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Coleção Zero à Esquerda
Coordenadores: Paulo Eduardo Arantes e má Camargo Costa
— Desafortunados
David Snow e Leon Anderson
- Diccionario de bolso do Almanaque philosophico Zero à Esquerda
Paulo Eduardo Arantes
— Globalização em questão
Paul Hirst e Grahame Thompson
— A ilusão do desenvolvimento
Giovanni Arrighi
— As metamorfoses da questão social
Robert Caste!
— Os moedeiros falsos
José Luís Fiori
— Poder e dinheiro: Uma economia política da globalização
Maria da Conceição Tavares e José Luís Fiori (ens.)
— Terrenos vulcânicos
Dolf Oehler
— Os últimos combates
Robert Kurtz
Conselho editorial da Coleção Zero à Esquerda:
Otília Beatriz Fiori Arantes
Roberto Schwarz
Modesto Carone Netto
Fernando Haddad
Maria Elisa Burgos Pereira da Silva Cevasco
Ismail Norberto Xavier
José Luís Fiori
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, Si', Brasil)
Castel, Robert
As metamorfoses da questão social : uma crônica do salário / Ro-
bert Castel ; tradução de Iraci D. Poleti. — Petrópolis, RJ : Vozes, 1998.
Título original : Les metamorphoses de la question sociale.
ISBN 85-326-1954-1
1. Desemprego 2. Salários 3. Sociologia industrial 4. Trabalho e
classes trabalhadoras I. Título.
97-5815 CDD-306.36
Indices para catálogo sistemático:
1. Salários: Questão social: Sociologia do trabalho 306.36
Robert Castel
As metamorfoses
da questão social
Uma crônica do salário
Tradução: Iraci D. Poleti
kf EDITORA
VOZES
Petrópolis
1998
VII — A sociedade salarial
Condição proletária, condição operária, condição salarial:
três formas dominantes de cristalização das relações de traba-
lho na sociedade industrial, e também três modalidades das
relações que o mundo do trabalho mantém com a sociedade
global. Se, esquematicamente falando, elas se sucedem, seu
encadeamento não é linear. Quanto à questão aqui levantada
do estatuto da condição de assalariado enquanto suporte de
identidade social e de integração comunitária, apresentam so-
bretudo três de suas figuras irredutíveis.
A condição proletária representa uma situação de quase-
exclusão do corpo social. O proletário é um elo essencial no
processo de industrialização nascente, mas está condenado a
trabalhar para se reproduzir e, segundo a expressão já citada
de Auguste Comte, "acampa na sociedade sem se encaixar".
Sem dúvida, não viria ao espírito de nenhum "burguês" dos
inícios da industrialização —tampouco, em sentido inverso, ao
de nenhum proletário — comparar sua situação com a dos ope-
rários das primeiras concentrações industriais quanto ao modo
de vida, habitação, educação, lazer... Mais do que da hierarquia,
trata-se então de considerar um mundo clivado pela dupla opo-
sição do capital e do trabalho, da seguridade-propriedade e da
vulnerabilidade de massa. Clivado mas também ameaçado. A
"questão social" é então, exatamente, a tomada de consciência
de que essa fratura central, posta em cena através das descri-
415
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL
ções do pauperismo, pode levar à dissociação do conjunto da
sociedade'.
A relação da condição operária com a sociedade conside-
rada como um todo é mais complexa. Constituiu-se uma nova
relação salarial e, através dela, o salário deixa de ser a retri-
buição pontual de uma tarefa. Assegura direitos, dá acesso a
subvenções extratrabalho (doenças, acidentes, aposentadoria)
e permite uma participação ampliada na vida social: consumo,
habitação, instrução e até mesmo, a partir de 1936, lazer. Ima-
gem, dessa vez, de uma integração na subordinação. Porque
até os anos 1930, momento em que tal configuração se cris-
taliza na França, a condição de assalariado corresponde essen-
cialmente ao conjunto de assalariados operários. Remunera as
tarefas de execução, as que estão situadas na base da pirâmide
social. Porém, ao mesmo tempo, esboça-se uma estratificação
mais complexa do que a oposição dominantes-dominados que
compreende zonas interseqüentes através das quais a classe ope-
rária vive a participação na subordinação: o consumo (mas de
massa), a instrução (mas primária), o lazer (mas popular), a ha-
bitação (mas a habitação popular) etc. É por isso que tal estrutura
I O termo "Central" deve ser entendido aqui em relação à sociedade indus-
trial. Não seria possível esquecer que a França ainda está no início do século
XIX e será, por muito tempo, uma sociedade predominantemente campo-
nesa. Uma resposta indireta, mas essencial, para a questão social criada pela
industrialização pode consistir em freá-la. Richard Kuisel descreve, sob o
nome de "liberalismo equilibrado" essas estratégias cheias de desconfiança
em relação a operários da indústria, ao crescimento das cidades, a unia
instrução demasiado geral e abstrata que poderia "desarraigar" o povo etc.,
e, inversamente, de apoio às categorias que têm um papel estabilizador sobre
o equilíbrio social: trabalhadores independentes, pequenos empresários e,
sobretudo, pequenos camponeses. "Um crescimento gradual e equilibrado
em que todos os setores da economia progrediriam no mesmo ritmo, sem
que os grandes pudessem eclipsar os pequenos, sem que as cidades pudessem
esvaziar o campo de sua substância: essa continuava a ser a imagem ideal da
prosperidade nacional" (R. ICuisel, Le capitalistne et l'État en France, op. cit., p. 72). Stnall is beautiful. Esse contexto sócio-econômico deve ser con-
traposto aos processos que tento evidenciar. Explica a lentidão com que a
industrialização impôs sua marca ao conjunto da sociedade francesa. De
fato, a França só se converteu ao "industrialismo" após a Segunda Guerra
Mundial, algumas décadas antes dele desmoronar.
416
de integração é instável. O conjunto dos trabalhadores pode
se contentar com estar acantonado em tarefas de execução,
mantido à distância do poder e das honras, enquanto a socie-
dade industrial desenvolve uma concepção demitirgica do tra-
balho? Quem cria a riqueza social e quem dela se apropria
indevidamente? O momento em que se estrutura a classe ope-
rária é também aquele em que se afirma a consciência de classe:
entre "eles" e "nós", nada está definitivamente decidido.
O advento da sociedade salarial2 não será, no entanto, o
triunfo da condição operária. Os trabalhadores braçais foram
menos vencidos numa luta de classes do que ultrapassados pela
generalização da condição de assalariado. Assalariados "bur-
gueses", funcionários, quadros, profissões intermediárias, se-
tor terciário: a salarização da sociedade cerca o operariado e
subordina-o novamente, desta vez sem a esperança de que
possa, um dia, impor sua liderança. Se todo mundo, ou quase,
é assalariado (mais de 82% da população ativa em 1975), é a
partir da posição ocupada na condição de assalariado que se
define a identidade social. Cada um se compara a todos, mas
também se distingue de todos; a escala social comporta uma
graduação crescente em que os assalariados dependuram sua
identidade, sublinhando a diferença em relação ao escalão in-
ferior e aspirando ao estrato superior. A condição operária
ocupa sempre, ou quase sempre, a base da escala (há também
os imigrantes, semi-operários, semibárbaros, e os miseráveis
do quarto mundo). Mas que prossiga o crescimento, que o
Estado continue a estender seus serviços e suas proteções e,
quem merecer, poderá também "subir": melhorias para todos,
progresso social e bem-estar. A sociedade salarial parece arre-
batada por um irresistível movimento de promoção: acumu-
lação de bens e de riquezas, criação de novas posições e de
oportunidade inéditas, ampliação dos direitos e das garantias,
multiplicação das seguridades e das proteções.
2 Emprego aqui o conceito de sociedade salarial no sentido que lhe dão
Michel Aglietta e Anton Bender, Les métamorphoses de ia société salariale,
Paris, Calmann-Lévy, 1984, e pretendo desenvolver suas implicações socio-
lógicas neste capitulo.
417
A SOCIEDADE SALARIAL
Esteda rapidez
das cadências... E. uma relação social de subordinação e de
privação da posse que se instala pela mediação da relação téc-
nica de trabalho. Simone Weil insiste sobre o "torniquete da
subordinação"-" que caracteriza a situação do operário no tra-
balho. É destinado às tarefas de execução. Tudo o que é con-
cepção, reflexão, imaginação lhe escapa. Ora, porque é uma
55 As primeiras ocupações de fábricas se dão nos setores metalúrgico e aero-
náutico, isto é, nas regiões industriais mais "modernas". Sobre as mudanças
ocorridas no movimento operário desde o início da década de 30, que põem
em primeiro plano os operários das grandes indústrias em detrimento dos
setores presos às tradições artesanais ou aos funcionários do Estado, cf. G.
Noiriel, Les ouvriers dans la société française, op. cit., cap. V Sobre as trans-
formações que se deram no interior da CGT propriamente dita (reunificada,
1935), cf. A. Prost, La CGT à ['Epoque du Front populaire, 1934-1939, Paris,
A. Colin, 1964.
54 Cf. G. Friedmann, Le travail en miettes, Paris, Gallimard, 1963.
SS S. Weil, La condition ouvrière, op. cit., p. 242.
441
1
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
situação social e não somente uma relação técnica de trabalho,
essa condição de dependência não é deixada no vestiário quan-
do se sai da fábrica. Ao contrário, como cantará Yves Montand
em Luna Park, ela o acompanha do lado de fora como contra-
ponto. Sem dúvida, pode-se dizer com Alain Touraine que "a
consciência operária é sempre orientada por uma dupla exi-
gência: criar obras e vê-las reconhecidas socialmente enquanto
tais"". Mas então, na maioria das vezes, é uma consciência
infeliz, a consciência de um déficit, dentro da fábrica e fora
dela, entre a importância do papel de trabalhador-produtor
na raiz da criação da riqueza social e o reconhecimento, ou
melhor, o não-reconhecimento, que lhe é conferido pela co-
letividade. É essa relação entre uma situação de dependêncií
nos locais de trabalho e uma posição socialmente desvalorizada
que ata o destino dos operários: "Nenhuma intimidade liga
os operários aos locais e aos objetos entre os quais sua vida se
esgota, e a fábrica faz deles, no seu próprio país, estrangeiros,
exilados, desaraigados"57.
Certamente, tal contradição é particularmente legível a
partir da situação dos operários da grande indústria, submetidos
às formas modernas de racionalização do trabalho, e são mino-
ritários na classe operárias'. Mas ela não faz senão pressionar até
o limite uma característica geral da condição dos trabalhadores:
a consciência do papel socialmente subordinado, destinado ao
trabalho braçal. Essa concepção do trabalho operário, reduzi-
do só às tarefas de execução, indispensáveis mas sem nenhuma
dignidade social, parece evidente e vale para todas as formas
de trabalho braçal. É a tese central da primeira análise com
pretensão científica da condiçãO operária:
56 A. Touraine, La conscience ouvrière, Le Seuil, 1966, p. 242.
57 S. Weil, La condition ouvrière, op. cit., p. 34.
5g Em 1936, as 350 maiores empresas empregam 900.000 operários (H.
Noguères, La vk quotidienne au temps du Front populaire, op. cit., p. 97).
Os estabelecimentos com mais de 500 assalariados empregam mais ou menos
um terço dos 5,5 milhões dos assalariados da indústria (cf. F. Sellier, Les
salariés en France, Paris, PUF, 1975).
442
A SOCIEDADE SALARIAL
A situação do operário contrasta com a do empregado, do fun-
cionário, como ele não comerciantes, mas a quem são remune-
rados, ao mesmo tempo que o trabalho, a antigüidade de serviço,
as qualidades intelectuais ou morais. [...] Do trabalho operário,
só são remuneradas operações mecânicas e quase automáticas,
porque o operário deve abster-se de toda iniciativa e visar so-
mente a se tornar um instrumento seguro e bem adaptado a uma
tarefa simples ou complexa, mas sempre monótonas'.
O operário não pensa, todos sabem disso, e a Sociologia
nascente prova até mesmo que ele não pode pensar. É ainda,
como se verá, a idéia condutora da monumental síntese que
François Simiand dedica à condição de assalariado em 193260 .
O trabalho operário continua a ser definido como o estrato
inferior do trabalho, tecnicamente o mais grosseiro e social-
mente o menos digno.
Os operários não partilham necessariamente essa concep-
ção do trabalho que as construções eruditas da Sociologia e
da Economia, bem como as representações das classes dominan-
tes apresentam. O movimento operário começou, desde a origem
(é já o leitmotiv do Atelier, composto e publicado pelos próprios
operários entre 1840 e 1850), a afirmar a dignidade do trabalho
braçal e sua preeminência social enquanto verdadeiro criador
das riquezas. Mais tarde, até se vai ver a transformação em heróis
de algumas figuras operárias, como o mineiro ou o metalúrgico,
portadores de uma concepção prometeica do mundo'''. Mas a
exaltação do trabalho não suprime o sentimento da dependência
operária. É exatamente essa coexistência de uma afirmação da
dignidade e de uma experiência da privação de posse que está
no princípio da consciência de classe operária. Esta se forjou
no conflito, a partir da tomada de consciência coletiva do fato
"M. Halbwachs, La classe ouvrière et les niveaux de vie, Paris, 1912, p. 118
e 121.
60 E Simiand, Le salaire, l'évolution sociale et la monnaie, 3 tomos, Paris,
1932.
61 Para um protótipo dessa literatura, cf. A. Stil, Le mot mineur, cama rade,
Paris, 1949.
443
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
de ser expoliada dos frutos de seu trabalho. A própria postura
reivindicativa não se dá, pois, sem a consciência da subordi-
nação. Sentir-se dependente constitui o motor da luta para se
reapropriar da dignidade social do trabalho "alienado" pela
organização capitalista da produção.
Seria possível, portanto, caracterizar o lugar que a condi-
ção operária ocupa na sociedade da década de 30 por uma
relativa integração na subordinação. Os fatores de pertenci-
mento foram sublinhados: seguros sociais, direito do trabalho,
ganhos salariais, acesso ao consumo de massa, relativa parti-
cipação na propriedade social e até mesmo no lazer. O traço
comum dessas conquistas é que contribuíram para estabilizar
a condição operária, instaurando uma distância em relação à
imediatidade da necessidade. Neste sentido, a condição ope-
rária difere muito da condição proletária do começo da indus-
trialização, marcada por uma vulnerabilidade de todos os
momentos. E também nesse sentido, pode-se falar de integra-
ção: a classe operária foi repatriada da posição de quase-ex-
clusão que ocupava quando na margem extrema da sociedade.
Entretanto, esse repatriamento se insere num quadro que
ainda contém traços dualistas. Entendamos bem: sociedade
ainda dualista, mas não dual. Uma sociedade dual é uma so-
ciedade de exclusão em que certos grupos não têm nada e não
são nada, ou quase. No modelo que evoco aqui, coexistem
cortes e interdependência, prevalecem relações de dominação
que não correspondem, entretanto, a situações em que os su-
bordinados estão entregues à arbitrariedade. Mas a coexistên-
cia de independência na dependência alimenta o sentimento
de uma oposição global de interesses entre dominantes e su-
bordinados. Semelhante estrutura social é vivida através da
bipolaridade entre "eles" e "nós", tão bem evidenciada por
Richard Hoggart62. "Nós", a gente não é zumbi; temos a nossa
dignidade, nossos direitos, nossas formas de solidariedade e
de organização. Que nos respeitem: o operário não é uni do-
62 R. Hoggart, La culture du pauvre, trad. fr. Paris, Éditions de Minuit, 1970.
444
méstico, não está completamente sob o domínio da necessida-
de, nem à mercê da arbitrariedade de um senhor. Orgulho
operário que sempre preferirá se virar para "juntar as duas
pontas" ao invés de pedir ajuda: "nós", a gente ganha nossa
vida. Mas "eles", é realmente outra coisa. "Eles" têm riqueza,
poder, acesso à cultura legítima e a uma multidão debens que
nunca conheceremos. "Eles" são pretensiosos e esnobes, e é
necessário desconfiar deles mesmo quando pretendem querer
nosso bem, porque são astutos e capazes de manhas que nunca
poderemos controlar.
A consciência dessa clivagem é mantida pela experiência
que a classe operária vive nos principais setores da existência
social, o consumo, a habitação, a instrução, o trabalho. O
consumo, como já foi dito, não se reduz mais à satisfação das
necessidades básicas para a sobrevivência e a classe operária
tem acesso a um "consumo de massa". Porém, a parte destinada
à alimentação nos orçamentos operários ainda é de 60% nos
anos 1930 (é superior a 70% em 1856 e a 65% em 18906 ).
Maurice Hal bwachs, como Veblen, mostrou as incidências an-
tropológicas da diminuição de uma parte majoritária do orça-
mento sobre o consumo alimentar: é a participação na vida
social que se acha amputada pela fragilidade das despesas que
não têm por finalidade a reprodução biológica". Suas análises
são de 1912, mas a situação não mudou substancialmente 25
anos mais tarde: do fim do século XIX até a década de 30, a
parte das despesas não alimentares nos orçamentos operários
ganhou apenas cinco pontos.
A habitação popular também não é exatamente o "inferno
da moradia" que Michel Verret evoca para o século XIX, mas
a insalubridade e o superatravancamento ainda são o quinhão
da maioria das moradias populares. Em relação a Paris, uma
63 R. Boyer, "Les salaires en longue période", Économie et statistiques, n°
103, set. 1978, p. 45. Somente no final dos anos 1950 é que o item alimen-
tação, no orçamento dos operários, passa a ficar abaixo de 50%.
64 M. Halbwachs, La classe ouvriére et les niveaux de vie, op. cit., cf. E. Veblen, The Theory of the Leisure Class, Londres, 1924.
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A SOCIEDADE SALARIAL
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL
pesquisa de 1926 mostra que um habitante em cada quatro
dispõe de menos de meio cômodo e que os horríveis "quartos
mobiliados" alojam ainda 320 mil pessoas. A situação quase
não melhora nos anos seguintes: constroem-se apenas 70 mil
habitações por ano na França no fim dos anos 30, contra 250
mil na Alemanha". O urbanismo das "cidades-jardins" per-
manece restrito a algumas municipalidades socialistas ou ra-
dicais, e as experiências do tipo Cidade Radiosa à moda de Le
Corbusier são excepcionais. Ademais, são para os empregados
e as classes médias nascentes mais do que para os operários".
Quanto à instrução, a gratuidade do ensino secundário só
é conquistada em 1931. Os efetivos deste ensino permanece-
ram constantes entre 1880 e 1930, 110 mil alunos em média°.
É o mesmo que dizer que as crianças das classes populares
estão acantonadas nas fileiras "primárias". O tema do perigo
de uma instrução avançada demais que "desarraiga" o povo é
uma constante da literatura da época". Jean Zay, ministro do
Frota Populaire, prolonga até 14 anos a escolaridade obriga-
tória e senta impor uma classe de orientação e um tronco co-
mum para todos os alunos. Mas a "democratização" (relativa)
do ensino deverá esperar a década de 50 para se impor.
Em relação ao emprego, sublinhou-se a situação de depen-
dência social dos operários nos locais de trabalho. Mas, além
disso, o mercado de trabalho ainda é dominado, nos anos 30,
por uma mobilidade feita de incerteza sob a ameaça de demis-
são contra o que a legislação do trabalho não protege. As con-
tratações por tarefa, por hora ou por jornada são as mais
freqüentes. Na maioria das vezes, não existe nem contrato
escrito nem estipulação preliminar da duração da contrafação.
65 Cf. J.-E Flamand, Loger le peuple. Essai sur l'histoire du logement social,
Paris, La Découverte, 1989.
66 L. Haudeville, Pour une civilisation de ('habitat, Paris, Editions ouvrières,
1969.
67 ct A. Prost, Histoire de l'enseignement en France, 1800-1967, Paris, A.
Colin, 1968.
611 Desde M. Barrès, Les Déracinés, Paris, 1897.
446
O operário "pede sua conta" ou o empregador o "despede",
um e outro com uma facilidade espantosa". E há, evidente-
mente, a ameaça do desemprego que a crise do início dos anos
30 acaba de reativar. Os imigrantes sofrem-na de frente: 600
mil, de cerca de dois milhões de estrangeiros que vieram se
instalar na França na seqüência da punção demográfica devida
à Grande Guerra, são expulsos. Mas os autóctones não são
poupados. Em 1936, recenseia-se cerca de um milhão de de-
sempregados". O momento do Frota Populaae é também um
período de instabilidade econômica e social a que logo vai
suceder o drama da derrota.
Enfim, insistiu-se longamente sobre isto: o seguro obriga-
tório é um dispositivo que vai se mostrar decisivo para afastar
a vulnerabilidade operária. Porém, nos anos 30, começa apenas
a fazer sentir seus efeitos. As aposentadorias operárias são ir-
risórias e, dadas a duração da capitalização e a mortalidade
operária, há então menos de um milhão de beneficiário». Na
década de 30, os velhos operários que devem recorrer à assis-
tência para sobreviver são quase tão numerosos quanto os que
podem se beneficiar de subvenções sociais obrigatória».
A associação desses traços mostra a persistência de um
forte panicularismo operário. Nível de vida, nível de instru-
ção, modos de vida, relação com o trabalho, grau de partici-
pação na vida social, valores partilhados desenham uma
configuração específica que constitui a condição operária em
69 Cf. R. Saiais, "La formation du chiSmage corrune catégorie", loc. cit. Para
um testemunho autobiográfico sobre a vida operária na época, cf. R. Mi-
chaud, favais vingt ans, Paris, Editions syndicalistes, 1967, que mostra a
permanência da mobilidade profissional e do caráter "lábil" da relação com
o empregador.
7° Cf. J.-J. Carrê, E Dubois, E. Malinvaud, La croissance française, Paris, Le
Seuil, 1972. Os desempregados representam, então, 8,5% dos assalariados
e 4,5% da população ativa (F. Sellier, Les salariés en France, Paris, PUF, 1979,
p.87).
71 Cf. A. Prost, "Jalons pour une histoire des retraites et des retraités", loc.
cit.
72 A.-M. Guillemard, Le déclin du social, Paris, Le Seuil, 1986.
447
A SOCIEDADE SALARIAL
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
classe social. Não é mais a "casta flutuante [...] que se extravaza
na nação" que evocava Lamartine quando da primeira fase da
industrialização (cf. capítulo V). Mas "o isolamento social e
cultural dos operários continua bastante grande para que re-
lações de classes se estabeleçam entre suas unidades sociais que
ainda constituem grupos reais"". Sem dúvida, é necessário
desconfiar das pinturas, que hoje assumem uma tonalidade
nostálgica, da vida operária com suas solidariedades e sua mo-
ral, seus prazeres simples e suas formas intensas de sociabili-
dade. Entretanto, não é menos verdadeiro que, tanto pelo
lugar subordinado que ocupa na hierarquia social quanto por
sua coesão interna, o mundo operário aparece, simultanea-
mente, fazendo parte da nação e organizado em torno de in-
teresses e de aspirações próprios.
Essa situação mostra o quanto permanece instável o mo-
delo de integração que caracteriza os anos 30 e que continua
dominante até os anos 50. Será que a classe operária não se
tornou demasiado consciente de seus direitos — ou demasiado
ávida, dirão seus adversários—, demasiado combativa também
para que se perpetue sua dependência? Esta conjuntura incerta
poderia desembocar em dois tipos de transformação: prosse-
guimento das "conquistas sociais", corroendo progressiva-
mente a distância entre "eles" e "nós", ou então tomada do
poder pela classe operária organizada. Ou seja, para simplifi-
ca; reformas ou revolução. Tal poderia ser a reformulação da
questão social no fim da década de 30.
Trata-se menos de duas fórmulas antagônicas do que de
duas opções que se evidenciam a partir de uma mesma base
de práticas, de uma mesma condição. A classe operária não
está mais na situação de "não ter nada a perder além de suas
correntes".Donde a consolidação, no movimento operário,
"de um princípio positivo de objetivos a defender e a atinge'''.
Tal realismo caminha para a consolidação de um reformismo
73 A. Touraine, La conscience ouvrière, op. cit., p. 215.
p. 353.
448
que já deu suas provas, pois que conquistas importantes foram
obtidas. Mas não implica necessariamente no fim do messia-
nismo operário. No imaginário militante, 1936 ocupa um lu-
gar, ao lado de 1848 e da Comuna de Paris, entre esses
momentos fundadores durante os quais se esboçou a possibi-
lidade de uma organização alternativa da sociedade. A "gera-
ção" que se levantou em 1936 vai viver a Ocupação através
da Resistência e animar lutas sociais muito duras após a Liber-
tação, formando o núcleo, na CGT principalmente, de uma
atitude de classe combativa".
Principalmente porque não faltam inimigos pela frente. A
outra parte da alternativa é representada pela ameaça fascista
e por uma França conservadora que — como em 1848 ou em
1871 — espera sua revanche. Basta percorrer a imprensa da
época para perceber até que ponto foi um período de antago-
nismos políticos e sociais agudos. Desde o dia 5 de maio de
1936, Henry Béraud, no Gringoire, tenta mobilizar os medos
do francês médio contra a ameaça dos Vermelhos deste modo:
"Você gostava de seu jardinzinho, meu caro, de seu café, seus
amigos, seu carrinho, seu título de eleito; seus jornais salpi-
cados de sátiras e de variedades. Pois bem, amigo, você vai
dizer adeus a tudo isso"76. E do outro lado quando, no início
do ano de 1938, a derrota do Front Populaire está mais ou
menos consumada no plano político, Paul Faure escreve em le
Populaire, órgão oficial do Partido Socialista: "Negar a luta de
classes seria negar a luz do dia"77.
