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Texto 2 TEMA 1 – EXPLICANDO OS CONCEITOS TEMA 2 – NARCISISMO E EU IDEAL TEMA 3 – MÍDIA E IDEAL DO EU TEMA 4 – IMPACTO NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS TEMA 5 – DESENVOLVIMENTO DA IDENTIDADE Conversa inicial Em momento anterior de nossos estudos, trabalhamos algumas questões referentes ao narcisismo, tais como: o mito de Narciso, construção histórica do conceito, narcisismo primário e secundário, abordagens do conceito por linhagens distintas, defesas narcísicas e narcisismo patológico. Apesar do assunto deste capítulo – Eu Ideal e Ideal do Eu – estar intrinsecamente relacionado com o narcisismo, ele foi, de forma proposital, deixado de lado para podermos trabalhar com mais calma em vista da confusão que normalmente é feita, e sua importância, uma vez que perpassa pela questão identitária, metas pessoais e consciência moral. TEMA 1 – EXPLICANDO OS CONCEITOS Na psicanálise, os conceitos de Eu Ideal e Ideal do Eu têm significados distintos, mas estão interrelacionados. Antes de desenvolvermos quaisquer análises utilizando-os, devemos distingui-los. É isso que faremos agora. 1.1 Eu Ideal Partindo da teoria freudiana (como não?) podemos relacionar o Eu Ideal ao estado inicial do narcisismo primário. Nessa fase, nos vemos como completos, perfeitos e essa imagem nos faz sentir onipotentes, uma vez que o Eu não tem falhas ou imperfeições, aqui nós podemos tudo. Seria, portanto, uma representação psíquica de como nos vemos no auge de nossa perfeição narcisista. Freud (2021) descreve o Eu Ideal como uma imagem idealizada de si mesmo, uma representação interna que o indivíduo busca alcançar ou recuperar. Para ele, esse ideal funcionaria como um guia estabelecendo padrões que o ego tenta atingir ao longo da vida. O amor-próprio, que antes estava centrado no narcisismo infantil, seria agora direcionado para o Eu Ideal, que se torna o foco dos esforços do sujeito para alcançar a perfeição e a satisfação pessoal. Sob uma perspectiva lacaniana, o Eu Ideal é uma imagem construída no registro do Imaginário que surge por meio do Estádio do Espelho e é idealizada representando uma forma de completude e unidade que o sujeito deseja alcançar. Tal completude, no entanto, é ilusória, permanecendo sempre fora de alcance (Lacan, 2020). Finalmente, não seria incorreto afirmar, com base em Freud e Lacan, que não se trata apenas de uma aspiração futura, mas, também, uma tentativa de retornar a um estado idealizado do passado, gerando uma tensão contínua entre o eu atual e esse ideal. Essa busca por reconquistar o estado de perfeição do Eu Ideal é uma força motriz significativa no desenvolvimento do eu e nas complexas interações entre o eu, o supereu e o isso na psique humana. 1.2 Ideal do Eu Podemos entender o Ideal do Eu como uma formação subsequente e que se desenvolve no momento em que o sujeito começa a internalizar as expectativas sociais/culturais e, de alguma forma, está relacionada com o supereu. Freud (2021) descreve o Ideal do Eu como resultado de um afastamento do narcisismo primário, em que a libido é deslocada para um ideal imposto externamente. Dessa forma, temos o desenvolvimento do Eu, que consiste em um distanciamento do narcisismo primário e gera um intenso esforço para reconquistá-lo. Levando em consideração o fato de ter relação com o supereu, tem função reguladora e censora, agindo como uma espécie de padrão pelo qual o eu se mede. Sendo assim, caso não consigamos atingir a expectativas estabelecidas, teremos sentimentos de culpa e insatisfação. Lacan (2020), por sua vez, afirma que, diferentemente do Eu Ideal que está no Imaginário, o Ideal do Eu está relacionado com o registro do Simbólico e o concebe como uma formação do supereu que incorpora normas, valores e expectativas do Outro. Sendo assim, atua como uma instância reguladora, que influencia o comportamento e os julgamentos morais do sujeito, muitas vezes gerando uma constante sensação de inadequação ou culpa por não conseguir atingir os padrões impostos. Ao fazer uma análise comparativa, percebemos que o Eu Ideal representa um estado de perfeição passada, enquanto o Ideal do Eu é uma projeção que guia o comportamento do indivíduo. Há, portanto, uma tensão entre o desejo de unidade e perfeição e as exigências e expectativas impostas pelo Outro. Para Lacan (2020), tal tensão seria central para a compreensão do sujeito e dos conflitos psíquicos oriundos da divisão entre o que o sujeito é e o que ele deseja ser. TEMA 2 – NARCISISMO E EU IDEAL Ao procurar um norte para desenvolver este tópico, podemos adotar dois caminhos. O primeiro seria analisar como o Eu Ideal é construído por meio do narcisismo e como ele se comporta a partir de então. O outro caminho seria verificar a relação do Eu Ideal e o narcisismo patológico. Comecemos pelo primeiro. 