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Dezembro 1999
Edição 25.838 Quinta, 30/12/1999 Tiragem 496,855
CADERNO ESPECIAL - 20/21
O superego pós-moderno
23/05/1999
Autor: SLAVOJ ZIZEK
Assuntos Principais: SOCIOLOGIA; SOCIEDADE DE RISCO; ANÁLISE; SOCIEDADE
 "Rule Girls" (garotas que seguem regras) são mulheres heterossexuais que seguem regras 
precisas relativas a como se deixam seduzir (só aceitar um encontro quando se é convidada 
com pelo menos três dias de antecedência, por exemplo). Embora essas regras correspondam 
aos usos e costumes que, em tempos passados, moldavam o comportamento de mulheres à 
moda antiga, "caçadas" ativamente por homens à moda antiga, o fenômeno das "Rule Girls" 
não representa um retorno aos valores conservadores porque hoje as mulheres escolhem 
livremente as regras que querem seguir. Trata-se de uma instância do processo de 
"reflexivização'' dos costumes do dia-a-dia na moderna Sociedade de Risco. Segundo a teoria 
da Sociedade de Risco, formulada por Anthony Giddens, Ulrich Beck e outros, nossa vida 
não é vivida em submissão à Natureza ou à Tradição; não existe código ou ordem simbólica 
de ficções aceitas (o que Lacan chama de "O Grande Outro'') para nos orientar em nosso 
comportamento social. Todos nossos impulsos, desde nossa orientação sexual até o 
sentimento de fazer parte de determinada etnia, são vividos, cada vez mais, como questões 
sujeitas a nossa própria opção. Coisas que antes pareciam ser auto-evidentes _como se 
alimenta e educa uma criança, como se procede na sedução sexual, como e o que comer, 
como relaxar e divertir-se_ passaram a ser "colonizadas'' pela reflexividade e a ser vividas 
como algo a ser aprendido e a ser sujeito à decisão pessoal. A primazia da decifração de 
códigos na cultura popular explica a retirada de cena do Grande Outro aceito. Um exemplo 
disso é dado pelas tentativas pseudocientíficas e New Age de usar a tecnologia da informática 
para decifrar códigos recônditos _por exemplo na Bíblia ou nas pirâmides_ e lançar luz sobre 
o futuro da humanidade. Outro exemplo é oferecido pelas cenas nos filmes de temática 
ciberespacial em que o herói (ou, frequentemente, a heroína), debruçado sobre um 
computador e correndo freneticamente contra o tempo, vê seu "acesso negado'' até conseguir 
decifrar o código e descobrir que um órgão governamental secreto está envolvido numa 
conspiração para acabar com a liberdade e a democracia. É claro que acreditar que existe um 
código a ser decifrado é, sob muitos aspectos, a mesma coisa que acreditar na existência de 
algum Grande Outro. Em ambos os casos, o que se procura é um agente que estruture nossas 
vidas sociais caóticas. Hoje, até o racismo se tornou reflexivo. Consideremos os Bálcãs. Na 
mídia ocidental liberal, são retratados como um redemoinho de antagonismos étnicos _um 
sonho multicultural que virou pesadelo. A reação mais comum dos eslovenos (eu mesmo sou 
um) é dizer "sim, nos Bálcãs é assim mesmo, mas a Eslovênia não faz parte dos Bálcãs _fica 
na Europa central. Os Bálcãs começam na Croácia ou na Bósnia. Nós, eslovenos, somos o 
último baluarte da civilização européia, uma barreira contra a insanidade balcânica''. Se você 
perguntar onde começam os Bálcãs, sempre lhe dirão que começam "lá para baixo", em 
direção sudeste. Para os sérvios, começam em Kosovo ou na Bósnia, onde a Sérvia está 
tentando defender a Europa cristã e civilizada contra o avanço desse Outro. Para os croatas, 
os Bálcãs começam na ortodoxa, despótica e bizantina Sérvia, contra a qual a Croácia 
resguarda os valores democráticos ocidentais. Para muitos italianos e austríacos, começam na 
Eslovênia, posto avançado das hordas eslávicas no Ocidente. Para muitos alemães, a Áustria 
é manchada pela corrupção e ineficiência balcânica; para muitos alemães do norte, a Bavária 