A destituição
Entretanto, a classe operária não foi vencida na ocasião
de uma luta frontal, como foram, por exemplo, os operários
parisienses em junho de 1848. Haveria, certamente, muito a
75 CL G. Noiriel, Les ouvriers dans la société française, op. cit., cap. V1.
76 Citado in P Reynaud, Mémoires, t. II, Paris, Flammarion, 1963, p. 51.
" Ibid., p. 151.
449
A SOCIEDADE SALARIAL AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
dizer sobre as peripécias do período da Ocupação e sobre a
participação de uma parte da classe operária na Resistência,
sobre o contexto da libertação, das greves quase insurrecionais
de 1947 e das lutas contra o "imperialismo americano", e tam-
bém sobre a obstinação da CGT e do Partido Comunista em
manter, pelo menos verbalmente, uma postura revolucionária:
são outros tantos episódios de um enfrentamento social cris-
talizado nos anos 30 e que permanecerão vivos até os anos 60.
Mas essa postura de oposição radical se corrói progressiva-
mente porque, aquém das vicissitudes políticas, está minada
por uma transformação de natureza sociológica. A classe ope-
rária foi destituída da posição de ponta de lança que ocupava
pela promoção da condição de assalariado. Esquematizando
a transformação que se realizou durante cerca de 40 anos (dos
anos 30 aos anos 70), dir-se-á que o "particularismo operário"
não foi abolido, mas deixou de desempenhar o papel de "atra-
tivo"78 que tinha tido no processo de constituição da sociedade
industrial. O salariado operário foi literalmente esvaziado das
potencialidades históricas que o movimento operário lhe em-
prestava. A condição operária não deu à luz uma outra forma
de sociedade, apenas se inscreveu num lugar subordinado na
sociedade salarial. Quais os processos que subentendem tal
transformação?
A quase-sinonímia do salariado e do salariado operário é
patente até o início dos anos 30. François Simiand, em sua
obra de 1932 que pretende ser uma súmula sobre o salário,
confirma-a pura e simplesmente:
A denominação de salário parece-nos, no uso corrente, aplicar-se
em sentido próprio, de maneira ao mesmo tempo geral e tópica,
78 Tomo emprestado de Luc Boltansld o termo "infiuenciador", Les cabes,
Ia formation d'un groupe social, Paris, Éditions de Minuit, 1982, p. 152, que
especifica o papel dominante desempenhado por um grupo social na reor-
ganização de um campo profissional. Poder-se-ia dizer que o conjunto dos
assalariados operários desempenhou primeiro esse papel quanto à reestru-
turação da condição de assalariado, antes de ser suplantado por um conjunto
de assalariados empregados de classes médias.
450
à categoria dos operários, distintos dos serviçais na agricultura,
dos empregados no comércio, na indústria e também na agri-
cultura, dos chefes de serviço, de exploração, engenheiros, di-
retdres de todos os gêneros".
De fato, somente a classe operária produz "uma prestação
de puro trabalho" que constitui "um quadro econômico dis-
tinto"80. Mas o que é uma "prestação de puro trabalho"? Um
trabalho puramente braçal, sem dúvida, mas há também o tra-
balho nas máquinas, e Simiand é obrigado a acrescentar uma
nuance: o operário aluga "um trabalho braçal ou, ao menos,
cuja parte manual é essencial"81. É também um trabalho de
pura execução, mas os empregados não são freqüentemente
puros executores? Simiand acrescenta uma outra correção que
trai seu embaraço: o empregado "aluga um trabalho não-braçal
ou, pelo menos, cujo efeito material não é essencial"82. E como
ficam os chefes de serviço, engenheiros, diretores, que não são
proprietários da empresa? Também eles fornecem, exclusiva-
mente, uma "prestação em trabalho". Por que lhes recusar o
estatuto de assalariados do estabelecimento? Mas, para Si-
miand, isso não se discute.
De fato, Simiand ocupa uma posição defensiva, já em via
de ser ultrapassada e que remete ao modelo de sociedade do
começo da industrialização, caracterizado pela predominância
das tarefas de transformação direta da matéria. Ora, o processo
de diferenciação da condição de assalariado já está muito en-
gajado nos anos 30. Relativiza progressivamente o peso do
salariado operário e, portanto, o da condição operária na or-
ganização do trabalho. Será evidenciado o sentido dessas trans-
79 F. Simiand, Le salaire, l'évolution sociale et Ia monnaie, op. cit., t. 1, p.
151. É por isso que a remuneração das outras formas de trabalho deve ter
outras designações: "vencimentos", "ajudas de custo", "emolumentos",
"gratificação de função" etc., mas não "salários".
e° Ibid., p. 173.
n Ibid., p. 171.
Ri .
Ibsd., p. 171.
451
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
452
A SOCIEDADE SALARIAL
formações até 1975, data que pode ser tomada para marcar a
apoteose da sociedade salarial 3.
Crescimento maciço da proporção dos assalariados na po-
pulação ativa em primeiro lugar: representa menos da metade
(49%) desta população em 1931, perto de 83% em 1975. Em
números absolutos, quando se incluem os operários agrícolas, o
número dos trabalhadores braçais caiu de 9 milhões e 700 mil
para 8 milhões e 600 mil; em compensação, o total dos operários
não-agrícolas aumentou ligeiramente, de 7 milhões e 600 mil
para 8 milhões e 200 mil. Mas a transformação essencial da
composição da população ativa é o aumento dos assalariados
não-operários. Eram 2,7 milhões em 1931; são 7,9 milhões em
1975. Portanto, seu número quase alcançou o dos operários (e
o ultrapassou amplamente depois). Mas também são considerá-
veis as transformações internas a esse grupo. Ainda que os dados
estatísticos não permitam comparações de precisão absoluta (as-
sim, mesmo que se contem então cerca de 125.000 "peritos e
técnicos", as categorias de "quadros médios e de quadros supe-
riores" não existem nos anos 30), pode-se afirmar que a grande
maioria dos assalariados não-operários eram pequenos empre-
gados dos setores público e privado, cujo status, se não era
considerado superior ao dos operários, permanecia, em geral,
medíocre. Em 1975, entretanto, os "simples empregados" re-
presentam menos da metade dos assalariados não-operários,
diante de 2.700.000 "quadros médios" e 1.380.000 "quadros
superiores": são esses grupos que representam um salariadode grau alto que conheceram o aumento mais considerável84.
83 Geralmente se situa em 1973 a "crise" a partir de que a condição salarial
começou a degradar-se. Mas, além do fato de que os primeiros efeitos só
são sentidos depois de um certo tempo (assim, o desemprego aumenta de
modo muito significativo apenas em 1976), 1975 representa uma data cô-
moda, porque inúmeros levantamentos estatísticos fixam-na como um mo-
mento de transição. Também se pode observar que é em 1975 que a
população operária chega ao máximo na França. A partir daí, começa a
diminuir regularamente.
Principais fontes utilizadas aqui, bem como, salvo menção contrária, nas
páginas seguintes: L. Thévenot "Les catégories sociales en 1975. Uextension
du salariat", Économie et statistiques, n° 91, julho-agosto de 1977; C. Bau-
Assim, as mudanças inventariadas pelas estatísticas traduzem
uma transformação essencial da estrutura salarial. Se, em núme-
ro, o salariado operário mais ou menos se manteve, sua posi-
ção, nessa estrutura salarial, fundamentalmente se degradou.
Em primeiro lugar, porque a classe operária perdeu, seria
possível dizer, o estrato salarial que lhe era inferior quanto ao
status social, ao salário e às condições de vida. Os operários
agrícolas representavam, ainda no início dos anos 30, um quar-
to dos trabalhadores braçais (eram mais da metade em 1876).
Em 1975, praticamente desapareceram (375.000). A classe
operária representa, desde então, a base da pirâmide salarial
— de fato, a base da pirâmide sociais'. Em contrapartida, acima
dela desenvolveram-se não só um salariado empregado — que
pode não ser amiúde, segundo a expressão consagrada, senão
um "proletariado de colarinho branco"86 —, mas sobretudo um
delot, A. Lebaupin, "Les salaires de 1950 à 1975", Économie et statistiques,
n° 113, julho-agosto de 1979; E Sellier, Les ralaria eis France, Paris, PUF,
1979; M. Vem; Le travail ouvrier, Paris, A. Colin, 1988; F. Sellier, "Les
salariés, croissance et diversité", et M. Verret, "Classe ouvrière, conscience
ouvrière", is J.-D. Reynaud, Y. Graffmeyer, Francais, qui êtes-vous?, Paris,
La Documentation française, 1981. Na falta de fontes homogêneas, a data
de referência para os anos 30 pode variar de 1931 a 1936, mas as conse-
qüências dessa disparidade são mínimas no que diz respeito à argumentação
geral.
83 O crescimento do conjunto de assalariados da indústria alimenta-se de
duas fontes principais: a redução das profusões independentes e o êxodo
rural. Sobre o último ponto, cf. E Sellier, Les salanês es France, op. cit., p.
10 sq, que insiste numa grande resistência do campesinato à atração da cidade
e da indústria (em 1946, a população ativa agrícola é praticamente tão nu-
merosa quanto em 1866). Disso resulta que quem deixa o campo primeiro
são os operários agrícolas e não os agricultores, também os filhos antes dos
adultos, mas os filhos de assalariados antes dos filhos de agricultores. Assim,
para esses operários agrícolas e seus filhos, o acesso à classe operária pôde
representar, durante muito tempo, uma relativa promoção social. Mas quan-
do esse recrutamento se esgota, a condição operária torna-se a última das
posições: aquela em que se fica quando não se pode "se levantar", ou na
qual se cai por mobilidade descendente.
86 O mundo dos empregados é atingido, principalmente após a Primeira
Guerra Mundial, pela racionalização do trabalho: o trabalho de escritório
mecaniza-se (a máquina de escrever aparece no início do século), especiali-
za-se, coletiviza-se e também se feminiza, o que sempre marca uma perda
453
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL
salariado "burguês". O salariado operário corre o risco, então,
de ser submerso numa concepção cada vez mais extensiva da
condição de assalariado e, ao mesmo tempo, esmagado pela
proliferação de situações salariais sempre superiores à sua. Em
todo caso, despossuído do papel de "atrativo" que pôde de-
sempenhar para a constituição da condição de assalariado.
A análise da promoção da condição de assalariado dos anos
30 aos anos 70 confirma essa progressiva destituição da classe
operária. Luc Boltanski mostrou a dificuldade com que um
"salariado burguês" tinha começado a se impor segundo uma
lógica da distinção que aprofunda sua diferença em relação às
características do salariado operário. Nessa ocasião, foi apre-
sentado um novo episódio da oposição entre o trabalho assa-
lariado e o patrimônio, que já havia marcado o século XIX no
momento• das discussões sobre o seguro obrigatório: força da
tradição tornando difícil pensar posições respeitáveis que não
sejam assentadas sobre a propriedade ou sobre o capital social
vinculado aos "ofícios" e às profissões liberais. Assiste-se assim
a curiosos esforços para fundar a respeitabilidade de novas
posições salariais sobre um "patrimônio de valores que são,
de fato, os valores das classes médias, o espírito de iniciativa,
a poupança, a herança, uma modesta abastança, a vida sóbria,
a consideração"". A situação é então mais confusa à medida
que muitas dessas posições salariais de alto grau são primeiro
ocupadas por filhos de família detentoras de um patrimônio.
Tiram eles sua respeitabilidade de sua ocupação ou de sua
herança? Essas duas dimensões são difíceis de dissociar. Uma
de status social. Como muitos operários, o empregado das grandes lojas de
departamentos ou dos escritórios da fábrica perde a polivalência do clássico
empregado, tipo escrivão de tabelião, espécie de subempreitador de seu
empregador.
87 Abade J. Lecordier, Les classes moyennes en marche, Paris, 1950, p. 382,
citado por L. Boltanski, Les cabes, op. cit., p. 101, que observa o caráter
"tardio" desse texto de 1950 apresentando o mesmo tom que a literatura
dos anos 1930, empenhada em justificar a realidade de uma "classe média".
(É o caso de A. Desquerat, Classes moyennes françaises, crise, programme,
organisation, Paris, 1939).
454
ilustração da força desses obstáculos tradicionais para pensar
um salariado "burguês" integral: em 1937, a Corte de Cassa-
ção se recusa a reconhecer a qualidade de acidentado do tra-
balho a um médico: um homem da arte "não pode manter
uma relação de subordinação" com um diretor de hospital.
Esse médico ferido enquanto trabalhava não é, pois, o assala-
riado do estabelecimento público que o emprega".
É significativo que o primeiro grupo profissional "respei-
tável" a reivindicar a condição de assalariado seja o dos enge-
nheiros e, também, que tal iniciativa seja tomada em 1936: o
Sindicato dos Engenheiros Assalariados foi criado no dia 30
de junho de 1936 9. Afirmação de uma posição "média" entre
os patrões e os operários, preocupação também, sem dúvida,
em beneficiar-se das vantagens sociais conquistadas pela classe
operária, mas marcando a diferença em relação a ela. Em todo
caso, essa atitude será absolutamente clara após a guerra. A
Confederação Geral dos Quadros dedicará, então, uma parte
importante de sua atividade a reivindicar uma ampliação da
hierarquia dos salários e, ao mesmo tempo, um regime de
aposentadoria específico que evite qualquer risco de confusão
com as "massas" operárias.
Se constituíram, sem dúvida, a ponta-de-lança da promo-
ção de um salariado "burguês", os engenheiros estão longe de
representar o conjunto dos quadros da indústria. Desde sua
fundação, no final de 1944, a Confederação Geral dos Qua-
dros recruta de modo amplo. Define como quadro todo agente
de uma empresa pública ou privada, investido de uma parcela
de responsabilidade, o que inclui os agentes do magistério. Por
outro lado, os sindicatos operários são obrigados a implantar
estruturas especiais para receber "engenheiros e quadros": a
CFTC, desde 1944 (Fédération Française des Syndicats d'In-
génieurs a Cadres); a CGT, em 1948 (Union Générale des
Ingénieurs et Cadres").
Citado por L. Boltanski, Les cadres, op. cit., p. 107. 119
Ibid., p. 106.
90
p. 239 sq.
455
A SOCIEDADE SALARIALtema da segmentação do mercado do trabalho, isto é, distinção
entre núcleos protegidos e trabalhadores instáveis aparece no
início dos anos 7093. Sem dúvida, a unidade da classe operária
nunca foi realizada: por volta de 1936, as disparidades entre
diferentes categorias de trabalhadores quanto à sua qualificação,
ao seu status público ou privado, à sua nacionalidade, à sua im-
plantação em grandes indústrias ou em pequenas empresas
etc., deviam ser grandes também. Mas, então, parecia estar em
curso um processo de unificação através da tomada de cons-
ciência de interesses comuns e da oposição ao "inimigo de
classe". Porém, por razões que serão evocadas, desde antes da
década de 70, essa dinâmica parece quebrada, deixando a con-
dição operária entregue às suas disparidades "objetivas"".
Uma outra mudança, sublinhada com menos freqüência,
sem dúvida tem uma importância maior ainda para explicar
as transformações da condição operária considerada no longo
prazo. Uma pesquisa de 1978 — mas o movimento começou
bem antes — que, dentre outras, incide sobre o "principal tipo
de trabalho efetuado" pelos operários constata que os que se
dedicam a tarefas de fabricação representam apenas mais de
um terço da população operária? . Em outros termos, uma
maioria de operários dedica-se a tarefas que poderiam ser cha-
madas de infraprodutivas, do tipo manutenção, entrega, em-
" De fato, o tema emerge nos Estados Unidos durante os anos 60 e encontra
audiência na França nos anos 70, cf. M.J. Piore, "On the Job Training in the
Dual Labour Market", in A.A. Weber (ed.), Public and Private Manpower
Policies, Madison, 1969, e M.J. Piore, "Dualism in the Labour Market",
Revise économique, n° 1, 1978.
94 Faço minha a tese central de E.E Thompson segundo a qual uma classe
social não é apenas um "dado" ou uma coleção de dados empíricos. É "fa-
bricada" através de uma dinâmica coletiva que se forja no conflito (cf. E.P.
Thompson, La formation de la classe ouvrière anglaise, op. cit.).
95 A.-F. Moliné, 5. Volkoff, "Les conditions de travail des ouvriers et des
ouvrières", Économie et statistiques, n° 118, janeiro de 1980. Essa mudança
é fortemente ligada ao declínio das formas mais tradicionais do trabalho
operário. Assim, os mineiros, que eram 500.000 em 1930, não vão além dos
100.000 em 1975; as operárias do setor têxtil passaram de 1,5 milhão a
200.000 no mesmo período (cf. E Sellier, "Les salariés: croissance et diver-
sité", loc. cit., p. 48).
457
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
Paralelamente a essa transformação da estrutura salarial
das empresas, o desenvolvimento das atividades "terciárias"
está na origem da proliferação de um salariado não-operário:
multiplicação dos serviços no comércio, nos bancos, nas ad-
ministrações das coletividades locais e do Estado (só a Educa-
ção Nacional conta perto de um milhão de agentes em 1975),
abertura de novos setores de atividade, a comunicação, a pu-
blicidade"... A maioria dessas atividades são atividades assa-
lariadas. A maioria também supera em remuneração e em
prestígio o salariado operário. Desde 1951, Michel Collinet
pinta uma "classe operária assalariada" já muito complexa,
que compreende alguns empregados, os funcionários médios,
os chefe â de escritório, os quadros, os aAentes de mando in-
termediário, os técnicos, os engenheiros ...
Não só a condição operária é contornada e dominada por
uma gama cada vez mais diversificada de atividades salariais,
mas sua coerência interna enfrenta dificuldades. Em 1975,
contam-se mais ou menos 40% de operários qualificados, 40%
de operários especializados e 20% de operários não qualifica-
dos. A parte das mulheres cresceu para constituir 22,9% da
população operária, sobretudo nos empregos subqualificados
(46,6% dos não qualificados são mulheres). Quase um operá-
rio em cinco é imigrante. O desenvolvimento do setor público
(um quarto do conjunto dos assalariados) fortalece um outro
tipo de clivagem: os empregados do Estado, das coletividades
locais e das empresas nacionalizadas beneficiam-se, em geral,
de um estatuto mais estável do que aqueles do setor privado. O
9' A distinção entre as atividades primárias (agrícolas), secundárias (indus-
triais) e terciárias (os serviços) foi introduzida por C. Clark, The Cortditions
o( Economic Progress, Londres, Macmillan, 1940, e popularizou-se na Fran-
ça através da obra de Jean Fourastié. O desenvolvimento econômico e social
se traduz pelo desenvolvimento das atividades terciárias. Mas além do setor
terciário comercial e do administrativo, pode-se identificar um "terciário
industrial" que ganha importância cada vez maior. Trata-se de categorias de
empregos do setor industrial que não são diretamente produtivas, como o
caso dos datilógrafos, dos contadores...
92 M. Caba, L'ouvrier (rançais, essai sur Ia condition ouvrière, Paris, Edi-
tions ouvrières, 1951,2* parte, cap. IV
456
balagem, serviços de guarda etc., ou a atividades mais próximas
da concepção e da reflexão do que da execução, do tipo con-
trole das máquinas, regulagens, testes, manutenção, estudos,
organização do trabalho.
Trata-sede uma mudança considerável, se não da realidade
de todas as formas do trabalho operário, pelo menos da repre-
sentação dominante que lhe era dada na sociedade industrial.
O operário aparece aí como o homo [abes por excelência,
aquele que transforma diretamente a natureza através de seu
trabalho. O trabalho produtivo encarna-se num objeto fabri-
cado. Para a tradição da economia política inglesa, bem como
para o marxismo, o trabalho é essencialmente a produção de
bens materiais, úteis, consumíveis96. A atividade de fabricação
presta-se, aliás, a duas leituras opostas. Para Halbwachs, por
exemplo, evidencia o caráter limitado da condição operária
que "só se encontra em relação com a natureza e não com os
homens, permanece isolada em face da matéria, choca-se ape-
nas com as forças inanimadas". É por isso que a classe operária
parece "uma massa mecânica e inerte"97. Marx, ao contrário,
faz dessa atividade de transformação da natureza o próprio do
homem, a fonte de todo valor, e funda, assim, o papel demicir-
gico que atribui ao proletariado. Mas é provável que um e
outro — bem como Simiand, conforme foi visto — refiram-se à
concepção do trabalho operário que prevalecia no início da
industrialização e que começa a se tornar obsoleta com os
progressos da divisão do trabalho. O trabalho operário deixa
de ser o paradigma da produção das "obras"98.
96 Cf. R Lama, "Travail: concept ou notion multidimensionnelle", Futur an-
térieur, n° 10, 1992.
97 M. Halbwachs, La classe ouvrière et les niveaux de vie, op. cit., p. 118, e p.
XVII.
98 H. Arendt, em La condition de l'homme moderne, op. cit., cap. 111, critica a
confusão entre o trabalho e a obra que teria caracterizado a reflexão sobre o
trabalho no período moderno, não só em Marx mas já em Locke e Adam Smith.
Porém, poder-se-ia acrescentar que Harmah Arendt pode elaborar essa crítica
na metade do século XX, isto é, após quase dois séculos de transformação da
concepção do trabalho industrial tal como emergiu no início da industrialização.
458
Essas transformações em profundidade, tanto do trabalho
operário quanto do lugar que ocupa no seio da condição de
assalariado, não podem deixar de abalar a concepção do papel
que era atribuído à classe operária na sociedade industrial.
Poderá ela conservar a centralidade que, simultaneamente, lhe
emprestam os que exaltam seu papel revolucionário e os que
a percebem como uma ameaça para a ordem social? O debate
está lançado desde o final dos anos 50, e Michel Crozier é um
dos primeiros a proclamar que "acaba-se a era do proletaria-
do": "Uma fase de nova história social deve ser definitivamente
encerrada, a fase religiosa do proletariado"".
Entretanto, a sorte não está lançada completamente, por-
que as transformações da condição operária podem dar lugar
a duas interpretações aparentemente opostas.Uma "nova clas-
se operária" seria constituída através do desenvolvimento das
formas mais recentes que a divisão do trabalho assume. Mas
os novos agentes que desempenham um papel cada vez mais
decisivo na produção, operários das indústrias "de ponta",
mentores mais do que executores, técnicos, desenhistas, qua-
dros, engenheiros etc. continuam a ser destituídos do poder
de decisão e do essencial clos benefícios de seu trabalho pela
organização capitalista da produção. Ocupam assim, no que
se refere ao antagonismo de classes, uma posição análoga àque-
la do antigo proletariado e são, de agora em diante, os herdei-
ros privilegiados para retomar o empreendimento de
transformação revolucionária da sociedade que a classe ope-
rária tradicional, seduzida pelas sereias da sociedade de con-
sumo e enquadrada por aparelhos sindicais e políticos
reformistas, abandonamm.
99 Arguments, "Qu'est-ce que la classe ouvrière française", número especial,
janeiro-fevereiro-março de 1959, p. 33. O debate é retomado com a emer-
gência do tema da "nova classe operária", cf. o número especial da Revise
française des sciences politiques, vol. XXII, n°3, junho de 1972, particular-
mente o artigo de J.-D. Reynaud, "La nouvelle classe ouvrière, la technologie
et l'histoire".
100 Cf. Serge Mallet, La nouvelle classe ouvrière, Paris, Le Seuil, 1966.
459
A SOCIEDADE SALARIAL AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
Inversamente, a tese do "aburguesamento" da classe ope-
rária apóia-se na elevação geral do nível de vida que atenua
os antagonismos sociais. O "desejo de integrar-se numa socie-
dade onde prima a busca do conforto e do bem-estar"I°1 leva
a classe operária a dissolver-se progressivamente no mosaico
das classes médias.
Realmente, essas duas posições opostas são complemen-
tares, pelo menos quanto ao fato de que a mola propulsora de
sua argumentação é mais política do que sociológica. Serge
Mallet superestima o peso dessas novas camadas salariais in-
dustriaisw2. Sobretudo, superestima a capacidade da.classe
operária em representar o papel de "atrativo" para essas cate-
gorias novas que se afirmam através das transformações da
produção (particularmente, o desenvolvimento da automação,
tema privilegiado na Sociologia do Trabalho dos anos 60). No
entanto, desde 1936, a CGT tinha feito a amarga experiência
do "desafeto dos técnicos em relação ao movimento opera-
rio"us. Por volta de 1968, com raras exceções, a análise dos
conflitos sociais, mesmo "novos", mostra que o principal tro-
pismo dos técnicos, quadros e engenheiros leva-os a defende-
rem seus interesses específicos, passando pela manutenção da
diferenciação social e pelo respeito da hierarquia, mais do que
a fechar com as posições da classe operária. A não ser que
tenham fortes convicções políticas. Mas justamente: a convic-
ção que subentende a exaltação do papel histórico da "nova
classe operária" na década de 60 é de essência política. Trata-se
1°1 G. Dupeux, La société française, Paris, A. Colin, 1964. A literatura sobre
essa temática da marcha para a abundância e da apoteose das classes médias
é pletórica. Pode-se tomar a obra de Jean Fourastié, particularmente Les
Trente Glotieuses, Paris, Fayard, 1979, como sua melhor orquestração.
