Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.

Prévia do material em texto

Vastas confusões 
atendimentos imperfeitos 
Ana Cristina Figueiredo 
Vastas confusões e 
atendimentos imperfeitos 
A CLÍNICA PSICANALÍTICA 
NO AMBULATÓRIO PÚBLICO 
3 3 E D I Ç Ã O 
© Copyright Ana Cristina Figueiredo, 1997 
Direitos cedidos para esta edição à 
DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA. 
www.relumedumara.com.br 
Travessa Juraci, 37 — Penha Circular 
CEP 21020-220 — Rio de Janeiro, RJ 
Tel.: (21) 2564-6869 — Fax: (21) 2590-0135 
E-mail : relume @ relumedumara. com.br 
Revisão 
Rosa do Prado 
Editoração 
Carlos Alberto Herszterg 
Capa 
Gustavo Meyer 
Desenho de Lula 
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. 
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. 
Figueiredo, Ana Cristina 
F488v Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicana-
lítica no ambulatório público / Ana Cristina Figueiredo. — Rio de 
Janeiro: Relume-Dumará, 1997 
Inclui bibliografia 
ISBN 85-7316-128-0 
1. Psicanálise. 2. Assistência em hospitais públicos. I. Título. 
CDD 616.8917 
97-1389 CDU 159.964.2 
Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, 
por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da lei 5.988. 
http://www.relumedumara.com.br
http://com.br
A meu pai 
que me deixou 
vontade de ensinar 
e o amor pela 
universidade 
Sumário 
Ao Leitor 9 
/ O que é feito da psicanálise 13 
1. A polêmica da psicanálise 13 
2. O campo psicanalítico em questão 17 
3. A psicanálise no ambulatór io: um novo contexto? 30 
/ / Interrogando o ambulatório 35 
1. Sobre a pesquisa: uma part icipação observante 35 
2. Sobre os serviços 41 
2.1 Recepção, triagem c encaminhamento 42 
2.2 The dream team: o trabalho em equipe 57 
2.3 O tratamento: terapias e pedagogias 65 
2.4 O jogo de três PPPês: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas 85 
3. Duas ou três questões para a psicanálise no ambulatório 97 
3.1 Dinheiro, pra que dinheiro 97 
3.2 Deitando o olhar sobre o divã 108 
3.3 Que tempo para tratar? 115 
/ / / Por uma psicanálise possível 123 
1. Evocando a "bruxa metapsicologia" 123 
1.1 Sobre a realidade psíquica 126 
1.2 Sobre a transferencia 137 
1.3 Sobre interpretação, temporalidade e cura 149 
1.4 Sobre o desejo do analista 162 
2. Para concluir: o psicanalista que convém 168 
Bibliografia 179 
Ao Leitor 
A proposta de tratar da clínica psicanalítica no ambulatório público, que 
resultou em uma tese de doutoramento, é fruto do trabalho desenvolvido 
no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 
que congrega as atividades de ensino, pesquisa e assistência. Minha 
atuação como docente tem se pautado na formação de profissionais que 
se propõem a desenvolver um trabalho clínico referido à psicanálise 
voltado para o atendimento ambulatorial em instituições públicas de 
saúde. Minha função é transmitir os fundamentos teóricos da psicanálise 
e acompanhar o cotidiano desse trabalho clínico realizado pelos alunos, 
prioritariamente no ambulatório, podendo ser estendido para outros se-
tores, como as enfermarias e o hospital-dia. 
A idéia de desenvolver uma pesquisa junto aos profissionais — psica-
nalistas, psicólogos e psiquiatras, vinculados à rede pública de saúde — 
'teve como objetivo ampliar o leque de informações sobre as possibilida-
des e limites do exercício da psicanálise fora dos consultórios privados. 
De posse de um material heterogêneo sobre a estrutura e o funciona-
mento dos serviços, sobre o perfil dos profissionais e seu trabalho clíni-
co, pude equacionar as diferenças. Apresento relatos de experiências e 
de casos clínicos como exemplares — no duplo sentido de amostra e 
paradigma — da complexidade da clínica, de seus impasses e soluções 
em relação às possibilidades do trabalho psicanalítico. 
Minha proposta, no entanto, não se esgota em descrever e analisar as 
diferentes situações clínicas mais ou menos características do trabalho 
psicanalítico. Antes, descrevo para prescrever e prescrevo descrevendo. 
Meu trabalho é, a um só tempo, descritivo e prescritivo. Desse modo, 
10 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
articulo a pesquisa com o ensino, sabedora de que a transmissão da 
psicanálise não se reduz a seu ensino. O que prescrevo é um modo de 
conceber a especificidade da psicanálise e da função do psicanalista, para 
que se possa identificá-la e praticá-la a partir do percurso da cada um, 
situando-a frente às demais modalidades do conjunto de psiquiatria, a 
saber: a psiquiatria médica, as psicoterapias e as práticas em saúde mental. 
Tomo a psiquiatria como um conjunto, porque entendo que ela deve 
comportar essas práticas distintas, incluindo a psicanálise como um de 
seus componentes. Em princípio, a psicanálise está incluída na categoria 
das psicoterapias. Mas é importante que se estabeleça sua diferença para 
não diluí-la ou mesclá-la com variações que descaracterizem sua especi-
ficidade. Assim, a questão não é recusar à psicanálise seu estatuto de 
psicoterapia, e sim diferenciá-la das demais psicoterapias. Entretanto, 
considero que não é imprescindível instituir a psicanálise como mais 
uma especialidade na lista de ofertas dos serviços. 
Primeiro, porque a clínica psicanalítica é praticada por profissionais 
com diferentes designações como psicólogos, psiquiatras e outros. Ao 
instituí-la, é como se só aqueles designados como psicanalistas pudes-
sem praticá-la. Quem designaria? Segundo, porque, além de não dizer 
quase nada sobre seus procedimentos, cria expectativas e idealizações 
que, na melhor das hipóteses, decepcionam e, na pior, aumentam a 
resistência tanto de outros profissionais quanto da clientela. Uma certa 
atopia, um estar 'à sombra', pode ser salutar como lugar para o psicana-
lista no trabalho institucional. Acredito que, ao longo do texto, minha 
posição se explicitará melhor. 
Outro ponto a ser discutido é a escolha do ambulatório como local 
para o desenvolvimento da pesquisa. Todos os profissionais pesquisados 
desenvolvem seu trabalho nos ambulatórios. Há alguns casos em que 
trabalham também em enfermarias, na psiquiatria ou no hospital geral, 
ou nas chamadas estruturas intermediárias na psiquiatria — hospitais-dia 
e centros de atenção psicossocial. O ambulatório é, sem dúvida, o local 
privilegiado para a prática da psicanálise porque faculta o ir-e-vir, man-
tém uma certa regularidade no atendimento pela marcação das consultas, 
preserva um certo sigilo e propicia uma certa autonomia de trabalho para 
o profissional. 
Uma das críticas feitas freqüentemente ao ambulatório, especialmen-
te pelos ideólogos da saúde mental, é que sua estrutura e modo de 
funcionamento são análogos aos do consultório, como se esta prática, 
com seu caráter privado, fosse indevidamente transposta para o serviço 
Ao Leitor I 11 
público. Penso justamente ao contrário. O ambulatório não é um simu-
lacro do consultório; é o próprio consultório tornado público. Nesse 
sentido, o termo público adquire uma significação ampla. Primeiro, para 
designar a rede estatal de serviços que oferece atendimento gratuito à 
população na área da saúde, o serviço público. Segundo, como facultado 
ao público em geral, qualquer pessoa tem o direito de ser atendida. 
Terceiro, e mais importante, é a idéia de tornar público, visível, e deixar 
transparecer o trabalho clínico por oposição ao termo privado como 
privativo de alguém. Por mais privatizado que seja o funcionamento de 
um ambulatório, o volume de pessoas que circulam, as formas de registro 
e as várias relações aí estabelecidas tornam sua marca de público inapa-
gável. Devemos nos beneficiar disto tornando-o mais público. 
Se a clínica psicanalítica requer uma certa intimidade, discrição e 
sigilo, isto não quer dizer que sua prática deva se perder no intransmis-
sível. O tornar público a que me refiro, no que diz respeito à psicanálise, 
é fazer circular, entre os pares e profissionais afins, o cotidiano da clínica 
com seus impasses e sucessos. É também produzir trabalhos, estudos de 
casos e pesquisaspara redimensionar o alcance da teoria em relação à 
experiência clínica, que traz desafios de todo tipo. O meio universitário 
é bem propício, assim como as associações dc psicanalistas. 
Definido o objetivo do trabalho, passo à apresentação do seu conteúdo. 
O primeiro capítulo — "O que é feito da psicanálise" — apresenta 
uma breve discussão sobre a difusão da psicanálise, e, ao enfocar o 
ambulatório, discute os obstáculos à psicanálise, por um lado, em relação 
à clientela e, por outro, em relação às outras práticas na psiquiatria. Em 
seguida, apresenta a heterogeneidade do campo psicanalítico como pro-
blemática para sua definição. Na última parte, discute a psicanálise no 
contexto do ambulatório, propondo uma redefinição do termo 'contexto'. 
Nesse ponto, recorro às concepções de contexto e recontextualização 
propostas por Richard Rorty e Jacques Derrida para desfazer equívocos. 
O que devemos deduzir é que não há duas psicanálises, uma para o 
consultório e outra para o ambulatório. Minha referência primordial é 
Freud, considerando que a psicanálise não pode ser dissociada do seu 
fundador. Também recorro à leitura de Lacan e às suas contribuições 
conceituais para resolver impasses deixados por Freud, abrindo novas 
possibilidades de recontextualização da psicanálise no próprio campo da 
teoria com ênfase na função do analista. 
O segundo capítulo — "Interrogando o ambulatório" — apresenta a 
pesquisa sobre o ambulatório, recortando as principais etapas do trabalho 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
12 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
clínico como o atendimento inicial (recepção ou triagem) e o encaminha-
mento, o trabalho em equipe e o tratamento propriamente dito. Em 
seguida, discuto as peculiaridades dos profissionais 'psi' (psiquiatras, 
psicólogos e psicanalistas) e proponho três questões para a clínica psica-
nalítica no ambulatório sobre os principais pontos em que este difere do 
consultório: a questão do dinheiro, onde é proibido cobrar; a questão do 
divã, onde este praticamente não existe; e a questão do tempo, onde a 
burocracia dos serviços e a peculiaridade da clientela podem gerar obs-
táculos. 
O terceiro capítulo — "Por uma psicanálise possível" — apresenta o 
que considero as condições mínimas para se definir a clínica psicanalíti-
ca, em sua diferença para com as demais psicoterapias, como uma clínica 
da realidade psíquica que condiciona a fala ao movimento da transferên-
cia dirigida ao analista que, por sua vez, tem na interpretação e numa 
relação peculiar com o tempo instrumentos para o manejo do tratamento. 
Além disso, apresento uma condição que marca fundamentalmente o 
trabalho do analista definida como seu desejo, que difere do desejo de 
um sujeito. Ao final, concluo traçando o perfil do "psicanalista que 
convém" para levar adiante o trabalho psicanalítico nos serviços públicos 
de saúde, esse mundo de vastas confusões e atendimentos imperfeitos. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
/ 
O que é feito da psicanálise 
1. A polêmica da psicanálise 
A psicanálise, tal como Freud a concebeu, sempre foi praticada em con-
sultórios privados, e os psicanalistas jamais dependeram de uma formação 
universitária ou de órgãos oficiais de reconhecimento da profissão para 
exercerem sua clínica. Tudo sempre se passou de modo a manter a forma-
ção e a prática psicanalíticas numa espécie de extraterritorialidade, como 
ironizou Castel (1978), em relação às outras profissões liberais e às de-
mais práticas médico-psiquiátricas. Essa peculiaridade, no entanto, não 
impediu que a psicanálise se difundisse, expandindo sua área de influên-
cia. A primeira vista, poderíamos dizer que a psicanálise veio, viu e 
venceu. Ocupou parte do território das instituições psiquiátricas como, 
por exemplo, as comunidades terapêuticas; provocou mudanças nosográ-
ficas, diagnosticas e de tratamento na psiquiatria sob a rubrica de psico-
dinâmica; instrumentou práticas psicoterapêuticas diversas, difundiu-se 
para outros campos do saber e, ainda, tomou de assalto, através da mídia, 
a vida sexual-amorosa, familiar e social das classes médias urbanas sob a 
forma de uma 'cultura psicanalítica'. Esse fenômeno se deu de modo 
desigual e em diferentes períodos, principalmente nos EUA (Nunes, 
1984), na França (Turkle, 1970) e no Brasil (Martins, 1979; Santos, 1982; 
Figueiredo, 1984e 1988; Figueira, 1985; Russo, 1987). A psicanálise teria 
se tornado ubíqua e sempre haveria um ponto de vista psicanalítico para 
tudo. Em parte, isso é inegável, e alguns estudiosos apontam para os 
efeitos, muitas vezes nefastos, dessa psicanalisação do cotidiano sobre a 
própria clínica psicanalítica (Figueira, 1985b). 
CAPS_10
Destaque
14 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
O que interessa, entretanto, não é julgar se a difusão da psicanálise é 
boa ou má em seus efeitos, mas atentar para o fato de que esse fenômeno 
não se deu de modo tão efetivo no que diz respeito ao exercício sistemá-
tico da clínica psicanalítica nas instituições médico-psiquiátricas. Refi-
ro-me particularmente ao caso brasileiro, mas não creio que sejamos a 
exceção. 
Especulando sobre possíveis causas, destaco das argumentações cor-
rentes dois aspectos distintos, porém complementares: o da demanda de 
atendimento e o dos próprios dispositivos de tratamento. 
Quanto ao primeiro, a demanda pode ser de atendimento médico em 
geral ou de psicoterapia — aqui costuma-se incluir a psicanálise. Há 
vários estudos discutindo a questão da diferença sociocultural e da con-
seqüente discrepância entre os pontos de vista do terapeuta e do paciente 
sobre as representações de doença, tratamento e cura. Além de autores 
estrangeiros como Boltanski (1979) e Bernstein (1980), autores brasilei-
ros como Lo Bianco (1981), Duarte & Ropa (1985), Duarte (1986), 
Bezerra (1987) e Costa (1989a) trataram da questão apontando para a 
necessidade de relativizar valores e concepções de subjetividade e cau-
salidade psíquica, quando se trata de atendimento psicoterapêutico à 
população de baixa renda que aflui aos serviços públicos de saúde. 
Em primeiro lugar, não devemos reduzir a complexidade do disposi-
tivo psicanalítico — isto talvez não sirva para outros modelos de psico-
terapia — aos ideais do terapeuta, enquanto representante da classe 
média escolarizada. Se os ideais de cura do terapeuta são pautados por 
seus próprios valores, sua função, no entanto, não deve sê-lo. O que ele 
acha que deve ser há que ser posto em suspenso e as condições de 
analisabilidade não devem se orientar exclusivamente pelos conteúdos 
mais ou menos psicologizados da fala do cliente. E claro que um certo 
patamar de individualização deve ser atingido para que o sujeito possa 
desenvolver alguma reflexão sobre si, o que também é parte do processo 
analítico. Isto sem mencionar os casos de pacientes psicóticos de quem 
não podemos abrir mão de tratar, ou pelo menos tentar. Estes estariam 
bem mais distantes do ideal de analisando-padrão.* 
Sobre o problema das diferenças socioculturais impeditivas para se estabelecer 
um processo psicanalítico temos, no limite, um curioso exemplo de algumas 
experiências bem sucedidas no trabalho de Ortigues, M.C. & E. (1989), realiza-
do na década de 1960, no Senegal. Ali se viveu a experiência de ura entrecruza-
mento de três culturas: o tradicional sistema tribal, onde a possessão pelos 
ancestrais e a feitiçaria marcam os rituais e as relações intersubjetivas; a cultura 
O que é feito da psicanálise \ 15 
Em segundo lugar, é importante frisar que o suposto modelo univer-
salizante da psicanálise refere-se, que deve ser entendida como um con-
junto de conceitos articulados como 'universais' — algo que não é em si 
um defeito teórico mas pré-condição de um sistema — suficientemente 
operacionalizáveis para serem aplicados a uma demanda diversificada. 
Não se trata de defender a posição ingênua de 'psicanálise para todos' , 
mas de apostar numa maior aplicação do dispositivo psicanalíticoque 
permita seu exercício além dos consultórios privados com clientes estrei-
tamente afeitos à cultura 'psi ' . E, mais ainda: se fazer psicanálise é 
produzir mais cultura psicanalítica, só nos resta a escolha de recuar 
diante dessa oferta em nome de uma idealização purista das diferenças 
culturais ou assumir que esse atravessamento cultural pode ser benéfico 
para todos aqueles que embarcam nessa aventura. 
O segundo aspecto refere-se aos dispositivos de tratamento que con-
correm entre si, tornando-se mais ou menos hegemônicos, de acordo 
com variáveis histórico-políticas que não serão discutidas aqui. O que 
temos observado, mais recentemente, é o recrudescimento de uma ten-
dência na psiquiatria em privilegiar o tratamento medicamentoso em 
nome de uma maior rapidez e eficácia dos resultados. Os próprios crité-
rios de classificação diagnostica apontam para uma fragmentação das 
grandes categorias clínicas de neurose e psicose para compor um mosai-
co de síndromes variadas e de transtornos da personalidade. Produzem, 
assim, uma combinatória de sinais e sintomas, com base em substratos 
químicos e neuro-anatômicos, rastreáveis por aparelhos que detectam 
alterações antes imperceptíveis ao olhar clínico. 
Tudo isso pode ser muito bom para os tumores e lesões do sistema 
nervoso central, mas mesmo os comportamentos acabam submetidos a 
essa varredura, e novas categorias nosológicas são formuladas no intuito 
de ampliar o alcance do tratamento medicamentoso. Temos na fobia 
social, na síndrome do pânico e no distúrbio obsessivo-compulsivo três 
bons exemplos. Nesse cenário, a psicoterapia ocupa um lugar secundário 
ou acessório, sendo que as psicoterapias cognitivas parecem atender 
melhor à proposta de efeitos rápidos na remissão de sintomas, além de 
islâmica que pratica o monoteísmo e o culto ao livro sagrado e se apresenta como 
mais evoluída em relação ao sistema tribal; e a cultura européia de língua 
francesa que atua maciçamente no processo de escolarização e medicalização, e 
representa a dominação estrangeira como um ideal de evolução civilizatória. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
16 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
serem consideradas mais objetivas, passíveis de estudos de follow up, 
estatísticas etc. Se, de fato são mais eficazes, não nos compete responder. 
Mas, certamente, dependem de variáveis que não são consideradas em 
seu próprio método, ou seja, daquilo que Freud chamou de efeito da 
sugestão que está na base dos fenômenos da transferência. 
O que interessa não é comparar modelos, ou analisar um determinado 
modelo a partir de outro, mas apenas atentar para esses dispositivos que 
se apresentam com a bandeira da eficácia e da rapidez. A psicanálise, 
nessa visão, torna-se praticamente inútil. Considerada um processo de-
masiado longo, não-objetivável, que exige uma formação de técnicos 
muito complexa e igualmente prolongada, a solução possível foi encur-
tá-la na chamada psicoterapia breve. A meu ver, um breve contra a 
psicanálise. Da alquimia psicanalítica às bombas químicas de rápidos 
efeitos (colaterais?) de longa duração. Eis o paradoxo: pacientes que 
permanecem freqüentando os ambulatórios, por um longo tempo, em 
busca de receitas de ansiolíticos e/ou antidepressivos. Por que não a 
longa duração de um tratamento psicanalítico? 
Quanto à formação profissional, a dos psicanalistas não é tarefa sim-
ples. A universidade não é o lugar recomendado ou suficiente, embora 
este não seja um bom motivo para se abandonar o projeto. A universidade 
não deve se furtar a este desafio, mesmo admitindo que estudar psicaná-
lise e ter supervisões clínicas não bastam para fazer do aluno um psica-
nalista. Diríamos que é um bom caminho andado. Mas isso pode ser um 
desvio da questão. Não me proponho a discutir a psicanálise na univer-
sidade e sim as possibilidades e limites da clínica psicanalítica nos 
serviços de saúde da rede pública em geral. 
Talvez pareça uma pretensão fútil, uma veleidade de psicanalista, 
insistir na defesa de um aparato tão sofisticado, quando as instituições de 
saúde atravessam uma crise tão séria, com sua existência ameaçada pelo 
descaso das autoridades públicas, tanto pelo profissional quanto pela 
população usuária. No entanto, não devemos recuar, uma vez que o 
trabalho de ensino, pesquisa e qualificação acadêmica deve estar sempre 
à frente das condições efetivas de sua realização. Especialmente agora, 
quando se consolida uma ampla política de combate à estrutura asilar de 
cronificação da doença mental, urge que mantenhamos viva a discussão 
sobre o tratamento psicoterapêutico em regime ambulatorial, o que, cer-
tamente, pode dar suporte ao projeto de desenclausuramento dos pacien-
tes psiquiátricos. Ao trabalho político e social deve-se somar o trabalho 
clínico. É preciso revisitar o funcionamento inercial dos ambulatórios 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
O que é feito da psicanálise | 17 
sem desfazer de seu potencial terapêutico. Além do mais, penso que o 
dispositivo psicanalítico não foi posto à prova o suficiente para ser 
descartado como ineficaz ou impróprio para atender à população que 
procura os serviços públicos. 
2. O campo psicanalítico em questão 
Ao examinar os pressupostos teóricos da psicanálise, logo me deparo 
com problemas em sua definição. Do que se trata quando se fala em 
psicanálise? 
Esta é uma preocupação de vários analistas de diferentes orientações 
e há um certo consenso em admitir que a existência de concepções 
diversas de psicanálise gera uma dispersão irreversível na produção con-
ceituai e, conseqüentemente, nas concepções do trabalho clínico.* 
São reconhecidos, pelo menos, três modelos pregnantes que compõ-
em o mosaico do campo psicanalítico: o kleinianismo e suas variações, 
conhecido como escola inglesa; a psicologia do ego como fruto de uma 
'americanização' da psicanálise liderada por imigrantes europeus; e o 
movimento lacaniano conhecido como escola francesa. 
Desenvolverei brevemente cada um, situando-os em seu aparecimen-
to na história e em seus fundamentos metapsicológicos, nosológicos, de 
tratamento e cura. 
A escola kleiniana, que se estabeleceu eminentemente na cultura 
britânica, é herdeira do pensamento de Karl Abraham, mestre e analista 
de Melanie Klein, e inaugura a clínica infantil. 
Quanto à metapsicologia, a referência inicial em Abraham é à primei-
ra fase da démarche freudiana, especialmente dos textos de 1915; em 
seguida, ao ciclo maníaco-depressivo, em particular à melancolia, aos 
estádios pré-genitais e aos processos de incorporação e desenvolvimento 
da relação de objeto nas diversas modalidades genéticas da ambivalên-
cia. Seu pensamento é centrado na dialética da ambivalência primitiva e 
Destaco aqui alguns autores como Mannoni (1982, 1989), Mezan (1988a, 
1988b, 1988c), Bercherie (1988), Berlinck (1991), Bezerra (1991), Lo Bianco 
(1991), Kernberg (1994) que discutem o problema numa perspectiva histórico-
política, seja priorizando o confronto entre modelos ou articulando-os com 
as especificidades socioculturais dos diferentes contextos em que se desen-
volveram. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
18 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
da totalização do objeto, e essa é a matriz de Melanie Klein. Num 
segundo momento, a nova dualidade pulsional e a segunda tópica freu-
diana constituem os conceitos de base do modelo kleiniano. Um certo 
antropomorfismo presente em Freud fundamenta a concepção do con-
junto da atividade psíquica como um mundo interno de fantasias atemo-
rizantes, que fomentam o conflito ambivalente, a partir do inatismo das 
pulsões de vida e morte, da precocidade do superego sádico e avassala-
dor, da pregnância das imagens corporais e dos processos de incorpora-
ção e rejeição dos objetos parciais. 
As diferentes modalidades pulsionais que constituem o funcionamen-
to psíquico e seus objetos internos sucederiam-se assim: inicialmente, há 
a posição esquizo-paranóide, dominada pelo ódio,pela retaliação perse-
cutória e pela idealização; em seguida, vem o equilíbrio entre a culpabi-
lidade depressiva autodestrutiva e a onipotência reparadora da defesa 
maníaca; e, por fim, o predomínio da integração objetai com os meca-
nismos de reparação, a assunção do Édipo e a instauração da saúde 
mental. Para um estudo mais detalhado, remeto o leitor ao trabalho de 
Jean-Michel Petot (1988). 
Segundo Bercherie (1988), apesar de este encadeamento de posições 
remeter a uma reconstrução genética da vida infantil à adulta, sua apre-
sentação fenoménica tem um caráter atemporal e mesmo transcendental, 
em que se destaca a simbiose do sujeito com o objeto como um estado 
de confusão de limites entre o interior e o exterior. A personalização do 
vivido da fantasia do seio e do falo, por exemplo, se apresenta mais como 
uma fantasmagoria, na qual o objeto externo não passa da externalização 
do objeto interno. O objeto real tem um papel subsidiário de agravação 
ou correção da fantasia. 
Quanto à nosología, Klein não produz exatamente um modelo. Vários 
críticos encontram nela uma tendência à psicotização da estrutura subje-
tiva da fase esquizoparanóide, a partir da noção de ambivalência em sua 
forma mais primitiva. Para Bercherie, o kleinismo considera a totalidade 
da estruturação subjetiva e sua patologia mais à luz da fenomenologia 
dos mecanismos de introjeção, rejeição, denegação, onipotência, cliva-
gem etc., do ciclo maníaco-depressivo, enfatizando o aspecto fundamen-
talmente dual do funcionamento psíquico. A força inata das pulsões de 
vida e morte contradiz em parte sua própria formulação da presença 
precoce do conflito edípico que, pelo menos em Freud, tem uma compo-
sição triádica. 
O que é feito cia psicanálise | 19 
Quanto ao tratamento e à cura, a ética kleiniana enfatiza o amor como 
fator positivo (pulsão de vida) e o ódio como fator negativo (pulsão de 
morte/destrutiva) no remanejamento do universo da fantasia, concebido 
como interno, endógeno, e desemboca numa postura clínica extrema-
mente crítica, culpabilizante, pondo o analisando, de certa forma, sob 
suspeita. A transferência seria a cxternalização do mundo interno do 
sujeito que revela sua profunda dependência regressiva e ambivalente. 
Cabe ao analista, em sua perspicácia, exercer uma atividade quer expli-
cativa, para aliviar os estados de angústia emergentes, quer descritiva da 
própria situação transferencial, numa espécie de tradução simultânea do 
discurso no 'aqui e agora' para o referencial teórico que subsidia a 
interpretação. A tática principal é explicitar para o analisando suas defe-
sas narcísicas contra a integração de sua ambivalência e a assunção de 
sua dependência dos bons objetos. Essa espécie de vigilância constante 
submete o funcionamento psíquico a uma certa censura moral, dificul-
tando uma mudança subjetiva frente ao analista e, conseqüentemente, a 
dissolução da transferência (Little 1951; Figueiredo 1992). 
Numa etapa posterior, o kleinismo é alçado a um nível mais sofisti-
cado de metapsicologia e criatividade clínica. Entre seus discípulos, 
destacam-se Bion, o nome principal, e Meltzer, seu epistemólogo, que 
dão uma especial atenção ao conceito de identificação projetiva, formu-
lado desde 1946. Privilegiam seu aspecto interacional como instrumento 
de clarificação da comunicação inconsciente do paciente com o analista, 
nunca ao contrário, e ampliam a exploração dos fenômenos da contra-
transferência e da psicose. A contratransferência passa a ser uma referên-
cia central para a interpretação, a bússola do analista. Este se coloca mais 
como um continente das projeções do analisando que o afetariam 'inter-
namente' e não apenas como uma suporte dessas projeções. A técnica 
interpretativa adquire uma coloração subjetiva, onde a expressão do 
vivido pessoal do analista tem mais peso do que o material clínico 
propriamente dito (Garrigues e cois. 1987). Na observação de Bercheric, 
por um lado, esse viés de intuição do analista atingido diretamente pelas 
projeções do analisando, pode ter a função de esvaziar o excesso de saber 
do analista presente nas interpretações-traduções do primeiro momento 
do kleinismo. Por outro, transformar o vivido do analista em sua bússola 
para interpretação, pode gerar distorções ainda mais graves. 
De um modo geral, a teoria kleiniana atinge um nível de conceituali-
zação interacional no campo dos processos de simbolização, mas ainda 
deixa de lado a relação desses processos com a linguagem como institui-
20 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
ção social, mantendo a mão única das produções psíquicas da criança 
para o adulto e do paciente para o analista. 
A psicologia do ego, patrocinada, em seus primórdios, por Freud 
através de sua filha, Anna Freud, e dos membros mais influentes do 
grupo vienense, se desenvolveu principalmente nos EUA. Desdobrando-
se a partir do modelo freudiano, acentua a inspiração funcionalista do 
ego adaptativo. Heinz Hartmann é considerado seu fundador, com o livro 
Psicologia do eu e o problema da adaptação, publicado em 1939. Seu 
trabalho desenvolve a proposta de Anna Freud em O ego e seus mecanis-
mos de defesa, de 1936. Posteriormente, são absorvidas certas concep-
ções kleinianas dando origem a um modelo híbrido. 
Quanto à metapsicologia, suas principais características são a rejeição 
do conceito de pulsão de morte, substituído por uma pulsão de agressão 
(uma espécie de segunda pulsão de vida com caráter um tanto negativo); 
a apreensão bastante biologizante da atividade psíquica com ênfase num 
modelo genético; e o contato com a psicologia cognitiva experimental. 
Daí a valorização da observação de bebês. O livro O primeiro ano de vida 
do bebê de René Spitz, publicado em 1958, é uma referência. 
O ego é concebido como uma instância de adaptação externa e síntese 
interna que se diferencia funcionalmente do id pelos aparelhos perceptivo, 
motor e cognitivo, canalizando as energias pulsionais selvagens do id em 
descargas regradas, adaptadas às necessidades da realidade-ambiente. 
Essa realidade se define como sendo de ordem relacional e social, indu-
zindo o analista a um interesse constante pelas especificidades sociohis-
tóricas do ambiente, pelo culturalismo e disciplinas sociológicas afins. As 
publicações de Erik Erikson no início da década de 50, como Identidade, 
juventude e crise e Infância e sociedade, são um bom exemplo. 
Quanto à nosologia, esta assenta-se sobre um tripé. A neurose, onde 
um ego estável tenta se adaptar às exigências de um superego sádico, 
pré-genital, ou às pulsões do id que o transbordam. Os estados borderli-
ne, em que ego e objeto estão separados, mas submetidos aos golpes de 
uma dinâmica pulsional, ameaçadora e incontrolável, clivada em amor 
idealizado versus hostilidade persecutória (nesse ponto, o recurso a Me-
laine Klein é incontestável). E a psicose, onde há uma desagregação das 
estruturas psicológicas e de suas representações de objeto, principalmen-
te por uma liberação de agressão livre desneutralizada, vitória da violên-
cia pulsional sobre o ego, do pólo autístico ao pólo fusionai simbiótico 
de estrutura oral. 
CAPS_10
Destaque
O que é feito da psicanálise \ 21 
Quanto ao tratamento, a transferência constitui seu meio fundamental 
como uma dinâmica psíquica em suas modalidades patológicas e arcai-
cas, que provocam uma distorção projetiva da relação analítica. Em 
contrapartida, surgem as noções de "aliança terapêutica", "aliança com 
a parte sadia do ego", "aliança de trabalho", para redefinir o pacto 
terapêutico proposto por Freud. O insight, processo cognitivo — o que 
o paciente aprende de seus conflitos e sintomas — aliado ao processo 
afetivo — a identificação com o analista que vai adquirindo formas mais 
sutis e abstratas — é o caminho da cura. O analista funciona como 
personificação da objetividade e da maturidade racional, egóica, para 
enfrentar o irracional projetivo e arcaico da transferência, utilizando-se 
exclusivamenteda interpretação. Seu ponto cego reside na contratrans-
ferência, em seu 'irracional' não analisado, que ameaça romper o equilí-
brio do setting analítico. 
Este modelo, com sua aspiração racionalista, objetivista e evolucio-
nista, parece bastante compatível com os ideais médico-científicos que 
dão sustentação a uma determinada concepção de psiquiatria, e se presta 
à instituição de uma ortodoxia que ultrapassa em rigor técnico a postura 
um pouco mais livre do próprio Freud. 
Há, ainda, o grupo dos heterodoxos, cujos principais representantes 
são Winnicott, Balint, Ferenczi, Searles e Kohut, a quem Bercherie se 
refere como a "nebulosa marginal". Seu ponto comum seria a alteridade 
em sua dimensão fundadora. A 'realidade psíquica' não seria mais do que 
um efeito, sombra do real histórico. 
Bercherie esclarece a designação como pertinente tanto à situação de 
seus representantes na organização institucional da psicanálise quanto à 
sua ideologia e valores. Essa corrente não constitui propriamente um 
modelo. São trajetórias individuais que têm como ponto comum a busca 
de uma maior eficácia da clínica através de novas formas de intervenção. 
Da técnica ativa de Ferenczi ao holding de Winnicott, transgride-se a 
técnica clássica difundida pelas correntes ortodoxas, considerada insufi-
ciente e muito limitada. 
As diferentes tendências ordenam-se sobre variações balizadas, de 
um lado, pela referência ao trauma como fator patogênico, retomando a 
teoria da sedução freudiana num sentido mais amplo e, de outro, pela 
modificação do conceito e do manejo da regressão na análise. Em Fe-
renczi, por exemplo, o tratamento catártico é revalorizado e a escuta 
analítica deve tornar-se menos neutra e mais participante, incentivando 
CAPS_10
Destaque
22 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
a compreensão e o diálogo como uma função simbólica reparadora do 
vivido traumático infantil. 
A metapsicologia e o tratamento se aliam a certas referências noso-
lógicas centradas no conceito de narcisismo primário com Winnicott e 
Balint, por exemplo, em que o interesse teórico e clínico do analista recai 
sobre a relação primária do analista com a mãe. Com Ferenczi, Searles 
e outros, a ênfase é dada à incorporação patogênica das comunicações 
inconscientes intrafamiliares, onde a criança é tomada como depositária 
das perturbações e desejos mais secretos dos pais, especialmente nas 
psicoses.* Mas também é valorizada a função paterna aliada aos proces-
sos de aculturação e socialização. 
Nesse cenário, a ortodoxia é condenada como cúmplice da negação 
e da mistificação da realidade dos fatos e das interações vividas pelo 
paciente em sua história. A função do analista no tratamento é a de um 
facilitador do desenvolvimento vital, do processo de maturação, prejudi-
cado pelas relações patogênicas. A contratransferência funciona mais 
como guia para o analista e menos como perigo. As interpretações não 
devem ter a insistência intrusiva presente no kleinismo. O dispositivo 
analítico opera como uma dinâmica intersubjetiva, aberta c imprevisível 
em seu trajeto, em oposição ao enquadramento concebido como cienti-
ficista-objetivista e inteleetualista dos ortodoxos. O pensamento incons-
ciente é criativo e a experiência de si, do verdadeiro self, se dá uma vez 
que são levantadas as barreiras defensivas de um ego clivado que intro-
jetou o ambiente patogênico. Seguindo a referência freudiana, a realiza-
ção aloplástica deve sobrevir à inversão autoplástica da libido narcísica. 
Diferentemente da psicologia do ego, a cura depende mais da auten-
ticidade do vivido, da espontaneidade do processo maturativo, do que da 
força ou estabilidade do ego. Para Winnicott, por exemplo, o chamado 
'ego forte' não passa de um falso self. Esse processo diz respeito à 
presença da ordem objetai como fundadora da subjetividade em seu 
caráter interacional. A adaptação à realidade cede lugar à inventividade 
própria, à espontaneidade criadora do self. 
Ao analista, resta a postura empática, receptiva, devotada e acessível, 
c a humildade técnica que chega a admitir que há uma ajuda terapêutica 
Destaco dois textos de referência sobre esse tema: "Confusão de línguas entre 
os adultos e as crianças" de Sàndor Ferenczi e "O esforço para enlouquecer o 
outro: um elemento na etiologia e na psicoterapia da esquizofrenia", de Harold 
Searles. 
O que é feito da psicanálise I 23 
inconsciente constante do paciente ao analista. Há posições críticas entre 
os 'marginais' do exagero dessa tendência procurando retomar a regra 
fundamental freudiana e um certo rigor técnico. 
No essencial, interessa destacar a filiação da antipsiquiatria a essa 
concepção da clínica em contraste com a psiquiatría eminentemente 
médica Esta última se afina mais com os psicólogos do ego e com os 
kleinianos. 
O último e mais recente modelo se constitui a partir do nome e do 
ensino de Lacan, mais precisamente a partir da cisão na Sociedade 
Psicanalítica de Paris em 1953 (Roudinesco, 1986). O famoso Discurso 
de Roma — "Fonction et champ de la parole et du langage en psychana-
lyse" — é o marco teórico e político de uma nova 'ortodoxia'. 
A partir de uma fusão dos dois estruturalismos — a antropologia de 
Lévi-Strauss com a lingüística de Saussure revisitada — e do recurso aos 
conceitos de metáfora e metonimia de Jakobson, Lacan inaugura o estru-
turalismo na psicanálise. O conceito de simbólico de Lévi-Strauss se 
funde com o conceito de significante extraído da equação saussureana do 
signo. A ordem do significante transcende e instaura o sujeito por sua 
inscrição na linguagem. 
O recurso ao materna — análogo ao mitema de Lévi-Strauss — aos 
esquemas e grafos, à teoria dos conjuntos e à topologia, complementa e 
reafirma o modelo lacaniano lançando-o para além do estruturalismo 
clássico. 
O 'retorno a Freud' toma como referência a formulação da primeira 
tópica do inconsciente sexual recalcado e estabelece uma certa homolo-
gía, guardando as devidas diferenças entre o associacionismo e o estru-
turalismo. Quanto ao primeiro, critica seu caráter psicológico, represen-
tacional e mecanicista e, quanto ao segundo, afirma seu caráter lógico e 
relacional. Os significantes não são representações de sensações ou ima-
gens de objetos e, apesar de serem unidades discretas, só produzem 
sentido enquanto articulados entre si numa cadeia linear constituída por 
metáforas e metonimias. A fala, por sua vez, já é sintomática no sentido 
em que há sempre um hiato entre o que se diz e o que se quer dizer, e a 
significação se produz, em última instância, no Outro. Posteriormente, 
com o nó borromeano, Lacan vai situar a significação na interseção entre 
imaginário (outro) e simbólico (Outro). 
Lacan nunca pretendeu fazer uma teoria da comunicação. O Outro 
guarda sua dimensão terceira, de alteridade, sobre o outro como interlo-
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
24 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
* Para um estudo mais detalhado da topologia de Lacan, remeto o leitor ao traba-
lho de Jeanne Granon-Lafont, A topologia de Jacques Lacan. Quanto à formu-
lação do nome-do-pai como o quarto nó que constitui o sintoma fundamental, 
ver Le sinthome, seminário de 18 de novembro de 1975, publicado em Joyce 
avec Lacan, sob a coordenação de Jacques Aubert. 
** A concepção do estádio do espelho foi apresentada pela primeira vez no Con-
gresso de Marienbad em 1936, e, posteriormente, foi reapresentada no Congres-
so Internacional de Psicanálise de Zurique cm 17 de julho de 1949. Esta segunda 
versão está publicada nos Écrits. 
cutor da conversa de modo diverso da concepção interacional dos 'mar-
ginais' apoiada nas relações intersubjetivas. O modelo estrutural do Édi-
po é um bom exemplo. O nome-do-pai é uma função da linguagem, a 
metáfora paterna, como uma operação de substituição (recalque primá-
rio) que possibilita o advento da fantasia como resposta ao enigma do 
desejo da mãe (Outro primordial) e instaura a divisãodo sujeito em 
conjunção e disjunção com seu objeto. Eis a definição básica da fantasia, 
formulada já na década de 1960. Este é o modelo da neurose. 
A démarche lacaniana redefine tanto a dinâmica subjetiva quanto a 
nosología, o diagnóstico e a função do analista na clínica. Apresento 
brevemente cada um desses pontos. 
Quanto à metapsicologia, ou sobre a constituição do sujeito, Lacan 
postula o entrelaçamento dos três registros: imaginário, simbólico e real. 
No decorrer de sua teorização, estes vão sendo redefinidos, variando em 
precedência, até a formulação do nó borromeano que os articula a um 
quarto nó, que será finalmente definido como o nome-do-pai, tendo a 
função de sintoma fundamental que amarra os três registros. A estrutura 
edípica, portanto, é o sintoma fundamental do neurótico.* 
O imaginário é definido, primeiramente, como imago, matriz do 
simbólico na formação do eu (je do sujeito e moi como o ego narcísico 
ou o ego ideal) no conhecido texto sobre o estádio do espelho.** Na 
década de 1950, passa a ser um precipitado do simbólico, consistente 
como imagem do corpo e dos objetos pulsionais, e totalizante como uma 
Gestalt. Aí se dão a circulação dos afetos (amor-ódio etc.) e as relações 
interpessoais como relações entre semelhantes. 
O simbólico é regido pelas leis do significante, em que o processo 
primário opera constituído como uma linguagem no desdobrar da metá-
fora (substituição) e da metonimia (deslocamento). Na primeira formu-
lação de Lacan, o simbólico é organizado a partir da metáfora paterna — 
primeira operação de substituição — como um ponto de ancoragem para 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
O que éfeito da psicanálise I 25 
o sujeito, entrelaçando-o ao eu imaginário e funcionando como barreira 
ao desejo enigmático e caprichoso do Outro — representado pelo desejo 
da mãe. O significante fálico registra a falta— impossibilidade de acesso 
ao desejo do Outro — por diferença da completude imaginária. Entre-
tanto, a constituição do eu, como projeção de uma imagem, só é possível 
pela sustentação simbólica do Outro. O esquema L formulado no Semi-
nário 2 (1954-55) mostra como os dois eixos, imaginário e simbólico, se 
articulam. 
O real, em sua primeira formulação, é o inefável, não captado na 
estrutura significante, o ser perdido do sujeito a partir da castração sim-
bólica, ou seja, da incidência da metáfora paterna. Lacan, posteriormen-
te, o define como seu próprio sintoma e, ao mesmo tempo, como sua 
contribuição à psicanálise através do conceito de objeto a — aquilo que 
se perde do ser pela marcação do simbólico e constitui, míticamente, a 
falta primordial do objeto.* 
A realidade seria o efeito da conjunção do simbólico com o imaginário 
que encobre o real em sua ex-sistance. Uma outra significação para o real 
é a de 'partes sem todo', contrariando a ordem do mundo, em sua absoluta 
ausência de sentido. Na década de 1970, o real vai comportar a letra em 
sua materialidade como suporte do significante e uma dimensão do gozo 
que escapa à ordem fálica e, paradoxalmente, só pode ser pensado a partir 
dessa ordem como um efeito da marcação do significante. 
Quanto à nosología, são definidas três estruturas: neurose (sujeito 
dividido); psicose (foraclusão — rejeição primordial da metáfora pater-
na); e perversão (desmentido da castração). O diagnóstico é feito na 
transferência, ou seja, no modo como o sujeito se apresenta ao analista 
(o Outro do sujeito): o neurótico como faltoso e demandante em sua 
queixa; o psicótico como invadido pelo Outro, ou anulando-o; e o p i 
verso (quando se apresenta!) como objeto para o Outro, não para o Ou> o 
absoluto do psicótico, mas para o sujeito dividido. A clínica lacaniana 
exige uma distinção entre neurose e psicose, sendo que a perversão é 
O conceito de objeto a é bastante complexo e não cabe desenvolvê-lo em toda a 
sua extensão. A partir do Seminário, livro 11 — Os quatro conceitos fundamen-
tais da psicanálise, de 1964, Lacan formula este conceito articulando-o com a 
pulsão escópica. Já na década de 1970, tendo desenvolvido sua topologia, Lacan 
lhe atribui uma função que perpassa os três registros deixando-o retido no centro 
do nó borromeano e, portanto, não se reduzindo ao registro do real. No imagi-
nário tem a função de objeto parcial — as vestimentas imaginárias; no simbólico 
é designado pelos significantes; e, no real, como objeto perdido. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
26 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
mais problemática. Muitas vezes, localizam-se traços perversos na estru-
tura neurótica. 
Quanto à função do analista, Lacan introduz uma virada fundamental 
no conceito de transferência. Em sua diatribe contra os psicólogos do 
ego, denuncia mais a resistência do analista do que a do analisando. O 
analista resiste com seu ego, seu sintoma, suas interpretações plenas de 
significado, seu saber que, ao ser suposto, não deve ser encarnado num 
ego ideal. A transferência não é para ser interpretada. Ela constitui o 
dispositivo analítico. O conceito de 'sujeito suposto saber' é central para 
definir o estatuto da transferência. O analista, ao ser autorizado a escutar 
um sujeito, está suposto, não como aquele que sabe, mas como aquele 
que deve receber a fala do sujeito como produção de saber, para dar-lhe 
um destino pela via da interpretação. O sujeito, por sua vez, só fala 
porque supõe que isso irá levá-lo a algum lugar ainda não sabido. Se-
ria uma espécie de prova de fé no inconsciente como promessa de signi-
ficação.* 
A técnica deve dar lugar, por um lado, à ética, centrada no que Lacan 
conceitua como o desejo do analista, e, por outro, ao estilo, o savoirfaire 
do analista, com toda a carga semântica do termo, por diferença ao know 
how mais tecnológico. O desejo do analista é um conceito cuja força 
enigmática o transforma em legado e desafio permanente para a psica-
nálise lacaniana. Pode-se defini-lo como o desejo de pura diferença, 
sustentando na transferência o lugar de objeto perdido (objeto a) como 
causa de desejo. O lugar do analista não pode ser o de um outro sujeito 
— a intersubjetividade está fora de questão, apesar de ter constado de 
seus primeiros escritos — deve ser o do objeto que falta, lançando o 
sujeito ao desejo. Simplificando, trata-se de reduzir ao mínimo a pessoa 
do analista em suas intenções, seu ego; portanto seu sintoma; mas, para-
doxalmente, deixando-o livre quanto às possibilidades de sua interven-
ção. O analista se faz ao final de sua própria análise. 
Podemos situar em Lacan dois tempos na concepção do tratamento 
— em francês, cure por oposição a guérison — (Miller, 1987 e Bercherie, 
1988). O primeiro, na década de 1950, enfatiza a função central da fala 
como reveladora da verdade censurada da história e dos sintomas do 
sujeito, guiando a intervenção do analista sobre a emergência das forma-
Sobre o conceito de 'sujeito suposto saber', remeto o leitor ao trabalho de 
Jacques-Alain Miller, Percurso de Lacan, uma introdução, que o sistematiza de 
modo didático no capítulo "A transferência. O 'sujeito suposto saber'". 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
O que éfeito da psicanálise I 27 
ções do inconsciente {Discurso de Roma, 1953). O 'sujeito suposto 
saber' refere-se tanto à posição do analista na transferência quanto à 
suposição de saber atribuída ao inconsciente como o Outro do sujeito que 
põe o processo associativo em marcha. Deve-se evitar a confrontação 
imaginária ou ego-narcísica — analista identificando-se com o saber, 
confronto de sentimentos ou expectativas etc — típica da análise das 
defesas, para permitir a emergência do sujeito do desejo. O analista 
busca localizar-se como o Outro, o terceiro da função paterna. 
O segundo tempo, a partir da década de 1960, Lacan enfatiza o real. 
O analista deve ser o pivô do processo, fazendo as vezes (semblante) do 
objeto a, o objeto que falta e, por isso, causa desejo. No fim da análise, 
o analista deve se reduzir a um resto da operação simbólica.A análise 
deve conduzir o analisando a assumir sua determinação significante para 
ultrapassá-la até o ponto em que toda a significação, toda a produção 
analítica se lança num sem sentido esvaziado de gozo. E um processo 
exaustivo de desidentificações (travessia da fantasia) que desemboca 
numa posição vazia (destituição do sujeito do inconsciente) onde se 
encontra o lugar do analista (des-ser). A fantasia deve-se opor o enigma 
do desejo como um real opaco onde se situa o sujeito. Não o sujeito do 
inconsciente alienado ao discurso do Outro ou do Mestre, mas em seu 
movimento de separação. O recurso cada vez mais incisivo aos cortes nas 
sessões, que tendem a ser curtas, seria um meio de promover esse curto-
circuito. Este é o ponto mais controvertido da clínica lacaniana. Hoje, 
temos uma variedade de leituras de Lacan nas quais podemos reconhecer 
um divisor de águas esses dois momentos de sua teoria. 
Apresentados os diferentes modelos que compõem o campo psicana-
lítico, a questão não se reduz a reconhecer essas tendências em sua 
disputa pela ortodoxia. Deve-se tentar encontrar um ponto comum sobre 
o qual esses modelos se edificam sob a rubrica de psicanálise. E possível 
pensar em uma unidade diante de tanta diversidade? Ou o campo psica-
nalítico pode explodir numa babelização de discursos incompatíveis? 
Embora existam conceitos comuns, como inconsciente, recalque, pul-
sões, transferência, interpretação e, last but not least, associação livre, 
suas definições e seus usos diferem significativamente. 
O pior destino para a psicanálise seria a solução eclética que poderia 
transformar o sujeito psicanalítico numa espécie de ornitorrinco dotado 
de um ego forte e adaptado a uma ilusão, de um inconsciente interno c 
abissal, resultante de relações de duplo vínculo com pais perversos, que 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
28 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
não passam de significantes ambulantes, e de uma forte tendência agres-
siva, advinda das primitivas pulsões de morte que, por sua vez, resultam 
de um superego cultural, ora forte, ora fraco, que se vinga de um ego 
narcísico. 
