mulher africana e a colonização brasileira, evidenciando a Irman-
dade da Boa Morte como um exemplo do conhecimento trazido 
de além mar para contribuir para a sobrevivência e articulação das 
mulheres negras para buscar estratégias de comprar alforrias, dentre 
outras possibilidades de garantir a vida das/os irmãs/ãos negras; no 
sétimo, a ênfase foi a ancestralidade na contemporaneidade, Orgulho 
para ancestralidade: panorama contemporâneo das mulheres negras. Este mó-
dulo foi uma proposta de demonstrar como as ações das mulheres 
negras da contemporaneidade só foi possível porque existiam outras 
mulheres que vieram antes e este ensinamento ancestral contribui 
para a saúde mental deste grupo. O que parece simples e até igno-
rado é um elemento essencial de ser aprendido, que é olhar para as 
que foram com reverência e para as pessoas que estão do lado como 
uma possibilidade de trocas de saber e de cuidado. 
Atreladas à noção de uma compulsoriedade destrutiva, femi-
37 Este curso foi produzido a partir da formação da Associação Mulheres de Odun, que no 
início reuniu 14 mulheres para estudar juntas sobre a trajetória das mulheres negras no 
Brasil entre as quais se encontram as autoras deste texto. Deste encontro decidimos cons-
truir um curso de formação a distância sobre o que nomeamos produção intelectual das 
mulheres negras no Brasil. A Associação foi agraciada pelo prêmio Lélia Gonzalez em 2015 
para realizar a terceira edição do curso.
38 O oitavo módulo foi um espaço construído para web conferência.
121 
nilidade estereotipada ou mesmo a marginalização do desempenho 
de algumas funções, as atividades desempenhadas pelas mulheres ne-
gras no Brasil, desde sua vinda para o país, são frequentemente vistas 
como negativas, desumanizadoras. É válida e necessária a denúncia da 
impossibilidade de escolha de mulheres negras em determinarcertos 
rumos em suas vidas, entretanto, é preciso olhar mais de perto para 
evitar uma desvalorização que pode ser estratégica. A venda de pro-
dutos nas ruas, o trabalho de limpeza e manutenção da casa alheia e 
a adoção integral ou parcial de filhos e filhas que não vieram de seus 
ventres, apresentam um elemento comum que muitas vezes é igno-
rado: a prática do cuidado. A venda de quitutes e artesanatos na rua 
apresenta a possibilidade de aquisição de certa autonomia para si e 
para os seus e, não raro, a satisfatória oferta de uma produção própria 
e significativa (vender Acarajé na rua é também oferecer ao outro um 
pouco de sua tradição, de sua identidade). Não é diferente e a história 
testemunha inúmeros casos de mulheres negras que dedicaram toda 
a sua vida a manutenção de espaços e ao cuidado de pessoas, ainda 
tendo oportunidade de dedicar-se à outras atividades. 
As práticas de cuidado são, ainda, frequentemente denuncia-
das como uma fuga ou impossibilidade do cuidado de si. Mas ver 
essa atuação como algo de menor valor e subserviência relaciona-se 
a compreensão individualista de cuidado, do olhar para o outro. São 
frequentes os relatos de mulheres negras que se sentem realizadas 
ao dedicar-se ao cuidado outro. Dona Ivone Lara, por exemplo, 
construiu carreira brilhante enquanto musicista, entretanto, por 30 
anos dedicou-se a cuidar dos usuários dos serviços do Hospital Psi-
quiátrico Engenho de Dentro, realizando um trabalho de articulação 
entre os internos, sua família e a comunidade e ainda dando início a 
atividades musicais com os internos. Sua longa estadia na instituição 
foi considerada como atraso em sua carreira e confirmação de este-
reótipos profissionais de gênero, conforme a pesquisa de Scheffer 
(2016). Mas o que levaria Dona Ivone Lara, ousada e valente em 
122 
seu investimento no cenário musical, a permanecer por tanto tempo 
numa instituição psiquiátrica e trabalhando de maneira tão única? 
É importante considerar em sua trajetória a dimensão do cuidado, 
acompanhado das noções de articulação e alteridade, elementos que 
aparecem frequentemente nas trajetórias dessas mulheres. Mais do 
que isso, é preciso compreender sua importância e origem. 
Não podemos negar que já existem tentativas de valorizar o 
conhecimento advindo de uma prática exercida principalmente por 
mulheres negras na história do Brasil, mas ainda é uma iniciativa tí-
mida em relação à diversidade de contribuições e o potencial destas 
reflexões em espaços de legitimação do saber. 
Podemos observar que entre as diretrizes de duas das políticas 
do Sistema Único de Saúde (SUS), Política Nacional de Saúde inte-
gral da População Negra (PNSIPN) e Política e Programa Nacional 
de Plantas Medicinais e Fitoterápico, estão: “Promoção do reco-
nhecimento dos saberes e práticas populares de saúde, incluindo 
aqueles preservados pelas religiões de matrizes africanas” (BRASIL, 
2013) e “Incentivar a incorporação racional de novas tecnologias no 
processo de produção de plantas medicinais e fitoterápicos” (BRA-
SIL, 2016) e por fim, “Promover e reconhecer as práticas populares 
de uso de plantas medicinais e remédios caseiros”(idem). 
O que se pode extrair destas diretrizes é que já existem algu-
mas políticas de integração de práticas de cuidado e são políticas que 
se referem direta ou indiretamente à prática do cuidado promovida 
entre mulheres negras, ou seja, já se cogita em considerar seus sabe-
res, ainda que seja preciso que passem pelo “filtro acadêmico”. Mas 
o que se propõe aqui é a necessidade de ir além e entender e reco-
nhecer as origens (milenares) destes saberes, bem como entender 
que eles advêm da práxis cotidiana de mulheres negras e se configu-
ram como um exercício de alteridade baseada no cuidado. 
123 
Considerações finais
Este texto teve como objetivo demonstrar que a práxis das 
mulheres negras pode ser considerado um tipo de saber psicológico 
se partirmos de uma perspectiva afrocêntrica. Buscamos isso por 
meio da explanação de elementos da história da Psicologia referente 
à produção sobre relações raciais e o desafio de consolidar um sa-
ber psicológico no meio da diversidade de abordagens. Partimos da 
ideia de que o saber psicológico baseado na ética que reconhece a 
alteridade é elemento crucial no devir do saber desta área, que apro-
ximamos da perspectiva da práxis na trajetória das mulheres negras.
Uma das questões que marcam a possibilidade de pensar o fa-
zer psicológico como um todo é a ética e a alteridade. Enfatizamos 
aqui que, para além da crítica ao racismo e o olhar estereotipado so-
bre as mulheres negras, se faz urgente o reconhecimento da impor-
tância das mulheres negras na construção de um saber psicológico 
por meio de suas práticas de cuidado e manutenção da comunidade 
como um elemento central. A manutenção da comunidade se dá 
porque não estou alheio a ela, isto é a comunidade faz parte do 
indivíduo e vice-versa e por isso não existe um fazer para mim sem 
considerar o todo. 
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CAPÍTULO VI
Sobre teoria e prática: 
observações sobre o texto “Notas 
Marginais sobre Teoria e Práxis” 
de Theodor W. Adorno
Cristiane Souza Borzuk
RESUMO
O propósito deste trabalho é apresentar alguns elementos 
que compõem o texto “Notas marginais sobre Teoria e Práxis”, de 
Theodor W. Adorno. Com o propósito de contribuir com a dis-
cussão sobre teoria e prática em psicologia social, apresenta-se os 
elementos constituintes do texto em questão, e suas articulações 
teórico-filosóficas.
Palavras-chave: Teoria e Práxis. Theodor W. Adorno. Psico-
logia Social.
130 
INTRODUÇÃO
Elaborado no final da década de sessenta, o texto Notas Margi-
nais sobre Teoria e Práxis, de Theodor W. Adorno, encontra-se no gru-
po de seus textos fundamentalmente filosóficos, juntamente com o 
não menos importante Sobre Sujeito e Objeto. Estes dois textos, que 
possuem estreitas relações entre si, fazem parte de uma coletânea de 
trabalhos elaborados em sua grande maioria na mesma época, cha-
mada, na versão brasileira, Palavras e Sinais, e, na original, Stichworte.
Stichworte, palavra composta por Stich e Worte, é apresentada 
pelo tradutor possuindo quatro opções de tradução: apontamento, 
deixa, título e verbete. Ao que tudo indica, o fato de oferecer quatro 
opções de tradução não facilita em absolutamente nada o trabalho 
do tradutor, uma vez que qualquer escolha feita poderia apresen-
tar significados absolutamente diferentes, o que aponta exatamente 
para o caráter intencionalmente polêmico instituído desde o título 
pelo autor, o que é indicado em seu prefácio à edição alemã, no qual 
afirma que “A associação com a polêmica, inerente ao título, é bem-
-vinda ao autor” (1995, p. 13).
Apesar de afirmar, neste mesmo prefácio, que na coletânea uti-
lizam-se palavras-chave, sendo que estas são escolhidas, em certa me-
dida, arbitrariamente, não podemos crer que o nível de profundidade 
e relevância de seus temas podem dar-se ao acaso, principalmente ao 
atentarmos para o rigor com que Adorno toma cada palavra, que tor-
na especialmente cara a ele cada uma de suas formulações.
O texto “Notas Marginais sobre Teoria e Práxis” juntamente 
com “Sobre Sujeito e Objeto” que, segundo o autor, encontram-se 
diretamente vinculados à Dialética Negativa, compõem o conjunto 
de textos denominados Epilegômenos Dialéticos, que foram elabo-
rados com vistas a um curso de verão que seria realizado no ano de 
1969, que não pôde ser concretizado.
Ao fazer a discussão acerca da relação entre teoria e práxis, 
131 
outras relações que estão diretamente vinculadas a esta devem ser 
lembradas: a relação entre sujeito e objeto e a relação entre o univer-
sal e o particular. Em seu texto “Sobre Sujeito e Objeto” (1995b), 
Adorno afirma que a antítese entre o universal e o particular é, ao 
mesmo tempo, necessária e falaz uma vez que os dois “são e não 
são”, ou seja, o particular só é particular enquanto determinado 
e, portanto, é universal, e o universal, enquanto determinação do 
particular é particular. Da mesma maneira, a relação entre sujeito e 
objeto, sua cisão, é também real e ilusória. É real pois representa “o 
cindido da condição humana, algo que surgiu pela força” (1995b, p. 
182). E é também ilusória, pois esta cisão, ocorrida historicamente, 
é apresentada como algo natural. Não que se deva pensar sujeito e 
objeto indiferenciadamente, o que nos remeteria à mitologia, mas 
que esta separação seja compreendida como algo produzido histori-
camente, sendo, portanto, uma relação mediada, o que, certamente, 
pode ser estendido para a relação entre teoria e práxis.
Adorno, ao iniciar seu texto “Notas Marginais sobre Teoria e 
Práxis”(1995a), aponta para o fato de que a questão relativa à teoria 
e práxis depende, especialmente, da relativa a sujeito e objeto. Para 
melhor compreender essa relação, indica o caminho da história. Ele 
retorna a Descartes, sugerindo que, à medida que seu dualismo psi-
cofísico validava a cisão entre sujeito e objeto, a tensão da práxis em 
relação à reflexão, colocava-se em evidência, tornando-a, para todos 
os efeitos, um produto da modernidade.
Descartes, ao romper com a lógica medieval, estritamente 
marcada por uma visão teológica39, ao contrapor os sentidos ao 
pensamento, coloca este último como o baluarte de sua filosofia. 
Entretanto, o pensamento, para Descartes, visava o linear, o não-
39 De acordo com Matos (1995), na Idade Média o homem era considerado dependente 
de Deus e seu subalterno, obedecendo a uma hierarquia de graus de perfeição, na qual a 
figura de Deus ocupava o mais alto grau dessa hierarquia, sendo seguido pelos espíritos de-
sencarnados para, somente depois, chegar ao homem. Inferior a este estavam os animais, 
os vegetais, os minerais e os demônios, nessa ordem. 
132 
-contraditório sendo que o contraditório somente se afirmava en-
quanto irracionalidade, sendo, portanto impensável, concepção esta 
que ratifica as antíteses às quais o texto se refere. Nestes termos, 
Descartes anuncia aquilo que Horkheimer veio a chamar de Teoria 
Tradicional, a qual, de acordo com Matos, configura “(...) todo o 
pensamento da identidade, da não-contradição, que se esforça em 
reconduzir a alteridade, a diversidade, a pluralidade, tudo o que é 
outro em relação a ela, à dimensão do mesmo, como faz a ciência 
cartesiana” (1995, p. 20).
Mesmo estabelecendo as relações entre a lógica cartesiana e 
a cisão entre teoria e práxis, Adorno alerta para o fato de que, se 
a antítese entre teoria e práxis se apresentou pela primeira vez no 
Renascimento, isso não significa que tenha surgido nesse momento. 
Para ele, ao se tentar datar tal divergência, dever-se-ia retomar aos 
primórdios da civilização, verificando que a práxis, enquanto sepa-
rada da teoria, surgiu da separação entre trabalho físico e mental. E 
os motivos que fizeram com que houvesse essa separação, a saber, 
o controle da natureza com vistas à produção das condições da vida 
humana, trazem ainda hoje implicações importantes para uma de 
suas grandes herdeiras: a cisão entre teoria e práxis. A práxis, por ter 
nascido do trabalho, traz ainda a marca da renúncia ao princípio do 
prazer ocorrida nos primórdios da civilização em nome desta.
Esta renúncia, que atualmente não é tão mais necessária quan-
to em outros tempos preserva-se como fetiche do capital. Ou seja, 
considerando-se o alto nível de desenvolvimento alcançado pela 
humanidade, somente podemos compreender a perpetuação da ex-
trema necessidade de labuta imputada ainda hoje ao homem como 
mais uma forma de manter as relações de poder vigentes.
Freud, ao falar sobre o processo civilizatório, destaca três fato-
res fundamentalmente importantes: a formação de traços caractero-
lógicos, a sublimação e, sendo certamente o fator mais importante, o 
fato de que a civilização se construiu a partir da renúncia ao instinto:
133 
(...) é impossível desprezar o ponto até o qual a 
civilização é construída sobre uma renúncia ao 
instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não 
satisfação (pela opressão, repressão, ou algum ou-
tro meio?) de instintos poderosos. Essa ‘frustração 
cultural’ domina o grande campo dos relaciona-
mentos sociais entre os seres humanos. Como já 
sabemos, é a causa da hostilidade contra a qual to-
das as civilizações têm de lutar (1974, p. 118).
Entretanto, apesar da máxima freudiana segundo a qual o de-
senvolvimento da civilização e sua perpetuação só foi possível gra-
ças a uma série de restrições, principalmente instintivas, podemos 
crer que há um excedente no quantum de repressão necessária à ci-
vilização atualmente imposto ao homem. Marcuse (1981), para me-
lhor compreender essa noção, propõe uma ‘atualização’ de alguns 
conceitos psicanalíticos, os quais dariam os matizes sócio históricos 
do desenvolvimento civilizatório. Ele destaca dois conceitos: o de 
Mais-Repressão e o de Princípio de Desempenho.
O Princípio de Desempenho representa “a forma histórica pre-
dominante do princípio de realidade” (1981, p. 51). Nele, qualquer 
satisfação somente será obtida de maneira penosa; há uma prevalência 
do sofrimento em detrimento do prazer. De acordo com Marcuse:
(...) a distribuição da escassez, assim como o esforço 
para superá-la, o modo de trabalho, foram impostos 
aos indivíduos - primeiro por mera violência, sub-
sequentemente por uma utilização mais racional 
do poder. Contudo, não importa averiguar até que 
ponto foi útil essa racionalidade para o progresso 
do todo, o fato é que se manteve como racionali-
dade da dominação (1981, p. 52. Grifos do autor).
134 
O conceito de Mais-Repressão é distinto do conceito de re-
pressão, pois não visa a existência da espécie humana em civilização, 
mas, ao contrário, são restrições acrescidas, impostas para a manu-
tenção da dominação. Nesse sentido, os dois conceitos, o princípio 
de desempenho e a mais-repressão, operam de acordo com a racio-
nalidade da dominação:
Ao longo de toda a história documentada da civi-
lização, a coação instintiva imposta pela escassez 
foi intensificada por coações impostas pela dis-
tribuição hierárquica da escassez e do trabalho; o 
interesse de dominação adicionou mais-repressão 
à organização dos instintos, sob o princípio de 
realidade. O princípio do prazer foi destronado 
não só porque militava contra o progresso na ci-
vilização, mas também porque militava contra a 
civilização cujo progresso perpetua a dominação 
e o trabalho esforçado e penoso (MARCUSE, 
1981, p 54).
Nessa medida, Adorno faz uma analogia da práxis, tal qual é 
apresentada atualmente, com o trabalho desenvolvido nos primór-
dios, em que o homem deveria investir todas a suas forças nas tarefas 
da auto conservação. Da mesma forma, o indivíduo, que também se 
configurou com o Renascimento, apesar de seu protótipo já estar 
inscrito desde a antiguidade, encontra-se preso à práxis, trazendo 
junto de si a penúria da renúncia primordial ao princípio do prazer.
Mais adiante Adorno faz uma incursão ao pensamento de 
Kant e de Hegel visando apreender a noção de práxis de cada um. 
Em Kant, a noção de práxis consiste na boa vontade, sendo que 
esta equivaleria à razão autônoma. Segundo o autor, apesar do an-
tipsicologismo da filosofia moral kantiana e de sua tentativa de criar 
135 
princípios imperativos e universais40, suas formulações foram pro-
fundamente individualistas. Já em Hegel, como este compreende a 
conduta do indivíduo aprioristicamente estéril frente à totalidade, 
propõe uma noção de práxis vinculada estritamente à política.
Para Adorno,
A filosofia moral de Kant e a filosofia do direi-
to de Hegel representam dois graus dialéticos 
da autoconsciência burguesa da práxis. Ambas, 
como polos opostos do particular e do universal 
que aquela consciência rasga em dois com vio-
lência, são também falsas; ambas têm razão uma 
em relação à outra, enquanto não se descobrir na 
realidade uma figura de práxis possível mais ele-
vada; sua descoberta necessita de reflexão teórica 
(1995a, p. 209).
Mais uma vez, de forma absolutamente intencional, Adorno 
leva ao confronto posições intelectuais fundamentalmente diferen-
tes, e, ao fazer isso, promove a crítica de uma teoria através da ou-
tra, e vice-versa. Para ele, apesar de Kant resgatar a individualidade 
humana, acaba por perder a sua dimensão social, visto que exalta 
em demasia o sujeito singular. Hegel, por sua vez, ao estender o 
conceito de moral ao político, perde o particular, e assim, petrifica 
a ação coletiva, visto ter petrificado a ação de cada indivíduo. Nesse 
sentido, as duas posições apresentam-se como emblemáticas da ci-
são da consciência no mundo burguês na qual o moral e o político 
40 Um imperativo,para Kant (1980), é a fórmula de um mandamento da razão que representa 
um princípio objetivo “enquanto obrigante para uma vontade”, já que a vontade, por seu 
caráter subjetivo, não se constitui necessariamente em uma obrigação. Para ele, todos os 
imperativos ordenam hipotética ou categoricamente. No caso do imperativo hipotético, a 
ação é boa como meio para alcançar algo, ou seja, tendo em vista uma intenção possível 
ou real. Já o imperativo categórico (princípio de toda autonomia, de toda moral), a ação é 
apresentada como um fim em si mesma, necessária, de acordo com a razão, devendo ser 
tomada como lei válida para todos: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao 
mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (p. 129, grifos do autor). 
136 
são vistos como polos opostos na totalidade.
Para Adorno, a fertilidade não estaria no individualismo kan-
tiano, nem tampouco no coletivismo hegeliano, mas na tensão entre 
o particular e o universal, na qual nem o coletivo é anulado pelo 
particular, e nem o particular desaparece no coletivo. Nesse sentido, 
Adorno se contrapõe à identidade entre teoria e práxis, uma vez 
que aceitar esse princípio acarretaria em aceitar a perpetuação da 
dominação, não abrindo brechas para a contradição. A esse respeito, 
Adorno é assertivo:
Dever-se ia formar uma consciência de teoria e 
práxis que não separasse ambas de modo que a 
teoria fosse impotente e a práxis arbitrária, nem 
destruísse a teoria mediante o primado da razão 
prática, própria dos primeiros tempos da bur-
guesia e proclamado por Kant e Fichte. Pensar é 
um agir, teoria é uma forma de práxis; somente a 
ideologia da pureza do pensamento mistifica este 
ponto (1995a, p. 204).
Nesse sentido, a total separação imputada à relação entre 
teoria e práxis ou sua total coincidência só podem ser apreendidas 
como mais uma forma por meio da qual a dominação se mantém.
Para Adorno, mais uma vez a antítese entre teoria e práxis co-
loca-se em evidência, desta vez em detrimento da teoria. Entretanto, 
essa total aversão à teoria é o que faz com que a práxis torne-se frá-
gil, visto que práxis sem conhecimento não é práxis, é falsa práxis, 
como é o caso da pseudo-atividade.
A pseudo-atividade, ou seja, a práxis independente tanto da 
teoria quanto do objeto, é produto das condições sociais e, nesse con-
texto, é produto da racionalidade tecnológica. Ela se contrapõe à prá-
xis propriamente dita, uma vez que a práxis só pode ser concretizada 
a partir da ação de homens livres e autônomos e, falar de liberdade e 
137 
autonomia frente ao totalitarismo hodiernamente posto, só pode ser 
um argumento falacioso. Nesse sentido, a pseudo-atividade encontra 
plenas condições para realizar-se, uma vez que, sendo fruto da racio-
nalidade tecnológica, descolada da teoria e não obedecendo a prima-
zia do objeto, encontra um aliado importante: a catexização afetiva da 
técnica. Aqui Adorno relembra McLuhan ao afirmar que a sua tese the 
medium is the message, ironicamente tornou-se verdadeira.
