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DEDALUS - Acervo - FFCLRP Jean 20800022026 da Memoria Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Papel da memória / Pierre Achard [et al.] ; Traducao e tradução e introdução José Horta Nunes. - Miche Campinas, SP : Pontes, 1999. Outros autores: Jean Davallon, Jean-Louis Jose Horta Nunes Michel Pêcheux, Eni Puccinelli Orlandi. Análise do discurso 2. História 3. Linguagem história Memória (Filosofia) 5. Semiótica Sociolingüística I. Achard, Pierre. II. III. Durand, Jean-Louis. IV. Pêcheux, Michel, 1983. V. Orlandi, Eni Puccinelli, P Orlandi José Horta. VII. Título. CDD-401.4 DE FILOSOFIA Indices para catálego sistemático: E LETRAS DE Pontes PRETO DA U.S.P. Linguagem e história 401.4 1999Copyright 1999 dos Autores Direitos de tradução gentilmente cedidos para a Pontes Editores Coordenação Editorial: Ernesto Capa: Claudio Roberto Martini Revisão: Equipe de revisores da Pontes Editores ÍNDICE 81'42 18.086 Introdução 7 Memória e Produção Discursiva do Sentido 11 A Imagem, uma Arte de Memória 23 Memória Grega 39 Papel da Memória 49 Maio de 1968: Os Silêncios da Memória 59 PONTES EDITORES Rua Maria Monteiro 1635 13025.152 Campinas SP Brasil Fone (019) 252.6011 Fax (019) 253.0769 e-mail: ponteseditor@lexxa.com.br 1999 Impresso no BrasilINTRODUÇÃO O conjunto de quatro textos que ora apresentamos cons- titui a sessão temática da Memória>> inserida em Histó- ria e uma publicação das Atas da Mesa Redonda e realizada na Escola Normal Superi- or de Paris em abril de 1983. Esse colóquio reuniu especialistas de diversas áreas, tendo como ponto de encontro a relação entre língua e história. O tema particularmente enfocado aqui, a me- mória, é visto sob diferentes aspectos: lembrança ou reminis- cência, memória social ou coletiva, memória institucional, me- mória mitológica, memória registrada, memória do historiador. Atravessando os artigos, a questão: o que é produzir memória? Como a memória se institui, é regulada, provada, conservada, ou é rompida, deslocada, restabelecida? De que modo os acon- tecimentos históricos, mediáticos, culturais são inscritos ou não na memória, como eles são absorvidos por ela ou produzem nela uma ruptura ? Estas questões se desenvolvem nos artigos através de di- ferentes perspectivas disciplinares, incluindo-se elementos de história, semiótica, análise de discurso. Alémdisso, a memória é analisada em sua materialidade complexa, arquiteturas, etc.), como operadores de memória social, traba- com ênfase para a relação do texto com a imagem, para a passa- gem do visível ao nomeado. Por um lado, os textos fundadores lham no sentido de entrecruzar memória coletiva (lembrança, conservação do passado, foco da tradição, monumento de remi- de memória: mitos, relatos, enunciados, paráfrases. Por outro, a niscência) e história (quadro dos acontecimentos. conhecimen- eficácia simbólica da imagem: a reprodução pictórica, meio to, documento histórico). televisual e até objetos arqueológicos. Ficam expostas ao leitor diferentes práticas memoriais presentes na sociedade ocidental. Do contemporâneo passamos para antigo. Jean-Louis sejam aquelas da Grécia antiga, sejam as que emergem com as Durand faz uma interrogação envolvendo as práticas memoriais recentes mudanças tecnológicas. da Grécia clássica. Ele coloca uma questão de enunciação im- portante: quem fala e com que direito, ao se produzir memória? Analisando a construção discursiva do sentido e funci- No caso da Grécia antiga, a produção da memória só se daria na onamento dos implícitos, Pierre Achard mostra que a memória presença do poeta épico de Homero por meio de um texto não pode ser provada, não pode ser deduzida de um corpus, produzido fora do domínio da cidade. No entanto, há uma con- mas ela só trabalha ao ser reenquadrada por formulações no tradição na memória, com a oposição dos valores de grupo, dos discurso concreto em que nos encontramos. O implícito de um textos homéricos, aos valores éticos, políticos, sociais em uma enunciado (Achard analisa o enunciado: momento, dada situação. Ao examinar a imagem de um vaso grego, Durand crescimento da economia é da ordem de não contém sua nota a possibilidade de remissão ao mesmo tempo a um herói da explicitação, não se pode provar que ele tenha existido em al- epopéia e a um simples combatente da cidade, um guerreiro gum lugar. O que funcionaria então seriam operadores anônimo. Se pensarmos nos sistemas atuais de memória, pode- linguageiros imersos em uma situação, que condicionariam o remos ver a relação das práticas memoriais gregas com as me- exercício de uma regularidade enunciativa. Haveria, deste modo, mórias heróicas estabelecidas em nossa sociedade. a colocação em série dos contextos e das repetições formais, numa oscilação entre histórico e Através das Em seguida livro, artigo de Pêcheux faz uma retoma- retomadas e das paráfrases, produz-se na memória um jogo de da das exposições anteriores, situando-as no contexto das pes- força simbólico que constitui uma questão social. quisas em análise de discurso. Ele discute como as questões de lingüística e de discurso aparecem nos estudos sobre memória, Jean Davallon aponta, depois do aparecimento da im- introduzindo um debate sobre as disciplinas de interpretação. prensa, o desenvolvimento dos meios de registro da imagem e Nesse sentido, ele pergunta: a é uma disciplina pura- do som como fatores que deslocam a questão da memória soci- mente experimental ou ela tem algo a ver com as disciplinas de al, que não se encontraria mais nas dos indivíduos, interpretação? Por sua vez, a análise de discurso cada vez mais mas nas mídias. O autor esboça uma reflexão sobre a imagem busca se distanciar, afirma Pêcheux, das evidências da proposi- contemporânea como operadora de memória. Pela análise do ção, da frase e da estabilidade parafrástica. Ademais, ela permi- registro televisual de um acontecimento (a posse do presidente te, após os trabalhos de Benveniste e Barthes com a noção de Mitterrand na França), é questionada a distância que separa a avançar teoricamente e tecnologicamente na do de Davallon lança a hipóte- relação do texto com a imagem. se de que os objetos culturais (livros, escritos, imagens, filmes, 8 9Os textos aqui reunidos guardam as marcas do debate em meio ao qual foram concebidos, com O tom um pouco colo- quial e as frequentes remissões a outros expositores. Como re- sultado dessas discussões, salientamos seguinte comentário de Pêcheux: certeza que aparece, em todo caso, no fim desse debate é que uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históri- cos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço mó- vel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retoma- MEMÓRIA E PRODUÇÃO DISCURSIVA DO das, de conflitos de regularização. Um espaço de desdobra- SENTIDO mentos, réplicas, polêmicas e Pouco mais de dez anos depois, este é um momento bastante apropriado para retomar esse acontecimento, atualizá-lo, inseri-lo em nosso con- texto para que produza sentido e memória. Acrescentamos ainda nessa edição texto de Eni Orlandi "Maio de 1968: os silêncios da memória", em que a autora apre- Se, a partir de uma posição de análise de discurso, que- senta uma reflexão sobre a relação entre memória e censura no remos falar do papel da memória, e, por conseguinte, do estatu- contexto da ditadura no Brasil. Neste caso mostra-se que há acon- to dos implícitos, logo encontramo-nos em posição delicada. tecimentos que não se inscrevem na memória, como se não ti- Mas se este é um ponto em direção ao qual é perigoso se aven- vessem ocorrido: os sentidos de Maio de 68, entre eles, os rela- turar sendo real risco de uma interpretação psicologista dos cionados à palavra "liberdade", são evitados em um processo implícitos é no entanto necessário se preocupar com ele. Ten- histórico-político silenciador, de modo que se estabelece uma tarei então falar sobre isso, considerando que a estruturação do falta na memória. discursivo vai constituir a materialidade de uma certa memória social. Bem entendido, não se trata de avançar o termo "materialidade" como máscara retórica para explicações que José Horta Nunes seriam da ordem do inefável ou do inconsciente coletivo, nem de dar ao termo "memória social" um valor tal que não teríamos finalmente outro meio de analisá-lo senão colocá-lo. Procurarei então mostrar que é possível colocar um cer- to número de hipóteses concernentes ao funcionamento formal no discurso, hipóteses a relacionar com a circulação dos discur- esta relação deve permitir que nos afastemos de interpreta- ções psicológicas da memória em termos de "realmente-já-ou- 10 11vido", memória fono-magnética ou registro mecânico. Para isso, memorização de uma forma máxima completa. Além disso. esta apoiar-me-ei sobre alguns exemplos. memorização repousaria sobre um consenso. Ora. se olhamos mais de perto, a explicitação desses implícitos em geral não é Meu primeiro exemplo concerne ao funcionamento da necessária a priori, e não existe em parte alguma um texto de palavra "crescimento" no domínio da Economia Política. Um referência explícita que forneceria a chave. Essa ausência não enunciado como: "Neste momento, crescimento da economia faz falta, a paráfrase de explicitação aparece antes como um é da ordem de faz apelo a um certo número de implíci- trabalho posterior sobre explícito do que como pré-condição. tos, dos quais evocarei apenas