2.1 “Construção” do Eu Ideal Como vimos no tópico anterior, o Eu Ideal surge por meio do narcisismo primário e, de acordo com Freud (2020), à medida que nos desenvolvemos, enfrentamos exigências da realidade que farão com que a perfeição do narcisismo primário se perca. Dessa forma, o Eu Ideal seria criado como tentativa de recuperarmos nossa anterior perfeição narcisista perdida. Ele ressalta, ainda, que tal estado é uma projeção, uma vez que nunca fomos completos, mas acreditamos nisso e continuamos buscando diuturnamente tal perfeição. Lacan (2020) também explicará a construção do Eu Ideal de forma similar. Trata-se de uma formação no registro imaginário, construído, inicialmente, por intermédio do Estádio do Espelho, que é o momento em que a criança se reconhece em uma imagem refletida, criando uma identificação com essa imagem idealizada de unidade e completude. Tal imagem, em que a criança se vê como um “eu ideal”, representa a tentativa do sujeito de se ver como um todo coeso, algo que ele não experimenta diretamente em sua vivência corporal fragmentada antes desse momento. Seria uma unidade ideal que carrega, contudo, a marca da alienação, uma vez que o sujeito nunca poderá ser realmente a imagem que vê. Uma vez “construído”, o Eu Ideal funcionará como uma meta/objetivo a ser alcançado, servindo de padrão de perfeição para todos nós. Assim, ele exercerá uma influência significativa sobre nosso comportamento e nossas aspirações de forma a moldar as ações e o senso de amor-próprio. Ao mesmo tempo, contudo, gerará tensões internas importantes, uma vez que nos confrontamos constantemente com a disparidade entre nosso real e a imagem idealizada. 2.2 Narcisismo patológico e Eu Ideal Como vimos anteriormente, o narcisismo patológico é caracterizado por uma série de comportamentos e atitudes específicos. Barlow, Durand e Hofmann (2020) afirmam que as principais seriam grandiosidade, necessidade de admiração, falta de empatia, exploração dos outros, inveja e arrogância. Podemos considerar o Eu Ideal um fator central na patologia narcísica, visto que se torna uma meta tirânica que o sujeito tenta desesperadamente alcançar, resultando em uma alienação profunda. De acordo com Etchegoyen (2007), o narcisismo patológico pode ser visto como uma fixação no Eu Ideal que impede o desenvolvimento saudável do ego, levando o sujeito a comportamentos defensivos e à alienação de sua própria realidade psíquica. É nesse sentido que poderemos verificar as características apontadas por Barlow, Durand e Hofmann (2020). A grandiosidade reflete a tentativa constante de se alinhar ao Eu Ideal que está fusionado à sua autoimagem. A admiração, por sua vez, é o combustível para a manutenção dessa imagem grandiosa. Dessa forma, a necessidade de ser admirado torna-se essencial para o sujeito. A falta de empatia pode ser explicada pela centralização do Eu Ideal que torna difícil ao sujeito o reconhecimento ou identificação com experiências alheias. Como o Eu Ideal precisa ser constantemente reforçado, o narcisistapatológico explorará outras pessoas, uma vez que elas serão vistas como meros instrumentos de realização pessoal. Por sua vez, arrogância e desprezo são atitudes comuns para a proteção da imagem idealizada. Podemos, portanto, perceber que esse funcionamento gerará dificuldades relevantes na forma com que o sujeito se percebe e se relaciona com o mundo ao seu redor. Ao mesmo tempo que tem um sentimento de grandiosidade, também poderá apresentar uma autoestima extremamente frágil e dependedente de validação do outro, além da dificuldade na manutenção de relacionamentos saudáveis. TEMA 3 – MÍDIA E IDEAL DO EU Antes de começarmos propriamente este tópico, vamos relembrar a definição do Ideal do Eu para que não haja confusões. De acordo com Freud (2021), trata-se de uma formação subsequente ao Eu Ideal e que se