Apresento algumas propostas de interesse: 
Kernberg (1994), muito preocupado com a queda do prestígio da 
formação profissional e da própria clínica psicanalítica nos EUA, lamen-
ta o grande desconhecimento, atribuído ao preconceito e à barreira lin-
güística, do que se passa na Europa, especialmente na França, e destaca 
os pontos positivos das "teorias alternativas" que incluem os novos de-
senvolvimentos da psicologia do ego, da teoria das relações de objeto, da 
psicologia do self, da análise interpessoal e, até mesmo, de algumas 
referências à teoria lacaniana. Propõe uma investigação empírica que 
ultrapasse a discussão teórica e uma abertura para as diferenças visando 
engrandecer o movimento científico sem a ingenuidade de assimilar 
modismos ou fundir modelos incompatíveis. Acrescenta que o candidato 
a analista deve ter acesso a abordagens diversificadas, mas alerta as 
instituições contra o "terrorismo intelectual" decorrente do proselitismo 
carismático de qualquer abordagem nova. Quanto à clínica, defende a 
multiplicidade de técnicas sob a égide de alguma trama teórica, com o 
objetivo explícito de diminuir os índices de evasão (que parece ocorrer) 
entre os pacientes da chamada psicanálise ortodoxa. 
Mezan (1988a,b,c) aponta os "monólogos cruzados" entre kleinianos 
e lacanianos por se situarem apenas no plano das respostas, ignorando 
que as teses não passam de respostas a perguntas diferentes. Daí sua 
constatação perplexa de que "os psicanalistas não falam a mesma língua" 
(1988b p. 15). Tal dispersão manifesta-se no que denominou uma "trípli-
ce diáspora": dispersão geográfica (contexto sociocultural europeu, nor-
te-americano e latino-americano); dispersão doutrinária (campo concei-
tuai); e dispersão institucional (política da psicanálise como produção de 
verdade avessa à relativização). Nesse ponto, Mezan enfatiza o caso 
brasileiro através daquilo que denomina "vulnerabilidade ao dogmatis-
mo": na impossibilidade de reconstituir a gênese do que nos é apresen-
tado, resta-nos acatar ou recusar cegamente o que está escrito (1988a, 
p. 11). Sua proposta é que se faça uma história epistemológica da psica-
nálise rastreando as perguntas que cada autor pretende responder, uma 
vez que o que pode ser fértil para a psicanálise reside não nas afirmações 
mas nas novas questões que podem ser formuladas. Para isso, constrói 
O que é feito da psicanálise I 29 
um método com base no conceito freudiano de sobredeterminação. 
Deve-se considerar os desdobramentos de quatro dimensões epistemoló-
gicas da obra de Freud como pontos de isomorfismo ou homologia entre 
as três principais escolas pós-freudianas — kleiniana, lacaniana e psico-
logia do ego. Essas dimensões são: uma teoria geral da psique (topologia, 
dinâmica e economia do aparelho psíquico); uma teoria da gênese e do 
desenvolvimento da psique (história concreta do sujeito referida a um 
modelo esquemático universal); como resultante das duas primeiras, 
uma teoria do funcionamento normal e patológico da psique (soluções 
neuróticas, perversas ou psicóticas para os conflitos fundamentais); e, 
por fim, uma concepção do processo psicanalítico (modalidades de in-
tervenção visando modificar o funcionamento psíquico [1988c]). 
Lo Bianco (1991), por sua vez, abandona a epistemologia e relativiza 
os processos de legitimação das diferentes verdades psicanalíticas, his-
toricamente construídas para ressaltar o problema da importação de 
idéias na cultura brasileira. Destaca duas áreas problemáticas na contex-
tualização da clínica psicanalítica: a cultura psicanalítica que grassa 
nos extratos médios urbanos psicologizados e seu avesso, a distância 
sociocultural da psicanálise que os extratos de baixa renda da popula-
ção apresentam nos atendimentos ambulatoriais. Propõe, então, que os 
próprios psicanalistas façam um exame mais criterioso do contexto 
sociocultural em que se dá sua experiência analítica, a partir de sua 
clínica, a fim de avançar na elaboração teórica de seus conceitos, não 
deixando essa tarefa apenas aos teóricos da psicanálise nem aos sociólo-
gos ou antropólogos. 
Bezerra (1991) propõe uma rediscussão ética do problema, a partir 
da concepção pragmática do conhecimento em oposição à concepção 
metafísica. Ao invés de se tentar saber quem é o detentor da verdade 
última da psicanálise em seus fundamentos, em sua essência, deve-se 
fomentar uma discussão sobre o que há de convergente e contrastante nas 
diversas formas do pensar psicanalítico em sua capacidade descritiva e 
produtora de sentido segundo as urgências clínicas e determinações pes-
soais, políticas e culturais de cada um. 
Bercherie (1988) considera que não é pela via teórico-conceitual que 
se vai resolver o problema. Se Freud fazia questão da ciência, é preciso 
repensá-la num outro patamar. Por um lado, a necessidade de uma língua 
comum, de um consenso conceituai de base, limitaria o avanço que 
poderia se dar nos diferentes setores do campo psicanalítico. Por outro, 
a questão da filiação, seja de grupos ou pessoal, a determinado modelo 
30 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
é revestida de interdições, idealizações e exclusões pelo próprio poder da 
transferência que agencia fidelidades esterilizantes ao oferecer o que há 
de mais precioso ao futuro analista. Sua proposta para integrar a história 
c o estado atual do movimento freudiano é a de um atravessamento 
subjetivo como resolução da transferência dirigida à teoria, aos mestres 
e à instituição analítica e como assunção de uma nova relação do sujeito 
com o real, marcada pela passagem de um quadro claro e evidente à 
hiância de uma confusão, ao menos temporária, e de uma relativização 
permanente do conhecimento. 
A ética é evocada como um novo posicionamento, uma vez que 
saberes e conceitos sempre podem ser apropriados, partilhados ou inte-
grados. Apostura do sujeito seria unívoca, e é ela que comanda suas 
escolhas práticas e teóricas. Ao analista, portanto, cabe ultrapassar sua 
filiação, no sentido radical do termo, não só à teoria e aos mestres, mas, 
principalmente, à sua própria análise para se engajar na aventura de 
refazei" a psicanálise. A opção de Bercherie pelo referencial lacaniano é 
explícita. Ele defende que foi Lacan, com seu ensino peculiar, quem 
produziu uma dissimetria em relação às outras correntes psicanalíticas 
introduzindo a pluralidade do real frente às realidades subjetivas unitá-
rias e coerentes e a dimensão do desejo em sua obscuridade subjetiva 
mas também, em sua fecundidade simbólica. 
Permanece, entretanto, o problema de como inventar permanente-
mente a psicanálise sem ameaçar romper com o que a caracteriza e 
delimita. Seria, em última instância algo comum ao nome de Freud? 
Apenas um nome próprio vazio de significação? (Derrida, 1980; Forres-
ter, 1989). 
3. A psicanálise no ambulatório: um novo contexto? 
A primeira questão de que devo me ocupar são as condições mínimas, 
necessárias, para que a psicanálise seja viável no ambulatório. Se tomar-
mos as condições como contextos, esta pode ser uma falsa questão. Para 
discutir a noção de contexto apóio-me nas concepções de Richard Rorty 
e Jacques Derrida. 
Rorty (1991) sustenta que todos os objetos já são contextualizados. 
Portanto, a questão não é retirar o objeto de seu velho contexto e exami-
ná-lo em si mesmo para ver qual o contexto que lhe é mais apropriado. 
O que está sendo posto em contexto é apenas "boringly and trívially" 
uma crença. Falar sobre o objeto é falar sobre os efeitos práticos desse 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
O que efeito da psicanálise \ 3 1 
objeto sobre nossa conduta. Indagar sobre o objeto é antes retecer cren-
ças do que descobrir a natureza do objeto, que pode ser, na melhor das 
hipóteses um "focas imaginarius". E uma crença não passa de uma 
posição na teia da linguagem. O ato de descrever alguma coisa é relacio-
ná-la com outras, e não há nada que preceda a contextualização (p. 98-
100). Nesse sentido, descrever a psicanálise, seja através dos relatos 
obtidos na pesquisa ou das definições que a caracterizam, retece a teia 
onde vai se evidenciar uma concepção de psicanálise que, ao mesmo 
tempo que se reconhece no contexto da obra freudiana, se altera em 
novas recontextualizações. 
Devemos, contudo, estar atentos para não' reificarmos a noção de 
contexto, erigindo-o à categoria de fundamento último das coisas. Rorty, 
em seu estilo desconcertante, nos tranqüiliza: um contexto pode ser uma 
nova teoria explicativa, uma nova classe comparativa, um novo vocabu-
lário descritivo, um novo propósito particular ou político, o último livro 
que se leu, a última pessoa com quem se falou, as possibilidades são 
infindáveis (op. cit. p. 94). 
Para Derrida (1991), não há um contexto absolutamente determinável 
ou um conceito rigoroso e científico de contexto. Desse modo, recontex-
tualizar a psicanálise pode ser entendido como uma revisão conceituai, 
no campo próprio da teoria, como uma relocalização de sua prática no 
campo da clínica em suas variações. A dicotomia consultório privado 
versus ambulatório público não pode ser tratada como confronto entre 
dois contextos, radicalmente diferentes, que supõem duas psicanálises, 
pois estaríamos tomando o local e suas condições como o contexto por 
excelência, o que é, no mínimo, uma diferença grosseira, senão uma falsa 
questão. Entretanto, parto taticamente dessa dicotomia para estabelecer 
o jogo das identidades e diferenças, visando pulverizá-la para ampliar as 
possibilidades do exercício da psicanálise. 
A questão, contudo, permanece: até onde essas possibilidades podem 
ser ampliadas? Se o contexto pode referir-se a uma nova teoria explica-
tiva, o que garante que novas recontextualizações, ao produzirem novos 
objetos, não nos lançariam no paradoxo de não estarmos mais falando de 
psicanálise? Ou pior, poderíamos redescrever ou redefinir a psicanálise 
num movimento infindável, onde tudo pode ser psicanálise. Tudo ou 
nada são duas faces da mesma moeda. Algo deve permanecer como 
identidade na diferença. 
Para não cair no atoleiro do sofisma, reafirmando a psicanálise como 
a medida de todas as coisas, valho-me novamente das concepções de 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
32 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Derrida e Rorty para estancar uma dúvida que remonta à discussão dos 
filósofos pré-socráticos sobre o que muda ou permanece igual a si mes-
mo no cosmos. 
Com Derrida, apóio-me no conceito de réstance — o que resta e 
resiste — para assegurar que algo do signo permanece para que seja 
reconhecido como tal. Staten (1985), seu comentador, esclarece: 
"Uma vez que o contexto não é 'exaustivamente determinável', não 
há como traçar um limite até onde ele possa transformar o signo; tudo o 
que sabemos é que há um 'resto mínimo' {réstance) que nos permite 
reconhecer o signo o suficiente para que continue funcionando como um 
signo. Ao mesmo tempo que diferentes ocorrências de um signo são 
reconhecidamente as mesmas, todavia, também são diferentes porque 
novos contextos mostram novos aspectos de suas possibilidades de sig-
nificação. (...) Contudo, esse não é um fenômeno arbitrário ou indiscipli-
nável; sabemos bem sobre como ativar e delimitar a variação das funções 
de uma palavra numa sintaxe construída com engenho e arte. (...) Sabe-
mos a priori que essa variação se estenderá num sem fim para além de 
nossas intenções conscientes. Mas a ausência de um limite determinável 
ou conhecível não significa que toda e qualquer coisa seja possível em 
todo e qualquer tempo; ao contrário, a variação da ativação futura do 
significado ocorrerá em contextos futuros, e cada contexto vai mostrar 
aspectos correspondentes do significado" (p. 122, tradução minha). 
Esta afirmação apresenta o conceito de réstance não corno uma pro-
priedade inerente ao signo; mas, antes, como o que é determinado numa 
sintaxe específica cuja variação remete ao tempo futuro na proliferação 
de novos contextos. Logo, podemos supor que teve e tem seu limite nos 
tempos passado e presente. Estes tempos não são pura cronologia, são 
tempos que recortam costumes e crenças, por exemplo. 
Com Rorty, sustento sua defesa de um certo 'etnocentrismo', o qual 
preconiza que não nos cabe ir além das determinações da cultura, das 
contingências históricas que nos constituem com suas palavras e crenças. 
Devemos nos contentar em estabelecer a controvérsia entre as partes de 
nossas próprias convicções (op. cit. p. 14). 
Tomando a psicanálise como uma cultura que produz psicanalistas e 
determina sua ação, cabe problematizá-la no seu interior ao invés de 
apreciá-la 'de fora', ao modo do observador neutro. Ao tomarmos dis-
tância de nosso objeto para apreendê-lo de outro modo, não devemos 
abandonar nosso vocabulário, mas sim ampliá-lo e modificá-lo em novas 
O que éfeito da psicanálise I 33 
contextualizações para que não se perca a referência ao ethnos psicana-
lítico. 
Tomando o termo psicanálise como nosso "signo", o que resta e 
resiste remete de imediato ao nome e à obra de Freud. Entretanto, na 
atual dispersão do campo psicanalítico, já se alardeia em certos meios 
psicanalíticos que o freudismo virou história. É passado e ultrapassado. 
No meu entender, o ethnos psicanalítico só faz sentido a partir de Freud 
e com Freud. Mas essa atualização ou recontextualização de Freud tem 
como contexto uma nova teoria explicativa que, como tal, lança-se pelo 
mote de um retorno a Freud. Como já mencionei, o nome de Lacan e sua 
teorização — seu ensino por transmissão oral e transcrição — que vem 
se constituindo como obra na última década, redimensiona o futuro da 
psicanálise. O texto de Lacan é, então, um novo contexto para a psicaná-
lise. Cito aqui um comentário prosaico de Thomas Ktihn que, ao discutir 
a tradição e a inovação na investigação científica, define-acomo uma 
tensão essencial: "Nas ciências, (...) é muitas vezes melhor fazer o que 
se pode com as ferramentas à disposição, do que fazer uma pausa para 
contemplar abordagens diferentes." (Kuhn, 1989, p. 275-6). 
Lacan, a meu ver, situa-se nessa tensão essencial entre o "pensamento 
divergente", como "a liberdade de ir em direções diferentes, (...) rejei-
tando a velha direção e arrancando numa nova direção qualquer"; e o 
"pensamento convergente", que mantém a tradição do "consenso estabe-
lecido, adquirido na educação científica e reforçado na vida subseqüente 
na profissão." (ibid. p. 276-8). 
Lacan rompe com a política, a teoria e a clínica instituídas em seu 
tempo, arrancando na direção paradoxalmente retroativa a Freud, ao 
mesmo tempo que 'redefine' a psicanálise. Hoje, tornou-se uma "ferra-
menta à disposição" exatamente porque não se limitou aos encantos da 
"revolução científica" que promoveu, e tratou de restabelecer o terreno 
do consenso na "educação" dos psicanalistas, fazendo escola. Convém a 
ressalva do termo 'científico', posto que Kuhn refere-se exclusivamente 
às ciências naturais, uma vez que não tenho a pretensão de discutir o 
estatuto científico da psicanálise nesses termos. O uso da palavra tem 
aqui o sentido da teoria como um sistema conceituai, suficientemente 
operacionalizável e aplicável na clínica. Esta sim, o elemento-surpresa 
que provoca a teoria em seu alcance explicativo e resolutivo. Nesse 
ponto, retorno a Derrida para reafirmar minha concepção de teoria: "Não 
há conceito metafísico em si. Há um trabalho — metafísico ou não — 
sobre sistemas conceituais" (op. cit. p. 37). 
Interrogando o ambulatório 
1. Sobre a pesquisa: uma participação observante 
Ao fazer uma pesquisa empírica para dar suporte à minha argumenta-
ção, tomo a experiência como um campo comum onde se turvam os 
limites entre o subjetivo e o objetivo, situando-me na realidade da pala-
vra, e reproduzo os relatos dos sujeitos pesquisados como fatos de lin-
guagem. Não se trata de comprovar a veracidade de cada dito, mas de 
citar, o mais literalmente possível, segmentos de falas, de enunciados, 
considerando o contexto em que se dá a enunciação. Isto é, no que se 
refere ao lugar de onde falam, para quem falam, e ao encadeamento da 
fala na seqüência. Não me limito a ser a ouvinte, mas falo com eles, 
através deles e para além deles, querendo dizer mais do que foi dito. 
Sabedora de que ao citar repito e modifico os relatos orais e escritos a 
que tive acesso, dando-lhes um destino peculiar em um novo contexto, 
conduzi essa empreitada. 
Desse modo, valho-me taticamente desses relatos, como dados dos 
quais me aproprio, para construir minha argumentação que pretende ser 
mais do que tendenciosa. Pretendo apontar-lhes novos sentidos, transfor-
má-los mesmo, segundo meu propósito de fundamentar a psicanálise 
possível fora do consultório privado. Aqui, para definir meu método, 
tomo emprestada a expressão "participação observante" de Eunice Dur-
ham em sua crítica bem humorada à tendenciosidade das pesquisas 
antropológicas que "resvalam para a militância" (Durham, 1986, p. 27). 
Ao me propor conviver e conversar com um meio tão familiar, entrego-
36 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
me à possibilidade de estranhá-lo, mas não abro mão da militância, da 
crença que aponta para o desejo de afirmar a psicanálise. 
Os procedimentos da pesquisa se desdobraram a partir de três mo-
mentos de meu trabalho que se sucedem e se complementam. Detalho 
cada um: 
1) Em minha experiência como docente do Instituto de Psiquiatria da 
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB), convivo com diferentes 
profissionais e seus paradigmas de doença, tratamento e cura. Registrei 
falas, atitudes e situações presenciadas no trabalho diário do ambulatório 
e na interação com outros setores, como a enfermar'a e o hospital-dia. 
Obtive, também, material oral e escrito mais detalhado sobre o funcio-
namento das diferentes modalidades de recepção e encaminhamento de 
pacientes no ambulatório.* Além disso, mantenho um trabalho de super-
visão e acompanhamento dos casos atendidos pelos pesquisadores (psi-
quiatras, psicólogos e psicanalistas) do Projeto de Assistência à Saúde 
Mental do Trabalhador (PRASMET).** Recolhi alguns casos que consi-
derei relevantes a partir do registro oral e escrito das sessões. 
Deliberadamente, não incluí material obtido na supervisão de casos 
atendidos por alunos, salvo uma ou outra exceção, já que sua posição é 
ambígua na instituição: são aprendizes ao mesmo tempo em que são 
profissionais e estão de passagem nos serviços. Seu trabalho tem a 
designação escolar de estágio e a responsabilidade pela clínica é dividida 
com o professor cuja autoridade remete o aluno a um lugar de submissão, 
não sem conseqüências para a clínica (Figueiredo, 1996b). 
2) Organizei um grupo de trabalho no Círculo Psicanalítico do Rio 
de Janeiro no período de março de 1993 a julho de 1994 com o tema 
'Clínica Psicanalítica no Ambulatório Público'. A participação era facul-
* A partir de 1994 foi implantado no ambulatório o sistema de recepção em grupos 
sob a coordenação de Sergio Levcovitz, psiquiatra e um dos idealizadores desse 
projeto. Acompanhei o trabalho e obtive material escrito produzido por ocasião 
do I Seminário sobre os Grupos de Recepção do IPUB realizado em abril de 
1995 pelos membros da equipe multiprofissional responsável pelo trabalho. 
** O Projeto de Assistência à Saúde Mental do Trabalhador (PRASMET) é coor-
denado por Silvia Rodrigues Jardim, psiquiatra e pesquisadora vinculada ao 
Programa de Pesquisa em Organização do Trabalho e Saúde Mental coordenado 
pelos professores João Ferreira da Silva Filho e Maria da Glória Ribeiro da 
Silva. 
Interrogando o ambulatório | 37 
tada a quaisquer profissionais vinculados à rede pública que tivessem 
uma afinidade direta com o tema proposto.* 
As discussões, inicialmente, se faziam em torno da descrição e ava-
liação desses serviços, dos seus problemas e de suas possibilidades em 
propiciar um trabalho psicanalítico. Posteriormente passamos à apresen-
tação e discussão de casos, etapa mais difícil e delicada, pois envolvia 
um esforço maior de construção dos casos, fazendo surgir os impasses 
propriamente clínicos de cada um. O registro foi feito com anotações 
minhas e com o material fornecido sobre os casos e o percurso dos 
participantes tanto nos serviços e na formação em psicanálise. 
3) Elaborei entrevistas roteirizadas realizadas com 28 profissionais da 
rede pública entre psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que se dispuse-
ram a conversar sobre seu trabalho.** Entrevistei-os uma ou duas vezes, 
* Tomaram parte nesse grupo cerca de quinze profissionais com vínculo empre-
gatício nas seguintes unidades: Centro de Saúde Carlos Antônio da Silva (Nite-
rói); Centro Municipal de Saúde Heitor Beltrão (Tijuca); Instituto de Cardiologia 
Aluysio de Castro (Humaitá); Hospital Infantil Ismélia Silveira (Caxias); Hospi-
tal Jurandir Manfredini da Colônia Juliano Moreira (Jacarepaguá); Hospital 
Gafrée Guinle — ambulatório de adultos (Tijuca); Serviço de Saúde Mental de 
Cabo Frio; IASERJ — ambulatório Maracanã; Hospital Cardoso Fontes/Hospi-
tal Geral de Jacarepaguá — Serviço de Adolescentes; Serviço de Psicologia 
Aplicada da UERJ e Posto de Saúde do Município de Cantagalo. Estes profis-
sionais, todos graduados em psicologia, tinham percursos bem diferenciados na 
psicanálise. Alguns vinham de instituições psicanalíticas onde receberam uma 
formação regular, e outros estavam iniciando seu contato com a formação atra-
vés do Círculo, embora já tivessem uma experiência pessoal em grupos de 
estudo, supervisão e análise. Somente duas pessoas eram membros efetivos do 
Círculo. 
** As unidades enfocadas foram: Postos de Atendimento Médico — PAM Bangu 
(emergência e ambulatório); PAM Irajá (serviço de psiquiatria); PAM 13 de 
Maio — Centro (serviços de psicologia, psiquiatria e adolescentes); PAM São 
FranciscoXavier (atualmente Policlínica Piquet Carneiro) e PAM Venezue-
la/Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (emergência); Centro de Saúde de 
Duque de Caxias (serviço de saúde mental); Centro Municipal de Saúde Manoel 
José Ferreira — Catete (serviço de psicologia); Centro de Saúde Santa Rosa — 
Niterói (serviço de saúde mental); Centro de Saúde Dr. Washington Luís Lopes 
— São Gonçalo (serviço de saúde mental); Programa Especial de Saúde Mental 
de Barra do Pirai (ambulatório); Posto Municipal de Saúde Dr. Cândido de 
Freitas — Duque de Caxias (serviço de psicologia); Posto de Saúde do Municí-
pio de Cantagalo (serviço de psicologia); Posto de Saúde Santa Isabel — São 
Gonçalo (serviço de psicologia); Posto de Saúde de Volta Redonda (serviço de 
38 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
saúde mental); Hospital Estadual Psiquiátrico de Jurujuba — Niterói (ambulató-
rio); Unidade Hospitalar Professor Adauto Botelho do Centro Psiquiátrico Pedro 
II — Engenho de Dentro; Hospital Phillipe Pinel — Botafogo [Núcleo de As-
sistência Intensiva à Criança Autista c Psicótica (NAICAP)]; Instituto de Assis-
tência aos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (IASERJ) — Maracanã e 
Gávea (serviço de psicologia); Hospital dos Servidores do Estado (serviço de 
psicologia); Hospital da Polícia Militar (serviço de psicologia); Hospital Pedro 
Ernesto/UERJ — Núcleo de Estudos do Adolescente (NESA). 
de acordo com minha necessidade e a disponibilidade de cada um, levan-
do em conta as informações de que dispunham e o tempo necessário para 
abrangê-las. Houve casos em que entrevistei várias pessoas ligadas ao 
mesmo serviço, ou apenas uma de determinado serviço. O critério se deu 
a partir do tamanho e da complexidade dos serviços e/ou da unidade a 
que estavam vinculados, sempre privilegiando o trabalho ambulatorial. 
As entrevistas foram gravadas e transcritas por mim, de modo que 
pude fazer da transcrição um bom momento para elaborar as informa-
ções e perceber sutilezas que me escaparam enquanto entrevistadora. Ao 
ouvir a repetição literal da conversa — estando posicionada como ouvin-
te de mim mesma e do outro, efeito da magia do gravador — deparei-me 
com novos sentidos, novas possibilidades de tradução, a partir de deta-
lhes de alguns ditos, de determinada entonação, pausas, uma certa mo-
dulação da voz, enfim, uma maneira de 'ouvir' nas entrelinhas que 
lançava questões e desafios não previstos. O efeito-surpresa deu-se aí de 
modo contundente. 
A escolha dos entrevistados não foi feita através dos serviços e, sim, 
por indicação de colegas psicanalistas mais próximos atendendo meu 
pedido de entrar em contato com profissionais que tivessem alguma 
ligação com a psicanálise e se propusessem a praticá-la nos ambulatórios 
públicos. Iniciei as entrevistas pelos meus colegas, é claro! Afinal, esse 
é o meio mais agradável e menos sujeito a resistências em fornecer 
informações. Daí em diante, obtive outros nomes e fui diversificando a 
amostra. Não me preocupei em definir a priori o número de sujeitos, seu 
perfil ou sua função nos serviços além da atividade clínica. Meu objetivo 
era fazer falar aqueles que tinham um percurso de no mínimo dois anos 
no serviço público, para melhor localizar os impasses e questões premen-
tes que advêm do seu trabalho clínico. Não se tratava de mapear os 
serviços nem de fazer uma avaliação mais rigorosa de seu funcionamento 
ou das políticas públicas que lhes deram origem. Essas informações 
foram acessórias e não constituem material expressivo para minha aná-
Interrogando o ambulatório I 39 
lise. Tinha uma escolha a fazer: ou bem tratava de traçar um perfil da 
rede pública ou me dedicava a pensar sobre as questões mais sutis do 
exercício da psicanálise, em sua feição peculiar, nos ambulatórios. Desde 
o início, a escolha já estava feita. O que precisava saber dizia respeito à 
diversidade ou semelhança das experiências de profissionais que, de 
alguma maneira, remetiam seu trabalho clínico à psicanálise. 
Obtive informações sobre diferentes tipos de serviços de acordo com 
o percurso dos entrevistados. Houve casos em que o entrevistado era 
procurado para falar de seu trabalho em determinado serviço e acabava 
falando de outro onde havia estado por um período maior, ou onde 
trabalhou melhor ou pior. Daí, traçávamos comparações, discutíamos 
modelos, formas de reconhecimento e validação da psicanálise que va-
riavam significativamente de um serviço para outro etc. 
Minha pesquisa, portanto, trilhou mais ou menos aleatoriamente ser-
viços heterogêneos —visitei alguns — quanto a local e população aten-
dida, proposta de trabalho clínico, política da direção das unidades e sua 
articulação com as políticas mais amplas de saúde mental e formação das 
equipes. Deixei de lado os serviços universitários diretamente ligados à 
formação de alunos, mas incluí um cuja característica era ter apenas 
técnicos e/ou pesquisadores à frente do trabalho clínico. Não me preocu-
pei quanto ao número total de entrevistas, considerando que em determi-
nado ponto haveria um basta. A premência do tempo não foi o fator 
menor, mas a recorrência de dados que incidiam sobre problemas seme-
lhantes foi a medida. 
Preparei um roteiro dividido em três partes: formação e percurso na 
psicanálise; modo de inserção e relação com o serviço; trabalho clínico 
com diferenças e aproximações do modelo do consultório. Para minha 
surpresa, a ordem não foi seguida, mas os tópicos entrelaçavam-se es-
pontaneamente como se fossem conseqüência natural um do outro. Con-
cluí que esse era o caminho e engavetei as cópias do roteiro. 
As entrevistas decorreram num processo análogo ao da associação 
livre — até onde podemos entendê-la como livre — e minhas perguntas 
foram a reboque das informações obtidas. Com freqüência, as entrevistas 
se iniciavam a partir de questões propostas pelos próprios entrevistados, 
que revelavam suas preocupações mais imediatas, como críticas ao fun-
cionamento dos serviços, projetos e idéias para sua melhoria, um caso 
clínico de difícil manejo, ou mesmo sua trajetória peculiar no serviço ou 
na psicanálise. Minha participação muitas vezes resultava em discutir os 
temas pensando soluções, emitindo opiniões, comentando os casos, en-
fim, trabalhando sobre as informações no decorrer das entrevistas de 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
40 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
modo que resultassem em alguma contribuição para os entrevistados. 
Encontrei pessoas entusiasmadas com suas conquistas, outras descrentes 
de qualquer possibilidade de renovação e, ainda, outras, temerosas po-
rém esperançosas, com prazer em reavivar suas idéias a partir de nossas 
conversas, que, espero sinceramente, tenham tomado novo fôlego para 
continuar. 
Concluída a pesquisa, obtenho anotações dispersas, um vasto mate-
rial de entrevistas transcritas e comentadas, e escritos diversos sobre 
casos clínicos e temas afins. Resta organizá-los metodicamente para 
deles extrair os fios com os quais devo tecer meu argumento. Do emara-
nhado de dados começo a agrupar os pontos comuns e contrastantes para 
dar-lhes uma coerência mínima. 
Meu método fundamenta-se na argumentação por exemplo, particu-
larizando as situações caso a caso. E, curiosamente, ao pedir que meus 
entrevistados dessem exemplos de sua clínica ou de situações que pode-
riam ilustrar suas afirmações gerais, adotei o modo de argumentação por 
exemplo no ato mesmo das entrevistas, entendendo que essa era a melhor 
maneira de me aproximar da clínica. Trabalho com segmentos de enun-
ciados, retirando-os dos contextos em que foram apresentados, transfor-
mando-os em citações para dar-lhes novos sentidos e extrair-lhes sua 
força exemplar. 
Ao exemplificar, recorro à citação, e citar é recontextualizar. E, ao 
citar as citações contidas nos relatos, refaço mais uma vez seu sentido. 
Mas não devemos entender que se tratam dc duas realidades ou dois 
níveis distintos de linguagem: a citação e o texto propriamente dito.Todo 
o meu trabalho na escrita constrói a argumentação nesse registro, diga-
mos, citacional. Aproveito e cito o argumento de Derrida: 
"Todo signo, lingüístico ou não lingüístico, falado ou escrito (no 
sentido corrente dessa oposição), em pequena ou grande escala, pode ser 
citado, posto entre aspas; por isso ele pode romper com todo contexto 
dado, engendrar ao infinito novos contextos, de modo absolutamente não 
saturável. Isso supõe não que a marca valha fora do contexto mas, ao 
contrário, que só existam contextos sem nenhum centro absoluto de 
ancoragem. Essa citacionalidade, essa duplicação ou duplicabilidade, 
essa iterabilidade da marca não é um acidente ou uma anomalia, é aquilo 
(normal/anormal) sem o que uma marca já não poderia sequer ter fun-
cionamento dito 'normal ' . Que seria de uma marca que não se pudesse 
citar? E cuja origem não pudesse ser perdida no meio do caminho?" 
(Derrida, 1991, p. 25-26). 
Interrogando o ambulatório I 41 
Essa iterabilidade de que fala Derrida é a possibilidade de a marca, a 
palavra, ter sua identidade repetida ao mesmo tempo em que é alterada, 
revelando sua opacidade em relação à intenção do dito. Logo, o uso que 
faço dos relatos orais e escritos separa-os da intenção e do contexto 
originais em que foram colhidos para relançá-los ao leitor. Este, por sua 
vez, deles se apropria numa nova interpretação que promove um novo 
hiato entre o que eu disse e o que quis dizer. E isso que interdita a 
saturação do contexto. Mas é preciso dizer o melhor possível aquilo que 
se quer dizer num movimento onde o sujeito total está ausente, em 
intenção e memória. Escrever consiste nesse incessante trabalho de en-
contrar as palavras e alocá-las numa sintaxe que traça o sentido. 
No recurso aos exemplos, procuro realçar seu valor explicativo no 
sentido usual de que 'os exemplos falam por si ' . Mas não há como 
exauri-los, pois podem infinitizar-se em tantos quanto as situações pos-
síveis na clínica. Há uma outra dimensão que dá ao exemplo sua quali-
dade paradigmática de ser exemplar, tanto no sentido de um 'bom exem-
plo' , quanto no de uma amostra passível de generalização — parte 
extensiva a um todo por projeção ou probabilidade. Assim, um único 
exemplo pode falar para além de si. 
Os relatos são citados em diferentes modalidades de exemplificação. 
Destaco as três mais freqüentes: 
— Segmentos de fala colhidos em entrevista com a mesma pessoa 
podem ilustrar temas e argumentos diferentes; 
— Segmentos de falas semelhantes de diferentes entrevistados que 
convergem para a mesma idéia podem ilustrar o mesmo tema ou argu-
mento; 
— Segmentos de fala ou texto partidos ou em fragmentos não-se-
qüenciados, podem ser usados mais de uma vez ou para ilustrar mais de 
um tema ou argumento. Nesse caso, o encadeamento inicial se perde na 
produção de uma nova seqüência. 
Convido o leitor a percorrer este texto, no qual indico as citações 
recorrendo às aspas, como referência mínima suficiente, e tomo a palavra 
não como alheia ou própria, mas como única possibilidade de passar 
adiante minha proposta. 
2. Sobre os serviços 
Conforme já indiquei, minha pesquisa trilhou serviços bastante hetero-
gêneos em sua organização, funcionamento e objetivos. Ao todo foram 
30 unidades entre postos de atendimento médico, centros e postos de 
42 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
saúde, hospitais gerais, hospitais psiquiátricos e hospitais universitários. 
Com exceção de duas unidades cujo atendimento é reservado aos funcio-
nários e familiares — Hospital do IASERJ e Hospital da Polícia Militar 
— as demais estão ligadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) implantado 
pelo Ministério da Saúde em regime de municipalização. Isto significa 
que o atendimento deve ser dado a toda e qualquer pessoa que o deman-
de, respeitando, tanto quanto possível, a regionalização por áreas progra-
máticas. 
Para preservar o sigilo, não identifico esta ou aquela unidade, nem 
seus respectivos funcionários, uma vez que não se trata de expô-los, e 
sim discutir seus impasses e sucessos para melhor fundamentar minha 
proposta de exercício da clínica psicanalítica nas instituições públicas. 
Na maioria das vezes, entretanto, é inevitável recorrer ao tipo de serviço 
ou unidade para exemplificar certas situações clínicas. 
Para discorrer sobre os aspectos mais relevantes para minha proposta, 
inicio a abordagem dos serviços recortando em seu funcionamento os 
mecanismos de recepção, triagem e encaminhamento dos pacientes. Mi-
nha preocupação aqui é indagar sobre as condições de viabilização da 
psicanálise, a partir do modo como se dão os primeiros contatos do 
paciente com a instituição. Suponho que estes procedimentos iniciais 
podem facilitar ou dificultar o trabalho do psicanalista a partir da deman-
da que lhe é encaminhada. 
Mais adiante, trato dos problemas relativos ao trabalho em equipe e 
sua formação para, em seguida, discutir as modalidades de tratamento 
mais ou menos referidas à psicanálise. Por fim, apresento um perfil dos 
profissionais 'psi ' que revela suas posições, muitas vezes ambíguas e 
confusas, em relação à identidade de psicanalista e suas conseqüências 
na clínica. 
2.1 Recepção, triagem e encaminhamento 
Sobre a recepção, o termo designa genericamente o primeiro atendimen-
to, em geral em grupos, e é usado muitas vezes no lugar do termo 
triagem, que dá uma idéia mais burocrática e menos acolhedora do 
atendimento. Em alguns serviços pretende-se caracterizar uma disponi-
bilidade permanente da equipe para os pacientes que retornam ou são 
encaminhados de outras unidades ou de outros setores da mesma unida-
de. Nesse caso, a recepção funciona como o eixo central da clínica 
Interrogando o ambulatório I 43 
decidindo o destino de cada caso no duplo sentido de destinação (enca-
minhamento) e desígnio (futuro). 
Tomo como referencia os trabalhos de Corbisier (1992), Levcovitz e 
cois. (1995) e Tenorio (1996) que fundamentam a proposta de atendi-
mento no modelo de recepção em grupos coordenados por equipe mul-
tiprofissional. Destaco duas experiências bem sucedidas de implantação 
desse modelo no ambulatorio de hospitais psiquiátricos, sendo um deles 
um serviço de emergência. Os autores versam sobre pontos comuns 
quanto à concepção do adoecer psíquico e do tratamento. Quem adoece 
e sofre é, antes de tudo, um sujeito e não um corpo. Logo, a fala deve ser 
privilegiada não como manifestação patológica que exige correção ou 
resposta imediata, mas como possibilidade de fazer aparecer uma outra 
dimensão da queixa que singulariza o pedido de ajuda. Conseqüente-
mente, o tratamento consiste, nessa etapa inicial, em acolher e escutar ao 
invés de ver e conter (Corbisier, p. 12). O que e quem se deve escutar é 
o ponto nodal para se fazer a diferença entre uma psiquiatria apressada 
em remitir o sintoma e uma abordagem que visa "desmedicalizar a 
demanda e subjetivar a queixa do paciente" (Tenório, p. 5). A psicanálise 
é a referência fundamental na formulação dessa proposta. Enfatiza-se a 
importância do trabalho em equipe e sua disponibilidade para tratar 
situações singulares e inventar soluções não-previstas. 
Outro ponto comum é a crença que a recepção em grupo não deve ser 
apenas um meio de reduzir as filas de espera, mas sim de propiciar um 
acolhimento constante e provocar efeitos terapêuticos. O grupo deve 
funcionar atendendo não só os pacientes que chegam ao ambulatório, 
mas também os que são encaminhados de outros setores da instituição, 
ou os que retornam após algum tempo de interrupção ou, ainda, os que 
demandam outro tipo de tratamento. Para isso, é preciso contar com o 
empenho da equipe num trabalho coeso e permanentemente avaliado 
para evitar a burocratização do atendimento — que pode transformá-lo 
em mera 'triagem' — e construir formas de encaminhamento a partir de 
premissas que envolvam a participação direta do paciente. 
Definido o modelo, a primeira questão é saber se só os psicanalistas, 
ou pessoas referidas àpsicanálise, estariam aptos para a tarefa. Penso que 
não só estes, mas, sem dúvida, o paradigma que sustenta a proposta é 
psicanalítico. Entretanto, o que pode ser decisivo para sua viabilização, 
ou não, depende muito mais do modo de funcionamento da equipe, do 
exercício permanente de discussão e avaliação das condutas e, principal-
mente, da responsabilidade dos profissionais frente aos pacientes, seja 
44 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
qual for o tipo de tratamento oferecido. Desse modo, o trabalho implica 
um contato direto e permanente com os diferentes profissionais que 
atuam no serviço, dos atendentes aos médicos, atravessando as hierar-
quias funcionais e burocráticas. A recepção pode ser um bom termôme-
tro da instituição ao tornar mais públicos, portanto mais transparentes, 
seus procedimentos clínicos, seus problemas e soluções no percurso de 
cada paciente. 
Os autores dão exemplos de casos que ilustram sua argumentação. É 
desnecessário reproduzi-los aqui. Como não devo me furtar aos exem-
plos, descrevo cenas que se sucederam em um grupo de recepção numa 
sessão agitada e cheia de imprevistos, relatada por um dos membros de 
uma equipe: 
"Nesse dia, éramos três psicólogos na equipe, eu e mais duas inician-
tes no trabalho. Atendemos duas pacientes que nos pareceram neuróticas, 
uma mais histérica e a outra mais obsessiva, cuja apresentação sintomá-
tica era, digamos, enlouquecida, a ponto de nos confundir num primeiro 
momento. Além delas havia um rapaz psicótico que tinha dado baixa no 
exército por conta de um surto, uma senhora acompanhada de sua filha 
que falava por ela e pedia um tratamento gcriátrico, e mais umas três 
pessoas... 
"A primeira a ser ouvida foi uma das duas primeiras pacientes. Tinha 
uns vinte e poucos anos, era grande e bonita, vinha do norte, de classe 
baixa, e começou a falar numa modulação meio delirante com um olhar 
perdido, dizendo que 'Deus não está só no bem... está no mal e tenta a 
gente com o mal ' . Estava acompanhada do irmão e da cunhada, vestia 
saia e ficava passando a mão na perna e a cunhada ficava abaixando sua 
saia... Ela repetia continuamente 'as carícias de Deus...' e ficava nisso. O 
irmão pediu a palavra para contar que ela fazia um cursinho e se apaixo-
nou pelo professor de biologia, que a seduziu. Eles tiveram um envolvi-
mento e, quando ela resolveu contar em casa, o irmão foi com ela até a 
casa do professor para matar o cara ou obrigá-lo a casar. Ele negou que 
tivesse havido relação sexual e ela foi levada ao ginecologista para um 
exame que constatou sua virgindade. 'Ela ainda é pura' , disse o irmão. 
Nisso, ela diz: 'O problema é que eu gostei... gostei mesmo e faria de 
novo... você não entende nada', diz para o irmão. Mas continua meio 
desarticulada sem falar coisa com coisa. Decidimos, eu e mais outra 
pessoa da equipe, levá-la ao plantão para ser medicada, mas não interna-
da, e após tranqüilizar a família, encaminhamos para psicoterapia indi-
vidual com essa mesma colega que a acompanhou. 
Interrogando o ambulatório | 45 
"De volta ao grupo, ouvimos a outra paciente, uma senhora magri-
nha, miúda, envelhecida, que dizia muito aflita... 'Estou com um proble-
ma de limpeza, tenho que limpar tudo... se alguém entra na minha casa 
tenho que limpar o chão muitas vezes... só uso o sabonete uma vez, fico 
horas tomando banho, lavando a mão... sei que estou me sentindo suja 
porque tive uma relação ilegítima com um homem casado... minha filha 
não quer mais saber de mim'. Ela chorava muito, a coisa transborda e 
contagia todo mundo... Ela segue implorando... 'pelo amor de Deus, 
promete, por favor, que o senhor vai telefonar para minha filha quando 
terminar aqui e vai dizer a ela que eu vou ficar boa para ela não me 
abandonar... me dá um remédio pelo amor de Deus' . . . Eu tentava 
intervenções mais serenas, mas ela foi crescendo, aumentando o tom, até 
dizer 'eu preciso de alguém que me diga assim... chega, pára,... não faz 
mais isso!... Como num ato reflexo, eu disse enfático: 'Então pára!' Ela 
tomou um susto e parou. A outra psicóloga assumiu o caso na hora e 
pedimos a um médico que a atendesse naquele dia para tranqüilizá-la e 
talvez medicá-la, se fosse o caso, explicando o episódio e nossa decisão 
de encaminhar para psicoterapia. 
"Ainda ouvimos a outra senhora que pouco falava, muito reticente, se 
deixando representar por sua filha que insistia em obter um atendimento 
na geriatria porque tinha ouvido falar nisso... Tentamos fazê-la retornar 
ao grupo na outra semana para conversar e esclarecer melhor esse pedi-
do. Solicitamos a opinião da senhora que dizia que o grupo era bom, o 
médico também seria bom... e a filha dizia: 'Eu conheço ela. Marca logo 
um médico porque se o senhor disser para ela voltar, ela não volta'. 
Apostamos em tentar um retorno porque achamos que o pedido vinha 
meio apressado e estereotipado... velho vai para a geriatria! Ela não 
retornou." 
O exemplo mostra como esse tipo de atendimento requer uma certa 
sutileza na escuta, bem como precisão e agilidade na condução de cada 
caso. Extraordinariamente, nesse dia contou-se com a disponibilidade de 
dois membros da equipe em receber parte dos próprios encaminhamen-
tos, além do suporte regular da equipe de plantão. Essas ocorrências, não 
raras nesse tipo de serviço, lembram bem o refrão de uma música dos 
Titãs: "Tudo ao mesmo tempo agora!" 
Outra entrevistada relata sua experiência com triagem em grupo em 
um serviço de saúde mental, que se assemelha à proposta dos grupos de 
recepção: 
46 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
"Havia um horário fixo para a triagem, e quem chegasse ao serviço 
tinha que passar pelo grupo. Tinha de tudo: crianças e familiares, adultos 
psicóticos em surto ou não, adultos neuróticos, uma maioria de mulheres 
etc. Explicávamos que era uma reunião de triagem e que queríamos saber 
o motivo deles estarem ali para podermos fazer os encaminhamentos. 
Observamos, com o tempo, que a triagem já tinha resolutividade. 
"Um dia veio um senhora com uma menina encaminhada pela escola 
com distúrbio de aprendizagem. Ao indagarmos o motivo, ela disse que 
a menina tinha dez anos e estava na I a série... Mas, o que houve? Ela 
repetiu o ano?... 'Não, ela não é minha filha não, é que ela veio do norte 
e lá ela não estudava... eu botei ela na escola agora...' Até então, ninguém 
tinha se dado ao trabalho de perguntar por que ela estava na I a série. 
"Uma outra vez, veio uma moça dizendo que era viúva, crente de uma 
pequena Igreja, que não permitia que ela se casasse de novo. Se queixava 
de uns calores no corpo. Uma outra mulher então sugeriu que ela fre-
qüentasse a sua Igreja, porque lá ela poderia se casar. Ela imediatamente 
pegou os horários do culto e deu-se por satisfeita. 
"Teve um outro caso de uma menina de uns sete anos, que tinha uma 
confusão de sintomas: não dormia sem a avó que cuidava dela, fazia xixi 
na cama, era cheia de fobias, chorava dia e noite, e não conseguia ficar 
na escola sem a presença da avó. Tinha uma história complicada de 
abandono da mãe e o pai tinha sumido. Me lembrava a Piggle do Winni-
cott. Essa menina entrou em análise comigo apoiada pela avó e ficou uns 
quatro anos vindo ao ambulatório regularmente. Foi um caso de psica-
nálise, sem dúvida." 
O segundo exemplo mostra que a resolutividade depende não só das 
iniciativas da equipe mas, também, de sua tolerância em deixar que as 
demandas se resolvam naquele espaço, para poder diferenciar as condu-
tas e os encaminhamentos. Nesse caso, o atendimento em grupos era 
muito incentivado. Havia grupos de pacientes egressos de internação 
psiquiátrica em hospitais conveniados, grupos de familiares desses pa-
cientes, de mulheres etc. Mas também havia a possibilidade de um 
atendimento individual prolongado. A oferta cabia ao profissional, e a 
demanda delineava-se nesses atendimentos coletivos como uma espécie 
de vestíbulo da psicanálise. 
O fato de a psicanálise fundamentar a escutanesse tipo de trabalho, 
visando ir além das queixas e demandas mais imediatas, pode favorecer 
um encaminhamento que dê início ao processo analítico. Mas também, 
tendo em vista a proliferação de urgências num atendimento em grupo, 
Interrogando o ambulatório I 47 
corre-se o risco de prolongar a escuta em função de demandas pouco 
claras, a ponto de perder sua resolutividade. Ou, ainda, de padronizar os 
encaminhamentos para a chamada psicoterapia — conjunto heterogêneo 
de práticas psicológicas onde se aloja a psicanálise — seja porque seria 
considerada a melhor modalidade de tratamento, ou porque já haveria 
um estereótipo da psicoterapia como lugar privilegiado para se falar dos 
problemas da vida. Essa concepção, por si, não é má, afinal uma análise 
pode bem começar por aí, desde que não se torne mais um cacoete da 
clínica. 
Obtive um relato interessante que mostra bem o modelo em seu 
avesso. Em outro serviço de saúde mental a recepção era feita em grupo 
por um psiquiatra com a presença de um psicólogo. Em meio à confusão 
de pacientes, familiares e acompanhantes, o psiquiatra procedia às per-
guntas: "Qual o seu problema?" ou "Agora é sua vez..." e ouvia cada um 
por poucos minutos, encaminhando rapidamente para medicação ou psi-
coterapia de acordo com a primeira impressão, visando uma alta resolu-
tividade numérica. Aqui, atender é sinônimo de despachar, e grupo é 
simplesmente uma questão de quantidade. 
Feita a ressalva sobre o que não se deve fazer, o modelo dos grupos 
de recepção, ou de triagem coletiva, tem se propagado especialmente nos 
serviços de psiquiatria e/ou de saúde mental. Sua preocupação maior em 
defender a convivência de pacientes graves, ou com comportamentos 
aparentemente inadequados, junto aos demais, pretende desfazer o estig-
ma da doença mental e socializar as experiências do sofrimento psíquico. 
Há, justamente aí, um fio condutor que os liga: todos estão ali buscando 
soluções para seu sofrimento. De certa forma, esse é um fator homoge-
neizador. O problema de um pode interessar, comover e, mesmo, provo-
car efeitos terapêuticos no outro. Pode também causar horror, mas nesse 
ponto o manejo cabe à equipe. De qualquer modo, esse tipo de atendi-
mento pode permitir discriminar as demandas até onde é possível, para 
localizar a questão do sujeito em meio ao emaranhado de queixas que 
tanto podem vir dele quanto dos que o acompanham. 
Um último exemplo: 
Novamente, trata-se de uma triagem em grupo, desta vez em um 
serviço que atende adolescentes e suas famílias: 
"Atendemos uma menina que vinha acompanhada de sua avó. Depois 
de alguns atendimentos, ela pede um espaço para ela. Encaminhamos 
para um grupo de mulheres. Ela foi umas duas ou três vezes e pediu para 
48 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
voltar para o grupo anterior dizendo: 'Aqui não escuto caso de ninguém... 
quero escutar os casos das pessoas também.' Resolvemos acolher o seu 
pedido, porque, na triagem, a mãe ou um parente vêm junto; no outro 
grupo ela teria que vir sozinha. Tenho a impressão de que não é porque 
ela não queria se separar da avó, como um sinal de dependência. Mas, 
talvez, porque ela esperasse que a avó pudesse se beneficiar também. O 
mais curioso, é que a avó diz: '... Nossa! como ela está bem... voltou a 
estudar, porque ela tinha parado os estudos... agora ela escuta os proble-
mas das pessoas..." 
O exemplo fala por si. Sobre esse caso é importante estar atento aos 
seus desdobramentos para acompanhar os efeitos dessa demanda. Aqui, 
a triagem se transforma em tratamento. E, do que se trata no pedido dessa 
adolescente? 
Curiosamente, esse não é o único caso em que o grupo de triagem é 
escolhido. Fiquei sabendo que, nesse mesmo serviço houve situações 
semelhantes. A entrevistada relata outro episódio: 
"Teve um outro caso de um menino de uns dez ou onze anos, que me 
foi encaminhado para psicoterapia individual; veio a algumas sessões e 
não voltou. Um tempo depois, encontrei com ele, por acaso, quando fui 
à sua escola para fazer um contato institucional, através da minha unida-
de. Ele lembrou de mim e, para minha surpresa, voltou a procurar o 
serviço. Recomeçou pelo grupo de triagem e, quando foram encaminhá-
lo, ele foi explícito: 'Não,... eu quero é ficar aqui mesmo. Aqui eu ouço 
os problemas dos outros, eu aprendo com isso.' Novamente aceitamos." 