Para McLuhan,
Quando as relações de percepção dos sentidos se 
alteram (sob o efeito de novos media), altera-se o 
homem (...) As sociedades, sempre foram muito 
mais remodeladas pela natureza dos meios atra-
vés dos quais os homens se comunicam do que 
pelos conteúdos da comunicação (MCLUHAN 
apud MORIN, 1972).
Parece que a maldição de McLuhan se concretizou. Assim, ao 
considerar importante não apenas o que é transmitido pelo conteú-
do da tecnologia, mas a forma através da qual esse conteúdo é trans-
mitido, representando um outro conteúdo, McLuhan chama a aten-
ção para mais um aspecto de extrema importância para o processo 
de controle efetivado pela racionalidade tecnológica. Para Adorno,
A substituição dos fins pelos meios substitui as 
propriedades nos próprios homens. Interioriza-
ção seria a palavra errada para designar isto, por-
que aquele mecanismo não deixa que se forme 
uma subjetividade firme: a instrumentalização 
usurpa seu lugar. Na pseudo-atividade, assim 
como na revolução fictícia, a tendência objetiva 
da sociedade liga-se, sem fissuras, à involução 
subjetiva. Parodisticamente, a história universal 
produz outra vez os tipos de homens de que ne-
cessita (1995a, p. 218).
138 
E, com a catexização da técnica na vida cotidiana, a pseudo-
-atividade passa a ter o caráter de modelo por excelência da práxis, 
inclusive a política, denotando a miséria subjetiva na qual estamos 
mergulhados. Além disso, traz à tona o fato de que as teorias sociais 
excluem de suas análises qualquer possível incursão à psicologia. 
Entretanto, tanto para Adorno quanto para os principais formula-
dores da Teoria Crítica da Sociedade, os aspectos psicológicos ocu-
pam um lugar de fundamental importância para a compreensão da 
realidade social. Em relação a isso Adorno é categórico
Desde que a economia de mercado se encontra 
desorganizada e está sendo remendada de uma 
medida provisória a outra, suas leis não consti-
tuem mais explicação suficiente por si sós. Não 
seria possível, a não ser graças à psicologia atra-
vés da qual se interiorizam sem cessar as coações 
objetivas - compreender, nem que os homens 
aceitem passivamente uma irracionalidade sem-
pre destrutiva, nem que se alistem em movimen-
tos cuja contradição com seus interesses não é 
difícil de perceber (1995a, p. 219)41.
Como para Adorno um dos objetivos desse ensaio é a reu-
nião da especulação filosófica com os temas da experiência, ele não 
poderia deixar de debruçar-se acerca questões do ativismo político. 
Para ele, o ativismo é regressivo, pois ao seguir o mesmo curso da 
totalidade social, exaltando a práxis em oposição à teoria, recusa-se a 
refletir sobre si mesmo, o que só é possível através da teoria, agindo 
41 De acordo com a história do Instituto para Pesquisa Social, a importância da psicologia 
para as suas pesquisas esteve presente desde a direção de Horkheimer, em 1930. Em sua 
aula inaugural, Horkheimer expôs as questões que deveriam dar norte para as pesquisas 
do Instituto a partir daquele momento: “Que ligações podem ser estabelecidas num grupo 
social específico, numa época específica, em países específicos, entre o papel econômico 
desse grupo, as mudanças na estrutura psíquica de seus membros e os pensamentos e 
instituições que são um produto dessa sociedade e que têm, como um todo, um efeito 
formativo sobre o grupo em questão?” (Slater, 1976, p. 18).
139 
a favor do que diz combater: a dominação. Em seu texto, apresenta 
a seguinte situação: 
“Quando destroçaram o quarto de um estudan-
te porque ele preferia trabalhar a participar em 
ações políticas, picharam-lhe na parede: quem se 
ocupa com a teoria, sem agir praticamente, é um 
traidor do socialismo” (1995a, p. 218). 
Essa situação ilustra a afirmação de que o ativismo é regressi-
vo. Aqui Adorno descreve o quanto o elogio à práxis cega pode ser 
utilizado ideologicamente como um motivo para a coação moral, 
atentando contra a autonomia do indivíduo, o que, isto sim, seria 
motivo de coação moral.
Para ele, um dos componentes da prática política atual é a pri-
mazia da tática sobre qualquer argumento. A bem da verdade, a pri-
mazia da tática não é exclusiva da prática política, mas é central em 
todo culto à práxis. Nessa medida, a tática destrói qualquer possibi-
lidade de reflexão e, quando esta se apresenta através da discussão, 
representa nada mais do que a aplicação de um conjunto de técnicas, 
planejadas a priori, com vistas a determinados fins.
Para Adorno, 
“A discussão serve à manipulação. Cada argu-
mento é recortado sob medida para uma inten-
ção, sem que se leve em conta a sua solidez. Mal 
se escuta o que diz a outra parte; quando muito, 
para poder replicar com fórmulas estereotipa-
das” (1995a, p. 216).
E, mais adiante: 
“Com tudo isto, o ativismo submete-se à mesma 
tendência que acredita ou pretende combater: o 
instrumentalismo burguês, que fetichiza os meios 
140 
porque a reflexão sobre os fins se torna intole-
rávelpara o tipo de práxis que lhe é próprio” 
(1995a, p. 217).
Adorno não deixa de lembrar que, enquanto a prática polí-
tica pretensamente emancipatória continuar a usar a mesmas ar-
mas utilizadas pela dominação, ela não concretizará aquilo a que 
se propõe. A esse respeito não se pode deixar de lembrar o sem 
número de atrocidades cometidas contra a humanidade em nome 
da própria humanidade.
Considerações finais
Se, para Adorno, teoria e práxis não são a mesma coisa e nem 
totalmente distintas, ele propõe que a relação entre elas seja de des-
continuidade, o que nega qualquer iniciativa de criar uma lineari-
dade que conduza uma à outra. Assim, apesar de a teoria não estar 
isenta da lógica social, ela consegue ser, em alguma medida, autô-
noma. Entretanto, isso não implica que a práxis deva ser orientada 
exclusivamente pela teoria, o que indicaria o caminho do ‘Admirável 
Mundo novo’, e nem mesmo que seja imediatamente o critério da 
teoria. Isso nos faz refletir principalmente no que diz respeito à tão 
solicitada ciência aplicada, própria dos tempos modernos, pois, para 
Adorno, são especialmente as teorias que não foram criadas com 
vistas à aplicação direta que puderem ser mais úteis na prática.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. Notas Marginais sobre Teoria e Práxis. In: Pala-
vras e Sinais: Modelos Críticos 2. Petrópolis, Vozes, 1995a, p. 202-229.
141 
_________Sobre Sujeito e Objeto. In: Palavras e Sinais: Modelos Críti-
cos 2. Petrópolis, Vozes, 1995b. p. 182-201.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Obras Completas, 
Rio de Janeiro, Imago,1974, p. 30-92.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafisica dos Costumes. In: 
Kant (2). Os Pensadores (Textos selecionados), São Paulo, Abril Cultural, 
1980.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: Uma Interpretação Filosófica 
do Pensamento de Freud. Rio de Janeiro, 8 ed., Zahar editores, 1981.
MATOS, Olgária C. F. A Escola de Frankfurt: Luzes e Sombras do Ilu-
minismo. São Paulo, Moderna, 1995.
MORIN, Edgar. Cultura e Comunicação de Massa. São Paulo, Editora 
Fundação Getúlio Vargas, 1972. 
SLATER, Phil. Origem e significado da Escola de Frankfurt. Rio de 
Janeiro, Zahar, 1976.
Pesquisa
CAPÍTULO VII
Alegações de alienação 
parental: uma revisão sobre a 
jurisprudência brasileira42
Analicia Martins de Sousa 
RESUMO
No Brasil, desde a entrada em vigor da Lei nº12.318/2010 
sobre alienação parental (AP), as situações que envolvem acirrados 
embates sobre a guarda de filhos vêm sendo cada vez mais associa-
das a esse misto de conduta e transtorno psíquico indistinto. Diante 
disso, foi empreendida ampla investigação com o objetivo de identi-
ficar os entendimentos sobre AP expressos na jurisprudência publi-
cada entre agosto de 2010 e dezembro de 2016 por Tribunais de Jus-
tiça de quatro estados brasileiros. No presente artigo, é apresentada 
42 Agradeço às alunas do Programa de Iniciação Científica da Universidade Veiga de Almei-
da, Nathália da Silva e Rakell Lopes Loures, pelo trabalho realizado na coleta de dados da 
pesquisa.
146 
a primeira etapa da pesquisa, na qual são destacadas e examinadas 
algumas das características gerais dos julgados levantados, com base 
em perspectiva sócio-histórica e referencial teórico do campo das 
ciências humanas. Observamos que, apesar da nova lei, as caracte-
rísticas em torno da disputa de guarda de filhos são similares ao que 
é apontado pela literatura especializada há pelo menos duas décadas. 
As alegações de AP nos processos de disputa de guarda de filhos 
têm, em realidade, colaborado para incrementar os enfrentamen-
tos entre ex-parceiros. Diante disso, os profissionais, aos quais são 
encaminhados os pedidos de avaliação de AP, devem examinar de 
forma crítica tais demandas, buscando compreender o que se pre-
tende com elas e quais os seus efeitos na vida das pessoas avaliadas.
Palavras-chave: alienação parental; disputa de guarda; juris-
prudência.
INTRODUÇÃO
No Brasil, desde a entrada em vigor da Lei nº12.318/2010 
sobre alienação parental (AP), as situações que envolvem acirrados 
embates sobre a guarda de filhos vêm sendo cada vez mais associa-
das a esse misto de conduta e transtorno psíquico indistinto. Com 
isso, ao que parece, tornaram-se também comuns alegações de AP 
endereçadas aos Tribunais de Justiça, nas quais um dos pais acusa o 
outro de dificultar ou impedir o seu convívio com o(s) filho(s), por 
exemplo. Caso tais alegações sejam comprovadas, poderá ser deter-
minada pelo juiz, dentre outras medidas, a alteração da guarda em 
desfavor do guardião, o qual pode ainda ser impedido de ter con-
tato com o(s) filho(s), como ocorrera em casos noticiados no país 
(LOBATO, 2010; INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE 
FAMÍLIA, 2014). A despeito da produção de um aparente consenso 
em torno do assunto no país, há diversos aspectos que indicam a 
necessidade de se problematizar a associação inadvertida entre os 
147 
conflitos em torno da guarda de filhos e o tema alienação parental. 
Importa lembrar que a lei citada inicialmente está baseada na 
teoria sobre a síndrome da alienação parental (SAP), definida na 
década de 1980 pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner 
(2001), como um distúrbio infantil que surgiria em meio ao litígio 
conjugal. A SAP foi intensamente divulgada no Brasil, a partir de 
2006, por associações de pais separados, as quais eram compostas 
em grande parte por homens-pais não residentes que se viam alija-
dos, pela ex-companheira, da convivência com os filhos. Embora 
a considerada síndrome não fosse até então objeto de estudo da 
psiquiatria, da psicologia ou de outro campo de saber no Brasil, tais 
associações se dedicaram a difundir o assunto, atraindo atenção de 
profissionais que atuavam nos juízos de família e do público em 
geral para o sofrimento vivido por filhos e pais vitimados pelo dito 
genitor alienador (SOUSA; BRITO, 2011).
É relevante recordar ainda que, a SAP foi divulgada no Brasil 
sob o rótulo de alienação parental. Talvez, esse tenha sido um modo 
de não se chamar atenção para aquele suposto distúrbio psíquico, 
haja vista que o mesmo não possuía respaldo científico. Com isso, 
o assunto progressivamente alcançou destaque nos meios de comu-
nicação, sendo abordado por documentário, programas televisivos, 
publicações, eventos, etc. Diferentemente de outros países, no Bra-
sil, as críticas e os questionamentos existentes sobre aquela designa-
da síndrome não eram mencionados. É provável que isso não tenha 
sido um mero acaso, haja vista que desse modo, passava-se a ideia de 
que se tratava de uma verdade inconteste (SOUSA, 2010). 
Em que pesem os aspectos mencionados anteriormente, em 
26 de agosto de 2010, foi promulgada a Lei nº12.318, que define a 
AP como manipulação psicológica de crianças e adolescentes, por 
parte do adulto responsável pela guarda, para que repudiem o ge-
nitor não residente, prejudicando assim a manutenção dos vínculos 
com este. A lei lista ainda uma série de medidas judiciais que podem 
148 
ser imputadas ao genitor que agir dessa forma, o chamado alienador.
Não é demais afirmar que, a criação daquela lei, fomentada 
principalmente por homens-pais que se percebiam como vítimas 
da alienação parental, teve como objetivo primordial a punição das 
mães guardiãs apontadas como alienadoras, já que em proposta de 
lei inicial intentava-se a criminalização daquela considerada conduta 
(SOUSA; BRITO, 2011). Para lembrar os ensinamentos de Batis-
ta (2011), pode-se pensar que, a penalização dos comportamentos, 
expressa em leis como a da AP, por exemplo, é uma forma bas-
tante eficaz de encobrir debates políticos sobre os conflitos sociais. 
Acrescenta-se ainda que, na elaboração daquela lei, foi efetivamente 
desconsiderada a diversidade de fatores sociais, culturais, legislati-
vos, que têm contribuído ao longo do tempo para a assimetria entre 
os papéis materno e paterno no que se refere aos cuidados infantis 
(BRITO, 2002; SOUSA; SAMIS, 2008). Desse modo, a problemá-
ticaem torno do litígio conjugal foi apreendida unicamente como 
uma questão de ordem pessoal ou individual psicológica que se mes-
cla com uma visão maniqueísta, na qual uns são tidos como vítimas 
sofredoras e inocentes e outros como cruéis, odientos e vingativos 
(SOUSA, 2014). 
Com frequência, questionamentos e objeções à teoria de Gar-
dner sobre a SAP causam surpresa e até mesmo confusão. Afinal de 
contas, não são raras as situações que chegam aos juízos de família 
nas quais um dos genitores se utiliza de diferentes estratégias na ten-
tativa de dificultar ou impedir a convivência dos filhos com o outro 
responsável (OLIVEIRA, 2003). Tais situações foram identificadas 
e discutidas, ao longo do tempo, por diversos estudos e pesquisas 
sobre separação conjugal e guarda de filhos. De um modo geral, 
esses trabalhos apontam que, em cenários de intenso litígio conju-
gal, pode se estabelecer uma aliança ou forte relação entre um dos 
genitores, geralmente o guardião e um ou mais filhos que passam a 
rejeitar, de forma exacerbada, o outro responsável (GIBERTI, 1985; 
149 
GONZALEZ; CABARGA; VALVERDE, 1994; WALLERSTEIN; 
KELLY, 1998). Diferentemente da teoria de Gardner, que enfoca 
aspectos de ordem individual e psicopatológica, esses estudos indi-
cam e problematizam diversos fatores que podem contribuir para o 
surgimento e a extinção das alianças parentais.
São também comuns argumentos de que antes da teoria de 
Gardner não havia um nome para designar aquela forma de relação. 
Em realidade, diferentes termos foram adotados no curso do tempo 
para designar as alianças no contexto do litígio conjugal, porém, pa-
recem ter sido ignorados por Gardner e seus seguidores. Diante dis-
so, coloca-se a questão: por que somente após a associação de uma 
suposta síndrome às problemáticas vividas por pais e mães separa-
dos é que se chamou atenção de profissionais no âmbito dos juízos 
de família e do público em geral para o assunto? Provavelmente, 
isso se deve ao fato de a produção discursiva em torno da SAP estar 
situada em uma época de ampla expansão do saber da psiquiatria 
em que se multiplica o número de categorias clínicas diagnósticas, 
as quais hoje são cada vez mais empregadas como forma de dar sen-
tido às experiências e ao sofrimento dos indivíduos (SOUSA, 2014). 
Diante dos aspectos relacionados anteriormente, envolvendo 
a Lei nº12.318/2010 e a dita AP, indaga-se sobre as alegações que 
implicam pais e/ou mães como alienadores e o modo como vêm 
sendo encaminhadas nos Tribunais de Justiça do país desde a entra-
da em vigor daquela lei. Nessa vertente, foi empreendida am-
pla investigação com o objetivo de se identificar os entendimentos 
expressos na jurisprudência sobre o assunto em tela. No presente 
artigo, é apresentada a primeira etapa da pesquisa, na qual são des-
tacadas e examinadas algumas das características gerais dos julgados 
levantados, com base em perspectiva sócio-histórica e referencial 
teórico do campo das ciências humanas. 
150 
MÉTODO
Na pesquisa empreendida, foi feita coleta de dados junto à ju-
risprudência emitida pelos Tribunais de Justiça no Brasil. Foram se-
lecionados os Tribunais do Estado da Bahia, de Minas Gerais, de São 
Paulo e do Rio Grande do Sul, posto que disponibilizavam o texto 
integral de seus julgados. Analisamos a jurisprudência publicada en-
tre agosto de 2010 – quando entrou em vigor a Lei nº12.318/2010 
que definiu a AP como conduta e estabeleceu medidas judiciais que 
podem ser imputadas ao chamado alienador − e dezembro de 2016. 
Os acórdãos prolatados foram localizados por meio das pá-
ginas eletrônicas dos Tribunais mencionados, sendo utilizada como 
palavra-chave a expressão alienação parental. Após a leitura preliminar 
dos julgados levantados, na qual foram eliminados os que versavam 
sobre assuntos diversos, obtivemos o total de 404 que diziam respei-
to ao tema pesquisado (TJBA - 75 acordãos; TJMG - 71 acordãos; 
TJRS - 155 acordãos; TJSP - 103 acordãos).
Na primeira etapa da investigação, foram identificadas e exa-
minadas, à luz de estudos no campo das ciências humanas, alguns 
aspectos relativos aos julgados selecionados, nos quais constavam 
alegações de AP. 
RESULTADOS
Onde e como surgem as alegações de AP
Na organização dos julgados emitidos pelos Tribunais de Jus-
tiça, desde a entrada em vigor da Lei nº12.318/2010, inicialmente, 
notamos o crescimento progressivo do número de acórdãos em que 
constavam alegações de AP.
151
Figura 1. Acórdãos com alegações de alienação parental.
O dado apontado acima pode indicar que a transferência da 
(síndrome da) alienação parental para a nossa realidade, e a sua mas-
sifi cação de forma aligeirada e parcial, têm levado muitos indivíduos 
a compararem e perceberem suas histórias e confl itos relacionais a 
partir de tal noção (SOUSA, 2010). 
Ainda quanto ao aumento progressivo de acórdãos em que 
constam alegações de AP, vale notar que os Tribunais de Justiça em 
que foram encontrados o maior e o menor número daqueles docu-
mentos são, respectivamente, o Estado do Rio Grande do Sul (155) 
e o Estado de Minas Gerais (71). O fato de aquele primeiro estar a 
frente dos demais, em relação a tal aspecto, não causa surpresa, uma 
vez que nele se identifi cam vários profi ssionais e simpatizantes que 
vêm mobilizando ações no sentido de divulgar e reconhecer a refe-
rida conduta (IBDFAM, 2013).
Na revisão do material selecionado, notamos que a maior parte 
das alegações de AP surgem em processos judiciais encaminhados 
aos juízos de primeira instância (75%). Muitas vezes, essas alegações 
parecem ser uma forma de lembrar ou de alertar o julgador sobre 
um assunto que hoje é abordado por lei específi ca no país, ou seja, 
a alienação parental. São comuns ainda, menções à esta como forma 
de caracterizar determinados comportamentos exibidos por um dos 
152 
genitores, como apontado anteriormente. Além disso, observamos 
que 25% das alegações de AP aparecem nos julgados proferidos em 
segunda instância. Por vezes, elas dizem respeito a agravo de instru-
mento feito por genitores que questionam a sentença judicial anterior.
Na maioria dos julgados examinados, as alegações de AP sur-
gem em meio a processos judiciais sobre regulamentação de visitas 
(30%), modificação de guarda (27%) e outros assuntos (29%). Algu-
mas vezes, são ainda o tema principal da ação judicial (14%). Aque-
las alegações geralmente envolvem a desqualificação do genitor 
guardião, o qual com frequência é acusado de dificultar as visitas do 
genitor não residente e a relação deste com os filhos. Chama aten-
ção o fato de que estudos sobre a temática litígio conjugal e guarda 
de filhos, anteriores à disseminação do tema alienação parental no 
Brasil, já identificavam o cenário de discórdia entre o ex-casal, no 
qual os filhos por vezes se tornavam objetos de disputa (RAMOS; 
SHAINE, 1994; BRITO, 2002). Atualmente, com a divulgação em 
torno da AP e também da Lei nº12.318/2010, não se notam novi-
dades no que tange aos enfrentamentos e argumentos empregados 
pelos genitores em disputa, conforme exame dos julgados selecio-
nados. Em realidade, podemos afirmar que os comportamentos e as 
atitudes dos membros do grupo familiar em litígio, abordados ante-
riormente pela literatura especializada, hoje vêm sendo apreendidos 
como indícios de AP.
Com isso, ao contrário do que poderiam pretender os pro-
fissionais e pais separados que se empenharam em promover esse 
tema no país (ASSOCIAÇÃO DE PAIS E MÃES SEPARADOS, 
2007), a lei mencionada acima não fez cessar as dificuldades em 
torno da convivência familiar no pós-divórcio ou diminuiu o clima 
beligerante entre os genitores. Compreendemos que, na verdade, ela 
é mais um instrumento que estes podem usar para incrementar o li-
tígio nos juízos de família, perpetuando, assim, a relação conflituosa 
entre eles (ANDOLFI, 2002).