102 Um estudo da década de 70 estima que a proporção dos operários da
indústria que correspondem a esse perfil seja de 5% (cf. P. Hugues, G. Petit,
E Rerat, "Les emplois industrieis. Nature. Formation. Recrutement", Ca-
hiers du Centre d'étucles de l'emploi, n°4, 1973).
103 s. Weil, no relatório que encaminha à CGT após as greves de 1936,
"Remarques sur les enseignements à tirer des confiits du Nord", in La con-
dition ouvriére, op. cit.
460
de salvaguardar a chama da revolução e de não desesperar;
não mais Billancourt, mas a CFDT e o PSUI".
Porém, o discurso oposto que proclama a dissolução da
condição operária na nebulosa das classes médias parece su-
bentendido pelo desejo, também ele mais político do que cien-
tífico, de exorcizar definitivamente os conflitos sociais. É a
ideologia de todos os que proclamam o fim das ideologias.
Perscrutam com avidez o apetite de consumo da classe operária
e constatam com satisfação o enfraquecimento dos investimen-
tos políticos e sindicais 05• Mas omitem frisar que, a despeito
da incontestável melhoria de suas condições de existência, a
classe operária não se dissolveu, absolutamente, nas classes
médias. As pesquisas desenvolvidas nos anos 50 e 60 confir-
mam a persistência de um particularismo operário e de uma
consciência da subordinação operária próxima da que foi ana-
lisada anteriormente para o fim dos anos 30106. Dependência
quanto às condições de trabalho cujas modalidades mudaram
1" Essa interpretação não trai o pensamento de Serge Mallet que apresen-
tava, ele próprio, seu procedimento inicial não como "o de um homem de
ciência que, de modo objetivo, formula problemas de conhecimento, mas o
de um militante do movimento operário, mais exatamente do movimento
sindical", (La nouvelle classe OUVTière, op. cit., p. 15). Pode-se apenas acres-
centar que a aposta de Mallet quanto ao tropismo revolucionário desses
novos agentes engajados no processo de produção durou muito tempo.
1" Assim, Dupeux já fala de "despohtização", de "declínio do mito revolu-
cionário" e de "declínio também da participação política" dos operários (La
société française, op. cit., p. 252).
104 k Ligneux, J. Lignon, Eouvrier d'aujourd'hui, Pais, Gonthier, 1960; J.-M.
Rainville, Condition ouvrière et intégration sociale, Paris, Editions ouvrières,
1967; G. Ajam, E 13on, J. Capdevielle, R. Moureau,Eoutnierfrancaisen 1970,
Paris, A. Colin. A síntese de J.H. Goldhorpe, D. Locicwood, E Bechhofer, J.
Piau, The Affluent Work Series, 3 volumes, Cambridge University Press, 1968-
1969, não tem o equivalente na França. Eis aqui entretanto, à medida que o
título "o operário da abundância" pode dar margem a interpretações equivo-
mais, uma das maiores conclusões da obra: "A integração às claçses médias não
é um processo em curso atualmente, nem um objetivo desejado pela maioria de
nossos operários... Vimos que o aumento dos salários, a melhoria das condições
de trabalho, a aplicação de políticas de emprego mais oportunas, mais liberais
etc., não modificam de modo fundamental a situação de classe do trabalhador
industrial no interior da sociedade contemporânea" (edição francesa resumida,
touvrier de l'abondance, Paris, Le Sella', 1972, p. 210).
461
A SOCIEDADE SALARIAL AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
relativamente pouco no que diz respeito à relação de subor-
dinação, indissociavelmente técnica e social, que implicam'07
e que se traduz sempre pelo sentimento dos operários de es-
tarem situados "socialmente embaixo""9. Particularismo,
também, dos modos de vida e das formas de sociabilidade:
"Quer se trate dos hábitos de consumo, do estilo de vida, da
utilização do espaço urbano, os índices numerosos e variados
manifestam uma especificidade dos comportamentos no meio
operário""9. Todo mundo consome, mas não os mesmos pro-
dutos; há mais diplomas, mas não têm o mesmo valor; muitos
viajam em férias, mas não para os mesmos lugares etc. Inútil
retomar aqui todas essas análises que relativizam o discurso
do ecumenismo social. Este exprime um pensamento superfi-
cial e decreta a homogeneidade pelo alto. Apóia-se, com certeza,
em numerosos quadros estatísticos e curvas de crescimento.
Mas cai num impasse quanto ao sentido que as transformações
assumem para os atores sociais. Um único exemplo dessas cons-
truções sofisticadas cuja abstração nunca encontra a realidade
social que pretendem traduzir. Jean Fourastié, um mestre na ma-
téria, calculou com erudição que "um 0E, começando por volta
de 1970 e permanecendo toda sua vida 0E, terá conquistado,
antes de completar 60 anos, um poder de compra superior ao
que terá ganho desde sua entrada em serviço um conselheiro
de Estado que se aposentasse hoje"°. Seria fascinante encon-1W Uma das mudanças mais importantes é, sem dúvida, a parte dos imigrantes
e das mulheres nos trabalhos mais penosos e mais desvalorizados. Mas o
desenvolvimento de novas formas de organização industrial não aboliu as
obrigações nem a penosidade de inúmeras tarefas, em especial nas cadeias
de montagem. É possível comparar, com quarenta anos de intervalo, dois
testemunhos cujos autores apresentam a mesma característica: ter trabalhado
em fábrica sem ser operário, S. Weil, La condition ouvrière, op. cit., e R.
Linhart, tétabli, Paris, Éditions de Minuit, 1977.
108 A. Ligneux, J. Lignon, L'ouvrier d'aujourd'hui, op. cit., p. 26. Trata-se de
um fragmento da entrevista de um operário dentre várias outras de teor
semelhante, em que os trabalhadores retomam a percepção que lhes é passada
de seu status social: o operário "é um imbecil", "um pobre tolo", "a lanterna
vermelha" etc.
109 J.-M. Itainville, Condition ouvrière et intégration sociale, op. cit., p. 15.
110 J. Fourastié, Les Trente Glorieuses, op. cit., p. 247.
462
trar, em 1995, esse feliz OE e perguntar-lhe o que pensa de
tal ajuste, tendo como referência uma posição de conselheiro
de Estadonl.
A transformação decisiva que amadureceu ao longo dos
anos 50 e 60 não é, pois, nem a homogeneização completa da
sociedade, nem o deslocamento da alternativa revolucionária
sobre um novo operador, a "nova classe operária". O que se
deu foi, sobretudo, a dissolução dessa alternativa revolucio-
nária e a redistribuição da conflitualidade social conforme um
modelo diferente daquele da sociedade de classes: a sociedade
salarial.
Dissolução da alternativa revolucionária: a realidade his-
tórica da classe operária não é redutível a um conjunto de
modos de vida que se descrevem, de curvas de salários 9ue se
comparam, ou a um folclore populista que se lamenta. E tam-
bém uma aventura que durou um pouco mais de um século,
com seus altos e baixos, marcada por tempos fortes — 1848, a
Comuna, 1936, 1968 talvez — que parecem antecipar uma
organização alternativa da sociedade. O enfraquecimento da
convicção de que a história social podia desembocar em um
lugar, o que Crozier chama desde 1959 "a fase religiosa do
proletariado", não tem uma data rigorosamente definida. Mes-
mo em seus momentos de glória, sempre foi sustentada apenas
por uma minoria operária 12 e sempre pode ressurgir pontual-
mente, fazendo reviver, como flashes, rápidas explosões que
evocam a "juventude da greve"113 e despertam utopias ador-
I I Para se ter uma idéia de até onde pode levar o fascínio pelas curvas de
crescimento, pode-se ler hoje, divertindo-se ou irritando-se, a obra de Jean
Fourastié, La civilisation de 1995, Paris, PUF, 1970.
112 Minoria de grevistas em 1936 apesar da amplitude do movimento: menos
de 2 milhões para 7 milhões de assalariados operários; fenômeno essencial-
mente parisiense que foram junho de 1848 e a Comuna. Mais: os indiferentes
e os "amarelos" eram tão operários quanto os sindicalistas e os militantes,
e, em junho de 1848, as tropas mais combativas da Guarda e que dominaram
o subúrbio Saint-Antoine eram formadas por jovens operários. Ao mesmo
tempo e no entanto, junho de 1848, a Comuna de Paris e 1936 viveram na
memória de toda uma classe.
113 M. Perrot, Jeunesse dela grève, Paris, Le Senil, 1984.
463
A SOCIEDADE *SALARIAL
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
mecidasI14. Entretanto, tornou-se cada vez menos acreditável
que um dia serão institucionalizados os amanhãs que cantam.
A oscilação entre revolução e reforma, que sempre percorreu
o movimento operário, vem fixar-se com insistência cada vez
maior no segundo pólo, e a clivagem entre "eles" e "nós" deixa
de alimentar um imaginário da mudança radical. Desencanto
do mundo social, reduzido a uma unidimensionalidade sem
transcendência: as transformações sociais não são mais deci-
didas na base do tudo ou nada e deixam de ser arbitradas por
um sentido da história. Paradoxalmente, talvez seja maio de
68 que cristaliza esta tomada de consciência: a classe operária,
desta vez, aderiu ao movimento ao invés de ser seu epicentro
e contentou-se em obter ganhos "reformistas". Em todo caso,
é significativo que, imediatamente após 68, os trabalhadores
imigrantes tenham sido chamados a retomar a chama de um
messianismo revolucionário, abandonado por uma classe ope-
rária autóctone "integrada ao sistema"ns.
114 . A questão de saber quando morre uma utopia não tem sentido, dado que
a utopia está fora da história (assim, para os índios do México, Zapata não
morreu). A questão — difícil — é saber quando uma utopia deixa de influenciar
a história e de lhe impor, ainda que parcialmente, sua marca. Assim, a refe-
rência à Revolução foi, durante muito tempo, carregada de uma aura de
absoluto até mesmo para as medidas prosaicamente reformistas. Desde quan-
do isso deixou de acontecer?
115 Cf., por exemplo, J.-I? de Gaudemar: Mobilité du travail et accumulation du
capital, Paris, Maspero, 1976, que expressa o consenso do conjunto das cor-
rentes "esquerdistas" do início da década de 70. Trata-se de um deslocamento
análogo ao que havia ocorrido dez anos antes quanto à "nova classe operária",
e que pode ser interpretado como uma nova etapa do processo de destituição
da classe operária "clássica" de seu papel revolucionário, inclusive aos olhos dos
ideólogos que pretendem ser os herdeiros do profetismo revolucionário do
século XIX. De fato, os trabalhadores imigrantes foram os agentes e as disputas
principais das lutas sociais mais duras do início dos anos 70. Do lado da classe
operária "autóctone", o conflito Lip foi, sem dúvida, o último a mobilizar o
potencial alternativo do movimento operário (cf. I? Lantz, "Lip et l'utopie",
Politique d'aujourctbui, n° 11-12, nov.-dez./1980). Mas o conflito Lip também
pode ser interpretado como uma das últimas lutas do período de crescimento
do após Segunda Guerra Mundial. Como declara solenemente a assembléia
geral dos empregados, do dia 12 de outubro de 1973: "Não aceitaremos nem
demissão, nem reclassificação, nem desmantelamento" (fot. cit., p. 101). Tais
declarações seriam impensáveis hoje.
464
A SOCIEDADE SALARIAL
Aquém da dimensão política dessas peripécias, é a signifi-
cação antropológica dominante do salariado que oscilou ao
longo desses decênios. A classe operária mantinha seu poten-
cial revolucionário pelo fato de que encarnava essa "indigna
condição de assalariado" que nada tinha a perder senão suas
correntes e cuja emancipação mudaria a face do mundo. Marx,
quanto a este ponto, não fez senão radicalizar uma estrutura
antropológica da condição de assalariado conotada, parecia
que desde sempre, por situações de dependência através das
quais um homem põe à disposição de um outro sua capacidade
de trabalho. É o sentido literal da expressão "trabalho aliena-
do": trabalhar para outro e não para si mesmo, deixar a um
terceiro, que vai consumi-lo ou comercializá-lo, o produto de
seu trabalho. Que esta coerção se torna eufêmica quando toma
uma forma explicitamente contratual com o liberalismo, ou
que perca seu caráter de dependência personalizada quando
se trabalha, por exemplo, para uma sociedade anônima regida
por convenções coletivas, não muda a dissimetria da relação:
de fato, o assalariado procede a uma espécie de abandono do
fruto de seu trabalho para uma outra pessoa, ou para uma
empresa, ou para uma instituição, ou para "o capital".
Nessa lógica, as atividades de um sujeito social autônomo,
mesmo tomando a forma de serviços prestados, não deveriam
entrar numa relação salarial. Um produtor independente não
poderia ser assnlariado. Isso não é uma simples tautologia mas,
sim, a conseqüência do fato de que certas atividades são ina-
lienáveis, portanto não assalariáveis, mesmo se correspondem
a um trabalho efetuado para outro. Um sapateiro, um tecelão
podem ser trabalhadores independentes ou assalariados. Um
médico não pode serum assalariado, como demonstra, ainda
em 1937, a sentença do Supremo Tribunal, anteriormente ci-
tada.
Essa concepção secular do trabalho assalariado apaga-se
por volta dos anos 50 e 60, acarretando a retração do papel
histórico da classe operária. A lenta promoção do salariado
burguês abriu o caminho. Desemboca num modelo de socie-
dade que não é mais atravessado por um conflito central entre
465
assalariados e não-assalariados, isto é, entre proletários e bur-
gueses, trabalho e capital. A "nova sociedade"116, para retomar
um slogan do início da década de 70 e que pretendia ser a
tradução política dessa mudança, é organizada principalmente
em torno da concorrência entre diferentes pólos de atividades
salariais. Sociedade que não é homogênea nem pacificada, mas
cujos antagonismos assumem a forma de lutas pelas colocações
e classificações mais do que a forma de luta de classes. Socie-
dade em que, de contraponto, a condição de assalariado se
torna modelo privilegiado de identificação.
A condição salarial
É a partir da metade da década de 50 que emerge um novo
discurso sobre "os homens dos tempos que virão", espécie de
puros assalariados que conquistaram suas credenciais de bur-
guesia'. Este perfil se evidencia no quadro da modernização
da sociedade francesa que opõe os agentes do crescimento e
do progresso aos representantes das classes médias tradicio-
nais, pequenos patrões e comerciantes malthusianos, notáveis
conservadores. De um lado, uma França resistente ao progres-
so, "poujadista", impaciente na defesa do passado; de outro,
uma França dinâmica que quer, enfim, esposar seu século e
cujos novos assalariados constituem a ponta-de-lança118.
"Como se sabe, é o nome dado por Jacques Chaban-Delmas a seu programa
político e que corresponde a um período de grande expansão económica e
a uma vontade, derrotada pouco tempo depois, de desbloqueio da sociedade
após 1968..
117 "Eliminar das classes médias os quadros assalariados e uina grande parte
dos funcionários seria reduzi-las a uma caricatura da burguesia" (P Bleton,
Les hommes destemps viennent), Paris, Editions ouvrières, 1956, p. 230).
1111 Cf. J. Donzelot, "D'une modernisation à Pautre", Esprit, 1986, agosto-
setembro, e M. Winock, La Republique se meurt, Paris, Florio, 1985. É
impossível deixar de citar a saborosa descrição que esse autor faz dos defen-
sores de uma organização pré-capitalista da sociedade: "No outro lado,
florescem os glorificadores da vida de aldeia, dos pequenos comerciantes,
dos botecos que enriqueciam M. Paul Ricard, a França do século XIX, ra-
466
Nesse contexto, urna nova constelação salarial se vê atri-
buir a função de atrativo com a tarefa de "puxar" a dinâmica
social, do mesmo modo que se diz que tal setor industrial ou
comercial "puxa" o crescimento econômico de toda uma so-
ciedade. Assiste-se, então, a uma quase-mitologização de um
perfil de homem (e acessoriamente de mulher119) eficaz e di-
nâmico, liberado dos arcaísmos, ao mesmo tempo descontraí-
do e performante, grande trabalhador e grande consumidor
de bens de prestígio, com férias inteligentes e viagens ao ex-
terior. Um homem que se pretende liberto da ética puritana e
tesauradora, do culto do patrimônio e do respeito das hierar-
quias consagradas que caracterizam a burguesia tradicional.
Jornais como EExpress — "EExpress, jornal dos quadros'"1" —
ou EExpansion testemunham a audiência dessa representação
do mundo social e, por sua vez, a difundem. Diferentes cate-
gorias de assalariados são portadoras dessa representação:
quadros médios e superiores, professores, publicitários, espe-
cialistas em comunicação e, em sua camada inferior, repre-
sentantes de um certo número de profissões intermediárias,
como animadores culturais, pessoal paramédico, educadores
etc.121 Ganhando consistência, formam o que Henri Mendras
dical, protecionista, com seus pavilhões de habitação, com sua marca de
notários, advogados, oficiais de justiça, padres conservadores, jogadores de
bola com boina basca, cachorros bravos, muros guarnecidos de cacos de
vidro, membros ativos da Associação Guillaume-Budé, destiladores de seus
próprios frutos, administradores coloniais, antigos donos de bordei, a que
se juntavam os adeptos do marechal Pétain". Acrescento, por minha conta,
que nesse "lado" não há, ou quase não há, assalariados.
119 À medida que as mulheres continuam sendo bem minoritárias no topq
do conjunto dos assalariados, por exemplo: 3,8% de engenheiros em 1962
e 4% em 1975; 12% de quadros da administração superior em 1962 e 17,3%
em 1975 (L. Boltansld, Les cabes, op. cit.).
120 ibid., p. 179.
121 Certas profissões liberais podem pertencer à mesma área, mas são muito
minoritárias em relação a essa configuração salarial. Em 1975, contam-se
172.000 membros de profissões liberais contra 1,270 milhão de quadros
superiores e 2,764 milhões de quadros médios (cf. L. Thévenot, "Les caté-
gories sociales en 1975", loc. cit.).
467
A SOCIEDADE SALARIAL AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
chama de "constelação central" e da qual faz o núcleo de di-
fusão da "segunda revolução francesa"ln. A expressão "se-
gunda revolução francesa" é, sem dúvida nenhuma, exagerada.
Mas é verdade que existe um conjunto (ou melhor, uma inter-
conexão de subconjuntos) de prestadores de serviços que cons-
tituem o núcleo mais móvel e mais dinâmico da sociedade, o
principal difusor dos valores da modernidade, do progresso,
das modas e do sucesso. É também, em relação ao conjunto
da sociedade, o agrupamento que teve o crescimento mais
contínuo e mais rápido desde a "decolagem" subseqüente ao
fim da Segunda Guerra Mundial.
Essa promoção da condição de assalariado atropela a opo-
sição secular entre trabalho e patrimônio. Bons salários, posi-
ções de poder e de prestígio, liderança em matéria de modos
de vida e de modos culturais, segurança contra os acasos da
existência não estão mais necessariamente ligados à posse de
um grande patrimôniow. Em último caso, as posições social-
mente dominadas poderiam até mesmo ser asseguradas por
"puros" assalariados, isto é, por pessoas cujos salários e cuja
posição na estrutura social dependeriam exclusivamente de
seu emprego.
Somente em último caso. A promoção dessas posições sa-
lariais está ligada a um desenvolvimento de setores profissio-
122 H. Mendras, La Seconde Révolution française, Paris, Gallimard, 1988.
123 Uma pesquisa de 1977 sobre "o montante médio do patrimônio conforme
a categoria sócio-profissional dos casais" (in J.-D. Reynaud, Y. Graffmeyer,
Français, qui êtes-vous?, op. cit., gráfico 5, p. 136) mostra que as categorias
"quadros superiores" e "quadros médios", que agrupam o essencial dessas
novas camadas assalariadas, dispõem de um patrimônio quatro vezes menor
que o dos "industriais e comerciantes" e que o do grupo das "profissões
liberais"; nitidamente menor que o dos "agricultores", e mesmo duas vezes
menor que o dos "artesãos e pequenos comerciantes". Outra pesquisa (ibid.,
gráfico 3, p. 133) mostra que há disparidades enormes na distribuição do
patrimônio: 10% dos casais mais ricos possuem 54% do patrimônio, e os
10% dos menos ricos, 0,03%. Em compensação, as curvas comparadas da
distribuição de renda e do patrimônio mostram que pode haver renda bas-
tante elevada assnciada a um pequeno patrimônio.
468
nais que, particularmente no terciáriou4, exigem títulos e di-
plomas. Ora, sabe-se que o capital escolar é freqüentemente
ligado à herança cultural familiar, ela própria fortemente de-
pendente do capital 'econômico. De outro lado, a condição de
assalariado pode, de agora em diante, estar na origem da cons-
tituição de um patrimônio, especialmente por intermédio do
crédito e do acesso à propriedade. As relações entre patrimônio
e trabalho tornam-se, assim, muito mais complexas do que
eram no início da industrialização. Esquematizando, a posse
de um patrimônio, naquele momento, dispensava de se con-
sagrar a atividades assalariadas,ao passo que a aquisição de
um patrimônio, pelos trabalhadores, mesmo sendo modesto,
estimulava-os a escaparem da condição de assalariado e de se
estabelecerem por conta própria. Agora, a condição de assala-
riado e o patrimônio interferem nos dois sentidos: o patrimônio
facilita o acesso a posições salariais elevadas por intermédio
dos diplomas, enquanto que o estabelecimento em posições
salariais sólidas pode comandar o acesso ao patrimônions.
Assim, a "constelação central" não representa uma confi-
guração de posições salariais "puras". Também não ocupa a
posição hegemônica de uma "burguesia sem capital" que quase
afastou a "burguesia tradicional" que lhe atribuem seus lison-
jeadores mais entusiastas'26. Continua existindo um núcleo de
124 Entre 1954 e 1975, a proporção dos empregos do setor terciário passa
de 38 a 51%, cf. M. Maruani, E. Reynaud, Sociologie de remploi, Paris, La
Découverte, 1993, p. 49.
124 Em 1977, residências principais e residências secundárias representavam
37,8% do conjunto do patrimônio dos franceses (cf. J.-D. Reynaud, Y Graff-
meyer, Français, qui êtes-vous?, op. cit., gráfico 3, p. 133). Sabe-se que as
facilidades de empréstimos para o acesso à propriedade dependem muito
do perfil profissional dos que tomam empréstimos e da capacidade de seu
orçamento para pagar o empréstimo, apostando antecipadamente na esta-
bilidade e na progressão da renda salarial, donde a possibilidade para os
próprios operários de terem acesso ao patrimônio: em 1973, 38% deles
eram proprietários de suas casas (cf. M. Verret, J. Creusen, Eespace ouvrier,
Paris, A. Colin, 1979, p. 114).
126 "Assim, a burguesia tradicional ligada à posse das coisas evolui para uma
neoburguesia sem capital e que amplia em sua base a expansão do terciário.
469
A SOCIEDADE SALARIAL AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
posições dominantes que acumula e entrelaça capital econô-
mico, capital social e capital cultural, direção das empresas
públicas e privadas e poderes exercidos no aparelho de Estado.
Desta "nobreza de Estado", Pierre Bourdieu diz:
Poucos grupos dirigentes já reuniram tantos princípios de legi-
timação tão diferentes e que, mesmo aparentemente contradi-
tórios, como o aristocratismo do nascimento e o meritocratismo
do sucesso escolar ou da competência científica, ou como a ideo-
logia do "serviço público" e o culto do lucro disfarçado em
exaltação da produtividade, se combinam para inspirar aos no-
vos dirigentes a mais absoluta certeza de sua legitimidadem.
De fato, muitas profissões da "constelação central" são
mais dependentes do que confessam do capital econômico:
quadros cujo destino está ligado ao da empresa, mas também
produtores culturais, profissionais da área de comunicação
para quem o reconhecimento de uma legitimidade passa pela
obtenção de meios de financiamento. Igualmente, a oposição
clássica entre patrões à moda antiga e dirigentes assalariados
das empresas ("owners" e "managers") merece ser relativizada.
Os PDGs das grandes empresas, por exemplo, considerados,
de bom grado, a franja superior da condição de assalariado,
escolhida por seu profissionalismo e sua competência técnica,
freqüentemente são também acionistas importantes da empre-
sa e saíram de meios que, há muito tempo, pertencem ao mun-
do dos negócios'. Se a onipotente "duzentas famílias" foi um
mito da esquerda, continua sendo verdade que o essencial do
Em resumo, a propriedade herdada tende a dar lugar à propriedade merecida
(na medida em que o diploma sanciona o mérito). Mas que pode haver de
mais pessoal do que semelhante propriedade?" (A. PiCtee, "La propriété
heritée ou méritée", le Monde, janeiro de 1978, citado por P. Bourdieu, La
noblesse d'État, op. cit., p. 479).
Ir E Bourdieu, La noblesse d'État, op. cit., p. 480.
In Ibid., p. 478. Cf. também J. Marchai, J. Lecaillon, La répartition du revenu
national, Paris, Editions Génin, 1' parte, t. I, que mostram que as vantagens
em gêneros, gratificações e emolumentos diversos de que se beneficiam os
quadros superiores de alto nível representam um tipo de remuneração não
salarial que é, de fato, uma participação nos lucros da empresa.
poder econômico é detido por meios cuidadosamente escolhi-
dos (conferir a composição dos "núcleos sólidos" das grandes
sociedades).