Em outras unidades, cuja característica dominante é a oferta de ser-
viços de clínica médica com várias especialidades, os procedimentos são 
diferentes. Os pacientes dirigem-se à especialidade médica para onde 
foram encaminhados, ou à clínica geral para um exame preliminar, oca-
sião em que é feita a triagem para as outras clínicas, entre elas a psico-
logia. Muitas vezes os psicólogos são alocados junto a especialidades 
médicas onde há maior solicitação de sua intervenção. E bom esclarecer 
que ela parte mais dos médicos do que dos pacientes. O encaminhamento 
se dá, então, por vias mais personalizadas e menos regulares. 
É também o caso dos centros e postos de saúde que não têm um 
serviço de psiquiatria ou de saúde mental, bem como dos ambulatórios 
dos hospitais gerais. Recebem demandas para a clínica médica de acordo 
com os programas de atenção primária e secundária oferecidos. As mais 
freqüentes são para a pediatria, ginecologia e obstetrícia, pneumologia, 
Interrogando o ambulatorio \ 49 
dermatologia, hanseníase, diabetes e cardiologia — com destaque para a 
clínica de hipertensos. Nos hospitais, há uma variedade maior de espe-
cialidades incluindo nefrologia, reumatologia, endocrinologia, neurolo-
gia e, em alguns casos, psiquiatria. 
Conforme relatos dos entrevistados, a partir da resolução específica 
dos problemas clínicos, os encaminhamentos são feitos para a psicologia, 
seguindo, na maioria das vezes, critérios genéricos e estereotipados. Os 
mais comuns são: problemas de aprendizagem e comportamento, no caso 
de crianças e adolescentes; dificuldades clínicas com adultos resistentes a 
determinado tratamento; problemas emocionais de todo tipo, sendo ansie-
dade e depressão os mais freqüentemente diagnosticados. Nesses casos, o 
serviço de psicologia é visto como 'ajustador' de situações-limite que 
podem comprometer o bom andamento da clínica médica, ou, como 
referiu um entrevistado, "depositário de tudo o que diz respeito ao huma-
no e provoca ansiedade nos médicos..." E ironiza: "bons tempos da me-
dicina em que corpo e gente eram a mesma coisa". 
Um outro comenta: "Eles querem encaminhar tudo que é considerado 
problema psicossocial: o pai que bate, o que bebe, a criança que fugiu de 
casa ou foi seduzida pelo pai, padrasto ou irmão; a que vai fazer uma 
cirurgia... e por aí vai." 
Há também os famosos poliqueixosos — enigma que os médicos se 
eximem de decifrar — e os psicossomáticos, que já têm seu lugar garan-
tido na ambígua especialidade conhecida como medicina psicológica ou 
psicossomática: uma espécie de terra de ninguém, ou de todo mundo, 
onde grassa o psicologismo e a interpretação carregada de sentido facul-
tada a quem for mais imaginativo, provocando uma disseminação bana-
lizada tanto do jargão médico quanto do psicanalítico. Não pretendo 
discutir este ponto em toda a sua extensão, mas atento para os impasses 
que daí advêm para o diagnóstico e para o tratamento. 
Além do encaminhamento da clínica médica, as demandas mais fre-
qüentes à psicologia vêm das escolas. Seja diretamente, através de pedi-
dos de laudos, ou, indiretamente, através das mães que são pressionadas 
a levarem seus filhos, sob pena dc perderam suas matrículas. Sobre isso, 
alguns psicanalistas apresentaram como solução uma triagem que, ini-
cialmente, prioriza a posição da mãe ou do responsável pela criança. 
Tomemos dois exemplos: 
"Minha primeira intervenção era para esclarecer o pedido e tranqüi-
lizar a mãe sobre a matrícula, até para poder situar o caso. Elas vinham 
50 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
desesperadas e despejavam um mar de queixasdos filhos, do marido, da 
sobrecarga de trabalho em casa etc. Tinha que peneirar essa confusão e, 
se fosse preciso, mandar logo um bilhete para a escola garantindo que a 
criança estava sendo avaliada... aí eu ganhava tempo. As vezes bastavam 
algumas entrevistas e a coisa se resolvia... e, muitas vezes, era a mãe que 
ficava em tratamento. Havia casos em que eu atendia a criança e manti-
nha conversas regulares com a mãe e via alguns efeitos interessantes com 
a mãe enquanto que com a criança a coisa não mudava muito... ela 
pegava uma carona no tratamento do filho, mas ela precisava acreditar 
que era ele quem se tratava e não ela." 
"Quando cheguei no serviço, era uma enxurrada de mães ansiosas 
trazendo cartinha da escola e resolvi atender em grupo... era muita de-
manda equivocada... No geral era distúrbio de comportamento e dificul-
dade de aprendizagem. Para não deixar a criança entrar nesse circuito 
equivocado da doença, comecei a usar de bom senso, me metia nas 
histórias e falava quase o tempo todo... era uma barulheira danada... 
crianças pela sala, todo mundo falando ao mesmo tempo... as mães se 
queixavam muito que não conseguiam dar limites, se fazerem respeitar... 
tudo podia ser trauma... Uma dizia: 'Meu filho não gosta de tomar 
remédio... se eu forçar vai ficar com trauma'... Eu dizia que remédio não 
é opção... tem que tomar... tenta com jeito... não foi?... abre a boca e 
pronto... falta de limite é que traumatiza. Acho que grande parte dos 
problemas era decorrência da infiltração do psicologismo nas camadas 
mais pobres. Eu tinha que esclarecer que aquilo era uma triagem e que 
se houvesse necessidade nós atenderíamos a criança, mas defendia que 
a maioria delas não precisava... E, com isso, o grupo tinha uma resoluti-
vidade grande, de repente a queixa sumia e uma mãe falava: 'Estou vindo 
porque quero conversar, a criança está bem'." 
Outro entrevistado conclui: "O que acontece é que tanto o clínico 
quanto a escola forjam uma demanda que temos que trabalhar, senão 
nada acontece..." 
O que interessa destacar em todos esses exemplos é a importância de 
ganhar tempo, seja atendendo individualmente ou em grupo no modelo 
dos grupos de recepção. E preciso decantar essas demandas. De um lado, 
para esvaziá-las, desfazendo equívocos. De outro, fazendo aparecer um 
dado novo ('um a mais ') , ou uma outra maneira de dizer. Há, portanto, 
um trabalho anterior a ser feito como condição para dar lugar a uma outra 
demanda que possa ser remetida à psicanálise ou, simplesmente, fazer 
Interrogando o ambulatório | 5 1 
desaparecer a demanda 'tora do lugar'. Essa deve ser a maior lição que 
temos que aprender da psicanálise nesse primeiro momento. 
Sobre a demanda fora do lugar, há um consenso entre psicólogos, 
psicanalistas e psiquiatras, menos aderidos ao medicalismo, que a clínica 
médica, ao separar 'corpo' de 'gente' , sofreu um empobrecimento de 
seus recursos propriamente clínicos substituindo-os por novas tecnolo-
gias de exame e diagnóstico que prescindem dos elementos terapêuticos 
sustentados na relação de confiança nutrida pela convivência e pela 
conversa. Freud sempre sublinhou os efeitos da sugestão que estão na 
base dos fenômenos da transferência como um poderoso instrumento 
terapêutico — e também de equívocos — presente na clínica em geral. 
A questão não é assemelhar a clínica médica à psicanalítica sob o 
mesmo denominador comum da transferência. Antes, é devolver à clíni-
ca médica um espaço dela retirado pelo próprio psicologismo (ou psica-
nalismo), para dar conta de um certo endereçamento feito ao médico em 
vez de precipitá-lo aos 'psi' quaisquer em nome das especialidades. 
Em alguns serviços, me foi relatada uma constante preocupação, 
especialmente por parte dos psicanalistas, em indagar dos médicos os 
motivos deste ou daquele encaminhamento. Muitas vezes entabulavam 
conversas informais, outras, discutiam em reuniões comuns procurando, 
nem sempre com a tática desejável, deter essa precipitação em expelir do 
campo médico tudo o que escapa a uma dimensão tecnicista do exame e 
diagnóstico. 
Duas armadilhas entravam esse diálogo clínico precipitando as con-
dutas: A primeira é o medicalismo, que responde ao pedido de 'remédio' 
com a solução química, tida como mais rápida e eficaz, como se não 
houvesse outro 'remédio' para o sofrimento. A segunda é o psicologis-
mo, que responde ao pedido de soluções para o 'trauma', entendido 
como ameaça ou castigo psicológico por uma conduta errada, com a 
tarefa moral de corrigir o erro através de uma pedagogia supostamente 
esclarecida. O que é diferente de se utilizar taticamente do recurso a uma 
certa pedagogia para desfazer os excessos de psicologismo. O problema 
é que a tarefa crucial de enxugar o medicalismo ou o psicologismo não 
se dá sem problemas. 
Primeiro porque "os lugares onde, em princípio, médicos e psicana-
listas [e psicólogos] se encontram são, sem dúvida, aqueles onde tudo 
pode ser dito, porque são sem possibilidade de rigor. Na melhor das 
hipóteses, são lugares de transição onde se afirmam vocações; na pior, 
pântanos onde se afundam veleidades" (Clavreul, 1983, p. 179). 
52 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Segundo porque, em se tratando do serviço público, a burocratização 
das especialidades, que tem como um de seus resultados nefastos sua 
própria estereotipia, não permite, sequer, a existência desses "lugares de 
transição", ou de trânsito, que podem favorecer a clínica. 
Tomemos um exemplo-limite: 
"Teve um caso que veio da pediatria para mim [psicóloga]. Era uma 
pediatra mais velha, à beira da aposentadoria. A mãe senta do meu lado 
e começa a explicar: 'ah... não sei... ela está comendo muito, bebendo 
muita água, fazendo muito xixi e emagreceu'... Eu disse que estava me 
parecendo que a menina estava diabética, no que ela respondeu: '... é, 
tem casos na família'. Devolvi para a pediatra, cheia de dedos porque era 
uma situação muito delicada, e disse que não sabia bem porque ela 
queria uma psicóloga agora, mas a urgência era médica. A pediatra 
confirmou minha hipótese." 
Sem dúvida, houve um erro médico, de anamnese, que remeteu o 
trabalho clínico a uma não médica. Seu diagnóstico foi feito sobre um 
relato simples, bastava ouvir atentamente a queixa. Não se sabe sequer 
em que condições se deu o primeiro atendimento, nem o que a mãe falou. 
Isso é que é assustador. Enurese ou diabetes? Psicologia ou medicina? 
Eis um efeito nefasto da estereotipia que aposenta a clínica. 
Um outro relato de uma psicanalista, que recebe encaminhamentos 
freqüentes da pediatria, apresenta o problema revelando sua preocupação 
quanto ao desconhecimento, quiçá descaso, dos médicos sobre o que seja 
o trabalho psicanalítico. Os motivos são padronizados, mais uma vez, 
sob a rubrica de distúrbio do comportamento. 
"Eles encaminham pedindo uma avaliação do psicólogo como se 
estivessem encaminhando para um colega de outra especialidade. Tudo 
deve se resolver com laudos, definindo diagnósticos e condutas sobre tal 
ou tal sintoma. Em psicanálise não é assim. 
"Uma vez, tentei explicar a concepção que a psicanálise tem do 
sintoma comparando com a medicina, numa apresentação de caso para 
urna platéia predominantemente médica. Acho que falei para as paredes. 
E o pior é que meus colegas presentes ficaram tentando reduzir a dife-
rença, como se isso fosse gerar um atrito com os médicos. Aliás, o que 
mais me impressiona é que são todos psicólogos com formação em 
psicanálise, mas tendem a reproduzir algo próximo do modelo médico, 
dando diagnósticos precipitados, muitas vezes comunicando-os aos pa-
cientes e à família, mais para prestar contas aos médicos do que para 
Interrogando o ambulatório I 53 
construir a possibilidade de um trabalho psicanalítico. Observam os 
sintomas e fazem uma intervenção mais normativa, sem questionar os 
encaminhamentos ou dar um desdobramento a esse atendimento... Pare-
ce-me que não há rigor científico. Fazem uma abordagem meiocompor-
tamental, até educativa, confundindo os lugares do psicólogo com o do 
assistente social e, mesmo, com o do médico... Lá no serviço todos 
somos chamados de 'doutor', e não só pelos pacientes." 
Mais adiante ela faz a diferença dando um exemplo inverso: 
"Tem duas neuropediatras que trabalharam comigo em outro lugar 
onde pudemos discutir melhor o momento propício de fazer os encami-
nhamentos, e a coisa funcionou diferente. E bem verdade que elas estão 
mais envolvidas com a psicanálise, fazem análise e se interessam em 
acompanhar os desdobramentos dos casos. Lembro do caso de uma 
paciente que fazia crises convulsivas e vinha sendo tratada com medica-
ção própria para isso. A médica que a atendia, em vários momentos, 
achou que devia encaminhá-la para a psicologia em função dela se 
queixar de uma inibição acentuada e de ter uma história complicada de 
adoção. O encaminhamento só foi feito quando a paciente começou a se 
perguntar sobre as situações que a levavam a fazer a crise convulsiva. A 
meu ver, ela pôde reconhecer a diferença entre escutar uma queixa c 
escutar uma questão do sujeito. Isso é fundamental." 
Tomando os dois exemplos, no primeiro os psicólogos se aproximam 
dos médicos desconhecendo a especificidade da escuta psicanalítica. No 
segundo, os médicos se aproximam dos psicanalistas reconhecendo essa 
especificidade: exemplos limítrofes do mau e do bom procedimento. O 
que devemos apreender disso é que, do indesejável ao desejável para a 
instalação do dispositivo psicanalítico, cabe ao psicanalista a responsa-
bilidade de fazer a diferença, contando mais ou menos com a adesão dos 
outros especialistas. Sc a demanda já vem azeitada, muito bem. Do 
contrário, é preciso recomeçar a cada caso, mesmo em condições adver-
sas. Logo, não cabe ao psicanalista exigir dos médicos que sejam menos 
médicos, mas pode-se ousar provocá-los sobre o que mais podem fazer 
para atender seus pacientes sem pressa de passá-los adiante. Também, 
não lhe cabe ceder às demandas médicas a ponto de descaracterizar seu 
trabalho. 
Outra psicanalista comenta que é mais eficaz trabalhar com determi-
nados profissionais para uma melhor condução dos casos: "Eu faço 
parceria com uma psiquiatra homeopata que me encaminha os casos, 
acho que facilita." 
54 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Entretanto, há certas parcerias que podem resultar num impasse. 
Tomo o exemplo de uma psicanalista que atendia um rapaz epiléptico 
que fazia uso abusivo de cocaína. Ele tinha acompanhamento médico. O 
diálogo entre os dois profissionais se deu mais ou menos assim: 
"Médica — Estou muito preocupada com ele... sei que está cheirando 
escondido, assim não posso me responsabilizar pelas conseqüências. 
Psicanalista — Comigo ele não falou nada sobre isso. 
M — Mas você que é psicóloga tem que falar com ele... 
P — Mas se ele não me disse nada eu não posso chegar com essa 
informação vinda de fora... por que você não fala com ele e vemos o que 
acontece?... afinal, você é quem medica e o problema é a epilepsia com 
a medicação e a droga..." 
Nesse aparente jogo-de-empurra, a proposta da médica é que quem 
medica não conversa, não age sobre questões morais ou educativas, isso 
é tarefa da psicóloga. Para a psicanalista — é assim que ela se nomeia, 
acatando taticamente a designação de psicóloga — a conversa em jogo 
não pressupõe outra intervenção que não seja a partir da fala do sujeito. 
O que ele esconde e de quem, é responsabilidade sua. Escuta-se um 
sujeito, e não um epiléptico, ainda que esse fato não possa ser escamo-
teado com todas as suas conseqüências. Afinal, ser epiléptico lhe diz 
respeito. Esse exemplo nos põe diante da questão crucial de que 'conver-
sa' define a clínica psicanalítica. Retomarei esse ponto adiante. 
Voltando ao tema inicial, há situações em que o próprio psicanalista 
é chamado a fazer a triagem do serviço em entrevistas individuais. Sabe-
mos que boa parte, senão a maioria, daqueles que procuram atendimento 
pode não se dispor, num primeiro momento, a entrar no jogo psicanalí-
tico. O que fazer? 
Em primeiro lugar, tomemos uma regra geral para o encaminhamen-
to: é preciso estar situado em relação às ofertas de tratamento operantes 
no serviço. Digo operantes, porque admito que nem sempre as ofertas 
cumprem seus propósitos por motivos que vão além da questão propria-
mente clínica. Como exemplo, refiro-me a um serviço cuja tradição era 
oferecer atendimento psicoterápico em grupos, e foi se desmantelando 
por falta de profissionais habilitados e/ou dispostos a mantê-lo. Na clíni-
ca, não se pode contar com o que está à beira da extinção. 
Uma psicanalista comenta, apreensiva, que ao fazer a triagem tende 
a absorver determinados casos porque considera que a oferta do serviço 
sem capacidade para comportar casos mais graves ou demandas que 
revelam sofrimento intenso ou questões mais singulares: 
Interrogando o ambulatório I 55 
"Nas primeiras entrevistas tento ver que tipo de demanda pode se 
enquadrar nos atendimentos oferecidos. Lá, eles têm vários tipos de 
grupos temáticos e, às vezes, recebo casos que podem se encaixar bem 
nesses grupos. Recebi uma senhora que estava a fim de conversar, tinha 
um marido alcoólatra e descobriu que estava sendo traída, mas me pare-
cia que ela estava querendo trocar idéias com outras mulheres. Encami-
nhei-a para o grupo de mulheres. Mas quando chega alguém mais angus-
tiado ou com uma questão sobre seu problema, eu acabo p e a n d o o caso. 
"Outro dia atendi um policial, um sujeito forte, rude mas respeitoso, 
que chegou com os olhos úmidos dizendo que acha que o filho é viado. 
Ele diz: 'se for assim, já sei que tenho que aceitar'. E le ja tinha vascu-
lhado o quarto do menino e estava muito angustiado. A dúvida dele é 
muito interessante, porque ele diz que o filho só anda com meninas e, 
quando leu sua agenda, descobriu que o filho estava apaixonado por uma 
menina. Ele quer saber se o filho quer ser como as meninas ou se está 
mesmo interessado numa delas. Provavelmente, esse dilema atravessa o 
menino também, uma divisão entre a identificação e a escolha de objeto 
muito comum na adolescência. O pai prossegue dizendo: '... eu me 
lembrei de mim porque o meu pai nunca conversava comigo... não falava 
nada sobre mulher... aí eu disse pro meu filho... vou te levar numa 
terma'... Mais adiante ele pergunta: 'Será que eu levo ele numa terma?' 
Eu respondi sem vacilar: 'Espera um pouco, você mesmo falou que teve 
problemas com seu pai porque ele não conversava... não é melhor falar 
com seu filho antes?' Ele acatou e me pareceu mais aliviado. Resolvi 
pegar o caso e marquei para ele voltar". 
Infelizmente, não tenho mais dados sobre o rumo desse caso. É 
importante destacar desse episódio que há um trabalho para fazer, par-
tindo de uma prioridade dada pelo sujeito que se apresenta como um pai 
temeroso de estar falhando em fazer de seu filho um homem, quando ele 
próprio, ainda que feito homem, não sabe muito bem o que deve fazer 
um pai para isso. O que o faz crer que um psicólogo saberia, pode ser 
fruto da idéia disseminada na cultura 'psi ' de que os psicólogos enten-
dem de sexo ou de conversa. Mas isso é apenas um solo comum sobre o 
qual caminham e se encaminham as mais diversas demandas com os 
mais variados desfechos. 
Outras modalidades mais prosaicas de encaminhamento, que se cos-
tuma chamar de informal, são freqüentes em pequenas unidades como 
os postos de saúde afastados dos grande centros. Psicólogos e psicana-
56 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
listas que trabalham nesses lugares, geralmente sozinhos ou acompanha-
dos apenas de um colega, foram unânimes em afirmar que, após um certo 
tempo, recebiam um afluxo maior de pessoas que os procuravam direta-
mente a partir de indicações feitas por amigos, vizinhos e parentes em 
atendimento, ou haviam sido, atendidos por eles. Entretanto, isso não 
significava que iniciassem processos de análise. Houve situações cm que 
a mesma psicanalistajá havia atendido quase toda a família e outras 
inesperadas. Seguem-se dois exemplos: 
"Eu atendo uma mulher que chegou depois de vários membros da 
família terem passado por mim. Primeiro veio a neta, depois o filho, 
depois a sogra e, por último, ela. Eles se revezaram durante um tempo e 
só ela permaneceu. Curioso é que ela vinha e não sabia o que falar, por 
mais que eu puxasse não saía nada. Até que um dia eu disse: 'então está 
bem, quando você tiver alguma coisa para me dizer, você volta aqui'. Ela 
passou um bom tempo sem aparecer e quando voltou veio meio conver-
sando, e lá pelas tantas me fala que lembrou de uma intervenção minha 
que tinha feito ela mudar de atitude. O sintoma dela consistia em peram-
bular pelos médicos, fazer uma série de exames, e não pegar os resulta-
dos. Eu havia marcado isso de 'não pegar', e ela me diz, meio por acaso, 
que já tinha conseguido pegar um exame de sangue. Ela vem uma vez 
por mês porque mora em outro município, é muito longe e não tem 
condução fácil. 
"Um dia, recebi um homem, que era peão de uma fazenda no muni-
cípio vizinho, chegou a cavalo e disse que estava ali porque tinha ouvido 
duas senhoras conversando que diziam que tinha uma doutora no ambu-
latório que tratava sem remédio. Perguntei o que ele tinha e ouvi como 
resposta: 'Eu tenho uma coisa que remédio não cura... meu passado está 
voltando.' No decorrer da entrevista, ele foi explicando como era isso. 
Eram seus sonhos que ele relacionava com situações de sua própria vida 
que atualizavam esse passado... Foi surpreendente!" 
Diante de modalidades tão diversas e adversas de encaminhamento, 
o psicanalista pode estar presente desde o primeiro momento ou ser o 
último a saber (como o marido traído) sobre o percurso de quem chega 
até ele. Certamente, isso faz diferença. E, não resistindo ao inevitável 
jogo de palavras, o 'isso' que faz diferença é propriamente seu métier. 
Em suma, decantar a demanda num tempo de lala; esvaziar a demanda 
'fora do lugar' num tempo de correção ou retificação ou, ainda, agir 
sobre a demanda num tempo de acuidade da escuta que precipita a 
Interrogando o ambulatório | 57 
decisão, seja como for, o psicanalista tem que fazer diferença sem cair 
no logro de bancar o diferente. A diferença diz respeito a seu agir em 
cada caso e não a uma estilização caricatural de sua função. Como 
manter essa diferença frente a outros profissionais? Como se situar em 
equipe? Vamos adiante. 
2.2 The dream team: o trabalho em equipe 
O modo de organização dos profissionais no atendimento ambulatorial 
define o processo que tem início na recepção, ou triagem; determina o 
tipo de encaminhamento e as diferentes formas de tratamento, entre as 
quais se inclui a psicanálise. Eles podem ou não organizar-se em equipes. 
Se assim o fazem, essas equipes podem ser mais ou menos coesas e mais 
ou menos instituídas de acordo com as concepções de assistência vigen-
tes nos diferentes serviços. 
A formação de equipe tida como ideal para a execução dos projetos 
assistenciais em saúde mental é a chamada equipe multiprofissional — 
the dream team? — visando um trabalho interdisciplinar. 
O termo multiprofissional pressupõe a conjunção de diferentes pro-
fissionais, como: médicos (clínico geral, neurologista, psiquiatra), psicó-
logos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, musicoterapeutas, fo-
noaudiólogos e, nas unidades hospitalares, enfermeiros, para citar os 
mais freqüentes. Curioso é que o psicanalista raramente aparece identi-
ficado como um desses profissionais. Talvez porque o ideário psicanalí-
tico já circule, diluído no campo psicológico, entre alguns dos profissio-
nais mencionados, principalmente psiquiatras e psicólogos, e mais 
raramente entre os demais. Talvez porque esses mesmos profissionais 
não se identifiquem ou não sejam identificados como psicanalistas. Iden-
tificar o psicanalista como profissional não parece ser corriqueiro i s 
instituições públicas. Volto a esse ponto adiante. 
Há uma concepção corrente e um tanto equivocada que mistura os 
termos multiprofissional c multidisciplinar, ou interdisciplinar, supondo 
uma correspondência simétrica entre as disciplinas e as categorias pro-
fissionais. Isso pode desembocar numa confusão estéril que descaracte-
riza a especificidade do trabalho clínico e, até mesmo, escamotear ques-
tões ético-políticas que presidem o funcionamento institucional. 
Localizo dois discursos distintos que dão suporte à formação das 
equipes: 
O primeiro, mais usual, defende as especialidades. "Cada terra com 
seu uso, cada roca com seu fuso." Isto é, cada especialista tem seu 
58 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
território de ação, e tanto pode estabelecer fronteiras rígidas isolando 
seus procedimentos de modo a não haver contato maior entre eles, quan-
to estabelecer áreas de trânsito onde seja possível uma troca de experiên-
cias. No primeiro caso, a tendência é burocratizar, e até esvaziar o 
sentido de equipe. O médico medica, o psicólogo psicologiza na psico-
terapia, o assistente social socializa, o enfermeiro faz a enfermagem, dos 
primeiros socorros à maternagem, e por aí vai. No segundo caso, os 
especialistas conversam, seja nas conhecidas reuniões de equipe, de 
forma regular e, portanto, instituída, ou nos corredores, de acordo com 
as urgências. As questões de diagnóstico, encaminhamento e tratamento 
vêm à tona, podendo produzir efeitos interessantes na clínica ou criar 
impasses que forçam a tendência ao isolamento. Tudo parece depender 
do exercício de persuasão, de uma certa disposição de cada especialista 
para convencer e ser convencido. 
Tomemos alguns exemplos: 
Começo por um serviço de atendimento a adolescentes que trabalha 
em equipe multiprofissional, organizada cm torno da clínica médica. A 
maioria dos profissionais são médicos com diferentes especialidades; 
além desses há assistentes sociais e psicólogos, sendo que um deles é 
uma psicanalista. Esta apresenta o seguinte relato: 
"Trabalho com médicos docentes, isto já quer dizer que sabem duas 
vezes. Pensei no desafio que seria introduzir o discurso psicanalítico no 
trabalho de clínica médica, onde os casos são recebidos a partir de pro-
blemas orgânicos, físicos. Logo percebi que tinha que fazer uma parceria, 
fazer um atravessamento para ir diferenciando os discursos. Hoje me 
chamam para fazer diagnóstico diferencial, principalmente porque che-
gam muitos pacientes histéricos aqui com uma sintomatologia variada, 
que se sobrepõe ao problema orgânico. Eles investigam da cabeça aos pés 
e percebem quando não é mais com eles, aí encaminham para mim. 
"Quando cheguei aqui foram logo me dizendo que não era para fazer 
consulta particular porque eu estava numa instituição. Entendi o recado 
e não entrei em disputas. A demanda era para atender os pacientes, 
internados ou não, em grupos. Havia assistentes sociais que já faziam 
isso e eles queriam que um psicólogo coordenasse. Ficou um clima de 
que o psicólogo é quem está preparado para isso. O que eu vi foi que as 
assistentes sociais faziam muito bem essa parte, e não era justo que eu 
tivesse de substituí-las ou provar que faria melhor. Fizemos esse trabalho 
juntas por um tempo e hoje quem assumiu a coordenação foi o serviço 
social. Meu argumento foi que os grupos informativos, de esclarecimcn-
Interrogando o ambulatório | 59 
to e apoio, podiam muito bem ser feitos pelos profissionais que se 
dispusessem a isso. Parou a briga histórica entre psicólogos e assistentes 
sociais. 
"Numa outra ocasião, um médico ilustrado que gostava de entender 
de psicanálise, contou a história de um paciente que tinha perdido o 
documento de identidade na rua. Meio irônico, ele me disse: 'como você 
diria, ele perdeu a identidade dele mesmo.' E eu respondi: 'como Freud 
diria, isso seria uma psicanálise selvagem ou inculta, não é? ' A partir daí 
acho que ele percebeu que há uma diferença e que um discurso não 
invalida o outro." 
Pode haver, entretanto, situações emque a intervenção do psicanalis-
ta em equipe não releva a especificidade dc determinada estratégia clíni-
ca do médico forçando a diferença equivocadamente. Um exemplo: 
Trata-se do caso de um rapaz casado com graves problemas neuroló-
gicos provocados por um acidente. E atendido por uma neuropsiquiatra 
que passa a receber o casal nas consultas, visando incluir a mulher no 
tratamento, dadas as condições críticas do marido. Ela estava muito 
ansiosa e preocupada com a súbita transformação de seu comportamento 
em casa. O relato é da neuropsiquiatra: 
"Ela vinha sempre com ele querendo saber sobre a doença, se ele ia 
ficar bom, muito preocupada. Eu precisava atender os dois para orientar 
sobre os procedimentos para os exercícios de reabilitação neurológica, 
que deveriam ser feitos com urgência. Só que comecei a notar que ele 
ficava meio incomodado na presença dela. Meu medo era que ela não 
agüentasse a nova situação, o que colocaria em risco o tratamento dele. 
Eu precisava saber se os exercícios estavam sendo feitos corretamente e 
contava com ela para isso. Na reunião da equipe, o pessoal da psicologia 
insistiu para que eu o atendesse sozinho porque ele deveria se responsa-
bilizar mais por sua condição. Fiquei no impasse. Pressionada, pensei em 
acatar a determinação da equipe. Mas resolvi manter os dois. Meu traba-
lho não é de psicoterapeuta, tenho que continuar a atendê-los juntos para 
garantir uma melhora da condição neurológica dele, ainda bem compro-
metida. Eles estão juntos nisso... Ele ficava apreensivo por ela estar à 
frente do tratamento. Eu expliquei que ela fazia isso porque o amava e 
queria ajudá-lo a ficar bom. Acho que funcionou. Ele alternava compor-
tamentos agressivos com total apatia, e tinha um comprometimento ob-
jetivo da realidade. Recentemente, ele desapareceu do tratamento e ela 
veio sozinha à consulta para me contar que ele tinha interrompido a 
60 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
medicação. Conseguimos trazê-Io de volta. Sem ela, eu teria perdido o 
paciente e não poderia fazer mais nada." 
Este exemplo retoma a questão de como e até onde o médico deve 
conduzir sua clínica sem arvorar-se em psicólogo, permanecendo atento 
ao que mobiliza os sujeitos envolvidos em função de seus objetivos 
clínicos. 
Uma psicanalista comenta sua experiência no trabalho em equipe 
após uma longa trajetória no serviço de psicologia de um centro de saúde 
onde recebe encaminhamentos de outros serviços em clínica médica, 
psiquiatria, fonoaudiologia e nutrição, e avança uma proposta. Em suas 
palavras: 
"Apesar de nunca termos sido um serviço de saúde mental, chegamos 
a ter a ilusão de uma equipe. Houve um tempo em que psiquiatras e 
psicólogos estavam mais próximos. Andamos subindo morro para fazer 
um trabalho entre a prevenção c a clínica. Hoje acho que o trabalho 
clínico tem que acontecer pelo desejo, mais pontual, num certo sentido, 
mais isolado. Está reaparecendo uma equipe em outros moldes, estamos 
discutindo casos... Volta e meia estou conversando com a fono nos cor-
redores, porque os médicos fazem encaminhamentos simultaneamente 
para mim e para ela. Então nós decidimos por um ou outro, dependendo 
do caso. As vezes fica meio complicado porque sinto que a fono ou a 
nutricionista pedem uma espécie de supervisão mas, ao mesmo tempo, 
somos colegas. A verdade é que temos um instrumental precioso na 
psicanálise que tem que ser usado com cuidado. 
"Uma vez a nutricionista veio toda enrolada com o caso de uma 
adolescente grávida que não se alimenta direito e não vai comer o que a 
nutricionista acha que ela tem que comer. Segundo ela, a menina diz 
assim: 'Depois que eu engravidei, tudo bem, minha mãe não briga mais 
comigo, não preciso mais estudar, tá tudo ótimo.' Eu chamo a atenção 
para isso. Vamos ver o que essa menina pretende com essa gravidez, 
vamos interrogá-la a partir daí. 
"Há também uma reunião semanal à tarde onde nos encontramos. E 
tem o centro de estudos que está funcionando bem, e lá apresentamos 
casos clínicos de modo mais sistematizado. A idéia é conversar através 
da clínica." 
O segundo discurso que dá suporte à formação das equipes é menos 
usual e controvertido. Floresce nas novas tendências da clínica nas cha-
Interrogando o ambulatório | 61 
madas estruturas intermediárias — centros e núcleos de atenção psicos-
social. Defende-se uma espécie de implosão das especialidades onde o 
profissional é chamado a atuar nos diferentes dispositivos valendo-se de 
um referencial comum, nem sempre bem definido, para promover a 
saúde mental. Assim, qualquer um deve estar habilitado para atender 
individualmente ou em grupos, acompanhar internação e promover os 
cuidados básicos, visitar o domicílio do paciente, atuar nas oficinas 
terapêuticas, às vezes junto a outros profissionais não ligados à área de 
saúde (penso nos artistas plásticos, artesãos, contadores de histórias etc.) 
e participar intensivamente do cotidiano institucional e de seus proble-
mas administrativos. A única especialidade mantida é ministrar medica-
ção, facultada somente aos médicos. 
Não discuto especificamente essa proposta por ser ainda muito inci-
piente e, também, por não fazer parte do meu objetivo central. Mas 
aponto para um possível paradoxo: que se esteja criando a necessidade 
de formar superespecialistas preparados para lidar com um leque amplo 
e heterogêneo de instrumentos clínicos, o que demanda uma postura 
subjetiva e profissional muito rara. Por isso mesmo, corre-se o risco de 
tomar a exceção como regra, diluindo o alcance teórico e o potencial 
terapêutico de certos instrumentos clínicos. Ou, ainda, de não tornar 
explícito e, portanto, transmissível o referencial teórico ou o modelo que 
norteia as diferentes ações terapêuticas. 
Podem ocorrer, em menor escala, certas variações ou deslocamentos 
das funções típicas dos especialistas com efeitos interessantes. 
Tomo dois exemplos: 
Em um grupo de mulheres, coordenado simultaneamente por uma 
psicóloga e uma assistente social, uma recém-chegada exige: 
"Quero falar com quem manda aqui. É você que é a psicóloga?" diz, 
apontando para a assistente social, sem sabê-lo. As duas assumem a 
função, e ambas passam a ser referidas como doutoras. Título que evoca 
o médico ausente, mas já pode ser atribuído ao psicólogo. A psicóloga 
esclarece seu trabalho conjunto: 
"No início, a gente revezava. Uma coordenava e a outra anotava. Aos 
poucos isso foi mudando porque uma se metia na vez da outra e eu, que 
falo muito, pedia para ela me cortar. Mas ela dizia que quando eu entrava 
era porque ela não estava dando conta, era assim mesmo. Agora, coor-
denamos juntas e, quando termina, fazemos as anotações. Nem eu nem 
ela tínhamos experiência com grupos. Está sendo um aprendizado." 
62 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Em uma unidade psiquiátrica desenvolveu-se um trabalho ambulato-
rial em grupo com egressos de internação. O relato é de uma psiquiatra 
que coordenava um grupo. 
"O grupo começou coordenado por mim e por um terapeuta ocupa-
cional. Era um grupo de mulheres que inicialmente se reunia no pátio do 
hospital. Depois, conseguimos uma sala, e uma auxiliar de enfermagem 
veio trabalhar conosco. Nessa ocasião, as famílias também participavam. 
Nossa idéia era buscar junto aos pacientes outros recursos terapêuticos, 
além da medicação. Não definíamos a priori que recursos seriam esses. 
Dizíamos que elas estavam ali para buscar algo mais que não sabíamos 
o que era mas que íamos passar por vários caminhos, o que poderia ser 
conversando, discutindo os assuntos que surgiam, fazendo outras ativi-
dades como pintura, teatro, costura etc. Eu chamava os grupos de 'grupos 
de efeito terapêutico'. Assim, qualquer profissional poderia se engajar, 
se quisesse. Havia uma cobrança para que os grupos fossem feitos por 
médico ou psicólogo. A gente trabalhava com a idéia de que a função do 
técnico não tinha nada a ver com o que fazia ali e nem com o que o 
cliente pudesseachar dele. Muitas vezes me perguntavam 'o que a se-
nhora é?' Eu nunca respondia e perguntava de volta 'o que você acha que 
eu sou?' Uma vez uma moça me falou assim: 'Eu acho que a senhora é 
public-relations, porque a senhora vive correndo daqui pia ali, ajeitando 
tudo...' Eu adorei!" 
Entretanto, permanece a questão de como se explicitam e interagem 
as disciplinas que fundamentam a clínica, já que não equivalem pontual-
mente às profissões. 
O que parece ocorrer nesse arranjo multiprofissional é a produção de 
uma hierarquia das profissões sob a hegemonia, mais ou menos explícita, 
de determinada disciplina ou modelo que vai nortear o funcionamento da 
equipe, a interação entre os profissionais e o trabalho clínico. 
Tipicamente, recorto três modelos que disputam essa hegemonia en-
tre si, podendo formar híbridos ou excluírem-se mutuamente, dependen-
do da formação e, conseqüentemente, dos compromissos éticos dos pro-
fissionais envolvidos. São eles: o modelo médico, o modelo psicológico 
e o modelo psicossocial. 
Discorro brevemente sobre cada um e, para problematizá-los, tomo 
como referência inicial o trabalho de Costa (1996) que apresenta sua 
crítica à assistência psiquiátrica em geral, sob o prisma da ética que 
determina sua ação. O autor recorta três éticas que, a meu ver, guardam 
uma equivalência a esses três modelos em sua fundamentação. Correia-
Interrogando o ambulatorio | 63 
ciono cada um, sem o compromisso de seguir as mesmas linhas de 
argumentação do autor. 
O modelo médico é o menos adotado na concepção do trabalho 
multiprofissional exatamente porque o reducionismo que opera em sua 
intervenção não dá margem à conjunção necessária de diferentes profis-
sionais. Apesar disso, não deixa de impregnar as ações de profissionais 
não-médicos ou paramédicos, como são chamados. Esse modelo funcio-
na sob a ética da tutela pautada no modelo da ética instrumental que "lida 
com objetos da natureza, que visa prever, predizer e controlar experimen-
talmente aquilo que é estudado" (1996, p. 30). O sujeito aí é privado de 
razão e vontade em prol da descrição fisicalista do modo como se apre-
senta. 
Frases como "ele tem depressão" ou "a depressão é uma doença que 
a senhora tem que tratar" ou "esses ataques de pânico acontecem sem 
motivo aparente?" ou "sua agressividade não tem nada a ver com a sua 
vida, é própria da doença" (sobre um epiléptico), são exemplos típicos e 
corriqueiros de referência a uma causação fisiológica dos distúrbios. 
Contudo, há exemplos mais sutis que podem indicar causações limítrofes 
entre o fisiológico e qualquer coisa do psicológico, e resultam da mesma 
ética instrumental, como "ele ainda não tem sexualidade definida" (dito 
por uma psicóloga sobre um rapaz de 18 anos internado com diagnóstico 
de dependência química); "vamos controlar sua insónia" (dito por um 
médico); "o paciente não se adequa ao tratamento devido à sua hiperati-
vidade" (dito por um terapeuta ocupacional); "o senhor tem que entender 
que isso que o senhor sente é da sua doença" (dito por uma assistente 
social a um paciente internado, que se queixava de sensações estranhas 
no corpo). Ou, ainda, frases que revelam quase caricaturalmente uma 
causação psíquica, mas são incorporadas à ética instrumental, como "o 
problema dele é que ele tem um complexo de Édipo não elaborado"; "o 
medo que a senhora sente é porque a senhora não consegue se desvenci-
lhar de sua infância"; "ele tem uma agressividade contida e não admite 
isso"; "o problema dela é sua baixa auto-estima". O denominador co-
mum é a objetivação do sintoma ou da doença como algo que o sujeito 
tem, que o acomete, e sobre o qual ele tem pouco a fazer, senão seguir 
as prescrições, que podem ser medicamentosas ou educativas. 
O modelo psicológico refere-se à ética da interlocução, pautada no 
modelo da ética da moral privada, "onde a referência ao instituído é 
64 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
facilmente desfeita em nome da criação e recriação permanentes... com 
uma flexibilidade muito maior que a da recriação de crenças ou normas 
sociais" (1996, p. 31). Não há uma dissimetria tão marcada entre sujeito 
e agente terapêutico como no modelo médico. Ambos se definem no 
vocabulário psicológico. O sujeito é reconhecido como competente para 
buscar soluções para seus conflitos junto ao terapeuta, para o que escapa 
de sua vontade e de sua razão constituindo uma outra. É inegável que o 
ideário psicanalítico é marcado, grosso modo, por essa ética. Guarda, 
porém, uma especificidade quanto à definição de sujeito que não se reduz 
ao indivíduo de vontade e arbítrio tomado num dado momento por 
conflitos que, uma vez resolvidos, lhe permitiriam restituir sua unidade 
perdida. Além do mais, o tipo de interlocução em jogo na psicanálise não 
pressupõe uma relação mais próxima da simetria entre dois sujeitos. Há 
uma dissimetria marcada sim, mas diferente da praticada na ética instru-
mental da tutela, que diz respeito à posição do agente em relação ao 
saber. O psicológico vai por conta da ênfase na noção de indivíduo, 
correlata da noção de privado, que entende o sujeito como dotado de uma 
consciência e poder de decisão imanentes e autônomos em relação à 
ordem social e à cultura que o circunscrevem e o constituem como 
sujeito de linguagem. 
Frases como "qual é o seu desejo?"; "você pode colocar a sua raiva 
pra fora"; "cada um tem sua maneira de ser"; "mas por que tem que ser 
assim, só por que seu pai mandou?"; "de onde vem essa agressividade?" 
ilustram a crença numa certa imanência dos conflitos que enfatiza o 
individual como uma entidade em si mesma. Na pior das hipóteses, essa 
concepção pode desaguar numa redundância inútil, dando ao sujeito a 
idéia de que tudo depende de sua força de vontade. Na melhor, pode abrir 
caminho para ampliar as possibilidades de reflexão sobre si. Mas frases 
tão comuns como "estou vindo aqui há um tempão e não sei pra quê" ou 
"eu falo, falo e não adianta nada" podem nos indicar que não estamos 
indo num bom caminho. 
O modelo psicossocial refere-se à ética da ação social pautada no 
modelo da ética pública que define sujeito e agente terapêutico, acima de 
tudo, como cidadãos e iguais. As virtudes terapêuticas devem equivaler 
às virtudes políticas, e quando não o são, podem ser relegadas a segundo 
plano como resquícios de um individualismo psicológico condenável. A 
população priorizada são os casos graves, principalmente os de sujeitos 
cronificados e desassistidos pelo sistema psiquiátrico tradicional. O alvo 
Interrogando o ambulatório | 65 
da luta política é a estrutura asilar, e também as práticas ambulatoriais 
chamadas 'tradicionais' que incluem o tratamento medicamentoso e as 
psicoterapias, entre as quais uma certa prática da psicanálise que, muitas 
vezes, faz jus ao rótulo. A doença, como acometimento biológico, e o 
conflito, como fruto de uma interioridade conturbada devem dar lugar a 
mudanças mais amplas nos dispositivos de assistência, visando à recons-
trução das relações sociais, de trabalho e convívio. A ênfase é dada nas 
práticas grupais e coletivas como meios para essa reconstrução. O pro-
blema reside em supor que a clínica possa ser reduzida a uma política 
pelas igualdades e que a doença ou o conflito psíquico sejam prioritaria-
mente frutos da ordem social e de suas ideologias. 
Algumas ressalvas devem ser feitas. Quando se caracterizam mode-
los, as respectivas práticas guardam sempre uma distância inevitável, e 
mesmo desejável, de seus princípios gerais. Além disso, como já afirmei, 
é mais comum que esses modelos se mesclem compondo um híbrido, 
principalmente porque seus agentes são diferentes entre si em sua traje-
tória pessoal e profissional. Assim, podemos pensar na possibilidade das 
éticas se atravessarem na prática, e refletir sobre seus efeitos. 
2.3 O tratamento: terapias e pedagogias 
Sobre o tratamento, inicio minha discussão retomando os três modelos 
— médico, psicológico e psicossocial — a partir dastrês éticas que lhes 
equivalem: a ética da tutela, a ética da interlocução e a ética da ação 
social. Essas éticas norteiam tipicamente três modalidades de tratamento 
que são, respectivamente, o tratamento medicamentoso, as psicoterapias 
e as oficinas terapêuticas. 
Como já apontei, elas podem compor híbridos, onde uma prevalece 
sobre a outra, fundamentando as mesmas modalidades de intervenção e 
tratamento, porém, modificando seus procedimentos e seus objetivos 
terapêuticos. Atendimentos individuais ou em grupos a uma clientela que 
pode ser definida por sua patologia ou identidade social tomam rumos 
diferentes, dependendo de como são conduzidos. Apresento-os breve-
mente e comento suas implicações, de acordo com as referências éticas 
que lhes dão suporte. 
Recorto os exemplos combinando as três éticas, duas a duas, desta-
cando a prevalência de uma sobre a outra, num arranjo onde pode haver 
66 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
casos em que uma terceira atue subjacente, como efeito esperado ou não. 
Vamos a eles: 
A interlocução prevalece sobre a tutela: 
E, por exemplo, o caso dos chamados grupos de medicação. Obtive o 
relato de uma experiência em hospital psiquiátrico com grande afluxo de 
pacientes psicóticos cronificados, em geral com diagnóstico de esquizo-
frenia residual ou defeito esquizofrênico, totalmente aderidos à medica-
ção. Foram convidados a se reunirem mensalmente para conversar e, ao 
final dos encontros, recebiam suas receitas. A iniciativa do psiquiatra foi 
evitar o típico atendimento individual de dez minutos, onde não havia 
qualquer possibilidade de interlocução, a não ser dar receitas e ajustar 
doses. Os grupos tinham a duração de uma hora, e nos dez minutos finais 
as receitas eram distribuídas. 
Segundo o psiquiatra, "nos atendimentos individuais eles não fala-
vam nada... aí você põe lodo mundo junto e eles falam de tudo... teve um 
efeito evidente. Gente que você jura que jamais vai tomar qualquer 
iniciativa na vida e começa a cogitar de arrumar emprego, fazer um curso 
no Senai, combinar de sair junto. Acho que eles nem viabilizavam essas 
idéias, mas cogitavam, conversavam, chegaram até a comemorar o ani-
versário de um deles, levaram bolo e tudo. Trocavam idéias sobre medi-
cação, mas não propunham a alteração das prescrições. A entrega das 
receitas fazia parte do ritual das consultas. Essa era uma particularidade 
desse grupo e, talvez, como era a minha primeira experiência com pa-
cientes que tomavam medicação, há pelo menos cinco anos, isso pode 
ter dificultado uma mudança maior. Havia um outro grupo de medicação 
freqüentado por todo tipo de pacientes, como os ansiosos, epilépticos, e 
também psicóticos. Trabalhei com eles pouco tempo, não tenho elemen-
tos para avaliar." 
Neste exemplo, curiosamente, a interlocução possibilita uma sociabi-
lidade, um convívio, ainda que uma vez por mês, que se aproxima, em 
seus efeitos, da proposta do modelo psicossocial, apesar da inquestiona-
bilidade do uso da medicação como base do que seria o tratamento para 
eles. 
Outro exemplo significativo é o dos chamados grupos de egressos de 
internação, em sua maioria com diagnóstico de psicose. Mais do que 
nunca, esses pacientes são os tutelados por excelência. Não apenas pelo 
Interrogando o ambulatório I 67 
fato de terem passado por internações mais ou menos longas ou freqüen-
tes, mas, principalmente, por serem a clientela privilegiada de uma psi-
quiatria que ratifica sua condição de doentes e objeto de intervenção 
médica, podendo permanecer nessa condição. O espanto que uma jovem 
psiquiatra, formada na orientação organicista, manifestou ao participar 
certa vez de um desses grupos, resume a questão. Em suas palavras, 
"Nossa! como eles falam!" E evidente que ela não os supunha mudos, 
pois cansou de ouvir seus delírios, suas falas desconexas, enfim, seus 
sintomas produtivos que deveriam ser erradicados pela medicação. Sua 
surpresa era que esses mesmos pacientes, alguns ainda em franco delírio, 
dialogavam, trocavam idéias à sua maneira — idéias que para ela não 
pareciam tão absurdas. Era quase como se ela dissesse 'eles falam a 
minha língua'! 
Um outro exemplo: um grupo com mulheres numa faixa etária de 30 
a 60 anos, com diagnóstico psiquiátrico pouco específico de depressão. 
O relato é de uma psicóloga: 
"Eram as deprimidas, vinham encaminhadas pelo psiquiatra do cen-
tro e, dada a incidência do diagnóstico, resolvi juntá-las num grupo. O 
mais curioso é que algumas eram mais deprimidas mesmo, meio desvi-
talizadas, mas a maioria começa a falar e o que aparece é uma outra 
maneira delas se definirem. Teve um dia que todo mundo falou em 
nervoso. Elas começaram a dizer que eram nervosas, e que ficar depri-
mida seria, digamos, uma conseqüência. Foi muito engraçado romper 
com esse rótulo e elas poderem falar do que as fazia sofrer. Uma dizia 
que era o marido, a outra porque não tinha marido, ou era o filho que 
casou, o outro que era traficante, e por aí vai." 
Outro exemplo, relatado por uma psicanalista, mostra uma iniciativa 
semelhante com mulheres acima de 40 anos com o mesmo diagnóstico 
impreciso de depressão, entretanto, não funcionou por um motivo muito 
simples que não diz respeito exatamente à clínica. Tratava-se de um 
posto de saúde situado em um pequeno município, afastado da cidade 
grande. As mulheres se recusaram a formar um grupo terapêutico porque 
todas se conheciam entre si, eram vizinhas e até aparentadas. Como iriam 
expor seus problemas, sua vida íntima e cair na boca do povo onde todo 
mundo sabe da vida de todo mundo? 