desenvolve quando o indivíduo começa a internalizar normas, exigências, expectativas sociais e culturais. Será, portanto, um modelo/ideal que vamos perseguir ao longo de nossa vida; uma tentativa de recuperarmos a perfeição perdida do Eu Ideal por meio de uma nova forma manifestada por um ideal de comportamentos e valores sociais. Ao verificarmos, portanto, como os aspectos culturais e sociais são importantes para a formação do Ideal do Eu e como ele orientará nossa forma de ser e estar no mundo, devemos ter um olhar mais crítico para o que está à nossa volta. Devemos buscar uma maior compreensão do mundo. Lasch (1983) afirma que toda sociedade reproduz sua cultura uma vez que esta molda nossos valores, crenças e comportamentos, influenciando, portanto, de forma direta, nossa percepção de nós mesmos e dos outros. Assim, podemos compreender que a forma como construímos nossa identidade e definimos nosso papel na sociedade é determinada culturalmente. Da mesma forma, podemos perceber que nossas patologias (ou o que é considerado como patologia) também refletem nossa época. Se voltarmos no tempo, para os séculos XIX e início do XX, podemos verificar que tínhamos uma sociedade marcada por valores conservadores e moralistas, que enfatizava a repressão dos desejos e comportamentos sexuais. Freud, sem dúvida, viveu em uma época em que se valorizavam as aparências e a aderência a rígidos códigos de conduta social, em que a mulher ocupava um espaço de servidão e submissão. Sendo assim, não é surpresa vermos que Freud, em sua clínica, se deparou com as histéricas e dedicou grande parte de seus trabalhos à neurose e ao recalque. A Primeira Guerra Mundial destruiu muitas certezas e revelou a fragilidade da civilização europeia. Dessa forma, vamos perceber como esse contexto permeará os escritos de Freud sobre cultura e civilização, além de vermos o desenvolvimento da teoria do instinto de morte. A Segunda Guerra Mundial foi um dos eventos mais devastadores do século XX, não somente pelos horrores do conflito em si, mas também pelo impacto profundo que teve na saúde mental das populações envolvidas e na prática clínica. O trauma causado pela guerra foi vasto, com milhões de pessoas sofrendo as consequências psicológicas das experiências vividas, incluindo o luto, a perda de entes queridos, a destruição de lares, o deslocamento forçado, e a exposição à violência extrema. Vamos verificar, portanto, um aumento significativo de transtornos mentais, como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, ansiedade e distúrbios psicossomáticos. Torna-se necessária a compreensão do trauma e suas implicações profundas no comportamento humano. Além disso, em vista do grande número de pessoas que precisavam de suporte, tivemos mudanças na clínica com a realização de análises feitas em grupo e psicanalistas, tais como Winnicott, indo em programas de rádio para auxiliar as famílias e suas crianças. Nas décadas de 1960 e 1970, tivemos um período de intensas transformações sociais e culturais, marcado por movimentos de contracultura, lutas pelos direitos civis, feminismo, e outras formas de contestação às normas estabelecidas. Foi uma época marcada pelo movimento hippie, pelo protesto contra a guerra do Vietnã e pela luta por direitos civis e igualdade, em que tivemos uma busca por novas formas de viver e se expressar. Esses movimentos questionaram as convenções sociais, incluindo as abordagens convencionais à saúde mental, que eram frequentemente vistas como repressivas e alinhadas com uma sociedade conservadora. As feministas argumentavam que muitas condições diagnosticadas como “histeria” ou “depressão” eram, na verdade, respostas naturais à opressão e à desigualdade de gênero. Essa crítica levou a uma conscientização maior sobre como o gênero influencia a experiência de saúde mental e a necessidade de abordagens terapêuticas que levassem em consideração as experiências específicas das mulheres. Diante de tantas mudanças sociais, vamos ter o surgimento da Psicologia do Self, que enfatiza a importância das experiências subjetivas e das necessidades emocionais individuais na formação da identidade; há o início de uma reavaliação da institucionalização de pacientes psiquiátricos e o desenvolvimento de alternativas de tratamento comunitário, por exemplo. Na contemporaneidadevivemos, cada vez mais, imersos