153 
Embora o presente estudo tenha como foco os acórdãos 
emitidos a partir da da entrada em vigor da Lei nº12.318/2010, 
despertaatenção o fato de que, mesmo antes disso ocorrer, o tema 
(síndrome) da alienação parental já era mencionado em decisões 
na Justiça. Em um acórdão com data de abril de 2010, por exem-
plo, é sugerido que o litígio entre os genitores poderia significar 
AP, ou melhor, Síndrome da Alienação Parental, conforme argu-
mento exposto a seguir:
Possível reconhecer no caso vertente a chamada 
Síndrome de Alienação Parental, também conhe-
cida pela sigla SAP. [...] diversos estudos avaliam 
situações em que a mãe ou o pai de uma criança a 
treina para romper os laços afetivos com o outro 
genitor, criando fortes sentimentos de ansiedade 
e temor em relação ao outro genitor. [...] Escla-
rece o site www.alienacaoparental.com.br: “Os 
casos mais frequentes da Síndrome de Alienação 
Parental estão associados a situações onde a rup-
tura da vida conjugal gera, em um dos genito-
res, uma tendência vingativa muito grande.” [...] 
(Proc. nº99409283602-9 – TJSP).
Importa ressaltar que a SAP não consta nem nas últimas ver-
sões do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 
publicadas pela Associação Americana de Psiquiatria, em 1994 e 
2013, respectivamente, nem em outros manuais desse tipo. Portan-
to, o diagnóstico desse suposto distúrbio infantil pode dar margem a 
muitos questionamentos, assim como a sua invalidação. Apesar dis-
so, no Brasil, ele continua sendo referido como uma verdade incon-
teste (SOUSA, 2014) e empregado para embasar entendimentos na 
Justiça acerca dos conflitos familiares após o divórcio, como se nota 
no trecho destacado acima. Além disso, chama atenção o fato de 
que, embora várias pesquisas sobre separação conjugal e disputa de 
154 
guarda de fi lhos no país tenham importantes contribuições acerca 
dos embates entre o ex-casal e das relações parentais naquele con-
texto (BRITO, 2008; RAPIZO, 2001; RAMIRES, 2004), atualmen-
te, essas questões vêm sendo apreendidas exclusivamente sob o viés 
da teoria de Gardner sobre a SAP, disseminada por várias páginas 
na Internet, dedicadas ao assunto, e por associações de pais e mães 
separados que se vêem como vítimas do(a) malvado(a) alienador(a). 
Não se pode perder de vista ainda que, apesar de contrarie-
dades e questionamentos envolvendo aquela teoria, ela é levada em 
conta nas decisões proferidas em primeira e segunda instância no país, 
as quais podem ter várias repercussões para a família pós-divórcio, 
causando ainda mais sofrimento aos seus membros, como se nota 
em casos noticiados no Brasil e no exterior (SOUSA; BRITO, 2011).
Os autores das alegações de AP
De acordo com a revisão dos julgados selecionados, verifi -
camos que em 63% dos casos, as alegações de AP são feitas pelo 
pai não residente, enquanto somente 19% são feitas pelas mães na 
mesma condição. 
Figura 2. Autores das alegações de alienação parental.
155 
Os dados mencionados acima apontam a princípio para um 
aspecto marcante da realidade de nosso país, o fato de que ainda 
hoje, na grande maioria das situações de rompimento conjugal, os 
filhos permanecem sob a guarda das mães (INSTITUTO BRASI-
LEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2015). Provavel-
mente, um dos fatores que contribui nesse sentido é a concepção, 
ainda vigente nas sociedades ocidentais, de que a mulher possui o 
chamado instinto materno, o qual a tornaria predisposta para cuidar 
da prole. Embora já tenha sido demonstrado que não se trata de 
uma tendência natural por parte da mulher (BADINTER, 1985), 
tal concepção permanece influenciando o modo como é percebida 
a responsabilidade sobre os cuidados infantis e as relações materno 
e paterno-filiais.
Assim, enquanto a guarda unilateral é concedida comumente 
às mães, cabe aos pais o direito à visitação, o qual se traduz frequen-
temente em encontros quinzenais com os filhos. Nos casos em que 
há desentendimentos entre os genitores, ou a mãe se opõe à par-
ticipação do ex-parceiro na vida dos filhos, a convivência familiar 
entre estes últimos pode ser ainda mais escassa (OLIVEIRA, 2003; 
SOUSA; SAMIS, 2008). É certo que há situações em que os pais se 
afastam dos filhos após o divórcio, apesar da insistência das mães 
para que participem dos cuidados e responsabilidades com seus pe-
quenos. Contudo, na análise dessa suposta deserção paterna, é fun-
damental, mais uma vez, considerar os diferentes fatores presentes 
na história e cultura das sociedades que envolvem a tríade pai-filho-
-mãe, uma vez que podem contribuir para que muitos homens-pais 
ajam da forma mencionada. Dito de outro modo, entendemos que, 
no exame da questão, quando são consideradas apenas caracterís-
ticas de ordem pessoal, pode-se fomentar o julgamento e a conde-
nação moral destes últimos (SILVEIRA, 1998; HURSTEL, 1999).
Além disso, é preciso considerar que, diante de transforma-
ções históricas ocorridas nos últimos tempos, muitos homens se 
156 
veem estimulados ao exercício da paternidade, sendo hoje comu-
mente identificados pela expressão novos pais (HURSTEL, 1999). 
Porém, quando se veem diante do divórcio, esses homens têm de 
lidar com o fato de que a guarda dos filhos é concedia, às mães, 
muitas vezes por influência da tradição cultural, como apontado an-
teriormente. Com isso, parecem ser desconsiderados o direito e a 
disponibilidade desses homens em participar dos cuidados infantis. 
Como já demonstraram vários estudos, em que pese o fato de a se-
paração dos pais não implicar mudanças no que tange ao poder fa-
miliar, na prática, com a guarda unilateral são conferidos ao genitor 
guardião a autoridade e a responsabilidade sobre os filhos, cabendo 
ao genitor não residente o pagamento da pensão alimentícia (BRI-
TO, 2002; 2008).
Essa situação progressivamente gerou o descontentamento 
de pais e mães separados, especialmente dos que estavam na con-
dição de não residentes, pois percebiam reduzido o tempo de con-
vivência com os filhos, bem como encontravam dificuldades em 
participar de decisões importantes acerca da vida destes, já que tudo 
era decidido pelo genitor responsável pela guarda (BRITO, 2002; 
WALLERSTEIN; KELLY, 1998).
No curso do tempo, ocorreram avanços nos debates sobre as 
responsabilidades parentais e a convivência familiar no pós-divórcio, 
os quais culminaram na promulgação da lei sobre guarda comparti-
lhada (Lei nº11.698/2008). Porém, logo após isso, as associações de 
pais separados que antes promoviam as discussões necessárias sobre 
essa modalidade de guarda, no país, se colocaram a tarefa de divulgar 
a SAP no contexto jurídico e de elaborar um novo projeto de lei que 
visava à criminalização da dita alienação parental (SOUSA; BRITO, 
2011). Ou seja, em um curto espaço de tempo, tais associações pas-
saram do debate sobre igualdade de direitos e deveres entre pais e 
mães, para a promoção de uma visão patologizante e punitiva sobre 
os membros do grupo familiar nas situações de litígio conjugal.
157 
Com isso, pensamos que o dado inicialmente apontado sobre 
a prevalência dos homens-pais como autores das alegações de AP 
nos Tribunais de Justiça é condizente com o fato de que, na maioria 
dos casos de rompimento conjugal, eles permanecem na condição 
de não residente, como já sinalizado. Acrescentamos ainda o fato de 
que, atualmente, aquelas alegações, feitas pelos pais não residentes, 
podem ser tanto uma forma de desqualificar as mães guardiãs como 
também uma tentativa de apontar para o julgador a necessidade de 
preservar a sua participação na vida dos filhos. 
Retornando aos dados levantados, verificamos que as mães 
não residentes também surgem como autoras das alegações de AP 
(19%), logo em seguida dos genitores em igual condição. Embora 
inicialmente o argumento da SAP ou da AP possa ser reportado 
como algo direcionado às mães guardiãs, entendemos que progres-
sivamente ele foi sendo adotado por ambos os genitores, seja na 
condição de guardião, seja na de não residente (ver dados da Figura 
1), como uma nova forma de criticar e/ou desqualificar a figura do 
outro genitor no contexto do litígio,ou ainda, como já mencionado, 
de atrair atenção do julgador para prováveis interferências de um 
dos genitores na participação do outro na vida dos filhos.
Identificamos ainda diferentes situações nas quais os avós são 
os autores das alegações de AP (8%). Em alguns casos, notamos que 
eles, assim como o genitor não residente, encontram dificuldades 
em estar na companhia dos netos. Em outros, os avós materno ou 
paterno acusam ambos os genitores, ainda casados, de impedi-los 
que conviver com aqueles. Como comprova a pesquisa empreen-
dida por Cardoso (2011), na atualidade, os avós vêm assumindo 
participação cada vez maior no cuidado dos netos, seja durante o 
casamento, seja após a separação dos pais. Assim, algumas vezes, 
por conta de desentendimentos com estes, os avós se envolvem em 
disputas judiciais, no sentido de assegurar o direito de conviver com 
os netos. De forma similar às situações relatadas anteriormente em 
158 
que pais e mães são autores das alegações de AP, os avós também 
parecem fazer uso destas últimas como meio de chamar atenção do 
julgador para uma problemática que, em realidade, não é recente nos 
juízos de família, ou seja, as difi culdades em torno da convivência 
com os fi lhos após a separação dos pais.
A comprovação das alegações de AP
Figura 3. Comprovação das alegações de alienação parental.
No exame dos 404 julgados selecionados, observamos que, na 
maioria das vezes (89%), não há a comprovação da AP, conforme 
a Lei nº12.318/2010, que defi ne, exemplifi ca e estabelece critérios 
para a identifi cação da famigerada conduta. Verifi camos que comu-
mente as alegações de AP surgem como parte de argumentos para 
desacreditar um dos genitores, construindo sua imagem como alie-
nador egoísta, cruel, vingativo e desequilibrado que lança mão de di-
ferentes estratagemas para obstruir a relação dos fi lhos com o outro 
genitor. Também notamos algumas vezes, nos processos judiciais, 
indicações ou pedidos de avaliação de alienação parental. 
Nos casos em que teria havido a comprovação da AP, foram 
citados laudos ou pareceres emitidos por psicólogos, assistentes so-
ciais, psiquiatra e pediatra, sendo que a maioria (7%) dizia respeito 
159 
a documentos confeccionados por aqueles primeiros profissionais. 
Esse dado pode ser justificado a partir do modo como historica-
mente têm sido percebidas as demandas encaminhadas aos psicó-
logos – com foco no indivíduo, na interioridade e nos desvios − e 
como elas têm sido respondidas, com base em uma concepção po-
sitivista e utilitarista da prática profissional que prescinde, assim, de 
problematizar as suas implicações ético-políticas e a realidade social 
na qual constituem-se os fenômenos psicológicos (AMENDOLA, 
2014). Nesse viés, não podemos deixar de mencionar também os 
processos de subjetivação em torno da SAP/AP no contexto atual, 
que vêm empreendendo uma perspectiva patologizante sobre as re-
lações e os conflitos no pós-divórcio. 
A concepção sobre as práticas psicológicas, presente na lei 
citada anteriormente, parece se alinhar àquela apontada acima, pois, 
como especifica o seu Artigo 5º: “Havendo indício da prática de ato 
de alienação parental, em ação autônoma ou incidental, o juiz, se ne-
cessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial” (grifos nossos). 
Nesse rumo, é fundamental ressaltar que a alienação parental 
é definida em lei como uma conduta. Isso não quer dizer, portanto, 
que sua identificação é algo intrínseco ao saber e à prática psicológi-
ca. Seguindo o pensamento de Foucault (2007; 1995), entendemos 
que, por meio das técnicas de exame, os psicólogos, assim como 
os outros profissionais mencionados anteriormente, extraem uma 
suposta verdade dos indivíduos avaliados, ao mesmo tempo em que 
objetificam a SAP, encaixando os comportamentos dos membros 
do grupo familiar em litígio no quadro de sintomas descrito na teo-
ria de Richard Gardner. Ou ainda, comparam tais comportamentos 
com as “formas exemplificativas de alienação parental”, listadas no 
Artigo 2º daquela lei.
Cabe ressaltar ainda que, no Artigo 5º, da Lei nº 12.318/2010, 
citado anteriormente também são definidos os procedimentos a se-
rem adotados pelos profissionais para a identificação daquela con-
160 
duta, bem como as exigências quanto à sua qualificação. No que 
tange aos psicólogos, a referida lei parece ignorar a normativa que 
regula o exercício da Psicologia no Brasil, enquanto ciência e pro-
fissão, e aponta, dentre outros aspectos, os direitos e deveres desses 
profissionais. Nessa vertente, é fundamental que, ao se depararem 
com pedidos de avaliação de alienação parental, os psicólogos não 
os acolham simplesmente nos termos em que se apresentam, mas 
sim esclareçam sobre as contribuições do seu campo de conheci-
mento no entendimento da questão. Os psicólogos devem ter claro 
que, os resultados de sua avaliação poderão ser utilizados para a 
penalização dos genitores apontados como alienadores, o que pode 
gerar ainda mais desentendimentos e sofrimentos para a família, e 
particularmente para os filhos, já que eles poderão ficar sem um dos 
pais (SOUSA; BRITO, 2011).
Em uma abordagem crítica sobre os referidos pedidos de ava-
liação, não se pode perder de vista ainda o atual momento sócio-
-histórico no qual vigoram, dentre outros aspectos, a patologização 
dos comportamentos e dos padecimentos mentais (SOUSA, 2014) 
e mais penalizações em nome da proteção e segurança (BATISTA, 
2011). Nesse contexto, vêm sendo acionados processos de subjeti-
vação que modulam a percepção dos indivíduos sobre as problemá-
ticas sociais, as relações humanas, os comportamentos e, de certo, os 
embates e dificuldades vividos por famílias em litígio no judiciário. 
Considerações finais
Dado o empenho de muitos homens-pais e profissionais em 
promover, no Brasil, o tema (síndrome da) alienação parental, assim 
como em criar a Lei nº 12.318/2010, pode-se pensar que havia a 
expectativa de que, com isso, se contribuiria para diminuir os em-
bates entre os genitores quanto à guarda de filhos nos juízos de 
família ou ainda, de que se colocaria termo à possíveis interferências 
161 
do genitor guardião na convivência dos filhos com o genitor não 
residente. Porém, ao basearem-se em certa visão psiquiátrica sobre 
as desavenças e os comportamentos no âmbito do litígio conjugal, 
promoveram efetivamente a medicalização e a individualização dos 
conflitos familiares, ao mesmo tempo em que deixaram de fora di-
versos fatores que, ao longo do tempo, têm contribuído para certa 
apreensão quanto ao exercício da maternidade e da paternidade nas 
sociedades ocidentais.
Na pesquisa realizada com a jurisprudência publicada entre 
agosto de 2010 e dezembro de 2016 por Tribunais de Justiça de qua-
tro estados brasileiros, podemos notar que a tipificação da alienação 
parental pela Lei nº 12.318/2010 não concorreu nem para arrefecer 
a discórdia entre os genitores, nem para implicar mães e pais como 
responsáveis pela preservação do lugar de cada um deles na vida dos 
filhos após o fim da conjugalidade. Em realidade, observamos que, 
apesar da nova lei, as características em torno da disputa de guarda de 
filhos são similares ao que é apontado pela literatura especializada há 
pelo menos duas décadas. Avaliamos ainda que, atualmente, as alega-
ções de AP nos processos de disputa de guarda de filhos têm colabo-
rado para incrementar os enfrentamentos entre ex-parceiros, uma vez 
que podem ser empregadas para caracterizar todo tipo de divergência 
que porventura surja entre eles após o rompimento conjugal.
Cientes disso, é fundamental que, em avaliações sobre o lití-
gio conjugal, profissionais psicólogos considerem não só os aspec-
tos de ordem pessoal, mas também, como já apontado, os fatores 
sociais, políticos, históricos e legislativos que, ao longo do tempo, 
vêm influenciando o modo como pais e mães vivenciam as rela-
ções parentais em diferentes momentos da vida do grupo fami-
liar (SOUSA, 2010). Como orientaainda a Resolução n. 007/2003 
(Conselho Federal de Psicologia), a qual dispõe sobre a confecção 
de documentos decorrentes de avaliação psicológica, o profissio-
nal deve contextualizar as demandas endereçadas a ele, tendo em 
162 
vista que os fenômenos de ordem psicológica podem ser influen-
ciados, bem como produzidos a partir de fatores como aqueles 
mencionados anteriormente.
Na abordagem da problemática em questão, é indispensável 
também que, os psicólogos que atuam no âmbito do judiciário es-
tejam atentos à certa produção discursiva na atualidade em torno 
da noção de alienação parental, a qual vem alterando o modo como 
as pessoas percebem as dificuldades no pós-divórcio e passam a 
identificá-las sob tal designação (SOUSA, 2010). Em outros termos, 
é preciso que o psicólogo leve em conta o modo como vem sendo 
produzidas as alegações de AP, cada vez mais comuns nos juízos de 
família. Além disso, esses profissionais, aos quais muitas vezes são 
encaminhados os pedidos de avaliação de alienação parental, devem 
examinar de forma crítica tais demandas, buscando compreender 
os jogos de força que acionam-nas, os termos em que são enuncia-
das, o que se pretende com elas e quais os seus efeitos na vida das 
pessoas avaliadas. No trato do assunto, importa ainda que ampa-
rem-se em estudos atuais sobre divórcio, parentalidade, relações de 
gênero, arranjos familiares na contemporaneidade etc. Desse modo, 
entende-se que os profissionais psicólogos se afastam de uma abor-
dagem parcial que categoriza os indivíduos exclusivamente como 
alienados/vítimas e alienadores/agressores, patologiza as relações e 
os comportamentos humanos e restringe a resolução de problemas 
sociais à criação de novas penalizações.
Diante do que foi exposto, resta indagar se a lei sobre alienação 
parental tem contribuído para o efetivo direito à convivência familiar 
de menores de idade após a separação de seus pais ou se ela foi tão 
somente uma resposta punitiva do Estado ante a comoção social pro-
movida, no Brasil, por pais na condição de visitantes que se percebiam 
como vítimas da conjecturada síndrome da alienação parental. 
163 
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separação judicial - Não configuradas as hipóteses elencadas nos art. 1.637 
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CAPÍTULO VIII
Música sertaneja, consumo de 
álcool e juventude: relação das 
letras do sertanejo universitário 
com o uso de bebidas alcoólicas 
entre os jovens
Raquel Maracaípe de Carvalho
André Roveda
Sarah Fernandes
Ana Tércia Alves
RESUMO
Neste artigo, buscou-se analisar a juventude e a relação com 
o consumo de bebidas alcoólicas, associando-se o consumo de ál-
cool por jovens brasileiros descrito nas letras de músicas sertanejas. 
Este estudo se justifica pela relevância social e científica, pois parte 
da compreensão da relação juventude, consumo de álcool e música 
168 
sertaneja. A par das considerações feitas até aqui, parte-se da hipó-
tese de que as letras das músicas sertanejas (sertanejo universitário) 
incitam ou incentivam, de alguma forma, o uso de bebidas alcoóli-
cas por jovens. Isto posto, o objetivo mais importante que se apre-
senta à esta investigação consiste em analisar a associação entre as 
letras das músicas sertanejas com o uso de bebidas alcoólicas. Este 
estudo é qualitativo, baseado na revisão da literatura. O referencial 
teórico-metodológico será o da Psicologia Social e Psicologia Só-
cio-histórica de Vigotski. Esta investigação pretendeu esclarecer os 
nexos entre juventude, álcool e música sertaneja, compreendendo, 
criticamente, a vinculação entre esses três aspectos, pois não há de 
existir uma “normalidade” entre o aumento do uso de álcool pela 
população jovem que escuta e/ou gosta de música sertaneja.
Palavras-chave: consumo de álcool; música sertaneja; juven-
tude; psicologia sócio-histórica
INTRODUÇÃO
O presente artigo deriva da tese de doutorado “Relações entre 
irmãos adolescentes: sentidos e significados” (CARVALHO, 2011), 
cujo propósito foi buscar resposta para o seguinte problema de pes-
quisa: quais os sentidos e os significados que irmãos adolescentes 
das classes populares atribuem à relação que se estabelece entre 
eles? Durante esta investigação, estudou-se a adolescência não como 
uma fase natural do desenvolvimento humano, mas como fenôme-
no construído social e historicamente.
A partir da temática desenvolvida na referida tese, houve o in-
teresse de aprofundar nos estudos sobre adolescência, mas, sobretu-
do, nos estudos acerca da juventude. Entende-se por juventude um 
conceito também construído levando em conta os determinantes 
sociais, culturais, políticos e econômicos. Dessa forma, pretende-se 
estudar a juventude e a relação com o consumo de bebidas alcoó-
169 
licas, ou seja, pretende-se associar o consumo de álcool por jovens 
brasileiros descrito nas letras de músicas sertanejas.
