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Título: Esposa por um Verão. Autor: Flora Kidd. Título original: The summer Wife Dados da Edição: Abril SA., São Paulo, 1984. Género: romance. Digitalização: Dores Cunha. Correcção: Edith Suli. Estado da Obra: Corrigida. Numeração de página: rodapé. Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. SABRINA 302 Copyright: Flora Kidd Título original: "The Summer Wife" Publicado originalmente em 1976 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra Tradução: Maria Cecília Kinker Caliendo Copyright para a língua portuguesa: 1984 Abril S.A. Cultural - São Paulo Esta obra foi integralmente composta e impressa na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A. Foto da capa: R.J.B. Photo Library CAPITULO I Naquela manhã ensolarada de sábado, Clara Lane caminhava pela Regent Street, em Londres, com a sensação agradável de que algo diferente estava por acontecer, alguma coisa que mudaria completamente sua vida. Não pôde deixar de sorrir ao reconhecer aquela esperança antiga, que teimava em retornar a cada verão, fazendo com que seu coração pulsasse de ansiedade. Os sonhos românticos de sempre... Por que não amadurecia? Já não era tempo de ser mais realista e deixar de lado as fantasias da adolescência? Uma mulher adulta como ela não deveria se entregar tão facilmente a devaneios, é verdade, mas era quase impossível deixar de pensar na surpresa que o destino poderia estar reservando. Quando aconteceria aquele momento mágico que haveria de transformar toda a sua vida? As roupas coloridas expostas nas vitrines chamaram-lhe a atenção. Parou para observar os maios e biquinis de cores vivas, os vestidos floridos, os chapéus de sol. A decoração das lojas era toda baseada no tema "férias de verão", e Clara admirou as fotografias dos mais diversos e famosos pontos turísticos. Lá estavam o Partenon e o porto de Rodes; Salzburgo e a estátua de Mozart; Viena e seu Teatro da Ópera, lugares que ela já havia visitado no verão passado. Na verdade, eram poucos os países da Europa que ela ainda não havia conhecido, uma vez que sempre aproveitara as -férias para conhecer lugares novos. Nos tempos de estudante, a escola também (organizava excursões maravilhosas, e Clara não se lembrava de ter perdido uma. Este ano, ela e Elise Downie, a amiga com quem dividia o apartamento, sairiam juntas, muito embora ainda não tivessem escolhido o lugar em que passariam as férias de verão. O tempo custava a passar, e parecia não haver nada mais interessante a fazer, naquele dia de folga, do que percorrer vitrines. Seus olhos pousaram num magnífico vestido verde. Ela logo pensou que uma roupa como aquela merecia ser usada num jantar à luz de velas, na companhia de um homem charmoso e gentil. Novamente estampou-se em seu rosto o sorriso maroto de quem se conhece muito bem, um sorriso que, embora Clara não soubesse, dava-lhe um ar gracioso. Mas, afinal, de que adiantaria um vestido como aquele, se ela não conhecia nenhum homem charmoso? Os olhos desviaram-se do vestido para as fotografias que decoravam a vitrine. Escócia! Por que não? Ela e Elise talvez pudessem conhecer a fascinante história do povo escocês e o magnífico cenário de montanhas e castelos, que para ela sempre estiveram envoltos numa aura de mistério e romantismo. Ainda estava admirando as gravuras quando percebeu no vidro o reflexo de uma mulher esbelta, de cabelos loiros que brilhavam à luz do sol. Reconhecendo-a, Clafa virou-se e saiu atrás da figura que caminhava, apressada. - Toni! - chamou. - Espere! A mulher voltou-se e esperou que Clara a alcançasse. - Clara! Como vai? Há séculos que não a vejo! - Para sermos mais exatas, desde setembro passado. Você havia dado uma festa no seu apartamento, lembra-se? - Os olhos de Clara brilhavam de prazer por ter reencontrado a velha amiga. - Eu telefonei várias vezes, mas você estava sempre viajando. Escute, por que não conversamos um pouco? Podemos tomar um café. Tenho milhões de coisas a contar. - Não era verdade e Clara sabia muito bem disso, mas estava determinada a ficar com a amiga o tempo suficiente para trocarem confidências, como na época do colégio. Os grandes olhos negros de Toni arregalaram-se, surpresos, como se duvidassem de que qualquer coisa que Clara pudesse dizer fosse interessante. Olhou então para o relógio. Está bem. Tenho meia hora, antes de correr para o aeroporto. - Quer dizer que você ainda é aeromoça? - indagou Clara enquanto atravessavam a rua. -- Ainda. Mas por pouco tempo, espero. - Sorriu, enigmática, dando a entender que a alternativa que tinha em mente era muito mais interessante que o trabalho atual. - Mas diga-me, e você? Ensinando um bando de adolescentes estúpidas naquela escola feminina, suponho. - Acertou. Só que elas não são nada estúpidas, pelo contrário. E é preciso estar sempre atenta para que não me passem a perna. Até agora não posso me queixar. É um trabalho interessante e tenho me dado muito bem. Surpresa, Toni arqueou as sobrancelhas bem-feitas enquanto entravam na lanchonete. - Otimo para você - disse, e, com o mesmo sorriso travesso de quando ambas tinham quinze anos, perguntou: - Você se lembra de como nós atormentávamos o velho Tommy nas aulas de História? - Nós não, você - corrigiu Clara, sentando-se à mesa. - Eu sempre tive pena dele. - Clara, a compadecida! - caçoou Toni. - Sempre do lado dos indefesos. Está lembrada de quando me socorria nas lições? Estava sempre pronta a fazer, no meu lugar, os deveres de casa, quando eu tinha algo melhor em mente. Sempre fui muito grata a você por causa disso, sabia? - Só o fato de você ter me levado a vários lugares já dispensa qualquer agradecimento - respondeu Clara com sinceridade, e outra vez Toni levantou as sobrancelhas, em sinal de surpresa. - Obrigada, querida. Só por isso, pagarei o café - brincou. A garçonete se aproximou para anotar os pedidos. Clara, então, olhou em volta e sentiu a atmosfera aconchegante do lugar, o burburinho vindo das outras mesas, as pessoas parecendo despreocupadas. Tomar parte daquele clima sociável dava-lhe uma enorme sensação de bem-estar. Agora só restava esperar o momento mágico. - Você não mudou nada, Clara. Ainda continua usando o mesmo tipo de roupa que, perdão, não combina com o seu tipo. - É mesmo? - Clara passou os olhos pela blusa branca que vestia sobre a saia marrom. - Pensei que estivesse bem, assim. Nunca tive a pretensão de ser tão elegante quanto você, Toni. - Pois deveria. Você é alta, tem presença. E esse cabelo? Por que o usa assim, preso à nuca? - É muito comprido - respondeu, quase pedindo desculpas -, e eu preciso colocá-lo em algum lugar. - Mas não desse jeito. Você fica com aparência de velha. Por que não tenta um corte moderno? Afine também essas-sobrancelhas grossas que deixam a sua expressão carregada. Uma blusa bem justa e de preferência verde, para realçar os seus olhos, e pronto! eles cairão na armadilha. - Eles quem? - indagou Clara, antes de beber um gole de café. - Os homens, querida, os homens. - Toni sorria enquanto observava a amiga arregalar os olhos. - Mas eu não quero saber de armadilhas! Por que você sempre se refere aos homens desse jeito, como se fossem idiotas? Para mim, eles são seres humanos que podem sofrer como qualquer uma de nós, quando alguém fere os seus sentimentos. Toni encarou-a por alguns segundos e então caiu na risada. Muitas pessoas voltaram-se para olhar; Clara notou que principalmente os homens demoravam o olhar naquela figura provocante, de dentes muito brancos e olhos castanhos, claros, que cintilavam de alegria. - Que mulher mais séria - comentou Toni, ainda rindo. Será possível que você não se diverte nunca? - Se eu tiver que me transformar num objeto sexual para poder me divertir, então pode ter certeza de que a resposta é não. 8 Simplesmente me recuso a adotarum comportamento falso só para atrair os homens. Não acho justo. .- Você sempre me surpreendeu. Lembro que estudava tanto que era considerada o cérebro da escola. E, nas conversas em grupo, nunca fez questão de esconder que era a favor do casamento. Muito tradicional, se entende o que estou querendo dizer. - Se o casamento deu certo para meus pais, por que não deveria acreditar nele? - argumentou Clara, recordando o tempo de colégio, quando sua única ambição era alcançar notas cada vez mais altas para agradar aos pais, sempre orgulhosos dos progressos da filha. Infelizmente, não viveram o suficiente para vê-la receber o diploma. Às vezes Clara se perguntava se não teria sido melhor estudar menos e divertir-se mais. Tanto tempo gasto em meio aos livros, fechada no quarto, estudando, estudando... - Você sai mais, agora? - indagou Toni, interrompendo aqueles pensamentos. - Deve ser terrível lecionar numa escola feminina. Mulheres por todos os lados. Não gostaria de trabalhar numa escola mista? - Nunca pensei nisso - admitiu Clara. - Mas não acho tão terrível assim. Alguns membros do corpo docente são bastante interessantes. E você, Toni? Vai mesmo mudar de emprego? O que pretende fazer? Toni sorriu, misteriosa. - Estou fazendo planos - respondeu, sem entrar em detalhes. - Olhe, preciso ir, agora. Por que não tomamos o mesmo táxi? Eu deixo você, é caminho para mim. Vai fazer alguma coisa hoje? - Não, nada. - As esperanças de Clara começaram a acender-se. - Então, talvez possa me fazer um favor. Na expectativa de que a amiga viesse com algo interessante, Clara seguiu-a para fora da lanchonete. A personalidade marcante de Toni, seu modo elegante de se portar e ainda uma grande autoconfiança sempre abriram portas para mundos que Ciara jamais havia frequentado. Logo as duas estavam no banco de trás de um táxi, rodando pela Marble Arch. Toni explicava: - Um amigo meu está num hospital, aqui em Londres. Ele é fotógrafo e trabalha por conta própria; só faz aquilo de que gosta. Por isso, aceitou participar de uma expedição ao Himalaia, para fotografar as montanhas. - Espere aí! Não me diga que foi aquela expedição em que morreram algumas pessoas que escalavam as montanhas! Eu li a respeito nos jornais. - Uma só pessoa morreu - corrigiu Toni. - A outra, o amigo de quem lhe falei, ainda está se recuperando. Prometi visitá-lo com frequência, mas o horário dos voos não me deixa muito tempo livre. Tenho certeza de que ele ficaria contente de ver alguém, especialmente do sexo feminino - acrescentou, maliciosa. - O coitado não tem família. Você não poderia visitá-lo no meu lugar, Clara querida? Este fim de semana e os outros sete dias em que vou ficar fora? - Qual é o nome dele? - Richard Mallon. Ele estava presente àquela festa no meu apartamento, você deve se lembrar. Alto e forte, selvagem como uma águia, sempre com um comportamento fora do comum, fazendo o que lhe dá na telha. - Da maneira entusiástica como falava do amigo, Toni dava a impressão de gostar muito dele. Clara lembrava-se de Richard: olhos cinzentos e cabelos castanhos que emolduravam o rosto magro, onde sobressaía a boca um tanto cínica. Ela não havia gostado do amigo de Toni, daquela voz rouca sempre pronta a caçoar. - Já sei quem é - disse com frieza. - Pensei que você e ele fossem... - Nós tivemos um caso - interrompeu Toni prontamente. Ficávamos juntos quando coincidia de ambos estarmos na cidade. Richard é o tipo de homem que não gosta de se prender a mulher 10 alguma. Eu o conheci numa outra festa, na casa de Louise Bolton, jj-mã de uma das aeromoças. Você deve se lembrar de Louise. Há alguns anos, foi um dos modelos mais requisitados do país. Era Richard quem tirava as fotografias que mais tarde apareciam em quase todas as capas de revistas. Clara permanecia calada. Lembrou-se das fotos que haviam tornado famosa a beleza de Louise e encolheu-se involuntariamente na cadeira, ante a perspectiva de ter de visitar o responsável por aquelas fotografias. - Aqui está o nome do hospital e a ala em que ele se encontra - continuou Toni, entregando-lhe um pedaço de papel. - Você me prestará um grande favor, Clara, se puder ir até lá no meu lugar. - vou tentar, mas não prometo nada - respondeu ela, enquanto o carro diminuía a marcha. - Você irá - replicou Toni com confiança -, pois sempre ajudou os que precisam. Clara pensou que mais uma vez, como nos tempos de escola, Toni empurrava para ela um dever que era seu. Entretanto, já começava a sentir a velha piedade invadir seu coração. Era sempre assim: reclamava mas acabava cedendo. - Pronto, Clarinha, chegamos. Foi ótimo ver você. Qualquer dia, ainda vou lhe dar um belo presente. Tchau! - Tchau, Toni - despediu-se ela, saindo do carro. Elise havia viajado, naquele fim de semana, e o apartamento tinha um ar desolador. Clara preparou alguns sanduíches e foi comê-los perto da janela, por onde entravam fortes raios de sol. Estava achando difícil suportar os fins de semana, desde que começara a trabalhar, em setembro. Não tinha mais seus pais para visitar e os poucos amigos estavam sempre ocupados ou viajando. Era verdade que poderia ter ido até Berkshire, onde moravam tia Irene e tio Bert, mas eles a esperavam só no próximo sábado. Tentou ler o livro que retirou da biblioteca, mas sua mente só se 11 concentrava no pedido de Toni. A imagem de Richard Mallon não a deixava em paz. Não que ele a houvesse atraído, muito pelo contrário. A maneira arrogante como se portara em relação a ela era algo de detestável. Por isso mesmo, Clara havia deixado a festa mais cedo: não suportara ser alvo das zombarias de Richard. Mas agora ele estava doente, na cama, incapaz de sair para aproveitar o sol de junho, e não tinha família que pudesse distraí-lo um pouco. Nem ao menos Toni. Num impulso, procurou o papel que a amiga lhe dera e ligou para o hospital. Uma voz impessoal informou-lhe que logo mais começaria o horário de visitas aos doentes. Minutos mais tarde, Clara estava no ponto de ônibus, com um buque de rosas numa das mãos e um pacote com uvas na outra. Logo em seguida descia em frente ao hospital e se dirigia ao hall de entrada, onde várias pessoas esperavam o elevador. A enfermeira sorriu com gentileza, quando Clara perguntou por Richard Mallon, e conduziu-a à cama que ficava próxima à janela. Enquanto seguia a enfermeira, ela pôde observar que todos os doentes tinham flores, bombons e frutas nas mesinhas ao lado das camas. - Sua namorada veio visitá-lo, sr. Mallon - disse a moça com ar satisfeito, abrindo as cortinas que mantinham a privacidade do doente. Em contraste com as outras, a mesinha de Richard só contava com um jarro de água e um copo. Ante as palavras da enfermeira, ele levantou a cabeça envolta em bandagens que chegavam a cobrir-lhe os olhos. - Toni? - perguntou, ansioso. - Ele ainda não pode enxergar - murmurou a enfermeira, notando o embaraço de Clara. Cego! Entre surpresa, e incrédula, ela olhou para as flores que trazia numa das mãos. Que utilidade poderiam ter para uma pessoa cega? Olhou para a enfermeira, que pousou a mão em seu ombro e sorriu tristemente, antes de deixá-los a sós e levar o buque. 12 . Toni? - A voz de Richard tinha o mesmo timbre rouco que ela guardara na memória. - Onde está você? - Eu... eu... sou Clara Lane - gaguejou. - Toni não pôde vir. Ela sente muito, mas o horário dos voos... - Sua voz sumiu. O desapontamento de Richard, que voltou a cabeça para outro lado, era visível. Movendo-se com cuidado, Clara colocou o pacote de uvas em cima da mesinha e sentou-se na cadeira que a enfermeira havia posto do lado da cama. Podia ouvir as risadas dos outros pacientes, que na certa estavam apreciando as visitas de amigos e familiares. Não era o caso de Richard, que se mantinha em silêncio. Sem ter o que fazer ou falar, Clara passou a observá-lo. Um dos braços descansava fora das cobertas, e a manga um pouco arregaçada do pijama permitiu a visão parcial dos pêlos escuros e do pulso grosso de Richard. A mão estavaenvolta em ataduras. Teve muita pena dele. Abriu a bolsa para pegar um lenço e Richard, ouvindo o ruído, virou-se para ela. - Você ainda está aí? - Estou. Trouxe-lhe uvas e algumas rosas. Desculpe-me, mas eu não sabia que... - Calou-se. Não era capaz de encontrar a palavra exata. - Que estou cego - completou Richard, esboçando aquele mesmo sorriso cínico que ficara na memória de Clara. - Cego para sempre? - .Espero que não. É um tipo de cegueira causada principalmente pela severa exposição à neve e ao sol. Pode levar semanas, até que eu volte a enxergar. Semanas! - A voz rouca agora traía uma angústia muito grande. com um misto de compaixão e simpatia, Clara lembrou que ele era fotógrafo, dependendo, portanto, dos olhos para trabalhar e poder viver. Se ao menos o conhecesse melhor, tivesse mais mtimidade, poderia confortá-lo com palavras. Ou tocar-lhe o braço Para transmitir coragem. Um simples toque às vezes é mais eloquente que palavras. Entretanto, nem palavras, nem gestos. O 13 máximo que- poderia fazer era ficar ali ao lado dele, em silêncio, esperando que pelo menos sua presença trouxesse um pouco de conforto. - Será que posso ajudá-lo de algum modo? - indagou tentando quebrar o silêncio pesado. - Você? Por que você? Nem a conheço! Qual é mesmo o seu nome? Frases curtas e ríspidas que feriam a sensibilidade de Clara. - Clara Lane. Nós nos conhecemos na casa de Toni, numa festa em setembro passado. Não se lembra? - Não. - A sinceridade dele era desconcertante. - Em todo caso, descreva-me o seu tipo físico. Dificilmente esqueço um rosto feminino. Agora-, com um sorriso sarcástico, Richard dava a impressão de que se divertia às suas custas. Animada ao perceber que ele abandonava a seriedade inicial, Clara começou: - Bem, os meus cabelos são castanhos. - Como era difícil falar de si mesma! - De que comprimento? Na altura dos ombros? - Como costuma usá-los: soltos, voando livremente ao sabor do vento? - Não. Sempre os prendo à nuca, em forma de coque. Richard não disfarçou a decepção. - Não gosto desse estilo. E os olhos? - Um tipo de verde. - "Tipo de"... - brincou. - Ou são verdes ou não são. Os cílios são negros, aposto. - Acertou, negros e longos. - Não pôde evitar uma risada gostosa. Começava a se divertir com aquele interrogatório. - Muito bom. Gosto da maneira como você ri. E a pele? - Pálida. - Nariz? - Meio arrebitado. 14 Vamos à boca. Será que eu gostaria de beijá-la? Clara permaneceu em silêncio, após aquela pergunta petulante, sentindo um rubor subir-lhe às faces. Entretanto, o riso cínico estampado no rosto daquele homem demonstrava que ele sabia tê-la embaraçado. - Não sei - replicou friamente. - Existe um modo de descobrirmos. - Agora você está sendo impertinente. - Clara sentiu que sua voz se alterara. - A impertinência é uma das minhas qualidades, como acabou de observar. Estou me lembrando de você, agora. A professora séria e responsável, não é? Sentou-se num canto e lá permaneceu a noite toda. com certeza, ficou chocada com o comportamento dos convidados. -; Quem disse que fiquei chocada? - Claro que ficou! Era o seu primeiro contato com os amigos de Toni e você não gostou de nenhum deles, especialmente de mim. Lembro-me de que saiu cedo e nós demos boas risadas às suas custas. Aquilo já era demais! Mas, antes que ela conseguisse esboçar uma reação qualquer, Richard perguntou, intrigado: - Por que veio? - Porque Toni me pediu que fizesse isso. Só que eu jamais poderia imaginar que você fosse tão desagradável, senão não teria vindo. Disse isso e se arrependeu imediatamente. Era preciso ter paciência com uma pessoa doente. - Droga! -- exclamou ele. - Que porcaria de homem eu posso ser, sem enxergar? Não posso fotografar, nem escalar, nem nada. Por que não morri de uma vez? - Falava cada vez mais alto, como se estivesse a ponto de ter uma crise. - Por favor, não diga isso... - Clara tentava acalmá-lo, mas não sabia o que fazer. A enfermeira apareceu, com um olhar de reprovação. 