Mas justamente: se não há osmose entre os diferentes blo-
cos que constituem a sociedade salarial, também não há alte-
ridade absoluta. O salariado de alto grau desempenhou o papel
de atrativo, inclusive em relação aos grupos dominantes tra-
dicionais, cujas frações mais dinâmicas conseguiram seu ag-
giornamento conquistando, sem renunciar às antigas prerro-
gativas, os novos atributos do sucesso e das honras que passam,
por exemplo, por freqüentar as grandes escolas e ter os me-
lhores diplomas. Agindo assim, uma parte das classes domi-
nantes tradicionais também ingressou, e no nível mais alto, no
mercado do salariado.
Assim, mesmo no seio dos grupos dominantes, há menos
homogeneização do que concorrência, luta pelas colocações.
Esse espaço social é atravessado pelo conflito e pela preocu-
pação da diferenciação. Um princípio de distinção opõe e reú-
ne os grupos sociais. Opõe e reúne, porque a distinção
funciona a partir de uma dialética sutil do mesmo e do outro,
da proximidade e da distância, da fascinação e da rejeição.
Supõe uma dimensão transversal para os diferentes agrupa-
mentos, a qual reúne exatamente os que se opõem e lhes per-
mite que se comparem e se classifiquem. "Classificadores
classificados por suas classificações", eles se reconhecem atra-
vés de sua distância em relação às outras posições que formam,
assim, um continuumw . Esta lógica da diferenciação se dis-
tingue de um modelo baseado no consenso e, ao mesmo tempo,
de um modelo baseado no antagonismo do enfrentamento
classe contra classe. Para caracterizar essa constelação, poder-
se-ia aproximá-la do que dizia Georg Simmel sobre a "classe
média", ainda mima representação tripartida da sociedade:
"O que ela tem de verdadeiramente original, é que faz trocas
contínuas com as duas outras classes e que essas eternas flu-
as análises de Pierre Bourdieu, in La distinction, critique du jugement
social, Paris, Editions de Minuit, 1979.
470 1 471
tuações apagam as fronteiras e as substituem por transições
perfeitamente contínuas"130. "Transições perfeitamente contí-
nuas", seria necessário discutir isso. Mas a idéia do continuum
das posições próprias a uma sociedade salarial está muito pre-
sente.
Assim, seria possível representar-se a sociedade salarial a
partir da coexistência de um certo número de blocos131, simul-
taneamente separados e unidos por essa lógica da distinção
que age no seio de cada conjunto como entre os diferentes
conjuntos. Nesta configuração, seria necessário dar lugar ao
bloco das profissões independentes com o patrimônio não-re-
convertido, o bloco dos vencidos da modernização que Michel
Winock evocava de modo pitoresco. É porque esses grupos
foram marginalizados, que a sociedade salarial pôde desenvol-
ver-se: morte daquele que vive de rendas como paradigma do
burguês, inexorável regressão do pequeno comércio e do ar-
tesanato (900.000 artesãos, 780.000 comerciantes e assimila-
dos no início dos anos 80132), revolução do mundo agrícola
que acarretou o fim dos camponeses tradicionais133. Ou bem
essas frações do patrimônio souberam se reconverter, adap-
tando-se às novas exigências da sociedade salarial (conferir,
por exemplo, o relativo dinamismo das pequenas e médias
13° G. Simmel, Sociologia a épistérnologie, trai fr. Paris, PUF, 1981, p. 200.
131 Prefiro o termo bloco ao classe, não em nome de uma ideologia do
consenso (não há mais classe; logo, não há mais conflitos etc.), mas porque
uma classe, no sentido pleno da palavra, só existe quando é tomada numa
dinâmica social que a torna portadora de um projeto histórico que lhe é
próprio, comopôde ser a classe operária. Neste sentido, não há mais classe
operária.
132 Cf. Données sociales 1993, Paris, INSEE, 1993, p. 459. Mas é significativo
observar que o número dos empregos independentes ou assimilados reco-
meça a crescer como uma das conseqüências da crise da sociedade salarial,
ci capítulo seguinte.
133 Cf. H. Mendras, La fin des paysans, suivi d'une réflexion sur Ia fin des
paysans vingt ans après, Le Paradou, Actes-Sud, 1984. No início da década
de 80, resta menos de um milhão de agricultores cultivadores, cf. Données
sociales 1993, op. cit. Trata-se pois, também, segundo a classificação de Colin
Clark, do desmoronamento do setor "primário".
472
empresas, ou o desenvolvimento de cooperativas agrícolas),
ou bem tiveram que se resignar a passar adiante seus poderes.
Mesmo nessa França profunda, que há um século e meio freava
o advento do progresso, rechaçava a urbanização e a indus-
trialização, a condição de assalariado e os valores associados
da instrução e da cultura urbana também desempenharam,
então, o papel de atrativo. Como prova, o fato de que, depois
de ter olhado de cima a condição de assalariado e de, realmen-
te, ter feito tudo para distinguir-se dele, essas categorias "in-
dependentes" vieram a considerá-lo com uma inveja mesclada
de ressentimento: camponeses, artesãos, pequenos comercian-
tes comparam-se com os assalariados não só quanto à renda,
mas também quanto à duração do trabalho, ao acesso ao lazer
e à proteção social. Uma profunda força moral do "poujadis-
me" — que vai muito além do fenômeno Poujade propriamente
dito — são, realmente, essa inveja e esse ressentimento de ca-
tegorias ameaçadas em sua independência, diante das camadas
assalariadas dispostas a trabalhar menos, beneficiando-se, ade-
mais, de todas as vantagens sociais. Assim, a atração da con-
dição de assalariado age tanto aquém de seus limites, sobre as
categorias que não têm acesso a ela, quanto além, sobre a alta
burguesia.
Essa atração também produz efeito sobre o bloco popular
formado por operários e por empregados que ocupam um lugar
subordinado na configuração salarial. É uma aproximação, sem
dúvida, colocar no mesmo "bloco" operários e empregados. En-
tretanto, na década de 60, assiste-se à "transformação de uma
classe operária extensa e renovada, incorporando cada vez mais
empregados"134. Paralelamente, devido à mecanização do tra-
balho de escritório, o empregado raramente permaneceu como
um colaborador direto do patrão. O "colarinho branco" das
grandes lojas ou dos escritórios de empresas sofre coerções
semelhantes às dos operários. A evolução dos salários marca
134 M. Aglietta, A. Bender, Les métamotphoses de la société salariale, op.
cit., p. 69.
473
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL A SOCIEDADE SALARIAL
.á
a mesma tendência à homogeneização135. A generalização do
salário mensal, que se deu em 1970, sanciona essa evolução:
o estatuto profissional dos operários que se tornaram mensa-
listas é, praticamente, copiado do estatuto dos empregados136.
Entretanto, deve-se sublinhar uma última vez que as in-
contestáveis melhorias de que se beneficiaram os grupos po-
pulares, ou que conquistaram, não apagaram completamente
seu particularismo. Como diz Alfred Sauvy, "todo organismo
social que deve se deformar, mudar de proporão, o faz mais
facilmente por adição do que por subtração"13 . Em especial,
a "adição" de novas camadas salariais acima do salariado ope-
rário não "suprimiu" todas as características que faziam dele
o modelo do salariado alienado. Seria necessário, aqui, atua-
lizar com dados do início dos anos 70 o balanço, esboçado por
volta de 1936, dos índices da integração diferencial das classes
populares em matéria de consumo, habitação, modo de vida,
participação na educação e na cultura, direitos sociais. Mas
isso iria exigir ao menos um capítulo que mostraria que, sob
todas essas relações, as categorias populares ainda estão muito
longe de ter recuperado seu atrasol38. Contudo, o que importa
136 Calculados com base no índice 100 em 1950, os ganhos médios dos
empregados chegavam ao índice 288,6 em 1960 e o dos operários, a 304,8
(cf. J. Bunel, La mensualisation, une réforme tranquille?, Paris, Editions ou-
vrières, 1973, p. 36).
1360 princípio da mensalização dos operários dá lugar a um acordo paritário,
assinado, no dia 20 de abril de 1970, pelos sindicatos patronais e pelos
sindicatos de assalariados. Essa medida estende aos operários as vantagens
dos assalariados pagos mensalmente em matéria de licenças, indenizações
em casos de doença, de aposentadoria etc. De modo mais profundo, o salário
operário deixa de ser a retribuição direta de um trabalho pontual para tor-
nar-se a contrapartida de um pagamento global do tempo. Em 1969, 10,6%
dos operários eram mensalistas. Passam a 53% em 1971 e a 82,5% em 1977
(cf. F. Sellier, Les salariés en France, op. cit., p. 110).
137 A. Sauvy, "Développement économique et répartition professionnelle de
la population", Revue d'economie politique, 1956, p. 372.
131/ Encontra-se in J.-D. Reynaud, Y 'Graffmeyer, Français, qui étes-vous?,
op. cit., um conjunto de quadros que indicam as performances diferenciais
das categorias sociais em matéria de renda, patrimônio, diplomas, acesso à
cultura e ao lazer, mobilidade social etc. As categorias operárias, ligeiramente
474
aqui é sobretudo o fato de que, a despeito dessa subordinação,
esses grupos estão inseridos no continuum das posições que
constituem a sociedade salarial e podem por isso não se inter-
cambiar mas, sim, comparar-se diferenciando-se.
A onipresença do tema do consumo durante esses anos —
a "sociedade de consumo"' " — expressa perfeitamente o que
se poderia chamar de princípio de diferenciação generalizada.
O consumo comanda um sistema de relações entre as catego-
rias sociais, segundo o qual os objetos possuídos são os mar-
cadores das posições sociais, os "indicadores de uma classi-
ficação,,i40. Compreende-se, a partir disso, que seu valor seja
sobredeterminado: o que os sujeitos põem em jogo aí não é
sua aparência, mas sua identidade. Manifestam, através do que
consomem, seu lugar no conjunto social. Analogia do sagrado
numa sociedade de agora em diante sem transcendência, o
consumo de objetos significa, no sentido forte do termo, o
valor intrínseco de um indivíduo em função do lugar que ocupa
na divisão do trabalho. O consumo é a base de um "comércio"
no sentido do século XVIII, isto é, de uma troca civilizada
através da qual os sujeitos sociais se comunicam.
Sem pretender propor um panorama exaustivo da socie-
dade salarial, deve-se ao menos marcar o lugar de um último
bloco que será chamado de periférico ou residual. A relativa
integração da maioria dos trabalhadores, traduzida, dentre ou-
tros, pelo salário mensal, cava uma distância em relação a uma
força de trabalho que, em vista desse fato, é marginalizada:
trata-se das ocupações instáveis, sazonais, intermitentes'''. Es-
atrás dos funcionários, ocupam regularmente as últimas posições (salvo
quando são consideradas algumas categorias de agricultores e de inativos,
os operários agrícolas em via de extinção e as populações do "quarto mun-
do", sobre as quais se voltará).
117 Cf. J. Baudrillard, La société de consommation, Paris, Denoêl, 1970.
140 M. Aglietta, A. Bender, Les métamorphoses de Ia société salariale, op.
cit., p. 98.
141 Cf. J. Bunel, La mensualisation, une réforme tranquille?, op. cit., p. 192-
193.
475
A SOCIEDADE SALARIAL AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL A SOCIEDADE SALARIAL
ses "trabalhadores periféricos"' estão entregues à conjuntu-
ra. Sofrem prioritariamente os contragolpes das variações da
demanda de mão-de-obra. Constituídos majoritariamente por
imigrantes, por mulheres e jovens sem qualificação, por tra-
balhadores de uma certa idade e que são incapazes de acom-
panhar as "reconversões" em curso, ocupam as posições mais
penosascapítulo visa menos a reconstituir essa história do que
a evidenciar as condições que a tornaram possível e fizeram
da sociedade salarial uma estrutura inédita, ao mesmo tempo
que sofisticada e frágil. A tomada de consciência dessa fragi-
lidade é recente, data do início da década de 70. Hoje é o nosso
problema, pois continuamos a viver na e da sociedade salarial.
Podemos acrescentar, com Michel Aglietta e Anton Render,
que "a sociedade salarial é nosso futuro"3? É a questão a ser
debatida no capítulo seguinte, mas, ainda que devesse ser as-
sim, trata-se de um futuro bem incerto. Enquanto isso, com-
preenderemos melhor de que é feita tal incerteza se nos
reapropriarmos da lógica da promoção da condição de assa-
lariado em sua força e em sua friabilidade.
A nova relação salarial
"Foi a industrialização que deu origem à condição de as-
salariado, e a grande empresa é o lugar por excelência da re-
lação salarial moderna"4. Este julgamento é, ao mesmo tempo,
confirmado e nuançado pelas análises anteriores. De fato, a
condição de assalariado existiu primeiro e fragmentada na so-
ciedade pré-industrial, sem conseguir se impor antes de estru-
turar a unidade de uma condição (cf. capítulo III). Com a
revolução industrial, começa a desenvolver-se um novo perfil
de operários das manufaturas e das fábricas, o qual antecipa
a relação salarial moderna sem ainda manifestá-la em sua coe-
rência (cf. capítulo V)3.
Podem-se caracterizar assim os principais elementos dessa
relação salarial do início da industrialização, correspondendo ao
que se acaba de chamar de condição proletária: uma remunera-
ção próxima de uma renda mínima que assegura apenas a repro-
dução do trabalhador e de sua família e que não permite investir
no consumo; uma ausência de garantias legais na situação de
trabalho regida pelo contrato de aluguel (artigo 1710 do Código
Civil); o caráter lábil"6 da relação do trabalhador com a empre-
sa: muda freqüentemente de lugar, alugando-se ao que oferecer
mais (sobretudo se tiver uma competência profissional reco-
nhecida), e "fica desempregado" alguns dias da semana ou
durante períodos mais ou menos longos, se puder sobreviver
sem se submeter à disciplina do trabalho industrial. Formali-
zando essas características, dir-se-á que uma relação salarial
comporta um modo de remuneração da força de trabalho, o
salário — que comanda amplamente o modo de consumo e o
modo de vida dos operários e de sua família —, uma forma da
disciplina do trabalho que regulamenta o ritmo da produção,
e o quadro legal que estrutura a relação de trabalho, isto é, o
contrato de trabalho e as disposições que o cercam.
Ter-se-á reconhecido que acabo de destacar essas caracte-
rísticas a partir dos critérios propostos pela escola da regulação
para definir a relação salarial "fordista"7. Pressuponho assim
que, no seio de uma mesma formação social, o capitalismo, a
relação salarial pode assumir diferentes configurações, sendo
que a questão, pelo menos a questão apresentada aqui, é a de
evidenciar as transformações que comandam a passagem de
uma forma a outras. Isto é, para assegurar a passagem da re-
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
'Ibid., p. 7.
4 R. Saiais, La fonnation du chômage comme catégorie: le moment da années
30, op. cir., p. 342.
5 Evidentemente, esse perfil não corresponde ao conjunto, tampouco à maio-
ria dos trabalhadores do início da industrialização, na primeira metade do
século XX (durante muito tempo, o peso determinante foi dos artesãos, da
"proto-indústria", dos assalariados parciais que obtêm uma parte de seus
recursos de uma outra atividade ou da economia doméstica etc.). Mas repre-
senta o núcleo do que vai se tornar a condição de assalariado dominante na
sociedade industrial, encarnada pelos trabalhadores da grande indústria.
418
6 A expressão é utilizada por 5. Pollard para caracterizar a mobilidade dos
trabalhadores das primeiras concentrações industriais, The Genesis of Hu-
man Management, Londres, 1965, p. 161.
7 Cf., por exemplo, R. Boyer, La théorie de la régulation: une analyse critique,
Paris, La Découverte, 1987.
Quando se reduz a relação salarial à relação salarial moderna, "fordista",
confundem-se as condições metodológicas necessárias para se chegar a uma
definição rigorosa da relação salarial e das condições sócio-antropológicas
características das situações salariais reais, que são diversas (cf. in Genese,
419
1
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
lação salarial que prevalecia no começo da industrialização à
relação salarial "fordista", a reunião das cinco condições se-
guintes.
Primeira condição: uma nítida separação entre os que tra-
balham efetiva e regularmente e os inativos ou os semi-ativos
que devem ser ou excluídos do mercado do trabalho ou inte-
grados sob formas regulamentadas. A definição moderna da
condição de assalariado supõe a identificação precisa do que
os estatísticos chamam de população ativa: identificar e men-
surar aqueles que estão ocupados e aqueles que não o estão,
as atividades intermitentes e as atividades de tempo integral,
os empregos remunerados e os não-remunerados. Empreen-
dimento de grande fôlego, e difícil. Um proprietário de terras,
um latifundiário e uma pessoa que vive de rendas são "ativos"?
E a mulher e os filhos do artesão ou do agricultor? Que estatuto
conferir a esses numerosos trabalhadores intermitentes, sazo-
nais, que povoam tanto as cidades como o campo? Pode-se •
falar de emprego e, correlativamente, de não-emprego, de de-
semprego, se não se pode definir o que verdadeiramente sig-
nifica estar empregado?
É somente na virada do século — em 1896 na França, em
1901 na Inglaterra — e após muitas hesitações, que a noção de
população ativa é definida sem ambigüidade, permitindo o
estabelecimento de estatísticas confiáveis. "Os ativos serão
aqueles e somente aqueles que estiverem presentes num mer-
cado que lhes proporcione um ganho monetário, mercado do
n° 9, 1991, vários pontos de vista sobre essa questão). De minha parte,
defendo que se pode falar de situações salariais não só no início da indus-
trialização, antes de ser instituída a relação "fordista", mas também na so-
ciedade "pré-industrial" (cf. cap. III), desde, evidentemente, que não sejam
confundidas com a relação salarial "fordista". Mas é impossível manter, de
modo rigoroso, uma posição purista até mesmo para o período moderno,
porque a relação estritamente "fordista", com cadeia de montagem, conta-
gem rigorosa do tempo etc., sempre foi minoritária, mesmo no apogeu da
sociedade industrial (cf. M. Verret, Le travail ouvrier, Paris, A. Colin, 1982,
p. 34, que, para o fim dos anos 1970, estima em 8% o total dos operários
que trabalham em cadeia propriamente dita, e em 32%a proporção dos que
trabalham com máquinas automatizadas).
470
trabalho ou mercado dos bens ou serviços"9. Assim, a situação
de assalariado, distinta da de fornecedor de mercadorias ou
de serviços, torna-se claramente identificável, mas também a
de desempregado involuntário, distinta de todos aqueles que
mantêm uma relação errática com o trabalho.
Mas uma coisa é poder localizar e contabilizar os traba-
lhadores; uma coisa melhor seria poder regular este "mercado
de trabalho", controlando seus fluxos. Os ingleses dedicaram-se
seriamente a isso desde o início do século. William Beveridge,
desde 1910, tinha visto de modo justo que o principal obstáculo
à racionalização do mercado do trabalho era a existência desses
trabalhadores intermitentes que se recusam a se submeter a
uma disciplina rigorosa. Também é preciso domá-los:
Para quem quiser trabalhar uma vez por semana e ficar na cama
o resto do tempo, a agência de empregos tornará esse desejo
irrealizável. Para quem quiser encontrar um emprego precário
de tempos em tempos, a agência de colocação tornará pouco a
pouco impossível esse gênero de vida. Pegará essa jornada de
trabalho que ele queria ter e a dará a qualquer outro que já
trabalhe quatroe mais precárias na empresa, têm os salários mais bai-
xos e são os menos cobertos pelos direitos sociais. Acampam
nas fronteiras da sociedade salarial muito mais do que dela
participam integralmente. Assim, no momento mesmo em que
a condição operária se consolida, subsiste ou se aprofunda no
seio dos trabalhadores, principalmente dos trabalhadores bra-
çais, uma linha divisória entre grupos vulneráveis, cuja condi-
ção lembra a do antigo proletariado, e uma maioria que parece
solidamente engajada num processo de ampla participação nos
benefícios do progresso social e econômico. Entretanto, antes
do fim dos anos 70, a especificidade e a importância desse
fenômeno são mal percebidas. Para os defensores do progres-
so, tal fenômeno faz parte da dinâmica dominante que arrasta
o conjunto da sociedade para a opulência. Os que se interessam
pelo assunto, por razões essencialmente políticas, vêem nele
a prova da perpetuação da exploração da classe operária en-
quanto tal". A importância dessa clivagem no seio da socie-
dade salarial só aparecerá mais tarde, com o interesse
provocado pela temática da precariedade.
Enfim, é possível aproximar — sem confundi-las — essas
situações "periféricas" daquelas das populações que nunca en-
traram na dinâmica da sociedade industrial. É o que se chama
142Paralelamente aos trabalhos sobre a segmentação do mercado do trabalho,
o tema do "trabalhador periférico" surge nos Estados Unidos no fim da
década de 60, cf. D. Morse, The Peripheral Worker, Nova York, Columbia
University Press, 1969.
143 Cf. as discussões da época sobre a "pauperização relativa" ou a "paupe-
rização absoluta" da classe operária. De modo mais geral, em razão do qua-
se - p leno -e mp r e go , no momento em que surge, essa temática da
fragmentação da classe operária é retraduzida em termos de persistência das
desigualdades ao invés de aumento da precariedade.
476
de "quarto mundo", expressão de um exotismo um tanto sus-
peito, como se, nas sociedades desenvolvidas, subsistissem pe-
quenas ilhas arcaicas povoadas por todos aqueles que não
puderam, ou não quiseram, pagar o preço da integração social
e ficaram fora do trabalho regular, da moradia decente, da
união familiar consagrada e não freqüentaram instituições de
socialização reconhecidas. "São aqueles que, não tendo podido
entrar nas estruturas modernas, permanecem fora das grandes
correntes da vida da nação"'". Vagueiam ou moram na peri-
feria das cidades, se reproduzem entre eles, geração após ge-
ração, vivem de expedientes ou auxílios e parecem desen-
corajar os esforços bem-intencionados de todos os que querem
moralizá-los e normalizá-los. Causam uma certa vergonha
num período de crescimento e de conversão aos valores da
modernidade, mas, no fundo, não há nada de escandaloso no
fato de que exista, como em qualquer sociedade sem dúvida,
uma franja limitada de marginais ou de associais que não jogam
o jogo comum. Em todo caso, esses bolsões residuais de po-
breza não parecem questionar nem as regras gerais da troca
social, nem a dinâmica do progresso contínuo da sociedade.
Falar de quarto mundo é uma maneira de significar que "essas
pessoas aí" não servem para ser assalariados.
Excetuando a existência dessas populações "periféricas"
ou "residuais" — e sem dúvida também, no topo, a de posições
eminentes, artistas, vedetes das mídias, grandes empresários,
herdeiros das grandes fortunas, cuja condição parece incomen-
surável com o regime comum, mas realmente é necessário um
144 Prefácio do abade Wresinski para J. Labbens, La condition prolétarienne,
Paris, Sciences et service, 1965, p. 9. Esta obra tem como subtítulo Ithéritage
du passé", que é significativo dessa percepção da pobreza como uma espécie
de corpo estranho na sociedade salarial. CL também J. Labbens, Sociologia
de la pinnireté, Paris, Gallimard, 1978. Os "pobres", para esse autor, "si-
tuam-se no último escalão ou, melhor ainda, ao lado da escala sem conse-
guirem ter acesso a ela. Não se reconhecem na classe operária e a classe
operária não se reconhece neles" (p. 138).A opinião preconcebida de pensar
a problemática "quarto mundo" como absolutamente distinta daquela da
classe operária é um componente central — e muito discutível — da ideologia
da ATD — Quart Monde.
477
outro exotismo, que não o do quarto mundo, para alimentar
a mitologia de Paris Match —, a sociedade salarial pode mostrar
uma estrutura relativamente homogênea na sua diferenciação.
Não só porque o essencial das atividades sociais está centrali-
zado em torno da condição de assalariado (perto de 83% de
assalariados em 1975). Mas, sobretudo, porque a maior parte
dos membros dessa sociedade encontra na condição de assa-
lariado um princípio único que, ao mesmo tempo, os reúne e
os separa e fundamenta, assim, sua identidade social. "Em uma
sociedade salarial, tudo circula, todo mundo se mede e se com-
para"14). Fórmula talvez exagerada, visto que semelhante so-
ciedade contém margens, posições de excelência acima da
condição de assalariado e posições de indignidade abaixo dela.
Fórmula globalmente justa no entanto, desde que não se con-
funda "comparar-se" com equivaler-se, e que se entenda "me-
dir-se" como entrar em competição, através da qual os sujeitos
sociais fazem atuar sua identidade na diferença. A condição
de assalariado não é só um modo de retribuição do salário,
mas a condição a partir da qual os indivíduos estão distribuídos
no espaço social. Como observam Margaret Maruani e Em-
manuelle Reynaud: "por trás de toda situação de emprego, há
um julgamento social"146. É preciso tomar a expressão em seu
sentido mais forte: o assalariado é julgado-classificado por sua
situação de emprego, e os assalariados encontram seu deno-
minador comum e existem socialmente a partir desse lugar.
145
M. Aglietta, A. Bender, Les métamorphoses de Ia société salariale, op. cir.,
p.98.
"'M. Maruani, E. Reynaud, Sociologia de tempioi, op. cit., p. 113.
