Prévia do material em texto
PLANO DE ENSINO
CURSO: Psicologia
SERIE: 7°Semestre
DISCIPLINA: Psicopatologia Geral
CARGA HORARIA SEMANAL: 3 horas/aula
CARGA HORARIA SEMESTRAL: 60 horas
I - EMENTA
ConcepcOes historicas e epistemologicas do adoecimento psiquico e das
consequentes formas de tratamento. Conteudos basicos de Psicopatologia
Descritiva. A Psicopatologia Psicanalitica como arcabouco teorico para o
entendimento do funcionamento psiquico. Mudancas ocorridas no sistema de
saUde nos Oltimos anos — o movimento pela Reforma Psiquiatrica no Brasil. 0
processo de insergao social dos portadores de sofrimento psiquico intenso.
II - OBJETIVOS GERAIS
Compreensao dos pressupostos epistemologicos relativos as diferentes
perspectivas em relacao ao conceito de normal e de patologico na Psicologia e na
Psiquiatria.
Compreensao da 16gica do diagn6stico em Psiquiatria atraves do conhecimento da
Psicopatologia Descritiva.
Realizacao do exame psiquico.
Conhecimento das possibilidades de tratamento na clinica da psicose. 0
tratamento psicologico, o tratamento psiquiatrico e os psicofarmacos.
Compreensao dos modos de adoecimento psiquico, atraves da perspectiva
psicanalitica, que os configura como formas singulares de subjetivacao, nos
contextos politico, etico, social, econOmico e cultural.
III - OBJETIVOS ESPECiFICOS
Tal competencia sera desenvolvida a partir das seguintes habilidades:
Demonstrar capacidade de observagao frente ao adoecimento psiquico.
Localizar as dificuldades e/ou facilidades presentes no contato corn o
individuo portador de sofrimento psiquico.
Questionar as pre-concepceies sobre a loucura.
Conhecer os fundamentos basicos da Psicopatologia Descritiva e da
Psicopatologia Psicanalitica.
1
Analisar os diferentes equipamentos de atendimento aos usuarios dos
servigos de saUde mental.
Compreender o novo modelo de insergao do trabalho do psicologo nas
instituigOes de atendimento aos usuarios dos servigos de sat:1de mental.
IV - CONTEUDO PROGRAMATICO
TEORICO
ConsideragOes sobre o campo da doenga mental. 0 conceito de loucura: Origem,
concepgao mitica, concepgao cientifica.
Introdugao ao conceito de Psicopatologia.
Compreensao dos pressupostos epistemologicos relativos as diferentes
perspectivas em relagao ao conceito de normal e patologico, na Psicologia e na
Psiquiatria.
Psicopatologia Descritiva. 0 exame psiquico.
Psicopatologia Psicanalitica.
Psicopatologia Geral e Psicopatologia Psicanalitica.
0 diagnostic° estrutural: Neurose e Psicose.
PRATICO
Declaragao de Caracas, 1990.
Presidencia da Republica. Casa Civil. Lei no. 10.216 de 06/04/2001 que dispoe
sobre a protegao e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em sailde mental.
0 movimento pela reforma psiquiatrica no Brasil.
Reabilitagao Psicossocial no Brasil.
As oficinas terapeuticas.
A clinica e o acompanhamento terapeutico.
Tratamentos em Saude Mental.
V - ESTRATEGIA DE TRABALHO
Propiciar ao aluno o contato direto corn os usuarios dos equipamentos de Saude
Mental que compaem a rede de atendimento no Brasil. 0 contato com os usuarios
sera acompanhado por professores e monitores.
Ate a 6a semana, o cronograma das aulas teoricas se articula corn o cronograma
das aulas praticas em 4 horas. A partir da 7a semana as aulas teoricas sao de
2horas, realizadas no campus, e as aulas praticas (2 horas) realizam-se nos
equipamentos de Saude Mental.
Fornecer substrato teOrico atraves das aulas teoricas para reconhecimento das
patologias. Utilizar recursos diversos — textos, filmes, contos, acontecimentos
atuais para ampliar e integrar conceitos.
Correlacionar teoria/pratica.
Desenvolver projetos de oficina terapeutica junto aos usuarios.
Funcoes psiquicas compostas
e suas alteracoes: consciencia
e valoracao do eu, esquema
corporal e identidade 21
PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOWA UUS l HANSTORNOS hl ENT.11N l J 1
It
prio eu. corporal e psiquico, a carencia da cons-
(Is tres capitulos seguintes dizem respeito as
func5es psiquicas, que, mais do que as an-
teriormente estudadas, resultam de um comple-
xo, de urn somatorio de atividades e capacida-
des mentais. 0 desenvolvimento estrutural de
tais funeties compostas, ocorrendo de forma
mais ou menos harmonica, resulta na conscien-
cia e na valoragao do eu, no sentimento de iden-
tidade, na inteligencia e na personalidade.
Assim. por exemplo, a inteligencia nao pode
ser compreendida como uma fungao psiquica ele-
mentar, ja que ela inclui o conjunto de habilida-
des, dotes e capacidades cognitivas de urn indivi-
duo. Da mesma forma, a personalidade 6, por de-
finigao, o somat6rio das caracteristicas psicologi-
cas individuais. dos =cos de carater, relativamente
estaveis no tempo e formados ao longo do desen-
volvimento mental e fisico do individuo.
CONSCIENCIA E VALORACAO
DO EU E SUAS ALTERAOES
DEFINIOES BASICAS
Origem e desenvolvimento
do eu (ontogenia do eu)
A maior parte dos autores acredita que no
inicio do desenvolvimento psiquico da crianca
nao ha discriminagao e delimitacao claras; en-
tre o eu e o mundo exterior; o eu do bebe esta-
ria como que "fundido” corn o de sua mae. Os
dois pianos da realidade, interno e extern°. con-
fundem-se na mesma vivencia. Nao ha. portan-
to. diferenciacao entre o eu e o nao-eu. Tal di-
ferenciagao vai sendo construida ao longo do
primeiro ano de vida. No final desse period°, a
crianca torna-se apta a perceber e a representar
objetos autOnomos e estaveis em sua mente.
Do ponto de vista psicanalitico. o eu (ou ego)
surge como uma diferenciacao adaptativa do
aparelho psiquico, a partir do contato da crian-
ca corn a realidade. A crianca formara gradati-
vamente o seu eu por meio:
Do contato CO111111110 can a realidade e
consequence submissao as suas vicissitudes
(principio de realidade). Para Jaspers, a reali-
dade é aquilo que oferece resistencia ao indivi-
duo, opondo-se aos seus desejos, possibilitan-
do que urn mundo externo e objetivo seja reco-
nhecido corn o tempo.
Do investimetzto amoroso e narcisico dos
pais sobre a crianca.
Daprojectio dos desejos inconscientes dos
pais sobre a crianca e conseqUente assimilacao
desses desejos pela propria crianca.
Das identifica0es da propria crianca, via
mecanismos conscientes e inconscientes de in-
trojecao, no relacionamento corn as figuras pa-
rentais primarias. Dessa forma, os "pais psico-
logicos" sao tornados como modelos de identi-
ficacao e assim introjetados. assimilados a per-
sonalidade da crianca. A crianca busca ser como
o pai e a mae, copia-los, agir e sentir como eles.
A nogdo de que algo existe "fora" (o exter-
no a crianca) marcara o instante de singular sig-
nificacao para a formacao do que se entende
por "consciencia do eu". Surge o sentimento de
oposicao entre o eu e o mundo, constituindo-se
progressivamente as dimensoes subjetiva e ob-
jetiva da experiencia humana.
A consciencia do eu pressupOe a tomada de
consciencia do proprio corpo, do "eu fisico". A
esse eu corporal, psiquico e somatic° a urn so
tempo, a psicologia moderna denominou esque-
ma on imagem corporal (Schilder, Ajuriaguer-
ra, Hecaen).
Se a consciencia do eu abrange tambem o
corpo, entao nela se entrelacam o psiquico e o
somatic° (o ego para Freud e, antes de tudo,
urn ego corporal). Portanto, por exemplo, na
chamada despersonalizagao ocorrem alteragOes
canto do eu psiquico quanto do corporal.
CARACTERISTICAS DO EU
SEGUNDO JASPERS
Consciencia de atividade do eu.
Consciencia de unidade do eu.
Consciencia da identidade do eu no tempo.
Consciencia de oposicao do eu em rela-
cao ao mundo.
ciencia do fazer proprio, o distanciamento Jo
mundo perceptive, a perda da consciencia do
sentimento do eu. Para Jaspers, o curioso deste
fenomeno é a condicaona qual o homem exis-
tindo ja niio poder sentir a sua existencia.
Os doentes relatam que se sentem modifica-
dos, estranhos a si mesmos. "Eu sou apenas t una
maquina, um automato". "Ezt me sinto come
urn nada, como um morto".
CONSCIENCIA DE ATIVIDADE DO EU
E a consciencia intima de que em todas as
atividades psiquicas que ocorrem é o proprio
eu que as realiza e presencia. No individuo nor-
mal, tudo o que o eu faz a vivenciado como per-
tencente a esse eu. 0 "en penso, sinto, desejo,
etc." acompanha todas as percepgOes, represen-
tacoes, pensamentos. Jaspers chama de perso-
nalizaciio ao fenOmeno no qual em todas as ati-
vidades psiquicas, sejam elas percepgaes, sen-
sacoes corporaii,, lembrangas, representacoes,
pensamentos, sentimentos, ha urn tom especial
de "meu", de "pessoal", daquilo que é feito e
vivenciado por mim mesmo.
Jaspers subdivide as alteragOes da conscien-
cia de atividade do eu em dois grupos; altera-
goes da consciencia da existencia e alteracOes
da consciencia de execuedo.
ALTER/WAD DA CONSCIENCIA DA
EXISTENCIA
E a suspensao da sensacao normal do pro
ALTERAcA0 DA CONSCIENCIA
DE EXECUcA0
Na naturalidade da agao diaria nao se nota
quao essential é a unidade da vivencia de exc-
cued°. E, para cada sujeito, evidence que, quan-
do se pensa, se sente e se deseja, é o eu prOprio
que o faz. Na alteragao da consciencia de exc-
elled°, o doente, ao pensar ou desejar alguma
coisa, sente, porem, que de fato foi um outro
que pensou ou desejou tais pensamentos ou de-
sejos e lhos imp& de alguma maneira.
Nao apenas deixa de sentir-se senhor de seus
pensamentos, como passa a sentir-se possuido
por urn poder estranho, externo e inapreensi-
vel. Os pensamentos podem ser vivenciados
como feitos e impostos por alguenz ou algo ex-
terno ao paciente, ou como roubados, extrai-
dos, arrancados do paciente. 0 doente nao R.)
nao se sente mais senhor de seus pensamentos,
como passa a viver sob a violencia e julgo de
urn poder desconhecido (pensamentos feitos,
pensamentos inzpostos, roubo do pensamento,
segundo K. Schneider).
A sensacao de "alga feito" por uma forgo
externa pode abarcar todos os tipos de ativida-
de psiquica, nao apenas o pensamento, mas tam-
bem o falar, o fazer, o caminhar, o querer, os
impulsos (inclusive sexuais). Os doentes pas-
sam a sentir-se inibidos ou contidos, mas nao
por algo interno e sim por alguma coisa exter-
na, totalmente desconhecida.
CONSCIENCIA DE UNIDADE DO EU
A cada momenta o eu a sentido como algo
uno e indivisivel. Esta a uma qualidade da vi-
vencia do eu sentida como natural e esponta-
PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOGIA Dos I KAna I kitiNVZI
152 PAULO DALGALAttor4D0
nea. Na alteracao da unidade do eu nao se trata
de dissociacao da personalidade ou expressOes
metaforicas referidas como "moron! em mein
peita duns almas" ou "razcio e sentimento se
acham em luta no met! interior", etc. Nao se trata
de tomar consciencia de conflitos ou aspectos mul-
tifacetados da propria personalidade. 0 que esti
em jogo é algo mais radical e decisivo.
A vivencia radical de cisao do eu so existe,
segundo Jaspers, quando ambas as series de pro-
cessos anfmicos desenvolvem-se de forma ab-
solutamente simultanea, uma ao lado da outra.
De ambos os lados existem conjuntos de senti-
mentos que se ()poem como estranhos. 0 indi-
viduo sente-se radicalmente dividido, sente-se
anjo e dem6nio ao mesmo tempo, ou homem e
mulher simultaneamente. Corresponde ao que
Bleuler denominava ambivalencia.
CONSCIENCIA DA IDENTIDADE
DO EU NO TEMPO
E a consciencia de ser o mesmo na sucessao
do tempo. Mudam aspectos de nossa personali-
dade, mas o nosso eu nuclear é vivenciado como
mesmo ao longo do tempo. Alguns pacientes
relatam que atualmente. em comparacao a sua
vida anterior (principalmente "antes do infcio
da psicose"), nao sao a mesma pessoa. "Ao des-
crever a minim historia, tenho consciencia de
que apenas tuna parte do men en atual viven-
ciou tudo isso que aconteceu no passado", "0
eu de entao parece-me unt atzeio dentro de mint".
Alguns doentes chegam a usar a terceira pessoa
para se referirem ao seu eu do passado.
CONSCIENCIA DE OPOSICAO DO EU
EM RELAcii0 AO MUNDO
E a consciencia da clara oposicao do eu ao
mundo externo, a percepcao evidence da sepa-
raga° entre o eu subjetivo e o espaco exterior.
A alteracao dessa dimensao da consciencia
do eu é a perda da sensacao de oposicao e fron-
teira entre o eu e o mundo. Os pacientes identi-
ficam-se completamente corn os objetivos do
mundo externo. 0 individuo sente que sett en
se expande porn a 'nuncio exterior e ran mais
DESPERSONALIZACAO
E DESREALIZA0,0
A despersonalizaglio é o sentimento de per-
da ou de transformacao do eu. Para Lopez Ibor,
6 um transtorno da atividade do eu. Hi a perda
da relacao empatica basica, da familiaridade ine-
quivoca do eu consigo mesmo. E uma vivencia
profunda de estranhamento e infamiliaridade
consigo mesmo. 0 doente sente-se estranho a si
mesmo, vive uma marcante transformacao, corn
sentimentos angustiosos de profunda perplexi-
dade. Tern frequentemente a sensacao de que
vai enlouquecer, perder o controle. A desperso-
nalizacao abarca canto o eu psfquico quanto 0
ALTERACOES DO EU CORPORAL
(ALTERAOES DO ESQUEMA
CORPORAL)
DEFINIcOES BASICAS
Define-se a imagem corporal ou o esquema
corporal como a rvresentagao que cada indivi-
duo faz de seu pr6prio corpo. Essa percepcao
do pr6prio corpo a construfda e organizada tan-
to pelos sentidos corporais externos e internos
quanto pelas representacoes mentais referentes
ao corpo fornecidas pela cultura e pela historia
individual de cada sujeito (para uma revisao
sobre a psicopatologia do esquema corporal, ver
Lopez-Ibor e Lopes-Ibor Aline', 1974; Rix e
Snaith. 1988).
0 psicopat6logo espanhol Carmelo Mone-
dero (1973) afirma que o corpo a um objeto
peculiar: percebe e e percebido: objeto por de-
mais importance para o ser humano, pois "o
homent no mundo é um corpo lidando con: as
corpo a
essencial da experiencia corporal refere-se a re-
lacao do corpo sexuado do eu corn os corpos
sexuados dos outros.
0 corpo a urn dos principals palcos de nos-
sas vidas. Lugar de dor, de prazer, de preocupa-
cao, de medo e desejo. Assim Drummond fala
destas dimensoes da experiencia corporal:
Clara que o corpo nao e feito s6 para sofrer;
Mas para sofrer e gozar
Na inocencia do sofrintento
como na inocencia do gozo,
corpo se realiza, vulnercivel
e solene.
Que o corpo, sadio ou doente, ocupa urn Lu-
gar central na medicina a algo indiscutfvel. En-
tretanto, cabe lembrar que nao apenas o corpo
real, mas a relac5o do individuo corn seu corpo.
sua forma de percebe-lo. de corn ele se relacio-
nar. cuidando-o ou destratando-o. amando-o ou
odiando-o, é tambem um porno crucial para a
pratica medico. Plata° afirma. em seu precioso
se diferencia deste. A ausencia do sentimento
de oposicao do eu ao mundo exterior 6 o que
leva os enfermos a buscarem identificacoes em
objetos ou coisas do mundo inanimado. Proje-
tam macicamente (na escola kleiniana identifi-
cacOes projetivas macicas) seus estados subje-
tivos no proximo, transladando-se para um eu
alheio ou para o corpo de urn animal, E a expe-
riencia de sentir-se transformado em urn ani-
mal, denominada tratzsitivismo ou licantropia.
A vivencia de publicaccio do pensamento,
que pacientes esquizofrenicos experimentam,
relatada de varias maneiras: "Setts pensamen-
tos se extravasam", "fazem-se conhecidos de
Coda a gente", sao como que "publicados" (pu-
blicacao do pensamento, difusao do pensamen-
to. de Kurt Schneider). A publicacao do pensa-
mento muitas vezes vem associada a vivencias
de sonorizaccio do pensamento (o individuo tem
a experiencia de "ouvir" os proprios pensamen-
tos,no exato momento em que os persa e ao
eco do pensamento (fenomeno no qual urn pen-
samento original a percebido de forma repeti-
da, segundos ape's haver lido pensado por pri-
meira vez, como se fosse urn eco).
Ocorre, assim, a queda da barreira divisoria
fundamental entre o eu e o nao-eu. A perda da
consciencia de oposicao entre o eu e o mundo
pode ocorrer nas psicoses (mais comumente na
esquizofrenia), nas intoxicacOes por drogas
(principalmente alucinogenos), em fenomenos
culturais como o extase religioso, estados de
trance, possessao, meditacao profunda, etc.
eu corporal. Na despersonalizaceio corporal
ha uma sensacao intensa de estranhamento e
perda da familiaridade do individuo corn o seu
proprio corpo.
Comumente associada a despersonalizacao,
pode ocorrer a desrealizaceio, que e a transfor-
magao e a perda da relaccio de familiaridade corn
mundo commit, no sentido de uma relacao de
profunda estranheza daquilo que no dia-a-dia é
comum e familiar. 0 doente refere que o mundo,
antes familiar, "caseiro", esti estranho, muda-
do. As pessoas e os lugares parecem estranhos,
os sons sao percebidos corn urn timbre novo, as
cores tern caracterfsticas diferentes. Geralmen-
te tanto a despersonalizacao quanto a desreali-
zacao sao vivenciadas corn muita angastia.
Segundo Nobre de Melo (1979), o desperso-
nalizado seria. entao, nada mais que "o homem
que pealett a seguranga de tuna relaccio familiar
corn o !mind°, condenado, assim, ao frto de tuna
terra estranha, de tun pais descotzhecido".
Nao a infreqUente a ocorrencia de desperso-
nalizacao e de desrealizacao nas crises intensas
de ansiedade, nas crises de panico, nas psicoses
toxicas por alucinogenos, nos episodios agudos
de esquizofrenia e em formas graves de depressao.
coisas e corn outros homers. 1...) Somos nosso
corpo e sent ele nao seria concebtvel nenhuma
forma de existencia. Existir é tuna peculiar re-
ferencia a corporeidade" (Monedero. 1973).
A percepcao do corpo refere-se mais a cons-
tituicao e a organizacao de uma imagem sobre
corpo do que a uma percepcao objetiva pro-
priamente dita. 0 modo como as pessoas per-
cebem subjetivamente o seu corpo difere bas-
tante do que se encontra nos livros de anatomia
ou fisiologia. Para Paul Schilder (1935), a ima-
gem corporal esta sempre ligada a uma expe-
riencia afetiva, imposta pela relacao corn o ou-
tro. A imagem corporal corresponde a totalida-
de da organizacao psicologica do individuo.
Urn atleta. urn bailarino, urn trabalhador bra-
cal e urn intelectual percebem e representam o
corpo de forma bastante diferenciada, havendo
indfcios de que os diferentes grupos sociais per-
cebem e representam o corpo de forma bastan-
te diferenciada (Boltanski, 1984). As duas di-
mensOes basicas do eu corporal referem-se a in-
timidade e a privacidade (distincao eu/mundo)
e a sexualidade. 0 eu corporal é antes de tudo
urn eu-corporal-sexuado. 0 eu que busca a sua
realizacao corn o outro nao a outra coisa que o
tu ando como ser sexuado. A dinamica
FSICOPATOLUiiiA t JEntiva.vum tow., •
Alguns pacientes esquizofrenicos experi- nado, tendo que se esforgar constantemente para
mentam diversas e profundas alteragoes do es- limps-lo, purifica-lo ou protege-lo da contami-
quema corporal. Aqui tern destaque as viven- nagao.
cias de influencia sobre o corpo. 0 paciente tern 0 hipocondriaco vive seu corpo de forma
a sensagao de que alguem, algo ou uma forga muito peculiar; ele e o lugar de todo o seu sofri-
externa desconhecida age sobre seu corpo, ma- mento, investido intensamente por toda a sua
nipulando-o ou controlando-o. Nao 6 infreqtlen- atengao e libido. Ha no hipocondriaco uma re-
te a sensagao de que uma entidade ou uma pes- lacao ambigua corn o seu corpo: teme os seus
soa esta manipulando seus genitais, aplicando pressagios, fica a adivinhar os seus misterios e
agulhadas, beliscoes, toques, tendo relacoes se- perigos, mas nao deixa por urn so momento
xuais corn ele ou ela contra a sua vontade. Sen- (como faz o homem comum) de voltar-se para
tem, eventualmente, que seus movimentos sao ele, de observe-lo e mesmo cultivar suas sensa-
controlados por essas for-gas externas. Tambem goes corporais pretensamente mOrbidas.
pode ocorrer a experiencia de esvaziamento ou As pacientes cam anorexia nervosa
revelam
roubo de partes do corpo, como o cerebro ou as uma alteracao marcante do esquema corporal.
vfsceras. Delirios de negacao ou de apodreci- Apesar de muito emagrecidas. percebem-se gor-
mento dos Orgaos sao tambem observaveis. Al- das, "corn barriga", "corn nadegas e coxas enor-
guns pacientes esquizofrenicos referem que sen- mes", etc. Devido a tal percepcao erronea, sub-
tem que ha pequenos animais ou objetos dentro metem-se a dietas e exercicios fisicos que as
de seus corpos, como, por exemplo, uma cobra, emagrecem mais e mais, ocorrendo em alguns
urn rato, um sapo ou uma fruta. casos estados extremos de caquexia.
Os pacientes corn psicoses toxicas, produzi- Os pacientes corn
dismotfofobia (ou trans-
das por alucinogenos (LSD, mescalina, harmi- torno dismatfico corporal) percebem distorci-
na, psilocibina, etc.), podem ter experiencias de damente, como horriveis e dignos de uma enor-
deformagao do esquema corporal. Urn brago ou me vergonha, partes de seu corpo (nariz. ore-
a cabeca é vivenciado como enorme, crescendo lhas, face. seios, nadegas, maos, etc.), ou pe-
ou encolhendo. 0 corpo e sentido como excessi- quenos defeitos fisicos que passariam, na maio-
vamente leve ou pesado, como se estivesse vo- ria das pessoas, despercebidos. Sentem tais par-
ando ou afundando, e assim por diante. tes do corpo como se fossem enormes, muito
Pacientes corn quadros nettraticos tern fre- desproporcionais, marcadamente disformes. De-
qiientemente uma experiencia corporal relacio- vido a essa percepcao distorcida insistem junto
nada a sentimentos de inferioridade ou de cas- aos cirurgioes plasticos e dermatologistas para
tracao. Seu corpo e sentido como impotente, fra- que esses os operem (e, as vezes. conseguem),
co ou doente. Sente-se corporalmente como uma reduzindo, por intermedio de repetidas cirurgias,
crianga ou como urn velho. o tamanho do nariz, das orelhas. etc.
Os pacientes histericos
mas,
a erotizar 0 fenOmeno do membro fantasmaocorre em
intensamente o corpo todo, mas. em contrapar- uma grande proporgao de pacientes amputados.
tida, podem sentir seus genitais e atividade ge- 0 paciente ap6s a cirurgia de amputacao conti-
nital como insensiveis ou perigosos. Parado- nua sentindo "como se o membro ainda esti-
xalmente a erotizacao excessiva de todo o corpo, vesse la", podendo sentir parestesias e mesmo
nao e incomum haver frigidez e anestesia genital. dores intensas no membro ausente. Corn o tern-
Os pacientes corn quadros ansiosos graves po, o membro parece mudar de tamanho, geral-
sentem o corpo como que comprimido, asfixia- mente "encolhe". Alern de ocorrer em bragos e
do, como se existisse uma pressao externa sobre pernas amputados, o fenomeno pode tambem
ele. Nas crises de plinico e freqiiente a desper- ser observado nas amputacoes de olhos, do reto,
sonalizagao corporal e a sensacao de morte imi- da laringe e de outras partes do corpo. No caso
nente; sensacao de que o corpo ire entrar em da mastectomia, podem ser verificadas altera-
colapso, desorganizar-se. goes marcantes do esquema corporal; a mulher
0 paciente corn quadro obsessive-compul- sente que corn a transformagao de seu corpo
sivo pode sentir o corpo como sujo ou contami- perdeu sua feminilidade. sente-se como um ho-
154 PAULO n —ALGALARKONDO
estudo sobre o amor, intitulado "0 banquete",
que: "E coin efeito a medicina, para falar ern
resumo, a ciencia dos fenOmenos de amor, pro-
prios ao corpo..."
No final do seculo XIX denominava-se ce-
nestesiaao conjunto de sensacOes internas
oriundas de todos os pontos do corpo, que se di-
rigem e terminam no cortex cerebral, principal-
mente pelas vias vegetativas. A cenestesia nor-
mal produz um sentimento de existencia agrada-
vel, de bem-estar. Em contraposigao a cenestesia
normal tern-se a cenestopatia, que é o conjunto
de sensagoes incomodas, de mal-estar difuso, as-
sociadas a ansiedade, que frequentemente esta
presence nos quadros depressivos, neurOticos,
psicossomaticos e, mesmo, psicOticos.
As conexoes corticais intra e inter-hemisferi-
cas conferem ao lobo parietal urn papel central
na integracao sensorial somato-sensitiva e vesti-
bular, que irao permitir a sontatognosia ou cons-
ciencia do corpo (Bernard e Trouve, 1977). Em
lesoes (vasculares, tumorais, etc.) da regiao pa-
rietal direita nao é infrequente a perda da cons-
ciencia do hemicorpo do lado oposto (esquerdo),
denominada sindrome de heminegligencia ou
hemiassomatognosia. 0 individuo passa a nao
reconhecer mais a existencia de seu hemicorpo
esquerdo. Em alguns casos o paciente reconhece
a existencia do hemicorpo esquerdo. porem nao
reconhece que este lado do corpo esta paretic°
ou plegico, apresentando assim uma anosogno-
sia, ou seja, per& 4:14 capacidade de reconheci-
mento da doenga ou do deficit naquele dimIdio
(hemianosognosia esquerda).
A neurologia denomina estereognosia ao
conjunto de impressoes sensoriais organizadas
e integradas principalmente pelas regiOes asso-
ciativas dos lobos parietais. A asteriognosia
a perda, geralmente por lesao do lobo parietal,
da capacidade de reconhecimento tail de obje-
tos familiares ou significativos (urn lapis, uma
chave. urn cadeado, etc.), sem haver, entretan-
to, a perda das fungoes perceptivas Weis ele-
mentares, como a sensagao termica, de pressao,
dolorosa, etc. Assim, apesar da perda da capa-
cidade de reconhecimento tatil complexo, nao
ha uma anestesia propriamente dita.
0 lobo parietal intervern nao apenas na in-
tegracao perceptiva que produz a imagem do
corpo. mas tambem no estabelecimento de es-
quemas de agao, da atividade gestual comple-
xa, que C. enfim, a concatenacao das percep-
cOes corporals integradas e das agOes do corpo
dirigidas ao mundo e ao espago externo. Assim
artificial a separagao entre uma dimensao re-
ceptiva. perceptiva, do corpo e suas sensagoes,
e uma dimensao ativa, motora. relativa ao cor-
po agindo no mundo. Percepgao corporal e atu-
acao motora formam, do ponto de vista neuro-
logic° e neuropsicologico, uma unidade indi vi-
sivel. Um exemplo disso é a apraxia construti-
va, ou incapacidade de desenhar um model° (um
cubo, uma casa, etc.) de montar um quebra-ca-
becas, de construir formas simples corn cubos,
etc. A apraxia construtiva surge, corn freqiiencia,
como resultante de lesoes dos lobos parietais.
ALTERAcOES DA IMAGEM OU
ESQUEMA CORPORAL EM ALGUNS
TRANSTORNOS MENTAIS
ty i
0 deprimido vive seu corpo como algo pe-
sado. lento, dificil, fonte de sofrimento e nao
de prazer. Sente-se fraco, esgotado, incapaz de
fazer frente as exigencias da vida. 0 seu corpo
ja nao tern vida, é urn peso morto. A astenia
refere-se a esse tipo de vivencia corporal dos
pacientes deprimidos. Pacientes deprimidos gra-
ves podem ter serias alteracoes do esquema cor-
poral. Nestes casos pode ocorrer o delirio de
negactio de orgiios, no qual o individuo sente
que seu figado, cerebro ou coracao nao estao
mais la, ou apodreceram. Sente que nao tern
mais sangue, que seu corpo secou, que os mem-
bros estao se esfarelando como areia, que esta
fisicamente morto, etc. (sindrome de Cottard).
0 paciente maniac° vive seu corpo como
algo extremamente ativo, poderoso e vivo. Sen-
te-se forte e agil, e nao consegue parar e repou-
sar por urn period° mais longo. Quando inqui-
rido sobre como se sente corporalmente, mui-
tas vezes responde que esta muito bem, cheio
de vigor. "melhor do que 'wilco". Ha mesmo,
freqUentemente, uma incapacidade de perceber
as limitacoes reais do corpo. Muitos pacientes
maniacos idosos atuam corporalmente ate a
exaustao, podendo, inclusive, vir a falecer em
decorrencia desse excesso de agao motora (por
exemplo. por infarto do miocardio).
PSICOPATOLOGIA E SENHOLOGIA DOS l RANSTOKNOS Witri Ars •✓ r
Nunca conheci quern tivesse levado porrada
Todos os 'netts conhecidos tent sido cam-
pe5es em tudo.
E eu, tantas vezes reles. tantas vezes porco,
tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelnzente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Toda a genre que eu conheco e que fala contigo
Nunca teve um ato ridiculo, nunca sofreu
en.rovallto,
Nunca foi senao principe —todos eles prin-
cipes— na vida...
Arre, estou farto de semideus!
Onde d que ha genre no mundo?
No transtorno de personalidade narcisica
temos o melhor exemplo de manutencao de urn
modo de funcionamento mental e de investimen-
to da libido no qual predomina o narcisismo.
Tambem verifica-se corn freqiiencia aspectos
narcfsicos na histeria, nos transtornos de perso-
nalidade sociopatico, em pacientes parandicos
e manfacos.