15 - Agora chega, sr. Mallon. Lembre-se do que o médico disse o senhor não deve se agitar. Infelizmente, preciso pedir à su amiga que se vá agora. - Droga! - resmungou Richard novamente, mas então dirigiu-se a Clara: - Você voltará amanhã? Venha, por favor. A ansiedade na voz dele tocou o coração de Clara. Apesar de minutos atrás, ter estado a ponto de ir embora para não ver mais aquele homem insuportável, concordou em voltar no dia seguinte. Assim aconteceu no domingo e em todas as outras noites da semana seguinte. Ele parecia melhorar. Costumavam conversar sobre tudo, menos alpinismo e fotografias. Clara descrevia o tempo, os outros pacientes, as enfermeiras, as cenas que podia ver da janela. Richard se interessava pelas atividades diárias dela, e dessa maneira o tempo passava rápida e agradavelmente. - Você é ótima, sabia? - disse-lhe ele uma noite. - Em quê? - Em descrições. Por que não se torna escritora? Você estudou História, não é? Pois, então, poderia muito bem escrever romances históricos. - Acho que não conseguiria. Não entendo nada de romances. - Nem de amor? - Também não. - Mudou rapidamente de assunto: - Quando vão tirar essas bandagens? - Amanhã. Você virá, não é? Clara tinha intenção de visitar tia Irene e tio Bert, mas a ideia foi posta de lado, assim como todas as outras coisas, desde que começara a visitar Richard. com uma rapidez incrível, ele passara a ser o centro de sua vida, ainda que ela soubesse que estava entrando num terreno perigoso. Os dias passavam e as alunas começaram a notar sua crescente falta de atenção. Pela primeira vez na vida, o trabalho lhe pareceu monótono e cansativo. Ela não via a hora que a noite chegasse para poder estar com Richard. Era difícil acreditar que somente uma semana se passara, desde que reencontrara Toni. Apesar de ter 16 tentado entrar em contato com a amiga, não havia conseguido. Tinha certeza de que Toni não havia mais falado com Richard; caso contrário, ele certamente lhe contaria. No hospital, antes de se dirigir à ala onde ele se encontrava, parou para se observar num espelho. Havia tomado alguns cuidados em relação à aparência, para o caso de Richard recuperar a visão. Seguindo os conselhos de Toni, comprou uma blusa verde-água e sentiu de imediato o resultado: os olhos foram realçados pela cor e agora mais pareciam duas gotas brilhantes. Richard estava sentado na cama, trocando piadas com o homem do leito vizinho, e parecia muito bem-disposto. Só então Clara notou que ele já não tinha as bandagens. Ansiosa, ao perceber que aqueles dois olhos cinzentos estavam fixos nela, perguntou: - Você está enxergando? - Não, ainda não. Quer dizer, consigo distinguir vultos, formas enevoadas. Será que eu apreciaria você, Clara? perguntou, com o cinismo já familiar. - Não sei - respondeu ela secamente, e então o sorriso dele se tornou ainda mais largo. - Um dia descobrirei - acrescentou, descansando a cabeça no travesseiro. Sem as bandagens, Richard parecia menos vulnerável, e Clara pensou, entre triste e feliz, que ele logo sairia do hospital. Uma vez recuperado, voltaria ao seu mundo, um mundo de mulheres maravilhosas no qual ela não tinha vez. - Recebi uma carta, hoje - anunciou ele. - Não quer lê-la para mim? Está dentro da gaveta. Clara pegou o envelope branco e de imediato reconheceu a autora da letra. - É de Toni - disse, e olhou para ele, esperando ver algum sinal em seu rosto. Richard, entretanto, não esboçou reação alguma. - "Querido Richard" - leu -, "sinto muito não ter podido visitá-lo. Espero que Clara tenha me substituído. Estarei de volta 17 no próximo sábado, quando terei algo muito importante a lhe dizer com amor, Toni." Dobrou a folha de papel e guardou-a no envelope. Ler a carta não foi tão difícil quanto imaginara. Só que agora já sabia que não deveria voltar ao hospital no dia seguinte. Iria a Berkshire e trataria de não pensar em nada. - Você tem uma linda voz, Clara. - disse ele. - Ainda bem que Toni estará de volta, pois este fim de semanadevo ir até Berkshire. - É mesmo? Porquê? - Preciso visitar a sepultura de meus pais. É o terceiro aniversário da morte deles. - Como foi isso? - Desastre de avião. Eles tinham ido a Jerusalém e o acidente aconteceu na volta. Papai era doutor em Teologia e, juntamente com mamãe, tomava parte numa excursão à Cidade Santa. - Então seu pai era professor de religião... Você só podia ter mesmo essa moral rígida - provocou ele. - A maneira como ajo ou penso não tem nada a ver com a profissão de papai. - Não mesmo? Pode ser. - Ficou um instante pensativo e depois perguntou: - Você me acha imoral? - Não. O que eu acho é que você se comporta de uma forma pouco convencional. - Talvez eu não me comporte de modo convencional segundo os seus padrões morais, mas não conforme os meus. - Richard, sempre tive curiosidade de saber .uma coisa: por que motivo participou daquela expedição? - Clara tentava aproveitar o pouco tempo que ainda teria na companhia dele para conhecê-lo melhor. - Para fotografar as montanhas, minha antiga ambição. Pratico alpinismo desde a adolescência. Cresci na cidade grande e durante os fins de semana convidava alguns amigos para escalar qualquer morro que aparecesse à nossa frente. - Seus olhos brilhavam de 18 prazer, com a recordação. - Foi um tempo maravilhoso, mas você não teria gostado muito de mim, naquela época. -E o que o faz pensar que agora eu goste? - Você está aqui, não está? Tem vindo sempre. - Só porque Toni me pediu. - A insegurança que começava a sentir a colocava na defensiva. - E você sempre faz o que Toni pede? - Não! Quero dizer, sim... - Estava tão confusa que Richard caiu na risada. Tentando dominar-se, continuou: - Por que você resolveu ser fotógrafo? - Quando saí da escola, arrumei trabalho numa companhia de equipamentos fotográficos. Nada muito criativo, mas me rendia um dinheiro certo no final do mês. Comecei a me interessar por càmeras quase sem querer. Pedi uma emprestada e levei num daqueles fins de semana. Tirei várias fotos das montanhas e descobri que tinha talento. Mais tarde, minha grande ambição passou a ser fotografar os Alpes e as montanhas do Himalaia. Fez uma pausa e então continuou: - Não foi tão fácil concretizar o sonho. Compreendi que, mesmo tendo experiência em alpinismo e fotografias, ninguém me convidaria para uma expedição. E eu não tinha dinheiro para financiar uma. - O que você fez, então? - Procurei tornar-me conhecido. Vim a Londres e conheci uma modelo que, como eu, ansiava por tornar-se famosa. Trabalhamos juntos e logo nos tornamos respeitados nas nossas profissões. De repente, todos queriam os serviços de Richard Mallon. Desse modo, pude concretizar o meu sonho e fotografar as montanhas. Clara levantou-se e ele ouviu o ruído da cadeira arrastando-se no assoalho. - Já vai? - perguntou, desapontado. - Promete voltar? - Acho que não - respondeu ela, com um nó na garganta. Preciso preparar as provas e... Bem, mas agora você terá a Companhia de Toni. Vai ser muito mais interessante, garanto. 19 - Será mesmo? - perguntou ele com voz fria. - Por favor, Clara, não vá ainda. Fique só mais um pouco. - Não posso, Richard. Talvez nos encontremos qualquer dia desses. Adeus. - Clara, espere! Preciso falar com você! Ela não deu atenção e saiu apressada, temendo que os outros doentes vissem as lágrimas que molhavam seu rosto. 20 CAPITULO II Enquanto o trem corria a caminho de Berkshire, Clara acordava para a realidade. Sua decisão de não mais visitar Richard e a saída intempestiva do hospital não tinham outra razão senão o medo de se envolver demais. A carta de Toni soara como um alerta: era preciso não esquecer que. os dois tinham um caso. Como não se lembrara disso durante, aqueles dias? Fora uma tola. Toni era a mulher ideal para alguém como Richard. Por que ele se interessaria por uma pessoa como ela, que pensava de modo tão diferente? De fato, seria mais seguro não tornar a vê-lo. Nas semanas seguintes. Clara se entregou completamente ao trabalho, evitando pensar em Richard. Além disso, os planos para as próximas férias tomavam seu tempo livre. Uma tarde, voltando ao apartamento e sentindo-se mais cansada do que o normal, largou a pasta sobre uma cadeira, esticou-se no sofá e atirou para longe os sapatos que lhe apertavam os pés. O tempo estava abafado e pesadas nuvens se formavam no céu, anunciando uma tempestade para breve. - Nossa, você parece exausta! - admirou-se Elise, ao sair da cozinha com uma xícara de chá que ofereceu à amiga. - Por que chegou tão tarde, Clara? - perguntou, sentando na poltrona ao lado. - Reunião de professores. Pensei que a rabugenta não fosse mais parar de falar. - A "rabugenta" era a diretora da escola. Hum, este chá está ótimo, Elise. Lembre-me de fazer o mesmo por você, qualquer dia desses. 21 - Certo - respondeu a amiga, sorrindo. Elise era uma mulher pequena e magra, com um rosto bonito, emoldurado por cabelos castanhos. Atrás dos óculos redondos, os olhos azuis davam-lhe um ar inocente, mas essa aparente fragilidade escondia um raciocínio frio e calculista, que Clara invejava. - Espero que você não tenha esquecido que Daphne nos espera para os preparativos finais da nossa viagem à Espanha - disse Elise, olhando para Clara, que cerrara os olhos. - Não esqueci, não. Mas você se importaria de ir sozinha? Estou tão cansada... O que decidirem estará decidido, certo? - Acho que você não está muito interessada em ir à Espanha. Sei que queria mesmo era conhecer a Escócia. Aliás, Clara, olhando para você, eu diria que nem a Espanha nem a Escócia fazem parte dos seus planos. Pálida e com olheiras, mais parece heroína de romance trágico. Se não parar de trabalhar tanto, vai acabar com uma estafa daquelas. Clara não respondeu. Permaneceu de olhos fechados. Não estava com vontade de conversar. Se ao menos conseguisse dormir profundamente e esquecer tudo... - Isso não faz sentido - continuou Elise. - Não é possível que um bando de adolescentes deixe você tão abatida assim. Aposto que é alguma outra coisa... ou alguém. Não ajudaria, se você desabafasse? Clara abriu os olhos e fixou-os demoradamente no rosto bonito da amiga. Não, não podia contar-lhe nada. Elise não compreenderia, se dissesse que sentia saudades de um homem que vira apenas uma hora por dia, durante uma semana. Então resolveu não responder e tomou o último gole de chá. - Está bem, já entendi. Sem confissões, hoje. Ah, já ia me esquecendo! Alguém lhe telefonou há mais ou menos meia hora; deixou o número mas não disse o nome !-stá anotado na agenda. Ele insistiu para que você ligasse tão logo chegasse em casa. bom, preciso ir andando - disse, levantando-se. 22 Clara esperou até que Elise fechasse a porta e correu ao telefone. Olhou o número rabiscado na agenda e sentiu o coração bater acelerado. Rápida, discou e esperou que alguém atendesse, enquanto os mais diversos pensamentos cruzavam sua mente. Finalmente, uma voz rouca e já familiar respondeu: - Alo? - Richard? Sou eu, Clara. Onde você está? .- No estúdio, no meu apartamento. Saí do hospital há poucas semanas e estive viajando. Cheguei faz dois dias. - Você já pode enxergar? - A voz dela traía uma grande ansiedade. - Quase nada. - Então, como está conseguindo se cuidar? - Não tão mal quanto você pensa. Tenho uma empregada que faz a comida e deixa tudo limpo por aqui. E não tenho ficado sozinho desde que cheguei. Os amigos não deixam. Por falar nisso, você não vem me ver? - Quando? - Clara parecia estar sonhando. - Agora. - Eu... eu... acho que não posso. vou sair com alguns amigos. - Mande-os passear sozinhos e venha até aqui. Se você não vier, não me responsabilizo pelo que possa acontecer - disse, num tom falsamente trágico. Mas, logo em seguida, acrescentou, sério: - Venha, Clara, por favor. Todas as defesas dela caíram por terra. Respondeu, emocionada: - Está bem, eu vou. Dê-me o endereço. O táxi deixou-a em frente a uma construção tipicamente inglesa que já havia sido um armazém. Agora, recém-pintada e de janelasnovas, a casa tinha um aspecto aconchegante e convidativo. Abrindo a porta, Clara viu-se num pequeno hall pintado de azul. À direita, uma escada conduzia ao andar superior, e ela parou, hesitante, ouvindo a chuva que começava a cair lá fora. - Vamos, suba! O que está esperando? - Richard estava no 23 alto da escada, e Clara pôde ver que ele era bem mais alto do que parecia naquela cama de hospital. Subiu os degraus devagar, observando as fotografias espalhadas pela parede: montanhas brilhando à luz do sol, picos cobertos de neve, precipícios sem fim. Quando chegou ao topo, Richard já não estava lá e ela olhou ao redor, observando a sala espaçosa, toda atapetada e com mais fotografias nas paredes. Numa parte da sala, câmeras e spoís juntavam-se a outros equipamentos fotográficos; na outra ficava a área de estar, muito bem mobiliada. Richard estava em pé, junto a um pequeno bar, com um copo numa das mãos. - Venha cá - disse ele, olhando na direção de Clara. Tentei preparar um coquetel para você, mas saiu horrível. Pode sentir o aroma?- Estendeu-lhe o copo. - É, parece forte. Mas não se preocupe comigo, porque não quero beber nada. - Então quer fazer o favor de me servir um pouco de uísque? - Você acha que deve beber? Talvez fosse melhor... - Clara, se vai começar com sermões, pode voltar - ele ameaçou, em tom de brincadeira. Seus olhos estavam escondidos por óculos escuros que lhe davam um ar misterioso. A gola alta do suéter realçava o rosto magro. Clara sentia que ele não estava bem,-parecia um pouco tenso. - Você é quem sabe - murmurou, e serviu-lhe a bebida. - Já jantou? - Não. Só almocei. A empregada deixou a comida pronta, mas não estou com ânimo para esquentá-la. - Eu também não comi nada ainda - afirmou ela. - Que tal dividirmos o seu jantar? - Acho ótimo, desde que você concorde em ir para a cozinha. - E onde fica? - perguntou Clara, alegre, enquanto arregaçava as mangas da blusa. 24 Conversaram animados, durante o jantar, como se nunca houvesse acontecido a separação de semanas. - Por que você chegou tão tarde ao seu apartamento? Richard perguntou. - Reunião na escola. Sempre há muito que fazer, em época de provas. - Quando terminam as aulas? - Na próxima quinta-feira. - Vai sair de férias? - vou, sim. com Elise e mais duas amigas. Vamos até a Espanha de carro. Na verdade, eu preferia a Escócia, mas as outras não concordaram. E você, o que vai fazer? - Ainda vai levar algum tempo, até que eu recupere a visão respondeu ele. - O especialista recomendou-me relaxar e não ter preocupações, pois, tão logo o meu estado geral melhorar, a visão voltará. Assim, resolvi viajar. - Para onde vai? - Para a Escócia, ilha de Jura, onde possuo um chalé. Tudo o que preciso é de alguém que possa cozinhar para mim e que também me auxilie na seleção de fotografias e outros detalhes necessários para um livro que estou preparando acerca da expedição. Alguém que saiba e goste de escrever. Pensei em você, Clara. Não gostaria de passar o verão comigo, em Jura, em vez de ir à Espanha? Ela emudeceu de surpresa e ficou paralisada, observando os gestos precisos de Ricard, que se servia de um pouco mais de salada. - Mas... e Toni? - Toni não está interessada em viver com um homem cego respondeu ele com voz gelada, mas logo recuperou o ânimo. Então, o que acha? Vamos a Jura? Como era difícil descobrir se ele estava sendo sincero! Tudo o que ela via era seu próprio reflexo nas lentes escuras dos óculos de Richard. Era impossível adivinhar que razoes aquele convite repentino escondia. 25 - Eu também não viveria com você, Richard, se é o que está; tentando propor - respondeu ela, escolhendo bem as palavras, com receio de parecer ridícula. - Exato - completou Richard. - O que -você diria, então, se estivéssemos casados? Clara começou a tremer. Jamais poderia esperar que palavra como aquelas saíssem dos lábios de Richard. - Por favor, sem caçoadas - disse, quase sem voz. - Você não sabe o que está fazendo. - Eu não tenho o hábito de brincar com coisas sérias, Clara replicou. - Tive tempo suficiente para refletir e acabei por descobrir uma maneira de você passar comigo o verão: vamos nos casar? - Mas... mas... nós mal nos conhecemos! - Discordo. Acho que nos conhecemos o suficiente. Só duas perguntas: você sabe datilografar e tem carta de motorista? - - A resposta é sim para as duas perguntas. Mas, Richard, é preciso muito mais do que isso para que duas pessoas se casem! - Clara, ouça: eu preciso de ajuda e você pode me auxiliar muitíssimo. Sei que isso soa de modo egoísta e nada romântico, mas eu não poderia falar de outro jeito. - Fez uma pausa e depois acrescentou, com um tom quase gentil: - Não existe qualquer outra pessoa no mundo a quem eu possa recorrer, neste momento. Se você disser não, não saberei o que fazer. Talvez acabe ficando louco, se continuar neste marasmo. Clara permaneceu em silêncio, atordoada com tudo o que acabava de ouvir. Emoções conflitantes a dominavam. O senso prático de Richard a magoara, mas não podia deixar de sentir compaixão por aquele homem cuja cegueira temporária o havia tornado tão dependente. Perturbado com o silêncio de Clara, Richard levantou-se abruptamente, fazendo com que a cadeira em que estava sentado caísse. Ela correu para ajudá-lo e ele a tomou nos braços. - Aonde vai? 26 - vou levantar a cadeira. Deixe-a aí mesmo e vamos lá para dentro - disse ele, soltando-a mas pegando-lhe a mão em seguida. Clara deixou-se conduzir ao estúdio, que ficava nos fundos do apartamento, surpresa com a segurança que ele demonstrava no caminhar desenvolto. Sentaram-se muito próximos, no sofá que ficava defronte à janela. Clara percebeu que a tempestade havia passado e no céu sem nuvens a Lua brilhava. - Clara... - Você quer que eu dê a resposta agora? - Isso mesmo. - Preciso contar a meus tios. Quero que eles o conheçam. - Oh, não. - Por que não? Eles são pessoas adoráveis e vão compreender o seu problema. Não há razão para essa timidez. Você logo irá se recuperar. Richard riu muito daquela ingenuidade e depois acrescentou: - Clara, não é timidez. Mas a resposta ainda é não. - Mas, Richard, eles não vão procurar atrapalhar os nossos planos - insistiu. - São apenas duas pessoas que estimo e que ficariam magoadas, se eu não lhes dissesse nada. - Está bem. Diga a eles o que quiser, mas poupe-me cenas familiares. Quanto menos pessoas envolvidas, melhor. Porque, se algum de nós quiser voltar atrás, assim que eu recuperar a visão, não precisaremos dar satisfação a ninguém. Será apenas um contrato civil assinado diante de duas testemunhas. Nada de presentes ou convidados. A mulher independente que existia dentro dela revoltou-se com aquele autoritarismo machista, - Você se importaria ao menos de me dizer quando assinaremos o tal contrato? A data pode não ser conveniente para mim - acrescentou, demonstrando irritação. - Na próxima quinta-feira - respondeu Richard, ignorando a 27 ironia daquelas palavras -, assim que as suas aulas terminarem. À noite estaremos viajando para Glasgow e já de manhãzinha partiremos para Tarbert, de onde pegaremos a balsa para Jura. Chegaremos ao chalé por volta das quatro da tarde. Aquilo era ir longe demais. Clara sentia o chão fugir de seus pés. Tentou agarrar-se a qualquer coisa que a livrasse daquela ideia louca e intempestiva. - E o meu emprego? Tenho um contrato a cumprir e não há como voltar atrás. Richard riu e passou o braço por trás de Clara, descansando-o no encosto do sofá. Ergueu a mão e delicadamente começou a explorar o rosto dela, sentindo os olhos, as sobrancelhas, os lábios. Os dedos demoraram-se na nuca e seguraram o queixo com suavidade. Um leve tremor sacudiu o corpo de Clara e ela pôde sentir o quanto era agradável a carícia que vinha daquelas mãos quentes. - Você se preocupa demais com as pessoas - ele sussurrou. - Olhe, quando o verão terminar, é provável que eu esteja em forma e então você poderá voltar aos seus compromissos. Posso garantir que até lá já estará enjoadade mim. Prometo que o nosso casamento durará somente até o final do verão. Bem, sim ou não? Apesar do tom casual que ele usava, Clara sentiu que sua voz traía uma ansiedade muito grande. - Sim - disse depressa, antes que pudesse mudar de ideia. Eu me casarei com você. - Obrigada, minha querida. Acaba de tirar um grande peso da minha cabeça. Agora, dê-me a sua mão. Ela colocou uma das mãos entre as dele, que, sério, continuou: - Prometa-me uma coisa, Clara. - Prometer o quê? - Não é fácil explicar. Compreendo que estamos para fazer algo que vem atender somente às minhas conveniências, mas quero que saiba que, se conhecer alguém especial nesse meio tempo, pode considerar-se livre. 28 - Você quer dizer que, se eu me apaixonar por alguém enquanto estivermos casados, é só dizer e o nosso casamento estará acabado? - Isso mesmo. - Estranho ouvir isso do homem com quem se está prestes a casar. - Sorriu amargamente. - Para mim, o casamento deveria durar para sempre. Richard ficou em silêncio por um momento, franzindo a testa. - Eu sei que você acredita nisso - disse finalmente. - Mas compreenda que estou tentando evitar complicações. Só conseguiremos levar adiante este nosso acordo se formos honestos um com o outro. Nada nos garante que você não se apaixone, nesse meio tempo, concorda? - O mesmo pode acontecer com você - contra-argumentou Clara. - Só posso aceitar o que propõe desde que também prometa fazer o mesmo. Novamente Richard ficou em silêncio, incerto de como proceder. - Não seria justo, se eu prometesse e você não - insistiu ela. - Está bem, prometo. Naquele fim de semana, Clara foi até Berkshire. Tia Irene, irmã de seu pai, era uma mulher doce e romântica. Por isso, ficou desapontada, quando soube que não só não haveria um grande casamento como também ela não participaria nem ao menos da cerimónia. - Mas, Clara, um casamento no verão é tão romântico! disse com tristeza. - Sinto tanto por seu querido pai... Se estivesse vivo, não gostaria nada de ver a filha casada somente no civil. - Tia, não somos contra o casamento religioso - ela disse, tentando consertar a situação. - Mas o problema é que não há tempo para os preparativos. É preciso que tudo corra o mais rápido 29 possível, pois Richard deve estar sexta-feira na Escócia. Não pod adiar por mais tempo a sua recuperação. Clara já não sabia mais o que inventar. Para grande alívio, tio Bert veio em seu socorro: - Ora, vamos, Irene. Por que, em vez de colocar empecilhos não lhe deseja boa sorte e dá a sua bênção? Afinal, não é todo dia que a nossa sobrinha querida se casa. Apesar de tia Irene não se ter dado por satisfeita, a intervençãc do marido serviu para pôr um ponto final naquela conversa, e Clara passou o resto do fim de semana em agradável companhia. Entretanto, persistia a estranha sensação de que, casando-se com Richard, os amigos se afastariam dela. Toni, por exemplo. Já ligara para a amiga diversas vezes e não a encontrara. Na noite de quarta-feira, entretanto, conseguiu entrar em contato com a moça com quem Toni dividia o apartamento. - Então você não sabe? - perguntou a voz arrastada do outro lado da linha. - Toni conseguiu, afinal. - Consegui o quê? - Agarrar um americano bonitão! Deixou a companhia de aviação e foi a Paris com ele. Não ficarei nada surpresa, se já estiverem casados. Era o que ela estava procurando. Agradecendo a informação, Clara desligou. Só agora podia compreender as palavras de Toni em relação a uma provável mudança de emprego. com certeza, fora por esse motivo que ela recusara o pedido de Richard. Compadecida, Clara sentiu-se mais segura e com o firme propósito de compensar Richard. Faria o impossível para que ele esquecesse Toni. O fim do período letivo e os preparativos para a viagem mantiveram-na ocupada até o último minuto. Na quinta-feira à tarde, ela e Elise, sua testemunha, encontraram-se com Richard e Albert Huntêr, a outra testemunha. Após a rápida cerimónia, todos foram jantar no apartamento de 30 Richard. Elise foi logo embora e Albert ajudou Clara a empacotar o restante do material necessário à execução do livro. Albert Hunter havia sido o líder da expedição em que Richard sofrera o acidente. Era um homem bastante alto, com um rosto bem-humorado e olhos astutos. Seu comportamento em relação a ela havia sido frio e crítico, e pela primeira vez passou pela cabeça de Clara que os amigos de Richard poderiam não estar aprovando o casamento. A impressão de que Albert era um desses amigos tornou-se mais forte quando ele, após levá-los à estação e ter cuidado de todos os detalhes para embarcar o carro no trem, voltou-se para ela, perguntando secamente: - Acha que pode cuidar de tudo sozinha? - Obrigada, mas não precisa se preocupar. - E acrescentou, irónica: - Já viajei de trem muitas vezes. Não costumo perder bilhetes ou malas e normalmente consigo voltar à cabine sem errar o caminho. Albert perturbou-se, com tanta ironia. - Por favor, desculpe a minha atitude superprotetora. Tudo isso me pegou de surpresa e eu me pergunto se Richard tem consciência do que acabou de fazer, casando-se com uma pessoa como você. - Puxa, você não é nada lisonjeiro, hein? - exclamou Clara, e, para sua surpresa ele ficou mortificado. - Diabos! Perdoe-me mais uma vez. O que estou tentando dizer é que ele pode estar cego, mas continua o mesmo. Na verdade, ele... bem... Você precisa saber que... Droga, não sei se existe outra maneira de dizer isso, mas Richard não ama você. - Eu sei - admitiu Clara, sentido-se empalidecer. Uma coisa era suspeitar de que ele não estava apaixonado, e outra ouvir isso de um amigo dele. Albert olhou-a, entre surpreso e aliviado, e, pela primeira vez, sorriu. - Então,, tudo está bem agora. Você não espera muito dele, e 31 isso é ótimo. Algumas vezes, as mulheres sentem-se traídas, quando um homem não compartilha suas ideias. Olhe, já é o sinal de partida. É melhor você entrar. - Ele hesitou e depois acrescentou: - vou à Escócia daqui a alguns dias e Richard sugeriu que eu desse um pulo até a ilha para ver vocês. - Terei prazer em recebê-lo - arriscou, tímida. Albert olhou para ela durante alguns segundos e então, para surpresa de Clara, tomou suas mãos num gesto amigável. - Obrigado. Espero vê-los em breve. Boa sorte. A noite custou a passar. Em sua cabine, Clara não pregou olho, sentindo pânico toda vez que pensava no que tinha feito. Havia dado um passo que sempre considerara o mais importante, na vida de uma mulher. Estava casada, sim, mas com um homem que mal conhecia, que a arrastara para o mais estranho dos relacionamentos: um