478
o desenvolvimento econômico e a conquista dos direitos so-
ciais, o mercado e o Estado. Chamo aqui Estado de crescimen-
to a articulação dos dois parâmetros fundamentais que
acompanharam a sociedade salarial em sua trajetória e teceram
com ela vínculos essenciais: o crescimento econômico e o cres-
cimento do Estado social. De modo que a interrupção brusca
que recaiu sobre essa promoção poderá ser entendida, sem
dúvida, como um efeito da crise econômica, mas principal-
mente e através dela, como o questionamento dessa montagem
sofisticada de fatores econômicos e de regulações sociais que
deu à condição salarial moderna sua frágil consistência.
Crescimento econômico primeiro. O que parecia evidente
até o começo da década de 70 revela agora a perturbadora sin-
gularidade de um período inédito na história da humanidade,
ou pelo menos naquela dos países industrializados. Assiste-se
então na França, entre 1953 e 1975 mais ou menos, com taxas
anuais de crescimento de 5 a 6%, praticamente à triplicação
da produtividade, do consumo e da renda salarial'''.
Este fantástico enriquecimento deu ganhos à sociedade
salarial. Havia então, para retomar uma célebre expressão de
Louis Bergeron, secretário geral da CGT — Força Operária,
"grão para moer". Não apenas uma relativa abundância de
bens para repartir. O crescimento — enquanto dura — permite
sacar sobre o futuro. Não se trata unicamente de obter hoje
tal ou tal vantagem, mas de programar uma melhoria de con-
dição num prazo determinado. O desenvolvimento econômico
integra, assim, o progresso social como uma finalidade comum
aos diferentes grupos em concorrência. Disso resulta que as
disparidades, tais como são vividas hic et nunc, podem ser ao
mesmo tempo percebidas como diferenças provisórias. "As rei-
vindicações setoriais podem então ser legitimadas"'" — e até
147 Cf., por exemplo, E. Mossé, la Crise... et après, Paris, Le Senil, 1989; Y.
Barou, B. Kaiser, Les grandes économies, Paris, Le Seuil, 1984. Para o CERC,
o poderde compra dos salários em franco fixo foi multiplicado por 2,7 entre
1950 e 1973 (CERC, n° 58, 2° trimestre de 1981).
I" M. Aglietta, A. Bender, Les métamenphoses de Ia société salariale, op.
cit., p. 80.
O Estado de crescimento
Entretanto a sociedade salarial não se reduz a um nexo de
posições assalariadas. Entregue somente à lógica da concor-
rência e da distinção, correria o risco de ser levada por um
movimento centrífugo. Ela é também um modo de gestão po-
lítica que associou a sociedade privada e a propriedade social,
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL
479
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL
mesmo, poder-se-ia dizer, sublimadas: marcam as etapas de
uma trajetória que deve desembocar na redução das desigual-
dades. Se uma categoria particular não consegue tudo o que
reivindica — e pensa, ao contrário, que nunca tem o suficiente
—, já se beneficia de alguma coisa e, ademais, pode sempre
pensar que no futuro obterá mais ainda. Semelhante projeção
das aspirações sobre o horizonte do futuro acalma o jogo hoje
e dá crédito, para amanhã, ao ideal social-democrata de uma
supressão progressiva das desigualdades. Essa aposta quanto
ao futuro não é apenas um ato de fé nas virtudes do progresso
em geral. Através de seus modos de consumo, seu investimento
em bens duráveis, seu uso do crédito, o assalariado antecipa a
cada dia a perenidade do crescimento e vincula concretamente
seu destino a um progresso indefinido. Na sociedade salarial,
a antecipação de um futuro melhor está inserida na estrutura
do presente. Isso é ainda mais verdadeiro à medida que, por
meio de uma projeção sobre as gerações seguintes, o assala-
riado pode esperar realizar mais tarde suas aspirações: o que
ainda não pude realizar, meus filhos conseguirão.
Desse modo, o desenvolvimento da sociedade salarial foi
tributário de uma condição, a respeito da qual será necessário
perguntar se lhe está intrinsecamente ligada ou se representa
um dado conjuntural: o crescimento econômico. Mas foi igual-
mente estreitamente tributária de uma segunda série de con-
dições: o desenvolvimento do Estado social. Se é verdade que
a concorrência e a busca da distinção estão no princípio da
condição salarial, seu equilíbrio exige que se proceda a arbi-
tragens e que se estabeleçam compromissos negociados. Do
mesmo modo que uma sociedade de classe estava ameaçada
de um enfrentamento global, dada a falta de um terceiro me-
diador, também uma sociedade salarial corre o risco de se
dividir em lutas categoriais na ausência de uma instância cen-
tral de regulação. A sociedade salarial é também uma sociedade
em cujo cerne se instalou o Estado social.
Tal intervenção do Estado se desdobrou em três direções
principais, já esboçadas anteriormente mas que se desenvol-
veram no quadro dessa nova formação social: garantia de uma
proteção social generalizada, manutenção dos grandes equilí-
brios e condução da economia, busca de um compromisso
entre os diferentes parceiros implicados no processo de cres-
cimento.
1. A instauração da Seguridade Social em 1945 constitui,
primeiro, uma etapa decisiva da proteção da condição de as-
salariado no prolongamento do desenvolvimento da proprie-
dade de transferência (cf. capítulo anterior). Porém, a evolução
do sistema durante a década seguinte completa a passagem de
uma sociedade de classes a uma sociedade salarial. O decreto
de 4 de outubro de 1945 parece realizar a finalidade que está
na origem dos seguros sociais: pôr um fim, mas desta vez de-
finitivamente, à vulnerabilidade das classes populares. A po-
pulação de referência — "os trabalhadores" — é ainda a classe
operária, o salariado de referência é o salariado operário que
mal saía de uma precariedade secular. É sobre esta força de
trabalho ameaçada por "riscos de toda natureza" que a prote-
ção social vem se enxertar a fim de erradicá-los: "Está insti-
tuída uma organização da Seguridade Social destinada a
garantir os trabalhadores e suas famílias contra os riscos de
toda natureza, suscetíveis de reduzir ou de suprimir suas ca-
pacidades de ganho, bem como a cobrir os encargos de ma-
ternidade e os encargos de família que suportam'''.
Consolidar "as capacidades de ganho" dos trabalhadores:
tal programa pode ser compreendido parcialmente no prolon-
gamento de uma posição do tipo Front Populaire que considera
a realização da justiça social a partir da melhoria da condição
da classe operária's°. A condição operária ainda é o principal
suporte e, ao mesmo tempo, o segmento mais maltratado da
sociedade industrial, e o progresso do conjunto da sociedade
deve partir de sua libertação. Seria possível conciliar essa dis-
"9 Decreto n° 45-2258 de 4 de outubro de 1945, Journa/ oficiei, de 6 de
outubro de 1945, p. 6280.
150 Entretanto, se a obra da Frente Popular foi considerável em matéria de
direito do trabalho e de convenções coletivas, nenhuma medida foi tomada,
talvez por falta de tempo, quanto à proteção social propriamente dita.
480
481
A SOCIEDADE SALARIAL
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
criminação positiva de que se beneficiam os trabalhadores e a
ambição, afirmada simultaneamente, de cobrir o conjunto da
população contra a não-seguridade? "Todo francês residente
em território da França metropolitana se beneficia [...] das
legislações sobre a Seguridade Social"151. Sim, se uma vontade
política forte impuser um regime geral (para todos), cujos me-
canismos de financiamento e de repartição propiciem vanta-
gens para alguns (os assalariados mais ameaçados). No
contexto da Libertação, é isso que foi desejado1'2. O regime
geral devia ter uma função fortemente distributiva, as arreca-
dações sobre as categorias mais abastadas, contribuindo para
completar os recursos dos trabalhadores ou das famílias des-
favorecidasu3. Porém, se se deixa agir a força da inércia, cada
categoria social defende seu próprio interesse.
Essa força da inércia é a da transformação da condição de
assalariado anteriormente analisada. No momento em que o
regime geral da Seguridade Social se implanta, o salariado ope-
rário já está parcialmente contornado e dominado por outras
configurações salariais melhor providas. Ao mesmo tempo,
está cercado por categorias não-assalariadas, as profissões in-
dependentes que se recusam a se pautar pela condição opera-
151 Lei de 22 de maio de 1946 "sobre a generalização da Securidade Social",
artigo 1.
152 Sobre esse contexto da Libertação — as diretrizes do Conselho Nacional
da Resistência desde 1944, a preocupação de afirmar a solidariedade nacio-
nal após as desgraças e dilacerações da guerra, a preponderância de uma
esquerda numericamente dominada pelo "partido da classe operária", a dis-
crição forçada de uma direita e de um patronato amplamente desacreditados
etc., cf. H. Galant, Histoire politique de la sécurité sociale, Paris, A. Colin,
1955. Sobre a importância do relatório Beveridge, Social Insurance and
Allied Services, Londres, 1942, e sua influência na França, cf. A. Linossier,
Crise des systèmes assurantiels aia États-Unis, en Grande-Bretagne et en
France, tese de doutorado em Sociologia, Université Paris VIII, 1994.
153 A intenção era "descontar da renda dos indivíduos favorecidos a soma
necessária para completar os recursos dos trabalhadores ou das famílias
desfavorecidas" (A. Parodi, txposé des motifs accompagnant la demande
d'avis n°504 sur le projet d'organisation de la sécurité sociale", Bulletin de
liaison n° 14 da Comité d'histoire de la sécurité sociale.
ria. Tão logo a conjuntura política lhes permita fazer ouvir
sua voz, elas imporão um outro sistema1s4.
De fato, com a multiplicação dos regimes especiais, tem-se,
mais do que um ajustamento na margem, um outro sistema.
Expressa a diversidade da sociedade salarial em cujo seio mes-
mo os não-assalariados ocupam o terreno desbastado pelos
assalariados que se esforçam por maximizar as vantagens e
minimizar os custos da seguridade'''.Lógica da diferenciação
e da distinção mais do que da solidariedade e do consenso. O
organograma da Seguridade Social dá, assim, uma projeção
bastante boa da estrutura da sociedade salarial, isto é, de uma
sociedade hierarquizada em que cada grupo profissional, cioso
de suas prerrogativas, obstina-se em fazê-las reconhecer e em
marcar a distância em relação a todos os outros.
Mesmo lamentando o recuo da inspiração democrática
que estava em sua origem, bem como algumas de suas lacu-
156 • nas , e necessário convir que o sistema esposa perfeitamente
a lógica da transformação da sociedade salarial. A subordina-
Esse sistema terá, finalmente, 120 regimes de base e 12.000 regimes
complementares, cf. N. Murard, La protection sociale, op. cit., p. 90 sq.
Sobre as peripécias que levaram ao bloqueio do regime geral, cf. H. Galant,
Histoire politique de la sécurité sociale, op. cit. Nos bastidores do cenário
parlamenta; os representantes dos diferentes grupos profissionais e dos "in-
dependentes" fizeram um /obby intenso. Além da atuação dos médicos para
derrotar a vertente médica do programa, o papel da Confédération générale
des cadres, representando as categorias de assalariados hostis a qualquer
aproximação com o estatuto dos operários, foi preponderante, cf. L. Bol-
tanski, Les cadres, op. cit., p. 147 sq.
155 a G. Perrin, "Pour une théorie sociologique de la sécurité sociale dans
les sociétés industrielles", Revue française de sociologie, VII, 1967. A preo-
cupação com a diferenciação também agiu no seio da classe operária: as
categorias profissionais antigamente dotadas de regimes específicos, como
as dos mineiros, ferroviários, marinheiros..., fizeram tudo para preservar
seus "defeitos adquiridos". Sobre o peso dos regimes anteriores tentativa
de generalização, cf. F. Netter, "Les retraites en France avant le XXème
siècle", Diná social, n° 6, junho de 1963.
156 Particularmente a ausência de cobertura para o desemprego. Em contra-
partida, uma análise completa das proteçóes deveria enfatizar a importância
dos salários-família, expressão da preponderância da preocupação francesa
com a natalidade.
483
482
ção hierárquica da classe operária traduz sua destituição en-
quanto atrativo da condição salarial. As realizações da Segu-
ridade Social podem, então, ser interpretadas como a apoteose
de um salariado em cujo seio o salariado não-operário assumiu
um lugar cada vez mais preponderante. Promovem um tipo
de cobertura própria de uma sociedade que faz o jogo da di-
ferenciação mais do que o da igualdade. De um lado, a vulne-
rabilidade secular das classes populares parece dominada: um
fiozinho de seguridade para todos. Mas a socialização da renda
atinge igualmente as outras categorias salariais e, progressiva-
mente, a quase-totalidade da população". A "propriedade de
transferência", cuja lógica tinha começado a se impor na base
da escala social com as aposentadorias operárias e camponesas
e com os seguros sociais (cf. capitulo VI), universaliza-se. A
partir de agora, o "salário indireto" representa cerca de um
quarto da renda salarial e não tem mais como finalidade única
preservar os mais vulneráveis contra o risco da destituição
Essa evolução é pois, num mesmo movimento, uma pro-
moção da condição de assalariado e uma promoção da pro-
priedade social de que o Estado é, a um só tempo, o iniciador
e o fiador. Não só porque o lugar da administração foi pre-
ponderante para a implantação do sistema (conferir, por exem-
plo, o papel desempenhado na França por Pierre Laroque ou,
na Inglaterra, pelo lorde Beveridge que agia com mandato
governamental). De modo mais profundo, uma dimensão ju-
rídica está inserida na própria estrutura do salário. Por meio
157 75% da população francesa estão cobertos em 1975 e 99,2%, em 1984
(cf. C. Dufour, La protection sociale, Paris, La Documentation française,
1984, p. 49).
158 A soma destinada à proteção social representaria 10% da renda nacional
em 1938; 15,9%, em 1960; 24%, em 1970; 27,3%, em 1980 (cf. J. Dumont,
La sécurité sociale toujours en chantier, Paris, Editions ouvrières, 1981, p.
42). Em porcentagem da renda disponível dos casais, as prestações sociais
passaram de 1,1% em 1913 a 5% em 1938; a 16,6% em 1950; a 28% em
1975; a 32,4% em 1980 (R. Delorme, C. André, L'itat et l'économie, op.
cit., p. 415).
484
do salário indireto, "o que conta é cada vez menos o que cada
um possui e, cada vez mais, os direitos que são conquistados
para o grupo a que pertence. O ter tem menos importância
que o status coletivo definido por um conjunto de regras"".
A generalização do seguro submete assim a quase-totali-
dade dos membros da sociedade ao regime da propriedade de
transferência. É o último episódio da contra-dança entre o
patrimônio e o trabalho. Uma parte do salário (do valor da
força de trabalho) escapa, de agora em diante, às flutuações
da economia e representa uma espécie de propriedade para a
seguridade, nascida do trabalho e disponível para situações de
fora do trabalho, a doença, o acidente, a velhice. O Estado
social é colocado, em vista disso, no coração do dispositivo
salarial. Assim, se impôs como a terceira instância que desem-
penha o papel de mediador entre os interesses dos emprega-
dores e os dos empregados: "as relações diretas entre
empregadores e assalariados foram substituídas progressiva-
mente por relações triangulares entre empregadores, assala-
riados e instituições sociais"".
2. Essa concepção de Estado que subentende a proteção
social é complementar ao papel de ator econômico, assumido
pelo poder público e que se desenvolve igualmente, após a
Segunda Guerra Mundial. Mas enquanto a Seguridade Social
leva a cabo um processo de generalização da propriedade so-
cial, engajado desde o fim do século XIX, a intervenção do
159 H. Hatzfeld, "La difficile mutation de la sécurité-propriété à la sécurité-
droit", loc. cit., p. 57.
la J.-J. Dupeyroux, Droit de la sécurité sociale, Paris, Dalloz, 1980, p. 102.
Lembremos que o Estado desempenha esse papel sem ingerência direta na
gestão do sistema, que se dá, como se sabe, de modo paritário. Isso prova
que o funcionamento do Estado social não é necessariamente associado ao
desdobramento de uma pesada burocracia estatal. Mesmo o Estado francês.
Talvez não seja inútil lembrar que o sistema francês de Seguridade Social
obedece a regras incomparavelmente mais flexíveis, mais diversificadas e
mais descentralizadas que o sistema inglês, por exemplo (cf. D.E. Ashford,
British Dogmatism and French Pragnuttism, Londres, George Allen and Un-
win, 1982).
485
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL A SOCIEDADE SALARIAL
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
Estado como regulador da economia surge como uma inova-
- 161 çao .
No quadro da reconstrução primeiro, no da modernização
em seguida, o Estado assume a responsabilidade pela promo-
ção da sociedade. Impõe uma política voluntarista para definir
os grandes equilíbrios e escolher os domínios privilegiados de
investimento e, simultaneamente, para manter o consumo
através de políticas de reconstrução da economia. No início
dos anos 1950, o investimento .do Estado nas indústrias de
base é superior ao do setor privado162. Esta economia dirigida
confere um papel piloto às empresas nacionalizadas e ao setor
público. É ampliada com intervenções no crédito, nos preços,
nos salários...
O Estado gozava de poderes de regulamentação impressionan-
tes; entre outros setores, o investimento, o crédito, os preços,
1" Não que o Estado "liberal" se tenha proibido de desenvolver políticas
que contrariem abertamente o jogo espontâneo da economia, como o pro-
tecionismo deliberado, praticado por Guizot ou por Thiers, o estímulo sis-
temático dedicado à agricultura em detrimento da indústria ou, ainda,
quando da Primeira Guerra Mundial, a mobilização do essencial da produção
a serviço da defesa nacional (cf. 2 Rosanvallon, EEtat en France de 1789 à
nos jours, op. cit.). Mas— salvo durante o período da guerra, de que a maioria
das diretrizes foi anulada tão logo que a paz foi restabelecida — o Estado não
deve ter ingerência na gestão da indústria, e cabe aos industriais definir os
objetivos de suas empresas e dirigi-las da melhor forma segundo seus inte-
resses. No período entre as duas guerras, as primeiras concepções de plane-
jamento e das nacionalizações aparecem, na esfera do socialismo reformista,
bem como nos meios tentados pela instauração de um Estado autoritário. A
CGT desenvolve um substancial programa de nacionalizações, mas não será
realizado. A única iniciativa de dirigismo econômico que promoverá o go-
verno da Frente Popular de Léon Blum, ele próprio hostil às nacionalizações,
é a criação de um Ministério do Trigo para garantir uma renda mínima aos
camponeses, sinal suplementar da preponderância dada aos interesses da
agricultura sobre os da indústria (cf. R. Kuisel, Le capitalisrne et l'Etat en
France, op. cit., e A. Bergourioux, "Le néosocialisme. Marcel Déat: réfor-
misme traditionnel ou esprit des années trente?", Revue historique, n° 528,
out.-dez./1978; Jacques Amoyal, "Les origines socialistes et syndicalistes de
la planification en France", Le mouvement social, n°87, abril-junho de 1974;
sobre o crescimento quantitativo dos investimentos do Estado, cf. R. Delor-
me, C. André, L'État et l'économie, op. cit.
162 R. Kuisel, Le capitalisme et l'État en France, op. cit., p. 437.
486
A SOCIEDADE SALARIAL
os salários caíam mais ou menos sob seu controle. Podia, por
exemplo, intervir nos salários, fixando, de um lado, um mínimo
geral, e de outro, a escala de remuneração na função pública.
Os novos serviços de estatísticas ou de previsão revelavam-se
extremamente úteis, simbolizando a atitude de um Estado dis-
posto, agora, a prever o futuro para melhor organizá-l&'3.
Implantam-se, assim, os instrumentos de uma socialização
das condições da produção. Com a aplicação dos princípios
keynesianos, a economia não é mais concebida como uma es-
fera separada. É maleável à custa de intervenções — sobre os
preços, salários, investimentos, subsídios a alguns setores etc.
O Estado dirige a economia. Constrói uma correspondência
entre objetivos econômicos, objetivos políticos e objetivos so-
ciais. Circularidade de uma regulação que pesa sobre o eco-
nômico para promover o social e que faz do social o meio de
tirar de apuros a economia quando esta se abatei". Como diz
Clauss Offe, a autoridade do Estado está "mergulhada" na
economia pela gestão da demanda global, ao passo que as coer-
ções do mercado estão "introduzidas" no Estado 165 . As pre-
tensas leis da economia não são mais vividas como um destino.
Por suas políticas de novo lançamento, o papel que desempe-
nha para garantir os salários, as escolhas industriais que efetua,
o Estado intervém não só como produtor de bens, mas tam-
bém, poder-se-ia dizer, como produtor de consumidores, isto
é, de assalariados solváveis.
Mas é principalmente o desenvolvimento da propriedade
social que deve chamar a atenção quanto ao propósito presen-
te. Trata-se primeiro das nacionalizações, a respeito das quais
Henri de Man já observava que procediam a uma transferência
de autoridade sobre a propriedade (cf. capítulo VI); mas tam-
bém do desenvolvimento dos serviços públicos e dos equipa-
163 ibid., p. 417.
164 Cf. J. Donzelot, L'invention du social, op. cit., p. 170 sq.
"5C. Offe,Contradictions ofthe Welfare State, Londres, Hutchinson, 1986,
p. 182-183, e também A. Linossier, Crise des systemes assurantiels aux États-
Unis, en Grande-Bretagne et en France, op. cit.
487
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
mentos coletivos, a respeito dos quais se pôde dizer, a partir
do IV Plano de 1962 (o primeiro a se chamar "Plano de De-
senvolvimento Econômico e Social"), que representavam a
maneira como se encarnava o social'" — quer se tratasse de
estabelecimentos especiais em favor de categorias desfavore-
cidas da população ou de serviços públicos para uso coletivo.
Pierre Massé leva em conta a influência, na época, de críticas
(formuladas, entre outros, por Jacques Delors) do modelo
"americano" de desenvolvimento econômico, centrado sobre
o consumo individual. Portadores "de uma idéia menos parcial
do homem", os equipamentos coletivos colocam à disposição
de todos uma propriedade indivisa167. Para citar um verso de
Victor Hugo, "cada um tem dela sua parte, mas todos a têm
por inteiro"168.
Os serviços públicos aumentam assim a propriedade social.
Representam um tipo de bens que não são apropriáveis indi-
vidualmente, nem comercializáveis, mas servem ao bem co-
mum. Fora da lógica do patrimônio e do reino da mercadoria
privada, pertencem ao mesmo registro da propriedade de
transferência que a Seguridade Social amplia ao mesmo tempo.
Paralelismo entre a consolidação de uma propriedade-prote-
ção e o desenvolvimento de uma propriedade de uso público.
Pode-se hesitar em nomear essa forma de governabilidade.
Richard Kuisel, sensível ao recuo dessas posições quanto às
opções socializantes evidenciadas na época da Libertação, fala
de "neo-liberalismo"169. Mas trata-se, então, de uma forma de
liberalismo em quase-ruptura com as políticas liberais prece-
166 F. Fourquet, N. Murard, Valeur des services collectifs sociaux, op. cit., p.
104.
167 Pierre Massé, citado in E Fourquet, Les comptes de la puissance, Paris,
Éditions Recherches, 1980.
I" Citado in E Fourquet, N. Murard, Valeurs der services collectifs sociaux, op.
cit., p. 56. A imagem, no poema de Hugo, é a do farol que lança luz para todos
os navegantes, que serve a todo mundo, mas do qual ninguém se apropria.
169 R. Kuisel, Le capitalisme et l'État eu France, op. cit. Além das posições
de Pierre Mendes France, André Philipp, por exemplo, defendia uma opção
que concedia um amplo espaço aos sindicatos na definição e controle das
A SOCIEDADE SALARIAL
dentes. Jacques Fournier e Nicole Questiaux falam de "capi-
talismo social" sublinhando, ao mesmo tempo, o caráter in-
contestavelmente capitalista dessa economia e os esforços para
enquadrá-lo através de regulações sociais fortes170. Pode-se
também evocar um keynesianismo à francesa, planificador e
centralizador, como sugere Pierre Rosanvallon171. Porém, além
das especificidades francesas, essa forma de Estado é bastante
bem caracterizada por Clauss Offe: "Um conjunto multifun-
cional e heterogêneo de instituições políticas e administrativas
cujo objetivo é gerir as estruturas de socialização da economia
capitalista"172. Além das correções ao funcionamento selva-
gem da economia, dá-se ênfase aos processos de socialização
que transformam os parâmetros em interação na promoção
do crescimento. Também aqui o Estado está no cerne da dinâ-
mica do desenvolvimento da sociedade salarial.
3. O papel regulador do Estado atua sobre um terceiro
registro, o das relações entre os "parceiros sociais". Tal ambi-
ção é contemporânea da emergência das primeiras veleidades
de intervenção do Estado social", mas suas realizações foram
muito limitadas durante um bom tempo e, ainda no início dos
anos 70, tem bastante dificuldade para se impor. Tratar-se-ia
de negociar sobre uma base contratual, com a iniciativa ou a
arbitragem do Estado, os interesses divergentes dos emprega-
dores e dos assalariados. Se a história das relações de trabalho
políticas econômicas. Mas a "economia combinada" apoiou-se, de fato, nas
grandes concentrações industriais, nos setores mais dinâmicos do capitalismo
e nas grandes empresas nacionalizadas.
170 j Fournier, N. Questiaux, Le pouvoir du social, op. cit. Também se en-
contra nesta obra um certo número de propostas para prolongar ou para
orientar, no sentido de uma política socialista, as realizações do após-guerra.