católica não está isenta de contaminação balcânica. Muitos franceses arrogantes associam a 
Alemanha à brutalidade balcânica oriental, à qual faltaria a "finesse'' francesa. E para os 
britânicos que se opõem à inclusão de seu país na União Européia, a Europa continental 
representa a nova versão do Império Turco, e Bruxelas, a nova Istambul _representantes do 
despotismo voraz que ameaça a liberdade e soberania do Reino Unido. Estamos lidando com 
uma cartografia imaginária que projeta na paisagem real seus próprios antagonismos 
ideológicos sombrios, da mesma maneira como os sintomas de conversão do sujeito histérico 
em Freud projetam sobre o corpo físico o mapa de uma anatomia outra e imaginária. Boa 
parte dessa projeção é racista. Em primeiro lugar há a rejeição antiquada e despudorada do 
Outro balcânico (despótico, bárbaro, ortodoxo, muçulmano, corrupto, oriental) em favor dos 
valores verdadeiros (ocidental, civilizado, democrático, cristão). Mas também existe um 
racismo "reflexivo'', politicamente correto: a percepção liberal e multiculturalista dos Bálcãs 
como palco de horrores e intolerância étnicos, de paixões primitivas, tribais e irracionais, em 
oposição à racionalidade da resolução do conflito pós-Estado nação por meio da negociação 
e dos acordos. O racismo seria a enfermidade que acomete o Outro balcânico, enquanto nós, 
no Ocidente, seríamos meros observadores, neutros, benévolos e horrorizados. Em último 
lugar temos o racismo invertido, que louva o exotismo autêntico do Outro balcânico _como 
no conceito que se faz dos sérvios que, em contrapartida aos europeus ocidentais inibidos e 
anêmicos, ainda manifestariam uma prodigiosa sede de viver. Talvez o melhor exemplo da 
reflexividade universalizada de nossas vidas seja a crescente ineficiência da interpretação. A 
psicanálise tradicional baseava-se na noção do inconsciente como "continente escuro'', a 
substância impenetrável do ser do sujeito, que tinha que ser sondada por meio da 
interpretação _quando seu conteúdo fosse trazido à luz, seguir-se-ia uma nova consciência 
libertadora. Hoje as formações do inconsciente (desde sonhos até sintomas histéricos) 
perderam sua inocência; as "livres associações'' feitas pelo típico paciente instruído 
consistem, em sua maioria, de tentativas de oferecer uma explicação psicanalítica de suas 
próprias perturbações. Assim, temos não apenas interpretações annafreudianas, junguianas, 
kleinianas e lacanianas dos sintomas, mas sintomas que são em si mesmos annafreudianos, 
junguianos, kleinianos ou lacanianos _ou seja, não existem sem referência a alguma teoria 
psicanalítica. O infeliz resultado dessa "reflexivização" é que a interpretação feita pelo 
analista perde sua eficácia simbólica e deixa o sintoma intacto em sua "jouissance'' idiota. É 
como se o skinhead neonazista, quando pressionado a explicar as razões de seu 
comportamento, começasse a falar como assistente social, sociólogo ou psicólogo social, 
citando a perda da mobilidade social, a crescente insegurança, a desintegração da autoridade 
paterna e a ausência de amor materno em sua primeira infância. Goebbels teria dito que, 
"quando ouço a palavra 'cultura', saco logo meu revólver''. "Quando ouço a palavra 'cultura', 
saco logo meu talão de cheques'', diz o produtor cínico em "O Desprezo", de Godard. Um 
slogan esquerdista inverte a declaração de Goebbels: "Quando ouço a palavra 'arma', saco 
logo a cultura''. A cultura, segundo esse slogan, pode funcionar como resposta eficaz à arma: 
uma erupção de violência é uma "passagem aos atos'' cujas raízes se situam na ignorância do 
sujeito. Mas essa noção é contrariada pela ascensão daquilo que poderíamos chamar de "o 
racismo pós-modernista'', cuja característica surpreendente é sua insensibilidade à reflexão. O 