alguns. O primeiro deles é indu- O que é pressuposto, esse consenso sobre o implícito, é somen- zido pela pressuposição de que se pode aplicar uma "taxa" a um te uma representação. "crescimento da economia", quer dizer, que a economia pode ser medida (e não simplesmente "verificada", como se diz da Um outro exemplo desse fato foi discutido na oficina temperatura em física elementar). O segundo implícito, que é sobre os manuais ainda que se considere que eles também um implícito segundo (quer dizer, que só toma seu sen- constituam uma vulgata em relação a textos mais "elaborados", tido em relação ao primeiro), é a equivalência, do ponto de vista o exame dos manuais concretos e sua confrontação permite co- da taxa, entre as diferentes medidas possíveis. Particularmente, locar em evidência não somente que eles estão sujeitos à crítica, nesse caso, a diferença entre PIB e PNB não será pertinente. apresentam variações consideráveis de um a outro, são Em terceiro lugar, pressupõe-se implicitamente que esse cresci- insatisfatórios para o que se espera deles, mas ainda que é ao mento seja calculado dentro do prazo de um ano, prazo consi- nível dos próprios implícitos supostos por eles que eles chegam derado como evidente. Enfim, numa ordem um pouco diferen- a constituir a dita vulgata. Em suma, eles constituem a ilustra- te, local desse crescimento não é indicado; isto implica que ção do fato de que, enquanto um registro discursivo supõe uma me situo em um universo descritivo nacional, e que falo por vulgata para funcionar, a tentativa de esclarecimento, de conseguinte do crescimento da economia francesa ou, mais explicitação desta vulgata, jamais "contém" O que seria neces- exatamente, do crescimento da economia que concerne à nação, sário para funcionar na retomada, e constitui na melhor das hi- ao país no qual a enunciação se situa. É que dá a este implícito póteses uma primeira retomada da vulgata. um estatuto diferente dos precedentes, já que ele remete mais à "situação" que à "memória". A "memória" intervém, no entan- Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalha então to, para enquadrar implicitamente a situação no espaço nacio- sobre a base de um imaginário que o representa como memori- nal, pela falta. Esse enquadramento pode ser explicitamente zado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a deslocado (podemos falar de "crescimento da economia mun- sua (re)construção, sob a restrição "no vazio" de que eles res- dial") ou utilizado no seu nível abstrato através da retomada em peitem as formas que permitam sua inserção por paráfrase. Mas um percurso ("em média, no mundo, crescimento foi..."). jamais podemos provar ou supor que esse implícito re)construído tenha existido em algum lugar como discurso A representação usual do funcionamento dos implícitos autônomo. consiste em considerar que estes são sintagmas cujo conteúdo é memorizado e cuja explicitação (inserção) constitui uma pará- Se levamos em conta os elementos enunciativos que es- frase controlada por esta memorização no nosso exemplo, ses implícitos comportam, podemos ver em que esse problema 12 13de (re)construção dos implícitos corresponde também àquele Para ilustrar de maneira menos elementar a dialética en- que Robert Lafont, em O trabalho e a língua, designa como tre repetição e regularização, utilizarei, de modo metafórico, "regulagem do praxema"2 Com efeito, o funcionamento do dis- um imaginário topológico. Creio que esta analogia é relativa- curso (e é nisso que a noção de discurso se distingue da de fala mente bem fundada. Tomemos uma série numérica, que seja, no sentido do CLG)³ supõe que os operadores linguageiros só para utilizar um exemplo simples, a série 0, 1/2, 2/3, 3/4, (...). funcionam com relação à em uma situação, quer dizer, Dizer que esta série tende a 1 pode ser formulado dizendo que levando-se em consideração as práticas de que eles são porta- toda vizinhança de 1 contém toda a série exceto um número dores. De outro modo, passado, mesmo que realmente memo- finito de termos. Assim, se admitimos que o termo geral da série rizado, só pode trabalhar mediando as reformulações que per- é da forma S = (n 1)/n, vemos que a vizinhança de 1 definida mitem reenquadrá-lo no discurso concreto face ao qual nos en- como conjunto dos números compreendidos entre 999 999 contramos. e 000 000 compreende todos os termos da série exceto um número finito de termos (os Pelas necessidades da análise, vamos supor um funcio- primeiros). Bem entendido, só posso reconhecer namento linguageiro que comporta apenas um registro que esta série tende a 1 porque substituí a enumeração dos pri- discursivo, e colocar aí o problema do "sentido de uma pala- meiros termos pela regra que permite formular o termo geral. vra". Admitiremos (como hipótese lexicológica) que o que ca- racteriza a palavra é sua unidade, sua identidade a si mesma, Sem esta formulação, nada garante que, com relação a que permite reconhecê-la em seus diferentes contextos. De ou- uma vizinhança suficientemente pequena, número das exce- tro modo, colocarei aqui a palavra como uma unidade simbóli- ções continue finito. E como existe certamente uma infinidade ca cujo reconhecimento a identificação permite definir em ter- de séries que começam pelos mesmos termos, nenhuma obser- mos de repetição. Cada nova co-ocorrência dessa unidade for- vação empírica do começo de uma série nos permite deduzir a mal fornece então novos contextos, que vêm contribuir à cons- regra. Em termos isso corresponde a constatar que trução do sentido de que essa unidade é o suporte. Mas para o corpus nunca é suficiente para fundar a gramática, e que a poder atribuir um sentido a essa unidade, é preciso admitir que regularização repousa sobre um jogo de força. Acrescentamos suas repetições essas repetições estão tomadas por uma regu- aqui que o jogo de força pode designar o sentido como uma regularidade desta ordem que supomos com o termo "crescimento" no registro econômico. Essa regularidade, Um procedimento desta ordem parece necessário se que- no entanto, não se deduz do corpus, ela é de natureza hipotética, remos abordar a semântica de outro modo que não como uma ela constitui uma hipótese do analista. No caso do crescimento, semântica dos enunciados, que seria baseada em uma lista uni- a hipótese de análise que utilizei consistiu em supor que "cres- versal de traços semânticos pré-existentes e em sua combinatória. cimento" é um termo operador que comanda um certo número, A hipótese de uma construção discursiva do sentido é certa- fixo, de posições. O aparecimento em diversos textos das dife- mente discutível, mas parece frutífera, pela abertura às práticas rentes posições me permite fazer um inventário delas e estabe- que podemos estudar ao nível da dialética entre repetição e re- lecer suas regularidades, e me permite em seguida designar, lá gularização. Com efeito, fechamento exercido por todo jogo onde elas não são explicitamente instanciadas, os tipos de im- de força de regularização se exerce na retomada dos discursos e plícito por que elas clamam. constitui uma questão social. Se situamos a memória do lado, 14 15não da repetição, mas da regularização, então ela se situaria em mada se localiza nesse nível. uma oscilação entre o histórico e na sua suspensão em vista de um jogo de força de fechamento que ator social ou O que distingue então analista de discurso do sujeito analista vem exercer sobre discursos em circulação. Este even- histórico não é uma diferença radical mas um deslocamento. A tual jogo de força é suportado pelas relações de formas, mas análise de discurso é uma posição enunciativa que é também estas são apenas suporte dele, nunca estão isoladas. Elas estão aquela de um sujeito histórico (seu discurso, uma vez produzi- eventualmente envolvidas em relações de imagens e inseridas do, é objeto de retomada), mas de um sujeito histórico que se em práticas. esforça por estabelecer um deslocamento suplementar em rela- ção ao modelo, à hipótese de sujeito histórico de que fala. O A regularização se apóia necessariamente sobre o reco- que proponho neste texto é um modelo de trabalho do analista, nhecimento do que é repetido. Esse reconhecimento é da ordem que tenta dar conta do fato de que a memória suposta pelo dis- do formal, e constitui um outro jogo de força, este fundador. curso é sempre reconstruída na enunciação. A enunciação, en- Não há, com efeito, nenhum meio empírico de se assegurar de tão, deve ser tomada, não como advinda do locutor, mas como que esse perfil gráfico ou fônico corresponde efetivamente à operações que regulam o encargo, quer dizer a retomada e a repetição do mesmo significante. É preciso admitir esse jogo de circulação do discurso. Entre outras desta con- força simbólico que se exerce no reconhecimento do mesmo e cepção, levaremos em conta o fato de que um texto dado traba- de sua repetição. Por outro lado, uma vez reconhecida essa re- lha através de sua circulação social, que supõe que sua petição, é preciso supor que existem procedimentos para esta- estruturação é uma questão social, e que ela se diferencia se- belecer deslocamento, comparação, relações contextuais. É nessa guindo uma diferenciação das memórias e uma diferenciação colocação em série dos contextos, não na produção das superfí- das produções de sentido a partir das restrições de uma forma cies ou da frase tal como ela se dá, que vemos exercício da única. regra. De