DimiNuicAo DA VALORACAO DO EU
Em muitos pacientes deprimidos encontram-
se sentimentos profundos de naenos-valia, de re-
ducao da auto-estima e de autodepreciacao. De
fato. o processo de autodepreciacao é considera-
do central na depressao. 0 individuo sente-se sem
valor. nao merece viver e ser amado. deve morre
para deixar de incomodar aos outros. Aqui toma-
cuidar de si mesmo e, tambem, para poder amar
outras pessoas. 0 fundamental aqui é o grau, a
intensidade com que o amor é investido sobre
si mesmo ou sobre as outras pessoas. 0 indivi-
duo totalmente narcisico nao se relaciona, de
fato, corn o mundo, e, corn isso, se empobrece.
0 individuo sem qualquer amor narcisico sen-
te-se vazio, sem valor, sem qualidades minimas
que o facam ser amado e digno de viver neste
mundo. Escrevendo sobre a dialetica do narci-
sismo e da autodepreciacao, Fernando Pessoa
assim se expressa:
156 PAULO DALCALAKRONDO
mem. sente urn vazio em seu corpo, alem de
muitas vezes desenvolver quadros de depress-do
e de di(ninuicao da auto-estima.
A VALORAcA.0 DO EU:
OS CONCEITOS DE NARCISISMO
E DE AUTO-ESTIMA
DEFINICOES BASICAS
Segundo a lenda grega, Narciso era urn jo-
vem para quern nada era mais agradavel do que
ver sua propria imagem refletida sobre urn lago.
Admirava e amava ao extremo sua propria ima-
gem: ao final, acabou cometendo o suicidio e
transformou-se em uma flor, que passou entao
a levar o seu nome. Freud denominou inicial-
mente de narcisismo ao tipo de escolha de ob-
jeto amoroso que ocorre na homossexualidade.
0 homossexual, nessa visa°, amaria a algum
igual a si mesmo. Posteriormente, o termo oar-
cisismo passa a se referir a urn estagio do de-
senvolvimento psicossexual da crianca, no
qual o individuo toma a si mesmo, ao seu eu,
como objeto de amor.
Atualmente. o termo narcisismo refere-se,
de modo geral, ao direcionamento do amor do
individuo para si pr6prio. A libido volta-se para
proprio eu, deixando de investir no mundo e
nas pessoas deqe mundo. Nesse estado de nar-
cisismo, o eu percebe o prazer como oriundo
sempre de seu interior e o desprazer como pro-
veniente do mundo externo. Ha, assim, no nar-
cisismo, uma ilusao de auto-suficiencia. um sen-
timento de poder, de grandiosidade, de despre-
zo pelo mundo exterior. 0 pr6prio eu é tornado
pelo individuo como a sua grande paixao, o seu
principal objeto de amor.
0 narcisismo primario seria a ausencia total
de relacilo corn o meio ambiente, uma indife-
renciacdo do eu corn o id. 0 narcisismo secun-
ddrio seria o retorno do amor. da libido, para
prOprio eu, depois de haver sido direciona-
do em algum momento a algum objeto do
mundo externo.
Entretanto. o narcisismo nao énecessaria-
mente positivo ou negativo. patologico ou sau-
davel. Todo individuo necessita investir amo-
rosamente o seu proprio eu para sobreviver. para
se patente a dimensao de fracasso existencial, re-
lativo a realizacao de urn destino pessoal.
Alern da depressao, em indmeras situagOes
relacionadas a doenca mental, tern-se a vivencia
de autodepreciacao. Muitos individuos corn di-
ficuldades psicologicas e sociais crOnicas, desa-
daptados, desengoncados na vida social. corn
dificuldades serias no campo do trabaiho do es-
tudo, da farrulia, sentem-se profundamente desmo-
ralizados. Pacientes corn dependencia cronica ao
alcool e outras drogas tambem podem desenvolver
um sentimento marcante de autodepreciacao.
Tambem a doenca crOnica, ffsica e/ou men-
tal, pode implicar urn seri° processo de desmo-
ralizacao cr6nica e autodepreciacao. 0 indivi-
duo limitado ffsica e/ou mentalmente tende a
sentir-se sem valor. como urn peso para sua fa-
milia, um fracassado, urn instil, o que, muitas
vezes, vem associado a um descuido cronico de
si mesmo, autonegligencia, falta de higiene e,
mesmo, atos e condutas suicidas.
0 CONCEITO DE IDENTIDADE
PSICOSSOCIAL
Erik Erikson (1985) define identidade psi-
cossocial como o sentimento que proporciona
a capacidade para experienciar o pr6prio eu
como algo que tem coritinuidade e unidade, per-
mitindo que o individuo se insira no meio so-
ciocultural de maneira coerente. 0 sentimento
de identidade refere-sea sensacao de pertencer
a alga, de ser parte de alga. A identidade psi-
cossocial permite que o individuo oriente-se em
relagao as outras pessoas e ao,seu meio ambien-
te, estabeleca e delineia as fronteiras do eu cor-
poral e do eu mental.
A identidade é formada a partir do conjunto
de identificacOes consciences e inconscientes que
a crianca faz ao longo de seu desenvolvimento.
Por meio desse processo de identificacao, a crian-
ca vai introjetando (incorporando ao seu eu) as-
pectos diversos dos adultos (pais. avos, tios, pro-
fessores. amigos. etc.) e tambem das outras crian-
gas (irmaos. amigos, etc.) corn quem convive.
A identidade psicossocial total é, portanto,
composta de mdltiplas identidades parciais,
canto a identidade sexual (na qual o individuo
identifica-se corn o papel de seu genero. for-
CR1SE DE IDENTIDADE
A crise de identidade. descrita e estudada por
Erik Erikson (1976), refere-se as dificuldades in-
tensas e de surgimento em um curto perfodo de
tempo de uma sensacao de inseguranca e confu-
sao em relaciio a identidade sexual, a escolha e
aos paddies de amizade, filiacao religiose, siste-
ma de valores morais, papel relacional perante os
pais e professores. etc. A crise de identidade mais
marcante, em nossa cultura, é a que ocorre em
adolescentes. A case de identidade pode ser sufl-
cientemente intensa a ponto de causar muita an-
gdstia e interferir na vida do adolescente. Toda a
profunda transforrnacao da adolescencia é capta-
da neste hai-kai do poeta japones Buson:
Merluza ',ludo,
Convertida ern miller
Jci se perfiuna.
mas de atuar, sentir e desejar, valores, etc.), a
identidade etnica ou racial, a identidade religio-
sa, a identidade professional, a identidade rela-
tiva a nacionalidade, etc. Tambem estao aqui
incluidas as identidades relatives ao sentimen-
to de pertencer a pequenos grupos: identidade
de ser estudante de medicina, de psicologia. etc..
identidade de ser membro de urn clube, de urn
time de futebol, de urn grupo de jovens, e assim
por diante. A identidade psicossocial é uma fon-
te basica e significativa de amor proprio, de re-
conhecimento social e de prestigio.
OS TRANSTORNOS DE IDENTIDADE
Transtornos e problemas corn a identidade
psicossocial estao relacionados a confusao de
identidade, a uma desorientacao em relacao ao
que o individuo e no contexto sociocultural. ao
que esperam dele, como se sente, qual o seu
lugar no mundo, e assim por diante.
ESTADOS DE POSSESSAO
Os estados de possessao podem ocorrer tan-
to em individuos corn transtornos mentais (no
•
158 Pm.u.o DALGALARRONDO
histeria. por exemplo) quanto naqueles sem
transtornos. sendo geralmente nesses casos pro-
duzidos. organizados e conformados dentro de
um determinado contexto religioso-cultural. Ito
entrar no estado de possessao, o indivkluo tern
uma perda temporaria de sua identidade pes-
soal, que é substitufda por uma entidade que
"toma conta" do sujeito. Normalmente, o indi-
vicluo permanece consciente em relacao a per-
il' cepcao do ambiente. Os estados de possessao ocorrem freqUen-
temente associados a estados de transe que du-
ram minutos ou horas. Tais estados sao via de
regra desencadeados por contextos rituais, nos
quais a danca, o ritmo, os cantos, as rezas, en-
firn todo o contexto ritual, "guia" o sujeito no
sentido de alterar momentaneamente o seu es-
tado de consci8ncia e permitir que uma entida-
de tome posse do sujeito. E comum, nesses ca-
sos, que o indivIcluo apresente movimentos rft-
micos do tronco, tremores, gestos, atitudes e
mfmica estereotipada e fala alterada (infantil,
agressiva, etc.). Pode ou nao haver amnesia para
ocorrido durance o estado de possessao.
22
Funceks psiquicas
compostas: a personalidade
e suas alteracoes
) 31
menino é o pai do homem.
Machado de Assis
(Memos-kit port tunas de Bras Cubas, 1881)
DEFINICOES BASICAS
Bastos (1997) apresenta uma definicao de
personalidade bastante elucidativa. Para ele a
personalidade e o "conjunto integrado de tra-
cos pslquicos, consistindo no total das carac-
teristicas individuals, en, sua relaciio coin o
meio, incluindo todos os fatores fisicos, Nolo-
gicos, psIquicos e socioculturais de sua fornta-
cifo, conjugando tendencias inatas e experien-
cias adquiridas no curso de sua existencia". Ele
ressalta ainda uma dimensao essencial do con-
ceito de personalidade, que e o seu duplo as-
pecto; relativamente estavel ao longo da vida do
individuo e relativamente dinamico, sujeito a de-
terminadas modificacpes, dependendo de mudan-
gas existenciais ou atteracoes neurobiologicas; a
estrutura da personalidade, em sua opiniao, "mos-
tra-se essencialmente diner' mica, podendo ser
nnuovel — sent ser necessariamente instavel — e
encontra-se ent constante desenvolvitnento".
A origem etimologica da palavra perso-
nalidade ilumina de modo interessante a di-
mensao complexa do conceito. Personalida-
de provern do termo persona, que significa a
mascara dos personagens do teatro. E aquela
mascara que cobria o rosto dos comicos em
Roma. ao representarem os diferentes perso-
nagens de uma pep. Em latim. por sua vez,
personare significa tambem ressoar por meio
de algo. Assim, segundo Lopez Ibor (1970),
as duas conotacoes etimologicas do termo
personalidade apontam para urn sentido co-
mum; o autor/ator faz ressoar a sua voz, a sua
versao da historia, pelas diversas mascaras,
dos diversos personagens que cria. Acrescen-
tarfamos a interessante nota de Lopez Ibor,
que o autor teatral, ao fazer ressoar sua voz
pelas mascaras que cria, isto 6, ao mesmo tem-
po em que se esconde, revela-se, pois seus
personagens. suas mascaras denunciam dia-
leticamente meandros do que busca esconder.
0 poeta Fernando Pessoa exprime de forma
sumamente elegante essa dialetica constante
da personalidade, dialetica do esconder-se e
do revelar-se simultaneamente:
0 poeta e it,,, fingidor.
Finge tt o completatnente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras setae.
Assim. ao nos introduzimos ao escudo da
personalidade, estaremos atentos a complexida-
de do tema, a sua dimensao multifacetada e
facilidade corn que se cometem erros e simpli-
ficacOes inadequadas ao se tentar desvendar os
misterios da personalidade humana.
Segundo distinguem-se basicamente Mira y
Lopez (1943), osseguintes aspectos relaciona-
dos a personalidade e a sua expressao; consti-
tuicao corporal, temperamento e carater (nests
linha, ver tambern Cloninger e Gottesman. 1987:
Livesley e cols.. 1993).
11}
11.1!.
141
fq
If
11JII U1.0 1,GALAHRONDO
PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS 161
Constituicou corporal: E o conjunto de pro-
priedades morfologicas, metabolicas, bioqufmi-
cas. hormonais, etc., transmitidas ao individuo
principalmente (mas nao apenas) pelos mecanis-
mos genericos. Muitos autores, desde ha secu-
los, procuraram identificar urn possivel paralelo
entre a constituicao corporal e o temperamento e
carater dos seres humanos. A constituicao cor-
poral determina, em boa pane, o aspecto do indi-
vicluo, sua aparencia ffsica, o perfil de seus ges-
tos. sua voz. o estilo de seus movimentos, tendo
significativa influencia sobre as experidncias
psicolOgicas do indivicluo ao longo de sua vida,
seu modo de reacao corn os outros e vice-versa.
Tempercnento: E o conjunto de particulari-
dades psicofisiologicas e psicologicas inatas,
que diferenciam urn individuo de outro. Os tern-
peramentos sao determinados por fatores gene-
ticos ou constitucionais precoces produzidos por
fatores endocrinos ou metabolicos. Assim os in-
divicluos nascem corn temperamentos astenicos,
corn uma tendencia a passividade. a hipoativi-
dade, a "vida mansa":outros nascem corn tern-
peramentos estenicos, ativos, corn forte tendert-
cia a iniciativa, a reagir prontamente aos esti-
mu los ambientais, e assim por diante. A identi-
ficacao. entretanto. de tracos e configuracties
congenitas individuais é tarefa muito diffcil, ja
que o que se tern sao individuos que sempre tra-
zem consigo a combinacao dos aspectos inatos
aos aspectos adquiridos, aprendidos, incorpo-
rados pela interacao constante corn os pais e a
sociedade. A apreensao do temperamento de
uma pessoa, em estado puro, original, é extre-
mamente diffcil.
Carciter: Embora o termo carater• tenha, na
linguagem comum, uma conotacao moral, indi-
cando fora. vontade, perseveranca, uma perso-
nalidade bem demarcada e estavel, nao é essa
exatamente a definicao psicopatolOgica do ter-
mo =titer. Para a psicopatologia o carter é a
soma de tracos de personalidade. expresses no
modo basic° do individuo reagir perante a vida.
seu estilo pessoal, suas formas de interacao so-
cial, gostos, aptidoes, etc. 0 carater reflete o
temperamento moldado. modificado e inserido
no meio familiar e sociocultural. E a resultante.
ao longo da historia pessoal. da interacao cons-
tante entre o temperamento e as expectativas e
exigencias conscientes e inconscientes dos inch-
vicluos que criaram determinada pessoa. 0 cara-
ter resulta do modo como o individuo equacio-
nou, conscience e inconscientemente, o seu tern-
peramento corn essas exigencias e expectativas.
0 temperament° ado deve ser confunclido
coin o carater, pois o temperamento e algo ba-
sic° e constitutivo do individuo, enquanto o ca-
rater traduz-se pelo tipo de reacao predominan-
te do individuo frente as diversas situagOes e
estfmulos do ambiente. Mira y Lopes afirma que
é compreensfvel que freqUentemente nao coin-
cidam o temperamento (tendencias inatas ini-
ciais) e o carater (conjunto de reacaes fmalmente
exibidas pelo individuo), ja que entre ambos se
interpoe o conjunto de functies intelectuais (dis-
criminativas, crfticas e judicativas), assim como
as inibicties e habitos criados pela educacao. Em
certos casos, o carater se desenvolve no senti-
do °post° do temperament°, por sobrecompen-
sacdo pslquica; muitas vezes urn individuo corn
corker exibicionista e teatral esconde um tem-
peramento timid° e fobico, ou urn carater agres-
sivo e audaz encobre urn temperamento medro-
so e angustiado.
TIPOLOGIAS HUMANAS
OU TIPOS DE PERSONALIDADE
A primeira tipologia desenvolvida na hist&
ria da medicina e da psicologia foi a resultante
das concepcOes da escola hipocratica-galdnica.
A medicina hipocratica é essencialmente uma
medicina ambientalista. Os elementos da natu-
reza (agua, ventos, solo, umidade do ar, alimen-
tos, etc.) interagem permanentemente corn o or-
ganismo para determinar a sadde ou a doenca.
Nesse sentido, codas as questeies medico repou-
sam sobre a teoria dos quatro elementos do fi-
losofo pre-socratico Empedocles (500-430 a C.),
a saber: agua, terra, ar e fogo. A estes quatro
elementos correspondem quatro qualidades:
quente, frio. seco e timido. HipOcrates de Cds
(cerca de 460-377 a.C.), ao utilizar esta con-
cepcao quaternaria da natureza, ira desenvol-
ver uma concepcao correspontlente do organis-
mo, corn quatro fluidos ou humores basicos.
Os tipos Inunanos bcisicos e o surgimento
da doenca ou manutencao da satide dependerao
intimamente da convivencia harmonica dos qua-
tro humores essenciais do organismo humano;
sangue, a bflis, o fleuma (ou linfa) e a atrabi-
lis (ou bilis negra, que alguns historiadores su-
gerem que tenha sua origem na observacao do
sangue coagulado). A cada humor especifica-
mente corresponde urn orgao do corpo; ao san-
gue o coracao, a bilis o ffgado, ao fleuma o cd-
rebro e a atrabfl is o baco. A sadde e a harmonia
do ser provem do equilibrio dos quatro humo-
res, ou seja, daeucr•asis; enquanto a doenca ori-
gina-se da retencao, desequilfbrio, ou Kati de-
leteria de algum dos quatro humores, denomi-
nada discrcisis. Os tipos humanos ou tempera-
mentos basicos se referem, portanto, aos qua-
tro humores e aos demais elementos quaterna-
rios da seguinte forma:
Os aspectos psicologicos mais caracterfsti-
cos dos quatro temperamentos sao, segundo re-
sumo de Gaillat (1976):
Sangiilneo: De facies rosada, porte atleti-
co e musculatura consistente e firme. 0 sangtli-
neo é urn tipo expansivo e otimista, mas tam-
bent irritavel e impulsivo. Submete-se de born
grado ao clamor dos seus instintos.
Fletunatico ou linfatico: De facies
formas arredondadas, olhar dote e vago. 0
fleumatico é sonhador, pacific° e 061, subor-
dina-se a determinados habitos e tende a levar
uma existencia isenta de paixoes.
Coterico ou billow: De olhar ardente e
protuberancias musculares evidences, possui
uma vontade tenaz e muitas vezes poderosa,
tende a demonstrar ambicao e desejo de domi-
nio, tern propensao a reacifies abruptas e explo-
sivas.
Melancolico E urn tipo
nervoso, de olhar Criste e mtisculos pouco de-
senvolvidos. Seu carater é muito excitavel, ten-
dendo ao pessimismo, ao rancor e a solidao.
Ainda na concepcao de Hipocrates, as for-
mas basicas de doenca mental sao a melanco-
lia, isto é, uma forma discreta e retraida de lou-
cura, a mania. uma forma exuberante e furiosa
de loucura e a frenitis, a chamada loucura corn
febre. A melancolia, por exemplo, resulta da
retencao no organismo e acao maligna da bilis
negra, que delta forma é vista como urn princf-
pio agressivo e instavel. A tipologia hipocrati-
ca-galenica sobreviveu no Ocidente por mais
de 2.500 anos, orientando os medicos e erudi-
tos na classificacao dos tipos humanos basicos.
suas personalidades e doencas.
A TIPOLOGIA DE
CARL GUSTAV JUNG (1875-1961)
Jung foi urn dos mais ilustres discipulos de
Freud e de Bleuler. Desenvolveu, ao longo de
seus 86 anos, uma concepcao extremamente ori-
ginal sobre a estrutura e funcionamento da alma
humana. Criou e aprofundou concertos hoje uti-
lizados e discutidos amplamente em psicologia
e psicopatologia, como o de complexos, incons-
ciente coletivo, arquetipos, self, etc. A totalida-
de da personalidade. segundo Jung, é constitui-
da de varias instancias, a saber:
A persona: E a dimensao exterior e relacio-
nal da personalidade; a mascara social adotada
pelo indivicluo nas relaceies sociais. Correspon-
de em pane aquilo que os sociOlogos denomi-
nam "papel social". Nise daSilveira, uma das
mais importantes estudiosas e pesquisadoras do
pensamento junguiano no Brasil, utiliza o con-
to de Machado de Assis, "0 Espelho", para ilus-
trar o que seria apersona junguiana. Em tal con-
to, Machado propete uma teoria de que o ho-
mem teria duas almas; "unto que olha de den-
Quadro 22.1 Os temperamentos na escola hipocrtitica-galenica
Temperamentos Sangiiineo Unpile° ou fleumatico Coterie(' Melancedico ou urrnGiliririo
Humor (fluidal Sangue Linfa ou fleuma Bilis Atrabilis ou bilis negra
Orgao Corac5o Cerebro Figado Baco
Qualidodes Quente Frio Seco Omido
Elentenios
do natureza
Terra Ar Fogo Agua
1,11 ZI.OL•1 40,/
162 P _ AUL° DALCALAHRONDO
fro para fora, outra que ollia de fora para den-
Fro". Antecipa-se, de certa forma, Machado a
Jung, na delimitagao dos homens em extrover-
tidos e introvertidos.
Machado descreve a persona junguiana ao
relatar o caso de urn jovem que, ao ser nomea-
do alferes (posicao hierarquica militar) da Guar-
da Nacional, tanto se identificou coin a patente
que "o alferes eliminou o homem". Todos nos
conhecemos individuos que se identificam tan-
to corn seus postos, status ou fungao social, que
perdem totalmente a nogao de que sao algo alem
e aquem desse papel social; é o caso do "su-
perstar" que elimina o homem, do "brilhante
professor e intelectual" que elimina o homem,
do "supermedico" que elimina o homem, do
"grande politico" que elimina o homem. do "po-
deroso empresario" que elimina o homem, e as-
sim por diante. Machado relata que o alferes foi
urn dia obrigado a ficar sozinho em uma casa de
campo onde nao havia ninguem para prestar lou-
vagoes, deferencias, para "reconhecer" a sua
importancia e posicao hierarquica. Nesse momen-
to, o pobre alferes sentiu-se completamente va-
zio; no espelho nao via sua imagem, estava esfu-
mada, sem contornos nitidos, entrou em panico...
A nogao de Eu (ou Ego) nas concepcOes psi-
canaliticas da escola lacaniana (de Jacques La-
can) tern uma curiosa semelhanca corn a nocao
de persona da psicologia analitica de Jung; é
uma imagem construida a partir do exterior, in-
trojetada inconscientemente por meio de multi:
plas identificacoes corn o desejo dos outros. E
a mascara que "colocam" sobre nos e que ao
final acreditamos ser nos mesmos.
A sombra: sao os elementos inconscientes
e inaceitaveis da personalidade, reprimidos pela
consciencia. Aspectos de nossa propria pessoa
que freqUentemente nos repugnam e que rejei-
tamos veementemente. A sombra sobretudo
inconsciente, estando. de certa forma, no polo
oposto a. persona. A tendencia mais comum é
projetar a nossa sontbra sobre o outro. seja ele
urn inimigo conhecido, urn colega qualquer de
trabalho, urn vizinho. urn grupo social ou etni-
co (participando entao tal mecanismo na for-
macao do racismo), ou uma figura simbolica
como o demonic). urn mito ou urn fantasma.
Anima e Animus: Jung denomina anima ao
conjunto de elementos femininos inconscientes
presentes em todos os hornens. A anima surge
das experiencias que o homem teve corn a mu-
lher ao longo da hist6ria, a relagao do homem
corn o ente feminino, "residuo de codas as im-
pressOes fornecidas pela mulher". 0 primei-
ro e mais fundamental representante da ani-
ma é a mae; depois surgem as grandes mu-
lheres, a Virgem, fadas, bruxas, feiticeira,
sereia, grandes atrizes, Iemanja, a figura da
enfermeira, da primeira professora, da "fem-
me fatale", etc. Ja o animus é o conjunto de
elementos masculinos existentes no psiquis-
mo feminino, de forma principalmente incons-
ciente. 0 primeiro e fundamental represen-
tante do animus é o pai, depois vem o mestre,
o ator de cinema, o camped° esportivo, o guer-
reiro, o heroi politico, o lider religioso, o ca-
cique da tribo, o "poderoso chefao", etc.
0 Self: Este é um conceito bastante comple-
xo da psicologia analitica de Jung. 0 self rid() é
propriamente algo que exists, mas algo a que o
individuo se destina no seu desenvolvimento in-
terior. Nao é apenas o centro profundo da per-
sonalidade, mas tambem a sua totalidade. 0 de-
sabrochar do self resulta do reconhecimento da
prOpria sombra. da resolucao mais ou menos fe-
liz dos diversos complexos, da assimilacao e in-
tegragao de aspectos parciais e cindidos do psi-
quismo individual. 0 desenvolvimento e auto-
conhecimento pessoal produz urn alargamento
do mundo interior e possibilita que o self passe
a ocupar o centro da personalidade, o individuo
aproxima-se de urn perspectiva totalizante e in-
tegrada de si mesmo e supera fragmentacoes in-
teriores de sua personalidade.
OS TIPOS HUMANOS BASICOS
SEGUNDO JUNG
Segundo o movimento e direcao da energia
psiquica (libido) temos:
an-oversew: Aqui a libido flui sem emba-
rag° ou dificuldade em diregao aos objetos ex-
ternos. Os extrovertidos sao pessoas que par-
tern rapida e diretamente em direcao ao mundo
externo, tern as suas referencias e buscam suas
satisfagoes no ambiente externo.
introversao: Aqui a libido recua perante os
objetos do mundo externo, voltando-se para seu
interior; o mundo externo 6 ameacador ou sem
importancia, as satisfacOes e referencias provem
do proprio mundo interno.
Segundo as funcOes psiquicas adaptativas
basicas temos:
0 pensamento, que esclarece o devido sig-
nificado dos objetos, a racionalidade e logica
dos processos da vida. 0 sentimento na con-
cepgao de Jung relaciona-se a capacidade de
estimar afetivamente o mundo, de decidir que
valor afetivo e emocional tern determinado fe-
nomeno para nos. A sensopercepgao capta e
identifica corn precisao os objetos do mundo
externo e permite o contato objetivo corn a rea-
lidade. A innticiio e uma percepcao inconscien-
te. uma apreensao imediata de como os objetos
do mundo se comportam. de como os fenome-
nos ocorrem. Segundo Jung, uma dessas fun-
goes sera sempre a principal para cada indivi-
duo, uma outra sera auxiliar a principal, atuan-
do conjuntamente corn ela. Uma terceira sera
muito rudimentar, quase silenciosa, e a quarts.
chamada funcao inferior, permanece inconscien-
te e totalmente adormecida.
Estas quatro fungoes dispaem-se duas a duas.
em pares de oposigao. 0 primeiro par 6 o doper/-
same/Ito versus sena/nem°. Assim. o pensamento
esforca-se por conhecer cognitivamente as coisas
sua logica e racionalidade, desinteressando-se por
seu valor afetivo. 0 sentimento valoriza priorita-
riamente o valor afetivo dos objetos e fenorne-
nos, nao se interessando por sua racionalidade.
0 segundo par 6 o da sensopercepgao ver-
sus intuicao. A sensopercepgao concentra-se
sobre o exame descritivo, detalhado dos obje-
tos. particular e analiticamente, focando os seus
detalhes. A intuicao apreende as coisas em seu
conjunto, de forma global e imediata. nao se
prende a detalhes, capta o clima geral do que
acontece e nao depende da constatacao externs
para seu funcionamento.
Assim. a partir desses dois niveis de polari-
dades (extroversao e introversao, pensamento e
sentimento, sensopercepgao e intuigao). Jung
prop& uma tipologia humana corn oito tipos
fundamen.ais:
Jung organiza a sua tipologia a partir de dois
aspectos fundamentais da personalidade; o mo-
vimento e direcdo da libido ou energia
que irao caracterizar duas atitude basicas; a
saber, a extroversao e a introversao. Ao lado
desse aspecto de movimentacao e direcao da li-
bido estao as finvies psiquicas bdsicas que o
individuo usa para se adaptar ao mundo, a sa-
ber: a sensopercepgao. o pensamento, o senti-
mento e a intuicao.
Quadro 22.2 Tipologia humana segundo Jung
Tipo sentimento Predomina a subjetividade, volta-se para si mesmo, pars seu mundo afetivo interno, suas
introvertido riquezas e nuancas
Tipo sentimento Mais sensivel aos valores sociais e respostas afetivas dos outros. adaptavel afetivamenteextrovertido as instituiceies. costumes e habitos sociais
Tipo pensamento Predomina o pensamento centrado em objetos internos e esquemas intelectuais pessoais.
introvertido '40 pensamento comeca no interior do sujeito. da voltas. mas termina nele
Tipo pensamento Orientado para o ambiente, visando sempre a ordenacao conceitual dos
dados objetivos:
extrovertido apreende o ambiente de forma rational e ordenadora.
Tipo intuicao Volta-se para experiencias e intuicries internas. da, mais importancia as suas ilusoes,
introvertido sonhos e fantasias. envolve-se em experiencias misticas pessoais
Tipo intuigao Dirige-se ao mundo externo, apreendendo-o de forma intuitive; atento ao surgimento de
extrovertido novas realidades
Tipo percepcao Aprofunda-se no sensivel. sobretudo em urn modo pessoal e interno de captar o mundo.
introvertido Vive atento a tonalidade afetiva daquilo que sense. tern certa dificuldade de adaptacao ao
mundo externo
Tipo percepcao Observador acurado da realidade concreta; um empirista. pouco preocupado com sinteses
extrovertido racionais ou interpretacoes daquilo que observa
PSICOPATOLOGIA E JEAIR/LUtilA inPJ & KArI3 I trItNUN 1,11.1, A I, .v..
164 P AU1.0 DALGALARNONDO
A PERSONALIDADE E SEU
DESENVOLVIMENTO SEGUNDO
SIGMUND FREUD (1856-1939)
Resumir, sem deturpar muito, a nocao freu-
diana de sujeito, como ele ve o ser humano em
seu desenvolvimento e maturidade. nao 6 tare-
fa facil. Para Freud, a constituicao da persona-
lidade passa estrategicamente pelas vicissitudes
da libido (compreendida como energia "vital",
"sexual"), pelo seu desenvolvimento em diver-
sas fases, pelo modo como se estrutura o desejo
inconsciente e os modos como o eu lida corn
seus conflitos e frustracoes libidinais.
Freud (1905) diz que "as pulthes sexuais arra-
vessam urn complicado curso de desenvolvimen-
to e so em seu final o 'primado da zona genital'
atingido. Antes disso, lid varias "organizacties
pre-genitais" da libido — pontos em que ela pode
ficar 'fixada' e aos quais retornard, na ocorre'n-
cia de represscio subseqiiente ('regresseio')".
Assim, segundo a psicanalise, as "fixacifies"
infantis da libido e a tendencia a regressao (a es-
ses "pontos" de fixacrio) acabam por determiner
tanto os diversos tipos de neuroses, como o per-
fil de personalidade do adulto. Particularmente
importante, na concepcao freudiana, é a trama
estrutural inconsciente de amor, &Ho e temor de
represalia em relacao aos pais, o complex° de Edi-
po. Assim, a personalidade do adulto forma-se pela
introjecao (sobretudo inconsciente) dos relaciona-
memos que se estabelecem no interior das relacOes
familiares, em particular da crianca pequena corn
os seus pais, e desses corn ela.
A primeira forma de organizacao do desejo
libidinal da crianca relaciona-sea chamada fuse
oral, estendendo-se ao longo do primeiro ano de
vida. Aqui a zona e o modo corporal de maior
fonte de prazer é a boca e o ato de succao: a
libido concentra-se no mamar; assim, "o ato que
consiste em chttpar o seio ',latent° torna-se o
ponto de partida de toda a vida sexual, o ideal
jamais atingido, ideal a que a imaginageio aspi-
ra nos momentos de grande necessidade e de gran-
de privaccio" (Freud, 1905). 0 indivIduo fixado
em urn modo oral de organizacao da libido (tipo
oral) tende a avidez no tomar e no receber; nao
suporta a privacao e tern dificuldades corn a rejei-
can. Tende a ser passivo e exigentemente recepti-
vo em relacao as pessoas que ama. 0 exagero do
•
A BIOTIPOLOGIA DE KRETSCHMER
A tentativa de aproximar tipos anatomicos,
fisiolOgicos ou endOcrinos de determinados pa-
droes de carater psicologico tern sido empreen-
dida desde Hipocrates, corn sucesso bastante
discutfvel. Uma das biotipologias mais marcan-
tes na historia da psicopatologia foi a do psi-
quiatra alemao Ernest Kretschmer, o qual bus-
cou dividir os tipos humans em tees especies
morfologicas e psicologicas distintas: os bre-
velineos, os longilfneos e os atleticos.
