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Um grito lilás: cartografia da violência às mulheres do campo e da floresta Vanderléia Laodete Pulga Daron Introdução Ao nos preocupamos com o desafio de conhecer, a partir de dados ou informação científico-tecnológica, a presença da violência contra a mulher no campo e na floresta, deparamo-nos com um grande silêncio. Não encontramos dados de pesquisa social, investigação epidemiológica ou produção científica com densidade analítica, evidenciação estatística ou de descrição na cultura relativos à violência perpetrada contra as mulheres que, em contrapartida não está ausente. Encontramos evidência de sua presença ao buscar dados informais, relatos de vida, confidências, biografias e documentários focais, denúncias e reivindicações feitas pelos movimentos de mulheres e organizações sociais populares do campo e da floresta. O silenciamento dos dados e da informação compartilha o silenciamento da dor sofrida em situações de abuso e violação de direitos pelas mulheres que vivem e trabalham nos campos e florestas do Brasil. A metáfora do grito, ao mesmo tempo de dor e de expressão de luta, liberdade e emancipação, se associa à metáfora da cor lilás, que fala das políticas do feminino e feminista, mas que pode falar das marcas da violência no corpo das mulheres. O grito das mulheres organizadas vem demonstrar que a par de levantar de dados e informações parece necessário levantar a voz dessas mulheres, a par de não derrubar a floresta e a vegetação nativa, de acabar com o latifúndio e os crime no campo, parece necessário derrubar a violência contra as mulheres, materializada pela invasão de seus corpos, subjetividade e bens sociais, culturais e simbólicos. Uma engrenagem social de silenciamento parece se expressar na cultura do campo e floresta e na produção científica ou letrada sobre o cotidiano das mulheres na correlação feminilidades, violência, trabalho rural e na floresta, família rural e de floresta, campo e floresta. Esse conjunto, como segmento, não parece constituir um território de conhecimentos e análises. A força de vida presente no campo e na floresta pela biodiversidade, produção de alimentos, aromáticos, condimentares, medicinais e extração de matérias primas à produção de bens e insumos não pode prescindir da força de vida das mulheres. Ao contrário, essas forças de vida associadas elevarão a qualidade da vida humana e das relações socioculturais da cidadania nacional. O grito e as vozes das mulheres do campo e da floresta organizadas vêm exigindo por meio de lutas, caravanas e marchas, políticas públicas para o enfrentamento e o fim da violência, cuja expressão se deu na Marcha das Margaridas, na criação do Fórum Nacional de Enfrentamento à violência contra as mulheres do campo e da floresta e no lançamento da campanha mundial da Via Campesina pelo fim da violência contra as mulheres camponesas. Assim, este ensaio, resultado de uma das ações propostas pelo Fórum e assumida pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR) constitui um instrumento para as mulheres avançarem na elevação da expressão de liberdade e se associa às políticas para as mulheres na reversão de exclusões, submetimentos e violações do feminino. As marcas da violência no corpo, na subjetividade e na circulação das mulheres do campo e da floresta precisam ser revertidas em voz e outra (ou nova) força de vida. Assim, precisamos constituir um conjunto de recursos de procura de dados e de análises para remexer no silêncio. Nossa militância e envolvimento político com os movimentos de mulheres do campo e da floresta contribuíram com a preocupação por um trabalho sério, de caráter cientificamente disciplinado e respeitoso das vivências pessoais e as convivências com as mulheres que vivem e trabalham no campo ou na floresta. Este ensaio pretende dar visibilidade às iniciativas para atravessar essa realidade silenciada e contribuir a sua transvaloração, isto é, além de superar a reprodução da violência, inverter valores que a admitem para valores que a rejeitem. Rejeitem da mesma forma que se deve rejeitar quaisquer formas de relação que não promovam a qualidade de vida entre seres potentes, tanto na afirmação de sua dignidade, como na afirmação da alegria e construção de coletivos geradores de mais vida. O ensaio dá linguagem e expressão à tradição recente nas políticas públicas para as mulheres, de constituir direitos em direção a uma cidadania alargada por políticas da existência, não apenas os direitos sociais, civis e políticos. Representa, também, entretanto, o compromisso com depoimentos que nos foram confiados e realidades presenciadas, uma síntese provisória entre o desafio de conhecer e a convocação por transformar. Levantar a voz e derrubar a violência é um desafio para nós, para as mulheres do campo e da floresta, para a pesquisa e produção de conhecimento, para os sistemas de saúde, de educação, de segurança pública, de desenvolvimento agrário e para as políticas públicas relativas às mulheres. Campo, floresta, mulheres, trabalho e família Antes da apresentação de resultados do estudo, contextualizamos sua produção. O lugar “campo e floresta”, em primeiro lugar. O campo e a floresta não são lugares bucólicos ou de natureza em estado puro, são lugares construídos socialmente e com historicidade. Como nos disse o geógrafo Milton Santos (2001), são territórios vivos e constituídos por um conjunto de sujeitos sociais que produzem, no seu cotidiano, as formas de ser e viver do campo e da floresta. São territórios que se constituem por meio das relações que os indivíduos estabelecem entre si, dos afetos, das memórias, da cultura, do exercício de cidadania e do grau de enraizamento que os indivíduos mantêm com as “forças locais”, provenientes de laços subjetivos e estratégias micropolíticas de sentir, agir, pensar e desejar. São povos indígenas; comunidades tradicionais; remanescentes quilombolas; quebradeiras de côco, trabalhadores (as) extrativistas e pescadores (as); populações ou sociedades ribeirinhas, do agreste, da caatinga ou do sertão; refugiados e descendentes de imigrantes; população negra, retirantes; trabalhadores rurais sem terra; agricultores (as) e camponeses (as), entre tantos modos singulares de vida, de cultura e de enraizamento ou deslocamento por território de habitar marcados com as condições básicas de sobrevivência. Oliveira (2008), em sua tese de doutorado, abordando as políticas de desenvolvimento na Amazônia, chama a atenção para esse fato, desconhecido ou ignorado pelas políticas oficiais na história do País até muito recentemente, que é a vida na floresta. Há potência no encontro com estes “territórios” para a construção de uma democracia mais densa e forte, a resistência dos povos da floresta deve ser entendida como luta para a construção de novas lógicas e outros projetos de cidadania coletiva. Um desafio que se coloca é o da apreensão dessas realidades com a textura que elas têm. Intervir nessas realidades precisa ser com as suas singularizações sobre nós, não o contrário. Ao invés de buscar-lhes a para a apreensão de nosso olhar e valores, precisamos apreender-lhes e deles não nos separamos para a formulação de conhecimentos e políticas protetoras e potencializadoras da vida. Destacar a potência existente nesses territórios, distantes da hegemonia da razão urbana, letrada, industrial, consumista e abstrata, não deve nos impedir de ver e ouvir as diferentes naturezas da violência e os desenhos de limite que constituem esses lugares. O campo e a floresta têm sido historicamente, no Brasil, espaços de conflito e disputa econômica, social e política, nos quais o silenciamento e a invisibilidade configuram estratégias perversas de exploração, expropriação e opressão. Os conflitos de classe, os massacresperpetrados como luta para a construção do território nacional, a espoliação das condições de vida e trabalho, transfiguradas em empregabilidade e renda precárias são condições mescladas com as de vida e violência. Por certo, impregnam violências de gênero, raça/etnia, geração, classe social e orientação sexual. A dor física ou moral no corpo violentado e mutilado não é menor por existirem condições explicativo-analisadoras mais amplas. A violência de gênero, entretanto, atravessa e singulariza as violências de geração, raça/etnia, classe e orientação sexual. É sobre essa violência que aportaremos nosso esforço de consolidação de dados e informações, tendo em vista o campo e a floresta nas políticas para as mulheres. A violência contra as mulheres é um dos temas que mais preocupa as análises sobre o feminino e ocupa a pesquisa sobre as mulheres e as feminilidades. Também é um dos problemas que mais oprime o cotidiano das mulheres, o que se expressa com veemência para milhares de mulheres no Brasil e no mundo. No caso específico das mulheres do campo e da floresta, esta realidade ainda está para ser reconhecida em números, características, conseqüências, processos de subjetivação, potências de vida perdidas, cenários de saúde-doença desenhados, assim como mortes e lesões perpetradas. O silêncio rompido deve ser um aliado das mulheres, suas feminilidades e organizações, não a imposição de culturas sociais de prevenção e tratamento que não lhes digam respeito. Por conta desta necessidade, a convite da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, apresentamos este ensaio que descreve um inicial levantamento e análise de pesquisas, dados e denúncias que tiveram como objeto a violência de gênero contra as mulheres do campo e da floresta, isto é, o levantamento de algumas pesquisas com este enfoque no Brasil, depoimentos, cartas e relatos de mulheres do campo e da floresta para a tematização/reflexão que auxilie na proposição e acompanhamento de práticas junto ao plano de ações do Fórum Nacional e da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, em especial às mulheres do campo e da floresta. A metodologia que utilizamos foi a da identificação e análise de pesquisas, estudos e monografias sobre a temática, a consulta e análise do registro de dados da Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, a sistematização de cartas, depoimentos e relatos de mulheres que vivem no campo ou na floresta, a que tivemos acesso pessoalmente ou mediante disponibilização em sítios eletrônicos. Trata-se de uma elaboração teórica que associa diferentes insumos de conhecimento e seu cotejamento em uma estratégia interpretativa cuja intenção é a da produção de um saber aproximativo. O objetivo foi o de ampliar a compreensão do fenômeno da violência a que estão submetidas às mulheres do campo e da floresta, tendo em vista alimentar a formulação, gestão e avaliação de políticas públicas para as mulheres na esfera governamental e para as ações educativas e de controle social de movimentos sociais, feministas, organizações de mulheres e do Fórum Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres do Campo e da Floresta. Os dados e fatos materiais (os registros na Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180, os resultados das pesquisas anteriores e os depoimentos das mulheres) foram combinados com dados e fatos narrados nos raros estudos encontrados e nas vivências de assessoria e educação popular junto à juventude, aos movimentos sociais, feministas, não governamentais, de mulheres do campo e da floresta desde a década de 1980. O texto foi estruturado por uma “análise da situação de vida” das mulheres do campo e da floresta, segundo as marcas de múltiplas formas de violência, utilizando-nos dos elementos disponíveis na Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. Em seguida, vem o “tema da violência” como um fenômeno apresentando por estudos e pesquisas existentes sobre a violência no campo e na floresta contra as mulheres. Após, com base nos estudos existentes, uma “abordagem do silêncio e da invisibilidade” relativos à violência contra as mulheres do campo e da floresta. Por fim, uma “análise do protagonismo” das mulheres do campo e da floresta e, ainda, o processo de “construção e implantação” da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e as ações estratégicas para enfrentar a violência contra as mulheres do campo e da floresta. Com esse trabalho, embora de caráter preliminar, portanto, inconcluso ou “em aberto” esperamos ofertar um mote para estudos mais profundos e com dados de base primária. Esperamos, também, poder contribuir com as mulheres, movimentos sociais, feministas e políticos na luta pela qualificação da vida, afirmação dos direitos democráticos na cidadania e produção de existências saudáveis e alegres, afastadas de toda e qualquer violência que possa ser prevenida por valores que afirmam e protegem a vida. Estas reflexões, aliadas à Campanha “Mulheres donas da própria vida: viver sem violência, direito das mulheres do campo e da floresta” pretende contribuir para fortalecer a energia e a força de vida biodiversa e sustentável que contêm o campo e a floresta. Levantar a voz, com todas as vidas-mulheres, como atiça Cora Coralina: TODAS AS VIDAS Cora Coralina Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo. Benze quebranto. Bota feitiço... Ogum. Orixá. Macumba, terreiro. Ogã, pai-de-santo... Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho, Seu cheiro gostoso d’água e sabão. Rodilha de pano. Trouxa de roupa, pedra de anil. Sua coroa verde de São-Caetano. Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito. Panela de barro. Taipa de lenha. Cozinha antiga toda pretinha. Bem cacheada de picumã. Pedra pontuda. Cumbuco de coco. Pisando alho-sal. Vive dentro de mim a mulher do povo. Bem proletária. Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa, de chinelinha, e filharada. Vive dentro de mim a mulher roceira. – Enxerto da terra, meio casmurra. Trabalhadeira. Madrugadeira. Analfabeta. De pé no chão. Bem parideira. Bem criadeira. Seus doze filhos. Seus vinte netos. Vive dentro de mim a mulher da vida. Minha irmãzinha... tão desprezada, tão murmurada... Fingindo alegre seu triste fado. Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida a vida mera das obscuras. Um cotidiano marcado pela violência na situação de vida das mulheres do campo e da floresta no Brasil As mulheres do campo e da floresta, junto com as mulheres trabalhadoras, as indígenas e as negras, sabem ou sentem, no seu cotidiano de vida, o significado da exclusão de direitos sociais, civis e políticos, a ausência de políticas públicas com enfoque de gênero, a falta de acesso aos bens e serviços essenciais e a dificuldade de acesso aos postos e lugares de poder. Também as análises históricas e as produções teóricas do feminismo atestam e exemplificam a realidade das mulheres na vida social. Um processo histórico, econômico e sociocultural de lutas registra o massacre dos povos do campo e da floresta para permanecerem vivendo em territórios cuja propriedade, mais que individual deveria ser da cidadania nacional, uma vez que relacionados com as necessidades básicas da sobrevida humana e com a manutenção dos ambientes naturais para a sobrevida da biodiversidade que dá sustentabilidade ao futuro da espécie. Intensas disputas marcam a luta pela terra no Brasil, as mulheres sempre estiveram à frente destes processos de luta e resistência e sobre elas condições específicas de existência marcam otrabalho, a maternidade, a sexualidade, o uso da liderança, o exercício da segurança e a produção de imagens femininas. Quanto ao campo e a floresta, em meio aos silenciamentos, permanece a imagem de mulheres e homens que foram assassinados justamente pela defesa do direito de viver coletivo. É o caso de Chico Mendes, Margarida Alves e Roseli Nunes, entre outros. As marcas da violência no campo e na floresta brasileiros evidenciam as contradições de um projeto de sociedade com hegemonia capitalista liberal, em uma democracia jovem e uma cidadania de ascensão recente. A presença vigorosa das mulheres, entretanto, não difere da vivência da opressão por violência, como experimentada pelas mulheres na história nacional e mundial. A submissão ou o contato com a violência, para a as mulheres do campo e da floresta, demarca uma face ainda mais opressiva de suas vidas. Para analisar o fenômeno da violência contra as mulheres do campo e da floresta, tema pouco pesquisado e com uma realidade silenciada, faz-se necessário reconhecer que a igualdade de direitos vem sendo historicamente negada às mulheres, constituindo-se em fator de discriminação, evidenciado relações desiguais de poder na família e no trabalho e encetando modos de inserção social preconceituosos e desfavorecidos. No que se refere à agricultura no Brasil, desde o período colonial, assistimos à apropriação da terra por grupos minoritários, em detrimento do acesso à terra para quem nela trabalha, produz e vive, mas o Brasil passou do desenvolvimento agro-exportador do período colonial ao modelo urbano-industrial e, desde a década de 1930 em diante, o País se transformou de rural em urbano. Com isto, os problemas econômicos e sociais próprios do processo de urbanização e industrialização se fizeram presentes, agregando as migrações do campo para a cidade em busca de trabalho e renda e uma sobrevida miserável no campo ou na floresta. Na floresta, território de populações não afeitas à urbanização, a expulsão se deu pela invasão extrativista predatória da ecologia. A ocupação da terra ou a preservação das áreas de floresta, no Brasil, seguiu o modelo de acumulação do capital e evasão de divisas para a economia internacional. Aos povos do campo e da floresta não se assegurou o direito de posse e ocupação sustentável da terra, originando tanto a expulsão dos camponeses e trabalhadores rurais, quanto o aniquilamento de comunidades quilombolas e indígenas pela exploração de terras e matérias primas ou, ainda, imposição de rotas de tráfico internacional de drogas. Todos aqueles que pudessem ameaçar o avanço do capital no campo ou na floresta seriam dominados ou poderiam ser eliminados, seja pela expulsão ou mesmo pelo massacre e assassinato. O agronegócio se impôs, fortalecendo o latifúndio, as empresas transnacionais, o uso de tecnologias químicas, a mecanização e a produção de monoculturas para a exportação, em detrimento da produção de alimentos. Este modelo ameaça os pequenos agricultores, camponeses e os povos que vivem na floresta, sobrecarregando as mulheres que têm atribuições dentro e ao redor da casa, pois têm de suprir a família de cuidados e alimentação, enquanto grande parte dos homens buscam renda fora do domicílio, subempregos e biscates. Crescem a pobreza, as desigualdades e as péssimas condições de vida. As mulheres saem para o trabalho fora do domicílio, mantendo as ocupações do domicílio, iniciam em trabalhos que antes eram dos homens em busca de renda e sobrevivência, abalando “pré-conceitos” no interior das relações de família e afeto. Surgem o trabalho não reconhecido e/ou não remunerado, cresce a comercialização do corpo e desponta a humilhação das mulheres e das crianças, como subproduto da economia, das políticas de subjetivação, dos preconceitos de gênero e da dominação masculina. Nossa intenção não é a de fazer uma análise minimamente aprofundada sobre os processos de desenvolvimento no capitalismo, especialmente no campo e na floresta, apenas apontar o contexto violento vivido nesses ambientes, contexto em a presença da violência perpassa a história brasileira, um dos poucos países do mundo desenvolvido em que ainda não se realizou a Reforma Agrária. É pertinente salientar que, apesar da força hegemônica do capital transnacional e suas agências econômicas, políticas e sociais, o povo brasileiro e governos democrático-populares vêm, também historicamente, reagindo, por meio de organizações, lutas e movimentos sociais e populares, inclusive pela defesa da soberania nacional. No âmbito do Brasil, segundo Melo (2002, p. 10)1, o mercado de trabalho brasileiro, para o qüinqüênio de 1993 a 1998, apresentou um claro corte de gênero. Observou-se uma taxa de participação do dobro de mulheres, em relação aos homens, no trabalho sem remuneração. Um índice que chega, segundo a autora, a ser escandaloso quando se observa o caso das mulheres rurais, onde 81% das mulheres trabalham sem remuneração. Esses dados, de um lado, desnudam a questão da invisibilidade do trabalho feminino e, de outro, explicam a maior pobreza das famílias rurais. As mulheres trabalhadoras rurais enfrentam as dificuldades do conjunto dos trabalhadores rurais e acabam sentindo na pele as marcas da sobrecarga do trabalho de sol a sol na roça, além do cuidado com a casa, a comida, as roupas, os animais da economia doméstica, o pomar e a horta, entre outras tarefas cotidianas. Embora as mulheres tenham assumido o trabalhado na roça ao lado ou em pé de igualdade com os homens, o reconhecimento constitucional da ocupação de trabalhadora rural só foi conquistado em 1988, com muita luta das mulheres. Ainda assim, sem ter havido mudança na administração dos bens produzidos coletivamente. A condição da mulher da roça foi expressada pela letra de uma música escrita por um 1 Hildete Pereira de Melo é professora da Faculdade de Economia, da Universidade Federal Fluminense. compositor gaúcho em 1989, onde as mulheres haviam conquistado o reconhecimento de trabalhadoras rurais, mas ainda não tinham assegurado seus direitos previdenciários. Antônio Gringo (1989) compôs “Mulher da roça”, música que passou a ser usada como forma de divulgação para a sociedade da problemática vivida pelas mulheres do campo: Ela desperta antes de clarear o dia. Acende o fogo, tira o leite pro café. Atende os filhos, ajuda a tratar os bichos. Tudo ela faz com amor e muita fé. Vai pra roça, ao meio dia faz o almoço. Lava os pratos enquanto o pessoal sesteia. Limpa a cozinha, amassa o pão, estende a roupa. A sua vida de serviço é sempre cheia. Mulher da roça a tua fé e coragem é o que dá força pro roceiro lavrador. Tu és exemplo de luta e trabalho, e tão poucos reconhecem teu valor. Volta pra roça e só vem de noitezinha. É pasto, é vaca, são os filhos, o jantar. Outra vez as panelas, a cozinha. É alta noite já é hora de deitar. Passam dias, passam meses, passam anos. A vida inteira é sempre a mesma rotina. As tuas férias são na roça e nas panelas. Essa mulher não nasceu com essa sina. Mulher da roça, quero através do meu canto, gritar por ti, lutar contigo também. Deixa as panelas e briga por teus espaços. Por mais justiça e os direitos que tens. Atendimento e assistência hospitalar sabemos bem, nunca te foi concedido. Mulher da roça só pode se aposentar no dia em que morrer o seu marido. Uma realidade de sobrecarga de trabalho, opressão, discriminação e violência, tomadas as especificidades locorregionais, atinge milhões de mulheres que vivem nos campos e florestas do Brasil, mais precisamente 15.152.189 mulheres2. Esse número traduz-se em pessoas concretas, com aparência física, constituição psíquica, vivências afetivas, condições específicas de trabalho e renda, escolarização, situação conjugal eafetiva e distribuição no território vivo do Brasil, com suas características particulares, que reescrevem as condições individuais e sociais destes povos. Segundo Lorenzoni (2007, p. 83), aproximadamente 90% das mulheres camponesas começam a trabalhar ainda crianças, algumas na adolescência, sem carteira 2 Considerando os dados do IBGE – Censo Demográfico 2000, a população estimada para 2007, era de 169.799.170 habitantes em geral no Brasil, destes 86.223.155 são mulheres e 83.576.170 são homens. Deste total geral de habitantes, a população urbana é de 137.953.959 habitantes, sendo que 71.070.966 são mulheres e 66.882.993 são homens. Já a população rural é de 31.845.211 habitantes, sendo 16.693.022 são homens e 15.152.189 são mulheres que vivem no campo e na floresta. assinada, sem benefícios sociais e sem assistência previdenciária. A mulher do campo e da floresta, de modo geral, vive no anonimato e na invisibilidade. É muito pouco lembrada ou citada em todos os contextos e dimensões de nossa sociedade. Quando ela aparece, normalmente é de modo inclusivo nos totais gerais da população feminina, nas somas das pesquisas ou em outras situações, mas suas especificidades geralmente não aparecem nestas situações. A cultura masculino-patriarcal, historicamente construída, impõe determinados papéis para as mulheres e outros papéis para os homens e, assim, justifica-se, ainda, a divisão sexual e intelectual do trabalho. As mulheres passam a ocupar funções na área de serviços e de representação, cujos espaços de