casamento sem amor. 32 CAPITULO III Apesar da noite maldormida e da garoa fina que caía pelas ruas de Glasgow na manhã seguinte, Clara sentiu-se outra, com aquela sensação boa que o amanhecer traz. Aquele era o primeiro dia de seu casamento. A aventura estava começando. Enquanto dirigia o belo carro cinza de Richard, deixando para trás a estação ferroviária, sentiu que ele estava nervoso. Não podia ver para onde estavam indo e na certa imaginava que ela não sabia guiar muito bem. Clara, por isso, tratou de dirigir com bastante cuidado, de modo que, pouco a pouco, ele conseguiu relaxar e começou a responder o que ela lhe perguntava acerca dos lugares em que passavam. Em Ardrishaig, tiveram que esperar que a ponte sobre o canal Crinan se levantasse para a passagem de um barco que carregava carvão, conforme explicou Richard. Aquele carregamento destinava-se às ilhas Hébridàs. Quando a ponte voltou à posição normal, Clara atravessou-a, a caminho da última etapa da viagem até Tarbert. Logo o carro deslizava com velocidade em direção a um porto natural, quase todo cercado por montanhas, onde vários barcos de pesca estavam ancorados. Mais adiante, ela avistou um castelo em ruínas, sinal de que, conforme as explicações de Richard, já deveriam pegar o atalho que levava ao cais. Chegaram bem a tempo, pois a balsa que os conduziria à ilha estava de saída. Enquanto a embarcação se afastava do quebra-mar,Clara observou que Richard ainda continuava tenso. Ele se mantivera 33 calado, durante a viagem de carro, e só respondera às perguntas; que ela, vez por outra, lhe fazia. Resolvida a não se deixar intimidar por aquele silêncio constrangedor, Clara aproximou-se dele e perguntou-lhe que montanhas eram as que avistava ao longe. - São as colinas de Jura - respondeu. - Na verdade, são três, embora daqui você só consiga ver duas. Não são muito altas, cada uma tem cerca de seiscentos metros. - Muito interessante - ela ia dizendo, quando enrijeceu involuntariamente o corpo, ao sentir os dedos de Richard em sua nuca. Até agora, ele não havia tentado nenhuma aproximação maior, o que a tranquilizava, pois não saberia como agir, se algo mais acontecesse. Entretanto, deveria estar preparada, porque ele, na certa, não aguentaria por muito tempo uma amizade platónica com a mulher com quem havia acabado de se casar. Notando a reação dela, Richard se afastou e, mais uma vez, Clara sentiu que uma barreira se erguia entre eles. - O chalé é seu? - ela perguntou depressa, para evitar que aquela tensão aumentasse. - Ou é alugado? - É meu. A velha miss Beaton, que morava lá o deixou para mim em testamento. Era uma parenta afastada - respondeu com indiferença. - O que você está conseguindo ver até agora? As perguntas afluíam à mente de Clara, que não abria a boca, ciente de que ele não lhe responderia. Tudo havia ficado bem claro desde o início: qualquer coisa que fizesse parte do passado de Richard não era de sua conta. - Acho que estamos chegando. Vejo alguns pontos brancos, parecem casas. Nem bem acabou de falar e a embarcação começou a diminuir a velocidade para alcançar o cais, onde desembarcaram sem problemas. , Já no carro, e seguindo as instruções de Richard, Clara tomou 34 a estrada que seguia através da costa, onde podia apreciar os pequenos chalés cravados na bela paisagem montanhosa. Pouco mais adiante, o caminho tornou-se sinuoso e já não havia mais casas. A estrada parecia não ter mais fim, até que ela conseguiu avistar uma pequena baía em forma de "U". Numa das extremidades havia uma casa de três andares, construída com pedras escuras, o que lhe dava um aspecto triste e desolador. - Nossa! - exclamou Clara, ao ver o local isolado em que se encontrava. - O que houve? - Estamos passando em frente a uma casa horrível que fica num lugar bem triste. - É a casa de verão de Douglas Fairlie. Quando criança, ele e sua irmã Joan foram meus companheiros de férias. - Sorriu com a lembrança. - Nós nos divertíamos muito com as histórias que contavam sobre a casa. - Que histórias? - quis saber Clara, interessada. - Diziam que era mal-assombrada. Uma noite ficamos acordados só para ver os fantasmas, mas nada aconteceu, o que nos desapontou muito. - É preciso que se acredite em fantasmas para que eles apareçam - brincou ela. Pouco tempo depois, o carro alcançava o outro lado da baía. Clara admirava a paisagem que se apresentava a seus olhos, um cenário que em nada lembrava o anterior, tão triste. Aquele pedaço escondido de mar, coroado pela areia dourada, parecia não fazer parte deste mundo. Um pequeno chalé branco brilhava na praia e, atrás dele, na encosta, estendiam-se os morros cobertos de vegetação. Tudo era paz e beleza, naquele recanto. Deliciada com o que via, Clara parou o carro em frente ao chalé, onde terminava a estrada. - Chegamos? - Quis saber Richard. 35 - Chegamos. Que beleza! Que maravilha de cenário! O lugar perfeito para uma... - Calou-se, embaraçada. - Para uma lua-de-mel, você ia dizer - caçoou Richard, pegando a ideia no ar. - Vamos lá, a chave está numa saliência acima da porta. Miss Buie, que de vez em quando vem fazer a limpeza, disse que a deixaria aí. Encontrou? Clara abriu a porta e deparou-se com um aposento onde havia um fogão e prateleiras com panelas. Estava para entrar quando Richard a segurou. - Espere - disse ele. - Tenho que carregá-la. Não é esse o costume entre recém-casados? E não posso perder uma oportunidade como esta. Onde está você? - Sou muito pesada - disse, envergonhada. - Duvido - desafiou ele, e carregou-a nos braços. - Pelo amor de Deus, não vá tropeçar, agora! - Ela experimentava uma sensação deliciosa. - Você esquece que eu já estive aqui antes? - respondeu ele, enquanto entravam. - Pronto. Aqui estamos. No momento em que ele a colocou de volta ao chão, Clara ainda sentia o coração bater descompassado. Richard abriu a porta que separava a varanda do resto da casa e ela entrou num pequeno corredor que levava a três compartimentos: uma pequena copa e dois quartos, cada qual com seu banheiro. Sorriu, aliviada, ao perceber que ficariam separados. Pelo menos esperava que assim acontecesse. - Estou contente que a viagem tenha terminado - disse Richard, sentando numa cadeira. - E você? - Eu também. E acho melhor descarregar os alimentos que trouxemos e prepararmos uma refeição rápida. Clara não podia deixar de sentir-se animada com a nova perspectiva. Ali ambos começariam suas vidas juntos, aprenderiam um com o outro e, quem sabe, talvez um dia viessem a amar-se. Corou, a esse pensamento, e tratou de sair dali depressa, 36 esquecendo que Richard não poderia ver como seu rosto ficara vermelho. Após a refeição, ela se pôs a desfazer as malas. Levou a de Richard até um dos quartos e começou a pendurar as roupas, pepois arrumou a cama com os lençóis que havia trazido. Ele entrou no quarto e ela lhe notou a expressão pálida e cansada. - Está com dor de cabeça? - perguntou. - A viagem deve tê-lo cansado mais do que o normal. Quer uma aspirina? - O que a faz pensar que estou com dor de cabeça? - Richard caminhou em sua direção e, sentindo-a próxima, tomou-a nos braços. Clara não esboçou reação alguma, tão surpresa ficou. - Não me casei com você apenas para que fosse meu chofer, fizesse a comida e cuidasse de mim - continuou ele de forma insinuante, enquanto apertava Clara contra si. - Eu sei - murmurou ela, percebendo que a respiração dele se tornava mais forte. Sentiu-o levar as mãos à sua cabeça e tirar os grampos que lhe prendiam os cabelos. Livres, eles caíram como uma cascata. Richard passou a mão por eles e admirou-se: - Lembro-me agora da história de Rapunzel, que tinha cabelos tão longos e fortes que seu amado subia por eles. - Só que os dela eram loiros. Richard, com suavidade, acariciou-lhe o rosto. Seus lábios estavam muito próximos, perigosamente próximos. E se encontraram, quase com violência. Naquele momento, Clara lembrou-se, surpresa com a própria recordação, de que Toni tinha cabelos loiros. Ela acordou, na manhã seguinte, com o sol batendo em seu rosto. Por um segundo sentiu-se confusa, sem saber onde estava. Não ouvia o barulho de trânsito, só percebia um grande silêncio. Ao deparar com o velho relógio na parede, lembrou que estava 37 no chalé de Richard e que dormira sozinha no quarto maior. As imagens da noite anterior vieram povoar seus pensamentos, imagens de Richard beijando-a e de sua total incapacidade de corresponder por causa da lembrança de Toni. Recordou-se das palavras de Albert, segundo as quais Richard não a amava. Era fácil relacionar as duas coisas: ela fora uma simples substituta de Toni, pois, já que Richard não conseguia vê-la, podia fingir que estava com sua amada. Clara não pudera corresponder porque Richard, na verdade, não a beijara, mas sim, a Toni. Fora esta certeza que lhe dera forças para resistir. A princípio, essa resistência parecia havê-la excitado ainda mais e, por alguns instantes, Clara sentiu que ele a dominaria. Entretanto, em vez disso, Richard a soltou e, entre sério e brincalhão, disse que era ela quem estava cansada da viagem. Sugeriu com delicadeza que fosse dormir e, após dizer boa-noite, entrou no quarto menor, fechando a porta. Procurando evitar que as lembranças da noite anterior provocassem um sentimento de culpa, Clara pulou da cama e vestiu-se depressa. Lavou o rosto e prendeu os cabelos, tentando esquecer tudo. Entrou no outro quarto, ondeRichard ainda dormia, e notou que os cabelos escuros dele contrastavam com a brancura da fronha. Nesse mesmo instante, como se tivesse ouvido alguma coisa, ele se revirou na cama e suspirou profundamente. Clara fechou a porta e saiu. O dia estava claro, o sol brilhava sobre as águas da baía. Alguns pássaros cortavam o céu, na certa à procura de alimento. Clara respirou fundo, sentindo prazer por estar vivendo num lugar maravilhoso como aquele. Estava se dirigindo ao carro para pegar algumas coisas quando uma voz vinda de longe obrigou-a a voltar-se. - Ei, você! Espere! Um homem vinha em sua direção, sem camisa e com as calças 38 arregaçadas até os joelhos. Quando se aproximou, Clara notou que ele carregava uma fieira de peixes numa das mãos e uma vara de pescar na outra. Não era muito mais alto do que ela e sorria timidamente. - Desculpe-me se a assustei. Meu nome é Douglas Fairlie. Estou passando o verão aqui. - Muito prazer. Meu nome é Clara Mallon. - Mallon? - Exato. Richard e eu chegamos ontem. - Miss Buie nos disse que estava esperando Richard a qualquer momento, mas não mencionou nada a respeito da esposa dele. Estão casados há quanto tempo? - Há dois dias. Douglas arregalou os olhos. - Isto é o que eu chamo de uma grande surpresa! Diga-me, é verdade que os olhos dele foram seriamente afetados no acidente? - É, mas os especialistas garantem que ele voltará a enxergar assim que recuperar as suas forças. Não é só um problema físico, mas também psicológico. Por isso viemos para cá. - Bem, então muito prazer em conhecê-la, Clara. Já tomou o seu café da manhã? - Ante a negativa, ele sugeriu: - Peguei algumas trutas pequenas. Você poderia ir fazendo o café enquanto eu as preparo. Que tal? Clara simpatizou à primeira vista com aquele homem alegre e gentil. Enquanto sentavam-se à mesa, Douglas perguntou: - Onde conheceu Richard? - Numa festa, há um ano. - Isso foi antes ou depois do acidente? - Por que você pergunta? - Clara sabia onde ele queria chegar. - É que estou surpreso por ele ter casado com você. Essas palavras trouxeram à mente de Clara a imagem de Toni, magra, elegante e sexy. 39 - Talvez esperasse uma mulher mais bonita e sofisticada, não? - perguntou com voz trémula. - Feri os seus sentimentos - acrescentou ele, mortificado. Perdoe-me, mas o que eu quis dizer foi o seguinte: em primeiro lugar, não pensei que Richard fosse se casar, algum dia, e, em segundo, é estranho que ele tenha tido o bom senso de escolher alguém como você. Pronto. Clara sorriu e comentou em seguida: - Richard já me falou a seu respeito. De Joan também. - Eu e minha irmã gostamos muito dele. Divertíamo-nos muito quando Richard vinha passar as férias aqui na ilha. Bem, devo ir andando. Meu pequeno Alan está à espera, na certa se perguntando por onde anda o pai. - Quantos anos ele tem? - Cinco. - Então espero vê-los logo. Ficarei contente de conhecer sua esposa. - Ela já morreu - disse ele. - Minha mãe mora comigo e me ajuda na educação de Alan. - Sinto muito. Douglas notou compaixão no olhar dela e acrescentou: - Ora, vamos, não precisa ficar assim. Foi um acidente e aconteceu há cinco anos. Bem, preciso ir. Até breve. - Não quer esperar para ver Richard? - Fica para outra vez - respondeu ele, já tomando o caminho de volta. Clara preparou uma xícara de chá e levou-a até o quarto de Richard. Ele ainda dormia, de bruços, com os braços sob o travesseiro. - Vamos, acorde, preguiçoso! - chamou, colocando a xícara , em cima do criado-mudo. - Já estou acordado - respondeu ele, voltando-se, sonolento. - com quem você estava falando? 40 , - Douglas Fairlie. Ele estava pescando no córrego e trouxe algumas trutas para o café da manhã. Tome esta xícara de chá enquanto eu as preparo. Richard sentou-se na cama e passou a mão nos cabelos, tirando-os dos olhos. - Está um lindo dia! - disse Clara, animada. - Você deveria ver que céu claro, que coisa maravilhosa! - Gostaria muito, se pudesse - comentou ele, mal-humorado, e Clara se arrependeu na hora. - Perdão - murmurou. - Esqueci completamente que você não pode ver. Não parecia cego... - ... ontem à noite. Não era isso que você ia dizer? perguntou com sarcasmo. - Bem, um homem não precisa da visão para coisas que são instintivas. Onde está o chá? Ainda trémula com o comentário, Clara deu-lhe a xícara, sem saber se devia ajudá-lo ou não. Ele esbarrou no pires e o líquido entornou, caindo sobre o lençol. Richard praguejou, enquanto ela se abaixava para recolher a xícara, que estava no chão. - Desculpe, Richard, a culpa foi minha. - Os olhos dela encheram-se de lágrimas. - Por favor, pare de se desculpar por tudo. Não é culpa sua se não posso enxergar. - Mais calmo, pediu: - Agora saia, quero trocar de roupa. Isso, pelo menos, posso fazer sozinho. Na copa, Clara arrumou a mesa, imaginando se todas as manhãs teria que passar por aquilo. Sentiu um nó na garganta mas nem sequer teve tempo de chorar: Richard apareceu e encaminhou-se diretamente para a mesa, como se a estivesse vendo. Clara trouxe as trutas, o pão e a manteiga, e despejou um pouco de chá na xícara, colocando-a em frente a ele. - Richard, eu... - Se você vai dizer outra vez que sente muito, sou capaz de lhe dar uma surra - brincou ele. - Não se desculpe mais. Se ficar me 41 tratando como um inválido, nenhum de nós vai se divertir, este verão. Agora pode parar de chorar. - Mas eu não estou chorando! - Claro que está. Tudo porque gritei com você no quarto, não foi? - Não é por isso, Richard. É que me sinto tão desajeitada... Sobre a noite passada, eu gostaria de dizer... - Esqueça - cortou Richard. - Eu não me lembro mais daquilo. Ela não insistiu e um silêncio pesado caiu sobre eles, enquanto tomavam o café. - O peixe estava ótimo - observou Richard, ao terminar. Será que consigo pescar com a sua ajuda? Entende alguma coisa de pesca? - Acho que não - admitiu ela, já pensando que talvez alguém pudesse ensiná-la. - Doug é um ótimo pescador e tem muita paciência. Aposto como ficou surpreso, quando você lhe contou a nosso respeito. - Ficou, sim, e ainda comentou que não sabe como você teve o bom senso de se casar comigo - brincou ela. - Ele disse isso, é? - Também fiquei sabendo que a esposa dele morreu e... Interrompeu o que ia falar quando notou que Richard se enrijeceu na cadeira, o rosto pálido. Fechou os olhos. - Richard, você está bem? Parece ter levado um choque! Você a conhecia? Ele fez um sinal afirmativo e esfregou os olhos. - Logo que você acabar de tirar a mesa, vamos começar o nosso trabalho - disse ele, mudando de assunto. - É melhor trabalharmos sempre de manhã. A seleção das fotos levará algum tempo para ser feita. A não ser que eu recupere logo a visão, você terá que escolher as melhores. 42 Era óbvio que aquele comentário sobre a morte da esposa de Douglas o havia afetado. Por que ele fugira do assunto? - Você confia em mim para a seleção das fotos? - perguntou ela. - Não vai ser nada fácil. - Não vai mesmo. Principalmente porque eu grito o tempo todo. Em vez de chorar a cada palavra mais dura, eu preferia que você me xingasse - acrescentou, rindo. - Acho que eu não saberia fazer isso - replicou ela, rindo também. - Fique alguns dias do meu lado e você logo aprenderá. Permaneceu alguns instantes em silêncio, a olhar para ela como se a enxergasse. - "Frágil e sensível como uma flor", foi como Albert a descreveu. E ainda por cima teve a cara-de-pau de perguntar se eu sabia o que estava fazendo! - Talvez pelo fato de você ter casado com uma mulher que nunca viu antes. - Você não conhece Albert. Ele não estava preocupado comigo, mas, sim, com você. - Por que ele se preocuparia comigo? - Não sei. Ele disse que há muitas diferenças entre nós, que você é uma mulher sensível, com uma visão do mundo completamente diferente da minha. Que só podia estar louca, quando aceitou casar comigo. - E imagino que você tenha respondido que ele não devia se meter onde não era chamado, certo? - Lógico, só que com palavras quevocê jamais usaria - admitiu ele, rindo bastante. - De qualquer modo, vai ser interessante, para você, passar o verão tentando descobrir se sabia ou não sabia o que estava fazendo, ao casar comigo. Agora chega de conversa, precisamos abalhar. Pensei que talvez pudéssemos usar o meu quarto como escritório. Você se senta à mesinha e datilografa o que eu dito da cama. - Preguiçoso! - acrescentou ela em tom de brincadeira, começando a tirar a mesa. 43 Richard levantou-se e, de repente, segurou-a pelos pulsos impedindo-lhe os movimentos. Clara assustou-se, mas ele deu uma gargalhada e voltou-lhe as costas, indo para fora da casa. Talvez quisesse demonstrar que poderia toma-la à força, se assim o desejasse. Uma sensação estranha se apoderou dela, ao compreender que estava a sós com Richard, completamente à mercê de sua força física. 44 CAPÍTULO IV O carro rodava pela superfície, irregular da estrada, espalhando a água que se acumulara em poças ao longo do caminho. Chovera bastante durante a noite e o tempo continuava feio e úmido. Era incrível que, após uma semana de sol e calor, o céu estivesse encoberto por nuvens escuras .que anunciavam uma nova tempestade. Durante aquela semana, Clara aprendera a conciliar os afazeres domésticos com o trabalho. Só não havia aprendido a viver na intimidade com Richard e, como resultado, uma barreira tinha se erguido entre eles. Por isso, apesar do mau tempo, Clara não hesitou em sair para fazer compras. Ao menos poderia escapar por algumas horas. Mais adiante reconheceu o homem que caminhava pela estrada com uma cesta e uma vara de pescar nas mãos. - Quer uma carona? - Bem na hora! - Douglas sorriu ao reconhecê-la. - Só um louco como eu poderia sair para pescar com um tempo desses. Não vejo a hora de chegar em casa, tomar um bom banho e beber uma í xícara de chá bem quente - disse, entrando no carro e colocando a cesta com os peixes no banco de trás. - Por que não veio nos visitar? - perguntou Clara, pondo o carro em movimento. - Não quero me intrometer na lua-de-mel de vocês. Clara sentiu-se corar. Não poderia dizer a ele que não existia nenhuma lua-de-mel, que Richard não a amava. Quanto a ela... 45 Mordeu os lábios. Quais eram seus sentimentos em relação a ele? Compaixão? Admiração? Medo? Sim, acima de tudo, um medo irracional que a fazia tremer cada vez que ele a tocava e que tornava mais distante a ideia de um dia chegarem a se amar. - Gentil de sua parte - respondeu ela afinal, compreendendo que ficara calada por muito tempo -, mas Richard começa a achar que você pode ter algo contra ele. É verdade? Douglas ajeitou-se no banco e fixou os olhos na estrada. Só depois de tirar o cachimbo do bolso e de acendê-lo foi que respondeu: - Talvez sim, talvez não. - Como assim? - Eu sei que parece estranho, mas não posso dizer com certeza se ele fez ou não de propósito, embora tenha certeza de que seria bem capaz. - Do que você está falando? O que Richard pode ter feito de propósito? - Clara não estava entendendo nada. - Não posso lhe dizer. Qualquer dia você descobrirá. É o tipo de coisa que não se pode dizer a alguém que está em lua-de-mel. Essa resposta fez com que ela engolisse em seco. - Você está me assustando. Será possível que exista algo tão grave assim? Foi alguma coisa que Richard tomou emprestado e não devolveu? Meninos sempre fazem isso por esquecimento, apesar de parecer roubo ou algo parecido. - O que você acaba de dizer talvez seja verdade - concordou ele. - Mas por que disse "meninos"? - Porque Richard só tinha quinze anos, quando visitou a ilha pela última vez. - Não é verdade. Ele esteve aqui há cinco anos. Clara emudeceu, sentindo-se mal por ter acabado de demonstrar que não sabia nada a respeito do homem com quem se casara. O que Douglas pensaria? Não conseguiu imaginar nada para dizer, mas, para seu alívio, ele mudou de assunto: 46 - Como estão os preparativos para o livro? - Bem. Trabalhamos durante a manhã e às vezes à noite. Richard tem um diário com todos os acontecimentos; eu o leio e em seguida compomos a narrativa, baseando-nos nas fotografias. - Parece interessante! . Muito! Depois de todas essas manhãs de trabalho, fico surpresa ao constatar que estou numa das ilhas Hébridas e não entre as montanhas de Kumoa, no Himalaia. - Está gostando da nossa ilha? - Adorando, embora ainda não tenha podido ver muita coisa. Todas as tardes damos uma caminhada pela praia. - Já andaram pelos lados do cabo? - Não. Caminhamos sempre até um recanto, onde Richard gosta de ouvir as águas do córrego batendo nas pedras. De fato, é um lugar muito bonito. - Você devia passear mais. Podemos levá-la a outras partes. Existem pedras também do outro lado da ilha e lugares muito mais bonitos, porém de difícil acesso. De carro é impossível chegar lá. Clara suspirou. - Gostaria muito, Douglas, mas Richard não consegue andar por lugares assim. - Ora, ele conhece tudo, por aqui. Tenho certeza de que não se importaria, se você o abandonasse por poucas horas e viesse comigo. Afinal, pode ser que não volte mais à ilha. - É verdade - concordou ela, pensativa. Douglas jamais adivinharia a extensão das próprias palavras. A baía em fora de "U" agora se tornava visível, e sobre o cabo podia-se avistar a grande casa escura que Clara já conhecera por fora. O carro logo parou em frente a ela e Douglas inclinou-se até o banco de trás para pegar o equipamento de pesca. - Venha conhecer a casa - sugeriu, enquanto saía do carro. Ela aceitou e os dois correram para dentro, para evitar que a chuva que agora caía forte os ensopasse por inteiro. Entraram na 47 varanda e Douglas ajudou-a a tirar a capa, conduzindo-a em seguida para a ampla cozinha. Lá estava uma senhora de cabelos grisalhos, que acabava de tirar uma panela do fogo. Ouvindo-os entrar, voltou-se e sorriu ao se deparar com Clara. - Eu vi vocês chegarem e estava torcendo para que Douglas a trouxesse até aqui - disse amigavelmente. - Você é a mulher de Richard, não? Muito prazer, sou Margot Fairlie, mãe de Douglas. - Fico contente de conhecê-la. - Obrigada, querida. Vamos até a sala? O pequeno Alan está lá, comKirsty. - Enquanto você e Clara conversam, vou trocar de roupa. E os gémeos, onde estão? - Brincando no sótão - respondeu Margot. Em seguida dirigiu-se a Clara: - Seu marido e Douglas sempre brincavam lá, quando o tempo estava chuvoso. Mas isto foi há muito tempo. Entraram na sala grande e iluminada, decorada em estilo vitoriano. Ao lado da lareira, duas pessoas estavam sentadas no chão. Uma era uma criança ruiva que imediatamente se virou para ver quem entrava. Seus olhos cinzentos eram vazios e sem expressão. Á outra pessoa era uma mulher esbelta, aparentando ter trinta anos. - Kirsty, Alan, esta é Clara Mallon - apresentou-os Margot. - Ela veio tomar chá conosco. Agora conversem com ela enquanto preparo tudo. - Onde está papai? - o menino perguntou. - Conseguiu pescar alguma coisa? - Está lá em cima, no quarto. Fique aqui e... - Não fico nada. vou lá com ele. Estou cansado de brincar com ela - disse, apontando para Kirsty, e, sem dar ouvidos à avó, saiu da Sala. Margot Fairlie olhou para Kirsty como que se desculpando. Esta percebeu e adiantou-se antes que a outra pudesse dizer algo. 48 - Tudo bem Mrs. Fairlie - afirmou, compreensiva. Cevará algum tempo até que ele se acostume comigo. - Por favor, sente-se e fique à vontade, Clara. Kirsty foi uma grande amiga de minha nora e acabou de voltar do Canadá. Margot hesitou e então saiu da sala. Clara sentou-se na extremidade do sofá, sem jeito. Reparou em Kirsty e se comparou com ela. Não gostou do resultado. Desejou não estar usando aqueles jeans surrados, com a blusa vermelha já meio desbotada. Kirsty, com uma saia preta que combinava muito bem com a blusa cinza, media-a de cima a baixo. O brilho de seus cabelos curtos e sua figura esbelta e elegante fizeram com que Clara se sentisse horrorosa. - Então você é a esposa de Richard - disse Kirsty, sentando-se na poltrona ao lado. - Ora, ora, nãoé exatamente o tipo de pessoa que eu imaginaria para ele. - "O mesmo assunto...", pensou Clara, enfadada. - Como você conseguiu? Pelo que me lembro, Richard tinha fixação por beleza e elegância. Como vai ele? Clara engoliu o insulto e respondeu: - Muito bem. Você o conhece, então? - Eu o conheci há cinco anos. Era muito amiga de Sorcha Fairlie e fui convidada a passar as férias aqui. Richard estava no chalé. Você sabe a respeito de Sorcha, suponho. - Era a esposa de Douglas, não? Ele me disse que ela morreu num acidente. - Douglas? - Kirsty levantou as sobrancelhas, demonstrando espanto. - Não foi Richard quem lhe contou? Clara sentiu-se embaraçada, quando notou aqueles olhos azuis brilharem, mordazes. Não queria dar a entender que o próprio marido tinha segredos para com ela. - Na verdade, fui eu quem lhe deu a notícia - tentou explicar. - Richard não sabia e pareceu chocado, quando lhe contei. O que aconteceu? 