171 R. Rosanvallon, 1.:État en France, op. cit.
177 C. Offe, Contradictions of lhe Welfare State, op. cit., p. 186.
177 Lembremos a proposta de Alexandre Millerand desde 1900: "Há o maiorinteresse em instituir, entre os patrões e a coletividade dos operários, relações
contínuas que permitam trocar, a tempo, explicações necessárias e acertar
alguns tipos de dificuldades... Introduzindo-as, o governo da República per-
manece fiel a seu papel de pacificador e de árbitro".
489
488
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL
é, freqüentemente, a história das resistências ao reconheci-
mento da negociação como um modo de gestão dos confli-
tos174
, destacam-se aqui duas medidas cujo impacto foi
considerável para a consolidação da condição salarial.
O SMIG — Salário Mínimo Interprofissional Garantido, é
instituído em 1950 e torna-se, em 1970, o SMIC — Salário Mí-
nimo Interprofissional de Crescimento, indexado sobre o au-
mento dos preços e sobre a progressão do crescimento. Em
relação à história da condição de assalariado, essas medidas são
essenciais, porque definem e dão um estatuto legal às condições
mínimas de acesso à condição salarial. Um issalariado não é
somente um trabalhador qualquer que recebe uma certa remu-
neração por um trabalho. Com o SMIG, o trabalhador "entra
em condição salarial", como se poderia dizer, isto é, se insere
no continuum de posições comparáveis e constitui, como se
viu, a estrutura de base dessa condição. O trabalhador entra
numa lógica de integração diferencial que, na sua versão SMIC,
é indexada até mesmo sobre a progressão global da produtivi-
dade. É menos um minimurn vital do que uma garantia de par-
ticipação no desenvolvimento econômico e social. Tem-se aí o
primeiro grau do pertencimento a um status de assalariado, gra-
ças ao qual o salário não é mais só um modo de retribuição
econômica.
O pagameneto mensal do salário representa um outro pon-
to forte da consolidação da condição salarial para os que estão
na base da escala dos empregos. Pauta, como já se disse, o
estatuto da maioria dos operários sobre o dos empregados, e
174 Cf. especialmente J. Le Goff, Du silence à la parole, op. cit., E Sellier, La
confrontation sociale en France, op. cit., J.-D. Reynaud, Les syndicats, les patrons
et l'Etat, tendances de la négociation collective en France, Paris, Editions ouvriè-
res, 1978, e P Rosanvallon, La question sociale, Paris, Cahnann-Lévy, 1988.
Duas razões principais para essa situação. A atitude geral da maioria do patro-
nato, tendendo a considerar os negócios da empresa como território reservado,
o que acarreta uma desconfiança por principio em relação aos sindicatos. Essa
atitude evoluiu muito lentamente em um século. De outro lado, a dificuldade,
e às vezes a recusa, dos sindicatos operários a se prestarem ao jogo da sociedade
salarial. Esta implica, realmente, urna gestão diferencial dos conflitos e a acei-
tação de reivindicações relativas que devem resultar em compromissos mais
do que em mudanças globais.
490
o salário deixa de retribuir uma tarefa pontual para tornar-se
uma alocação global atribuída a um indivíduo. Porém, ademais
desta contribuição à integração operária, o pagamento mensal
do salário, pela maneira como se impôs, exemplifica o papel
desempenhado pelo Estado no desenvolvimento das políticas
contratuais. É proposta pelo governo, e de início acolhida com
frieza tanto pelo patronato, que teme pagar o seu custo, quanto
pelos sindicatos operários, desconfiados em relação a uma me-
dida que, amiúde, havia servido às estratégias patronais para
instituir clivagens no seio dos operários' S. No entanto, os
acordos de pagamento mensal, negociados setor por setor a
partir de maio de 1970, impõem-se de modo rápido. Inde-
pendentemente de eventuais segundas intenções eleitorais — o
candidato Pompidou tinha introduzido o pagamento mensal
em seu programa para a Presidência —, tem-se aí um incon-
testável sucesso do Estado em sua vontade de_promover um
compromisso social entre grupos antagônicos'''.
A essas disposições que dizem respeito à estrutura profis-
sional e ao direito do trabalho, é preciso associar os esforços
tentados para repartir os frutos da expansão. A diretriz do Pri-
meiro-ministro para a preparação do V Plano, em janeiro de
1965, solicita que "se esclareça o que pode ser [...] na realidade
a progressão das grandes massns de renda, salários, lucros, sub-
venções sociais e outras rendas individuais para favorecer um
amplo acesso de todos ao fruto da expansão, ao mesmo tempo
que para reduzir as desigualdades"17 . Situa-se nesse quadro a
tentativa de desenvolver uma "política de rendas", lançada
175 J. Bunel, La mensualisation, une réforme tranquille?, op. cit.
176 A. idade de ouro dessa política corresponde à tentativa de Jacques Cha-
ban-Delmas para promover sua "nova sociedade". Os acordos interprofis-
sionais de julho de 1970 sobre a formação permanente representam, com
os acordos sobre a mensalização, uma realização exemplar dessa abordagem.
O produto de um acordo contratual torna-se "obrigação nacional": "La
formation professionnelle permanente constitue une obligation nationale"
(artigo L 900-1 do Código do Trabalho).
177 Citado in B. Friot, Protection sociale et salarisation de la main-d'oeuvre:
essai sur le cas français, tese em Ciências Econômicas, Université Paris X,
Paris, 1993.
491
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
após a grande greve dos mineiros, em 1963. Pierre Massé pro-
punha, em janeiro de 1964, que por ocasião da preparação de
cada plano, o Comissariado fosse encarregado,
paralelamente ao planejamento tradicional em volume, de apre-
sentar uma programação indicativa em valor. Esta última faria
com que se evidenciassem orientações para as grandes massas
de renda, especialmente a dos salários, das subvenções sociais,
da renda agrícola e dos lucros, assim como as condições de equi-
líbrio entre a poupança e o investimento de um lado, as receitas
e as despesas pública. s de outro lado [...] A partir de orientações
anuais, o governo poderia recomendar uma taxa de progressão
para cada categoria de rendam.
A política de rendas nunca será concretizada, pelo menos
não sob essa forma. A evolução dos salários de 1950 a 1975
mostra que as disparidades permaneceram mais ou menos
constantes, e' até com uma tendência a se aprofundarem (dis-
tância de 3,3 entre quadros superiores e operários em 1950;
de 3,7, em 1975179). Pode-se então falar de uma repartição
dos frutos do crescimento? Sim, desde que não se entenda isso
como redução das desigualdades. Globalmente, a evolução dos
salários acompanhou a da produtividade, e todas as categorias
beneficiaram-se disso, sem, entretanto, alterar o leque das hie-
rarquias. Contudo, ainda que se tenha tornado possível graças
aos resultados do crescimento, essa progressão não foi um
efeito mecânico deles. O desenvolvimento econômico foi to-
mado em estruturas de regulação jurídicas. Aliás, quando a
dinâmica econômica começa a se exaurir, a consistência desse
sistema de regulação atenua, num primeiro momento, os efei-
tos da crise. O acordo interprofissional assinado no dia 14 de
In Citado ir: F. Sellier, La confrontation sociale en France, op. cit., p. 217.
Para uma apresentação das ambições da política de renda, cf. G. Caire, Les
politiques des revenus et leras aspects institutionnels, Genebra, BIT, 1968.
179 a. C. Baudelot, A. Lebeaupin, "Les salaires de 1950 à 1975", Économie
et statistiques, n° 113, julho-agosto de 1979. Ocorre um aumento dos baixos
salários em 1968 com, sobretudo, o aumento do SMIC (35% em Paris e
38% no interior), mas que recupera em parte uma degradação anterior e,
em seguida, sofre nova erosão.
492
A SOCIEDADE SALARIAL
outubro de 1974 garante a indenização do desemprego total
pelo valor de 90% do salário bruto no primeiro ano, ao passo
que o desemprego parcial é indenizado pela empresa com o
aporte dos fundos públicos180. Os dispositivos paritários de
garantia, engajando a responsabilidade do Estado, permitiam
pensar ainda que existia um quase-direito ao emprego, no mo-
mento mesmo em que a sistuação começavaa se degradar.
Então, realmente existiu uma poderosa sinergia entre o
crescimento econômico com seu corolário, o quase-pleno-em-
prego, e o desenvolvimento dos direitos do trabalho e da prote-
ção social. A sociedade salarial parecia seguir uma trajetória •
ascendente que, num mesmo movimento, assegurava o enrique-
cimento coletivo e promovia uma melhor repartição das opor-
tunidades e das garantias. Entretanto, para não tornar esta
exposição muito pesada e conservar o fio condutor da argumen-
tação, me ative às proteções diretamente ligadas ao trabalho. A
mesma montagem "desenvolvimento econômico-regulações es-
tatais" atuou nos domínios da educação, da saúde pública, do
planejamento dos recursos, do urbanismo, das políticas relativas
à família... Globalmente, as performances da sociedade salarial
pareciam em via de suprimir o déficit de integração que havia
marcado o início da sociedade industrial através do crescimento
do consumo, do acesso à propriedade ou à moradia decente, da
maior participação na cultura e no lazer, dos avanços na realiza-
ção de uma maior igualdade de oportunidades, a consolidação
do direito do trabalho, a extensão das proteções sociais, a su-
pressão dos bolsões de pobreza etc. A questão social parecia
dissolver-se na crença no progresso indefinido.
Essa trajetória é que foi interrompida. Quem, hoje, afirmaria
que vamos para uma sociedade mais acolhedora, mais aberta,
trabalhando para reduzir as desigualdades e para maximizar as
proteções? A própria idéia de progresso perdeu sua coesão.
1" J.-D. Reynaud, Les syndicats, les patrons et l'État, op. cit., p. 14-16.
Lembremos quanto a isso, que a indenização — tardia na França — do desem-
prego se efetua por meio desse tipo de convenções paritárias (assinatura em
dezembro de 1958, também sob a pressão dos poderes públicos, do acordo
que cria as Assedie e a Unedic).
493
VIII — A nova questão social
O resultado das análises precedentes leva a interpretar a
questão social tal, como se manifesta hoje, a partir do enfra-
quecimento da condição salarial. A questão da exclusão que
há alguns anos ocupa o primeiro plano é um de seus efeitos,
essencial sem nenhuma dúvida, mas que desloca para a margem
da sociedade o que a atinge primeiro no coração. Ou não há,
como pretendia Gambetta, senão "problemas sociais" parti-
culares, uma pluralidade de dificuldades a enfrentar uma a
umal, ou há uma questão social e é a questão do estatuto do
salariado, porque chegou a estruturar nossa formação social
quase inteiramente. O salariado acampou durante muito tem-
po às margens da sociedade; depois aí se instalou, permane-
cendo subordinado; enfim, se difundiu até envolvê-la
completamente para impor sua marca por toda parte. Mas é
exatamente no momento em que os atributos vinculados ao
Num discurso de 20 de janeiro de 1880, Léon Gamberta declara que o
problema a que se deve dedicar "é o que chamarei de a solução dos problemas
econômicos e industriais, e que me recusarei a chamar de questão social...
Esses problemas só podem ser resolvidos um a um, à custa de estudos e boa
vontade e, sobretudo, à custa de conhecimentos e trabalho" (Discours poli-
tiques, IX, p. 122, citado in G. 'Wein, Histoire du mouvement social eis France,
op. cit., p. 242). Trata-se de uma forma de "dividir as dificuldades em tantas
partes quantas forem necessárias para melhor resolvê-las, conforme o as-
cours de la méthode de Descartes, ou de dividir a questão social em tantas
partes quantas forem necessárias para a eludir melhor?
495
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL A NOVA QUESTÃO SOCIAL
trabalho para caracterizar o status que situa e classifica um
indivíduo na sociedade pareciam ter-se imposto definitiva-
mente, em detrimento dos outros suportes da identidade,
como o pertencimento familiar ou a inscrição numa comuni-
dade concreta, que essa centralidade do trabalho é brutalmente
recolocada em questão. Teremos chegado a uma quarta etapa
de uma história antropológica da condição de assalariado, eta-
pa em que sua odisséia se transforma em drama?
Sem dúvida, essa questão não admite, hoje, resposta uní-
voca. Mas é possível precisar as disputas nela presentes e de-
finir as opções abertas, conservando o fio condutor que
inspirou toda esta construção: apreender uma situação como
uma bifurcação em relação a uma situação anterior, buscar sua
inteligibilidade a partir da distância que se aprofundou entre
o que foi e o que é. Sem mistificar o ponto de equilíbrio a que
havia chegado a sociedade salarial há cerca de vinte anos, cons-
tata-se então um resvalamento dos principais parâmetros que
garantiam esse frágil equilíbrio. A novidade não é só a retração
do crescimento nem mesmo o fim do quase-pleno-emprego, a
menos que se veja aí a manifestação de uma transformação do
papel de "grande integrador" desempenhado pelo trabalho'. O
trabalho, como se verificou ao longo deste percurso, é mais que
o trabalho e, portanto, o não-trabalho é mais que o desemprego,
o que não é dizer pouco. Também a característica mais pertur-
badora da situação atual é, sem dúvida, o reaparecimento de
um perfil de "trabalhadores sem trabalho" que Hannah
Arende evocava, os quais, literalmente, ocupam na sociedade
um lugar de supranumerários, de "inúteis para o mundo".
Entretanto, essa constatação não é suficiente para avaliar
o significado exato desse acontecimento nem para saber como
enfrentar uma situação que é inédita na escala de meio século,
embora evoque outras mais antigas, anteriormente encontra-
das. Momento difícil de enfrentar enquanto'se espera a reto-
2 Barel, "Le grand intégra.teur", Connexions, $6, 1990.
3 1-1. Arendt, Condition de Phomme moderne, op. cit., p. 38.
mada. Por exemplo: bastaria armar-se de paciência e se virar
com alguns expedientes. Período incerto de transição para uma
inevitável reestruturação das relações de produção: seria pre-
ciso mudar certos hábitos antes de encontrar uma configuração
estável. Mutação completa de nossa relação com o trabalho e,
através disso, de nossa relação com o mundo: tratar-se-ia, en-
tão, de inventar uma maneira diferente de habitar esse mundo
ou resignar-se com o apocalipse.
Para evitar tanto as tentações do profetismo como as do
catastrofismo, vai-se começar pela tentativa de avaliar a am-
plitude exata das mudanças ocorridas em vinte anos e, depois,
o alcance das medidas tomadas para enfrentá-las. Assim, quan-
to às políticas de integração que prevaleciam até os anos 70,
as políticas ditas de inserção: estarão elas à altura das rupturas
que se aprofundaram? Trata-se de modernizar as políticas pú-
blicas ou de dissimular sua derrota?
Este trabalho pretende ser essencialmente analítico, e não
tem por ambição propor uma solução miraculosa. Entretanto,
o tratamento da questão numa perspectiva histórica permite
dispor de algumas peças para recompor um novo quebra-ca-
beça. Porque esta longa travessia evidenciou alguns ensina-
mentos: o todo econômico nunca fundou uma ordem social;
numa sociedade complexa, a solidariedade não é mais um dado
mas um construído; a propriedade social é, simultaneamente,
compatível com o patrimônio privado e necessária para inse-
ri-lo em estratégias coletivas; o salário, para escapar de sua
indignidade secular, não pode se reduzir à simples remunera-
ção de uma tarefa; a necessidade de preparar para cada um
um lugar numa sociedade democrática não pode ser realizada
por meio da completa transformação da sociedade em merca-
doria, cavando qualquer "jazida de emprego" etc.
Se, por definição, o futuro é imprevisível, a história mostra
que a gama dos recursos de que os homens dispõem para en-
frentar seus problemas não é infinita. Se é fato que nosso pro-
blema hoje é continuar a constituir uma sociedade de sujeitos
independentes, então é possível ao menos indicar algumas con-
dições a serem respeitadas para que isso ocorra.
496 497
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
Uma ruptura de trajetória
Fundamentalmente,é uma representação do progresso
que talvez tenha sido levada pela "crise": a crença de que o
amanhã será melhor que o hoje e de que se pode confiar no
futuro para melhorar sua condição; ou, sob uma forma menos
ingênua, a crença na existência de mecanismos para controlar o
futuro de uma sociedade desenvolvida, dominar suas turbulên-
cias e conduzi-la a formas de equilíbrio organizadas de modo
cada vez melhor. Trata-se, sem dúvida, de uma herança eufernís-
rica do ideal revolucionário de um domínio completo do homem
sobre seu destino através da ambição de fazer entrar, ainda que
à força, o reino dos fins na história. Entretanto, como progresso,
não se trata mais de instaurar à força, aqui e agora, um mundo
melhor, mas de preparar transições que, progressivamente, é
oportuno dizer, permitirão que dele se aproxime.
Essa representação da história é indissociável da valoriza-
ção do papel do Estado. É preciso um ator central para con-
duzir tais estratégias, obrigar os parceiros a aceitarem objetivos
sensatos, zelar pelo respeito dos compromissos. O Estado so-
cial é este ator. Em sua gênese, como se viu, primeiro foi mon-
tado com peças e pedaços. Mas à medida que se fortalece,
chega à ambição de conduzir o progresso. E por isso que o
conceito acabado do Estado social, no desenvolvimento pleno
de suas ambições, é social-democrata. Sem dúvida, todo Estado
moderno é mais ou menos obrigado a "fazer social" para mi-
tigar algumas disfunções gritantes, assegurar um mínimo de
coesão entre os grupos sociais etc. Mas é através do ideal sê-
cial-democrata que o Estado social surge como o princípio de
governo da sociedade, a força motriz que deve assumir a res-
ponsabilidade pela melhoria progressiva da condição de to-
dos'. Para tal, dispõe do tesouro de guerra que é o crescimento
4 Um Estado liberal pode ser obrigado a "fazer social" contra sua vontade e o
mínimo possível, um Estado socialista o faria por falta, falta de poder promover
transformações radicais imediatamente. É para um Estado social-democrata que
498
A NOVA QUESTÃO SOCIAL
e dedica-se a repartir seus frutos, negociando a divisão dos
benefícios com os diferentes grupos sociais.
É possível objetar que esse Estado social-democrata "não
existe". De fato, sob essa forma, é um tipo ideal. A França
nunca foi, verdadeiramente, uma social-democracias, ao passo
que os países escandinavos ou a Alemanha, por exemplo, eram
muito mais. Mas também os Estados Unidos eram menos ou
não eram nada social-democratas. Isso significa que, inde-
pendentemente da realização do tipo, existem traços dessa
forma de Estado que se encontram sob configurações mais ou
menos sistemáticas em constelações sociais diferentes. O que
importa agora é perguntar-se em que medida a França do início
dos anos 70 se aproximava da realização dessa forma de or-
ganização. Não para inscrevê-la em uma tipologia, nem para
lhe atribuir o mérito — ou a vergonha — de não ter estado o
bastante ou de ter estado próxima demais do ideal social-de-
mocrata mas, sim, para tentar avaliar a amplitude do desloca-
mento que se realizou em mais ou menos vinte anos e para
medir a bifurcação que se produziu quanto à trajetória de en-
tão. Acidente de percurso ou mudança completa do regime
das transformações sociais? Portanto, é necessário proceder a
uma avaliação crítica da posição então ocupada nessa trajetória
ascendente que parecia levar a um futuro melhor6.
as reformas sociais são, em si mesmas, um bem, porque marcam as etapas
da realização de seu próprio ideal. O reformismo assume aqui sua acepção
plena: as reformas são os meios de realização da finalidade da política.
$ O momento em que ela esteve mais próxima, pelo menos em intenção
declarada, foi, sem dúvida, o da "nova sociedade" de Jacques Chaban-Del-
mas, amplamente inspirado por Jacques Delors. Intenção explícita de trocar
o abandono dos confrontos de perspectiva revolucionária por uma política
de compromissos negociados com o conjunto dos parceiros sociais. "O go-
verno propõe ao patronato e às organizações sindicais que colaborem com
o Estado na realização de tarefas de interesse comum" (discurso de política
geral, de 16 de setembro de 1969, citado por J. Le Goff, Du si/ente à la
parole, op. cit., p. 227).
6 Para uma apresentação de conjunto do enfraquecimento do modelo social-
democrata na década de 70, cf. R. Darendorf, "Caprès-social-démocratie",
Le Débat, n° 7, dezembro de 1980.
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ganhar decentemente sua vida".
A agência de empregos deve efetuar uma divisão do tra-
balho que consiste em traçar uma linha divisória entre os ver-
dadeiros empregados em tempo integral e os que serão
completamente excluídos do mundo do trabalho e passarão
para a esfera das formas coercitivas de assistência, previstas
para os indigentes válidos. Igualmente, os Webb fazem apelo
9 C. Topalov, "Une révolution dans les représentations dl, travail. lémer-
gence de la catégorie statistique de 'population active' en France, en Gran-
de-Bretagne et aux États-Unis", mimeografado, 1993, p. 24, e Naissance du
chômeur, 1880-1910, op. cit.
Beveridge, Royal Commission on Poor Lato and Reli( Distress, Appen-
dix V8. House of Commons, 1910, citado in C. Topalov, "Invention du
cheimage et politiques sociales au début du siècle", Les temps modernes, n's
496-497, nov.-dez. de 1987. A obra de Beredige publicada na época, Unem-
ployment, A Problem of Industry, Londres, 1909, é que começa a tornar
conhecido o futuro organizador e realizador da Seguridade Social inglesa.
A SOCIEDADE SALARIAL
421
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL
11 S. e B. IX7ebb, The Prevention of Destitution, op. cit. Em relação a esse
ponto, há unanimidade entre os reformadores sociais ingleses. Cf. E Miei,,
The Unemployed, a National Question, Londres, 1906, e uma apresentação
sintética dos "polices of decasualisation" — que poderia ser traduzida como
o conjunto de medidas tomadas para acabar com o trabalho intermitente a
fim de se constituir um verdadeiro mercado do trabalho — ir: M. Mansfield,
"Labour Exchange and the Labour Reserve in Turn of the Century Social
Reform"Jounia/ of Social Policy, 21,4, Cambridge University Press, 1992.
12 Em maio de 1911, a população ativa francesa tem 47% de assalariados,
numa relação de 3 patrões para 7 assalariados, ao passo que a proporção
dos assalariados na Grã-Bretanha aproxima-se dos 90% (Cf. B. Guibaud, De
Ia mutualité à la sécurité sociale, op. cit., p. 54).
13 Cf. B. Motez, Systèmes de salaire et politiques patronato, Paris, edição do
CNRS, 1967. O empreiteiro, ou o subempreiteiro, é pago pelo patrão para
a execução de uma obra e paga os trabalhadores que contrata diretamente.
Essa prática pouco aceita pelos operários foi abolida em 1848, mas restau-
rada logo depois e defendida inclusive pelos liberais, como Leroy-Beaulieu,
que vêem nela uma dupla vantagem: garantir uma vigilância direta dos ope-
rários pelo empreiteiro e permitir a promoção de uma espécie de elite de
pequenos empresários a partir da condição de assalariado (cf. P. Leroy-Beau-
lieu, Traité théorique et pratique d'économie politique, t. II, p. 494-495).
422
nalidade das agências privadas de emprego, às quais é neces-
sário acrescentar raras agências municipais, e às tentativas sin-
dicais de controlar, e às vezes de monopolizar, a contratação.
Fernand Pelloutier esgota-se em implantar as bolsas de traba-
lho que devem, entre outras coisas, coletar todos os pedidos
de emprego e organizar a admissão sob controle sindical".
Mas o empreendimento, minado pelas divisões sindicais, du-
rará muito tempo. No plano político, a ala reformista, repre-
sentada pelos "republicanos progressistas" e pelos socialistas
independentes, interessa-se pela questão. Léon Bourgeois, em
especial, compreende a relação existente entre a regulação do
mercado de trabalho e a questão do desemprego, que se torna
preocupante no início do século com uma estimativa de 300
mil a 500 mil desempregadosis. Mas os remédios que preco-
niza para combatê-lo são muito tímidos: "A organização da
contratação aparece, evidentemente, em primeiro lugar'.
Deplora a insuficiência das agências municipais e sindicais,
evoca a necessidade de um seguro contra o desemprego, mas
deixa esta responsabilidade aos agrupamentos profissionais.
Os poderes públicos terão assim, e por muito tempo, ape-
nas um papel muito modesto na organização do mercado de
trabalho e na luta contra o desemprego. O Ofício do Trabalho,
criado em 1891, dedica-se a reunir uma importante documen-
tação e a elaborar estatísticas confiáveis. Esta atividade se pro-
longa no quadro do Ministério do Trabalho, criado em 190617,
14 Cf. E Pelloutier, Histoire des bourses du travai!, Paris, 1902, e Jacques
Julliard, Femand Pelloutier et les origines du syndicalisme clictction directa,
Paris, Le Seuil, 1971.
'5 L. Bourgeois, "Discours à la Conférence internationale sur le ch6mage", Paris,
10 de setembro de 1910, in Politique de la prévoyance sociale, op. cit., p. 279.
"L. Bourgeois, "Le Ministère du Travail", discurso no congresso mutualista
de Normandie, em Caen, no dia 7 de julho de 1912, kl Politique de la pré-
voyance sociale, op. cit., t. II, p. 206 sq. Bourgeois defende igualmente um
controle do treinamento para melhorar a qualificação e a "ação do Estado
como moderador na execução das grandes obras públicas" (p. 207).
17 Cf. J.-A. Tournerie, Le Ministère du Travail, origines et premiers dévelop-
pements, op. cit.