Segundo uma delas, "doutora, aqui todo mundo se conhece. Já ima-
ginou o falatório que isso ia dar, todo mundo sabendo das minhas inti-
midades, não quero fazer isso não". A psicanalista esclarece: 
68 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
"A solução foi atender individualmente e teve um efeito interessante: 
elas começaram a se encontrar na sala de espera — até porque os horá-
rios de atendimento eram meio próximos, correspondendo aos dias em 
que eu estava lá — e daí trocavam receitas de culinária, trabalhos ma-
nuais, discutiam suas dificuldades mais superficiais, enfim, o grupo se 
formou espontaneamente sem a minha presença efetiva, mas em torno 
daquele espaço proposto a elas." 
Em ambos os casos a interlocução prevalece sobre a ética instrumen-
tal da tutela, seja deslocando o foco sobre o diagnóstico para permitir sua 
apropriação e a conseqüente ressignificação pelos próprios sujeitos, seja 
para produzir efeitos inusitados numa situação-limite que dispensa a 
presença constrangedora do profissional, criando uma certa sociabilida-
de através da interlocução, em vez da indesejável exposição da privaci-
dade. 
A tutela prevalece sobre a interlocução: 
Ocorre-me um exemplo de um grupo de alcoolistas em um hospital 
psiquiátrico. O objetivo era reunir essa clientela, não absorvida pelos 
grupos de ajuda mútua dos AA, considerada problemática para a psiquia-
tria, sob a coordenação de um profissional de saúde mental visando 
produzir efeitos terapêuticos. Reproduzo trecho da fala queixosa de um 
freqüentador desse grupo, que esclarece a questão. Ele diz, mais ou 
menos assim, para a psicóloga que o atende individualmente: "Não sei, 
não... eu continuo indo lá, até gosto da doutora, mas é muito chato... a 
gente é recriminado o tempo todo, cada vez que um bebeu, pronto. De 
mim ela não pode falar, eu não voltei a beber, mas que deu vontade, deu. 
E isso eu não posso dizer lá não." 
Outro exemplo, mais comum, é o dos grupos formados a partir de 
determinadas patologias clínicas na chamada atenção primária. Diabéti-
cos, hipertensos, renais, são os mais freqüentes nos centros e postos de 
saúde. A proposta é clara: informar e esclarecer sobre a doença e suas 
conseqüências para melhor tratá-la. Nada de errado com isso, ao contrá-
rio, pode ser muito útil para a continuidade do tratamento. Acontece que 
um diabético, um hipertenso ou um renal não é igual ao outro,e as 
diferenças, após um certo tempo, passam a ser o que importa. O proble-
ma está em desconhecê-las para homogeneizar os sujeitos sob essa mar-
Interrogando o ambulatório I 69 
ca, unicamente com o objetivo de subsidiar a clínica médica. A interlo-
cução dá lugar à educação, às prescrições de conduta que podem resultar 
num fracasso clínico se não houver interlocução a partir das demandas 
dos assistidos. 
Há, também, modos de condução de terapias individuais ou em gru-
pos que vão pelo mesmo caminho. Frases como "você está aqui para 
entender o seu problema" ou "se você me disser o que você tem eu vou 
poder ajudá-lo" podem significar que a resposta virá assim que o tera-
peuta encontrar a solução. Nesse caso, falar é fornecer informações 
suficientes para o terapeuta 'malar a charada' e corrigir o erro subjetivo. 
Esta é urna demanda freqüente dos pacientes que, ao encontrarem al-
guém disposto a atendê-la, devem apenas ter paciência para esperar a 
revelação certa na hora certa. Eis uma boa armadilha da ética instrumen-
tal da tutela quando se apoia numa certa concepção de interpretação 
oriunda da psicanálise. Freud corrigiu seu rumo a tempo cm função de 
seus próprios fracassos, ao revelar para o paciente o que este já sabia 
e não queria saber, por conta de um elemento crucial da transferência 
— a resistência. E, mais tarde, deparou-sc com um impedimento 
maior — a repetição. 
A interlocução prevalece sobre a ação social: 
Um exemplo é a constituição de grupos, em geral de atenção primária ou 
secundária, que reúnem sujeitos definidos, a partir dc uma identidade 
social, mais ou menos estigmatizante, fixada pela patologia, faixa etária, 
gênero etc. Podem ser psicóticos, alcoolistas, portadores de HIV, adoles-
centes, adolescentes grávidas, mulheres, idosos, obesos, cardiópatas e 
outros. Assim como esse tipo de trabalho pode fazer prevalecer a tutela 
e fixar o estigma dessa identidade, pode, ao contrário, descobrir um meio 
de funcionar a partir da interlocução. A ação social que recorta e fixa 
essas identidades dá lugar ao diálogo que tanto pode reforçá-las quanto 
minimizar seus efeitos estigmatizantes. O ideário de uma psicologia 
psicanalítica tem aí sua função. Fazer falar, dar sentido ao sofrimento 
psíquico, abrir para novas possibilidades de subjetivação, para novas 
identificações, incrementar a criatividade, são alguns lemas dessa ética. 
São os chamados grupos de reflexão ou grupos terapêuticos. Assim, os 
psicóticos devem comparecer como sujeitos; os alcoolistas devem inda-
gar-se sobre sua compulsão; os portadores de HIV devem relativizar sua 
condição de condenados à morte social e física; os adolescentes devem 
70 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
deparar-se com suas questões; as jovens grávidas devem assumir sua 
condição; as mulheres devem tematizar suas diferenças; os idosos devem 
redescobrir sua vitalidade, e, assim, por diante. Extremamente salutar, 
diriam os entusiastas. Mal não faz, diriam os mais célicos. A questão é 
como dar conta das diferenças subjetivas, englobadas no recorte homo-
geneizador das identidades socialmente fixadas, que as constituem como 
grupos à parte. Paradoxalmente, a ética da interlocução pode reforçar a 
condição social ao invés de diluí-la. Tudo em nome das diferenças. Esse 
é o paradoxo da lógica das minorias. 
A ação social prevalece sobre a interlocução: 
O principal exemplo é o das oficinas terapêuticas, em geral freqüentadas 
por pacientes graves, onde o trabalho, a produção, mesmo em seu aspec-
to criativo, reduzem o espaço de interlocução entre os sujeitos envolvi-
dos. Privilegia-se a tematização da produção individual ou coletiva como 
o elemento terapêutico principal negligenciando seus efeitos singulares 
sobre cada sujeito. Reproduzo um relato fornecido por uma psicóloga: 
"Trabalhávamos com uma certa rotatividade dc pacientes. Mas linha 
os que eram mais assíduos. Alguns eram bem produtivos, mas era muito 
difícil trabalhar com aqueles que não rendiam. A gente variava as ofertas, 
ora era desenho ou pintura, ora era argila... às vezes a gente tentava outras 
técnicas e funcionava. Eles pouco conversavam entre si e eu comecei a 
puxar conversa sobre o que estavam fazendo, porque achava aquilo tudo 
muito sem vida. Teve um dia, que um lá, de repente se levantou, ele estava 
muito ansioso e começou a gritar 'eu não vou deixar... não vou... ele pensa 
que vai levar tudo meu...' Foi se exaltando até que partiu para cima da 
estante onde a gente guardava os trabalhos e começou a jogar tudo no 
chão. Um T.O. mais experiente foi lá c conseguiu acalmá-lo, mas ele não 
quis ficar. Depois foi medicado, a seu próprio pedido, e foi pra casa. 
Faltou por umas duas semanas e, quando voltou, parecia estar tudo bem. 
Só que ficamos sem saber o que se passou. Ele retomou suas atividades 
como se nada tivesse acontecido. Depois eu vi que o desenho, que ele fez 
naquele dia, era o de um boneco carregando uma mala onde ele escreveu 
uma palavra meio ilegível, que parecia 'bagagem' ou 'bagaço'." 
Um outro exemplo complementa o anterior: 
"O que eles mais gostavam era quando tinha a feirinha para exibir e 
vender os trabalhos, ou então quando promoviam festas que eles mesmos 
ajudavam a organizar... ficavam superempolgados, participavam. A im-
Interrogando o ambulatório I 71 
pressão que eu tinha era que eles trabalhavam pensando nisso, corno o 
pessoal das escolas de samba, que passa o ano todo se preparando para 
o grande momento." 
Sem dúvida, não há como negar os efeitos terapêuticos e de pertinên-
cia social que dotam de sentido todo um esforço de trabalho, toda uma 
rotina, que se repete à espera do "grande momento", ou, simplesmente, 
para preencher o tempo através do trabalho e do convívio. Afinal, isto é 
bem o que fazemos em nosso cotidiano em nome da normalidade. Mas, 
como alude o exemplo anterior, o problema é que o sujeito, com sua 
tematização própria pode não encontrar nos defensores das práticas so-
cializantes alguém a quem possa endereçá-la. 
A tutela prevalece sobre a ação social: 
Mantenho a referencia às chamadas oficinas terapêuticas para destacar 
uma discreta torção de sua finalidade. A prevalência da tutela se dá 
quando a atividade ocupacional é dirigida de tal forma que o paciente, a 
quem se deve dar uma ocupação, é concebido como um doente regredido 
a formas mais primitivas, portanto, mais infantis, de expressão. O plano 
de trabalho deve cumprir etapas supostamente essenciais ao progresso do 
paciente, independentemente de sua escolha ou vontade. Para os mais 
regredidos a um estádio pré-verbal, a terra: matéria-prima da natureza que 
evoca o nascimento. Para os mais articulados na imagem, as garatujas no 
papel e suas variações. E, por fim, os verbais, que podem se engajar nas 
atividades mais socializadas. Algumas frases são textuais: "ele está muito 
regredido, o contato com a natureza pode ajudar" ou "ela não se adapta 
ao tratamento, está muito dispersa e agressiva... não podemos mantê-la 
aqui" ou "fulano fez progressos, já pode participar do grupo". 
A ação social prevalece sobre a tutela: 
Há vários exemplos possíveis dessa prevalência. Os principais são as 
oficinas terapêuticas — designação do Ministério da Saúde para as prá-
ticas terapêuticas nas chamadas estruturas intermediárias entre a interna-
ção e o tratamento ambulatorial stricto sensu — que atendem pacientes 
graves, desde os cronillcados até pacientes em tratamento ambulatorial, 
com ou sem história de internação. Essas novas práticas atualizam a 
conhecida terapia ocupacional, ou praxiterapia, acentuando a ética da 
ação social, cuja finalidade é retirar o paciente do jugo tutelar em que se 
72 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
encontra — o termo tutela, aqui, adquire um sentido mais amplo, do 
tratamento aos dispositivos jurídicos. Há, também, outras formas de 
associação de pacientes, que incluem o lazer e a sociabilidade, e se 
oferecem como caminhos para uma autogestão. 
O melhorexemplo é o dos pacientes psicóticos considerados crôni-
cos, após uma longa carreira de internações psiquiátricas, tratados à base 
de eletrochoques, altas doses de medicação, isolamento etc., que se 
engajam na luta antimanicomial, praticando uma verdadeira militância, 
cujo efeito mais radical pode ser retirá-los da condição de tutelados. 
Contudo, é preciso ficar atento aos efeitos dessa nova identidade estabi-
lizadora de 'militante', que oferece um acesso à cidadania perdida, pois 
ela se mantém até onde pode operar como função simbólica. Isto é, até 
onde não se torna um fardo que cai sobre o sujeito, soterrando-o com 
exigências muito além de suas possibilidades de elaboração. Este é o 
maior risco do igualitarismo. 
Feito esse percurso por um certo blending das éticas que norteiam a 
clínica, fica a pergunta: o que a psicanálise e o psicanalista têm a ver com 
isso? 
Em primeiro lugar, nada impede que o psicanalista se aproxime, ou 
mesmo se envolva em diferentes modalidades de tratamento que visam 
efeitos terapêuticos a partir da interlocução. Como já apontei, esta é a 
ética mais próxima da psicanálise. A interlocução, porém, deve ser en-
tendida aqui como um ponto de partida, algo a ser transformado em, 
digamos, elocução. No dicionário: " 1 . Maneira de expressar-se oralmen-
te ou por escrito; 2. Escolha de palavras ou frases, estilo." 
Esta definição preciosa permite esclarecer um ponto sobre o qual 
Lacan insistiu no decorrer de seu ensino, sua transmissão oral da psica-
nálise: não existem dois sujeitos na psicanálise e o objeto está do lado do 
analista. Quem escolhe as palavras ou frases é o sujeito. Ao enunciado 
em seu conteúdo junta-se a enunciação, o modo de dizer, o momento em 
que é dito, o endereçamento. Isto é, para quem se diz o que, e qual a 
finalidade do dito. Esse é seu estilo. 
A ética da tutela, portanto, está fora de questão. Não há como conci-
liar. A ética da ação social pode ser surda. Seu limite crucial está em se 
entregar ao afã de recuperar a cidadania perdida, mas, pode não ser 
incompatível com a escuta sutil da elocução. E uma escolha a ser feita. 
O psicanalista, para fazer funcionar a elocução, deve estar preparado 
para atravessar as diferentes modalidades de tratamento sem perder-se 
Interrogando o ambulatório | 73 
na terapia ou na pedagogia. Afirmação temerária quando se espera que, 
no serviço público, curar e educar sejam as principais ferramentas. Mas 
não sejamos ingênuos supondo que não há qualquer resquício de terapia 
ou educação no trabalho psicanalítico. Freud falava em reeducação como 
uma finalidade da terapia psicanalítica. E também alertava para a inedu-
cabilidade das pulsões e para o furor sanandi. Pulsões indomáveis? 
Rebeldia da natureza? Qual educação ou terapia que estão em jogo? Com 
que finalidade evocamos a elocução? Na psicanálise não tem conversa? 
De conversa em conversa, a tarefa inicial do psicanalista é acatar a 
interlocução taticamente para dela destacar a elocução, convertê-la em 
fala associativa como um modo de fazer o sujeito se apresentar com 
quantas palavras puder. A partir daí estamos no solo, paradoxalmente 
movediço, da afirmação de si como uma realidade irredutível. Por suces-
sivos deslocamentos, essa fala se transforma numa dúvida potencial 
sobre o que se diz e o que se pensa, sobre aquilo em que se acredita. Está 
criado o embaraço. Daí em diante, os dados estão lançados. O sujeito não 
está sozinho, inteiramente entregue à sua sorte. O acaso é uma contin-
gência e não uma fatalidade. O analista se encarrega de tratar dessa 
contingência, garantindo a elocução para relançá-la a outras possibilida-
des de significação, fazendo vacilar a posição inicial do sujeito a partir 
de sua intervenção. 
Uma psicanálise pode acontecer a partir de qualquer uma das moda-
lidades de tratamento apresentadas acima. Dos atendimentos em grupos 
aos individuais, da atenção primária às oficinas terapêuticas. Da parte do 
sujeito, isso pode interessar ou não. 
Tomemos alguns exemplos que ilustram essa passagem à elocução a 
partir de diferentes trajetórias dos sujeitos nos serviços. 
Em um serviço de adolescentes, uma mulher freqüentava um grupo 
de orientação de mães juntamente com seu filho de onze anos que, 
segundo ela, "chorava muito desde que nasceu." Foi encaminhada para 
atendimento individual com a psicóloga porque era ela quem chorava 
muito e não conseguia continuar no grupo. O relato é da psicóloga: 
"Ela chega com o menino se dizendo desesperada e que não sabe 
mais o que fazer com ele. Chora o tempo todo... e eu tico sem saber o 
que fazer. Ele se recusou a ser atendido, soltava uns grunhidos, ficava 
quase de costas pra mim e não falava. Aí eu fui dizendo pra ele que ele 
podia ficar tranqüilo que ninguém ia obrigá-lo a nada... 'você está vendo 
alguma corda aqui? não vou te amarrar, te prender... sua mãe está muito 
74 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
ansiosa e se você se recusar a falar a gente não vai entender o que está 
acontecendo... e, se a gente não resolve isso aqui, ela vai te levar para 
outro lugar e mais outro. Por que você não aproveita que está aqui e 
vamos conversar?' Aí ele fala: 'Mas eu não quero vir... porque acho que 
não preciso disso... ela é que fala. Eu não venho mais.' A mãe fica 
desesperada, se ele não quer falar, o que ela vai fazer? Ela diz, 'essa é 
minha única esperança'. Ele continua de mau humor, e a mãe vai respon-
dendo minhas perguntas dirigidas a ele. Na escola as notas eram boas, 
mas isso não bastava. Aí ela conta um episódio em que ele chega da 
escola e não fala com ela nem cumprimenta a vizinha que estava lá. E 
você fez o quê? Ela diz: '... eu tenho medo dele ficar chorando... dele ter 
uma crise'. Eu marco isso como um gesto de má educação, o menino me 
olha meio de banda e diz 'é... não volto mais' e saiu da sala. Nesse ponto 
cu convidei a mãe para voltar e conversar comigo sobre isso tudo que a 
transtornava tanto. Na semana seguinte ela já vem dizendo que ele está 
melhor e ainda fala dele. Mas nas sessões seguintes ela começa a falar 
de como ela chora muito, de seus medos, porque ela mora num lugar 
controlado por um grupo de extermínio onde não se pode abrir a boca c 
que ela tinha medo de falar... não podia falar. Eu abro um prontuário para 
ela, porque até então os registros eram feitos no prontuário do filho. Daí 
ela passa a me contar de sua insatisfação com o marido e o lugar onde 
mora etc. Um dia ela vem me dizer que tem uma coisa para me falar que 
nunca falou para ninguém. Era uma cena de abuso sexual quando criança 
e que, pelo que entendi, teve repercussões na vida dela que a fizeram 
abrir mão de uma paixão, casar-se com um homem a quem não amava c 
aceitar suas imposições. Ela diz que, com ele, não estava nem ligando 
para o que podia pensar dela. Ela está comigo há uns três anos, franca-
mente em análise e a vida dela mudou muito. Mudou sua atitude em 
relação ao filho, ao marido, enfrentou um câncer na tiróide, e conseguiu 
se mudar do lugar onde morava." 
Destaco deste exemplo que, a partir de uma contingência bem mane-
jada, houve um deslocamento da queixa e da demanda onde o filho, 
inicialmente o objeto de intervenção, tomou a palavra que lhe foi conce-
dida e, num aparente desacato, 'encaminhou' a mãe para o lugar de fala 
que, para ela, era praticamente proibido. A partir daí, é com o analista. 
Em um posto de saúde de um pequeno município, onde se deu o 
curioso episódio que relatei sobre a recusa das mulheres em participar de 
um grupo terapêutico, uma delas vem encaminhada do neurologista com 
Interrogando o ambulatorio | 75 
queixas de depressão, falta de vontade de viver, enjôos, problemas de 
vesícula e outros problemas somáticos. O relato é da mesma psicanalista: 
"Por aproximadamente dois meses, ela vem me procurar para falar de 
sua saúde, das saudades de um filho que não morava mais na cidade e 
das decepções com o marido. Mais ou menos nessa época sou procurada 
por um homem consideradoalcoólatra com episódios de impotencia que 
relaciona ao fato da esposa ser uma pessoa muito doente. Eu o atendi por 
cerca de um mês, uma vez por semana. Ele se queixava que sua esposa 
não lhe permitia fazer o que mais gostava: criar e treinar pássaros e 
participar com eles de competições de canto. Ela ameaçava se matar a 
cada vez que ele saía de casa. A cada dia ele chegava mais animado, 
melhor trajado, dizendo estar parando de beber para poder cuidar dos 
pássaros e que não se importava mais com as lamentações dela. Um dia 
me diz que está ótimo e que tem ido a todas as competições, mesmo 
tendo que deixar sua esposa cm casa reclamando e dizendo que vai sc 
matar. Ele diz: 'Sabe, doutora, cia sempre diz isso quando eu vou me 
divertir, mas eu sei que ela diz isso para eu não ir e ficar em casa com 
ela, mas eu vou ficar com ela fazendo o quê, se ela não quer nada 
comigo?' Com isso ele deu por terminada a 'terapia' e foi tratar dos 
pássaros, para meu total espanto. Mal eu sabia que 'a hora do espanto' 
ainda estava por vir. 
"Cabe explicar que, nessa época eu era uma grande novidade na 
cidade, não por ser psicóloga, pois já existiam outros nos quadros da 
Prefeitura, mas por ter entrado lá por concurso público, não ser da cidade 
e trabalhar de maneira diferente da de outro profissional que antes aten-
dia no mesmo ambulatório. Com isso, havia muita procura a ponto de eu 
fazer entre 15 e 20 atendimentos por dia. Coincidentemente, a senhora 
de quem falei não apareceu por várias semanas, até o dia em que veio 
me procurar sem estar marcada. Atendi-a e ouvi o seguinte: 'Pôxa dou-
tora, com meu marido foi tão rápida a melhora e comigo está demorando 
tanto'! Depois de ter me recuperado do espanto, comunico-lhe as coin-
cidências e ela me responde: 'Não tem nada a ver. Eu estava muito 
ocupada com as provas. Para ele foi muito bom, ele até parou de beber, 
só que não pára mais em casa...' 
"Os atendimentos se seguiram e ela conta ter tomado o dobro de 
calmantes para se vingar do marido que a deixa sozinha. Pergunto-lhe: 
'Mas a senhora não diz sempre que quer se livrar dele?' Ela responde: 
'Mas eu não queria que ele ficasse comigo, só queria que ele não fosse'. 
76 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Eu digo, 'a senhora não queria que ele tivesse prazer'... 'É, se eu não 
tenho, ele também não pode ter'. Pontuo, 'a senhora não pode ter...' 
"Por problemas de instalação do posto interrompemos os atendimen-
tos por um tempo e ela desapareceu por cerca de quatro meses. Passado 
esse tempo, vejo seu nome no caderno de marcação de clientes novos. 
Quando ela entra na sala, vejo-a de cabelos cortados, bem trajada e com 
um sorriso largo como eu nunca vira. Ela diz: 'Há quanto tempo, nc 
doutora? A senhora deve estar estranhando o meu sumiço, é que eu tive 
muitas coisas para fazer, mas agora eu já resolvi todos os meus proble-
mas, agora sim posso me tratar.' Pasma com o que ouvia, perguntei-lhe 
que problemas tinha resolvido. Ela diz que se separou do marido, que 
não se preocupa tanto com o filho, que o outro filho vai se casar e ela 
nem deprimiu, e que vai mudar de casa. Começa a contar sua história 
relembrando cenas da infância e sua questão se define numa fala: 'Agora 
que posso fazer o que quiser, descobri que não sei o que quero.' E assim 
começou sua análise." (Machado, 1995a) 
Este exemplo pode dar o que falar. As possibilidades são muitas, a 
começar pela tão controvertida questão da neutralidade do analista e as 
dificuldades na transferência, seguida pela questão dos tratamentos bre-
ves e sua eficácia, especialmente em casos de alcoolismo. Mas estas são 
falsas questões. A analista não se ofereceu como terapeuta de casal, nem 
quebrou qualquer ética em seu desconhecimento. Ofereceu-se à transfe-
rência e trabalhou a partir das falas que lhe eram endereçadas como 
queixas de um 'marido' e de uma 'esposa'. Era assim que falavam um 
do outro. O marido sai da bebedeira e da impotência para fazer seu 
passarinho cantar mais alto em outro lugar. A esposa vai e vem. O 
importante é esse desvio no percurso da transferência que a leva a encetar 
uma série de separações para formular uma questão sobre seu desejo. 
Passando ao largo da penisneid, que marca o drama da mulher e tem 
na histeria uma de suas soluções, destaco alguns elementos da história 
desta mulher que têm conseqüências na construção de sua fantasia rela-
cionada ao momento em que entrou em análise: ela era gêmea de uma 
irmã e, com a morte do pai quando ainda eram bebês, foi separada da 
irmã e criada pela avó paterna e três tias, enquanto a irmã ficou com a 
mãe. Depois de algum tempo a mãe tentou levá-la para casa, mas ela não 
conseguia comer, vomitava tudo o que comia. Voltou para a casa das tias 
sempre sentindo-se inferiorizada por não ter pai, e só saiu de lá para se 
casar. A irmã gêmea matou-se ainda jovem quando foi abandonada pelo 
marido. Conta, ainda, que as tias não a deixavam cortar o cabelo, até que 
Interrogando o ambulatório I 77 
um dia ela os cortou de um lado só, obrigando-as a terminarem o corte. 
Em suas palavras: "Eu não podia escolher, a única vez em que fiz o que 
quis foi quando cortei o cabelo, mas me senti muito mal, minhas tias 
brigaram muito comigo." 
Podemos recortar dois tempos: o primeiro é o do aprisionamento ao 
marido, aos sintomas somáticos, à falta de escolha, vislumbrando a 
morte como solução. O segundo é o de uma separação, de um corte na 
demanda, no aprisionamento, no cabelo, e uma escolha é possível. Esco-
lha de endereçar ao analista um vazio, um 'não saber de si' e 'do que 
quer'. Os dados estão lançados. 
Mais um exemplo mostra a ação do analista como decisiva para o 
início do processo. Trata-se de uma moça encaminhada a uma unidade 
psiquiátrica por uma psicóloga, que a atendeu em um serviço de psico-
logia, com a recomendação de "um caso muito grave" que exigia aten-
dimento psiquiátrico, e até neurológico, e não deveria sequer ser atendida 
em grupo. O relato é de um jovem analista que assumiu o caso. 
"Diante do pedido que me foi feito, resolvi atender a moça indivi-
dualmente sem a intenção de atendê-la regularmente, mas para fazer um 
encaminhamento. Mas o desenrolar da entrevista foi decisivo para me 
fazer mudar de idéia. Ela chega nervosa, tem dificuldade de começar a 
falar e a primeira coisa que diz é: 'E difícil falar... a psicóloga não me 
disse que você era tão novinho.' Perguntei: 'Isso te atrapalha?' 'Não... o 
Dr. fulano e o Dr. beltrano também eram... eu só tenho médicos ho-
mens... a psicóloga falou que você ia me atender e ver se ia ficar comigo 
ou não. O Dr. fulano [neurologista] não quis mais ficar comigo, porque 
uma vez eu cheguei lá pra consulta e era outro médico. Agora, se você 
não gostar de mim eu não vou querer outro não.' E começa a chorar. 
Nesse momento, proponho iniciar um atendimento. Ela, então, começa 
a falar: 'Eu tenho imaginado muita coisa. Eu moro com uma moça, 
namorada do meu tio. Ele arrumou essa namorada, que a família não 
aceitou, e pediu que eu aceitasse ela na minha casa. Agora eu tô toda hora 
imaginando ela com o meu noivo, na cama, se beijando, tendo relação. 
Ele me garante que não acontece nada. Eu sei que é coisa da minha 
cabeça mas não consigo evitar'. Mais adiante ela diz: 'Os médicos me 
enchem de remédio mas não tá adiantando. Eu sei que eu é que estou 
criando os meus problemas, construindo monstros, fantasmas, mas eu 
não consigo... Não sou eu, é alguma coisa...' As sessões transcorriam 
com variações sobre esse tema e, no final do ano ela estava muito 
78 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
angustiada com a chegada do Natal. Nesse período, ela começou a faltar 
e, em seguida, eu saí de férias. Mas ela só retornou em março. Foi então 
quando pôde me dizer que o noivo não era bem um noivo, mas um 
homem mais velho, casado, uma espécie de tutor e amante que cuidava 
de sua doença neurológica (ela havia feito uma cirurgia e ainda tinha 
convulsões e desmaios) e que já tinhatido uma outra amante além dela. 
Soube também que o Dr. fulano, o neurologista que não a 'queria mais', 
havia interrompido o tratamento porque se dizia apaixonado por ela. 
Mais adiante, ela fala de episódios de internação psiquiátrica em sua 
cidade de origem, por conta de 'umas crises de loucura', apesar de não 
se achar louca. Mais tarde, essas crises são ressignificadas como uma 
exacerbação sexual. 
"O que acho relevante nisso tudo é que, a despeito da recomendação, 
eu jamais marquei psiquiatra para ela e isso me parece ter sido decisivo 
para o início de uma análise." 
Neste exemplo destaco o percurso dessa paciente pela neurologia, 
psiquiatria e psicologia, não como caminhos equivocados ou simples 
fruto da perambulação histérica pelos médicos. Os tratamentos a que se 
submeteu eram pertinentes ao estado em que se encontrava e aos recur-
sos disponíveis cm cada situação. A neurocirurgia a que se submeteu 
deveu-se a um angioma arteriovenoso que explica suas convulsões e, em 
boa parte, seus desmaios. A passagem pelas internações psiquiátricas 
justifica-se pelo estado de 'loucura' que apresentava, o qual não podia 
ser traduzido de outra forma por sua família. Sua passagem pela psico-
logia era pertinente, mas ali não encontrou um analista e sim alguém que 
recuou diante da complexidade do quadro que apresentava. Paradoxal-
mente, um rapaz "tão novinho" referido à psiquiatria, mesmo sendo 
psicólogo, pôde suportar o desafio de escutá-la até tomar sua decisão. 
Um observador um pouco mais atento comentaria: mas são três his-
téricas! A psicanálise aí está em seu reino natural. Nada de novo nisso. 
Ao que eu retrucaria: de fato, foi aí que a psicanálise começou. Foi 
ouvindo as histéricas que Freud percebeu o engano da medicina, não sem 
antes ter sido alertado por Charcot. Nada garante que uma histérica 
procure ou, sequer, encontre um analista. Além do mais, uma histérica 
não é igual à outra. Ainda que a 'outra' seja parte do seu problema. E, 
para terminar, o que discuto aqui é o modo como chegam ao serviço, 
como se desdobra sua demanda até o encontro com um analista. Se lá 
não houver um analista, não há muito a fazer. Se a histérica constitui o 
Interrogando o ambulatório I 79 
analista, é (bem) porque a elocução toma o lugar da interlocução para 
que o segredo, as confidências, enfim, a fantasia, possam se desdobrar. 
Entretanto, não se sabe até onde se pode ir numa análise. Mas esta é uma 
outra conversa. 
Em minha pesquisa, obtive relatos mais ou menos fragmentados de 
situações de análise com pacientes com diagnóstico psiquiátrico de 
doença obsessivo-compulsiva, alcoolismo, síndrome do pânico, distúr-
bio bipolar, e até mesmo psicoses graves. Estas, praticamente, contra-in-
dicadas para a psicanálise. Os exemplos são vários e remetem à questão 
do diagnóstico e da indicação. 
Sobre o diagnóstico, é preciso, num primeiro momento, acatar o 
diagnóstico psiquiátrico de descrição e verificação dos sintomas para, 
depois, remetê-los a um certo divisor de águas (ou de patologias) entre 
psicose e neurose que interessa à psicanálise.* 
Estas duas grandes categorias diagnosticas, fragmentadas pela psi-
quiatria atual em seus manuais diagnósticos, ainda se mantêm como a 
referência mínima, a partir da qual são estabelecidas diferenças quanto 
ao lugar e à função do analista no manejo da transferência, e quanto às 
conseqüências de seus atos e interpretações. Será por que a psicanálise 
perdeu sua capacidade de se atualizar? Penso que não. Sua atualização 
se deu através da ratificação destas duas grandes categorias, com algu-
mas subdivisões, já presentes em Freud, pelo modelo estrutural de La-
can. Aqui, não entro em detalhes sobre o uso que Lacan faz da noção de 
Deixo de lado a perversão como a terceira categoria, dada a polêmica que 
envolve seu diagnóstico e sua rara incidência na clínica, que levou os psicana-
listas a suporem mais a apresentação de traços ou arranjos perversos como o que 
excede a neurose. Nas publicações específicas sobre clínica, a proporção de 
casos descritos de perversão em relação às outras duas categorias é muito peque-
na. Com isso, o conhecido aforismo de Freud "a neurose é a perversão recalca-
da", presente no primeiro de seus Três ensaios sobre a sexualidade, adquire uma 
nova dimensão. Seguindo Freud, ao serem levantadas as barreiras do recalque 
secundário — uma das tarefas de uma análise — não devemos nos espantar com 
o que aparece. A partir de Lacan, afirma-se o caráter perverso de toda fantasia. 
E são novamente as histéricas que podem trazer bons exemplos. Entretanto, a 
definição de perversão é extremamente controversa. Há uma imediata referência 
a padrões de normalidade, aos costumes e leis como equivalentes em relação ao 
que, afinal, se perverte. Para não estender o problema além de nosso interesse, 
remeto o leitor aos trabalhos de Patrick Valas, Freud e a perversão; e de Eric 
Laurent, Versões da clínica psicanalítica. 
80 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Faço referência ao artigo "S'truc dure" de Jacques-Alain Miller em Maternas II, 
para situar a questão. 
estrutura.* Considero que, se a entendemos como diferenciada dos fenô-
menos, estes podem se multiplicar numa variação impossível de ser 
apreendida pelas classificações tipificadoras. Assim, paradoxalmente, as 
duas grandes categorias subsumem um campo fenoménico de amplitude 
muito maior, e ainda estamos livres para lidar com os modos de apresen-
tação dos sujeitos sem a preocupação de seguirmos orientações padroni-
zadas para este ou aquele tipo. 
Sobre a indicação, não há nada que determine a priori uma indicação 
ou contra-indicação para a psicanálise. Qualquer procedimento nesse 
sentido fere um princípio, que sustento como básico para o trabalho 
analítico, que diz respeito à temporalidade e se opõe a qualquer 'a 
priori': o conceito de posterioridade, ou a posteriori (Nachträglichkeit) 
que, mais do que um tempo de constituição do psiquismo ou da patolo-
gia, constitui o modus operandi da psicanálise. Tratarei disto no capítulo 
seguinte. 
Nesse ponto, escolho como um último exemplo o caso bastante pe-
culiar de um paranóico. Talvez o faça para provocar meus interlocutores 
e dirimir dúvidas sobre as questões de diagnóstico e indicação, e também 
sobre a vocação da psicanálise para se ocupar exclusivamente das histe-
rias. Mas não perco de vista meu objetivo de ilustrar o percurso do 
paciente até o encontro imprevisto com um analista e suas conseqüên-
cias. Este é um ponto importante no que diz respeito à qualidade e ao 
manejo da transferência. Vamos ao exemplo: 
Trata-se de uma família que procura atendimento conjunto em função 
dos recentes acontecimentos que culminaram na internação de um dos 
filhos. Este estava muito agressivo e assustado com suas constantes 
idéias de perseguição que já duravam alguns anos. O relato é da psicó-
loga que os atendeu sem qualquer pretensão de 'fazer psicanálise' com a 
família. 
"Recebi a família toda: pai, mãe, os dois filhos e a mulher de um 
deles. Os temas são repetitivos desde a primeira sessão. Os pais chegam 
dizendo que o problema é um dos filhos [Paulo], e ele diz que o problema 
é o sítio que vai ser invadido e tomado da família se eles não fizerem 
alguma coisa. Esse assunto gera muita discussão na família, principal-
mente entre os irmãos, porque o outro [Pedro] é quem cuida do lugar. O 
Interrogando o ambulatório I 81 
pai começa a contar como isso começou. Ele diz que o filho teve um 
problema com um professor homossexual na faculdade e, a partir daí, se 
sente perseguido. Parece que durante um bom tempo o pai tentou 'tratar' 
dele, comprou livros sobre esquizofrenia, conversava com ele dizendo 
que entendia como era difícil lidar com o homossexualismo, mas não 
aceitava sua construção delirante que, segundo o próprio Paulo, era 
assim: ele teria sido escolhido para 'dar o sítio para os homossexuais' se 
protegerem da perseguição que sofriam. Mas a idéia é que eles o toma-
riam da famíliae, para que isso não acontecesse, era preciso que a família 
ficasse unida. Ele só enfrentaria a situação nessa condição. Por isso eles 
tinham que saber da história toda. 
"Numa sessão Paulo chega a dizer que gostaria que a família fosse 
unida como os homossexuais. Ele diz que os pais são muito ingênuos e, 
numa outra sessão, pede para eles falarem de como foram criados. A mãe 
fala do colégio de freiras e o pai, do exército onde ele conviveu com 
homossexuais. Paulo diz que nunca teve experiências homossexuais. Ele 
chegou a ter namorada e houve um episódio de aborto em que o pai 
resolveu tudo. Nessa época, a cunhada estava grávida. 
"Esse período do atendimento durou mais ou menos uns seis meses 
e eles vinham quinzenalmente. Paulo se tratava com um psiquiatra que, 
segundo ele, teria dito que ele iria tomar medicação por um ano. Ele dizia 
que queria sair porque foram os pais que quiseram que ele fosse, e tinha 
uma história que a hora da sessão seria às 1 l:15h, mas ele foi atendido 
às 1 l:30h, e 11 é a metade de 22 que é número de maluco, e meia é uma 
coisa que é mas não é, e tem a ver com homossexual. No final do ano, 
avisei a eles que iria sair por motivos alheios à minha vontade. Eles, 
então, pediram para vir semanalmente até lá, e as brigas se acirraram. 
Paulo vai ficando mais agressivo e dizendo que, enquanto a família 
protege o sítio, não o protege e que enquanto eles não ouvem ou não 
aceitam, ele corre perigo. A família não conseguia resolver sobre o que 
fazer com o sítio, e acho que com tudo isso. Nessa época, eles já vinham 
falando que precisavam se afastar uns dos outros mas não estavam con-
seguindo. Eu vinha trabalhando isso com eles. Eles vão ficando mais 
angustiados e respondem agressivamente a Paulo, e ele começa a dizer 
que não tem problema psiquiátrico e, pela primeira vez, fala que talvez 
as coisas que lhe aconteceram tenham sido 'coincidências'. 
"No período em que os atendi semanalmente, aumentaram os confli-
tos. A mãe se queixava mais abertamente do pai e dele, dizendo que não 
agüenta dois homens dentro de casa cobrando coisas dela... Eles pressio-
82 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
nam Paulo para participar de seu tratamento psiquiátrico, o pai reclama 
das queixas sobre ele e que não agüentava mais isso... Nisso, surge uma 
oportunidade para eu continuar a atendê-los no mesmo lugar. A mãe 
aceita prontamente, o pai não quer mais vir, e os dois irmãos querem 
continuar. Eles concordam que tinham dificuldades de viver vidas sepa-
radas, deixar o outro viver. Proponho que, quando retomássemos a tera-
pia, iríamos fazer diferente, já que eles estavam dispostos a se separar. 
Depois das férias, atendo-os juntos algumas vezes e proponho trabalhar 
essa coisa de separação, separadamente. Proponho que venham os dois 
irmãos numa sessão, e os pais em outra. A cunhada ia ter neném e não 
estava envolvida. 
"A partir das sessões com o irmão, Paulo começa a trazer suas ques-
tões sobre sexualidade, que nunca tinha falado com o psiquiatra, suas 
namoradas, o que é ser homem e ser mulher, as histórias de perseguição 
dos homossexuais etc. Pedro passa a conversar com ele sobre isso tudo, 
e diz que está aprendendo com Paulo a pensar sobre a vida: 'Porque antes 
eu não pensava, e você pensava o tempo todo.' Aí eles falam das diferen-
ças deles de pensar e conversar com as pessoas. Numa sessão, Paulo 
começa a criticar Pedro dizendo que ele 'tem que fazer alguma coisa para 
o sítio dar dinheiro'. Pedro se defende dizendo que Paulo devia cuidar 
da vida, que não sabe nada do que ele está fazendo lá... Numa outra 
ocasião, eles começam a falar do pai. Para Pedro, ele é o modelo de 
homem, que domina. Paulo diz que para ele não é: 'Eu sempre vou ser 
o dominado.' Mas fala de um homem que pode ser o modelo: um famoso 
campeão esportivo que empunha a bandeira do Brasil 'apesar' de ser 
campeão. Nesse gesto, ele diz que viu 'afeto'. 
"Em outra sessão, Pedro cobra de Paulo que ele não teria dito ao pai 
o que disse a ele sobre ter dúvidas a respeito das histórias de perseguição. 
Com a família, ele falava cemo se tivesse certeza. Mais adiante, Paulo 
insiste em chamar a família para as sessões porque quer 'saber como eles 
estão.' Pedro concorda porque está preocupado com o pai que anda muito 
deprimido. A mãe continuava indo às sessões sozinha para resolver seus 
problemas no casamento. Não falava mais tanto de Paulo. 
"Num dado momento, Paulo diz que está cansado de falar da perse-
guição. Pergunto se ele ainda quer falar. Ele diz que talvez individual-
mente ele ainda precise falar. Mas, antes, já havia se mostrado preocupa-
do comigo porque eu agora sabia tudo sobre os homossexuais e, 
portanto, eu corria perigo. Numa outra vez, ele diz que não vai falar nada 
Interrogando o ambulatório | 83 
porque eu não digo o que sei sobre os homossexuais, e que então ele não 
vem mais falar sobre isso comigo. 
"A partir de uma situação em que Paulo diz que vai contar sobre a 
última mensagem que recebeu, mas não vai dizer de quem, para não 
aborrecer o irmão (era uma pessoa conhecida de ambos), intervenho para 
marcar que Paulo o está liberando de saber disso. Nesse ponto, penso que 
seria bom tentar separar os dois, liberar o Pedro. Mas ele diz: 'mas eu 
quero continuar aqui, é ótimo pra mim... eu vim lá do sítio só pra isso.' 
"Recentemente, Paulo vem tentando explicar suas idéias de persegui-
ção de forma diferente. Ele acha que pode ser por causa da falta de 'afeto' 
do pai que o levou a se aproximar demais da mãe e das tias com quem 
moravam, e fala de cenas da infância em que o pai o afastava quando ele 
ia abraçá-lo quando chegava do trabalho. Daí, ele deduz que, quando 
chegou na faculdade, ele extrapolou. Diz que compreende a mãe, mas 
não o pai, com essas histórias do exército. 'Lá, meu pai assimilou essa 
história toda, eu não queria que ele fizesse isso.'... Mantive o atendimen-
to conjunto dos irmãos e permaneci atendendo a mãe separadamente." 
Não tive outro recurso senão me alongar na descrição do caso pois, 
do contrário, não teria elementos suficientes para minha argumentação. 
Passemos aos comentários. 
O atendimento sc dividiu em dois tempos: 
O primeiro foi o da família: Paulo era a queixa e o motivo da deman-
da. Ele próprio também demandava, a seu modo, a 'união' como garan-
tia para fazer cessar seu delírio. Paradoxalmente, uma família 'homosse-
xual ' , de um sexo só, reduplicaría a perseguição, uma vez que é 
justamente por serem perseguidos que os homossexuais perseguem. No 
desdobramento do drama familiar nas sessões aparece uma outra possi-
bilidade, a da separação. Mas esta só é possível se sustentada por um 
terceiro que a garanta, sem que isto implique a invasão e conseqüente 
destruição da família. 
Aqui nos deparamos com uma função importante do analista: evocar 
e sustentar este terceiro, não como no triângulo amoroso, mas como 
função simbólica para garantir um 'viver', ou sobreviver, de cada um. 
Houve um tempo para isso. O tempo da elaboração que Lacan chama de 
tempo para compreender. 
O segundo tempo marca um novo encontro entre os dois irmãos onde 
se entabula uma conversa, uma interlocução, entre um neurótico — 
aquele que não pensava porque não queria saber — e um psicótico — 
84 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
aquele que não pára de pensar no perseguidor. Suas diferenças aparecem 
sobre o que entendem por sexo, homem/mulher, dominador/dominado, 
um pai. Do pai, modelo de homem para o neurótico, ou ausência de 
modelo para quem "sempre será o dominado", surge um modelo possível 
como ideal: o campeão, vencedor — dominador? — que porta um sím-
bolo, mais do que isso, o símbolo da pátria, da origem, da paternidade, 
e aí tem "afeto" — amor, gratidão? "Apesar" de ser campeão. Esta 
palavra muda a direção ou o sentido do enunciado. Um campeão, que 
tudo domina, então pode atribuir sua glória a um Outro que não encarna 
o perseguidor? Que só está lá representado? Este é um bom exemplo do 
queseria a função paterna. E Paulo agora a reclama quando começa a 
supor que algo de um "afeto" entre ele e seu pai não se deu, e que todo 
o saber sobre os homossexuais no exército só fez com que ele ficasse 
também vulnerável e nada pudesse garantir ao filho, algo da ordem de 
uma interdição, que barrasse a "invasão dos homossexuais". 
Evidentemente que não se trata de fazer este pai cumprir sua função 
como uma ordem. Acontece que de elocução em elocução, diante de um 
terceiro que a testemunha, a elaboração se dá. Esse terceiro pode alternar 
entre o irmão e a psicóloga, e ser por ela sustentado no decorrer dos 
confrontos imaginários entre irmãos, ou entre pai e filho. A elaboração 
é possível a partir de uma hipótese construída numa história não mais 
como um fato imutável, e sim com ares de ficção, como convém. É aí 
que pode operar uma suplência à função paterna. Algo que vem em seu 
lugar como uma nova metáfora cumprindo sua função. 
A transferência na psicose não se dá tão facilmente a partir de um 
terceiro suposto. Exatamente porque o que falta é a suposição, marca da 
neurose. Em seu lugar vem a certeza, à qual o irmão explicitamente se 
refere como o ponto de diferença entre Paulo e a família. Em alguns 
diálogos, esta é a questão. A posição do analista aí é bastante delicada, e 
Paulo nos mostra isso ao provocar a psicóloga, ora dizendo que ela corre 
perigo porque sabe tudo sobre os homossexuais, ora dizendo que não vai 
mais falar sobre isso porque ela não diz o que sabe — então não sabe 
nada? O pai sabe, mas fracassou. Curiosamente, Paulo pede que a família 
venha para as sessões porque ele "precisa saber como eles estão" — 
apesar de morarem juntos. Parece que há, aqui, um saber diferente em 
jogo: se eles vierem falar nas sessões, lugar terceiro de suposição de 
saber, ele vai poder saber como estão. A psicóloga pode fazê-los falar. E 
isto que permite a elaboração. E quem o confirma é o próprio irmão, que 
concorda prontamente porque quer saber do pai. 
Interrogando o ambulatório | 85 
Para terminar, este exemplo ainda causa espécie pois não podemos 
dizer que seja uma análise de família, de grupo ou, sequer, individual. 
Análise de dupla? Interessante definição, nada ortodoxa. E não podemos 
esquecer da mãe que continuou sendo atendida sozinha. Quebra da ética? 
Deveria ter sido encaminhada? Mas no começo eram todos juntos... 
Então isto não é psicanálise!... Chegamos ao rochedo inamovível contra 
o qual não há argumentação. 
2.4 O jogo de três PPPês: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas 
Na seara do serviço público se encontram e desencontram as três cate-
gorias: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que constituem e fazem 
funcionar o chamado campo psi. São propriamente a sua face mas, 
dependendo da organização dos serviços, nem sempre se pode delimitar 
suas diferenças com nitidez. E, como veremos adiante, isso talvez nem 
seja desejável. 
O que me interessa aqui é comentar alguns segmentos de diferentes 
discursos que resultam de certas identificações produzidas no percurso 
da formação profissional, onde se tecem determinadas fantasias em torno 
da psicanálise e do ser psicanalista. Não pretendo desvelar essas fanta-
sias, como numa análise, mas localizar o que aparece como sintoma, que 
indica a posição desses profissionais frente à psicanálise. Esboço, a 
seguir, uma tipologia, sem pretensões classificatórias, apenas para me-
lhor matizar esses discursos. 
Tomando, primeiramente, a categoria dos psiquiatras, no decorrer da 
pesquisa encontrei psiquiatras que dividi, grosso modo, em dois tipos: os 
médicos mentais, cuja função era exclusivamente a de medicar os pa-
cientes; e os clínicos do psíquico, que, além de medicar, ofereciam 
sistematicamente algo mais do que medicação — psicoterapia, na maio-
ria das vezes, ou outro tipo de atendimento dependendo da oferta do 
serviço, como grupos terapêuticos ou operativos, oficina de trabalho 
terapêutico, acompanhamento de eventual internação em outro local. 
Entretanto isso não excluía o fato de, qualquer que fosse sua inserção 
institucional, se dizerem psicanalistas fora do serviço público. 
Escolhi fazer uma certa oposição entre os termos mental e psíquico 
supondo que o primeiro porta uma significação mais associada ao orgâ-
nico, e o segundo, ao que costumamos designar como subjetivo. 
86 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Observei que, entre os médicos mentais, há os chamados organicistas 
ou biológicos, que concebem o tratamento como alteração de reações 
neuroquímicas no organismo e não levam em consideração a psicanálise 
como instrumento clínico em qualquer situação. O máximo que admitem 
no campo das psicoterapias é o modelo comportamental-cognitivo. Por-
tanto, não se incluem no escopo da pesquisa. 
Há também entre eles os que têm uma formação sistemática em 
psicanálise, em geral vinculados a uma das sociedades psicanalíticas 
tradicionais (refiro-me às pertencentes à IPA). Ser psicanalista, neste 
caso, pode ou não referir-se a um modo subjetivo de definição profissio-
nal no que refere-se ao ser. Em geral, refere-se à aquisição de uma 
técnica terapêutica, com seu estatuto bem definido, que autoriza um 
modo específico de atendimento restrito ao consultório, tantas vezes por 
semana, a uma população bem diferente da que chega aos ambulatórios. 
Só aí podem ser psicanalistas. Poderia tratar disso como mais um exem-
plo da burocratização tanto do trabalho clínico quanto da formação 
profissional. E, segundo o que entendemos como a boa clínica, não deixa 
de sê-lo. Mas se tomamos o ponto de vista do entrevistado, há algo mais 
a considerar: a própria concepção de psicanálise que está em jogo. 
Por um lado, existe o preconceito gritante quanto à flexibilidade do 
setting analítico, no que diz respeito à freqüência, que aparece em enun-
ciados do tipo "você vê o paciente uma vez por semana, às vezes de 15 
em 15 dias, como vai poder trabalhar a transferência"? Ou "eles vão e 
voltam de modo muito irregular, não se ligam ao tratamento". Ou "uma 
análise exige que a pessoa dedique um tempo constante de sua rotina 
para poder ver os primeiros resultados... às vezes o paciente chegava e 
eu nem me lembrava mais do que ele falou na última sessão". 
Todas estas afirmações são freqüentes entre os diferentes profissio-
nais no serviço público e, sem dúvida, preocupantes pois, de fato, lidam 
com uma população instável e variável em sua busca de atendimento. O 
problema é fazer disso um argumento, quiçá um pretexto, para inviabili-
zar qualquer tentativa de trabalho psicanalítico ou mesmo psicoterapêu-
tico, para empregar o termo corrente. 