49 - Sorcha havia ido a Glasgow sem dizer uma palavra. Douglas não estava aqui, mas numa conferência em outra cidade. Ele é professor-assistente na melhor universidade da Escócia - explicou Kirsty. - Richard havia deixado a ilha no dia anterior. Ao que tudo indica, Sorcha foi-se encontrar com ele, mas sofreu um acidente de carro e morreu na hora. - E por que ela haveria de se encontrar com Richard? - Clara começou a ficar intrigada. O sorriso de Kirsty era bastante significativo. Entretanto, ao ouvir que Margot se aproximava, pôs o dedo nos lábios, dando a entender a Clara que mudassem de assunto. A seguir perguntou casualmente: - Em que trabalhava, antes de se casar? - Eu ainda trabalho - respondeu ela, compreendendo que aquela conversa sobre a morte de Sorcha não deveria chegar aos ouvidos de Margot. - Sou professora de História. Margot entrou na sala e Clara levantou-se para ajudá-la, tirando, prestativa, a bandeja das mãos da boa mulher. - Obrigada, minha querida. Ponha-a do lado do sofá, sim? É uma pena que Richard não esteja conosco para comer essas rosquinhas. Ele gostava tanto! - lamentou-se Margot, enquanto servia o chá. - Ele adoraria ter vindo, estou certa. - Compreendo que ele tenha medo de andar por aí sozinho. Que coisa terrível, não? Ser obrigado a privar-se das coisas que mais lhe agradavam: alpinismo, viagens, pesca... - ... mulheres bonitas... - disse Kirsty em voz baixa, lançando um olhar maldoso para Clara. - Fotografias... - continuou Margot, sem ouvir o comentário da outra. - Acredito que você esteja sendo de grande valia para ele, principalmente agora, com o prójeto do livro. Richard é mesmo uma pessoa de sorte, por ter alguém como você. - Uma datilógrafa seria útil do mesmo modo - troçou Kirsty. 50 Não concordo - contestou Margot. - É preciso alguém que tenha sensibilidade, que veja as coisas como ele as vê; não esqueça que Richard não pode selecionar as fotografias. Gostaria muito que você fosse visitá-lo - pediu Clara, sentindo que aquela mulher simpática poderia ajudar Richard. - Pensamos nisso, Douglas e eu. Mas uma lua-de-mel deve transcorrer em meio à privacidade dos pombinhos. Olhando para Kirsty, Clara corou. Parecia que a outra sabia de tudo o que se passava entre ela e Richard. A entrada de duas crianças na sala interrompeu a conversa. Eram iguais e não tinham mais que doze anos. - Quem é essa moça? - perguntou uma delas, apontando para Clara. - George, que modos horríveis! Esta é Clara, esposa de Richard - respondeu Margot. - Podemos visitá-lo? - perguntou a outra criança. - Quero saber como ele ficou, depois que caiu da montanha. - Por favor, Clara, desculpe. Sabe como são as crianças, falam o que lhes vem à cabeça. - Não se preocupe com isso, Margot - respondeu ela, i sorrindo de forma compreensiva. - Estes são meus netos George e Beth, filhos de minha filha Joan. Ela e o marido estão velejando pelas ilhas. Normalmente, as crianças os acompanham, mas este ano eles preferiram viajar sozinhos. - Acho que Richard vai ficar muito contente, se vocês forem visitá-lo - disse Clara. - Eu também? - perguntou uma vozinha tímida. Era Alan, .-que havia voltado na companhia do pai. - Você também. - Clara sentiu-se contente ao notar que aquela criança aparentemente arredia sorria para ela. - Por que não vamos todos juntos? - sugeriu Kirsty. - Será 51 mais fácil quebrar-se o gelo, quando Douglas e Richard se encontrarem. - O que a faz pensar que existe algum gelo para ser quebrado - perguntou Douglas. - Você não fez nenhum esforço para vê-lo, até agora, e entã deduzi que ainda o considera culpado pelo que aconteceu a Sordi - explicou Kirsty, e Clara notou que a maneira como se comportava não combinava com sua beleza. Era como uma fruta bonita por fora e podre por dentro. Um silêncio pesado caiu sobre todos, até que Margot retomou conversa, desviando-a para assuntos mais superficiais. Mais tarde convidou Clara para conhecer o resto da casa. Depois de andarem pelos diversos cómodos, entraram no escritório. Ali Clara foi surpreendida com uma pergunta, feita quase em tom confidencial: - Você sabe muito pouco a respeito de Richard, não? Clara ficou um pouco embaraçada, mas encontrou o olhar compreensivo e solidário daquela mulher com quem simpatizara à primeira vista. - É verdade. - Então vou lhe dizer o que sei. Não é muito, pois o que conheço do passado de Richard me foi contado por Grace Beaton, tia-avó dele. - Não foi Grace quem lhe deixou o chalé? - perguntou Clara, lembrando que Richard já havia mencionado isso por alto. - Exatamente. Mas deixe-me começar do princípio. Grace e Roderick Beaton nasceram naquele chalé onde vocês estão e onde os Beaton sempre viveram. Entretanto, como muitos jovens de sua época, abandonaram a ilha, à procura de uma vida diferente. - Para onde foram? - Ele entrou para a Marinha mercante e ela foi para Londres, onde se tornou enfermeira. Roderick casou-se com uma moça que 52 conheceu numa de suas constantes paradas e, logo depois, tiveram uma filha. Entretanto, Roderick mal chegou a conhecê-la, pois contraiu uma doença grave no navio e morreu em algum ponto do oceano. A esposa dele casou-se novamente e Grace Beaton nunca mais teve notícias dela. Anos mais tarde, Grace conheceu uma estagiária no hospital onde trabalhava. Essa moça, verificou-se mais tarde, era sua sobrinha, filha de Roderick. Não é preciso dizer que as duas ficaram muito felizes, especialmente a moça, que não vivia bem com o padrasto. Assim foi que passou a morar com a tia. A guerra veio e Grace trabalhou como voluntária no front, cuidando dos feridos. As duas, todavia, sempre se corresponderam, e numa dessas cartas a sobrinha mencionou um piloto por quem se havia apaixonado. - Era o pai de Richard? - Ele mesmo - concordou Margot. - Foi um daqueles romances rápidos dos tempos de guerra. Casaram-se e em seguida ele partiu, para acabar morrendo num bombardeio. A moça descobriu estar grávida. O marido nada lhe havia dito sobre a família ou como encontrá-la, de modo que só restou a ela voltar para a casa da mãe. Grace não teve mais notícias da sobrinha, que deve ter morrido logo após o parto. - Que triste... - É verdade, mas esse não era um fato incomum, para aquela época. Richard ficou então sob os cuidados da avó materna, até que esta, doente, entregou-o a um orfanato. - Que horror! E onde estava miss Beaton? - Quando a guerra acabou, Grace procurou o sobrinho durante vários anos, até finalmente encontrá-lo. Não conseguiu a tutela, entretanto, porque era solteira. A avó de Richard havia morrido há algum tempo, e Grace então conseguiu permissão do juiz para que Richard passasse com ela alguns meses do ano. Jamais esquecerei o dia em que minha filha Joan trouxe um menino alto e magro que 53 havia conhecido na praia, do outro lado da baía... Enfim suspirou Margot -, isto é tudo o que eu sei. - Começo a compreender por que Richard parece tão frio e insensível, algumas vezes - murmurou Clara, pensativa. - A vida dele não foi nada fácil. Richard herdou o orgulho e a reserva dos Beaton. Não gostade ter que dar explicações e, às vezes chega a ser mal-interpretado. O semblante de Margot anuviou-se e Clara imaginou que ela talvez estivesse recordando as palavras de Kirsty, de que Richard seria o responsável índireto pela morte de Sorcha. Respeitou aquele silêncio, comovida, mas no instante seguinte Margot sorriu e abraçou-a, acrescentando: - Estou feliz por ele ter encontrado alguém como você, Clara justamente no momento em que mais precisava. - Às vezes me sinto tão inútil... - Você é ótima, tenho certeza. De qualquer modo, seria bom que Joan estivesse aqui. Eles eram muito amigos. Douglas é niais novo e, apesar de ser meu filho, reconheço que é austero demais para a idade. Bem diferente de Richard! - Olhou instintivamente para o relógio antigo que ficava na parede do escritório e exclamou: - Meu Deus, estamos conversando há tanto tempo que seu marido deve estar preocupado com a sua demora. Já são seis horas! Vá, querida, não o deixe esperando. Parando o carro em frente ao chalé, Clara desceu, carregada das compras que fizera no armazém, após ter deixado a casa de Margot. Entrou na varanda e estranhou o silêncio. Sentiu um frio no estômago. Será que Richard, frustrado pela impossibilidade de enxergar e furioso pela longa demora, havia saído sozinho? Tentou acalmar-se e entrou na copa. Richard estava sentado à mesa, examinando algumas lentes do equipamento de fotografia. Havia uma máquina sobre a cadeira e, esparramadas na mesa, diversas fotos. Segurando a respiração, Clara viu quando ele pegou 54 um filme e colocou-o sem dificuldades na máquina que tinha à mão. Então ele estava enxergando! As têmporas dela latejavam e seu coração começou a bater feito louco. Richard voltou-se para ela e seus olhares se encontraram. Nos dela havia ansiedade. Nos dele, mistério. 55 CAPITULO V O silêncio era pesado, e Clara quase não conseguia suportar aquela situação. Ela podia sentir seus músculos se contraírem e as pernas tremerem. Richard a havia olhado fixamente, estava certa disso, embora tivesse voltado novamente a atenção para a máquina. Clara não conseguia mover os lábios, tal era o medo que se apossava dela. Sentiu-se culpada, ao compreender o que se passava em seu íntimo: não queria que ele a visse. Não agora. Um de seus braços ficou tão mole que ela não conseguiu evitar que um dos pacotes que carregava caísse. Imediatamente Richard perguntou: - É você, Clara? - Sim, sou eu. Desculpe a demora. - Caminhou até o armário e começou a guardar as compras, dando graças a Deus por ter conseguido responder com naturalidade. - O que esteve fazendo este tempo todo? - perguntou, ainda trémula e ansiosa. - Descobri que posso pôr o filme na máquina. Sozinho! Após várias tentativas, consegui afinal. Quer ver? - indagou, alegre como uma criança. Clara respirou, aliviada, ao constatar que nada mudara. Ele continuava cego. Sentindo-se leve como nunca, aproximou-se da mesa .para observá-lo. As mãos hábeis moviam-se, seguras. Richard tirou o filme da máquina e o recolocou em seguida, com segurança e rapidez. Sentia-se feliz consigo mesmo. - Que bom, Richard! - exclamou ela, feliz. - Estou certa de que você logo poderá fazer tudo, como antes. Mais cedo do que pensa! 56 E você ficará muito content, com isso, não é? Clara o observou e hesitou um pouco. Não podia dizer que não; seria cruel. Por outro lado, sabia que, assim que ele voltasse a enxergar, aquilo tudo terminaria. Por isso, foi com esforço que respondeu: - Claro que ficarei feliz. Agora deixe-me preparar o jantar. - O que há com você? - perguntou ele, intrigado. - Parece nervosa. Onde esteve até agora? - Na casa de Douglas. Encontrei-o na estrada e, como estava chovendo, ofereci-lhe carona. Acabei entrando para conhecer a mãe dele e fiquei lá a tarde toda. - Falava sem parar, como se com isso pudesse apagar a impressão que causara a Richard. - Joan estava lá? - Não. Foi viajar com o marido. Mas conheci uma tal de Kirsty. Você sabe quem é, não? Clara esperava que ele admitisse ter estado na ilha cinco anos atrás. - Kirsty, você disse? Não me lembro. Ela se voltou para olhá-lo. Richard estava em pé, mãos nos bolsos, testa franzida, como quem puxa pela memória. - Vamos, Richard! - acrescentou, com uma risada nervosa. - Você sempre se esquece das pessoas que conhece? Ele levantou os ombros e sorriu. - Não faço de propósito. É que tenho dificuldade em associar o nome à pessoa. Descreva-a para mim. Clara observou-o longamente. Ele havia adquirido uma aparência forte e saudável, que lembrava o Richard petulante e auto-suficiente dos velhos tempos. O Richard que não precisava de ninguém. Muito menos dela. - Ei, Clara, o que há? - Como assim? Não há nada. Quero dizer... O que poderia haver? - é que você parecia estar tão longe!.. 57 Ela tremeu. Como aquele homem podia ter os sentidos tão aguçados? - Bem, eu... estava pensando em como você melhorou acrescentou com impaciência. - Bronzeado e bem disposto, nem parece a mesma pessoa. - Sabe, eu já havia me perguntado quando é que iria notar. Tudo isso se deve à ótima comida que você faz e ao ar puro daqui. Agora só preciso da sua companhia durante a noite. Assim ficarei melhor ainda. Clara pensou que ele tinha todo o direito de sugerir aquilo. Afinal, estavam casados. Mas, mesmo assim, sentiu-se chocada com a ideia. - Imagino, pelo seu silêncio - concluiu ele -, que você ainda não pensou nisso. Está bem, então. Descreva-me a tal mulher para ver se consigo me lembrar dela. Mais uma vez, Clara respirou, aliviada, por ele não ter insistido naquela conversa. Descreveu Kirsty enquanto preparava o jantar e não omitiu nenhum detalhe. - Não pensei que você esquecesse tão fácil assim um rosto bonito - concluiu, de costas para ele. Por isso mesmo, levou um susto, quando Richard a enlaçou pela cintura. - Uma mulher não precisa ter um rosto bonito para que eu me lembre dela, bobinha. O coração de Clara batia descompassado, ante o calor daquele corpo tão próximo. - E, além do mais, a beleza se mostra de maneiras diferentes - continuou ele. - Você tem uma voz bonita e melodiosa, pele e cabelos macios... Estou sentindo isso agora. - Encostou o rosto ao dela, que sentiu estar sendo arrastada num turbilhão de emoções. - Que beleza maior pode querer um homem cego? - Você se lembrou de Kirsty? - indagou ela. Não havia muita suavidade em sua voz, agora, que soava com aspereza. Era preciso que não se deixasse levar pelas palavras de Richard. - Sim, mas não quero pensar nela agora. 58 - Por quê? - E o nosso jantar? Estou morto de fome! - Não fuja do assunto, Richard. E, se você me soltar, logo, logo o jantar estará pronto. - Um a zero pra você - concordou ele, rindo e soltando-a. Eu a deixo ir agora, mas não pense que vai escapar sempre. Aquela ameaça em tom de brincadeira ficou soando nos ouvidos de Clara, enquanto ela acabava de fazer o jantar. Sabia que Richard notava como tremia, cada vez que a tocava. Isso, na certa, dava a ele a segurança de poder avançar cada vez mais. Só que não era assim que ela queria. Já à mesa, em silêncio, Clara observava com atenção o homem que a desposara. Era muito atraente, e fazer amor com ele devia ser maravilhoso. Uma loucura. Algo que a faria até chorar de prazer e emoção. Faltava, entretanto, uma coisa: queria ouvi-lo dizer que a amava, que Toni nada significava. - Por que não me contou que esteve aqui há cinco anos? - A pergunta quebrou de maneira abrupta o silêncio. Richard ajeitou-se na cadeira. - Não pensei que você se interessasse no que eu pudesse ter feito cinco anos atrás. Alguma vez fiz este tipo de pergunta a você? - Não, mas não tenho nada a esconder. Há cinco anos, eu tinha quase dezoito e me preparava para entrar na faculdade. Clara pretendia, ao dizer essas coisas, que Richard se abrisse um pouco. Seu esforço não passou despercebido. - Suponho que, em troca, eu deva lhe dizer o que fazia naquela época - caçoou ele. - Bem eu tinha quase trinta anos e acabava de fazer a minha primeira exposição de fotografias.Depois de ter sentido o gosto do sucesso, resolvi voltar à ilha. Já fazia tempo que não vinha até aqui. Para ser mais exato, desde a morte de tia Grace. Pronto, isso satisfaz a sua curiosidade? - A voz soava sarcástica, demonstrando uma certa irritação. - Quanto tempo ficou aqui? - Um mês. mais ou menos. 59 - Kirsty contou que Sorcha Fairlie deixou a ilha um dia depois de você ter partido, e morreu num acidente de carro. Richard fechou os olhos e sua expressão demonstrava amargura. Por um momento, pareceu ser o homem que Clara conhecera no hospital. Pousou os cotovelos sobre a mesa e descansou a cabeça nas mãos. - O que mais Kirsty lhe contou? - perguntou, com voz fraca e cansada. - Que era grande amiga de Sorcha e que ela saiu da ilha para ir atrás de você. Richard não disse uma palavra, mas seu nervosismo era evidente. - É verdade? - insistiu Clara, desejando ardentemente que ele negasse. - Talvez sim. Mas não lhe pedi que fizesse isso. - Depois desta resposta, Richard entregou-se a seus pensamentos. Clara só observava, sem saber o que falar. Toni, com certeza, não faria tantas perguntas. Conversaria, animada, sobre outras coisas, procurando distraí-lo. E, principalmente, Toni não hesitaria em ir para a cama com ele. - Você gosta de Douglas, Clara? - Gosto, sim. Ele é muito gentil. - Imagino que tenha sentido muito o fato de a esposa dele tei morrido - comentou, enigmático. - Tem razão. Também sinto pena de Alan. O garoto é muito estranho, parece viver em outro mundo. - Entendo. Talvez ele seja um predestinado, como a mãe. - Predestinado? O que quer dizer com isso? - Destinado a morrer. - Havia uma nota sádica em sua voz. - Ou pode significar também tresloucado. Terminado o jantar, levantaram-se e Richard dirigiu-se à porta, parando antes de cruzar a soleira, de modo a bloquear a passagem. Clara, por um momento, imaginou que ele fizera isso de propósito, mas depois concluiu que,não. 60 Você está bloqueando a passagem - explicou com cuidado, detestando ter de lembrá-lo da cegueira. - Estou, é? Que bom, pois é aqui mesmo que vou ficar replicou ele com jovialidade, sem se mover um só milímetro. - Porquê? - Para não deixar você fugir. Só saio daqui se prometer que vai dormir comigo, esta noite. E já não é sem tempo. - Por que não tomamos um chá e conversamos a respeito? sugeriu ela, tentando ganhar tempo. - Porque não temos feito outra coisa senão conversar, e já estou cansado de conversa. - Fez uma pausa e em seguida continuou, sério: - Você não pensou que eu me contentaria com uma esposa só no papel, pensou? - Não. - O rosto dela pegava fogo. - Sinto muito, Richard, mas pensei que talvez... Bem, sei que você não me ama e... - Amor? Do que você está falando agora? Ouça, Clara, posso ser cego, mas sou normal, com certas necessidades, como todos os outros. Você é uma mulher saudável. Não é possível que não sinta a mesma coisa! - Riu-se do que considerava ingenuidade de Clara. - Amor, como você quer, é algo que não existe. O que há, agora, são duas pessoas, um homem e uma mulher, convivendo sob o mesmo teto. Nada mais natural que esse homem e essa mulher façam amor, não acha? - Depois acrescentou, impaciente: - Já esperei muito, Clara. Será possível que você não compreende? Clara não podia acreditar no que ouvia. Chocada com aquelas palavras, e aproveitando que Richard saíra da passagem, encaminhou-se, apressada, para o quarto. Qual não foi sua surpresa ao perceber que ele entrou atrás. - Ei, Richard! Você apagou a luz! - disse, assustada, enquanto tentava chegar até o interruptor. Mas foi impedida. - Eu sei. Agora você não tem mais vantagens sobre mim. Nenhum de nós vê nada, nesta escuridão. 