outro modo, é engendrando, a partir do atestado discursivo, paráfrases, a considerar como derivações de veis em relação ao dado, que a regularização estrutura a ocor- rência e seus segmentos, situando-os dentro de séries. O que desempenha nessa hipótese o papel de memória discursiva são as valorizações diferentes, em termos por exemplo de familiari- dade ou de ligação a situações, atribuídas às paráfrases, que Pierre Achard entretêm então, graças ao processo controlado de derivação, re- lações reguladas com o atestado. Na hipótese discursiva, pois, ao contrário do modelo chomskiano, o atestado constitui um ponto de partida, não o testemunho da possibilidade de uma frase, e a memória não restitui frases escutadas no passado mas julgamentos de verossimilhança sobre que é reconstituído pelas operações de paráfrase. Estas considerações deslocam o estatu- to do que é provável historicamente, porque a operação de reto- 16 17BIBLIOGRAFIA LAFONT, R. (1978), Le travail et la langue, Flamarion, Paris SAUSSURE, F. (1964), Cours de linguistique générale, publ. por charles Bailly e Albert Secheye, com a colab. de A. Riedlinger, Payot, Paris (1ra. ed. 1915) 19NOTAS 1. (NDT) As oficinas, exposições e textos do colóquio citados neste livro encontram-se publicados em Histoire et Linguistique, Pierre Achard, Max-Peter Gruenais, Dolores Jaulin (Orgs), Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme, Paris, 1984. 2. Lafont, 1978. 3. Saussure, 4. A noção de imersão ("plongement") que, nas matemáticas. é um con- ceito supõe ao mesmo tempo a possibilidade de um ponto de vista intrínseco, e propriedades induzidas pela consideração da situação no espaço da imersão. 5. Esse efeito, aliás, é reforçado sobretudo pela existência de vários regis- tros articulados nos discursos reais. Por exemplo, em economia da edu- cação, o discurso econômico desenvolve o papel de um registro maior no qual são retomados e articulados os registros da pedagogia, registros de considerações tecnológicas, políticas, etc., tomados como englobantes ou englobados, conforme o caso, o que faz com que haja sempre, na retomada metafórica das palavras, um deslocamento de uso que só pode repousar sobre a regularização suposta do funcionamento da palavra no registro fonte. 6. Bem entendido, os matemáticos não se interessariam tanto pelas séries se elas convergissem sistematicamente a números, como 1, já definidos em outro lugar. É na medida em que as séries permitem definir novos números que elas são interessantes. Do mesmo modo, a perspectiva que proponho por analogia tem essencialmente por interesse propor pers- pectivas para uma semântica que não se limite a uma combinatória de semas pré-existentes. 21A IMAGEM, UMA ARTE DE MEMÓRIA ? O aparecimento da imprensa parecia já ter tornado fora de uso as "artes da memória" antigas e Com razão mais pertinente, o desenvolvimento dos meios de registro da imagem e do som (essas extensões de nossos sentidos, se acre- ditamos em Mc Luhan), que permitem estocar depois restituir saber quase tão bem quanto os acontecimentos, parece hoje nos afastar definitivamente da necessidade de situar uma parte da memória social na "cabeça" dos (ou de certos) sujeitos sociais: a memória social estaria inteiramente e naturalmente presente nos arquivos das mídias. Uma tal concepção tecnicista da memória social, que em muitos pontos assimila esta à "memória" do computador, supõe resolvidas duas questões maiores. A primeira é bastante ingênua: registrar, descrever, representar a realidade (saber ou acontecimento) é suficiente para produzir memória? Ou ainda: a partir de quando, e do que, um acontecimento constitui me- mória? A segunda é sociológica: o que ocorre, nessa redução tecnicista, com os processos de manutenção da coesão social; 23com a societal de que o funcionamen- Memória social e produções culturais to da memória é o lugar, e mais particularmente ainda, com a reprodução das relações sociais e políticas fundada sobre a dominância desse funcionamento da memória social ? Uma primeira constatação se impõe imediatamente: para Pensemos, a propósito, numa cerimônia política como que haja memória, é preciso que acontecimento ou saber aquela da posse do Presidente da República: com os múltiplos registrado saia da indiferença, que ele deixe domínio da insig- jogos que surgem entre a referência, de um lado, a uma memó- nificância. É preciso que ele conserve uma força a fim de poder ria social já existente (o Panteão, os heróis republicanos) e, de posteriormente fazer impressão. Porque é essa possibilidade de outro lado. à produção de uma nova memória. Pois o registro do fazer impressão que o termo "lembrança" evoca na linguagem deve constituir memória, quer dizer: abrir a corrente. Um sociólogo um pouco esquecido hoje, é verdade, dimensão, entre passado originário e o futuro, a construir, de mas que uma sociologia do conhecimento não poderia ignorar uma a saber, M. Halbwachs caracterizaria aliás a memória como que ainda é vivo na consciência do grupo para indivíduo e Com esta alusão rápida a um exemplo político contem- para a vemos que entre simples registro da realidade e a memória social; que entre a reprodução de um acontecimento e Uma segunda constatação complementa a primeira: lem- a função social de instituição/re-instituição do tecido social atri- brar um acontecimento ou um saber não é forçosamente mobili- buída à memória, há toda a distância que separa a "realidade" zar e fazer jogar uma memória social. Há necessidade de que o do "fato de significação". Faria essa distância pensar, em suma, acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e sobretu- que a memória, como fato social, comportaria uma dimensão do, é preciso que ele seja reconstruído a partir de dados e de semiótica e simbólica que lhe seria intrínseca ? noções comuns aos diferentes membros da comunidade social. Esse fundo comum, essa dimensão intersubjetiva e sobretudo é em vista dessa dupla dimensão da memória grupal entre eu e os outros especifica, diz-nos Halbwachs, a cial (como fato societal e como fato de significação) que gosta- memória Mas a contrapartida seria que a memória ria de esboçar aqui uma reflexão sobre a imagem coletiva retém do passado o que ainda é vivo ou capaz de nea como operadora de memória, mas convém antes indicar com viver na consciência do grupo que o mantém. Por definição, ela algumas palavras o que é preciso entender por memória social não ultrapassa o limite do quando nos interessamos pelos objetos Estas duas constatações convidam a salientar caráter paradoxal da memória coletiva: sua capacidade de conservar o passado e sua fragilidade devida ao fato de que o que é vivo na consciência do grupo desaparecerá com os membros deste últi- mo. Aliás, em páginas que mereceriam uma outra atenção e uma outra apresentação, que estas rápidas e alusivas evocações não permitem, Halbwachs pode assim opor a memória coletiva à 24 25história, o "foco da tradição" ao "quadro dos monumento de recordação. a "lembrança" (corrente de pensamento contínua no seio do gru- po social) ao "conhecimento" (descontínuo e exterior ao pró- Por conseguinte, apoiando-nos sobre essa oposição en- prio grupo). Em compensação, a história resiste ao tempo; tre "memória coletiva" e "história" para considerar os objetos que não pode a memória. culturais, poderíamos adiantar, a título de que estes últimos vão no sentido não de um antagonismo, mas antes de Se a distinção efetuada por Halbwachs entre "memória uma conjunção, de um entrecruzamento, de uma síntese entre coletiva" e "história" permite desse modo compreender melhor memória coletiva e história. por que registrar ou ainda lembrar um acontecimento não é obri- gatoriamente ipso facto um fato de memória social, ela nos in- Trata-se aí de uma simples hipótese de trabalho, mas ela troduz acima de tudo em uma problemática dos objetos cultu- não me parece sem interesse no quadro de uma reflexão sobre o rais considerados como operadores de memória social. Eu me papel da memória. Ela torna com efeito adiantar que os obje- explico. tos culturais abrem a possibilidade de um controle da memória social; que esse controle está de fato estreitamente ligado ao Evoquemos novamente o exemplo da emissão funcionamento formal e significante desses objetos; e que, por televisionada que "representava" a posse do Presidente da Re- último, ele é um fato social não desprezível. Eis, a meu ver, pública. Compreenderemos muito facilmente a questão política que merece ser examinado; embora não seja questão de preten- e a importância sociológica que estão ligadas à possibilidade de der encarar, no estado atual, a verificação dessa hipótese, seria "casar" história e memória coletiva: de entrecruzar, de aliar a em compensação uma atitude bastante heurística voltar-se so- resistência ao tempo que caracteriza uma e o poder de impres- bre aquilo que autoriza sua formulação. são vivacidade da outra. Assim, o acontecimento, como acon- tecimento "memorizado" poderá entrar na história (a memória É o que veremos a propósito da imagem. do grupo poderá perdurar e se estender além dos limites físicos do grupo social que viveu acontecimento); mas enquanto "his- A imagem, operador de memória social tórico". ele poderá se tornar, em compensação, elemento vivo de uma memória coletiva. Esta última adquirirá então uma ou- Por que a Porque ela oferece ao menos em tra dimensão: aquela, se podemos dizer, de uma memória