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Dr. Claudinei Luiz Chitolina – UNESPAR 1. A FUNDAMENTAÇÃO METAFÍSICA DA MORAL IMMANUEL KANT (1724-1804). Natural de Königsberg, Prússia. Recebeu educação protestante (luterana); filho de família pobre (artesões). Filósofo, geógrafo, físico e matemático. Em 1770 foi nomeado professor catedrático da Universidade de Königsberg. ÉTICA KANTIANA I. “É na verdade conforme ao dever que o merceeiro não suba os preços ao comprador inexperiente, e, quando o movimento do negócio é grande, o comerciante esperto não faça semelhante coisa, mas mantenha um preço fixo geral para toda a gente, de forma que uma criança pode comprar em sua casa tão bem como qualquer outra pessoa. É-se, pois, servido honradamente; mas isso ainda não é bastante para acreditar que o comerciante tenha assim procedido por dever e princípios de honradez; o seu interesse assim o exigia; mas não é de aceitar que ele, além disso, tenha tido uma inclinação imediata para os seus fregueses, de maneira a não fazer, por amor deles, preço mais vantajoso a um do que a outro. A ação não foi, portanto, praticada por dever (…), mas somente com intenção egoísta. Pelo contrário, conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa para que toda a gente tem inclinação imediata. Mas por isso mesmo é que o cuidado, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedica não tem nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral. Os homens conservam a sua vida, conforme ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, deseja a morte e conserva contudo a vida sem a amar, não por inclinação ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral.(...)Neste mundo e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma Boa Vontade. Discernimento, argúcia de espírito, capacidade de julgar e como quer que possam chamar-se os demais talentos do espírito, ou ainda coragem, decisão, constância de propósito, como qualidades do temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos coisas boas a desejáveis; mas também podem tornar- se extremamente más e prejudiciais se a Vontade, que haja de fazer uso destes dons naturais e cuja constituição particular por isso se chama carácter não for Boa. O mesmo acontece com os dons da fortuna. Poder, riqueza, honra, mesmo a saúde e todo o bem-estar e contentamento com a sua sorte, sob o nome de felicidade dão ânimo que muitas vezes por isso mesmo desanda em soberba, se não existir também a boa vontade que corrija a sua influência sobre a alma e juntamente todo o princípio de agir e lhe dê utilidade geral; isto sem mencionar o facto de que um espectador razoável e imparcial, em face da prosperidade ininterrupta duma pessoa a quem não adorna nenhum traço duma pura e boa vontade, nunca poderá sentir satisfação, e assim a Boa Vontade parece constituir a condição indispensável do próprio facto de sermos dignos da felicidade. (...) A boa vontade não é boa por aquilo que se promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por se intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se quiser, da soma de todas as inclinações”. I. Kant. Fundamentação da metafísica dos costumes. TIPOS DE AÇÕES SEGUNDO KANT AÇÕES CONTRÁRIAS AO DEVER Ações que violam o dever (Ex.: matar, roubar) AÇÕES EM CONFORMIDADE COM O DEVER Ações que cumprem o dever, não porque é correto, mas porque têm consequências do interesse do agente Ações que, embora cumpram o dever, são motivadas pelo interesse pessoal Estas ações não são próprias de uma boa vontade (Ex.: não rouba para não ser preso) AÇÕES REALIZADAS POR DEVER Ações cuja intenção é cumprir o dever. O sujeito faz o que deve, porque quer fazer o que deve. Estas ações são próprias de uma boa vontade e resultam do respeito pela lei moral. (Ex.: não rouba, porque não deve roubar) Como muitos outros filósofos, Kant pensava que a moralidade pode resumir-se num princípio fundamental, a partir do qual se derivam todos os nossos deveres e obrigações. Chamou a este princípio «imperativo categórico». Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) exprimiu- o desta forma: Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei universal. No entanto, Kant deu igualmente outra formulação do imperativo categórico. Mais adiante, na mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princípio moral essencial afirma o seguinte: Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca apenas como um meio. Os estudiosos têm-se perguntado desde então por que razão pensava Kant que estas duas regras são equivalentes. Parecem exprimir concepções morais diferentes. São como Kant pensava, aparentemente duas versões da mesma ideia básica ou são simplesmente ideias diferentes? Não nos vamos deter nesta questão. Vamos, em vez disso, concentrar-nos na crença de Kant de que a moralidade exige que tratemos as pessoas «sempre como um fim e nunca apenas como um meio». O que significa exatamente isto, e que razão há para pensar que é verdade? Quando Kant afirma que o valor dos seres humanos «está acima de qualquer preço» não tinha em mente apenas um efeito retórico, mas sim um juízo objetivo sobre o lugar dos seres humanos na ordem das coisas. Há dois fatos importantes sobre as pessoas que apoiam, do seu ponto de vista, este juízo. Primeiro, uma vez que as pessoas têm desejos e objetivos, as outras coisas têm valor para elas em relação aos seus projetos. As meras «coisas» (e isto inclui os animais que não são humanos, considerados por Kant incapazes de desejos e objetivos conscientes) têm valor apenas como meios para fins, sendo os fins humanos que lhes dão valor. Assim, se quisermos tornar-nos melhores jogadores de xadrez, um manual de xadrez terá valor para nós; mas para lá de tais objetivos o livro não tem valor. Ou, se quisermos viajar, um carro terá valor para nós; mas além de tal desejo o carro não tem valor. Segundo, e ainda mais importante, os seres humanos têm «um valor intrínseco, isto é, dignidade», porque são agentes racionais, ou seja, agentes livres com capacidade para tomar as suas próprias decisões, estabelecer os seus próprios objetivos e guiar a sua conduta pela razão. Uma vez que a lei moral é a lei da razão, os seres racionais são a encarnação da lei moral em si. A única forma de a bondade moral poder existir é as criaturas racionais apreenderem o que devem fazer e, agindo a partir de um sentido de dever, fazê-lo. Isto, pensava Kant, é a única coisa com «valor moral». Assim, se não existissem seres racionais a dimensão moral do mundo simplesmente desapareceria. Não faz sentido, portanto, encarar os seres racionais apenas como um tipo de coisa valiosa entre outras. Eles são os seres para quem as meras «coisas» têm valor, e são os seres cujas ações conscientes têm valor moral. Kant conclui, pois, que o seu valor tem de ser absoluto, e não comparável com o valor de qualquer outra coisa. “Se o seu valor está «acima de qualquer preço», segue-se que os seres racionais têm de ser tratados «sempre como um fim e nunca apenas como um meio». Isto significa, a um nível muito superficial, que temos o dever estrito de beneficência relativamente às outras pessoas: temos de lutar parapromover o seu bem-estar; temos de respeitar os seus direitos, evitar fazer-lhes mal, e, em geral, «empenhar-nos, tanto quanto possível, em promover a realização dos fins dos outros». Mas a ideia de Kant tem também uma implicação um tanto ou quanto mais profunda. Os seres de que estamos a falar são racionais, e «tratá-los como fins em si» significa respeitar a sua racionalidade. Assim, nunca podemos manipular as pessoas, ou usá-las, para alcançar os nossos objetivos, por melhores que esses objetivos possam ser. Kant dá o seguinte exemplo, semelhante a outro que utiliza para ilustrar a primeira versão do seu imperativo categórico: suponha que precisa de dinheiro e quer um empréstimo, mas sabe que não será capaz de devolvê-lo. Em desespero, ponderá fazer uma falsa promessa de pagamento de maneira a levar um amigo a emprestar-lhe o dinheiro. Poderá fazer isso? Talvez precise do dinheiro para um propósito meritório — tão bom, na verdade, que poderia convencer-se a si mesmo de que a mentira seria justificada. No entanto, se mentisse ao seu amigo, estaria apenas a manipulá-lo e a usá-lo «como um meio». Por outro lado, como seria tratar o seu amigo «como um fim»? Suponha que dizia a verdade, que precisava do dinheiro para um certo objetivo, mas não seria capaz de devolvê-lo. O seu amigo poderia, então, tomar uma decisão sobre o empréstimo. Poderia exercer os seus próprios poderes racionais, consultar os seus próprios valores e desejos, e fazer uma escolha livre e autónoma. Se decidisse