em um individualismo competitivo no qual buscamos incessantemente satisfação e sucesso pessoal. Para tanto, temos que trabalhar incessantemente para que possamos consumir o que não precisamos, mas desejamos ter para sermos melhores que o outro. Lasch (1983) sugere que a cultura moderna promove uma autoabsorção e uma preocupação excessiva com o “eu”, refletida em um comportamento que valoriza a superficialidade e a imagem externa em detrimento das relações interpessoais autênticas. Observa, ainda, que essa orientação narcisista é, em grande parte, uma resposta às condições sociais hostis e à crescente insegurança em um mundo marcado pela alienação e pela perda de sentido. Essa busca por autoafirmação e sucesso imediato, sem uma base sólida de valores ou sentido comunitário, exacerba sentimentos de vazio interior, ansiedade e depressão. Para ele, a publicidade (onipresente em nossa sociedade) não se limita a promover produtos, mas atua como um instrumento poderoso para moldar a identidade e o comportamento das pessoas. Por meio de imagens cuidadosamente construídas e mensagens subliminares, a publicidade incentiva o público a se identificar com um ideal de perfeição que é inalcançável, levando à criação de um Eu Ideal baseado na aparência e no consumo (Lasch,1983). Segundo Lasch (1983), a mídia, em todas as suas formas, contribui para a fragmentação da identidade ao oferecer um espectro de modelos culturais e estéticos que o indivíduo deve seguir para se sentir aceito e bem-sucedido. Ele argumenta que essa pressão para se conformar a um “ideal” é uma forma de controle social que, ao invés de libertar o indivíduo, o torna ainda mais vulnerável à manipulação e à alienação; um ideal que se torna uma fonte constante de frustração e mal-estar. Em uma sociedade que valoriza a “perfeição”, o desempenho, a produtividade, não é de se estranhar que, de um lado, tenhamos um aumento no diagnóstico e na medicalização de pessoas com autismo e transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), ou seja, que não se “encaixam” nos atuais padrões; de outro lado, há a utilização crescente do uso de testes psicológicos para “descobrir” o coeficiente de inteligência de crianças cada vez menores em decorrência de uma hipervalorização dos “pequenos gênios”. TEMA 4 – IMPACTO NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS Diante de tudo que já foi abordado até agora, não podemos duvidar que o Eu Ideal e o Ideal do Eu impactam e são impactados pelas relações interpessoais, especialmente se levarmos em consideração as teorias freudianas e lacanianas. A imagem idealizada que temos de nós mesmos (eu ideal) pode ser, muitas vezes,projetada no outro e impactar nossas relações de forma a procurarmos, sempre, um parceiro que reforce essa idealização. Em contrapartida, o Ideal do Eu que representa, de forma geral, as normas internalizadas do outro também causará impacto. Fink (2022) afirma que, nas relações interpessoais, especialmente em contextos neuróticos, os indivíduos tentam constantemente se alinhar ou rebelar-se contra esse ideal, projetado sobre figuras de autoridade como analistas, na tentativa de conquistar amor e aceitação. Essa tentativa de se moldar ao ideal do Outro é um mecanismo central em muitas neuroses, em que o sujeito se perde na demanda do Outro sem refletir sobre seus próprios desejos. Os conflitos gerados nas relações interpessoais (ocasionando sentimentos de culpa, menos valia, inadequação, frustração, entre outros) vão nos obrigar a recalibrar constantemente nossos ideais de forma a nos adequarmos às expectativas (nossas e dos outros). De acordo com Lasch (1983), o narcisista não consegue viver sem uma audiência que o admire. Assim, suas relações se transformam em um espelho de forma a distorcer o Ideal do Eu, tornando-o uma projeção dos desejos e expectativas dos outros, em vez de uma verdadeira internalização de valores e aspirações pessoais. Outro ponto interessante levantado pelo autor é que, embora atualmente haja a exaltação da cooperação e do trabalho em equipe, abrigamos em nosso ser impulsos antissociais e competitivos. Ressalta, ainda, que a competição, tanto em relações pessoais quanto profissionais, não é vista como uma busca saudável pelo crescimento, mas como uma luta pela sobrevivência emocional e social, em que o eu é constantemente posto à prova e