decisão ainda prevalecem como lógica prioritária dos homens e/ou do poder patriarcal e de dominação. Certamente, esse é um processo que exige, de um lado, a atuação das mulheres, mas, de outro, mecanismos de democratização e incentivo de sua presença nas entidades rurais e instâncias de participação político-social de debate do campo. O mesmo no caso da floresta. Por conseqüência do anonimato e da invisibilidade do trabalho doméstico e da divisão sexual e intelectual do trabalho, essa também é a realidade concreta quando se trata da questão da violência. Além disto, quando as mulheres aparecem na mídia, em geral é por conseqüência de suas próprias organizações e de suas lutas, que acabam chamando a atenção pública, então a sua presença na luta e organização para derrubar a violência às mulheres qualificará o desenvolvimento de políticas públicas nessa direção e o seu protagonismo na sua própria vida. Múltiplas formas de violência contra as mulheres do campo e da floresta Estatísticas internacionais indicam que uma em cada três mulheres é ou já foi agredida pelo parceiro. No Brasil, estudos baseados nos boletins de ocorrência emitidos pelas delegacias de polícia apontam que cerca de 25% da população feminina é vítima de violência. Segundo documentos da Organização das Nações Unidas (ONU), a violência contra as mulheres está fortemente enraizada por todo o planeta, a discriminação atinge as mulheres do berço ao túmulo. Além de sofrer violência física, as mulheres são discriminadas no acesso à saúde, à educação, ao mercado de trabalho e ao título de posse da terra. Segundo a ONU, as mulheres, em 2005, representavam 70% da população em estado de miséria. No Relatório de Desenvolvimento Humano, de 2008 (CONEXÃO PROFESSOR, 2009), a análise da desigualdade entre os sexos no mercado de trabalho estava particularmente relacionada com a pobreza. Segundo o editorial do site Conexão Professor, um estudo do Centro Internacional para o Crescimento Inclusivo (agência de educação e pesquisa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), demonstra que, se salários de homens e mulheres fossem similares, a proporção de pobres no Brasil poderia cair 20%. O citado estudo mostraria que, no Brasil, que tem um Índice de Desenvolvimento Humano de 0,498 e ocupa a 81ª colocação no ranking de 108 países, o rendimento feminino é, em média, 56% menor que o masculino. Este dado se verifica mesmo em face de as brasileiras apresentarem uma esperança de vida maior ao nascer (75,8 anos, contra 68,4 dos homens), uma taxa de alfabetização maior (89,9% das mulheres com mais de 15 anos estavam alfabetizadas em 2006, contra 89,4% dos homens) e uma mais elevada freqüência à escola (89,4% das mulheres contra 85,1% dos homens). Outro fator de discriminação sobre as mulheres pode ser detectado no âmbito da cultura popular, com a irrupção letras de música que discriminam e depreciam a mulher, colocando-a em uma condição inferior e subordinada ao homem, veiculando a idéia de que apanhar é parte da sexualidade erótica, como nas músicas Um tapinha não dói (“um tapinha eu vou te dar porque: dói, só um tapinha não dói...”), Ajoelha e chora (“quanto mais eu passo o laço, muito mais ela me adora...”) ou Lapada na rachada (“vai, dá tapinha na bundinha, vai que eu sou sua cachorrinha, vai, que eu tô muito assanhada”). Os comerciais de televisão utilizam imagens de mulher em comportamentos de posição inferior, onde seu corpo é objeto. Além disso, a educação ainda é sexista, ou seja, educa as mulheres para o cumprimento de papéis socialmente determinados, reforçando comportamentos discriminatórios. Considerando as pesquisas realizadas sobre a violência contra as mulheres do campo e da floresta, apesar de estas serem poucas, temos acesso a elementos muito significativos e elucidativos de uma dura realidade, por vezes cruel, e amplamente silenciada. A violência a que as mulheres do campo e da floresta estão submetidas envolve do cárcere privado à desconsideração do direito de posse de objetos e documentos, passando pela agressão física, abuso sexual, constrangimento e humilhações. Neste processo, a exploração pelo trabalho doméstico, na roça ou na extração florestal, a dominação social e a opressão de gênero são pilares que sustentam a análise do fenômeno da violência contra as mulheres. O respeito à vida, aos direitos humanos e à cidadania, especialmente para as mulheres camponesas ainda está longe de ser efetivado. Ao contrário, observa-se uma acentuação da lógica mais perversa de imposição da opressão, exploração, discriminação, dominação e violência sobre as mulheres brasileiras quanto mais nos aproximamos da vida no campo ou na floresta. A dureza cotidiana vivida pelos camponeses, homens e mulheres, no processo produtivo agrícola a que são submetidos no contexto histórico e econômico-estrutural, como apresentado anteriormente, e pelas mulheres, em especial que, além de vivenciarem o mesmo processo dos homens, têm acrescidos os impactos da reprodução humana, da manutenção da casa, do subemprego e dos preconceitos culturais, coloca o sofrimento na vida privada e vida social como experiência sem estranhamento. O espaço familiar, visto como aquele em que as pessoas buscam a segurança, o afeto, o carinho, entretanto, tem sido, para muitas mulheres, recanto da violência física e psicológica. À violência doméstica se agrega a sobrecarga de trabalho e de responsabilidades não valorizadas pela sociedade, bem como duras formas de preconceito, discriminação e tabus que cercam o cotidiano da mulher que vive e mora na roça. Depoimentos, cartas, histórias contadas pelas mulheres nos encontros, nos grupos de mulheres ou em grupos focais, demonstram medo, ansiedade, angústia, sentimento de culpa e impotência diante da realidade. Se a condição de vida das mulheres do campo está associada à situação de vida no meio rural desde a época colonial, a outra face da cultura patriarcal e machista que tem caracterizado as relações sociais de gênero predominantes na sociedade brasileira têm a ver com a violência conjugal, mantida escondida para não revelar as facetas cruéis dos ambientes domésticos. Segundo pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo,em 2001 (VENTURINI; RECAMÁN & OLIVEIRA, 2004, p. 24), “cerca de uma em cada cinco brasileiras declara ter sofrido algum tipo de violência”. Não existem dados específicos quanto às denúncias e boletins de violência à mulher do campo e da floresta. Não há dados desagregados em relação à violência, as informações encontram-se dispersas e não existem procedimentos homogêneos de coleta de dados, nem de validação dos mesmos entre as instituições. A única base com alguma especificidade é aquela que vem se constituindo a partir da criação da Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180, criada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, em 25 de novembro de 2005. Ao analisarmos os dados apontados pelas pesquisas realizadas, eles revelam que as mulheres em geral e as do campo e da floresta vivenciam as múltiplas faces da violência. Para melhor contextualizar as múltiplas faces de violência que marcam o cotidiano das mulheres do campo e da floresta, apresentamos de maneira separada, embora aconteçam de maneira entrelaçada, as várias formas de agressão e violência às mulheres que vivem nesses territórios distantes do acesso aos bens sociais e culturais da cidade e peculiares ao campo e à floresta. A base de dados corresponde aos números coligidos pela Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. A violência de gênero A violência reproduzida pelas desigualdades de gênero perpetradas nas diferentes organizações privadas e aparelhos estatais, como também nos diferentes grupos que constituem a sociedade e que, assim, formalizam e institucionalizam a violência de gênero contra as mulheres é parte do cotidiano das mulheres. A violência de gênero tem suas bases na existência de relações desiguais de poder entre homens e mulheres, incidindo, portanto contra as mulheres e às feminilidades. A violência de gênero está no cotidiano das mulheres do campo e da floresta, que sofrem a violência exercida pelos homens, particularmente no âmbito doméstico em suas formas mais agressivas e no ambiente de trabalho em suas formas discriminatórias de acesso ao poder e à renda. Todo ato que resulte em dano ou sofrimento moral, físico, sexual, político, psicológico, econômico ou perda patrimonial para a mulher é violência de gênero. Essa condição da violência não tem fronteira de classes, religião, idade ou ambiente, ocorre a qualquer tempo e em qualquer local, no trabalho, nas ruas ou em casa. É o resultado de um sistema que oprime, explora e discrimina o feminino. Uma das situações mais comuns é a violência exercida pelo companheiro em estado alcoolizado ou sob efeito de drogas ou entorpecentes. A maioria dos agressores e mesmo das mulheres afirma que a agressão se deu como um efeito da droga, o que não deixa de ser verdade. No entanto, acaba se escondendo o fato de a cultura machista e patriarcal predominante é que permite ou incentiva a agressão na medida em que sua expressão se dá pela violência contra a mulher e não contra um amigo, colega ou companheiro com quem compartilha o consumo do álcool ou outras drogas. Inúmeros profissionais de áreas estratégicas para o acolhimento e atendimento à mulher em situação de violência acabam, muitas vezes, culpabilizando a própria mulher pela forma como agem, em função da força hegemônica da discriminação de gênero naturalizada na sociedade. Faz-se primeira e profundamente necessário o reconhecimento deste tipo de violência e a sua identificação. Violência doméstica e familiar contra as mulheres do campo e da floresta: as agressões físicas, sexuais, morais, verbais, psicológicas e patrimoniais Na vida da mulher do campo e da floresta, a violência física está interligada e com índice maior de incidência no espaço familiar, dentro da casa ou unidade doméstica. Geralmente é praticada por um membro da família que vive com a mulher e está situada no âmbito das relações interpessoais, da intimidade afetiva. As agressões domésticas incluem abuso de poder, abusos físicos, sexuais e psicológicos, a negligência e o abandono. Ela é praticada dentro do lar ou no espaço simbólico representado pelo lar, fundamenta-se em relações interpessoais de desigualdades e de poder entre mulheres e homens ligados por vínculos consangüíneos, de afetividade, de afinidade ou de amizade. Esta face da violência é muito grave porque ela passa por várias fases, compondo um ciclo/espiral que pode se tornar vicioso, repetindo-se ao longo de meses ou anos (LORENZONI, 2005). A violência doméstica é a maior responsável pelos feminicídios. De acordo com a pesquisa “A Mulher brasileira nos espaços público e privado”, realizada pela Fundação Perseu Abramo (VENTURI; RECAMAN & OLIVEIRA, 2001), há estimativa de que cerca de 6,8 milhões de mulheres brasileiras já foram espancadas ao menos uma vez. Contrariando o senso comum, as pesquisas indicam que o lugar menos seguro para a mulher é a sua própria casa. Esta realidade também está contida na vida das camponesas. O risco de uma mulher ser agredida em casa, pelo marido, ex-marido, namorado ou atual companheiro, é nove vezes maior do que o de sofrer alguma violência na rua. E o pior, é que não adianta gritar, pois as distâncias entre os vizinhos em determinadas situações é de dezenas e até centenas de quilômetros. Para sair desta situação, elas ainda dependem do próprio agressor em função das distâncias. No caso da região amazônica e/ou regiões de mata pode-se levar dias ou semanas para o deslocamento do lugar onde se mora até um local de recurso. Os dados da Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180, com relação ao ano de 2008, identifica-se que 24.729 mulheres utilizaram a Central para denunciar situações de violência. Destas, 22.538 residem na área urbana, 1.167 residem na área rural e 1.024 não informaram se residem em área urbana ou rural. Relato de violência contra a mulher – 2008 Não informado 1.024 4,1% Zona Rural 1.167 4,7% Zona Urbana 22.538 91,1% Total 24.729 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. Tendo em vista que apenas 4,7% do total das mulheres que fizeram a denúncia pertenciam à zona rural, este dado sugere que podem existir dificuldade das mulheres do campo e da floresta terem condições de acesso para efetuar denúncias. Entretanto, apesar do percentual ser baixo, os dados que se seguem são reveladores da situação cruel em que estas mulheres se encontram. No caso da tipificação da violência doméstica e familiar, 93,7% das mulheres do campo e da floresta que as denunciaram, assim as afirmaram. Apenas 6,3% das violências denunciadas ocorreram fora da casa ou família. As mulheres convivem com a violência dentro de seus lares. Violência doméstica e familiar – 2008 Não 74 6,3% Sim 1.093 93,7% Total 1.167 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. Ao analisar os tipos de violência que as mulheres do campo e da floresta denunciaram ter sofrido em 2008, identifica-se a violência física com 64,1% , seguida da violência psicológica com 23,7%, violência moral com 5,8% , violência sexual 3,5%, violência patrimonial com 1,7% e cárcere privado com 1,2%. No entanto, quando vamos analisar os relatos das denúncias, o que ocorre é que todas as mulheres são vítimas dos vários tipos de violência ao mesmo tempo. Tipo de violência – 2008 Cárcere privado 14 1,2% Violência física 748 64,1% Violência moral 68 5,8% Violência patrimonial 20 1,7% Violência psicológica 276 23,7% Violência sexual 41 3,5% Total 1.167 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. Na verdade, segundo as mulheres do campo e da floresta que denunciaram em 2008, sofrem de vários tipos de violência ao mesmo tempo e das formas mais cruéis, conforme tabela abaixo: Tipo de crime – 2008 Ameaça 256 21,9% Assédiomoral (trabalho) 1 0,1% Assédio sexual (trabalho) 1 0,1% Atentado violento ao pudor 9 0,8% Calúnia 4 0,3% Cárcere privado 14 1,2% Difamação 51 4,4% Estupro 28 2,4% Exploração sexual 3 0,3% Injúria 13 1,1% Lesão corporal grave 61 5,2% Lesão corporal gravíssima 15 1,3% Lesão corporal leve 648 55,5% Negligência 2 0,2% Perseguições 19 1,6% Tentativa de homicídio 22 1,9% Violência patrimonial 20 1,7% Total 1.167 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. Esta realidade aparece em depoimentos anônimos, colhidos das cartas encaminhadas pelas mulheres do Movimento de Mulheres Camponesas à Ouvidoria da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM/PR) em 2008, tais como: “(...) está havendo muitos casos de tráfico de mulheres, ou seja, meninas também menores de idade que são transportadas para outras cidades e estados”. “Quando eu vivia acorrentada com cadeado, eu pensei em fugir só com a roupa do corpo e meus filhos, mas ele descobriu não sei como e falou que se eu fosse embora ele ia me procurar e me mataria eu e meus filhos iria amarrar e deixar pendurado numa árvore para todos ver”. A crueldade se revela aprofundada ao analisarmos os dados relativos ao risco de morte a que as mulheres do campo e da floresta estão expostas, que é de 42,9%, seguido pelo espancamento, presente em 26,8% das denúncias, explicitadas nos dados da Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180 de 2008. O mais sério é a constatação da freqüência. Este tipo cruel de violência é diária, semanal ou mensal, que somadas perfazem 86,7%, ou seja, a violência é parte do cotidiano de vida das mulheres que chegam à denúncia. Provavelmente, por isso, cheguem à denúncia, enquanto o comum das mulheres talvez não o faça. Vejamos a tabela: Freqüência com que sofre a violência – 2008 Diariamente 754 64,6% Mensalmente 56 4,8% Não informado 23 2,0% Raramente 63 5,4% Semanalmente 202 17,3% Uma vez 69 5,9% Total 1.167 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. Da mesma forma que as mulheres urbanas, as do campo e da floresta, que se encontram em situação de violência, têm como agressores pessoas de seu convívio diário, com forte vínculo afetivo e familiar, ou seja, 72,7% dos agressores são o próprio cônjuge, a pessoa com a qual a mulher, em tese, tem fortes sentimentos de amor e afeto e aceitou, se não escolheu, para construir uma vida compartilhada. Entretanto, chama a atenção o índice de 12,4% dos agressores estarem na categoria “outros”. Assim, na busca ativa das denúncias aparecem nesta categoria: companheiro, que mora junto, ex- marido, ex-namorado, ex-companheiro e colega de trabalho, entre tantas designações que indicam afinidade e vínculo afetivo e de convivência de vários anos. Em um depoimento anônimo de mulher camponesa, do Estado de Rondônia (2008), colhemos: A minha vida não é vida! Sou separada, mas meu ex-esposo não me dá espaço, não me deixa me divertir. Mesmo estando separada dele, ele acha que sou dele, que ele é meu dono. Já fui espancada, ele me diz várias coisas feias, mas nunca o denunciei, pois tenho filhos com ele e ele já me ameaçou com tiro na cara e disse, também, que se me pegar conversando com alguém, ele matará nós dois. Eu já fui violentada sexualmente quando tinha apenas 10 anos por um senhor de idade, gostaria de pedir ajuda às autoridades, pois com esses maus tratos até hoje estou traumatizada. Relação com o agressor – 2008 Amigo 43 3,7% Companheira 45 3,9% Cônjuge 848 72,7% Desconhecido 9 0,8% Filho 16 1,4% Irmão 17 1,5% Namorada 1 0,1% Namorado 17 1,5% Não informado 1 0,1% Outros 145 12,4% Pai 7 0,6% Vizinho 18 1,5% Total 1167 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. Sobre o estado civil, cabe salientar que, ao declará-lo, a maioria das mulheres afirmou ter união estável (43%) ou ser casada (26,9%), o que traduz uma situação de violência presente na cultura do casamento, conforme vemos abaixo. Estado Civil – 2008 Casado 314 26,9% Divorciado 17 1,5% Não informado 133 11,4% Outros 6 0,5% Separado 41 3,5% Solteiro 150 12,9% União estável 502 43,0% Viúva 4 0,3% Total 1167 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. Segundo a percepção de mulheres do campo e da floresta, em pesquisa realizada por Nádia Rebouças3 (2008), “a violência doméstica e familiar praticada pelo marido ou companheiro é mais escondida, pois revela toda a intimidade da família e é a face mais emblemática da violência contra a mulher, pois mostra toda a fragilidade feminina frente à cultura e aos valores machistas da sociedade”. A onipotência alimenta o ciclo de violência e fragiliza a mulher, conforme constatou sobre a percepção das mulheres, a pesquisa feita por Rebouças, empresa de consultoria em comunicação: (...) uma mulher que é agredida, sair do privado é difícil. Ela mantém relações afetivas, ela compartilhou segredos. Ela não compartilha com uma pessoa estranha. Mostrar uma fragilidade é difícil, é terrível. O homem vai fazer de tudo para que isso não aconteça, vai mantê-la sob ameaça. Expressões como “minha filha, se está ruim com ele, pior sem ele”, alimentam a submissão da mulher diante da violência e são comuns. A mulher fica totalmente fragilizada, conta Rebouças (2008), apresentando depoimentos, como: Eu conheço uma história que os dois moravam no trabalho. Um dia ela encontrou o marido dela com outra pessoa que era trabalhadora também. O que mais chocou era o beijo que ele dava nela, o que ele dizia para a outra. Há quantos anos ele não dizia a mesma coisa ou dava um beijo nela. Os filhos ficaram todos contra ela. Essa é a violência que elas sofrem. Esse lado do carinho, do companheirismo não tem. Isso que as mulheres mais sofrem. 3 Agência de Publicidade que realizou a pesquisa de percepção sobre a violência contra as mulheres do campo e da floresta para o planejamento de comunicação da campanha “Mulheres donas da própria vida: viver sem violência, direito das mulheres do campo e da floresta”, uma das ações estratégicas do Fórum de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta lançada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República em setembro de 2008 no Rio de Janeiro. A maior parte das mulheres violentadas tem dependência financeira com o agressor, o que agrava a situação, pois acabam se submetendo em função, também, das dificuldades de sobrevivência dela e de seus filhos. Dependência financeira – 2008 Não 487 41,7% Não informado 40 3,4% Sim 640 54,8% Total 1.167 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. Outro elemento fundamental, é que a maioria das mulheres tem filhos e, na análise dos relatos de denúncia das violências, os filhos (crianças, adolescentes e jovens em sua maioria) acabam sendo vítimas da violência junto com as mulheres, convivendo, crescendo e sendo educados num ambiente de relações de violência, medo, impunidade e silêncio. Todos sabem e vivem a violência, mas ninguém fala sobre o assunto, pois fica “velado”, ocultado e silenciado. Outro aspecto a ser observado, tem a ver com a idade em que as mulheres começam a ser vitimadas pela violência: quando crianças, na juventude, na fase adulta ou na terceira idade. Nas mulheres que denunciaram, aparece a faixa etária entre os 20 e os 40 anos de idade como a idade em que mais sofrem violência. Faixa Etária – 2008 0 – 10 4 0,3% 10 A 20 88 7,5% 20 – 30 432 37,0% 30 – 40 336 28,8% 40 – 50 160 13,7% 50 – 60 57 4,9% 60 – 70 7 0,6% 70 – 80 3 0,3% Não Informado 80 6,9% Total 1.167 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180.O nível de escolaridade é outro aspecto para a observação, pois revela que a violência não escolhe, mas as mulheres do campo e da floresta têm menos condições de acesso à educação, como se pode ver. Escolaridade – 2008 Analfabeto 26 2,2% Ensino fundamental 169 14,5% Ensino fundamental incompleto 272 23,3% Ensino médio 172 14,7% Ensino médio incompleto 77 6,6% Ensino primário 101 8,7% Ensino primário incompleto 132 11,3% Ensino superior 31 2,7% Ensino superior incompleto 9 0,8% Não informado 178 15,3% Total 1167 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. As denúncias foram feitas pelas próprias vítimas em 90% dos casos presentes em todos os estados da federação, o que não significa que a realidade seja exatamente assim, pois o número de mulheres do campo e da floresta que denunciaram ainda é baixo, não sendo possível ter a dimensão real deste universo. Também porque como é a própria vítima a denunciante, o fator de acesso é relevante, assim como a coragem para denunciar da própria mulher que sofre a violência. Estes dados servem para perceber que a violência está em todos os estados. Unidade da Federação/Brasil AC 3 0,3% AL 31 2,7% AM 3 0,3% AP 2 0,2% BA 131 11,2% CE 35 3,0% DF 31 2,7% ES 20 1,7% GO 52 4,5% MA 24 2,1% MG 125 10,7% MS 11 0,9% MT 16 1,4% NI 72 6,2% PA 63 5,4% PB 21 1,8% PE 64 5,5% PI 3 0,3% PR 52 4,5% RJ 65 5,6% RN 24 2,1% RO 7 0,6% RR 2 0,2% RS 61 5,2% SC 11 0,9% SE 18 1,5% SP 205 17,6% TO 15 1,3% Total 1.167 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. A realidade de violência doméstica e familiar que se revela com os dados das denúncias feitas em 2008, na Central de Atendimento à Mulher, dá evidência de que este fenômeno existe, apesar de não se tratar deste assunto na sociedade em geral e nem nas políticas públicas. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres é que tem o atributo de acolher demandas das organizações de mulheres do campo e da floresta na perspectiva de formulação e implementação de políticas para o conjunto das mulheres brasileiras. É possível afirmar que essa forma de violência se constitui num verdadeiro foco de resistência às transformações sociais de gênero e um grave entrave ao desenvolvimento pessoal das mulheres. Além dos agravos para a saúde física e mental, a convivência cotidiana em uma relação violenta vai destruindo a capacidade produtiva da mulher, seu desenvolvimento (em termos de educação e trabalho), sua qualidade de vida e sua auto-estima. Esta realidade continua comprometendo também as futuras gerações, compondo um padrão de subjetivação não questionado/estranhado. No caso da pesquisa realizada por Lorenzoni (2005), todas as mulheres que responderam ao questionário e deram depoimentos, romperam o silêncio (algumas falando pela primeira vez) e contaram as situações desesperadoras porque passaram. Neste grupo pesquisado, a violência física foi perpetrada no corpo das mulheres por meio de empurrões (22%); socos (9,2%); tapas (15,5%) e surras (8,5%). Predominando a incidência de empurrões, tapas e socos, estes dados aparecem em 45 questionários individuais de 170 aplicados e revelaram que 27% das mulheres camponesas pesquisadas sofreram ou sofriam violência física. No caso da pesquisa feita pelo Movimento de Mulheres Camponesas do Estado de Santa Catarina (2002), com a pergunta “O que é violência para você?”, as mulheres responderam: agressão física (51,32%), agressão política (23,09%), agressão moral (21,70%) e agressão econômica (3,89%). Ao conceituarem cada uma das modalidades, elas assim explicaram: • agressão física: agressão relacionada ao uso de drogas, o estupro, os maus tratos, a agressão por espancamento, a mulher ser maltratada, ter uma vida “judiada” na roça; o marido bater na mulher, as brigas de casal ou um bater no outro, as brigas na família, a violência sexual, “judiar” das crianças, maus tratos aos idosos, estuprar e matar meninas e crianças, as brigas por causa de bebida, torturas, os pais que espancam filhos, a bebedeira e o consumo de drogas; • agressão política: a presença da morte e de doenças; o modelo de educação moralista; a discriminação; a violação dos direitos; a fome e o explorar demais as mulheres, pois as mulheres são totalmente discriminadas, trabalham em casa e trabalham fora, mas quando precisam de auxílio, não têm; marido alcoólatra; falta de atendimento à saúde; crianças na rua; morte de inocentes; não poder sair de casa para nada; desigualdade social; racismo; salário baixo; não ter condições de sobrevivência; trabalhar demais; o País que gera violência; crime; descasos do governo; falta de diálogo na família; policiais corruptos; • agressão moral: o desrespeito, o ato de agressão psicológica e tudo o que faz mal para as pessoas, o marido não dar valor, os palavrões, os mal entendidos, as calúnias, o abuso e humilhação, a rejeição e não ser valorizada como mulher, os preconceitos, ser obrigada a fazer algo que não queria e tudo o que prejudica física, moralmente ou tira a liberdade da mulher agricultora, a discriminação e o machismo, as dificuldades de uma filha de agricultora; • agressão econômica: o roubo e o assalto, a falta de condições de trabalho, a fome e os baixos salários, a desigualdade social. Em seguida, foi questionada qual a maior violência já enfrentada. Responderam agressão política 28% das mulheres, agressão moral 12% e agressão física 10%, não responderam 26,18% e responderam outras 23,82%. No cotidiano destas mulheres encontram-se casos de agressões físicas como ser espancada e maltratada pelo marido, violência sexual e casos de estupro. Essas situações mostram que as mulheres carregam sentimentos de culpa, elas dizem “não conseguir se manter com dignidade”. Enfrentam as conseqüências das drogas, do alcoolismo e do medo da violência do pai quando estava bêbado, bem como das brigas entre pai e mãe. Ainda revelam a sobrecarga de trabalho e que são muito “judiadas” na roça. Muitas mulheres revelaram que a maior violência que enfrentaram foi a agressão moral. Esta estava ligada aos mais diferentes casos como a profissão de trabalhadora rural, o lugar de trabalho, o preconceito por ser do interior ou por ser filha de agricultora. Algumas disseram que o modelo de educação reforça o sentimento de culpa. A mulher foi educada para ser responsável e manter a honra da família, por isso é obrigada a agüentar o casamento, é feio e vergonhoso engravidar antes de casar ou se separar. Encarar um relacionamento fora dos parâmetros tidos como normais exige coragem. Enfrentar as críticas e calúnias por ser separada ou mãe solteira exige uma decisão firme e muitas vezes a disposição de enfrentar sozinha, contrariando familiares. Há entre as mulheres, aquelas que, diante da carga de obrigações, se submetem, chegando até o ponto de agüentar situações desagradáveis e de violência como a traição, a infidelidade etc.. As mulheres também falaram sobre a violência relacionada à questão de gênero, como o desprezo por ser mulher, herança de uma cultura patriarcal e machista, onde a mulher é considerada inferior, seu trabalho tem pouco valor, até mesmo o trabalho da casa não é considerado. Lembraram que 31 milhões de mulheres no Brasil estão fora do “mercado de trabalho”, mas sempre trabalharam a vida toda: cozinhando, passando, lavando, limpando, cuidando de filhos, dos idosos, dos doentes etc.. Que a lei brasileira não reconhece este tipo de trabalho. Poderão ser, todos esses, motivos para ser permitida toda a sorte de humilhação, discriminação, desaforo e imposição de sofrimento. As mulheres agricultoras enfrentam cotidianamente agressões que podem ser articuladas como políticas relacionadas à estrutura social: os preços altosno mercado e, por outro lado, os preços baixos dos produtos que vendem, a desvalorização do campo, as dificuldades climáticas secas ou sob excesso de chuvas, a falta de dinheiro para investimento em melhora das condições da propriedade, falta de emprego e crise (“a mulher tem uma vida de só trabalhar, trabalhar”). Revelam o desencanto e o desânimo de trabalhar na roça, em outras palavras, pensam em uma vida melhor na cidade. É interessante observar que 26,18% não responderam esta questão e 23,02% deram outras respostas, derivando para outros assuntos. Quando se trata de falar sobre a maior violência que a mulher agricultora enfrenta, surge o alerta sobre o silêncio em certos tipos de violência. A violência social, relativa aos direitos de cidadania e decorrente das condições de trabalho é evidenciada. Há o silêncio ou não enfrentamento da questão sobre a violência vivida no ambiente doméstico, de casal e entre pares de luta e jornada. Entre as mulheres, 28% destacaram a violência política, 12% falaram sobre a agressão moral e 10% atribuíram como maior violência a agressão física. Por outro lado, 23,02% das mulheres contam que não enfrentam nenhuma violência e nunca a enfrentaram. A violência moral acontece quando a mulher é vítima de agressões verbais repetidas que acabam com a auto-estima. Sofre acusações, calúnia, injúria ou difamação da honra ou da reputação, como ser chamada de “prostituta” e de “vagabunda” ou acusada de “ter amante”, entre outras. No caso do Rio Grande do Sul, a pesquisa do Movimento de Mulheres Camponesas deste Estado procurou investigar a violência doméstica e familiar. A pesquisa foi realizada com 170 mulheres e detectou uma vigorosa presença das violências moral, psicológica e sexual no ambiente doméstico e familiar. A violência moral esteve presente para 45,8% das mulheres, que sofreram agressão verbal por meio de palavrões; 45,9% por deboche, 37,5% por acusações, 29,5% por calúnias, 13,5% foram chamadas de prostitutas, 29,5% foram chamadas de burras e 27,5% foram chamadas de vagabundas por seus companheiros. Na violência psicológica, danos e ameaças a pessoas queridas, impedimentos de contatos com a família e amigos e danos a animais de estimação. A mulher teria a sua auto-estima atingida por agressões verbais constantes. Essa violência seria mais sutil, mas não menos danosa, fragilizando a capacidade de reação da mulher frente às situações de violência. Esta caracterização se afirmou nas respostas, onde 19,5% sofreram ameaças de surra; 17,5% de serem mandadas embora; 16,5% de que o companheiro arrumaria outra mulher; 13,5% foram ameaçadas de morte; 32,7% foram proibidas de sair de casa ou sair só quando o marido deixasse; 13% foram proibidas de passear; 11% foram proibidas de ir a festas; 5,5% foram proibidas de ir a Igreja; 13% foram proibidas de ir às reuniões do Movimento (MMC/RS)4; 4,5% foram proibidas de viajar e 11,7% só poderiam usar as roupas que o marido gostasse. A violência aparece articulada com a repressão ao direito de ir e vir e à imposição de medo à autoridade do companheiro. A agressão psicológica se caracteriza pela ação ou omissão destinada a degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de outra pessoa, por meio de intimidação, manipulação, insultos, ameaça direta ou indireta, intimidação (por exemplo: de morte, de separação e de ficar sem ver os filhos); humilhação e ironia (chamada de estúpida, burra, louca, gorda, velha e feia); isolamento (impedida de sair de casa, de cultivar amizades etc.); ser criticada pelo desempenho sexual; ser comparada a outras mulheres, tanto no aspecto sexual como no da beleza, fazendo a mulher se sentir desprezível ou qualquer outra conduta que implique prejuízo à saúde psicológica, à autodeterminação ou ao desenvolvimento pessoal. Com relação à violência sexual, foi caracterizada a ação que obriga a mulher a 4 MMC/RS – Movimento de Mulheres Camponesas do Rio Grande do Sul. manter contatos sexuais que não quer ou a participar de relações sexuais com o uso da força ou da intimidação, coerção e chantagem, independentemente da sua vontade pessoal. Aqui, se colocam o caso em que as mulheres foram obrigadas a praticar atos sexuais que não desejavam com seu próprio marido. No que se refere às camponesas, o estupro pelo próprio marido aconteceu com 54,5% das mulheres pesquisadas, revelando que as mulheres não têm o direito de decidir sobre seu corpo e sobre o seu prazer. Consideraram como violência sexual o fato de serem obrigadas a realizar alguns atos com terceiros. Ainda se pode acrescentar o impedimento do uso de contraceptivos, quando o parceiro se nega a usar camisinha e proíbe a mulher de usar camisinha feminina. A vergonha ou o medo normalmente reduzem ao silêncio vítimas e familiares presentes ou cientes da violência. Neste sentido, percebe-se que ainda está no universo feminino, que o homem tem direitos sobre o corpo da mulher e a ela cabe cumprir o seu papel de esposa. Continua vigente o denominado “débito conjugal”, caracterizado pelo dever de manter relações sexuais com o cônjuge. Presas a esse conceito, as mulheres participam do sexo com o companheiro, mesmo que não estejam com desejo de manter relações sexuais (cf. SAFFIOTI, 1997)5. Outro elemento muito forte nos depoimentos das mulheres e relativo à sexualidade foi o constrangimento frente à prostituição, prática comum de grande parte dos homens do meio rural, especialmente em regiões de monocultivo. Não é valorizado o sofrimento das mulheres casadas com o sentimento de traição e nem é tratado como violência o papel da indústria do entretenimento sexual. Também está presente em diversas regiões do campo e da floresta o turismo sexual, a prostituição e o tráfico de mulheres (e o de jovens e crianças). O comportamento dos homens envolve a “dupla moral”, com uma fachada de família nuclear e uma família em segredo, com uma amante para o “lazer” sexual. A violência provocada pela indústria do entretenimento sexual, a pornografia, a prostituição, o comércio e tráfico de seres humanos, especialmente de mulheres e crianças e o turismo sexual geram bilhões de dólares por ano para alguns enriquecerem em detrimento dos direitos fundamentais de muitas 5 Consta, ainda, do Código Penal Brasileiro que a violência sexual pode ser caracterizada de forma física, psicológica ou como ameaça, compreendendo o estupro, a tentativa de estupro, a sedução, o atentado violento ao pudor e o ato obsceno. mulheres6. A tendência evidenciada nestes dados sobre a violência também é expressada na pesquisa realizada pela Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da CONTAG (Confederação Nacional de Trabalhadores da Agricultura Familiar) com 529 mulheres agricultoras sindicalizadas. Destas, 54,8% afirmaram ter sofrido violência nos espaços doméstico e familiar, sendo que destas 31,4% sofreram violência física, 44,2% violência psicológica, 30,8% violência moral, 16,4% violência sexual e 12,3% violência patrimonial. Os atos de violência em 63,8% dos casos foram cometidos pelo marido ou companheiro, com registros de violência cometida pelo pai, irmão, padrasto e namorado. Esta mesma pesquisa evidenciou que 27,4% já sofreram ameaças de morte, 81,6% declararam conhecer outras mulheres trabalhadoras rurais que sofrem violência doméstica e familiar. Considerando que as mulheres pesquisadas são sindicalizadas, o que torna mais alarmante é a declaração por parte de 18,9% das mulheres que atualmente vivem situações de violência doméstica e familiar e que as mulheres submetidas a relações familiares e sociais de poder e dominação são constrangidas a calar, 28,7% das mulheres pesquisadas declararam sofrerem caladas.Violência pela sobrecarga, exploração e não reconhecimento do trabalho As mulheres do campo e da floresta vivem, no seu cotidiano, a tripla jornada de trabalho, imposta pela lógica patriarcal e do desenvolvimento capitalista que determina alguns papéis para homens e outros para mulheres. Além de trabalhar na roça lado a lado com o companheiro, marido, pai ou irmão, as mulheres, cultivam os alimentos para 6 Para ter uma idéia: “As cifras dessas indústrias são colossais: estima-se que, em 2002, a prostituição gerou lucros de 60 bilhões de euros e a pornografia, 52 bilhões (Dusch, 2002, 109 e 101); a cifra dos negócios das agencias de turismo sexual operando pela Web é avaliada em 1 bilhão de euros por ano; os lucros do tráfico para fins de prostituição são avaliados entre 7,8 e 13,5 bilhões de euros por ano (Konrad, 2002). São dezenas de milhões os seres humanos, principalmente as mulheres e as crianças, submetidos à alienação do comércio de seu sexo”. (POULIN, Richard, 2005, “Quinze Teses sobre o Capitalismo e o Sistema Mundial de Prostituição” in SOF Sempreviva Organização Feminista. Desafios do Livre Mercado para o Feminismo. Nalu Faria (org): São Paulo: SOF, 2005, p. 40-41). o auto-sustento da família e não têm este trabalho reconhecido como trabalho produtivo. Assumem o conjunto dos afazeres domésticos e os cuidados com os animais, plantas e o cuidado com os filhos e das pessoas doentes, portadoras de deficiências e dos idosos. No estudo monográfico de Antunes (2009, p.26), sobre a invisibilidade do trabalho da mulher camponesa, verifica-se que das 06 horas às 24 horas as mulheres camponesas estão envolvidas em um cotidiano de trabalho entre o mundo da casa e da roça, com picos das 09 horas às 19 horas. Das pesquisadas, 37,5% vivem uma rotina de 19 horas de trabalho por dia, destacando-se a presença da tripla jornada de trabalho nesse cotidiano das mulheres camponesas, conforme mostra o gráfico abaixo. Fonte: ANTUNES, Adriana. A invisibilidade do trabalho e da geração de renda de mulheres camponesas do MMC-RS. 2009.p.26 Este conjunto de responsabilidades não é considerado como trabalho, o que faz com que a mulher seja explorada, não reconhecida pelo que produz e faz. Esta sobrecarga, aliada com a exploração e a invisibilidade do trabalho, faz com que a mulher seja violentada num dos seus direitos fundamentais: o trabalho e a dignidade. A mulher trabalhadora rural sofre maior impacto de discriminação que a mulher urbana. Além de trabalhar uma média de seis horas mais do que os homens, sua mão-de-obra é desconsiderada em termos econômicos e financeiros, uma vez que o trabalho de cultivo de horta, cuidado com os animais e aves domésticas para o consumo da família não são considerados produtivos. Quando elas trabalham na lavoura, a situação é um pouco pior, já que, geralmente, ganham menos do que os homens. Violência pela desvalorização, pobreza e condição social A mulher camponesa, historicamente, só consegue estudar enquanto a escola rural de sua comunidade ou perto de sua comunidade permite. Conforme dados do IBGE (censo de 2000), a população feminina no meio rural com 15 anos de idade ou mais, no Brasil, soma um total de 6,33%. Destas, 4,53% são alfabetizadas e 1,80% são analfabetas. A pesquisa realizada por Lorenzoni revela que 70% das mulheres rurais não têm o ensino fundamental completo, a maioria tem apenas até 3ª série, o que não corresponde sequer ao antigo ensino primário (4 primeiros anos do ensino fundamental). Com relação ao nível superior, das 170 mulheres participantes, apenas 4 concluíram o curso de graduação e 9 estavam cursando Pedagogia ou Administração e Desenvolvimento Rural. Ao lado do analfabetismo, vem a condição de pobreza. A mulher do campo e da floresta sofre a violência da humilhação pela sua condição social, até bem pouco tempo não reconhecida como ocupação profissional. Mesmo assim, muitas vezes lhes é negado o direito previdenciário sob o argumento de serem apenas domésticas e não trabalhadoras rurais. Por estas e outras razões, são consideradas ignorantes, muitas vezes chamadas de “grossas”, “burras”, “feias”, “relaxadas”, “mal ajeitadas” e outras designações, desrespeitadas no seu jeito de ser mulher, de falar e de trabalhar (LORENZONI, 2005). Em 1994, uma pesquisa do MMC/SC, revelou que 61,3% das mulheres agricultoras estudaram de 3 a 4 anos, 19,8% estudaram de 5 a 8 anos e 6,6% mais que 8 anos (MMC/SC, 2002). Outra forma de violência que as mulheres do campo e da floresta enfrentam é a dificuldade de acesso à documentação que, muitas vezes, acaba impedindo as mulheres de terem acesso aos direitos previdenciários pelo fato de não poderem comprovar por não ter documentos pessoais e profissionais. Esta necessidade fez com que a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR)7 realizasse a partir de 1989 a Campanha Nacional de Documentação da Mulher Trabalhadora Rural, que posteriormente foi assumida como Política Pública no governo democrático popular no Rio Grande do Sul (entre 2001 e 2002) e, no governo Lula, através do Programa de Documentação da Mulher Trabalhadora Rural, a fim de enfrentar e reverter esta realidade. No que concerne à saúde, a mulher do campo e da floresta sofre a violência da falta de atendimento adequado às suas necessidades, especialmente no que diz respeito ao atendimento aos direitos sexuais e reprodutivos. Nesse sentido, se coloca a violência como a ausência do Estado para prover esta assistência. A inadequada assistência ao parto é vista como uma forma de violência contra as mulheres. Os preconceitos presentes nos profissionais de saúde e na organização dos serviços de saúde contra as populações do campo e da floresta fazem com que sejam freqüentes as violações de direitos das mulheres. É necessário lembrar também que a forma de organização dos hospitais muitas vezes reforça a discriminação, não apenas contra as mulheres, mas também contra negros, migrantes e pobres. Historicamente, o meio rural tem ficado sem políticas específicas de atenção à saúde. Somado a isso, existe a falta de estradas, transporte e nesses casos são as mulheres que ficam nos hospitais ou longe dos recursos com os filhos ou familiares doentes. (LORENZONI, 2005). Quando precisam tratar a saúde, não encontram atendimento, lhes falta o acesso a medicamentos e não dispões de recurso financeiro para acessar atendimentos privados ou farmácias comerciais. Elas contam que “é muita exploração e indiferença com os 7 A Articulação de Mulheres Trabalhadoras Rurais envolvia as mulheres agricultoras dos Movimentos Autônomos que criaram o MMC – Movimento de Mulheres Camponesas, as Mulheres do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, as mulheres do MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores, entre outras. Atualmente as mulheres camponesas destes movimentos se articulam no espaço das Mulheres da Via Campesina. pobres, fazem isto porque temos pouco estudo” (MMC/SC, 2002). Além disto, nos depoimentos das mulheres do campo e da floresta ficou evidente o peso dos tabus relacionados ao corpo e a sexualidade que faz com que muitas destas mulheres tenham vergonha e/ou medo de procurar atendimento. Alguns relatos revelaram que o marido ou cônjuge/companheiro não permite que a mulher procure um atendimento ginecológico que, por medo, mesmo tendo a possibilidade do acesso não vai ou não lhe é permitido que vá. Num dos relatos feito por mulheres da região Norte do Brasil foi informado que as mulheres junto com as profissionais de saúde tiveram que esconder uma mulher para que seu marido não percebesse que ela estava em consulta com o ginecologista. No entanto, ao saber do fato, ele bateu tantonela que seu rosto e corpo ficaram cheios de hematomas e ela não quis mais buscar o atendimento à saúde. Violência produzida pelo modelo tecnológico utilizado no processo produtivo no meio rural As mulheres trabalhadoras rurais convivem com um processo permanente de desconstituição da cultura camponesa de subsistência que historiamente vem sendo responsável pela produção diversificada de alimentos, cuidado com a natureza e a sobrevivência da família, com o uso de tecnologias próprias da agricultura camponesa e familiar. Paralelo a isto, a produção de monocultura para exportação, que traz no centro de seu pacote fórmulas químicas de fertilizantes e agrotóxicos. Em todas as culturas produtivas, o agrotóxico é usado, acarretando conseqüências danosas ao ambiente natural e aos trabalhadores de sua manipulação e uso. Nestas situações, as mulheres ficam expostas a conseqüências que fogem de seu controle, inclusive a má formação do fetos em gestantes trabalhadoras rurais. Dados de uma pesquisa realizada na cidade de Passo Fundo, interior do Rio Grande do Sul, abrangendo os anos nos anos de 1983 a 1986, com 300 crianças nascidas com má formação genética, encontrou 120 mães com histórico de contato com agrotóxicos. A pesquisa decorreu da surpreendente taxa de nascimentos com má formação, 5 vezes maior que as expectativas estatísticas (cerca de 20 casos para cada mil nascimentos, quando a média nos Estados Unidos era de 2 a 4 por mil nascidos vivos). Destes, foram 33% com má formação neurológica, 30% com má formação gástrica e 37% com má formação óssea (TAGLIARI, 2000). Os casos de contaminação por agrotóxicos, segundo dados da OMS, 2005, os EUA tiveram 323.000/ano - graves doenças, ao passo que nos países em desenvolvimento é de 3 milhões de intoxicações agudas/ano e 220 mil mortes (OMS, 2005). No Brasil foram 300.000/ano intoxicações e 10.000 óbitos/ano (TAGLIARI, 2005). Violência no campo e os crimes na luta pela terra Das famílias que vivem no campo em péssimas condições de vida, concretamente as mulheres e as crianças são as que mais sofrem. A violência no campo acontece quando as famílias camponesas, mesmo com sua pequena propriedade, não conseguem produzir o suficiente para manter as despesas básicas da estrutura familiar. Isto se agrava ainda mais quando as famílias camponesas não têm terra, vivem de arrendamento ou de parcerias nas terras de outros. As mulheres são as que mais se agoniam, pois os filhos quando estão com fome é a elas que vão pedir comida. A falta de uma renda mínima, materiais para os filhos estudarem, frustrações de safra, ausência de uma política agrícola adequada, enfim, a decepção com a vida no campo (sem perspectiva de sobrevivência), se tornam sobrecarga cotidiana às mulheres. A realidade de violência no campo, enquanto luta pela terra e pela resistência na terra é enfrentada pelas famílias camponesas. Essa realidade é dura e engloba, desde o endividamento bancário, até o rebaixamento de preço nos seus produtos para a venda, que impede a recuperação econômica, além da falta de terra para produzir, falta de políticas públicas na agricultura que garantam a permanência no campo, com a produção de alimentos saudáveis, e crédito especial para as mulheres. Além disso, há a crueldade das elites agrárias na forma intolerante com que tratam a luta pela terra. São ameaças de morte, crimes, massacres e chacinas. No caderno “Conflitos no Campo Brasil, lançado na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em Brasília, em 2004, estão os dados sobre os conflitos pela terra, violências como o despejo e expulsões e os números da violência contra pessoas, como assassinatos, ameaças de morte e prisões. Também há o registro sobre o trabalho análogo à escravidão e conflitos pela água, dentre outras informações. Os dados de 2004 deixam claro que os conflitos e a violência se mantêm em patamares elevados. No ano de 2007, foram registrados 1.801 conflitos, o maior número destes 20 anos de pesquisa, envolvendo 1.083.232 pessoas (número somente inferior a 2003 e 1998). Em média, no Brasil, 1 a cada 29,4 habitantes de área rural esteve envolvido em conflitos rurais em 2004. A análise dos números revela, ainda, que os índices de conflitividade (número dos conflitos em relação ao número da população rural) são maiores onde se dá a expansão do agronegócio, notadamente nos estados da região Centro-Oeste e região Sul, inclusive com processos violentos de repressão e criminalização. Violência institucional e estrutural A violência institucional e estrutural é causada por desigualdades de gênero, étnicas raciais e econômicas, predominantes em diferentes sociedades. Essas desigualdades se formalizam e institucionalizam nas diferentes organizações privadas e aparelhos estatais, como também nos diferentes grupos que constituem essas sociedades. No