um campo histórico que vai do século XVII até nossos dias societal. Como esse entrecruzamento se opera? Qual é o seu uma possibilidade considerável de reservar a força: a imagem instrumento? O acontecimento no caso, a cerimônia do Panteão representa a realidade, certamente; mas ela pode também con- por ser representado (o que é mais e outra coisa do que ser servar a força das relações sociais (e fará então impressão sobre simplesmente registrado ou difundido), tomará o valor de uma espectador). espécie de ponto originário da comunidade social: o aconteci- mento se dará em um momento singular do tempo; mas a essên- L. Marin aliás mostrou muito bem como, por exemplo, cia do ato se encontrará para sempre na própria estrutura do no funcionamento do poder absoluto na idade clássica, o retrato objeto que representará (a emissão televisionada, por exem- do rei expõe em uma viva pintura as qualidades reais descritas Ele se tornará indissociavelmente documento histórico e 26 27"contadas" no relato de suas ações; de tal maneira que estas se se poderia esquecer este ponto com que a imagem comporte transformam em substância real. Do relato desse acontecimento um programa de leitura: ela assinala um certo lugar ao especta- à imagem do rei, o que era o menos representável, o menos dor (ou melhor: ela regula uma série com a passagem de uma a memorizável (a força), torna-se mais presente na ocasião da outra posição de receptor no curso da recepção e pode representação do personagem histórico do rei. Posso somente "rentabilizar" por si mesma a competência semiótica e aqui remeter às análises de Marin no que concerne ao modo desse Este é um fato bastante conhecido pelos como esse uso das imagens se apóia sobre seu próprio funcio- publicitários. Se procuramos que serve de fundamento à eficácia sim- Adicionemos que poderíamos, em contraponto a essa bólica da imagem, duas características semióticas parecem en- análise e de um modo comparável, mostrar como a publicidade, tão bastante consideráveis. desta vez, utiliza a imagem em complementaridade com o enun- ciado para apresentar tornar presentes as qualida- Em primeiro lugar, uma imagem pode ser compreendida des de um produto e conduzir assim o leitor a se recordar de ou recebida segundo dois níveis diferentes. Cada um desses dois suas qualidades, mas também a fazê-lo se posicionar em meio níveis possui regras de funcionamento que lhes são, ao menos ao grupo social dos consumidores desse produto; a se situar, a se representar esse lugar. No entanto, desenvolver essas análi- parcialmente, próprias. Por exemplo, os códigos perceptivos ses nos levaria longe demais e demandaria muito tempo; note- mudam menos rápido que os códigos iconológicos: por isso, ficamos sensíveis a composições ou representações de quadros mos então somente que esses dois exemplos indicam, para cer- tos períodos e segundo diferentes modalidades, a eficácia da da Renascença (ou de publicidades do início do século) de que imagem em poder se inscrever em uma problemática da memó- ignoramos parcialmente a significação: a potência perceptiva ria societal. perdura, enquanto as significações se perdem. Resta uma orga- nização formal que continua a constituir um dispositivo. Eis que nos conduzirá talvez a encarar a imagem sob Sabemos, desde artigo em muitos aspectos fundador um prisma particular: menos a nos interessar pelo que a imagem pode representar (os objetos do mundo), ou ainda pela informa- de E. Benveniste, aparecido em Semiótica em 1969, que exis- tem dois modos de significação: um semiótico, fundado sobre o ção que ela pode oferecer, nem mesmo pelo modo como ela efetua um ou outro desses processos, do que a prestar atenção à reconhecimento de unidades de significação previamente defi- maneira como certa imagem concreta é uma produção cultural nidas (eu reconheço o sentido das palavras), outro semântico e quer dizer, a levar em consideração sua eficácia simbólica. Com meta-semântico, fundado sobre a compreensão do sentido do efeito, aquele que observa uma imagem desenvolve uma ativi- texto em sua totalidade (eu compreendo sentido do conjunto dade de produção de significação; esta não lhe é transmitida ou de uma frase, por exemplo) e que inclui os mecanismos da entregue toda pronta. Esse estado de coisas abre, como aliás enunciação. Benveniste adianta que a imagem funciona antes insistem em nos fazer observar, a uma liberdade de interpreta- de tudo sob o modo semântico e que ela não pode conjugar os ção (o que quer dizer que o conteúdo "legível", ou antes "dizível", dois modos de significação (somente a língua poderia operar pode variar conforme as leituras); mas que faz também e não essa conjunção) e há um largo acordo entre os semioticistas para reconhecer que a imagem depende de uma abordagem textu- 28 29De minha parte, resumirei as coisas como segue: existe Esse apagamento da passagem dos componentes à tota- uma espécie de aproximação entre as oposições formais (de for- lidade tem por essencial interditar que se reen- ma, de e de topologia) e a instância textual e enunciativa: na contre a maneira como o efeito estético e significante é produzi- publicidade, por exemplo, certa relação de ou certo contras- do. A gênese se apaga; a (re)construção de uma origem mítica é te de forma retém olhar e, ao mesmo tempo, quer nos dizer da aberta, com mais um efeito de força viva. Então, começa a deri- qualidade que distingue um produto dos outros. Essa aproxima- va indefinida (e não infinita) que caracteriza toda interpretação ção escamoteia se posso dizê-lo um nível intermediário que de imagem; não obstante, se nos volvemos para essa deriva, teria por homólogo na linguagem o nível das palavras; a lingua- percebemos que essa busca, essa "reprodução" da significação gem supre aliás essa escamoteação (pode-se sempre descrever do dispositivo, se faz segundo próprio programa trazido pelo uma Em compensação, essa aproximação possui a dispositivo. Do mesmo modo que a recitação do mito ou os ges- vantagem de trabalhar sobretudo com os sistemas de oposição e tos litúrgicos seguem a estrutura do mito ou do ritual, cada lei- simultaneamente com as relações entre emissor, receptor, men- tura é em si mesma uma pequena recitação. Momento central, sagem e contexto. É porque a imagem é antes de tudo um dispo- ato que fornece à imagem sua razão de ser, que está fora do sitivo que pertence a uma estratégia de comunicação: dispositi- espaço da imagem, assim como, aliás, o acontecimento memo- VO que tem a capacidade, por exemplo, de regular O tempo e as rizado. modalidades de recepção da imagem em seu conjunto ou a emer- gência da E é um dispositivo, lembremo-nos, que Conclusão por natureza é durável no tempo. Eis então o que leva a pensar a imagem como um opera- Em segundo lugar, a imagem é um operador de dor de memória social no seio de nossa cultura. Assim, volte- simbolização. Conviria observar, a esse propósito, que a difi- mos a nossa hipótese. Com efeito, se a imagem define posições culdade, conhecida por todos os semioticistas da imagem, em de leitor abstrato que o espectador concreto é convidado a vir segmentar esta se deve menos a sua má-formação semiótica do ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos, que à aproximação que eu assinalava logo acima entre oposi- isso vai permitir criar, de uma certa maneira, uma comunidade ções formais e instância textual e enunciativa, entre a um acordo de olhares: tudo se passa então como se a imagem materialidade e O sentido. Entrecruzando esses dois níveis, a colocasse no horizonte de sua percepção a presença de outros imagem teria assim capacidade para integrar os elementos que a espectadores possíveis tendo mesmo ponto de vista. Do mes- compõem em uma totalidade. É porque compreenderíamos mo modo como explicava Halbwachs a reconstrução de um sentido global antes de reconhecer a significação dos elemen- acontecimento passado necessita, para se tornar lembrança, da tos; e atingiríamos primeiro efeito dessa integração; estaría- existência de pontos de vista compartilhados pelos membros da mos sob charme desse efeito formal, estético; toda imagem comunidade e de noções que lhes são assim a ima- pareceria assim se apresentar como única origem dela mesma gem, por poder operar o acordo dos olhares, apresentaria a ca- assim como de sua significação; e enfim, ela introduziria uma pacidade de conferir ao quadro da história a força da lembran- diferença de natureza, um salto qualitativo entre os componen- ça. Ela seria nesse momento registro da relação intersubjetiva tes (os que a análise pode repertoriar) e ela mesma considerada e social. em sua totalidade. 