423
a "uma instituição em que os indivíduos devem ser condenados
a viver isolados, cumprindo pena e mantidos sob vigilância
[...] absolutamente essencial para qualquer programa eficaz de
tratamento do desemprego"".
Se foi impossível realizar rigorosamente tal "ideal", as ins-
tituições implantadas na Grã-Bretanha, nas primeiras décadas
do século XX, aproximaram-se dele. As agências municipais
de emprego e os poderosos sindicatos de trabalhadores que
praticam o closed shop — monopólio do emprego para os sin-
dicalizados — conseguiram, não a dominar o desemprego, pro-
blema endêmico na Grã-Bretanha, mas a controlar melhor a
contratação para os empregos disponíveis.
Em razão principalmente do atraso no desenvolvimento
da condição de assalariado industrial em relação à Grã-Breta-
nha12, esse tipo de política de emprego antecipada nunca as-
sumiu na França semelhante caráter sistemático. Durante
muito tempo, a contratação foi deixada à iniciativa dos traba-
lhadores, em princípio "livres" de irem alugar-se a seu grado,
à esperteza de "contratadores" ou de "empreiteiros"13, à ve-
A SOCIEDADE SALARIAL AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
mas não é nada que possa funcionar como verdadeira política
do emprego.
O que funcionou como tal durante muito tempo foi o
conjunto das políticas patronais anteriormente desenvolvidas
(cf. capítulo V), mistura de sedução e de coerção para fixar os
operários através das "vantagens sociais" e aniquilar sua resis-
tência através de regulamentações rígidas. Foi o caso também,
de modo mais geral, da espécie de chantagem moral exercida
sobre os trabalhadores pelos filantropos, pelos reformadores
sociais e pelos porta-vozes do liberalismo: adaptem-se ao mo-
delo do bom operário, regular no trabalho e disciplinado em
seus costumes ou terão parte desses miseráveis excluídos da
sociedade industrial". Seria necessário citar aqui, novamente,
toda a literatura repetitiva sobre a necessária moralização do
povo. Pode-se ver um sinal de vitalidade dessa atitude — até o
fim do século XIX e o início do século XX — na extraordinária
onda de repressão da vagabundagem que então floresceu: cin-
qüenta mil prisões a cada ano por vagabundagem na década
de 1890, acarretando até vinte mil processos anuais julgados
pelos tribunais19, com ameaça de degredo em caso de reinci-
dência. Conjunturalmente, essas medidas podem ser explica-
das pela grave crise econômica que então se alastrou e pela
miséria do meio rural. Mas é também uma maneira de lembrar,
no momento em que uma nova ordem do trabalho se esboça
com a segunda revolução industrial, o quanto custa escapar
dela. O vagabundo torna-se novamente, durante um ou dois
decênios, o contramodelo abominado que representou na so-
ciedade pré-industrial (cf. capítulo II): a figura da associabili-
dade que é necessário erradicar, porque destoa numa sociedade
que volta a endureceras regulações do trabalho".
19 Cf. J. Donzelot, P Estèbe, EÉtat anirnateur, Paris, Éditions Esprit, 1994,
introdução.
19 Cf. M. Perrot, "La fin des vagabonds", EHistoire, no 3, julho-agosto 1978.
1° Para uma amostra dessa literatura que prega uma verdadeira cruzada
contra a vagabundagem, cf. Dr. A. Pagnier, Un déchet social: le vagabond,
Paris, 1910.
Mas logo um outro modo de regulação vai se impor de
maneira mais eficaz. Todas essas dosagens de repressão e de
mansidão filantrópica permanecem limitadas em seus efeitos,
porque continuam exteriores à organização do trabalho pro-
priamente dita. Enquanto se trata de converter o operário a
uma conduta mais regular, procurando convencê-lo de que
seu verdadeiro interesse exige principalmente disciplina, ele
pode se revoltar, ou se furtar, pela fuga a essas obrigações que
são da esfera moral. A máquina impõe outros tipos de coer-
ções, objetivas desta vez. Com ela não se discute. Segue-se ou
não se segue o ritmo que a organização técnica do trabalho
impõe. A relação de trabalho poderá deixar de ser "volátil",
se esta organização técnica for, em si mesma, suficientemente
poderosa para impor sua ordem.
Segunda condição: a fixação do trabalhador em seu posto
de trabalho e a racionalização do processo de trabalho no qua-
dro de uma "gestão do tempo exata, recortada, regulamenta-
da'. As tentativas para regular a conduta operária a partir
das coerções técnicas do próprio trabalho, que vão espandir-se
com o taylorismo, não são do século XX. Já em 1847, o barão
Charles Dupin sonha em realizar o trabalho perpétuo graças
ao infatigável impulso do "motor mecânico":
Há, pois, uma extrema vantagem em fazer os mecanismos ope-
rarem infatigavelmente, reduzindo à menor duração os interva-
los de descanso. A perfeição lucrativa seria trabalhar sempre...
Portanto, foram introduzidos na mesma oficina os dois sexos e
as três idades explorados em rivalidade, lado alado, se podemos
falar nesses termos, arrastados sem distinção pelo motor mecâ-
nico para o trabalho prolongado, para o trabalho de dia e de
noite para se aproximar cada vez mais do movimento eternos.
21 R. Saiais, "La formation du chômage comme catégorie", loc. cit., p. 325.
22 C. Dupin, relatório apresentado à Câmara dos Pares, 27 de junho de 1874,
citado in L. Murard, R Zylberman, "Le petit travailleur infatigable", Recher-
che, n° 23, novembro de 1976, p. 7. Precedentes de uma organização quase
"perfeita" da disciplina de fábrica poderiam ser encontrados antes mesmo
da introdução de máquinas sofisticadas e, a fortiori, antes da cadeia de mon-
tagem. É o caso da olaria fundada na Inglaterra, por volta de 1770, por
425 424
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL
Mas essa maravilhosa utopia baseia-se na "exploração em
rivalidade" das diferentes categorias de pessoal, isto é, sobre
a mobilização do fator humano.
Com a "organização científica" do trabalho, em compen-
sação, o trabalhador é fixado não por uma coerção externa,
mas pelo encadeamento das operações técnicas cuja cronome-
tragem definiu rigorosamente a duração. Assim, acha-se eli-
minado o "perambular" operário e, com ele, a margem de
iniciativa e de liberdade que o trabalhador conseguia preservar.
Mais ainda, as tarefas parceladas tornando-se simples e repe-
titivas, uma qualificação sofisticada e polivalente é inútil. O
operário é destituído do poder de negociação que o "ofício"13
lhe propiciava.
Mas os efeitos dessa "organização científica do trabalho"
podem ser lidos de duas maneiras: como uma perda da auto-
nomia operária e como o alinhamento das competências pro-
fissionais sobre o mais baixo nível das tarefas reprodutivas. As
análises mais freqüentes sobre o taylorismo e que enfatizam o
aspecto da destituição são, entretanto, simplificadoras. De um
lado, tendem a idealizar a liberdade do operário pré-taylorista,
capaz de ir vender suas competências a quem oferece mais.
Sem dúvida, isso é verdadeiro quanto aos herdeiros dos ofícios
Josiaph Wedgwood; passou para a posteridade como um modelo de estrita
organização do trabalho. Não é mecanizada, mas associa a divisão do tra-
balho manual no interior da empresa a uma política de moralização dos
operários, apoiada pela Igreja Metodista e por unia Sociedade pela Supressão
do Vício, animada pelo patrão. O. N. McKendrick, "Josiaph Wedgwood
and Factory Discipline", in D.S. Landes, The Bise of Capitalism, op. cir.
Também podem ser destacadas formas de divisão de tarefas que antecipam
o trabalho em cadeia sem ser baseado na máquina. É o caso da "tablée": um
objeto circula de mão em mão em torno de uma mesa; cada operário acres-
centa-lhe uma parte até que fique pronto (cf. B. Dorey, Le taylorisme, une
folie rationnelle, Paris, Dunod, 1981, p. 342 sq).
23 Cf. B. Coriat, L:atelier et le chronomètre, Paris, Christian Bourgeois, 1979.
Existem várias traduções francesas de F.W. Taylor que apareceram muito
cedo, como Études sur l'organisation du travail dans les usines (412 p.),
Anger, 1907. Para uma atualização das questões suscitadas pelo taylorismo
hoje, cf. a obra coletiva, sob a direção de Maurice de Montmollin e Olivier
Pastré, Le taylorisme, Paris, La Découverte, 1984.
426
artesanais, possuidores de competências raras e muito procu-
radas. Entretanto, se é verdade que se instala sobretudo na
grande empresa, na maioria das vezes o taylorismo teve que
tratar com populações operárias de origem rural recente, sub-
qualificadas e pouco autônomas.
De outro lado, foi sem dúvida a racionalização "científica"
da produção que contribuiu de modo mais decisivo para a
homogeneização da classe operária. Atacou a compartimenta-
. ção estanque dos "ofícios" com os quais seus membros se iden-
tificavam estreitamente: a pessoa se pensava ferreiro ou
carpinteiro antes de se pensar "operário" (as rivalidades das
associações de ofícios, que sobreviveram por muito tempo ao
Antigo Regime, ilustram até chegar à caricatura essa crispação
sobre a especificidade do ofício24). E ainda mais porque, no seio
de uma mesma especialização profissional, existiam também dis-
paridades muito importantes de salário e de status entre compa-
nheiro com formação completa, mão-de-obra, aprendiz... Assim,
a homogeneização "científica" das condições de trabalho pôde
forjar uma consciência operária que desemboca numa cons-
ciência de classe aguçada pela penosidade da organização do
trabalho. As primeiras ocupações de indústrias, em 1936, se
darão nas empresas mais modernas e mais mecanizadas. É tam-
bém nestas "cidadelas operárias" que a CGT e o Partido Co-
munista recrutarão seus militantes mais combativos2s.
Em terceiro lugar, a tendência à homogeneização das con-
dições de trabalho não pode ir até o fim, ou melhor, na mesma
medida em que se acentua, produz efeitos inversos de diferen-
ciação. De fato, a produção de massa exige, por si mesma,
distinções entre um pessoal de pura execução (é o caso do
operário especializado, o 0E) e um pessoal de controle ou de
manutenção (o operário técnico). A evolução técnica do tra-
balho exige igualmente o fortalecimento e a diversificação de
24 Cf. A. Perdignuier, Mémoires d'un compagnon, Paris, reedição Maspero,
1977.
25 Cf. G. Noiriel, Les ouvriers dans la société française, op. cit.
427
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
um pessoal de concepção e de enquadramento — os que vão
se tornar os "quadros".
Homogeneização e diferenciação: este duplo processo já
está em curso no início da segunda revolução industrial. Con-
vida a não falar da "taylorização" como um processo homo-
gêneo, lançado à conquista do mundo operário. Sua
implantação é lenta e circunscrita a locais industriais muito
particulares: antes da Primeira Guerra Mundial, apenas 1%
da populasão industrial francesa é atingida por essa inovação
americana 6. Ademais, o taylorismo não é senão a expressão
mais rigorosa — embora se abrande quando é importada na
França — da tendência mais geral para umaorganização re-
fletida do trabalho industrial, o que, nos anos 20, se chama de
"racionalização"28.
Enfim, esses métodos vão transpor os locais industriais que
o "taylorismo" evoca para se implantarem nos escritórios, nas
grandes lojas, no setor "terciário". Também, mais que de "tay-
lorismo", seria melhor falar da implantação progressiva de
uma nova dimensão da relação salarial, caracterizada pela ra-
cionalização máxima do processo de trabalho, o encadeamen-
to sincronizado das tarefas, uma separação estrita entre tempo
de trabalho e tempo de não-trabalho, o todo permitindo o
desenvolvimento de uma produção de massa. Neste sentido,
é exato dizer que o modo de organização do trabalho coman-
dado pela busca de uma produtividade máxima a partir do
controle rigoroso das operações foi, de fato, um componente
essencial na constituição da relação salarial moderna.
26 Cf. M. Perrot, "La classe ouvrière au temps de Jaurès", in Jaurès et la classe
ouvrière, Paris, Editions Ouvrières, 1981. Sobre o papel desempenhado pela
Grande Guerra quanto ao assunto, cf. Patrick Fridenson (ed.), L:Autre Frani,
Paris, Cahiers du mouvement social, 2, 1982.
27 Sobre as modalidades de implantação do taylorismo nas indústrias Renault
e os problemas que suscitou, cf. P Fridenson, Histoire des usine Renault,
Paris, Le Senil, 1982.
28 Cf. A. Moutet, "Patrons de progrès ou patrons de combat? La politique
de rationalisation de l' industrie française au lendemain dela Pretnière Guerre
Mondiale", in Le soldai du travai!, número especial 32-33, Recherche, se-
tembro de 1978.
428
Terceira condição: o acesso por intermédio do salário a "novas
normas de consumos operários"29, através do que o próprio ope-
rário se torna usuário da produção de massa. Taylor já defendia
um aumento substancial do salário para incitar os operários a se
submeterem às coerções da nova disciplina da indústria". Mas
Henry Ford é quem sistematiza a relação entre produção de mas-
sa (a generalização da cadeia de montagem semi-automática)
e consumo de massa. O "five dollars day" não representa ape-
nas um aumento considerável do salário. É pensado como a
possibilidade do operário moderno ter acesso ao estatuto de
consumidor dos produtos da sociedade industrial'.
Inovação considerável, se for situada na longa duração da
história da condição de assalariado. Até essa virada, o traba-
lhador é essencialmente concebido, pelo menos na ideologia
patronal, como um produtor máximo e um consumidor mí-
nimo: deve produzir o máximo possível, mas as margens de
lucro que resultam de seu trabalho são mais importantes à
proporção que seu salário é mais baixo. É significativo que as
derrogações patronais à "lei de bronze" dos salários tenham
consistido não em suplementos salariais mas, sim, em subven-
ções sociais não monetárias em caso de doença, de acidente,
na velhice etc. Estas subvenções podiam esconjurar a privação
total das famílias operárias, mas não maximizar seu consumo.
Significativo também o fato de que a eventualidade para o
trabalhador de se encontrar mais à vontade não tenha sido
pensada por esses mesmos patrões e reformadores sociais
29 A expressão é de Michel Aglietta in: Régulation et crises du capitalisme,
l'expérience des États-Unis, Paris, Calmann-Lévy, 1976, p. 160. 30
Ele considera até mesmo a possibilidade de "diminuir o custo em propor-
ções tais, que nosso mercado interno e externo se ampliaria consideravel-
mente. Assim, seria possivel pagar salários mais altos e reduzir o número de
horas de trabalho, melhorando as condições de trabalho e o conforto da
casa" (La direction scientifique des entreprises, op. cit., p. 23).
31 Cf. M. Aglietta, Régulation et crises du capitalisme... Paris, ed. Marabout,
p. 23. Tradução francesa da obra de Henry Ford: My life, my work; ma ide et mon oeuvre, Paris. Sobre a organização concreta do trabalho em fábrica
e as reações dos trabalhadores, cf. o testemunho de um antigo operário da
Ford, H. Beynon, Working for Ford, Penguin Books, 1973.
429
A SOCIEDADE SALARIAL
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
como uma possibilidade de consumir mais, porém como um
dever de poupar ou de contribuir para aumentar sua seguri-
dade. O único consumo legítimo para o trabalhador é reduzido
ao que lhe é necessário para reproduzir decentemente sua força
de trabalho e manter sua família no mesmo nível de medio-
cridade. A possibilidade de consumir mais deve ser proscrita,
porque leva ao vício, à bebedeira, ao absenteísmo...
Quanto aos trabalhadores, é também com o início de uma
produção de massa que aparece explicitamente uma preocu-
pação de bem-estar por meio do desenvolvimento do consu-
mo. Alphonse Merrheim, então secretário geral da CGT,
declara em 1913 — o que corrige um pouco a representação
dominante de um sindicalismo de ação direta mobilizado uni-
camente para preparar a "Grande Noite":
Não há limites para o desejo de bem-estar. O sindicalismo não
contradiz isso, ao contrário. Nossa ação, nossas reivindicações
de redução das horas de trabalho e aumento de salário, não tem
por objetivo mínimo aumentar no presente os desejos, as facili-
dades de bem-estar da classe operária e, conseqüentemente, suas
possibilidades de consumo?'
Essa preocupação operária com o consumo, que aparece
no início do século, responde a uma transformação dos modos
de vida popular, acarretada pelo recuo das economias domés-
ricas e afeta sobretudo os trabalhadores das grandes concen-
trações industriais33. Se o mundo do trabalho, já na sociedade
'1A. Merrheim,."La méthode Taylor", La vie ouvrière, março de 1913, p.
305, citado in J. julliard, Autonomie ouvrière. Études sur le syndicalisme
d'action directe, op. cit., p. 61. Neste artigo, Merrheim dedica-se não ao
método de Taylor, mas à sua "falsificação" pelo patronato francês. Também
é significativa a seguinte declaração de outro grande líder sindicalista da
época, Victor Griffuelhes: "De nossa parte, pedimos que o patronato francês
seja parecido com o patronato americano e que assim, aumentando nossa
atividade industrial e comercial, disso resulte para nós uma segurança, uma
certeza que, melhorando nossa condição material, nos arraste para a luta,
facilitada pela necessidade de mão-de-obra" ("Linfériorité des capitalistes
français", Le mouvement social, dezembro de 1910, citado ibid., p. 55).
33 B. Coriat, L'atelier et le cbronomètre, op. cit., cap. IV
430
A SOCIEDADE SALARIAL
pré-industrial e depois no começo da industrialização, sobre-
viveu a salários de miséria, é, em muito, porque uma parte
importante, ainda que difícil de traduzir em números, de seu
consumo não dependia do mercado: vínculos mantidos com
o meio rural de origem, disposição de um pedaço de terra,
participação sazonal nos trabalhos do campo, mesmo para pro-
fissões tão "industriais" quanto a de mineiro'''.
Essa situação se transforma com a expansão das concen-
trações industriais. A homogeneização das condições de tra-
balho é acompanhada de uma homogeneização dos meios e
dos modos de vida. Processo complexo e que se estendeu por
várias décadas. Concerniu ao habitat, aos transportes e, de
modo mais geral, à relação do homem com seu meio ambiente
tanto quanto o "a sacola da dona-de-casa". Porém, uma parte
cada vez mais importante da população operária encontra-se
objetivamente numa situação próxima da que alimentou as
pinturas do pauperismo na primeira metade do século XIX:
operários separados de sua família e de seu meio de origem,
concentrados em espaços homogêneos e quase reduzidos aos
recursos fornecidos por seu trabalho. Para que as mesmas cau-
sas não produzam os mesmos efeitos, a saber, uma pauperiza-
ção em massa, é necessário que a remuneração desse trabalho
não continue um salário de sobrevivência.
Chama-se "fordismo" a articulação, que Henry Ford foi
sem dúvida o primeiro a pôr em prática conscientemente, da
produção de massa e do consumo de massa. Henry Ford de-
clara: "A fixação do salário da jornadade 8 horas em cinco
dólares foi uma das mais belas economias que já fiz na vida,
mas elevando-o a seis dólares, fiz uma economia melhor ain-
da"33. Percebe, assim, uma nova relação entre o aumento do
salário, o aumento da produção e o aumento do consumo.
Não se trata apenas do fato de que um salário elevado aumen-
" Cf. R. Trernpé, Les mineurs de Carnaux, op. cit., que mostra a resistência
obstinada dos mineiros para salvaguardar uma organização dos horários de
trabalho compatível com a realização de atividades agrícolas.
35
H. Ford, Ma vie et mon oeuvre, op. cit., p. 168.
431
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL
tarja a motivação pelo trabalho e pela produção. Esboça-se
uma política de salários ligada aos progressos da produtividade
através da qual o operário tem acesso a um novo registro da
existência social: o do consumo e não mais exclusivamente o
da produção. Deixa assim essa zona de vulnerabilidade que o
condenava quase que a viver "cada dia com o que nele ga-
nhou", satisfazendo uma por vez as necessidades mais premen-
tes. Tem acesso ao desejo — retomo o termo de Merrheim —
cuja condição social de realização é a decolagem em relação à
urgência da necessidade. Ou seja, essa forma de liberdade que
passa pelo domínio da temporalidade e se satisfaz no consumo
de objetos duráveis, não estritamente necessários. O "desejo
de bem-estar", que incide sobre o carro, a moradia, o eletro-
doméstico etc., permite — gostem ou não os moralistas — o
acesso do mundo operário a um novo registro de existência.
Sem dúvida, atribuir o mérito dessa quase-mutação antro-
pológica da relação salarial a Ford é enaltecê-lo demais. Trata-se
de um processo geral que está longe de se basear exclusivamente
na invenção da "cadeia de montagem quase automática" e na
política salarial de um industrial americano. Entretanto, é a partir
de Ford que se afirma uma concepção da relação salarial segundo
a qual "o modo de consumo é integrado nas condições de pro-
dução"". E isso é suficiente para que amplas camadas de tra-
balhadores — mas não todos os trabalhadores — saiam da
situação de extrema miséria e de insegurança permanente que
tinha sido sua condição desde há séculos.
Quarta condição: o acesso à propriedade social e aos ser-
viços públicos — o trabalhador é também um sujeito social
suscetível de participar do estoque de bens comuns, não co-
merciais, disponíveis na sociedade. Lembro apenas, aqui, que
se tentou, no capítulo anterior, a elaboração da "propriedade
de transferência" que se insere na mesma configuração salarial.
Se o pauperismo foi o veneno da sociedade industrial em seu
começo, o seguro obrigatório constitui seu melhor antídoto.
36 M. Aglietta, Régulation et crises du capitalisme, op. cit., p. 130.
Uma rede mínima de seguridades ligadas ao trabalho pode ser
desenvolvida nas situações fora do trabalho para colocar o
operário protegido da privação absoluta. Sem dúvida, sob essa
primeira forma dos seguros sociais, tais subvenções são me-
díocres demais para ter uma verdadeira função redistributiva
e pesar significativamente sobre a "norma de consumo". Con-
tudo, respondem a essa mesma conjuntura histórica da condi-
ção de assalariado em que esta pode ser classificada e re-
pertoriada (só se podem vincular direitos, mesmo modestos,,
a um estado claramente identificável, o que supõe a elaboração
da noção de população ativa e a separação de múltiplas formas
de trabalho intermitente), definida e estabilizada (um direito
como a aposentadoria supõe um trabalho contínuo durante
muito tempo), autonomizada como um estado que deve bas-
tar-se a si mesmo (deixa-se de contar, para assegurar as prote-
ções, com os recursos das economias domésticas e da "proteção
próxima"). Evidentemente, esse modelo se aplica de forma
privilegiada aos operários da grande indústria, mesmo que
tenha sido aplicado muito além dessa população. Reconhece
a especificidade de uma condição salarial operária e, ao mesmo
tempo, consolida-a, visto que tende a assegurar-lhe recursos
para ser auto-suficiente em caso de acidente e de doença, ou
após a cessação de atividades (aposentadoria)".
(;) fato de que a primeira lei francesa de seguro-aposentadoria obrigatório
tenha sido a lei de 1910 sobre as aposentadorias de operários e camponeses
parece contradizer esse atrelamento privilegiado da proteção social à con-
dição dos operários da indústria. Porém, como observa Henri Hatzfeld (Ou
paupérisme à ia sécurité sociale, op. cit.), esse tratamento paritário dos cam-
poneses e dos operários correspondia a uma exigência política numa França
"radical", que tratava com desvelos sobretudo seu campesinato e queria
evitar, acima de tudo, a desestabilização do campo e o êxodo rural. No caso,
essas boas intenções foram mal recompensadas. A lei de 1910 sobre as apo-
sentadorias mostrou-se quase inaplicável no campo devido, particularmente,
à dificuldade de se identificar aí quem era um assalariado "puro" e à fone
resistência dos empregadores para se submeterem a uma injunção percebida
como uma intromissão inadmissível do Estado nas formas "paternais" das
relações de trabalho. O conjunto dos assalariados camponéses apresentava,
então, uma condição diferente demais da do conjunto dos assalariados in-
dustriais para se prestar ao mesmo tratamento.
432
433
Lembremos igualmente que essa promoção da proprieda-
de de transferência se inscreve no desenvolvimento da pro-
priedade social e, sobretudo, dos serviços públicos. Estes
enriquecem a participação das diferentes categorias sociais na
"coisa pública", ainda que esta participação permaneça desi-
gual. A classe operária voltar-se-á a esse ponto, vai ter maior
acesso a bens coletivos, tais como a saúde, higiene, moradia,
instrução.
Quinta condição: a inscrição em um direito do trabalho
que reconhece o trabalhador como membro de um coletivo
dotado de um estatuto social além da dimensão puramente
individual do contrato de trabalho. Assiste-se também a uma
transformação profunda da dimensão contratual da relação
salarial. O artigo 1710 do Código Civil definia-a como um
"contrato por meio do qual uma das partes se compromete a
fazer alguma coisa para a outra mediante um preço". Transação
entre dois indivíduos, em princípio "livres" um e outro, mas
cuja dissimetria profunda foi várias vezes sublinhada. Léon
Duguit vê aí a expressão do "direito subjetivo", isto é, "o poder
que tem uma pessoa de impor a uma outra sua própria perso-
nalidade"38. Será substituído por um direito social "unindo
entre si, pela comunidade das necessidades e pela divisão do
trabalho, os membros da humanidade e, particularmente, os
membros de um mesmo grupo saciar".