caso da sociedade em que vivemos, a violência étnico-racial, a violência de classe e a violência de gênero viabilizam a concretização de um tripé. A violência não apenas existe, mas se torna parte da garantia de bem estar de alguns apesar do sofrimento de milhões. Não se trata, contudo, de uma situação sem saída, ainda por transgressões à lei ou aos processos de subjetivação. As mulheres são agentes relevantes à transgressão numa sociedade atravessada pelo patriarcado. A transgressão é feminina na medida em que visa à reversão do patriarcado, do machismo e do poder masculino de dominação. A tradição em uma democracia jovem e de cidadania incipiente é que quem elabora as leis não as destina para si próprios, mas para aqueles a que pretende dominar- explorar. A violência está formalmente instalada na estrutura do sistema social capitalista neoliberal vigente em nosso país. No que se refere à violência contra a mulher, além dessa estrutura institucionalizada, ela se alimenta, produz e reproduz na estrutura familiar; na educação, por meio da escola; na religião; no sistema penal, da forma como está; na simbologia que está na linguagem expressa de forma mais explicita nas músicas e piadas; nos meios de comunicação social e pela mídia que alimenta todas as outras formas de violência contra a mulher. Violência étnico-racial As mulheres negras e caboclas têm uma carga de trabalho superior a qualquer outro segmento da sociedade. Acumulam tarefas domésticas, responsabilidades com os filhos, cuidados com a saúde da família, trabalhos no roçado, além de impulsionarem atividades comunitárias, como mutirões de limpeza, promoção de festas, rezas etc.. O início da vida sexual é precoce, com o primeiro filho geralmente aos 16 anos, sendo alto o índice de mães solteiras. As famílias são numerosas e os partos feitos em casa, por parteiras leigas. O pré-natal é praticamente inexistente e a mortalidade perinatal, materna e infantil muito elevada. Um dos depoimentos que marcou fortemente foi de uma mulher negra que vive no meio rural que afirmou ter feito um procedimento cirúrgico sentindo muita dor, pois o profissional de saúde teria dito que não precisava a mesma dose de anestésico porque as mulheres negras sentiam menos dor. Vale destacar, também, que, pelos relatos das denúncias feitas em 2008, a maioria das mulheres vítimas de violência no campo e na floresta fazem parte da população negra, cor de pele identificada como preta (9,3%) ou parda (38,9%), seguida da população branca (31,2%), o que nos faz refletir também sobre a relação da violência de gênero aliada às questões étnico-raciais. Cor/Raça – 2008 Amarela 18 1,5% Branca 364 31,2% Indígena 9 0,8% Não informado 214 18,3% Preta 108 9,3% Parda 454 38,9% Total 1167 100,0% Fonte: Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180. A invisibilidade desta condição cotidiana que as mulheres do campo e da floresta vivenciamé o ponto de reflexão acerca das raízes desta situação de invisibilidade e de silêncio. Violência contra as mulheres do campo e da floresta como fenômeno a ser desvelado Num contexto social marcado pela presença de variadas formas de violência no cotidiano, cabe tratar a violência contra as mulheres do campo e da floresta como um fenômeno a ser interpretado em sua singularidade. De fato, estamos, como sociedade, nos voltando para a violência como grave problema social, mas a violência contra as mulheres do campo e da floresta não encontrou ainda espaço de visibilidade e não há conhecimento, ainda, sobre suas formas de expressão para sejam orientadas intervenções políticas e exploração de saberes. Este fenômeno ainda não tem reconhecimento e nem lugar no campo da pesquisa e produção de conhecimentos. Os estudos e pesquisas a este respeito se dão mais no campo focal ou específico, fundamentais para esta reflexão, mas ainda insuficientes para traçar um panorama de análise histórica e atual. Neste sentido, uma primeira constatação é sobre a invisibilidade social do fenômeno da violência contra as mulheres do campo e da floresta, o que não significa que este fenômeno não ocorra. Pelo contrário, as pesquisas que orientam a presente reflexão apontam dados reveladores desta realidade como silenciada. Não há, entretanto uma prática social desse conhecimento, bem como não há linguagem apropriada para nomeá-lo e informação consistente sobre peculiaridades, seus determinantes e seus condicionantes de situação e chances de reversão. Hoje recebi flores... (Autor/a desconhecido/a) Hoje recebi flores! Não é meu aniversário ou nenhum outro dia especial; Tivemos nossa primeira discussão ontem à noite. Ele me disse muitas coisas cruéis que me ofenderam de verdade. Mas sei que está arrependido e não as disse a sério, Porque ele me enviou flores hoje. Não é o nosso aniversário ou nenhum outro dia especial. Ontem ele atirou-me contra a parede e começou a asfixiar-me. Parecia um pesadelo, mas dos pesadelos acordamos E sabemos que não é real. Hoje acordei cheia de dores e com golpes em todos os lados. Mas eu sei que está arrependido porque ele me enviou flores hoje. E não é São Valentim ou nenhum outro dia especial. Ontem à noite me bateu e ameaçou me matar. Nem a maquiagem, ou as mangas compridas poderiam esconder os cortes e os golpes que me ocasionou desta vez. Não pude ir ao emprego hoje, porque não queria que me vissem Mas eu sei que está arrependido porque ele me enviou flores hoje. E não era dia das mães ou nenhum outro dia. Ontem a noite voltou a bater-me, mas desta vez foi muito pior. Se eu conseguir deixá-lo, o que vou fazer? Como poderia eu sozinha manter os meus filhos? O que acontecerá se faltar dinheiro? Tenho tanto medo dele! Mas dependo tanto dele que tenho medo de deixá-lo Mas eu sei que está arrependido porque ele me enviou flores hoje. Hoje é um dia muito especial: é o dia do meu funeral. Ontem finalmente conseguiu matar-me. Bateu-me até eu morrer. Se ao menos eu tivesse tido a coragem e a força para o deixar... Se tivesse pedido ajuda profissional... Hoje não teria recebido flores! O poema “Hoje Recebi Flores” traduz um pouco do drama cotidiano de um ciclo de violência marcado pela brutalidade, sutileza, medo, angústia, dor e dificuldades que cada mulher enfrenta na tentativa de rompê-lo. No entanto, muitas vezes é morta antes mesmo de enfrentar esta situação. Em alguns lugares, como é o caso da floresta, a situação é mais arriscada. Relato feito pela Secretaria da Mulher Extrativista do Conselho Nacional de Seringueiros (CNS), revela que a violência é cruel e que as formas de enfrentamento desta situação são muito difíceis, “... muito forte os assassinatos de mulheres, um dos casos houve reação de mulheres que lincharam o assassino e impediram o sepultamento do cadáver no cemitério da comunidade”. (CNS, 2008, p. 2). Para as mulheres chegarem a uma forma de reação destas, a realidade com a qual convivem deve ser de muita crueldade. Entretanto, a luta das mulheres vem conquistando alguns espaços e ferramentas, como é o caso da Lei Maria da Penha, instâncias públicas de ouvidoria e recebimento de denúncias, espaços de abrigo e proteção e estratégias de encaminhamento de casos. Para as mulheres do campo e da floresta ainda falta o lugar do acolhimento, a visibilidade do fenômeno com suas causas e conseqüências e a formulação e implementação de políticas públicas direcionadas a derrubada da violência às mulheres do campo e da floresta. Assim, espaços e práticas sociais em que mulheres do campo e da floresta em situação de violência possam expressar de algum modo o problema e buscar algum tipo de intervenção, têm sido próprios ao encaminhamento de alternativas. Entre essas, a organização das mulheres camponesas; trabalhadoras rurais, da mata e da floresta; quebradeiras de coco; quilombolas; indígenas e ribeirinhas em coletivos de luta feminina. Daí a importância de escutar o que estas organizações têm a dizer sobre a temática e o fenômeno. Cabe destacar que a criação da Central de Atendimento à Mulher/Ligue 180, pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República vem sendo um espaço de escuta e acolhida importante, cujos dados forma analisados na presente reflexão. A violência é um termo polissêmico e vem sendo utilizado de várias formas, trazendo em si uma abordagem ampla que vai desde as formas de tortura, até as formas mais sutis de violação dos direitos fundamentais do ser humano. Estudiosos do tema da violência, em geral contribuem às reflexões trazendo a dimensão da relação com o contexto social e estrutural, outros chamam a atenção para as formas mais sutis que perpassam a sociedade e as relações enraizadas em elementos histórico-culturais e há ainda a micropolítica das relações cotidianas onde o desejo e práticas do desejo se fazem presentes. A violência contra a mulher, enquanto categoria sociológica de análise, e sua derrubada, como bandeira de lutas, vem sendo apresentada pelos movimentos sociais feministas e/ou de mulheres e se refere às mais variadas formas de agressão física, sexual e psicológica cometida por parceiros íntimos, o estupro, o abuso sexual, o assédio moral e sexual no trabalho, a violência étnico-racial, a violência de gênero, a violência pela sobrecarga de trabalho, a desvalorização e o preconceito até a violência estrutural e institucional que autoriza abusos, martírios, assassinatos e massacres. Dentre as várias abordagens sobre o fenômeno da violência e da violência contra as mulheres, é fundamental considerar a visão que contribui para um olhar mais amplo do fenômeno. Daí a importância de considerar a visão de gênero a partir da abordagem feminista, cuja contribuição vai além da descrição de como as relações sociais se dão, mas, sobretudo, analisa o porquê dessas relações acontecerem de determinada maneira, em determinado lugar e questão de poder-saber e subjetivação. Adentrando na questão da violência contra a mulher do campo e da floresta, se colocam as questões de especificidade, como as do território da vida (o meio rural, o campo, a mata, a floresta e as águas) e a necessidade de uma abordagem de sociedade, gênero e violência. Apesar da quase inexistência de estudos, as pesquisas desenvolvidas sobre a temática8 da violência contra as mulheres do campo e da floresta em uma ótica de gênero, sob o viés do feminismo, permitem compreender a complexidade de sua produção e, portanto de seu manejo ou contorno de transmutação. A expressão 8 Existem pesquisas sobre a violência contra as mulheres, mas em relação especificamenteàs mulheres do campo e da floresta poucas pesquisas foram realizadas. “violência contra a mulher” se refere a qualquer ato de violência que tenha por base o gênero e que resulta ou pode resultar em dano ou sofrimento de natureza física, sexual ou psicológica. Conforme a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, em 1996, coerções ou privações arbitrárias da liberdade que se reproduzam na vida pública ou privada ocorrem sob a forma de violência. Ao buscar dados nacionais sobre a violência contra a mulher no Brasil, o Instituto Patrícia Galvão (2008) sistematizou as fontes hoje existentes até 2007: • Dados Estatísticos Sobre Violência Contra As Mulheres No Amapá (2006-2007); • Pesquisa Ibope/Instituto Patrícia Galvão (2006); • Co-ocorrência de violência física conjugal e contra filhos em serviços de saúde - IMS/Uerj (2006); • Perfil da violência de gênero perpetrada por companheiro – Unisinos (2005); • Perfil da violência sexual na Paraíba, levantamento dos crimes entre 1998 e 2005 – UFPB (2005); • A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? – Fiocruz (2004); • Representações sociais de profissionais de saúde sobre violência sexual contra a mulher: estudo em três maternidades públicas municipais do Rio de Janeiro – UFRJ/Fiocruz (2004); • Qualidade de vida e depressão em mulheres vítimas de seus parceiros – Faculdade de Medicina da UFCE; • Pesquisa nas delegacias de mulheres do Rio de Janeiro aponta que as mulheres agredidas apóiam a proibição da venda de armas de fogo; • Pesquisa sobre violência sexual – Unifesp; • Pesquisa sobre abuso sexual de mulheres por padres - Católicas pelo Direito de Decidir; • Pesquisa DataSenado sobre violência doméstica contra a mulher (2005); • Pesquisa Ibope/Instituto Patrícia Galvão (2004); • A mulher brasileira nos espaços público e privado – Fundação Perseu Abramo (2001); • Violência contra a mulher e saúde no Brasil – OMS / FMUSP / CFSS / SOS Corpo / FSPUSP / UFPE; • Violência doméstica e sexual entre usuárias dos serviços de saúde – Departamento de Medicina Preventiva, da Faculdade de Medicina da USP; • Vitimização 2002 – Ilanud e Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República; • Violências públicas e privadas -Nupevi/IMS/Uerj; • Homens, violência de gênero e saúde sexual reprodutiva – Noos / Promundo; • Dados sobre violência contra a mulher no Estado de São Paulo – Fundação Seade; • Serviço de atendimento a vítimas de violência no Hospital Pérola Byington – União de Mulheres de São Paulo; • Mapa da violência contra a mulher em São Paulo – OAB; • Mapeamento nacional de pesquisas sobre violências contra as mulheres – Nigs/Ufsc; • Violência física doméstica e gestação: resultados de um inquérito no puerpério – Imip (2001); • Mulheres cuidando de mulheres: um estudo sobre a Casa de Apoio Viva Maria, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil – Universidade Luterana do Brasil (1998); • Relações entre violência doméstica e agressividade na adolescência – Ufrgs (1998). Dentre os principais elementos revelados nessas fontes, é necessário apontar que são dados em relação à violência contra as mulheres, não tratando especificamente das mulheres do campo e da floresta. No entanto, vale destacar o que pensa a sociedade sobre a violência contra as mulheres, identificada através de pesquisa sobre violência contra a mulher, encomendada pelo Instituto Patrícia Galvão ao Ibope Opinião, com apoio da Fundação Ford e realizada em setembro de 2004. A pesquisa trabalhou com uma mostra representativa da população adulta brasileira, com a realização de 2.002 entrevistas pessoais em todos os estados brasileiros, capitais e regiões metropolitanas. Cidades menores foram selecionadas probabilisticamente, dentro da proporcionalidade por tamanho de município. A margem de erro máximo, para o total da amostra, foi de 2,2 pontos percentuais para mais ou para menos. O intervalo de confiança estimado foi de 95%. Dentre os principais resultados, “a violência contra a mulher é o problema que mais preocupa homens e mulheres”. A partir de uma lista de problemas, homens e mulheres reconhecem que a violência contra a mulher, tanto dentro como fora de casa, é o problema que mais preocupa. No caso, 30% apontam a violência contra a mulher dentro e fora de casa em primeiro lugar, na frente de uma série de outros problemas, como câncer de mama e de útero (17%) e a Aids (10%). Os indicadores de preocupação com a questão de violência não mostram diferenças entre os sexos, tampouco na maioria das variáveis estudadas. Isto é, trata-se de um problema amplamente difundido no conjunto da sociedade. Algumas diferenças são importantes: a preocupação com a violência doméstica (dentro de casa) é mais significativa nas regiões Norte e Centro- Oeste, chegando a 62% das respostas. Outro elemento importante é que 91% dos brasileiros consideram muito grave o fato de as mulheres serem agredidas por companheiros e maridos. As mulheres são mais enfáticas (94%), mas, ainda assim, 88% dos homens concordam com a alta gravidade do problema. A percepção da gravidade da violência contra a mulher se confirma quando 90% dos brasileiros acham que o agressor deveria sofrer um processo e ser encaminhado para uma reeducação. O contraste entre a quase unanimidade destas opiniões e a realidade concreta na vida das mulheres é gritante. São poucos os casos que chegam a processo e escassas as instituições que trabalham com a reeducação do agressor. A idéia de que a mulher deve agüentar agressões em nome da estabilidade familiar é claramente rejeitada pelos entrevistados (86%), assim como o chavão em relação ao agressor, “ele bate, mas ruim com ele, pior sem ele”, que é rejeitado por 80% dos entrevistados. Com relação ao chavão conformista “ele bate, mas ruim com ele, pior sem ele”, há diferenças significativas e culturalmente relevantes: as mulheres (83%) tendem a rejeitar mais do que os homens (76%); os mais jovens (83%) mais do que os mais velhos (68%). Em uma pergunta que pede um posicionamento mais próximo daquilo que o entrevistado pensa, 82% respondem que “não existe nenhuma situação que justifique a agressão do homem a sua mulher”. Em contrapartida, 16% (a maioria homens) conseguem imaginar situações em que há essa possibilidade. Observa-se que 19% dos homens admitem a agressão, assim como 13% das mulheres. Além disto, homens e mulheres fazem o mesmo diagnóstico: 81% dos entrevistados apontam o uso de bebidas como o fator que mais provoca violência contra a mulher; em segundo lugar, mencionado por 63% de entrevistados, vêm as situações de ciúmes em relação à companheira ou mulher. Menos importantes, mas citadas por três em cada dez entrevistados, vêm as questões econômicas: desemprego (37%) e problemas com dinheiro (31%). 13% citam a eventualidade de falta de comida em casa e 14% dificuldade no trabalho. É opinião geral, em todos os segmentos da amostra, que os que mais perdem nas situações de violência doméstica são os filhos do casal: assim pensam 63% dos entrevistados. 14% das mulheres dizem que elas perdem mais e 16% dos homens se reconhecem como os maiores perdedores. O que estes números sugerem é que todos perdem quando há violência na casa. Trata-se de um flagelo e uma epidemia que atinge a todos. Em outra pesquisa, esta realizada pela Fundação Perseu Abramo, durante o ano 2001, o Núcleo de Opinião Pública (NOP) estudou o universo feminino e formulou 125 perguntas, aproximadamente, para uma pesquisa nacional sobre mulheres com uma amostra de 2.502 entrevistas pessoais e domiciliares, estratificadas em cotas de idade e peso geográfico por natureza e porte do município, segundo dados da contagem populacional do IBGE/1996 e Censo IBGE/2000. O NOP perguntouàs mulheres de 15 anos de idade ou mais, residentes em 187 municípios de 24 estados das 5 macrorregiões brasileiras, entre os dias 06 e 11 de outubro de 2001, a respeito de temas como saúde, trabalho, sexualidade, violência, educação, trabalho doméstico, cultura política e lazer. Dentre os principais dados está que “uma em cada cinco brasileiras declara espontaneamente já ter sofrido algum tipo de violência por parte de um homem” e a conclusão de que “a cada 15 segundos uma mulher é espancada por um homem no Brasil”. Cerca de uma em cada cinco brasileiras (19%) declara espontaneamente ter sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem. Um terço das mulheres (33%) admite já ter sido vítima, em algum momento de sua vida, de alguma forma de violência física (24% de ameaças com armas ao cerceamento do direito de ir e vir, de 22% de agressões propriamente ditas e 13% de estupro conjugal ou abuso). 27% sofreram violências psíquicas e 11% afirmaram já ter sofrido assédio sexual. Um pouco mais da metade das mulheres brasileiras declara nunca ter sofrido qualquer tipo de violência por parte de algum homem (57%). Dentre as formas de violência mais comuns, apontadas na pesquisa abordada, destacam-se a agressão física mais branda, sob a forma de tapas e empurrões, sofrida por 20% das mulheres; a violência psíquica de xingamentos, com ofensa à conduta moral da mulher, vivida por 18%, e a ameaça através de coisas quebradas, roupas rasgadas, objetos atirados e outras formas indiretas de agressão, vivida por 15%. Além disto, 12% declaram ter sofrido a ameaça de espancamento a si próprias e aos filhos e também 12% já vivenciou a violência psíquica do desrespeito e desqualificação constantes ao seu trabalho, dentro ou fora de casa. Espancamento com cortes, marcas ou fraturas já ocorreu a 11% das mulheres, mesma taxa de ocorrência de relações sexuais forçadas (em sua maioria, o estupro conjugal, inexistente na legislação penal brasileira), de assédios sexuais (10% dos quais envolvendo abuso de poder), e críticas sistemáticas à atuação como mãe (18%, considerando-se apenas as mulheres que têm ou tiveram filhos). 9% das mulheres já ficaram trancadas em casa, impedidas de sair ou trabalhar; 8% já foram ameaçadas por armas de fogo e 6% sofreram abuso, forçadas a práticas sexuais que não lhes agradavam. A projeção da taxa de espancamento (11%) para o universo investigado (61,5 milhões) indica que pelo menos 6,8 milhões, dentre as brasileiras vivas, já foram espancadas ao menos uma vez. Considerando-se que entre as que admitiram ter sido espancadas, 31% declararam que a última vez em que isso ocorreu foi no período dos 12 meses anteriores, projeta- se cerca de, no mínimo, 2,1 milhões de mulheres espancadas por ano no país (ou em 2001, pois não se sabe se estariam aumentando ou diminuindo), 175 mil/mês, 5,8 mil/dia, 243/hora ou 4/minuto – uma a cada 15 segundos. Com relação à freqüência e duração entre as mulheres que já sofreram espancamento, 1/3 (32%) afirma que isso só aconteceu uma vez, enquanto outras 20% dizem ter ocorrido 2 ou 3 vezes. A declaração de espancamento por mais de 10 ou várias vezes é comum a 11% das mulheres que já passaram por isso, além de 15% que não determinam a quantidade, mas o tempo em que ficaram expostas a esse tipo de violência. Há mulheres que sofrem ou sofreram espancamentos por mais de 10 anos, ou mesmo durante toda a vida (4%, ambas). No que se refere a quem são os agressores, a responsabilidade do marido ou parceiro como principal agressor varia entre 53% (ameaça à integridade física com armas) e 70% (quebradeira) das ocorrências de violência em qualquer das modalidades investigadas, excetuando-se o assédio. Outros agressores comumente citados são o ex- marido, o ex-companheiro e o ex-namorado, que somados ao marido ou parceiro constituem sólida maioria em todos os casos. No que se relaciona ao pedido de ajuda, em quase todos os casos de violência, mais da metade das mulheres não pede ajuda. Somente em casos considerados mais graves como ameaças com armas de fogo e espancamento com marcas, cortes ou fraturas, pouco mais da metade das vítimas (55% e 53%, respectivamente) recorrem a alguém para ajudá-las. O pedido de ajuda perante ameaças de espancamento à própria mulher ou aos filhos; tapas e empurrões e xingamentos e agressões verbais ocorre em pouco menos da metade dos casos (46%, 44% e 43%, respectivamente). Cerca de pouco mais de um terço das mulheres pediram ajuda quando vítimas de impedimento de sair, sendo trancadas em casa; quebra-quebra em casa; assédio sexual e críticas sistemáticas à atuação como mãe. Nas demais situações de violência o pedido de ajuda é inferior a 30%. Em todos os casos de violência, o pedido de ajuda recai principalmente sobre outra mulher da família da vítima - mãe ou irmã, ou a alguma amiga próxima. No que tange à denúncia, os casos de denúncia pública são bem mais raros, ocorrendo principalmente diante de ameaça à integridade física por armas de fogo (31%), espancamento com marcas, fraturas ou cortes (21%) e ameaças de espancamento à própria mulher ou aos filhos (19%). Outro aspecto relevante apontado por esta pesquisa, diz respeito às causas e fatores. O ciúme desponta como a principal causa aparente da violência, assim como o alcoolismo ou estar alcoolizado no momento da agressão (mencionadas por 21%, ambas), razões que se destacam, em respostas espontâneas sobre o que acreditam ter causado a violência sofrida, superando em larga escala as demais menções. Como proposta de combate à violência contra a mulher, a pesquisa apontou a criação de abrigos para mulheres e seus filhos, vítimas de violência doméstica, é a que merece maior adesão (43% na primeira resposta, 74% na soma de 3 menções), dentre oito ações de políticas públicas sugeridas. Criação de Delegacias Especializadas no atendimento a mulheres vítimas de violência (21%) aparece como segunda principal medida de combate à violência contra a mulher, seguida por um serviço telefônico gratuito - SOS Mulher e um serviço de atendimento psicológico para as mulheres vítimas de violência (propostas empatadas tecnicamente com 13% e 12%, na ordem). Quando aceitas como respostas múltiplas, o ranking é semelhante, com taxas evidentemente mais altas (74%, 60%, 44% e 51%, respectivamente). No caso das mulheres do campo e da floresta, a análise das mais variadas formas de dano ou sofrimento, ou seja, de violência, vem apontando a necessidade de identificá-la na complexidade com que se apresenta no cotidiano das mulheres camponesas e/ou trabalhadoras rurais e agricultoras. As duas pesquisas realizadas com mulheres camponesas, uma desenvolvida pelo MMC/SC9, no ano de 2002, intitulada “Violência praticada contra a mulher agricultora de Santa Catarina”, sob coordenação de Zenaide Collet, Rosane Schiavini e Sirlei K. Gaspareto e 11 pesquisadoras do próprio movimento capacitadas para esta tarefa, realizada em 15 municípios do Estado de Santa Catarina, sendo que cada um corresponde a uma das regiões do Estado onde este movimento está organizado10. Foram aplicados 500 questionários, seguindo os critérios da faixa etária, etnia, participantes e não participantes do MMA/SC. A pesquisa foi aplicada em 15 municípios, dos quais, 11 existem organização MMA/SC, e em 4 municípios não há 9 Esta pesquisa originou da necessidade de atualização do diagnóstico desta realidade, pois em 1994 o MMC/SC juntamente com o DESER realizou uma pesquisa de amostragem em 11 municípios de diferentes regiões do estado. Entrevistou 782 mulheres agricultoras. A pesquisa realizada, foi sobre quatro eixos centrais: a mulher e a produção – reprodução – saúde - participação social. Entre os dados pesquisados verificou-se várias faces de violênciacometida. 