61 - Richard, pelo amor de Deus, seja razoável! - implorou, recuando. Quando sentiu que resvalou na cama, teve uma ideia repentina. Passaria por cima dela, procurando não fazer o menor ruído, e então alcançaria a porta pelo outro lado. Precisava vencer a escuridão e ser rápida o suficiente para que Richard não se desse conta do que estava acontecendo. Nem bem pensou e já estava do outro lado, na direção da porta. Percebeu então que Richard estava muito quieto. Tarde demais. Em meio ao escuro, deu de encontro com ele, que parecia estar esperando que ela passasse por ali. - Peguei você - sussurrou, prendendo-a nos braços. - Foi uma boa ideia, coração, mas você esquece que posso ouvir muito bem. Melhor do que você. - E riu da tentativa infantil de fuga. Aquela risada despertou a fúria de Clara. Ela não fugiria, não teria medo. Como ele ousava comportar-se daquele modo, tratando-a como um objeto de uso pessoal? Sua ira cresceu a ponto de desvencilhar uma das mãos e erguê-la na direção do rosto de Richard. Como se enxergasse, ele a segurou no ar, evitando que o tapa o atigisse. - Não pensei que você fosse o tipo de homem que precisasse tomar uma mulher a força! - A voz agressiva era um desafio. Ela sentiu um lampejo de triunfo, quando ele reagiu: - Pois não sou. Nem você é o tipo de mulher que se submete à força. Seria capaz de lutar até o último instante mas não cederia, não é verdade? - Se sabe disso, por que me segura desta maneira? perguntou, com voz trémula de raiva. - E se não está usando a sua força, gostaria de saber o que está fazendo. - É tudo parte do jogo - murmurou ele. - Quando pedi que se casasse comigo, deduzi que conhecesse as regras, mas parece que me enganei. Você está tão presa a tabus, ao que considera certo e errado, que não é capaz de reconhecer as suas próprias necessidades. Talvez seja tempo de alguém abrir os seus olhos, e, 62 venhamos, é melhor que eu o faça. Eu tenho certeza de que concordará com isso assim que lembrar que sou seu marido. Disse isso e começou a desmanchar-lhe os cabelos. Soltos, eles caíram, fartos e pesados. Uma sensação de abandono parecia querer tomar conta de Clara, que lutou desesperadamente para manter a cabeça fria. Se não se livrasse logo dos braços que a envolviam, seria capaz de entregar-se de corpo e alma. - Se você não me soltar... - Parou, à procura de algo para argumentar. - Você o que, coração? - indagou ele, divertido. - Não me chame assim! - Por que não? - Porque você me faz sentir igual às outras! - Que outras? Ora vamos. Clara, pare com isso. - Aquele sorriso de quem está se divertindo irritou-a profundamente. - vou odiar você para sempre! - gritou, desesperada. - Ah! Então está ficando violenta, hein? É incrível como você consegue passar de um extremo a outro com tanta facilidade: amor e ódio. E parece gostar muito das palavras "para sempre". Sou muito diferente, sabe? Só penso no hoje, no agora. Hoje, agora, você é minha esposa. Não de outro homem, mas minha. Aquele sentido de posse e a ênfase que ele dera à última palavra excitaram a imaginação de Clara, embora considerasse repulsiva aquela ideia machista. Mais uma vez tentou reunir os últimos esforços para manter o controle. A última coisa que queria era ser possuída por um tirano. Estava casada por compaixão, só isso. Tão logo terminasse o verão, voltaria à sua vida em Londres. Os pensamentos formavam ,um redemoinho em sua mente. Sentiu que os dedos de Richard desabotoavam sua blusa. Mas, ela não queria aquilo. As mãos de Richard acariciavam seus seios. - Você tem muito que aprender ainda, minha puritana sussurrou ele -, mas posso garantir que nada do que vai acontecer será contra a sua vontade. Existem outras maneiras, além da força. 63 - Você não está... jogando limpo - acusou-o ela, no limiar de suas forças. Quando afinal seus lábios se encontraram, Clara não pôde pensar em nada. Alguma coisa explodia em seu corpo, como uma carga de dinamite, e depois daquilo ela se entregou, sem conseguir controlar o desejo que crescia forte e que a arrastava para um mundo de emoções desconhecidas. 64 CAPÍTULO VI Clara despertou com a voz de alguém chamando seu nome. Ainda sonolenta, deitada de bruços, ergueu a cabeça, pensando se aquilo estava mesmo acontecendo ou se era parte de um sonho. A mesma voz, agora mais audível,chamava também por Richard. Clara virou-se e abriu os olhos devagar. O espaço a seu lado se encontrava vazio. Onde estaria Richard? O quarto estava claro e os raios de sol que entravam pelas frestas da janela projetavam-se na parede. Ela sentou-se na cama e olhou para as roupas espalhadas pelo chão. A porta do armário estava escancarada, e as gavetas abertas. Alguns papéis, que na noite anterior estavam sobre a mesa, haviam caído no assoalho. Ouviu, através da porta entreaberta do quarto, que alguém entrava na varanda. - Clara! Richard! É hora de acordar! Reconhecendo a voz de Kirsty, Clara pegou o relógio. Passava das dez e ela havia perdido a hora. Por que Richard não a acordara como vinha fazendo todas as manhãs? Sentiu o rosto queimar, com a lembrança do excitante despertar dos últimos dias. Esperou que Richard atendesse ao chamado, mas não houve nenhuma resposta. Então passou a imaginar por que Kirsty teria vindo se nem Douglas nem Margot haviam tomado essa iniciativa. Seria verdade que Douglas considerava Richard responsável pela morte de Sorcha? Mas onde estaria Richard agora? Sentindo medo de que, ao sair sozinho, ele pudesse ter-se perdido, ela pulou da cama, indo em 65 direção à porta para falar com Kirsty. Naquele momento ouviu a voz jovial do lado de fora do chalé. - Oi, Richard Mallon. Não adianta se esconder atrás desses óculos escuros. Eu o reconheceria em qualquer lugar. Óculos escuros! Clara fechou a porta e começou a se vestir. Richard não usava óculos escuros desde que chegaram à ilha; dissera que ali não precisava deles. Por que então os colocara naquela manhã? - E eu reconheceria a sua voz em qualquer lugar, Kirsty Brown - respondeu Richard, enquanto se aproximava do chalé. - O que está fazendo por aqui? - Vim visitar você e sua mulherzinha, se é que ela ainda está por aqui. Chamei-a diversas vezes, sem resultado. Será que Clara já o abandonou? Falava de modo petulante, como quem procura discussão. - Ainda não. - Richard sorriu, divertido. - Você espera que ela me abandone? - Bem, ela parecia bem contente por ter deixado você por algumas horas, naquele dia em que Douglas a levou para casa. A voz chegava bem nítida aos ouvidos de Clara. - Foi muito divertido... - continuou Kirsty, com um risinho. - Vê-la chegar toda molhada como um cachorrinho abandonado na chuva! Acho que Douglas sentiu pena dela; por isso a convidou para entrar. Qualquer pessoa de aparência maltratada lhe causa grande compaixão. Clara sentiu vontade de abrir a janela e gritar: "Não dê ouvidos a ela, Richard! Nada do que está dizendo é verdade". Tremendo de raiva, começou a guardar as roupas, ouvindo ruído de passos no corredor. Richard entrou no quarto, fechando a porta. Ante a visão daquele homem alto e forte, bonito, com aqueles cabelos revoltos e óculos escuros, Clara sentiu o coração bater forte. Não conseguia deixar de espantar-se com o que havia acontecido entre eles. Não adiantava negar que Richard a atraía 66 demais e que esperava toda noite, ansiosa, que ele tomasse a iniciativa de chamá-la para o amor. Entretanto, vivia insegura. Era impossível saber o que se passava na cabeça dele ou prever o que faria no momento seguinte. - Clara? Já está de pé? - perguntou ele em voz baixa. - Estou, sim. Você devia ter me acordado, Richard. Onde esteve? - Caminhando. Fui até o córrego. Era a primeira vez que saía sozinho e Clara sentiu ciúme por ele ter preferido andar pela ilha sem ela. . - Você acha que fez bem? Poderia ter caído e se machucado nas pedras. - Mas não aconteceu nada, mamãe - brincou Richard, diante daquele cuidado excessivo. - Já fomos tantas vezes até lá que sei a posição exata de cada pedra. Saindo de perto da porta, ele caminhou na direção dela. Clara tentou afastar-se, mas as mãos dele tocaram seus ombros. O já familiar arrepio percorreu-lhe o corpo; bastou sentir o contato das mãos sensuais sobre sua pele ainda aquecida pela cama. Ela sabia que aquele contato era perigoso, pois tinha o poder de excitá-la ao extremo. - Pensei que já estivesse vestida - surpreendeu-se ele, para logo em seguida sorrir de modo significativo. - Ainda não coloquei a blusa, mas... - Isso é ótimo - interrompeu ele, abraçando-a sensualmente. Ela estremeceu de prazer, mas recuou um pouco e perguntou": - O que Kirsty quer? - Você a ouviu chegar, então? Por que não respondeu? Richard falava ao acaso, mal dando atenção às próprias palavras. - Porque você chegou no exato momento em que... Enrijeceu o corpo, ante o toque das mãos experientes que a acariciavam sem parar. - Resistindo, como sempre? - murmurou ele ao ouvido dela. - Por quê? 67 - Você sabe por quê. Tudo que está acontecendo há dias é contra a minha vontade. Richard fez uma careta de desdém. - Isso é o que você pensa, não o que sente. Sei muito bem que finge não aceitar que façamos amor, mas não me engana. Gosta, quando eu me aproximo e a beijo assim. - Ia beijá-la, mas Clara o evitou. - Agora não, Richard, por favor - pediu. Obedecendo, ele a soltou e sentou-se na cama de braços cruzados, enquanto ela acabava de se vestir. - Kirsty veio convidar-nos para um piquenique. Você não gostaria de ir? - E você? - perguntou ela, acabando de abotoar a blusa. - Pensei que talvez fosse bom para você se distrair um pouco. Deve estar cansada de tanto trabalhar e ouvir a minha voz. - Não me sinto cansada. Adoro o que estou fazendo. - De qualquer modo, acho que você deveria ir. Douglas mandou convidá-la e Kirsty disse que Alan e os gémeos também irão. - Mas, e você? - Para mim fica difícil. Não vou conseguir andar por aqueles lados sem tropeçar. - Eu o ajudarei. - Não quero. Clara compreendeu que ele não queria demonstrar aos outros sua dependência. Era orgulhoso demais para isso. Deu de ombros, resignada, e ouviu-o acrescentar: - Você não vai ter outra chance de conhecer a ilha, Clara. Pense nisso. Não se preocupe com o nosso trabalho, hoje. Já estamos bem adiantados. Bem, vou fazer companhia a Kirsty enquanto você acaba de se vestir. Clara deu um jeito no quarto e depois foi até o espelho para pentear os cabelos. Agora usava-os soltos, como Richard gostava, e acabara por se acostumar com a nova aparência. Olhou contente 68 para seu reflexo no espelho; sentia-se diferente, mais feminina, até bonita. A caminho da varanda, parou para escutar o que Kirsty dizia, num tom gentil demais para seu estilo habitualmente provocativo. - Sinto pelo que aconteceu ao seu amigo Euan, naquela expedição. Você deve ter ficado triste, não? Como eu fiquei quando Sorcha morreu. Éramos muito amigas. Ela sempre me contava tudo, Richard. Tudo. - Ah, é? Que bom para você, não? - respondeu ele com ironia, dando a entender que aquela conversa o estava aborrecendo. - Talvez você já tenha compreendido que Douglas sabe de tudo. Por isso ele não apareceu para vê-lo. - Tudo o quê? Escute aqui, Kirsty, por que você sempre fala nas entrelinhas? Não consegue dizer as coisas sem rodeios, diretamente? Clara vibrou, ao ouvir a voz irritada de Richard. Pena não ter podido ver a reação de Kirsty. - Douglas sabe que Sorcha o abandonou por sua causa. - É? E também sabia para onde iríamos? - Richard resolveu entrar no jogo para ver até onde ela seria capaz de chegar. - Ora, ele não é bobo. Se você estava em Glasgovv, era óbvio que Sorcha iria até lá. - Kirsty começava a ficar nervosa com a frieza e a naturalidade que ele demonstrava. - Engraçado, Kirsty... Se Douglas não estava aqui naquela época, como pôde chegar a essa conclusão? A menos que alguém tivesse enchido a cabeça dele com ideias maldosas como essa. Richard riu e Kirsty, visivelmente contrariada com aquela insinuação e com o pouco caso que ele fazia de suas palavras, levantou-se para ir embora. Clara achou que já era o momento de entrar e salvar a moça de uma situação tão desagradável como aquela. - Oi, Kirsty. Desculpe não ter acordado logo - disse, com alegria forçada. Os olhos de Kirsty fuzilavam Richard e as maçãs de seu rosto 69 pegavam fogo. Ele, por sua vez, tinhaum sorriso sarcástico nos lábios. - Olá, Clara. Trouxe as desculpas de Margot por não ter vindo ainda. Ela acha que deve esperar um pouco mais para não atrapalhar a lua-de-mel de vocês. - Pena que você não pense do mesmo modo. - Richard encontrava prazer em divertir-se às custas de Kirsty. - Richard, por favor - repreendeu-o Clara, e voltou-se para Kirsty: - Gostaria muito de ir ao piquenique com vocês. A que horas devo estar na casa? - Mais ou menos às onze e meia. - Combinado. - Você não vai, Richard? - Tenho coisas mais importantes para fazer. - E vai deixar Clara ir sozinha? - Sou marido, e não carcereiro. Minha esposa é livre para fazer o que quiser. Até logo, Kirsty. Clara acompanhou-a até a porta e, antes de se despedir, Kirsty ainda comentou: - Tenho pena de você, Clara, por ter casado com Richard. Ele precisaria de uma mulher mais velha, com mais experiência... - Como você, talvez? - completou Clara com ironia, mas, para sua surpresa, Kirsty aceitou com naturalidade a observação. - Possivelmente. Acho que ele andou interessado em mim. Há cinco anos. - Desculpe, mas não acredito. - Não? - Ela lançou-lhe um olhar de pena. - Pobre criança inocente... Você ainda tem muito que aprender sobre Richard. Nunca pense, por um momento sequer, que é a única mulher na vida dele. Tchau, querida, vejo-a mais tarde. Ela foi embora e, após fechar a porta, Clara aproximou-se de Richard, que havia tirado os óculos e esfregava os olhos. - O que você tem? - perguntou ela, pondo uma das mãos nos ombros dele. 70 - Nada - respondeu, recolocando os óculos. Não é verdade. Seus olhos estão doendo? Você não usa os óculos desde que chegamos. Estou até surpresa por ter conseguido encontrá-los. . Então não deve ter reparado no estado em que ficou o quarto retrucou ele, divertido. - Meus olhos estão bem, não se preocupe. - Gostaria muito que me dissesse o que está havendo. - Nada, já lhe disse. - Então, por que saiu sozinho hoje? - Sentiu a minha falta? - perguntou ele com um sorriso provocante, e Clara corou mais uma vez ao recordar-se das manhãs em que acordavam juntos. - Não me refiro a isso. É que você parece ter problemas. Por que não os divide comigo? Estamos casados, lembra? - Desculpe-me desiludi-la, mas quanto menos tocarmos no passado, melhor será. - De repente caiu na risada, como se estivesse lembrando de algo engraçado. - Você tem algum passado, minha puritana? Duvido. - Por favor, pare de se divertir às minhas custas. Sei tanto quanto qualquer mulher. - Verdade? Através de livros, quem sabe, mas não através de experiências. Você está começando a viver agora, certo? - Piscou para Clara, que entendeu o que ele quis dizer. - Não está exagerando demais a sua importância? - perguntou ela com voz fria. - Só porque não conheci você antes não significa que nunca tenha vivido. - Entretanto, a impressão que tenho é exatamente essa. Beijar você, por exemplo, é como beijar â Bela Adormecida, que ficou cem anos fora da realidade. Só agora posso compreender o que o tal príncipe sentiu. Clara voltou-se para o fogão e começou a preparar o café. Lembrou que, algumas noites atrás, ameaçara odiá-lo para sempre porque ele era capaz de fazer amor sem estar apaixonado. 71 Agora a ameaça se tornara realidade: ela o odiava, e ainda mais porque ele a tinha despertado de um longo sono, provocando desejos que nunca havia sentido antes. Tomaram o café da manhã, em silêncio. Quando Clara acabou de lavar a louça, já era hora de encontrar-se com Douglas e os outros. A fúria que havia enchido seu coração de ódio minutos atrás já se amainara. Na verdade, essa inconstância de sentimentos fazia parte de sua vida desde que conhecera Richard. Num impulso, pediu: - Gostaria que você fosse comigo. Não me sinto bem, deixando-o sozinho. - Estarei bem, mamãe, não se preocupe. - Você não quer ir para não ter que encontrar Douglas? - Não há motivo algum para eu temer um encontro com ele! A voz dele se alterou. - Não acredito. Richard agarrou-a pelos ombros e gritou: - Por quê?! Será que é mais fácil acreditar no que os outros dizem? - Sou obrigada a aceitar o que diz só porque é meu marido? Se você se abrisse comigo, não haveria razão para suspeitas. E quer fazer o favor de me soltar? Não vê que está me machucando? Richard soltou-a devagar e Clara percebeu quanto ele estava furioso. Sentiu um estranho prazer por ter sido capaz de fazê-lo perder a calma. - Como posso convencê-la de que nunca tive qualquer coisa com Sorcha? Por um momento, parecia que os papéis haviam se invertido. Era Richard quem se mostrava indefeso, enchendo de ternura o coração de Clara. Em resposta, ela o beijou de leve nos lábios, acrescentando: - Gostaria que você viesse comigo ao piquenique. - Apelou mais uma vez, esperando que ele mudasse de ideia. Para seu contentamento, Richard abriu um sorriso. 72 - Hufa, mudança de tática? Você está aprendendo; é a primeira vez que toma a iniciativa. - E beijou-a de verdade. - Está bem. vou com você à casa de Douglas, mas não ao piquenique. Contente? Melhor do que nada, reconheceu Clara, embora suas suspeitas ainda permanecessem. Richard tinha nervos de aço e poderia encontrar-se com Douglas sem aparentar qualquer emoção, ainda que toda aquela história fosse verdadeira. Caminharam de mãos dadas, rindo a qualquer observação, olhando para o mundo como duas pessoas apaixonadas. Quando chegaram, Margot estava no portão, com os gémeos e Alan. Veio ao encontro deles alegre, seguida pelas crianças. - Richard, que bom vê-lo, após tanto tempo! - Você está cego mesmo ou anda enganando todo mundo por aqui? A criança que fizera a pergunta tinha uma cara tão marota que Richard caiu na risada. - Deve ser um dos diabinhos de Joan. Qual deles? perguntou. - George - gemeu Margot. - Richard, desculpe, sim? Joan não ensinou os filhos a segurarem as suas línguas, de modo que não pensam duas vezes, antes de abrirem a boca. Ele riu de novo e começou a explicar: - Não estou completamente cego. Consigo ver algumas sombras. Mas logo estarei bom. É só ter um pouco de paciência. - Você, paciente? Duvido! - caçoou Douglas, que tinha ouvido a voz do amigo e vinha juntar-se ao grupo. - Como vai, Douglas? - Richard soltou Clara e estendeu a mão na direção de Douglas. - Otimo - respondeu ele, retribuindo o gesto. Clara notou a expressão alegre e aliviada de Margot. - Kirsty disse que você não viria, mas estou contente por ver que mudou de ideia. - Não mudei. Não vou com vocês ao piquenique. Só vim acompanhar Clara para ter a certeza que ela estaria segura. 73 Todos riram com a brincadeira e Clara sentiu uma ponta de orgulho ao ver que ele estava se saindo muito bem, melhor do que ela poderia imaginar. Os gémeos começaram a fazer mil perguntas sobre o acidente, e Richard respondia a todas com calma e naturalidade. Margot puxou Clara para um canto. - Richard está com uma aparência ótima! - observou. Você anda fazendo maravilhas. Nunca o vi assim tão bem. E olhe para Douglas! Vê como conversa animado?. Ninguém diria que ficaram tanto tempo separados. Clara observou os dois e sorriu, satisfeita. Depois voltou-se para Margot e pediu: - Você se importaria de convidar Richard para passar a tarde aqui? Tenho receio de deixá-lo sozinho. - Ficaria muito contente com isso. Você não imagina como estou aliviada por ele ter vindo. Eu tinha medo... - Margot hesitou por um segundo e então abaixou a voz: - Tinha medo de que tivesse fundamento aquela história sobre a morte de Sorcha. - Eu sabia que era esse o motivo pelo qual vocês não foram nos visitar. Essa história de não querer atrapalhar a nossa lua-de-mel era apenas uma desculpa. - Deu um suspiro e acrescentou: - Estou arrependida por ter desconfiado de Richard. O fato de ter vindo até aqui demonstra que não tem nada a temer. Ele garantiu que não teve culpa pelo que aconteceu a Sorcha. Nunca sugeriu a ela que abandonasse Douglas. - Graças a Deus, tudo se acertou - acrescentou Margot, feliz. - Todos prontos? - a voz de Kirsty soou da porta,onde acabara de aparecer, elegante como sempre, num conjunto azul-marinho. - Claro - gritou Beth, a irmã gémea de George. - Faz um tempão que estamos esperando você se embonecar! - Richard! Mudou de ideia? - perguntou, surpresa, ao vê-lo ao lado de Clara. - Ele veio passar a tarde comigo, Kirsty - explicou Margot, sorrindo. 74 Ante a expressão curiosa de Richard, Clara apressou-se a pedir: - Por favor, fique até que eu volte - sussurrou. - Só assim irei tranquila. - E quanto a mim? Também poderei ficar tranquilo? - ele sussurrou, surpreendendo-a. - É só confiar em mim, meu querido. - E, num impulso, beijou-lhe o rosto. 75 CAPITULO VII Poucos dias depois, Clara saía a passeio com Douglas e as crianças pela terceira vez. Kirsty não os acompanhava porque estava gripada; preferira ficar em casa com Margot e Richard. Clara sentou-se numa pedra para descansar e ficou apreciando o mar, que, devido ao reflexo do sol, apresentava uma tonalidade prateada. com o olhar perdido no oceano, ela começou a imaginar por que Richard estava se comportando de modo tão estranho. Na verdade, desde que saíra pela primeira vez com Douglas, Kirsty e as crianças, havia notado que ele estava diferente. Era alguma coisa que não podia precisar com exatidão mas que podia sentir no modo de ele falar, ou de sorrir, ou até mesmo quando estava calado. - Pensando? - Douglas se aproximou, deixando as crianças brincarem um pouco sozinhas. Clara o observou em silêncio enquanto ele se sentava a seu lado. Douglas tinha um rosto melancólico, e ela sempre se perguntava se aquela tristeza não vinha do fato de ele ser um homem solitário. - Pensando, sim - concordou, com um sorriso amigo. Gostaria de falar com você sobre um assunto delicado. Clara achou que aquela era uma boa oportunidade para esclarecer várias coisas, já que, pela primeira vez, estavam sozinhos. - Pode falar o que quiser. - Douglas, quero esclarecer de uma vez por todas um terrível mal-entendido - começou ela. - Você precisa saber que, quando Richard soube da morte de Sorcha, e fui eu quem lhe deu a notícia, 76 ficou muito chocado. Sou testemunha disso. Ele não sabia que ela havia morrido. Douglas olhou-a, surpreso. Engraçado... sempre acreditei que ele soubesse - disse, com um fio de voz. Mas como? Você não lhe contou; ninguém contou. E ninguém escreveu dando-lhe a notícia. Como ele poderia saber? Douglas pareceu embaraçado. Os olhos grandes e negros a fitavam, confusos. - Não sei - admitiu afinal. - Devo ter deduzido que ele estava na cena do acidente, que os dois se encontrariam na estação e que... - Interrompeu-se, angustiado com a recordação. - Deus, tenho pensado tantas coisas, durante esses cinco anos! - Richard não seria tão cruel a ponto de ter assistido à morte de Sorcha e não entrar em contato com você. Ele não estava lá. Não sabia de nada até eu lhe contar, acredite. - Como pode estar tão certa? - desafiou-a Douglas - Você o conhece tão bem assim? Clara olhava o vazio e mordia os lábios, incapaz de explicar que sentia que Richard não tinha culpa alguma. - É muito natural que você o defenda. Afinal, é seu marido continuou Douglas. - Quem lhe contou sobre Sorcha e ele? - Kirsty. Ela mencionou algo sobre sua esposa ter fugido de casa para encontrar Richard. Douglas fez que sim com um gesto da cabeça. - Ela me disse isso também. Então, você contou a Richard e ele disse o quê? - Disse que Sorcha poderia ter ido atrás dele, mas não porque ele houvesse pedido ou sugerido isso. - Richard não precisaria ter pedido - acrescentou Douglas, devagar, olhando para outro lado, como se não quisesse enfrentar o olhar de Clara. - Bastava somente... existir. - Não entendi bem o que você quis dizer. - Clara começou a 77 sentir uma pena muito grande daquele homem atormentado. Será que Douglas tinha ciúme de Richard? - Você lembra o dia em que vocês foram lá para casa? Clara concordou com um movimento da cabeça. - E notou como as crianças ficaram em volta dele como se fosse um imã? - continuou. - Não só as crianças. Você também - observou ela, em tom de caçoada, e Douglas sorriu. - Eu também - admitiu, relutante. - Pois é isso mesmo que estou tentando dizer. É difícil não gostar dele. Ficar perto de Richard é sentir que vale a pena viver; ele transmite uma energia e uma vivacidade que poucas pessoas têm. Desde menino, era o líder, o melhor amigo de todos os garotos. As meninas, então, o adoravam. Enfim, era impossível ficar longe dele, como se isso significasse perder momentos excitantes. Entende o que quero dizer? - Entendo - concordou, animada, pois Douglas soubera exprimir em palavras o que ela havia sentido desde a primeira vez que visitara Richard no hospital. - Joan e eu vivíamos atrás dele, aprovando qualquer ideia que tivesse, qualquer brincadeira que inventasse. - E você acredita que Sorcha sentiu esta atração também, não é? - completou ela, imaginando onde Douglas queria chegar. - Tenho certeza disso. A partir do momento em que ela o viu, começou a me esquecer. E a esquecer Alan também - murmurou com amargura. - Um dia, precisei me ausentar da ilha e deixei Sorcha e Alan com Kirsty, Joan e os gémeos. Meus pais haviam viajado naquele verão. Saí tranquilo, e agora me arrependo. Devia ter levado Sorcha comigo. - Você acha que ela teria ido com você? - Tenho que acreditar nisso ou admitir que o nosso casamento foi um erro desde o início. Quando voltei, soube que ela havia ido embora na noite anterior. - Não deixou um bilhete, ao menos? 