skinhead neonazista que espanca negros sabe o que está fazendo, mas o faz mesmo assim. A 
"reflexivização" transformou a estrutura da dominância social. Considere-se a imagem 
pública de Bill Gates. Gates não é um pai-senhor, nem mesmo um Grande Irmão corporativo 
que dirige um império burocrático rígido, desde o alto de um andar superior inacessível,cercado por uma multidão de secretários e assistentes. Antes, é uma espécie de Pequeno 
Irmão. Sua própria qualidade de comum é indicativa de uma monstruosidade tão fantástica 
que não pode mais assumir sua forma pública usual. Nas fotos e nos desenhos ele se parece 
com qualquer um de nós, mas seu sorriso insincero aponta para uma maldade subjacente que 
ultrapassa o poder da representação. Outro aspecto crucial de Gates enquanto ícone é o fato 
de que é visto como o hacker que deu certo na vida (o próprio termo "hacker'', é claro, possui 
conotações subversivas/marginais/antiestablishment; sugere alguém que se propõe a 
perturbar o funcionamento tranquilo de grandes corporações burocráticas). Ao nível da 
fantasia, Gates é um vândalo subversivo menor que assumiu o lugar do respeitável presidente 
da empresa, vestindo-se como ele. Em Bill Gates, o Pequeno Irmão, o "bandido'' médio 
coincide com e contém a figura do gênio do mal que busca o controle total sobre nossas 
vidas. Nos primeiros filmes de James Bond, o gênio do mal era uma figura excêntrica que se 
vestia de maneira extravagante ou, alternativamente, no uniforme cinzento do comissário 
maoísta. No caso de Gates, essa farsa ridícula se torna redundante. O gênio do mal revela ser 
o rapaz da casa ao lado. Outro aspecto desse processo é a mudança do status da tradição 
narrativa que utilizamos para compreender nossas vidas. Em "Os Homens São de Marte, As 
Mulheres São de Vênus'' (1992), John Gray propõe uma versão vulgarizada da psicanálise 
narrativista-desconstrucionista. Já que, em última análise, "somos'' as histórias que contamos 
a nosso próprio respeito, a solução do impasse psicológico reside, propõe Gray, em 
reescrever de maneira "positiva'' a narrativa de nosso passado. O que ele tem em mente não é 
apenas a terapia cognitiva padronizada de transformar as falsas "crenças negativas'' que 
temos a nosso próprio respeito na afirmação de que somos amados pelas outras pessoas e 
capazes de alcançar realizações criativas, mas um procedimento pseudofreudiano mais 
"radical'' de regressar ao palco da ferida traumática primordial. Gray aceita a noção de uma 
experiência traumática na primeira infância que deixa uma marca permanente no 
desenvolvimento posterior do sujeito, mas lhe confere uma versão ou um desenvolvimento 
patológico. O que ele propõe é que, depois de regredir até sua cena traumática original _logo, 
confrontá-la, o sujeito, sob a orientação do terapeuta, "reescreva'' a cena, esse quadro 
fantasmático máximo de sua subjetividade, como parte de uma narrativa mais benigna e 
produtiva. Digamos, por exemplo, que a cena traumática primordial que existe em seu 
inconsciente e que deforma e inibe sua atitude criativa seja a de seu pai gritando: "Você não 
passa de um inútil! Eu o desprezo! Você nunca vai fazer nada de bom!''. Você terá que 
reescrever a cena, de modo que seu pai benevolente sorria e diga: "Você é ótimo! Confio 
plenamente em você''. (Desse modo, a solução, para o Homem Lobo, teria sido regredir para 
o "coitus a tergo'' de seus pais e depois reescrever a cena de modo que o que visse fosse 
apenas seus pais deitados na cama, seu pai folheando o jornal e sua mãe lendo um 
romance).Pode parecer ridículo, mas existe uma versão amplamente aceita e politicamente 
correta desse procedimento no qual as minorias étnicas, sexuais e outras reescrevem seu 
passado num tom mais positivo e auto-afirmativo (os afro-americanos afirmam que muito 