Por outro lado, o preconceito aparece na própria definição estereoti-
pada do que seja o trabalho analítico como, por exemplo: 
"Uma análise exige que o paciente compreenda a linguagem do 
inconsciente, traga sonhos, fale de sua realidade interna e não dos fatos 
do dia a dia". Ou "no começo até tentei com algumas pessoas, especial-
mente mulheres que vinham se lamentando da vida... mas quando che-
Interrogando o ambulatório I 87 
gava a uma interpretação mais profunda, não entendiam, ou não queriam 
acreditar no que eu dizia,... ou simplesmente passava um tempo e não 
voltavam". 
Ao indagar o que seria o "mais profundo", ouvi como resposta: 
"Você sabe... algo sobre a sexualidade... Por exemplo, uma senhora 
que reclamava de ter que cuidar do marido alcoólatra e quando interpre-
tei, depois de tanto escutar detalhes sobre isso, que ela queria desmamar 
o filho que não amamentou [esse dado sobre o filho lhe foi fornecido 
lateralmente numa sessão], ela ficou danada comigo e não voltou mais." 
Este exemplo remete especificamente à discussão sobre interpreta-
ção, que abordarei mais adiante. O que interessa agora é a apreensão 
mais geral dc uma concepção pedagógica da psicanálise presente não 
apenas entre os médicos, mas corroborada pela idéia de que um trata-
mento exige uma adequação do paciente ao que lhe é oferecido de modo 
objetivo eclaro, sem arestas ou desvios que possam comprometer seu 
bom andamento. O melhor exemplo disso, relatado por um entrevistado 
sobre uma conversa informal com um colega, poderia estar no tratamen-
to medicamentoso propriamente dito: 
"Se até pra medicar eles são difíceis... imagine se dá pra oferecer 
psicanálise?... A gente não sabe se eles tomam o remédio direito como 
foi prescrito. Eu tento explicar para que serve a medicação, como deve 
ser tomada, que não deve ser interrompida sem meu conhecimento etc. 
Tem médico por aí que nem se dá ao trabalho de explicar. Antes eu 
achava um absurdo... mas hoje penso que quanto mais se explica mais 
complica. Eles querem a melhora imediata e pronto." 
O que chama a atenção é o "até pra medicar", como se a medicação, 
último baluarte da objetividade, fosse envolvida por essa incapacidade 
dos despossuídos de discernir entre magia e ciência. Convém lembrar 
que este exemplo refere-se a pacientes e, ou familiares que teriam condi-
ções de se responsabilizar pela administração da medicação. 
Um entrevistado me forneceu uma indicação para refletir sobre esse 
tipo de discurso como o sintoma do médico. Comentando sua formação, 
se disse impressionado com a expectativa criada nos cursos de medicina 
sobre o verdadeiro trabalho médico: 
"Somos preparados para lidar com doenças graves que requerem 
hospitalização, mais raras como a leucemia e outras, e quando você 
chega no ambulatório vai tratar diarréia, verminosc, anemia... Isso cria 
um conflito muito grande, você sente sua clínica desvalorizada... pra quê 
leu tanto texto em inglês?" [transpondo para o campo 'psi'] "Você acha 
88 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
que o cara não subjetiva, só vê o corpo, não tem possibilidade de fazer 
uma análise". 
Em suma, se só o fato de ser médico já provoca esse 'choque cultu-
ral', o que não dizer do fato de investir numa formação prolongada e cara 
como a oferecida nas sociedades psicanalíticas? Entretanto essa não é a 
postura do entrevistado ou de outros médicos-psiquiatras-psicanalistas 
que também se desdobraram em sua formação. Há uma escolha a ser 
feita no enfrentamento da clínica no serviço público que não diz respeito 
exclusivamente à psicanálise. Se a autoridade médica é o ápice da hie-
rarquia, isso não quer dizer que, pelo menos no que diz respeito ao 
psíquico, o médico de fato saiba o que é melhor para o paciente. Quem 
deve se adaptar a quê? 
Sem dúvida, quem sabe sobre o "remédio" é o médico. Remediar um 
dado sofrimento traduzido como conjunto de sinais e sintomas específi-
cos que requerem determinada composição química com efeitos diretos 
e colaterais é, por excelência, o campo do saber médico. E é bom que o 
próprio saiba bem como fazê-lo, mas até para isso é preciso ter, no 
mínimo, a paciência (ou ela c própria dos pacientes?) benevolente de 
escutar para melhor traduzir a queixa. Isso já significa que ao queixoso 
se atribua alguma legitimidade, tanto no que se refere à veracidade de 
sua fala sobre as sensações quanto à possibilidade de explorá-la até um 
limite satisfatório para a escolha da medicação c o modo de administra-
ção. Tomar remédio nunca é um ato isento da participação do sujeito que, 
por sua vez, nunca se revela de modo transparente e unívoco ao médico. 
Tomemos um exemplo prosaico da clínica médica: um paciente hi-
pertenso, após acompanhamento com nutricionista por um bom tempo, 
não consegue emagrecer nem alterar sua pressão. A médica encaminha 
para a psicologia, não sem antes passar-lhe um carão. Depois de uma ou 
duas entrevistas com a psicóloga, que nada lhe pedia além de falar, 
confessa: 
"Sabe o que é, doutora, é que eu minto pra outra doutora. Ela é muito 
zangada. Não posso dizer pra ela que não consigo deixar minha cacha-
cinha, minha lingüicinha, porque senão ela não me atende mais...". 
Esperteza, burrice, má-fé, impulso suicida, ou algo mais na vida de 
alguém que se recusa a ser definido apenas como "hipertenso"? Que 
saber está em jogo? O exemplo fala por si. 
Entre os que defini como clínicos do psíquico, se encontram os que 
consideram a psicanálise mais um recurso entre outros no trabalho clíni-
Interrogando o ambulatório | 89 
co do que a afirmação de uma identidade irredutível a outras definições. 
Em geral dedicam-se mais aos pacientes psicóticos e diversificam sua 
abordagem promovendo ou incentivando outros recursos terapêuticos 
como os grupos com diferentes finalidades — operativos, visando a 
execução de tarefas; de ajuda mútua; terapêuticos etc. — e atividades 
extra-ambulatoriais nos serviços que oferecem espaços de convivência e 
ocupação, como oficinas, hospitais-dia etc. São menos corporativos, 
interagem mais com os outros profissionais e não se valem de sua auto-
ridade médica além do necessário para fazer funcionar os dispositivos de 
cuidado em geral. Curiosamente, alguns são vistos como "santos", muito 
dedicados, principalmente porque, de um modo geral, não dão ouvidos 
às regras e formalidades do serviço público e privilegiam as situações 
clínicas emergentes em qualquer circunstância. 
Um paciente psicótico retorna ao grupo um dia dizendo que teve que 
se internar porque não encontrou seu psiquiatra em casa naquele fim de 
semana para medicá-lo. Para ele isso era a exceção. Contudo, essa não é 
a principal característica dos clínicos do psíquico. Esse profissional sal-
vador da pátria é raro e não chega a se constituir como modelo. Seu modo 
de agir é singular e movido por motivações que não me cabe discutir. 
Entretanto, sua presença na instituição por si já é modificadora, tanto das 
demandas de atendimento quanto dos efeitos sobre outros profissionais 
não médicos que gravitam a seu redor. Por sua conta e risco, faz funcio-
nar uma clínica mais próxima dos projetos renovadores da assistência 
psiquiátrica. O risco maior é de se tornar insubstituível exatamente pelo 
mesmo motivo de ser inigualável, ou seja, de não visar ou não ter meios 
de transmitir seu modo de trabalhar ou de provocar mudanças mais 
efetivas nos serviços. 
Há também, entre os clínicos do psíquico, os que ao serem identi c i -
cados como o médico, o doutor por excelência, se apresentam ao pacie -
te como os que fazem psiquiatria — ministram medicamentos — e 
psicologia — conversam. Sendo assim, esses médicos-psicólogos abrem 
espaço para uma possível escuta psicanalítica e, segundo alguns entre-
vistados envolvidos com a psicanálise, essa é uma tática importante para 
tornar viável uma demanda diferenciada, em geral dirigida aos psicólo-
gos. Estes sim, os conversadores por excelência. Aqui, fazer psicanálise 
não significa apresentar-se como psicanalista, seja para o paciente ou 
para a instituição. Isso pode ser mais um anseio corporativista sem efeito 
algum. A psicanálise para esse profissional não é mais uma técnica 
restrita a certas regras impraticáveis nos ambulatórios, mas uma possibi-
90 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
lidade marcada pela oferta do profissional. Agora depende do sujeito 
aceitar ou não, e daquele que se propõe levar à frente um trabalho 
psicanalítico, de manter sua oferta e manejar os meandros delicados da 
transferência. Tratarei disso adiante. 
Um entrevistado me alertou sobre os perigos de se "ir com muita sede 
ao pote", principalmente no caso de um iniciante. Freud já chamava a 
atenção para o furor sanandi. Mas há também o furor 'psicanalisandi', 
num rústico latinismo. Ele relata o caso de uma paciente histérica que 
era trazida pela vizinhança e chegava sonolenta, adormecendo na sala de 
espera. Tinha que ser acordada para ser atendida. 
"Eu fiquei tão encantado que ela começou a dizer que eu a tinha 
seduzido, ela sacou aquilo de uma outra forma. Mandei para uma pessoa 
medicar, e ela foi se queixar no serviço social que eu tinha feito ela 
dormir, que eu a tinha seduzido no consultório". 
O encantamento do jovem médico, que pratica a psicanálise, com o 
caso clínico tem seu correlato no desencantamento da bela adormecida,seduzida, que transforma seu sono entregue numa revolta queixosa às 
assistentes sociais, criando caso — endereçamento caprichoso e prenhe 
de sentido para uma histérica. 
Freud nos alerta: 
"(...) desamparado contra certas resistências do paciente, cuja recu-
peração, como sabemos, depende primariamente do jogo de forças que 
opera nele (...) o analista deveria se contentar com algo similar [a] 'Je le 
pansai, Dieu le guérit'." (Freud, 1912, p. 115, tradução minha). 
A bela indiferença, como responder com a diferença? Esse exemplo 
pode ser paradigmático de uma dificuldade muito presente entre os 
iniciantes na psicanálise, médicos ou não, que se deparam com o óbvio 
dos livros no inusitado do sujeito onde se produz um fosso entre o quadro 
clínico e o que pode vir a ser o caso clínico. Este é o maior desafio. 
Voltemos à psicologia possível para os médicos-psiquiatras e retenha-
mos a lição de que é preciso ser um pouco psicólogo, no sentido lato, 
para se afastar das armadilhas do modelo médico. A principal delas é 
tomar o sintoma como sujeito do experimento e o sujeito como objeto de 
intervenção. 
Quanto à categoria dos psicólogos, são uma esmagadora maioria de 
mulheres com diferentes percursos na psicanálise. Logo de saída se 
deparam com o peso da autoridade médica na hierarquia do saber. Frases 
como "o doutor é quem sabe" ou "estou aqui porque o doutor mandou" 
Interrogando o ambulatório I 91 
são recorrentes no início dos atendimentos freqüentemente encaminha-
dos pelos médicos e o primeiro indício de que há uma difícil tarefa pela 
frente. Interditados, e por isso liberados, do recurso à medicação, os 
psicólogos sabem que é preciso fazer outra coisa. Nesse sentido, há quem 
diga que estão naturalmente convocados à chamada psicoterapia. Se a 
psicoterapia é tão natural e os médicos mentais são os primeiros a reco-
nhecer isso, qual a natureza da psicoterapia? 
A conversa é o ponto de convergência e a referência primeira daque-
les que demandam um tratamento diferente do medicamentoso. A coisa 
complica quando indagamos que tipo de conversa e com que finalidade? 
Em sua formação, os psicólogos se deparam com uma grande varie-
dade de 'teorias e técnicas psicoterápicas'. Esse é o nome de uma série 
de disciplinas obrigatórias na maioria dos cursos de psicologia. Deixo de 
lado as técnicas de modelagem do comportamento com suas variações 
— cognitiva, dessensibilização, reflexológica etc. — e as chamadas 
terapias alternativas — gestalt-terapia; terapia rogeriana; abordagem fe-
nomenológica; e, mesmo, as terapias corporais menos centradas na pa-
lavra (Russo, 1993) — que, de imediato, nos levam à pergunta: alterna-
tivas a quê? Deixemos que Castel (1981) responda: são alternativas à 
própria psicanálise e dela derivam, numa certa banalização, sob a rubrica 
de pós-psicanalíticas. 
O que interessa discutir é esse território de fronteiras indefinidas que 
compreende a psicanálise e sua correlata, a chamada psicoterapia de base 
analítica (Figueiredo, 1984, 1988a, 1988b). 
De um modo geral, a psicoterapia de base analítica se define pelo 
negativo. Não é psicanálise porque não tem o mesmo setting — freqüên-
cia, duração das sessões, divã, pagamento — nem a mesma qualidade da 
transferência e da interpretação, pilares do trabalho psicanalítico. Como 
já apontei, os principais motivos alegados por psicanalistas das mais 
diferentes filiações são as condições do serviço público e o tipo de 
clientela. Justiça seja feita aos lacanianos que recusam essa diferença 
apostando que só existe uma psicanálise e qualquer variação conspurca 
a verdadeira revolução freudiana. O risco é cair num corporativismo 
estéril que só dificulta as relações intra-institucionais e acaba por ter 
conseqüências na clínica. A diferença aí adquire outro estatuto: pode-se 
não ter condições de levar adiante uma psicanálise. Logo, o que se 
consegue nesses casos é produzir efeitos terapêuticos aquém dos efeitos 
propriamente psicanalíticos, mas a postura seria a mesma, não cabe dar 
92 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
outro nome para encobrir um limite muito mais sutil da prática psicana-
lítica que deve ser discutido a partir de suas próprias premissas. 
E notável que vários psicólogos e psiquiatras referidos à psicanálise 
adotam o termo psicoterapia de base analítica, ou porque se submetem a 
critérios inflexíveis assimilados em sua formação para definir o que é 
psicanálise, ou porque em seu próprio percurso — análise pessoal, prin-
cipalmente, mas também definição e percurso teórico-clínico — não 
conseguem definir seu trabalho como tal. Estão divididos em relação a 
seu lugar como psicanalistas, só podendo afirmá-lo sob a proteção do 
ideal do consultório onde, não raramente, enfrentam dilemas semelhan-
tes no cotidiano da clínica. Eis o seu sintoma. 
Continuando com os psicólogos, observei um outro dilema que não 
diz respeito apenas à trajetória na psicanálise, mas também ao ideal 
social. Em geral, são profissionais mais sensibilizados para as questões 
sociais, talvez porque seu percurso seja marcado por uma certa tradição 
de militância política privilegiando os direitos sociais do cidadão em 
detrimento das exigências da clínica. Isto é, o sujeito é considerado mais 
a partir de suas condições sócio-culturais e econômicas do que a partir 
das sutilezas, que podem ser lidas ou inferidas em seu discurso, que 
apontem para uma dimensão mais virtual, mais obscura de sua queixa. 
Suponho que esses profissionais tiveram maior acesso à literatura 
referente aos estudos sociológicos e antropológicos sobre a chamada 
população de baixa renda e ainda permanecem sob o impacto paralisante 
de suas revelações que, sem dúvida, são fundamentais para se repensar 
a clínica. Entretanto, sabemos que ao clínico compete ir adiante de posse 
dessas informações, sem, contudo, erigi-las à condição de instrumento 
clínico. Esse nunca foi o objetivo dos cientistas sociais. 
Sabemos que não existe o puro sujeito do inconsciente como uma 
entidade abstrata fora das condições socioculturais que o engendram, e 
também que um certo modo de tradução da experiência subjetiva pode, 
numa primeira visada, se apresentar como incompatível com determina-
da concepção de sujeito atribuída à teoria psicanalítica. O que destaco 
aqui é o aspecto sintomático da apropriação desses estudos e suas con-
seqüências inibidoras. E preciso que situemos nossa função na clínica 
psicanalítica como produtores de um dispositivo peculiar da fala que lhe 
atribui uma dimensão específica. Voltarei mais detalhadamente ao assun-
to no capítulo seguinte. 
Interrogando o ambulatório I 93 
Por hora, quero alertar para esta hipervalorização da palavra "social" 
que subsume uma variedade de concepções que têm como ponto comum 
as velhas oposições indivíduo psicológico versus realidade social, alie-
nação versus engajamento, e cuja função maior parece ser a de favorecer 
a resistência à psicanálise por parte dos próprios profissionais, já que o 
"social" é por eles tomado como uma condição intransponível do sujeito. 
Aí se confundem e se perdem numa espécie de psicologia do social ou 
de sociologia do psíquico. 
Entre alguns exemplos da "determinação do social" são mencionadas 
situações constantemente recorrentes nos atendimentos relativas a faltas, 
interrupções, trágicas histórias de vida, como estupros, espancamentos, 
mortes violentas de entes queridos, pobreza miserável, enfim, toda sorte 
de problemas raramente encontrados no consultório. Tudo isto é posto 
sob a rubrica do "social" como uma entidade, quiçá uma identidade, 
reificada que opera maciçamente sobre o sujeito inviabilizando o traba-
lho psicanalítico. Depoimentos do tipo: 
"Não podemos tratar essas pessoas fora do social." Ou "as condições 
sociais são tão mais pregnantes, (...) como vamos fazer o paciente pensar 
só nele e em seus problemas pessoais se os problemas que ele tem são 
muito mais concretos"? Ou "para eles não faz sentido ficar especulando 
sobre coisasque não dizem respeito a suas condições de vida". Ou "eles 
vêm atochados de problemas... histórias cabeludas... e querem que você 
como por milagre acabe com tudo que os faz sofrer... como posso dizer 
pro sujeito que ele tem que se mudar daquele lugar ou esquecer as cenas 
de violência... e tc"? Ou "a mulher apanha do marido e diz que não tem 
como sair de casa... e não tem mesmo pra onde ir...". Ou "o cara bebia 
muito e dizia que sua vida era um inferno... já foi pro AA, já tentou 
suicídio, já foi no psiquiatra, e disse que sua última esperança era que eu 
o fizesse parar de beber... já estava com o fígado comprometido... é muita 
responsabilidade! Eu disse que isso ia depender dele e ele não aceitou... 
não tive mais notícia". 
Pelos exemplos, começo perguntando o que é tratar uma pessoa fora 
do social? É tratá-la fora de seu habitat? Ou fora de seus referenciais? 
Ou fora do mundo concreto, propondo um mundo abstrato e especulati-
vo? Ouvi como resposta: 
"Você não faz parte daquele meio (...) qualquer coisa que você per-
gunta já significa que você não entendeu. Isso aconteceu com uma 
pessoa que atendi (...) eu pedia para ela explicar e isso era tomado como 
uma desconsideração (...) sei lá." Ou "você tem que tomar o maior 
94 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
cuidado porque se quer levar a conversa para uma coisa mais subjetiva, 
você pode estar desvalorizando aqueles problemas todos, tão graves (...) 
as pessoas parecem sem saída... não dá pra fazer um trabalho falando só 
sobre coisas concretas que fazem sofrer mesmo". 
Este tipo de argumentação se não confirma pelo menos corrobora 
minha hipótese de que a velha dicotomia indivíduo versus social é o seu 
ponto de partida. Trata-se apenas de escolher de que lado se está, ou 
melhor, de que lado colocam a psicanálise. Sabemos que há um limite real 
do alcance da psicanálise, ou de qualquer terapêutica, mas esse é o fim da 
história e não seu começo. Sabemos também que não se faz psicanálise 
da miséria. E, por isso, vamos afirmar a miséria da psicanálise? 
Como lidar com essas situações-limite? 
A tarefa do analista consiste, mais do que nunca, em oferecer ao 
sujeito uma possibilidade de tematizar, ressignificar e elaborar sua "mi-
séria", até onde for possível para tomar uma outra posição frente a toda 
essa desgraça cotidiana da qual, até certo ponto, não fazemos parte. 
Tarefa impossível? Para Freud sempre foi, juntamente com educar e 
governar. E afirmava a miséria banal como parte da condição humana 
que jamais será erradicada pela psicanálise. 
Quanto às faltas, podem ser indicadores de momentos difíceis do 
sujeito na vida, mas também na análise. Uma coisa não exclui sumaria-
mente a outra. Quanto às interrupções, sempre há o recurso de um 
chamado sem repreensão, ou de um convite a retornar quando for possí-
vel ou quando o sujeito sentir necessidade. O resto cabe a ele, seja com 
que recursos for. 
Quanto às histórias de vida, aí temos, ao invés do típico sentimento 
de "não há nada a fazer", um manancial de trabalho: como são contadas 
e recontadas; onde se situa o sujeito; que fantasia aí se tece; do que ele 
pode realmente se desfazer para dar um rumo minimamente diferente à 
sua vida. Isto não é psicoterapia de apoio, aconselhamento, ou de base 
analítica. Muito menos o esvaziamento da condição social do sujeito. É 
propriamente uma aposta na possibilidade de haver mudança na realida-
de do sujeito, em função de até onde vai sua aposta, em um campo 
variável de possibilidades. Isto, por sua vez, depende também do manejo 
do analista. O investimento é diferenciado, mas é para ambos. E a recí-
proca é verdadeira: ao desinvestimento do profissional, seja na institui-
ção ou na psicanálise, corresponde um desinvestimento do sujeito. 
Portanto, antes de lamentar que essa população não investe no trata-
mento seja por não pagar, por não saber do que se trata, por não poder 
Interrogando o ambulatório | 95 
em função de suas condições precárias ou, simplesmente, por não querer, 
é preciso fazer a si próprio as mesmas perguntas sob outro prisma: por 
não ser bem pago? por não saber o que fazer de sua própria clínica? por 
ter condições precárias para suportar as mazelas alheias? ou, simples-
mente, por não querer? 
Entre os psicólogos entrevistados, encontrei os que admitem não ter 
mais fôlego para investir no serviço público. Geralmente estão à beira da 
aposentadoria. E também os iniciantes recém-concursados com muito 
fôlego mas sem saber como afirmar sua clínica. Seja por terem um 
percurso recente na psicanálise ou por não saberem como lidar com os 
entraves burocráticos que ameaçam seus projetos, ou por ambos os mo-
tivos. Estes dois grupos apresentam uma fala queixosa e acusatória da 
falência das instituições públicas. Sem dúvida, este é um problema grave 
e sua solução, ou não, é determinante das condições de trabalho em 
qualquer área, da saúde à educação. Nesse sentido, uma coisa não deve 
se confundir com a outra. Reconhecer esse limite não significa abrir mão 
de experimentar, de ousar na clínica. 
Duas ameaças pairam no ar: a burocratização do trabalho clínico 
como confirmação da falência do serviço público, e o recurso ao corpo-
rativismo como forma de proteção da identidade profissional que pode 
gerar um empobrecimento da clínica. 
Os mais burocráticos medicam ou fazem uma psicoterapia anodina, 
e os mais corporativistas criam tensões que acirram as disputas de poder 
pelas pequenas causas imersos, mais do que nunca, no indesejável nar-
cisismo das pequenas diferenças. 
Há, ainda, os psicólogos que, mesmo não se apresentando como 
psicanalistas, falam com simplicidade de uma clínica onde vêem acon-
tecer situações de análise muito próximas das encontradas no consultó-
rio. De um modo geral, parecem ainda não ter conseguido em seu per-
curso um reconhecimento ou autorização para se dizerem psicanalistas. 
A psicanálise parece estar substancializada num ideal a ser atingido. Em 
determinado momento de maior dificuldade na clínica, esse ideal pode 
ter conseqüências perturbadoras. Por este mesmo motivo, buscam 
supervisões, conversam com colegas, recorrem aos livros, grupos de 
estudo e às suas próprias análises. Curiosamente, eles põem em marcha 
a concepção de formação analítica por excelência proposta por Freud e 
sistematizada, nem sempre da melhor nvmeira, nas sociedades psicana-
líticas. São aqueles a quem denomino 'psicólogos psicanalíticos'. A 
psicanálise vem adjetivada em expressões como: "trabalho com o refe-
96 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
rencial psicanalítico". Ou "faço uma clínica psicanalítica". Ou, ainda, 
"minha experiência é psicanalítica". 
Mas isto é bem diferente da chamada "psicoterapia de base analítica". 
Esta pressupõe duas maneiras de fazer psicanálise, enquanto que as 
frases acima vão em direção à psicanálise. Essa diferença não é nada 
desprezível em suas conseqüências clínicas. 
Finalmente, encontrei entre psicólogos e psiquiatras os que se defi-
niam como psicanalistas e como tal se apresentavam nas instituições 
recusando atribuições que os desviassem de sua prática psicanalítica. São 
os psicanalistas stricto scnsu e correspondem, aproximadamente, a um 
terço dos entrevistados. Em sua grande maioria são lacanianos com 
filiação institucional, outros são lacanianos mas não são membros de 
qualquer instituição, e outros são de algum modo afinados com a leitura 
que Lacan faz de Freud mas filiados a instituições com diferentes ten-
dências. Em mjnha amostra não encontrei ninguém que defenda um 
trabalho psicanalítico no serviço público e se diga psicanalista sem hesi-
tar que não tenha uma ligação com o pensamento lacaniano. Isto não é 
novidade. 
Em trabalhos anteriores sobre o movimento psicanalítico no Rio de 
Janeiro nas décadas de 1970 e 1980 (Figueiredo, 1984, 1988a/b, 1989) 
eu já havia indicado que o movimento lacaniano aparece com a função 
de redefinir o campo psicanalítico e retirá-lo do imbróglio eclético das 
psicoterapiasque ameaçavam descaracterizá-lo transformando tudo em 
psicanálise, ou a psicanálise em nada. Portanto, não é de se estranhar que 
na década de 1990 esse projeto tenha se concretizado. 
Os psicanalistas explicitamente referidos a Lacan insistem em marcar 
uma diferença para com os psicólogos psicanalíticos que pode gerar 
tensões às vezes insolúveis. Pode, por outro lado, traçar com clareza os 
próprios limites do trabalho psicanalítico no serviço público. 
Uma psicanalista relata observações curiosas sobre a ambigüidade de 
seus colegas que hesitam entre se apresentarem como psicanalistas ou 
como psicólogos num serviço eminentemente médico. Ao mesmo tem-
po, tiram proveito de uma outra ambigüidade entre a figura do médico e 
a do psicólogo niveladas pela designação de 'doutor' atribuída a ambos 
pelos próprios colegas, o que adquire um sentido bem diferente de quan-
do essa atribuição é feita pelos pacientes. O que essas ambigüidades vêm 
nos indicar? Que tipo de qualificação é essa que, ao privilegiar a igual-
dade de status, desqualifica as diferenças na clínica? 
Interrogando o ambulatório | 97 
Para afirmar a clínica psicanalítica, o que está em jogo, num primeiro 
momento, é um sintoma específico, a manifestação de uma fantasia que 
traduzo como o desejo de ser psicanalista, produzido no percurso de cada 
um. Trata-se de um sintoma necessário mas não suficiente, exatamente 
porque, de algum modo, coloca a psicanálise num lugar ideal de onde 
exerce seu fascínio. Sem ele, não se tem como avançar diante de tantos 
desafios e obstáculos cotidianamente presentes no serviço público. 
Dado este primeiro passo, resta definir com clareza o que deve ser 
identificado como o trabalho do psicanalista, sua função propriamente 
dita. Só assim, pode-se manejar esse sintoma na direção desejada. 
3. Duas ou três questões para a psicanálise no ambulatório 
3.1 Dinheiro, pra que dinheiro... 
"O dinheiro envolve poderosos fatores sexuais" (...) a ausência do efeito 
regulador proporcionado pelo pagamento de um honorário ao médico sé 
faz sentir de modo doloroso;(...) o paciente é privado de um forte motivo 
para se empenhar em dar fim à sua análise" (Freud, 1913, pp. 131-2) 
Dentre as não muitas referências de Freud à função do dinheiro em 
psicanálise, a acima citada provoca especial embaraço pois diz respeito 
diretamente ao analisando, já que o analista em nosso caso tem sua 
remuneração fixada mensalmente. O problema não é mais de quanto e 
como cobrar, mas das conseqüências desastrosas para o tratamento de 
quem não pode pagar, não por impossibilidade mas por imposição, como 
norma geral dos serviços públicos. Se aí não se pode cobrar, como 
avaliar as conseqüências comprometedoras do tratamento se é justamen-
te dos "poderosos fatores sexuais" que trata a análise? E, ainda, como 
desvencilhar-se dela? 
Essas formulações não são totalmente verdadeiras nem tampouco 
totalmente falsas. E preciso indagar de pronto se a ausência do fator 
dinheiro retira de cena os fatores sexuais que o dinheiro envolve. Sabe-
mos que não. Mas um argumento corrente entre analistas que trabalham 
na rede pública e consideram seu trabalho eminentemente psicanalítico, 
em geral referidos ao paradigma lacaniano, é de que sem alguma forma 
de pagamento uma análise não anda. Pode-se chegar até certo ponto mais 
ou menos avançado do trabalho de elaboração, mas há sempre um mo-
mento em que pagar (ou não) entra em jogo como um poderoso fator de 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
98 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
resolução da transferência. Fator libidinal, economia da libido, fixação, 
seja qual for a designação, aqui chega-se a um impasse. 
A parca literatura psicanalítica sobre dinheiro a que tive acesso,* e 
que tomo como ponto de partida, ignora absolutamente a possibilidade 
da remuneração do analista ser feita por um terceiro: a instituição à qual 
estaria vinculado sob o regime de assalariamento. Não existem analistas 
assalariados? O salário não faz um analista? Ou melhor, o salário desfaz 
o lugar do analista? 
A remuneração no serviço público, embora variável, torna-se risível 
se comparada à receita dos consultórios mesmo considerando seu esva-
ziamento crescente e as concessões que os analistas têm que fazer para 
manterem seus clientes. Este deve ser nosso ponto de partida e não um 
pretexto para a desqualificação do trabalho analítico. Nesse ponto, reite-
ro que a reivindicação de melhores salários, assim como de melhores 
condições de trabalho, é uma luta maior e requer uma política séria e 
transparente dos servidores públicos. De nada nos serve o famoso pacto 
"eles fingem que pagam e nós fingimos que trabalhamos". Pretendo, 
portanto, deixar de lado essa questão, entendendo que me dirijo àqueles 
que têm um compromisso ético com o que fazem. Tomo a questão do 
dinheiro no que concerne exclusivamente à clínica. 
Entre meus entrevistados os argumentos variavam e as propostas de 
solução nem sempre foram animadoras. Uns afirmavam categóricos que 
é preciso pagar, mesmo que não seja com dinheiro. Deveríamos, a cada 
caso, estipular uma forma de pagamento, atribuir um valor que pudesse 
fazer as vezes do dinheiro como uma metáfora. Seria um produto, um 
presente, um objeto qualquer, contanto que custasse algum trabalho ou 
esforço de recompensa para não infinitizar a dívida com o analista, ou 
ater-se ao gozo de seu sintoma. O dinheiro, como metáfora do objeto 
perdido, atualizado nos objetos parciais recortados no corpo — seio, 
fezes, pênis, bebê, na equação freudiana — deveria ser então metafori-
zado. Metáfora da metáfora na série metonímica de equivalências sim-
bólicas. O problema maior é que dificilmente esses objetos podem ter o 
estatuto de valor de troca ou de compra na rede social. Money makes the 
world go 'round. Mas se o analista não é um money maker... então não 
tem valor? 
Entre os principais trabalhos, faço referência a: "O dinheiro na psicanálise", 
vários autores, em Agenda de psicanálise, 1989; As 4+1 condições da análise, 
capítulo IV: Capital e libido, de Antônio Quinet e Argent et Psychanalyse de 
Pierre Martin. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Interrogando o ambulatório I 99 
Outros confirmavam minha hipótese de que o sujeito que procura 
tratamento reconhece naquele que o atende um profissional, ou seja, é 
pago para isso, não está aqui de favor ou só porque o ama, não é 
filantropia — o maior receio de Freud na clínica privada. Portanto, a 
dívida simbólica retoma seu lugar de impagável sendo sintomatizada ao 
gosto da neurose do freguês (seria cliente?). Curioso que a palavra clien-
te raramente é usada quando se fala em clínica. Emprega-se alternada-
mente os termos paciente, sujeito, analisando, analisante, neurótico ou 
psicótico, para designar os que procuram tratamento seja nos consultó-
rios ou na instituição. Nenhum desses termos alude ao dinheiro. 
No consultório a questão está resolvida, apenas é problematizada 
como mais ou menos pertinente ao dispositivo analítico. O analista refe-
rido à ortodoxia tradicional das escolas inglesa e americana resolve o 
problema no modelo do contrato liberal. Fechar o contrato significa a um 
só tempo contratar o preço, a freqüência, que pode fazê-lo variar — 
pagar por uma ou até cinco sessões semanais exige um cálculo nada 
desprezível — e o horário. Pronto. O resto é manejar a transferência com 
elegância na hora de corrigir os honorários, salvo nos casos em que o 
"poderoso fator sexual" entra em ação, geralmente pela porta de trás, sob 
a forma de fixação anal. Perdulários ou avarentos devem encontrar a 
justa medida para o justo preço. E bem verdade que os retenlivos tornam-
se mais problemáticos. Aí a interpretação se encarrega de corrigir os 
algarismos. 
O analista referido à escola francesa, a partir da reviravolta de Lacan, 
encontra na ética do desejo como falta o limite de sua fortuna. O dinhei-
ro, fazendo as vezes do objeto perdido, entra em cena na primeira hora 
comoo que se perde para garantir uma perda de gozo do sintoma, já em 
questão quando se procura um analista. 
Por outro lado, o pagamento não teria só a função de fazer cair o 
objeto para apontar o caminho do desejo. Da parte do analista, oferecer 
sua escuta para receber em troca os inauditos segredos que revelam uma 
fantasia envergonhada de seu gozo pode bem dar a idéia de que é o 
analista quem goza disso. Falar para fazer o outro gozar é, sem dúvida, 
o que não se deve esperar de uma análise. Nesse sentido, cabe ao analista 
saber cobrar o que custe caro ao analisando, mas sem referência fixa ao 
preço de mercado ou à freqüência padronizada. Deve pedir o que o 
sujeito tem a pagar reivindicando o que lhe é de direito: o acesso ao gozo 
do dinheiro. A quantia pode, muitas vezes, deixar a desejar para o bolso 
do analista. O preço entra mais do que nunca pela via da transferência, e 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
100 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
a metapsicologia só tem a ganhar ao incluir o dinheiro em seu acervo 
teórico como um recurso importante no manejo da transferência. 
Entretanto, em nenhum dos casos podemos tomar de empréstimo as 
soluções apresentadas. Elas ficam devendo um tributo ao analista que faz 
operar o dispositivo somente a partir de um pedido inicial do sujeito de 
alívio para seus males. No serviço público é proibido cobrar. Este é o 
ponto de partida. 
Imaginemos, para polemizar, que o analista mais convencido de que 
pagar é fundamental, pelo menos em alguns casos, administre uma forma 
de pagamento em que o dinheiro possa ser vertido para a instituição para 
fins específicos de melhoria das instalações do serviço, o que reverteria 
para o conforto dos próprios usuários. Convém lembrar que falamos de 
quantias irrisórias, mesmo considerando um maior afluxo da população 
da chamada classe média aos serviços. O que justificaria que em outras 
modalidades clínicas e assistenciais cobrar não seria necessário? A me-
tapsicologia? Por que não pagar ao médico também para se ver livre do 
objeto fetiche em que o medicamento pode se converter? Ou ainda, pagar 
ao assistente social como forma de reconhecimento por seu trabalho de 
encaminhar soluções concretas para o paciente e seus familiares? Afinal, 
não c privilégio exclusivo do analista ter seu trabalho reconhecido, ou ser 
o depositário de uma dívida de gratidão indesejável. Os "poderosos 
fatores sexuais" estão em jogo em toda parte. 
Um contra-argumento surgiria de pronto: mas é justamente essa a 
diferença entre a psicanálise e as demais terapias. Aqui é o lugar onde o 
sujeito paga para perder e não para ganhar bens. A psicanálise não 
oferece a cura como barganha para o sofrimento. A troca é do sofrimento 
(ou excesso de gozo) do sintoma, que já não satisfaz, pela "miséria 
banal", para empregar um termo de Freud. Mas, amar e trabalhar já dão 
muito trabalho para os que apostam na vida. E é justo aí que os neuróti-
cos e, cm maior grau os psicóticos, sucumbem. E ainda tem que pagar 
por isso? — diz a histérica vitimizada; diz o obsessivo esticando a dívida. 
Alguns exemplos podem dar o que pensar, vamos a eles: 
"Vim buscar o serviço público porque acredito que aqui posso ser 
bem atendida (...) eu acredito nas instituições." 
Este enunciado é de uma senhora formada em sociologia há muitos 
anos mas que não exerce a profissão. Procura atendimento por ter sérios 
problemas com o marido com quem é casada há anos e com quem 
freqüenta uma psicóloga particular para terapia de casal, paga pelo ma-
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Interrogando o ambulatório | 101 
rido mas solicitada por ela. A psicóloga em questão indica terapia indi-
vidual para os dois e mantém o atendimento do casal. Ela reconhece que 
está precisando, e o marido prefere continuar conversando com a psicó-
loga com quem, segundo ela, se entende bem. Como o marido não 
mostra disposição para pagar por mais uma terapia e ela mesma diz que 
não gostaria de pedir mais dinheiro a ele, pois esse tratamento vai "ser 
só meu", ei-Ia aportando no serviço público. Convém lembrar que ela 
vendia produtos de beleza para ter "um dinheirinho" irrisório diante dos 
ganhos do marido mas não o fazia regularmente. O que fazer diante dessa 
demanda? Trabalhar a importância do pagamento daquilo que é só dela 
e encaminhar para a clínica privada? Aceitar tacitamente sua palavra 
como aposta no valor do serviço público e iniciar um trabalho "só seu"? 
Optou-se, no caso, pela segunda hipótese. 
Seu dilema era separar-se ou não do marido, queixas várias que foram 
dando lugar a uma reflexão sobre o que a fez casar-se com ele e manter 
um casamento com sérias decepções, desde o início, por tanto tempo. No 
processo, ela decide que ele tem que pagar (...) pagar por isso; pagar 
paia lê-la. sustentá-la, pagar pela terapia de casal que mais adiante é 
interrompida pois ela não via sentido nisso. "A psicóloga acabava dando 
razão a ele." 
Outros acontecimentos em sua vida, como a doença e morte de seu 
pai de quem cuidou em sua própria casa, confirmavam a importância da 
ajuda do marido. Mais adiante ele pede a separação, o que era impensá-
vel até então, e ela decide convencê-lo a ficar num rearranjo da convi-
vência entre os dois, suportando suas saídas freqüentes em troca de uma 
certa liberdade para o que é "só seu". Alguma separação tornou-se pos-
sível. Teria sido este o desfecho por ela desejado? Ou desejável, na 
avaliação de quem a atendia? 
Infelizmente, não acompanhei o caso para melhor discuti-lo. O que 
interessa recortar nesse exemplo é a indagação: se houvesse pagamento 
cm jogo qual seria a troca? Haveria um outro modo de pagar pelo que é 
"só seu" e poder ganhar mais por isso? E o imponderável, sabemos disso. 
A escolha foi feita por ela e aceita pelo analista. 
"Estive nas mãos dos melhores analistas (...) nomes famosos (...) eles 
pintaram e bordaram comigo, fizeram de tudo (...) andei de chinelo de 
dedo pagando analista e não cheguei a lugar nenhum (...) e já que aqui é 
de graça vou tirar tudo que eu posso." 
Esta é a resposta de uma senhora instruída, com nível superior, à 
pergunta sobre sua escolha de um ambulatório público. Ela fora atendida 
102 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
ate então por outra psicóloga do serviço, a quem se referia como uma 
amiga, na freqüência regular de duas vezes por semana. A freqüência foi 
mantida por um período de quase um ano, mas ela faltava muito e 
chegava bastante atrasada para as sessões. No início, falava de seus 
problemas referindo-se a uma relação amorosa que (...) "acaba com a 
minha vida, abusa de mim, levou tudo que tenho de bom, meu dinheiro, 
minha beleza, minha inteligência, (...) estou arrasada, não vejo mais 
sentido na vida... não desejo mais nada". 
Referia-se à atual terapeuta como uma "menina que não sabe de 
nada" e as sessões foram se tornando difíceis. Sem saber o que fazer, 
sentindo-se incapaz de lidar com o tom agressivo e de desvalorização 
com que a paciente recusava suas intervenções, rendendo-se às evidên-
cias, ela propõe que a paciente venha só uma vez por semana porque 
concorda que desse jeito não está mesmo adiantando. As reclamações 
não foram poucas mas, para espanto geral, a paciente passa a vir sem 
faltas ou atrasos. A perda da sessão toma novo sentido como uma possi-
bilidade de trabalhar sobre sua demanda de "tirar tudo porque já haviam 
tirado tudo dela". Começa a dizer frases do tipo: "quero ir fundo, entrar 
de cabeça, porque agora sei que posso contar com você" e "quero vir 
para cá porque quero aprender a crescer, (...) estou contando com você... 
não posso te perder". 
Diante da perda inesperada de uma sessão, justificada pela confirma-
ção de que "desse jeito não adianta", sua exigência em obter algo, um 
ressarcimento de tudo que já pagou e perdeu, dá lugar a um movimento 
desejante. O que ela tem como oferta do outro é o trabalho de análise, 
não está mais "nas mãos dos analistas" (mestres famosos?),portanto, não 
é seu objeto. O analista agora é que não pode ser perdido, ele serve de 
garantia para ela poder "entrar de cabeça na vida" e na análise, pois 
começam a ser relatados fragmentos de lembranças de cenas nebulosas 
que envolvem fantasias eróticas em relação à mãe. 
Neste caso, pagar com o tempo adquire um valor na economia libidi-
nal e provoca uma reviravolta na relação do sujeito ao objeto: da perda 
de tempo, que nada traz, ao tempo que está perdido e não se recupera. 
Convém lembrar que não se trata de uma punição. Num dado momento, 
ela solicitou urna sessão extra na mesma semana e foi atendida, mas seu 
pedido referia-se ao fato de naquele momento precisar falar, ter o analista 
disponível para o trabalho de elaboração, não era barganha. 
"Isso aqui c para a senhora", disse um paciente puxando uma nota, 
que hoje corresponderia aproximadamente a R$ 10,00, no dia em que 
Interrogando o ambulatório | 103 
recebeu os atrasados de seu pagamento. "Não posso aceitar dinheiro" 
retrucou a analista embaraçada e, após alguma tentativa de interpretar o 
significado desse ato, optou por dizer que aceitaria algo que fosse com-
prado com aquele dinheiro. Uma ou duas sessões após, ele retorna com 
o presente/pagamento: uma toalha de praia estampada com a figura do 
Cristo Redentor. 
Este paciente fora atendido por um período de cerca de dois anos e, 
por motivo da saída de sua analista do serviço, o tratamento estava sendo 
interrompido. A queixa inicial era de fortes dores nevrálgicas no rosto — 
não se sabe ate que ponto devidas a um sério problema de otite não 
tratada a tempo —, nervoso, medo, insónia, inapetência, vontade de 
morrer. Após ter peregrinado por tantos médicos em busca de uma solu-
ção, saturado de remédios, aceita vir à psicóloga para conversar. Tinha 
mais dc 50 anos de idade e estava "encostado" pela Previdência Social 
há nove anos. Era migrante de uma pequena cidade no norte do Estado 
do Rio, e havia trabalhado por cerca de oito anos na garagem dc uma 
empresa de ônibus na limpeza c manutenção dos carros. Havia sofrido 
um sério acidente de trabalho e fraturado a bacia, daí sua licença médica. 
No decorrer do atendimento, a queixa da dor vai dando lugar a outras 
dores morais e ele vai reconstruindo sua história, falando da vontade de 
voltar para sua terra, retomar sua "força" de arrimo de família (Oliveira, 
1991). 
Não me alongarei mais sobre o caso, pois trata-se de apontar para 
uma forma de pagamento que não lhe foi exigida como condição do 
tratamento, e hipotetizar uma significação desse gesto: sua analista, que 
o atendia em Niterói, estava voltando para o Rio de Janeiro para trabalhar 
peito de casa, numa "vida boa que a senhora deve levar lá" — esta frase 
já havia sido dita antes referindo-se à sua saída. Tratamento interrompi-
do, desejo dc ir com ela para essa "vida boa", e um modo de se fazer 
presente, nos dois sentidos se condensam nesta metáfora. Antes, e le ja 
havia declarado que não pretendia continuar se tratando com outra psi-
cóloga. Só lhe restava um último ato. 
Um adolescente envolvido no tráfico de drogas, com perturbações 
psicossomáticas, dores de cabeça, sensação dc sufoco no peito, fala de 
sua função de "avião". Num dado momento refere-se à importância 
desse ir e vir como "(...) eu levo e trago coisas que as pessoas querem e 
me sinto importante por isso." 
Na época o serviço se utilizava do recurso freqüente a aerogramas 
para contactar os pacientes e a analista pensou em atribuir-lhe a tarefa de 
104 l Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
postá-los por um tempo, arriscando ver qual o efeito disso. A idéia sequer 
se concretizou pois não havia "clima para isso". Poderíamos pensar que 
se trata de um artifício inútil, por demais apegado à palavra, sem consi-
derar outros "poderosos fatores sexuais envolvidos" na empresa do trá-
fico. Seria esta uma boa maneira de trabalhar para o analista, ao invés de 
para o traficante? Isso resultaria no bom andamento da análise? Entre-
tanto, este seria um julgamento precipitado. 
O que interessa neste exemplo é pensar alguma alternativa para desa-
fios clínicos tão grandes tanto no que se refere ao gozo da pulsão, quanto 
às identificações em jogo nesse caso. Poderia ser útil se o serviço ofere-
cesse formas de absorção e ocupação para certos pacientes. Isso, porém, 
não basta, c preciso localizar o que oferecer e quando fazê-lo, a cada caso. 
Tomando inversamente o consultório como exemplo, presenciei, cer-
ta vez, o depoimento de um analista sobre como cobrava em sua clínica, 
citando o caso de um artista plástico que, em dado momento não tinha 
como pagar sua análise. O analista propôs: "pague-me com seus traba-
lhos", e afirmou que durante um tempo funcionou. No decorrer da aná-
lise, aconteceu do analista ser o único comprador. Situação delicada, pois 
se não temos como saber qual o valor de uma análise, o mesmo pode-se 
dizer de uma obra de arte: inestimável? sem preço? o mercado é que 
dita? ou sem valor? 
Um outro exemplo do consultório é relatado por Teixeira (1989, 
pp. 240-2) sobre uma paciente que "tem câncer e não tem dinheiro... o 
câncer comeu o pouco dinheiro que tinha." Como solução inicial propõe 
o pagamento sob a forma de um presente, "o que ela quisesse, a seu 
gosto". O que resulta é que a paciente não suporta ter que escolher algo 
para presenteá-lo a cada sessão, sob pena de não agradar, ter que pensar 
nele o tempo lodo. Assim, ela propõe uma quantia pequena, porém 
pagável em dinheiro, para desvencilhar-se dos excessos da transferência. 
O exemplo é notável por apresentar a questão no seu avesso. Ao pagar 
com o que é mais valioso de si não estaria ela infinitizando sua dívida? 
Aqui fica claro que pagar é se desfazer de um bem, e não ter que fazer 
um bem a cada vez; é se desfazer das demandas caprichosas do outro 
para poder encontrar o analista. 
Um outro exemplo vai numa direção diferente. 
Trata-se de um obsessivo típico que, ao término de uma sessão, diz: 
"não deu pra trazer o dinheiro porque entreguei para minha mãe". A 
CAPS_10
Destaque
Interrogando o ambulatório I 105 
analista retruca: "como assim? entregou para sua mãe o dinheiro da 
análise'" Nesse momento de sua análise, ele faltava muito e vinha quan-
do era chamado pela analista, ou seja, ir, falar, pagar — tudo o que o 
analista pode pedir do analisando — mais do que nunca entravam numa 
série psíquica de servidão, servir/pagar à mãe ou à analista, encarnando 
o imperativo do superego, constituindo um entrave, quase intransponí-
vel, ao bom andamento da análise. Aqui o dinheiro é mesmo um bem do 
qual o sujeito sequer se desfaz mas que faz perpetuar a dívida. 
Voltando ao nosso problema, como pode o analisando que não paga 
se desfazer da transferência? 
Outros depoimentos indicam que esta pode ser uma discussão do 
sexo. sem dúvida, mas dos anjos: 
Ceita vez, os funcionários de um serviço estavam em greve e um 
profissional foi até a sala de espera esclarecer os motivos da suspensão 
do atendimento alegando os baixos salários recebidos. Uma assídua 
paciente perguntou quanto ganhavam. Ao saber da quantia revelada em 
tom de desdém, exclamou surpresa: "Tudo isso? eu ganho muito menos 
e faltei ao trabalho para vir aqui ser atendida!" 
O que destaco deste diálogo não é a idéia conformista de que deve-
mos trabalhar a qualquer preço ou nivelar por baixo; ao contrário, reafir-
mo a luta por melhores salários. A fala da paciente, porém, indica que, 
dc seu ponto de vista, os profissionais não estão lá por filantropia ou 
abnegação, para cia há um custo de trabalho cuja contrapartida é o ganho 
do profissional pelo trabalho. Ninguém fica a dever nada a ninguém. 
Discute-se muito que os pacientes são também contribuintes, pagam 
impostos e têm direito aos serviços. Entretanto, este argumento é débil. 
Primeiro porque esse pagamento existe independente da oferta de servi-
ços, portanto não é necessariamente reconhecido como tal no empenho 
do sujeito cm sc tratar, ainda maisno caso de uma psicoterapia, psicana-
lítica ou não. em que esse empenho se diferencia do atendimento médico 
cm geral pela freqüência e expectativas. 
Segundo, em se tratando da seguridade social, muitos não são, sequer, 
contribuintes. E. ainda, há o problema quase incontornável de pessoas 
que têm no tratamento, seja qual for, uma condição para receber o 
benefício ou auxílio-doença. Neste caso, haveria um duplo ganho: não 
pagar e poder receber algum dinheiro para seu sustento. Em geral, esses 
pacientes são atendidos pela psiquiatria, mas houve referência a atendi-
mentos cm psicoterapia. Os exemplos mencionados eram de casos gra-
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
106 í Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
vcs de pessoas que não tinham como se manter. Portanto, a ética não é a 
do dinheiro, e a questão é de que efeitos terapêuticos podem se produzir 
no processo. No caso do próprio tratamento se transformar literalmente 
em "encosto", resta a decisão de cada analista, a cada caso, de não 
sustentar um pacto perverso. 