78 - Nada. - Sua voz traía uma grande angústia. - Sorcha era uma mulher diferente. Quando nos casamos, parecia mais uma criança desprotegida à procura de segurança do que uma mulher de vinte e cinco anos que busca a realização amorosa através do casamento. Clara desviou o olhar e reparou em Alan, que brincava com os primos. - Você nunca pensou em casar de novo? - Pensei, sim, mas nunca encontrei ninguém. Quero dizer, não até este verão. Clara fitou Douglas e viu naqueles olhos tristonhos que esse alguém era ela. Confusa, sem saber o que dizer, recebeu com gratidão a presença de Alan, que havia se aproximado sem que nenhum dos dois se desse conta. - Papai, vamos para casa? Custando a desviar os olhos dos de Clara, Douglas respondeu: - Vamos. Já está mesmo na hora. Vá chamar seus primos acrescentou, levantando-se e ajudando Clara a fazer o mesmo. No caminho de volta, Alan não procurou a companhia dos primos, preferindo andar junto ao pai. Os gémeos iam mais à frente, divertindo-se em encontrar pedras diferentes, que recolhiam e guardavam numa caixa. A certa altura, o pequeno pegou a mão de Clara num gesto instintivo, como a criança que procura a segurança e o carinho da mãe. O olhar satisfeito de Douglas, ao ver como o filho, normalmente arredio com as pessoas, sentia-se à vontade com ela, fez com que Clara começasse a ficar um tanto embaraçada. Apesar de estarem conversando sobre assuntos superficiais, ela não conseguia esquecer a sutil declaração daquele homem solitário, que andava à procura de uma companhia e de uma mãe para o filho. Tentou afastar esse pensamento. Não era possível, devia estar imaginando coisas. Não tinha sentido Douglas sugerir que a queria como esposa, sabendo que estava casada com Richard. 79 Pensou em Richard e sentiu uma grande felicidade invadir-lhe o coração. Gostaria de estar com ele, sentir o calor de seu corpo, ser enlaçada por aqueles braços fortes. Só Richard a interessava, não podia pensar em mais ninguém. O fato de não ser amada pouco importava; bastava estarem juntos. - Você quer chegar logo para ficar com Richard, não é? perguntou Douglas, e ela surpreendeu-se com aquela intuição. - Como foi que adivinhou? Telepatia? - indagou, sorrindo. Quando chegaram, Clara foi direto para a cozinha, com as crianças, onde, como de costume àquela hora da tarde, Margot preparava o chá. Douglas havia ido à procura de Richard. - Vocês ficarão para o lanche, não é? - perguntou Margot. - Por mim, tudo bem. Se Richard concordar, ficaremos.- Então vá procurá-lo. Ele esteve impaciente a tarde toda, na certa com saudades. - E Margot piscou o olho, com um sorriso cúmplice. Clara seguiu os gémeos e Alan para fora da casa. Quando viu Richard, seu coração bateu acelerado. Kirsty estava sentada junto a ele, conversando com animação e aparentemente esquecida da forte gripe que usara como desculpa para não ir no passeio daquela tarde. - Olhem só! Eis que surge a mulher nómade! Por onde andou? Seus sapatos estão enlameados. E o que é isso nos seus cabelos? De novo Kirsty atacava com comentários maldosos e sarcásticos. O que tinha contra Clara? Por que se divertia tanto em atormentá-la?. Esses pensamentos passavam pela cabeça dela enquanto abaixava os olhos para observar os sapatos e tentava remover os raminhos que na certa se haviam prendido a seus cabelos. Avançou devagar e pousou a mão no ombro de Richard, num gesto terno e amigo. Para sua surpresa, ele levantou uma das mãos e pressionou a sua com força. Voltou-se para ela como que tentando vê-la. - O que você tem nos cabelos? - perguntou com suavidade, de tal modo que só ela pôde ouvi-lo. 80 - Nada. Algumas folhinhas apenas. - Estou contente por você estar de volta. poucas palavras, um simples aperto em sua mão. Nada demais, porém, para um homem que vivia escondendo seus sentimentos, aquilo significava muito. Clara sentiu o coração se encher de esperança. Durante o chá, ela quase não abriu a boca; preferiu ouvir os outros conversarem. Notou como todos se preocupavam em agradar a Richard, numa clara alusão de que estavam contentes com a companhia dele. - Por falar nisso - a voz de Margot soava animada -, recebi carta de Bob Garmichael. Ele e a esposa estarão aqui na semana que vem. Querem ver Alan, naturalmente. - Voltando-se para Clara, explicou: - São os avós de Alan, pais de Sorcha. Bob trabalha no serviço diplomático e agora estão morando em Cingapura. Clara olhou para Richard e notou que ele parecia impaciente. Sentiu as mãos dele em sua coxa, por baixo da mesa, e ficou perturbada. Desviou o olhar e deu de cara com Kirsty, que a fitava. "Pobre Kirsty", pensou, com uma ponta de compaixão. "Não sabe o que significa amar. com toda essa beleza, ainda não encontrou o que eu encontrei neste verão." Era verdade. Não adiantava querer esconder de si própria que amava Richard com todas as forças de seu coração. Pousou o olhar em Douglas e sentiu-se constrangida ao pensar naquela tarde. Ao mesmo tempo, achou muito bom ter passado por aquilo, pois Douglas, sem saber, havia lhe feito um bem enorme. Insinuando que Clara poderia ter sido a mulher de sua vida, ele a obrigara a compreender e a assumir que só seria de Richard. De ninguém mais. - Vamos para a nossa casa? - perguntou Richard, quase num sussurro, e nos olhos de Clara brilhou uma luz de alegria. Ele 81 dissera "nossa casa"! Que bom saber que Richard queria estar a sós com ela! Apesar da insistência de todos para que não fossem embora tão cedo, eles logo estavam a caminho do chalé, andando de mãos dadas sob o céu salpicado de estrelas. As águas da baía descansavam, plácidas, sob a luz do luar. - Já estamos chegando - avisou ela, ao divisar o chalé. - Sabe, Clara, eu gostaria de não ter ido à casa de Douglas, esta tarde. O esforço de ser educado e não poder dizer o que estava pensando me desgastou. Se você não tivesse chegado àquela hora, não sei o que poderia ter feito. - Mas por que, Richard? Não foi bom estar com Margot? - Estou me referindo àquela fingida da Kirsty - murmurou, entre dentes. - Ei, esse não é um jeito muito agradável de se referir a alguém - Clara repreendeu-o com doçura. - Fingida é muito pouco. Sei muito bem o que ela é. - Disse ele, reprimindo o palavrão que lhe viera aos lábios. - O que Kirsty quis dizer, ao chamá-la de nómade? . - Acho que insinuou que tenho passeado muito com Douglas e as crianças - tentou explicar, pensando se, por acaso, Richard estaria com ciúme. Não, seria bom demais! - Você se importa que eu passeie pela ilha com outras pessoas? Richard franziu a testa. - Eu? Claro que não. Fico contente de saber que você não se prende a num o tempo todo. A liberdade é algo muito valioso, não acha? - Depois acrescentou devagar: - Além do mais, Clara, quando eu puder enxergar novamente, não espere ficar comigo o tempo inteiro. - O que mais Kirsty disse? - indagou ela, tentando minimizar -a dor que aquelas palavras provocaram. - Nada que prestasse. Só insinuou coisas e fez comentários mordazes. Clara começou a rir. 82 - De que está rindo? - Estou só imaginando o esforço que você dever ter feito, cada vez que ela abria a boca. Mesmo que quisesse, você não conseguiria disfarçar o que sente em relação àquelas conversas fúteis de Kirsty. - Está achando graça, é? Isso porque não foi você quem ficou a tarde inteira ouvindo aquele blablablá. - Puxou-a para si e passou o braço em volta da cintura dela. - Sabe que adoro a sua risada? Gostaria de ouvi-la rir sempre. Disse isso e beijou-a. Clara já havia sido beijada por ele com ardor, mas dessa vez foi diferente; havia uma nota de desespero naquele beijo, como se o tempo estivesse passando e aquela fosse a última oportunidade de ele encontrar o que estava procurando. E, em resposta àquele desespero, ela agiu de um modo como jamais conseguira antes: solta, natural, colando seu corpo ao dele, feliz por estar ali. - O. que estamos fazendo aqui? Não podemos perder tempo. Richard tomou-a pelas mãos e ambos correram em direção ao chalé. Lá chegando, ele abriu a porta, segurando a maçaneta como se pudesse vê-la. Segundos depois estavam no quarto, onde Clara observou, deliciada, que o luar entrava pela janela e iluminava a cama, que parecia resplandecer em meio à escuridão. Dessa vez não houve resistência. As horas que havia passado longe de Richard fizeram-na compreender que poderia se arrepender pelo resto da vida, se continuasse a se reprimir e a conter aquele amor imenso que tomava conta de todos os seus sentidos. Acordara, afinal, de um longo sono. 83 CAPITULO VIII Os dias transcorriam calmos, na ilha. Cada amanhecer traz uma nova expectativa para Clara, que aproveitava tuc intensamente, sem olhar para o passado nem se preocupar com o futuro. Tudo que importava era estar com Richard e não pensar no que aconteceria quando o verão acabasse. Algumas noites, entretanto; enquanto ele dormia, Clara permanecia longo tempo acordada, olhando-o e perguntando a si mesma se o dia seguinte seria tão bom quanto o que terminara. Eles não passavam o tempo todo juntos. Clara saía sempre com Douglas e as crianças, e já andara por toda a ilha, descobrindo recantos bonitos e afastados. Apesar de Richard sempre ser convidado para esses passeios, nunca aceitava; preferia ficar sozinho no chalé. Contudo, quando Clara voltava, ele parecia contente ao vê-la, e ouvia atentamente a descrição que ela, maravilhada, fazia das belezas que havia conhecido. Uma tarde, quando voltava de mais uma dessas caminhadas, ela encontrou Richard frio e distante, mal conversando durante o jantar. Nuvens pesadas anunciavam tempestades, depois de um dia de muito calor, e Clara foi assaltada por um mau pressentimento. Essa sensação aumentou na manhã seguinte, quando ambos tomavam o café da manhã. - Acho que vai chover - constatou ela com tristeza, fitando o céu nublado. - A maior parte das coisas boas termina um dia - respondeu Richard, enigmático. Clara olhou-o, surpresa. Aquelas palavras soavam como um 84 aviso, e a sensação da noite anterior voltou mais forte, deixando-lhe um gosto amargo na boca. Estavam na ilha há quatro semanas e, durante esse tempo, ela se habituara à ideia de viver com Richard. Mas agora o verão estava quase terminando e com ele se encerrava para sempre um período em que Clara conhecera pela primeira vez a verdadeira felicidade. - Acorde, Bela Adormecida - brincou ele, puxando de leve os cabelos dela. - Richard, não me chame assim. Já lhe disse que não sou bonita. Ele se calou por um momento e depois acrescentou: - Edaí? Acho que já lhe disse que a sua beleza é suficiente para satisfazer um homem cego. Aquelas palavras ficaram martelando na cabeça dela. Não era a primeira vez querele dizia tal coisa, e isso significava que nunca teria se casado com ela, se não estivesse cego. - Não vá me dizer que venci a discussão tão fácil assim provocou ele, diante do silêncio de Clara. - O que estou tentando dizer é que não posso competir com todas as mulheres lindas com quem você já esteve. - Que "todas as mulheres"? - Ele agora parecia divertido. Sei que os meus cabelos têm alguns fios ruivos, mas esta é a minha única semelhança com Casanova. Jamais colecionei .mulheres, como ele. - Eu estava pensando nas que você fotografou. Louise Bolton, por exemplo. - Ora, aquela era uma relação puramente profissional! - E Toni? - Diante do silêncio de Richard, ela acrescentou: - E Kirsty? - Kirsty?! - Ele fez uma careta e perguntou: - O que a faz Pensar que eu poderia ter qualquer coisa com aquela víbora? - Ela me disse que há cinco anos você se sentiu, digamos, atraído. - O quê?! - Richard parecia incrédulo. - Aquela mulher não 85 passa de uma louca, mentirosa! O que ela quer é causar encrencas. Ontem eu a pus daqui para fora justamente por causa disso. - Não sabia que Kirsty havia estado aqui ontem. E o que aconteceu para você ficar tão nervoso? - Nada, não importa. Talvez eu estivesse sem paciência para aturá-la, só isso. Como é? Vamos trabalhar? Enquanto se sentava à máquina de escrever, Clara, desanimada, pensava que mais uma vez ele fugia, não lhe dando oportunidade de conhecer o que se passava em seu íntimo. Mais tarde, o carteiro chegou e ela foi até a porta receber a correspondência. - É para você, Richard. - Deve ser de Albert. Não quer ler para mim? Dentro do envelope havia uma folha de papel e um outro envelope, fechado. Richard pediu que Clara lesse primeiro a carta. Nela Albert dizia esperar que ambos estivessem se divertindo bastante. Ele e os dois amigos, Bernie e tom, partiriam para a Escócia no dia seguinte. - Hoje! - exclamou Clara, fazendo rapidamente os cálculos. - Eles estarão aqui hoje! Diz ainda que ficarão somente um dia e em seguida partirão para Fort William. - Ah! Vão escalar Ben Nevis! Ótimo, chegarão bem a tempo. O que mais diz a carta? - Que tudo está em ordem no seu apartamento e que ele encontrou esta outra carta embaixo da porta. - Clara dobrou o papel e perguntou: - Por que você disse que eles chegarão bem a tempo? - Em tempo para uma comemoração. Ele sorria e Clara ficou sem entender nada. - Comemorar o quê? - É preciso ter alguma razão? Adoro festas, e a chegada dos meus amigos é um motivo excelente para celebrarmos, não acha? Podemos ir jantar fora. Existe um hotel em Craighouse onde a comida é ótima. 86 Clara o olhou, perplexa. Era a primeira vez que ele manifestava desejo de sair, e ela não podia deixar de sentir que havia alguma coisa por trás daquilo. - De quem é a outra carta? - perguntou Richard, ansioso. - Não sei, não abri ainda. No envelope. Clara reconheceu a letra de Toni, e a presença bonita da amiga lhe veio à mente, forçando-a a lembrar-se de algo que não queria. - Vamos, abra logo! Clara rasgou o envelope e dele tirou uma folha de papel. Seus olhos percorreram rapidamente a mensagem e ela sentiu o sangue gelar. - É... é de Toni - gaguejou. - Congratulações pelo casamento, suponho. - Sim. Uma carta de congratulações. Era a primeira vez que mentia e por isso estava nervosa, trémula. Richard não pediu que lesse a carta em voz alta e então Clara, aliviada, guardou-a na gaveta. Mas as poucas palavras que Toni escrevera ficaram em sua cabeça a manhã inteira, fazendo com que ela não se concentrasse em nada. - Clara, está me ouvindo? Que diabo há com você, esta manhã? - Richard quis saber, intrigado. Ela sentiu vontade de responder que era ele quem estava diferente, distante. Por que não a procurara a noite passada? Mas engoliu em seco e disse apenas: - Não sei, não consigo me concentrar. Estou com dor de cabeça. - Você parecia bem, quando se levantou, esta manhã replicou ele, desconfiado, e acrescentou: - Sua dor de cabeça apareceu muito rápido. - Eu sei, mas... - Calou-se. Não sabia o que dizer. - Você é uma mentirosa, Clara. Pensa que não sei que está assim por causa da carta de Toni? Vamos lá, o que ela dizia? 87 Clara segurou o choro e respondeu, com voz trémula: - Ela não se casou - começou, devagar, e notou que Richa se ajeitou na cadeira, interessado. - O americano não era o que parecia ser e ela voltou para Londres exatamente no dia em que partimos. - As lágrimas rolavam silenciosamente por seu rosto mas, dominando a voz, tentando torná-la firme, Clara completou: - Ela telefonou a você no dia seguinte. Se tivesse esperado vinte quatro horas, não precisaria ter se casado comigo. Eu poderia estar na Espanha e Toni aqui, no meu lugar. Como você gostaria. Richard virou o rosto e Clara se lembrou daquela primeira visita no hospital, quando ele fizera o mesmo gesto, desapontado por Toni não ter esperado. - Deus, não posso mais suportar isso! - exclamou ela de súbito, levantando-se e correndo para fora. Pensou ouvir Richard chamá-la, mas não esperou para ter certeza. Correu pela praia feito louca, sem prestar atenção aos pássaros ou às montanhas que tanto a fascinavam. Tudo o que queria, naquele momento, era estar o mais longe possível de Richard, para não vê-lo sofrer. Só parou de correr quando não tinha mais fôlego. Caminhando na beira da praia, a cabeça baixa, as mãos no bolso, não percebeu que ia indo na direção da casa de Douglas. - Clara! - Voltou-se para ver quem a chamava e viu Douglas e as crianças, que apressavam o passo para ir a seu encontro. - Nós estávamos indo até o chalé para convidá-la a pescar conosco. Que tal? Douglas já estava à sua frente, sorrindo. Clara desviou o olhar, com receio de que ele pudessse perceber seu sofrimento. Olhou para trás, na direção do chalé. Richard não a havia seguido. Talvez até tivesse ficado contente por poder ficar só. - Está bem, vamos! - respondeu, decidida, tentando animar-se. Seria um passeio diferente. Pela primeira vez, iriam para o mar, na lancha de Douglas. Era do que precisava naquele momento: afastar-se o máximo possível da praia, como se com isso pudesse tirar Richard de seus pensamentos. À medida que a velocidade aumentava, Clara recebia de bom grado o vento que batia em seu rosto e fazia esvoaçar seus cabelos. Entregava-se, calada, à brisa marinha, na esperança de que ela varresse a angústia que lhe oprimia o peito. A embarcação se aproximou da entrada da baía, onde Douglas ancorou. As linhas de pescar foram preparadas e os anzóis lançados à água. Então todos ficaram quietos, à espera da primeira mordida. A não ser pelo burburinho das ondas mansas, tudo estava silencioso. - Amanhã nós poderíamos ir até Port Ellen, em Islay - disse Beth, incapaz de ficar calada por muito tempo. - É uma ilha linda! - Mas não tão legal quanto a nossa - acrescentou George com veemência. - Lá não dá para a gente se divertir tanto quanto aqui. Eu penso como mamãe: não há no mundo lugar como esta nossa ilha. - Agora que a conheço, não posso deixar de concordar com você, George - disse Clara. - Mas gostaria muito de conhecer as outras ilhas, antes de ir embora. - Ir embora? Quando? - os gémeos perguntaram em uníssono, surpresos. - Como vocês esperam pescar alguma coisa, se não ficam quietos? - Douglas disse, voltando-se irritado para os sobrinhos. - Desculpe, tio - pediu Beth. - É que Clara disse que vai embora.- - É verdade? - perguntou ele, surpreso. Sua voz traía uma certa ansiedade. - Quando? - Não sei. Logo, provavelmente - respondeu, fingindo estar atenta à vara de pescar que segurava. - Mas Richard disse que vocês ficariam até meados de setembro!... - Puxa, tomara que mamãe e papai cheguem logo, para que você possa conhecer Corrievreckan - disse George. 89 - O que é isso? - perguntou Clara, aproveitando a chance para mudar de assunto. - É um redemoinhoque se forma na divisa das águas desta ilha e Scarba - explicou Douglas. - Só se pode chegar lá se o tempo está firme e o mar calmo. Existem muitas histórias sobre Corrievreckan. Clara não prestou mais atenção às explicações de Douglas, embora continuasse a olhar para ele. Seus pensamentos divagavam. Jamais esqueceria aqueles quatro, que haviam sido tão amigos, tornando agradável sua estadia ali. Em particular, jamais esqueceria Douglas, aquele homem sensível, tocado pela tragédia, fazendo-se forte em seu silêncio mas com certeza ainda lamentando a perda da esposa. - Não quero que você vá embora - pediu Alan, com voz de choro. Surpresa, Clara ouviu-o dizer: - Quero que você seja minha mãe. Uma pausa constrangedora se estabeleceu de imediato. Os gémeos ficaram embaraçados. Já eram grandes o suficiente para entender a implicação daquele pedido, e olhavam, em silêncio, ora para Clara, ora para Douglas. Este havia perdido a cor, e, depois de alguns segundos, conseguiu dizer, com um fio de voz: - Você sabe que não pode ser assim, Alan. Clara é esposa de Richard. - Então ele podia ir embora sozinho e deixar Clara com a gente - insistiu o menino. . - Não é tão fácil assim, Alan - Clara tentou explicar, embaraçada. - Por mais que eu goste de você, não posso abandonar Richard. Ele precisa de mim, pelo menos até voltar a enxergar. E eu prometi que ficaria com ele. - Peguei! - exclamou George, exultante. - Venham ver. deve ser um peixão! Clara respirou aliviada. Aquele peixe pôs um fim na conversa difícil que estava tendo com Alan. 90 Uma hora mais tarde já estavam de volta. As crianças correram na frente para mostrar à avó os peixes que haviam conseguido. - Você vai entrar? - perguntou Douglas, olhando para Clara.- .