As letras das músicas sertanejas tinham, anteriormente, uma 
atmosfera/contexto relacionado a casos de traição, separações e de-
cepções amorosas. Com o surgimento de um estilo mais jovial, as 
músicas sertanejas em geral, e o sertanejo universitário em parti-
cular, aderiram a um outro contexto ainda relacionado às questões 
amorosas, mas, principalmente, a um contexto em que o álcool é 
um fator preponderante. Dessa forma, nota-se, facilmente, a relação 
entre traição, decepção amorosa, com o cenário do bar, da bebida, 
da cachaça, da embriaguez, ou seja, uma cultura em que as coisas 
são “resolvidas” ou assimiladas pelo uso de álcool. E, justamente a 
população “alvo” desse estilo musical são os jovens. Os jovens bra-
sileiros são os maiores consumidores desse estilo musical e, que em 
certa medida, passa a ser também um estilo de vida.
Este estudo se justifica pela relevância social e científica, pois 
parte da compreensão da relação juventude, consumo de álcool e 
música sertaneja, visto que para o jovem, cuja identidade está em 
formação, essa relação com o uso de bebidas alcoólicas poderá ter 
um “peso” negativo por achar que tudo se resume a beber cerveja 
ou outra bebida alcoólica qualquer, como forma de solucionar os 
problemas da vida pessoal e/ou sentimental. Assim sendo, a par-
tir da observação da pesquisadora, notou-se a vinculação das letras 
com o contexto relacionado com o uso ou o incentivo do álcool 
como possível “solução” dos problemas.
O referencial teórico-metodológico adotado nesse artigo será 
o referencial da Psicologia Social e Psicologia Sócio-histórica de 
Vigotski, que “fundamenta-se no marxismo e adota o materialis-
mo histórico e dialético como filosofia, teoria e método” (BOCK; 
GONÇALVES; FURTADO, 2001, p. 17). Vigotski (1999) enfatizou 
a importância de um método que compreendesse toda a complexi-
dade do que entendia como objeto para a psicologia. Dessa forma, 
170 
nas reflexões do autor, revela-se a necessidade de uma teoria que 
fizesse a mediação entre o método materialista histórico e os fenô-
menos psíquicos. Ainda para Vigotski (1999), o desenvolvimento 
psicológico dos homens é parte do desenvolvimento histórico geral 
da espécie humana e assim deve ser entendido.
Na concepção de Gonçalves (2003), a psicologia sócio-histó-
rica tem como noção básica a historicidade dos fenômenos sociais 
e humanos. A subjetividade abordada se expressa como um conjun-
to de experiências do indivíduo, constituído em suas relações sociais. 
Nas palavras de Gonçalves (2003, p. 41), a psicologia sócio-histórica,
(...) metodologicamente, trabalha com categorias, 
compreendidas como aspectos do objeto de estu-
do que, embora o delimitem, o recortem, não são 
conceitos fechados, mas indicam processos que 
devem ser apreendidos em seus conteúdos histó-
ricos, ideológicos, contraditórios, multidetermi-
nados, mediados, para que se possa compreender 
e explicar os fenômenos estudados.
Para Vigotski (1999, p. 85–86), “estudar alguma coisa histori-
camente significa estudá-la no processo de mudança: esse é o requi-
sito básico do método dialético. (...) É somente em movimento que 
um corpo mostra o que é”. Mais adiante, o autor ainda afirma: “o 
método é, ao mesmo tempo, pré-requisito e produto, o instrumento 
e o resultado do estudo”. O método, para ele, é importante porque 
ajuda a tornar objetivos os processos psicológicos interiores.
Dentro da psicologia sócio-histórica, Vigotski (1999) rejeitou o 
conceito de desenvolvimento linear e superou a concepção segundo a 
qual o conhecimento decorre de uma lenta acumulação de mudanças 
unitárias. Incorporando a dialética marxista como base de sua teoria, 
partiu do materialismo histórico para compreender o homem como 
sujeito, sendo este concebido como a síntese de múltiplas determina-
ções, cuja subjetividade é constituída material e historicamente. Tra-
171 
ta-se, portanto, de conceber a constituição do sujeito de acordo com 
determinadas condições sociais, materiais e históricas.
Para a abordagem sócio-histórica, a sociedade é percebida 
como produção histórica dos homens que, mediante o trabalho, 
produzem sua vida material. A relação indivíduo–sociedade é con-
cebida como dialética, pois um constitui o outro. O fenômeno psi-
cológico surge e se constitui por intermédio das relações do homem 
com seu mundo físico e social. Dessa forma, a juventude é aqui 
estudada como construção histórica e não de forma estereotipada, 
marcada por uma leitura naturalizante, universalizante e patologi-
zante (BOCK; LIEBESNY, 2003).
Este estudo, então,possui uma natureza qualitativa, que se 
ocupa de um fenômeno que não pode ou que não deveria ser quan-
tificado, trabalhando com o universo dos significados, motivos, 
crenças, valores e atitudes (MINAYO, 2004). A revisão bibliográ-
fica é desenvolvida com base em material já elaborado, composto 
em grande maioria por livros e artigos científicos, caracterizando 
uma pesquisa sobre outras já realizadas. A vantagem desta forma de 
pesquisa é o fato de ela permitir uma cobertura ampla sobre deter-
minado fenômeno, porém em contrapartida, algumas fontes podem 
apresentar dados coletados ou processados de forma equivocada, 
podendo este trabalho reproduzir tais erros. Assim, cabe ao pesqui-
sador analisar cuidadosamente as informações (GIL, 2002). 
A escolha metodológica, em qualquer trabalho, traz consigo 
alguns aspectos que precisam ser elucidados a fim de que o caminho 
percorrido seja o mais claro e coerente, a começar pela visão que se 
tem de ciência. Neste artigo, ciência é entendida como um produto 
cultural do intelecto humano, que busca responder às necessidades 
coletivas concretas em determinados períodos históricos. Ciência, 
aqui, tem a dimensão de uma práxis sócio-histórica, isto é, o reco-
nhecimento de que ela não é detentora da verdade e que está atrela-
da a um determinado contexto social.
172 
Martín-Baró (1998) advertiu que para um pesquisador se 
comprometer verdadeiramente com a realidade estudada, é neces-
sário que: a) reconheça criticamente os condicionantes do processo 
de construção do conhecimento, admitindo que a ciência não é as-
séptica nem absoluta; b) renuncie aos dogmatismos que constituem 
obstáculos a iniciativas capazes de fazer avançar a compreensão do 
mundo e se firme nos valores em que acredita.
Exposto o referencial teórico-metodológico, a natureza da in-
vestigação e o tipo de pesquisa, ressalta-se três grandes temas, con-
ceitos ou constructos que permeiam essa investigação: consumo de 
álcool, juventude e música sertaneja. Sendo assim, buscou-se trazer 
algumas conceituações teóricas de cada tema. 
Algumas concepções de juventude
A concepção de juventude deste estudo fundamenta-se na 
psicologia sócio-histórica e na sociologia da juventude, visões que 
defendem a desnaturalização da juventude. Dessa forma, a articu-
lação entre essas duas vertentes possibilita a compreensão da ju-
ventude como processo social em construção, relacionado com os 
aspectos históricos e culturais, sem desconsiderar os aspectos gera-
cionais e biológicos. Para essa perspectiva, o termo juventudes é utili-
zado para dar conta dessas diferenças. Assim, se existem juventudes, 
existe também a necessidade de práticas diferenciadas, que deem 
suporte à diversidade.
De acordo com Mandelli, Soares e Lisboa (2011), o tema 
juventude apresenta uma série de ambivalências: ora juventude é 
compreendida como potência, ou como promessa de mudança, ora 
como problema social, risco e vulnerabilidade. Dessa forma, parti-
mos de uma compreensão de juventude sob um olhar desnaturaliza-
do, na intenção de compreender essa “fase” da vida humana. 
Novaes e Vannuchi (2004) são autores que também compar-
173 
tilham dessa visão e relativizam a categoria etária ou biopsicológi-
ca e ressaltam a relação entre homem e sociedade. Segundo esses 
autores, além de uma condição social, a juventude é um momento 
experienciado como confuso e pouco definido na transição de pa-
péis e na falta de emancipação social. Para Abramo (1997, 2005), a 
juventude está marcada por transições entre dependência e autono-
mia, e que os variados processos de inserção contemplam aspec-
tos pessoais e sociais tais como sexualidade, participação cultural e 
política, e inserção no trabalho. Esses aspectos manifestam modos 
de ser jovem, flutuando de potencial transformador para risco e vul-
nerabilidade social.
Por meio dessas conceituações de juventude, esse artigo en-
tende que assumir a multiplicidade em relação à juventude é também 
assumir um posicionamento que busca retirar o caráter ideológico 
que atribui veracidade a apenas uma realidade específica. Assim, fa-
z-se importante entender a juventude como pluralidade.
Sposito (2002) ressalta aspectos importantes sobre a tentativa 
de se definir juventude: 
(...) reside em reconhecer que a própria definição 
da categoria juventude encerra um problema socio-
lógico passível de investigação, na medida em que 
os critérios que a constituem enquanto sujeitos são 
históricos e culturais (SPOSITO, 2002, p. 38). 
Nesse mesmo sentido, Dayrell (2010) destaca a dinamicidade 
que envolve o termo: 
Além de ser marcada pela diversidade, a juventu-
de é uma categoria dinâmica, já que se transfor-
ma paralelamente às mutações sociais que vêm 
ocorrendo ao longo da história. Na realidade, não 
há tanto uma juventude, e sim jovens – sujeitos 
que a experimentam e sentem segundo o contex-
174 
to sociocultural em que se inserem. (DAYRELL, 
2010, s.p.).
Bourdieu (1983), com base em seus trabalhos de campo, per-
cebeu uma multiplicidade de grupos e de situações sociais experi-
mentadas pelos jovens. A homogeneidade não condizia com a rea-
lidade de suas pesquisas e, assim, iniciou um movimento no sentido 
de conceber as juventudes. Assim, para se ter uma dimensão social 
considerada, deve-se fazer uma análise da juventude, para que se 
possa desenvolver estudos e pesquisas diante dessas juventudes, guia-
das por diferentes realidades, na tentativa de oferecer possibilidades 
de construção de um projeto de vida contextualizado.
De acordo Quapper (2001) é necessário aprender a conhe-
cer as juventudes a partir das diversidades sociais. Tratar o juvenil 
como produção que, de acordo com o contexto de desenvolvimen-
to de cada grupo de jovens, tem seu tempo histórico. O juvenil é um 
modo de sobreviver à tensão existencial entre o direcionamento da 
sociedade para que os jovens cumpram com as expectativas em rela-
ção ao mercado, ao conjunto de normas sociais e ao papel de futuro 
adulto e suas próprias expectativas e identidades. 
Buscou-se, dessa forma, por meio de algumas considerações 
sobre a temática juventude, elucidar a visão que se tem, nesse traba-
lho, do termo juventude. A seguir, serão discutidas as implicações das 
letras das músicas sertanejas e o uso de bebidas alcoólicas por jovens.
Algumas histórias da música sertaneja e o surgimento 
do sertanejo universitário
Tomando o objetivo principal desse estudo, que é analisar a 
relação dos jovens com a música sertaneja, o recorte proposto foi 
a seleção de músicas sertanejas que mencionasse o consumo de be-
bidas alcoólicas. Verificou-se, então, que este é um tema recorrente 
175 
nas canções e que a bebida, a grosso modo, é apresentada de ma-
neira positiva.
Entretanto, antes de ser explorada essa relação – música ser-
taneja e álcool – é fundamental o entendimento desse estilo musical. 
A música sertaneja no Brasil possui uma extensa trajetória, que não 
é interesse desta pesquisa investigar. O propósito aqui é trazer uma 
breve ilustração do seu início, para posteriormente contextualizá-la 
nas décadas de 1980 e 1990. 
Caldas (1995) destaca que nos anos de 1930, ritmos prove-
nientes da música rural do interior do estado de São Paulo apresen-
taram-se como base para uma nova música: 
(...) o cururu, a catira e a cana-verde consagra-
ram-se nas festas populares do interior e mais 
tarde, na década de 30, chegam à capital trazi-
dos pelo jornalista e empresário Cornélio Pires. 
No entanto, com algumas alterações estéticas em 
seus componentes formais como a harmonia, o 
andamento melódico e a própria tessitura musi-
cal. O objetivo era comercializar a música rural 
paulista no interior e na capital. Para isso, claro, 
era necessário adaptá-la, ainda que lentamente, ao 
consumo e ao ―gosto popular (p. 22).
Outras influências que estudiosos destacam na constituição 
da música sertaneja são derivadas da música europeia: 
Influenciaram também a música caipira os fados 
portugueses, as toadas, cantigas,viras, canas-ver-
des, valsinhas trazidas pelos europeus e as mo-
dinhas europeias de acordes melancólicos. Os 
cantos de trabalho, na colheita e nos mutirões 
também foram incorporados ao gênero e a narra-
tiva melodramática tornou-se padrão para o esti-
lo musical. (SILVA, 2010, p. 231). 
176 
Segundo Caldas (1995), a música sertaneja só viria a se con-
solidar, de fato, na capital paulista nos anos de 1950, nos bairros 
de grande concentração de imigrantes portugueses, italianos e es-
panhóis. A partir da década de 1980, a música sertaneja passou 
por transformações pontuais; um novo estilo, que antes estava mais 
ligado à figura caipira, passou então a arrebanhar um grande público 
e a ganhar atenção especial das gravadoras. 
Ainda para Caldas (1995), a música sertaneja nasceu da músi-
ca caipira, que tinha como característica retratar as relações sociais 
das comunidades rurais. As músicas normalmente eram compostas 
em conjunto e transmitidas pela tradição oral. Com o êxodo rural, a 
música caipira foi para a cidade e fundamentou a criação da música 
sertaneja. Caldas (1987) ainda ressalta que a música sertaneja surge 
sendo produzida com foco na indústria do disco e “torna-se um 
produto a mais à disposição do consumidor” (p.29).
Nepomuceno (1999) destaca o grande boom da música ser-
taneja no cenário nacional na década de 1980: de cada cinco dis-
cos vendidos no país, três eram do gênero sertanejo. Com relação 
à divulgação das novas duplas, a mídia abriu espaço à recente onda 
sertaneja, como afirma o autor: “A mídia já estava rendida ao fenô-
meno sertanejo. Nas emissoras AM paulistas, de dez músicas toca-
das, nove eram do gênero, em todas as suas vertentes” (NEPOMU-
CENO, 1999, p. 208). 
Na década de 1990, ainda de acordo com Nepomuceno 
(1999), as duplas Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó, Zezé 
di Camargo e Luciano e João Paulo e Daniel contribuíram satisfato-
riamente para a ascensão da música sertaneja no cenário nacional. 
Assim, em meados de 1990, a música sertaneja começou a apresen-
tar indícios de declínio, e os gêneros musicais, axé e pagode, assumi-
ram o topo da liderança nas rádios e na vendagem de discos.
Essa breve trajetória da música sertaneja nos anos de 1980 
e 1990 mostra que momentos de glória se misturaram a períodos 
177 
de decadência. Contudo, de acordo com a literatura sobre o tema, 
a música sertaneja está consolidada entre os gêneros musicais de 
maior popularidade do país no âmbito de suas diferentes vertentes, 
dentre elas, o sertanejo universitário que se destaca no cenário atual. 
Caldas (1987) afirma que, normalmente, o gosto pela música 
sertaneja está associado às raízes rurais ou ao pertencimento à po-
pulação de baixa renda. No entanto, nos últimos anos, percebe-se 
que a música sertaneja, especialmente o sertanejo universitário, pe-
netrou em outros grupos, incluindo moradores das cidades e classes 
sociais mais abastadas. 
Segundo Martins (2008), não há consenso ou fundamentação 
sólida sobre como se deu a mutação da música sertaneja ao longo 
dos anos. Além da sua origem na música caipira, o que normalmente 
se afirma é que, depois do período áureo da música sertaneja, ocor-
rido entre os anos de 1970 e 1980, surgiu o sertanejo moderno, tam-
bém chamado de sertanejo romântico, que conta com elementos 
da música romântica e do country americano e teve suas principais 
duplas em Chitãozinho & Xororó, Leandro e Leonardo, Zezé de 
Carmargo e Luciano e Chrystian e Ralf. 
Martins (2008) ainda afirma que a próxima mudança sensível 
começa a ocorrer ainda na década de 90, com a presença de canto-
res jovens, produzindo uma música mais acelerada, com presença 
de percussão de axé e guitarras. Por desbancar a predominância do 
rock no gosto dos alunos das universidades, esta categoria de música 
ficou conhecida como sertanejo universitário. Dessa forma, consi-
dera-se que João Bosco e Vinícius são os primeiros a adotar o estilo, 
seguidos por Cesar Menotti e Fabiano e Jorge e Mateus. 
O ano de 2004 foi um marco na história da música serta-
neja com a revelação da dupla mineira César Menotti e Fabiano, 
que gravou seu primeiro CD nesse ano, o qual trazia músicas mais 
agitadas, apresentando uma nova roupagem para o gênero. A dupla 
afirma: “Quando começamos a cantar, não tínhamos a pretensão de 
178 
inventar uma nova música. Procuramos fazer um trabalho particular 
e inédito, que não se parecesse com nenhum outro” (MENOTTI; 
FABIANO, 2009). 
Tal dupla sertaneja aponta suposições sobre o surgimento do 
termo universitário. Na opinião da dupla, os artistas em geral foram 
responsáveis por cunhar o novo sertanejo: 
Sertanejo Universitário está muito em evidência, 
esse rótulo foi criado pelos artistas e não pelo 
público. O universitário é um público importante 
pra nós, pra você, pra todo artista, porque ele é 
um público formador de opinião, ele divulga o 
seu trabalho. (...) Nossa música é feita pra todo 
tipo de público, classe operária, classe A, classe B, 
classe C, classe D, a gente não faz música pra um 
público distinto (MENOTTI; FABIANO, 2009).
As mudanças adotadas pela nova safra de cantores, o que pos-
sivelmente resultou na aproximação desses jovens, está relacionado 
à utilização de um visual mais despojado. Muitos deles abandona-
ram as botas, os chapéus e os cintos largos, subindo aos palcos de 
tênis e camiseta. O novo visual utilizado pelos cantores é mais con-
vidativo, e pode ter sido uma das alternativas encontradas pelos pro-
dutores para que o público jovem despertasse interesse pelo gênero 
(BASTOS, 2015).
No processo de renovação do gênero sertanejo, cantores e 
produtores vêm adotando estratégias que contribuem para a expan-
são das fronteiras, alcançando um público mais diversificado. Para 
Bastos (2015), o novo gênero é evidenciado pela mistura de elemen-
tos provenientes do pop, do rock e do axé. Dessa forma, nas conside-
rações do autor, esses artistas fazem um sertanejo bastante pop no 
cenário atual e tiveram um surgimento relativamente recente.
É possível notar a evidente explosão do sertanejo universitário 
no cenário nacional, a partir de dados estatísticos das músicas veicu-
179 
ladas no ano de 2009. Segundo Arroyo (2016), referentes ao ano de 
2016, o gênero sertanejo alcançou o primeiro lugar dentre as músicas 
mais tocadas nas rádios. Estatísticas revelam que o sertanejo apresen-
tou porcentagem de 32% dentre as mais executadas, deixando para 
trás o samba/pagode, a MPB e o forró (ARROYO, 2016). 
Explanada algumas considerações sobre a música sertaneja, 
sobre o surgimento do sertanejo universitário, cenário, característi-
cas, o objetivo aqui é analisar as letras do sertanejo universitário no 
que se refere ao uso/incentivo ou consumo de álcool.
O álcool nas letras das músicas
O consumo de bebidas alcoólicas não é um tema recente na 
música sertaneja brasileira. Lioto (2012) afirma que, na década de 
50, Inezita Barroso alcançou sucesso com a música “Marvada Pin-
ga”, canção que continua conhecida depois de gerações. A música 
retrata, de forma bem-humorada, o hábito de beber em excesso e as 
consequências físicas imediatas do consumo da bebida e seu consu-
mo é posto como fator capaz de resolver os problemas do sujeito.
De acordo com Lioto (2012), em face da presença recorren-
te na música sertaneja, num primeiro momento, é possível afirmar 
que o álcool se faz presente na música como consequência de estar 
presente também no Brasil. “Sabe-se que o consumo de bebidas é 
legalizado, visto como normal e até lido como uma característica 
cultural do povo, especialmente, quando se fala de cerveja e de cai-
pirinha; esta última é conhecida mundialmente e consumi-la faria 
parte da essência do brasileiro” (LIOTO, 2012, p.47).
A temática não se restringe à música sertaneja, também es-
tando presente, dentre outros, no rock, samba, axé e forró. Dentro 
da música sertaneja, é possível encontrar dezenas de músicas onde 
a bebida é o tema central ou se faz presente.O tema é tão frequente 
que, em 2008, a Som Livre, uma das maiores gravadoras do país, 
180 
lançou uma coletânea, o “CD Pinga Cowboy”, que une 14 compo-
sições gravadas por diversos artistas nacionais, todos abordando a 
temática, “pinga e bebedeira”, segundo descreve a própria divulga-
ção do disco (LIOTO, 2012). 
Ainda segundo essa autora, as músicas ficam conhecidas a 
partir de sua melodia, de seu ritmo e de sua harmonia. Por si só, 
a música é um trabalho entre o som e o silêncio. Reconhece-se a 
capacidade de melodia, ritmo e harmonia gerarem efeitos de senti-
do e se admite que estes elementos possuem um peso importante 
para que uma música faça ou não sucesso. No entanto, além destes 
fatores, as músicas ficam conhecidas pelas letras que carregam. Para 
a autora, há refrãos que se fixam na memória até do mais desatento 
ouvinte. Olhar os discursos é a única forma de ter acesso aos sujei-
tos, não como seres “criadores” ou “criativos”, mas como sujeitos 
de uma ideologia, que deixam transparecer a interpelação ideológica 
nos dizeres das músicas que compõem ou escutam. O que é dito 
nas músicas, não o reflexo de algo “natural”, encontrado no mundo. 