Por outro lado, foram mencionadas formas indiretas de pagamento 
como um custo real para os pacientes que se engajam nos tratamentos: o 
tempo e dinheiro que gastam para chegar até o serviço pelo menos uma 
vez por semana; diaristas que perdem no mínimo um turno de trabalho 
e remuneração; donas de casa que deixam seus lares e filhos entregues à 
sorte por boa parte do dia; jovens que perdem às vezes um dia inteiro de 
atilas, gazelas à parte, e têm que se haver com as provas e demandas dos 
professores; trabalhadores em geral que sofrem pressões para não se 
ausentarem regularmente dos empregos;,desempregados que conseguem 
emprego c têm que arcar com uma escolha difícil de abandonar seus 
tratamentos ou negociar com os patrões; pais que têm que levar os filhos 
vencendo todo tipo de obstáculo, e por aí vai. Haja investimento e 
inventividade! Estes são alguns exemplos que devem ser contabilizados 
como pagamento e na avaliação da resistência. 
Uma outra objeção aparece de forma mais sutil. Vários entrevistados 
comentaram que os pacientes agradecem muito, não há margem para a 
transferência negativa, para que apareça o lado obscuro da fantasia diri-
gida ao analista. Ou. ainda, se estão achando que ir lá e falar não adianta 
nada, como vão dizer isso se são tão bem atendidos, na hora, com tanta 
dedicação 1/ 
Sobre este ponto, podemos contra-argumentar que há sempre o recur-
so de ir embora sem nada dizer, poupando a ambos o dissabor do fiasco. 
Esta pode não ser a melhor maneira, mas é um recurso viável e acontece 
(não raramente) nos consultórios. 
Sobre a transferência negativa, assunto mais espinhoso, podemos 
começar indagando até onde a hostilidade ao analista é condição para o 
bom andamento de uma análise? Questão metapsicológica. Supondo que 
sim. há formas variadas de manifestação de sentimentos, mais sutis, 
talvez, mais difíceis de detectar e manejar e, por isso mesmo, são um 
desafio maior para o analista. Não subestimemos a engenhosidade de 
nossos pacientes, nem tampouco nossos recursos clínicos. Não devemos 
nos colocar numa posição de tanta bondade se detectamos que esses 
agradecimentos são encobridores; nem de tanta paranóia que não possa-
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Interrogando o ambulatório | 107 
mos perceber que eles indicam exatamente o que dizem. Ou seja, agra-
decer pode ser, no mínimo, a confirmação de que houve efeito terapêu-
tico, ate um modo de reconhecimento do trabalho do analista. E impor-
tante saber cm que momento da análise, a partir de que acontecimentos, 
cm que seqüência associativa isso ocorre. Quantas vezes não ouvimos 
após sessões difíceis, onde se revelam segredos ou sofrimentos penosos, 
ou sc fazem associações impensadas, constatações inegáveis de situações 
antes negadas, e, para nossa surpresa, ouvimos um "muito obrigado" sem 
glandes alegrias, mas reconhecido. 
Há. ainda, o famoso "muito obrigado por me escutar". Isto não é 
pouco, apesar de sabermos que uma análise não fica por aí, ao contrário, 
começa. O problema maior é que esses agradecimentos podem simples-
mente apontar para o fato de que no serviço público, de um modo geral, 
as pessoas são muito mal atendidas, não são minimamente escutadas, ou 
respeitadas. Isto c muito grave, e não deve ser tratado como dificuldade 
em sc desfazer da transferência. 
A dificuldade c outra c está do nosso lado. Se, ao cumprirmos nosso 
dever ético dc atender bem somos exceção, como podemos nos livrar de 
uma parle desse reconhecimento que, num dado momento, pode encobrir 
uma outra face da fantasia? 
Em primeiro lugar é preciso não confundir o atender bem com com-
placência ou bondade compadecida, nem saltar para o outro extremo do 
intransigente c inflexível. Em segundo lugar, é preciso que, no decorrer 
do trabalho analítico, o sujeito se perceba em trabalho até para poder 
querer "férias", "folga", para pensar em ir embora quando achar que já 
trabalhou o bastante. 
Algumas pessoas comentaram que esses agradecimentos não se pro-
longam tanto quando o sujeito percebe que o tratamento não é a simples 
aquisição dc um bem; a acolhida inicial vai dando lugar ao seu próprio 
empenho. 
Em vários depoimentos aparecem exemplos freqüentes de analistas 
presenteados, seja cm ocasiões típicas como Natal, Páscoa, mesmo ani-
versário, mas também em situações singulares, em geral por pacientes 
cm tratamento há algum tempo. Parece que deixam entrever no amor de 
transferência um pagamento pela via da gratidão, poder dar algo. Se tem 
a equivalência de desfazer-se de uma dívida, só nos resta ir a detalhes de 
cada caso. Uma analista comentou bem humorada: "no consultório não 
ganho tanto presente assim"! 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
108 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Uma entrevistada lembrou que no caso de crianças e adolescentes o 
pagamento em consultório é sempre feito por terceiros, geralmente os 
pais, mas nem sempre, e que se isso pode alterar em determinado mo-
mento o rumo do tratamento, é muito mais pela resistência, por ter que 
pagar, que os tratamentos são interrompidos; o dinheiro aí é um poderoso 
fator dc impedimento. Em sua experiência no ambulatório esse compo-
nente da resistência não existe, ela pode se dar de outras formas, pelo 
abandono simplesmente. Outros alegam justamente isso: as pessoas 
abandonam com mais facilidade o tratamento por que não têm que pagar; 
sc tivessem esse compromisso voltariam. Como saber? 
E quanto aos crescentes casos de consultório cm que o analista acaba 
ouvindo a conhecida frase "tenho que interromper por que não tenho 
como lhe pagar'"? 
As duas posições parecem desaguar no mesmo lugar: no consultório 
c no ambulatório contamos com elementos diferentes em jogo tanto para 
a boa resolução da transferência quanto para a resistência inevitavelmen-
te presente cm qualquer análise. Portanto, é só a partir da afirmação 
dessa diferença que podemos pensar soluções para cada caso. O que não 
podemos fazer é alegar como um a priori que sem dinheiro não se pode 
fazer psicanálise. Isto sim é resistência! 
E preciso criar novos critérios de avaliação do fator ausência de 
dinheiro na experimentação cotidiana da clínica e referi-los à teoria 
psicanalítica. E assim que podemos sair ganhando ao invés de entrar 
perdendo. Contudo, o ganho não é narcísico nem secundário, ao contrá-
rio, é com perda narcísica que se abre caminho para novas possibilidades 
do trabalho psicanalítico. 
3.2 Deitando o olhar sobre o divã 
O divã, metonimia preciosa, chegou à mídia e está na boca do povo: tem 
o divã do Mascarenhas, o divã do Faustão (...), e deita-se a falar dele 
como nunca. Talvez seja hoje tão popular quanto o bem humorado (e 
patético) "Freud explica". Não há mais psicanálise a sério? 
Quando sc fala cm divã no serviço público há, no mínimo, um estra-
nhamento. Signo de conforto burguês e ortodoxia, divã só no consultó-
no. Peça fundamental do mobiliário psicanalítico, foi inventado por 
Freudcomo um instrumento nada acessório da clínica. Seu inventor 
dedicou poucas palavras a justificá-lo. Seria um resquício histórico da 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Interrogando o ambulatório | 109 
hipnose como meio de relaxamento e entrega do corpo à magia do 
tratamento, mas também um alívio para o analista, um facilitador da 
escuta. 
Freud vai mais longe e o inscreve no movimento pulsional. Nova-
mente, os poderosos fatores sexuais entram em cena, desta vez, pela via 
do olhar, da pulsão escopofílica ou escópica. Não se trata de recomendar 
o divã para determinados casos. Sua função em interditar o olhar tem 
como objetivo e resultado impedir que a transferência se misture, imper-
ceptível, com as associações do paciente e apareça como resistência 
precocemente (Freud. 1913, p. 133-4). Assim, o uso do divã se justifica 
menos por provocar um estado letárgico e mais por permitir a emergên-
cia da transferência como resistência em seu devido tempo, restrita à fala 
e isolada da imagem do analista. Ou seja, as imagens em cena devem 
remeter propriamente à fantasia do analisando. Nesse sentido, sua função 
parece indispensável. Cabe aqui a pergunta: seria o divã a única manei-
ra de desfazer a pregnância indesejável do olhar? E, ainda, até onde 
alteraria o tempo e a qualidade da transferência, entendida aí como 
resistência? 
Entretanto, ao invés de problematizar a função do divã nas variações 
do setting, a corporação internacional de psicanalistas optou por padro-
nizá-lo como um invariante juntamente com a duração e freqüência das 
sessões c o pagamento. De resto, estamos fora do setting e, numa con-
cessão estratégica, podemos, na melhor das hipóteses, fazer uma psico-
terapia de base ou inspiração psicanalítica. 
No modelo estrutural de Lacan, o divã, mais do que um componente 
dos standards, tem uma função específica, e localizável a cada caso, de 
marcar o momento da entrada em análise. Atrelado ao trabalho das 
entrevistas preliminares, o divã é indicado pelo analista quando emerge 
algo qtie diz respeito ao sujeito do inconsciente e se dirige ao analista, 
estabelecendo a transferência propriamente analítica. Não desenvolvo 
aqui os meandros conceituais desta operação, mas considero que nessa 
perspectiva o divã, mais do que nunca, se faz indispensável.* Como 
resolver o problema sem recorrer à solução proposta pelos padronizado-
ics da psicanálise acima referida e condenada pelo próprio Lacan? 
Para maiores detalhes, ver em 4+1 Condições da psicanálise, de Antonio 
Quinei, cap. II, "O divã ético", pp. 39-54, as etapas que conduzem das entrevis-
tas preliminares ao divã. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
1 1 0 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Curiosamente, a maioria dos entrevistados se preocupou mais com o 
problema do dinheiro do que com o divã. Em primeiro lugar porque divã 
não é proibido, pode não ser considerado como peça necessária do 
mobiliário, geralmente precário, dos ambulatórios, mas isso não é rele-
vante. Em segundo lugar porque sua presença talvez provoque embaraço 
ou estranheza, mesmo entre defensores da psicanálise, evocando a repro-
dução padronizada do consultório particular em pleno serviço público. 
Entretanto, a questão não se encerra por aí. Quais os recursos vigentes e 
os possíveis para lidar com mais um elemento significativo que atua na 
instalação da transferência: a pregnância do olhar? 
Sobre as instalações dos ambulatórios, ouvi vários relatos de situa-
ções prosaicas, algumas realmente cômicas. Reproduzo fragmentos: 
Uma entrevistada reclama: 
"Uma colega me disse que não tinha condições de trabalho nas 
instalações do serviço, e alega que com isso dá pra fazer, no máximo uma 
psicoterapia... Ora. eu conheço o lugar, comparando ao local onde traba-
lho, a impressão que tive é que ela atende no Méridien e eu numa favela... 
c sc cia fizer psicoterapia, já é alguma coisa. 
"Pra começar não atendo sempre na mesma sala... tem dias que atendo 
numa sala da oftalmologia onde o basculante é pintado de preto por feita 
de cortinas, e ainda tem aquele aparelho de exame de vista... [tornar 
escuro para ver através de aparelhos o que diz respeito à visão, afirma a 
cegueira do olhar, o avesso da pulsão]... às vezes atendo numa sala que 
tem clínico c pediatra. Nessa sala, o clínico, para não ter que levantar na 
hora do exame, coloca a cadeira ao lado da mesa na mesma posição que 
a dele, dc modo que ficam quase paralelas, uma mais à frente da outra... 
assim ele ausculta peito c costas sem sair do lugar... quando entro não 
interfiro na posição e deixo a pessoa colocar a cadeira como quiser... 
muitas vezes ela não fica mais no frente-a-frente mesmo sendo deslocada. 
"Tem uma moça que dizia que não conseguia falar olhando pra mim. 
Eu disse: se você quer virar a cadeira, fique à vontade... e foi o que ela 
fez. 
"Já na sala da ginecologia tem aquela fatídica cadeira ginecológica e, 
além disso, a sala c muito pequena... a cadeira comum fica encostada na 
parede c não dá ângulo para o frente-a-frente, acaba que a pessoa fica 
meio dc lado podendo ou não me olhar." 
"Eu divido uma sala com a nutricionista, é bem pequena e tem uma 
balança de bebê e outra comum além de uma maca (...) tinha um paciente 
Interrogando o ambulatório \ 111 
que nas primeiras vezes não parava de olhar a balança... indaguei mas 
ele não disse nada. depois parou com isso. 
"Na sala do médico é pior ainda, tem armário de remédio e os 
pacientes olham muito... pelo menos nas primeiras vezes... eu aten-
do muitas crianças, elas não requerem divã, então a coisa é bem variada." 
"Tenho minha sala... não fico cara a cara... boto a cadeira mais longe, 
não gosto de ficar muito perto... a pessoa fica do lado da mesa e eu mais 
afastada (...) às vezes a sala é usada para atendimento de grupo, aí eu 
sento numa cadeira meio diferente que indica o lugar do terapeuta e a 
pessoa senta onde quiser... a tendência com o tempo é eles não quererem 
ficar frente a frente ou muito perto de mim." 
"A sala é um consultório médico típico, uma mesa entre duas cadeiras 
frente-a-frente (...) tem gente que prefere ficar me olhando... outros se 
incomodam com isso mas não há muito o que fazer (...) as cadeiras são 
estreitas, a sala mal tem ventilação... no verão às vezes a gente deixa a 
porta entreaberta, na minha sala dá pra fazer isso porque fica no canto, 
não c passagem (...) os médicos cansam de atender com a porta aberta... 
pia eles essa coisa de sigilo não é como pra gente." 
"Fiquei com a pior sala porque cheguei no serviço por último. Lá 
ludo é preto e cinza... tenha dó, assim o doente piora, até eu pioro. Tem 
sala que só tem uma cadeira que é para o paciente nem sentar, é atendido 
de pé. Me apossei da sala c cobri as paredes com cartazes, arranjei um 
mapa da cidade bem colorido, coloquei plantas, arranjei uma mesinha 
branca para as crianças, levei material de desenho, uma cesta de papel e 
ficou outra coisa. Transformei um lugar de morte em um lugar de vida. 
Se não. não consigo trabalhar." 
Sem minimizar o fato do desconforto e, muitas vezes, da inexistência 
de um lugar definido para o psicoterapeuta, há nesses exemplos um 
ponto comum: o setting é eminentemente instalado para a consulta mé-
dica, mesmo havendo salas para todos e não sendo só o médico que 
atenda. O frente-a-frente caracteriza a conversa, seguida ou não do exa-
me, e o mobiliário varia da maca à cadeira ginecológica e aos aparelhos 
específicos. 
É. portanto, a conversa que perpassa todos os atendimentos ambula-
toriais — um tipo de fala dialógica que tende a tomar a forma de 
112 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
pergunta e resposta objetivas. É importante que a conversa seja mantida 
c valorizada como um componente básico da clínica médica em geral. 
Não só com finalidades diagnosticas mas também, e principalmente, 
como recurso terapêutico. No caso da psicanálise, é justamente essa 
conversa que deve sc deslocar para dar lugar a uma fala mais 'monoló-
gica'cuja contrapartida é a escuta. 
Vários entrevistados comentam que é muito difícil para ambos, pa-
ciente e terapeuta, suportar o silêncio, o não ter o que dizer, as lacunas na 
fala, inevitáveis no processo, mantendo o frente-a-frente. Outros, talvez 
mais estratégicos, observam que no início é importante sustentar a con-
versa e paulatinamente substituí-la por uma postura mais silenciosa de 
ouvinte para poder desaparecer como interlocutor direto. São formas de 
manejo da demanda para construir um modo de trabalho psicanalítico. 
Quanto aos pacientes, a tendência, na maioria das vezes, é desviar o 
olhar quando as revelações mais íntimas ou secretas adquirem o tom de 
confissão. Em alguns casos, olhar diretamente o terapeuta se traduz por 
um pedido dc aprovação ou resposta ao que é falado ou perguntado. Olhar 
para o chão pode, num primeiro momento, ser manifestação de um estado 
dc subserviência ou submissão à autoridade do "doutor", mas revela-se 
adiante como vergonha, encabulamcnto, ficar "sem graça" diante do que 
sc descortina na própria fala. Se essa vergonha atesta um sentimento de 
inferioridade social diante da diferença de classe, ou de expectativa de 
reprovação moral do que é dito, isso não invalida uma outra dimensão, 
presente no ato de tornar público algo inerente à fantasia. 
No jogo de revelar o que deve-se esconder é melhor não olhar para 
não ser olhado, exatamente porque algo se mostra, se apresenta ao olhar 
— julgamento ou testemunho — de um outro. Isso não é privilégio ou 
defeito dos "humildes de condição". Nesse ponto, o divã entra como um 
atenuante dos excessos produzidos na transferência visando apagar ao 
máximo a pessoa do analista, em sua inevitável posição de ideal do 'eu', 
para torná-lo um operador da fala. Mas sem esse instrumento também é 
possível que a figura do analista se apague: "Lá pelas tantas, o analisando 
fala como sc eu não estivesse ali e só percebe minha presença por aquilo 
que surge como interpretação." (Machado, 1995b) 
Outros exemplos mencionados foram: olhar para o lado, para cima, 
em direção ao próprio corpo, ocupar as mãos e t c , casos de alusões ao 
olhar inibidor do analista como um pedido velado para desfazê-lo, che-
gando ao ponto de virar a cadeira. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Interrogando o ambulatório | 113 
Uma entrevistada, em tom de indignação, protestou: 
"Sc fazemos um trabalho psicanalítico, e eu acredito que sim, por que 
não se assume isso de uma vez e se reconhece a necessidade do divã, já 
que também se tem instrumentos específicos para diferentes práticas 
clínicas? O divã seria uma marca desse trabalho, onde o analista sai do 
campo de visão do analisando para permitir um outro endereçamento. 
Nunca ouvi falar que alguma instituição tenha feito isso." 
Obtive alguns exemplos que contrariam esse protesto. Uma entrevis-
tada conta como em seu serviço, um hospital universitário, conseguiu, 
após um bom e paciente empenho, colocar um divã (um sofá com almo-
fadas) em sua sala onde atende há cerca de dez anos. Mais recentemente, 
no mesmo serviço, foi colocado um pequeno sofá em outra sala. Uma 
outra entrevistada, de outro serviço, tem um sofá e poltronas em sua sala. 
Ambas afirmam qtie vários pacientes chegam a se deitar, mas não é o 
predominante. Outros dizem que se "forçarem a barra" podem conseguir 
um divã ou algo parecido, mas não explicam exatamente porque ainda 
não o fizeram. 
Suponho que isso se deva, grosso modo, à não assunção da identidade 
de psicanalista por duas razões: por um constrangimento em definir-se 
como tal perante outros especialistas e por não se querer este tipo de 
definição como reprodutora do padrão do consultório no serviço público. 
A meu ver, o risco maior em definir o locus da psicanálise pelo divã 
é de fixá-la e até mesmo, reduzi-la ao cenário. Algo como: "vejam, é aqui 
e só aqui que se faz psicanálise"; conseqüentemente, o resto seria no 
máximo de inspiração psicanalítica. 
Voltamos aos standards dos quais tanto queremos nos livrar. Logo 
imagino um funcionário indicando a sala do(a) doutor(a) como a sala da 
psicanálise que só pode ser usada por psicanalista e para onde só devem 
ser encaminhados os pacientes verdadeiramente psicanalíticos. Entretan-
to, esta é só uma suposição em vista da grande tendência à burocratiza-
ção em todas as modalidades da clínica no serviço público. 
Além disso, se interditar o olhar visa diluir os excessos do imaginário 
do sujeito sobre a figura do analista, não estaríamos apelando ao imagi-
nário social, através do divã como figura da psicanálise, para compor e 
cristalizar seu cenário? Não estaríamos tomando o cenário pela cena (a 
outra cena)'? Temos de experimentar seja que estratégia for com essas 
possibilidades cm mente. 
Tomemos mais alguns exemplos: 
CAPS_10
Destaque
114 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Um rapaz negro, forte, com aparência viril, sempre muito polido e 
respeitoso ao se dirigir à bela moça que o atende, após tê-la escolhido 
para contai- seu problema, reitera a cada entrevista: "Como vou falar 
disso para a senhora sc a senhora está sempre me olhando?" Logo no 
começo conta que tem um problema, um defeito, umas sensações que 
um homem não pode ter. Já contou para a família, pede ajuda e recorre 
a diferentes dispositivos como, rezadeira, umbanda, e, ao relatar sua ida 
a um centro espírita conta o que lhe disseram: "meu problema é que eu 
tenho uma mulher dc frente." Ao enunciar esta frase para uma 'doutora', 
ela a destaca, encerrando a sessão. 
Após várias entrevistas insistindo que não tem coragem de falar com 
cia olhando para ele. cia, então, decide virar sua própria cadeira de lado 
c pede para que ele continue falando. O efeito imediato não é a confissão 
esperada mas uma maneira diferente de referir-se a si próprio, tanto na 
entonação quanto no vocabulário, tomando uma direção de monólogo, 
um pensar alto. O dito referido ao 'diagnóstico' do centro espírita é 
recontextualizado no problema imediato de ter uma mulher de frente 
para ele. Ele. sutilmente, havia recusado ser atendido por um homem, e 
marcou o atendimento para o dia em que poderia ser atendido por ela. 
Neste exemplo, a figura do analista não se apaga, não sai da vista, 
mas o olhar como movimento pulsional se desfaz, sai de cena. O sujeito 
não c mais olhado. O atendimento é recente e não temos como prever as 
consequências deste ato, nem tampouco tomá-lo como modelo. Pode ser 
mais uma solução contingente movida pela premência de um pedido. 
Pode ser ainda uma resposta sintomática do analista que se vê aprisiona-
do nesse jogo dc olhares. Resta-nos acompanhar seus efeitos. 
Uma entrevistada relata: 
"Tem uma moça nordestina, crente, que se diz muito tímida c que não 
gosta de ser olhada. No início, ela sussurrava ao falar c eu quase que 
olhava para escutar melhor (...) ela olhava muito para o chão. Depois ela 
foi falando c se dando conta que eu estava ali mais para escutar. Conta 
que seu problema c não conseguir ficar muito tempo numa relação 
amorosa. Agora, depois de um tempo, está passando por uma situação 
dramática, pois está sendo excluída do convívio com a Igreja porque 
passou a viver cm concubinato com um homem casado, cuja mulher 
havia saído dc casa mas retornou. Ela está arrasada de não poder manter 
suas atividades normais, mas disse que não quer abrir mão, vai lutar por 
esse amor (...) já consegue olhar mais pra mim quando fala (...) em outros 
tempos acho que ela teria saído fora." 
CAPS_10
Destaque
Interrogando o ambulatório | 115 
Esle caso pode bem mostrar um caminho inverso: do olhar implacá-
vel do superego que tudo vê é preciso se esconder; mas para encarar o 
desafio de ficar com seu amor ela não tem abrigo possível, é olhada por 
todos como a mulher "cm pecado". Só lhe resta o olhar do reconheci-
mento de sua escolha, que ela parece encontrar em seu apelo à 'psicólo-
ga', para não "sair fora". 
"Eu não agüento mais vir aqui te ver... eu penso em você o tempo 
todo... pensoque te vejo na rua... pra me livrar dessa paixão, tenho que 
ir embora." 
Com estas palavras, uma mulher bonita, de seus quarenta e poucos 
anos, encerra seu tratamento com um jovem analista. Havia sido enca-
minhada pela ginecologia com queixas de dores antes e depois da mens-
truação. Segundo ele: 
"Ela já chegou como paciente de análise, se questionava muito, trazia 
sonhos e foi chegando ao ponto dela se perguntar sobre a relação com o 
marido, com quem dizia não ter prazer. No começo ela olhava para baixo 
e. depois, começou a me encarar. Nesse período, a transferência amorosa 
se intensifica resultando num apaixonamento sem solução. Um dia ela 
me deixoti uma carta no ambulatório explicando que não podia mais vir, 
que tinha a impressão de me ver pela rua (...) uma carta muito poética 
(...) ela escrevia poemas, mas não só para mim (...) só que chegou a um 
ponto insustentável." 
O que leria sido desse amor, antes mesmo de suas manifestações mais 
eróticas, se fosse levado ao divã como um recurso à interdição do objeto 
pelo olhar? Sabemos que não foi por falta de divã que Freud se viu 
enredado na sedução de suas histéricas. Não podemos passar ao largo da 
questão quando a pregnância do olhar aparece de modo tão literal. 
Seja como for, do divã à sala de oftalmologia, ternos que manejar esse 
elemento a mais na transferência que pode ser tão pregnante quanto 
irrelevante no decorrer do processo. Estamos livres para inventar a partir 
dos acontecimentos até onde a burocracia das especialidades e dos ser-
viços nos permitirem. No ambulatório, para o divã não há regras. 
3.3 Que tempo para tratar? 
"O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. O tem-
po respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o 
tempo tem." 
CAPS_10
Destaque
116 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Com esta brincadeira infantil que abusa da tautologia, inicio a discus-
são sobre o tempo. 
No serviço público, ao contrário do apressado time is money, tudo 
acontece lentamente. É a burocracia, dizem uns; é a falta de incentivo à 
produtividade, dizem outros; é a perversão do sistema etc. Mas na clínica 
tudo parece acontecer muito rápido. E um paciente que surta; muita 
gente que chega ao mesmo tempo para ser atendida; alguém que aparece 
fora de hora sem poder esperar. Os atendimentos são feitos na pressa de 
despachar o maior número possível de pacientes. O lema é aumentar a 
produtividade. Tem gente que atende o paciente em pé, ou que marca 
todos os pacientes para o mesmo horário para não ser surpreendido por 
atrasos, ou, ainda, para acabar mais cedo. Eles que esperem. E as filas de 
espera são o maior desafio. índice da morosidade e ineficiência dos 
serviços, as filas são a prova de um tempo perdido. 
Uma vez atendidos, a duração das consultas é fixada, em geral, em 
trinta minutos, pelo menos nos serviços de psiquiatria e saúde mental. 
Mas com dez minutos já se encerra um atendimento, especialmente se é 
para fornecer receitas. Já o tempo que o paciente espera até chegar sua 
vez pode ser bem longo: uma manhã ou tarde inteiras, ou de quinze a 
quarenta e cinco dias até a próxima consulta. Até logo e passar bem. Se 
passar mal, só na emergência. 
Infelizmente, essas imagens não são caricaturas. Retratam cenas co-
tidianas nos ambulatórios. Porém, devo dizer que não são a regra de 
alguns serviços, nem da maioria dos profissionais com quem tive contato 
no decorrer da pesquisa. Em alguns lugares, podem até ser a exceção, 
corno já vimos em vários exemplos que apresentei, havendo uma preo-
cupação constante com o bom atendimento por parte dos profissionais 
de saúde mental. Isto requer tempo. Tempo para atender, escutar, enca-
minhar, tratar, discutir casos e até esperar. 
Quanto à produtividade, não percamos tempo com isso. Se o que 
conta são os atendimentos, só nos resta equacionar o número de pacien-
tes atendidos com os que estão na espera, e apostar na oferta possível. O 
recurso aos grupos, em suas diferentes modalidades, pode ser um meio 
de discriminar as demandas e facilitar a equação atendimento-evasão-
permanência. Isso é trabalho em equipe. Não é preciso ser psicanalista 
para executá-lo. E preciso privilegiar a clínica como acontecimento, 
como o que emerge e provoca trabalho. Nesse sentido, toda clínica é uma 
emergência. Esta é a pressa, ou pressão, do tempo que nos concerne. 
Interrogando o ambulatório I 117 
A questão que formulo sobre o tempo é especificamente dirigida à 
clínica psicanalítica. 
Quanto tempo se espera que dure uma análise no ambulatório? A 
única indicação de Freud é: Caminhe... Como tolerá-la? 
Qual a freqüência possível, e desejável, para garantir que o que se faz 
é psicanálise? 
Começo pela freqüência. Os standards ainda postulam de três a cinco 
vezes por semana. Menos que isso, é psicoterapia. Ou, ainda, vamos 
marcar um tempo, que seja breve, para a psicoterapia. Novamente, a 
diferença se faz pelo negativo: menos vezes + menos tempo = menos 
psicanálise. No entanto, observamos uma tendência cada vez maior a 
aceitar pacientes duas vezes por semana nos consultórios de psicanalis-
tas. Estão todos aderindo à psicoterapia? O problema é financeiro? Ou 
há uma saturação da psicanálise no cotidiano dos analisandos? 
"Venha quando puder..." disse uma psicanalista a uma paciente que 
mora longe e tem dificuldades para chegar ao ambulatório. "As vezes 
exijo: 'semana que vem, cu quero você aqui.' E, geralmente, eles vêm." 
Adiante, comenta: "Você já imaginou alguém dizendo isso no consultó-
rio'.'" 
Curiosamente, nos últimos tempos tenho ouvido a expressão "análise 
sob demanda" como proposta de alguns psicanalistas a seus analisandos 
como mais um recurso para enfrentar a resistência produzida na regula-
ridade tediosa das sessões fixas. As justificativas recaem sobre os casos 
dc análises prolongadas como um meio de facilitar a dissolução da 
transferência e vislumbrar um fim para a análise. Ou, então, sobre os 
casos em que o sujeito já passou por mais de uma análise e busca algo 
diferente. Não entro no mérito da questão. Apenas provoco os defensores 
dos standards até o limite onde os paralelos se encontram. No caso, a 
resistência. 
Sc o analisando resiste à regularidade, seja por que motivo for, o 
analista tem uma escolha: ceder ou resistir. Mas não façamos disso um 
standard'. O que está cm questão é o manejo da transferência. E o analista 
tem que se haver com isso como puder. 
Obtive relatos bastante heterogêneos sobre a questão da freqüência. 
Vamos aos exemplos: 
"Lá no serviço temos essa norma de só atender uma vez por semana. 
Eu. às vezes, dou um jeito porque atendo pacientes graves, mas é exce-
ção. A demanda é muito grande, por isso decidimos assim." 
CAPS_10
Destaque
1 1 8 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
"Há uma tendência no serviço público de só atender uma vez por 
semana. No começo fui contra isso, mas agora eu vejo que os próprios 
pacientes não pedem mais do que isso, principalmente quando entram no 
jogo da análise e se dão conta que não cabe a mim resolver o problema 
com soluções prontas. Eles têm que trabalhar também." 
"Nós optamos pela qualidade em vez da quantidade. Eu cheguei a 
atender várias pessoas até três vezes por semana. E eles não faltavam 
mais do que no consultório. É bem verdade que a maioria morava perto, 
mas nem todos." 
"Minha clientela é de pacientes graves. Por isso eu não encharco a 
minha agenda e sempre encaixo alguém que não estava marcado. Eles já 
sabem dessa minha disponibilidade e se sentem bem com isso." 
"Houve uma época em que eu atendia tanta gente que resolvi não 
marcar mais as consultas. Eles sabiam dos meus horários e o resto ficava 
a critério deles. Em alguns casos, eu marcava hora, ou porque a pessoa 
queria uma garantia de ser atendida, ou porque morava longe, ou tinha 
problema com horário. Então eu atendia quem chegava primeiro ou 
quem tinha mais urgência, seja de horário ou de ser atendido." 
"Atendíamos em grupos abertos. Os pacientessabiam do horário fixo 
dos grupos e faziam sua própria freqüência. Tinha gente que vinha toda 
semana, de 15 cm 15 dias e, até, mensalmente. Trabalhávamos com 
quem estava lá." 
Os exemplos apresentam urna variedade de possibilidades que depen-
dem da organização dos serviços, das propostas de atendimento das 
equipes, ou de cada profissional, e do modo como trabalham as deman-
das. Com exceção do último exemplo, os demais referem-se a atendi-
mentos individuais com profissionais que se propunham a fazer um 
trabalho psicanalítico. Mas isso não diz muita coisa. Apenas indica que 
a questão da freqüência só se torna um problema se a burocracia dos 
serviços for muito inflexível. 
Vários entrevistados relacionam o problema da freqüência com o fato 
dc não poderem cobrar. Alegam que os pacientes se comprometem me-
nos, que podem faltar sem que isso signifique um custo para eles, podem 
mesmo estar economizando tempo e dinheiro da passagem. Além do 
mais. sabem que a instituição permanece funcionando em sua ausência 
sem prejuízo para os profissionais. Podem dispensar sem serem dispen-
sados, podendo retornar a qualquer tempo. Assim, é mais pelas faltas, 
pela inconstância dos pacientes, que se localizam os impasses. 
Interrogando o ambulatorio | 119 
Uma psicanalista comenta intrigada: "Tem uns que não têm regulari-
dade porque não investem mesmo. Tem outros que não voltam. Mas tem 
outros que somem e reaparecem sem o menor pejo. Em geral, somem no 
período dc fim dc ano e no verão. Como o lugar é pequeno, às vezes 
encontro com alguém na rua que me diz: 'ah, doutora tá tão quente... 
andar até lá nesse sol...' Mas acabam voltando. Eles voltam quando 
aparece um outro problema ou um novo sintoma físico. As vezes reto-
mam o assunto anterior, mas geralmente pedindo uma resposta, muito 
semelhante ao modo como procuram os médicos. Até aí, tudo bem, eu 
entendo que a cultura médica é que predomina. Acontece que, em alguns 
casos, eles já sabem que comigo é diferente, eu não dou respostas, faço 
perguntas, ponho pra trabalhar... parece que isso fica marcado dc algum 
modo, mas não há continuidade. Às vezes, depois de uma ou duas 
sessões, param de vir porque melhoraram, não sei de que nem porque, 
depois voltam. E isso que me intriga." 
Este relato condensa uma série de questões, sem dúvida, intrigantes. 
Sc eles percebem alguma diferença em relação à abordagem do médico, 
por que voltam? Certamente é porque não é com o médico que esperam 
resolver o problema. Então, que saber demandam do psicólogo para seus 
problemas c sintomas físicos? Aqui, especulo que uma certa cultura 
psicológica já sc instalou, mas qual o seu estatuto? Seria o psicólogo (o 
psicanalista não c sequer nomeado) um híbrido de médico, confessor, 
conselheiro c juiz? Provavelmente sim. E a prevalência pode variar de 
acordo com o que sc pede ou se quer saber. A figura do psicólogo parece 
ser permeável a todas essas atribuições. No consultório não encontramos 
a mesma variação imaginária dc forma mais sutil e dissimulada? O que 
os faz "não dar continuidade"? Ou, o que é mais intrigante, o que os faz 
dai' continuidade a um modo de se apresentar e demandar resposta quan-
do, dc algum modo, já perceberam que ali "é diferente"? Em suma, o que 
os faz voltar? Esta é a freqüência que interessa. Cabe ao analista se valer 
dela ao máximo para fazer valer sua diferença e ver quem volta. 
Uma outra psicanalista argumenta: 
"Nós recebemos muita gente a toda hora. São encaminhamentos 
diversos, mas tem muita demanda espontânea. As vezes me pegam no 
corredor, minha sala é do lado da ginecologia e sempre vem uma mulher 
dizendo 'posso dar uma palavrinha com a senhora?' Ou 'preciso alguém 
para me escutar'. Tenho a impressão que, para quem tiver ouvidos para 
ouvir, não vai faltai' trabalho. Acho que não devemos facilitar demais, é 
120 I Vastas confusões c atendimentos imperfeitos 
importante que a pessoa encontre obstáculos, para não cair num muro de 
lamentações que não ata nem desata. Tem que pegar mais pelo desejo. 
"Antes cu tinha mais evasão do que agora, acho que é porque fiquei 
mais exigente, eu escolho mais os casos, e acho que eles também me 
escolhem. Quando começam a faltar muito, eu cobro. Já que não pode-
mos cobrar em dinheiro, vamos cobrar a presença. Não fico acusando, 
não adianta trabalhar pela via da resistência. Mas se deixar correr solto, 
a coisa não anda. Antes, eu achava terrível aquele esquema de desligar o 
paciente se faltar três vezes seguidas sem justificativa. Hoje, eu entendo 
isso de outra maneira. Fica como um limite, um jeito de marcar algu-
ma coisa. Não é castigo, até porque, quando eles querem, eles voltam e 
são atendidos, mas já é diferente, eu não estou lá esperando indefinida-
mente." 
A questão de "por que voltam?" se soma à de "como voltam?" Aí 
podemos ter indícios de como vai o trabalho de elaboração, e de até onde 
o sujeito pôde caminhar. Curiosamente, uma norma burocrática pode 
funcionar como um recurso importante no manejo da transferência. Uma 
punição pode ser ressignificada como um modo de marcar a diferença. 
Obtive depoimentos que vão na direção contrária. Vários entrevista-
dos relatam casos de pacientes assíduos por um longo período de tempo, 
de pelo menos dois ou três anos, sem discriminação de patologia, sexo 
oti faixa etária. Podem ser psicóticos graves, donas-de-casa, adolescen-
tes, trabalhadores ou aposentados. 
Uma psicanalista se espanta com a assiduidade dos pacientes. 
"Fico me perguntando o que faz aquelas pessoas irem lá toda semana, 
muitas vezes sem faltar, para me falar de seus problemas, de suas vidas, 
anos a fio." 
Neste ponto, desloco a discussão sobre a freqüência para a duração. 
Quanto tempo para uma análise? A meu ver, este é o maior desafio. E, é 
bom que se diga. não é privilégio ou defeito do consultório ou do ambu-
latório. E uma questão para a psicanálise: interminável ou intermitente? 
Qual o tempo da elaboração? E, ainda, qual o tempo para a dissolução 
da transferência como vislumbre de um fim para a análise? Estas são 
qtiestões para a "bruxa metapsicologia" que evoco no capítulo final deste 
trabalho. Por hora, destaco duas situações clínicas que evidenciam o 
tempo com tuna função singular no trabalho analítico. 
A primeira é sobre o início de um atendimento onde o tempo entra 
como desencadeador da fantasia no que diz respeito à duração das ses-
sões. O relato é de um psicanalista: 
CAPS_10
Destaque
Interrogando o ambulatório | 121 
"Eu atendo uma moça, que no início ficava meio incomodada quando 
a sessão chegava aos dez minutos e não terminava. Eu tinha a impressão 
que cia estava acostumada ao padrão dos médicos, e aí insisti em esticar 
a sessão. Foi todo um trabalho que tive que fazer para marcar a diferença 
do atendimento psicanalítico. Eu segurava mais tempo, perguntava desse 
incómodo e cia passou a associar a partir disso. Um dia ela começa a 
falar dc uma desvalia, e diz: 'acho que as pessoas perdem tempo comi-
go' . E daí vem a história dela, de como é tratada pela família, que não 
prestam muita atenção a ela... Vi que estava no caminho certo." 
Nesse primeiro tempo, o tempo é sintomatizado e vai dando lugar à 
fala na medida em que se interroga sobre ele. O analista, preocupado em 
oferecer psicanálise, estica o tempo sem saber onde ia chegar. O sujeito, 
por sua vez, se apresenta como aquele com quem só se pode perder 
tempo. Daí em diante, o analista já pode operar em direção à fantasia que 
está cm jogo. 
A segunda refere-se mais ao sintoma do analista. Em um serviço de 
adolescentes, a faixa etária estabelecida é de 12 a 20 anos. Uma psicana-
lista, disposta a exercer sua clínica sem fazer concessões ao tempo mar-
cado pela idade, sc vè diante de um problema curioso. Ela nos conta: 
"Quando entrei no serviço público resolvi experimentar fazer psica-
nálise sem concessões para testar mesmo como seria aquela experiência. 
Sustentei análises de longa duração sem idade determinada. Tive pacien-
tes comigopor seis, até oito anos, o que não é uma coisa comum. Tinha 
pacientes que já estavam com quase 30 anos de idade, e isso começou a 
criar um certo problema. As enfermeiras faziam um laço comigo mas 
tinham que colocar a idade no prontuário ou na ficha. Nunca fui aborda-
da diretamente porque eu explicava que a psicanálise é um tratamenio 
que não tem limite de idade, e isso era tolerado. Acontece que o prob' > 
ma sc deu no sentido propriamente analítico, porque comecei a percet r 
que esses pacientes ficavam marcados pelo significante 'adolescente'. 
Percebi que esse negócio de significante funciona, é sério. Na ficha se 
escrevia a data da consulta e no cabeçalho tinha o nome do serviço. O 
sujeito eslava preso a isso (...) aí eu comecei a pensar que é preferível 
que perca isso ao invés de manter o benefício de se tratar com o mesmo 
analista. Isso acontecia mais comigo do que com os colegas. Reconheci 
que tinha alguma coisa errada ali, e combinamos que a pessoa ficaria lá 
até os 20 anos, isso seria colocado desde o início." 
Neste caso. o tempo cronológico marca uma identidade, fixa-a como 
uma alienação justamente ao significante do qual o sujeito tem que se 
I 22 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
desvencilhar. O tempo de elaboração está atrelado a um paradoxo. Mar-
car um fim para esse tempo pelo limite de idade pode ser a única maneira 
de precipitar uma separação, um descolamento do 'ser adolescente' com 
conseqüências particulares para cada um. E preciso apressar para con-
cluir. 
Voltando à nossa brincadeira tautológica sobre o tempo, lanço-me ao 
desafio de responder à questão: na psicanálise, quanto tempo o tempo 
tem? 
/// 
Por uma psicanálise possível 
1. Evocando a "bruxa metapsicologia" 
A questão de uma psicanálise possível no ambulatório público deve dar 
lugar à questão fundamental da psicanálise: ofício impossível? 
Considerando que nossa função como analistas é a de criar condições 
de possibilidade para o exercício da clínica psicanalítica, apresento o que 
considero as condições mínimas para que se identifique como psicanálise 
determinado modo de trabalho clínico em sua diferença no campo das 
psicoterapias em geral. 
Evoco a "bruxa metapsicologia" em meu auxílio, tal como fez Freud 
em seu desamparo diante da força indomável das pulsões que decidem 
sobre o fim de uma análise. A metapsicologia é como a fantasia. Freud 
escreve isso com a estrutura de um lapso: "Sem a especulação c a 
teorização — cu quase disse 'fantasia' — metapsicológica não avança-
remos nem mais um passo" (1937a, p. 225). Mas sem a fantasia do 
fundador também não vamos muito longe em psicanálise. E ele que nos 
lega seu trabalho, sua invenção. Cabe a cada um lê-lo e passar adiante 
esse legado. Privilegio a leitura de Lacan naquilo que considero pertinen-
te para minha proposta. 
Como primeira condição, temos o que Freud denominou de realidade 
psíquica. Proponho um exame desse conceito como ponto de partida. 
Inicialmente, devo dizer que não se trata das velhas oposições fantasia 
versus realidade — ainda que o termo fantasia seja sinônimo de realidade 
psíquica —, ou psíquico interno versus realidade externa, como se fos-
sem dois mundos, ou, ainda, subjetivo versus objetivo, como se o primei-
CAPS_10
Destaque
124 I Vastas con fusões e atendimentos imperfeitos 
ro necessariamente induzisse ao erro e à má compreensão dos fatos. 
Trata-se da única realidade que diz respeito e interessa ao sujeito, a partir 
da qual ele se vê, pensa, fala, sofre, trabalha; enfim, se põe no mundo e, 
até mesmo, se desconhece. Nessa realidade se insere uma dimensão de 
alteridade que indica que a linguagem, mais do que uma aquisição, vem 
do Outro.* 
A realidade psíquica não se reduz ao ego, embora o inclua, do mesmo 
modo que inclui o sintoma. Sua fonte primária é o inconsciente, e não há 
que sc conceber nada de profundo ou submerso nessa realidade. Tudo se 
passa na superfície, na emergência da fala a que temos acesso e à qual, 
de algum modo, respondemos. E na própria palavra do sujeito que co-
meça o trabalho clínico. Ao tratarmos do sofrimento psíquico só pode-
mos fazê-lo pelo que aparece dessa realidade em palavras e ações pre-
nhes de sentido. 
Convém lembrar que isso não é prerrogativa exclusiva da psicanálise. 
Como se prescreve afinal, de medicação a novas condutas, senão a partir 
dc uma queixa ou uma fala delirante? A especificidade do trabalho 
psicanalítico está cm ater-se radicalmente às produções de fala dos su-
jeitos como indicações dessa realidade. O pacto analítico é um pacto de 
fala. A psicanálise é uma clínica da fala. Fazer falar é uma condição da 
escuta. E é pela escuta que a fala se constitui, remetendo à regra funda-
mental: diga o que lhe vier à cabeça... 
Falar pode ser terapêutico em si, mas não é aquilo a que necessaria-
mente sc visa. Não é só desabafo, ainda que este funcione como uma 
ab-reação. Falar pode produzir sofrimento, e em geral o faz. Pois na fala 
algo se revela, aparece e desaparece, não é bem o que deveria ser dito. 
Mas o que deveria ser dito? Começa uma busca do sujeito sobre o que 
deve dizer para aquele que o escuta; pensar e falar não se coadunam. É 
a própria realidade psíquica trabalhando. 
Ao produzir esse primeiro efeito de fala, o analista apenas iniciou seu 
trabalho. E só pode fazê-lo quando o sujeito em questão suporta mini-
mamente pôr em suspenso as urgências de seu sofrimento em seu pedido 
* Ver O Seminário livro II — O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise 
onde Lacan sistematiza o Outro como o simbólico por excelência convocado 
pela letra — La lettre volée — em sua função de significante do qual o sujeito 
recebe sua determinação maior, e que define o simbólico para além do eu-ima-
ginário. Ver também "Le séminaire sur 'La lettre volée'" que, apesar de alterar 
a cronologia, abre os Écrits dando primazia ao simbólico na década de 1950, 
para marcar a diferença radical de Lacan com os pós-freudianos. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível | 125 
de cura ou de uma explicação sobre a causa de seus males. Fazê-lo 
suportar isso é tarefa preliminar. 
O dispositivo psicanalítico que opera no binômio fala-escuta está 
bem inscrito no conceito de transferência. Aqui entrelaçamos esta pri-
meira condição a uma segunda: a clínica psicanalítica consiste em pro-
duzir um modo de fala através da transferência. Fala-se para um outro 
que, num primeiro momento, é aquele que atende. Há aí um deslocamen-
to da fala como desabafo, queixa, pedido de alívio, etc. para um plano 
que podemos chamar de reflexivo ou indagativo. É preciso, em algum 
momento, querer saber sobre o que se diz. E o que se diz vem carregado 
de intenções, afetos, contradições que podemos definir como variações 
da transferência. Isso pode acontecer como que acidentalmente para uns, 
ou depender mais diretamente da ação do analista. Não há como prever 
nem como garantir que os que procuram atendimento se envolvam nessa 
empreitada. Ao analista cabe manter a oferta a seu modo, sem coação, é 
óbvio, mas com clareza de seu propósito e, sabendo esperar, dar tempo 
ao sujeito. 
Para o sujeito, de início, aquele que o atende deve deter o poder-saber 
da cura. Mas se esta não deve ser a promessa do analista, como fazer para 
não cair no descrédito? E preciso ir além da acolhida para manter a 
aposta em firmar o pacto. Alguma coisa que o analista diz ou faz: um 
comentário, uma indagação e mesmo um convite explícito a pensar sobre 
o que é dito deve atingir o sujeito. Algo em que se reconheça ou até se 
estranhe mas que, de algum modo, lhe seja familiar, diga algo a seu 
respeito, que aponte para um deciframento, transformando sua queixa 
cm questão. Aí está uma chance, e apenas isto, da transferência deixar de 
ser uma expectativa imediata de cura para se transformar na transferência 
analítica. Cabe ao sujeito entrar no jogo, apostar em saber um pouco 
mais daquilo que o aflige para tomar nas mãos umaparcela de seu 
destino que, é preciso que se diga, depende de um campo variável de 
possibilidades não previstas. 
A transferência é o movimento do sujeito que apresenta ao analista 
algo de sua realidade através da fala. A interpretação é um recurso do 
analista. O que, como e quando interpretar são questões correntes entre 
analistas. Porém, o que se impõe aqui como uma terceira condição é uma 
determinada concepção do tempo que é a mola-mestra da interpretação: 
Nachträglichkeit — a posteriori ou posterioridade, que também pode-
mos chamar de 'só depois' ..Uma palavra ou ação do analista só tem valor 
de interpretação, como efeito, num tempo posterior. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
1 2 6 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Esta concepção de tempo está presente na própria causação psíquica 
indicando que o tempo para a psicanálise não é linear ou evolutivo. Não 
se trata exatamente da ação do passado sobre o presente, ou de um tempo 
progressivo visando à regressão. Não é túnel do tempo, nem volta à 
infância. Nos termos de Freud, é uma reorganização, uma reinserção dos 
traços de memória cujo tempo não é previsível nem controlável. Assim 
funcionam a realidade psíquica e o trabalho psicanalítico sobre ela. Ao 
invés de regressão, temos a retroação de um tempo atual sobre o anterior, 
seja no trauma, na constituição da fantasia, no sintoma ou na cena 
analítica. E sobre os efeitos de nossos atos e falas, e também dos atos e 
falas dos sujeitos, que podemos trabalhar. Não devemos tentar prever ou 
prevenir os acontecimentos. Nesse sentido, psicanálise e prevenção não 
combinam. 
O trabalho de elaboração também se dá no 'só depois' das sessões, 
ao longo do percurso analítico que, por sucessivos deslocamentos, faz 
variar a repetição e a posição do sujeito em sua realidade psíquica. 
Portanto, um exame do tempo que concerne à psicanálise é central para 
nosso propósito. 
As condições mínimas para caracterizar a especificidade da clínica 
psicanalítica sc resumem assim: trata-se de uma clínica que diz respeito 
à realidade psíquica c, para isso, provoca um modo peculiar de fala que 
se dá a partir da transferência, numa relação também peculiar com o 
tempo, visando remanejar essa realidade por sucessivos deslocamentos. 
Isso talvez não diga muita coisa. Talvez soe tautológico. 