de fato emprestar o dinheiro para o objetivo declarado, estaria a escolher fazer seu esse objetivo. Dessa forma, o leitor não estaria a usá-lo como um meio para alcançar o seu objetivo, pois seria agora igualmente o objetivo dele. É isto que Kant queria dizer quando afirmou que «os seres racionais […] têm sempre de ser estimados simultaneamente como fins, isto é, somente como seres que têm de poder conter em si a finalidade da ação». A concepção kantiana da dignidade humana não é fácil de entender; é provavelmente a noção mais difícil discutida neste livro. Precisamos de encontrar uma forma de tornar a ideia mais clara. Para isso, analisaremos com algum detalhe uma das suas aplicações mais importantes. Isto pode ser bem melhor do que uma discussão teórica árida. Kant pensava que se tomarmos a sério a ideia da dignidade humana seremos capazes de entender a prática da punição de crimes de uma forma nova e reveladora”. James Rachels, Elementos da Filosofia Moral A fórmula da lei universal “Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal”. Esta fórmula do imperativo categórico serve para testar a correção moral das nossas máximas; se a máxima da nossa ação se pode tornar uma norma moral universal. A fórmula da humanidade “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio”. Os seres humanos racionais têm um valor intrínseco absoluto, incondicional e devem, por isso, ser tomados como fins em si (pessoas) e nunca como simples meio. Respeitar as pessoas significa tratá-las como fins em si e nunca como meros instrumentos que nos sirvam para atingir os nossos objetivos. Tratar alguém como meio não é moralmente incorreto desde que respeitemos a sua vontade (estamos simultaneamente a tratá-la como fim não como mero meio). Questões: 1. Em que medida as duas fórmulas do imperativo categórico se relacionam entre si? 2. Qual a diferença entre tratar alguém como meio e mero meio? A FÓRMULA DA LEI UNIVERSAL “Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal” Uma ação é moralmente correta se a sua máxima (regra de ação que nos indica o motivo por que fazemos algo) puder ser universalizada, se se pode tornar um princípio universal de ação; A FÓRMULA DA HUMANIDADE “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio” Cada ser humano é um fim em si e nunca um simples meio (é moralmente errado instrumentalizar os outros usando-os como meros meios para atingir um objetivo); Os seres humanos, enquanto seres racionais, têm valor intrínseco absoluto (dignidade); Nenhum ser humano vale mais do que outro (pela condição de ser racional) Esta fórmula não proíbe as pessoas de serem meios umas para as outras, desde que sejam tratadas com respeito e não apenas como meios, ou tratadas como instrumentos ou objetos. AS AÇÕES MORALMENTE BOAS SÃO REALIZADAS POR DEVER ↓ DEVER É A NECESSIDADE DE UMA AÇÃO POR RESPEITO À LEI MORAL ↓ AGIR POR DEVER É CUMPRIR O QUE A LEI MORAL EXIGE ↓ A LEI MORAL É UMA LEI DA CONSCIÊNCIA DO SER RACIONAL QUE LHE DIZ COMO CUMPRIR O DEVER ↓ A LEI MORAL APRESENTA- SE AO HOMEM SOB A FORMA DE MANDAMENTO (ORDEM) - IMPERATIVO CATEGÓRICO 2. O que é liberdade? Imperativo hipotético: razão instrumental, sempre condicional (fazer X para alcançar Y); Imperativo categórico: incondicional, razão como fim em si mesmo (fazer X porque é o dever). Lei prática criada por cada um, que comanda absolutamente, sem quaisquer outros motivos. Aja apenas segundo um determinado princípio que, na sua opinião, deveria ser a lei universal, sem subverter a confiança social e sem priorizar os próprios apetites em detrimento dos demais. Aja de forma a tratar a humanidade, seja na sua pessoa, seja na de outrem, nunca como um simples meio/coisa, mas sempre ao mesmo tempo como fim. Heteronomia: quando buscamos o prazer e evitamos a dor, não estamos agindo com liberdade, mas como escravos de apetites e desejos, que são determinações exteriores (biológicas ou sociais); Ex.: por que estudar Direito? (dinheiro, fama, poder, etc – fazer algo para atingir um fim exteriormente determinado). Por que vou à escola? Porque obedeço a autoridade de meus pais. Autonomia: sem a qual não há responsabilidade moral, define-se por uma escolha do fim em si, não dos meios para atingir determinado fim. Ex.: por que estudar Direito? Para conhecer o Direito. Por que vou à escola? Porque quero aprender.