Para cada dizer possível e realizado, existe uma infinidade de dizeres 
silenciados e cada discurso se insere na teia de outros discursos. 
Dessa forma, então, percebe-se uma forte associação entre 
as letras das músicas sertanejas e o consumo de álcool. De acordo 
com Lioto (2012), o que intriga é como, no complexo de discursos 
que abordam a temática do consumo de bebidas alcoólicas, dá-se 
este jogo entre o que é silenciado e o que é explicitado nas canções 
e que sentidos podem ser suscitados nas pessoas que as ouvem. 
Segundo a autora, se o sujeito bebe é “problema” de quem? Onde 
está ancorado este discurso para que ele possa dizer que o proble-
ma é unicamente dele? Ele realmente escolhe ter este discurso ou é 
escolhido por ele? A que comportamentos este hábito vem asso-
ciado? Quem ganha e quem perde com a ampliação do consumo de 
bebidas alcoólicas? Assim, esses questionamentos são relevantes de 
acordo com o estudo feito pela autora.
181 
Essa análise faz referência à superfície discursiva das músicas 
que abordam a temática: bebe-se para conquistar a mulher amada 
ou sexualmente desejada, para fugir do compromisso amoroso e 
para esquecer a paixão que não deu certo. Bebe-se para se livrar 
dos problemas e se nega os problemas que a bebida pode trazer. 
Considera-se que músicas e bebidas alcoólicas são produtos à ven-
da, envolvidos em interesses diversos. Uma pesquisa divulgada em 
junho de 2011 mostrou que três das dez marcas com maior valor de 
mercado em 2011 são marcas de cerveja (LIOTO, 2012).
O hábito de consumir bebidas alcoólicas está presente no Bra-
sil. O consumo foi quantificado por uma pesquisa (BRASIL, 2014), 
que mostrou que 24% da população bebe em quantidades preo-
cupantes. A própria OMS (Organização Mundial da Saúde) estima 
que 10% da população mundial possui algum nível de dependência 
e destaca que o álcool é responsável por 1,5% do total de mortes e 
2,5% do total de anos de vida saudável perdido em decorrência de 
doenças (OMS, 2013).
O consumo de álcool abordado pelas músicas sertanejas não 
se dá pelo apreço ao sabor da bebida, mas pelo desejo do torpor que 
a embriaguez traz. Não há menção a nenhum desconforto ou cons-
trangimento que esta situação poderia causar, muito menos alguma 
problematização das consequências físicas desencadeadas pelo con-
sumo em excesso de álcool. 
A temática principal da música é a desilusão da amorosa, vista 
como um problema que pode ser amenizado com o ato de beber e 
beber em excesso. Na música, beber é uma consequência da desi-
lusão amorosa. Para Lioto (2012), constrói-se a partir daí a ideia de 
que o consumo de álcool é capaz de resolver o problema, amenizar 
a dor da desilusão ou, pelo menos, permitir que o sujeito esqueça 
momentaneamente do risco de perder a mulher amada. “Apesar do 
drama que envolve a situação, a linguagem presente na canção é in-
formal, tem tom descontraído e utiliza elementos da cultura popular 
182 
e do conhecimento partilhado do interlocutor. Ela começa com o 
pedido: “desce uma geladinha” (LIOTO, 2012, p.49).
Em muitas letras de músicas sertanejas, o enunciador desloca 
o ponto de vista “da pessoa que sofre pelo amor” para o ponto de 
vista do “cantor”, que encontra, também na música, a possibilidade 
de mudanças na vida. Muitas vezes, no entanto, a embriaguez é tanta 
que é capaz de alterar a capacidade de cantar, situação exposta nos 
versos “se eu errar alguém me ajuda, na letra ou na melodia”. As-
sim, pode-se considerar o caráter interdiscursivo. Em algumas letras, 
os versos expressam uma espécie de “parceria” entre enunciador e 
enunciatário, pois o primeiro pode precisar da ajuda do segundo. 
Aquele que era ídolo apresenta postura de amizade, esperando a 
contribuição de outros que estão no bar. Ele se mostra como um 
ser humano que também tem problemas amorosos, problemas que 
podem ser resolvidos pela bebida e pela música, formando uma par-
ceria (LIOTO, 2012).
Feitas essas explanações sobre a relação entre juventude, ál-
cool e música sertaneja, não se pode considerar algo que é social, 
como natural. Para a psicologia social, de uma forma geral, e para 
a psicologia sócio-histórica, de forma particular, os fenômenos so-
ciais são de uma ordem social, e o consumo de bebidas alcoólicas, 
por jovens, descrito nas letras das músicas, é algo cultural/social. 
Dentro da psicologia sócio-histórica, Vigotski (1999) rejeitou o con-
ceito de desenvolvimento linear e superou a concepção segundo 
a qual o conhecimento decorre de uma lenta acumulação de mu-
danças unitárias. Para a abordagem sócio-histórica, a sociedade é 
percebida como produção histórica dos homens que, mediante o 
trabalho, produzem sua vida material. Dessa forma, a psicologia só-
cio-histórica compreende o desenvolvimento humano como pro-
cesso histórico, não excluindo os aspectos biológicos, mas lançando 
luz nos aspectos culturais e sociais que determinam a constituição e 
construção do homem. 
183 
Considerações finais
Como o objetivo dessa investigação é estudar a juventude e 
a relação com o consumo de bebidas alcoólicas, associando o con-
sumo de álcool por jovens brasileiros descrito nas letras de músicas 
sertanejas, percebe-se que a bebida faz parte da “cultura nacional” 
e outros discursos que circulam socialmente ajudam a delimitar 
“como” e “quanto” é natural beber. O consumo de grande volume 
de bebidas em uma só ocasião é maior no jovem, hábito de consu-
mo que preocupa mais, já que acelera o dano físico e amplia o risco 
de acidentes e violência. Dessa forma, nota-se, pelos estudos reali-
zados e pela pesquisa bibliográfica levantada que esta “maneira de 
beber” é nociva e aparece assumida na música.
Compreende-se que as letras das músicas do gênero serta-
nejo universitário acabam por ajudar a naturalizar ou banalizar o 
consumo de álcool por jovens, principalmente os universitários. As 
consequências advindas do consumo exagerado do álcool podem 
ser maléficas: o silêncio sobre as consequências negativas do álcool, 
assumido pela formação discursiva na qual o cantor de música serta-
neja está inserido, faz com que o uso excessivo seja visto como algo 
normal ou até positivo, capaz, inclusive, de ajudar na resolução de 
problemas ou apagá-los momentaneamente. 
O estado de embriaguez relatado na música é incompatível com 
a tarefa que o cantor precisa desempenhar: quem bebe até não parar 
em pé não consegue tocar com habilidade instrumentos musicais, po-
dendo ter dificuldade para cantar com afinação e estes “deslizes” não 
seriam bem vistos pelos fãs ou plateia. Assim, tem-se que o “eu” rela-
tado na canção não reflete o “eu” do cantor, mas apenas sugere uma 
situação com a qual pode haver identificação por parte do ouvinte. E 
essa identificação acaba fazendo com que os jovens, ao ouvirem as 
músicas que “incentivam” oconsumo de bebidas alcoólicas, repitam, 
até de forma não consciente ou não intencional, esse consumo. 
184 
O mais preocupante, do ponto de vista de saúde pública, de 
saúde física e/ou emocional, é a agravamento do aumento do índice 
de alcoolismo entre os jovens brasileiros. Mais do que beber uma 
“simples” cerveja entre amigos como tentativa/solução para esque-
cer ou amenizar o sofrimento advindo da “traição da mulher ama-
da”, as letras dessas músicas acabam impondo um jeito ou forma de 
ser. Acabam ditando estilos de vida, crenças e valores que, cada vez 
mais, são “copiados” e valorizados como a melhor forma de ser e de 
agir nessas situações. Dessa forma, banalizam-se as decepções amo-
rosas, naturalizando e incentivando o uso de álcool como solução 
para o sofrimento humano. 
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CAPÍTULO IX
A influência do sistema 
carcerário no adoecimento 
mental dos detentos
Ingridy Oliveira Narcizo
Cristiane Souza Borzuk
RESUMO
O presente trabalho tem como finalidade investigar a influên-
cia do cárcere no adoecimento mental de indivíduos encarcerados. 
Partindo do pressuposto de que há um número elevado de indiví-
duos com as mais diversas patologias mentais nos presídios brasilei-
ros, consideramos necessário investigar os motivos de tal estado de 
coisas. Ao contrário de diversas concepções que atribuem as causas 
dos crimes a transtornos mentais, partimos da hipótese de que em 
muitos casos o sofrimento mental é oriundo do próprio encarcera-
mento, e não anterior a ele. 
Palavras-chave: Adoecimento Mental. Prisão. Indivíduos en-
carcerados. Superveniência de doença mental. 
190 
INTRODUÇÃO
O propósito deste texto é investigar a influência do encarcera-
mento no adoecimento mental de indivíduos encarcerados. De acor-
do com dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (2014), 
o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, conta-
bilizando um número total de aproximadamente 567.655 presos. 
Vários estudos apontam que esta população é mais acometida 
por adoecimento mental que a população em geral, sendo parti-
cularmente vulnerável às patologias mentais. Um dos argumentos 
frequentes para tal constatação, é a afirmação de que os indivíduos 
já chegam doentes aos presídios, o que justificaria, muitas vezes, sua 
propensão ao crime.
Se é possível considerar que uma parcela da população en-
carcerada efetivamente chega com indícios de sofrimento mental, 
adotamos a hipótese de que boa parte desta população adoece em 
virtude do próprio encarceramento. 
Há inúmeras evidências de que o ambiente carcerário é adoe-
cedor. Um dos estudos que corroboram esta afirmação é o Preva-
lência de transtornos mentais em mulheres que cumprem pena em presídio de 
Pernambuco, de Fonte (2011). Este estudo foi realizado com mulheres 
encarceradas em duas penitenciárias de Pernambuco. Fonte (2011) 
traz o quão recorrente é o desencadeamento de transtornos mentais 
em mulheres que cumprem pena neste presídio, e o quanto este ín-
dice tem aumentado com o passar dos anos. 
Os indivíduos encarcerados também podem estar sob maior 
risco de suicídio que a população geral. De acordo com a pesquisa 
“Suicídio no Sistema Carcerário: Análise a partir do perfil biopsicossocial do 
preso nas instituições prisionais do Rio Grande do Sul”, Negrelli (2006) 
identificou as características demográficas e criminológicas dos de-
tentos que cometeram suicídio no sistema prisional deste Estado e 
observou a incidência de doença mental diagnosticada em 68,8% 
dos indivíduos que cometeram suicídio. 
191 
A par de tudo o que foi dito, pretende-se investigar a influên-
cia do encarceramento no adoecimento mental dos detentos.Este 
trabalho foi organizado em duas partes. Na primeira, apresentare-
mos as prisões e o que as cercam, retomando o surgimento das 
prisões, a história do sistema prisional brasileiro e sua situação atual 
e as características das instituições totais. Na segunda, discutiremos 
a relação entre o encarceramento e o adoecimento mental. 
Surgimento das prisões
Damas (apud Magnabosco, 1998) afirma que na antiguidade não 
existia a noção de privação de liberdade como sansão penal. O direito 
neste período era influenciado pelo Código de Hamurabi ou “lei do 
Talião” regido pelo “olho por olho e dente por dente”. Nesta época, 
as execuções penais baseavam-se na pena de morte, em penas corpo-
rais e penas infamantes; o cárcere era utilizado para preservação dos 
réus como custódia até a ocorrência de julgamento, execução ou para 
a prática de tortura, porém não tinha caráter de pena. 
Durante a Idade Média, as sanções estiveram submetidas ao 
arbítrio do Direito Monárquico, que na maior parte da Europa oci-
dental, as impunham de acordo com o “status” social ao qual o réu 
pertencia. Os condenados tornavam-se o centro de espetáculos, 
pois a guilhotina, amputações, forca, dentre outros ocorriam em 
praça pública, visando confirmar o poder do rei. Não era, portanto, 
o restabelecimento da justiça o propósito do suplício, mas a confir-
mação do poder do soberano (FOUCAULT, 2010).
Já na modernidade, o grande marco foi a obra de Cesar Bec-
caria. Em 1764, elaborou Dos Delitos e das Penas. Tal obra promoveu 
tamanha repercussão que forçou mudanças na legislação de muitos 
países. O criminoso não era considerado um indivíduo paralelo à 
sociedade, mas alguém que não se adaptou às normas preestabeleci-
das e, portanto, não conseguiu se enquadrar às regras sociais. Assim, 
192 
o direito de punir deveria seguir uma utilidade social, ressaltando a 
importância da publicidade e da rapidez das penas (DAMAS apud 
BECCARIA, 2000). 
Entre os séculos XVI e XVII, a pobreza se espalha por toda 
a Europa. As guerras, as devastações de países, as expedições mi-
litares, a crise das formas feudais, a crise da economia agrícola e a 
extensão dos núcleos urbanos, contribuíram, neste momento, para o 
aumento da criminalidade. Diante disso, a pena de morte deixou de 
ser considerada uma solução apropriada (MAGNABOSCO, 1998). 
A partir do século XVIII, as raízes do Direito Penitenciário 
começaram a formar-se, pois, por um longo tempo o condenado 
foi objeto da Execução penal e só recentemente é que ocorreu o 
reconhecimento dos direitos da pessoa humana do condenado. O 
Direito Penitenciário resultou da proteção do condenado. Esses di-
reitos se baseiam na exigência Ética de se respeitar a dignidade do 
homem como uma pessoa moral (SANTOS, 2005).
Em meados do século XIX, deu-se início a um movimento de 
significativa excelência no desenvolvimento das penas privativas de 
liberdade, na criação e construção de prisões organizadas em prol da 
correção aos apenados. A finalidade das instituições se baseava na 
reforma dos delinquentes através do trabalho e da disciplina, e tinha 
como um dos seus objetivos a prevenção geral, devido à existente 
pretensão de desestimular outros da ociosidade e da delinquência 
(MAGNABOSCO, 1998). 
As primeiras penitenciárias surgiram no final do século XIX, 
sob influência da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 
1789, que defendia a integridade física e psicológica do indivíduo 
sob custódia do Estado. As primeiras penitenciárias condenavam os 
delinquentes à privação de liberdade e visavam à normalização do 
comportamento social (SANTOS, 2005).
Ainda sobre o histórico das prisões, é importante mencionar 
que na América Latina, a partir do momento em que se buscou 
193 
por respostas aos problemas sociais que se deu origem à diversi-
dade de discursos a respeito das classes trabalhadoras populares, 
imigrantes, negros, indígenas, mulheres e crianças, associando-os 
ao crime (SILVA apud SALVATORE; AGUIRRE, 1996). No Bra-
sil, a construção da noção de que esta população carrega a marca 
da predisposição a cometer crime, se iniciou nos anos de 1920 e 
1930, e se estende até os dias atuais. 
A história do sistema prisional brasileiro e sua 
situação atual
No Brasil, desde os primórdios do Período Colonial já exis-
tia um sistema carcerário com instalações precárias e desempenho 
duvidoso, pelo fato de se encontrar à mercê das ordens da nobreza. 
Entretanto, com a proclamação da República, e sob forte influência 
da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e 
do Cidadão (1789), o campo jurídico brasileiro finalmente sofreu 
mudanças e passou por inovações na forma de julgar e lidar com os 
encarcerados (SANTOS, 2005).
Por determinação da Carta Régia, em 1769 foi determinada a 
construção da primeira prisão brasileira, a Casa de Correção do Rio 
de Janeiro. Mas, logo no início do século XIX, os problemas da su-
perlotação começaram a surgir (DAMAS apud Souza, 2004). Neste 
período, insanidade mental e crime possuíam uma íntima relação 
no discurso dos intelectuais, e os mendigos, criminosos e doentes 
mentais dividiam o mesmo espaço nas prisões até meados do século 
XX, devido ao fato de nessa época não haver instituições específicas 
destinadas para os doentes mentais (SANTOS, 2005).
Com a criação do 1º Código Penal em 1830, houve a indivi-
dualização das penas, mas somente com o advento do 2º Código 
Penal, em 1890, que a pena de morte foi abolida e houve o surgi-
mento do regime penitenciário de caráter correcional, com o pro-
194 
pósito de ressocialização e reeducação dos encarcerados (DAMAS 
apud MAGNOBOSCO, 1998).
Com o novo Código Penal de 1890, determinou-se que os 
presos com bom comportamento, após o cumprimento de parte 
da pena, poderiam ser transferidos para presídios agrícolas43. Com 
o Código Penitenciário da República, de 1935, o sistema prisional 
se propôs a, além de deter indivíduos para cumprimento da pena 
privativa de liberdade, também trabalhassem pela sua regeneração e 
reinserção social (DAMAS apud SOUZA, 2004).
A lei de Execução Penal traz objetivos claros para essa rein-
serção social: 
Art. 1º A execução penal tem por objetivo efeti-
var as disposições de sentença ou decisão crimi-
nal e proporcionar condições para a harmônica integração 
social do condenado e do internado.
Art. 2º A jurisdição penal dos Juízes ou Tribunais 
da Justiça ordinária, em todo o Território Nacio-
nal, será exercida, no processo de execução, na 
conformidade desta Lei e do Código de Processo 
Penal.
Parágrafo único. Esta Lei aplicar-se-á igualmente 
ao preso provisório e ao condenado pela Justiça 
Eleitoral ou Militar, quando recolhido a estabele-
cimento sujeito à jurisdição ordinária.
Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados 
todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.
Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de 
natureza racial, social, religiosa ou política.
Art. 4º O Estado deverá recorrer à cooperação da comu-
43 Os presídios agrícolas são destinados ao cumprimento do regime semiaberto. Recomenda-
-se a leitura de CAPEZ (2011) para melhor entendimento sobre tal modo de cumprimento 
de pena que existe, mesmo que em pouca quantidade de instituições, no Brasil. 
195 
nidade nas atividades de execução da pena e da medida 
de segurança. (BRASIL, 1984, s.p. grifos nossos).
Mesmo com objetivos claros em relação à reinserção e respei-
to aos direitos do indivíduo encarcerado, pode-se observar que as 
unidades prisionais, em sua maioria, se encontram em um estado de 
deplorável conservação.
Podemos observar cada vez mais que estes ambientes insalu-
bres não só prejudicam o indivíduo em fatores físicos, mas, também, 
psicológicos. Este indivíduo encontra-se em total vulnerabilidade, 
estando ausente de amparo familiar, afastado do convívio social, 
impossibilitado de realizar atividades prazerosas, exposto a péssimas 
condições de saúde, higiene e estrutura física.
As instituições totais
As instituiçõestotais, segundo Goffman (1974), são defini-
das como um ambiente de residência e trabalho, onde se concentra 
um significativo número de indivíduos em situação semelhante, evi-
dentemente separados da sociedade ampla, por um longo período 
de tempo. Tais indivíduos vivem de modo isolado, fazem parte de 
uma vida considerada “fechada” e formalmente administrada (GO-
FFMAN, 1974). 
De acordo com essa teoria, toda instituição total tem tendência 
de fechamento, pois inibe a possibilidade de que o indivíduo, neste 
caso, o detento, se relacione com o mundo externo ao cárcere. Ou-
tros exemplos de instituições totais são asilos, hospitais psiquiátricos 
e conventos. Entretanto, é necessário atentar-se para as diferenças 
existentes entre uma instituição e outra, presentes na sociedade oci-
dental, pois, apesar de serem consideradas locais de fechamento, ve-
rificam-se instituições consideravelmente mais fechadas que outras. 
Este fechamento, por sua vez, refere-se ao seu caráter total, o qual é 
196 
simbolizado pela barreira da relação social com o mundo externo e 
pelas proibições da saída (GOFFMAN, 1974).
No ocidente, as instituições totais podem ser enumeradas 
em cinco agrupamentos. No primeiro agrupamento, há instituições 
criadas com propósitos cuidadores, em que os indivíduos são con-
siderados incapazes e inofensivos diante de uma idealização social. 
Exemplos deste tipo de instituição são: casas para idosos, deficien-
tes, órfãos etc. Já o segundo tipo de agrupamento, destina-se aos 
cuidados com indivíduos considerados incapazes de cuidar de si 
mesmos e que são considerados uma ameaça não-intencional para 
a sociedade, como hospitais psiquiátricos. Um terceiro tipo de ins-
tituição total é aquele destinado à proteção da comunidade contra 
perigos intencionais e a preservação do bem-estar das pessoas assim 
isoladas: cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra e 
campos de concentração. Em quarto lugar, há instituições estabe-
lecidas com o intuito de realizar, de modo mais adequado, alguma 
tarefa de trabalho e que se justifica apenas por meio de tais funda-
mentos instrumentais: quartéis, navios, campos de trabalho etc. Em 
quinto e último lugar, existem estabelecimentos destinados a servir 
de refúgio do mundo, apesar de servirem também como locais de 
instrução para os religiosos. Estes locais podem ser exemplificados 
por mosteiros, conventos e outros claustros (GOFFMAN, 1974).