30 31Restaria, então e enfim, considerar como a imagem in- tervém concretamente no estabelecimento de uma forma de memória societal própria à nossa época e à nossa sociedade; e sobretudo, qual é a relação que se instaura entre o que podería- mos chamar "a memória interna" (aquela situada nos membros do grupo) e "a memória externa" (aquela dos objetos culturais), mas isto seria perguntar sobre as características das estruturas mentais de nossa cultura e se engajar na psicologia BIBLIOGRAFIA Jean Davallon ALBERA, F. (1980), "Introduction à S. M. Eisenstein", Cinématisme: peinture et cinéma. Bruxelas, Ed. Complexes. BENVENISTE, E. (1974), Problèmes de linguistique générale, t. 2, Paris, Gallimard. DAVALLON, J. (1981), "Les fêtes révolutionnaires: une politique du signe", Traverses, pp. 187-195. (1983a), "Réfléxions sur l'éfficacité symbolique des productions culturelles", Langages et Société, n° 24, pp. 37-52. (1983b). "Voyages au pays d'Air France: l'espace de la "lecture" dans l'image", Actes sémiotiques, Documents, V. 49. HALBWACHS, M. (1950), La mémoire collective, Paris, Presses Universitaires de France. MARIN, L. (1950), Le portrait du roi, Paris, Ed. de Minuit. METZ, Ch. (1975), "Le perçu et le nommé", in: Vers une 32 33esthétique sans entraves: mélanges offerts à Mikel Dufrenne, Paris, Union Générale d'Édition (10/18, Coll. Esthétique, 931). MEYERSON, I. (1948), Les fonctions psychologiques et les oeuvres, Paris, Vrin. NOTAS SCHEFER, L. (1969), Scénographie d'un tableau, Paris, Ed. du Seuil. YATES, F. A. (1975), L'art de la mémoire, Trad. do inglês [The art of memory, por D. Arasse, Paris, 1.. Como assinala Yates, 1966. Lembremos que o autor define assim a arte da "Esta arte visa permitir a memorização graças a uma técnica de 'lugares' e 'de imagens' que impressionam a memória". 2. Penso particularmente na "cerimônia da memória" que se desenrolou durante as jornadas de posse de F. Mitterand, em 21 de março de 1981. O que está então em jogo, para além da referência declarada ao cerimo- nial republicano herdado em grande parte das festas revolucionárias (ou ao menos de sua ideologia), é o estatuto que se atribui aos meios de difusão e de representação do acontecimento no caso: à emissão televisionada desta cerimônia. 3. Entendo por "objetos culturais" o conjunto dos objetos concretos (li- vros, escritos, imagens, filmes, arquiteturas, etc.) que resultam de uma produção formal e que são destinados a produzir um efeito simbólico. Sobre esse ponto ver Davallon, 1983. 4. Halbwachs, 1950, p. 70. 5. Ibid., p. 13: "Não basta reconstruir peça por peça a imagem de um acontecimento passado para se obter uma lembrança. É preciso que essa reconstrução se opere a partir de dados e de noções comuns que se encontram tanto em nosso espírito quanto no dos outros, porque eles passam sem cessar destes àquele e reciprocamente, o que só é possível se eles fazem e continuam a fazer parte de uma mesma socie- dade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída". 35 34memória coletiva: "é uma corrente de pensamento contínuo, de uma 13. Para a análise detalhada, ver: Davallon, 1983. que não tem nada de artificial, pois ela só retém do pas- que dele ainda é vivo ou capaz de viver na consciência do 14. Halbwachs insiste várias vezes sobre a partilha de um ponto de vista e que mantém" Ibid., p. 70. sobre a comunhão dos dados de referência como fundamentos da me- mória coletiva, por exemplo: op cit, pp. 3, 48-53, 61, etc. pp. 74-79. Na sequência da empregarei o termo "es- pectador um movimento que ultrapassa a simples compreensão do es- petáculo proposto e se faz produtora de sentido. Composição, monta- 15. Com relação à memória coletiva, a memória individual estaria na ver- tente oposta àquela em que se situa o objeto cultural. Uma abordagem ritmo conduzem da visão à compreensão", F. Albera, 1980, p. 9. que se refira à psicologia histórica seria então possível (Meyerson, 1948). Assim acontece com a representação do juramento no momento da Revolução Francesa ou ainda com a representação do herói revolucio- nário: J. Davallon, 1981 9. "De um lado, então, um ícone que é a presença real e 'viva' do monar- ca; de outro, um relato que é seu túmulo subsistindo para sempre. A representação como poder, poder como representação são um e ou- tro um sacramento na imagem e um na linguagem, onde, cambiando seus efeitos, o olhar deslumbrado e a leitura admirativa consomem corpo radioso do monarca, um recitando sua história em seu retrato, o outro contemplando uma de suas perfeições no relato que eterniza a L. Marin, 1981, p. 10. Esta particularidade da imagem foi notavelmente bem estudada pela semiologia do cinema. Como indica F. Albera, é ela que S.M. Eisenstein terme "O que caracteriza efetivamente es- de Toulouse-Lautrec, Van Gogh, estudar para compreender esta no- construção impõe ao espectador um a simples compreensão do espetáculo pro- de sentido. Composição, montagem, ritmo da visão à compreensão", F. Albera, 1980, p. 9. 11. Esse artigo de E. Benveniste foi retomado em Problemas de lingüística geral, t. 2., 1974. Essa dominância do modo semântico e meta-semân- tico foi reconhecida bem cedo pela semiologia (J.L. Schefer, 1969; R. Barthes, L. Martin, etc.), depois apoiada e corroborada pelas análises da semiótica visual que se referem à teoria de A. J. Greimas. 12. Este ponto exigiria uma análise precisa e circunstanciada. Encontrare- mos uma primeira e indispensável abordagem em Metz, 1975. 36 37MEMÓRIA GREGA Escolhi propor-lhes, para introduzir o debate desta ma- nhã, não uma descrição de nossas próprias práticas memoriais, uma análise de nossa própria gestão da memória, mas uma in- terrogação envolvendo aquelas da Grécia antiga, da Grécia clás- sica. Observar em que posição particular os gregos se coloca- vam com relação à sua própria memória, à gestão que eles podi- am fazer dela. Serei rápido, portanto esquemático, e aqueles que conhecem esses problemas queiram desculpar a brutalida- de deste esboço grosseiro. A discussão permitirá, espero, voltar a todos os pontos que se desejar que eu retome. Os gregos apresentam um problema com sua memória, um problema muito simples. Não é possível para o não-grego, digamos, para o bárbaro (o que não é um termo necessariamen- te negativo), reconhecer-se grego sem referência a toda uma série de relatos com todo seu peso, seu valor normativo, sejam eles retomados coletivamente ou não, e sejam eles fixados ou não em formas "literárias" precisas: o Mito. Mas o mito é tam- bém algo de muito organizado, em uma forma codificada, diga- 39mos, a epopéia. E imediatamente coloca-se o problema funda- em resumo, valores políticos e sociais, no qual nos situamos, as mental. Falo certamente aqui situando-me como observador em coisas se apresentam de outro modo e a contradição aparece. uma Atenas do século V sempre tão mítica e sempre tão neces- sária. Se pretendemos, por exemplo, fazer a guerra, a guerra da cidade, como fazia Aquiles, arriscamos com os nossos nas Se, como esse menino grego, sou educado através da piores dificuldades. Observemos modo como as coisas se pas- salmodia de Homero, ou se, como grande diva percorrendo as sam nesse texto célebre (analisado por P. Vidal a cena cidades gregas, interpreto poeta durante manifestações coleti- dos escudos em os Sete contra O guerreiro do mito é vas, festas que organizam e estruturam grupo, não produzo atingido pelo menos, esse furor que possui sua alma e o rende. uma epopéia. Quero dizer com isso que aquele que recita tex- Ele é invadido pela ira de matar, orientado para realizar os gran- to épico pode apenas retomar indefinidamente uma memória des feitos que são objeto do canto épico. Isto o coloca em con- organizada em um texto que se tornou fechado e em relação ao tradição total com as regras do grupo social no quadro da cida- qual ele mantém uma relação que podemos chamar demoníaca, de, regras que supõem uma guerra racional e democrática. A que ultrapassa então as estruturas da memória humana, uma re- igualdade dos combatentes é aí fundamental: não se trata de lação que o faz entrar em contato, de maneira quase possessória, combater para se fazer ilustre no combate mas de defender a com o próprio poeta ou alguma coisa que resta dele e se trans- cidade com os companheiros de linha, cada um solidário um mite por sua palavra. Por quê? Porque poeta, ele mesmo, com o outro, na falange. Há verdadeiramente uma contradição aedo, não possui fala própria. No momento em que recita as inevitável em uma memória que estabelece ao mesmo tempo proezas dos heróis, aedo só faz porque a Musa fala através sistema categorial que nos define como partidários de nosso dele, por ele. Quer dizer que não há possibilidade de produção grupo, e valores sociais que nos colocam em oposição a ele. da memória na cidade fora da presença do poeta épico, diga- Isto teve como efeito imediato na produção cultural, para reto- mos, para ser breve, de Homero. Os gregos apresentam, então, mar a fórmula proposta logo acima, a tragédia. A tragédia na como principal meio de reconhecimento de si mesmos, um dos qual vemos estabelecidas ao mesmo tempo a necessidade do textos que se produziram e se fixaram fora de seu domínio e que mito e as dificuldades que ele provoca. Não podemos nos livrar eles são forçados a repetir sem meios de modificá-los em fun- do Édipo nem se acomodar com ele. De onde a necessidade de ção de novas exigências sociais. Textos que lhes fornecem as interrogar o mito em função do sistema de valores da cidade categorias de percepção do mundo no qual se encontram. O contemporânea, já que não podemos levá-lo tal qual em consi- garoto educado em Atenas aprende música, recita a epopéia, e deração. sabe assim definir mar em oposição à terra, a tempestade em oposição ao céu sereno, etc. Ele recebe toda uma série de meios Por outro lado, existe a necessidade de se produzir uma de categorizar real, que situam como grego. Em contraste memória, um memorável válido para o tempo da cidade, e, de com os vizinhos persas, que possuem calças, modos de viver certa forma, nos trabalhos de memória, estamos sempre em ri- diferentes, que percebem as coisas diferentemente, etc. O pro- validade com Homero. Quando, por exemplo, as primeiras