Os /ongilineos ou leptossomicos sao indivf-
duos nos quais predomina o diametro longitu-
dinal, vertical, sobre todos os outros; tern cor-
pos delgados, ombros estreitos, peito aplaina-
do, o rosto a alargado e estreito, os membros,
maos e pes sao longos e delgados. A personali-
dade tenderia a esquizoidia.
Hiper-racional, o leptossomico tende a pri-
vilegiar o cerebral em contraposicao ao vital, o
logic° em contraposicao ao afetivo, o esquema-
tico em contraposicao ao dinamico. 0 leptos-
somico tern muita dificuldade no contato afeti-
vo, direto e espontaneo corn as pessoas. Tende
a desconfianca e as fantasias persecutorias. Pre-
fere os esquemas teoricos, as arquiteturas ra-
cionais, o mundo das categorias a vida real, corn
sabor, odor e movimento constante.
Don Quijote de la Mancha, o leptossomico
exemplar, mergulha de tal modo em leituras fan-
tasticas, aderindo integralmente a esquemas ar-
tificiais (o heroi, o vilao. a donzela indefesa) a
ponto de sua vida transformar-se em urn enor-
me e maravilhoso delirio. 0 leptossOmico ao
adoecer mentalmente tern a propensao a esqui-
zofrenia, a personalidades esquizoides ou es-
quizotfpicas.
Nos brevelbleos Ott ptcnicos predomina o
diametro antero-posterior do tronco, principal-
mente do abdome. k!) rosto a arredondado e os
membros. curtos. Tenderiam a ciclotimia ou a
sintonia. Teriam a caracterfstica de "sintonizar"
afetivamente corn as pessoas circundantes, li-
gados ao suceder historic° dos acontecimentos,
a vida real, as emocoes e ao colorido geral do
mundo.
0 tipo classic° representante dos pfcnicos
cicloamicos e o escudeiro Sancho Parica; bo-
nachao, amante da culinaria e do vinho, tran-
qiiilo, voltado para a esfera emocional, em cons-
tante sintonia afetiva corn seu meio ambience.
Sancho Panga quer saborear a vida, nao quer
entende-la. quer a festa, o jtibilo, as pessoas
TRANSTORNOS DA PERSONALIDADE
CONCEITO
0 transtorno de personalidade foi, ao longo
dos CrItimos dois seculos, nomeado de diversas
formas: insanidade moral ("moral insanity" de
Prichard), monomania moral, transtorno ou neu-
rose de carater, etc. Entretanto, o termo que mais
se popularizou entre os profissionais de satide
mental foi psicopatia. Tal termo foi, infelizmen-
te, utilizado de modo muito impreciso, ora se
identificando "psicopatia" corn personalidade
sociopatica, ora corn transtornos de personali-
dade em geral.
0 psiquiatra alemao Kurt Schneider defi-
niu os transtornos de personalidade de forma
muito oportuna; para ele o element° central
dos transtornos de personalidade (por ele de-
nominados de "personalidades psicopaticas")
que o individuo apresenta as seguintes ca-
racterfsticas basicas:
sofre e faz softer a sociedade,
assim como
"tipo oral" 6 descrito tradicionalmente como de-
pendente. sem iniciativa, passivo e acomodado.
A segunda forma de organizacao da libido,
chamada fase anal, caracteriza-se pelo marcado
interesse e prazer da crianca ern reter e expelir
as fezes, compreendendo o desenvolvimento da
libido do segundo ao terceiro anos de vida. 0
tipo anal pode ter seu prazer tanto concentrado
no reter seus afetos, atos e pensamentos, como
no expelir, expulsar abruptamente esses elemen-
tos psiquicos. E, sobretudo, urn tipo ambivalen-
te em relacao a essas duas atitudes basicas "re-
ter" e "expelir', podendo ser extremamente
"contido" e abruptamente explodir ern ataques
de colera. Os tracos de carater obsessivo e com-
pulsivo, a tendencia a avareza, ao desejo de con-
trolar a si mesmo e aos outros. assim como ten-
dencias a fantasias de onipotencia e pensamento
magic° sao associados a esse "perfil anal".
Na terceira fase (dos 3 aos 5 anos), denomina-
dafase fdlica, as criancas de ambos os sexos inte-ressam-se crescentemente pelos seus proprios ge-
nitais. Nessa fase, segundo .a formulacao freudia-
na, a libido dirige-se ao phalus do menino e, de
certa forma. a "ausencia" do phalus na menina.
Ha urn intenso investimento narcisico sobre esse
phalus (que 6 anatOmico/real e simbolico, ao mes-
mo tempo). Nesse contexto do complexo de Edi-
po a conflitiva da crianca a marcada pelo amor e
desejo dirigidos ao genitor do sexo oposto e 6dio
e rivalidade ao genitor do mesmo sexo. Assim. a
crianca, que inconscientemente hostiliza o geni-
tor do mesmo sexo, tambem inconscientemente
aguarda a represalia, sob a forma de castracao,
de destruicao daquilo que julga ser o mais vali-
oso em seu sec 0 tipo fcilico pode tender a urn
exibicionismo ffsico e mental. a urn narcisismo
de suas qualidades, atributos e "poderes", ou a
uma inibicao amedrontada em desejar qualquer
coisa que the seja de valor. Alem de exibicio-
nista. o tipo falico pode ser descrito como
"agressivo", intrometido, julgando-se narcisis-
ticamente merecedor de "penetrar" em qualquer
"espaco" que considera como seu de direito.
reais, nao o livro, as teorias, os grandes esque-
mas que categorizam a vida. 0 picnic° ao adoe-
cer mentalmente tende ao transtorno afetivo bipo-
lar, a depressao e as timopatias de modo geral.
0 tipo calitico ou muscular seria uma for-
ma intermediaria entre o picnic() e o leptosso-
mica. 0 sistema Osseo e o muscular sao desen-
volvidos. Ha predominio do diametro transver-
sal; ombros largos, cadeiras estreitas e pescoco
grosso. Os atleticos, tenderiam, assim como os
leptossomicos, a esquizofrenia ou a epilepsia.
segundo a visa° de Kretschmer.
...nao aprende coin a experiencia.
Isto quer dizer que no transtorno de perso-
nalidade ha uma marcante desarmonia que se
reflete tanto no piano intrapsiquico como no
piano das relacoes interpessoais. Os transtor-
nos de personalidade, embora de modo geral
produzam conseqiiencias muito penosas para o
indivfduo, familiares e pessoas proximas, nao e
166 PAULO DALGALARRONDO
facilmente modifictivel por meio das experien-
cias da vida; tende antes a se manter estavel ao
longo de toda a vida.
Segundo a classificacao atual de transtornos
mentais da OMS, a CID-10, os transtornos de
personalidades sao definidos pelas seguintes
caracteristicas:
Geralmente surgent na infancia ou ado-
lescencia e tendem a permanecer relativamente
estavel ao longo da vida do individuo ("0 me-
Milo é o pai do homem").
Manifesta urn conjunto de conzportamen-
tos e rengdes afetivas claramente desarmoni-
cos. envolvendo varios aspectos da vida do in-
dividuo, como, por exemplo, a afetividade, o
controle de impulsos, o modo e estilo de rela-
cionamento corn os outros, etc.
0 padrao anormal de comportamento e
de respostas afetivas e volitivas 8 permanence,
de longa duracdo e nao limitado ao episodio
de ma doenca mental associada (como por
exemplo uma fase manfaca ou depressiva, urn
surto esquizofrenico, etc.)..
0 padrao anormal de comportamento in-
clui muitos aspectos do psiquismo e da vida
social do individuo, nao sendo restrito a apenas
urn tipo de reagao ou uma area do psiquismo.
0 padrao comportamental é mal-adapta-
tivo, produz uma serie de dificuldades para o
individuo e/ou para as pessoas que corn ele con-
vivem.
Sao condicties. tzdo-relacionadas direta-
mente lesdo cerebral evidente ou a outro trans-
torno psiquidtrico (embora tenhamos alteracoes
de personalidade secundarias a lesao cerebral).
0 transtorno de personalidade leva a al-
gum grau de sofrimento (angdstia, solidao, sen-
saga° de fracasso pessoal, dificuldades no rela-
cionamento vividas corn amargura, etc.). Entre-
tanto. salienta a CID-10, tal sofrimento pode se
tornar aparente para o individuo apenas tardia-
mente em sua vida.
Geralmente o transtorno de personalida-
de contribui para um nzazt desempenho ocupa-
ciottal (no trabalho. estudos, etc.) e social (corn
familiares, amigos, colegas de trabalho ou es-
tudo). Entretanto. tal desempenho precario nao
condicao obrigatoria.
Segundo a CID- 10 (corn Iigeiras modificagoes
do autor), os transtornos de personctlidade
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
PARANOIDE
Sensibilidade excessiva a rejeicoes e a
contratempos.
Tendencia a guardar rancores persisten-
temente.
Desconfianca excessiva e uma tendencia
exagerada a distorcer as experiencias por inter-
pretar erroneamente as acties neutras ou amis-
tosas de outros como hostis ou depreciativas.
Obstinado senso de direitos pessoais e sen-
saga° de estar sendo injustigado em relacao a
esses direitos, em desacordo corn a situacao real.
Suspeitas recorrentes, sem justificativa,
corn respeito a fidelidade sexual do parceiro.
Tendencia a experimentar uma autovalo-
rizacao excessiva. manifesta em uma atitude
persistente de auto-referencia.
Preocupacao corn explicacties "conspira-
torias", nao baseadas em dados reais.
xico em psicopatologia polemic°, sempre dis-
cutivel. E urn transtorno ou uma doenca, urn
modo de ser ou uma categoria merlin arbitra-
ria? Sao perguntas que ainda estao em aberto.
Segundo a tradigao psicopatologica, os socio-
patas sao pessoas incapazes de uma interagao
afetiva verdadeira e amorosa. Nao tern consi-
deracao ou compaixao pelas outras pessoas,
mentem, enganam, trapaceiam, prejudicam os
outros, mesmo quem nunca lhes fez nada. Sao
popularmente conhecidos como "mau miter",
"tranqueira", "canalha", etc.
Eis aqui como a CID-10 os descreve:
Indiferenga e insensibilidade pelos senti-
mentos alheios.
Irresponsabilidade e desrespeito por nor-
mas, regras e obrigaciies sociais.
Incapacidade de manter relacionamentos,
embora nao haja dificuldade em estabelece-los.
Muito baixa tolerancia a frustracties e urn
baixo limiar para descarga de agressao, inclusi-
ve violencia.
Incapacidade de experimentar culpa e de
aprender corn a experiencia, particularmente
corn a punigao.
Propensao marcante para culpar os ou-
tros ou para oferecer racionalizagOes plausiveis
para o comportamento que gerou seu conflito
corn a sociedade.
Crueldade e sadismo sao frequentes nes-
se tipo de personalidade.
Encontra-se no magnifico conto "A Causa
Secreta", de Machado de Assis, uma das me-
lhores descrigOes de urn individuo sociopata. No
personagem Fortunato. Machado descreve de
forma genial a que ponto pode chegar o sadis-
mo e a crueldade db,um honiem. 0 medico Gar-
cia, ao observar a crueldade de seu amigo For-
tunato, assim pensa:
- Castiga sear raiva, pensou o medico, pela
necessidade de achar uma sensacclo de prazer,
que so a dor alheia the pode dar: é o segredo
deste homent.
No final do conto, Fortunato experimenta o
maior prazer ao observar como seu amigo (ami-
go?) Garcia sofre desesperadamente ao se des-
pedir da mulher secretamente amada, recem-
morta, beijandb-a:
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para bei-
jar outra vezo cadaver; teas eta& tzdo pode
0 betjo rebentou em sohtcos, e os olhos tido pu-
deram canter as lagrimas, que vieram em borbo-
tdes, lagrimas de antor calado, e irremedicivel
desespero. Fortunato, a porta, °tide ficara, sabo-
reou tratzqiiilo essa explosdo de dor moral que
foi longa, nutito longa, deliciosanzente longa.
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
BORDERLINE
Instabilidade emocional intensa.
Sentimentos cronicos de vazio.
Relacionamentos pessoais intensos mais
muito instaveis, oscilando em curtos periodos
de uma grande "paixao" ou "amizade" para
"oclio" e "rancor" profundos.
Esforgos excessivos para evitar abandono.
Dificuldades serias e instabilidade corn
referencia a auto-imagem, aos objetivos e pre-
ferencias pessoais (inclusive a sexual).
Atos repetitivos de autolesao. envolven-
do-se em atuagOes perigosas (por exemplo, guiar
muito embriagado evelozmente, intoxicar-se
corn muitas drogas, etc.).
Atos suicidas repetitivos.
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
ESQUIZOIDE
Distanciamento afetivo. afeto embotado,
aparente frieza emocional.
Capacidade limitada para expressar sen-
timentos calorosos, ternos ou raiva para corn os
outros.
Indiferenca aparente a elogios ou criticas.
Poucas atividades produzem prazer.
Pouco interesse em ter experiencias se-
xuais com outra pessoa.
Preferencia quase invariavel por ativida-
des solitarias.
Preocupacao excessiva corn fantasias e
introspeccao.
Falta de amigos intimos ou de relaciona-
mentos confidences.
Insensibilidade marcante para corn nor-
mas e convencOes sociais.
TRANSTORNO DE PERSONTALIDADE
ANTI-SOCIAL (SOCIOPATIA)
Os sociopatas sao individuos que, embora
reconhecidos por todos. tern urn status nosota-
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
TIPO IMPULSIVO
Tendencia marcante a agir impulsivamen-
te, sem consideragao pelas conseqUencias.
Instabilidade afetiva intensa.
Acessos de raiva intensos.
Explosoes comportamentais.
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
HISTRIONICO
Dramatizacao. teatralidade, expressao
exagerada das emogiaes.
Sugestionabilidade aumentada, facilmente
influenciado por outros ou pelas circunstancias.
Afetividade superficial, pueril e labil.
Busca continua de atencao e apreciacao
pelos outros, quer ser o centro das atenciies.
Sedugao inapropriada em aparencia (ves-
timenta. maquiagem. etc.) e comportamento.
PSICOPATOLOGIA ,,,,,,, .Itla •
168 PAULO DALGALARRONIM
Quadro 22.3 Semiotecnica da personalidade
Verificar pela observacao cuidadosa e prolongada do paciente e pelo relato de familiares e conhecidos. quais dos
tracos abaixo sao mais claramente presentee no paciente. Peca para os familiares descreverem como ele(a) a no
dia-a-dia. como é seu "jeito de ser", seu estilo pessoal, seu modo de reagir, de sentir e de atuar ao longo dos anos.
nas diversas situacoes de vida.
Erotizacao de situacoes a principio nao
estritamente "eroticas" (uma consulta ao den-
tista, uma audiencia corn o juiz, etc.).
Infantilidade. tendencia a reacoes infan-
tis, pouca tolerancia a frustracao.
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
ANANCASTICA OU OBSESSIVA
Preocupacao excessiva corn detalhes. re-
gras. listas, ordem. organizacao ou esquemas.
Perfeccionismo que interfere na conclu-
sao de tarefas.
Davidas excessivas sobre assuntos irrele-
vances.
Cautela excessiva.
Rigidez e teimosia.
1nsistencia incomum de que os outros se
submetam exatamente a sua maneira de fazer
as coisas.
Excesso de escrupulos e preocupacao in-
devida coin detalhes da vida.
A rigidez impede ou anula o prazer nas
relacoes interpessoais.
Aderencia excessiva as convencOes so-
ciais e certo pedantismo.
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
ANSIOSA OU DE EVITAc AO
Estado constante de tensao e apreensao.
Crenca de ser socialmente incapaz, de-
sinteressante ou inferior aos outros.
Preocupacao ou medo excessivo em ser
criticado ou rejeitado.
Restricoes na vida diaria devido a neces-
sidade de seguranca fisica ou psiquica.
Evitacao de atividades sociais e ocupa-
cionais que envolvam contato interpessoal sig-
nificativo. principalmente por medo de criticas,
desaprovacao ou rejeicao.
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
DEPENDENTE
I. Subordinacao da prOprias necessidades e
desejos aqueles de quem e dependente.
Solicitacao constantemente para que ou-
tros (dos quais depende) tomem as decisties im-
portantes em sua vida pessoal.
Sentimento de desamparo, quando sozi-
nho, por causa de medo exagerado de ser inca-
paz de se cuidar.
Preocupacao ou/e medo exagerado de ser
abandonado pelas pessoas das quais depende.
Capacidade limitada de tomar decisaes
cotidianas sem urn excesso de conselhos e re-
asseguramento pelos outros.
Relutancia em fazer exigencias ainda que
razoaveis as pessoas das quais depende.
0 sistema norte-americano de classifica-
cao dos transtornos mentais, DSM-IV, acres-
centa ainda dois tipos de transtornos de per-
sonalidade que julgamos relevante mencionar
devido ao seu interesse e importancia clini-
ca. sao eles:
Desconfianca constante
Sensivel as decepcOes e criticas
Rancoroso, arrogante
Culpa os outros
Rely indicativo
Sense-se freqUentemente prejudica-
do nas relacOes
IMPULSIVA
Explosivo, nao contem os impulsos
lmprevisivel
Nao sabe esperar
Nao tolera frustrac6es
Nao faz pianos para o futuro
Nao pensa antes de agir
Nao consegue refletir.
ANANCASTICA
Rigid°. metodico. minucioso
Nao tolera variacoes ou improvisa-
goes
Perfeccionista e escrupuloso
Muito convencional. segue rigoro-
samente as regras
Controlador (dos outros e de si)
Indeciso
ESQUIZOTIPICA
Ideias e crencas estranhas e de au-
tore ferenc ia
Desconforto nas relacoes interpes-
soais
Pensamento muito vago e excessi-
vamente metaforie,o,
Aparencia fisica exceritrica
Etticilia era tuna esquisita, para LiSa17110S a lin-
guagem da nine, on romanesca, para empirgar-
mos a definicao dos amigas. Tinha, em verdade,
tuna singular organizactio. Scutt ao pai. 0 pai
nascera com a amor do enigmatico, do arriscado
e do obscuro; ',Jarrett quando aparelhava tuna
expeclicao para it a Bahia descobrir a "cidade
abandonada". Etrlcilia recebeu essa heranga mo-
m!, modificada ot«tgrctvada pela natureza femi-
Irresponsavel. inconsecitiente
Frio. insensivel, sem compaixao
Agressivo. cruel
Nao sente culpa ou remorsos
Nao aprende corn a experiencia
Mente de forma recorrente
Aproveita-se dos outros
HISTRIONICA
Dramatiza. a muito teatral
Sugestionavel e superficial
Necessita de atencao e excitacao
Manipulativo
Deseja atencao constante
Infantil e pueril
Erotizacao de situacoes nao conven-
cionalmente "erotizaveis"
DEPENDENTE
Depende extremamente de outros
Necessita muito agradar
Desamparado quando sozinho
Sem iniciativa
Sem energia
Sem autonomia pessoal
EPILEPTICA
Irritabilidade. impulsividade
Desconfianca
Prolixidade. circunstancialidade
Viscosidade
Hipergrafia
Hiperreligiosidade
Hipossexualidade
nil. Nela dominava principalmente a content-
placcio. Era na cabega que ela descobria as ci-
dades abandonadas. Tinha os olhos dispostos
de maneira que tido podiam apanhar integral-
ntente os contornos dct vida. Contecou ideali-
zando as coisas, e, se ncTo acabou negando-as,
é certo que o sentimento da realidade esgar-
cou-se-lhe ate chegar is transpcirencict fina cm
que o tecida parece conFiutrlir se cam a at:
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
ESQUIZOTIPICO
Desconforto e incapacidade importance
para ter relacoes interpessoais Intimas.
Freqiientes ideias de autoreferencia ("tudo
que acontece no mundo se refere a ele").
Ideias e crencas estranhas, tendendo ao
pensamento magic°.
Experiencias perceptivas incomuns, in-
cluindo ilusoes corporais.
Pensamento e discurso incomuns, estra-
nhos. como, por exemplo. pensamento vago,
exageradamente metaforico. hiperelaborado ou
estereotipado.
Ideacao parandide, muito desconfiado.
Afetos inapropriados ou muito reduzidos.
Comportamento e/ou a aparencia fisica
(inclusive vestimenta) estranhos, os pacientes
parecem excentricos ou muito peculiares.
Ausencia de amigos Intimos ou confiden-
tes, alem dos parentes de primeiro grau.
Ansiedade excessiva em situacoes so-
ciais, que nao diminui com a familiaridade em
relacao a tal situacao, ou é colorida com idea-
cao paran6ide.
Descrevendo um personagem que muito
lembra uma personalidade esquizotipica, assim
se expressa Machado de Assis:
PARANOIDE ESQUIZOIDE
SOCIOPATICA
Frio (indiferente)
Distante, sem relacoes Intimas
Esquisito (estranho)
Vive no seu prOprio mundo
Solitario (isola-se)
Nao se emociona (imperturbavel)BORDERLINE
Relacoes pessoais muito instaveis
Atos autolesivos repetitivos
Humor muito instavel
Impulsivo e explosivo
Transtorno de identidade
Sentimentos intensos de vazio e
aborrecimento cr6nico
ANSIOSA
Dificuldade em descontrair-se
Preocupa-se facilmente
Teme situacoes novas
Atento a si prdprio
Muito sensivel a rejeicao
Extremamente inseguro
NARCISICA
Considera-se superior
Quer ser reconhecido como especial
ou anico
Fantasias de grande sucesso pessoal
Requer admiracao excessiva
E freqUentemente arrogante
23
Func5es psiquicas
compostas: a inteligencia e
suas alteracoes
170 PA UI.() DAI :A LA 'MOND()
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
NARCISICO
0 individuo tern urn senso grandioso (e
irreal) da importancia de sua pessoa. Julga ter
talentos especiais, espera ser reconhecido como
superior, sem que tenha feito algo concreto para
tanto.
Muito voltado para fantasias de grande
sucesso pessoal, de poder, brilho, beleza ou de
urn amor ideal.
Acha-se excepcionalmente "especial" e
"ilnico", acreditando que so pessoas ou insti-
tuicoes tambem excepcionalmente especiais ou
unicas possam estar a sua altura.
Requer admiracao excessiva.
Tende a ser "explorador" nas relaciies in-
terpessoais, buscando vantagens sobre os ou-
tros para atingir o seu fim ou sucesso pessoal.
Nao tern empatia pelas pessoas comuns.
E freqilentemente invejoso dos outros, ou
do sucesso dos outros, e acha sempre que os
outros tem inveja dele.
Mostra-se frequentemente arrogante.
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE DO
TIPO EPILEPTICO
Ha certa controversia sobre as alteracoes de
personalidade associadas a epilepsia e as dis-
funcOes do lobo temporal. Classicamente mui-
tos psiquiatras atribufram a epilepsia alteracties
tipicas de personalidade. Atualmente, sabe-se
que apenas uma porcentagem de pacientes corn
epilepsia. particularmente corn crises parciais
complexas. com focos epileptogenicos nos lo-
bos temporais, apresenta alteracOes de perso-
nalidade. 0 neurologista Norman Geschwind
descreveu ha alguns anos uma sfndrome de
alteracdes de personalidade relacionada tan-
to a epilepsia quanto aos transtornos neuro-
lOgicos relacionados as estruturas temporo-
limbicas (Benson, 1991). As alteracoes carac-
terfsticas da personalidade do tipo epileptic°
ou sIndrome de Geschwind sao:
Irritabilidade: 0 individuo se irrita corn
muita facilidade, aparentemente sem motivos.
Impulsividade: Tendencia a explosoes
comportamentais.
Desconfianca: Tendencia a uma atitude
paranaide em relacao as pessoas.
Proli.ridade: Tendencia a urn pensamen-
to vago, que nao chega a urn fim definido.
Geschwind acrescenta ainda os seguintes as-
pectos:
Viscosidade na interacao pessoal (indivi-
duo descrito como "grudento", "viscoso").
Tendencia a hipergrafia, a praticar a es-
crita de forma compulsiva.
Circunstancialidade, individuo corn pen-
samento que "roda" em torso do tema.
Tendencia ahiper-religiosidade, muito li-
gado a questoes misticas ou religiosas.
Tendencia a hipossexualiclade, vida sexual
ausente. sem interesse pela sexualidade.
Outras tendencias como: obsessionali-
dade, culpa, moralismo, dependencia, passivi-
dade, senso aumentado de urn "destino pessoal",
hostilidade, falta de humor.
... a afetividade certanzente é primordial.
Afetividade é o motor de qualquer conduta. Mas
a afetividade ndo modifica a estrutura cogniti-
va. Tomemos duas criancas em idade escolar,
por exempla. Ulna que adora matenititica, é
hiteressada e entusiasta, e possui todos os de-
nials predicados que voce iniagina. E Irma on-
tra que tem sentimentos de inferioridade, que
nao gosta do professor, e assim por diante. Utna
se adiantard muito nulls rapidamente do que a
outra, nas para antbas dois e dois fazes qua-
tro no final. Niio sao tres para a que nao gosta
de matematica, nem cinco para a que gosta.
Dois e dois ainda sera° quatro.
Jean Piaget
DEFINICOES BASICAS
A inteligencia é urn conceito fundamental
da psicologia moderna, que todos utilizam, en-
tretanto quase ninguem consegue defini-lo de
modo definitivo ou pelo menos amplamente
convincente. 0 proprio criador da principal es-
cala de avaliacao e mensuracao da inteligencia
em criancas e adultos, David Wechsler, certa
vez, ao comentar sobre a dificuldade em definir
exatamente o que é inteligencia, afirmou ironi-
camente: "0 que é inteligencia... ora, inteligen-
cia é aquilo que os melts testes medem..."
A inteligencia pode ser definida como a to-
talidade das habilidades cognitivas do indivi-
duo, a resultante, o vetor final dos diferentes
processos intelectivos. Refere-sea capacidade
de identificar• e resolver problentas novas, de
reconhecer adequadamente as situagoes viven-
ciais cambiantes e encontrar soluglies, as mais
satisfatdrias possiveis para si e para o ambien-
te, respondendo as exigencias de adaptacao bio-
logica e sociocultural. Deve-se deixar claro que,
mais do que qualquer outra funcao psiquica. a in-
teligencia nao é uma funcao material, delimitavel
e independence das formulacOes que sobre ela se
faz. A inteligencia é. portant°. um construto, urn
modo de ver e estudar uma dimensao do funcio-
namento mental, dimensao esta construfda histo-
ricamente pela psicologia, medicina e pedagogia.
A inteligencia tern uma dimensao essencial-
mente de rendimento psfquico. Refere-se assim
as habilidades intelectivas que con o minim°
de esforco empregado se °brim o maxima de
ganho on de rendimento fitncional.
Segundo Nobre de Melo (1979), sera tanto
mais inteligente o individuo quanto melhor e
mais rapidamente possa compreender o que su-
cede; quanto maior for o campo de informacoes
que consegue abarcar e integrar, quanto maior o
mimero e precisao dos conceitos e juizos que
consegue adquirir e utilizar, e quanto mais rapi-
da e adequadamente possa adaptar-se a situagbes
existenciais novas.
Alguns autores distinguem diferentes "tipos
de inteligencia", correspondentes as varias habi-
lidades ou areas da cognicao como: inteligencia
verbal, visuo-espacial, visuo-construtiva. inteli-
gencia aritmetica, capacidade logica, capacidade
de planejamento e execucao, de resolucao de
problemas novos, inteligencia para a abstracao,
para a compreensao, inteligencia criativa. etc.
1
I
4)
172 PAULO DALGALAKRONDO
ONTOGENESE DA INTELIGENCIA: 0
DESENVOLVIIVIENTO DA INTELIGENCIA
NA CRIANcA, SEGUNDO JEAN PIAGET
Como surge e se desenvolve a inteligencia
em urn individuo, de onde vem as habilidades
cognitivas que permitem ao sujeito adaptar-se
continuamente as exigencias de urn ambiente
cambiante e desafiador. Seriam elas predomi-
nantemente herdadas ou totalmente aprendidas
ao longo da educacao. 0 genial pensador e pes-
quisador sago Jean Piaget recusa uma solucao
unilateral. Para ele, a inteligencia na crianca nao
e nem somente herdada. nem apenas aprendi-
da. A inteligencia, os processos mentais que
criam, organizam e utilizam adaptativamente os
conceitos e raciocinios nao sao inatos, pois
mudam ao longo da vida; nao sao tambern ape-
nas aprendidos dos adultos, pois os adultos nao
nasceram corn elas, foram-nas adquirindo ao
longo de seu desenvolvimento pessoal. As Wins
das criancas sobre o mold° sac) "construcOes",
que envolvem estruturas mentais inatas e a expe-
riencia sociocultural. 0 desenvolvimento da
por sua vez, acorns pela substimicao (de
esquemas cognitivos previos), pela aquisiccio e
integracclo de novas esquemas cognitivos. e nao
apenas pela adicdo de habilidades cognitivas.
Piaget descreveu quatro estogios do desen-
volvimento. Para ele cada fase do desenvolvi-
mento da inteligencia deve ser considerada
como formada pqr estruturas mentais e com-
portamentais distintas em quantidade e quali-
dade. Tais estruturasdesenvolvem-se progres-
sivamente ao longo da vida da crianca. uma se
sucedendo a outra, enriquecendo-se gradativa-
mente a cognicao do individuo.
PERiODOS DO DESENVOLVIMENTO
COGNITIVO
Perfodo sensorio-motor: Ocorre nos dais
primeiros cows de vida. Nesse periodo, as es-
truturas mentais restringem-se ao dominio dos
objetos concretos. Na fase inicial predominam
as atividades reflexas congenitas. surgindo gra-
dativamente os primeiros habitos motores. pri-
meiros esquemas perceptivos organizados e afe-
tos diferenciados. 0 hebe ainda nao apresenta
urn pensamento propriamente dito. Ainda nao
existe a linguagem e a funcao simbolica, repou-
sando as atividades mentais exclusivamente em
percepcoes e movimentos. A atividade cogniti-
va do bebe concentra-se, portanto, sob urn con-
junto coordenado de atividades sensorio-moto-
ras. sem que participe a representacao ou o pen-
samento. A imitacao e urn procedimento fun-
damental nesse periodo para o desenvolvimen-
to da cognicao; a imitacao é aqui uma prefigu-
racao. urn nacleo embrionario da representacao,
no dizer de Piaget, "uma espdcie de represen-
taccio em atos materials e ainda nab em pensa-
mento".