61,3% das agricultoras freqüentaram até 4 anos a escola e 11,7% são semi-analfabetas; 18% das agricultoras não possuem carteira de identidade, 43,7% não possuem CPF e 9,1% não tem titulo de eleitora. 61,3% das agricultoras freqüentaram até 4 anos a escola e 11,7% são semi- analfabetas; 18% das agricultoras não possuem carteira de identidade, 43,7% não possuem CPF e 9,1% não tinham titulo de eleitora; 90,6% das mulheres agricultoras entrevistadas, declaram ter iniciado o trabalho agrícola antes dos 14 anos de idade e 84% responderam que trabalham na roça em atividades pesadas como: roçar, arar a terra, aplicar veneno, processar fumo, etc. Embora a visão que perpassa a sociedade, é de que a mulher agricultora não produz economicamente. Por outro lado, é reservado à mulher agricultora o cuidado da casa, dos filhos(as), do marido, da saúde, da horta, do cuidado as pessoas idosas ou doentes da família e as mesmas revelam que 71% dos maridos nunca ou raramente fazem algum trabalho doméstico. 10 Os municípios pesquisados foram: Tunápolis (Regional de Descanso), Anchieta (Regional de São Jose do Cedro), Ipuaçú (Regional de Xanxerê), Pinheiro Preto (Regional de Tangará), Capinzal (Regional de Joaçaba), Ipumirim (Regional de Concórdia), - Palmitos (Regional de Chapecó), Pinhalzinho (Regional de Pinhalzinho), Maravilha (Regional de Maravilha), Urussanga (Regional Sul), Laguna Regional das Pescadoras, Frei Rogério (Regional de Lages), Rio do Campo (Regional de Rio do Campo), Santa Terezinha do Progresso (Regional de Campo Erê) e Jardinópolis(Regional de Quilombo). atuação do Movimento organizado. O público pesquisado foram as mulheres pequenas agricultoras com até 50 hectares, ou seja, 20 alqueires, sem terra, com idade superior a 15 anos. Quanto à origem étnica os questionários buscaram contemplar as mais diferentes etnias como alemãs, luso-brasileira, polonesas, italianas, açorianas, negras. Essa pesquisa dá conta de traçar um perfil das mulheres do campo, levantar as concepções que estas mulheres têm de violência e apresentar dados relativos às situações de violência física, psicológica, sexual, e social enfrentadas por elas em seu cotidiano, como veremos adiante. A outra pesquisa intitulada “A violência nas relações de gênero e classe: uma interpretação a partir das mulheres camponesas no Rio Grande do Sul”, especialmente dentro do universo de abrangência do Movimento de Mulheres Camponesas11 no Estado, atingindo um público de aproximadamente 4.500 mulheres. A identificação das faces da violência deu-se por meio de depoimentos, entrevistas, levantamentos de informações, 170 questionários aplicados em 60 municípios com perguntas para serem respondidas de forma objetiva, individualmente, sem identificação pessoal para garantir que as mulheres pudessem responder com mais liberdade, já que em outro momento o movimento aplicou um questionário acerca desta temática e grande parte das mulheres não responderam. Por isso, a opção pela não identificação e pela ampliação da pesquisa envolvendo o universo de abrangência do movimento no Rio Grande do Sul. Foram também realizadas consultas às Delegacias de Mulheres no estado sobre boletins de ocorrências policiais de violência e as publicações sobre o assunto. Esta pesquisa apresenta alguns referenciais teóricos e elementos geradores da violência contra a mulher camponesa, a identificação e análise da violência como cotidiano na vida da mulher camponesa, contextualizando-a como um fenômeno mundial, com dados mais globais e sobre o Brasil, e, no Rio Grande do Sul, apresenta a importância do Movimento de Mulheres Camponesas e uma análise sobre os mecanismos e as estratégias de combate à violência apontada pelas mulheres pesquisadas e pelo universo maior do próprio movimento. 11 Pesquisa realizada em 2005, por Carmem Lorenzoni, do MMC/RS, sob orientação de Vanderléia L. P. Daron e apresentada no Curso de Especialização em Estudos Latino- Americanos da Universidade Federal de Juiz de Fora em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes, fazendo a delimitação do tema para o Rio Grande do Sul. Outra pesquisa relevante foi realizada por Sandra Mônica da Silva12 e intitulada “A violência na Amazônia brasileira, do descobrimento à atualidade: fio condutor de um inacabado processo de ocupação territorial”, apresenta a violência como um dos fatores mais presentes e persistentes no processo de ocupação econômica da Amazônia e levando em consideração as colocações de autores como Foucault, Adorno, Chauí e Galtung. Identifica na história da ocupação da Amazônia Brasileira, momentos e episódios, em que o poder fez uso da violência para domesticar e disciplinar os indivíduos, usando-os – e a seus corpos – como estratégia de acumulação. É um estudo importante para a compreensão do processo histórico-atual das populações da região Amazônica, no qual as mulheres fazem parte. Entretanto, não é uma pesquisa específica sobre a violência contra as mulheres do campo e da floresta, mas traz elementos que contribuem para a compreensão geral do fenômeno da violência nesta região. Outra pesquisa, coordenada por Ana Paula Portella, uma das coordenadoras do SOS Corpo, de Recife, entidade que realizou, juntamente com a Organização Mundial da Saúde e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP, a pesquisa “Violência doméstica e saúde da mulher”, em 2001, com mulheres de 15 a 49 anos, no município de São Paulo e em 15 municípios da Zona da Mata de Pernambuco (que possui área urbana e rural). Foi a primeira pesquisa feita no Brasil em termos populacionais. "Há vários aspectos alarmantes nesta pesquisa. O primeiro é a própria magnitude do problema: uma em cada quatro mulheres em São Paulo, uma em cada três mulheres na Zona da Mata e uma em cada duas usuárias do SUS de Recife, já sofreram violência física dos parceiros. Esses dados são muito altos e indicam a relevância e urgência do problema. O segundo é o diferencial de gravidade entre Pernambuco e São Paulo, que chama a atenção para a necessidade de se observar os contextos específicos nos quais a violência acontece. Finalmente, esse diferencial pode ser resultado da existência de serviços de atenção às mulheres e de fatores como maior escolaridade e maior acesso à informação, o que nos dá algumas pistas sobre formas de enfrentamento do problema. Outra pesquisa reveladora de uma realidade de vida dos trabalhadores (as) dos 12 Publicada em Ciência & Desenvolvimento, Belém, v. 2, n. 4, jan./jun. 2007, p. 205. canaviais paulistas é a pesquisa “A morte ronda os canaviais paulistas”13 feita por Maria Aparecida de Moraes Silva da USP, procura dar visibilidade às condições de trabalho impostas pelas usinas, cujos resultados têm sido o enorme desgaste físico, responsável por 13 mortes no período de 2004-2005, sem contar a legião de verdadeiros mutilados, após 10 ou 15 anos de trabalho: os trabalhadores dos canaviais paulistas. Grande parte destes trabalhadores é proveniente das áreas mais pobres do país: nordeste e Vale do Jequitinhonha/MG. Segundo estimativas do Pastoral do Migrante, são em número de 50 mil migrantes nesta região, enquanto para o conjunto do estado ultrapassam a casa dos 200 mil. Na sua maioria são jovens, que se deslocam todos os anos a partir do mês de março e nesta região permanecem em alojamentos construídos pelas usinas ou nas pensões das cidades-dormitórios, até o início do mês de dezembro. São os chamados migrantes temporários, embora esta migração seja permanentemente temporária, pois esta situação existe desde o início da década de 1960 (Silva, 1999). A partir do ano 2000, no entanto, assiste-se ao processo de mudança da cartografia migratória. Muitos dos migrantesatuais são provenientes do Maranhão e Piauí, estados que, no passado, tinham pouca participação neste processo. Uma das explicações dada para a mudança da cartografia migratória reside no fato de que houve uma enorme intensificação do ritmo do trabalho, traduzida em termos da média de cana cortada, em torno de 12 toneladas diárias. Este fato está diretamente relacionado à capacidade física, portanto, à idade, na medida em que acima de trinta anos de idade, os trabalhadores já encontram mais dificuldades para serem empregados. Desta sorte, a vinda destes outros migrantes cumpre a função de repor, por meio do fornecimento de maior força de trabalho, o consumo exigido pelos capitais cuja composição orgânica é maior. Esta migração é essencialmente masculina. Enquanto os homens partem, as mulheres ficam. Elas cuidam da roça ou se empregam enquanto quebradeiras de coco. Algumas delas partem com os maridos, e, às vezes, até com os filhos, para lhes preparar a comida e lavar suas roupas. Nas periferias das cidades-dormitórios paulistas vivem em minúsculos quartos alugados nos fundos-de-quintais, de onde geralmente saem, à espera dos maridos que trabalham no corte da cana (Vetorassi, 2006; Silva et al., 2006). Além disto, o que marca na busca de informações sobre a violência contra as 13 Texto publicado na Revisa Abra, V. 33, N. 2, ag/dez, 2006, p. 11-143. mulheres camponesas é a violência que enfrentam pelo fato de lutarem por terra, por diretos e pela defesa da soberania. São inúmeras notícias, reportagens e textos que informam e/ou analisam este tipo de violência que criminaliza os movimentos sociais, especialmente do campo. Esta situação não é de agora, haja vista que Margarida Alves, líder sindical, foi assassinada por lutar pelos direitos das mulheres e do conjunto dos trabalhadores do campo. A realidade de violência é referenciada nos dados apresentados pelo Brasil sobre as mulheres trabalhadoras rurais no documento “O Brasil e o cumprimento da CEDAW – Contra-informe da sociedade civil ao VI Relatório Nacional Brasileiro à Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW – período 2001 – 2005, apresentado em julho de 2007. Este documento: traz questionamentos que expõem a fragilidade da situação das mulheres no país, agravada quando se trata de afrodescendentes, indígenas, residentes em zonas rurais, moradoras urbanas de menor poder aquisitivo, prostitutas, portadoras de necessidades especiais, presidiárias, chefes de família, lésbicas, mulheres vivendo com HIV/Aids, enfim, de meninas, de jovens ou idosas e de outros grupos de mulheres marginalizadas ou socialmente excluídas. Em vista disso, o texto evidencia a persistência de muitas desigualdades de gênero, em específico, no que concerne às dificuldades de acesso às políticas públicas, aos bens públicos e ao bem-estar social. Desigualdades que se acentuam devido ao pertencimento étnico, geracional, regional ou socioeconômico, e dificultam o avanço das mulheres na sociedade brasileira.” (CONTRA-INFORME, 2007). Este documento enfoca a Igualdade de Direitos, enfatizando as recentes mudanças processadas nos Códigos Civil e Penal brasileiros, e a importância do advento da Lei Maria da Penha (11340/2006), que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher em todo o país, considerando, contudo, carências no âmbito das garantias jurídico-legais e das práticas cotidianas para efetivar a cidadania das mulheres brasileiras. O mesmo enfoque é utilizado para avaliar outros avanços nas políticas públicas, entre eles, os da criação de mecanismos institucionais de defesa dos direitos das mulheres. Além disto, aborda os problemas da Violência e da Discriminação como práticas recorrentes na sociedade brasileira e obstáculos ao pleno desenvolvimento social, econômico e cultural das mulheres. Obstáculos estes mais evidentes quando articulados com questões como idade, origem étnica, procedência rural, orientação sexual ou a condição de exclusão múltipla Também analisa as Ações Afirmativas, reforçando a idéia de tratar-se de estratégias necessárias para sustentar políticas de identidade e de igualdade de oportunidades para mulheres, afrodescendentes, indígenas e outros segmentos excluídos ou discriminados da sociedade brasileira. O documento, ao analisar os Estereótipos, Padrões Culturais e Imagens da Mulher, evidencia a necessidade de modificar procedimentos e mentalidades que imputam papéis sociais secundários ao segmento feminino e forjam imagens negativas e distorcidas de mulheres e meninas. Em vista disso, evidencia a necessidade das agências de socialização, entre elas: a escola, a família e os meios de comunicação, empenharem- se para a modificação de tais mentalidades. Ressalta, ainda, a pertinência do desenvolvimento de ações, programas e campanhas que desconstruam estereótipos e valorizem o papel das mulheres em todos os espaços de atuação social. O Tráfico de Meninas e Mulheres e a Exploração Sexual são tratados no documento, evidenciando um quadro preocupante e situações que vão desde a dificuldade de visualizar o problema, incluindo as que denotam a falta de preparo para dar-lhe tratamento adequado, passando pela impunidade, e chegando a entraves legais, como o que se expressa no Código Penal brasileiro, no qual o crime sexual ainda não é encarado como violação de Direitos Humanos, mas como um crime contra os costumes. Ao que se soma o fato do tráfico para fins sexuais afetar, predominantemente, mulheres e meninas negras e morenas, com idade entre 15 e 27 anos, geralmente de classes populares, com baixa escolaridade e que habitam áreas urbanas periféricas, carentes de saneamento, transporte e de outros bens sociais comunitários. Além disto, o documento refere-se ao Direito à Vida Pública e Política, fazendo alusão ao nível reduzido da presença feminina nas instâncias dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e ao fato das dificuldades de ocupar espaços em esferas de decisão política serem problemas afeitos a segmentos identificados por traços de gênero, classe ou raça/etnia. Refere-se, ainda, ao fato do Brasil figurar entre os países pior colocados quanto ao empoderamento político das mulheres (elegebilidade), identificando que apesar do advento das cotas, desde as eleições de 1996, a sub- representação feminina permanece um padrão recorrente no cenário político brasileiro. Também examina a Participação e a Representação Internacional, exemplificando esse ponto a partir da experiência de atuação feminina na Reunião Especializada da Mulher (REM) no Mercosul, tida como de suma importância em razão do protagonismo das mulheres dos países que compreendem a região, porém, sem receber o respaldo necessário das instâncias governamentais. Quando se extrapola o âmbito do Mercosul, o fato de haver pouca possibilidade de participação e de representação de mulheres em fóruns internacionais e em delegações oficiais também é mencionado. O tema da Realização Educacional e da Cidadania mostra que as conquistas obtidas pelas mulheres em termos de acesso e permanência na escola ou o aumento dos anos de estudo, não resultaram em melhores condições de trabalho, em menos desemprego, em maiores salários ou na ocupação de postos de chefia e decisão. Situação semelhante verifica-se em relação à carreira científica, na qual a realidade vivida pelas pesquisadoras vai além de uma mera questão quantitativa, acentuando as distâncias de gênero no que confere à obtenção de bolsas de pesquisa e à presença no topo da carreira, embora elas tenham presença marcante na base da pirâmide. O registro dessa realidade dá indícios das muitas possibilidades de se examinar indicadores sociais para a compreensão da dinâmica de gênero queperpassa o contexto das oportunidades educativas, bem como da sua intersecção com as relações de classe e raça/etnia, cujos efeitos muitas vezes são mais nefastos dos que os que demarcam as desigualdades entre homens e mulheres. As questões relativas ao Trabalho, Seguridade Social, Pobreza e Exclusão Social, direcionando a atenção para aspectos relativos à situação de emprego e salário, e para a esfera da previdência e seguridade social, mostra um quadro de defasagens salariais que faz com que as mulheres recebam menores salários que os homens, fato mais crucial para categorias como a das trabalhadoras domésticas e a das trabalhadoras rurais. Estas, não raro, com dificuldade de comprovar seus rendimentos e muitas vezes marginalizadas do processo produtivo tradicional, se vêem desprotegidas e sem garantias trabalhistas que lhes permitam o acesso aos benefícios da Seguridade Social, ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, ao Seguro Desemprego ou à Licença- Maternidade. Realidade mais problemática quando se trata de mulheres negras e pobres, vítimas do racismo e do sexismo. A análise sobre a Saúde da Mulher e os Direitos Sexuais e Reprodutivos, elucida questões relacionadas aos elevados índices de gravidez na adolescência, à falta de acesso à contracepção de emergência ou à realização de aborto em condições inseguras constituem alguns dos tantos problemas que precisam ser tratados urgentemente como objeto de saúde pública no Brasil. Ao que se somam problemas relacionados à sub- notificação de casos de morte materna, à má qualidade do atendimento à gestante, à incidência de mortes por câncer de mama ou ao aumento dos casos de HIV/Aids entre as mulheres. No mesmo sentido, a necessidade de percorrer longas distâncias em busca de atendimento médico, conjugada à pouca oferta desses serviços, têm dificultando o acesso à saúde por parte de vários segmentos de mulheres. Acesso este também dificultado por fatores pertinentes à etnicidade ou à orientação sexual, reveladamente fontes de preconceito e de discriminação quando se trata de atendimento à saúde. As Desigualdades na Vida Econômica e Social são examinadas no documento com base em indicadores que retratam as desigualdades nas condições de vida de grupos étnicos e raciais. No Brasil, as declarações formais de direitos iguais, presentes em leis nacionais e internacionais e protegidas pela Carta Constitucional de 1988, não se mostram suficientes para garantir a titularidade jurídica (legal e de direitos) das mulheres e, em particular, das mulheres negras e indígenas, refletindo, entre outras desigualdades, as relativas ao acesso ao trabalho, à renda, à saúde, à educação e aos cargos de poder. Por fim, a abordagem sobre as Mulheres Trabalhadoras Rurais analisa que os programas nacionais voltados à agricultura familiar, incluindo os de acesso ao crédito e à documentação para a trabalhadora rural ainda são insuficientes. É destacado o protagonismo do Movimento das Mulheres Camponesas do Brasil, cujas mobilizações têm tornado visível a realidade desse segmento e impulsionado o reconhecimento de suas necessidades e carências. Destaca-se o papel da Marcha das Margaridas, coordenado pela Contag, no sentido de explicitar a necessidade de construção de uma Campanha Nacional de Combate à violência contra as mulheres do campo e da floresta. As mulheres da Marcha das Margaridas enfatizam a presença deste fenômeno no cotidiano das mulheres trabalhadoras rurais, afirmando que a violência doméstica se dá no universo da família onde este espaço é o mesmo tanto para a convivência familiar, quanto para o trabalho. O espaço de moradia é o mesmo do trabalho, pois envolve os afazeres domésticos e o trabalho na propriedade agrícola que está neste mesmo universo de convivência, onde os agressores são os mesmos da convivência familiar e de trabalho. Este é um elemento diferenciado do universo urbano. As dificuldades de transporte, as distâncias e a falta de equipamentos públicos para as mulheres trabalhadoras rurais. A entidade vem atuando com as mulheres trabalhadoras rurais o tema da violência articulado com a saúde. Além destes estudos apontados, vale salientar que os dados da Central de Atendimento à Mulher -Ligue 180, criado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, registrou em 2008 1.167 denúncias de violência cometida contra mulheres trabalhadoras rurais. Destas, 17,6% são do estado de São Paulo, 11,2% da Bahia e 10,7% de Minas Gerais, citando os três estados com maior índice. Estes dados reforçam a existência de situações de violência doméstica contra as mulheres do campo e da floresta no Brasil, considerando ainda que estes dados são sub-notificados, pois poucas mulheres acabam denunciando em função das distâncias, da condição em que se encontram e da realidade em que vivem. Breve análise das referências encontradas sobre o tema da “violência contra as mulheres do campo e da floresta” Ao fazer o levantamento das referências que existem sobre a violência contra as mulheres do campo e da floresta, utilizando como descritores: “violência contra a mulher, violência contra a mulher do campo, violência contra a mulher do campo e da floresta, violência doméstica – mulher trabalhadora rural, violência contra mulheres camponesas, violência contra a mulher rural”, pode-se identificar que existem mais referências relativas ao tema da violência contra as mulheres, não especificamente das mulheres trabalhadoras rurais ou do campo e da floresta. Quando a busca vai adentrando nos descritores mais específicos, as referências existentes são no campo de informes ou notícias, mais centradas na violência de classe, ou seja, a violência contra as mulheres ou os movimentos que lutam e/ou resistem contra o capital ou contra os poderes instituídos no contexto histórico-atual dos projetos de sociedade que se vive. No que tange a estudos acadêmicos, artigos, monografias, dissertações e teses, dentre as fontes pesquisadas são quase inexistentes as referências, com exceção dos estudos já apontados. O que se percebe são estudos que expressam alguns elementos que podem nos ajudar a fazer uma problematização deste fenômeno. Ao realizar a pesquisa de dados sobre “violência doméstica” na base de dados LILACS, que é uma das principais bases de conhecimento científico na área da saúde coletiva, aparecem 1073 descrições. No entanto, ao acrescentar o descritor “mulher”, este número baixa para 212 estudos. Ao analisar mais especificamente os estudos publicados no Brasil, baixa para 106 estudos, sendo que 3 deles são sobre a violência doméstica contra mulheres no México e um na Argentina e dois estavam fora desta classificação, restando 100 estudos sobre a violência doméstica contra mulheres. Destes, nenhum faz a caracterização em mulheres rurais ou urbanas. Não foi encontrada em nenhuma base de dados estudos relativos à violência doméstica contra mulheres do campo e da floresta e nem violência contra mulheres do campo e da floresta. Destes 100 estudos, o interessante é que 19 são publicações, em sua maioria relativas às Políticas que vem sendo desenvolvidas pelo governo federal a partir de 2003 e as demais são de entidades defensoras dos direitos das mulheres (Conselhos, ONGs de caráter feminista, especialmente), evidenciando a importância e o papel que a Secretaria de Políticas para as Mulheres vem desempenhando na visibilidade e na formulação de políticas para as mulheres. Desde o momento em que essa temática passa a ser objeto de uma política pública, o tema torna-se visível para a produção científica e passa a ser objeto de estudos e pesquisas, ainda com caráter bastante genérico e, portanto, com menor capacidade de gerar respostas específicas e com maior capacidade de interferir no cotidiano singular das mulheres das diferentes raças,culturas, situações econômicas, escolhas afetivas, regiões, localização territorial em