prá- blema aí não é maior, isso funciona de modo bastante imediato. ticas historiadoras aparecem (F. Hartog, ausente da França, es- Mas a partir do momento em que olhamos não mais as categori- taria melhor posicionado do que eu para falar disso), vemos as de percepção da realidade, mas sistema de valores éticos, bem que a necessidade da pesquisa vem da necessidade de fa- 40 41bricar um memorável adequado ao mundo dos contemporâne- mente um guerreiro em presença de Atena. O que faz com que os. Ao mesmo tempo coloca-se a questão da enunciação. Quem uma representação desse gênero seja ao mesmo tempo válida fala e com que direito? O poeta com suas garantias não está para o herói e para a situação na qual o combatente da cidade, o mais aí para fazê-lo em meio aos seus. Aquele que produz o hoplita, é declarado comparável aos heróis, com uma verdadei- memorável para a cidade, assim, tem sempre, de certo modo, a ra metaforização interna à imagem. Podemos ir ainda mais lon- nostalgia da epopéia definitivamente impossível. Quando a ci- ge, nesse sentido, adicionando por exemplo no dispositivo car- dade produz um discurso adequado pelo qual ela se funda, fa- regador/carregado, em presença de Atena, um leão que desfila bricando seu próprio memorável mítico, quando ela pratica a com os personagens da imagem, ao fundo do conjunto. O valor oração fúnebre, ela o faz em referência aos valores do epos (N. metafórico da imagem é assim assinalado do interior do próprio Loraux, de novo aqui, seria bem melhor que eu para falar dis- dispositivo, leão não tendo outra significação possível em um so). O orador oficial narra então a grandeza de Atenas pela gran- contexto como esse. Aliás, ritual dos funerais públicos não deza de seus guerreiros mortos ao modo dos heróis, incorporan- tinha rigorosamente nada que fazer com que era representa- do os valores que servem a isso. do nas imagens desse tipo (eu deveria, desculpem, tê-lo dito no começo), quer dizer com esse transporte individual do cadáver incluído no universo épico. Os mortos celebrados pelo ritual Para não multiplicar os casos de figura, gostaria agora ateniense são anônimos, coletivamente honrados, etc. e disso a de observar o modo como a imagem pode se inserir nesse dis- imagem não diz nada. Podemos assim ver como a imagem pode positivo de produção (seguindo desta vez F. Lissarrague que não pode estar aqui hoje. Espero não trair ninguém, enfim não jogar nessa estratégia da memória onde as margens de mano- muito, fazendo falar tantos amigos ausentes!). A imagem possui bras são bastante reduzidas. Visto que as questões de enunciação não se colocam mais no interior do novo conjunto onde a ima- uma vantagem fundamental: ela representa e ao mesmo tempo gem joga com suas condições específicas de produção, torna-se produz sentido. De outro modo, quando a imagem é representa- ção, ela pode representar um guerreiro da cidade, o hoplita car- possível praticar uma política de memória mais flexível nesse mundo, somando-se tudo, tão complexo que é o domínio gre- regando o corpo de seu companheiro morto. Através de alguns elementos do dispositivo icônico, é possível mostrar que o guer- go. Penso que seria necessário desdobrar um pouco mais tudo isso diante de vocês. reiro morto é um herói parecido com o da epopéia, com o guer- reiro épico: a forma do escudo, tipo de penteado, por exem- plo. A imagem pode conter nomes, Aquiles, Ajax, com uma E isso para remeter, certamente, dentro de uma perspec- referência evidente aos dados épicos. Ela é representação ou tiva antropológica, que eu defendia ontem em uma outra ofici- motor de discursos, ocasião assim de reatualizar a memória para na, à nossa própria prática memorial, no sistema com memória retomar que estava dito antes, a memória dos valores do epos. institucional que é o nosso. Temos historiadores, universidades Em uma cena desse gênero, podemos introduzir Atena. A deu- onde se ensina a história. Gostaria simplesmente que nos inter- sa, sabemos, mantém uma relação específica com os heróis do rogássemos, enquanto produtores de memória, com relação ao ciclo troiano: ela pode então fazer parte dessas representações. funcionamento grego da prática memorial. E gostaria, para ter- Se suprimimos as indicações de nomes, Atena continua reco- minar e à guisa de incitar a discussão, de me perguntar se o fato graças aos elementos que a definem (armas, coruja, de que a primeira memória heróica produzida no curso do esta- etc.) mas guerreiro carregador ou carregado, torna-se simples- belecimento de nossa história republicana gire em torno de per- 42 43sonagens como Vercingétorix ou Joana d'Arc, que eu diria massivamente "míticos" à grega, é um acaso ou se isso coloca questões sobre nossa própria gestão da memória no quadro da BIBLIOGRAFIA instituição que a produz. Jean-Louis Durand VIDAL-NAQUET, P. (1978), "Les boucliers des héros...", Revue des Études grecques, no XVI. Les Sept contre Thèbes, texto elaborado e traduzi- do por Paul Mazon, Paris, Les Belles Lettres, ed., 1963; re- vista em 1966. 44 45NOTAS 1. Vidal-Naquet, P., 1978. Les boucliers des héros Revue des Études grecques, no XVI. 2. Eschyle. Les Sept contre Thèbes, texto elaborado e traduzido por Paul Mazon, Paris, Les Belles Lettres, la ed., 1963, revista em 1966.PAPEL DA MEMÓRIA Não pretendo fornecer um levantamento exaustivo do trabalho da manhã, nem resumir as três apresentações de que nos beneficiamos. Gostaria simplesmente de dar a tonalidade delas, acentuando o que me pareceu ser as nervuras principais do debate. De início, uma observação de conjunto sobre as três apre- sentações: Pierre Achard trabalha em sociolingüística e em aná- lise de discurso, Jean Davallon em semiótica e sociosemiótica do espaço e Jean-Louis Durand efetua pesquisas semióticas bre o gestual na antiguidade ateniense clássica. Corríamos o risco então de ter discussões agradavelmente paralelas, sem ponto de contato: por exemplo, uma sobre os textos e os discursos, e outra sobre a imagem. De fato, a questão do papel da memória permitiu um encontro efetivo entre temas a princípio bastante diferentes. Esta questão conduziu a abordar as condições (mecanismos, processos...) nas quais um aconteci- mento histórico (um elemento histórico descontínuo e exterior) 49é suscetível de vir a se inscrever na continuidade interna, no tações e na discussão, sobre a especificidade da ordem propria- espaço potencial de coerência próprio a uma memória. mente (definida por exemplo como a da variação combinatória, à qual J.-C. Milner se referiu em sua apresenta- Memória deve ser entendida aqui não no sentido direta- ção), em relação à ordem do discursivo, e a fortiori em relação mente psicologista da "memória individual", mas nos sentidos às do icônico, do simbólico ou da simbolização. entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador. O risco O fato de que possa existir localização de traços distinti- evocado de uma vizinhança flexível de mundos paralelos se deve vos e de oposições pertinentes na esfera do icônico, por exem- de fato à diversidade das condições supostas com essa inscri- plo, não conduziu ninguém a supor que, mesmo para uma ção: é a dificuldade com a qual é preciso um dia se confrontar sincronia dada, haveria universais do icônico (pessoalmente, a de um campo de pesquisas que vai da referência explícita e impensabilidade de uma sintaxe do icônico me parece marcada produtiva à até tudo o que toca as disciplinas de pela inexistência da negação e da interrogação no interior da interpretação: logo a ordem da língua e da discursividade, a da imagem). A questão de uma possível combinatória culturalmente "linguagem", a da "significância" (Barthes), do simbólico e da determinada dos segmentos gestuais (a propósito da qual J.-L. simbolização.. Durand mencionou certos trabalhos etnológicos americanos re- centes) coloca provavelmente um problema bem diferente, mas Não é de se admirar, nessas condições, que a idéia de não desemboca mais em impossíveis universais gestuais. uma fragilidade, de uma tensão contraditória no processo de inscrição do acontecimento no espaço da memória tenha sido Concebemos desde então que fato incontornável da constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que de- eficácia simbólica ou "significante" da imagem tenha atraves- sempenhou o papel de ponto de referência: sado o debate como um enigma obsediante, e que, por seu lado, os fatos de discurso, enquanto inscrição material em uma me- acontecimento que escapa à inscrição, que não chega mória discursiva, tenham podido aparecer como uma espécie a se inscrever; de problemática-reserva. Essa negociação entre choque de um acontecimento histórico singular e o dispositivo complexo de uma memória poderia bem, com efeito, colocar em jogo a nível o acontecimento que é absorvido na memória, como se crucial uma passagem do visível ao nomeado, na qual a imagem não tivesse ocorrido. seria um operador de memória social, comportando no interior dela mesma um programa de leitura, um percurso escrito discursivamente em outro lugar: tocamos aqui o efeito de repe- tição e de reconhecimento que faz da imagem como que a reci- No que concerne aos múltiplos registros evocados aci- tação de um mito. Na transparência de sua compreensão, a ima- ma, que formam uma continuidade problemática entre a lingüís- gem mostraria como ela se quer dizer, como ela funciona tica e as disciplinas de interpretação (restando saber