E apenas no final do periodo sensOrio-motor
que irao surgir os "objetos permanentes". As
pesquisas de observacao detalhada desenvolvi-
das por Piaget revelaram que o universo inicial
do bebe é urn mundo sem objetos, consiste ape-
nas em "quadros moveis e inconsistentes", os
quais aparecem e. logo, desaparecem completa-
mente. Antes do final do primeiro ano de vida,
quando a mamadeira é afastada do campo visual
do bebe. ele chora desesperadamente como se o
objeto se tivesse desfeito. Quando um objeto é es-
condido acres de urn pano, o beb8 tern a sensacao
de que o objeto deixou de existir. Por volts dos 9 a
10 meses. o objeto escondido na frente do bebe
passa a ser procurado ativamente por ele, denotan-
do o infcio dos chamados "objetos permanentes".
No periodo sens6rio-motor nao ha ainda a
diferenciacao eu-mundo, a crianca esta total-
mente centrada em si mesma ("egocentris-
mo"). A partir do segundo ano de vida desen-
volve-se mais cabalmente a percepcao do
mundo externo. Os conceitos de "coisas",
"espaco", "tempo" e "causalidade". enquan-
to categorias praticas do dia-a-dia, vao se es-
truturar ao final deste periodo.
Period° pre-operatorio: Ocorre entre os 2
e os 7 anos de vida. Processa-se nesse periodo
o dominio dos simbolos e o desenvolvimento
da linguagem, dos sentimentos interpessoais e
das relacoes sociais. 0 brincar passa a ser urn
dos principals instrumentos do desenvolvimen-
to cognitivo da crianca pequenat
Segundo Piaget, entre I ano e meio e 2 anos
de idade surge uma funcao extremamente irn-
portante para a evolucao das habilidades cog-
niti vas posteriores, que consiste na capacidade
de poder representar alguma coisa. Urn objeto,
um acontecimento, passam a ter urn "significa-
do", que é representado por urn "significante"
especifico, que so serve para essa representa-
cao. Surgem e desenvolvem-se, portanto, a lin-
guagem, as imagens mentais, os gestos simbO-
licos, etc.
0 tipo de inteligencia do estagio pre-opera-
torio baseia-se naquilo que Piaget chama de
"meia lOgica". Nessa "meia logica" as operacoes
mentais ja obedecem a uma logica dada, entre-
tanto ela a incompleta, faltando-lhe, por exem-
plo. a nocao de reversibilidade nas operaciies e
de conservacdo ffsica. 0 pensamento logic° tra-
balha apenas em uma direcao. A nocao de iden-
tidade é, por exemplo, fundamentalmente quali-
tative, faltando a sua dimensao quantitativa. As-
sim, diz Piaget, uma crianca em fase pre-opera-
toria comete o erro logic° aftrmando que a quanti-
dade de agua varia de acordo corn a forma do seu
recipiente (nao reconhece a identidade quantitativa
da agua). Entretanto, esta mesma crianca ira afir-
mar que ao se mudar o recipiente é a mesma agua
(qualitativamente) que se encontra all.
Segundo Piaget, atividades semioticas, re-
presentativas, como o desenho, o brincar e a lin-
guagem, desenvolver-se-do. nesse periodo, corn
conseqUencias essenciais para o desenvolvimen-
to sociocognitivo: a palavra vai gradativamente
se interiorizando, plasmando-se uma linguagem
interior, base do pensamento propriamente dito.
Alem disso, a acao ganha progressivamente uma
dimensao totalmente social e, o que é mais fun-
damental, ocorrera um processo de interioriza-
cdo da acdo, isto é, progride-se de urn piano ba-
sicamente perceptivo e motor para urn piano de
imagens e experieniias puramente mentais.
Period() operatorio-concreto: Entre os 7
anos e 12 anos de idade. Nesse periodo a crian-
ca aprende a dominar cabalmente as classes, re-
lacoes, e ntImeros, assim como raciocinar sobre
eles. E o infcio do pensamento logic°. denomi-
nado por Piaget de "operacides intelectuais con-
cretas". A socializacdo desenvolve-se plena-
mente, na escola ou fora dela, surgindo o senti-
do de,cooperacdo social. A operatividade, mar-
ca do periodo operatorio-concrto, é caracteri-
zadatpela possibilidade da crianca agir seguin-
do uma logica, em funcao das implicacoes e con-
seqtiencias de suas ideias e pensamentos.
Entretanto, nesse estagio, as relacoes en-
tre as classes somente podem ser compreen-
didas quando apresentarem evidencia comple-
ta, isto é, quando estiverern de alguma forma
presentes ou relacionadas ao campo percep-
tivo. Os sistemas de pensamento, de simbo-
los e relacoes puramente abstratos, so irdo
chegar ao seu pleno desenvolvimento no pe-
riodo seguinte.
Period° operatorio-formal: Dos 12 aos 16
anos: Nesse periodo o adolescente envolve-se
com o dominio do pensamento abstrato, corn
os sistemas simbOlicos e categorias abstratas
mais gerais, corn o funcionamento mental e cog-
nitivo do "mundo adulto" (ideias e sistemas de
ideias como a Otica absoluta, o sistema demo-
cratic°, os sistemas filosoficos, etc.). Desenvol-
ve-se, nesse ultimo periodo, a capacidade de
analisar o pensamento pr6prio em relacao ao
dos outros. Aqui o adolescente ja tern condi-
cOes de trabalhar corn relacoes complexas e
abstratas, podendo, inclusive, prever as situa-
cOes necessarias para provar ou refutar hipote-
ses initials.
Nessa Ultima fase, tornar-se-do possiveis os
sistemas logicos e abstratos mais desenvolvi-
dos do pensamento. Tais sistemas podem incluir
complexas combinacoes de classes. sistemas de
transformacao de proposicOes logicas como
operacoes inversas, negativas. recfprocas e con-
trarias. Aqui torna-se viavel uma formalizacdo
16gico-matematica desenvolvida do pensamen-
to (transformacdo de urn conjunto de ideias. de
proposicoes, de hipoteses, de teorias, em for-
mulas matematicas gerais). utilizando-se plena-
mente as operaciies logico-abstratas. a nocao de
reversibilidade, os agrupamentos matematicos
e de classe.
Finalmente, cabe lembrar que ha certo con-
senso de que a inteligencia. pelo menos em par-
te, depende de influencias geneticas. A correla-
cao media da inteligencia dos pais corn a inteli-
gencia dos filhos biologicos fica em torno do
0,50; entre gemeos identicos. em torno de 0.90
e entre pais e filhos adotivos em torno de 0.25
(Sims, 1995). Entretanto, embora os fatores gc-
neticos sejam importantes, o componente am-
biental (aprendizado, estfmulos psicossociais
nos periodos "cruciais" dp desenvolvimento
cognitivo da crianca. nutricdo e condicOes ade-
l'SI(;LWA I IIL IUIII r. ,,,
174 P•\ULO n - ALGA LANNONUO
ASPECTOS GERAIS
0 retardo mental é definido pela OMS
(1993) como uma condicao de desenvolvimen-
to interrompido ou incompleto das capacidades
mentais, manifestando-se pelo comprometimen-
to das habilidades cognitivas que sao adquiri-
das ao longo do desenvolvimento na infancia e
adolescencia (revisao em King e cols., 1997).
Incluem principalmente as aptidoes intelectivas,a linguagem e a capacidade da adaptacao so-
cial. IndivIduos corn retardo mental compreen-
dem cerca de 2 a 3% da populacao geral (Gross-
man, 1973).
0 retardo mental no adulto caracteriza-se
pela presenca de intimeras limitacoes em areas
como linguagem e comunicacao, o autocuida-
do (satide, higiene e seguranca), habilidades do
individuo em alcancar as expectativas de seu
grupo cultural, capacidade de utilizacao dos re-
cursos comunitarios e capacidade adaptativa
basica na escola, trabalho e/ou lazer. Urn QI
inferior a 70 (aproximadamente dois desvios
padrao abaixo da media populational) é neces-
sariamente esperado em individuos corn retar-
do mental. Entretanto, nao deve ser feito o diag-
nostic° de retardo mental caso tenha sido veri-
ficado. por meio de testes de inteligencia, urn
QI abaixo de 70, mas as habilidades sociais,
escolares e profissionais indiquem uma boa e
complexa adaptacao social e urn alto rendimento
intelectual individual (neste caso o QI baixo foi
urn resultado "falso-positivo"). 0 diagnostic°
de retardo mental, portanto, exige, alem de uma
performance inferior a 70 nos testes individuais
de Ql, a identificacao de urn padrao de dificul-
dades e incapacidades de adaptacao e baixos
rendimentos cognitivos na vida diaria do indi-
viduo.
Deve-se lembrar tambern que os deficientes
mentais apresentam. de modo geral, as habili-
dude visuo-espaciais mais desenvolvidas do que
capacidades cognitivas relacionadas a lingua-
gem. 0 retardo mental nao deve ser considera-
do uma forma de doenca mental sensu strictu.
Os deficits na resolucao de problemas, no pen-
samento abstrato e no julgamento social sao con-
seqiiencias de urn desenvolvimento intelectual
deficitario, e nao de um processo adquirido de
transtorno do pensamento. Entre as limitacaes
mais significativas no individuo corn retardo
mental leve estao as dificuldades corn o pensa-
mento abstrato, metaforico e categori al, a inca-
pacidade de planejamento estrategico e de pre-
visa° das conseqiiencias de *les complexas.
A rigidez cognitiva e a dificuldade em apren-
der corn os erros e desenvolver a partir deles
novas e diferentes estrategias cognitivas e de
Ka°, sao elementos caracterfsticos do retardo
mental.
Outros transtornos mentais ocorrem corn fre-
qiiencia associados 3 deficiencia mental. Trans-
tornos comumente associados ao retardo men-
tal leve e moderado sao: transtornos de com-
portamento e de desenvolvimento na infancia,
autismo e epilepsia. Nos casos de retardo men-
tal leve e moderado, muitas vezes nao se reco-
nhece uma etiologia clara. presumindo-se uma
interacao de fatores geneticos e ambientais des-
favoraveis. Em nosso meio. a privaciio psicos-
social (ausencia dos pais ou substitutos, desnu-
tricao, falta de estfmulos cognitivos e afetivos,
violencia domiciliar, etc.) representa, presumi-
velmente, urn fator relevante para a deficiencia
mental leve. Retardo mental grave e profundo
revela, par outro lado. na maioria das vezes, uma
causa organica reconhecfvel, e corn freqUencia
vem acompanhado de transtornos fisicos e neu-
rologicos como epilepsia, deficit visual e/ou
auditivo e incapacidades motoras.
Quociente de inteligencia (QI)6 uma medi-
da conventional da capacidade intelectual do
individuo, baseada na averiguacao das distin-
tas habilidades intelectuais (verbais, visuo-es-
paciais, abstracao, calculo. etc.). Ele é obtido
por meio de testes individuals padronizados,
como o WAIS-R (Wechsler Adult Intelligence
Scale-Revised) o WISC-R (4chsler Intelligen-
ce Scale for Children-Revised), o Stanford-Bi-
net Intelligence Scale, etc.
Pela aplicacao dos testes em extensas amos-
tras populacionais obtiveram-se normas quan-
titativas do quociente intelectual. A media po-
pulacional do QI a igual a 100. Na faixa de 85 a
115 (QI normal media) encontram-se 68% da
populacao. Urn QI superior a 115 ou 120 é con-
siderado uma inteligencia superior, e urn QI aci-
ma de 130 6 considerado uma inteligencia "mui-
to superior".
A avaliacao da inteligencia deve buscar iden-
tificar urn padrao geral de rendimento intelec-
tual, nao se fixando apenas ou supervalorizan-
do areas especificas da inteligencia. A interpre-
tacao dos resultados de testes de QI deve ser
feita corn cautela e flexibilidade, sendo o teste
considerado urn guia, urn indicativo, e nao alga
absoluto. 0 contexto cultural do individuo, os
valores, normas e estilos cognitivos de seu gru-
po etnico e social devem ser seriamente consi-
derados na interpretacao dos resultados. Obvia-
mente uma crianca indfgena, camponesa ou cri-
ada em uma favela provavelmente tera estrate-
gias cognitivas e formas de pensar ern parte di-
ferentes daquelas nas quais o teste foi padroni-
zado e normatizado. Deve-se tomar cuidado na
interpretacao dos resultados, principalmente
quando houver uma discrepancia entre as su-
bescalas verbais e de performance. Entretanto,
apesar de tais ressalvas, os testes de QI tern o
seu lugar como instrumento diagnostic° auxi-
liar na clinica psiquiatrica.
INTELIGENCIA LIMiTROFE
Os individuos corn urn QI entre 70 e 85 sao
consideradoslimftrofes ou intelectualmente bor-
derline. Tais individuos nao sao considerados
deficientes mentais,le muitos deles nao revelam
dificuldades especiais na vida, apenas as de-
monstram quando confrontados corn exigencias
cognitivas mais complexas e sofisticadas. Mui-
tos individuos limftrofes costumam apresentar
dificuldades intelectuais somente no contexto
escolar, quando chegam ao 20 grau ou nos pri-
meiros anos da universidade. Tais individuos
podem se beneficiar corn adaptacoes do ambien-
te escolar (orientacao escolar), corn uma adequa-
cao das expectativas individuals e familiares as
suas rears habilidades cognitivas e profissionais,
e. eventualmente, corn apoio psicoterapico espe-
cificamente planejado para tal condicao.
RETARDO MENTAL LEVE
Tamb6m denominado oligofrenia leve ou
"debilidade mental". Os individuos que apre-
sentam este grau de retardo revelam nos testes
de inteligencia urn Q1 na faixa de 50 a 69. A
idade mental do adulto corresponde a uma
crianca de cerca de 9 a 12 anos. Uma etiologia
organica a raramente identificada. Este 6 o gru-
po mais freqUente de pessoas corn retardo men-
tal, compreendendo cerca de 85% de todos os
individuos corn retardo mental.
Segundo a OMS (CID-10), individuos que
apresentam um grau leve de retardo mental ca-
racterizam-se par:
Apesar de a aquisicao da linguagem nos
primeiros anos de vida poder ter sido demora-
da, sao capazes de usar a fala adequadamente
em situagoes do dia-a-dia.
Podem ser totalmente independentes em
relacao aos cuidados proprios (comer, vestir-se.
lavar-se, controle de esfincteres, etc.).
As habilidades praticas e domesticas po-
dem ser normais.
Sao potencialmente capazes de realizar
trabalhos que requeiram mais habilidades pra-
ticas do que intelectuais, como trabalhos manuals
nao especializados ou semi-especializados.
Podem ter problemas especfficos de lei-
tura e de escrita.
Terao dificuldades em lidar corn concer-
tos abstratos complexos, raciocfnio lOgico, pro-
blemas matematicos, etc.
No caso de casarem-se e terem filhos, pode
revelar-se imaturidade emotional e serias difi-
culdades para lidar corn os diversos desafios e
exigencias do casamento e da criacao dos filhos.
RETARDO MENTAL MODERADO
Sinonimos antigos de retardo mental mode-
rado sao: oligofrenia moderada ou "imbecili-
dade". Os deficientes mentais moderados reve-
lam nos testes de inteligencia urn QI na faixa
de 35 a 49. A idade mental do adult() corres-
ponde mais ou menos a uma crianca de 6 a 9
anos. Estes individuos apresentam urn desen-
volvimento neuropsicomotor, particularmente
da linguagem e da compreenslio, lentificados e
incompletos. Os individuos coin retardo men-quadas de sadde, apoio afetivo, etc.) 6, segura-
mente. estrategicamente fundamental para que
o individuo possa desenvolver plenamente o seu
potencial genetic°.
RETARDO MENTAL
176 PAULO DA UM LA R RONDO
Quadri, 23.1 Aspectos gerais do retardo mental
Dificuldades de
comportamcnto
no ambience
escolar
nao e
considered°
RM
85% Transtornos de
conduta. autismo,
epilepsia
10% Transtornos de
conduta. autismo,
epilepsia
3-4% Deficits motores e
sensoriais.
epilepsia
1-2% Deficits motores e
sensoriais.
epilepsia
GMn de Quociente Made mental Mellor nivel
refardo intelectual (corresponde escolar
menial-RM (QI) a tuna
crion(a de:)
alcancdvel
LinOryfe
(nay e
70-84 Dificuldades
irao aparecer
apenas no
22 grau
RM leve 50-69 9-12 anos 62 a 72 series
do 12 grau
RM moderado 35-49 6 a 9 anos 22 serie do
12 grau
RM grave 20-34 3 a 6 anos Nao conscgue
frequenter
escola
RM profundo abaixo de 20 menos de 3 anos Nao consegue
frequenter escola
% do fora! de Transtornos
individuos associados
coin RM
Quadro 23.2 Semiotecnica da inteligencia
Avaliagao simplilicada da inteligencia: Verificar inicialmente se o paciente este coo o nivel de consciencia
preserved°. se este orientado temporoespacilamente, qual o seu grau de concentracao e motivacao e seu este-
do de humor (estas varieveis influenciam muito na interpretacao da performance intelectual).
Qual a escolaridade do paciente? Se repetiu na escola. quantos anos de repetencia? Quais as motivos aparentes?
(fugia da escola. brigava muito. faltava. tinha medo da professors. "nao conseguia aprender'. etc.)
Perguntar entao (ao paciente ou a urn familiar) se etc sabe fazer comas. se sabe lidar coin dinheiro (conferir os
trocos). se se veste sozinho. see capaz de it sozinho de onibus ao centro da cidade. se ye televise° e entende
que acontece nas novelas ou filmes. Apds essa triagem inicial. verificar a extensao do vocabulario do pa-
ciente. se sabe ler e escrever. se. ern algum periodo de sua vida. leu gibis. revistas. livros ou jornais. se soube
escrever seu npme. bilhetes e cartes. Tenter entao verificar a capacidade de abstracao, generalizacao e sofis-
ticacao da inteligencia, perguntando:
Que ayes (passe/0s) voce conhece? 0 que é uma fera? 0 que a urn monstro? 0 que é urn homem covarde? Qual a
diferenga entre fee conhecimento? De onde se obtem o acticar? E o met? E a gasolina? E o dlcool?
Testes simplificados de inteligencia:
True de Wilson (Othmer e Othmer. 1994): Bascado na capacidade de celculo de multiplicagao. este teste simples-
mente soticita ao paciente que faga mentatmente multiplicagoes por 2. progressivamente: 2 x 3; 2 x 6: 2 x 12; 2 x
24. e assim por diante.
Teste de Kent (Othmer e Othmer. 1994)
Conhecimentos:
De quo silo feitas as cases? (Resposta: 1 ponto para cada material. ate 4 pontos) 4
Digs-me o name de algum peixe (Resposta: 1 ponto para cada peixe. ate 4 pontos) 4
Digs-me o some de algumas cidades grandes (Resposta: 1 ponto. cidades pequenas nao velem) 4
0 que se pode fazer coo a areia (Resposta: brincar = 1 ponto: usar na construcao = 2 ponto‘;
Fabricar o vidro = 4 pontos 4
Que metal é atraido polo ima? (Resposta: ago = 2 pontos: Ferro = 4 pontos) 4
Quais as cores da bandeira brasileira (Resposta: verde e amareto = I ponto;
verde. amarelo. azul e branco = 2 pontos 2
Resolugao de Problemas:
Se uma bandeira bate ou ondeia em direcao ao sul, de que diregao entao vein o vento (R: norte)
A que horas do dia a sombre de uma pessoa, estando no sol, a menor? (R: ao meio-dia)
Por que a lua parece ser major que as estrelas? (R: For que eta este mais baixa = 2 pontos; Porque
eta este mais perto da terra = 3 pontos. Por que objetos mais prOximos parecem maiores = 4)
Se a sua sombra aponta pars o nordeste, onde entao este o sot? (R: no sudoeste = 4 pontos)
SOMA TOTAL = 36
Nivel intelectual QI aproximado Escore no teste de Kent Escore no teste de Wilson
Deficiente <70 0-18
Borderline 70-80 19-20
Normal inferior 80-90 21-23
Media 90-110 24-31
Normal superior 110-120 32-33
Inteligencia superior > 120 34-36
tal moderado contribuem corn cerca de 10% do
total da populacao corn retardo mental. Tern-se
aqui as seguintes caracteristicas:
1. A aquisicao escolar 6 bastante limitada,
podendo apenas alguns individuos corn este grau
de retardo aprenderem elementos de leitura, es-
crita e calculos. Dificilmente vao alem do pri-
meiro ou segundo ano escolar. Entretanto, falta
use socialmente chit dessas habilidades, tra-
tando-se mais de uma aquisicao mecanica do
que pienamente intelectiva.
Sao capazes de realizar tarefas praticas
simples, se forem adequadamente estruturadas
e houver supervisao tecnica apropriada.
Uma vida completamente independence
na vida adulta e raramente alcancada.
Muitos desses individuos, apesar de visi-
velmente deficientes e "desajeitados" no con-
tato interpessoal, gostam da interacao social e
podem estabelecer uma conversa simples.
Uma etiologia organica pode ser identifi-
cada em muitos d9.§ individuos corn retardo
mental moderado.
Epilepsia e incapacidades neurologicas e
fisicas sao comuns.
RETARDO MENTAL GRAVE
Este grau de retardo mental era denominado
no passado de "imbecilidade" (como no caso
do retardo moderado). Tais individuos tem um
Q1 de 20 a 34, corn uma idade mental corres-
pondente a uma crianca de 3 a 6 anos. Esses
individuos tiveram. durance a infancia, urn de-
3
3
4
4
2 x 12
2 x 24
2 x 48
2 x 96
2 x 192
2 x 384
senvolvimento motor e neuropsicologico bas-
tante prejudicado e retardado. Nao a rara a au-
sencia completa ou quase total da capacidade
comunicativa: essas pessoas muitas vezes nao
falam ou apenas aprendem algumas palavras.
Podem aprender algumas tarefas basicas rela-
cionadas aos cuidados pessoais e higiene, mas
necessitam. na vida adulta, de apoio e supervi-
sao constantes. Nao conseguem freqiientar es-
cola e se apresentam corn constante epilepsia,
problemas neurolOgicos e ffsicos. A maioria
deles. entretanto, ainda a capaz de andar sem
auxflio. Este grupo inclui cerca de 3 a 4% dos
individuos corn retardo mental.
RETARDO MENTAL PROFUNDO
O termo utilizado no passado para denomi-
nar o retardo mental profundo era "idiotia". 0
QI desses individuos estaabaixo de 20. Sao pes-
soas gravemente limitadas em sua capacidade
de entender (mesmo comandos simples), ou de
agir de acordo corn solicitaceles ou instrucaes.
Muitos dos individuos corn retard() mental pro-
fundo ficam restritos no leito (por transtorno
motor grave), sem capacidade para a fala e sem
controle voluntario dos esfincteres. Deficits vi-
suais e auditivos graves sao tambem frequen-
tes, assim como epilepsia e outras doencas fisi-
cas. Para sobreviver. requerem constante supervi-
sao e cuidados basicos. Na maioria dos casos pode-
se identificar lesoes cerebrais e presenca de uma
etiologia organica. Esse grupo compreende cerca
de 1 a 2% dos individuos corn retard() mental.
Quadro 23.2 Semiotecnica da inteligencia (continuactio)
NEUROSE E PSICOSE
Em mcu trabalho recentemente publicado, 0 Ego e o Id (1923b), prupus
uma clifercnciaciio do aparelho psiquico, com base na qual determinadsi
iiiimero de relacionamentos pode scr representado de maneira simples e
perspicua. Corn referencia a outros pontos — no que concerne a origem c
papel do superego, por exempla — bastante coisa permanecc obscura c n5u
elucidada. Ora, pode-se raZoavelmente esperar que uma hipotese desse tipo
se mostre Util e prestadia tambem cm outras direcOes, quarto mais Rao seja
capacitando-nos a ver o que ja conhecemos desde outro angulo, a ogrupii-lo
de modo diferenle e descreve-lo mais convincentemente. Tal aplicacao do
hipotesetambem poderia trazer consigo urn retorno proveitoso do cinzenta
tcoria para o verde perpetuo da experiencia.'
No trabalho que mencionei, descrevi os numerosos relacionamentos
clependentes do ego, sua posiciio intermecliaria entre o mundo extern() e o id
c seus csforcos para comprazer todos os scus senhores ao mesmo tempo. Em
vinculac5o corn uma seqiiencia de pensamento levantada em outros campus,
relativa a origem e prevencao das psicoses, OCOITell-Me agora uma formula
simples que trata com aquilo que talvez seja a mais importante diferenea
genetica entre uma neurose e uma psicose: a neurose é o resultado de urn
conJlito entre o ego e o id, ao passo qua a psicose o de.sftclzo ant logo de
um disuirbio semelhante nas relaccies entre o ego e o in extern°.
Ha certamente bons fundamentos para desconfiar-se de tais solucaes
simples de urn problema. Ademais, o maxim° que podernos esperar e que
essa formula se mostre correta nas linhas gerais e mais grossciras. Isso,
porem, je seria algo. Lembramo-nos tambem, de imediato, de todo urn
in:tmero de descobertas e achados que parecem apoiar nossa tese. Nossas
analises demons tram todas que as neuroses transferenciais se originam de ........
recuar-se o ego a aceitar urn poderosoimpulsoinstintual do id ou a ajuda-lo
a encontrar urn escoador ou motor, ou de o ego proibir aquele impulso o
objeto a que visa. Em tal caso, o ego se defende contra o impulso instintual
I [Grau, tcurer Freund, 1st alle Thcoric,
Und grin des Lebens goldner Baum.
Cinzenta, meu qucrido amigo, a toda teoria,
E verde somentc a arvorc dourada da Vida.
Metistoreles, cm Fauslo, Parte 1, Cena 4.1
167
1
mechanic o mecanism° da repressao. 0 material repriniido Rita contra cssc
destino. Cria para si preprio, ao longo de caminhos sobrc Os quais O cgo Ilan
tem podcr, ulna representacao substitutiva (que se impoe ao cgo mcdiante
ulna coneiliacao) o sintoma. 0 ego dcscobre a sua unidade amcacada c
prejuclicacla por esse intiuso e continua a tutu contra a sintoma, tal comp
dcsviou o impulso instintual original. Tudo isso produz o quadro de uma
neurosc. Nao c contradicao clue, empreendendo a repressilo, no fundo o ego
esteja segundo as ordens do superego, ordens quc, por sua vez, SC originam
de hilluencias do mundo externo quc encontraram representacao no supere-
go. Mantem-se o fato de que o ego lon:ou o partido dcssas forcas, de que nele
as exigencias delas tern mais forca que as cxigencias instintuais do id, e quc
ego 6 a forca clue poe a repressao em movimento contra a parte do id
interessacla c fortifica a repressao por mein da anticatexia (la resistencia. 0
ego entrou cm conflito corn o id, a servico do superego c da realidade, c cssc
estado de coisas ern toda neurosc do transferencia.
For outro lido, é igualmente Moil, a partir do conhecimento quo ate agora
obtivemos do mecanismo das psicoses, aduzir cxemplos quo apontam para
urn distUrbio no rclacionamento entre o ego e o mundo externo. Na amencia
de Meynert— uma confusao alueinatoria aguda que constitui talvez a forma
mais extrema e notavel do psicose — o mundo exterior nao c perccbido de
modo algum ou a pereepcao dole nao possui qualquer efeilo.' Nomialmente,
mundo externo govcrna o ego por duas maneiras: em primeiro lugar, atraves
do percepcties atuais e presentee, sernpre renovaveis; e, em segundo, median-
te o armazenamento de lembrancas de percepeoes anteriorcs, as quais, sob a
forma dc urn 'mundo interno', sao uma possessao do ego c parte constituintc
dole. Na amencia nao apenas 6 recusada a aceitacao de novas percepcoes;
tambem o mundo interno, que, coma copia do mundo externo, ate agora
rcpresentou, perde sua significacao (sua catexia). 0 ego cria, autocraticamen-
le, urn novo mundo externo e interno, e nao pode haver &Blida quanta a dois
faros clue cssc novo mundo e construido de acordo corn os impulsos desejo-
sos do id e que o motivo dessa dissociacao do mundo externo e alguma
frustracao muito seria de urn desejo, por parte da realiciade — frustracao quc
parsec intoleravel. A estreita afinidade dessa psicose corn os sonhos normais
e inequivoca. Uma precondicao do sonhar, atom do mais, e o estado de sono,
I [Una passagem no Capittrlo VIII do Eshop do Psicamilise, pOstinno, do Freud (1040a
[19381) habilita Oslo alinnacno. Cf. nota de rodape I, pig. 170, adiantel
c Lima this c.aracteristicas do sono e o convict° afastamcnto
da percepcao c
do mundo externo.'
Sabemos que outras formas de psicosc, as esquizofrenias, inclinam-sc a
)
acabar cm uma hebetude afctiva— isto e, cmsurna perda dc toda participaciio
no mundo extern°. Corn referencia a genesc dos delirios, iniirricras analises
nos ensinaram quc o delirio Sc entontra aplicado coma urn rcmcndo no lugar
cm
quc originalmente uma fcnda apareceu na relacao do ego corn o 'nuncio
cxterno. Sc cssa pl'econdicao de urn conflito corn o mundo externo Firm nos
6 muito mais obscrvvel do quc atualmente acontece, isso se dove ao fato dc
clue, 110 quadro clinic() da psicosc, as manifestacties do proccsso patogenico
sac) amiudc recobcrtas por manicestacoes de uma tcntativa de cura ou uma
reconstrucao.2
A ctiologia comum ao inicio de urea psiconeurose c de uma psicosc
scmprc permanecc a mcsma. Eta consiste em uma frustracao, em uma
nao-realizacao, de urn daqucles clescjos de infancia quc nunca stio vcnci-
dos c clue cstao too profundamente cnraizados em nossa organizacao
filogeneticamente .cleterminada. oEssa frustracao c, ern illtima analise,
semprc uma-TrUstracao-externa, mas, no caso individual, cla pode procc-
der do agente interim (no superego) quo assumiu a representacao das
exigeneias da rcalidade. 0 efeito patogenico depends de o ego, numa
tensdo conflitual desse tipo, permanccer fief a sua dependencia do mundo
extcrno c tentar silcnciar o id, ou etc se deixar derrotar polo id e, portanto,
scr arrancado da real iciade. Uma complicaeao e introduzida nessa situacao
aparentcmcnte simples, contudo, pela existencia do superego, o qual,
atraves de urn vinctilo ainda nao claro para nos, une em si influencias
originarias tanto do id quanto do mundo externo, c constitui, ate cotta
ponto, urn model° ideal daquilo a que visa o esforco total do ego: uma
reconciliaclio entre os seus divcrsos relacionamentos dependentes.4 A
atitude do superego deveria scr tomada em consideracao — o que ate aqui
nao 101 leito — cm tocla forma de enfermidade psiquica. Podemos provi-
soriamentc presumir quo tern de haver tambem doencas quc se basciam
cm um conflito entre o ego c o superego. A analisc nos da o direito dc
1 [Cf. a artigo metapsicolegico sabre sonhos (191 7cf).)
2 [Cf. a anilise de Schreber (1911c), EdicZo Standard
Brasilcira, Vol. XII, pigs. 94-5, IMAGO
Editora, 1976.]
3 [Vcr algumas observaeocs no exams da frustraei'o cm 'Tipos do Descnvolvimento da
Neurosc' ( I 912c), &kap Slumlord Brasileira, Vol. XII, pig. 295, IMAGO Editora, 1976.]
4 [CT '0 Problem:1 Economic° do Masoquismo' (1924c), pig. 134, adiantc.)