A consideração dessa dimensão coletiva faz a relação con-
tratual passar da relação de trabalho ao estatuto de assalariado.
"Na idéia de estatuto, característico do direito público, existe
a idéia de definição objetiva de uma situação que escapa ao
jogo das vontades individuais"". Um reconhecimento jurídico
do grupo dos trabalhadores como interlocutor coletivo já apa-
rece através da lei que abole o delito de greve (1864) e da que
38 L Duguit, Le droit social, le droit individuel et la transfonnaticm de l'État,
op. cir., p. 4.
39 ibid., p. 8.
48 J. Le Goff, Du silence à la parole, op. cit., p. 112. Cf. também E Sellier,
La confrontation sociale en France, 1936-1987, op. cit.
434
autoriza as coalizões operárias (1884). Porém, tais conquistas
não tem incidência direta sobre a estrutura do próprio contrato
de trabalho. Igualmente, durante muito tempo, as negociações
entre os empregadores e o coletivo dos trabalhadores que ti-
veram lugar no seio das empresas — em geral por ocasião de
uma greve ou de uma ameaça de greve — não têm nenhum
valor jurídico. A lei de 25 de março de 1919 é que, após a
aproximação devida à "união sagrada" e à participação ope-
rária no esforço de guerra, dá um estatuto jurídico à noção de
convenção coletiva. As disposiçõesestipuladas pela convenção
prevalecem sobre as do contrato individual de trabalho. Léon
Duguit extrai sua filosofia imediatamente:
O contrato coletivo é uma categoria jurídica totalmente nova e
inteiramente estranha às categorias tradicionais do direito civil. É
uma convenção-lei que regula as relações de duas classes sociais. É
uma lei que estabelece relações permanentes e duráveis entre dois
grupos sociais e o regime legal segundo o qual deverão ser concluí-
dos os contratos individuais entre os membros desses grupos'''.
Com efeito, a convenção coletiva ultrapassa o face-a-face
empregador-empregado da definição liberal do contrato de tra-
balho. Um operário admitido a título individual numa empresa
beneficia-se das disposições previstas pela convenção coletiva.
A aplicação dessa lei foi, num primeiro momento, muito
decepcionante pelo fato da repugnância, manifestada ao mes-
mo tempo pela classe operária e pelo patronato, em entrar
num processo de negociação. Essas reticências (a palavra é um
eufemismo) dos "parceiros sociais" para negociar"! explicam
41 L. Duguit, Les transformations générales du droit privé, Paris, 1920, p.
135, citado in J. Le Goff, Du silence à Ia parole, op. cit., p. 106.
c Para uma análise do contexto sócio-histórico que explica essa má vontade
tanto patronal quanto sindical para entrar num acordo— e sobre as diferenças
em relação à Alemanha e à Grã-Bretanha —, cf. E Sellier, La confrontation
sociale en France, op. cit., p. 1 e 2. Sobre as medidas iniciadas durante a
Primeira Guerra Mundial e seu questionamento logo após o restabelecimen-
to da paz, cf. M. Fine, "Guerre et réformisme en France, 1914-1918", in Le
solda: du travai!, op. cit.
435
1
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL A SOCIEDADE SALARIAL
o papel desempenhado pelo Estado para implantar procedi-
mentos de negociação. Desde os esforços de Millerand, em
1900, para criar conselhos operários43, é realmente o Estado
que parece ter tido um papel decisivo na constituição do direito
do trabalho. Pelo menos até que uma parte da classe operária,
que aderiu às reformas (como objetivo privilegiado ou como
etapa de um processo revolucionário), entra em cena para im-
por seu ponto de vista. O ano de 1936 representa, sob esse
aspecto, uma estréia histórica: a conjunção de uma vontade
política (o governo do Front Popuíaire com uma maioria so-
cial-comunista que, através de suas divergências, quer impor
uma política social favorável aos operários) e de um movimen-
to social (perto de dois milhões de operários que ocupam as
fábricas em junho). Os acordos de Matignon lançam nova-
mente as convenções coletivas e impõem delegados de empresa
eleitos pelo conjunto doep ssoar.
Mas, além dessa "conquista social" e de algumas outras,
o período do Front Populaire representa uma etapa particu-
larmente significativa, decisiva e frágil, da odisséia da condição
de assalariado.
A condiçiio operária
Ainda que sempre haja um pouco de arbitrariedade quan-
do se tenta datar transformações que só os processos de longa
duração explicam, gostaria de, por um instante, concentrar a
atenção em 1936. Realmente, pode-se ver aí um momento de
43 Decreto de 17 de setembro de 1900. "Há o maior interesse em instituir,
entre os patrões e a coletividade dos operários, relações contínuas que per-
mitam trocar a tempo as explicações necessárias e resolver alguns tipos de
dificuldades... Tais práticas só podem ajudar a aclimatar os novos costumes
que se gostaria de generalizar. Introduzindo-as, o governo da República
permanece fiel a seu papel de pacificador e de árbitro" (citado in J. Le Goff,
Du silence 4 la parole, op. cit., p. 102). Mas o decreto nunca foi aplicado.
" Em 1936, são assinadas 1.123 convenções coletivas e, em 1937, 3.064,
cf. A. Touraine, La civilisation industrielle, t. ix de L.H. Parias, Histoire
générale du travail, Paris, Nouvelie Librairie de France; 1961, p. 172-173.
436
cristalização e, ao mesmo tempo, um ponto de virada dessa
relação salarial moderna que acabo de apresentar. Etapa sig-
nificativa da promoção da condição de assalariado operária:
é um certo reconhecimento da condição operária que, sobre-
tudo, as reformas de 1936 sancionam. Mas talvez se tratasse
de uma vitória de Pirro. Qual é então o status da classe operária
na sociedade? De um lado, 1936 marca uma etapa decisiva de
seu reconhecimento como força social determinante, uma ex-
tensão de seus direitos e uma tomada de consciência de seu
poder que pode fazê-la sonhar em se tomar um dia o futuro
do mundo. De outro, 1936 sanciona o particularismo operário,
sua destinação para ocupar um lugar subordinado na divisão
do trabalho social e na sociedade global.
Do lado da consagração operária, há um belo verão que
ainda não teme o outono. Vitória eleitoral da esquerda, os ope-
rários se antecipam às decisões do governo Blum (ou o pressio-
nam), ocupam as fábricas e obtêm imediatamente um avanço,
sem precedentes, dos direitos sociais. Os patrões entram em pâ-
nico e vêem chegar o reino do poder operário45. "Tudo é possí-
vel", escreve Marceau Pivert, líder da ala esquerda do Partido
Socialista, no dia 23 de maio de 1936, numa tribuna livre do
Populaire46 . Nem tudo é possível, com certeza47, mas algo mu-
dou substancialmente. Prova disso é uma medida que poderia
45 Cf. in S. Weil, La condition ouvrière, Paris, Gallirnard, 1951 (carta a Au-
guste Deboeuf, p. 188-190), testemunhos dessas reações patronais. Os acor-
dos de Matignon foram vividos pela maioria do patronato, que não deixará
de voltar a eles, como uma exigência absoluta do mais forte.
46 Citado in H. Noguères, La vie quotidienne en France au moment du Front
populaire, Paris, Hachette, 1977, p. 131.
47 É a resposta de Maurice Thorez num discurso de 11 de junho de 1936 e
que dá a chave da frase citada com freqüência: "É preciso saber terminar
uma greve": "É preciso saber terminar urna greve desde que se tenha atingido
os objetivos. É necessário até mesmo saber fazer acordos, se todas as reivin-
dicações ainda não foram aceitas, mas [desde que] se tenha conseguido ven-
cer quanto às reivindicações mais essenciais. Nem tudo é possível" (citado
ibid., p. 131); sobre as posições do Partido Comunista, distante da vontade
da CGT e de algumas tendências do Partido Socialista de promover reformas
de estrutura, como as nacionalizações e o planejamento da economia, cf.
R.F. ICuisel, Le capitalisme et l'État en France, op. cit., cap. IV
437
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
A SOCIEDADE SALARIAL
Lembremos igualmente que essa promoção da proprieda-
de de transferência se inscreve no desenvolvimento da pro-
priedade social e, sobretudo, dos serviços públicos. Estes
enriquecem a participação das diferentes categorias sociais na
"coisa pública", ainda que esta participação permaneça desi-
gual. A classe operária voltar-se-á a esse ponto, vai ter maior
acesso a bens coletivos, tais como a saúde, higiene, moradia,
instrução.
Quinta condição: a inscrição em um direito do trabalho
que reconhece o trabalhador como membro de um coletivo
dotado de um estatuto social além da dimensão puramente
individual do contrato de trabalho. Assiste-se também a uma
transformação profunda da dimensão contratual da relação
salarial. O artigo 1710 do Código Civil definia-a como um
"contrato por meio do qual uma das panes se compromete a
fazer alguma coisa para a outra mediante um preço". Transação
entre dois indivíduos, em princípio "livres" um e outro, mas
cuja dissimetria profunda foi várias vezes sublinhada. Léon
Duguit vê aí a expressão do "direito subjetivo", isto é, "o poder
que tem uma pessoa de impor a uma outra sua própria perso-
nalidade"". Será substituído por um direito social "unindo
entre si, pela comunidade das necessidades e pela divisão do
trabalho, os membros da humanidade e, particularmente, os
membros de um mesmo grupo social"".
A consideração dessa dimensãocoletiva faz a relação con-
tratual passar da relação de trabalho ao estatuto de assalariado.
"Na idéia de estatuto, característico do direito público, existe
a idéia de definição objetiva de uma situação que escapa ao
jogo das vontades individuais"". Um reconhecimento jurídico
do grupo dos trabalhadores como interlocutor coletivo já apa-
rece através da lei que abole o delito de greve (1864) e da que
38 L. Duguit, Le droit social, le droit individuel et la transforrnation de l'État,
op. cit., p. 4.
39 Ibid., p. 8.
4° J. Le Goff, Du silence à la parole, op. cit., p. 112. Cf. também E Seilier,
La confrontation sociale en France, 1936-1987, op. cit.
434
autoriza as coalizões operárias (1884). Porém, tais conquistas
não têm incidência direta sobre a estrutura do próprio contrato
de trabalho. Igualmente, durante muito tempo, as negociações
entre os empregadores e o coletivo dos trabalhadores que ti-
veram lugar no seio das empresas — em geral por ocasião de
uma greve ou de uma ameaça de greve — não têm nenhum
valor jurídico. A lei de 25 de março de 1919 é que, após a
aproximação devida à "união sagrada" e à participação ope-
rária no esforço de guerra, dá um estatuto jurídico à noção de
convenção coletiva. As disposições estipuladas pela convenção
prevalecem sobre as do contrato individual de trabalho. Léon
Duguit extrai sua filosofia imediatamente:
O contrato coletivo é uma categoria jurídica totalmente nova e
inteiramente estranha às categorias tradicionais do direito civil. É
uma convenção-lei que regula as relações de duas classes sociais. É
uma lei que estabelece relações permanentes e duráveis entre dois
grupos sociais e o regime legal segundo o qual deverão ser concluí-
dos os contratos individuais entre os membros desses grupos".
Com efeito, a convenção coletiva ultrapassa o face-a-face
empregador-empregado da definição liberal do contrato de tra-
balho. Um operário admitido a título individual numa empresa
beneficia-se das disposições previstas pela convenção coletiva.
A aplicação dessa lei foi, num primeiro momento, muito
decepcionante pelo fato da repugnância, manifestada ao mes-
mo tempo pela classe operária e pelo patronato, em entrar
num processo de negociação. Essas reticências (a palavra é um
eufemismo) dos "parceiros sociais" para negocia/12 explicam
41 L. Duguit, Les transformations générales du droit privé, Paris, 1920, p.
135, citado in J. Le Goff, Du silence à la parole, op. cit., p. 106.
42 Para uma análise do contexto sócio-histórico que explica essa má vontade
tanto patronal quanto sindical para entrar num acordo e sobre as diferenças
em relação à Alemanha e à Grã-Bretanha —, cf. E Sellier, La confrontation
sociale en France, op. cit., p. 1 e 2. Sobre as medidas iniciadas durante a
Primeira Guerra Mundial e seu questionamento logo após o restabelecimen-
to da paz, cf. M. Fine, "Guerre et réformisme en France, 1914-1918", in Le
soldas du travail, op. cit.
435
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL A SOCIEDADE SALARIAL
o papel desempenhado pelo Estado para implantar procedi-
mentos de negociação. Desde os esforços de Millerand, em
1900, para criar conselhos operário?", é realmente o Estado
que parece ter tido um papel decisivo na constituição do direito
do trabalho. Pelo menos até que uma parte da classe operária,
que aderiu às reformas (como objetivo privilegiado ou como
etapa de um processo revolucionário), entra em cena para im-
por seu ponto de vista. O ano de 1936 representa, sob esse
aspecto, uma estréia histórica: a conjunção de uma vontade
política (o governo do Front Populaire com uma maioria so-
cial-comunista que, através de suas divergências, quer impor
uma política social favorável aos operários) e de um movimen-
to social (perto de dois milhões de operários que ocupam as
fábricas em junho). Os acordos de Matignon lançam nova-
mente as convenções coletivas e impõem delegados de empresa
eleitos pelo conjunto do pessoal'''.
Mas, além dessa "conquista social" e de algumas outras,
o período do Front Populaire representa uma etapa particu-
larmente significativa, decisiva e frágil, da odisséia da condição
de assalariado.
A condição operária
Ainda que sempre haja um pouco de arbitrariedade quan-
do se tenta datar transformações que só os processos de longa
duração explicam, gostaria de, por um instante, concentrar a
atenção em 1936. Realmente, pode-se ver ai um momento de
43 Decreto de 17 de setembro de 1900. "Há o maior interesse em instituir,
entre os patrões e a coletividade dos operários, relações contínuas que per-
mitam trocar a tempo as explicações necessárias e resolver alguns tipos de
dificuldades... Tais práticas só podem ajudar a aclimatar os novos costumes
que se gostaria de generalizar. Introduzindo-as, o governo da República
permanece fiel a seu papel de pacificador e de árbitro" (citado in J. Le Goff,
Du silence à la parole, op. cit., p. 102). Mas o decreto nunca foi aplicado.
44 Em 1936, são assinadas 1.123 convenções coletivas e, em 1937, 3.064,
cf. A. Touraine, La civilisation industrie//e, t. n{ de L.H. Parias, Histoire
générale du travail, Paris, Nouvelle Librairie de France, 1961, p. 172473.
436
cristalização e, ao mesmo tempo, um ponto de virada dessa
relação salarial moderna que acabo de apresentar. Etapa sig-
nificativa da promoção da condição de assalariado operária:
é um certo reconhecimento da condição operária que, sobre-
tudo, as reformas de 1936 sancionam. Mas talvez se tratasse
de uma vitória de Pirro. Qual é então o status da classe operária
na sociedade? De um lado, 1936 marca uma etapa decisiva de
seu reconhecimento como força social determinante, uma ex-
tensão de seus direitos e uma tomada de consciência de seu
poder que pode fazê-la sonhar em se tornar um dia o futuro
do mundo. De outro, 1936 sanciona o particularismo operário,
sua destinação para ocupar um lugar subordinado na divisão
do trabalho social e na sociedade global.
Do lado da consagração operária, há um belo verão que
ainda não teme o outono. Vitória eleitoral da esquerda, os ope-
rários se antecipam às decisões do governo Blum (ou o pressio-
nam), ocupam as fábricas e obtêm imediatamente um avanço,
sem precedentes, dos direitos sociais. Os patrões entram em pâ-
nico e vêem chegar o reino do poder operáriots. "Tudo é possí-
vel", escreve Marceau Pivert, líder da ala esquerda do Partido
Socialista, no dia 23 de maio de 1936, numa tribuna livre do
Populaire". Nem tudo é possível, com certeza'', mas algo mu-
dou substancialmente. Prova disso é uma medida que poderia
45 Cf. in S. Weil, La condition ouvrièm, Paris, Gallimard, 1951 (carta a Au-
guste Deboeuf, p. 188-190), testemunhos dessas reações patronais. Os acor-
dos de Matignon foram vividos pela maioria do patronato, que não deixará
de voltar a eles, como uma exigência absoluta do mais forte.
46 Citado in H. Noguères, La vie quotidienne en France au moment du Front
populaire, Paris, Hachette, 1977, p. 131.
47 É a resposta de Maurice Thorez num discurso de lide junho de 1936 e
que dá a chave da frase citada com freqüência: "É preciso saber terminar
uma greve": "É preciso saber terminar uma greve desde que se tenha atingido
os objetivos. É necessário até mesmo saber fazer acordos, se todas as reivin-
dicações ainda não foram aceitas, mas [desde que] se tenha conseguido ven-
cer quanto às reivindicações mais essenciais. Nem tudo é possível" (citado
ibid., p. 131); sobre as posições do Partido Comunista, distante da vontade
da CGT e de algumas tendências do Partido Socialista de promover reformas
de estrutura, como as nacionalizações e o planejamento da economia, cf.
R.F. Kuisel, Le capitalisme et l'État en France, op. cit., cap. IV
437
A SOCIEDADE SALARIAL
parecer secundária mas que se reveste de significação simbólica
excepcional quando situada na história da "indigna condição
de assalariado ": as férias remuneradas. Alguns dias por ano
o operário pode deixar de perder sua vida em ganhá-la. Nãofazer nada do que é obrigado a fazer: é a liberdade de existir
para si. Inscrever tal possibilidade na lei é reconhecer ao tra-
balhador o direito de existir simplesmente —quer dizer também
como os outros, os que vivem de rendas, os "burgueses", os
aristocratas, os abastados, todos aqueles que, no imaginário
operário pelo menos, gozam a vida por ela mesma e por eles
mesmos, desde a noite dos tempos.
A redução do tempo de trabalho foi uma das mais antigas
e mais apaixonadas reivindicações operária Parece que as
primeiras "cabalas" ilícitas de companheiros tenham sido de-
sencadeadas muito mais para controlar o tempo de trabalho
do que para obter um aumento dos salários". A revolução de
fevereiro de 1848 arranca a jornada de 10 horas, medida re-
vogada em seguida. O sindicalismo do início do século faz do
repouso semanal (conquistado em 1906) e da jornada de 8
horas uma de suas principais reivindicações, a única talvez,
para os sindicalistas de ação direta, que não seja "reformista".
E a palavra de ordem mais popular dos 10 de Maio de luta, e
cobre os cartazes de propaganda da CGT". Porém, mais sim-
bolicamente significativa do que a redução do tempo de tra-
balho (a semana de 40 horas é conquistada em junho de 1936),
mais profundamente libertadora do re o acesso ao consumo
permitido pelo aumento dos salários °, a remuneração de um
tempo livre equivale a um reconhecimento oficial da humani-
49 Cf. H. Hauser, Ouvrier du temps ¡adis, op. cit.
49 A insistência sindical em exigir uma redução da jornada de trabalho é
alimentada por uma dupla razão: ajudar o trabalhador a recuperar sua dig-
nidade, rompendo com o embrutecimento de tun trabalho contínuo; lutar
contra o desemprego, dividindo o trabalho com o maior número de operá-
rios.
39 Os acordos de Matignon aprovaram um aumento imediato dos salários
de 7 a 15%. Entre 1926 e 1939, o salário real (aumento dos preços no
consumo e inflação deduzidos) do operário qualificado parisiense progrediu
cerca de 60%. Cf. E Sellier, Les salariés en France, Paris, PUF, 1979, p. 67.
Jade do trabalhador e da dignidade humana do trabalho. O
trabalhador é também um homem e não um eterno tarefeiro,
e seu trabalho lhe paga o acesso à qualidade de homem en-
quanto tal, de homem em si, deixando de ser a lei inexorável
de cada jornada. Revolução cultural além de seu caráter de
"conquista social", pois tratava-se de mudar a vida e as razões
de viver, ainda que só durante alguns dias por ano. Parece que
os contemporâneos viveram as férias remuneradas dessa ma-
neira, pelo menos os que partilharam o entusiasmo desses mo-
mentos — porque não faltaram bons espíritos para dizer que
havia chegado o tempo da vergonha, quando se começou a
pagar a folga e quando os "sujos de casquetes" começaram a
invadir as praias reservadas à boa sociedades'.
Será dar importância demais a uma medida, aliás, modesta
— a concessão de alguns dias por ano de férias pagas? De fato,
este episódio (a única "conquista social" de 1936 que não foi
posta em causa) pode exemplificar a posição, que se poderia
chamar de suspensa e portanto instável, ocupada pela classe
operária na sociedade do fim da década de 30. De um lado,
após uma longa quarentena, sua condição se aproxima do re-
gime comum. As férias remuneradas podem simbolizar a apro-
ximação de duas condições e de dois modos de vida que tudo
separava. Na praia, por um tempo muito curto, a vida operária
experimenta uma característica essencial da existência "bur-
guesa", uma liberdade de escolher o que fazer ou nada fazer,
porque a necessidade cotidiana de sobreviver relaxa a pressão.
Em alguns dias do ano, a condição operária e a condição bur-
guesa são interseqiientes.
51 Cf. H.Noguères, La vie quotidienne en France au temps du Front populaire,
op. cit., que fala, ele próprio, de "revolução cultural" e descreve, ao mesmo
tempo, o entusiasmo das primeiras partidas de viagens em férias e as reações
da imprensa conservadora diante dos "trens de prazer" organizados por
iniciativa de Léo Lagrange para levar os trabalhadores e suas famílias à praia.
Sutil desprezo do redator do Figaro: "Depois, alegremente, comeram muito
sanduíche na areia da praia junto à histórica Promenade des Anglais [trata-se
da Avenida Passeio dos Ingleses, em Nice], e se enxaguaram na água... A
multiplicação dos trens vermelhos na ate d'Azur está a todo vapor. E a
redução dos trens azuis igualmente" (p. 156).
AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL
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AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL A SOCIEDADE SALARIAL
Mas, ao mesmo tempo, subsiste de modo muito forte um
particularismo operário vivido na subordinação e que alimenta
um antagonismo de classe. A hostilidade "burguesa" às férias
pagas — partilhada pelos pequenos trabalhadores inde-
pendentes, pelos comerciantes etc., por toda a França não-as-
salariada — manifesta, realmente, a perenidade dessa clivagem.
É o caso da atitude reativa, usando um eufemismo, do desprezo
secular das classes proprietárias diante do trabalhador-que-
não-trabalha e que só pode estar desocupado, porque sofre de
uma tara moral, não tendo outro uso possível de uma liberdade
roubada ao trabalho senão saciar seus vícios, preguiça, em-
briaguez e luxúria. Não há nenhuma outra modalidade de
existência possível para o trabalhador que não o trabalho: isto
não é uma tautologia mas, sim, um julgamento moral e social
ao mesmo tempo, partilhado por todos os bem-pensantes e
que aprisiona o operário no papel de estar debruçado para
sempre sobre as tarefas materiais.
Do lado dos operários, a atitude diante das férias remu-
neradas também trai a permanência do sentimento da depen-
dência social. Lazer, sim, mas lazer "popular". Um orgulho de
ser como os outros, mas uma consciência de que, longe de ser
evidente, essa liberdade é um milagre e é necessário, a partir
de agora, merecê-la, aprendendo seu bom uso, ainda que seja
aprendendo a se divertir. "A classe operária soube conquistar
o lazer, agora deve conquistar o uso do lazer", diz Léon La-
grange52
. A organização do lazer popular — uma parte impor-
tante e original das realizações do Front Populaire — traduz
essa preocupação em escapar da ociosidade gratuita. Expres-
são, simultaneamente, de uma forte consciência da diferença
de classes e de um certo moralismo pragmático: o lazer é algo
merecido e deve ser bem preenchido. É necessário distinguir-se
dos ricos ociosos, que são parasitas sociais. A cultura, o esporte,
52 Citado in Noguères, La vie quotidienne en France du temps du Front
populaire, op. cit., p. 188. Para urna apresentação do conjunto da obra de
Léo Lagrange, "subsecretário de Estado para o Esporte e o Lazer" cf. J.-L.
Chappat, Les chemins de Pespoir: combats de Léo Lagrange, Paris, Editions
des Fédérations Léo Lagrange, 1983.
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a saúde, o contato com a natureza, relações saudáveis (e não
sexualizadas) entre os jovens etc. devem saturar o tempo não
dedicado ao trabalho. Nada de tempo morto, a liberdade não
é nem a anarquia nem o puro prazer. É necessário fazer melhor
do que os burgueses, e trabalhar o lazer.
Mais profundamente, esse curto tempo de liberdade frágil
remete a seu avesso: a permanência do trabalho alienado que
representa a base a partir da qual se constrói o estatuto social
da classe operária. Para a obtenção das conquistas sociais de
1936, os operários da grande indústria desempenharam o pa-
pel motor". Ora, as condições de trabalho nas fábricas ocu-
padas em junho de 1936 são geralmente comandadas pela
"organização científica do trabalho", ou por seus equivalentes:
as cadências, a cronometragem, a vigilância constante, a ob-
sessão de ser produtivo, a arbitrariedade dos patrões e o des-
prezo dos chefes do pequeno escalão. Basta ler a obra de
Simone Weil: já contém a temática do "trabalho em migalhas"
que marcará o começo da Sociologia do Trabalhos'. Mas essa
relação de trabalho não é comandada apenas pelas exigências
tecnológicas da produção, da divisão das tarefas,