- Hoje não, obrigada. Preciso voltar cedo ao chalé porque Richard não sabe que saí com vocês. Deve estar preocupado. - Você fez muito bem em dizer aquilo a Alan - acrescentou ele, de olhos baixos. - Você respondeu a uma pergunta que venho fazendo a mim mesmo muitas vezes, desde que a conheci. Clara não foi capaz de dizer uma palavra, e Douglas, então, perguntou com cuidado: : - O que vai acontecer quando Richard recuperar a visão, Clara? Você ficará com ele? - Se ele quiser... - E se não quiser? - Então vou tratar da minha vida. Sentiu um grande aperto no coração, pois Douglas a obrigara a entrar direto numa questão que sempre evitara. - Clara... Sei que sou um homem viúvo e com um filho ainda pequeno, o que não é propriamente um atrativo para uma mulher jovem, mas, como já notou, Alan gosta e precisa muito de você. Ele sente demais a falta de uma mãe. Clara irritou-se com aquelas palavras, embora não dissesse nada. Seria possível que seu destino fosse somente ser querida pela capacidade que tinha de ajudar as pessoas? Quando chegaria o dia de ser amada pelo que realmente era? Respeitando o silêncio dela, Douglas não forçou uma resposta: simplesmente tomou uma de suas mãos e a beijou, dizendo: - Pense, Clara, não há pressa. Você é a única mulher que pode me fazer esperar o quanto for necessário. Clara sentiu medo. - Preciso ir, Douglas. - Tudo bem. Até logo, então. Sabe? Richard é um homem de sorte. Clara saiu apressada, quase correndo. Não via a hora de 91 encontrar Richard. E o fato de ele amar Toni não importava mais, Ela só sabia que o amava, que precisava ficar perto dele. Chegou ao chalé e procurou por ele, mas não o encontrou. Foi até o quarto. Nada. Notou um envelope no chão e o pegou. Era o que continha a carta de Toni. E estava vazio. Clara espantou-se. Tinha certeza de que havia guardado a carta dentro do envelope, colocando-o depois dentro da gaveta. Quem poderia tê-lo tirado de lá? Procurou por todos os cantos e finalmente achou a carta, toda picada, no cesto de papéis. Intrigada, pensou que Richard não poderia ter feito nada daquilo: pegar a carta na gaveta, tirá-la do envelope, ler o conteúdo e rasgar a folha, atirando-a ao cesto. A menos que estivesse enxergando. Essa ideia voltou mais forte que das outras vezes, quando ela apenas havia suspeitado que Richard não estava cego. Lembrou que o especialista dissera que a visão retornaria tão logo ele estivesse recuperado, e deu-se conta, assustada, de que Richat estava bem. Incapaz de se mover, Clara ouviu a tempestade desabar, depo; de um dia inteiro de ameaça. Chovia forte lá fora, mas com certeza logo passaria. O que dizer, entretanto, da tempestade que desabava sobre sua cabeça, fazendo todo o seu mundo de sonhos ruir? Será que essa passaria, algum dia? 92 CAPITULO IX A chuva aumentou e Clara sentiu vontade de procurar Richard. Era preciso, de uma vez por todas, dissipar as dúvidas que a atormentavam. Vestiu a capa e saiu na direção das pedras, certa de encontrá-lo em seu recanto favorito. A chuva fustigava-lhe o rosto, embora ela parecesse nada sentir, naquele caminhar decidido e apressado. Se Richard podia enxergar novamente, por que não havia contado nada? Por que lhe havia pedido que lesse a carta de Albert? Por que havia dito que ela era bonita o suficiente para um homem cego? Por quê? Por quê? Estas perguntas não saíam de sua cabeça. Chegando às pedras, sentiu pânico, ao constatar que Richard não estava lá. Por onde andaria, então? Talvez na piscina formada pelas águas do mar, outro dos locais favoritos dele. Mas era um lugar muito perigoso e ela lhe havia pedido várias vezes que não fosse sozinho até lá. Apavorada, já imaginando uma desgraça, saiu correndo na direção da piscina e percebeu mais uma vez que havia se enganado. Olhou para as águas, que em dias de sol eram cristalinas a ponto de poder enxergar as pedras no fundo, e percebeu que, naquele dia, pareciam escuras e profundas, cheias de mistério. Enquanto tentava imaginar onde Richard poderia estar, escorregou nas pedras cheias de limo. Assustada, pensou que seria muito fácil cair naquelas águas fundas, principalmente uma pessoa cega. 93 Não, não podia se entregar a pensamentos tão horríveis assim. Melhor voltar ao chalé e esperar por Richard. Talvez, quem sabe, ele até já estivesse lá... - Clara! O que está fazendo aqui, com um tempo desses? Era Richard! Voltou-se para ele, aliviada por vê-lo são e salvo. Por outro lado, sentiu o pânico voltar. Agora tinha certeza de que ele não estava cego. - Você pode enxergar, não é, Richard? Você está me vendo murmurou, trémula. Os lábios de Richard se abriram num sorriso. - Levou muito tempo para descobrir, coração. - Richard! Então é verdade? Como estou feliz! - exclamou ela, abraçando-o. Mas ele não correspondeu àquele abraço. Permaneceu imóvel. - Aposto que sim - ironizou. - O que está fazendo aqui? - Saí à sua procura. Tive medo de que algo pudesse ter acontecido... - Bem, agora não é mais preciso se preocupar comigo respondeu ele, tirando-lhe os braços do pescoço e afastando-a um pouco. - Sua responsabilidade para comigo chegou ao fim. Como vê, não sou mais um homem cego. Aquelas palavras, em contraste com a grande emoção que Clara sentia, magoaram-na profundamente. Por que ele estava se comportando assim? - Posso saber por que você saiu correndo de casa no meio da chuva? Eu estava voltando com Albert e os outros, correndo por causa do tempo, quando a vi sair daquele jeito. Não me ouviu chamá-la? - perguntou ele, visivelmente irritado. - Não. Quer dizer que eles já chegaram? - Já. Estão no chalé. - Passou as mãos pelos ombros dela, numa atitude mais protetora que carinhosa. - Vamos, então. Você está encharcada. . Chegaram ao chalé e Clara ouviu vozes masculinas na copa. 94 Richard se juntou aos companheiros enquanto ela se dirigia ao quarto para mudar de roupa. Sentia-se vazia. Tinha vontade de abraçar e beijar Richard, dizer novamente que estava feliz por ele ter recuperado a visão e de convidá-lo a mostrar que nada havia mudado entre eles. Saiu do banho e, enrolada na toalha, abriu o armário do quarto. No último cabide estava pendurado o vestido verde que ela havia visto numa das vitrines da Regent Street, em Londres. Havia compradoa roupa num impulso, pensando que combinaria com seu tom de pele e com a cor dos olhos. Mas de que adiantava usá-lo, se Richard não podia vê-la? Tirou o vestido do armário e o.experimentou, ainda meio incerta quanto a usá-lo ou não. O efeito surpreendeu-a e ela se admirou, orgulhosa, frente ao espelho. Estava imaginando como superar sua timidez e encarar os amigos de Richard quando ele entrou no quarto. Pelo espelho, viu quando ele fechou a porta e se mostrou surpreso ao vê-la vestida daquele modo. - Eu gosto muito! - disse, aproximando-se. - Por que nunca usou esse vestido? Ah! Aquela terrível timidez! Quando se livraria dela? Quando Richard não enxergava, ainda conseguia ficar mais à vontade. Agora, entretanto, toda a timidez e a insegurança haviam voltado. - Porque eu não estava com vontade - respondeu ela, escovando os cabelos. - E posso saber quem ou o que fez você ter vontade de usar este vestido hoje? Seus olhares se encontraram e ela sentiu o sangue subir-lhe às faces. Rapidamente desviou o olhar e respondeu: - O fato de você estar enxergando não é um bom motivo? - Acho que sim. Aquela ironia velada a intrigou; a reação dele quanto ao fato de ter voltado a enxergar havia sido tão fria... Clara pensou que ele 95 fosse ficar exultante, mas, ao contrário, viu-o tornar-se irónico. E não podia atinar por quê. - Há quanto tempo você está enxergando? - As perguntas deveriam ser feitas agora, enquanto estavam sozinhos. - Há alguns dias. - E por que não me contou antes? A situação era bem pior do que ela havia imaginado. Ele a tinha enganado, fingindo-se de cego. - Eu queria ter certeza de que não era coisa temporária. De que realmente havia acontecido. - As palavras saíam fáceis, e nos lábios dele havia um sorriso estranho. - Já estava pensando quanto tempo ainda levaria para você descobrir. Clara pensou nas outras vezes que havia suspeitado de que ele não estava cego. Agora podia apostar que Richard já enxergava há muito tempo. - Não foi nada gentil de sua parte não me dizer nada objetou em voz baixa, magoada. Aquela omissão mostrou que Richard não confiava nela. - Clara, eu aprendi .muito cedo que, para ser gentil cons alguém, é preciso que superemos a nós mesmos, e isso não me agrada - respondeu, enigmático. - Assim, desisti de ser gentil há muito tempo e não é agora que vou mudar. Você compreende, espero, que agora nosso relacionamento vai ter que mudar. Aquelas palavras tiveram o efeito de imobilizá-la. Abaixou a cabeça, sentindo-se uma prisioneira à espera da sentença de morte. - Sim, eu sei. - Estou contente com isso, porque torna mais fácil o que pretendo dizer. - Fez uma pausa e acrescentou: - Decidi ir a Ben Nevis amanhã. - Ben Nevis? - Clara surpreendeu-se. Olhou-o, certa de que o ouviria dizer que o casamento acabara, que ele queria liberdade para voltar para Toni. Mas ele estava dizendo que ia a uma expedição! Surpresa, perguntou: - Você acha que deve? 96 - Preciso tentar. Vai ser um teste; através dele vou saber se serei capaz de escalar montanhas novamente, depois de tudo o que aconteceu. Ficaremos uma semana, mais ou menos. A chance é boa para eu descobrir se posso ou não. - Calou-se e Clara imaginou que talvez estivesse embaraçado. - O que você vai fazer? - perguntou, afinal. Ela ficou desconcertada. Gostaria de ter sido convidada a ir com eles. - Não sei... você vai levar o carro? - vou. Mas, se você quiser ir embora, tenho certeza de que Douglas a levará até a balsa. Ir embora! Richard queria que fosse embora! Por algumas semanas, ela havia sido útil, mas agora era um peso do qual ele queria se livrar o mais rápido possível. Pensou que estava mesmo louca, ao ter aceitado aquele casamento. Louca ou... irremediavelmente apaixonada. - Vamos, venha conhecer os meus amigos. Albert já perguntou por você - disse Richard, saindo do quarto. Clara mirou-se mais uma vez no espelho, De que adiantava aquele vestido? Ela ainda não podia acreditar no que estava acontecendo. Que faria agora? Como viver só com a lembrança da felicidade de todos aqueles dias? Parecia que tudo ia tão bem, e, no entanto, agora era o fim do sonho. Atordoada, entrou na copa para cumprimentar Albert e ser apresentada a Bernie e tom. Conversava e sorria como um autómato, notando que os três amigos de Richard haviam ficado contentes por ele ter decidido acompanhá-los. E todos tinham achado normal o fato de Richard não a convidar para ir também, pois, afinal de contas, haviam deixado suas esposas para se aventurarem naquela expedição. Era um procedimento comum, nada havia de estranho. Tentando esconder a frustração, Clara os acompanhou até o hotel, uma grande construção branca que já havia sido uma 97 destilaria. Apesar da frieza que havia entre ela e Richard, o jantar transcorreu alegremente. Todos pareciam felizes. Todos menos Clara. Richard, por sua vez, estava animado e espirituoso como nunca, e como resultado houve muitas risadas o tempo todo, o que chamou a atenção dos outros hóspedes. Após algumas horas, Clara e Richard saíram do hotel, pois os amigos haviam insistido em dormir lá, recusando gentilmente a oferta de Clara para que passassem aquela noite no chalé. Acertaram tudo para a manhã seguinte, quando, bem cedo, passariam para pegar Richard. Na volta, Clara fingiu que estava dormindo para evitar que Richard dissesse alguma coisa que ela não quisesse ouvir. Estava exausta, desgastada, triste. Ela só queria poder chegar logo e dormir. - Aqui estamos, Bela Adormecida - disse ele, assim que o carro parou. Clara murmurou qualquer coisa enquanto saía e, desculpando-se por estar tão cansada, foi imediatamente para o quarto. Ficou muito tempo acordada, ouvindo Richard, no outro quarto, arrumar suas coisas para a expedição. Esperava que ele viesse fazer amor; afinal, aquela seria a última noite que passariam juntos no chalé. Mas, exausta como estava, adormeceu profundamente e só acordou quando sentiu a mão de Richard em seu ombro. - Acorde, Bela Adormecida. Já estamos de partida. - O quê? Como? De partida para onde? - perguntou sentando-se rapidamente na cama e esfregando os olhos, ainda sonolenta. - Vamos pegar a balsa, que sai às nove e meia - respondeu Richard. O traje azul que usava realçava-lhe ainda mais o bronzeado. Sua aparência era ótima. - Oh, preciso preparar o café - disse ela, já desperta e pondo de lado as cobertas. 98 Colocou os pés fora da cama e levantou-se apressada, os cabelos caindo sobre os ombros. - Tarde demais - respondeu Richard, sorrindo. - Nós, alpinistas, sabemos muito bem como cuidar de nós mesmos. Já tomamos café e lavamos as xícaras. Não há nada para você fazer, exceto aproveitar este lindo dia de sol. - Por que não me acordou antes? - Você estava dormindo tão bem que não tive coragem de acordá-la. O mesmo aconteceu ontem à noite, quando vim me deitar. Seus olhos se encontraram, mas Clara, trémula e tímida, voltou-se para pegar suas roupas. - Então vou me vestir bem rápido e já saio para me despedir de vocês. Quando se voltou, com as roupas na mão, encontrou-o boqueando a passagem. Sentiu as mãos dele nos ombros e teve vontade de chorar. - Tem certeza de que não tem nada para me dizer? Clara olhou para ele e respondeu com voz fria: - Não, acho que não. Ele não se deu por vencido. Insistiu, sério: - Tem certeza, Clara? - Absoluta. Por quê? Você quer me dizer algo? Richard puxou-a para si e abraçou-a com força. - Quero. Tenho muito a dizer. - Mas naquele momento Albert o chamou. - Bem, acho que agora não há mais tempo. Suspirou e, antes que ela pudesse esboçar qualquer reação, beijou-a com desespero. Clara queria que aquele beijo não acabasse nunca mais, que ele não saísse de perto dela. Mas um outro chamado de Albert tirou-a daquele enlevo. - Escute, Clara - acrescentou ele -, serei capaz de entender se você não estiver aqui, quando eu voltar. Até mais, coração. 99 E saiu apressado do quarto. Enquanto tirava a camisola, CJara ouviu o motor dos carros dando partida. Ficou parada por um momento, atéque o som fosse ficando cada vez mais distante, até que tudo que pudesse ouvir fosse o silêncio, cortado, vez por outra, pelas ondas que quebravam na areia. 100 CAPITULO X Sem Richard, os dias demoravam a passar e a saudade torturava, machucava. Ele ficaria fora apenas uma semana, mas para Clara isso parecia uma eternidade. Não que tivesse medo de ficar sozinha. Acontecia que, após dois dias sem Richard, seus nervos estavam em frangalhos. Não podia evitar pensar nele a cada segundo, cultivando na memória todas as coisas que haviam feito desde o dia em que se casaram. Como num filme, as cenas passavam em sua cabeça, e algumas observações de Richard, que ela não havia entendido na hora, voltavam constantemente a seus ouvidos. "Serei capaz de entender se você não estiver aqui, quando eu voltar." Aquela havia sido a última observação dele, antes de ir embora. Melhor se não tivesse dito nada. Aquilo soava como um pedido velado; era como se ele a estivesse mandando embora. Por outro lado, por que então falara que tinha muitas coisas para dizer? E por que, meu Deus, a havia beijado daquele modo? Clara ficava confusa, quando se punha a pensar em tais coisas, e quanto mais pensava, mais se convencia de que Richard tentara dizer que, se ela deixasse a ilha enquanto ele estivesse fora, o casamento teria acabado. E era isso que queria, na certa, o fim daquele relacionamento e a volta da sua liberdade. Enquanto pesava todos os pontos, ela aproveitava para limpar o chalé. Queria deixá-lo em ordem para o caso de chegar à conclusão de que devia mesmo ir embora. Estava no quarto, arrumando as folhas que datilografara, quando ouviu vozes perto do chalé. 101 Alegrou-se por saber que teria companhia. Isto a pouparia de algumas horas de tormento. - O carro não está - observou George, quando ela abriu a porta da varanda e saiu para receber os gémeos. George a fitou com um olhar esperto. Estava representando seu papel favorito, o de detetive. - Mas você está aqui. Isto significa que Richard voltou a enxergar. - Muito bem, Sherlock. Você é um grande detetive. - Você está alegre ou triste? - indagou Beth, fitando-a com curiosidade. - Lógico que estou alegre. - Pois não parece - retrucou Beth. - Você está tão pálida... - É porque apanhei um resfriado. - Aonde Richard foi? - perguntou o pequeno detetive, ainda orgulhoso de sua dedução. - Para Craighouse? - Não, desta vez você errou. Ele e alguns amigos foram para Ben Ne vis. - Ah, lá é muito chato! - exclamou Beíh. - Vovó mandou que a gente viesse até aqui para convidar você e Richard para o chá desta tarde. Mamãe e papai chegaram ontem. De qualquer modo, já que Richard não está, é bom você ir para se distrair. Por falar nisso, por que não foi com ele? Por quê? Clara também gostaria de saber. Tentou buscar uma resposta que pudesse satisfazer os gémeos. - Precisei ficar para empacotar tudo e fazer as malas. vou voltar para Londres no sábado. - Ah, que pena... Então Richard não vem mais para cá disse Beth, deduzindo que ele se encontraria com Clara em Londres. - Mamãe vai ficar triste por não poder vê-lo. Clara não disse nada. Achou melhor deixar que as crianças pensassem o que quisessem. - Mas você vem para o chá de qualquer jeito, não é? insistiu George. - vou, sim. Vocês esperam até eu trocar de roupa? 102 O dia estava quente e Clara pôs um vestido de linho verde. Como sempre, os gémeos não tinham pressa alguma e foram até a praia, parando cada vez que encontravam uma concha diferente. Andavam tão devagar que acabaram encontrando Kirsty, que usava urrr vestido estampado com um profundo decote. Ela vinha a pedido de Margot, para saber a razão de tanta demora. Ao saber, pelos gémeos, que Richard viajara, não pôde conter um sorriso de satisfação. Pediu às crianças que corressem na frente para avisar a avó que somente Clara iria para o chá. - Eu já imaginava que isso aconteceria, mais dia menos dia afirmou, triunfante. - Isso o quê? - perguntou Clara, impaciente. - Que Richard a abandonaria - completou ela, dando ênfase à última palavra. Clara ficou perturbada. Abandonada... Como Kirsty havia descoberto bem o que se passava em seu coração durante aqueles dias! Diante do silêncio de Clara, Kirsty continuou: - Douglas ficará contente com isso. - Porquê? - Aquela ceninha que vocês representaram, outro dia, em frente à casa de Margot, quase me comoveu. Eu não tinha ideia de que ele pudesse ser tão carinhoso - ironizou Kirsty. - Você nos viu? Kirsty fez com a cabeça um gesto afirmativo. - Richard e eu estávamos caminhando até a casa. Ele estava à sua procura, um tanto preocupado. A propósito, ele viu quando Douglas beijou a sua mão, pois ficou estranho, depois daquilo. Posso garantir que não falei nada. Ele saiu apressado, sem se despedir. Sabe, naquele momento tive certeza do que já havia suspeitado: Richard podia enxergar tão bem quanto qualquer um de nós. E, agora que não precisa mais de você, o que iria ficar fazendo a seu lado? - Escute aqui, Kirsty, Richard viajou por alguns dias. Isso não quer dizer que tenha me abandonado. 103 - Não? - O olhar de Kirsty era de pena. - Duvido muito qui ele volte, agora que recuperou a liberdade. Os olhos azuis pousaram em Clara, que não pôde deixar de concordar com o que acabara de ouvir. De fato, por que Richara ficaria ao lado dela, se durante toda a vida só se sentira atraído por mulheres bonitas? Beleza suficiente para satisfazer um homem cego... Só que agora ele podia enxergar. Como sempre, Margot estava na cozinha, arrumando a mesa para o chá. Dessa vez, entretanto, tinha a ajuda de uma mulher bonita, de cabelos negros e olhos castanhos. - Estou feliz que tenha vindo, querida. Esta é Joan, minha filha. - Já ouvi falar muito em você - comentou Joan, com um sorriso simpático. - Quer dizer que Richard voltou a enxergar? Que bom! Há quanto tempo foi isso? - Há alguns dias. Mas ele fingiu que nada tinha acontecido para descobrir quanto tempo levaríamos para perceber. - Continua o mesmo Richard! - comentou Joan, divertida com a ideia. - Pena ele ter ido para Ben Nevis. De qualquer modo, estou muito contente por conhecer você. Agora venha, quero lhe apresentar Murray, meu marido. Após o chá, todos foram até a sala, quando Douglas aproveitou para aproximar-se de Clara. - Você vai se encontrar com Richard? - perguntou, cheio de cautela. - Não sei. Não programamos nada. - Meus sobrinhos disseram que você vai depois de amanhã para Londres. Pensei em ir também, já que tenho alguns negócios para resolver por lá. Daí, se quiser, poderemos ir juntos. - Obrigada, Douglas. Eu já estava pensando mesmo em pedir uma carona até a balsa. - Ora, ora, o que será que os dois estão conspirando? zombou Kirsty, que se aproximou sem que ambos percebessem. 104 - Desculpem se interrompo, mas Alan o está chamando lá fora, pouglas. Acho que Clara não vai se importar, se ficar sem você só por alguns minutos, não é? Ignorando a provocação, Clara nada respondeu, sorrindo para Douglas quando ele se desculpou: - Volto num instante, está bem? Kirsty saiu atrás dele em direção ao jardim, e Clara aproveitou para conversar um pouco mais com Joan. Simpatizara muito com ela, principalmente por saber que era grande amiga de Richard. Em meio a uma prosa agradável, Joan quis saber, curiosa: - Você está muito apaixonada por Richard, não? Aqueles olhos negros fitavam Clara de um modo familiar, lembrando muito os de Douglas. Mas eram muito mais perspicazes, de modo que ela achou inútil mentir. - É tão óbvio assim? - falou, quase sussurrando. - Eu mesma só descobri isso há alguns dias. - Quer dizer então que casou sem estar apaixonada ou, pelo menos, sem ter consciência disso? - Nós nos casamos por conveniência. Richard precisava de alguém que o ajudasse na execução do livro e que cuidasse dele. Talvez você esteja se perguntando o porquê do casamento. Bem, é que tenho alguns princípios morais, questão de educação, compreende? Não sei se estaria preparada para viver com um homem sem estar casada. - Nãoprecisa se explicar tanto, Clara. Compreendo perfeitamente porque compartilho desses mesmos princípios. Deu-lhe um tapinha nos joelhos e acrescentou, piscando um olho: - Só que ainda acho que devia haver outra razão mais forte, ainda que inconsciente, para você aceitar o pedido de Richard. Outra coisa que me deixa intrigada é o fato de Richard pedir alguém em casamento. - Você não é a primeira pessoa que se surpreende com isso. Por quê? - Porque Richard sempre ridicularizou, para quem quisesse 105 ouvir, o papel de marido. Jamais manifestou o mais remoto desejo de se comprometer com alguém. - Mas ele não está comprometido comigo, Richard não me ama e o nosso casamento acabou no instante em que ele recuperou a visão. Não existe mais nenhum vínculo entre nós. Joan ficou pensativa por alguns instantes e depois acrescentou: - Richard é um covarde, Clara. Você não percebeu ainda que ele age dessa maneira só para se defender? - Richard, covarde? É difícil acreditar. Ele tem nervos de aço. - Não sei, mas ainda acho que Richard morre de medo de gostar de alguém, de sentir insegurança, de se mostrar vulnerável, enfim, todas essas coisas a que as pessoas apaixonadas estão sujeitas. Talvez um dia você ainda me dê razão. Naquele momento, as duas se calaram. Kirsty acabara de entrar. - Vocês não viram Douglas? - Não - respondeu Joan. - Pensei que estivesse com você. Por que não tenta o sótão? Ele deve estar lá com Alan, que adora brincar lá em cima. Kirsty deu meia-volta e saiu à procura de Douglas. - Pobre Kirsty... - suspirou Joan. - Deve ser horrível viver com tanto ódio. Nem a memória de Sorcha escapou de uma raiva tão grande. - Sorcha? Mas as duas não eram grandes amigas? - Não. Na verdade, era uma amizade bem superficial. Foi Kirsty quem apresentou Sorcha a Douglas. Não sei se você sabe, mas Kirsty e Douglas foram colegas na faculdade e ela sempre gostou dele. Só não podia prever que se apaixonasse por Sorcha é se casasse com ela. Kirsty passou maus bocados e nunca perdoou Sorcha. Agora vive atrás de Douglas, embora ele não lhe dê a mínima atenção. - Ah! Então compreendo por que ela é tão irónica e amarga. - Levantou-se. - Bem, preciso ir. Obrigada por tudo. Voltando para o chalé, Clara pensava no que Joan havia dito sobre Richard. Talvez ele realmente tivesse medo de se entregar a 106 alguém. Também, não era para menos. Gostava tanto de Toni e ela o havia trocado por outro homem... Mas agora Toni estava livre e à espera dele em Londres. Clara entrou no chalé e decidiu ir embora antes que Richard voltasse. Faria isso porque o amava muito e não queria atrapalhar a vida dele. Tudo o que queria era que fosse feliz, ainda que ao lado de outra mulher. Outra mulher... Angustiada, atirou-se na cama e adormeceu, exausta de tanto chorar. Assim que amanheceu, Clara acordou, disposta a passar seu último dia na ilha escalando uma das montanhas, com Douglas, Kirsty e as crianças. Escolheram uma não muito grande, de modo que a escalada foi fácil. No topo, a vista era belíssima, e ela experimentou uma deliciosa sensação de triunfo. Agora era capaz de compreender o que Richard sentia cada vez que chegava ao cume de uma montanha. Pensou nele e sentiu saudade. Onde estaria naquele momento? Sentou-se numa pedra, imaginando, desanimada, que o que quer que ele estivesse fazendo, com certeza não estaria nem lembrando dela. - Está dizendo adeus à ilha? - perguntou Douglas, aproximando-se. Por um segundo, ela desejou que Douglas não exisjisse; que não fosse ele, mas Richard que estivesse a seu lado. - Por que diz isso? - perguntou, sem olhá-lo. - Você parece triste, como se não quisesse deixar a ilha. Foi feliz aqui, não é? - Por um período muito curto - respondeu ela, emocionada. - Por que então não tenta de novo com outra pessoa? - Porque não quero mais ninguém. - Clara, ouça... Pensei que agora nós dois pudéssemos ter uma chance. 