169
1 /
168
supor quc a melancolia e urn exemplo tipico dcsse grupo, e reservariamos
o nome de `psiconcuroscs narcisicas' para distiirbios desse tipo. Tampou-
co colidira corn nossas impressoes se encontrarmos razoes para scparar
cstados como a melancolia das outras psicoses. Percebcmos agora que
pudcmos tornar nossa formula genetica simples mais completa, scm
abandonti-la. As neuroses de transferencia correspondem a um conflito
entre o ego c o id; as neuroses narcisicas, a urn conflito entre o ego c o
superego, e as psicoses, a urn conflito entre o ego e o mundo externo. E
verdade que nao podernos dizer irnediatamente se de fato corn isso
lucramos algum conhecimento novo, ou apenas enriquecemos nosso es-
toque de formulas; penso, porem, que essa possivel aplicackda diferen-
ciactio proposta do aparelho psiquico em urn ego, urn superego e urn id
nao pods deixar de dar-nos coragem para manter constantemente em vista
essa hipotese.
A tese dc que as neuroses e as psicoses se originam nos conflitos do
ego corn as suas diversas instancias governantes — isto é, portanto, de
quc elas refletcm urn fracasso ao funcionamento do ego, que se ye em
dificuldades para reconciliar todas as varias exigencias feitas a ele—, essa
test precisa ser suplementada em mais urn ponto. Seria desejavel saber
em que circunstiincias e por que meios o ego pode ter exito em emcrgir
de tais conflitos, que certamente estao sempre presentee, sem cair enfer-
mo. Trata-se de um novo campo de pesquisa, onde sem diavida os mais
variados fatores surgirao para exame. Dois deles, porem, podem ser
accntuados em seguida. Em primeiro Lugar, o des fecho de todas as situa-
coes desse tipo indubitavelmente dependera de consideracoes econOmicas
— das magnitudes relativas das tendencias que estao lutando cntrc si. Em
segundo lugar, sera possivel ao ego evitar uma ruptura em qualquer
dire* deformando-se, submetendo-se a usurpacoes em sua propria tini-
dade c ate mesmo, talvez, efetuando uma clivagem ou diviao de si
proprio.' Dcsse modo as incoerencias, excentricidades e loucuras dos
homens apareceriam sob uma luz semelhante as suas perversoes sexuais,
atraves de cuja aceitac5o poupam a si proprios repress8es.
1 [Isso constitui uma anterior alus5o a um problema que deveria ocupar Freud cm scus anus
posteriorcs. Foi pela primeira vez discutido amplamente no artigo sobrc 'Fctichismo' (1927e),
c. depois, em dois trabalhos inacabados, cm 'A Divi§5o do Ego no Proccsso de Defesa' ( I Me
[1938)) c no Capituio VIII do Esboco (1940a [1938)).)
170
Ern coneluslio, resta a considcrar a qucstiio (IC saber qual pode ser u
mccanismo, analogo a repressito, pot. cujo intcrmedio o ego se desliga do
mundo extern°. Isso, penso cu, nao pole ser respondido corn novas investi-
gacacs; porem, segundo parcceria, tat mccanismo deve, tal cones a represso,
abranger uma retirada da catcxia enviticia pelo ego.'
1 [Esse problems — cuja natureza Freud posteriomtente chamou '
Varlet:gluing', 'rejcietio'
tambein foi debatido nos artigos posteriores mencionados na nota de rodape anterior. Ver
nom de rodape I do Editor Ingles a 'A Organizacao Genital Infantir, ncste volume pig. 159,
achna, para um estudo mais complcto da quest5o.)
171
A PERDA DA REALIDADE NA NEUROS.E E NA PSICOSE
Rccenteinciud como uma das caracteristicas que difercnciam
tuna neurose de uma psicose 0 fato do em uma 'neurose o ego, em sua
dependencia da realidacic, suprimir urn .fragmento do id (da vida instintual),
ao passo quo, cm uma psicose esse mesmo ego, a servico do id,,se afasta de
urn fragment° da realicinde. Assim, Kara uma neurose o fator decisivo seria
a predomin'aneia da influoncia.da rcalidadc, emluarito.para uma.psicosc.esse
fator seria a predominancia do id. Na psicose a perda de realidade estaria
necessariamente presence, ao passo que na neurosc, scgundo pareceria, essa
pada seria evitada.
isso, porem, ntio concorda cm absoluto corn a observacao clue todos nos
podcmos fazes, do que toda ncurose perturba de algum modo a relacao .do
pacicnte corn a realidade servindo-Ihe do urn meio de se afastar da realidade,
c clue, cm suns formas graves, significa concretamente uma fuga da vida real.
Essa contradicao parecc seria, porem.0 facilmente resolvida, e a explicacao
a scu respeito na verdade nos auxiliary a compreender as neuroses.
A contradicao, pois, existe apenas enquanto mantemos os olhos fixados
na situavrio no comp da_pcurDs_e_quanslo o ego, a sservieo da realidade, se
clispoe a rePressilo.de umitnpulsslinstip_tukl. Porem isso nao é ainda a propria
neurose. Ela consiste antes nos proccssos quo fornecem uma compensacao a
parte do id danifiCacla - isto é, na reacao contra a rcpressao e no fracassoda
repressrm. 0 afrouxamcnto da relacao corn a realidade é uma consequencia
dcsse' scgundo passo na formacao do uma neurosc, c nao dcveria surpreen-
der-nos quo urn exame pormenorizado demonstre que a perda cla realidade
afeta.exatamente aqueic fragmento de realidade, cujas exigencias resultaram
no represszio instintual ocorrida.
Nada tic novo existe cm nossa caracterizacdo da neurose como.o rcsul-
tado de uma repressiTio fracassada. Vimos dizendo isso par todo o tempo,2 c
apcnas devido ao novo contcxto onde cstamos considcrando o assunto foi
neccssario rcpcti-io.
I 'Neurosc c Psicose (19246) [ncste volume, Ng. 167).
2 (A nociio de que 0 'retorno do rcprimido' constiWi 'a docnca propriamcmc ja esta
cnunciada no Rascunbo K da correspondacia corn Flicss, de 1" de janciro dc 1896 (Freud,
1950u). Poueo mail iarde, i'reud reormulou essa ideia, utilizando as iialavras concrcuis
'fracasso da defesa' como equivalcntcs a 'rctorno do rcprimido', na Seca° II do scgundo
artigo sobre 'Thc Noun-Psychoses of Defence' (18966)1
205
cidade ---- a adaptar-sc as exigencias da realidade, a ',iv ix11' (Neccssida-
dcl'.1 A ncurosc c a psicosc (II ferem won da outra omit° mais cm sua primeira
reacao introdutoria do quc on tentativa de reparacao que a segue.
Por conscguinte, a cliferenca inicial assim se expressa no desfecho final:
on ncurosc, urn fragment° da rcalidade C cvitado por uma especie de fuga, no
passe quo na psicosc, a fuga Uncial 6 succdicia por uma lase aliva do
remodelamcnto; na ncurosc, a obedioncia inicial C sucedida pot. uma tentaliva
adiada do fuga. Ou aioda, expresso de outro moclo:At ncurosc nao repudia a (.:'?•
rcalidade, apcnas a ignora; a psicose a repudia e tenta substitui-la. Chamamos
um comportamento de 'normal' ou `saclio' se de combina certas caracteris-
liens do ambas as rcacoes — se repudia a rcalidade Lao p0000 quarto ulna -)
ncurosc, mas Sc depois so esforca, como faz uma psicose, por efetuar uma
alteracito dcssa rcalidade. Naturalmcnte, cssc comportamcnto conveniente c
normal concluz a realidade do trabalho no mundo externo; etc do se detain,
como na psicosc, cm efeWar mudancas in ternas. Ele Ilan C mats autoplristico,
alas cdophistico.2
Em uma psicose, a transformacao da realidade C executada sobre os
precipitados psiquicos .dc antigas relay:5es Com era — isto C, sobrc Os traeos
de memOria, as idCias c os julgamentos anterionnente derivaclos da realidade
c atraves dos quais a realidade foi represenlada na mente. Essa whit*,
porem, jamais foi uma relacao fechada; era continuamente enriquccida e
al tem& por novas percepcoes. Assi In, a psicosc tambem depara corn a tarela
de conscguir para si propria percepcoes de um ripe que correspondi0 nova
rcalidade, c isso mu ito radicalmcnte se efetua mediante a alucinac5o10 fato
de cm tantas formas c casos de psicose as paranwesias, Os dclirios e as
alucinacoes que ocorrem, serem de canter mui to aflitivo e cstarem I igados a
uma geracao de ansiedade, C sem dCvida sinal de que todo o processo de
remodelamento e levado a cabo contra forcas que se Ihe opOem violentamen-
te. Podernos construir o processo segundo o modelo de uma neurose coin
qual cstamos familiarizados. Nela vemos que uma reacao de ansiedade
estabelece scmpre quc o instinto reprimido faz uma arremetida para a frente,
que o desfecho do conflito constitui apenas uma conciliacao e nao propor-
ciona satislacao completa. Provavelmente na psicose o fragmento do reali-
I I Vcr '0 Problema Econ6mico do Masoquismo' t I 924c), pig. 186, acimad
2 [Esscs iermos s5u provavelmentc ntribuidos a Fercnczi, que os cmpregou cm urn artigo sobre
'The Phenomena of Hysterical Materialization' (19196, 24; trad. inglcsa, 1926, 97). Ai,
pureni, de parecc atribui-los a Freud, quo, contudo, nao par= to-los utilizado en, wino lugar
que n5o fosse essa passagem.]
207
Incidentalmente, a mcsma objecaosurge de maneira sobremodo amt.
tuada quando estamos lidando corn uma neurose na qual a causa exci tante (a
tens traumatica') é conhecida e onde se pode ver como a pessoa in teressada
volta as costas aexperiencia, c a transfers a amnesia. Permitam-me retornar,
a titulo de exemplo, a urn caso analisado ha muitos anos atras,' em que a
patients, uma jovem, estava enamorada do cunhado. De pe ao lado do lcito
de morte da irma, era ficou horrorizada de ter o pensamento: 'Agora de esta
livre e pode casar comigo.' Essa cena foi instantaneamente esquecida e assim
processo de regressao,2 que conduziu a sous sofrimentos histericos, foi
acionado. Exatamcnte nesse caso 6, ademais, instrutivo aprender ao longo dc
que via a neurose tentou solucionar o conflito. Ela se afastou do valor da
mudanea quo ocorrera na realidade, reprimindo a exigencia instintual clue
havia surgido — is to C, sethamor pelo cunhado. A reacao psicotica tcria sido
uma rejeicao' do fato da morte da Irma.
Podcriamos esperar que, ao surgir uma psicose, ocorre algo analog° ao
processo de uma neurose, embora, C claro, entre distintas instancias na mente.
Assim, poderiamos esperar que tat4betn na psicose duas etapas pudessetn ser
discernidas, das quais a primeira arrastaria o ego para longe, dessa vez para
longe da realidade, enquanto a segunda tcntaria reparar o dano causado c
restabelecer as relacoes do individuo corn a realidade as expensas do id. E,
de fato, determinada analogia desse tipo pode ser observada em tuna psicosc.
Aqui ha igualmente (Ins etapas, possuindo a segunda o carater de uma
rcparacao. Acima disso, por6m, a analogia cede a uma semelhanca muito
mais ampla entre os dois processos. 0 segundo passo da psicose, C verdade,
destina-se a rcparar a perda da realidade, contudo, nao as expensas de irma
restricao corn a realidade — sena° de outra maneira, mais autocratica, pela
criacao de uma nova realidade que nao levanta mais as mestnas objecoes quc
a antiga, que foi abandonada. 0 segundo passei portanto, na neurose como
na psicose, C apoiado pelas mesmas tenclenciaslEm ambos os casos serve no
descjo de poder do id, que nao se deixara ditar pela realidade. Tanta a neurose
quanta a psicose sao, pois, expressao de uma rebeliao por parte do id contra
mundo externo, de sua indisposicao — ou, caso prefecirem, dc sun incapa-
I Ern Estialos solve a Histeria (1895d). [Edidio Standard El rasi leira, Vol. II, ptig. 205 c 216, •
IMAGO Editors, 1974. As palavras da pacicntc, Frau Elisabeth von R., nao s5o citadas
textualmentc aqui.]
2 (A palavra alcm5 6 'Regression', nil() 'Verdrdngung' ('repress5o'), cm todas as ediciies.)
3 [Vcr rota de rodapo I do Editor Ingle's a 'A Organizac5o Genital Infanta' (1923c), pig. 159,
acima.)
206
cladc rcjcitado constantemcntc Sc impoc a mcnte, lal como o instinto repri-
mido faz na neurose, e é por isso que, em ambos os casos, os mecanismos
[anthem s5o os mcsmos. A elucidac:Tio dos divcrsos mccanismos quc, nas
psicoses, sa-o projetados para afastar o individuo da realidade c para recoils-
truir cssa Ultima, constitui uma tarefa para o estudo psiquiLrico especializa-
do, ainda nao empreendida.'
Ex iste, poilantd, outra analogia entre uma neurose e uma psicosc no Pa°
de em ambas a tarefa empreendida na segunda etapa ser parcialmentc
mal-succdida, do vez que o instinto reprimido e incapaz de conseguir urn
substituto complcto (na neurose) e a representac5o da rcalidadc nao pode scm
remodelada em fonnas satisfatorias (nao, pelo menos, cm todo tipode docnca
mental). A enfase, porem, e diferentc nos dois casos. Na psicose, cla incide
inteiramente sobre a primeira etapa, quc e patologica cm si prOpria c so pode
conduzir a enfermidade. Na neurose, por outro lado, cla rccai sobre a segunda
=pa, sobre o fracasso da repressao, ao passo que a primcira etapa pode
alcancar exito, e realmente o alcanca em ininneros casos, scm transpor os
limites cla saiide — embora o faca a urn cello preco e nao scm deixar atras de .
si traps do dispe'ndio psiquico que exigiu, Essas distincoes,. e lalvez muitas
outras tainbem, sElo resultado da diferenca topografica na sittia* inicial do
conflito patogenicO ou seja, se nele o ego rendeu-sea sua lealdade perante
o mundo real on a sua dependencia do id. • •
Unto neurose geralmente sc contenta em evitar o fragmento da realidade
em apreco c pro teger-se contra entrar cm contato corn ele. A clistincao.nitida
entre neurose e psicosc, contudo, e enfraquecida pela circunstAncia de que •
tambem na neurose nao faltarn tentativas de substituir uma realidade clesa-
gradavel por outra que esteja mais de acordo corn os desejos do individuo.
lsso e possibilitado pela ex istencia de urn 'nuncio defantasia, dc urn dorninio
~l que ficou separado do mundo extern() real na epoca da introducfio do
:trincipio de rcalidadc. Esse dominio, desde ent;io, foi mantido livre das
pretensnes das exigencias da vida, como uma especie de `reserva%2 elc nflo
inacessivel ao ego, mas so frouxamente ligado a etc. E deste mundo dc
fantasia que a neurose haure o material para suas novas construcoes de duel°
1 [Cf., no cntanlo, alguns comecos fcitos pclo prOprio Freud no caso da paranaia (Edicito
Standard Brasilcira, Vol. XII, pigs. 93-5, IMAGO Editora, 1976) c da 'parafrcnia' (Edicao
Standard Brasilcira, Vol. XIV, pigs. 102-3, 231-3 c 261-2, IMAGO Editora, 1974)1
2
[Cf. o artigo sobre os 'Dois Principios do Funcionamcnto Mental' (1919/),13(1106S/w/on/
Brasilcira, Vol. XII, pigs. 281 c 282, IMAGO Editora, 1976.;
c gcralmenic cncontra csse material polo caminho da rcgressito a urn passado
real satisfatorio.
Dificilmente sc podc duvidar quc o mundo da fantasia dcscrnpcnhc a
inesmo papcl no psicose, c de quo ai tambern. die seja o deposit° do qual
dcrivam os materais ou o padr5o para construir a nova realidade. Ao pass°
quo o novo c imaginiirio mundo externo do tuna psicose tenta colour-se no
lugar da rcalidadc — um fragment° diferente daquele contra o qual tern de
defender-se c emprestar a esse fragment° uma importancia especial e urn
sign i ficado sccrcto que nos (nem sempre de mod° inteiramente apropriado)
chamamos de simbollco. Vemos, assim, que tanto na neurose quanto na
psicosc intercssa a questao nao apenas rclativa a uma perckt da realidade,
mas tambem a urn substituto para a realidade.
208
209
CAPITULO III
UMA PROPOSTA DE METODO PARA A
PSICOTERAPIA DE PSICOTICOS
IVIetodo de cura•. Criagoo de tuna nova nu-
stio. Completa as iluthes disperses. Como
consequencia a gente volta a procurer as
pessoas.
(CEJ. Carta do 6/93)
0 metoclo proposto rid() é decorrencia direta das teorizacries
resumidas anteriormente, A elas e as invariantes. delas retiraclas,
somam-se experiencias colhidas nesses anos de trabalho corn
psiceticos. Nesse sentido, sempre que possivel, procurarei dar
consistencia as propostas corn exemplos tipicos quo realcem os
aspectos clinicos.
Antes de pensarmos o contend° do metodo, vamps nos ater
sobre suas formas e seus objetivos:
3.1.CARACTERfSTICAS ESPERADAS DO
METODO PROPOSTO
lg. -- Que tenha uma'proposta para a fase de surto.
Por que nal° esperar que a crise psicOtica termine para so
clepois iniciar a psicoterapia?
Fromm-Reichmann je nos deu algumas respostas. Juntando-
se as nossas, temps:
0 tratamento polo mesmo profissional em fases de surto
psicetico e de intersurto poderia ajudar a dar ao processo psico-
terapico urn sentido de continuidade, de historicidade, ttio im-
portantes para a integracdo da crise aspect() fundamental da
proposta.
Para poder ser integrado, o material de fase de surto tern de
se tornar conhecido. 0 terapeuta iria selecionando, coin vistas ao
trabalho futuro, aspectos que dificilmente viriarn a Iona nou-
tras circunstancias.
115
E comum haver fases de angdstiae sofrimento durante o
surto, sendo por isso urn dos momentos em que o paciente mais
precisa de ajuda. A disponibilidade do terapetita pode fazer corn
que o paciente sinta-se mais aceito, situagao que tenderia a favo-
recer-lhe a vinculagao.
A fase de surto é urn momenta de isolamento comuni-
cacional. A possibilidade dum contacto psicoterdpico que di-
minua o isolamento poderd alterar a maneira corno o paciente,
futuramente, venha a se dispor a enfrentar o entendimento da
crise.
Algumas vezes o paciente, estereotipadamente, relaciona o
psiquiatra ao conteddo de seu delfrio. Seremos computadores,
anjos ou Hitler. Quando bem conduzida, tal estereotipia poderd
servir-nos de porta de entrada para o material delirante.
Para corroborar tais observagoes podemos citar os trabalhos
de Amaro (4, 5) a respeito do abandono na psicoterapia grupal.
Apos exaustiva pesquisa a autor pode concluir que o vinculo do
terapeuta corn o paciente obtido atraves da psicoterapia indivi-
dual, anterior ou concomitante ao grupo e corn o mesmo terapeu-
ta, favorecia o fortalecimento do vinculo, decorrendo disso me-
nor Indice de abandono em relagao ao grupo controle. Corn isso,
temos corno clara a importancia do vincula do terapeuta corn o
paciente na climinuigao do lndice de abandono do processo psi-
coterapico.
2Q, Que tenha circularidade
E de esperar que determinada proposta psicoterdpica com-
porte um tipo de age° a partir da chegada do paciente. Assim, o
inIcio do processo deverd ocorrer sempre na chegada. do pacien-
te, independentemente de estar em pre-surto, surto ou. pos-surto.
Como é mais comum o paciente estar em surto, iniciaremos a
descrigao da proposta a partir daf.
3Q. Que possa ser aplicado em clinica particular ou hospital
psiquidtrico.
Num hospital a liberdade de agao, por indmeras razdes, cos-
turna ser menor. Aspectos administrativos, econemicos.e sociais
tern maior influencia. Tenho supervisionado processos psicoterd.-
picas de psicOticos em diferentes hospitai.s, inclusive fora do
estado, e tais fatores costumam ser limitantes. No consultorio,
116
entretanto, as responsabilidades e os riscos tendem a aumentar
principalmente nas fases agudas.
Os centros de formagao de terapeutas c outras enticlacles de
servigo pdblico raramente aceitam tratar de psicoticos. Os pa-
cientes costumam ser encaminhados, quando em surto, para
hospitals de psiquiatria, onde sao intemados, para depois conti-
nuar o tratamento em ambulatorio ou, em casos mais raros, em
servigo de psicoterapia.
Nos dltimos anos, entretanto, temos visto aumentar o encami-
nhamento de psicOticos para o consultorio particular.
Por isso, tal proposta de metodos deve saber reconhecer e
observar as diferentes situagees.
4Q. Que seja adaptado a cultura.
Esperamos que uma proposta de agan seja coerente corn o
meio cultural no qual ela se insere, mesmo porque a patoplastia
da doenca é culturalmente dependente. A presente proposta de
metodo nao tem nenhuma pretensao a qualquer universalidade.
Asp ectos intraculturais oriundos de diferengas etnicas, reli-
giosidade ou de educagao escolar, devem ser absorvidos pelo
terapeuta que se mantiver atento. Certo grau de conhecimento da,
dindmica social e certo embasamento de teorias sociologicas
poderao ajudar nesse sentido.
5u. Que ndo seja finalizado
Nurn campo tao denso e ao mesmo tempo tao impreciso
como o do tratamento de disturbios mentais, qualquer proposta
finalizada tenderia a levar a perda de contribuigoes nos mais
variados nfveis. Mais do que isso, poderia criar urn vies capaz de
esconder inevitaveis conflitos na pratica psiquidtrica, conflitos
esses que, quando reconhecidos e absorvidos, poderao funcionar
como estImulos ao aprimoramento de tal prdtica.
6°. Quo nao afaste outros mecanismos de tratamento.
As praticas socioterapicas a psicofarmacologicas devem ser
integradas a prEitica psicoterapica, tendo em vista possibilitar -
maior eficiencia no tratarnento.
Por nao estar preocupado corn os aspectos estatisticos ou
sistemas de avaliagees, utilizei, sempre que julguei necessario, o
auxflio dessas formas de tratamento.
117
3.2. OBJETIVOS DUMA PSICOTERAPIA DE PSICOTICOS
Eu gostaria de iniciar corn voce urn oulro
projeto. Urn projeto artistica de alto
receptividade.
0 que norteia urn metodo de agao e as posturas dole decor-
rentes e justamente o objetivo a ser alcangado. Uma colocagao
clara dos objetivos se faz necessaria.
0 que buscamos?
Muitos psiquiatras utilizam como criterios avaliativos de tra-
tamento de psicoticos o rulmero de surtos que o paciente apre-
sentou durante determinado tempo. Tal criterio tern, sem dilvida,
validade. Mas nao é absoluto e pode ser questionado. Exagere-
mos urn exemplo:
Urn paciente A pode ter ficado 5 anos sem ter tido surto, mas
durante esse period° ter-se isolado, produzido pouco em sua agao
sobre o mundo, nao ter encontrado satisfagao nas relagOes estabe-
lecidas e ter permanecido corn o mundo emotional embotado.
Outro paciente, B, em contrapartida, pode ter tido dois surtos
no mesmo period°, mas estabelecido algumas relagoes satisfato-
rias, ter agido no mundo segundo seus limites e ter vivenciado,
de quando em quando, suas emogbes. Suponhamos ainda que no
final desse period° se encontre razoavelmente integrado ao seu
meio.
Nao estaria ele corn melhor evolugao?
Sabemos que alguns pacientes podem, durante meses, manter
quadros delirantes ou alucinatorios sem que o meio ambiente o
perceba. Disso pode decorrer surto visivel, suicidio ou mesmo
desaparecimento dos sintomas. Como, a partir disso, utilizar o
numero de surtos como criterio Arlie° de medir a evolugdo do
processo psicatico?
Outro criterio que tern sido utilizado e o de readaptagao
social. E amplo e produtivo, mas tambem merece ser discutido.
0 come da questa() este naquilo que chamamos de readaptagao.
Ela podera ser intensamente positiva mas podera tambem servir
para a manutencao e o ocultamento dos sintomas.
Tal discussao daria, talvez, uma tese.
Alguns psicotioos, quando da alta hospitalar, encontram-se
"adaptados", aptos a cumprir o que deles se espera ou o que
118
acreditam ser o esperado. Cumprem papeis estereotipados sem
nenhum projeto consistente. Poderao manter-se assim por longos
periodos.
Nao poderemos esperar que o psicotico funcione segundo
nossos padripes de adaptagao. Se assim o fizermos, poderemos
estar condenando esse individuo a uma busca do inatingivel.
Dove-se levar em conta SUE'S necessidades e seus limites.
Ha anus, no inicio dos trabalhos, tinha cinco objetivos pro-
postos: a criagdo de urn projeto; uma relagao satisfatoria corn as
pessoas (uma comunicagao possivel); uma rematrizagao (refor-
mulagao da relagao fillio/mae e filho/sociedade); urn auxilio no
desenvolvimento de uma identidade e a resolugao de dinamicas
conflitivas.
Tais objetivos cram estritamente pessoais.
A partir de algum tempo a proposta metodologica mudou..
Corn o desenvolvimento do Grupo de Estudos de Psicoterapia de
Psicoticos (GREPP), ligado ao Servigo de Psicoterapia do Insti-
tut° de Psiquiatria, pudemos elaborar outros criterios.
Foi tea° por tres academicos da FMUSP urn levantamento
bibliografico dos principais parametros avaliativos da evolugdo
de psicaticos em psicoterapia. Desses, em discussao corn o grupo
de estudo, foram selecionados 12, considerados os mais frequen-
ter nos levantamentos.
Apes terem sido detalhados, foram enviados a cerca de 50
psiquiatras, psicoterapeutas ou nao, a maioria de Sao Paulo.
Tomamos o cuidado para I.ncluir profissionais das mais variadas
formageies. Cada profissional escolheu 6 dos 12 criterios, ou soja,
os que julgasse mais importantes.
Fizernos um trabalho orientado por estatistico levando em
conta os aspectos ponderais e optamospelos seguintes criterios:
Funcionamento socio-ocupacional.
Relacionamento familiar.
Convivencia social.
Ocorrencia de novos surtos.
Os outros oito criterios fornecidos como opgoes cram: lazer,
pianos para o futuro (excluindo-se ideagoes delirantes), use de
medicagao neuroleptica, presenga de sintomas produtivos, pre-
senca de sintomas negativos, dependencia de parentes para rea-
lizar atop:, possibilidade do compreensao do discurso do paciente
e manutengao de relacionarnento sexual, Este Ultimo foi o crite-
19
1)
(Ca Carla de 7/83)
rio considerado por todos como o menos imporlante.
Corn urn X2 observed° de 35,297 e urn X2 critic° de 19,67
(g.1. = 11, grau de significancia = 5%), podemos dizer que as
frequencies esperadas e observadas foram significantemente
diferentes e que, portanto, os criterios escolhidos tern alta possi-
bilidade de servir de criterios padroes pare a avaliagao dos obje-
tivos de psicoterapia de psicoticos, no meio em que a amostra foi
colhida.
3.3. A PROPOSTA: DIVISAO EM FASES
Por razOes didaticas e operacionais, decidi dividir a proposta
em fases. Acredito existir diferentes momentos durante o proces-
so psicoterapico que podem sec coerentemente delineados, de
forma a permitir ao profissional obter urn conjunto de atitudes
mais especificos a cada,situagdo.
Assim, diante de determinada atitude do paciente, a resposta
do terapeuta podera varier segundo a fase do processo em vigen-
cia.
Se a proposta é criar uma sistematizagao de posturas, nao
estou em busca de uma rigidez de atitudes e acredito que so a
sensibilidade do terapeuta a situagdo podera determinar-lhe a
resposta final.
As fases dimensionadas sao as seguintes:
Fase de vinculacab,
2" Fase de auto-questionamento,
3' Fase de diferenciagdo do ego e de organizagao do psi-
quismo e do cotidiano,
Fase de entrada na realidade, e
Fase de ancoragem.
Vamos nos aprofundar em cada uma delas:
3.3.1. FASE DE VINCULAcA0
Eu montei uma sociedade para acabar
corn o demenio!!! Convido-o a parti-
cipar!!!
(CEJ. Carta de 8/84)
Duas cenas numa sale de triagem do Servigo de Psicoterapia:
uma paciente auto-referente tern alucinagoes auditivas ligadas a
120
uma situagdo sexual que ate entao nao contara a ninguem. Por
que contou ali? Outro paciente apresenta um quadro delirante
semi-estruturado, corn auto-referencia e persecutoriedade, logo
epos urn desvio de verba que fizera numa empresa em que traba-
lhava. Por que contou o fato ali?
Outra paciente psicotica, epos inicio da psicoterapia, viaja
pare o exterior, once logo entra em crise de anglistia. Telefona
pare o terapeufa e nao para a familia. Por que?
Poderiamos dizer que, ao desconhecer• o outro como ser
humane, o estereotipam e o utilizam segundo sues proprias ne-
cessidades. Poderiamos, inversamente, dizer que, ao reconhecer
o outro, tomam-no como possivel saida para suas angAstias.
sao respostas que ocultam talvez fenomenos mais profundos.
Pichon-Riviere conceituou o vinculo como uma estrutura
dinamica em continuo movimento, que engloba tanto o sujeito
quanto o objeto, tendo essa estrutura caracteristicas consideradas
normals e alteragOes interpretadas como patologicas*. Considera
ainda que o vinculo pode ser tido como normal quando ambos
tem a possibilidade de fazer uma livre escolha de objeto como
resulted° duma boa diferenciagdo entre ambos.
No caso do vinculo em questao, poder-se-ia dizer que temos
duas pessoas, uma das quaffs especializada em certo nivel da
problematica humana e a outra como testemunha direta dessa
problematica. 0 funcionamento dessa relagao dependere. da ati-
tude de ambos.
Sem vinculagdo a psicoterapia nao ocorrera.
0 vinculo do terapeuta corn o psicotico tern algumas ca
racteristicas que merecem urn repensar a questao:
Todo paciente traz uma proposta de relagao. No caso do
psicotico, as duas propostas mais frequentes sao, ou a recusE
total ao tratamento, ou sua aceitagao integral.
Quando urn psicOtico inicia a psicoterapia, sabemos pelas
invariantes que possui alguns modelos de relacionamentos pa•
tologicos. Simbioses, cismas, vieses, papeis complementaret
patologicos, falsos reconhecimentos, — muito disso pode ser
encontrado. 0 terapeuta devera ter a nocao clara quo vincular
para aquele paciente podera ter uma conotagao diferente da dele.
(*) Pichon-Riviere. E. — Teoria do Vinculo. Sao Paulo, Martins Fontes, 1986, p. 12.
121
3' Quando o paciente e levado a tratamento, é comum existir
ansiedade familiar. E urn momenta de desestabilizagdo das rela-
goes de familia que afeta ainda mais os je. precarios modelos de
relacionamento do paciente.
V A medida que o paciente vai-se vinculando corn o tera-
peuta, poderao ocorrer modificagoes nos padroes dos vfnculos
corn sua familia que acarretarao varios rearranjos. Decorre disso a
importancia em reconhecer-se as principais forgas atuantes sobre
paciente, para neutralize-las quando possivel.