antes da modernidade européia os impérios africanos da Antiguidade já tinham 
conhecimentos científicos e tecnológicos sofisticados).Imagine-se o Decálogo sendo 
reescrito nessa linha. Um dos mandamentos é severo demais? Só precisamos regredir até o 
monte Sinai e reescrevê-lo. Adultério: sem problemas, desde que seja sincero e promova a 
meta da auto-realização profunda. O que desaparece não é o fato em si, nu e cru, mas a 
realidade de um encontro traumático, cujo papel organizador na economia psíquica do sujeito 
resiste a sua reescritura simbólica. Em nossa sociedade liberal-permissiva pós-política, os 
direitos humanos podem ser vistos como expressão do direito de violar os Dez 
Mandamentos. O direito à privacidade é, em efeito, o direito de cometer adultério em 
segredo, sem ser observado ou investigado. O direito de buscar a felicidade e possuir 
propriedade privada é, com efeito, o direito de roubar (explorar os outros). A liberdade de 
imprensa e de expressão é o direito de mentir. Continua na pág. 5-8
O superego pós-moderno na nossa sociedade reflexiva, pós-modernista, que aparenta ser 
hedonista e permissiva, é saturada de normas e regulamentos Continuação da pág. 5-8 É claro 
que os direitos humanos não toleram diretamente a violação dos Dez Mandamentos, mas 
preservam uma "zona cinzenta'' marginal que está fora do alcance do poder religioso ou 
secular. Dentro dessa área escura posso violar os Mandamentos e, se o Poder me flagrar de 
calças abaixadas e tentar impedir meu ato de violação, posso acusá-lo de infringir meus 
direitos humanos fundamentais. É impossível o Poder impedir o mau uso dos direitos 
humanos sem, ao mesmo tempo, pressionar sobre sua aplicação correta. Lacan chama a 
atenção para a resistência ao uso de detectores de mentiras nas investigações criminais 
_como se tal verificação "objetiva'' direta de alguma maneira infringisse o direito que tem o 
sujeito à privacidade de seus pensamentos. Uma tensão semelhante entre direitos e proibições 
determina a sedução heterossexual em nossos tempos politicamente corretos. Ou, para dizer a 
mesma coisa em outras palavras, não existe sedução que não possa, em algum momento, ser 
interpretada (e representada) como assédio ou molestamento, já que sempre haverá um 
momento em que é preciso se expor, demonstrando o interesse que se sente pelo outro. Mas é 
claro que sedução não equivale a assédio incorreto, do começo ao fim.Quando você faz uma 
proposta a uma pessoa, se expõe ao Outro (a parceira potencial), e a reação dela é que vai 
determinar se o que você acaba de fazer foi assédio ou uma sedução bem-sucedida. Não há 
meios de saber de antemão qual será sua reação. Essa máxima é ainda mais válida em nossos 
tempos politicamente corretos; as proibições impostas pela correção política são regras que 
serão violadas, de uma maneira ou outra, no processo de sedução.Embora a psicanálise seja 
uma das vítimas da "reflexivização", ela também pode nos ajudar a compreender as 
implicações desta. Ela não lamenta a desintegração da antiga estabilidade, nem situa a causa 
das neuroses modernas em seu desaparecimento. Dessa maneira, nos obriga a reencontrar 
nossas raízes na sabedoria tradicional ou num autoconhecimento mais profundo. Ela 
tampouco é apenas mais uma versão do moderno conhecimento reflexivo que nos ensina a 
conhecer os segredos de nossa vida psíquica. A psicanálise propriamente dita trata das 
consequências inesperadas da desintegração das estruturas que tradicionalmente regeram e 
regem a vida da libido. Por que o declínio da autoridade paterna e dos papéis sociais e 
sexuais fixos gera novas culpas e ansiedades, em lugar de abrir a nossa frente um admirável 
mundo novo no qual poderíamos sentir prazer na remodelação e mudança de nossas 