Para o autor, as prisões se inserem no terceiro tipo de institui-
ção total e como já mencionado, se organiza em prol de manter a co-
munidade protegida contra perigos intencionais, visando, também, 
o bem-estar das pessoas mantidas isoladas. É importante mencionar 
que tais instituições podem ser descritas como a separação das bar-
reiras que comumente separam as três esferas da vida. Primeiramen-
te, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob 
uma autoridade exclusiva; em segundo, cada fase da atividade diária 
dos participantes é realizada na companhia imediata de um grupo 
relativamente grande de pessoas, sendo todas elas, em tese, tratadas 
197 
da mesma forma e obrigadas a realizar as mesmas coisas em conjun-
to; por último, em terceiro lugar, todas as atividades diárias são ri-
gorosamente estabelecidas através da imposição de horários, regras 
formais explícitas e um grupo de funcionários (GOFFMAN, 1974). 
Outra característica essencial às instituições totais, é o fato 
de haver uma divisão entre um grande grupo controlado, que se 
denomina de “grupo dos internados”, e uma equipe pequena de 
supervisão. Em sua maioria, os internados vivem na instituição e 
tem contato restrito com o mundo existente fora de suas paredes 
(GOFFMAN, 1974).
Referindo-se ao sistema carcerário, Goffman (1974) aponta o 
quão adoecedor é este ambiente, visto que há a perda de individua-
lidade e a mortificação do eu desses indivíduos. Não é incomum o 
surgimento de humilhações, degradações, rebaixamentos e profana-
ções do eu. O eu é então sistematicamente mortificado.
Ao que se refere à vida civil, é seguida uma sequência de horá-
rios dos papéis do indivíduo, que se destina tanto ao ciclo vital quan-
to nas repetidas rotinas diárias, e é assegurado que um papel que 
desempenhe não impeça sua realização e suas ligações em outro. 
Entretanto, nas instituições totais, ao contrário, há alterações signi-
ficativas na vivência desses papéis em virtude da separação entre o 
internado e o mundo mais amplo durar o tempo todo e poder per-
durar por vários anos posteriores. De início, são proibidas as visitas 
vindas de fora e as saídas do estabelecimento, o que assegura uma 
ruptura inicial profunda com os papéis anteriores e uma significativa 
perda de papel (GOLFFMAN, 1974). 
Na volta para o mundo externo, caso isso aconteça, o inter-
nado se depara com algumas perdas irrecuperáveis e pode vir a sen-
ti-las com muita dor. Em fase posterior do ciclo vital, pode não ser 
recuperável, por exemplo, o tempo não empregado no progresso 
educacional e profissional, na criação dos filhos, no namoro, no ca-
samento, dentre outras. Um aspecto legal dessa perda permanente 
198 
pode estar inserido no conceito de “morte civil”, onde os encarcera-
dos podem enfrentar não somente uma perda temporária de direitos 
como usufruir do dinheiro, assinar cheques, ir a sentido contrário a 
processos de divórcio ou adoção, e votar, mas também, eles podem 
ter alguns de seus importantes direitos negados (GOFFMAN apud 
TAPPAN, 1954). 
Partindo deste pressuposto, o internado se depara com al-
gumas perdas de papéis em virtude da barreira existente entre o 
mundo externo e o mundo dentro das instituições totais. Com fre-
quência, certifica-se que a equipe dirigente emprega o que deno-
minamos por processos de admissão. Tais processos se referem às 
seguintes submissões: adquirir uma história de vida, tirar fotografia, 
pesar, tirar impressões digitais, atribuir números, buscar pela enu-
meração dos bens pessoais para que os mesmos sejam guardados, 
despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir roupas da 
instituição, dar instruções quanto à regras, e designar um local para 
os internados. Portanto, estes processos de admissão pudessem tal-
vez, ser denominados de “arrumação” ou “programação”, pois, ao 
ser o indivíduo “enquadrado”, o novato se sujeita ao conformismo e 
codifica num objeto que pode ser inserido à máquina administrativa 
do estabelecimento, modelado de maneira sutil pelas operações de 
rotina impostas pela instituição (GOFFMAN, 1974).
O sistema prisional brasileiro não tem conseguido oferecer 
aos condenados o indispensável à sobrevivência. Dentro do sis-
tema carcerário, o que se encontra é um ambiente de degradação, 
marcado pela superlotação, pela falta de recursos básicos de hi-
giene pessoal e de sobrevivência, pela ociosidade e pela violência. 
Esse ambiente estigmatiza o egresso, abala sua integridade física, 
psíquica e moral, dificultando até mesmo a reconstrução do indi-
víduo (DINIZ, 2010).
199 
Encarceramento e adoecimento mental
Um estudo da prevalência de transtornos mentais realizado 
no Estado de São Paulo demonstrou que São Paulo é o Estado res-
ponsável por abrigar 40% da população carcerária do Brasil e, den-
tre estes, em torno de 12,2% dos detentos foram encontradas uma 
prevalência de transtornos mentais graves (RIBEIRO; QUINTA-
NA; ANDREOLI, 2008).
Com base no estudo Prevalência de transtornos mentais em mulheres 
que cumprem pena em presídio de Pernambuco, de Fonte (2011), pode-se 
perceber que os transtornos mentais que mais acometem a popula-
ção carcerária são: depressão, ansiedade generalizada, transtorno de 
personalidade antissocial, transtorno de pânico e transtorno obses-
sivo compulsivo (TOC).
O ambiente prisional é um local onde frequentemente ocor-
re a violação dos direitos humanos dos indivíduos encarcerados. 
Violações explícitas como a prática de violência e tortura, não são 
muito comuns, mas, outras formas de violação ocorrem pormeio 
da denegação de direitos básicos da pessoa humana (TABORDA; 
BINS, 2008). Ainda que estes autores digam isso, considera-se que a 
violação é frequente tanto na prática de violência e tortura, quando 
através da denegação de direitos básicos da pessoa humana como 
já mencionado. A instituição penitenciária ocupa, portanto, o papel 
de uma empresa, onde faz uso dos meios de coerção necessários 
para manter a dominação sobre os apenados para alcançar seus afins 
(LEMOS; MAZZILLI; KLERING, 1998). 
Consequências psicológicas que decorrem desta situação 
deplorável do ambiente prisional e que indicam adoecimento são 
identificados nos detentos, tais como a regressão, psicossomatiza-
ção, depressão e a identificação do agente penitenciário com figuras 
paternas ou “superegóicas”. O detento associando sua fragilidade 
emocional às condições insalubres das unidades, encontra-se predis-
posto a desenvolver transtornos mentais.
200 
O ambiente carcerário é favorável ao adoecimento mental, 
pois a prisão é cenário de constantes violações dos direitos huma-
nos; alguns problemas identificados neste cenário, demonstram que 
o Brasil vem aniquilando quaisquer que sejam as possibilidades de 
os encarcerados virem a se recuperar, ao mesmo tempo em que gas-
ta dinheiro com um sistema cruel que forja mais criminosos (MAG-
NABOSCO, 1998).
Além da precariedade do ambiente carcerário, é importante 
considerar o impacto que os diferentes tipos de prisões causam 
no psiquismo. A condição na qual se encontra o encarcerado é 
também adoecedora. O preso pode se encontrar em condição pro-
visória ou se já condenado, se está ou não aguardando uma deci-
são judicial, ou ainda, se realmente tem o conhecimento sobre sua 
condição (SOUZA, 2004).
O Artigo 41 do Código Penal estabelece que o condenado 
a quem sobrevém doença mental deve ser recolhido a hospital de 
custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta deste, a outro estabele-
cimento adequado. Entretanto, os hospitais de custódia seguem um 
modelo manicomial, deste modo, os encarcerados são duplamente 
excluídos da sociedade, pois estará inserido no ambiente prisional 
precário ou será encaminhado a um “manicômio” com critérios de 
exclusão ao invés de tentativas de cuidados. A medida de segurança 
pode ser aplicada quando há a superveniência de doença mental 
(SDM) que, na maioria das vezes, ocorre dentro de um estabeleci-
mento penitenciário; assim, deve-se considerar as condições insa-
lubres das prisões, muitas vezes superlotadas, funcionando como 
agentes estressores na eclosão de um transtorno mental. Tal condi-
ção ocorre quando um indivíduo, em qualquer período após a prá-
tica de um ato criminoso, apresenta um transtorno mental de natu-
reza grave. A SDM pode ocorrer, também, no momento em que o 
réu espera por julgamento ou depois de ser condenado, bem como 
durante o cumprimento de sua pena (CORDEIRO et al, 2015). 
201 
Goffman (1974), afirma que o internado perde sua individua-
lidade e que a barreira que as instituições totais, por exemplo, a pri-
são, coloca entre o internado e o mundo externo assinala a primeira 
mutilação do eu (p.24); complementa que há não só deformação 
pessoal frente à perda de identidade, mas, também, a desfiguração 
pessoal através de mutilações diretas e permanentes (p. 29). 
Deste modo, a mortificação ou mutilação do eu possui uma 
propensão a incluir aguda tensão psicológica para o indivíduo, entre-
tanto, para um indivíduo encarcerado, desiludido e com constante 
sentimento de culpa, esta mutilação pode provocar alívio psicológi-
co. No mais, a tensão psicológica criada pelos frequentes ataques ao 
eu, pode advir também de questões imperceptíveis relacionadas aos 
territórios do eu, como a perda do sono, os alimentos regrados, den-
tre outros. Há também um elevado nível de angústia, ou a ausência 
de materiais de fantasia ou incentivos ao lazer, que contribuem para 
um aumento da violação das fronteiras do eu (GOFMANN, 1974).
O suicídio, do ponto de vista psicológico e físico, é um pe-
dido de socorro em uma situação de desespero, é a maneira que o 
indivíduo encontra de não mais ter que se haver com a realidade 
que se tornou insuportável; é uma fuga da realidade, por conside-
rá-la insustentável no momento. Na prática suicida, o indivíduo 
se entrega a morte buscando sossego e acolhimento. É, por outro 
lado, também entendido como uma agressão deliberada que um 
indivíduo pratica contra si mesmo com a intenção de pôr fim à 
sua vida. Trata-se de um fenômeno a ser analisado a partir da lo-
calização deste indivíduo pertencente a um grupo social ao qual se 
insere (GAUER; LAZZARIN, 2003). Este fenômeno é um ato ex-
tremo, que implica em sofrimento social e individual e é frequente 
nos presídios (NEGRELLI, 2006). 
202 
Considerações finais
O ambiente carcerário é cenário de grandes urgências, inclusi-
ve no que se refere aos aspectos psicológicos, pois os encarcerados 
estão cada vez mais adoecendo mentalmente. Este fato decorre da 
organização do sistema prisional e o que ele precariamente ofere-
ce. Tal modo de funcionamento dentro das prisões ocasiona graves 
consequências psíquicas que merecem atenção e cuidado. A perda 
da individualidade é a maior preocupação dentre as consequências 
geradas pelo meio descrito. O indivíduo perde sua identidade e sua 
posição como sujeito no momento em que se depara com a mortifi-
cação do eu, cotidianamente abalada através de desrespeito, violên-
cia, assujeitamento, despersonalização etc. 
Além do mais, as prisões possuem caráter de isolamento, pois 
excluem as pessoas do meio social e não prezam pela reinserção dos 
detentos ao mundo externo. A falta de individualização é constante, 
pois a uniformização dos indivíduos acontece desde o primeiro mo-
mento em que são inseridos em uma instituição prisional. 
Mesmo com a existência da Lei 7210 de Execução Penal de 
1984, na qual os direitos e deveres do preso são estabelecidos, e do 
Art. 1º da Constituição Federal, que defende o “direito a dignidade da pes-
soa humana”, a realidade do sistema prisional vivida pelos encarcerados 
denota que estas leis constitucionais não têm sido cumpridas de fato, 
pois constatou-se a frequente prevalência de transtornos mentais.
Neste sentido, não se faz necessário grandes esforços para 
notar que o sistema prisional acaba por alimentar a desigualdade 
social, a exclusão social e a dominação política. Considerando os 
limites desta pesquisa, pôde-se observar que a população carcerá-
ria tem sido sistematicamente esquecida, não apenas em termos 
sociais ou constitucionais, mas, principalmente, ao que se refere às 
práticas de humanização.
203 
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Extensão
CAPÍTULO X
Interações entre Psicologia Social 
Comunitária, Saúde Mental e 
Atenção Psicossocial
Rita de Cássia Andrade Martins
InterAções
Diálogos de corpos e sons
Dos que viveram e dizem de sua própria carne
Dos empáticos que com vistas turvas e 
marejadas partilham o ouvir
Os olhos gotejam paulatinamente
Adiante, chovem
O corpo troveja, relampeja, estremece
Inunda-se das cruéis lembranças de tempos 
presentes
Lá fora, nos corações, na exclusão
Depois silêncio e acolhida
Abraços sem falas
Está dito, revelado, sentido
Sorrisos arregalados de esperança, fraternidade 
e arte
Corpos a postos, lutas postas
Interações, Conviver
Portas abertas, sem muros
Mãos dadas, diversidade e o mesmo ideal 
ANTIMANICOMIAL.
(NDM, maio/2017) 
208 
RESUMO
Este artigo apresenta uma experiência de intervenção comu-
nitária que lançou mão da metodologia participativa para construir 
de forma coletiva a Semana de Luta Antimanicomial em Jataí, mu-
nicípio do sudoeste goiano. A intervenção ocorreu no âmbito do 
Projeto de Extensão e Cultura “InterAções: psicologia tecendo re-
des e saberes”, ação integrada ao Serviço de Psicologia Aplicada da 
Regional Jataí da UFG, que busca, através de parcerias com a comu-
nidade local, construir práticas de intercâmbio entre os saberes po-
pular e acadêmico, tendo como eixo a temática da saúde mental. A 
partir desta experiência buscou-se analisar questões relativas à meto-
dologia de intervenção, à formação do profissional de psicologia e o 
posicionamento ético-político desses profissionais na comunidade, 
à luz da Psicologia Social Comunitária em diálogo com o campo da 
saúde mental por meio da Atenção Psicossocial.
Palavras-chaves: Psicologia Social Comunitária, Saúde Men-
tal, Luta Antimanicomial, Atenção Psicossocial. 
INTRODUÇÃO44
Saúde Mental e Atenção Psicossocial são campos que se en-
trecruzam em diferentes aspectos, mas um deles tem configurado 
tema importante na Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, o pro-
cesso de desinstitucionalização de pessoas egressas de manicômios. 
Uma das dimensões deste processo é a reabilitação psicossocial, que 
demanda mobilização interdisciplinar no âmbito da atenção psicos-
social. Além disso, requer investimento no território no que diz res-
peito aos laços e vínculos sociais na comunidade. 
A reabilitação psicossocial dialoga de forma direta e, muitas 
44 Agradeço as contribuições de Nayra Daniane Mendonça, Elcimar Dias Pereira e Letícia 
Cabral Leles às reflexões empreendidas neste texto.
209 
vezes, confunde-se, com os fundamentos e práticas da Psicologia 
Social Comunitária. Esta vertente da Psicologia Social tem como 
princípios norteadores relações tecidas em parceria entre o profis-
sional da psicologia e os sujeitos, buscando soluções coletivas para 
problemáticas que muitas vezes se constituem a partir da crença de 
que o sofrimento psíquico é individual e deve ser tratado a partir 
desta perspectiva. Desta forma, o recorte dos sujeitos do cenário 
social impede a visão de integralidade e destitui a historicidade de 
suas vidas. Os movimentos de reforma psiquiátrica antimanicomial 
no Brasil tem revelado a importância de se tratar questões relativas 
à desinstitucionalização a partir de uma perspectiva sócio-histórica, 
atentos também às singularidades e projetos pessoais numa visão 
dialética entre sujeito/coletivo. 
Este artigo compartilha a experiência de intervenção co-
munitária realizada pela equipe do Projeto de Extensão e Cultura 
“InterAções: psicologia tecendo redes e saberes” para organização 
coletiva da Semana de Luta Antimanicomial de 2017 em Jataí. A in-
tervenção contou com a parceria da Associação Conviver, composta 
por usuários da rede municipal de serviços de saúde mental. A partir 
desta experiência buscou-se analisar questões relativas à metodo-
logia de intervenção, à formação do profissional de psicologia e o 
posicionamento ético-político desses profissionais na comunidade, 
à luz da Psicologia Social Comunitária em diálogo com o campo da 
saúde mental por meio da Atenção Psicossocial. 
Interações: psicologia tecendo redes e saberes
O “InterAções” é um projeto de extensão e cultura, desenvolvido 
por uma equipe interdisciplinar, composta por docentes45 do curso 
45 A Coordenação do Projeto é compartilhada entre as professoras doutoras Rita de Cássia 
Andrade Martins e Elcimar Dias Pereira do curso de Psicologia/REJ/UFG. 
210 
de psicologia, pessoas da comunidade externa46 à universidade e dis-
centes47 de diferentes cursos de graduação da UFG/Regional Jataí 
(REJ). O projeto atua por meio do Serviço de Psicologia Aplicada, 
através de intervenções comunitárias com enfoque na saúde coleti-
va, tendo como eixo a saúde mental. As intervenções comunitárias 
são organizadas em ciclos temáticos que culminam em eventos pú-
blicos com ações culturais e formação acadêmica. 
Cada ciclo tem em média a duração de seis meses e a temática 
proposta torna-se o disparador dos debates e outras ações desen-
volvidas naquele ciclo, incentivando o diálogo e a troca de saberes. 
A concepção, organização, realização, avaliação e monitoramento 
do projeto prevê participação das comunidades interna e externa à 
universidade, visando o exercício de práticas coletivas e participati-
vas, o compromisso ético e social da Psicologia com a comunidade, 
o respeito e valorização dos saberes populares, a escuta e o acolhi-
mento da diversidade. 
Os ciclos temáticos são compostos pelos seguintes momen-
tos: 1) planejamento; 2) construção da programação; 3) revisão, es-
tudo e teste de estratégias de metodologias participativas no que 
tange a formação e participação política; 4) aprofundamento teórico 
e troca de saberes com a comunidade sobre o tema do ciclo; 5) 
realização das atividades do ciclo; 6) avaliação; 7) desdobramentos 
do ciclo, que podem ser: produção de material acadêmico de cunho 
científico, apoio à produção da comunidade (obras literárias e artís-
ticas); atividades com a comunidade envolvida no ciclo e/ou inter-
venções em parceria com a comunidade. 
Os eventos são registrados por meio de fotografia e/ou filma-
gem e, ao final, é elaborado um relatório, considerando as avaliações. 
46 A psicóloga Nayra Daniane Mendonça é responsável pela Coordenação externa do Projeto.
47 O projeto conta com uma extensionista do Programa de Bolsas de Extensão e Cultura 
(PROBEC)e duas extensionistas do Programa de Voluntários de Extensão e Cultura (PRO-
VEC), conforme edital PROEC-2017/2018.
211 
O Projeto também utiliza as redes sociais para interação com a co-
munidade, visando à sensibilização para possíveis estudos e outros 
projetos, disseminação de informações e divulgação de atividades. 
No primeiro ciclo temático abordou-se o tema “processos de 
envelhecimento e perspectivas de cuidado e atenção à pessoa ido-
sa”. O segundo teve como tema a Luta Antimanicomial. Por último, 
em seu terceiro ciclo, o projeto homenageia a Consciência Negra, 
colocando em discussão questões relativas à saúde mental e ao ra-
cismo. A experiência vivenciada no segundo ciclo é o foco de dis-
cussão deste artigo.
PRINCÍPIOS E METODOLOGIA 
O InterAções alicerça sua prática nos princípios da Psicologia 
Social Comunitária, que surge na década de 1970, com forte crítica 
ao papel da psicologia frente às desigualdades sociais e a pobre-
za. Este ramo da Psicologia Social nasce sob influência marxista, 
em diálogo com autores da Escola de Frankfurt (Fromm, Adorno, 
Marcuse, Benjamin) e da teoria da dependência (Marini, Bambirra, 
Caputo, Pizarro). 
Conforme sintetiza Monteiro (2000), a Psicologia Social Co-
munitária vem se constituído ao longo dos anos a partir de cinco 
frentes: 1. O caráter do conhecimento produzido; 2. A natureza do 
sujeito cognoscente; 3. A natureza da relação entre os sujeitos exter-
nos e internos à comunidade; 4. O método a aplicar para produzir 
conhecimento; e 5. A autoria e propriedade do conhecimento.
Sobre a epistemologia, ou seja, o caráter do conhecimento pro-
duzido, a Psicologia Social Comunitária parte da compreensão que 
os sujeitos são históricos e, por isso, as relações entre os profissionais 
da psicologia e os sujeitos na comunidade devem buscar a garantir 
certa horizontalidade. Faz-se psicologia com a comunidade e não na 
comunidade. Neste sentido, a relação estabelecida se dá entre sujeitos.
212 
Este sujeito a que se refere a Psicologia Social Comunitária 
é compreendido como ator social, aquele que possui e produz co-
nhecimento de forma incessante. Sendo assim, como há o esforço 
de uma prática horizontal, o profissional da psicologia que atua 
com a comunidade evita se posicionar como especialista, buscado 
ocupar um lugar de facilitador, isto é, aquele que cataliza possíveis 
transformações sociais. 
No que diz respeito à produção de conhecimento, a Psico-
logia Social Comunitária optou pelo método pesquisa-ação com a 
finalidade de possibilitar o auto-estudo e a auto-reflexão sobre a rea-
lidade vivida pelos agentes internos e externos à comunidade. Em 
confluência com esta perspectiva metodológica, a autoria e proprie-
dade do conhecimento são coletivas e compartilhadas, de maneira a 
reafirmar a equidade dos agentes no processo. Na prática o profis-
sional da psicologia lançará mão de métodos e técnicas comuns às 
pesquisas de enfoque qualitativo, tais como observação participante, 
entrevistas e grupos focais. 