espaços urbanos e rurais etc.. Do universo dos 19 estudos que refletem e/ou abordam este tema pela perspectiva da política para as mulheres, quatro são vinculadas à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, quatro são vinculadas à violência e saúde publicadas pelo Ministério da Saúde. Um caso é de políticas de âmbito municipal; um outro é da área da Segurança Pública; dois são de universidades públicas, dois de Fórum e/ou Conselho de Direitos das Mulheres e cinco vinculados às Organizações Não Governamentais, Redes de apoio às mulheres, cujas publicações foram entre os anos de 1996 a 2002. Os estudos vinculados às políticas públicas do governo federal são a partir de 2003, evidenciando a relevância e o papel que vem cumprindo principalmente a Secretaria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres. Deste universo, 50 casos se referem à pesquisa empírica, sendo 4 nos anos de 1997 e 1999 e 13 são de 2000 a 2002 e 37 são de 2003 em diante, revelando a importância de se elaborar políticas públicas que incentivem a busca e a pesquisa. Com relação à abordagem teórica são 31 as pesquisas realizadas, destas, 10 foram na década de 1990, 4 entre 2000 e 2002, 14 de 2003 em diante. Das pesquisas anteriores ao ano de 2003, grande parte são relatos de iniciativas em municípios e entidades com uma agenda mais progressista de atuação no âmbito das políticas públicas. Apesar de nenhum destes estudos e pesquisas analisar o fenômeno da violência doméstica contra mulheres do campo e da floresta, demonstra que os estudos sobre esta temática são muito recentes, a maioria deles vêm de formulações realizadas, desencadeadas e/ou apoiadas pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e de análises feitas na área da saúde ou pelo viés da saúde. Por outro lado, na análise sobre os estudos teóricos que trazem a abordagem feminista e/ou de gênero no fenômeno da violência contra a mulher, as singularidades urbano-rural-floresta não se apresentam. Pesquisa sobre material bibliográfico em violência à mulher do campo e da floresta Descritor Sites utilizados Violência contra a mulher Violência contra a mulher do campo Violência contra a mulher rural Violência contra a mulher do campo e da floresta Violência contra mulheres camponesas Violência doméstica – mulher trabalhadora rural Google 2.550.000 1.180.000 537.000 220.000 28.400 20.800 Google Acadêmico 16.800 13.300 7.400 1.910 941 1.310 Lilacs 162 03 02 0 0 0 Scielo 71 06 01 0 0 0 Paho/Opas 62 0 0 0 0 0 Descritor Sites utilizados Violência doméstica Violência doméstica – mulher Violência doméstica – mulher – publicados Brasil Violência doméstica – mulheres camponesas Violência doméstica – mulher rural Lilacs 1.073 215 106 0 0 Descritor Sites utilizados Violência contra a mulher Violência contra a mulher do campo Violência contra mulher rural Violência contra a mulher do campo e da floresta Violência contra mulheres camponesas Violência doméstica – mulher trabalhad ora rural Ibict 102 22 3 0 0 0 Capes 611 1 9 1 4 1 Nigts- Ufsc 0 0 0 0 0 0 O silêncio teórico, de análise empírica do fenômeno da violência (doméstica) contra as mulheres do campo e da floresta não é a demonstração de que este fenômeno não faz parte da vida destas mulheres. Pelo contrário, é a demonstração de uma realidade ocultada e invisibilizada no Brasil, assim como historicamente estas mulheres foram consideradas “mão de obra invisível” na agricultura brasileira (sem ter o reconhecimento profissional) e “sombra do marido” (sem ter seus próprios documentos). A conquista da profissão com o reconhecimento constitucional como “trabalhadora rural” só ocorreu em 1988, e seus direitos previdenciários (a partir de 2000 e com muitas dificuldades de acesso ainda no contexto atual) depois de muitos anos de lutas, de campanhas pela valorização e reconhecimento como mulher e como trabalhadora rural. No entanto, grande parte do trabalho desenvolvido pela mulher do campo e da floresta, mesmo trabalhando mais horas que o homem, ainda parte deste trabalho não é reconhecido, não é valorizado e nem valorado (do ponto de vista monetário). Assim, a invisibilidade do fenômeno da violência contra a mulher do campo e da floresta se situa neste contexto mais amplo da condição histórico-atual destas mulheres. O momento atual parece traduzir não mais um silêncio absoluto, mas um conjunto de silêncios relativos, ainda associados à denúncia genérica dessa violência e, por isso mesmo, ainda distante do cotidiano da vida das mulheres submetidas a ela. As mulheres vitimadas por violência não são mulheres em geral, situadas em um plano genérico de existência. São mulheres singulares, situadas em relações concretas de poder e situações objetivas de vida. As políticas que devem ser construídas para qualificar a vida e afirmar direitos de existir também precisam ser singulares e concretas, caso contrário o que se afirmará será apenas uma informação retificada, com grande capacidade de se tornar distante do cotidiano de todas as mulheres. Por isso, a iniciativa da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres junto com o Fórum de Enfrentamento à violência contra as mulheres do campo e da floresta é, sem dúvida, um dos marcos fundamentais para o desvelamento e a tomada de posição para transformar esta realidade marcada por um cotidiano de violências. Mas, repetindo, não violências genéricas e situações afastadas do cotidiano, mas violências concretas e associadas às condições singulares de existência. Além disto, na busca junto ao Banco de Teses e Dissertações da CAPES, IBICT, NIGS-UFSC, por palavras descritoras, não por títulos aparecem algumas teses e dissertações com estas palavras. Entretanto, ao analisar os títulos, nenhum deles tem a identificação direta sobre este tema, portanto, não sinaliza foco em violência contra as mulheres do campo e da floresta nestes estudos. Aparece elementos que estabelecem alguma interface como, por exemplo, a saúde e a violência, história de vida das mulheres. Cabe destacar que ao analisar as monografias, estudos, teses e dissertações sobre a violência, contra a mulher sistematizadas no livro “Gênero e violência:pesquisas acadêmicas brasileiras (1975-2005)” de Miriam Pillar Grossi, Luzinete Simões Minella e Juliana Cavilha Mende Losso, apresenta dados comparativos e teses, dissertações, monografias e outros trabalhos científicos produzidos neste período sobre gênero e violência, uma obra riquíssima e de referência para analisar este fenômeno da violência e sua relação de gênero. Mas, na busca dos títulos destes estudos não há nenhum voltado especificamente à violência contra as mulheres rurais, camponesas, agricultoras, do campo e da floresta. O mesmo ocorre com outra obra fundamental que apresenta as referências na área da violência sexual, “Bibliografia estudos sobre violência sexual contra a mulher: 1984-2003” de Kátia Soares Braga e Elise Nascimento (org) e Débora Diniz (Ed.), que ao analisar os títulos não aparece nenhum especificamente relacionado à violência contra as mulheres do campo e da floresta. Silêncio e a invisibilidade da violência contra a mulher do campo e da floresta O país já conta com o Fórum de Políticas contra a Violência no Campo e na Floresta, instalado como resposta à demanda da última Marcha das Margaridas, realizada em Brasília, em setembro de 2007. Uma iniciativa fundamental, da maior importância, e que exigirá a mobilização de esforços do Estado e do conjuntodas organizações que lutam por direito e justiça no País. O Fórum tem o objetivo de debater e formular propostas de políticas públicas relacionadas a esta problemática, adequadas à realidade das mulheres trabalhadoras rurais. As trabalhadoras rurais e os movimentos que lutam por uma vida sem violência, se deparam com inúmeros desafios para avançar no enfrentamento da questão da violência contra as mulheres que vai desde a busca de informações e análises sobre a violência sofrida pelas mulheres nos diferentes contextos em que vivem; até a formulação de ações de enfrentamento à violência cometida pelos parceiros, a violência cometida pelos patrões/latifundiários e pela polícia, além do problema das grandes distâncias, do isolamento, da baixa escolaridade, da presença (e da legitimação) das armas de fogo nos ambientes doméstico e profissional. No campo e na floresta é que a cultura de discriminação de gênero está enraizada com o patriarcado que se articula com o capitalismo, por isso, as camponesas merecem atenção especial, já que nas áreas rurais há um menor número de redes de serviços especializadas no atendimento à mulher vitimada. A sociedade está lutando contra esse tipo de violência com debates e protestos. As histórias de vida, os depoimentos, as estórias que são contadas, ao revelarem a dura realidade em que se encontram as mulheres, especialmente do campo e da floresta, evidenciam a necessidade de se repensar o desenvolvimento no meio rural, as relações sociais entre os seres humanos, a relação com a natureza e a biodiversidade e a formulação e implementação de um conjunto de políticas públicas para o campo e a floresta. Interessante observar que este silenciamento e invisibilidade também se encontra nas reflexões sobre as correntes teóricas ou as linhas de orientação teórico- metodológicas feministas orientadoras dos estudos sobre a violência de gênero e/ou sobre a violência contra as mulheres, violência doméstica e intra-familiar. Desta constatação emergem interrogações: quais as razões ou causas desta invisibilidade da violência contra as mulheres do campo e da floresta? Este fenômeno não existe na realidade do campo e da floresta? De que maneira se apresenta? Que semelhanças e diferenças têm com a violência em geral e com a violência das regiões urbanas? Que conseqüências esta invisibilidade traz para estas mulheres e para a sociedade? Estas e tantas outras questões podem se apresentar para problematizar e refletir esta condição de violência pelo fato de não ter o direito de ver explicitado na sociedade uma realidade cruel de milhões de mulheres que vivem no campo e na floresta, distante de tudo e de todos, que, em casos de violência não tem a quem recorrer e nem as condições objetivas para buscar o atendimento, o cuidado e o acolhimento devido. Constatações como estas, especialmente para quem vive no campo e na floresta, como também as evidências concretas que os poucos estudos existentes apresentam é de uma realidade assustadora e não aceitável num país que vem lutando pela democratização, cidadania e dignidade humana. Por isto, a opção feita nesta análise busca trazer as evidências apresentadas nos estudos feitos, na pesquisa de percepção14, nas vozes das mulheres que atuam nos movimentos e organizações do campo e da floresta e das próprias experiências e práticas sociais de vínculo com mulheres camponesas, trabalhadoras rurais, agricultoras, do campo e da floresta. O contexto cotidiano das mulheres do campo e da floresta é marcado pela sobrecarga de trabalho, exploração, opressão, discriminação e violência. Esta realidade traduz as múltiplas faces da violência que operam no contexto de suas vidas e se materializa no seu corpo. Por isto, não é possível analisar a violência doméstica desvinculada deste contexto de vida e da complexidade com este fenômeno acontece no território vivo do campo e da floresta. As mulheres trabalhadoras rurais, camponesas, do campo e da floresta, além de enfrentarem a dureza das conseqüências deste modelo capitalista perverso como todos os trabalhadores rurais, acabam sentindo na pele as marcas da sobrecarga de trabalho (de sol a sol na roça, o cuidado com a casa, comida, roupas, animais, pomar, horta, entre outras tarefas cotidianas), da opressão, discriminação e violência que têm crescido. Estas marcas, na esfera da economia, especificamente na produção, as mulheres enfrentam exatamente o centro da lógica neoliberal que é acabar com a soberania alimentar dos povos, pois são as mulheres que historicamente vêm cumprindo esta função na propriedade. Mesmo que as mulheres sempre tenham trabalhado ao lado dos homens na roça, o reconhecimento da profissão de trabalhadora rural só foi conquistado, com muita luta das mulheres, em 1988, sem, contudo ter havido mudanças na administração dos bens produzidos coletivamente. Ainda, a par disto, o fato de serem as geradoras da vida humana, as mulheres acabam assumindo o conjunto das responsabilidades (no espaço privado) dos cuidados, da proteção, da educação dos filhos, reproduzindo a força de trabalho que sustenta o próprio sistema. 14 Pesquisa de Percepção feita pela Agência Rebouças para a Secretaria de Políticas para as Mulheres. Na esfera da política, encontramos, quase que em todos os espaços, a mulher ocupando as funções de serviços e de representação. Porém, quando se trata de espaços de decisão, ainda há muito que avançar, pois permanece a lógica prioritária dos homens. Claro que este é um processo histórico e que exige atuação das mulheres, de um lado e, de outro, mecanismos de democratização e incentivo à participação dentro das famílias, nas comunidades rurais, nas entidades (movimentos, sindicatos, cooperativas,...), partidos, etc. Também requer condições para que as mulheres possam participar, como a divisão das tarefas domésticas, rodízio de participação em mobilizações, solidariedade, entre outras, que precisam ser construídas para que a participação não fique só no discurso, mas se efetive. Na esfera da cultura, muito caminho ainda há por trilhar, pois a opressão e discriminação sobre as mulheres se sustentam pela ideologia burguesa machista que, quando não consegue a hegemonia pelo convencimento das mulheres de que sua condição é esta e que deve ser assim, usa da repressão e da violência para oprimir as mulheres. Neste campo, percebe-se um crescimento de músicas que discriminam e colocam a mulher numa condição inferior ao homem ou de que apanhar faz bem (como a música “um tapinha não dói”, e “ajoelha e chora”); bem como, reforço a formas de comportamento que colocam a mulher numa posição inferior; propagandas que utilizam o corpo da mulher como objeto. Além disto, a educação ainda é sexista, ou seja, educa mulheres para cumprirem um determinado papel social e homens para outro, reforçando comportamentos discriminatórios. Neste campo se situa o lado mais perverso deste sistema, onde as mulheres são educadas para a submissão e educam os filhos(as), a família e a comunidade nesta mesma direção. As mulheres acabam reproduzindo a própria lógica discriminatória sem se dar conta disto. Diante desta realidade fica evidente que o respeito aos direitos humanos, especialmente das mulheres, ainda está longe de ser cumprido, pelo contrário, vem se acentuando a lógica mais perversa de imposição da opressão, exploração, discriminação e dominação das classes populares, sobretudo das mulheres. Ao mesmo tempo em que a violência se constitui como expressão da realidade cotidiana das mulheres do campo e da floresta, é um tema que incide diretamente sobre todas as mulheres do campo e da floresta por fazer parte de seu cotidiano, é algo que produz medo tanto nas mulheres como na sociedade, de tal modo que omedo e o silêncio são cúmplices da violência. Este fenômeno da violência, associado à exploração, opressão e discriminação de gênero, raça/etnia, classe/ geração e orientação sexual compõem faces de um mesmo processo histórico-sócio-cultural que vem impondo como padrão das relações humanas a lógica de dominação, exploração, discriminação e violência que se reproduz socialmente como algo natural, cuja implicação desta naturalização é a aceitação social desta dura realidade. Assim, percebe-se que da mesma maneira com que se “naturaliza” a violência, a opressão, a discriminação e a exploração de gênero, raça/etnia, classe, geração e orientação sexual, se justifica o domínio, nesta mesma lógica, dos seres humanos sobre a natureza, ou seja, a chamada “Mãe Terra”, onde não há limites para o domínio e exploração, colocando em risco, inclusive, a possibilidade de vida no Planeta Terra. Neste sentido, é importante ressaltar que o universo simbólico e a matriz ideológica que justifica e naturaliza estas formas de dominação e exploração são as mesmas: a semente é colocada na “mãe terra” para “Produzir”! a mulher para “Reproduzir”! Mulher e Terra são apenas meios, instrumentos para “produzir” e “reproduzir”. Desta forma, justifica-se o uso de qualquer tipo de ação, intervenção humana sobre a terra (exploração, domínio, uso abusivo de tecnologias que destroem as formas de vida na terra, entre outros mecanismos de apropriação, poder e domínio em favor dos interesses mercantis da terra como negócio lucrativo para alguns que se apossam dela como propriedade privada, como também das riquezas naturais presentes nela (água, florestas, biodiversidade,...). Como esta forma de tratar a natureza foi se constituindo hegemonicamente como natural, torna-se inquestionável. Da mesma forma, para a mulher foi sendo construído historicamente o papel central na reprodução humana, especialmente no que tange às funções biológicas de gerar a vida. Junto com isto, a delegação de todas as responsabilidades para com os filhos (cuidado, afeto, educação,...), com as tarefas cotidianas de reprodução da vida (como o preparo dos alimentos, a limpeza, o cuidado com a casa, roupas, entre outras tarefas do trabalho doméstico). Este conjunto de tarefas rotineiras de reprodução da força de trabalho que não é valorizado, nem reconhecido compõe um universo diário de envolvimento e sobrecarga de trabalho para as mulheres em geral, e mais especificamente as do campo e da floresta que precisam dar conta de todo o trabalho produtivo na terra e, ao mesmo tempo, do trabalho doméstico e do trabalho produtivo para viabilizar o sustento da família como a horta, o pomar, o manejo de animais, a preservação das sementes, das plantas medicinais, entre outras ações fundamentais para a garantia da vida e da saúde de suas famílias. A cultura patriarcal e machista, associada aos interesses do mercado capitalista utiliza a força de trabalho das mulheres para manter e sustentar o modelo de agricultura centrado no agronegócio, nos monocultivos, na utilização de tecnologias pesadas e devastadoras do ambiente, como é o caso do uso indiscriminado de agrotóxicos (no caso do Brasil utilizando agrotóxicos já proibidos em outros países), da mão-de-obra escrava, da dependência dos agricultores em relação às indústrias transnacionais que a cada dia expulsa mais gente do campo para as periferias da cidade e vem produzindo adoecimento progressivo nas populações do campo e da floresta que adoecem e morrem de todas as causas muito mais do que as populações do meio urbano. Além disto, a reprodução cultural deste padrão patriarcal e machista se dá no âmbito familiar e social e se reproduz pela ação tanto das mulheres como dos homens. Assim, as relações humanas, sociais, econômicas, políticas e culturais se produzem e reproduzem de forma historicamente naturalizada na lógica da discriminação, exploração, dominação e violência de gênero, raça/etnia, classe, geração e orientação sexual no campo e na floresta e ocorre como fenômeno singular na vida destas mulheres. Neste processo histórico de naturalização deste padrão de violência encontram- se as influências religiosas, políticas, econômicas, culturais, antropológicas, sociológicas que dão lugar de propriedade de alguém a terra, o gado, a máquina, a mulher e que tem suas origens e fundamentos no patriarcado e se entrelaçaram e/ou se fortaleceram especialmente nas sociedades de classes e de desigualdades sociais. As percepções e evidências trazem uma realidade dura e complexa onde a cultura patriarcal, racista e de exploração/dominação está enraizada no corpo, nas relações familiares, nas relações sociais, políticas e econômicas e nas relações com a natureza. Esta realidade complexa está presente na trajetória histórica de sujeitos sociais que historicamente lutam para sobreviver e resistem no campo enquanto classe social e que toda vez que estas vozes se apresentam socialmente são caladas pela imposição, pela força e pela violência institucionalizada que criminaliza estes sujeitos políticos e sociais, como também as organizações nas quais fazem parte. No caso das mulheres do campo e da floresta há a marca simbólica destas vozes silenciadas por meio do assassinato de Margarida Alves, entre tantas outras ocultadas no registro histórico, mas muito vivas na vida das mulheres camponesas. Adentrando na análise deste fenômeno das várias formas de violência cotidiana e simbólica – através da linguagem e da imagem, as pessoas vão internalizando conceitos discriminatórios que podem levar à violência. Ao dizer que “mulher tem que esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque”, assim como afirmar que “um tapinha não dói” ou “quanto mais eu passo o laço muito mais ela me adora - ajoelha e chora” presente em letras de músicas cantadas em festas e bailes, especialmente no meio rural, é um modo de naturalizar ideologicamente a exploração feminina e a desvalorização da mulher. As propagadas de bebidas alcoólicas com mulheres semi-nuas é um tipo de publicidade que trata a mulher apenas como um objeto de prazer a ser usufruído e consumido pelos homens. Só isso já é uma forma de violência. Neste universo do “invisível”, casos em que o marido ou namorado proíbe a mulher de pintar as unhas, usar determinada roupa, de sair de casa. E elas se submetem, pois no fundo acham que não têm direito de decidir sobre seu corpo. Um dos aspectos menos discutidos – tabu na sociedade brasileira – é o abuso sexual de meninas dentro de casa, muitas vezes pelo próprio pai. A menina cala porque já introjetou a noção de que deve servir ao homem, ainda mais com autoridade paterna. Ao visitar um grupo de mulheres camponesas15 no interior do Rio Grande do Sul em 2003 que estavam reunidas havia um cartaz na parede com o nome de sete mulheres do grupo que haviam morrido nos últimos anos. Uma das líderes, ao referir-se à saúde das mulheres, fez alusão ao cartaz enfatizando as verdadeiras causas da morte delas: Estas foram companheiras que morreram por causa do machismo e escravidão, agrotóxicos e medicamentos químicos. Uma delas, o marido era tão egoísta e machista que, como ele sabia que tinha câncer de intestino e ia morrer logo, enquanto teve forças, matou a mulher a pauladas e depois se matou, para não dividi-la com os filhos e com o grupo de mulheres. (Entrevista com L.M.P.D., 2003). As histórias de vida, os depoimentos, as estórias que são contadas, ao revelarem a dura realidade em que se encontram as mulheres, especialmente as trabalhadoras rurais, camponesas, do campo e da floresta, evidenciam a necessidade de se repensar o modo de vida no campo. A dureza cotidiana vivida pelos camponeses, homens e mulheres, no processo produtivo agrícola a que são submetidos no contexto histórico- atual, e das mulheres, que,além de vivenciarem o mesmo processo dos homens, têm acrescidos os impactos da reprodução humana, da força de trabalho e cultural. O espaço familiar, visto como aquele em que as pessoas buscam a segurança, o afeto, o carinho, tem sido para muitas mulheres o recanto da violência física e psicológica, associada à sobrecarga de trabalho e de responsabilidades não valorizadas pela sociedade, bem como às duras formas de preconceito, discriminação e tabus que cercam o cotidiano de cada mulher que vive e mora na roça. Depoimentos, cartas, histórias contadas pelas mulheres nos encontros, nos grupos de mulheres, demonstram o quanto essa condição produz medo, ansiedade, angústia, sentimento de culpa e impotência diante da realidade. As mulheres vão desvelando essa face oculta à medida que vão participando de algum grupo, movimento de mulheres ou trabalho sindical com mulheres que vem se constituindo como espaços de acolhimento, de valorização, de reconhecimento da mulher como ser humano e sujeito político e social. Ao perguntar às mulheres quais as maiores dificuldades que enfrentam em sua 15 Parte da pesquisa realizada em 2003 que deu origem a Dissertação de Mestrado. Educação, Cultura Popular e Saúde: Experiências de Mulheres Trabalhadoras Rurais. organização, o que mais aparece é a dificuldade de participarem, ou seja, de saírem de casa, de perderem o medo e a vergonha, de conseguirem se libertar dentro do espaço familiar na sua relação com o marido, onde muitas são estupradas, pisadas e não ouvidas. Uma adolescente de 13 anos, filha de pesquisador americano que esteve no Brasil, ao visitar as mulheres rurais junto com seu pai pesquisador, escreveu: Você sabia que para as mulheres brasileiras, ir à Brasília, capital do país, e marchar pelos direitos das mulheres é mais fácil do que convencer seus próprios maridos a lavar a louça? Às vezes, mudar coisas grandes, como leis, é mais fácil do que mudar a forma como as pessoas pensam sobre as mulheres. Eu me dei conta disso durante um jantar em que minha família e eu fomos com três líderes do movimento de mulheres no Brasil. Quando meu pai quis ajudar a lavar a louça, os homens disseram: "Não faça isso. Depois as mulheres vão querer que a gente lave”! (Emma Sokoloff-Rubin [Girls on the Go3] Além destes aspectos é importante analisar o contexto de violência sob a ótica de uma profissional da saúde. A estória contada por uma médica psiquiátrica16 caracteriza um pouco, de forma figurativa, o contexto de violência em que se encontra e o que ocorre com uma mulher ao buscar atenção à sua saúde. Ilustrativamente a personagem é chamada de “Maria com vergonha de ser mulher”: Vamos acompanhar a trajetória de uma mulher que vamos chamar “Maria com vergonha de ser mulher” no serviço de saúde à procura de alívio para seu sofrimento. Ela tem em geral de 30 a 45 anos de idade, mas com aparência de muito mais, quase não consegue mais trabalhar fora, mas em casa a jornada continua a mesma. E, quando chega à médica de loucos, já passou por vários especialistas: neurologista, ginecologista, cardiologista... As suas queixas são vagas: dor de cabeça, irritabilidade com as crianças, isteria, desinteresse pela vida, desinteresse por seus afazeres, sensação de vazio na cabeça, dormência no coração, sem prazer nas relações sexuais, choro sem motivo, palpitações, entre outras. Mas já tem o rótulo: É só nervos! Mas não tem solução. O único jeito é tomar uns medicamentos - “todos fraquinhos” (Lexotam, Diempax, etc.), receitados por aqueles que não sabem o que fazer com suas queixas e lembram que as mulheres são as que mais consomem medicamentos. Nas consultas seguintes, refazemos com “Maria com vergonha de ser mulher”, um caminho de 16 Assuncion Caputti é uma médica psiquiatra feminista. A história apresentada foi relatada durante a Oficina Estadual do MMTR sobre a Saúde da Mulher, realizada em Passo Fundo em julho de 2000; foi uma homenagem especial feita às mulheres da 1ª Conferência Municipal da Mulher de Bom Jesus/RS – abril de 2000. desconhecimento e silêncio sobre seu corpo e de submissão ao que se convencionou ser mulher. Mas ela sente um desconforto, um mal-estar com este papel, essa situação que não consegue expressar em palavras, que lhe foram cassadas ao longo do tempo, só através de sintomas físicos ou emocionais que os profissionais de saúde, em geral, não aprenderam a decifrar e que tentam abafar com a medicação. Tentamos então, ajudar a “Maria com vergonha de ser Mulher” a recuperar sua voz, sua auto-estima, abrir a “caixa de Pandora”17 e entender seu silêncio. Ao abrir esta caixa, percebe-se que: a) ainda menina foi molestada sexualmente por um adulto em quem confiara e que a usou seja por ameaça ou porque não acreditaram nela; b) vendo sua mãe apanhar todo dia do pai, pensou que era natural; c) ao se tornar mãe, ainda adolescente, perambulou sozinha pelos hospitais atrás de uma vaga, porque afinal ela não se cuidou, porque ser mãe é padecer no paraíso; d)na 20ª vez que não se cuidou apareceu o parceiro e exigiu que abortasse, mas como é proibido, deu um jeito sozinha e foi parar na emergência do hospital, onde a deixaram sangrar quase até morrer porque tinha cometido um crime; e) aos 35 anos de idade começou a se sentir meio esquisita antes de menstruar, estava com TPM (Tensão Pré Menstrual); f) aos 37 anos, como sangrava demais, tiraram seu útero e limparam tudo, afinal, já tinha 4 filhos. Ela queria tratar e conservar seu útero, sua mãe menstruou até os 52 anos, mas mais uma cruz calou e submeteu-se e pensou “que bom que tenho um calmante senão enlouqueço.”Mas tudo veio à tona quando sua filha de 14 anos falou (porque ela ainda tinha voz) que o padrasto alcoolizado tentara molestá-la sexualmente. Dona Maria achou que era a hora de resgatar sua voz na voz da filha. Não podia ser conivente com o silêncio com o que tinha acontecido. Precisava resgatar sua auto-estima e tornar-se “Maria Sem Vergonha de Ser Mulher”. (MMTR, 2000). A estória transcrita traduz na vida de uma mulher um conjunto de situações cotidianas que ela enfrenta e a que se submete, acabando muitas vezes sem força de reação, doente; faz refletir sobre os estereótipos construídos historicamente sobre a mulher e que incidem em seu processo de saúde/doença e na forma como ela é tratada. Por muito tempo, a mulher foi vista como “fábrica de bebês”, de modo que bastava cuidar do útero e mamas em seu corpo; por conta disso, pensar a saúde da mulher era o mesmo que pensar o processo reprodutivo. Ademais, a mulher é a “cuidadora”, mas ninguém pergunta o porquê dela ser a cuidadora e o porquê de ninguém cuidar da cuidadora. Buscando compreender um pouco mais o que se passa com as mulheres, a estória procura trazer à tona alguns aspectos assustadores, quais sejam: as mulheres têm entre três a quatro vezes mais depressão que os homens, uma população de “loucas” poder-se-ia dizer; são as que mais consomem remédios; têm sintomas que não são de depressão, mas próprios do desgaste do seu dia-a-dia onde ninguém ouve seus planos, seus desejos, sua sexualidade; o trabalho de casa não reconhecido, o sofrimento e a dor que vive não são identificados pelos profissionais de saúde. Mais sério ainda é que, por 17 Conforme o mito de Pandora, havia uma caixa cheia de segredos que ninguém poderia tocar. trás disso, muitas vezes há a violência doméstica, a violência física, o abuso sexual, que permanecem como segredos, por conta do silêncio de quem sabe e da sociedade, que são os cúmplices dessa situação. Esse cotidiano, marcado pela sobrecarga, pela opressão, discriminação, exploração e violência, faz parte do universo das mulheresbrasileiras, especialmente das trabalhadoras rurais e urbanas, apesar de não ser exclusividade das mulheres das classes populares, pois a discriminação de gênero perpassa as classes sociais. No entanto, as possibilidades que se colocam para as mulheres das classes populares é diferente das que estão na classe dominante, pois as relações de gênero e classe se entrelaçam. A estória transcrita traz elementos do processo de saúde/doença que envolvem o indivíduo nas questões objetivas, subjetivas e intersubjetivas, com o meio em que vivem, as relações que estabelecem com as pessoas, com a natureza e as relações sociais no espaço da produção e na esfera da reprodução, do poder e da cultura. São aspectos que na maioria das vezes os profissionais de saúde sequer consideram na relação que estabelecem com as pessoas que procuram os serviços de saúde. Os processos de atenção às doenças, construídos pela medicina moderna, não dão conta da complexidade que é pensar a saúde, cujo centro deveria ser a compreensão da “teia da vida”, e não somente as doenças como são hegemonicamente tratadas atualmente. Por outro lado, a estória traduz a possibilidade da busca e do processo de transformação de uma mulher com vergonha, culpa, submissão, medo e resignação para uma mulher sem vergonha, liberta, que aprendeu a ter voz e fazer valer seus direitos, que exige que os profissionais de saúde a escutem, que se coloca enquanto sujeito ativo, construtora da história. Levanta a necessidade de a violência ser encarada como problema de saúde pública; de que o sistema público de saúde se implemente como uma nova forma de pensar a atenção integral à saúde de todos e das mulheres, com participação popular e controle social, com o respeito às diferenças, o acolhimento às queixas das mulheres em espaços de escuta e de educação em saúde. No entanto, ao tratar da influência da cultura religiosa na submissão e até mesmo justificação da submissão das mulheres, é preciso considerar que ela está inserida concretamente no universo e na vida da mulher camponesa, como uma questão muito atual, complexa e difícil de tocar. A relação da religião com a violência não é um tema que aparece na superfície, sendo imediatamente perceptível. Não se pode também relacionar automaticamente a pertença a uma única religião como causa ou maior incidência de violência, mas ter presente as mais variadas igrejas cristãs. Cristãos ou não, participantes ou não, vivendo no ocidente, estamos todas e todos sob alguns dos pilares da influência religiosa. Daí a influência de muitos valores e da organização social patriarcal, estruturadora da discriminação, desqualificação e exclusão das mulheres em muitas esferas da vida pública e na vida privada. O mito do “pecado original” produz grandes conseqüências na construção psico-cultural da culpa feminina e da sexualidade da mulher, juntamente com sua incapacidade de ser sujeito de sua história. Vale dizer que várias religiões vêm, historicamente, tendo um papel fundamental na subordinação feminina impondo uma cultura patriarcal, machista, androcêntrica onde a figura masculina que prevalece. Muitas mulheres até hoje suportam horrores caladas e muitas delas levam ao túmulo uma história de vida sob intenso sofrimento, entendendo como normal. Ao observar casos de extrema violência, (os que causam maior impacto), ouve- se dizer que é por “falta de religião”. Este tipo de afirmação revela um pensamento em que a religião significa o sinônimo de paz, ausência de violência, relações mais justas, mais humanas, etc. Mas quando visitamos a história deste continente, isto parece ironia. Desde 1500, com a chegada dos europeus colonizadores, a experiência religiosa mostra- se exatamente o contrário do imaginário popular religioso. Ela é, em si, uma experiência intrinsecamente violenta. A violência vem acoplada à religião cristã desde o início da colonização branca deste continente. Esse conjunto simbólico se cristalizou na cultura ocidental provocando e justificando verdadeiras atrocidades na violência de gênero. As mulheres introjetaram na sua identidade esses mitos cristãos, difundidos até a modernidade pela correia da instituição eclesial cristã. Atualmente não se pode mais atribuir somente à Igreja esse discurso, pois ela impregnou-se na cultura e espalha-se pelas esferas mais diversificadas, especialmente pela identidade de gênero. Por isto, a desconstrução dessa identidade é um processo muito lento e complexo. Abandonar símbolos e mitos requer a criação de novos referenciais. A recriação de referenciais também passa por re-criar uma organização social, instituições e modelos de relações diferentes entre mulheres e homens. Especialmente, se faz necessário abordar a discussão de religião e violência de gênero/raça/classe diante de uma tendência fundamentalista das grandes religiões no mundo. Infelizmente, os que detêm o poder nas Igrejas: católica, protestante, islâmica, pentecostais, evangélicas, entre outras, assumem uma perigosa posição fundamentalista incapaz de acolher com carinho e respeito o outro (a), em sua alteridade, sem destruí-lo. Percebe-se como o fundamentalismo avança na idéia da verdade única, religião única, poder único e o Vaticano defende a idéia fundamentalista da cultura única, da democracia única e história única. É uma tendência que está se fazendo visível em plena secularização – provocada por muitas motivações e querendo justificar muitas ações também - e aponta ameaça para o avanço da emancipação das mulheres que está sendo conseguida com muita luta e rupturas conflituosas. Cabe destacar, também, que a estrutura familiar se constitui como um dos espaços do ciclo de produção e reprodução da violência cotidiana onde a família, na forma como a conhecemos hoje, é considerada uma instituição social básica, fundamental para a formação do indivíduo. Cabe aos pais zelar pelo desenvolvimento físico, emocional de seus filhos, provendo as suas necessidades básicas garantindo-lhes proteção e segurança, numa relação de amor, carinho e afetividade. A família18 é considerada a célula mãe da sociedade, baseada nas relações de amor, co- responsabilidade e compromisso. Lá se geram e cultivam novas vidas e os pais têm o compromisso de cuidar destas novas vidas tanto no crescimento como em todos os níveis: humano, social, psicológico-afetivo, cultural, entre outros. No entanto, o paradoxo é que ao mesmo tempo em que a família é lugar de acolhimento, amor e cuidado, vem sendo também um dos espaços onde as mulheres mais sofrem. Ao penetrar mais profundamente no cotidiano das famílias, deparamo-nos com fatos e situações inimaginadas. Quando se trata da violência cotidiana, doméstica, em se 18 Família aqui compreendida de forma ampliada como o espaço de convivência afetiva, que envolve ou não laços consangüíneos, mas tem os laços de afeto, convivência e compromissos. tratando da família camponesa, é importante frisar que neste contexto, se encontra muito viva ainda hoje, uma estrutura familiar bastante conservadora, rígida nos princípios, mantendo ainda a reprodução da cultura patriarcal. Somando a isso, temos também o impacto da violência estrutural e conjuntural nas relações interpessoais, o que afeta profundamente as relações familiares, levando à produção e reprodução de modelos de comportamento violentos no cotidiano social e familiar. Crianças que vivem em situação de violência familiar aprendem a usá-la como forma de vida e tem grandes possibilidades de reproduzi-la nos seus relacionamentos, tanto na condição de crianças quanto na de jovem ou adulto (ARAÚJO, 1960). Na estrutura familiar camponesa, a violência contra a mulher ocorre dentro do ambiente doméstico, portanto na família, onde o agressor é sempre alguém de confiançae do convívio da vítima (pai, padrasto, irmão, vizinho, tio, compadre, marido, namorado, companheiro, amante). Isto vem contradizer a forma de organização do núcleo familiar, onde a família é colocada pela sociedade como um espaço de segurança da mulher. Em outras palavras até de “proteção” da mulher. A violência no espaço doméstico, quando não se dá de forma evidente, ocorre com freqüência no cotidiano das mulheres, embutida e disfarçada através do pensamento dominante como a segurança da cultura machista de que “a mulher é propriedade do homem” de forma a perpetuar o poderio do macho sobre a fêmea, a conveniência da sociedade de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” e reforçada também pela pregação da Igreja quando impõe às mulheres obediência e submissão. Na família se produz e reproduz a construção de uma relação de poder: fazendo com que a mulher reconheça e assimile a sua inferioridade, as mulheres apreendem uma visão de si mesmas como objetos. Ao lado disso, vem à educação para o medo – o medo da violência, de sair às ruas, de ficar fora de casa, de falar, de protestar, da violência sexual, de enfrentar o mundo, entre outros e principalmente a construção da personalidade para o medo. Outro elemento que torna mais difícil lidar com a violência doméstica é a humilhação. As relações pessoais e afetivas são permeadas pela agressividade o que é contraditório com o discurso “oficial” e religioso do amor eterno, casamento, etc. O espaço doméstico reproduz todas as faces da violência nas relações de gênero: física, sexual, psicológica, moral, que vem desde a humilhação, ameaças de morte e assassinatos, bem como na tensão de causar danos físicos ou emocionais, criando um ambiente permanente de pânico e terror. O homem controla a mulher pela força da intimidação. Assim, muitas são as razões que impedem que as mulheres rompam com o ciclo da violência e com o silêncio. A primeira constatação ao iniciar este trabalho junto às mulheres camponesas foi de que as mulheres se tivessem que se identificar (colocar seu nome) quando pesquisadas, não falariam com sinceridade, ou até não falariam nada sobre a sua vida com relação à violência. “Eu só falo e conto se você promete que não vai contar prá ninguém, que o meu marido e a família nunca vão saber19”. A razão da solicitação desta mulher é a mesma de tantas outras. Significa medo, muito medo ligado às ameaças recebidas pelo próprio agressor se ela falar. Outra razão é a vergonha de expor uma situação de sofrimento em muitos casos, de anos, falando de situações dolorosas, da intimidade, revelando a humilhação vivida dentro de casa. Além da vergonha muitas dependem emocionalmente ou financeiramente do agressor: outras até acham que “foi só daquela vez”, ou até que foram elas as culpadas pelo acontecimento; outras não falam nada por causa dos filhos, porque tem medo de apanhar ainda mais ou porque não querem prejudicar o agressor, que pode ser preso ou condenado socialmente. Tem ainda aquela idéia “ruim com ele, pior sem ele”. “É muito difícil acabar com a violência contra as mulheres porque procurar uma delegacia é muito humilhante para a mulher e muitas vezes o companheiro agressor fica muito mais agressivo20”. “Meu pai era machista e ele passou isso pras filhas e filhos. Hoje o machismo toma conta e as mulheres não têm coragem de 19 Depoimento de uma mulher camponesa. 20 Depoimento de uma mulher camponesa. se defender e de tomar qualquer atitude com respeito à agressão21”. Outra razão está ligada sutilmente à cultura e religião. “Minha mãe me ensinou que devo sempre agradar meu marido e obedecer ele em tudo, tenho que cumprir minhas tarefas de esposa se não ele vai procurar fora e eu estou fazendo pecado”. Algumas dizem que casaram na Igreja e por isso, não podem se separar porque prometeram ser fiel até o fim da vida e se fizerem isso é pecado. As conseqüências da violência na vida da mulher camponesa são graves e se manifestam em sentimentos negativos que vão paulatinamente se constituindo no cotidiano de suas vidas deixando marcas profundas de medo. Medo de reagir, de denunciar e a violência ser maior; medo da separação e não ter como sobreviver; medo de ficar sozinha; medo de seus pais não a aceitarem de volta; medo de perder seus filhos; em alguns casos, medo da morte; medo do que os outros vão dizer e medo de se impor como mulher capaz de mudar essa situação. É importante destacar que as mulheres têm muito medo de expressar as violências que sofrem no seu cotidiano. Aliado ao medo existe um sentimento de impotência que as coloca cada vez mais em situação de submissão, reproduzindo essa cultura para seus filhos e filhas, como também um sentimento de culpa e a culpa em dois aspectos: 1) por não ter conseguido resistir diante das formas de violência; 2) por achar que é culpada pelo que aconteceu porque não foi suficientemente obediente, dócil, submissa e que o homem é diferente e pode fazer o que quer. Outra razão muito incisiva somada ao medo é a vergonha de que outras pessoas possam saber do que acontece na intimidade, na integridade física, psicológica de suas vidas. Esses fatores todos contribuem e intensificam a evidência de que a violência é uma das formas de controle da sociedade sobre a vida das mulheres. É importante destacar que a influência da “indústria do entreterimento, da prostituição, do tráfico de mulheres e adolescentes” que movimenta bilhões de dólares 21 Depoimento de uma mulher camponesa. por ano22, é uma realidade que se faz presente no meio rural também, com especificidades próprias em áreas de grandes monocultivos, em regiões onde prevalece as comunidades tradicionais. Mas para mudar o quadro existente e propiciar condições de mudanças faz-se necessário criar espaços comunitários onde as mulheres possam levar seus problemas, amarguras e dificuldades, assim como suas esperanças e desejos e ter certeza de que terão retorno às suas propostas, sabendo que o primeiro passo para desfazer a sensação de abandono que afeta a maioria delas é verificar que muitas estão na mesma situação e que, juntando forças é possível modificá-la. Isto significa tornar-se parte de um conjunto integrado, reivindicativo, pró-positivo, apesar das grandes questões a serem enfrentadas no contexto da pobreza, das distâncias, da falta de serviços, entre outros. As condições objetivas e concretas das mulheres do campo e da floresta para enfrentarem estas múltiplas formas de violência cotidiana e a complexidade com que se apresenta a violência doméstica é um grande desafio, pois as condições de acesso às políticas e recursos já existentes estão longe de ser uma realidade para estas mulheres. Acabam dependendo de quem as agride para poder se deslocar do interior para a cidade, as áreas são muito distantes, a precariedade das estradas e a falta de transporte coletivo e de infra-estrutura, aliadas às questões emocionais apontadas anteriormente, colocam a exigência e o compromisso ético do Estado e da Sociedade para com a defesa da vida e da dignidade destas mulheres. 22 Para maior aprofundamento sobre o tema buscar em FARIA, Nalu; POULIN, Richard. Desafios do livre mercado para o feminismo. P.40 a 69. SOF: São Paulo, 2005. Rompendo o silêncio das mulheres do campo e da floresta no enfrentamento à violência Sempre que penso nas mulheres, me vem a imagem de um rio enorme e caudaloso que temos que atravessar. Umas apenas molham os pés e desistem, outras nadam até a metade e voltam, temendo que lhe faltem as forças. Mas há aquelas que resolvem alcançar a outra margem custe o que custar.Da travessia, vão largando pedaços de carne, pedaços delas mesmas. E pode parecer aos outros que do lado de lá vai chegar um trapo humano, uma mulher estraçalhada. Mas o que ficou pelo caminho é tão somente a pele velha. Na outra margem chega uma nova mulher... (Zuleica Alambert) As principais conquistas de direitos das mulheres do campo e da floresta ocorreram com muita organização, lutas e mobilizações destas mulheres. Assim, a conquista do reconhecimento da profissão de trabalhadora rural e dos direitos previdenciários como Segurados Especiais ao conjunto dos trabalhadores/as rurais como a aposentadoria, salário maternidade às mulheres, entre outros, foi resultado de quase vinte anos de lutas e mobilizações das mulheres do campo. O mesmo ocorreu com a Campanha pelos Direitos Previdenciários das Trabalhadoras Extrativistas Vegetal da Floresta, lançada pelo MAMA, por organizações de mulheres extrativistas, pela Secretaria de Mulheres do Conselho Nacional dos Seringueiros e pela Secretaria de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (Acre e Rondônia): que foi transformado em Projeto de Emenda Constitucional aprovado em todas as instâncias do Congresso Nacional. O processo de articulação das parteiras para o reconhecimento de sua profissão na categoria de parteiras tradicionais da floresta também é exemplo deste processo de lutas e mobilizações. Assim, desde o ano de 2000, a CNS Mulher vem firmando suas lutas específicas como mulheres seringueiras na luta por direitos das mulheres, o empoderamento da mulher como condição para o fortalecimento das comunidades; o fortalecimento institucional e das mulheres em sua vida pessoal, familiar e junto aos movimentos sociais; seu empoderamento. Não se trata aqui de descrever as revoltas e resistências camponesas e o papel das mulheres do campo e da floresta como protagonistas, mas de sinalizar que a expressão concreta da trajetória destas mulheres é a resistência, a luta e a mobilização como formas de chamar a atenção da sociedade e do Estado sobre sua condição de vida e de violência historicamente invisibilizados. Assim como a luta das próprias mulheres do campo e da floresta vem tornando visível o trabalho da mulher e seu reconhecimento, sua identidade, o mesmo ocorre com o fenômeno da violência contra as mulheres do campo e da floresta. São as próprias mulheres organizadas na Marcha das Margaridas, no Movimento de Mulheres Camponesas, na organização das mulheres da Via Campesina, das Mulheres do Conselho Nacional de Seringueiros/as, da Marcha Mundial de Mulheres, do Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia (MAMA), do Fórum Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta, assim como grupos e organizações de mulheres do campo e da floresta que vem desenvolvendo lutas, campanhas e ações cotidianas de denúncia, de resistência e educativas para a superação de todas as formas de violência contra as mulheres. Deste modo, o fenômeno da violência contra as mulheres do campo e da floresta vem sendo trazido para a sociedade e para o espaço da formulação das políticas públicas pelas mulheres do campo e da floresta através de suas organizações. A Marcha das Margaridas traz a expressão do trabalho que as mulheres vinculadas à Contag – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura vem desenvolvendo no campo da saúde e do enfrentamento