identidades múltiplas?Vínculos apaixonados A constelação pós-moderna na qual o sujeito 
volta sua atenção à realização de experiências com sua própria vida encoraja a formação de 
novos "vínculos apaixonados'' (o termo é de Judith Butler), mas e se a desintegração da 
autoridade simbólica patriarcal for contrabalançada por um "vínculo apaixonado'' ainda mais 
forte com a sujeição? Talvez isso explique a presença cada vez maior de relacionamentos 
rigidamente representados de rainha/escrava entre os casais lésbicos. Aquela que dá as ordens 
é a que está "em cima'', a que obedece está "embaixo'', e, para se alcançar a posição de cima, 
é preciso completar um aprendizado árduo.Essa dualidade "em cima/embaixo'' não é nem 
sinal de identificação direta com o agressor (masculino), nem imitação paródica das relações 
patriarcais de dominação. Antes, expressa o paradoxo genuíno de uma forma livremente 
escolhida de coexistência rainha/escrava que traz profunda satisfação à libido.Tudo é virado 
de trás para diante. A ordem pública deixa de ser mantida pela hierarquia, repressão e 
regulamentação rígida, deixando, portanto, de ser subvertida por atos de transgressão 
libertadora. Em lugar disso, temos relações sociais entre indivíduos livres e iguais, 
suplementadas por um "vínculo apaixonado'' com uma forma extrema de submissão que atua 
como o "segredo sujo'', a fonte transgressiva de satisfação da libido. Numa sociedade 
permissiva, a relação rainha/escrava, autoritária e rigidamente codificada, se torna 
transgressiva. Esse paradoxo ou inversão é o próprio tema da psicanálise: a psicanálise não 
lida com o pai autoritário que proíbe o gozo, mas com o pai obsceno que o impõe como 
obrigação e, com isso, torna você frígido ou impotente. O inconsciente não é a resistência 
secreta à lei, mas a própria lei.A resposta psicanalítica à teoria da Sociedade de Risco e da 
"reflexivização" de nossas vidas consiste em não insistir na existência de uma substância pré-
reflexiva _o inconsciente_, mas propor que essa teoria deixa de levar em conta outro modo 
de reflexividade. Para a psicanálise, a perversão da economia da libido humana é decorrência 
da proibição de alguma atividade prazerosa: não uma vida vivida em rígida obediência à lei e 
privada de todo prazer, mas uma vida na qual o próprio exercício da lei gera um prazer, na 
qual a realização de um ritual que visa a afastar as tentações ilícitas torna-se fonte de 
satisfação da libido.A vida militar, por exemplo, pode ser regida tanto por um conjunto 
implícito de regras e rituais obscenos, quanto pelas normas oficiais. Essa violência 
sexualizada não enfraquece a ordem nos quartéis. Os mecanismos e procedimentos do poder 
regulamentador se erotizam "reflexivamente'': embora a repressão, num momento inicial, 
surja como tentativa de regulamentar qualquer desejo visto pela ordem sócio-simbólica 
dominante como "ilícito'', ela só pode sobreviver na economia psíquica se o desejo de 
regulamentação estiver presente _ou seja, se a própria atividade da regulamentação se 
investir de libido e transformar-se em fonte de satisfação da libido.Essa reflexividade solapa 
o conceito do sujeito pós-moderno livre para escolher e remodelar sua identidade. O conceito 
psicanalítico que designa o curto-circuito entre a repressão e aquilo que ela reprime é o 
superego. Como foi realçado inúmeras vezes por Lacan, o conteúdo essencial da injunção 
feita pelo superego é "desfrute!''. Um pai trabalha duro para organizar um passeio dominical 
que precisa ser adiado repetidas vezes. Quando o passeio finalmente se concretiza, ele já está 
farto da idéia e grita com seus filhos: "Agora é bom que vocês curtam!''.O superego opera de 
maneira diferente da lei simbólica. A figura paterna ou materna, que é apenas "repressiva'' na 
modalidade da autoridade simbólica, diz à criança: "Você tem que ir ao aniversário da vovó e 