Para melhor explicitar essa especificidade, desenvolvo cada termo 
dessas condições, sendo que um remete ao outro. Por exemplo, a reali-
dade psíquica remete à repetição, que remete à resistência, que remete à 
transferência, e assim por diante, tecendo a rede conceituai da teoria 
psicanalítica. Portanto, esses termos serão recorrentes no texto que se 
segue. E, last but not least, há a última condição, postulada por Lacan, 
que realiza as demais como operadores da clínica, a saber: o desejo do 
analista. 
1.1 Sobre a realidade psíquica 
Toda a controvérsia em torno desta expressão consiste em atribuir-lhe 
um estatuto particular que opõe seus dois termos um ao outro. Trata-se 
de realidade, sem dúvida, mas sua qualidade é psíquica. Logo, não é tão 
real assim. O psíquico, como o psicológico na linguagem corrente, tem 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível I 127 
um quê de ilusão, imaginação, falsa impressão, fantasia, aquém da rea-
lidade propriamente dita. E Freud, até certo ponto, sustentava essa opo-
sição. Ao longo de sua obra, recorre a várias oposições que tanto funda-
mentam como derivam da noção de realidade psíquica: inconsciente 
versus consciência; processo psíquico primário versus secundário; prin-
cípio do prazer versus princípio de realidade, para citar as principais. 
No entanto, a cada momento da construção destes conceitos, Freud é 
levado a tratá-los não como instâncias ou realidades opostas e indepen-
dentes cm sua própria constituição, mas como realidades que derivam 
uma da outra, se interpenetram e, mesmo, se atravessam. 
Logo em 1900, no famoso capítulo VII da Interpretação dos sonhos, 
Freud postula que "o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica" e já 
o define: "em sua natureza interior é tão desconhecido para nós quanto 
a realidade do mundo externo, e se apresenta de modo tão incompleto 
pelos dados da consciência quanto o mundo externo pelas comunicações 
dos nosso órgãos dos sentidos." (p. 613, grifado no original)* 
Sua natureza guarda uma característica nada desprezível que a apro-
xima de uma outra natureza, ou realidade, a que Freud nomeia ora como 
material ou factual, ora como externa, como no texto acima. Paradoxal-
mente, dentro ou fora, ambas são exteriores quanto à nossa capacidade 
de apreensão, no sentido mesmo da percepção, que só pode se dar 
parcialmente. 
O aparelho psíquico é postulado como um aparelho que sonha. No 
sonho, a partir do apagamento do pólo perceptivo, ocorre um trabalho 
sobre os traços de memória em que fragmentos são investidos, desloca-
dos e condensados, e só depois recuperados pela percepção. Na vigília, 
a percepção é de coisas vistas e escutadas. Em ambos os casos, a percep-
ção se dá de modo parcial, não totalizante. Mas não é só pela via da 
percepção que essas realidades se aproximam. O mesmo acontece pela 
via do pensamento. 
Em seu minucioso estudo sobre o que ardilosamente chamou de 
Psicopatologia da vida cotidiana (1901), Freud discute diferentes tipos 
dc esquecimento, de troca de nomes ou palavras, de erros de tradução de 
palavras estrangeiras, erros de leitura ou escrita, memórias infantis etc. 
Todas as citações de Freud são extraídas da Standard Edition, a edição inglesa 
de sua obra, traduzida por James Strachey. Optei por traduzi-las para o português 
sem referência à edição brasileira. Portanto, a tradução é de total responsabili-
dade minha. 
CAPS_10
Destaque
1 2 8 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
como exemplos privilegiados do atravessamento de um modo de pensar 
(processo primário) sobre outro (processo secundário). A "verdadeira 
realidade psíquica", primária, inconsciente, emerge numa outra realida-
de também psíquica, porém secundária — cujo modo de pensamento 
obedece a determinada lógica espaço-temporal dotada de racionalidade, 
supostamente mais próxima da realidade factual — e aponta um novo 
sentido para o que foi falado ou escrito. Agora, é sob o prisma do 
pensamento que as realidades se aproximam. O pensamento 'realista' é 
atravessado pelo pensamento 'desejante'. 
Quem aponta este fato? Um representante da realidade externa, fac-
tual? Um detentor da verdade sobre a verdadeira realidade psíquica ao 
mesmo tempo interna e externa, logo, familiar e estranha? Sem dúvida, 
é alguém que interpreta. E, nesse momento, o intérprete é Freud, o 
inventor da psicanálise. 
Supondo o desamparo e a confusão de seus seguidores, Freud dá em 
alguns de seus trabalhos indicações sobre como lidar com a "verdadeira 
realidade" revelada pela psicanálise em seu valor de verdade, apesar do 
aspecto de ilusão que o leigo lhe confere. 
Em "Luto c melancolia" (1917), ao comentar a enxurrada de auto-
acusações que faz o melancólico, recomenda: 
"Seria igualmente infrutífero de um ponto de vista científico e terapêu-
tico contradizer um paciente que traz essas acusações contra o ego. Ele 
certamente deve estar correto de algum modo ao descrever algo que é o 
que lhe parece ser. De fato, devemos confirmar algumas de suas afirma-
ções sem reservas (...) Ele está dando uma descrição correta de sua situa-
ção psicológica. (...) apenas nos perguntamos por que um homem tem que 
adoecer antes de ter acesso a uma verdade desse tipo." (p. 246-7). 
Ainda em 1917, Freud profere suas Conferências introdutórias sobre 
psicanálise na Universidade de Viena para uma audiência de médicos e 
leigos. A repercussão de sua publicação é digna de nota.* 
Recolho uma passagem da Conferência XXIII — "Os caminhos para 
a formação dos sintomas" — em que reafirma sua posição. 
James Strachey comenta em nota na apresentação das Conferências quesua 
publicação teve a maior circulação de todos os trabalhos de Freud com exceção 
de Psicopatologia da vida cotidiana. Enquanto Freud era vivo, foram feitas 
traduções para as mais variadas línguas desde as mais freqüentes como francês, 
italiano, espanhol, c português, até o japonês, árabe, chinês, passando pelo 
holandês, russo, norueguês, sueco, tcheco, polonês, húngaro, servo-croata e 
hebraico. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível. | 129 
"Somos tentados a nos sentir ofendidos pelo fato de o paciente ter 
tomado nosso tempo com histórias inventadas. A realidade nos parece 
ser um mundo separado da invenção, e lhe atribuímos um valor bem 
diferente. Além do mais, o paciente, também, vê as coisas sob este 
prisma em seu pensamento normal. Quando ele traz o material que 
conduz, por trás de seus sintomas, às situações desejantes moldadas 
sobre suas experiências infantis, para começar, ficamos em dúvida se 
estamos lidando com realidade ou fantasia. Depois, somos capazes, a 
partir de certas indicações, de chegar a uma decisão e estamos diante da 
tarefa de fazer o paciente saber disso. Isto, entretanto, invariavelmente 
gera dificuldades. Se começamos lhe dizendo diretamente que ele agora 
está envolvido em revelar as fantasias com as quais escondeu a história 
de sua infância (assim como toda nação esconde sua pré-história esque-
cida construindo lendas), observamos que seu interesse em continuar o 
assunto diminui de repente de modo indesejável. Ele também quer expe-
rimentar realidades e despreza ludo o que é meramente 'imaginário'. Se, 
no entanto, o deixamos até que seu trabalho termine, acreditando que 
estamos ocupados em investigar eventos reais de sua infância, corremos 
o risco de ele mais tarde nos acusar de estarmos errados e rir de nós por 
nossa aparente credulidade. Muito tempo se passará até que possa aceitar 
nossa proposta de que devemos igualar fantasia e realidade, e não se 
importe se as experiências da infância sob exame são uma ou outra. Esta 
é claramente a única atitude a adotar em relação a essas produções 
psíquicas. Elas também possuem uma realidade desse tipo. Permanece 
um fato que o paciente criou essas fantasias para si, e esse fato tem pouco 
menos importância para sua neurose do que se ele tivesse realmente 
experimentado o que as fantasias contêm. As fantasias possuem realida-
de psíquica em contraste com a realidade material, e gradualmente 
aprendemos a entender que no mundo da neurose é a realidade psíquica 
que é decisiva!' (p. 368, grifado no original). 
Esta longa passagem, ao resumir a confusão de realidades em jogo, 
tanto para o analista quanto para o analisando, propõe com clareza 
"igualar fantasia e realidade" como o único meio de levar adiante uma 
análise. Para nosso propósito isso bastaria. Se, porventura, o leitor se 
detém sobre o trecho final, permanece a questão: as fantasias se encon-
tram no âmbito da realidade psíquica "em contraste com a realidade 
material" e fazem parte do "mundo da neurose". Logo, se queremos 
acabar com a neurose, temos o dever de levar o analisando ao encontro 
da realidade material como garantia de que nosso dever foi cumprido. 
Voltamos à oposição problemática. 
CAPS_10
Destaque
i 30 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Essa leitura, sem dúvida, foi feita por muitos sucessores de Freud 
cuja ambição residia em definir esta outra realidade fora da neurose e, 
mais radicalmente, da psicose. Da fantasmagoria kleiniana ao realismo 
da psicologia do ego, o analista, por ser analisado, deveria saber bem a 
diferença entre as realidades em jogo. 
Nada disso é desprezível como possibilidade de nos guiar para, senão 
uma solução, pelo menos uma indicação de por onde devemos ir para 
trabalhar com a realidade que concerne à psicanálise. 
Vejamos: se entendemos, com Freud, que o inconsciente é a verda-
deira realidade psíquica, inatingível em sua totalidade do mesmo modo 
que a dita realidade externa, deduzimos que uma análise não abarcará 
jamais o inconsciente. Nem lançará o sujeito à realidade material de 
modo irreversível. O inconsciente não é patológico. O modo de lidar com 
sua realidade é que pode ser patogênico. Tudo o que se pode fazer é 
remanejar sua incidência a ponto de transformar seus efeitos que causam 
sofrimento em algo manejável pelo próprio sujeito. 
A solução, dita normal ou saudável, que Freud apresenta em seu texto 
de 1925 "Perda da realidade na neurose e na psicose", em sua preocupa-
ção sobre o que fazer dessa realidade, combina certas características de 
ambas as patologias: recusar a realidade parcialmente, como na neurose, 
e alterá-la, como na psicose, mas na ação aloplástica por oposição à 
autoplástica (p. 185). O neurótico perde a realidade no esquecimento, 
não quer saber; e o psicótico se perde no que não pode ser esquecido, 
sabe sem parar, mas sua reinvenção da realidade não parece ser partilhá-
vel. 
Alterar a realidade pela ação é bem o modo pelo qual se faz cultura, 
sociedade, política, relações de todo tipo. 
Para Lacan, o problema se resolve em sua formulação dos três regis-
tros — imaginário, simbólico e real. A realidade psíquica, a realidade 
propriamente dita, tem estrutura de ficção. O campo da realidade se dá 
pelo contorno simbólico (registro dos significantes — campo do Outro) 
do imaginário (campo do eu) recobrindo o real em sua dimensão de 
ex-istência, de exterioridade, no duplo sentido apontado por Freud quan-
to ao id (campo do gozo) e ao 'mundo externo' (campo dos acontecimen-
tos).* Se o analista, por ser analisado, sabe um pouco mais sobre isso, é 
Esta definição de realidade encompassando os três registros: imaginário, simbó-
lico e real, é bem ilustrada no conhecido 'esquema R' (R de realidade) apresen-
tado por Lacan em seu texto "D'une question préliminaire à tout traitement 
possible de la psychose", (1955-6, p. 553). Este esquema situa a realidade como 
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível | 131 
justamente por ter-se havido com o real podendo suportar sua ex-istên-
cia. Não há como saber tudo ou dizer tudo até o fim. A verdade é não 
toda, ela toca o real. 
Voltemos a Freud. 
Em seus estudos sobre cultura — Totem e tabu (1912) — e religião 
— Moisés e o monoteísmo (1939) —, Freud faz referência à realidade 
psíquica da fantasia movida por desejos inconscientes como fonte primá-
ria da cultura, da verdade histórica que sustenta a tradição e da religião 
monoteísta. Sua analogia entre o primitivo, a criança e o neurótico e, 
mesmo, o psicótico — que deve ser entendida fora de qualquer conota-
ção evolucionista e psicologista ainda presentes em suas formulações — 
nos fornece indicações clínicas preciosas. 
Destaco especificamente dois aspectos: a relação do pensamento com 
a ação e a relação do pensamento com a verdade. 
O pensamento deve ser tomado no sentido da "verdadeira realidade 
psíquica" que Freud atribui ao inconsciente como processo psíquico 
primário que se desdobra no processo secundário. A distinção feita por 
Freud entre representações de coisa e de palavra pode ser entendida 
como diferentes modos de arranjo de um léxico com uma sintaxe. Neste 
ponto, recorro à leitura de Lacan sobre o inconsciente freudiano que 
abandona a noção de representação por relação ao referente e postula a 
metáfora e a metonímia como as leis que regem esse arranjo, remetendo 
um significante a outro por substituição e deslocamento. A distinção 
entre primário e secundário adquire um outro estatuto. Quanto à repre-
sentação de coisa, que se dá tipicamente na psicose, o significante coisi-
ficado não remete a outro, estancando a possibilidade de significação, 
ou, então, desliza sem cessar. Em ambos os casos, perde-se a dimensão 
subjetivada da palavra. Quanto à representação de palavra, Lacan a resu-
me em sua fórmula: o significante representa o sujeito para outro signi-
ficante, na qualidade de seu representante, fazendo funcionar o discurso.-
Sobre a relação do pensamento com a ação 
Ao finalde Totem e tabu, Freud apresenta o neurótico como inibido em 
sua ação, o pensamento substituindo a ação; e o primitivo, como desini-
equivalente à fantasia no registro do imaginário circundado pelas marcações 
significantes do simbólico. Posteriormente, a partir da topologia que desenvolve 
nos anos 60, Lacan vai conceber a fantasia referida aos três registros. 
132 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
bido, a ação substituindo o pensamento. Sua conclusão lógica, para a 
qual toma uma passagem do Fausto de Goethe, é a de que "no princípio 
era a ação". No princípio da 'história da humanidade', assim como da 
'história' do neurótico em sua infância, cria-se a realidade. 
Deixemos o chamado primitivo de lado e tratemos do neurótico — e, 
mesmo, do psicótico. Afinal, do que padecem senão de reminiscências* 
compulsivamente fadadas à repetição que constituem, além de seus sin-
tomas ou fenômenos delirantes, seu próprio caráter, seu modo de vida, 
sua hesitação ou rompante, numa ação marcada por um maior ou menor 
fracasso? 
Uma psicanálise deve ser transformadora no sentido inverso a este. 
Caminhamos do pensamento à ação. Deveríamos retomar o caminho de 
nossos ancestrais e aprender com eles a lição — assim como devemos 
aprender com as crianças — de colocar a ação no lugar do pensamento? 
E por que não? Basta não sermos ingênuos a ponto de considerar essa 
via como a da regressão. Pois foi bem por esta que se caminhou para 
desqualificar e, conseqüentemente, tentar dominar outras culturas e mes-
mo infantilizar, senão ridicularizar, esses seres complexos que são as 
crianças. Entretanto, o sentido inverso que proponho não é o simétrico. 
E antes como subversão, que esta inversão de sentido deve se dar. 
Para substituir o pensamento pela ação é preciso recorrer a um outro 
modo dc trabalho. Este não se aprisiona inteiramente à repetição, ainda 
que dela derive, nem se reduz ao princípio de realidade como pensamen-
to lógico-dedutivo, padrão do adulto civilizado, realista etc. 
Recorro ao que Freud considera o trabalho próprio à psicanálise: 
Durcharbeiten ou Durcharbeitung, — em inglês, working-through; em 
francês, perlaboration. A tradução brasileira estabeleceu o termo 'elabo-
ração' que talvez não traduza propriamente seu sentido crucial. Hoje se 
adota uma tradução do francês, perlaboração. Prefiro uma tradução a 
partir do inglês, por ser a mais próxima do termo original: trabalho-atra-
vés [da análise], ou, simplesmente, trabalho analítico. 
Estamos acostumados à idéia de que só o neurótico sofre de reminiscências. No 
entanto, há uma passagem curiosa ao final de "Construções em análise" que diz: 
"Assim como nossa construção só é eficaz porque recupera um fragmento da 
experiência perdida, o delírio deve seu poder de convencer ao elemento da 
verdade histórica que insere no lugar da realidade rejeitada. Desse modo, uma 
proposição que originalmente defendi apenas sobre a histeria também se aplica-
ria aos delírios — a saber, que aqueles que estão sujeitos a eles sofrem de suas 
próprias reminiscências" (p. 268). Ver nota n° 23 adiante. 
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível | 133 
Sobre o verbo Durcharbeiten, há uma curiosa definição no dicioná-
rio*: como verbo intransitivo quer dizer 'trabalhar sem fazer intervalo'; 
como verbo transitivo, 'passar revista', 'examinar', 'estudar'. O prefixo 
durch refere-se a 'através', 'por meio de' , 'de lado a lado' ou 'de um lado 
a outro', como a travessia de um lugar ou, ainda, 'durante', como um 
período de tempo. 
A elaboração deve ser entendida nas duas acepções. Como verbo 
intransitivo, adquire a característica de um trabalho incessante, e é assim 
que Freud concebe o trabalho do inconsciente: sem parar, sem descanso 
— o sonho bem o comprova. Paradoxalmente, elaborar é análogo a 
repetir. Como verbo transitivo, adquire a característica de um exame, 
estudo ou reflexão sobre algo, seja sobre as próprias produções do ana-
lisando ou as intervenções do analista. E ainda tem a indicação do 
caminho e do tempo a ser percorrido: uma travessia no pensamento e na 
ação 'de um lado a outro' e um tempo que 'dura' para o sujeito movi-
mentar-se, trabalhar até o fim. 
Deste trabalho, entretanto, só temos indícios, tanto pelas palavras 
quanto pelas ações do sujeito. É preciso um tempo para que ele seja 
operativo. E mais, é o analista quem decide sobre a diferença entre 
repelir e elaborar, retificando ou ratificando as palavras e/ou ações do 
sujeito. Daí podemos entender a preocupação dos pós-freudianos sobre 
a realidade que concerne ao analista indicar. 
Sobre a relação do pensamento com a verdade 
Se insistimos em opor a realidade psíquica à material ou factual, temos 
duas verdades. Qual a mais verdadeira? Em Moisés e o monoteísmo, 
Freud fala da verdade histórica como diferente da verdade material, mas 
ao mesmo tempo se mostra cético quanto a atingirmos a segunda. A 
verdade histórica diz respeito ao retorno do recalcado ou rejeitado como 
a verdade em jogo que justifica a crença. O que é externo a tudo isso são 
os fatos. A verdade material fica perdida no esquecimento, transformada 
pelo desejo humano em ficção, lenda, ou delírio. 
Reproduzo um trecho em que Freud aproxima o modo de produção 
de verdade na análise do neurótico ao dos defensores do monoteísmo e 
ao do psicótico, mesclando as produções patológicas às culturais e reli-
giosas: 
Cf. Dicionário Alemão-Português de Leonardo Tochtrop e Herbert Caro, editora 
Globo. 
CAPS_10
Destaque
134 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
* Lacan faz uma observação instigante sobre a polêmica tese freudiana do mono-
teísmo como o retorno do recalcado articulado ao parricidio fundador — Totem 
e tabu — que Freud retoma em Moisés e o monoteísmo. Em suas palavras: "... a 
verdadeira fórmula do ateísmo não é 'Deus está morto' — mesmo fundando a 
origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai — a verdadeira 
fórmula do ateísmo é que 'Deus é inconsciente." — Cf. O Seminário, livro II 
— Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 60. 
** A aproximação entre neurose e psicose presente em Freud é hoje bastante polê-
mica depois da formulação estrutural de Lacan que recortou os termos Verdran-
gung, Verwerfimg e Verleugnung como os mecanismos fundamentais da neuro-
se, psicose e perversão, respectivamente. Freud, no entanto, alternava os dois 
últimos termos ao referir-se à psicose. O termo 'rejeitado' corresponde ao Ver-
werfung que Lacan traduziu por forclusion. Em vários trechos de sua obra, dos 
primeiros estudos sobre as neuropsicoses de defesa até um de seus últimos 
trabalhos, "Construções em análise", de 1937, Freud aproxima certos mecanis-
mos ou fenômenos do funcionamento psíquico de cada uma das patologias. Opto 
por manter essas aproximações para compreendê-las sob a rubrica de realidade 
psíquica preservando suas diferenças até onde trazem conseqüências significad-
"Aprendemos a partir da psicanálise de indivíduos que suas primeiras 
impressões, recebidas num tempo em que a criança mal era capaz de 
falar, produzem num momento ou outro efeitos de caráter compulsivo 
sem que sejam conscientemente lembradas. Acreditamos que temos o 
direito de fazer a mesma afirmação sobre as primeiras experiências do 
conjunto da humanidade. Um desses efeitos seria a emergência da idéia 
de um único grande deus — uma idéia que deve ser reconhecida como 
uma memória completamente justificada, embora, é verdade, tenha sido 
distorcida. Uma idéia como essa tem um caráter compulsivo: tem-se que 
acreditar. O ponto até o qual é distorcida, pode ser descrito como um 
delírio; na medida em que traz um retorno do passado, deve ser chamada 
de verdade. Delírios psiquiátricos, também, contêm um pequeno frag-
mento de verdade e a convicção do paciente se estende desta verdade até 
seu invólucro delirante" (p. 129-30 grifos no original) 
Deixo de lado a discussão da filogênese, e até onde ela determina a 
ontogênese. exatamente porque não se tratade estabelecer a gênese da 
verdade. Assim como fica à parte a polêmica oposição entre monoteísmo 
e ateísmo como correlata da oposição entre infantil e adulto.* A crença 
que me interessa refere-se ao valor que Freud atribui à verdade. Ela tem 
um caráter compulsivo e é assim que se afirma até seu extremo no 
delírio. A realidade psíquica, portanto, insiste na repetição como o que 
retorna do recalcado, ou rejeitado,** para fazer valer sua verdade. 
Por uma psicanálise possível | 135 
O que se impõe na compulsão a repetir? Pela vertente do desejo, é a 
busca do objeto perdido, busca de satisfação. Pela vertente da pulsão de 
morte, é o cessar a busca, morte à libido, gozo final. Esse é o maior 
conflito em questão. E o superego vem se instalar no cerne desse confli-
to. Instância crítica, imperativo categórico que impõe o gozo final para 
fazer cessar o desejo, torturando o ego em sua insuficiência. 
Voltemos à questão da verdade. O que Freud nos indicou na Confe-
rência XXIII, citada anteriormente, é que a verdade está no dizer do 
analisando sobre si. É aí que fantasia e realidade se encontram. 
Chegamos ao ponto de confluência em que pensamento e verdade 
desaguam na palavra. Não temos qualquer acesso aos pensamentos se-
não pela palavra. Psicanálise não é telepatia, e pensar não é anterior, nem 
uma entidade autônoma distinta da palavra. A palavra não representa o 
pensamento. Se há pensamento inconsciente é porque testemunhamos e, 
mesmo, identificamos na fala incidências de todo tipo que Freud deta-
lhadamente apresentou como lapsos em Psicopatologia da vida cotidia-
na. Aqui se explicita a regra fundamental da psicanálise para fazer traba-
lhar a realidade psíquica: diga o que lhe vier à cabeça. 
Sobre a regra fundamental 
A regra é fundamental para provocar uma certa liberdade de fala, que 
ficou consagrada como associação livre, como método de acesso às 
produções do inconsciente. Há dois reparos a fazer quanto ao uso do 
termo 'associação livre'. 
O primeiro é mais óbvio, pois na experiência clínica já enfrentamos 
o problema: como o sujeito associa livremente se é capaz de esconder, 
disfarçar, mentir, calar, sempre em nome de não revelar alguma coisa? 
E, ainda, como ser livre se a própria barreira do recalque se encarrega de 
aprisionar as palavras? Começamos nosso trabalho sob este paradoxo. 
O segundo é mais sutil e depende do que se entende por associação. 
Com freqüência, ouço de colegas ou supervisionandos a queixa de que 
vas para o manejo do tratamento. É importante ressaltar que já existe uma 
extensa produção da literatura psicanalítica sobre a especificidade da estrutura e 
da clínica da psicose, inclusive de autores brasileiros. Remeto o leitor aos traba-
lhos de dois psicanalistas brasileiros, com formação em psiquiatria, que podem 
ser úteis para uma primeira abordagem do tema: Teoria e clínica da psicose de 
Antonio Quinet, c Psicose: Um estudo lacaniano de Neusa Santos Souza. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
136 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
"o paciente não associa" ou "ele muda de assunto... não liga uma coisa 
à outra... as idéias são fragmentadas". Parece que há uma confusão entre 
os termos 'associar' e 'estabelecer nexos lógicos ou causais'. Nada mais 
contrário à regra fundamental. Ela se instaura mais para 'dissociar' a fala 
que busca causas coerentes, bastante comum no pensamento do analisan-
do "que também quer experimentar realidades" como que dotadas de 
uma racionalidade. 
Daí surge outra confusão entre 'associar' e 'elaborar'. Se o discurso 
adquire uma coerência no processo associativo podemos estar diante de 
um trabalho de elaboração. Pode, ao contrário, ser indício do bom fun-
cionamento do recalque a favor de uma idealização do tratamento, ou da 
cura, ou ainda das expectativas do analista. Essa idealização está presente 
no início do estabelecimento da transferência. Pode ser também um 
momento da elaboração em que o sujeito quer concluir alguma coisa 
sobre si e sua condição. Não nos cabe impedir ou exigir que isto aconte-
ça. Mas somos chamados a discernir e, mesmo, a decidir sobre isso. 
A elaboração é um processo, uma exigência de trabalho que o sujeito 
se impõe 'através' da análise, da presença do analista que o faz trabalhar. 
Mas isso não acontece necessariamente durante as sessões nem na se-
qüência de tempo esperada. Não ouvimos o que queremos. Só temos 
acesso à elaboração de modo fragmentário e sempre incompleto. É im-
portante marcar que o modo de fala que provocamos é definido pelo que 
Freud chama de Einfall.*' No dicionário**: idéia repentina; invasão; 
* Na tradução inglesa, J. Strachey, na parte III do "Projeto para uma psicologia 
científica", destaca em nota o aparecimento do termo Einfall no texto, que traduz 
como 'intrusão', e observa que sua acepção corrente pode ser "uma idéia 
que ocorre a alguém", lembrando que às vezes pode ser entendida como 'asso-
ciação', (p. 373). Na mesma nota, remete a uma outra que escreve na Conferên-
cia III — "Parapraxias", das Conferências introdutórias de 1916-17, que repro-
duzo em parte: Strachey, ao comentar a incidência freqüente do termo nesta 
conferência, admite que não há um equivalente satisfatório em inglês para Ein-
fall. Ele próprio discorda do emprego de 'associação', uma vez que é "ambíguo 
e questionável (...) se uma pessoa está pensando em algo e dizemos que ela tem 
um Einfall, tudo o que implica é que algo mais ocorreu em sua mente. Mas se 
dizemos que ela tem uma 'associação', parece implicar que esse algo mais que 
lhe ocorreu está, de algum modo, conectado ao que estava sendo pensado antes" 
(p. 47-8). 
** Cf. Dicionário Alemão-Português de Leonardo Tochtrop e Herbert Caro, editora 
Globo. Um fato curioso é que na 1° edição de 1943, o significado de "idéia 
repentina" é o primeiro indicado. Já na edição de 1989, ele aparece por último. 
Por uma psicanálise possível I 137 
queda. Isto é, palavras, frases, fragmentos de situações ou cenas, sonhos 
ou lembranças, que invadem repentinamente o discurso caindo sobre a 
coerência anterior. O sentido que se dá a isso depende do analista. Aí está 
uma primeira parte de seu trabalho: uma marcação do inconsciente. 
Não se deve esperar, portanto, que o inconsciente aflore. E o analista 
que o designa como tal. E com que finalidade? Certamente não de inibir 
ou envergonhar o sujeito por seu 'erro' ou 'incoerência'. Essa designação 
é uma tarefa delicada, que pode resultar no aumento da resistência ao 
trabalho analítico. 
Se entendemos que ao analista cabe constituir uma fala associativa 
para deixar o caminho mais livre para a idéia repentina, a contrapartida é 
seu silêncio que constitui a escuta. Algo a ser conquistado na conversa, na 
interlocução, e que não deve soar como a voz inibidora do superego. Mas 
silêncio não é mutismo, é uma forma peculiar de omissão que não exime 
o analista da responsabilidade de falar e calar como modos de sua ação. 
Em suma, o conceito de realidade psíquica subsume as principais 
indicações metapsicológicas de Freud. No campo do sujeito temos os 
processos primário e secundário onde o primeiro tem primazia sobre o 
segundo na tópica do inconsciente. O desejo é a mola mestra do tecido 
da fantasia inconsciente e se constitui a partir de um hiato entre o que o 
sujeito quer e o que é levado a buscar na trilha de significantes que 
constituem sua fala. A compulsão à repetição, que faz falar a verdade, 
articula o campo pulsional desde a fixação da libido até a insistência da 
pulsão de morte como limite da palavra e do desejo. 
No campo propriamente analítico, temos a resistência em suas dife-
rentes modalidades que, em última instância, se articula à repetição. E, 
como solução, há a elaboração que deve levar o sujeito a uma nova ação 
sobre a realidade. 
Nesse imbricamento de conceitos, desenvolvi os que caracterizam a 
realidade psíquica em relação ao trabalho analítico, e retomo alguns, em 
particular a repetição, na exposição sobre transferência.Vamos adiante. 
1.2 Sobre a transferência 
Na transferência, começo pelo amor. Da paixão de Anna O. — que fez 
Breuer recuar —, ao desprezo ressentido de Dora — que fez Freud 
avançar —, o fenômeno do amor de transferência é "um dos fundamen-
tos da teoria psicanalítica". É Freud quem o diz em seu texto-chave 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
138 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
"Observações sobre o amor de transferência" (1915, p. 160). Este foi seu 
último texto da série que ficou conhecida como 'textos sobre a técnica', 
e, como revelou em carta a Abraham, foi "o melhor e mais útil de toda a 
série", e acrescenta que estava "preparado para vê-lo provocar a mais 
forte reprovação" (Gay, 1988, p. 301, tradução minha). Portanto, deve 
ser lido com atenção. 
Logo no começo, Freud previne os iniciantes na psicanálise, muito 
preocupados com suas dificuldades em interpretar as associações dos 
pacientes — sem saber o que, quando, e como dizer —, que essas 
dificuldades logo se tornarão irrisórias diante do problema maior que 
está por vir: o manejo da transferência. Entre as várias situações que 
surgem, Freud escolhe uma, bem definida: a paciente que se apaixona 
pelo médico. Escolhe o que diz respeito à sua própria dificuldade, mas 
também dirige-se aos analistas homens numa época em que praticamente 
não havia analistas mulheres. Para o leigo, "as coisas que dizem respeito 
ao amor são incomensuráveis em relação a qualquer outra coisa" (1915, 
p. 160). Para o psicanalista, o que deve mudar é sua atitude diante do 
amor que irrompe como realidade no 'faz-de-conta da cena analítica', 
como se um grito de 'fogo!' irrompesse durante uma representação 
teatral (p. 162). A obediência dócil às solicitações do analista dá lugar a 
uma revolta obstinada, a um apelo incessante, tudo o mais não importa. 
E a ação ruidosa da resistência, presente até no próprio silêncio. Assus-
tador! Freud não poupa o iniciante assustado, ou o médico experiente e 
vaidoso. O amor de transferência é provocado pela própria situação 
analítica. Esta seria, em última instância, a única diferença entre o amor 
patológico e o amor 'na vida real'. O paradigma do amor de uma mulher 
por seu analista se desloca, ao longo do texto, para o amor como para-
digma. Toda situação amorosa, todo enamoramento, teria um quê de 
patológico, um pathos que toma o sujeito e rompe o equilíbrio com seu 
excesso, fazendo-o padecer. "Esse afastamento da norma constitui preci-
samente o que é essencial ao estado amoroso. (...) O desejo do paciente 
não faz diferença; apenas lança toda a responsabilidade sobre o próprio 
analista" (p. 169). O que fazer? 
Freud descreve as soluções correntes desde as mais enganosas, plenas 
de ambigüidades e subterfúgios, até as mais austeras que condenam esses 
sentimentos inadequados, e vaticina: "O caminho que o analista deve 
seguir não é nenhum desses; é um para o qual não existe modelo na vida 
real" (p. 166). Então, a responsabilidade recai não sobre a pessoa do 
analista, mas sobre sua própria função. O que fez o analista para provocar 
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível | 139 
esse 'incêndio"? Sua tarefa era simplesmente enunciar a regra fundamen-
tal para fazer trabalhar a realidade psíquica através da fala. Isso já basta. 
Numa análise, fazer falar é provocar e evocar os traços ou marcas da vida 
amorosa, das relações de objeto; é evocar o objeto perdido, busca inces-
sante, motor do desejo. A fala é carregada de afeto, atravessa o tempo, 
cria lembranças e lança ao futuro um suposto passado. Assim é a reali-
dade psíquica. Como pode o analista evocar um espírito das profundezas 
com sua magia e mandá-lo embora sem fazer-lhe sequer uma só pergun-
ta? Para o jovem analista com pouca experiência amorosa, ou que não 
estabeleceu ligações duradouras, essa é uma árdua tarefa. O amor de 
transferência pode adquirir uma tal intensidade a ponto de colocar o 
analista "in a cleft stick" (1915, p. 167). Esta é a expressão usada por J. 
Strachey na tradução inglesa, que pode ser entendida como um dilema 
inextricável. Ao pé da letra, temos 'uma vara cindida'. O analista se vê, 
então, cindido pelas intensas demandas amorosas do neurótico, que exi-
ge ser ressarcido de uma perda irreparável, ou, mesmo, pela erotomania 
do psicótico, ainda mais assustadora e inamovível. Se responde a partir 
dessa cisão, está em plena contra-transferência. Esse é o receio de Freud. 
Com Lacan, podemos dizer que a contra-transferência nada mais é do 
que a emergência do sujeito dividido no lugar do analista. Metáfora que 
faz sintoma. 
Qual o amor possível como resposta do analista, se não existe modelo 
na vida real? Freud dá uma pista: "(...) o tratamento psicanalítico é 
fundado na verdade. Sobre esse fato incide uma grande parte de seu 
efeito educativo e de seu valor ético. É perigoso afastar-se desse funda-
mento. Qualquer um que esteja saturado da técnica analítica não mais 
será capaz de recorrer a mentiras ou fingimentos que um médico normal-
mente considera inevitáveis" (p. 164). 
A solução é ética. O amor possível para o analista pode ser o amor à 
verdade. Esta se encontra no cerne da psicanálise, é seu próprio funda-
mento. Qual é a verdade em jogo numa análise? Ela se apresenta desde 
o início na regra fundamental como o pedido do analista: diga o que lhe 
vier à cabeça, não oculte nada, mesmo que não pareça importante. Sabe-
mos que o sujeito pode mentir, ocultar, desviar o rumo das associações, 
fazer de tudo para não se revelar. Como saber da verdade? 
Retomando a discussão anterior sobre realidade psíquica, desta vez 
recorro ao texto de Philippe Julien (1996), em sua referência a Freud e 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
140 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Lacan, que resume bem a concepção de verdade que nos diz respeito. A 
questão que se põe é: "Se a verdade fala, será que fala para dizer a 
verdade?" (p. 14). O analista tem que escolher entre dois valores de 
verdade: 
"Ou a verdade é, segundo a fórmula clássica, adaequatio intellectus 
et rei, a adequação entre pensamento e objeto: assim, diz-se que uma 
proposição é verdadeira ou falsa em função dessa conformidade ou não 
com o referente, pois o que está em jogo é a aquisição de um saber 
referencial; 
"Ou a verdade é, segundo a 'Coisa freudiana', o dizer de uma fala 
que apela para a confiança do Outro, para se fazer reconhecer em seu 
valor de evento: 'Sim, você o disse!' Assim, o locutor recebe sob uma 
forma invertida sua própria mensagem, doravante no futuro do presente 
composto: 'Eu o terei dito.' O que está em jogo não é um saber referen-
cial, mas um saber textual. (...) Mas sob uma condição absoluta: que o 
Outro acredite" (pp. 14-15). 
Acreditar no sujeito, portanto, é acreditar no seu dizer produzindo o 
dito, verdadeiro ou não, ao qual se adere como evento de uma "enuncia-
ção auto-referencial segundo a qual um 'eu' convoca um 'ele ' para 
ouvi-lo". Ou seja, o contexto da verificação é o próprio texto como 
produção (dizer) e produto (dito) do sujeito. 
Esse amor à verdade como saber textual é condição necessária mas 
não suficiente para dissipar os efeitos desconcertantes da resistência em 
sua versão de amor-ódio — hatnamoration, como diz Lacan. 
Da parte do analista, o que pesa é seu percurso na própria análise, na 
vida e, provavelmente como decorrência desses dois fatores, seu savoir-
faire, seus recursos imediatos para lidar com o que emerge a cada sessão. 
Nem furor sanandi, nem remédios inofensivos. Deve-se praticar uma 
"psicanálise não diluída, sem medo de manejaros mais perigosos impul-
sos psíquicos e obter domínio sobre eles para benefício dos paciente." 
(Freud, 1915, p. 171). 
Da parte do sujeito, o que pesa é, como Freud mostra no texto, a 
fixação da libido que insiste sob o modo da repetição. A resistência 
sozinha não produz esse amor, apenas o instrumenta e o intensifica a seu 
serviço, escondendo e exibindo a fantasia, com seu gozo, na solução de 
compromissoque é o sintoma. A origem desse amor é atribuída à repe-
tição como reedição de protótipos do amor infantil — Freud, em 1915, 
ainda não tem o recurso à repetição como uma compulsão para além do 
princípio do prazer. 
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível I 141 
Sobre a resistência, em seu texto "Inibição, sintoma e angústia" 
(1926), Freud escreve um adendo que revê e modifica suas formulações 
sobre os tipos e procedências da resistência que se mantinham em torno 
do ego até o início dos anos vinte. Agora, o analista deve combater nada 
mais nada menos do que cinco tipos de resistência provenientes das três 
instâncias: ego, id e superego. 
Do ego são três tipos: a resistência do recalque — que é inconsciente 
mas pode tornar-se consciente — é a mais conhecida; a resistência de 
transferência que reanima o recalque, onde podemos situar a intensifica-
ção do amor de transferência; e o ganho da doença, com base na assimi-
lação do sintoma pelo ego, que se manifesta numa recusa a renunciar à 
satisfação obtida no sintoma.* 
O quarto tipo provém do id, e Freud o nomeia como resistência do 
inconsciente, que se manifesta na compulsão à repetição, "que pede 
elaboração". 
O quinto tipo, mais recente, é mais obscuro e não deve ser subesti-
mado. É a resistência que provém do superego e se manifesta como um 
forte sentimento de culpa ou necessidade de punição impedindo qual-
quer avanço na análise (1926, pp. 159-60). 
Uma batalha com cinco frentes faria recuar qualquer general! No 
entanto, combateremos à sombra. Nossa missão não é atacar de frente, 
nem de uma só vez. Devemos contar com as próprias forças do sujeito. 
Interessante notar que, nessa nova formulação, a resistência perpassa 
todas as instâncias que constituem a realidade psíquica, e não apenas o 
ego como se costumou pensar com Freud até os anos 20 e se estendeu à 
leitura dos pós-freudianos. A compulsão à repetição resiste bravamente 
como garantia da verdade do sujeito em oposição ao ego. Além disso, há 
a ação culpabilizante do superego sobre o ego, em sua exigência sádica, 
até o limite da "pura cultura da pulsâo de morte" na melancolia (1923, 
p . 53 ) . 
Em "Recordar, repetir e elaborar" (1914), Freud afirma: "Antes de 
tudo, o paciente começará seu tratamento com uma repetição" (p. 150). 
E o que condiciona a repetição? 
"O que nos interessa mais que tudo é naturalmente a relação dessa 
compulsão para repetir com a transferência e a resistência. Logo perce-
Se o sintoma não é assimilado pelo ego, temos o que Freud aponta, ao longo de 
sua teorização sobre os diferentes sistemas, como o que é prazer para um sistema 
passa a ser desprazer para outro. Esta é uma das maneiras de designar o conflito, 
a divisão do sujeito, como diz Lacan. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
142 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
bemos que a transferência é em si apenas uma repetição, e que a repeti-
ção é uma transferência do passado esquecido não apenas para o médico 
mas também para todos os demais aspectos da situação presente" (1914, 
p. 151). 
Desse trecho apreendemos que transferência e repetição não são 
idênticas, e que a repetição se 'transfere' — podemos entender o termo 
em sua acepção de deslocamento — para outras situações que não a 
analítica. Então, qual o seu estatuto e função na realidade psíquica atua-
lizada na transferência? 
Em "Para além do princípio do prazer" (1920), Freud postula que "O 
inconsciente — isto é, o 'recalcado' — não oferece qualquer resistência 
aos esforços do tratamento. De fato, ele próprio não faz outra coisa senão 
tentar superar a pressão que pesa sobre ele e forçar passagem seja para a 
consciência ou para a descarga através de uma ação real" (p. 19). 
Três anos mais tarde, em O ego e o id (1923), Freud vai numa direção 
um pouco diferente: "O id (...) não tem meios de mostrar ao ego seja 
amor ou ódio. Não pode dizer o que quer; não atingiu qualquer vontade 
unificada. Eros e a pulsão de morte lutam em seu interior. (...) Seria 
possível retratar o id como sob a dominação das pulsões de morte mudas 
mas poderosas, que desejam estar em paz e (impulsionadas pelo princí-
pio do prazer) pôr Eros, esse encrenqueiro, para descansar; mas isto 
talvez possa ser subestimar o papel de Eros" (p. 59). 
No jogo pulsional, há uma parte que 'pede passagem' e outra que 
'quer ficar onde está, em paz'. A repetição parece adquirir aí um duplo 
movimento. Isto é, pedir passagem para fazer cessar a busca. Nesse 
sentido, há uma resistência que se solidifica no embate pulsional. Perma-
nece a questão: o que se repete, afinal? 
Nesse ponto, recorro a Lacan para situar a repetição como diferente 
da reprodução de padrões de comportamento, que ele compara à repro-
dução de uma obra de arte cujo valor é irrisório comparado ao do 
original. Repetição não é reprodução barata do original. O trabalho 
analítico não deve se pautar na idéia de que repetir seja reproduzir ou 
copiar algo a ser encontrado na origem. Por outro lado, a repetição não 
é mera encenação cujo palco se restringe ao setting analítico encetando 
uma disputa auto-referente entre analista e analisando. A repetição deve 
ser entendida como um movimento que, ao fixar uma identidade, é 
também diferencial como intrínseco ao funcionamento da linguagem ou, 
como Lacan postula, às leis do significante. A repetição porta a diferen-
ça. Além disso, seu ponto de ancoragem não é localizável nem na figura 
do analista nem no passado remoto, está irremediavelmente perdido. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível | 143 
A repetição entre o real e o simbólico: tique e autômaton 
No Seminário 11 — realizado em 1964 e publicado cerca de dez anos 
mais tarde — Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan 
desenvolve sua concepção de repetição, apropriando-se de maneira pe-
culiar de dois modos de causação postulados por Aristóteles: tique e 
autômaton. 
O primeiro (tique) é uma dimensão da repetição no registro do real e 
pode corresponder ao que Freud chama de núcleo patogênico, como o 
que é traumático para o sujeito. Real e trauma se equivalem marcando o 
sujeito nesse encontro desencontrado; encontro faltoso com o real. 
Segundo Freud, "há uma classe especial de experiências da maior 
importância para as quais nenhuma memória pode, como regra, ser 
recuperada. Essas são experiências que ocorreram numa infância remota 
e não foram compreendidas na época mas que foram compreendidas e 
interpretadas subseqüentemente. Tomamos conhecimento delas atra-
vés dos sonhos e somos obrigados a acreditar nelas a partir da força 
das evidências dadas pelo tecido da neurose". (1914, p. 149 grifo no 
original). 
Esse trecho condensa as duas dimensões da repetição recortadas por 
Lacan. Convém observar que a atualização da teoria do trauma deve ser 
entendida à parte da idéia de que só o que é infantil pode ser traumático. 
Isto é, o que localiza o trauma é um tempo subseqüente uma vez que o 
tempo anterior não é localizável, está perdido no inefável da experiência, 
seja num passado remoto ou não. O que insiste como exigência de 
elaboração fazendo funcionar a cadeia de significantes é o autômaton, a 
dimensão da repetição no registro do simbólico. Entre real e simbólico, 
entre o desencontro e a insistência, o sujeito trabalha na análise. 
Tomo dois exemplos paradigmáticos apresentados por Freud em di-
ferentes momentos de sua obra que nos dão indicações importantes sobre 
a repetição e que Lacan retoma reinterpretando-as de um modo um 
pouco diferente. 
O primeiro é o exemplo do pai que vela seu filho morto à luz de uma 
vela que incendeia a cortina do cômodo onde está seu caixão. O pai 
adormece no cômodo ao lado e sonha a famosa cena descrita por Freud 
no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, que termina com a frase: 
"Pai, não vês que estou queimando?" 
Há muitas interpretações possíveis para esta cena. Tudo o que Freud 
nos diz sobre como obteve o relato deste sonho é que foi através de uma 
CAPS_10Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
144 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
paciente sua que assistiu a uma palestra sobre sonhos onde este foi 
relatado. Ela própria passa a " 're-sonhá-lo' , isto é, a repetir alguns de 
seus elementos em seu sonho" (1900, p. 509). Reduplicação do trauma? 
O segundo exemplo é a famosa cena do fort-da em "Além do princí-
pio do prazer" (1920), que Freud presencia ao observar seu neto brincar 
com um carretel fazendo-o desaparecer e reaparecer. A partir da expe-
riência traumática do desaparecimento do objeto libidinal — no caso, as 
saídas da mãe — o menino encena em seu jogo o movimento de 'ir-e-vir' 
numa tentativa de domínio sobre o objeto a serviço do princípio do 
prazer através dessa manipulação. Este exemplo ilustra a repetição atra-
vés do incessante vaivém do objeto. 
Vejamos como Lacan trata esses exemplos: 
Tique refere-se ao encontro sempre faltoso com o real. Que falta o 
pai teria cometido para ser repreendido em sonho por seu filho morto? 
Para Lacan, a falta que concerne ao real não é da ordem de um julgamen-
to moral. E, antes, como uma impossibilidade que ela opera. Não foi 
possível salvar a vida de um filho que teria ardido em febre até a morte. 
Não foi possível reverter esse destino. Assim como, no segundo exem-
plo, não é possível ao menino um acesso não tanto à presença da mãe, 
mas a seu desejo enigmático. Para onde vai seu desejo quando ela desa-
parece? Eis o ponto traumático. 
Autômaton é o que resiste porque insiste na cadeia de significantes. 
No primeiro caso, é a insistência do sonho que reduplica a cena do 
incêndio e constrói a frase como um apelo reprovador do filho pela falta 
do pai. No segundo caso, é o jogo de oposições significantes — fort (vai) 
e dá (aí) — que sustenta o movimento. Eis o ponto em que a cena se 
inscreve no simbólico. 
Sobre a dimensão simbólica da repetição, Lacan diz: 
"Se o sujeito é o sujeito do significante — determinado por ele —, 
podemos imaginar a rede sincrônica de tal modo que ela dê, na diacronia, 
efeitos preferenciais. Entendam bem que não se trata aí de efeitos esta-
tísticos imprevisíveis, mas é a própria estrutura da rede que implica os 
retornos. E esta a figura que toma para nós, através da elucidação do que 
chamamos estratégias, o autômaton de Aristóteles. E também é por 
automatismo que traduzimos o Zwang de Wiederholungszwang, compul-
são de repetição" (1973, p. 65). 
E, ainda, "A sintaxe, seguramente, é pré-consciente. Mas o que esca-
pa ao sujeito, é que sua sintaxe está em relação com a reserva incons-
ciente (...) — a ser entendida no sentido de reserva de índios, no interior 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível I 145 
da rede social. (...) Quando o sujeito conta sua história, age, latente, o 
que comanda essa sintaxe, e a faz cada vez mais cerrada. Cerrada em 
relação a quê? — ao que Freud, desde o começo de sua descrição de 
resistência psíquica, chama um núcleo. 
Dizer que esse núcleo se refere a algo de traumático é apenas uma 
aproximação. Precisamos distinguir, da resistência do sujeito, essa pri-
meira resistência do discurso, quando este procede ao cerramento em 
torno do núcleo. Pois a expressão de resistência do sujeito não faz mais 
do que implicar demasiado um eu [moi] suposto, do qual ele não está 
certo — ao se aproximar desse núcleo — que seja algo que pudéssemos 
estar seguros de que a qualificação de eu [moi] ainda tenha fundamento" 
(p. 66). 
Se fazemos uma superposição de Freud com Lacan, temos algo do id, 
"a resistência do inconsciente" traduzida como compulsão à repetição, 
que insiste, na dimensão traumática do mau encontro com o real (tique), 
e se articula à sintaxe que faz funcionar a rede de significantes (autôma-
ton) "pedindo elaboração". 
No caso do sonho do pai, Lacan aponta algo que Freud não vislum-
brava em 1900: o sonho atesta que há algo que não é da ordem da 
realização de desejo que se repete, mas algo 'anterior' ao princípio do 
prazer, que seria da ordem do trauma. Este sonho fundamentalmente não 
realiza um desejo, não causa prazer. 
No caso do menino do carretel, tanto Lacan quanto Freud, apontam 
que o que é traumático para o menino do carretel é, no entanto, elaborado 
na ação causando prazer. Coisa de criança? Prefiro achar que também 
pode ser coisa do processo analítico. 
A repetição, por sua dupla via do mau encontro com o real, que 
retorna sempre no mesmo lugar, e do significante, sob o modo de relatos 
de cenas ou episódios, relatos de sonhos, incidências de falas numa 
sintaxe que não se reduz ao eu, "pede elaboração". Esta pode se dar tanto 
pela palavra quanto pela ação. Devemos abolir quaisquer resquícios da 
concepção evolucionista e desenvolvimentista — de certo modo presente 
em Freud e enfatizada pelos pós-freudianos — que supõe que a ação na 
repetição é infantil, pré-verbal, ou regredida. A ação na elaboração, 
inevitavelmente, guarda uma dependência, senão uma familiaridade com 
a repetição. E através desta que aquela se dá. A incidência do analista 
desencadeia e dá suporte à elaboração sustentada na transferência. Cito 
Lacan: 
"(...) não se trata em Freud de nenhuma repetição que se assente no 
natural, de nenhum retomo da necessidade. O retorno da necessidade 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
146 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
visa o consumo posto a serviço do apetite. A repetição demanda o novo. 