5' A formagao dum vincula saudavel pode influenciar na
evolugao do processo doentio. Nesse sentido, o vincula ja consti-
tui tratamento.
Mesmo que o paciente esteja em surto, mesmo que estereo-
tipe o terapeuta ou que o inclua no contend° de seu material
delirante, ainda assim a existericia do terapeuta como pessoa
real, podera dar consistencia real a vida do paciente.
Aspectos transferenciais fortes, como o jogo afeto/odio ou
dependencia/destruigao, poderao ocorrer.
Tais apontamentos demonstram quantas dificuldades pode-
rao ocorrer no vincula corn psic6ticos. Torna-se necessario fazer
urn delineamento de tais dificuldades, bem como das propostas,
a fim de neutralize-las.
Por uma questao meramente didatica dividi as dificuldades
em quatro niveis evidentemente entrelagados: dificuldades do
paciente, dificuldades do terapeuta, dificuldades presentes na
relagao e dificuldades oriundas do mundo exterior.
I- Dificuldades do paciente
a) Isolamento comunicacionaI. 0 psicOtico fica isolado
comunicacionalmente. Este. impedido de entender e de ser enten-
dido. Assim, isola-se dos outros. Je. vimos o quanta a extrapola-
gao da vida interior coisifica o mundo exterior, tornando-o ver-
dadeira representagao a servigo do psiquismo doentio.
Esse isolamento e tambem afetivo. Uma analise mais profun-
da demonstra que mesmo pacientes mais brincalhOes costumam
ter as relagoes superficiais, porque estereotipadas.
A paciente Celia chegou a ficar quase meio ano pronuncian-
do inonossilabos nas sessOes.
Ao contrail.° do que muitos acreditam, as psicoticos tambem
nao se relacionam entre si, principalmente na vigencia do surto.
A postura de confirmagao do individuo que discutiremos
proximamente torna-se fundamental para possibilidade de
haver diminuigao do isolamento.
b) Caracteristicas da personalidade psicotica. As caracteristi-
caS ja apresentadas nas invariantes :tandem a dificultar a vincula-
gao. Entre elas destacam-se o comprometimento da identidade, a
auto-referencia, a persecutoriedade e a tendencia a simbiose. 0
terapeuta devera aprender a contracenar, dentro do possivel, com
cada uma dessas caracteristicas. Desde ja podemos salientar que
clima da sala devera ser afavel e acritico, para resultar em
diminuigao da ansiedade e da desconfianga.
Uma grande resistencia aos dados da realidade. Essa
dificuldade torna-se maior ainda pela tendencia social de impor,
a todo custo, a realidade consensual. Como veremos, torna-se
necessario haver aceitagao do mundo psicotico do paciente, de
posigao existencial. Clara que, levado pelas necessidades de
configurar uma realidade propria, o psic6tico podera criar situa-
Vies inaceitaveis no piano da convivencia humana.
Nessa situagao torna-se importante a colocagao nitida de
limite, o que pode ser feito de urn jeito simples, dando-lhepara-
metros de agao, protegendo-se e protegendo-o.
Certa vez o paciente CEJ ameagou-me de mao estendida.
Bastou colocar-lhe corn firmeza, mas gentilmente, minha desa-
provagao, para que recolhesse a mao, desculpando-se.
Recusa ao tratamento. 0 principal motivo que temos vista
levar o paciente a recusar o tratamento encontra-se na suposigao
de que sua aceitagao implicaria urn reconhecimento da loucura.
Apesar disso quase sempre se percebe urn pedido de apoio im-
plicito.
Como transformar tal pedido em alga que possibilite o i131-
cio?
Muitas vezes a saida dada pelo proprio paciente. Ele nao
aceita fazer o tratamento, mas aceita comparecer uma vez par
semana para discutir os progressos da medicina ou para trocar
ideias sabre religiao. Isto the diminui o temor de passar par
louco. Nao sao armadilhas pois sao propostas feitas pelo pacien-
te.
Diferentes disso sao as armadilhas preparadas pela familia. A
mais comum e o convite para it a uma festa na casa do paciente,
para iniciar o vincula, Embora respeite a ansiedade familiar,
122 123
considero tais propostas perigosas, pois assentam a psicoterapia
numa mentira, justamente para urn tipo de paciente que 6, em
geral, desconfiado.
se a recusa se mantiver?
que temos feito nesse caso e iniciar o processo por reu-
nioes familiares, nas quaffs a situagao do psic6tico e conjunta-
mente analisada. E comum que, no instante em que a dinamica
familiar comega a evidenciar-se, o paciente queira ficar sozinho
na sala. Nessa altura sua confianga no profissional deverd ser
maior. A proposta, explfcita, nao a trabalhar os vfnculos familia-
res, mas iniciar urn contacto corn o paciente.
Se percebermos uma brecha na recusa do paciente, podere-
mos forgar um pouco, desculpando-se posteriormente. Mas, se a
recusa for total, resta-nos orientar a familia para outras formas de
tratamento.
II- Dificuldades do terapeuta
a) Dificuldades em dimensionar a loucura. A mensuragao do
disturbio psicopatologico a necessaria, nao so no nivel do diag-
nostic°, mas, mais do que isso, em intensidade e riscos. S6 assim
poderemos elaborar urn projeto do processo.
Existem limites tecnicos que nos, psiquiatras, possuimos
pela insuficiencia de nossos conhecimentos sobre a psicopatolo-
gia.
A esse limite urn outro se soma.
E o da avaliagao familiar. As atitudes do psicotico que po-
dem ser vistas como normais por amigos seus ou por vizinhos
passam a ser consideradas loucuras pelo meio familiar. 0 grupo
familiar costuma estabelecer regras particulares de convivencia.
A quebra dessas regras pode ser considerado ato de loucura. Sao
exemplos dessas situagoes a diminuicao de expectativas, o aban-
dono do estudo ou do emprego, a mudanga de aparencia ou de
habitos etc. A isso soma-se o fato de qualquer sinal de mudanga
de humor do psicotico gerar uma situagdo de perigo. As vezes
exigem do psicotico urn grau de equilibrio que a media das pes-
soas nao possui,
Algumas situagoes tornam-se mesmo cemicas. Uma mae nos
telefonou porque o filho psicotico, ja adulto e fora de surto, havia
said° corn um irmao para tomar cerveja. Ela nao conseguia perce-
ber que essa atitude poderia ser considerada normal e mesmo
estimulada. Urn amigo psiquiatra contou-nos uma situacao seme-
lhante na qual urn assustado pai o procurou porque a filha psi-
catica tinha ido a urn baile e dancado!
Outra dificuldacle em dimensionar a loucura esta ligada aos
fatores culturais. Urn paciente de . origem chinesa apresentava
delfrio de conteudo religioso. Os pais falavam muito mal o portu-
e nos os contatamos atraves dum "interprete", um primo do
paciente ha muito tempo raclicado no Brasil. Notamos, algo sur-
presos, que algumas das ideias que julgdvamos delirantes cram
compactuadas pelos membros da familia.
discernimento dessas questbes torna-se importante para o
processo de vinculagao.
b) 0 envolvimento emocional do profissional.
trabalho corn o paciente psicotico tende a levar emogoes
mais primitivas para a sala de terapia. Raivas, medos, angOstias
fortes e ideias de suicfdio sao algumas das emogOes quo apare-
cern corn freqiiencia. E licit° .pensar que, por mais preparado que
esteja, o terapeuta estara mais sujeito a essas tensOes quando
trabalha corn psicaticos. Em vez de nega-las, o que se pode espe-
rar a que seja capaz de reconhece-las, e colocd-las como auxilio
de seu trabalho. Por isso mesmo o profissional dove estar sempre
avaliando-se em suas atitudes para corn o paciente.
III - Dificuldades presentes no reIaccio
Exteriorizagoes de emogoes intensas a ate agressivas.
comum as emogoes de psicOticos encontrar-se exacerbadas, prin-
cipalmente no surto. Desejos reprimidos, angOstias, raivas acu-
muladas, tudo pode vir a tona, muitas vezes contra pessoas que
desconhecem a propria existencia do paciente.
Se uma pessoa nega a visa° de realidade do paciente, este
poderd reagir corn hostilidade numa tentativa do impor sua
maneira de ver.
Isto pode acontecer na psicoterapia.
Corn isso, sentimentos de competioo, inveja, e outros, mui-
tas vezes transferenciais, podem tambern surgir atingindo algu-
mas vezes niveis drasticos.
Vazios de conteado para conversar. 0 isolamento, o afasta-
mento das relagoes humanas e o quadro delirante podem tomar o
psicotico pessoa de conteddo empobrecido, vazio de conceitos
e ideias a respeito do mundo que o cerca. Isto costuma provocar
1)
124 14
silencios as vezes incomodos, ou repetigoes tambem incomodas
de assuntos ja conversados. Cabe ao terapeuta, em sua criativida-
de, propor saIdas tecnicas, como, por exemplo, a utilizagao de
recursos nao verbais.
Alta expectativa do paciente. Preso num emaranhado de
situagoes internas e externas que quase nunca compreende e em
geral angustiado e tenso, o psicotico pode ver no terapeuta sua
saida, nele clepositando alta expectativa.
A negagao total dessas expectativas ou sua aceitagao incondi-
cional acrescidas de aspectos contra-transferenciais, poderao tra-
zer problemas serios relativos aos aspectos da vir.culagao. Assim,
acredito que o real dimensionamento da situagao, a discrimina-
gao do interno corn aquilo que the foi depositado e a aceitagao
tomporaria das expectativas, quando possivel, tenderao a servir
de auxilio tecnico para a situagao.
Situagoes relacionais que incrementam as dificuldades.
Sao inOmeras tais situagties. Uma delas sao os constantes "testes"
que os pacientes tendem a fazer eom o terapeuta. Um dos mais
freqiientes e o "triangulo" formado coin a familia, no qual o
paciente fica na expectativa, ao avaliar a posigao do profissional.
Urn pequeno deslize e o vinculo podera ficar comprometido.
0 diagnostic°, amiude pedido pelo paciente, costuma consti-
tuir urn fator de dificuldade relacional. Temos, por experiencias
anteriores, nos recusado a fornece-los.
IV - Dificuldades oriundas do mundo exterior
Dificuldades presentes no hospital. Os padrOes do proces-
so psicoterapico numa instituigao costumam ser diferentes do
padrtio dum consultorio particular. A influencia externa costuma
ser major, corn a entrada de familiares ou de funcionarios duran-
to a sessao. Desencontros de horarios e salas ocorrem mais facil-
monte. 0 proprio significado do que é terapia costuma ser dife-
rente para o paciente e seus familiares.
Em instituigoes, pela grande demanda, e mais comum o use
de processos psicoterapicos grupais. Ja vimos, em Amaro, (4,5) a
importancia de realizar a vinculacao individual antes ou con-
comitantemente a entrada no grupo. Temos procurado realizar
isso sempre que possivel.
A questtio familiar. Ao longo do volume tenho optado por
uma posigtio que chamaria de ingenuidade consciente. Assim,
tenho me desviado de algumas polemicas que, embora nao este-
reis, tenderiam a criar dificuldade pragmatica nurna propostade
busca dum metodo de psicoteria de psicoticos.
A questao familiar é uma dessas.
Ela é tao conplexa e polernica que poderia ser assunto de
uma tese. No GREPP temos profissionais que desenvolvem estu-
dos sobre a relagao psicoterapia/familia de psicoticos.
Assim mesmo optei por fazer algumas consideragoes que
julgo necessarias, a maioria vinda de experiencias clinicas.
bl) Se é verdade que a familia é medianeira entre o indivi-
duo e a sociedade e se é tambem verdade que existe um jogo
dinamico de forgas familiares que interagem na evolugao do
processo psicotico, entao deve ser tambem verdade que precisa-
mos reconhecer algumas das forgas dinamicas que no nivel so-
cial agem sobre a familia e seus membros, sejam ou nao psicoti-
cos. Assim, se o entendimento duma dinamica familiar nos leva'
ao entendimento de alguns aspectos do psicotico, entao, neces-
sitaremos do entendimento tambem duma dinamica social.
A familia corn a qual entramos em contacto foi a matriz
na qual se desenvolveram aspectos psi cologicos e psicopatologi-
cos de nossos pacientes. 0 conjunto de regras da familia costuma
ester internalizado polo paciente.
Nesse sentido, deve existir uma diferenca entre a familia,
enquanto sistema real externo, e a "familia" internalizada (ima-
go). Essa diferenga torna-se ainda mais importante no pscotico ja
que interno e externo costumani ester misturados nele.
Embora nao tenha dados estatfsticos para afirmar, sempre
me pareceu que o sistema familiar do psicotico era mais rigido,
mais fechado, corn manor possibilidade de agdo. A importancia
da familia ou da "familia" internalizada para ele e sempre muito
grande. Por isso toma-se muito dificil obter vinculo corn um
psic6tico sem vincular-sea familia,
Nesse sentido a psicoterapia do psicotico é sempre, tam-
Wm, a psicoterapia de sua familia ou de sua "familia". 0 proces-
so passard a ter alta significagao para ales, provavelmente maior
do que se fosse a de urn outro elemento da familia. Assim, os
proprios dados que chegam ao profissional ja estao "organiza-
dos" segundo essa ansiedade familiar.
A familia costuma estar dividida em suas posigOes. Uns op-
tam pela psicoterapia, outros polo internamento imediato, outros
126 127
ainda dizem uma coisa na sala, mas invertem a posigao por tele-
fone, buscando ligagao corn o profissional fora da presenga do
paciente ou de algum outro membro da familia. Uns buscam
medicagao, outros combatem-na ferozmente. Ur.,s trazem a tona
divergencias familiares, outros escondem-nas. Uns colocam o
profissional como juiz, outros como carrasco e outros ainda
como a tinida saida.
Telefonemas inoportunos, entradas na sala, propostas de
conluio sao algumas das situagbes comuns.
A partir disso surgem armadilhas constantes para o terapeu-
ta. Um paciente de 38 anos, que mora sozinho, iniciou a vincu-
lagao terapeutica. Pouco depois do termino da sua quarta sessaa,
recebi uma comunicagdo urgente para ligar para a casa de sua
mae. Essa comunicagao havia sido feita cliretamente pela mae.
Preocupado, liguei. Do outro lado atendeu o paciente que disse:
Enteio é verdade que o doutor liga sempre para a minha mae
para contar a ela o que digo? Desligou e nunca mais retornou
psicoterapia.
A quantidade de cheques sem fundo que recebemos desses
familiares 6 muito maior do que dos pacientes nao psicoticos.
Independentemente da interpretagao que se queira dar, servem
para tumultuar a relagao e o processo psicoterapico.
A descried° de tais fatos nao esconde que muitas vezes a
familia se mostra conscientemente interessada, auxiliando de
maneira eficaz o processo, sendo participante e seguindo pron-
tamente as indicagOes do profissional.
Assim como avaliamos as dificuldades, proponho avaliar
algumas posturas e atitudes do terapeuta corn vistas a facilitar a
vinculagao. Algumas dessas posturas sao pessoais e irdo variar
entre diversos profissionais. 0 que se torna necessaria é a manu-
tengdo duma coerencia interna no conjunto das atitudes. Embora
tais propostas sejam feitas no t6pico ligado a vinculagao, muitas
delas podem ser estendidas a outras fases.
Assim como nas dificuldades, optei por dividi-las em dife-
rentes niveis: posturas e atitudes do profissional para consigo
mesmo, posturas e atitudes para corn a maneira de ver o outro,
postura e atitudes para corn urn clima relacional e ambiental
eficientes e posturas e atitudes do profissional para corn o mun-
do exterior.
128
Posturas e atitudes do profissional pare consigo mesmo.
Menos importante quanto ao nivel descritivo, possuem sua
importancia oriunda da necessidade de aperfeigoamento de urn
dos principals instrumentos de agao, ou seja, o prOprio terapeuta.
Um dos aspectos importantes e o reconhecimento das emo-
goes suscitadas na vigencia do proCesso. Confusoes, frustragoes e
expectativas exageradas sao algumas delas. Percebendo-as, o te-
rapeuta podera coloca-las a servigo do processo.
II Postures e atitudes pare corn a maneira de ver o outro.
Isto se inicia pela nao fixagdo de nosso quadro de referencias,
tendo em vista buscar a natureza da experiancia do psicotico. Em
muitos casos trata-se de urn processo de reconstrucao pare o
mesmo, de sua maneira de ver-se e ver o mundo. Nesse sentido
precisamos perceber suas reais necessidades e entender-lhe a
proposta de relagao. Para isso torna-se necessario evitar a posigao
moralist', critica e ate mesmo persecutoria de toma-lo sempre
como alguem incompleto e cheio de defeitos. Por outro lado, nao
podemos desconhecer as caracteristicas especiais de sua perso-
nalidade e mesmo sua doenga.
Embora bonito, nem sempre esse discurso é Moil de se rea-
lizar na pratica. Ele exige do terapeuta constante repensar.
Fader-se-la dizer que essa é uma questao etica e nao tecnica.
Mas corn certeza é uma questa° concreta na vinculagao mesmo
porque etica vem do grego ethon quo nos remote a agao e dal a
questa) das regras de relagao.
III Postures e atitudes pare corn urn clime relacional e
ambiental eficientes.
a) Uma proposta saudovel de relagao. Cabe ao profissional
oferecer uma proposta de relagao que possa ser considerada sau-
davel e que sirva de modelo para o psicOtico, para que ele possa
exerce-la em outras relagiies.
Um aspecto disso é a disponibilidado. Empatia, calor huma-
no, interesse pelos outros e seus atributos devem ser posturas do
profissional. Em sendo ativo, criativo e espontaneo, ele estimu-
lath as iniciativas do paciente, incrementando-lhe a autoconfian-
ga e a confianga no processo.
0 processo psicoterapico podera tomar-se uma opgdo a mais
para uma vida de poucas safdas, como e a do psicatico.
129
41
Tudo isso nao deve se limitar ao contexto da sala de psico-
terapia. 0 contexto hospitalar, a sala de espera e outros espagos
poderao ser incluidos.
Tais atitudes podem parecer para alguns ingenuas ou roman-
ticas,'mas tem urn meter de grande importancia na vinculagao.
0 paciente passa a reagir de maneira mais adulta tambem. Tudo
funciona como se o paciente nao estivesse acostumado a ser tra-
tado dessa maneira.
Urn ambiente maleavel e ameno. 0 ambiente psicoterapi-
co deve ser de tal maneira que o paciente possa comunicar sem
temor seus conteddos internos. Alern do necessario sigilo, bus-
camos um clima afavel, seguro e maleavel. Nao tern se mostrado
para mim, •as restrigoes ou preocupagoes tecnicas, como
lugar determinado para o paciente sentar ou fixagao rigida da
duragao da sessao. E claro que sempre existe urn limite opera-
cional, variavel para cada profissional.
Em momentos de silencio podemos orientar a conversa corn
perguntas dosadas. Costuma ser facil perceber se o silencio cons-
titui dificuldade do paciente. Nesse caso as perguntas seriam
facilitadoras. Se for uma opgdo do paciente para aquele mo-
ment°, pode-serespeitar. Se se tiver chlvida, podemos perguntar
para o paciente.
Perguntas sobre a crise nessa fase costumam ser mal aceitas.
Repressoes, criticas e grandes exigencias nao devem ser con-
fundidas corn limites, avaliagOes reais e estfmulos. 0 clima de
camaradagem nao deve significar seduce° ou relagdo estereoti-
pada.
Urn aspecto relacional importante que inclui o ambiente é a
continencia. So assim o paciente podera depositar ali suas in-
quietagoes.
E evidente que urn clima maleavel e ameno nao deve se
restringir apenas a sala de psicoterapia, mas a qualquer ambiente
em que ocorrer a relagdo terapeutica.
Um terapeuta que aceite certas posicoes. 0 terapeuta deve
reconhecer certas necessidades do paciente e aceita-las quando
viaveis. Muitas vezes tais aceitagoes sao temporarias.
Uma delas é a aceitagao da estereotipia. Aceitar ser Jesus nao
significa passar a se-lo. A estereotipia advem, provavelmente, da
dificuldade de se propor uma relagao mais real, tendendo a desa-
parecer na continuidade do processo.
130
Identificagoes exageradas ou excessivas admiragoes poderao,
eventualmente, ser aceitas, como je nos ensinou Kohut.
E tambem diffcil aceitar o sofrimento do paciente. Mas é
necessario, inclusive para que o paciente aprenda a absorve-lo.
Uma ansiedade do terapeuta podera, nesse sentido, assustar o
paciente ou mesmo dar a ele instrumentos de manipulagao.
As vezes o paciente estabelece uma distancia afetiva na rela-
gao. E importante aceita-la sem forgar a proxirnidade.
Tantas aceitagoes nao implicam uma posigao de "bonzinho".
Quando necessario, ja o dissemos, pode-se dar o limite, ajudan-
do-o a contatar-se com o real.
Em geral, quando alguma atitude minha frustra o paciente,
costumo explicar ao mesmo os motivos da atitude. Isto tem se
tornado -ail, inclusive como urn verdadeiro aprendizado para
ele.
Posturas e atitudes docentes. Vamos evitar a polemica da
validade ou invalidade de se manter atitudes psicopedagOgicas.
A simples atitude do terapeuta ja o coloca como modelo de age°.
Por uma serie de aspectos anteriormente discutidos, pode-
mos considerar o psicatico como alguem que tern dificuldades
em saber manipular os instrurnentos de vida. Assim, cabe ao
terapeuta discutir corn ele alguns desses aspectos. Suas coloca-
goes devem ser claras e precisas. Que se use mais o sim ou nao,
do que o talvez.
Muitos recursos podem servir. Uma estoria contada, ou a
comparagao corn urn comercial de televise° podem fazer corn
que o paciente compreenda melhor do que uma colocagdo apro-
fundada.
A confirmactio do delirante. Je se discutiu a aceitagao da
posigao existential do psicOtico. Trata-se de algo na mesma li-
nha, porem mais tecnico. No capitula I, ao trazer a contribuicao
da Escola de Palo Alto, referi-me ao conceito de confirmagao.
Se urn paciente se coloca como Deus, ele se sente, percebe a
si mesmo e pensa ern si como tal. A aceitagao temporaria de tal
posigao facilita em alto grau a vinculagao. Obviamente nao se
trata de reconhece-lo como Deus, mas de aceitar que ele se veja
como tab. Se o paciente perguntar se eu o acho Deus, teria que
dizer que nao, mas que eu percebo o quanto isso the é importan-
te.
Nunca nenhum paciente perguntou.
131
Mas tenho urn senao a fazer.
Assim que a postura de confirmacao ficou evidente no tra-
balho corn psicoticos, passou a ser muito utilizada. Se o te-
rapeuta fica muito preocupado corn a confirmacao, podera passar
a policiar-se em demasia tornando o clima artificial ou mesmo
persecutorio. 0 importante é que o terapeuta possa abrigar em
sua sala o delfrio do paciente. Uma vez treinado no convivio
tecnico corn psicoticos, a postura de confirmacao aparecera natu-
ralmente. Assim, o paciente tern na sala urn local e no terapeuta
uma pessoa a compreende-lo. Como nao resistimos a "sua reali-
dade", a tensao baixa e a procura do vinculo aparece.
Tal postura deve ser mantida durante todo o processo.
f) A influencia do entendimento. Algumas vezes isto se torna
tdo importante quanto a confirmagdo, e dela se diferencia, embo-
ra entender uma pessoa seja confirma-la.
As mensagens dos psic6ticos costumam ser confusas, cheias
de obscuridade ou significagdo incompreensfvel. Isto faz corn
que as pessoas que o cercam tenhain dificuldades de entende-lo.
Tal dificuldade e extensiva ao terapeuta. Este, porem, tern conhe-
cimento de dinamicas psicologicas e de mecan.ismos de funcio-
namento do psiquismo doentio. Isto pode facilitar o entendimen-
to dos fenomenos e assim passa-los ao paciente. E impressionan-
te o quanto isso se torna util para a vinculagdo. Muitas vezes
aconteceu de os psicoticos proporem, ao sentir-se entendidos,
aumentar o mimero de sessOes. Mas Basta mostrar que o estamos
entendendo. Qualquer interpretacao psicodinamica mais profun-
da, nessa fase, pode faze-lo sentir-se transparente demais e re-
cuar no vinculo.
IV- Posturas e atitudes do profissional para corn o mundo
exterior
a) Contato corn o hospital. Isto vai depender do tipo de hos-
pital em que estivemos trabalhando. Trata-se de neutralizar pos-
siveis interferencias que costumam surgir nessas situagOes, inter-
ferencias essas ja apresentadas anteriormente.
Nas supervisdes hospitalares tenho procurado insistir nesses
aspectos. Em algumas ocasiOes chegamos a marcar reunioes com
os funcionarios. Nessas reunioes foi explicado para eles alguns
conceitos simples, coma sigilo, nao interferencia na sala e evita-
cao de criticas mais contundentes ao paciente.
132
Tais posturas tendem a integrar os funcionarios no tratamen-
to do psicotico.
b) 0 contato corn a familia. Ja discutimos o estado caotico
com que a familia costuma chegar e a importancia de .o contato
corn ela ser feito de uma forma a viabilizar o tratamento corn a
sua colaboragao no processo.
Grande passo para isso 6 desistir em achar "o louco da case".
Movidos par algumas teorizacties e por alguns preconceitos esta-
belecidos, o terapeuta pode querer cometer o erro de 'querer
substituir a figura de "louco" que seu paciente carrega por um
dos familiares. Esse movimento de "caca as bruxas" invariavel-
mente nao so nao protege o paciente, coma deixa sua familia em
posicao de defesa.
Claro que o reconhecimento de uma dinamica familiar que
possa. estar influencianclo negativamente tern que ser buscado.
Mas nao e apontando culpados que estaremos ajudando a nos
vincular a nossos pacientes.
Diferente disso e quando o paciente aponta, logo no illicit),
tuna dinamica patologica nas relacoes familiares. Se a sentir
coma real, costumo confirma-la coma possivel.
No contato com a familia 6 necessario fazer a definicao das
responsabilidades, nao s6 para o momenta presente, coma para o
seguimento do processo. Algumas familias, por motivos v6rios,
costumam cleposifar o paciente nas maos do terapeuta tornando-
o responsavel por todas as decisoes a respeito.
Embora cada situaga.o tenha suas particularidades, o que
tern-se mostrado mais titil 6 a manutencao dum contato corn o
paciente por algumas sessOes e, a seguir, propiciar uma ou duas
reunioes corn a familia. Ao paciente e dada a °Ka.° de acompa-
nhar ou nao tais reunioes. Em casos raros de familia desestrutu-
rada em excesso, podemos optar por conversas sem o paciente.
Isto pode gerar desconfiangas desagradaveis no mesmo. Para
minimizar tal situagao, estabelego corn ele qua the diroi tudo a
que julgar importante. Comunico tal decisao a familia antes da
reuniao.
Dest:e jeito o controle das informagoes fica em minhas mks,
já que a promessa é contar aquilo qua julgar importante. Antiga-
mente, Coda vez que um familiar nos procurava, eu contava ao
paciente. Uma delas, Elaine mostrou-nos que, quando a familia
queria falar alga a ela, usava-nos comaintermediario. A partir
133
disso, dou a opgao ao psicotico, se ele quer que the conte toda
vez que urn familiar procurar-me ou nao.
Na primeiras reuniOes corn os familiares, costumo apresentar
as possiveis fases do processo, bem como as dificuldades a elas
inerentes. Discuto o que se pode e o que nao, se pode esperar do
paciente em cada uma das fases.
Se as relagOes familiares forem muito caoticas, poderemos
pensar em psicoterapia familiar. Tal encaminhamento podera ser
feito a profissionais por nos conhecidos para uma maior integra-
ca.°. Em casos de fortes ligagOes simbioticas, o encaminhamento
do outro membro familiar a psicoterapia sera de grande valia.
Toda vez que fiquei dividido entre o paciente e a familia,
quanclo nao houve safda, optei polo paciente. E de esperar que os
familiares tenham mais condigOes de absorver ansiedades,
3.3.2. FASE DE AUTOQUESTIONAMENTO
So quero saber como 0 que vai sair essa
sua maldita resposta. Se voce nao resolver
isso; a guerra esto langada!
(CEJ, Carta de 12/83)
Supondo estabelecido urn vfnculo, temos um paciente em
delirio produtivo, ou seja, exteriorizando seu mundo interno e,
atravOs disso, organizando a seu modo a realidade externa. 0
questionamento logic° do delirio, o sabemos, nao é viavel. 0
ocultamento tacit° do delirio, corn a ligagao exclusiva ao suposto
saudavel, o sabemos, nao é viavel,
0 que se busca e trabalhar corn a parte doentia, cuja porta de
entrada é o delirio.
Uma tecnica a ser aplicada nesse momento teria de ter as
seguintes condigoes:
Trabalhar em nivel de confirmagao.
2u) Provocar uma contradigao interna na comunicagao do
paciente.
0 questionamento do terapeuta costuma afastar o paciente,
mesmo porque o delirio é inquestionavel para o psicotico. A
tatica seria provocar-lhe um paradoxo forgando-o a questionar o
delirio. A tecnica do duplo vinculo terapeutico, da Escola de
Palo Alto, 6 uma das tecnicas exequiveis. Fromm-Reichmann
tambour clescreveu situagOes semelhantes.
134
3u) Trabalhar corn a forma e nao corn o contelido, ja quo o
conteUdo, de inicio, 6 incompreensfvel para o terapeuta. Muitas
vezes o profissional estard conversando sem entender exatamen-
te o significado daquilo sobre o que conversa.
Atraves de perguntas, o terapeuta deve fazer corn qua a
conversa dirija-se cada vez mais para urn significado compreen-
sivel, ou seja, forgar o psicotico a raciocinar sobre urn referencial
• mais universal.
A tecnica de Silva Dias, descrita por nos anteriormente, de-
senvolveu bastante os itens 1, 3 e 4, podendo ser utilizada tarn-
bem na contradigao interna, item 2.
Vejamos alguns exemplos:
Exemplo 1: pacientes A, 4" sessao.
Em seu delirio, o paciente é Deus na terra.
A - Hoje encontrei urn anticlota!
T - E como foi isso?
A - Eu estava corn Eva parado num carro e o caminhao en-
trou na contramao. Era urn antidota!
T - 0 que sera. que ele queria?
A - Queria destruir-me e tambem a Eva.
T - Voce ve alguma possibilidade de que ele conseguisse
isso?
A - A Eva me disse... (muda de assunto)
Todac as perguntas do terapeuta situam-se no referencial
apresentado polo paciente, sem desconfirma-lo. A tiltima pergun-
ta do terapeuta provoca nele urn paradoxo, um autoquestiona-
mento. So ele admite quo o anticlota possa destrui-lo, abandona
sua posigao de,Deus. Se mantem a posigao de Deus tern de to-
chagar o poder do antfclota e diminuir sua persecutoriedade,
Abandonara, entao, a conversa. Isto é Comum em tais situagoes.
Exemplo 2: paciente A, 12il SOSSCIO.
A - Mandel outra carta para Espirito Santo. Escrevi que mes-
mo que ela nao queira ou nao entenda, ela sera sempro
Espirito Santo. NE10 ha como deixar de set. SO se ela
casar coin outro.
T E se isso acontecesse?
A - AI ela deixaria de ser Espirito Santo.
135
c
T - E o que isso representaria para voce?