se comportar direitinho, mesmo que morra de tédio. Não me importo se você quer ir ou não 
_tem que ir, e pronto!''. Já a figura do superego, pelo contrário, diz à criança: "Você sabe 
quanto a vovó gostaria de lhe ver, mas, mesmo assim, vá à festa dela só se você realmente 
quiser. Se não, fique em casa''. O truque do superego é dar a impressão de oferecer uma livre 
escolha à criança, quando na realidade não lhe está sendo oferecida escolha nenhuma.Pior do 
que isso: estão lhe dando uma ordem e mandando que você sorria enquanto a cumpre. Não 
apenas "você tem que ir à casa da vovó, não importa o que estiver sentindo'', mas também 
"você tem que ir à casa da vovó e ficar feliz em fazê-lo''. O superego manda você sentir 
prazer naquilo que você é obrigado a fazer. Afinal, o que aconteceria se a criança entendesse 
que realmente tem livre escolha e optasse por dizer "não''? Seu pai ou sua mãe a faria sentir-
se péssima. "Como você ousa falar assim?'', lhe dirá sua mãe. "Como tem coragem de ser tão 
desalmada? Coitada de sua avó! O que ela fez para você não querer ir à casa dela?''Kant 
formulou o imperativo categórico em termos de "você pode cumprir seu dever porque tem 
que cumpri-lo''. O corolário negativo usual desta fórmula atua como fundamento da coerção 
moral: "Você não pode porque não deve''. O argumento dos adversários da clonagem 
humana, por exemplo, é de que ela não pode ser permitida porque envolveria a redução do 
ser humano a uma entidade cujas propriedades psíquicas poderiam ser manipuladas. Isso 
constitui uma outra variante da máxima de Wittgenstein de que, "sobre aquilo do qual não 
podemos falar, devemos silenciar''.Em outras palavras, devemos dizer que não o podemos 
fazer, porque, de outro modo, poderíamos fazê-lo, gerando consequências éticas 
catastróficas. Se os adversários cristãos da clonagem acreditam na imortalidade da alma e na 
singularidade da personalidade, por que se opõem à clonagem? Será possível que, na 
realidade, acreditem, sim, que a genética é capaz de atingir o próprio cerne de nossa 
personalidade?O superego inverte o kantiano "você pode porque deve'', transformando-o em 
"você deve, porque pode''. É esse o sentido do Viagra, que promete restaurar a capacidade de 
ereção masculina de maneira puramente bioquímica, passando ao largo de todos os 
problemas psicológicos. Agora que o Viagra pode responsabilizar-se pela ereção, você não 
tem escapatória: deve fazer sexo sempre que possível e, se não o fizer, deve sentir-se culpado 
por isso.Embora tanto a submissão dentro de um relacionamento lésbico sadomasoquista 
quanto a submissão de um indivíduo a crenças religiosas ou étnicas fundamentais sejam 
geradas pela "reflexivização" moderna, suas economias de libido são bastante diferentes. O 
relacionamento rainha/escrava lésbico é uma encenação teatral, baseada em regras aceitas e 
num contrato que foi livremente contraído. Nessa condição, possui um potencial libertador 
tremendo. Já a devoção fundamentalista a uma causa étnica ou religiosa nega a possibilidade 
de qualquer forma de consentimento. Não que os sadomasoquistas sejam submissos apenas 
como brincadeira, enquanto, numa comunidade política totalitária, a submissão seja real. Na 
realidade, o que acontece é o oposto: no contrato sadomasoquista a performance é para valer 
e é levada totalmente a sério, sendo que a submissão totalitária, com sua máscara de devoção 
fanática, é, em última análise, um faz-de-conta. O que o trai como faz-de-conta é o vínculo 
existente entre a figura do Senhor totalitário e a imposição do superego: "Desfrute!''.Você 
pode! Uma boa ilustração de como opera o senhor "totalitário'' é dada pelo logotipo presente 
na embalagem de um salame alemão sem gordura. "Du darfst!'', diz o rótulo _"você pode!''. 