Cabe tecer alguns comentários acerca da recomendação de 
Monteiro (2000) sobre a relação estabelecida entre o profissional da 
psicologia e a comunidade, já que implica grande parte do esforço 
do InterAções em suas intervenções com as comunidades. A relação 
sujeito-sujeito é uma questão que requer cuidado na prática, visto 
que de forma geral não se dá espontaneamente, considerando que 
as relações têm sido historicamente estabelecidas tendo como base 
a desigualdade e a hierarquia entre saberes. Neste tipo de relação, 
cabe àquele que detém o saber popular o lugar de objeto e ao outro 
que vem de fora, o saber sobre seu sofrimento e suas inquietudes. 
Para que haja uma interrupção neste processo é preciso intervir para 
a constituição de outro lugar possível, para que essa verticalidade 
nas relações não se reproduza de forma incessante. Esta interven-
ção requer um posicionamento ético-político que exige um esforço 
cotidiano do profissional de psicologia na comunidade, sendo ne-
213 
cessário que decline das soluções prontas e facilite arranjos que não 
sejam autorais, mas processos psicossociais coletivos (FREITAS, 
1998). Neste sentido, o profissional atuaria como testemunha de 
uma construção cujos protagonistas são os demais sujeitos, ou seja, 
resiste ocupar o lugar de especialista para que dali suscite outros 
saberes provenientes da comunidade, dos sujeitos na coletividade.
No caso da saúde mental e outros segmentos em situação de 
vulnerabilidade social, as práticas participativas buscam incentivar o 
estabelecimento de vínculos e redes de solidariedade incrementando 
cotidianamente o potencial de autonomia desses sujeitos instituciona-
lizados ou submetidos aos estigmas em virtude do sofrimento mental.
Outra questão importantíssima é o manejo da tendência a viti-
mizar os sujeitos como se estivessem à mercê do social. A subjetivi-
dade é muitas vezes vista como um privilégio que se conquista após 
a superação de obstáculos impostos pelo social, como a fome, a falta 
de moradia, o analfabetismo e a violência (SAWAIA, 2006). Contu-
do, a subjetividade permeia todos esses aspectos e está entremeada 
a cada um deles. A crença de que a subjetividade deve ser posta em 
suspensão enquanto a fome ou a falta de moradia persistem pode 
interferir inclusive na forma como as equipes das redes de atenção 
psicossocial constroem seus trabalhos e intervenções junto à comu-
nidade. Quando a forma de atuação das equipes é compreendida em 
etapas, ao invés de momentos, essa prática se torna evidente. 
Quando se afirma que o projeto InterAções opta pela me-
todologia participativa, explicita-se que o projeto está afinado ao 
posicionamento ético-político fundamentado na obra de Paulo 
Freire. O pedagogo e filósofo brasileiro defendia a autonomia 
dos sujeitos no processo educativo, a partir de uma relação dialé-
tica entre a ação e a reflexão. Nesta perspectiva a prática educa-
tiva é relacional, guiada por um processo de construção conjunta 
(FREIRE, 2006). Além disso, busca-se implicar a própria equipe 
do projeto, no esforço de exercitar na relação entre professoras e 
214 
extensionistas a prática desta ética. A equipe utilizou métodos e 
técnicas participativas para assessorar e apoiar os usuários na or-
ganização do evento e na efetivação de projetos individuais e /ou 
coletivos surgidos durante o processo de trabalho. 
As intervenções contaram com o referencial teórico e metodo-
lógico da Psicologia Social Comunitária - Freitas (1998; 2002); Montei-
ro (2000) e Sawaia (2002; 2006). Também se utilizou como referencial 
teórico a produção sobre reforma psiquiátrica e atenção psicossocial 
no Brasil, em especial as obras de intelectuais brasileiros no campo da 
saúde mental - Pitta (2001); Tykanori (2001); Amarante (2007). 
O CICLO II – saúde mental e a luta antimanicomial
A experiência compartilhada neste artigo compôs o segundo 
Ciclo do InterAções, que teve como tema a Luta Antimanicomial e 
contou com a parceria da associação de usuários de saúde mental da 
Rede de Atenção Psicossocial de Jataí – a Associação Conviver. O 
ciclo teve início em dezembro de 2016 e culminou numa semana de 
evento ocorrida entre os dias 19 e 26 de maio de 2017, no campus 
Riachuelo da UFG/REJ, e teve seu encerramento na Praça Tenente 
Diomar Menezes, na parte central da cidade. O evento foi estrutu-
rado em três eixos: 1) Rodas de conversa, 2) Atividades artísticas e 
3) Espaço de promoção da saúde mental. 
Com vistas à uma maior integração entre os organizadores 
do evento - docentes e discentes da UFG, profissionais e usuários 
da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) - optou-se por construir 
a programação do evento enfatizando atividades artísticas, culturais 
e discussões coletivas, considerando que todos tem algo para ensi-
nar e aprender. Este posicionamento foi proposto e assumido pelas 
coordenadoras do Projeto, buscando afirmar a horizontalidade das 
relações e o protagonismo dos usuários no processo. A equipede 
extensão teve como papel secretariar/apoiar/testemunhar o traba-
215 
lho da equipe de usuários nesse processo de construção coletiva, 
declinando de seu lugar de especialista. Estas opções metodológicas 
serão analisadas na próxima seção.
A decisão de propor uma intervenção comunitária que culmi-
nasse num evento, teve como objetivo desenhar um percurso com 
início, desenvolvimento e fim, com vistas a oferecer aos sujeitos 
participantes um projeto comum que pudesse ser desenhado, tecido 
e vivenciado de forma coletiva. 
As rodas de conversa foram precedidas por documentários 
sobre temáticas relativas à saúde mental/reforma psiquiátrica, orga-
nizados na seguinte sequência: 1) “Holocausto brasileiro” (1979), de 
Helvécio Ratton, para discussão do tema medicalização da loucura; 
2) “A Casa dos Mortos” (2009), de Débora Diniz, sobre crime, peri-
culosidade e loucura; 3) “Estamira” (2006), de Marcos Prado, sobre 
loucura, gênero e raça; 4. “Dá pra fazer!” (2008), de Giulio Manfre-
dona, sobre desinstitucionalização. As rodas foram facilitadas por 
representantes da equipe InterAções, do Fórum sobre Medicaliza-
ção da Educação e da Sociedade e do Grupo de Pesquisa Crime e 
Loucura/REJ/UFG. Alguns alunos foram convidados a apresen-
tar suas experiências enquanto extensionistas e/ou pesquisadores. 
Usuários, familiares e profissionais da RAPS também participaram 
contribuindo com suas experiências. 
O segundo eixo (atividades artísticas) reuniu três exposições: 
1. Mostra coletiva de desenhos, poesias e contos; 2. Mostra educati-
va, com monitores preparados para conduzir os visitantes, e 3. Mos-
tra com os bastidores do evento, na qual foi possível compartilhar 
com os visitantes o percurso de organização, apresentando a me-
todologia de trabalho e os organizadores do evento. Neste mesmo 
espaço foi montada uma feira de artesanato e quitutes caseiros, sob 
responsabilidade da Associação Conviver. 
O terceiro eixo do evento foi o espaço “Promoção da saúde 
mental”, composto por oficinas de consciência corporal, meditação 
216 
ativa, capoeira angola, argila, dança, yoga e tapeçaria. As oficinas 
foram ministradas por pessoas da comunidade jataiense, por uma 
professora do curso de pedagogia e por um membro da Associação 
Conviver. Além desses três eixos, o evento disponibilizou aos parti-
cipantes uma tela de tecido e banners para pintura livre, resultando 
numa obra coletiva que foi construída e exposta durante todo o 
evento, inclusive na atividade de encerramento, ocorrida na praça 
localizada no centro da cidade. 
Participaram em média 300 pessoas, entre elas, estudantes de 
graduação, estudantes secundaristas da rede pública de ensino, pro-
fessores, profissionais da rede de saúde mental, usuários e familiares. 
O evento também contou com o apoio de diferentes parceiros da 
comunidade jataiense. Antes e durante o evento foram concedidas 
entrevistas a emissoras de rádio e TV, o que contribuiu com a vi-
sibilidade sobre o tema do ciclo e também para maior divulgação 
e representatividade da Associação Conviver. O encerramento em 
praça pública permitiu que a temática fosse dialogada de forma mais 
ampla e dinâmica, contando com apresentações musicais de artistas 
locais e peça de teatro sobre a Luta Antimanicomial, organizada por 
usuários e profissionais do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), 
bem como a feira de artesanato. 
A intervenção comunitária
Conforme apresentado, a intervenção culminou num evento 
e em uma série de desdobramentos, mas não se resumiu a eles. Esta 
seção analisa mais detalhadamente o percurso da intervenção, já que a 
significância conferida ao trabalho realizado está em seu processo de 
construção, em detrimento aos produtos decorrentes desse percurso. 
O primeiro contato com a RAPS aconteceu em dezembro de 
2016, quando a coordenadora do InterAções foi convidada por uma 
das psicólogas da rede a desenvolver um trabalho com os usuários, 
217 
por meio da economia solidária, para a criação de uma Cooperativa 
Social. Naquela ocasião a professora tomou conhecimento de que a 
RAPS do município era composta por um Centro de Atenção Psi-
cossocial (CAPS), um Centro de Convivência e Cultura (CCO), um 
ambulatório (NAPS), residências terapêuticas (SRTs) e um hospital 
psiquiátrico que estava prestes a ser desativado. Havia também uma 
Associação de Usuários com um vínculo estreito com a RAPS que 
estava em processo de reestruturação, composta majoritariamente 
por usuários, com apoio de algumas pessoas da comunidade e de 
profissionais da rede de saúde mental. 
A demanda dessa profissional estava circunscrita ao desejo de 
trazer maior autonomia aos usuários e possibilitar acesso à renda 
e direitos sociais. Após longa conversa, chegou-se a um impasse, 
não se sabia se a demanda era da RAPS, da própria psicóloga ou se 
era realmente um desejo do coletivo de usuários. A resposta a esta 
questão ficou em suspenso, visto que carecia de tempo para matu-
rar e, finalmente, ser respondida. A resposta veio quase seis meses 
depois, na ocasião do encerramento do Ciclo, e será compartilhada 
nas considerações finais deste artigo.
O tema da luta antimanicomial compunha a agenda do pro-
jeto de extensão InterAções. Foi decidido pela equipe que o even-
to deveria seguir a metodologia participativa, forma de interven-
ção tecida em seu ciclo inaugural. Desta maneira a parceria com a 
comunidade externa à universidade mostrou-se característica de-
terminante do Projeto. 
Pouco tempo depois do primeiro contato com a RAPS, a 
coordenadora do InterAções foi convidada a participar de duas reu-
niões da Associação Conviver, no terceiro encontro foi proposto ao 
grupo organizar a semana da Luta Antimanicomial de forma con-
junta. A proposta de realizar esta intervenção surgiu para oportu-
nizar uma primeira aproximação entre a equipe do InterAções e as 
pessoas do RAPS (usuários, familiares e profissionais), tendo como 
218 
norte investigar a pergunta que ficou em suspenso no primeiro en-
contro com a psicóloga da rede. Sendo assim, uma intervenção pon-
tual, que tinha como desenho um produto final, mostrou-se uma 
boa oportunidade para interagir, conhecer e buscar compreender a 
dinâmica do grupo. Além disso, serviria para exercitar com os dis-
centes o trabalho em campo. 
A proposta apresentada trazia uma data final, o que permi-
tia trabalhar prazos e projetos dentro do processo, possibilitando 
vivenciar coletivamente dilemas e questões relativas à autonomia, 
organização, trabalho em grupo, forma de organização do trabalho, 
tomada de decisões, entre outros. 
A intervenção teve início com uma roda de conversa sobre a 
Luta Antimanicomial, facilitada pela professora coordenadora do In-
terAções. A ocasião foi muito oportuna, na medida em que as pes-
soas expuseram suas concepções sobre a Luta, deixando nítido o 
desconhecimento sobre a temática. As pessoas também apresentaram 
dúvidas sobre como deveriam ser realmente acolhidas em seu sofri-
mento, qual seria a diferença entre o tratamento oferecido no Núcleo 
de Saúde Mental - hospital psiquiátrico que estava em processo de 
fechamento à época- e aquele que deveria ser oferecido pelo CAPS. 
A roda de conversa foi antecedida pela exibição do vídeo 
“Marcha dos Usuários pela Reforma”, gravado em 2009, na Espla-
nada dos Ministérios, em Brasília. O vídeo mostra usuários, profis-
sionais de saúde, familiares e simpatizantes da causa antimanicomial 
reivindicando apoio à política de reforma psiquiátrica e incremen-
to da rede substitutiva em todo território nacional. Os usuários do 
CCO ficaram impressionados, alguns perguntavam se realmente ha-
via mais pessoas que enfrentavam a mesma situação que eles em 
outros lugares ou se era só em Jataí. A psicóloga ficou surpresa com 
o tempo dedicado pelos usuários ao vídeo e ao debate, visto que, se-
gundo ela, já havia feito tentativas de passar filmes, todas sem êxito. 
Na semana seguinte a reunião contou com a professora coor-
219 
denadora do InterAções emais três extensionistas, dois do curso 
de direito e uma do curso de psicologia. Durante a reunião foram 
tomadas algumas decisões acerca da metodologia do trabalho, fi-
cou acordado que o coletivo se organizaria em duas comissões: a 
de feira e a cultural. As reuniões para socialização dos encaminha-
mentos e para organização seriam semanais. A equipe do projeto 
se dividiu para apoiar as comissões, a professora e a psicóloga do 
CCO compuseram as duas comissões, os alunos de direito ficaram 
na comissão cultural e a aluna de psicologia na comissão de feira. Os 
usuários se dividiram conforme afinidade às comissões, os artesãos 
ficaram na comissão de feira e aqueles que tinham alguma atividade 
ligada às artes compuseram a comissão cultural. Alguns decidiram 
contribuir com ambas as comissões, compondo uma média de 10 
participantes cada. 
Foi consensuado que as decisões seriam escritas em uma ata, 
pelos usuários, com ajuda dos extensionistas, no intuito de que aos 
poucos todos pudessem se apropriar desta tarefa, que até aquele 
momento ficava restrita à psicóloga do CCO. No total foram realiza-
dos 10 encontros semanais. Com autorização do grupo as reuniões 
foram audiogravadas e, ainda, foram feitos registros fotográficos e 
alguns vídeos. Esta atribuição a princípio ficou com a equipe de 
extensionistas, mais tarde criou-se uma dupla de registro, composta 
por um estudante e um usuário. 
A cada encontro eram discutidos aspectos gerais da organi-
zação do evento em homenagem à luta antimanicomial, buscando 
implicar a todos, entrelaçando às questões logísticas o exercício de 
práticas coletivas, decisões compartilhadas e responsabilização do 
coletivo sobre o processo e seus desdobramentos. Além disso, du-
rante a vivência conjunta surgiam discussões políticas acerca dos 
sentidos da luta antimanicomial entremeados à realidade local da 
RAPS e ao tema em uma esfera ampliada, conectando o esforço 
coletivo a uma luta maior. Os extensionistas ofereciam apoio às co-
220 
tidianidades aos demais participantes do coletivo e desses encontros 
surgiram alguns projetos individuais. 
Ao longo do trabalho mais alunos foram aderindo à proposta 
de intervenção, na medida em que outras frentes emergiam no de-
senrolar do processo48. Os estudantes tinham supervisões semanais, 
com momentos de estudo sobre o tema do ciclo, por meio de textos, 
documentários e discussões. Muitas questões surgiram neste proces-
so, a equipe de alunos demonstrava muita dificuldade em compreen-
der a diferença entre o Centro de Convivência (CCO), equipamento 
que compõe a RAPS do município, e a Associação de usuários. Ou-
tra dificuldade que surgiu foi definir quem compunha a Associação 
e quem estava ali como usuário do Centro de Convivência. 
Aos poucos se percebeu que as dúvidas da equipe também 
eram dúvidas dos frequentadores do CCO e foram, paulatinamente, 
sendo desfeitas no processo de trocas e definição de papéis. Como 
os estudantes não tinham memória do que ocorria naquele espaço 
antes da intervenção comunitária, também lhes faltava um roteiro 
do que se passava ali, desta forma, para os discentes, a presença da 
equipe parecia estruturar as atividades do CCO, na medida em que 
o projeto ganhou adesão e os usuários se empenhavam na realização 
daquele projeto comum mesmo no restante da semana quando a 
equipe de apoio não estava presente. Ao final de cada reunião eram 
confeccionados cartazes com as deliberações do coletivo, as agen-
das da semana, os prazos, responsáveis e atribuições. Os cartazes 
serviam também para compartilhar e relembrar as decisões tomadas 
pelo coletivo e envolver aqueles que porventura se ausentassem. 
A inquietude gerada pela falta de um roteiro prévio do que 
fazer e como fazer, gerou certa ansiedade nos alunos, que buscavam 
48 Ao final o coletivo foi composto por duas professoras do curso de psicologia, dois alunos 
do curso de direito, cinco alunos do curso de psicologia, uma aluna da educação física, uma 
psicóloga da RAPS, vinte e um associados da Conviver, doze usuários do Caps de Jataí. Além 
do apoio de um professor de dança da cidade que contribuiu com um dos subprojetos que 
surgiu dentro do projeto coletivo.
221 
em seus imaginários como deveria ser a postura de um profissional 
da psicologia naquele cenário pouco convencional. Cabe aqui pon-
tuar que tanto os alunos de psicologia quanto aqueles do direito 
estavam no quarto período de seus cursos, sem experiência anterior 
de estágio ou extensão. No que diz respeito a supervisão dos alunos, 
optou-se por trazer a teoria conforme as questões fossem emergin-
do das vivências práticas, com a finalidade de mesclar teoria e prá-
tica, buscando reflexões a partir do que foi vivenciado no encontro 
com os usuários. Essa estratégia visou uma maior espontaneidade 
no encontro com os usuários, evitando reforçar o lugar de especia-
lista associado à academia. 
Apesar deste esforço, o fato da intervenção ter sido desen-
volvida em parceria com um grupo constituído por pessoas com 
transtornos mentais produziu um efeito no discurso dos discentes 
que mesclava medo e curiosidade. Para lidar com esse imaginário, 
optou-se concentrar o trabalho junto aos sujeitos e não em seus 
diagnósticos, estimulando os alunos a estarem inteiramente com as 
pessoas, evitando psicologizar e/ou medicalizar as relações.
Uma das questões que mais chamou atenção durante o pro-
cesso foi a dificuldade em definir qual o papel do profissional de 
psicologia naquelas intervenções. No caso dos estudantes de direito 
um esforço grande em atuar como psicólogos, muitas vezes deixan-
do emergir seus estereótipos acerca da profissão, frequentemente 
baseados numa performance clínica. Com o desenrolar do processo 
essa dificuldade tanto dos alunos do direito quanto da psicologia 
foi tomando forma de potência, na busca por uma resposta ao que 
concerniriam seus respectivos papéis naquele contexto. 
A proposta de vivenciar um projeto comum, com início, meio 
e fim auxiliou a mediar a ansiedade por resultados, a cada reunião fa-
zia-se necessário retomar objetivos, datas e prazos, buscando trazer 
de forma concreta a temporalidade do processo, conforme exem-
plificado anteriormente com os cartazes. Essa estratégia contribuiu 
222 
também para lidar com certa resistência por parte de alguns usuá-
rios em responsabilizar-se pelo processo. Observou-se que parte 
significativa dos usuários mantinha uma vida circunscrita aos equi-
pamentos e dispositivos oferecidos pela RAPS. Ademais, notou-se 
que mesmo aqueles que atuavam de forma mais autônoma fora da 
RAPS, naquele ambiente reproduziam uma lógica tutelar que persis-
te e se assenta nos processos de institucionalização e medicalização 
manifestos na relação estabelecida com os profissionais da rede e 
que insistia em se estabelecer na relação com a equipe de professo-
ras e extensionistas.
Pressupostos de sustentação ou posicionamento 
ético-político
Para se tornar efetivo, o trabalho da equipe do InterAções foi 
aos poucos se tornando coadjuvante, em alguns momentos chegou 
a ser totalmente diluído, num recuo decisivo para que os usuários 
emergissem em outro lugar social senão aquele marcado por rela-
ções de tutela. Este fenômeno não foi linear, teve idas e vindas, en-
contrando sustentação na resistência da equipe em ocupar um lugar 
de protagonista desse processo. Resistir ao lugar de especialista e 
buscar formas de estabelecer relações horizontais, em contraposi-
ção às relações tutelares, foi tema que ocupou boa parte das super-
visões e que demandou uma atenção da equipe do InterAções que 
punha à disposição uma escuta acolhedora, mas vigilante e refratária 
à uma posição provedora e sem brechas, que impediria a emergência 
daqueles sujeitos, de seus desejos e de possíveis invenções criativas. 
Contudo, para que esta posição se sustentasse foi necessário 
seguir os passos de Basaglia no exercício de colocar entre parênte-
ses a doença e focar nos sujeitos, acolhendo seu sofrimento, seus(e 
nossos) dilemas, sem ignorar ou romantizar a loucura. Constatou-se 
na prática cotidiana o que Campos (2014) previa como desdobra-
223 
mento desse exercício, aos poucos o olhar da equipe não foi dei-
xando de ser somente técnico, mas também foi deixando de ter um 
apelo clínico. O objeto do trabalho passou a ser o sujeito, “a ênfase 
é posta no processo de ‘invenção da saúde’ e de ‘reprodução social 
do paciente’” (op cit). 