A - Eu nao sei... (confuso). Ai nao iria dar mais... Mais assim
que eu melhorasse ela is aceitar,
T - E o que seria essa melhora?
A - Entender a internagao. Voltar a ficar como antes.
exemplo é menos pela contradicao, é mais pelo moment°
de encontro corn a sande. Ela nao o reconhece como Deus e nao
se reconhece como sua namorada. Ele tenta impor sua realidade,
mas inadvertidamente abre uma brecha, a primeira em doze ses-
soes. Ele admite uma possibilidacle fora de sua realidade.
terapeuta administra a contradicao. 0 paciente fica confuso
porque, ou mantern a ideia de Deus, mas aceita o casamento
dela (e nesse caso nao seria Deus, pois nao pode impedir o casa-
mento), ou abandona a idea de Deus, reconhecendo a propria
doenc.a.
Em outras palavras, ou abandona a icleia de Deus, ou abando-
na a ideia de Deus.
Exemplo 3: paciente B, infcio da lu sessao.
- Antes era ouro, agora é prata... Antes era ouro, agora é
prata....
T - E como se produziu essa mudanga?
- Corn a morte... Corn a morte...
T - E como voce se sentiu corn a morte e corn a mudanca?
- Fiquei sozinho... Fiquei sozinho...
T - E como é que se sente assim sozinho?
- Antes era ouro, agora é prata... Antes era ouro, agora
p rata.
Esse dialogo foi o primeiro que travei corn tal paciente.
Algum tempo depois pude perceber que o rompimento do
noivado apOs o infcio do surto justificava sua frase, Naquele
moment°, entretanto, nada sabia. Levando em conta o referenci-
al particular, a primeira pergunta, sem o desconfirmar, levava
paciente a raciocinar num referencial mais universal, pois,
se antes era ouro e agora é prata, houve uma mudanga. Na
segunda pergunta existia a busca duma emocao num referen-
cial mais universal, pois é sabido que a morte leva ao sofri-
mento e a solidao. Isto se concretiza na terceira pergunta, da
qual o paciente se afasta, voltando a urn referencial novamente
particular, embora menos particular, pois que se acha ligado a
uma emocao de sofrimento.
Exemplo 4: primeira conversa corn paciente psicatica, na
enfermaria, para demonstragao da,tecnica aos residentes.
- As criancinhas estao queirnando no fogo. Estao sofrendo!
T - E como foram elas parar
P - Eu as coloquei. Estao sofrendo.
T - E voce tambem sofre?
- Sou culpada...
T - como foi que voce as colocou Id?
- Menti para o delegado. Disse que rninha
T - Foi porque mentiu para o delegado que as criancinhas
estao no fogo?
- As criancinhas estao no fogo! Voce nao vai fazer nada
para tird-las de Id? (Sai da sala)
dialog() foi conduzido num referencial particular, embora
terapeuta tenha tentado introduzir referencial mais amplo. Na
quarta pergunta o terapeuta tenta fazer uma ligagao que traga a
tona o possfvel sentimento de culpa do paciente. Posteriormente
soube que a paciente havia tido urn surto de caracterfsticas rea-
cionais, logo apos a morte da mae, em conseqiiencia de proble-
mas cardfacos e na ausencia da filha. 0 dialogo aumentou a
ansiedade da paciente obrigando-a a sair da sala. A paciente nao
conhecia o terapeuta, portantO nao havia vinculo entre ambos.
Nesse exemplo nao ha paradoxo.
Exemplo 5: paciente D, 16" sessao.
- As luzes das paralelas queimam o canto do mundo. A
humanidade vai para o inferno, a menos que eu (luz
divina) queira salvd-los. Mas so farei isso quando ela (Gal
Costa) me der Lticifer (um filho).
T - E enquanto isso, o que tem feito, luz divina?
- Tenho jogaclo brotos de luz dentro das pessoas. Elas fi-
cam sobre minha protecao. Hoje mesmo joguei imlmeros.
Eles ficam contentes e fazem tudo o que eu desejo, tudo a
que eu quero.
T - Que born deve ser realizar todos os desejos!
- E.
136 137
T - E voce nao poderia jogar um broto de luz vela e obter o
que deseja?
D - Minha primeira namorada me atrapalha...
Na primeira frase o paciente declara o seu poder. So ele po-
de salvar a humanidade, e o filth quando desejar. Mas intro-duz uma contradigao, pois Gal Costa nao quer dar-lhe um filho.
0 terapeuta nao acha espago para atingir a contradigao e
continua, em reiteragao (152, 153), estimulando o paciente a
pensar, sempre confirmando e respondendo no referencial do
paciente.
Este continua dando provas de seu poder, mas abre uma
brecha para a contradigao, pois tern um motodo que obriga as
pessoas a fazer tudo o que deseja, mas nao obtern da cantora o
que deseja. Na terceira pergunta o terapeuta introduz a contradi-
gao. Ele pode reconhecer que nao tem o poder e desqualificar seu
delfrio trazendo uma impotencia. Ele podera insistir em seu
poder, mas tali de reconhecer urn limite, ou seja, uma impoten-
cia. Podera abandonar seu desejo, situagao que implica uma
mudanga em seu delfrio. Poderj ainda arranjar uma justificativa
para o impedimenta, mas isso tambem o colocard em situagao de
impotencia. Por todas as saidas, ve-se obrigado a reconhecer seu
limite e, portanto, a autoquestionar-se.
Nossa experiencia com a tecnica tern demonstraclo que existe
tendencia para um aumento da ansiedade do paciente, principal-
manta em situagoes onde se busca a contradigao. Nao sao raros
as ahandonos da conversa, os mutismos temporarios, os pedidos
para "ir ao banheiro" ou outras saidas quaisquer. Em graus de
psicotizagao maior, as sessOes tendem a ficar mais curtas, as
vezes nao ultrapassando meia hora.
Durante os primeiros anos trabalhando corn a tecnica, procu-
riivamos utilizar tal nivel de dialogo o maxim passive'.
Corn isso obtinhamos vantagens e desvantagens.
Vantagens:
- Major uso de mensagens num referencial universal.
- Utilizagao cada vez maior do name das pessoas dos papeis
es tereo lipa dos prees tabelecidos.
- Diminuigao da coisificagao do mundo exterior, corn o psi-
catico procurando por of mesmo estabelecer relagOes entre a
realidade consensual e a realidade coisificada.
- Certa diminuigao das interpretagoes delirantes.
- 0 inicio de algumas introspecgoes sobre a vida e a doenga.
Desvantagens:
- Emogoes de alta ansiedade capazes de provocar irritabili-
dade para corn o terapeuta e, conseqiientemente, risco para o
vinculo e maior possibilidade de faltas e/ou abandono.
- Manutengao de dificuldades em criar novo projeto de vida.
Essa segunda desvantagem me fez repensar toda a proposta,
a partir disso senti necessidade duma nova fase.
3.3.3. FASE DE DIFERENCIAcA0 DO EGO E DE
ORGANIZAcA0 DO PSIQUISMO E DO COTIDIANO
Voce é medico e eu sou genie!
(CEJ. Carta de 12/83)
A utilizagao da tecnica do autoquestionamento visava
diminuigao de certos aspectos da produtividade psicOtica, o que
de fato tendia a ocorrer. Urn fato, entretanto, obrigou-me a mudar
toda a minha conceituagao interna de doenga psicotica. Os pa-
cientes tendiam a diminuir a produtividade psicotica e a ficar
desmotivados, inativos, angustiados, sem projetos e isolados.
Tudo funcionava coma se eu estivesse atacando justamente o
que lhes servia de cantata com o mundo, sem lhes permitir que
pudesseni desenvolver outro tipo de instrumento.
0 erro nao estava na tecnica, mas no uso que fazia dela por
minha prOpria conta.
A resolugao da questao foi circunstancial. Atendia pacientes
psicoticos em grupos de nao-psicoticos no Servigo de Psicotera-
pia. A opgao para o atendimento grupal era norma do servigo e a
colocagdo de psicoticos era opgao pessoal que funcionava como
pesquisa. Tal tipo de psicoterapia impoe limitagao Obvia a possi-
bilidade de utilizagao da tecnica do autoquestionamento. Como
resultado, observei que a produtividade psicotica demorava ma's
para diminuir mas, entretanto, a angtistia e o isolamento cram
menores, o abandono pequeno e o paciente parecia mais afeito ao
tratamento.
0 que ocorria (e a percepgao disso foi fundamental) é
que, corn limitagoes ao uso do autoquestionamento, procurava
138 139
compensar corn uma serie de atitudes de reforgo o ego do
psicotico.
Corn essas observacoes, optei por introduzir duas mudangas:
19 Passei a utilizar a tecnica do autoquestionamento em
menor intensidade procurando regular seu use segundo a ansie-
dade do paciente.
29 Passei a me preocupar corn o delineamento duma terceira
fase, ligada ao reforgo do ego. Procurei estruturar uma teorizagao
mais profunda e uma observagdo mais constante daquilo que ja
fazia espontaneamente no Hospital das Clinicas. 0 raciocinio é
que corn o ego mais integro e mais diferenciado o psic6tico
pudesse aproveitar corn mais beneficios a fase de autoquestiona-
mento, continuando validas as atitudes propostas na fase ante-
rior.
0 objetivo principal é preparar o psicotico para autoquestio-
nar-se. Para isso ele necessita de maior maturagao do ego e de
melhor organizagao da vida psiquica e do cotidiano. Poderiamos
enunciar esses objetivos de muitas outras formas: reforgo do ego,
integragao do ego, rematrizagao de aspectos emocionais, conti-
nencia da produtividade, viabilizacao do desempenho de papeis,
integragao das instancias paiquicas etc. Tal pluralidade demons-
tra bem certa vagueza de conceitos, tipicas das teorizagoes sobre
o assunto.
Mas tal vagueza nao esconde uma certeza: que o ego do psi-
cotico acha-se precariamente desenvolvido, corn cisoes internas
e externas, corn relacoes objetais precarias e funcoes egoicas dis-
torcidas.
Se e verdade que o ego pode crescer e desenvolver-se corn a
experiencia, trata-se de dar-lhe vivencias para tal, acompanhadas
evidentemente dum processo discriminatorio das percepgOes
vivenciadas.
A resolugao de conflitos psicodinamicos, nesse moment())
nao precisa ser intensa.
0 fato de estar trabalhando no nivel do ego nao afasta as
possibilidades de resistencias ao tratamento. A resistencia tem
carater distinto, nessa situagao. Pode ser considerada como qual-
quer manifestagao contraria a integragao do ego e ao seu conheci-
mento sobre si mesmo. Tal resistencia pode ser dirigida contra o
terapeuta tendo em vista tentar diminuir-lhe a capacidade para
compreende-lo.
3.3.3.1. ALGUMAS CONCEITUAOES SOBRE 0 EGO
Ao longo deste livro tenho procurado evitar termos tecni- •
cos, especialmente quando vagos. Mas é muito diffcil nao
recorrer ao termo ego. Assim, sempre em busca dum prag-
matismo operacional, conceituarei ego como subestrutura da per-
sonalidade que se define por suas fungoes, as quais em breve
re tornarei,
Ainda em nome dessa operacionalidade, procurarei dar urn
historic° breve da evolugdo desse conceito em psicoterapia obje-
tivando alicergar minha proposta.
Freud, ao longo de sua obra, foi desenvolvendo o conceito de
ego. Urn bom historico dessa evolugdo pode ser encontrado em
Hartmann (69, 70). Contudo, por mais que se transformasse, o
conceito de ego estava ligado a conflitos, patologias e processos
defensivos, numa visa() do ego como algo passivo.
Ja o conceito de id encontrava-se ligado as situagoes de
maior atividade. Ele nao tolera energias muito intensas, experi-
mentadas como estados desconfortaveis de tensao. Se essa se
mostra elevada, o id tende a descarrege-la imediatamente. As
necessidades impostas pelo id requerem transiVfies apropriadas
corn o mundo objetivo da realidade.
Cabe ao ego distinguir entre os estimulos ou percepcoes que
surgem do ambiente daqueles que surgem dos impulsos e desejos
do id. Assim, ele seleciona os aspectos do meio ao qual reagird,
decidindo quais os instintps que devem ser satisfeitos. Para isso
torna-se necessario ter urn sentido de realidade intacto para que
possa atuar eficazmente sobre o ambiente em favor do id. Mas,
preso ao principio da realidade, pode obstar a descarga de tensao
ate ser encontrado o objeto apropriado para a satisfacao das ne-
cessidades. Embora tenda a aliar-se ao id, o ego pode combats-lo
quando julgar que a emergencia de certos impulsos criard uma
situageode perigo.
Quanta mais desenvolvido o ego, melhor o seu sentido de
realidade. A falha na leitura da realidade 6 oriunda de distorgoes
do mundo interior. Nesse nivel pode ocorrer uma ruptura corn a
realidade e a reconstrugao duma nova realidade ditada pelos
impulsos do id. Dominado pelo id, na psicose, o ego afasta-se da
realidade e dela subtrai os elementos perceptivos, substituindo-
os por alucinagoes construidas pelos registros de antigas percep-
140 141
goes. As alucinagOes proporcionam percepgOes que se ajustam
nova realidade.
Foi Anna Freud (44) uma das primeiras a dar para a analise
do ego a mesma importancia da analise do id. A teoria analitica
tem abandonado o conceito de que o ego é identico ao sistema
consciente de percepccio, vale dizer: temos percebido que gran-
des porgoes das instancias do ego stio em si mesmas inconscien-
tes e necessitam da ajuda da analise para chegar a ser conscien-
tes. Disso resulta que a analise do ego tem adquirido consi-
derdvel importancia para nos. Qualquer coisa originciria do ego
que se imiscui na andlise constitui material tao bom quanto o
origindrio do id. Aldo nos é licit° considerci-lo como mera pertur-
bocci° da ancilise do id. *
A formulagao duma psicologia do ego traz a tona fortes im-
plicagoes tecnicas.
Segundo Hartmann (67), existem partes autonomas do ego
fora das areas de conflito que podem, inclusive, tornar-se pre-
requisitos da relagdo corn a realidade. Assim, o eu nao pode ser
visto apenas em questoes de patologia.
Urn dos aspectos mais estudados por esse autor foi a adapta-
gao a realidade. Como nem toda adaptagao implica urn conflito,
nem todos os fenomenos do ego podem ser considerados feno-
menos defensivos. Ainda assim, nem todas as reagoes do eu ao
mundo externo sao adaptagOes. Nem toda adaptagao a neces-
sariamente normal.
Ao estudar o fenomeno esquizofrenico, Hartmann (68) o rela-
cionou corn uma baixa capacidade para neutralizar a agressao,
fato que levaria o esquizofrenico a usar defesas qua exigem
menor grau de neutralizagao, corn um sistema de defesas menos
eficaz; e as distorgOes na diferenciagao entre o si mesmo e o
objeto.
Ao aprofundar tais teorizagOes, Fiorini (39) delineou habil-
mente as fungdes egoicas:
A) Fungdes egoicas
la - Funccies egoicas bosicas voltadas para o mundo exterior,
para os outros e para aspectos de si proprios. Tem certo grau de
* Freud, A. —El yo y los mecanismos de defensa. Buenos Aires, Medico-Quirdrgico,
1949. P. 40.
142
autonomia e atuam corn eficacia dentro de certa margem de
condig'Oes. Ex: percepgdo, atengao, previsao, memoria, planifica-
gao, execugao, controle etc.
- Fungdes defensivas, cuja finalidade 6 neutralizar as an-
siedades por meio de diversas modalidades de manipulagao de
conflitos. Atuam simultaneamente com as fungoes basicas, po-
dendo perturba-las em seus fins de ajustamento. Ex: dissociagao,
negagao, evitagdo etc.
3ft - Fungdes integradoras, sinteticas ou organizadoras. Rela-
cionam-se corn os processos de coesao, sinergismo, adaptagO'es e
coordenagOes de metas. Ao buscar uma totalizagdO do si mesmo,
agem no nivel de intencionalidade. Sendo fungoes de uma outra
ordem, fiscalizam o sucesso das fungOes anteriores.
Efeitos das fungoes egoicas:
Sao inUmeros os efeitos, entre os quais podemos colocar a.
adaptagao a realidade, o controle dos impulsos, a regulagao do
nivel de ansidedade, a produtividade, a capacidade sublimatoria
e a integragao e coerencia das diversas facetas da pessoa.
Algumas qualidades das fungoes egoicas:
As fungoes egoicas podem ter autonomia, ou seja, possibili-
dade de certo funcionamento nao perturbado pelo comproinisso
de suas fungoes no manejo do conflito. Podem ter plasticidade,
ou seja, um reajustamento do repertorio. Podem ter ainda forga,
coesdo em conjuto e agao hierarquizada.
Ao seguir Hartmann, Fiorini refere acreditar que, alem da
intensidade dos impulsos e da condigao genetica, as influencias
ambientais poderao ocorrer sobre as fungOes egoicas. A influen-
cia familiar torna-se consideravel. Urn ambiente de baixo nivel
de conflitos e a plasticidade de repertorios defensivos poderao
constituir boas influencias.
Se o ambiente influi, isto pode ocorrer no processo psicotera-
pica. Aqui, as fungoes eg6icas podem ser reforgadas pela criagao
dum contexto de gratificagao, alivio de ansiedade e estimulagao.
Nesse seritido, o terapeuta pode ajudar a organizar fenomenos,
tais como os sentimentos, os afetos e os pensamentos. Alem de
interpretar, o terapeuta age noutros niveis, tais como nos atos de
tranqiiilizar, indagar e discriminar. Sua agar) nao tern apenas
efeito imediato, mas podem frear certas deterioragOes ou provo-
143
car o crescimento atraves da reestruturacao do conjunto. Corn
isso podemos perceber efeitos tais como a modificacao no nivel
dos sintomas, as variacOes no emprego de repertorio defensivo, a
maior gratificagao nas relagOes interpessoais, a aquisigao da auto-
estima mais realista e a ampliacao da consciencia.
Tudo isso nao e especifico para a psicoterapia de psicoticos.
Ao apontar para alguns aspectos do ego e de suas fungOes,
nao estava preocupado apenas em ser didatico. Mais do que isso,
preocupava-me corn certas conceituagoes das fungOes do ego na
exata medida em que podem auxiliar-me eficazmente na busca
de certas posturas.
3.3.3.2. ALGUMAS PROPOSTAS PARA ESSA FASE
1) Discriminageio
A discriminagao pode ocorrer no piano verbal ou como re-
sultante de pequenos jogos. A principal discriminagao incide
sobre o eu e o tu, ou seja, entre o paciente e as outras pessoas.
Podemos, por exemplo, tomar duas almofadas, uma como sendo
paciente e outra como se fosse urn familiar, e pedir ao paciente
que aponte diferengas entre ambos.
Quando o paciente estiver no grupo, perguntas breves pode-
rao ser beneficas na discriminagao. Por exemplo: 0 Joao acha
isso e voce o que acha? 0 Pedro 6 palmeirense, e voce para que
time torce?
Outra discriminacao que julgo importante sao os aspectos
emocionais do mundo interno, podendo tal discriminacao rea-
lizar-se a partir de apontamentos do terapeuta.
0 psic6tico encontra-se mais preparado para perceber gran-
des transformagoes. Corn isso, reconhece pouco as proprias
transformagoes na psicoterapia. 0 terapeuta pode auxilia-lo le-
vando-o a diminuir a ansiedade e adquirir confianca. A discrimi-
nacao entre os fenomenos do mundo interno e fenomenos do
mundo extern() e tambem fundamental, embora nem sempre facil
de ser feita.
2) Neio repressao.
Esta e uma questao dificil. Por ser o surtc urn material que
teria escapado a repressao, autores existem (37) cpe propoem que
144
terapeuta realize uma verdadeira repressao de tal material,
obrigando-o a tornar-se novamente inconsciente. A repressao
pode ser vista como a atividade do ego qua barra da consciencia
impulsos indesejaveis oriundos do id quo aparecem nas emo-
coos, nos desejos ou nas fantasias..
0 psicotico apresenta repressao reduzida e falha.
Movido por .tais impulsos pode buscar ser amado e admiraclo
de maneira irreal, fruto de tensoes narcisicas mal elaboradas.
Polo que tenho vista na cilnica, parece que a repressao forcada
nao so nao diminui a angiistia do paciente, como criminal a forp
do seu precario ego. 0 profissional tern de compreender que a
atual posicao do psicotico é regredida e quo die nao tear c:ondi-
goes de funcionar segundo tais expectativas. Acredito quo a re-
pressao forgada tenderia a regredir ainda mais a paciente, fazen-
clo-o funcionar nurn nivel ainda mais prematuro. Isto poderia par
a perder uma parte do trabalho realizado.
Poder-se-ia objetar quo o psicotico necessita de modelos de
autoridade, corn o que concordarnos, mas tal modelo pode ser
estabelecido num outro nivel. Podemos buscar outros canalspara
as fortes exigencias instintivas. No caso de as colocagOes cis limi-
ts se fazerem necessarias, o terapeuta podera faze-lo, o quo
diferente duma repressao forgada.
Eloborageio.
A elaboracao nessa Ease ainda é urn pouco prematura, mas
podera ser estimulada em situagOes que facilitem a integragao do
ego. A elaboragao do material simbolico muito dificilmente seria
acompanhada pelo psicotico nessa face.
Apontarnentos e clareamentos sobre possiveis causal de cer-
tas emogoes podem auxiliar inclusive a diminuir a ansiedade,
ajudando-o a aliviar-se.
Desempenho de papeis.
Se o desempenho psicodramatico é quase impossivol, nesse
momenta, o qua se pode fazer e facilitar atitudes cotidianas,
como it buscar café para o grupo, transportar objetos, telefonar
para colegas do grupo que nao vierarn naquele dia, passar reca-
dos e outras tantas fungoes simples que irao dando ao paciente
uma "funcao".
Isto :pods aumentar-lhe as opcoes de agao born come favore-
cer-lhe as conquistas de novas relagoes.
145
Estimulo de fungoes egoicas.
Acredito que o simples estImulo das fungoes basicas, desde
que realizado naturalmente, possa facilitar o desenvolvimento
egoico. A percepgao, por exempla, pode ser estimulada em vd-
rios niveis: a percepgao de si mesmo, dos colegas do grupo, do
terapeuta, do ambiente, dos acontecimentos, das vivencias, das
emogees, das necessidades e, muito importante, do proprio cor-
po.
As fungoes de sintese tambem merecem atengao especial.
Nesse sentido pode-se auxiliar o paciente a objetivar metas, arti-
cular desejos e organizar-se. Em grupo, isso pode ser facilmente
realizado atraves de jogos.
Valorizando a fala enquanto integradora do ego, podemos
auxiliar a paciente a aprender a resumir suas ideias, reconhecer
quando este sendo entendido, selecionar e desenvolver aspectos
mais importantes da fala etc. Ouvir falar determine uma relagao
dialetica consigo mesmo. Ao sentir-se entendido, o paciente
podera perceber-se como urn ser mais completo.
0 terapeuta como um ego-auxiliar do paciente.
Ao utilizer as proprias fungoes egoicas, ensinando, resumin-
do, clarificando, apontando etc., estard nao so desembaragando o
paciente do emaranhado no qual se encontra, mas prestando
excelente auxilio para que ele inicie por si mesmo tais fungoes.
No momento certo e de acordo corn sua sensibilidade, devera ir
"passando" tais fungoes pare o paciente,
0 auxflio em momentos de possfveis frustragees é tambem
muito importante. Ensina-lo a agtientar suas intolerancias, exi-
gencias e recordagoes dolorosas é tentar fazer corn que evite re-
gresseies indesejaveis.
Claro que isso nem sempre é facil, mas e impressionante
como certos pacientes desenvolvem muito depressa tal capacida-
de quando auxiliados tanto pelo terapeuta quan:o polo grupo.
7) A busca duma identidade.
Todas as propostas anteriores, no fundo, apareciam em fun-
cao dessa busca.
0 psicotico tern dentro de si muitas indiferenciagoes que
tendem a ir diminuindo corn os processos discriminatorios. A
diferenciagao podera ir ocorrenclo atraves de urna maior auto-
percepgao e do autoconhecimento das escolhas.
146
Isso pode ser estimulado a partir duma constante e natural
atitude de levy-lo a optar ou perceber as (Wes je existentes,
Perguntas coma: o que voce acha disso? Voce gostou do jogo?
Voce je fez isso alguma vez?
A postura de considers-lo urn ser optante tende a facilitar a
formagdo de um vincula saudavel. A busca duma linha biografi-
ca, de uma historicidade tem papel fundamental. Saber que foi
ele e nao outro que quebrou a perna quando crianga, que foi ele
e nao outro que comeu urn pudim inteiro ou que ganhou um
brinquedo pode dar a ele a nogao de singularidade.
3.3.4. RASE DE ENTRADA NA REALIDADE
Eu creio que no verdade ando to
perseguindo por voce ter me livrado da
internaccio e tudo a mais.
(CEJ. 7/83)
3.3.4.1. SEU MOMENTO DE VIDA E A
RELACAO COM 0 TERAPEUTA
Essa fase é mais marcante nos processos individuais, sabre-
tudo naqueles em que a fase de autoquestionamento for mais
contundente a naqueles em que a onipotencia psicotica for
major. Em psicoterapia grupal 'ela tende a ocorrer mais difusa-
mente.
uma fase que tende a ser mais curta e, as vezes, de inIcio
abrupto. Por isso mesmo é menos controlayel. Decorrente disso,
envolve mais riscos.
Na fase de autoquestionamento provocou-se uma contradigao
interna no paciente. Doravante ser-lhe-d mais dificil utilizer o
referencial particular.
Teri tres opcoes: regredir, permanecer onde este ou avangar,
.Todas as .opcees the serao penosas. Ele oscilara entre elas.
Avenger implica grande esforgo. Regredir nao the sere mais
tao facil.
Agora ele conhece melhor a sua doenga. Da-se conta da se-
veridade da situagao. Trabalha melhor com a fungao de onipo-
tencia e ye-se frente a frente corn suas incapacidades.
147 •
Passa a ter momentos agudos e seguiclos de depressao. Sur-
gem medos, perplexidades, confusbes e, principalmente, angus-
tias. Pode tambem sentir culpas e remorsos e fazer uso de acon-
tecimentos externos que os justifiquem. Tudo isso se reflete em
seu colicliano, embora possa tentar esconcle-lo.
Podera ter dificuldades para dormir, alimentar-se e conviver
corn os outros.
Comecara a ter introspeccoes mais claras de seu estado, per-
cebendo melhor sua soliddo e sofrimentos.
Podera fazer uso de defesas neurOticas, buscando manipular
seas relacoes e aliviar as angtistias. Poderao surgir pequenos ri-
tuals, queixas hipocondrfacas, negacoes e dissociagoes histericas.
Urn cliente, ha dois Bias sem sair do quarto, havia escrito frases
agressivas na parade, cortado totalmente o cabelo e se pintado,
coma num dia de preparo para a guerra. A familia ficou assustada.
0 paciente aceitou facilmente falar comigo e referiu logo que seu
intuito era mesmo assustar a familia, principalmente a mae. Se a
familia nib compreender o que esta acontecendo, ficara realmente
assustada e achara que o paciente este. regredindo.
Sua relacao coin o terapeuta mudou.
Disto resultam dois movimentos. Ha uma busca/recusa.
Sente-se preso a psicoterapia e ao terapeuta. Pode ataca-lo
hostilidade e raiva. Pode projetar sails impulsos destrutivos
no terapeuta a tome-lo. 0 profissional podera sentir-se culpado
o opressor, numa contra-transferencia exitosa.
Poderd defender-se corn atrasos a faltas, mas raramente desis-
Lira nesse momento, pois uma separagdo agora poderia ser-lhe
muito dolorosa.
Ele necessita do terapeuta. Tendera a testa-lo para garantir a
continencia. Sentindo-se seguro, buscard uma aproximagdo.
0 terapeuta representa aquele que "venceu". Talvez the
mostre a "caminho". Comegara a interessar-se par esse "mo-
dela".
Fara perguntas sinceras, buscara dados objetivos e tendera a
propor uma relagao que o proteja.
3,3.4.2. SIGNIFICACAO PSICODINAMICA DA FASE
'Lima tentativa profunda de entendimento psicodinamico se-
ria, nesse momenta, pouco pragmatica. Mas buscar urn entendi-
mento basal do que poderia estar acontecendo no psiquismo do
paciente poderia auxiliar a descoberta de solucbes mais concre-
tas.
A identificagdo projetiva 6 uma defesa contra a ansiedade
persecut6ria atraves da qual o ego alivia as partes mas. Mas ale
podera tambem projetar as partes boas para livra-las do mau
interno. Isto gera mais ansiedade e inveja. Os objetos reais a as
figuras imaginarias ficam interligadas e o objeto amado se apro-
xima do odiado. Sente qua destruiu o objeto born. Em funcan
desses sofrimentos podera partir para uma fuga para o objeto
born internalizado, negando a realidade psiquica e se aproximan-
do da psicose.
Ao entrar na realidade, entretanto, flan podera mais usar tais
defesas, ou pelo menos tera dificuldades em usa-las. 0 born
comegaraa integrar-se fora. Para nen ficar dependente do objeto
born exte,rno, ele o introjetard a passard a ter medo de perde-lo.
Passa a .integrar os objetos bons internos. A tentativa de resolu-
cao fase depressiva vem acompanhada de muito sofrimento.
Sao mornentos de integracao do ego e de formacao de objetos a
sser internalizados.
Para poder entrar em cantata corn a realidade telt que perder
a onipotencia psicotica. Mas, abandonar essa superestrutura irra-
tional, implica aceitar o sentimento cle inferioridade.
Decorre disso o sofrimento de conhecer-se.
Decorre disso a raiva ao terapeuta, objeto mau, que the ofer-
tou esse conhecimento.
Decorre disso a necessidade do terapeuta, objeto born, que
podera ajuda-lo.
3.3.4.3. .ATITUDES DO TERAPEUTA
As atitudes do terapeuta deverao ocorrer em dois nfveis: ati-
tudes de continencia e atitudes de contensao,
0 vincula deve ser mantido. Devemos absorver a hostilidade
e ficar ao lado do instinto de vida, procurando ajudar o paciente
a superar os instintos destrutivos. Para isso rid.° adiantam as
grandes interpretacoes. 0 psicotico devera aprender a tolerar seu
momento e perceber que o que esta acontecendo the é algo singu-
lar em sua vida e, ate certo panto, previsfvel no processo.
148 149
3.3.5. FA.SE DE ANCORAGEM
0 que sofri! A mica soluccio mais vicivel
foi esquecer a Justica dos homens! E
esperar o momenta de minha vinganga,
na Justica de Nosso Senhor Jesus Cristo!
(CEJ. Carta de 2/85)
Imaginemos que uma pessoa tenha um pesadelo muito inten-
so que a faga despertar corn muita ansiedade. Imaginemos ainda
que essa vivencia tenha sido tao rnarcante que a pessoa passe o
dia corn muita ansiedade, impressionada pelo conteUdo que the
desconhecido. Naquele dia, talvez, aja muito pouco e se sinta
estranha na relagao corn os outros e corn o cotidiano.
Imaginemos, finalmente, que na psicoterapia veja seu pesa-
delo interpretado pelo terapeuta que o correlacionard corn o.
material inconsciente e corn fatos de sua vida passada ou presen-
te. E provdvel que sua ansiedade diminua e que seu contato corn
o cotidiano e corn as pessoas se tome mais facil. 0 conteudo do
pesadelo estard, agora, inserido no todo de sua vida deixando de
ser uma vivencia paralela e, por isso mesmo, sem sentido.