107 - Não! - interrompeu ela com veemência, tentando pôr um fim nas ilusões de Douglas. - Não iria dar certo. Por que não tenta com Kirsty? Douglas ficou surpreso. - Kirsty? - Exatamente. Kirsty! A amiga de Sorcha, que um dia amou você e, ao que tudo indica, ainda ama. - Você sabe tão bem quanto eu que, para florescer, o amor deve ser recíproco - argumentou ele. - E eu não amo Kirsty. - E não me ama também. Você só me quer para cuidar de Alan e, ao mesmo tempo, porque sente pena de mim, agora que o meu casamento está acabado. Douglas, você não entende que estaríamos juntos por conveniência, tal qual eu e Richard? Juro que não quero repetir este tipo de experiência. Parou de falar, ofegante, surpresa com a segurança de suas palavras. Os olhos escuros-de Douglas a observavam, pensativos, e então pousaram em Kirsty, que se divertia, mais adiante, com as crianças. Era engraçado notar que, na companhia delas, Kirsty parecia outra mulher, mais solta, mais espontânea, mais alegre. - Talvez você esteja certa - murmurou Douglas, e Clara sentiu um grande alívio. - Eu não prestei muita atenção a Kirsty. - Levantou-se, dizendo: - Foi um ótimo verão. É melhor descermos, temos uma longa caminhada pela frente. Em duas horas, Clara estava no chalé. Margot a havia convidado para dormir na casa deles, para facilitar a partida na manhã seguinte. Aceitando o convite, ela tomou emprestado o carro de Douglas e acondicionou sua bagagem no porta-malas. Antes de sair, olhou demoradamente cada compartimento, lembrando-se dos momentos que ali passara ao lado de Richard. Trancou a porta e guardou a chave no mesmo lugar em que estava quando lá chegaram, para que Richard não tivesse dificuldades em encontrá-la. Na manhã seguinte, a caminho de Tarbért, Clara não podia deixar de sentir um enorme vazio. Douglas e Kirsty conversavam 108 em outra parte do convés. Sorriu, ao pensar na possibilidade de um romance entre os dois e desejou que tudo desse certo. Gostava de Douglas e tinha muita pena de Kirsty, agora que havia entendido o porquê das atitudes maldosas da moça. Assim que a balsa atracou em Tarbert, os carros começaram a se posicionar para sair. O sol estava forte, brilhante, e seu reflexo na água adquiria uma tonalidade metálica. Gaivotas lançavam gritos estridentes, para diversão dos veranistas que aportavam na ilha. Todos pareciam felizes, exceto ela. Sua mente voltava para trás, para os dias maravilhosos que passara na ilha e que duraram tão pouco. Lembrou-se do dia em que chegaram, quando o tempo estava úmido e chuvoso. Em vez de Douglas e Kirsty, ela estava ,, com um homem alto, forte e brincalhão, sempre pronto a se divertir às suas custas. - Tentando roubar a minha esposa, Douglas? Clara levou uma das mãos aos lábios. Meu Deus, aquilo estava acontecendo mesmo ou ela começava a ficar louca? Seria possível que o cansaço dos últimos dias a tivesse feito imaginar aquela voz tão querida? 109 CAPÍTULO XI Clara se armou de coragem e olhou na direção de onde provinha aquela voz rouca. Não estava sonhando! Era Richard, que, encostado em seu carro, de braços cruzados, sorria irónico, como se a tivesse pegado em flagrante. "O que ele está fazendo aqui?", pensou, surpresa. Richard não poderia ter adivinhado que ela partiria naquele sábado; portanto, não havia sentido pensar na possibilidade de que teria vindo buscá-la. Notou que o carro dele era o primeiro de uma longa fila à espera do embarque. Procurou raciocinar, tentando descobrir o que Richard estaria fazendo ali, e chegou à conclusão de que ele estava à espera da balsa porque pretendia embarcar para algum lugar. Mas para onde? Dali a balsa partiria para Islay. Contudo, por que ele iria a Islay? Ela se fez todas essas perguntas num momento, de modo que pôde ver quando Douglas se voltou, surpreso, ante a provocação inesperada. Foi Kirsty, entretanto, quem tomou a iniciativa da resposta: - Ele não está roubando a sua esposa - afirmou, zangada, na ânsia de defender Douglas. - Será que três pessoas não podem viajar sem que você venha com conclusões apressadas? - Ora, Kirsty, logo você vem medizer isso? Estou somente deduzindo o que você sempre fez questão de insinuar com essa sua .língua venenosa - replicou ele, sem alterar a voz. - Richard, deixe-me explicar... - Douglas tentou dizer, mas foi interrompido pela voz gelada que, ignorando aquelas palavras, dirigiu-se a Clara: 110 - E agora? Não é possível que você não tenha nada a me dizer. Ou este é apenas mais um dos seus passeios? - Richard, não fale assim, por favor. Tenho muito que dizer a você, mas não aqui - respondeu, caminhando na direção dele, emocionada e confusa ante aquela presença inesperada mas tão querida. Douglas puxou Kirsty pelo braço e os dois se afastaram discretamente para o interior da balsa, onde os carros já haviam começado a desembarcar. - vou até Islay porque hoje não há horários para Jura ixplicou Richard, mal olhando para ela. - Se você tem alguma coisa a me dizer, é melhor que seja aqui e agora. - E ironizou: a não ser, é claro, que tenha deixado um bilhete para mim no chalé. Neste caso, não precisa perder tempo com palavras, já que posso ler as suas explicações. - Richard, pare com isso, chega de ironias. Não deixei bilhete nenhum, o que quero é conversar com você calmamente. Assim, com pressa, não posso explicar nada. Clara estava ansiosa, pois o tempo passava e era preciso agir rápido. Agora que o reencontrara, quando não havia nem sequer sonhado com isso, não deixaria que ele fosse embora sem que tudo ficasse esclarecido. - com licença, é o sinal. Preciso embarcar o carro. Richard voltou-lhe as costas e Clara ficou parada, boquiaberta, seguindo-o com o olhar até que ele desaparecesse no interior da balsa. Seu coração batia acelerado e ela não sabia o que fazer. Naquele instante, Douglas chegou com a bagagem e, sem emoção alguma na voz, falou: - Você não vai mais conosco, certo? Aqui estão as suas malas. - É verdade, Douglas, não vou. Mas também não sei o que fazer. - Pois eu sei: você vai com ele. Até logo, Clara, e boa sorte. - Até logo, Douglas, e obrigada por tudo. Jamais esquecerei você e Margot... 111 - Não tem nada que agradecer. Estes dias foram muito agradáveis. - Hesitou um pouco e acrescentou: - Acho que eu é que devo agradecer por você ter-me aberto os olhos. Quem sabe algum dia voltemos a nos encontrar, lá na ilha, e então veremos as nossas crianças brincarem juntas. - Espero que sim - afirmou Clara, com um sorriso. - Diga a Kirsty que... - Interrompeu-se, mudando de ideia: - Não, eu mesma direi. Kirsty já se encontrava no carro, esperando por Douglas, e seus olhos estavam vermelhos como quem acaba de chorar. Quando viu que Clara se aproximava, abriu a janela e limpou com as costas da mãos os vestígios das lágrimas. - Kirsty, sinto muito por Richard ter sido rude com você. Os olhos de Kirsty se encheram de lágrimas novamente. - Acho que eu mereci aquilo. Sempre tive ciúme de Sorcha. Depois a odiei, quando abandonou Douglas, que era tão bom para ela, por um homem que acabara de conhecer. - Os lábios dela tremiam e os olhos se enchiam de lágrimas. - Você já ouviu falar do ódio de uma mulher desprezada, Clara? Pois bem, senti esse ódio duas vezes. Ambas porque Sorcha se intrometeu na minha vida. Não contente de ter-me tirado Douglas, ela também quis Richard. Sabe... tudo o que eu disse sobre eles, aquela coisa de terem planejado fugir juntos, foi porque estava com ódio. Ódio não somente pelo que ela havia feito a Douglas, mas a mim também. - A voz de Kirsty tremia e ela parou por alguns segundos, tentando se controlar. - Mas, no fundo, sei que não era tudo mentira - acrescentou. - Sorcha abandonou Douglas para se encontrar com Richard. - Só que ele não teve culpa. Richard nem suspeitava do que estava se passando na cabeça de Sorcha. Nem sequer deu a ela motivos para agir daquela maneira. Acho que isso faz uma enorme diferença, não, Kirsty? Você sabia disso, mas, mesmo assim, quis que ele passasse por culpado diante de Douglas. - Está bem, admito. Eu queria que Richard sofresse também, 112 queria que todos, principalmente você, suspeitassem dele. Tentei fazer com que ele suspeitasse de você também, exagerando o que acontecia naqueles passeios com Douglas. Tentei fazer com que Richard pensasse que vocês tinham um caso. Cheguei a ir até o chalé só para ter o gostinho de botar caraminholas na cabeça dele. Saí contente, pois, apesar de seu marido ter-me expulsado de lá, as minhas insinuações surtiram efeito. Era exatamente o que eu queria: que ele odiasse você e Douglas. - Mas por que, Kirsty? Por quê? - Clara ficou chocada com aquela revelação. - Porque cinco anos atrás ele nem sequer me notou e porque este ano eu o encontrei casado com uma mulher sem graça, por quem eu jamais poderia imaginar ser passada para trás. - E posso saber por que está me dizendo tudo isso agora? - Porque me deu vontade de ser honesta e porque não tenho mais raiva. Pela primeira vez em anos, terei Douglas só para mim, nessa longa viagem até Londres. - Então aproveite - retrucou Clara. Não conseguia gostar de Kirsty, mas sentia que devia ajudá-la de algum modo. Não era possível que uma mulher tão bonita fosse tão desagradável. - Permite que lhe dê um pequeno conselho, Kirsty Brown? - Qual? - perguntou a outra, surpresa e ao mesmo tempo curiosa. - Controle a sua língua e tenho certeza de que vai conseguir o que tanto quer - disse sorrindo, e, pela primeira vez, os olhos de Kirsty brilharam, sinceros. - Pode estar certa disso. Adeus. Clara voltou para perto de sua bagagem e não avistou Richard, embora pudesse ver o carro dele a bordo. Comprou uma passagem para Isjay e subiu a escada do tombadilho para chegar ao convés superior. Deu de cara com Richard, apoiado na amurada, e encaminhou-se na direção dele. Chegou a tempo de acenar para Douglas e Kirsty, que do cais esperavam que a balsa partisse. 113 Enquanto a embarcação se afastava, Clara viu Douglas e Kirsty entrarem no carro e tomarem a direção da estrada. - Por que você não foi com eles? - perguntou Richard. - Porque nunca tive essa intenção. Lembra da sua sugestão sobre pegar uma carona até a balsa, se eu quisesse deixar a ilha antes de você voltar? Pois foi exatamente o que fiz. - Olhou para ele e acrescentou: - Entendi que você só voltaria na semana que vem. - Mudei de ideia. - Posso saber por quê? - Por várias razões. - Bem, eu também mudei de ideia. Decidi ir até Islay. - Isso eu já havia percebido. Só não entendi por quê. - Por várias razoes - respondeu Clara, imitando-o. E levou um susto quando ele a agarrou pelos ombros e a colocou à sua frente. - Richard, há outras pessoas aqui e elas estão reparando! - avisou em voz baixa. - Pois que reparem, não estou dando a mínima. Agora me diga: por que mudou de ideia e decidiu ir até Islay, em vez de Glasgow? Você não estava indo para Londres? Baixando os olhos, ela sorriu. Havia descoberto que podia fazer o mesmo jogo irónico de Richard e que isso o exasperava. - Ora, disseram-me que Islay é uma bela ilha, toda verde, bem diferente de Jura... E que existe amor por lá. Os dedos de Richard pressionaram-lhe os ombros. Ele recuperou a calma e olhou-a tão profundamente que parecia querer ler em sua alma. - Você não encontrou o amor em Jura? - perguntou com suavidade. Clara meneou a cabeça-, olhando-o fixamente. - Não o tipo de amor que eu procurava. Richard a soltou e ficou pensativo, olhando para as ondas que se formavam à passagem da balsa. - Claro que, se você não quiser, não irei até IsJay. Quer dizer, assim 114 que a balsa atracar, compro uma passagem para Gourock, outro lugar que tenho muita vontade de conhecer - falou, olhando para ele na tentativa de descobrir sua reação. - Pode vir - afirmou Richard -, mas não contra a sua ontade. Não quero o seu sacrifício. Agora que não estou mais cego, não há razão para sentir pena. Ou você vem porque é o que realmente quer, ou então nada feito. Vamos comer alguma coisa? Estou morrendo de fome. Enquanto o acompanhava até o bar que ficava no convés inferior, Clara teve vontade de gritar que resolverair até Islay porque o amava. - O que você fez durante a minha ausência? - quis Richard saber, após pedir os sanduíches. Clara contou então a respeito do passeio do dia anterior, não se esquecendo de mencionar que havia conhecido Joan e o marido. Entretanto, enquanto comia o sanduíche, pensava nas mil perguntas que gostaria de fazer a ele. Queria saber o que tinha decidido em relação a Toni; por que havia voltado mais cedo de Ben Nevis e, se não tivesse voltado, o que teria acontecido. Seria Bapaz de procurá-la em Londres ou teria aceitado sua partida como o fim daquele casamento de verão? Comeu o último pedaço do sanduíche com raiva de si mesma por Hão ter tido coragem de fazer todas aquelas perguntas em voz alta. Resolveu então ir até o banheiro para ajeitar os cabelos. Mirando eu reflexo no espelho, compreendeu que o medo que sentia de Bazer essas perguntas a Richard era o de ouvi-lo confirmar o que já sabia: que ele amava Toni e que, agora que não precisava mais Bela. Clara, dava por encerrado o casamento. Talvez as coisas fossem diferentes, se ele, ao recuperar a visão, tivesse deparado com uma mulher belíssima, o que, certamente, não era o caso. Fez um rabo-de-cavalo e gostou da imagem que viu no espelho. Nem parecia uma professora; ao contrário, lembrava mais uma colegial, tão rejuvenescida estava com aquele penteado. No convés superior, procurou por Richard, sem encontrá-lo. 115 Ficou então na amurada, perguntando-se aonde ele poderia ter ido. Minutos mais tarde viu-o aparecer na escada do tombadilho, com a máquina fotográfica no pescoço. - Aonde você foi? - perguntou ela. - Não o vi, quando voltei ao convés. - Eu não queria que você me visse - respondeu Richard. sorrindo e apoiando-se na amurada. - Agora é a minha vez de fazer uma pergunta: por que você estava indo para Glasgow, hoje? - Porque... porque pensei que você não... quisesse me encontrar quando voltasse - gaguejou. - Achei quê não precisaria mais de mim. Afinal, o nosso casamento foi um conveniência. - E você se casou comigo por pena - contra-argumento Richard. - Não adianta negar, sei que foi assim. Foi por isso que quando passei a enxergar, não lhe disse nada. Não queria que a nossa lua-de-mel acabasse tão cedo. - Quando foi que voltou a enxergar? - No dia em que você saiu para fazer compras. Estava chovendo e você me contou que havia dado uma carona a Douglas, lembra-se? - Sorriu, divertido. - Mas, como não percebeu nada, passei a usar novamente os óculos escuros, para continuar a me fazer passar por cego. Sem a ajuda dos óculos, seria difícil representar esse papel. - Richard Mallon! Você me enganou! Espero que tenha visto muito mais do que desejava e, se assim aconteceu, foi muito bem feito! Quem mandou jogar tão sujo? - Eu vi, realmente, mais do que esperava - respondeu ele com cautela. - Estou me referindo a você e Douglas. - Muito engraçado! Não foi você quem sugeriu que eu saísse com ele? E todo aquele papo sobre liberdade? Era tudo da boca para fora? - Eu pensava mesmo desse jeito, até suspeitar, graças a Kirsty, que havia algo mais entre vocês. Quando o vi beijar a sua mão, tive certeza de que estavam apaixonados. Por isso, antes de ir a 116 Ben Ne vis, perguntei-lhe se não tinha nada a me dizer. Á resposta foi não e imaginei que isso se devesse à sua falta de coragem. Esta foi a razão de eu ter dito que entenderia, se chegasse ao chalé e não a encontrasse lá. - E eu pensei que você quisesse se livrar de mim para voltar para Toni. Surpreso, Richard arregalou os olhos. - Voltar para Toni? O que você quer dizer com isso? Eu nunca tive nada com ela. Está certo, Toni é uma mulher atraente, mas sem nada de especial. Pelo menos para mim. - Então por que você ficou desapontado, quando relatei o conteúdo daquela carta? - Eu, desapontado? Pelo que me lembro, quem ficou desapontada foi você. Pensei que estivesse arrependida por se ter casado comigo, que preferia ter ido à Espanha e desejado que Toni estivesse no seu lugar para tomar conta do homem cego que estragou as suas férias. Quando saiu correndo daquele jeito, deduzi que não estava suportando a ideia de se ter sacrificado inutilmente. Afinal, Toni poderia estar cuidando de mim, já que tinha voltado um dia depois da nossa partida. Fiquei chateado por notar a sua decepção e tive ódio de mim mesmo por ter imposto a você um sacrifício tão grande. A balsa começou a diminuir a velocidade e logo alcançou o cais. Clara pensou, amargurada, que mesmo agora, com tudo começando a ser esclarecido, Richard não lhe havia pedido que voltasse para o chalé. Ele havia ido pegar o carro, deixando-a sozinha com a bagagem, e nem sequer dissera adeus. Ela não sabia o que fazer. Desceu da balsa e caminhou como um autómato, sem estar certa de que direção tomar. Aí viu o carro dele, parado, como se estivesse à sua espera. - Vamos, ponha as malas no banco de trás - disse Richard calmamente, sem fazer o menor esforço para ajudá-la. As esperanças de Clara voltaram. Agora teria uma oportunidade de mostrar que não queria deixá-lo, que não estava arrependida 117 de ter-se casado, que ficar ao lado dele não tinha sido um sacrifício. Ao contrário, aqueles foram os melhores dias de sua vida. Enquanto o carro se movia por Islay, ela admirava em silêncio a beleza do lugar. Se bem que, na verdade, não pudesse apreciá-la muito, pois Richard dirigia em alta velocidade, não parando um minuto sequer para que ela pudesse conhecer de perto os lugares por onde passavam. A pressa era tanta que, pouquíssimo tempo depois, eles já estavam em Port Askaig, na pequena balsa que os levaria até Jura. - Gostou de Islay? - perguntou ele. - Você não me deu tempo para conhecer a ilha - replicou. Passou por ela como uma tempestade de verão. - É que estou louco para voltar para a nossa casa. Clara sentiu uma onda de felicidade invadir seu coração. Era a segunda vez que Richard se referia ao chalé como "nossa casa". Mas era preciso ir mais longe; ela precisava ter certeza absoluta de que ele a queria para sempre. Tremeu, ao pensar que nada daquilo poderia estar acontecendo, se eles não tivessem se encontrado em Tarbert. Estranho pensar que, poucas horas atrás, ela estava na balsa, olhando para a praia que ficava cada vez mais longe, pensando que jamais veria Jura novamente. - Imagine se nós não tivéssemos nos encontrado em Tarbert hoje! - exclamou, sentindo-se estremecer ante aquela terrível possibilidade. Richard sorriu. - Chega de suposições, meu amor - repreendeu-a, com voz macia. - Isso não lhe trará bem algum. Nós nos encontramos, é tudo o que importa, e logo estaremos em casa. - Mas se você não tivesse voltado mais cedo do que planejava, nós não estaríamos aqui, agora. Você pensaria que eu havia ido embora com Douglas. Richard, preciso saber: por que voltou mais cedo do que pensava? - Bem, não sou muito bom em analisar por que faço 118 determinadas coisas. Sempre sigo os meus impulsos. Ontem à tarde, Albert e eu estávamos conversando, quando, de repente, senti uma vontade enorme de tê-la comigo. Parecia que nada daquilo tinha graça, sem você. - Richard! - exclamou Clara. - E eu ontem estava no topo de uma montanha, desejando ardentemente estar com você! - Então desejou muito mesmo, porque não saiu da minha cabeça. Pela primeira vez, uma mulher conseguiu me tirar de uma expedição. Clara, tive de voltar, antes que você fosse embora. Mas surpreendi-me ao vê-la com Douglas. Esperava encontrá-la no chalé e lhe fazer uma surpresa. - E eu estava indo embora porque pensei que você não me quisesse mais. Mas não imagina com que tristeza fiz isso. Já no carro, a caminho do chalé, passaram pela casa de Margot. Os gémeos estavam no jardim e acenaram alegremente para eles. Pouco depois, Richard estacionou em frente àquela deliciosa casinha branca que abrigara duas pessoas que custaram tanto a descobrir que se amavam. Antes de entrarem, olharam-se nos olhos, felizes, cúmplices, cheios de esperança. Beijaram-se com amor, esquecendo-se de tudo. O tempo havia paradopara eles. Não existia mais ninguém no mundo, somente um homem e uma mulher apaixonados. - Você ainda acha que eu não te amo, Clara? - sussurrou ele. - Sempre quis você do jeitinho que é, sem me importar se é bonita ou não. Você, na verdade, me cativou desde o primeiro dia, lá no hospital. Eu sabia o que estava fazendo, quando propus que nos casássemos. Me aproveitei do seu bom coração para obter o que queria. E eu queria você, não uma enfermeira. Depois, quando pude vê-la, gostei: minha esposa era a mais linda do mundo. E eu a quis ainda mais, inteirinha, para sempre. Por isso não lhe disse nada, quando voltei a enxergar. Tive medo de que você me deixasse. Me perdoa, meu amor? - Não há nada para perdoar - sussurrou ela, encantada com aquela confissão. - Tudo o que importa, agora, é que somos parte um do outro. 119 - Isso quer dizer que você aceita continuar casada com um egoísta como eu? - Sei que não vou conseguir viver sem você. Estes últimos dias foram terríveis. Estava começando a pensar que iria enlouquecer. Eu não me casei por compaixão, mas porque te amei desde o início. Só que não sabia disso, naquela época. - Exatamente o que aconteceu comigo - acrescentou ele, sorrindo. - Você gostaria de me ouvir dizer o quanto te amo? - Ajudaria muito - respondeu ela, incapaz de acreditar em tamanha felicidade. - Então vamos entrar. É provável que eu me empolgue demais, e por isso é melhor estarmos entre quatro paredes. Além do mais, suspeito que os gémeos chegarão a qualquer momento. Quando, de fato, as crianças chegaram, a porta do chalé estava trancada e o único ruído naquele lugar tranquilo era o barulho de ondas que se quebravam na praia. Os gémeos bateram várias vezes, mas ninguém respondeu. Gritaram e assobiaram, sem nenhum resultado. Então, cansados, resolveram ir embora, lembrando os conselhos da avó, de que não se deve interromper uma lua-de-mel. Principalmente a de duas pessoas tão apaixonadas como Richard e Clara. 120 Fim