frequentemente distorcido pela necessidade de se destacar e superar os outros (Lasch, 1983). Diante desse quadro, ele nos diz (apenas de podermos chegar a essas conclusões sozinhos) que essa busca por sucesso, validação, admiração desaguará em relações superficiais, insegurança, fragilidade, falta de autenticidade, isolamento emocional, enfraquecimento dos laços familiares, além de um menor tempo para relacionamentos reais e saudáveis. TEMA 5 – DESENVOLVIMENTO DA IDENTIDADE Todas as questões que trabalhamos até o momento em nossos estudos nos mostram como podemos pensar o desenvolvimento da identidade sob as perspectivas freudiana e lacaniana. Ao levar isso em consideração, pensamos que seria mais proveitoso trabalharmos esse item por uma abordagem winnicottiana. Para tanto, vamos iniciar fazendo uma breve revisão conceitual. ● Sentido de ser. Refere-se à capacidade do indivíduo de sentir-se real, existir no mundo e estabelecer relações autênticas com base em uma posição de ser. Esse sentido não é algo dado, mas é construído por meio de experiências repetidas de cuidado em um ambiente suficientemente bom, ou seja, está intimamente ligado à qualidade das primeiras relações e à capacidade do ambiente em sustentar o desenvolvimento psíquico do bebê (Dias, 2023). ● Integração e não integração. Trata-se de estados distintos do amadurecimento psíquico do indivíduo, em que a integração se refere ao processo pelo qual as várias partes da psique do indivíduo se unem em uma identidade coesa e funcional. É fruto de um amadurecimento que envolve a unificação de experiências, sentimentos e pensamentos, resultando na formação de um self integrado e na capacidade de o indivíduo sentir-se como uma unidade. Em contrapartida, a não integração é um estado primitivo no qual o bebê ainda não tem um senso de self coeso. Nesse estado, as experiências e os sentimentos ainda não foram organizados em uma estrutura integrada e, se não for adequadamente manejado, pode levar a dificuldades na formação de da identidade (Dias, 2023). ● Identificação primária. De acordo com Dias (2023), a identificação primária em Winnicott refere-se à forma como o bebê inicialmente se identifica com a mãe ou com o cuidador principal. Baseia-se em uma relação profunda e pré-verbal, na qual o bebê não diferencia a si mesmo da mãe, havendo uma condição de dependência absoluta; o “dois-em-um” da unidade mãe-bebê prevalece. A qualidade dessa identificação primária impactará diretamente o sentido de segurança e a capacidade de integração do self no futuro. ● Capacidade de criar. Trata-se de um aspecto essencial do desenvolvimento do self e da saúde mental. A criatividade, para Winnicott, está intimamente ligada ao processo de amadurecimento e ao modo como o indivíduo interage com o mundo, uma vez que se refere a uma forma de viver que possibilita ao indivíduo sentir-se real e conectado com o ambiente. ● Eu sou. É um marco relevante no processo de amadurecimento emocional do indivíduo. Esse conceito refere-se ao momento em que ocorre a separação entre o eu e o não eu, o que possibilita que o indivíduo desenvolva um senso de identidade distinta e uma percepção clara de si mesmo em relação ao mundo externo (Dias, 2023). ● Relação Eu – Não Eu. Trata-se de um aspecto importante no desenvolvimento emocional para Winnicott. Essa relação se refere ao momento em que ocorre a separação entre o “eu” (o self) e o “não eu” (o mundo externo), o que possibilita ao indivíduo começar a perceber o que é interno e o que é externo, e, assim, desenvolver uma identidade própria e diferenciada do ambiente (Dias, 2023). ● Falso self. Winnicott entende o “falso self” como uma estrutura defensiva que o indivíduo desenvolve para se adaptar a um ambiente que não possibilita a expressão do verdadeiro self. Trata-se de uma fachada que pode parecer funcional e até mesmo normal, mas esconde a verdadeira natureza do self do indivíduo. Essa adaptação pode levar o indivíduo a viver de acordo com as expectativas dos outros, enquanto suas necessidades e sentimentos autênticos permanecem reprimidos ou inexplorados (Dias, 2023). Levando em consideração esses e outros conceitos, podemos perceber como Winnicott valoriza o ambiente e as experiências iniciais na formação do self. Para ele, interações confiáveis e responsivas em que o bebê e a mãe (cuidador principal) formam