Terapeutas diferentes talvez deem diferentes interpretagees.
Ainda assim, a pessoa sairia do consultOrio corn menos ansieda-
de. Parece-me que a ligagdo do contelldo corn fatos da realidade
que confere a integragao.
0 surto psicatico esta longe de se constituir num simples
pesadelo. Mas as vivencias dum quadro esquizofrenico poderao
permanecer desintegradas da vida cotidiana da pessoa.
Sigmas Mayer-Gross: Existe urn certo grau de dissociagdo
que tomb possivel mantel' as idelas parandides como que num
compartimento isolado do qualpodem libertar-se novamente sob
tensdo de uma emogdo muito forte. *
Graficamente terfamos:
nao-psicotico:
psicatico:
nao surto
surto
* Mayer-Gross, W; Slater, E.; Roth, M. - Psiquiatria Clfnica. Sao Paulo, Mestre Jou,
1972, v.l. p. 306.
0 terapeuta deverd aceitar as manipulagoes, quando possi-
vel, sabendo que sao inerentes ao momento como formas de
diminuir a angdstia..
Se o paciente voltar temporariamente a utilizar, agora artifi-
cialmente, o referential particular, é melhor nao forgar o auto-
questionamento.
Devemos destacar os aspectos positivos do paciente, desde
que reais, aumentando-lhe a autovaloragao e auxiliando a com-
pensar os sentimentos internos de inferioridade.
A relagdo corn a familia poderd ocorrer mais amitide, por
parte do terapeuta. Isso visa avaliar mais precisamente o risco de
suicfdio. Se esse for alto poderemos optar pela medicagao contra
a angustia e pela internagao. Algumas vezes o proprio paciente
pede a internagao. Se essa for a opga."o, o ideal seria a manuten-
gao do contato, fato que nem sempre sera possfvel. Nesse caso,
deve-se buscar o contato por telefone ou cartas.
A decisao sobre a internagdo deverd caber a familia, embora
orientada pelo terapeuta. Claro que, se o paciente nao estivesse
em acompanhamento profissional direto, a internagao ja poderia
ter ocorrido.
A fase de entrada na realidade, felizmente, costuma ser rapi-
da. Dura, em geral, alguns dias.
3.3.4.4. OS RESULTADOS QUE PODEMOS ESPERAR
DESSA FASE
Esperamos urn ego mais integro, corn objetos menos ideali-
zados, anglistia diminuida, bem como percepgao e adaptagao
mais faceis a realidade.
Temos urn paciente corn desenvolvimento mais pleno
da linguagem verbal e da simbolizagao, corn maior "controle"
das projegoes e que poderd assumir mais compromissos coti-
dianos.
Esperamos urn sono mais regularizado, bem como a volta do
apetite. Esperamos defesas neur6ticas mais adequadas, corn pe-
quenos rituais obsessivos ou histeriformes.
Algum tempo depois eles poderao estar narrando sonhos.
Esperamos que estejam preparados tambern para uma nova
fase do processo psicoterdpico.
150
151
Urn paciente esquizofrenico coin varias internagoes, apps
oito meses de tratamento, escreveu-me uma carta da qual destaco
um trecho: 0 doutor nao sabe, mas eu tenho duos vidas. Uma
que eu vivo corn todo mundo, e uma outra, silenciosa, que me
acompanha sempre no pensamento. Muitas vezes quando con-
verso corn o Doutor, estou dizendo coisas de uma vida, mas
fazendo coisas de outra.
Esse paciente, por razoes financeiras, nunca terminou o pri-
mad° nem nunca leu Laing ou qualquer autor do genero.
Se de alguma forma conseguissemos ancorar as vivencias
paralelas ao cotidiano, talvez elas nao permanecessem tao isola-
das. Se o projeto psicotico tiver alguma ligacao corn os fatos
reais, talvez possa originar algum nfvel de integragao. Estaremos,
assim, ancorando o surto a realidade.
Em termos coinunicacionais seria adequar RP a RU.
Em termos existenciais, seria interiorizar, visualisando, o
mundo interno exteriorizado e coisificado.
Em termos psicodramaticos seria separar o tu real do tu deli-
rante, possibilitando contato corn o tu real. Seria a busca das
figuras internas concretizadas no mundo exterior.
Essa necessidade da busca da integragao foi apontada, de
maneiras diversas, por muitos autores.
Racamier proptie buscar as correlagOes entre as frustragoes
precoces e o quadro psicotico.
Fromm Reichmann aponta para a necessidade de levar o
esquizofrenico a compreender os vazios oriundos dos danos
ocorridos no infcio da vida.
Klein propde interpretagoes demonstrativas dos motivos qua
originaram as cisties do self.
Bion aponta para as necessidades de reconhecimento da
parte psicotica da personalidade em contraste corn a parte nao
psicotica.
Arieti defende a necessidade de interpretagOes do proprio
paciente aos eventos psicoticos, na tentativa de organiza-los na
seqiiencia da vida.
Posigbes semelhantes sao apontadas por psicanalistas diver-
sos como Bleger, Kohut e Laing.
E essa a posigao de Binswanger, apoiado na analitica existen-
cial.
Moreno, ancorado no psicodrama, proptie o choque psicodra-
mo.tico como o modo de canalisar o delfrio. Para isso proptie
estabelecimento de certos pontos de coordenacao do material
delirante corn a realidade correspondente, tentanclo alcancar
uma objetivagdo da experiencia psicatica.
Finalizemos corn Hanna Segal: E de extrema irnportdncia
especialmente ao se lidar coin esquizofrenico, vincular as fan-
tasias corn acontecimentos reais passados e presentes.*
Amparado por tanto.s e tao bons autores, posso realgar a
importancia que tenho clado em meu trabalho para tentar esta-
belecer as ligagbes entre o material do quadro psicotico e os fatos
passados ou presentes do cotidiano, na esperanga de chegar a
uma relativa integragao dos projetos, objetivanclo uma possiveldiminuigao das vivencias paralelas.
E claro que existe uma distancia. consideravel entre as inten-
goes e os fatos, mas alguns resultados podem ser buscados nesse
intuito.
No final da fase de entrada na realidade o paciente costuma
estar ansioso, tenso e sem caminhos. A ancoragem 6 proposta para
dar a ele uma saida, a qual costuma agarrar-se corn tenacidade.
Tenho evitado a palavra surto quo me parece muito compro-
metida para o dialog° corn o paciente. Utilizo o termo crise, mais
ameno, procurando sempre objetiva-la em termos temporais.
Algumas vezes o paciente propiie, a sua maneira, o entendi-
mento da crise, situagdo que facilita :muito o dialogo.
Outros pacientes, entretanto, recusarn-se a comenta-la, pro-
curando afastar de si a lernbranga da loucura. 0 terapeuta teen de
ter sensibilidade para saber quando deve e quando nao dove
forgar os comentarios sobre a crise.
Nexos, mesmo os quo nao esteja:m assegurados, comegam a
ser langados pelo terapeuta ou pelo paciente. As interpretagees
poderao ganhar aprofundamento, desde que feitas atraves de
colocagoes claras e didaticas.
Algumas vezes vamos para urn quadro negro e fazemos liga-
goes te6ricas corn os materiais descritos polo paciente.
A matriz de identidade, resumida capitulos eras, 6 uma das
teorizagoes que mais tenho utilizado. E interessante como muitos
pacientes pedem para reve-la de quando em quando. Parecem
tornar-se menos ansiosos. Podemos tsar outras teorizacoes.
(*) Segal, H. - A Obra de Hanna Segal. Rio de Janeiro, Imago, 1902, p. 143.
4)
152 153
0 paciente CEJ, em processo psicoterapico ha muitos anos,
costuma chamar de "sonho" a fase de surto. As vezes apresenta
surtos psicoticos de 2 a 3 semanas, facilmente debelados corn
medicagao. Quando sai do surto, tenta prontamente entende-lo
de acordo corn os parametros de sua vida.
Alguns pacientes propoem entender suas crises atraves de
urn seriado de televisao; outros atraves da leitura da Biblia ou de
algum filme em cartaz. Durante a discussao do conteUdo you
buscando as correlagOes pretendidas.
0 paciente Josias aceitou a busca de correlagoes atraves de
imagens. Com o material do consultorio, como almofadas, cons-
truiu tres imagens: uma que representava a fase de pre-crise,
outra a fase da crise e uma terceira que representava a p6s-crise.
Cada imagem era como se fosse uma estatua que representasse o
melhor possfvel os sentimentos e as situagOes The havia tido.
Durante sete sessoes discutimos longamente tais imagens, repeti-
das sempre que necessario. Percebemos facilmente que a imagem
mais carregada de conflitos e angUstia era justamente a primeira.
Utilizo, portanto, quaisquer recursos que tiver a mao a fim de
buscar tais correlagoes.
As fases de vinculagao, autoquestionamento e entrada na
realidade sao mais delimitadas, nao so didaticamente, mas na
continuidade do processo.
A fase de diferenciagao do ego e de organizacao do psi-
quismo e do cotidiano e mais difusa e muitas das colocagoes
feitas quando de sua discussao permanecem validas por todo a
processo. As condutas dessa fase nao variam tanto de paciente
para paciente.
A fase de ancoragem, alem de nao ser tao delimitada, varia
bastante nos diferentes pacientes.
0 que se espera a que os surtos psicoticos fiquem cada vez
mais superficiais e mais distantes.
Num grafico poderiamos representar nossas expectativas do
seguinte modo.
nao-crise
crise
Polo grafico, que 6 apenas de tuna expectativa, podemos •
notar que a cada ancoragem mais nos aproxirnamos dum proces-
so comum de psicoterapia.
Como cada profissional, segundo a formacao teorica qua es-
colheu, tern seu tipo de propostas para os pacientes nao psicoti-
cos; e a medida que, ap6s a ancoragem, a psicoterapia tende a
aproximar-se disso, nossa proposta de metodo para por aqui.
Por mais que nos afastemos do ultimo surto, entretanto,
sempre sera UHL de quandb em quando, voltar a ancoragem.
Temos de ter em conta que uma crise psicotica 6 alga tao mar-
cante na vida duma pessoa, seja ou nao esquizofrenica, que pro-
curar ancord-la no real podera sempre significar uma instrumen-
talizacao mais adequada a vida.
3.4. ASPECTOS TECNICOS
0 Sr. fica nos fazendo exigencias; pensa
que a genie agiienta viver eternomente
dessa maneira e pede pain a genie voltar a
semana que vein!
(CEJ. carta de 10/84)
Diferentes posturas psicoterkipicas supoem a existancia de
tecnicas especificas. Como a proposta apresentada inclui diferen-
tes posturas correriamos o risco de acenar coin urn emaranhado
de tecnicas capaz de tornar a situagao psicoterapica confusa e
ineficiente.
Entretanto, se se considerar as fases como parametros nortea-
dores, podemos aplicar as tecnicas mais coerentes corn a for-
magao teorica de cada profissional. Alain disso, se o terapeuta
souber abandonar o sectarismo e incorporar tecnicas de forma-
goes diversas oriundas de outras posturas psicoterapicas, prova-
velmente estara enriquecendo seu proprio arsenal.
Como minha formagao profissional e decalcada na psicotera-
pia psicodramatica, a maioria das tecnicas a ser descritas esta
vinculada ao psicoclrama. Por isso, procurarei deter-me mais
nesse nivel, tecendo algumas consideragoes que julgo necessarias
para que a postura psicodramatica nao fique vinculada apenas a
urn conjunto de tecnicas.
154 155
24 Do sintoma a sindrome
TRANSFUNDO DAS VIVENCIAS
PSICOPATOLOGICAS E SINTOMAS
EMERGENTES
Desenvolvendo-se o modelo sugerido por
autores como Jaspers, Schneider e Weitbrecht,
propoe-se aqui situar as vivencias psicopatolo-
gicas em duas perspectivas fundamentais: te-
mos, de urn lado, os transfirndos das vivencias
psicopatologicas, especie de palco, de contex-
to mais geral, nos guars emergem os sintomas.
Por outro lado, reconhecemos os sintomas es-
pecfficos vivenciados, denominados entao sin-
tomas emergentes. Eles sao, portanto, vivencias
pontuais, que ocorrem sempre sobre um deter-
minado transfundo. Esse transfundo, por sua
vez, influencia basicamente o sentido, a dire-
cao, a qualidade especifica do sintoma emer-
gente. Ha aqui uma relacao dialetica entre o sin-
toma emergente e o transfundo, entre figura e
fundo, parte e todo, pontual e contextual.
Nesse modelo, discriminamos dois tipos bd-
sicos de tranfundos: os estaveis e duradouros e
os mutaveis e momentaneos:
1. Os tranfundos estdveis, pouco mutaveis,
sao a personalidade e a inteligencia. Qualquer
vivencia ganha uma conotacao diferente a par-
tir dapersonalidadeespecifica do individuo. Pa-
cientes passivos, dependences, astenicos, "lar-
gados" tendem a vivenciar os sintomas de modo
tambem passivo; por outro lado, pacientes ex-
plosivos, hipersensiveis, muito reativos a dife-
rentes estfmulos, tendem a responder aos sinto-
mas de forma mais viva e ampla, e assim por
diante. A inteligencia determina essencialmen-
te os contornos, a diferenciacao, a profundida-
de e riqueza de todos os sintomas. Pacientes
muito inteligentes produzem, por exemplo, de-
lfrios ricos e complexos, interpretam constan-
temente as suas vivencias e desenvolvem as di-
mensoes conceituais das vivencias de forma
mais acabada. Pacientes corn inteligencia redu-
zida produzem quadros psicopatoldgicos indis-
criminados, sem detalhes, superficiais e pueris.
2. Os transfirndos muniveis e momentarreos
tambem atuam decisivamente na determinacao
da qualidade e sentido do conjunto das viven-
cias psicopatologicas. 0 nivel de consciencia
determina a clareza e a precisao dos sintomas.
Sob o estado de turvagao uma alucinacao audi-
tiva ou visual, uma recordacao, urn sentimento
especifico, sao experimentados ern uma atmos-
fera mais bem onfrica e confusa. 0 humor e es-
tado afetivo-volitivo momentaneo influem de-
cisivamente nao apenas no desencadeamento de
sintomas (os chamadossintomas catatimicos),
mas tambem no colorido especifico de sintomas
nao diretamente derivaveis do estado afetivo. Uma
ideia prevalente em urn contexto ansioso intenso
pode ganhar dimensties muito proprias. Em urn
estado depressivo qualquer dificuldade cognitiva
ganha uma importancia enorme para o paciente.
Sintomas emergentes seriam codas aquelas
vivencias psicopatologicas mais destacadas, in-
dividualizaveis, que o paciente experimenta. In-
cluem as esferas que nao fazem parte dos trans-
fundos, como uma alucinacao (sensopercepao),
um sentimento (afetividade), um delfrio (julzo),
uma paramnesia (memoria), uma alteracao do
pensamento ou da linguagem, etc.
PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS 183 182 PAULO DALGALARRONDO
COMPONENTES NA CONSTITUICAO
E MANIFESTACAO DOS SINTOMAS
PATOGENIA, PATOPLASTIA
E PSICOPLASTIA
Desde o seculo passado os clinicos tern per-
cebido que nem todos os aspectos da manifes-
tagao de uma doenga derivam diretamente do
processo patolOgico de base. Nesta linha, o psi-
copatologo alemao Karl Birnbaum (1878-1950)
propos que se discriminem tres fatores envolvi-
dos na manifestacclo das doengas mentais:
0 fator patogenetico propriamente dito,
diz respeito a manifestagao dos sintomas dire-
tamente relacionada ao transtorno mental de
base; assim temos o humor triste, o desanimo, a
inapetencia relacionados a depressao, ou as alu-
cinacoes auditivas, a percepcao delirante rela-
cionados a esquizofrenia.
0 fator patoplastico, que inclui as mani-
festacoes relacionadas a personalidade pre-m6r-
bida do doente e aos padroes de comportamen-
to relacionados a cultura de origem do pacien-
te, que ]he eram particulares desde antes de
adoecer. Sao fatores externos e previos
doenca de base, mas que intervem de forma
marcante na constituigao dos sintomas e na
exteriorizacao do quadro clinic°.
0 fator psicoplastico relaciona-se aos
eventos e reagOes do individuo e do meio psi-
cossocial decorrentes do adoecer, modos de rea-
cOes aos conflitos familiares, as perdas sociais
e ocupacionais associadas aos epis6dios da
doenca. Tais reacoes do meio, o padrao de inte-
ragao do individuo adoentado e seu meio soci-
ofamiliar contribuem para determinar o quadro
clinic() resultante.
Pode-se, assim, exemplificar estes tres fato-
res: urn homem de 50 anos é acometido de urn
episodio depressivo grave (fator patogenetico),
de sempre teve uma personalidade histrianica
e e filho de italianos napolitanos (fatores pato-
plasticos). Apos alguns meses, estando muito
descuidado corn suas tarefas profissionais, aca-
ba por perder o emprego (fator psicoplastico).
A manifestacao dramatica e demonstrativa dos
sintomas depressivos flea por conta dos fatores
patoplasticos; o humor triste, a perda do apetite
e a anedonia podem ser atribuidos aos fatores
patogeneticos; e, finalmente, a sensacao de fra-
casso, de inutilidade perante a vida sao devidas
aos fatores psicoplasticos.
A EVOLKAO TEMPORAL DOS
TRANSTORNOS MENTAIS
CONCEITO DE PROCESSO,
DESENVOLVIMENTO, SURTO,
FASE, REAcAO, CRISE E EPISODIO
Segundo a concepcao psicopatoleigica, basea-
da na patologia geral e na escola jasperiana, os
cursos cronicos dos transtornos mentais podem
ser de dois tipos: processo e desenvolvimento.
0 processo refere-se a uma transformacao
lenta e insidiosa da personalidade, decorrente de
alteragoes psicologicamente incompreensiveis,
de natureza endogena. 0 processo irreversivel,
supostamente de natureza corporal (neurobiold-
gica), rompe a continuidade do sentido normal
do desenvolvimento biografico de uma pessoa.
Utiliza-se o termo processo, por exemplo, para
caracterizar a natureza de uma esquizofrenia de
evolugao insidiosa, que lenta e radicalmente trans-
forma a personalidade do sujeito acometido.
0 desenvolvinzento refere-se a evolugao psi-
cologicamente compreensivel de uma personali-
dade. Tal evolugao pode ser normal, configuran-
do os distintos tracos de miter do individuo, ou
anormal, determinando os transtornos de perso-
nalidade e as neuroses. Nesse caso, ha uma co-
nexao de sentido, lima trajetoria compreensivel
ao longo da vida do sujeito. Fala-se, entao, em "de-
senvolvimento paranoide", "desenvolvimento
trionico", "desenvolvimento hipocondriaco", etc.
Os fenomenos agudos ou subagudos classi-
ficam-se em crises ou ataques, episodios, rea-
goes vivenciais, fases e surtos.
A crise on ataque caracteriza-se, geralmeri-
te, pelo surgimento e termino abruptos, duran-
do segundos ou minutos, raramente horas. Uti-
lizam-se os termos crise ou ataque para fenO-
menos como: crises epilepticas, crises ou ata-
ques de panico, crises histericas, crises de agi-
tacao psicomotora, etc.
0 episodio tern geralmente a duragao de dias
ate semanas. Tanto o termo crise quanto o ter-
mo episodio nada especificam sobre a natureza
do fenomeno morbid°. 0 termo episOclio, assim
como o termo crise, sao denominacoes referentes
apenas ao aspecto temporal do fenomeno. Na pra-
tica, é comum utilizar-se o termo epis6dio de for-
ma inespecifica, quando nao se tern condicoes de
precisar a natureza do fenOmeno morbid°. Assim
pode-se falar ern "episodio maniatimorfo", "epi-
sodio paranoide", "episodio depressivo", etc.
A reacao vivencial anormal caracteriza-se
por ser urn fenomeno psicologicamente corn-
preensivel, desencadeado por eventos vitais sig-
nificativos para o individuo que os experimen-
ta. E designada reacao anormal pela intensida-
de muito marcante e por uma duragao prolon-
gada dos sintomas. Ocorre, geralmente, em per-
sonalidades vulneraveis, predispostas a reagir
anormalmente a certas ocorrencias da vida.
Ap6s a morte de uma pessoa prOxima, a perda
do emprego, o divorcio, o individuo reage, por
exemplo, apresentando urn conjunto de sinto-
mas depressivos ou ansiosos, sintomas f6bicos
ou mesmo paranetides. A reacao vivencial pode
durar semanas ou meses, eventualmente alguns
anos. Passada a reacao vivencial, o individuo
retorna ao que era antes, sua personalidade nao
sofre uma ruptura; pode empobrecer-se ou en-
riquecer-se, mas nao se modifica radicalmente.
Afase refere-se, particularmente, aos perio-
dos de depressao e de mania dos transtornos afe-
tivos. Passada a fase, o individuo retorna ao que
era antes dela, sem que fiquem alteragoes dura-
douras na personalidade, nao ocorrendo seqiie-
las na mesma. A fase é, na sua genese, incom-
preensivel psicologicamente, tendo urn carater
enddgeno. Uma fase pode durar semanas ou
meses, menos freqtientemente, anos, havendo
sempre (ou quase sempre) restitutio ad inte-
grunt. Fala-se, entao, em fase depressiva, fase
maniaca e period° interfasico assintomatico.
0 surto, segundo a nogao da patologia geral
(mas assumida pela psicopatologia) a uma ocor-
rencia aguda, que se instala de forma repentina,
fazendo eclodir uma doenga de base end6gena,
nao compreensivel psicologicamente. 0 carac-
teristico do surto é que ele produz seqtielas ir-
reversiveis, danos a personalidade e/ou a esfera
cognitiva do individuo. Assim como apps um
primeiro surto de esclerose mtiltipla, o paciente
"sai" desse surto corn alguma sequela sensitiva
ou motora, apos urn primeiro surto de esquizo-
frenia (corn alucinacoes, delirios, percepcao de-
lirante, etc.), que pode durar tits a quatro me-
ses, por exemplo, o individuo "sai" do surto "di-
ferente", seu contato corn os amigos torna-se
mais distanciado, o afeto modula menos e ele
tem dificuldades na vida social que nao conse-
gue explicar ou entender. E o "deficit p6s-es-
quizofrenico", devido ao que Bleuler afirmava:
"A esquizofrenia, de modo geral, nao permite
restitutio ad integrunz". Temos, portanto, como
possibilidades, urn surto esquizofrenico agudo,
urn surto hebefrenico, urn surto catatonic°, etc.
Ap6s varios anos de doenga, nos quaisvd-
rios surtos foram se sucedendo (ou urn proces-
so insidioso lentamente foi se implantando), ge-
ralmente o paciente encontra-se no chamado es-
tado residual da doenga, apresentando apenas
sinais e sintomas seqiielares dela, sintomas pre-
dominantemente negativos.
Assim, pois, a incorreto, de modo geral, fa-
lar-se em "surto manfaco", "fase esquizofreni-
ca", "crise maniaca"; tal use revela o desconhe-
cimento da terminologia e de conceitos psico-
patologicos basicos.
A personalidade pre-mdrbida e os sinais
pre-m6rbidos sac) aqueles elementos identifica-
dos em periodos da vida do paciente claramen-
te anteriores ao surgimento da doenga propria-
mente dita, geralmente na infancia. Ja perten-
cendo ao inicio do transtorno, fala-se em sinais
e sintontas prodrennicos, que representam de
fato a fase precoce, inicial do adoecimento.
Quadro 24.1 Tipos de evolucio dos quadros psiquiatricos, segundo a visao jasperiana
Psicologicaniente compreensivel Mio-compreensivel psicologicainente
("conexao de sentido") ("ruptura na linha vital")
CrOnico Desenvolviniento Processo
Agudo Reacao vivencial
Fase (nao deixa "sequela")
Surto (deixa "seqiiela")
184 PAULO DALGALARRONDO PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS 185
Quadro 24.2 A posicao do fenomeno psicopatologico em relacao a dimensao biologico-cerebral
e a dimensao psicologico-subjetiva e cultural
Plano sintomatico
Area Relacao de dependencia corn o
(tipos, qualidade envolvida cerebral e o cultural
especificas de sintomas)
Primeiro nivel ("neurologico")
Sintomas, sinais e sindromes
sensitivo-motoras da
neurologia classica
Sinai de Babinsky ita sindrome
piramidal, cegueira cortical par
lesc7o da area visual prinuiria, etc.
Segundo nivel
("neuropsicologico")
Sintomas, sinais e sindromes
neuropsicologicas classicas
Afasias, agnosias, apraxias, sintomas
deficitdrios no cleliriumIdemencias
(Alguns sintomas esquizofrenicos
negativos?, estado alucinatorio?)
Terceiro nivel
(psicopatologico primario")
Sintomas psicaticos primdrios
Alguns sintomas negativos e parte
dos sintomas positivos da
esquizofrenia
Alucinacoes audioverbais,
"necessidade do delfrio" na
esquizofrenia, Humor de base
depressiva ou manfaca no transtorno
afetivo bipolar (TAB)
areas sensitivo-
motoras primarias
e secundarias
Relacao muito intima corn
o piano biologico
Tende a ser universal. pouca
plasticidade, independence da
biografia e da cultura
Rein-do intima corn o piano
cerebral, entretanto ji recebe
innuencia do piano cultural.
0 sintoma é produzido pela "lesao
orzanica", porem a influenciado pela
biografia e pela cultura.
Rein-do equidistante entre o
biologi e o cultural
Sintomas sao produzidos por uma
interacao entre as alteragoes
cerebrais patologicas e a biografia e
a cultura, que participam na
"construcao" do sintoma.
areas secunddrias e
tercidrias frontais,
TPO e limbicas
cerebro/mente
+++/+
areas terciririas
cerebro/mente
++/++
Quarto nivel
("psicopatologico secundario")
Sintomas psicoticos secunddrios,
sintomas neuroticos, personalidade.
Sistema delirante na esquizofrenia,
delfrios catatimicos do TAB.
sintomas histericos. fobias,
obsessoes, formas da ansiedade
e da depressdo
cerebro/mente
+/+++
Relacao intima com o biografico
e o cultural e relativamente
distante do cerebral
Sintomas sao "construidos", tendo
por base a cultura e a biografia do
sujeito. Muita plasticidade,
Especificidade cultural do sintoma
A literatura psiquiatrica, principalmente a de
lingua inglesa, utiliza os seguintes termos em
relagao ao curso dos episodios de transtornos
mentais:
Remisseio (remission): E o retorno ao es-
tado normal tao logo terminou o episodio agu-
do. Fala-se em remissao espontanea quando o
paciente recupera-se sem o auxilio de interven-
e-do terapeutica.
Recuperacao (recovery): E o retorno e a
manutencao do estado normal, jd tendo passa-
do urn born periodo de tempo (geralmente con-
sidera-se urn ano) sem que o paciente apresente
uma recaida do quadro.
Recalda ou recidiva (relapse): E o retor-
no dos sintomas logo apes haver ocorrido uma
meihora parcial do quadro clinico, ou quando o
estado assintomatico 6 ainda recente (nao ten-
do passado urn ano do episodio agudo).
Recorrencia (recurrence): E o surgimento
de um novo episOclio, tendo o individuo estado
assintomatico por urn born periodo (pelo menos
por cerca de urn ano) de tempo. Pode-se dizer que
a recorrencia é urn novo episodio da doenca.
CONTEXTUALIZACAO DO SINTOMA
EM RELAC AO A SUA ORIGEM
"NEUROBIOLOGICA"
OU "SOCIOCULTURAL"
A seguir, é apresentado urn esquema que visa
a oferecer uma melhor contextualizacao do sin-
toma psicopatologico em relacao a possiveis me-
canismos cerebrais, biologicos ou psicologicos
e socioculturais. Assim, certos sintomas sao ti-
dos como intimamente "dependences" de alte-
racdes neuronais, como os sintomas neuroldgi-
cos primarios (paralisias, anestesias, perdas sen-
soriais, etc.), ou os sintomas neuropsicologicos
(afasias, agnosias, apraxias, amnesias, etc.). Em
urn outro extremo teriamos sintomas pratica-
mente "independentes" de determinacoes e
fatores neurobiologicos e, pelo contrdrio, in-
timamente associados a processos e a meca-
nismos psicoldgicos, subjetivos e simbdlicos
(mediados pela cultura). Tal esquema objeti-
va facilitar o estudante em relaelio a contex-
tual izacao e a origem dos variados fenome-
nos observados na psicopatologia.
PSICOPATOLOGIA E SENIIOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS 187
25 As grandes sindromes psiquiatricas
durante a vida-PV", que é a ocorrencia de sIndro-
mes psiquiatricas em qualquer memento da vida
dos entrevistados, e "Necessidade Potencial de
Tratamento-NPT", que é a deteccao de casos que
ocorreram nos tiltimos 12 meses e que necessitam
de assistancia profissional, pelo sofrimento ou li-
mitacao que o transtorno mental produziu.
Cabe notar que, segundo esse levantamen-
to epidemiolOgico, em torno de 31 a 50% da
populacao brasileira apresenta durante a vida
pelo menos urn episoclio de algum transtorno
mental, e cerca de 20 a 40% da populacao ne-
cessita, por conta desses transtornos, de al-
gum tipo de ajuda profissional. Sao dados
realmente impressionantes, que indicam a
grande importancia social dos transtornos
mentais, a necessidade de reconhecimento e
de assistencia adequada.
No sentido de oferecer uma ideia da preva-lencia corn que os principals quadros psi-
quidtricos ocorrem na populacao brasileira,
apresentamos a seguir uma tabela corn dados
referentes a distribuicao epidemiologica de
transtornos mentais (diagnosticados segundo o
DSM-III) em tits capitais brasileiras, extraida (corn
pequenas modificacOes) da pesquisa de Almeida
Filho e colaboradores (1997). Nessa investigacao,
foram utilizados os parametros de "Prevalencia
Quadro 25.1 Transtornos psiquititricos em 3 capitais brasileiras (Almeida Filho e cols., 1997)
Faixa de
prevalencia
durante
a vida (%)
Brasilia Sao Paulo Porto Alegre
PV% NPT% PV% NPT% PV% NPT%
Transt. de
ansiedade
9-18 17,6 12,1 10,6 6,9 9,6 5,4
Fobias 7- 17 16,7 11,6 7,6 5,0 14,1 7,1
Dependencia
ou abuso
de dlcool
7 - 9 8,0 4,7 7,6 4,3 9,2 8,7
Transt.
depressivos
2-10 2,8 1,5 1,9 1,3 10,2 6,7
Transt. de
soniatizacdo
e dissociativos
2 - 8 . 8,1 5,8 2,8 1,9 4,8 2,8
Transt. de
aprendizado
2 - 3 3,0 1.9 2,6 1,6 3,4 1,8
Transt.
psicoticos
0 -2 0,3 0,2 0,9 0,6 2,4 2.0
Transt.
obsessivo-
contpulsivos
0 -2 0,7 0,5 - 2,1 1,2
Transt. de
ajustainento 0 - 2 2.0 1,3 0,6 0,4 1,6 1,0
Mania e
ciclotimia 0 - 1 0,4 0,3 0,3 0,2 1,1 1,0
Todos os casos 31 - 50 50,5 34.131,0 19.0 42,5 33,7