O convívio cotidiano com os usuários demandou das pessoas 
que compunham a equipe lidar com a loucura a partir de uma posição 
que afirmava a diversidade subjetiva e de processos de subjetivação 
em contrapartida a uma visão aniquiladora e supressora daquilo que 
parecia estranho, não dialogável ou até mesmo incompreensível. Nas 
supervisões o acolhimento dos alunos e o incentivo do exercício do 
acolhimento pelos alunos contribuiu de forma significativa com o tra-
balho, precipitando a escuta e o diálogo entre os participantes.
Essa posição se sustentou também como estratégia para lidar 
com o potencial de contratualidade, ou seja, o potencial de estabe-
lecer trocas de bens, mensagens e/ou afetos (TYKANORI, 2001) 
que, no caso das pessoas em sofrimento psíquico, foi prejudicado 
pela doença mental, pelos efeitos colaterais produzidos pelo uso 
contínuo de psicotrópicos, pela medicalização, pelo estigma de 
doente mental, pelo processo de institucionalização, pelo isolamen-
to e, muitas vezes, pelas sucessivas vivências de violência. Este é um 
elemento importante que deve ser considerado ao aplicar a meto-
dologia participativa como fio que conduz esse processo e como 
norte das intervenções. Nestas condições, para por em prática essa 
metodologia foi preciso admitir a desigualdade nas relações e po-
tenciais de contratualidade entre os sujeitos para que se pudessem 
tecer formas de balancear esta diferença no esforço de enfrentar 
essa problemática não como uma sentença, mas como um desafio a 
ser transposto coletivamente. 
Uma das estratégias de atenção psicossocial que foi se consti-
tuindo ao longo do processo foi o “fazer junto”, buscando oferecer 
apoio aos usuários, por vezes secretariando-os, outras apenas teste-
224 
munhando seus processos individuais e/ou coletivos. Esta posição 
visou ainda reconstruir valores, aumentar o poder contratual dos 
usuários e por o próprio poder contratual dos membros da equi-
pe à disposição. Esse poder contratual aumenta na medida em que 
também aumenta o nível de dependência desses usuários das intera-
ções cotidianas, consequentemente, nesta perspectiva, quanto maior 
a dependência dessas interações maior a autonomia desses sujeitos. 
Assim, os graus de autonomia e contratualidade respondem às redes 
de relações tecidas pelos sujeitos em seu dia-a-dia, nas trocas coti-
dianas, ampliando as possibilidades de estabelecerem novas normas 
e ordenamentos para suas vidas (TYKANORI, 2001). 
Para exemplificar a diluição da presença da equipe cabe pon-
tuar que algumas atividades que ao entrar em campo seriam atri-
buições do InterAções passaram aos poucos a serem assumidas 
pelos usuários. O registro audiovisual do processo de intervenção 
foi uma dessas atividades e teve como produto uma das três expo-
sições do evento, que foi intitulada “bastidores”. Outro exemplo 
foram as idas à prefeitura para buscar apoio para a realização das 
atividades, quando estudantes ofereceram seu poder contratual 
acompanhando membros da associação neste processo de trocas 
com os gestores do município. 
Outro ponto que pode ser considerado efeito da posição da 
equipe frente ao apelo à tutela foi a emergência de projetos pes-
soais, em especial produções artísticas, de usuários, extensionistas e 
professoras. Um desses projetos envolveu um aluno de psicologia e 
um usuário, ambos desenhistas. Apesar dos desenhos dos dois tra-
zerem temáticas e técnicas diversas, a relação estabelecida por cada 
um com suas produções dialogava, visto que a liberdade em criar 
do usuário contrastava com a busca por perfeição do extensionista. 
Os dois começaram a estabelecer vínculos a partir dos seus proces-
sos e suas identidades artísticas. Com o auxílio do extensionista, o 
usuário começou a produzir suas obras de forma mais sistemática e 
225 
a investir em material para sua produção. Em contrapartida, com a 
ajuda do usuário, o extensionista conseguiu relatar de forma textual 
sua identidade como artista. Ao final do processo o coletivo orga-
nizou uma exposição que conjugou obras de ambos e fragmentos 
de contos e poesias de uma das usuárias que compunha o grupo. 
Durante a semana da luta os três artistas foram convidados a expor 
no Museu de Arte Contemporânea da cidade, o que se concretizou 
no mês seguinte ao evento. 
Estes projetos individuais ou em pequenos grupos dentro do 
coletivo se sustentaram na compreensão dialética entre as noções 
de sujeito e coletivo, ou seja, de que ambos são entes relacionais. 
Essa compreensão permitiu também problematizar a necessidade 
de predominância do coletivo sobre o sujeito ou do sujeito sobre o 
coletivo, de que um deles deva se submeter ao outro. No processo 
de trabalho as singularidades estavam postas, mobilizadas por um 
compromisso comum que valorizava a produção coletiva, mas tam-
bém as idiossincrasias de cada sujeito, seus desejos e pessoalidades. 
No que diz respeito à atribuição de valor à produção, é preci-
so atentar para algumas especificidades no caso de pessoas estigma-
tizadas pela doença mental. Para tanto é preciso retomar a parte da 
discussão introduzida anteriormente. No campo social as trocas se 
dão a partir de um valor previamente atribuído para cada sujeito, que 
confere o poder contratual individual ou grupo social, a partir de tro-
cas de bens, mensagens e afetos (TYKANORI, 2001). Ao receber 
o estereótipo de doente mental, a pessoa em sofrimento psíquico é 
submetida simultaneamente à negatividade deste atributo, que inva-
lida ou torna negativo seu poder de contrato, ou seja, de possíveis 
trocas sociais. Neste processo, o que é produzido por essas pessoas 
torna-se suspeito, sem qualidade e, em certas vezes, é visto como 
perigoso. Sua fala passa a não ser digna de escuta, suas mensagens 
passam a ser incompreensíveis, sem sentido, vazias de racionalidade 
e os afetos são tomados como desnaturados. Por isso, a reinserção 
226 
social de pessoas acometidas pelo estigma da doença mental implica 
necessariamente um problema de “produção de valor” (op cit, p.55). 
Neste sentido, secretariar e testemunhar os processos psicos-
sociais daqueles sujeitos, colocando à disposição o poder contratual 
da equipe, foi também uma estratégia de lidar com a produção de 
valor relacionada aos usuários. Outro elemento que também contri-
buiu com esta questão foi a opção do coletivo em investir em ações 
de intervenção na cultura. Essas intervenções na cultura tiveram um 
resultado ainda mais efetivo na medida em que foram assumidos 
pelos usuários como, por exemplo, a gestão da feira e da venda dos 
quitutes, a oficina de tapeçaria, a participação nas rodas de conver-
sa, a apresentação teatral e a musical, a monitoria das exposições, 
a decisão do que fazer com o dinheiro proveniente das vendas no 
evento, e, por fim, a organização do evento que encerrou a parceria 
entre a associação e o InterAções naquele ciclo. Essa apropriação do 
processo por parte dos usuários foi determinante para o sucesso do 
ciclo em sua totalidade. 
Considerações finais
Para concluir, cabe tecer algumas considerações, sendo, a pri-
meira delas, a metodologia utilizada e seus fundamentos: a cons-
trução de uma proposta conjunta e um projeto coletivo permitiu 
tecer de forma dialógica a intervenção comunitária. A cada passo o 
método foi se desenhando, tendo como referência os princípios da 
Psicologia Social Comunitária e a metodologia participativa. 
Como efeito, o posicionamento ético-político da equipe na 
relação com a comunidade foi se constituindo no processo de des-
construção da identidadede especialista, aquele que traria soluções 
e respostas já prontas, preliminares ao encontro. Ao declinar do 
lugar de especialista, a equipe permitiu-se coadjuvante, no esfor-
ço de contribuir para que os usuários do CCO emergissem como 
227 
protagonistas e se apropriassem de uma possibilidade coletiva. Este 
posicionamento ético-político demanda cuidado, numa atenção que 
flutua entre cidadania/direitos e escuta/acolhimento. Esse cuidado 
diz respeito também aos anseios e apreensões advindas desse posi-
cionamento, que requer da supervisão não só a leitura teórica dos 
fenômenos, mas também um espaço de escuta e acolhimento da 
equipe de intervenção. 
O processo de intervenção comunitária também se configura 
como processo formativo na medida em que a partir da interação 
entre discentes, docentes e comunidade local emergem questões re-
lacionadas ao imaginário acerca da psicologia como profissão. Na 
prática participativa a autoria compartilhada do trabalho também 
questiona uma atuação prescritiva e medicalizante. No que diz res-
peito à Psicologia Social Comunitária, Freitas em 1998, já pontuava 
esta questão ao colocar os dilemas do psicólogo na prática comuni-
tária. A autora alertava o perigo do conforto em levar ao campo os 
objetivos definidos a priori, prevenindo qualquer questionamento 
ao saber psicológico, evitando colocar em risco a identidade de psi-
cólogo e de produtor de conhecimento.
Nesta experiência de parceria com a Associação Conviver, o 
InterAções teve a oportunidade de compreender, que sua definição 
metodológica conjuga em sua atuação a ética e a política: a ética por 
meio da escuta e do acolhimento, e a política no compromisso social 
estabelecido com a comunidade. Neste sentido, o projeto contribui 
com a formação de profissionais mais engajados e implicados, na 
medida em que a tomada de consciência política sustenta seu incô-
modo frente às injustiças, desigualdades e cerceamento de direitos, 
definindo os processos psicossociais como seu campo de interes-
se e atuação por excelência. Analisando a experiência da equipe do 
InterAções, observa-se que o profissional de psicologia que traba-
lha com comunidades reúne nesta prática: o pesquisador, que tem 
a curiosidade e busca identificar e sistematizar os saberes que estão 
228 
sendo trocados; o secretário, que está para apoiar o processo do ou-
tro; e a testemunha, que está presente de forma ausente. Essas três 
dimensões permitiram a tessitura cotidiana de uma práxis norteada 
pelo desejo compartilhado do fazer coletivo. 
Antes de concluir, cabe retomar a questão que surgiu no pri-
meiro encontro com a RAPS “de quem era o desejo?”, a resposta 
adiada, posta em suspenso, permitiu que o desejo de um tomasse 
outros contornos quando encontrou o desejo dos outros. 
REFERÊNCIAS
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Editora Fiocruz, 2008.
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Hucitec, 2014.
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pela Reforma, gravado em 2009, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.
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na Helena de Freitas. GUARESCHI, Pedrinho A. (org.) Paradigmas em 
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11, n. 1, p. 175-189, 1998.
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A. Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo: HUCITEC, 2001.
PITTA A. Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo: HUCITEC, 
2001.
CAPÍTULO XI
Intervenções psicossociais junto 
às mulheres em situação de 
violência a partir da Psicologia 
sócio-histórica
Tatiana Machiavelli Carmo Souza
Shara Freitas de Sá 
Marcelo Marques Assis
Rayane Silva Marques
RESUMO
A violência contra mulheres é fenômeno social oriundo das 
assimetrias nas relações de poder, classe e raça entre homens e mu-
lheres, bem como nos papéis atribuídos socialmente. Nessa direção, 
o presente trabalho busca problematizar o atendimento psicossocial 
realizado junto às mulheres em situação de violência em um Juiza-
do de Violência Doméstica e Familiar, no centro-oeste brasileiro, 
232 
a partir da Psicologia Sócio-histórica. Nessa perspectiva, a pessoa 
é compreendida como fruto da (re)produção social e histórica e é 
ativa frente a realidade. Por meio de sua ação, expressa, transforma 
e modifica o contexto social, em constante relação dialética. Nessa 
conjuntura, as intervenções com mulheres em situação de violên-
cia podem permitir que elas reconheçam seu papel ativo na rela-
ção violenta e consigam potencializar-se – por meio da relação da 
apropriação que fazem de si mesmas, de suas histórias de vida e dos 
fatores sociais, culturais, políticos e econômicos – para enfrentá-la. 
As intervenções podem possibilitar, também, que as mulheres sejam 
inseridas em redes de apoio social e de proteção dos direitos. Por 
fim, destaca-se a ação posicionada das/os profissionais de psicolo-
gia a favor da denúncia e da proteção das mulheres, rompendo com 
qualquer perspectiva de neutralidade.
Palavras-chave: Gênero. Violência contra mulheres. 
Psicologia sócio-histórica.
INTRODUÇÃO
A violência contra mulheres, como expressão da desigualdade 
de gênero na sociedade, tem sido considerada objeto de estudo e 
intervenção da Psicologia. As políticas públicas delineadas no Brasil, 
como a Lei Maria da Penha, têm possibilitado o desenvolvimento de 
múltiplas intervenções, especialmente, no contexto dos Juizados de 
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM).
As práticas psicológicas, contudo, ainda são diversas e tem 
privilegiado o modelo clínico-médico. Partindo dos pressupostos 
teórico-metodológicos da Psicologia sócio-histórica (BOCK, 2003; 
MOLON, 2003; VYGOTSKY, 1999; SAWAIA, 2014) e discutin-
do os conceitos de gênero (SAFFIOTI, 1999, 2004; SCOTT, 1995; 
BUTLER, 2003) e violência contra mulheres (BRASIL, 2006), esse 
233 
texto apresenta um relato de experiência49 sobre a atuação de estu-
dantes de psicologia em uma equipe multidisciplinar de um juizado 
no interior goiano. 
Busca-se delinear a constituição desse grupo de trabalho, por 
meio da parceria entre Tribunal de Justiça do Estado de Goiás e 
Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí e o desenvolvimen-
to de intervenções psicossociais junto às mulheres em situação de 
violência, ressaltando os elementos que compõem os atendimentos. 
Sobre os conceitos de gênero e violência contra mulheres
A violência contra mulheres pode ser concebida como um 
fenômeno social, histórico e cultural, cujas origens se aproximam 
das assimetrias nas relações de gênero, poder, raça/etnia, classe so-
cial, entre outros determinantes, principalmente no que tangem aos 
papéis atribuídos social e culturalmente. O termo “violência contra 
mulheres” trata-se de um grande leque que tangencia diferentes mo-
dalidades deviolências usualmente empreendidas contra as mulhe-
res, como o assédio sexual, a violência obstétrica, o assédio moral, o 
cárcere privado, a cyberviolência, entre outras. Dentre as possíveis 
manifestações de violência enfrentadas pelas mulheres, nesse texto, 
ressaltaremos a violência de gênero e a violência doméstica.
A violência de gênero abrange tanto a violência que ocor-
re entre homens, entre mulheres, de homens contra mulheres e 
de mulheres contra homens, oriundas das organizações sociais de 
gênero que privilegiam o masculino em detrimento dos outros. A 
violência doméstica, por sua vez, ocorre em uma relação, cujo local 
predominante de manifestação é o domicílio e pode envolver não 
49 As práticas apresentadas nesse manuscrito estão vinculadas ao Projeto de Extensão Uni-
versitária “Práticas em Educação, Gêneros, Sexualidades e Subjetividades – PEGSS”, apro-
vado em 2016 pela Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí. O relato trata-se de um 
recorte do projeto denominado “Violência dói e não é direito: a psicologia no enfrentamen-
to às violências contra mulheres”.
234 
apenas cônjuges, mas também pessoas que estejam intimamente li-
gadas àquele contexto e ao autor da violência (SAFFIOTI, 2004). 
Nota-se, portanto, que a violência doméstica pode ser considerada 
uma modalidade da violência de gênero, porém sua manifestação se 
restringe apenas ao ambiente doméstico e o contexto intrafamiliar 
(BRASIL, 2006), enquanto a outra abrange as inúmeras possibilida-
des de interação do ser humano.
Uma das vias possíveis para se compreender a violência con-
tra mulheres é através das teorias de gênero. Para tanto, torna-se de 
suma importância retomarmos essas formulações teóricas, a fim de 
apreender as diferenças persistentes entre homens e mulheres, en-
quanto sujeitos históricos, cujas relações são reguladas pelos dispo-
sitivos de poder socialmente instituídos e que ocupam papel central 
na manutenção das desigualdades entre os gêneros.
O surgimento do conceito de gênero e seus desdobramen-
tos estão intimamente relacionados às reivindicações das feministas 
contemporâneas que, desde meados dos anos de 1960-1970, bus-
cam enfatizar a incapacidade das teorias para explicar as desigual-
dades existentes entre homens e mulheres (SCOTT, 1995). Cabe 
ressaltar que, em 1968, Robert Stoller deu início aos estudos e foi 
o primeiro pesquisador a conceituar gênero, porém seus trabalhos 
não prosperaram. Apenas a partir de 1975, com as contribuições 
da antropóloga estadunidense Gayle Rubin, os estudos de gênero 
ganharam novos contornos (SAFFIOTI, 2004).
Para Rubin (1975), o gênero é uma norma que institui e natura-
liza as desigualdades entre homens e mulheres, agindo como elemen-
to de um sistema - aqui referindo-se ao sistema sexo/gênero - que 
institui um conjunto de normas sociais, pautadas na sexualidade bio-
lógica, através das quais uma sociedade determina as regras de divisão 
de gênero que coagem os comportamentos masculinos e femininos.
Como uma tentativa de superar o foco singular do sistema 
sexo/gênero, Joan Scott propõe o conceito de gênero enquanto 
235 
uma construção social, constitutiva das relações sociais, baseadas 
nas diferenças percebidas entre os sexos. Estas, por sua vez, não 
determinam o gênero, mas as formas como elas são apresentadas e 
representadas socialmente e como se esperam que sejam manifes-
tadas de acordo com os símbolos culturais e conceitos normativos 
que evidenciam suas interpretações (SCOTT, 1995; LOURO, 1997; 
NICHOLSON, 2000).
Novas formulações acerca do conceito de gênero surgiram 
como uma tentativa de superar quaisquer naturalizações referentes 
à noção de diferença sexual, tecendo críticas às diferenças biológi-
cas e anatômicas como mantenedoras das desigualdades entre ho-
mens e mulheres. Desta forma, as teorias contemporâneas buscam 
se distanciar das noções anteriormente abordadas, como uma forma 
de superar os determinismos de gênero. Entre estas teorias, encon-
tram-se os postulados da filósofa Judith Butler (2003). 
Para Butler (2003), os gêneros não são um dado oriundo da 
realidade, mas sim, resultado do processo de estilização repetida do 
corpo, que pode ser tanto intencional quanto performativo. Este ato 
sugere uma construção dramática e contingente de sentidos, cujas 
categorias não se encontram presentes em todas as pessoas, já que 
não há nenhuma essência em que o gênero se expresse ou exteriori-
ze, ou um ideal objetivo ao qual aspire. O ato performativo não deve 
ser concebido como identidade estável, mas tenuamente constituído 
no tempo, instituído em um espaço externo por meio de uma repe-
tição estilizada de seus atos. Nesse sentido, há várias formas de se 
apropriar do próprio corpo e de se relacionar com outros corpos.
A partir deste breve exposto, o gênero é aqui compreendido, 
enquanto categoria analítica e histórica, como uma construção so-
cial das possibilidades de ser homem e mulher, de vivenciar mascu-
linidades e feminilidades, oriundos do contexto histórico, cultural, 
político, econômico, no qual as pessoas estão inseridas e do qual 
emergem as relações sociais normatizadoras de diferenças e opres-
236 
sões, em que são estabelecidas aproximações com outras categorias 
como raça/etnia, classe social, sexualidade, etc. 
Desta forma, Saffioti (s.d.) ressalta a importância em se con-
ceber o gênero a partir da relação existente entre sujeitos historica-
mente situados e como um regulador que normatiza as relações ho-
mem-mulher, homem-homem e mulher-mulher50. Destas relações, 
o fenômeno da violência contra mulheres pode ser considerado 
como produto do gênero.
O que diferencia os padrões de relações de gênero do que 
promove a “normatização” da violência são as práticas legitimado-
ras de violência, que emergem dos contextos culturais em que a 
dominação do homem sobre a mulher se faz presente, e são sempre 
reafirmadas nas interações sociais. Práticas estas, características de 
sociedades patriarcais, as quais perpetuam um regime de dominação 
e exploração das mulheres pelos homens. Nesse aspecto, partindo 
de Saffioti (1999, 2004), existe um encorajamento do contexto so-
cial para que os homens, desde a mais tenra idade, exerçam sua do-
minação contra as mulheres, congregando a eles a força e a potência 
reguladora da sociedade e a elas a sensibilidade e passividade diante 
as situações sociais. É importante enfatizar que essas práticas, con-
sentidas socialmente, não prejudicam apenas as mulheres, mas a eles 
próprios, mesmo com certos “privilégios”.
As organizações sociais de gênero que privilegiam o mas-
culino são produtoras de violência contra mulheres, assim como 
contra outras formas de minorias de gênero (transgêneros não bi-
50 É importante ressaltar que apropriar-se dos gêneros apenas em sua manifestação de ho-
mem e mulher, masculino e feminino, podem atuar como mecanismos mantenedores de 
discursos que naturalizam e reificam estas categorias. Como aponta Butler (2003), a insis-
tência no binarismo homem-mulher, como via exclusiva para entender esse campo teórico, 
atua como meio para efetivar as operações reguladoras de poder, visto que naturaliza uma 
instância como hegemônica e exclui as possiblidades de ruptura dessas hegemonias. Desta 
forma, ressalta-se a importância em problematizar os binarismos de gênero, porém, es-
ses elementos não serão discutidos nesse texto já que será priorizado o debate acerca da 
violência contra a mulher, partindo das relações de opressão do homem contra a mulher, 
como reguladores das manifestações desta violência.
237 
nários, drag queens, crossdressers, travestis, transexuais, queers, entre ou-
tras performances de gênero), raça/etnia, classe social, orientação 
(homossexuais, bissexuais, pansexuais, etc.) e práticas sexuais, 
entre outras manifestações sociais e culturais não normativas, cujas 
desigualdades são construídas diariamente.
Na situação da violência doméstica, aponta Saffioti (2004), o 
próprio gênero revela a ação normativa:

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