uma unidade simbiótica são essenciais para o desenvolvimento de um sentimento de continuidade do ser. Dias (2023) ressalta que existir no mundo, sentir-se real e sentir o mundo real, estabelecer relações por meio de uma posição de ser, não são coisas dadas, mas conquistas do amadurecimento que depende de um ambiente suficientemente bom. A identidade, para Winnicott, começa a ser formar por meio do que ele chama de “verdadeiro self” e que vai emergir desse ambiente. Essa identidade verdadeira é constantemente ameaçada em situações nas quais o ambiente falha em ser suficientemente bom, resultando no desenvolvimento de um falso self. Ao pensarmos se existiria uma relação entre as teorias winnicottiana e freudiana, de forma a integrar a teoria do desenvolvimento maturacional e o Ideal do Eu, chegamos à conclusão que sim. É possível relacioná-las, uma vez que a qualidade do desenvolvimento da identidade, conforme proposto por Winnicott, influencia diretamente como o Ideal do Eu é formado e internalizado. Um verdadeiro self e uma identidade integrada propiciam a formação de um Ideal do Eu mais realista e alinhada com as necessidades autênticas do indivíduo, enquanto um falso self pode levar à internalização de ideais que não refletem as verdadeiras necessidades do self. Podemos pensar, portanto, que um sujeito que não teve um ambiente/mãe suficientemente bons sofrerá muito mais com as pressões do Ideal do Eu (formado por valores sociais) e não conseguirá se integrar e formar uma identidade sustentada por um self verdadeiro. Será um sujeito que, para sobreviver, utilizará constantemente um falso self. Em contrapartida, aquele sujeito que tem ambiente/mãe suficientemente bons conseguirá se integrar formando uma identidade coesa. Esse indivíduoterá mais condições de suportar as pressões do Ideal do Eu com seu verdadeiro self, preservando sua identidade. NA PRÁTICA Veremos agora um recorte clínico de como a ausência de um ambiente suficientemente bom na infância pode afetar a vida de uma criança e como um Ideal do Eu excessivamente rigoroso pode fazer mal a um sujeito se ele não estiver aberto à análise. Ressaltamos que todos os dados e nomes foram alterados para que a privacidade e confidencialidade fossem preservados. Rafael é o filho mais velho de um total de cinco irmãos. Não conheceu seu pai e sua mãe criou todos os filhos sozinha. Como a diferença entre ele e o “irmão seguinte” é de 7 anos, Rafael ajudou a criá-lo assim como todos os outros. Sua mãe ia trabalhar e ele ficava em casa cuidando de tudo e de todos. Quando chegava em casa, a mãe exigia que todas as tarefas de casa estivessem feitas e não admitia que o desempenho escolar fosse sacrificado. Ele tinha que tirar boas notas. Sua mãe dizia que ele era o mais inteligente dos irmãos e que deveria estudar para conseguir um bom trabalho e poder ajudar toda a família. E assim ocorreu. Rafael, hoje com 53 anos, continua sendo o responsável pela família, mas, apesar do bom emprego, ele sente que ainda não está à altura das exigências maternas que ainda permanecem (apesar da mãe já ter falecido há dois anos). FINALIZANDO É importante ressaltarmos que os conceitos de Eu Ideal e Ideal do Eu são fundamentais para compreendermos a dinâmica do desenvolvimento psíquico e suas implicações nas relações interpessoais, bem como na construção da identidade. Vimos como essas ideias se entrelaçam tanto na perspectiva freudiana quanto na lacaniana, e como elas nos ajudam a entender as complexidades da experiência humana, especialmente no contexto da modernidade e suas exigências culturais. Ao longo desta etapa, exploramos como o surgimento do Eu Ideal e como o Ideal do Eu é formado por meio das expectativas sociais internalizadas, ambos desempenhando papéis cruciais na estruturação do eu. Além disso, discutimos o impacto desses conceitos em quadros de narcisismo patológico e na forma como a mídia e a cultura moderna influenciam a formação do Ideal do Eu, frequentemente gerando tensões e mal-estar psíquico. Essas reflexões nos conduzem a um entendimento mais profundo da relação entre identidade e cultura, e da importância de um ambiente suficientemente bom no desenvolvimento de uma identidade saudável, como apontado por Winnicott. Em momento futuro de nossos estudos, vamos explorar outro conceito freudiano extremamente importante nos dias atuais.