Os novos fundamentalismos não são reações contra a ansiedade da liberdade excessiva que 
acompanha o capitalismo liberal recente; numa sociedade repleta de permissividade, eles não 
oferecem proibições rígidas. O clichê relativo a "escapar da liberdade'', fugindo para o 
totalitarismo, é profundamente enganoso. Tampouco se encontra uma explicação na tese 
freudiana/marxista padrão segundo a qual a base libidinal dos regimes totalitários (fascistas) 
é a "personalidade autoritária'' _ou seja, alguém que deriva satisfação da obediência 
compulsiva. Embora, superficialmente, o senhor totalitário também dê ordem rígidas, 
obrigando-nos a renunciar ao prazer e sacrificar-nos por alguma causa superior, sua injunção 
real, que pode ser lida nas entrelinhas, constitui um chamado à transgressão irrestrita.Longe 
de nos impor um conjunto rígido de normas que devem ser seguidas, o senhor totalitário 
suspende o castigo moral. Sua injunçãosecreta é "você pode''. Ele nos diz que as proibições 
que regulam a vida social e garantem um mínimo de decência não valem nada e não passam 
de artifício para manter à distância as pessoas comuns. Nós, por outro lado, estamos livres 
para nos soltar, para matar, violar e saquear, desde que sigamos os passos do mestre. (A 
escola de Frankfurt identificou essa característica chave do totalitarismo em sua teoria de 
dessublimação repressiva.) A obediência ao senhor autoriza você a transgredir as regras 
morais cotidianas: todas as coisas sujas com as quais você sonhava, tudo a que você teve que 
renunciar quando se subordinou à Lei tradicional, patriarcal, simbólica, você agora pode 
fazer e pode sentir prazer em fazer, sem medo de castigo, assim como pode comer salame 
desengordurado sem impor riscos a sua saúde.A mesma suspensão subjacente das proibições 
morais é característica do nacionalismo pós-modernista. O clichê segundo o qual, em uma 
sociedade secular e global confusa, a identificação étnica forte restaura um conjunto firme de 
valores deveria ser virado do avesso _na realidade, o fundamentalismo nacionalista funciona 
como um "você pode'' mal-disfarçado. Nossa sociedade reflexiva, pós-modernista, que 
aparenta ser hedonista e permissiva, na realidade é saturada de normas e regulamentos que 
visam a promover nosso bem-estar (restrições ao cigarro e ao comer, regras contra o assédio 
sexual). Longe de nos restringir ainda mais, uma identificação étnica forte constitui um 
chamado libertador de "você pode'': você pode violar _não o Decálogo, mas as regras rígidas 
da coexistência pacífica numa sociedade liberal tolerante; pode comer e beber o que quiser, 
pode dizer coisas que a correção política proíbe, pode até odiar, lutar, matar e violentar. É ao 
oferecer esse tipo de pseudolibertação que o superego suplementa a textura explícita da lei 
simbólica social.A oposição superficial entre prazer e dever é superada de duas maneiras 
diferentes. O poder totalitário avança ainda mais longe do que o poder autoritário tradicional. 
O que ele diz, em efeito, não é "cumpra seu dever, quer você goste disso, quer não'', mas 
"você deve cumprir seu dever e deve sentir prazer em fazê-lo''. (É assim que funciona a 
democracia totalitária: não basta que as pessoas sigam seu líder _devem também amá-lo.) O 
dever se torna prazer.Em segundo lugar, há o paradoxo necessariamente inverso pelo qual o 
prazer, numa sociedade supostamente permissiva, se transforma em dever. Os sujeitos se 
sentem na obrigação de se divertir, de "curtir a vida'', como se isso fosse uma espécie de 
dever, e, consequentemente, se sentem culpados quando não são felizes. O superego controla 
a zona na qual esses dois opostos se sobrepõem _na qual a ordem de sentir prazer em cumprir 
seu dever coincide com o dever de sentir prazer.
Slavoj Zizek é filósofo, pesquisador no Instituto de Estudos Sociais de Liubliana, autor de 
"Um Mapa da Ideologia" (ed. Contraponto), "Eles Não Sabem o Que Fazem - O Sublime 
Objeto da Ideologia" e "O Mais Sublime dos Histéricos" (Jorge Zahar Editor).Tradução de 
Clara Allain.
	O superego pós-moderno

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