Ela se volta para o lúdico que faz desse novo sua dimensão" (1973, 
pp. 59-60). Este é o jogo da psicanálise. 
Quanto à rememoração, que Freud situa entre a repetição pela ação c 
a elaboração pela palavra, sua posição em 1914 é a de que há as chama-
das memórias encobridoras que vêm no lugar da amnésia infantil, e há 
outros processos psíquicos, como fantasias, impulsos emocionais, cone-
xões de pensamentos, e t c , que "em sua relação com o esquecimento e a 
lembrança devem ser considerados separadamente" (pp. 148-9). Qual a 
diferença? 
No primeiro caso, "não apenas algo mas tudo o que é essencial da 
infância foi retido nessas memórias [encobridoras]. E simplesmente uma 
questão de saber como extrair isto [o essencial] delas pela análise. Elas 
representam os anos esquecidos da infância tão adequadamente quanto 
o conteúdo manifesto de um sonho representa os pensamentos oníricos." 
No segundo caso, "acontece particularmente com freqüência que 
algo é ' lembrado' , que nunca poderia ter sido 'esquecido', porque não 
foi jamais observado naquele momento — não foi jamais consciente. 
Considerando o curso tomado pelos eventos psíquicos, parece não fazer 
qualquer diferença se uma 'conexão de pensamento' foi consciente e 
então esquecida ou se jamais pôde tornar-se consciente. A convicção que 
o paciente obtém no curso da análise é bem independente desse tipo de 
memória" (p. 149). 
O que temos aqui? Se as memórias encobridoras representam — são 
representantes de, como numa representação diplomática — a infância 
esquecida do mesmo modo que os sonhos representam os pensamentos 
oníricos, só temos acesso aos representantes em sua missão de compare-
cer com tantas palavras no lugar do que jamais aparecerá. Logo, não 
temos como saber o que representa o que. E se, em relação aos demais 
processos psíquicos, a convicção do paciente independe da memória, não 
nos resta outra coisa senão apostar nos efeitos das palavras e atos no 
curso do trabalho analítico. Podemos simplificar a questão afirmando 
que não há metalinguagem ou, de acordo com Lacan, não há Outro do 
Outro. Isto é, nossa função não é traduzir o que é dito pelo que não foi 
dito. O dito vale pelo não-dito, e fazer falar é relançar um dito ao outro 
localizando o sujeito na dimensão do dizer. Retomo este ponto ao tratar 
da interpretação. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível I 147 
Ainda resta um problema. Se vimos inicialmente que na transferência 
emerge sua face mais aguda e desafiante — que é a resistência na formado amor erótico — que, por sua vez, se origina da compulsão à repetição 
que também visa a restaurar 'a paz' e fazer cessar qualquer apelo à 
elaboração, ou a outras formas de satisfação impostas por Eros (o en-
crenqueiro), como manejar a transferência a favor do trabalho analítico? 
A transferência analítica: o 'sujeito suposto saber' 
Em "A dinâmica da transferência" (1912), para solucionar o problema, 
Freud se detém na proposta insuficiente de uma transferência terna — 
menos intensidade das pulsões eróticas — fazendo prevalecer o fator 
quantitativo sobre o qualitativo. Mas lança uma idéia intrigante sobre o 
modo como o analista é chamado à transferência: "O investimento libi-
dinal introduzirá o médico em uma das 'séries' psíquicas que o paciente 
já formou" (p. 100). É como objeto, ou traço do objeto, que o analista 
entra na outra cena. 
Tomando os três registros postulados por Lacan: pela via do imagi-
nário, é a imagem ou traço do objeto; pela via do simbólico, os signifi-
cantes que designam o objeto, o que retoma a primeira idéia de Freud da 
transferência como deslocamento de uma representação para outra 
(1900, p. 562); pela via do real, é a dimensão da falta, do não compare-
cimento do objeto, que remete ao objeto perdido. 
Essa inclusão nas "séries psíquicas" se inscreve na economia libidinal 
do sujeito estando, portanto, submetida às intempéries do amor-ódio de 
transferência. Voltamos ao problema. 
Lacan nos brinda com sua pièce de résistance — que vai contra a 
resistência tanto do analista quanto do analisando — que é o conceito de 
'sujeito suposto saber',* para dar um rumo analítico à transferência. 
Erigir o analista como 'sujeito suposto saber' pode ser o amor possível 
para o analisando como contrapartida ao amor à verdade para o analista. 
O amor à verdade põe o analista em posição de confiar no inconscien-
te, no processo primário, que sempre vai associar, não querendo dizer 
* O conceito de 'sujeito suposto saber' aparece de modo disperso nos trabalhos de 
Lacan. Dada a dificuldade em localizar as referências em textos inéditos ou de 
difícil acesso, remeto o leitor ao texto principal. "Proposição de 9 de outubro de 
1967 sobre o psicanalista da escola" em que Lacan postula a função do analista 
na transferência que indica como o 'sujeito suposto saber'. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
148 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
nada, mas sempre querendo dizer alguma coisa que promete significa-
ção. Cabe ao analista apontá-la para, paradoxalmente, esvaziar a possi-
bilidade de uma significação última, definitiva, vitória da razão sobre a 
emoção. Psicanálise não é intelectualização, mas também não é processo 
emocional. 
O amor ao 'sujeito suposto saber' põe o analisando em posição de 
confiar ao analista sua fala onde, imprevisíveis, aparecem seus segredos 
(elementos da fantasia), seu padecer (um modo de gozo que não dá 
prazer), sua esperança em mudar (ideal do eu) e se livrar 'disso' (pedido 
de amor). Ao supor um saber ao analista, o analisando acredita, mas 
também duvida, que ele realmente saiba. Portanto, essa suposição não se 
esgota na figura do analista, mas tem em sua presença uma possibilidade, 
ao mesmo tempo que um limite, de fazer o sujeito vir a saber de sua 
condição como parte de seu trabalho. Ao falar, se vê e, principalmente, 
se escuta num lugar que lhe é estranho e familiar. "Eu disse isso? 
(...) Não é isso (...) Eu quero dizer isso (...)" e por aí vai. E também age 
dentro e fora da sessão de modo inusitado, estranho e familiar, efeito da 
repetição. 
O saber que se produz d'isso, não vem só da boca do analista. Essa 
outra dimensão da suposição que provoca a fala atesta a existência do 
inconsciente, não como ôntico mas como produção, e reconduz o analis-
ta ao lugar de desencadeador mais do que sabedor da verdade. O mestre 
sabe, o analista, por ser suposto, não sabe. O 'sujeito suposto saber' não 
está nem no analista nem no analisando, é uma produção do dispositivo. 
Na psicose a coisa é diferente. O psicótico padece da certeza mais do 
que da dúvida, logo não está, pelo menos num primeiro momento, incli-
nado a supor. O analista, ou sabe tudo, lê seus pensamentos, ou não sabe 
nada. Fazer vacilar a certeza em direção a uma suposição possível é o 
ponto sobre o qual o analista deve trabalhar na análise do psicótico. 
Na neurose, se o sujeito, com suas cinco frentes de resistência, supor-
tar esse jogo como sua chance de ir adiante, então está instalada a 
transferência como condição da análise. 
Contudo, sabemos que isso não impede a manifestação de outras 
formas de amor-ódio mais ou menos resistentes ao trabalho analítico. O 
amor ao 'sujeito suposto saber' é uma nova via que deve absorver as vias 
vicinais, que podem se concretizar enquanto resistência bloqueando avia 
principal até o limite do que Freud chamou de reação terapêutica nega-
tiva. Na psicose, o sujeito padece da ausência da via principal, perden-
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível | 149 
do-se nas vias vicinais.* Eis a importância do manejo que cabe ao 
analista, caso contrário, a resistência só pode ser sua. "Cara, eu ganho, 
coroa, você perde." 
1.3 Sobre interpretação, temporalidade e cura 
"Cara, eu ganho, coroa, você perde." Voltamos à frase — proferida por 
um certo "cientista bem conhecido" simpatizante da psicanálise — que 
chega aos ouvidos de Freud como um protesto em nome do "pobre 
infeliz desamparado", que é o analisando submetido às interpretações do 
infalível analista (1937b, p. 257). Protesto injusto ou saturação da técni-
ca interpretativa? 
Freud responde com a "construção" como "tarefa preliminar" do 
analista para preencher as lacunas na história do sujeito provocadas pelo 
recalque, e a distingue da interpretação por ser esta mais parcial, incidin-
do apenas sobre determinada associação ou lapso. A construção seria, 
assim, um trabalho ao longo do tratamento à medida em que o analista 
dispõe de material suficiente — fragmentos de memórias, sonhos, 
associações, repetição do recalcado em atos etc. Sua tarefa se assemelha 
à do arqueólogo para reconstruir ou reconstituir o sítio escavado onde se 
apresenta a "matéria-prima" fornecida pelo analisando. 
Convenhamos que é preciso um minucioso trabalho do analista para 
executar essa reconstrução. Mas, quem elabora não é o analisando? Ou 
esse "pobre infeliz" não tem mais nada a fazer senão entregar-se, com 
sua fala desconexa e confusa, ao trabalho do analista? Este sim, com suas 
idéias claras e distintas, deverá saber o que fazer disso. 
Freud não é ingênuo. Todo o seu esforço no decorrer do texto é para 
mostrar que uma construção não é facilmente validada seja pelo 'sim' ou 
seja pelo 'não' do analisando. O 'sim' pode significar um 'não' dissimu-
lado a favor da resistência — engana-se um analista — e o 'não' pode 
significar apenas que a construção está "incompleta". O "pobre infeliz" 
tem seu poder assegurado contra ou a favor do saber produzido pelo 
analista, e só o tempo dirá quem está certo a partir de novas associações 
e repetições do analisando. 
Lacan, em seu Seminário, livro 111 — As psicoses, dedica boa parte da lição 
XXIII — "A estrada principal e o significante 'ser pai '" — a essa metáfora da 
estrada principal como sendo a organização fálica dada pela função paterna que 
está ausente na psicose. 
CAPS_10
Destaque
150 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Ao final do texto, Freud chega a comparar as construções do analista 
aos delírios do psicótico. A única diferença estaria no fato de que o 
segundo, em sua tentativa de explicação e cura, realiza um duplo des-
mentido (em inglês, disavowal): o primeiro no passado remoto, e o 
segundo no presente. O analista realizaria apenas o segundo? 
Freud é quem diz: "Freqüentemente, não somos bem sucedidos em 
fazer o paciente lembrar o que foi recalcado. Em vez disso, se a análise 
é conduzida corretamente, produzimos neleuma convicção assegurada 
da verdade da construção que atinge os mesmos resultados terapêuticos 
de uma memória recapturada" (1937b, pp. 265-6). Cara ou coroa? 
Entretanto, se o psicanalista triunfa onde o paranóico fracassa, é bem 
porque seu 'delírio' não tem consistência a ponto de deixar o analisando 
sem saída. 
O que é necessário refazer desse percurso? 
Em primeiro lugar, a construção é um trabalho inerente ao processo 
analítico no que se refere à produção de um saber que, em última instân-
cia, é a construção da fantasia. Ela é sempre parcial e se tece a partir das 
produções de fala do sujeito, ao modo de uma rede, vazada, com buracos 
ou lacunas. Longe de ser um 'delírio', a construção não 'desmente' a 
castração. Sua confirmação se dá no percurso pelas próprias produções 
do analisando. 
Em segundo lugar, como já disse, o trabalho pertinente à análise que 
possibilita um desdobramento da construção é o Durcharbeitung — 
trabalho através de, e durante a análise —, a elaboração. E, se a constru-
ção diz respeito ao saber, a elaboração diz respeito também à ação como 
trabalho pulsional do analisando, num diferencial sobre a repetição, 
através da incidência do analista. Isto é, o analista incide sobre a repeti-
ção produzindo esse diferencial que abre a possibilidade da construção 
da fantasia e da elaboração. Ou seja, do trabalho que produz uma "ação 
sobre a realidade", como propôs Freud. Esta ação, por um lado, se 
articula ao saber que se constrói. E, por outro, relança o sujeito a novos 
acontecimentos que provocam a desestabilização desse saber-já-sabido. 
Qual o teor da incidência do analista? 
Chegamos à interpretação, onde o analista é supostamente livre para 
dizer o que quiser. Esta é a sua tática.* 
No texto "A direção da cura" de 1958, publicado nos Écrits, Lacan desenvolve 
uma versão da clínica inspirada na teoria do general prussiano Karl Clausewitz 
sobre a guerra como um cálculo cujos elementos são: a tática, a estratégia e a 
política. No cálculo da clínica psicanalítica, o analista se vale dos três elementos. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível I 151 
Cito alguns exemplos*: 
"Ele constata ('você abandonou-o'), interroga ('você não tem obriga-
ções?), afirma ('aqui, a regra é não escolher'), critica ('você não vai pôr 
em dúvida sua paternidade?'), subentende ('...ou dela.'), declara ('rejei-
ção') , exclama ('nada a ver! '), desacredita ('hum...'), utiliza a homosse-
mia ('pagar/acertar'), ou a homofonia ('tournedos/tourner le dos')... 
pode ser um enunciado que o analisando entende à sua maneira (...) ou 
um sintagma ('gerencio matrimonial') que o sujeito guardava consigo e 
que veio à luz 'por acaso', ou que o analista colheu 'na trama associativa 
do discurso'" (1937b, p. 313). 
As variações se dão por escolha do analista, e o analisando pode 
receber cada intervenção com surpresa ou familiaridade, com incom-
preensão, e até perplexidade. Pode reconhecer aí algo que lhe diz respei-
to. Ao ouvir os ditos do analista, o analisando entende o que pode. Não 
há uma correspondência unívoca entre um e outro. "A interpretação 
analítica não é feita para ser compreendida; é feita para produzir ondas" 
(Lacan, 1976, p. 35). 
O que importa, então, mais do que o dito, é o efeito que produz. E há 
um tempo para essa incidência operar no circuito de elaboração do 
analisando para produzir uma resposta na via da transferência. Sabemos 
que essa liberdade de escolha do analista é cerceada pelos limites da 
transferência sobre a qual não tem controle. Pode apenas manejar o que 
dela aparece a favor da análise. 
Sobre a relação da interpretação com a transferência, duas observa-
ções devem ser feitas: 
A primeira diz respeito à interpretação da transferência, extensamen-
te discutida por Lacan como o erro do analista. Freud já havia se dado 
conta do problema e, em 1920, postula a repetição para além do princípio 
do prazer. Revelar ao analisando sua resistência, tanto pode reforçá-la 
quanto pode não atingir o recalcado. Ao defender a interpretação na, ou 
através da, transferência, Lacan considera que o amor que concerne ao 
analisando já se instalou na dimensão do 'sujeito suposto saber'. É a 
partir daí que o analista está autorizado a interpretar. 
Sua tática, onde é mais livre, é a interpretação; sua estratégia, onde é menos livre, 
é a transferência; finalmente, sua política, que domina estratégia e tática e onde 
é menos livre ainda, é menos seu ser do que sua 'falta-a-ser'. (p. 585-90). 
Os exemplos foram retirados da publicação Os poderes da palavra, uma coletâ-
nea de textos de autores anônimos, reunidos pela Associação Mundial de Psica-
nálise sob a organização de Jacqucs Alain-Miller. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
152 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
A segunda diz respeito às modulações do amor de transferência como 
a estratégia do analisando. Ao demandar o saber do analista, esse amor 
pode produzir uma tal ilusão que faz com que o analista apareça como 
aquele que não se engana nunca. Ou, na via da resistência, pode produzir 
o efeito contrário: não importa o que o analista diga ou faça, ele cai no 
descrédito, senão no ridículo. Como resolver o impasse? 
A primeira vista, não há solução. A transferência pode sacralizar ou 
espicaçar o saber do analista. Mas esta oscilação já não é desprezível. 
Indica que a castração está presente como seu desencadeador. A dúvida 
obsessiva e a insatisfação histérica sobre o saber do analista são provas 
disto. E neste ponto que a análise do psicótico se torna mais problemá-
tica. Sua relação com o saber não é de suposição. 
A castração é o elemento conceituai que faz a diferença. Na neurose, 
refere-se à relação do saber ao gozo, mais precisamente, ao gozo do 
saber. Há um limite para o saber, como há um limite para o gozo. Não 
se sabe tudo, não se goza de tudo. E, ainda, não se goza de saber tudo. 
Além disso, o saber por si só não garante uma modificação do gozo. O 
analista toma o partido da castração. Isto é, sua resposta vai ao encontro 
da impossibilidade. Este é o limite da interpretação. O saber é necessa-
riamente parcial. E isto que permite a ação. Caso contrário, teremos o 
modelo do 'bom' analisando num ser de cálculo que pensa com prudên-
cia e razão antes de agir. Ou, então, uma certa 'paranóia' do saber. 
Nenhuma dessas saídas avança a possibilidade de uma 'boa saída' 
para a análise. O analista trabalha sobre a produção textual do analisan-
do, a cada caso, a cada encontro: "Tu o disseste" — palavras de Cristo 
que nos ensinam, não tanto a ética cristã, mas a ética da responsabilidade 
daquele que diz sobre seu dito. 
Se é o sujeito quem diz, o que diz o analista sobre isso (sobre o 
inconsciente)? Cito dois aforismos de Lacan como indicações prelimina-
res para definir o estatuto da interpretação*: 
"A interpretação não está aberta a todos os sentidos." Com isto, 
podemos corrigir uma certa idéia da interpretação como criatividade ou 
inventividade do analista que, no limite, pode transformar o trabalho 
analítico em uma viagem romântica por novas linguagens que amplia-
riam o autoconhecimento ou a experiência de si. E também podemos 
apontar um certo cacoete freqüente entre alguns discípulos de Lacan que 
jogam com o equívoco do significante sem atentar para o sentido que 
* Ver Os poderes da palavra, p. 349-52 e 358-63. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível \ 153 
pode trilhar no encadeamento de novas séries significantes que o sujeito 
produz como efeito da interpretação. Como se analisar não passasse de 
um permanente jogo de palavras sacudindo a cachola do "pobre infeliz" 
numa sucessão de enigmas a serem decifrados. A interpretação trilha um 
sentido que se desdobra e se limita em determinado arranjo de signifi-
cantes produzidos pelo sujeito que tecem e retecem a realidade psíquica 
marcando os caminhos do desejo. 
"A interpretação é um meio-dizer". O 'meio' não é o da metade, da 
meia-medida oudo meio-termo, ainda que se deva considerar a prudên-
cia no dizer — "do cochichar da verdade que oferece sua presença aos 
gritos da queixa, (...) a interpretação não soa tonitruante, insinua-se nos 
ditos que ouve" (p. 360). O 'meio' está entre dois, "evocando o entre -
dois dos significantes", nos interstícios. E também o meio do caminho, 
meio através do qual o sujeito tem a indicação do caminho. E um dizer 
alusivo que aponta o sentido, não deve tocar na ferida. E, se incide 
precocemente sobre algo que o sujeito ainda não pôde dizer, o efeito é a 
resistência que só faz obstruir o caminho. Para elaborar, é preciso cami-
nhar. Qual o tempo para isso? Qual o tempo de espera e, mesmo, qual o 
tempo que precipita a ação do analista ou do analisando? E, ainda, qual 
o caminho a ser indicado nesse tempo? 
Avancemos, então, os dois pontos seguintes: as concepções de tem-
poralidade e cura que condicionam o trabalho analítico. 
Em "Análise terminável e interminável" (1937a), um de seus últimos 
textos sobre a clínica, Freud entrelaça esses dois pontos demonstrando, 
ele próprio, um pessimismo que vai além do "ceticismo benevolente", 
que já havia recomendado a leigos e pacientes como a única atitude 
possível em relação ao alcance terapêutico da psicanálise.* A discussão 
do tempo é inseparável da concepção de cura. 
Freud começa pelo tempo, e logo previne: "a terapia psicanalítica é 
uma tarefa que consome tempo" (p. 216). Não há como fugir disso. A 
paciência e a espera são instrumentos fundamentais. Qualquer tentativa 
de encurtar o 'caminho', ou apressar o passo do paciente para chegar ao 
fim é injustificável e não passa de um "artifício de chantagem"** 
(p. 218). A que se deve essa rigorosa restrição? 
* Ver Conferência XVI, "Psicanálise e psiquiatria" nas Conferências introdutó-
rias parte III (1917), vol.XVI, S.E. p. 244. 
** Freud reconhece que ele próprio fez uso desse artifício no caso do homem dos 
CAPS_10
Destaque
í 54 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
lobos quando marcou uma data para terminar o tratamento e refere-se a outros 
casos seus e de colegas. O que ele refere como chantagem, que dá o tom de 
ameaça a esse artifício sobre o tempo, resultaria na retenção de parte do material 
psíquico em prejuízo da outra parte que se tornou acessível, ou seja, provocaria 
mais recalque do que elaboração. 
Freud nos responde com outra pergunta: "Existe essa coisa de um fim 
natural para uma análise — existe alguma possibilidade afinal de levar 
uma análise a tal fim?" E ironiza: "(...) a julgar pela conversa dos analis-
tas parece ser assim, pois ouvimos dizerem com freqüência, quando 
estão deplorando ou desculpando as reconhecidas imperfeições de qual-
quer mortal: 'sua análise não terminou' ou 'ele não foi analisado até o 
fim'." (1937, p. 219). Freud continua argumentando sobre o que quer 
dizer 'o fim de uma análise': 
"De um ponto de vista prático, é fácil responder. Uma análise termina 
quando o analista e o paciente cessam de se encontrar na sessão analíti-
ca". Quando isso acontece? Há duas hipóteses: a primeira é quando o 
paciente não mais sofre de seus sintomas, inibições e angústias; a segun-
da é quando o analista supõe que não se há que temer a repetição de 
processos patológicos, dado que todas as resistências foram trabalhadas 
e que o material recalcado tornou-se consciente e explicado. 
Há, ainda, uma terceira hipótese, um outro sentido para o fim da 
análise, mais ambicioso, que supõe que o analista exerceu uma tal in-
fluência sobre o paciente que esgotou qualquer possibilidade de mudan-
ça que justifique a continuidade da análise, como se fosse possível atingir 
um nível de "absoluta normalidade psíquica", de estabilidade, através do 
preenchimento de todas as lacunas da memória. 
Freud duvida tanto da segunda hipótese — eliminação das resistên-
cias e acesso completo ao recalcado — quanto da terceira — influência 
do analista que esgota a possibilidade de novas construções. Sua dúvida 
não vai no sentido de uma dúvida metódica para chegar a uma certeza 
sobre a cura. É, antes, uma dúvida cética que põe em cheque a própria 
definição dos fatores etiológicos envolvidos no tratamento analítico. As 
neuroses traumáticas teriam um melhor prognóstico, mas o grande obs-
táculo surgiria do que Freud chama de "força dos fatores constitucionais" 
e do grau de "alteração do ego", estando ambos interligados. Adiante 
reformula: 
"E, no entanto, concebível que um reforço da pulsão que surge pos-
teriormente na vida possa produzir os mesmos efeitos. Se assim for, 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível I 155 
deveríamos modificar nossa fórmula e afirmar 'a força das pulsões na-
quele momento' em vez de 'a força constitucional das pulsões '" (p. 224. 
grifado no original). 
Em seu esforço para definir o que está em jogo numa análise, Freud 
altera o item 'fatores constitucionais' em favor de uma reformulação do 
tempo. O acontecimento, em sua dimensão traumática, pode acionar a 
'força das pulsões' de tal modo que já não se trata exclusivamente de 
fatores arcaicos de um passado infantil como desencadeadores da neuro-
se. O fator desencadeador é atualizado no acontecimento. Ou melhor, na 
reativação da força das pulsões a partir do acontecimento. Isto quer dizer 
que não há como garantir e, muito menos, como prevenir uma 'recaída' 
na patologia. Este é o sem-fim da análise. 
Podemos deduzir que a repetição, na via da pulsão, entendida como 
'fator constitucional', c sempre passível de ser atualizada em determina-
do momento. Nesse sentido, a repetição aparece, paradoxalmente, na 
dimensão do imprevisível. É a tique de que fala Lacan. Há o tempo do 
acontecimento que provoca um movimento referido a um tempo anterior, 
por retroação. Este é o tempo da posterioridade, do 'só depois' {Nachträ-
glichkeit). 
Impossível prever ou prevenir. Esse acontecimento pode ser localizá-
vel no fator biológico como puberdade ou menopausa nas mulheres, mas 
pode "surgir de modo irregular por causas acidentais em qualquer outro 
período da vida (...) através de novos traumas, frustrações forçadas, ou 
influência colateral das pulsões uma sobre a outra. O resultado é sempre 
o mesmo e sublinha o irresistível poder do fator quantitativo na causação 
da doença" (p. 226). 
O 'fator quantitativo', no entanto, não é mensurável. Ele varia tam-
bém conforme o modo como o acontecimento é assimilado no interjogo 
das pulsões, com a capacidade de elaboração ou de trabalho do sujeito, 
e com os demais fatores em jogo que constituem o contexto do aconte-
cimento onde não se podem demarcar fronteiras entre o fato e a expe-
riência subjetiva. Seria mais apropriado falar de intensidade ou força em 
vez de quantidade. Freud insiste no 'fator quantitativo' porque sua preo-
cupação se volta para a intensidade relativa da força destrutiva, inercial, 
da pulsão de morte e das ligações promovidas pela pulsão de vida ou 
erótica. No processo de fusão e desfusão das pulsões, qual o quantum 
envolvido de cada parte nesse jogo de forças? Este seria o fator decisivo 
para acelerar ou retardar o fim de uma análise. O que pode fazer o 
analista? 
CAPS_10
Destaque
156 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
A ação do analista está condicionada a um tempo que se desdobra em 
duas dimensões: espera e pressa. As questões de Freud em "Análise 
terminável e interminável" vão nessa direção: Até onde esperar? E pos-
sível apressar a emergência do conflito para erradicá-lo? 
E também por onde Lacan caminha no exemplo do sofisma* para 
formular sua teoria do tempo lógico no conhecido texto "O tempo lógico 
e a asserção da certeza antecipada" (1945). 
Não desenvolvo o argumento de Lacan em sua extensão, mas tomo a 
liberdade de me apropriar dos conceitos formulados no texto sem o 
compromisso de reproduzir seu encadeamento.** 
Proponho uma articulação dos três tempos que constituem o tempo 
lógico — o instante do olhar, o tempo de compreender e o momento de 
concluir— com os fatores de tempo 'espera' e 'pressa' e com o conceito 
de posterioridade ou 'só depois' {Nachträglich ou Nachträglichkeit) para 
definir a concepção de tempo que concerne à psicanálise. Esse tempo 
pode ser pensado num duplo recorte: sincrónico ou transversal (das 
sessões) e diacrónico ou longitudinal (do percurso da análise). 
Para isso, retomo os conceitos de repetição {Wiederholung) e elabo-
ração ou, de preferência, trabalho através da análise {Durcharbeitung) 
como operadores centrais no tempo de uma análise e balizas da ação do 
analista. 
Em um primeiro tempo, temos o instante do olhar que pode corres-
ponder ao que emerge na fala do sujeito, no sentido do Einfall, o dar a 
* Lacan inicia seu texto sobre o tempo lógico (Écrits, pp. 197-213) com um 
conhecido sofisma lógico ao modo de um jogo que procede assim: o diretor de 
uma prisão chama três detentos para submetê-los a um exercício de lógica em 
que o vencedor ganharia em troca sua liberdade somente se a conclusão fosse 
fundada sobre motivos lógicos e não de probabilidade. Ele apresenta cinco 
discos, sendo três brancos e dois pretos, e fixa um sobre as costas de cada detento 
de modo que um veja o disco dos outros dois para poder deduzir a cor do seu. 
Ele escolhe os três discos brancos deixando de fora os pretos. Os três tempos 
lógicos correspondem às etapas do raciocínio desenvolvido ao longo do sofisma. 
** Para um estudo acurado do texto de Lacan sobre o tempo lógico, remeto o leitor 
ao texto de John Forrester "Em cima da hora: a teoria da temporalidade segundo 
Lacan" em Seduções da psicanálise: Freud, Lacan e Derrida; e à dissertação de 
mestrado de Manha Hirsch Gusmão "Olhar, compreender e concluir: uma con-
tribuição à questão do tempo lógico na teoria e na prática psicanalítica", 
PUC/RJ. 
Por uma psicanálise possível | 157 
ver da palavra ou da cena inesperada. Este é um bom sentido para o in 
sight, à vista, exposto e não interior. Prometendo sentido, e não um 
significado. Se há um interior, este está out of sight. A correspondência 
é ao dado imediato. Isto acontece logo no início ou ao longo do percurso, 
de modo intermitente. A rotina das sessões pode evocar o mesmo, mas 
um dado novo pode surgir a qualquer momento. 
Com quantas sessões, ou intervenções em nome da regra fundamental 
se põe uma análise em marcha? Eis um tempo de espera que cabe ao 
analista. Mas não precisa esperar sentado. Caso o sujeito não compareça 
às sessões, há sempre o recurso a um telefonema ou aerograma ou a um 
recado. A espera não pressupõe a indiferença, é antes um convite. 
Uma vez estabelecida a suposição de saber que sustenta o amor que 
cabe ao analisando, há um tempo de compreender que é, ao mesmo 
tempo, o tempo da repetição e o da elaboração. Num vai e vem, o 
analisando repete e elabora, dentro ou fora das sessões, a partir da 
incidência do analista com suas interpretações, seu silêncio e a marcação 
do fim das sessões. Aqui cabe um esclarecimento importante: as sessões 
podem ter duração variável. Essa variação pode se dar em minutos, 
portanto não deve acarretar problemas na burocracia dos ambulatórios 
ou na marcação de horários nos consultórios. É uma variação sutil que 
não deve obedecer a um tempo controlado pelo relógio. É só isso. Esse 
tempo pode ser prolongado numa espera por novas associações, ou en-
curtado na pressa de precipitar uma marcação do inconsciente para de-
sencadear a elaboração. A decisão é do analista. A produção é do anali-
sando. 
A ação do analista provoca uma hesitação. O sujeito hesita, no tempo 
da neurose, porque tem algo a perder. O que tem a perdei ? 
Em princípio, pode perder o que Freud designa como 'ganho secun-
dário do sintoma',* uma das cinco resistências já referidas. Esse ganho 
tem uma função estabilizadora do ego e, portanto, é onde o sintoma dá 
prazer, ainda que a um preço de manter a neurose. Há também a 'visco-
sidade da libido', o masoquismo moral pela via do superego e a força 
destrutiva e inercial da pulsão de morte — estranha dimensão de alteri-
dade do gozo que toma o sujeito. 
O ganho secundário pressupõe que já houve um ganho primário que se deu 
através da 'fuga para a doença' como escolha do sujeito diante do conflito 
insuportável. Ao querer se curar 'dessa escolha', se vê forçado a escolher de 
novo. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
158 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Uma outra definição dessa perda é dada por Lacan como 'perda de 
gozo da fantasia'. Revelar a fantasia, abrir mão de um gozo fixado, deixa 
margem para o vazio da falta. O que virá em seu lugar? Nesse sentido, o 
analista não tem nada a oferecer, a não ser apontar o caminho do desejo. 
Isto é, abrir mão de um gozo pelo qual se paga um preço muito alto. Caso 
contrário, a análise não vale mais a pena. O sujeito não quer saber mais 
disso. Muitas interrupções se dão neste momento. O analista deve con-
trabalançar a pressa com a espera para não incidir precocemente sobre 
algo do qual o sujeito não pode ou não quer abrir mão. 
Na psicose, o esforço de elaboração pelo delírio deve ser considerado 
diferentemente da resistência pela manutenção do gozo no caso do neu-
rótico. Pelo trabalho do delírio, o psicótico tenta se livrar do peso mas-
sacrante do gozo do Outro — o perseguidor, na paranóia, a sombra do 
objeto, na melancolia, para citar os mais típicos. A relação do psicótico 
com o tempo não é marcada pela divisão. Neste sentido, ele não hesita. 
Na análise do neurótico, a hesitação faz parte do percurso. Lacan a 
insere num tempo crucial que decide sobre o destino do sujeito. Ele 
hesita justamente quando precipitou sua ação para se salvar. E, se hesitar 
um pouco mais, perde a vez. A escolha é sempre forçada. Podemos supor 
que a certeza antecipada, que corresponde ao momento de concluir, 
vacila em nome da manutenção daquilo que faz o sujeito gozar. Ou 
melhor, nos termos de Lacan, do que faz o Outro gozar. Na neurose, o 
sujeito é dividido em relação à consistência do Outro. Na psicose, essa 
consistência é uma certeza. Esse Outro pode se apresentar na figura de 
um marido ou de uma esposa, das mulheres ou dos homens, de um filho, 
de um pai-patrão ou de uma mãe-patroa-madrasta, do trabalho 'escravo' 
etc. Ou seja, esse Outro se insere no campo das relações sociais, do sexo 
ao trabalho e impõe seu gozo pela via do superego. 
O tempo de compreender não deve ser assimilado à idéia de um 
raciocínio consciente referido a uma lógica formal abstrata. Se o identi-
ficamos à elaboração, pressupomos um trabalho que se dá também pela 
via da repetição como trabalho incessante do inconsciente desencadeado 
pelo analista. A elaboração procede tanto no pensar quanto no agir ao 
longo da análise. Se pensar não é agir, também não temos como distin-
gui-los senão pela palavra do sujeito que tanto pode nos comunicar o 
que, no senso comum, se chama uma idéia, quanto uma decisão já 
tomada da qual não tínhamos qualquer notícia. O agir do sujeito não nos 
é acessível diretamente, a não ser quando tomamos conhecimento dele 
através dessas comunicações. Quantas vezes não ouvimos frases como 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível I 159 
"finalmente pedi minha noiva em casamento" ou "pedi demissão do 
emprego" ou "fui procurar emprego" ou "me separei de meu marido/mi-
nha mulher" ou "me matriculei em um curso profissionalizante/univer-
sitário" ou "trouxe meu filho de volta", etc. O analista, atônito, muitas 
vezes não sabe como definir este ato do analisando. Ou bem é efeito da 
elaboração, sobre a qual o sujeito pode ter pouco ou nada a dizer, ou bem 
é a repetição que remete ao mesmo e, portanto, todo o esforço do analista 
caiu por terra. 
Acontece que esta pode ser uma falsa questão. E preciso esperar, não 
na esperança, mas na expectativa vazia de aguardar as próximas produ-
ções do analisando. A elaboração não é um processo evolutivo para a 
solução final, adequada, esperada. Porum lado, é incessante como o 
trabalho do inconsciente, um trabalho invisível que guarda seu parentes-
co com a repetição. Por outro, é visível como conseqüência do trabalho 
através da análise, com tantas sessões e tantas palavras, em que o analista 
fez a sua parte sem saber com clareza que efeitos provocou. Numa 
análise, não se sabe claramente sobre seus efeitos, a não ser por aproxi-
mação. 
Do lado do analista, a construção do caso se dá ao fim do percurso, 
ou por indícios sobre os quais trabalha durante o percurso para corrigir 
o rumo do tratamento. Do lado do analisando, uma análise é fadada ao 
esquecimento. 
O tempo que concerne aos efeitos é o 'só depois', Nachträglich. 
Devemos a Lacan o mérito de ter recuperado em Freud sua importância 
fundamental como o tempo que define a causação psíquica. Do trauma 
ao sintoma como retorno do recalcado, há uma retroação, ou seja, o 
acontecimento num tempo anterior só porta sentido num tempo posterior 
de um segundo acontecimento. Toda a perspectiva desenvolvimentista 
que permanece atuante na psicanálise supondo um determinismo linear 
da ação do passado sobre o presente cai por terra. Conseqüentemente, as 
concepções de realidade psíquica inconsciente, regressão, transferência, 
tratamento e cura se alteram significativamente. 
Lacan, no Seminário I — Os escritos técnicos de Freud, que inaugura 
seu ensino, já insiste em apontar a diferença. Reproduzo alguns trechos 
da aula de 7 de abril de 1954: 
"O passado e o porvir precisamente se correspondem. E não em um 
sentido qualquer — não no sentido que vocês poderiam crer que a análise 
indica, a saber, do passado ao porvir [l'avenir]. Ao contrário, na análise, 
justamente porque a técnica é eficaz, isso caminha na boa ordem — do 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
160 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
porvir ao passado. Vocês poderiam crer que estão buscando o passado do 
doente no lixo, quando, ao contrário, é em função do fato que o doente 
tem um porvir [avenir] que vocês podem ir no sentido regressivo. (...) 
"Por um lado, o inconsciente é algo de negativo, de idealmente ina-
cessível. Por outro lado, é algo de quase real. Enfim, é algo que será 
realizado no simbólico ou, mais exatamente, que, graças ao progresso 
simbólico na análise, terá sido. 
"(...) E então, como explicar o retorno do recalcado? Por mais para-
doxal que seja, só há uma maneira de fazê-lo — isso não vem do 
passado, mas do porvir.(...) 
"O sintoma de início se apresenta a nós como um traço, que nunca 
será mais do que um traço, e que permanecerá sempre incompreendido 
até que a análise tenha ido longe o bastante, e que nós lhe tenhamos 
realizado o sentido. Pode-se dizer também que, assim como a Verdrän-
gung não é nunca senão uma Nachdrängung, o que vemos sob o retorno 
do recalcado é o sinal apagado de alguma coisa que só tomará seu valor 
no futuro [futur], por sua realização simbólica, sua integração na história 
do sujeito. Literalmente, isso nunca será mais do que algo que, num dado 
momento de realização terá sido" (1975, pp. 180-2). 
Uma análise começa na direção de um porvir, um 'daqui por diante' 
sobre o que virá daquilo que já foi e, ao final, terá sido. A cada sessão e 
ao longo do percurso, da intervenção do analista à resposta do analisan-
do, há o tempo do 'só depois'. A resposta do analisando não vem quando 
ou do modo que é esperada. Como educadores, sempre nos decepciona-
mos. A recíproca é mais do que verdadeira. O analista, por sua vez, só 
pode operar nesse inesperado onde se situa sua ação. Se não puder 
suportar isso, não avançará no caminho. 
Qual o caminho, se nunca sabemos onde vamos chegar? E preciso 
propor um norte para o analista. 
Chegamos ao ponto mais controvertido da psicanálise: a definição de 
cura. Podemos mesmo dizer que esta não é uma boa palavra pois, de 
imediato, nos remete ao modelo médico. Não que na medicina não haja 
sérios problemas quanto à cura das doenças ou mesmo quanto à própria 
definição de cura. O problema do prognóstico nos processos patológicos 
é o melhor exemplo. Para o médico também o desaparecimento dos 
sintomas estaria longe de significar a erradicação da doença. E, em 
muitos casos, não há como garantir que não haverá uma recidiva. 
Todas essas preocupações também foram as de Freud sobre o que 
determinaria o fim de uma análise. A questão crucial é 'de que o sujeito 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível I 161 
se cura afinal?' No rastro da medicina, teríamos que perguntar antes 
'qual é a sua doença?' Talvez possamos transformar esta pergunta em 
outra: 'do que o sujeito padece?' 
Se respondemos que 'ele padece dos acontecimentos da vida com 
uma intensidade incapacitante', concluímos que 'capacitá-lo para en-
frentar a vida' já seria satisfatório. E esta não deixa de ser uma solução 
prática considerada tanto por Freud quanto por Lacan. 
Em "Análise terminável e interminável", Freud toma duas posições 
sobre o que pode significar 'ser analisado'. 
A primeira refere-se a "assegurar as melhores condições psicológicas 
possíveis para as funções do ego" (p. 250). O sujeito analisado não está 
livre de paixões ou de conflitos, mas pode melhor dispor da 'força' das 
pulsões a seu serviço. A segunda é mais ambiciosa e reivindica para a 
psicanálise a instauração de "um estado que nunca surge espontanea-
mente no ego, e cuja criação constitui a diferença essencial entre uma 
pessoa que foi analisada e outra que não foi" (p. 227). 
Lacan, em suas "Conferences et entretiens dans des universités nord-
américaines" (1976), imbuído de um certo pragmatismo, declara: "Não 
penso que possamos dizer que os neuróticos sejam doentes mentais. Os 
neuróticos são o que a maioria é. Felizmente, não são psicóticos. O que 
é chamado um sintoma neurótico é simplesmente algo que os permite 
viver. Eles vivem uma vida difícil e nós tentamos aliviar seu desconforto. 
As vezes lhes transmitimos o sentimento de que são normais. Graças a 
Deus, não os tornamos tão normais a ponto de acabarem psicóticos." 
E, ainda: "Uma análise não deve ser levada muito longe. Quando o 
analisando pensa que está feliz em viver, é o bastante" (p. 15). 
Dada toda a complexidade do jogo de forças das pulsões, da qualida-
de traumática dos acontecimentos para o neurótico, da dificuldade de se 
abrir mão de um gozo que estranhamente causa sofrimento ou desprazer 
e do tempo necessário para se obter alguma mudança, podemos dizer que 
o fim de uma análise só pode ser 'satisfatório' se tomamos esta palavra 
no sentido de 'o bastante'. Em francês, c'est assez ern inglês, that's 
enough têm o duplo sentido de 'bastante' como suficiente, e 'basta' como 
fim. 
Neste ponto, o sujeito é quem dá o 'basta', precipitando sua saída 
numa certeza antecipada cuja hesitação não pode se prolongar. É o 
momento de concluir. Ao analista cabe levar o analisando a este ponto e 
ratificar seu ato, para desfazer o tempo da hesitação que, em última 
instância, é um pedido de reconhecimento. 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
162 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
Sabemos que isso toma tempo. E o tempo de cada um é sempre uma 
incógnita. Não é um tempo imanente, é variável. Depende tanto da 
participação do analista quanto do que, no percurso de uma análise, se 
alterna entre destino e acaso. 
Podemos propor como um norte para o analista, para levar a análise 
a seu fim — no duplo sentido de finalidade e final — deslocar a dimen-
são aprisionante do destino, entendido como 'destino selado', para a 
dimensão de uma separação, para um 'destino em aberto'. Ao abrir esta 
possibilidade, o analista sustenta um rumo diferente para o que antes 
estava 'selado' . Contudo, sabe que sempre resta algo que marca esse 
destino. 
O destino selado vem dar lugar ao destino em aberto ao fazer o sujeito 
mudar sua posiçãoem relação à fantasia que sustenta seu sintoma. Esta 
fantasia se descortina ao modo de uma construção, como sedimentação 
do saber que foi produzido no percurso. E o trabalho que o analisando 
faz sobre o que se constrói a partir da repetição vem alterar algo do gozo 
inicial que fixava um 'destino selado'. Contudo, era justo este destino 
que garantia alguma coisa para o sujeito. 
De certo modo, a cura numa análise desengana o sujeito até onde ele 
suporta ser desenganado. Ao contrário do uso corrente do termo, o 
sujeito é desenganado para viver. E preciso que se desengane em relação 
ao analista, que se separe dele. Esta separação está posta desde o começo 
de uma análise através do trabalho do analista no manejo da transferên-
cia. Todo o processo se dá visando a este fim. A separação do analista 
corresponde à destituição do 'sujeito suposto saber', a um esvaziamento 
da demanda de saber, como demanda de amor e reconhecimento. 
Trocar o certo pelo duvidoso, oferecer-se à vida sem garantias, não 
mais acreditar na consistência do Outro que fixa um gozo, já é um bom 
preço a pagar. E o sujeito só paga porque sofre desse gozo e pede outra 
coisa. Cabe ao analista saber disto, a partir de sua própria análise, para 
que não se engane sobre o que está realmente oferecendo ao sujeito 
quando o recebe pela primeira vez em sua clínica. 
1.4 Sobre o desejo do analista 
Chegamos à última condição que decide sobre o que deve fazer um 
analista para suportar sua oferta. A questão é: o que o faz tornar-se 
analista? Ou, ainda, o que quer um analista? 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível I 163 
Segundo Freud, não é a normalidade, já que é ele próprio quem diz: 
"É indiscutível que os analistas (...) não chegaram invariavelmente ao 
padrão de normalidade para o qual desejam educar seus pacientes." E 
acrescenta: "Os analistas são pessoas que aprenderam a praticar uma arte 
singular; paralelo a isso, devem se permitir ser seres humanos como 
quaisquer outros" (1937a, p. 247). 
Essa arte singular não se aprende só na escola. A primeira lição é a 
própria análise do analista. Sem me estender na discussão da análise 
didática, o que nela está em jogo é um sintoma específico que é o desejo 
de ser analista. Este sintoma pode mesmo ter efeitos prejudiciais para o 
bom andamento da análise, dependendo dos compromissos que o 'futuro 
analista' estabelece com seu analista, produzindo mais recalque. 
Para Freud, a condição necessária mas não suficiente para se tornar 
analista é que o analisando deve obter a "firme convicção da existência 
do inconsciente para perceber em si próprio o que de outro modo seria 
inacreditável" (1937a, p. 248). Este seria o estado a que Freud se refere 
no mesmo texto como o que "nunca surge espontaneamente no ego e 
constitui a diferença essencial". 
Devemos, então, entender essa diferença como a experiência do in-
consciente. Não como algo inefável ou místico, e sim como a experiência 
do trabalho analítico em sua especificidade enquanto produção de algo 
novo na vida do sujeito. Esta experiência pode estar incompleta mas tem 
que deixar marcada sua qualidade. 
O que Lacan nomeia como o desejo do analista é, sobretudo, um 
efeito da análise. Até onde se foi na própria análise determina a possibi-
lidade e o limite de fazer operar o dispositivo que constitui o trabalho 
analítico a partir do desejo do analista. Fora isso, estamos no campo da 
demanda sob o domínio, ao mesmo tempo fascinante e inibidor, do ideal 
sintomatizado no desejo de ser analista. 
Resta a pergunta: O que diferencia o desejo de ser analista — que não 
se esgota na análise — do desejo do analista, que sustenta a análise? 
Ainda no Seminário 11, Lacan nos orienta: "Não há apenas o que o 
analista pretende, no caso, fazer de seu paciente. Há também o que o 
analista pretende que seu paciente faça dele" (1973, p. 145). Esta indica-
ção é fundamental. Lacan, irônico, procede citando os exemplos de 
Abraham, que queria ser "uma mãe completa", e de Ferenczi, uma 
espécie de "filho-pai". Já Nünberg se apresentaria como um "árbitro dos 
poderes de vida e morte onde não se pode deixar de ver a aspiração a 
uma posição divina". Podemos acrescentar Winnicott com seus pendores 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
164 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 
a ser uma mãe suficientemente boa. E, ainda, os psicólogos do ego como 
representantes da realidade à qual o ego aspira. 
E Freud? Seu desejo era a própria causa psicanalítica que engendrava, 
e através da qual se fez analisar, tomando como exemplo seus próprios 
sonhos, seus sintomas e sua questão sobre a mulher provocada pelo 
enigma que lhe lançavam suas histéricas.* 
Todo o esforço de Lacan vai na direção de desconstruir a idéia de que 
existem dois desejos, ou dois sujeitos. Na psicanálise, o único sujeito em 
questão é o analisando como o sujeito do inconsciente. Entretanto, o 
próprio conceito de 'sujeito suposto saber' , ainda que diferenciado da 
pessoa do analista, pode dar a idéia de que sejam duas qualidades distin-
tas de sujeito. Não é bem assim. O 'sujeito suposto saber' é, antes de 
tudo, um operador da significação, ao ser 'suposto' pelo analisando na 
via da transferência. O trabalho de construção de um saber na análise se 
torna possível. 
O problema é que, de saber em saber, a análise se torna infindável e 
pode se prolongar numa espécie de idílio amoroso onde a paixão pela 
ignorância se alimenta de um querer saber sempre mais sobre o saber do 
analista. O desejo do analista, portanto, não deve se situar exclusivamen-
te na direção da busca de saber. O amor à verdade não é o amor ao saber. 
Deve, antes, sustentar uma disjunção entre verdade e saber. Se uma 
análise bastasse pelo saber, Freud não teria ido tão longe na sua teoria 
das pulsões nem teria escrito "Análise terminável e interminável". 
A relação do saber com a verdade em psicanálise tem uma particula-
ridade. A verdade que se produz pelo saber não é a verdade bem enten-
dida, esclarecida e sistematizada no conhecimento. Sua produção se dá 
antes pelo erro como lapso, pela suspensão de um dito, pela idéia ou cena 
Nessa relação peculiar de Freud com suas pacientes histéricas, que o guiavam 
na invenção da psicanálise dizendo o que ele tinha que fazer para tratá-las, o 
desejo de Freud se dirige ao enigma da mulher, que ele sustenta, identificado à 
posição histérica, com a pergunta: "o que quer a mulher?" Seu desejo foi na 
direção da psicanálise que iria defender e transmitir até a sua morte. Isto o leva 
em direção ao limite do analisável que formulou como a "recusa da feminilida-
de". Até onde Freud foi o pai impotente ou acolhedor, o austero cientista, ou o 
sedutor-seduzido? Remeto o leitor aos trabalhos de John Forrester (op.cit, parte I 
— "A tentação de Sigmund Freud", que dá uma visão interessante da complexa 
rede de relações de Freud com as mulheres, pacientes ou não), e de Serge André, 
O que quer uma mulher? (que faz uma análise dessa questão a partir da ótica 
lacaniana). 
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
CAPS_10
Destaque
Por uma psicanálise possível I 165 
que irrompe na fala, enfim, pelo que se repete. Essa experiência da 
verdade o sujeito só pode ter na análise, porque lá está o analista para 
apontá-la. A verdade se atrela ao saber pela significação produzida no 
contexto da fala. Lacan a concebe em relação ao saber como não-toda, 
meio-dita. 
Em suma, o desejo do analista não é o desejo de um sujeito, não se 
reduz à pulsão de saber, não é uma forma de gozo masoquista — o 
analista gozando de ser objeto — nem gozo sádico — o analista gozando 
de seu poder. Ou seja, não é uma modalidade da pulsão.* 
Ao final do Seminário 77, Lacan lança uma fórmula enigmática e 
instigante. Em suas palavras: 
"O desejo do analista não é um desejo puro. E um desejo de obter a 
diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado ao signifi-
cante

Mais conteúdos dessa disciplina