à violência. Este tema vem perpassando seus Congressos desde 1985, depois a criação da Comissão nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais da Contag nos anos de 1990, os cursos e oficinas de formação com as mulheres, o projeto de saúde e as Marchas das Margaridas em 2000, 2003 e 2007 que se traduziu como reivindicação junto à SPM/PR para a criação do Fórum Nacional e a construção de políticas públicas relativas ao enfrentamento da violência contra as mulheres do campo e da floresta. O Movimento de Mulheres Camponesas tem como pauta a questão da violência desde seu surgimento, na então Organização das Mulheres da Roça em 1983, perpassando o período em que se chamava de Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais, através da articulação da luta pela valorização da mulher, reconhecimento de seu trabalho e na luta pelos direitos. Este fenômeno é tão forte no campo e na floresta que as mulheres do MMC e da Via Campesina definiram em 2008 na Conferência Internacional da Via Campesina em Moçambique pela realização de uma “Campanha mundial da Via Campesina para acabar com as violências contra as mulheres”. Afirmam em seu documento de lançamento da referida campanha que a sociedade capitalista mostra a cada dia suas contradições, especialmente na desigualdade de gênero, na divisão sexual do trabalho que mantém as mulheres como responsáveis pelo trabalho doméstico e com o cuidado dos filhos, doentes e idosos nas famílias. Mostra suas contradições na violência doméstica onde se escondem e mascaram relações de poder, submissão e violência naturalizadas, onde a sociedade “lava as mãos” e aplica a máxima: “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Estes valores são repassados de geração em geração, perpetuado e reforçado pelas religiões que usam de seus instrumentos,ritos e normas para justificar e manter o patriarcado, e com isso, afirmar que a mulher deve ser submissa ao homem. A cultura capitalista patriarcal se sustenta em quatro pilares: a) Dependência econômica das mulheres, o desemprego, e subemprego nas cidades. No campo, o trabalho das mulheres não é reconhecido como gerador de renda e riqueza, é visto como uma ajuda ao marido/companheiro; b) Não decisão sobre o próprio corpo, a mulher não decide. O homem, o Estado, a religião, a família, e muitos movimentos sociais impõe um padrão de obediência e comportamento às mulheres impedindo-as de decidir sobre si mesmas; c) Participação política - pouca participação das mulheres nos espaços de poder e decisão,desde os espaços domésticos, até as direções ficam com os homens (propriedade, igrejas, partidos, espaço de decisão do aparelho estatal, movimentos sociais ); d) A Violência contra as mulheres – não conseguindo dominar por outras vias, usa-se a violência física e psicológica contra as mulheres que é naturalizada (honra dos homens, o machismo, o controle, o poder)”. (VIA CAMPESINA, 2008). Cabe salientar que a luta pelo enfrentamento à violência é marcado nas organizações do campo em toda sua trajetória pela repressão e conflitos no campo que demarcam a luta pela terra e as demais lutas dos povos do campo e da floresta no Brasil, incluindo-se mortes, assassinatos e lideranças marcadas para morrer, onde, em torno de 20%, são mulheres. É neste contexto de desigualdades, injustiças e conflitos de classe que as mulheres do campo e da floresta incluem na sua agenda política o direito de viverem sem violência e o enfrentamento a todas as formas de violência, incluindo a violência doméstica e familiar velada, silenciada e ocultada ao longo do processo histórico. A implantação da política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres e os desafios para o campo e a floresta Ações e Campanhas de Enfrentamento à violência contra as Mulheres A luta das mulheres do campo e da floresta aliada à capacidade política da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República vem produzindo um processo inovador no campo das políticas públicas para as mulheres em especial às do campo e da floresta. Além das ações que vem sendo protagonizadas pelas mulheres do campo e da floresta, aconteceram um conjunto de ações de enfrentamento à violência contra as mulheres. Assim, as campanhas desenvolvidas para o enfrentamento à violência contra as mulheres em geral, pelo que se conhece foram: 1. “Quem ama não mata” – um forte movimento pela defesa da vida das mulheres e pela puniçãodos assassinos ocorreu entre as décadas de 1920 e 1930 e 1970, desenvolvida por Promotores e Feministas. 2. “Campanha Bem Querer Mulher” surgiu como uma iniciativa do Unifem - Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (www.unifem.org.br), em associação com a The Key - Organizações e Marcas Cidadãs, empresa especializada nos temas de interesse público. (www.thekey.com.br) ,com dois objetivos: • Lançar o primeiro Fundo Nacional para a Não-Violência à Mulher e estimular a sociedade a contribuir com a causa, gerando recursos a partir da venda de produtos com a marca da campanha e do licenciamento de marcas que têm interesse na mulher como seu público-alvo. • Trazer o tema ao conhecimento público, informando a população sobre a enorme mazela associada ao problema. Trata-se de promover o entendimento acerca das formas de violência contra a mulher e das dimensões assumidas no país. 3. “Campanha Brasileira do Laço Branco”: Homens pelo fim da violência contra a mulher promovida pela Rede de Homens pela Equidade de Gênero” que tem o objetivo de sensibilizar, envolver e mobilizar os homens no engajamento pelo fim da violência contra a mulher. Suas atividades são desenvolvidas em consonância com as ações dos movimentos organizados de mulheres e de outras representações sociais que buscam promover a eqüidade de gênero, através de ações em saúde, educação, trabalho, ação social, justiça, segurança pública e direitos humanos. 4. “Campanha Violência Contra a Mulher: onde tem violência, todo mundo perde” do Instituto Patrícia Galvão com apoio da Prosare - Comissão de Cidadania e Reprodução e Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Uma campanha publicitária protagonizada por homens e dirigida a homens agressores e tem como mensagem: Onde tem violência, todo mundo perde e como proposta: Estímulo para mudança de atitude do agressor. Uma campanha de comunicação social voltada para homens agressores. A proposta foi colocar os homens no centro do debate sobre a violência doméstica. As mensagens da Campanha são um convite a uma mudança de atitude e do comportamento masculino frente à violência doméstica. Essas mudanças dependem, sobretudo, de aspectos culturais e de mentalidades, campo em que a mídia pode ser bastante eficaz. Assim, cabe salientar que as campanhas vêm se constituindo como importantes estratégias para construir o debate com a sociedade e para o avanço na implementação de Políticas Públicas. Implantação da Política Nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres Até 2002, a base do Programa Nacional de Combate à Violência contra a Mulher, sob a gerência da Secretaria de Estado de Direitos da Mulher (SEDIM), do Governo Federal, era o apoio à construção de Casas Abrigo e à criação de Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAM). Com a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), no primeiro ano do Governo Lula, em 2003, as ações mudaram de foco e ganharam nova envergadura, com o início da formulação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. A necessidade e a importância dessa política foi reafirmada na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em 2004, e no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres que estabeleceu como um de seus eixos estruturantes o enfrentamento a todas as formas de violência contra as mulheres. Com o objetivo de colocar as novas diretrizes em prática, o Estado passou a promover a criação de novos serviços (como os Centros de Referência, as Defensorias da Mulher) e a propor a construção de redes de atendimento para assistência às mulheres, em todo o país. O conceito de violência adotado pela Política Nacional fundamenta-se na definição da Convenção de Belém do Pará e abarca diferentes formas de violência contra a mulher: Violência doméstica: compreende, entre outras, as violências física, psicológica, sexual, moral e patrimonial (Lei Maria da Penha); Violência ocorrida na comunidade, cometida por qualquer pessoa, compreendendo, entre outros, a violação, o abuso sexual, a tortura, o tráfico de mulheres, a prostituição forçada, o seqüestro e o assédio sexual; Violência institucional cometida pelo Estado ou seus agentes. Este processo só vem sendo possível de ser realizado pela existência da SPM e da consolidação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as com programas e ações implementados desde a sua criação. As principais realizações foram: 1. Sanção da Lei Maria da Penha: legislação moderna que trata do enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher em cumprimento aos acordos internacionais da Convenção de Belém do Pará e da Convenção para a Eliminação de todas as formas de Violência contra as Mulheres (Cedaw). A Lei é a expressão da Política Nacional, pois entende de maneira multidimensional o fenômeno da violência contra a mulher e propõe o seu enfrentamento em várias dimensões. A Lei foi resultado de uma ampla mobilização da sociedade envolvendo no seu processo de discussão e elaboração um consórcio de organizações não-governamentais (Advocacy, Agende, Cladem, Cfemea, Cepia e Themis), a Bancada Feminina do Congresso Nacional e a realização de diversas audiências públicas pelo país. 2. Criação do Observatório da Lei Maria da Penha: tem como objetivo monitorar a aplicação da legislação junto ao Judiciário, Executivo e à Rede de Atendimento às Mulheres em situação de Violência. É constituído por um consórcio composto por 12 instituições com diferentes responsabilidades e papéis: Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia, seis organizações não-governamentais (Agende, Cepia, Coletivo Feminino Plural, Themis, Rede Nacional Feminista de Saúde e a Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres e Relações de Gênero), Cladem/Brasil e núcleos universitários (Núcleos de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher - NEPeM/UnB, Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos - NEPP-DH/UFRJ, Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher e Gênero - NIEM/UFRGS e o Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulheres e Relações de Gênero - GEPEM/UFPA). 3. Ampliação dos serviços especializados de atendimento à mulher: o país conta hoje (2007) com 403 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), 99 Centros de Referência, 65 Casas Abrigo, 15 Defensorias Públicas da Mulher, além dos novos serviços que começaram a ser criados em 2006, a partir da aprovação da Lei Maria da Penha – os Juizados e Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que h4. Capacitação dos profissionais da Rede de Atendimento: desde 2003, a SPM e seus parceiros e parceiras trabalham na qualificação dos profissionais que atuam nos serviços da rede. Com o Pacto Nacional, a meta é intensificar essa capacitação e preparar os Centros de Referência para acolher também as mulheres vítimas do tráfico e da exploração sexual. Nesses quase cinco anos, 7.5 mil pessoas foram capacitadas entre operadores do Direito (juízes e promotores), policiais e profissionais da Rede de Atendimento às Mulheres em situação de Violência. 5. Padronização do atendimento: Das Delegacias Especializadas: SPM, Ministério da Justiça e delegacias elaboraram normas de padronização para o atendimento nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs). Dos Centros de Referência: são considerados estruturas essenciais no enfrentamento à violência, pois visam promover a ruptura da situação de violência e a construção da cidadania, por meio de ações globais e de atendimento interdisciplinar (psicológico, social, jurídico, de orientação e informação). A criação de um padrão de atendimento para esses serviços, em todo o país, garantiuo funcionamento baseado em um marco conceitual. 6. Criação e consolidação da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180: também é uma das portas de entrada da Rede de Atendimento. Serviço criado no dia 25 de novembro de 2005, pela SPM, com o objetivo primeiro de orientar as mulheres em situação de violência sobre seus direitos e sobre onde buscar ajuda, funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana e a ligação é gratuita. Além de apoiar as mulheres, o Ligue 180 auxilia no monitoramento da rede de atenção à mulher e é uma importante fonte de informação para a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. 7. Ouvidoria da SPM: é um espaço de escuta qualificada que procura atuar por meio da articulação com outros serviços de ouvidoria de todo o país, encaminhando os casos que chegam para os órgãos competentes federal, estadual ou municipal. Também proporciona atendimentos diretos sobre diversos assuntos, inclusive sobre o tema violência contra as mulheres. 8. Construção de um banco de dados com informações: atualizadas mensalmente sobre a oferta de serviços especializados em todas as Unidades da Federação. 9. Pactos federativos para a implementação do PNPM: Desde o lançamento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, a SPM firma pactos com governos estaduais e municipais para a implementação das 199 ações previstas no Plano Nacional. Dentre os eixos do Plano, há o enfrentamento à violência contra as mulheres que prevê a criação ou consolidação dos serviços da Rede de Atendimento às Mulheres nos municípios. Nesses cinco anos, foram assinados termos de compromisso com 24 estados e mais de 300 municípios. 10. Plano Nacional para o Enfrentamento à Feminização da Epidemia do HIV/Aids e outras DSTs: lançado no dia 7 de março de 2007, é uma parceria entre a Secretaria Especial de Políticas para as mulheres, o Ministério da Saúde, por meio do Programa Nacional de DST e Aids e da Área Técnica de Saúde da Mulher. O plano conta com o apoio do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM). Estabelece um conjunto de medidas para reduzir os índices de contaminação entre as mulheres. 11. Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna: lançado em março de 2004, pelo Ministério da Saúde em parceria com a SPM, visa à qualificação de equipes nas maternidades de referência do SUS. 12. Política Nacional de Direitos Sexuais e Reprodutivos: tem como objetivo garantir os direitos de mulheres, homens e adolescentes a uma vida sexual plena e saudável. 13. Iniciativas na área da prevenção: desenvolvimento de programas e ações que visam a desconstrução de mitos e estereótipos de gênero e que promovam a cultura da igualdade. Na mídia: Campanha “Sua vida recomeça quando a violência termina” realizada em 2004 e 2005 para marcar o Dia Internacional da não- Violência contra a Mulher; Apoio à campanha “16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres”, coordenada pela organização não-governamental Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento (Agende), desde 2003; Mobilizações em torno do Dia Internacional da Mulher (8 de março); Monitoramento, por meio da Ouvidoria da SPM, de campanhas publicitárias que retratam a mulher de forma preconceituosa na mídia; Seminários “A Mulher e a Mídia”, realizados de 2003 a 2007; Programa de rádio “Mulherio”, veiculado pela Rádio MEC do Rio de Janeiro, nos anos de 2005 e 2006; Apoio à Campanha do Laço Branco – “Homens dizem não à violência contra as mulheres”, de âmbito nacional, desenvolvida pelo Programa de Apoio ao Pai (Instituto Papai), de Pernambuco, nos anos 2003, 2004 e 2005; Apoio a diversas campanhas e ações regionais. Na educação: Promoção da reflexão sobre o tema da igualdade no mundo acadêmico, por intermédio do Programa Mulher e Ciência. Realizado anualmente, a partir de 2005, tem como propósito disseminar e estimular a elaboração e a divulgação de estudos e pesquisas no campo das relações de gênero, provocando o debate nas universidades e escolas públicas. Inclui edital de pesquisas acadêmicas no campo de estudos de gênero no valor de R$ 1,2 milhão, a promoção de encontros de núcleos e gênero de pesquisa das universidades e o Prêmio Construindo a igualdade de Gênero – um concurso de redação para estudantes do ensino médio e de artigos científicos para estudantes de graduação e graduados. A iniciativa é resultado da parceria da SPM com o Ministério da Ciência e Tecnologia, por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico (CNPq) e do Ministério da Educação. Formação de docentes de quinta oitava série no tema gênero, sexualidade e relações étnico-raciais, por intermédio do Programa Gênero e Diversidade na Escola. Lançado em 2006, já capacitou 1.200 professores e professoras. É resultado da parceria da SPM com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), o Ministério da Educação, o Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e o Conselho Britânico. 14. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: por entender que o tráfico de pessoas é uma violação dos direitos humanos e insere-se no marco da violência contra as mulheres e meninas, a SPM participou ativamente da elaboração dessa política, aprovada pelo Presidente da República no dia 26 de outubro de 2006. A política propõe ações integradas nas áreas de Justiça e Segurança Pública, Relações Exteriores, Educação, Saúde, Assistência Social, Promoção da Igualdade Racial, Trabalho e Emprego, Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos, Promoção dos direitos da Mulher, Turismo e Cultura. São atribuições da SPM: desenvolver uma metodologia de atendimento específica às vítimas do tráfico; qualificar os profissionais da rede para o atendimento às mulheres traficadas; incentivar o atendimento às mulheres vítimas do tráfico nos Centros de Referência; apoiar programas de qualificação profissional, geração de emprego e renda, dentre outras. 15. Desenvolvimento de ações e material específico (seminário, livros e capacitação) destinados aos profissionais que atuam em serviços, especializados ou não, que atendem ou têm a missão de acolher mulheres adolescentes e jovens em situação de violência. Esta ação é uma parceria do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA/UERJ) com a SPM. O desafio de Implantação de Ações Estratégicas de enfrentamento à violência contra as mulheres do campo e da floresta O lançamento e implantação da Campanha e Política Nacional de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta é de uma dimensão profundamente estratégica e desafiadora pelas exigências, singularidades e perspectivas que irá construir no sentido de enfrentar a violência na perspectiva de superação e construção de novas formas, valores e comportamentos de relações humanas equânimes, de poder compartilhado, de expressão de autonomia, alteridade e cidadania de todos os sujeitos do campo e da floresta, respeitando as diferenças e singularidades de gênero, raça/etnia, orientação sexual, geracional, de respeito às necessidades especiais e de fortalecimento de um novo modo e uma nova ética de relação dos seres humanos com a natureza. Esta campanha e política, direcionada às populações do campo também deverá ter incidência na sociedade em geral. O primeiro grande desafio é a que compreensão se tem a respeito da violência contra as mulheres e como trabalhar o enfrentamento para a superação desta realidade, pois a trajetória e acúmulo das organizações é o enfrentamento à violência de classe, a resistência para preservar ou conquistar a terra, a água, à vida no campo e na floresta.Como mulheres, temos o direito de sermos felizes e de não sofrer violência. Assim, é preciso aliar à luta pelo direito à terra, a água, à floresta, o direito de viver sem violência dentro das nossas casas. Para isto, a compreensão e análise de como se dá a violência contra as mulheres dos territórios do campo e da floresta é fundamental, pois requer a explicitação das especificidades e singularidades de territórios vivos onde não há informações, as dificuldades de acesso são imensas, as estruturas, equipamentos e políticas públicas ou inexistem ou são precárias, as dificuldades de acesso ao conjunto de direitos demarca a realidade. Parece ser necessário a construção e/ou o fortalecimento de espaços singulares, próprios e autônomos destas mulheres para debater, apropriar-se de forma individual e coletiva desta situação e preparar-se para o diálogo com os homens nas mesmas condições de igualdade a fim de superar a cultura da violência, opressão e discriminação e construir novos valores e relações humanas e com a natureza. O sentido de diálogo aqui não exclui as diferenças de opinião ou os conflitos que certamente perpassarão estes processos. O importante é a explicitação dos mesmos, o debate e o enfrentamento deste fenômeno que vem mutilando e matando as mulheres do campo e da floresta de forma cruel e como se a violência fosse algo “natural”. Enfrentar significa não aceitar a naturalização da opressão, exploração, discriminação e violência. São fenômenos construídos histórica mente e se retroalimentam nas relações de poder político, econômico e cultural. Por isto, podem ser rompidos e superados pela ação dos seres humanos. Para isto é preciso repensar os projetos de desenvolvimento da sociedade, as políticas públicas, as concepções de família e as relações humanas permeadas pela expressão da emancipação e da cidadania de todos os seres humanos; bem como a matriz ideológica e as formas dos humanos se relacionarem com as outras formas de vida no planeta. Neste sentido, a construção tanto da Campanha como da Política de Enfrentamento da Violência Contra as Mulheres do Campo e da Floresta com as próprias mulheres, através de suas formas organizativas nacionais e locorregionais sendo protagonistas desta construção de ações transformadoras desta realidade e das relações humanas é um desafio fundamental. Ao lado disto, parece ser determinante também, o envolvimento do conjunto dos atores que atuam no campo e na floresta, entidades, homens, mulheres, jovens, igrejas, instituições de ensino, pesquisa e extensão rural, instituições da saúde, entre outros, no sentido de construir novos valores, políticas, ações, práticas e relações permeadas pela não violência. Assim, a abordagem desta campanha e das ações específicas da Política de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, especialmente do campo e da floresta precisam articular o jeito, a linguagem e os modos de vida da população do campo e da floresta com a perspectiva popular e feminista que dá sentido às lutas pela emancipação das mulheres e dos povos, que prima pelo caráter participativo e protagônico dos sujeitos sociais e que quer a superação de todas as formas de violência, opressão, exploração e discriminação sobre os seres humanos. Além disto, a combinação de ações específicas da Campanha com a construção de Políticas Públicas estruturantes de Estado equânimes e que articulem o conjunto das áreas tanto públicas, quanto da sociedade é um desafio estratégico. Será necessário também incidir em espaços estratégicos formadores de opinião e produtores de universos simbólicos na sociedade como: Estado com suas instituições, Instituições de Ensino, de Saúde, Instituições Religiosas, os setores da imprensa e comunicação, as organizações da sociedade civil, entre outras. Fomentar a pesquisa, estudos e reflexões sobre esta temática em todos os espaços e níveis é determinante. Enfim, esta Campanha e as ações estratégicas têm um caráter essencialmente político-educativo no sentido de construir um processo nacional de visibilidade, problematização e reflexão sobre o fenômeno da violência, em especial a violência doméstica contra as mulheres do campo e da floresta, suas raízes histórico-culturais e a importância de superação destas formas de se relacionar, o que, na verdade, é um ganho para toda sociedade. Referências ALMEIDA, Adriana Antunes de. A invisibilidade do trabalho e da geração de renda de mulheres camponesas do MMC-RS. Monografia (Graduação de Tecnologia em Agroecologia) - Universidade Federal do Paraná, Escola Latinoamericana de Agroecologia, Lapa, 2009. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Nova Fronteira, 1980. BRAGA. Kátia Soares; NASCIMENTO. Elise (Org); DINIZ. Débora (Ed.) Bibliografia Estudos sobre violência sexual contra a mulher: 1984-2003. Brasília: Letras Livres: Editora UnB, 2004. 320p. BRASIL. 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