em que enquanto diagrama, esquema ou trajeto enumerativo. Refiro- medida a própria é ou não uma disciplina de inter- me a tudo que Jean Davallon adiantou a esse respeito. um acordo muito amplo se manifestou, nas apresen- 50 51Haveria assim sempre um jogo de força na memória, sob Tocamos aqui um dos pontos de encontro com a questão choque do acontecimento: da memória como estruturação de materialidade discursiva com- plexa, estendida em uma dialética da repetição e da regulariza- ção: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que um jogo de força que visa manter uma regularização surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os "implíci- pré-existente com os implícitos que ela veicula, confortá-la como tos" (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elemen- "boa forma", estabilização parafrástica negociando a integração tos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dissolvê-lo; leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível. Ora, acontece que esta é uma das questões cruciais atu- mas também, ao contrário, o jogo de força de uma almente abordadas pela análise de discurso: uma discussão aberta "desregulação" que vem perturbar a rede dos "implícitos". a esse respeito, que sem ser puro negócio de butique reveste apesar de tudo um caráter relativamente "técnico". A questão é Em relação com a questão da regularização, a da repeti- saber onde residem esses famosos implícitos, que estão "ausen- ção (dos itens lexicais e dos enunciados) prolongou debate: a tes por sua presença" na leitura da estão eles dispo- repetição é antes de tudo um efeito material que funda comuta- níveis na memória discursiva como em um fundo de gaveta, um ções e variações, e assegura sobretudo ao nível da frase escri- registro do oculto? P. Achard levanta a hipótese de que não en- espaço de estabilidade de uma vulgata parafrástica pro- contraremos nunca, em nenhuma parte, explicitamente, esse dis- duzida por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa curso-vulgata do implícito, sob uma forma estável e sedimentada: identidade material. haveria, sob a repetição, a formação de um efeito de série pelo qual uma "regularização" (termo introduzido por P. Achard) se Mas a recorrência do item ou do enunciado pode tam- iniciaria, e seria nessa própria regularização que residiriam os bém (este é um ponto introduzido por Jean-Marie Marandin na implícitos, sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos discussão) caracterizar uma divisão da identidade material do de paráfrase (que podem a meu ver conduzir à questão da cons- item: sob o "mesmo" da materialidade da palavra abre-se então trução dos estereótipos). Mas, sempre segundo P. Achard, essa o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação regularização discursiva, que tende assim a formar a lei da série discursiva... Uma espécie de repetição vertical, em que a pró- do legível, é sempre suscetível de ruir sob peso do aconteci- pria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em mento discursivo novo, que vem perturbar a memória: a memó- paráfrase. ria tende a absorver o acontecimento, como uma série matemá- tica prolonga-se conjeturando o termo seguinte em vista do co- Esse efeito de opacidade (correspondente ao ponto de meço da série, mas o acontecimento discursivo, provocando divisão do mesmo e da metáfora), que marca momento em interrupção, pode desmanchar essa "regularização" e produzir que os "implícitos" não são mais reconstrutíveis, é provavel- retrospectivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar mente o que compele cada vez mais a análise de discurso a se o aparecimento de uma nova série que não estava constituída distanciar das evidências da proposição, da frase e da estabili- enquanto tal e que é assim o produto do acontecimento; o acon- dade parafrástica, e a interrogar os efeitos materiais de monta- tecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos associa- gens de sem buscar a princípio e antes de tudo sua dos ao sistema de regularização anterior. 52 53significação ou suas condições implícitas de interpretação. gestos de designação antes que sobre os designata, sobre os pro- cedimentos de montagem e as construções antes que sobre as Trata-se, de outro modo, de retirar-se provisoriamente, significações? A questão da imagem encontra assim a análise taticamente, da questão do sentido, sabendo ao mesmo tempo de discurso por um outro viés: não mais a imagem legível na que a questão da interpretação é incontornável e retornará sem- transparência, porque um discurso a atravessa e a constitui, mas pre. A esse propósito, devo fazer um esclarecimento a respeito a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a memória da fala de Sylvain Auroux, que me atribuiu uma controvérsia "perdeu" o trajeto de leitura (ela perdeu assim um trajeto que com J.-C. Milner sobre a questão de saber se ele se estimava ou jamais deteve em suas inscrições). não ser colega de Beauzée: parece-me útil explicar um pouco de que se trata! A questão concerne de fato ao estatuto da lin- A imagem muda é por exemplo o choque opaco de uma güística frente às disciplinas de interpretação. Eu tinha pergun- imagem de vaso grego: a arquelogia possui apenas o olho, quer tado a Vidal-Naquet (a partir da alusão ao artigo de Nicole dizer, imagens e textos, sem coincidência, e não, como a antro- Loraux "Tucídides não é um colega", muito citado no decorrer pologia de hoje, o "a mais" do ouvido (a voz, a "trilha sonora"). dessas jornadas), se, para ele, Tucídides, sem ser seu colega, era O que evoco aqui remete à apresentação de J.-L. Durand, que não obstante um historiador; questão à qual P. Vidal-Naquet res- mostrou como a epopéia heróica grega fazia irrupção nas cenas pondeu: "Sim, certamente!", o que implica que não há começo visuais da democracia ateniense (em particular as cenas funerá- histórico assinalável para a disciplina histórica, na medida em rias), através de telescopias burlescas por seu anacronismo (mais que a história é uma disciplina de interpretação: para um físico, ou menos como se mostrássemos Vercingétorix a bordo de um por exemplo, o problema de saber se Aristóteles é um colega avião a jato). não se coloca. Aristóteles não é para ele nem um colega, nem um Minha questão a J.-C. Milner concernia então de fato No outro extremo, o choque opaco do acontecimento à posição da a respeito da interpretação. Perguntar- televisual é também algo que não se inscreve, na medida em se se há ou não um momento histórico assinalável em que se que está sempre lá", no retorno de um paradigma pesado pode dizer de alguém "é um não é então colocar um que se repete no interior de sua aparição por exem- mero poblema de datação, mas levantar a questão de saber se a plo (intervenção de Maurice Mouillaud), a história do submari- é uma disciplina puramente "experimental", ou se no soviético perdido no Báltico, quando este vem à superfície ela tem necessariamente algo a ver (de modo complexo, equí- da tela de TV; o submarino está sempre lá, não necessariamente voco, ambíguo.. mas algo a ver) com as disciplinas de interpre- no fundo do mar, mas nas profundezas de um paradigma que tação, desde a história até a psicanálise. estrutura o retorno do acontecimento sem profundidade. Fecho este parêntese para retornar à questão da interpre- Reencontramos assim, para finalizar, a questão da rela- tação em análise de discurso: P. Achard caracterizou esse movi- ção entre a imagem e o texto: no entrecruzamento desses dois mento de retirada provisório da questão do sentido e da vontade objetos, onde estamos, tecnologicamente e teoricamente, hoje, de interpretar, lembrando o provérbio chinês "Quando lhe mos- com relação a esse problema que, após Benveniste, Barthes de- tramos a lua, o imbecil olha o dedo". Com efeito, por que não? signou com o termo "significância"? Por que a análise de discurso não dirigiria seu olhar sobre os 54 55Em que pé estamos com relação a Barthes? Barthes era tanto lingüista dos textos como teórico das imagens, ou de pre- ferência não era nem um nem outro (quer dizer, nem lingüista, nem semiólogo, nem analista) mas antes de tudo o esboço con- traditório de gestos que tentamos hoje reencontrar, e que ele soube agenciar à sua maneira talvez única, quer dizer, em pes- soa logo também, e de maneira equívoca: como pessoa? NOTAS A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse deba- te é que uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e 1. Assinale-se a esse propósito uma intervenção de Françoise Madré, cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo problematizando a relação escrito/oral do ponto de vista da repetição e da memória. de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de di- visões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de con- flitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, répli- 2. Penso nas teses desenvolvidas por Paul Veyne, que poderiam bem ilus- trar esse pantextualismo que foi designado como risco constante no cas, polêmicas e contra-discursos. decorrer dos debates. O último livro de P. Veyne "Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes" dá uma idéia desse frasco ideal do relativismo absoluto. E o fato de que exista assim o outro interno em toda memória é, a meu ver, a marca do real histórico como remissão necessária ao outro exterior, quer dizer, ao real histórico como causa do fato de que nenhuma memória pode ser um frasco sem Michel Pêcheux 56 57MAIO DE 1968: os SILÊNCIOS DA MEMÓRIA* Introdução Falando de história e de política, não há como não consi- derar fato de que a memória é feita de esquecimentos, de si- lêncios. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silên- cios e de silenciamentos. Os sentidos se constróem com limites. Mas há também limites construídos com sentidos. E quando penso maio de 68, o que vem à frente da cena política e histórica é o silenciamento, são os sentidos que impõem limites. A tortura, a censura, a agres- são da ditadura à sociedade, à cidadania. Mais do que ver no acontecimento maio-68 a constatação dessa violência, interessa vê-lo, enquanto acontecimento discursivo, justamente, como fato de um pro- cesso de produção de sentidos que, reprimido, vai desembocar na absoluta dominância do discurso No entanto, enquanto tal, no momento em que apareceu, maio-68 abria para uma nova discursividade, produzindo efeitos metafóricos que afetavam a história e a sociedade, de maneira explosiva, em várias 59direções: politicamente, culturalmente, moralmente. E o que vai para significar. E é isso a materialidade discursiva, isto é, se dar com essa discursividade no futuro? O que significa maio linguístico-histórica. Da interpelação do indivíduo em sujeito de 68 hoje? pela ideologia resulta a forma-sujeito histórica. Em nosso caso, a forma-sujeito histórica capitalista corresponde ao sujeito-jurí- Para trazermos essa questão para a reflexão, podemos dico constituído pela ambiguidade que joga entre a autonomia e referir o texto de M. Pêcheux (p. 33 aqui mesmo), no qual ele a responsabilidade sustentada pelo vai-e-vem entre direitos e procura compreender, junto a semioticistas e histori- deveres. Podemos dizer, então, que a condição inalienável para adores, a fragilidade no processo de inscrição do acontecimen- a subjetividade é a língua, a história e mecanismo ideológico to no espaço da memória que, segundo ele, joga em uma dupla pelo qual sujeito se constitui. forma: a. acontecimento que escapa à inscrição, que não che- ga a inscrever-se, e b. acontecimento que é absorvido na me- Por outro lado, esse sujeito, uma vez constituído, sofre mória como se não tivesse ocorrido. diferentes processos de individualização (e de socialização) pelo Estado. Assim, se temos o indivíduo como ponto de partida para O caso que estou apresentando não se enquadra nem na o assujeitamento ao simbólico e, quanto a este assujeitamento primeira, nem na segunda possibilidade. É uma nuance entre o sujeito não tem controle pois ele se passa "antes, em outro elas: é como se não tivesse ocorrido (b), não porque foi absorvi- lugar e independentemente" temos sobre esse sujeito proces- do mas, ao contrário, justamente porque escapa à inscrição na SOS que o individualizam e que derivam das diferentes formas memória (a). É este, penso eu, caso da censura em geral. Nes- de poder. E aí as Instituições e Poder constituído têm um se sentido, embora eu explore aqui uma situação particular de papel determinante. É nessa instância que se dão as lutas, os censura, essa minha reflexão pode contribuir para a compreen- confrontos e onde podemos observar os mecanismos de imposi- são da relação entre memória e censura em geral. ção, de exclusão e os de resistência. Pois bem, é assim, partindo dessa posição teórica, que procuraremos compreender o que tenho chamado de "proces- Um pouco de teoria SOS de de-significação" que estão presentes em discursividades como as que incidem sobre maio de 68. Portanto, não tratare- mos sujeito como algo que se trabalha do ponto de vista de É já conhecido, na análise de discurso, que há interpela- uma sua essência, mas pensando sua existência como constituí- ção do indivíduo em sujeito pela ideologia. É assim que se con- da pela sua relação com a língua e com a história onde se con- sidera que sujeito se constitui em sujeito por ser afetado pelo frontam simbólico e político. simbólico. Daí seu assujeitamento, ou seja, para que sujeito seja sujeito é necessário que ele se submeta à língua. E é por E a nossa questão é: que aconteceu com os sentidos estar sujeito à lingua, ao simbólico, que ele, por outro lado, pode que constituem o evento maio-68? ser sujeito de. Para falar disso retomamos fato de que falar é esque- Além disso, é preciso que a língua se inscreva na história cer. Esquecer para que surjam novos sentidos mas também es- 60 61quecer apagando os novos sentidos que já foram possíveis mas cusa a uma vida reduzida a regras e a um trabalho que, por sua foram estancados em um processo histórico-político silenciador. vez, reduz homem em suas possibilidades de vida. São sentidos que são evitados, de-significados. Uma paráfrase agora, com o tempo já deslocado, mostra a conversão desse discurso em um processo que de-signifi- Formações Discursivas e Esvaziamento de Sentido cou. Essa paráfrase aparece, em maio de 1998, em um poster de propaganda no metrô de Paris: um casal nu, tatuado com flores no peito, dirigindo-se a uma exposição, e, embaixo, os A definição de formação discursiva diz que ela delimita dizeres "Entrada livre. Isso faria sonharem seus pais..." "aquilo que pode e deve ser dito por um sujeito em uma posição discursiva em um momento dado em uma conjuntura dada" Esse enunciado por sua vez mostra a forma como os sen- (Haroche, Henry, Pêcheux, 1975). tidos concretos e explosivos de liberdade, que estavam levando à uma revolução social e cultural, a novos sentidos para os su- No modo como político se simboliza nos anos 60 há jeitos e para à história. foram barrados violentamente pelo status todo um possível dizer da sociedade, da cultura que coloca os quo. Pelas instituições, pelo poder. E, no caso do Brasil, mais sujeitos em medida de uma transformação histórica e social de violentamente ainda porque estávamos em uma ditadura e era grande dimensão. Essa possibilidade eclode nos movimentos bem diferente dizer "É proibido proibir" aqui em uma rua de de 68 tendo a palavra liberdade como carro-chefe. No mundo São Paulo e em uma rua de Paris... todo há manifestações de rua em que uma discursividade can- dente trabalha os muitos sentidos postos na reivindicação das No poster dos anos 90 "entrada livre" e gratuita reduz liberdades concretas necessárias à sociedade em suas novas sentido de liberdade ao preço de um parque de diversões. possíveis formas. São assim enunciados que funcionam em suas relações O interditado que toma a forma do impossível parafrásticas, relacionando-se em suas diferentes formulações ao que pode significar "liberdade": Então, sentidos possíveis, historicamente viáveis foram a. "É proibido proibir!". politicamente interditados. E tornaram-se inviáveis. Essa im- possibilidade, posta pela censura e pela força, se naturaliza e b. "Faça amor e não faça guerra !" que deriva ainda para funciona como um pre-construído restritivo a certos sentidos de "Paz e Amor!". liberdade, de tal maneira, que eles parecem impossíveis. Foram assim desmoralizados, amolecidos, inviabilizados, de-signifi- "Boulot, Metro, Dodo!" em português: "Trabalho, cados, postos fora do discurso. E a palavra "liberdade" aparece Condução e Cama!". feito florzinha que se prende com um bottom numa roupinha maneira.. Ao mesmo tempo, pela outra mão, a da direita, nesse Que, em suas diferentes formas de dizer, afirmam a re- mesmo processo, se estabelecem as bases do discurso neo-libe- 63 62ral em que se individualiza a questão da liberdade, destituindo- e esquecidas, ao longo do tempo e de nossas experiências de a da força concreta histórica que ela tinha na outra formação linguagem que, no entanto, nos afetam em seu "esquecimento". discursiva a da esquerda, em que o partido comunista propu- Assim como a língua é sujeita a falhas, a memória também é nha em seu programa a necessidade de construção de uma de- constituída pelo esquecimento; daí decorre que a ideologia, diz mocracia fundada nas liberdades concretas necessárias para as M. Pêcheux (1982), é um ritual com falhas, sujeito a equívoco, novas formas sociais em que haviam se alocado sentidos ex- de tal modo que, do já dito e significado, possa irromper O novo, plosivos de liberdade. E o que é silenciado em uma formação o irrealizado. No movimento contínuo que constitui os sentidos discursiva é acolhido em outra formação discursiva, esta, domi- e os sujeitos em suas identidades na história. nante, que corresponde ao viés pragmático e empresarial da política neo-liberal desembaraçada dos sentidos mais corrosi- vos, transformadores do político. Essa liberdade sem determi- Ainda em M. Pêcheux (aqui mesmo, p. 36) temos: "uma nações concretas, agora generalizada, pode ser reivindicada, espécie de repetição vertical, em que a memória esburaca-se, individualizando-se, até pelos neo-nazistas que, em nome dela, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase". O que dá, se- exigem direito de usar a suástica em suas roupas opressivas. gundo esse autor (idem, p.39), a idéia de memória como um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização. Um espaço de des- dobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos (1). O que é isto companheiro? Memória e Censura Não é nada disso, companheiro, diz uma paráfrase de José Simão que, com seu humor, evoca jogo discursivo que atravessa esse enunciado em sua memória, agora transformada O que acontece com maio-68 porém é de outra ordem. A de romance em filme. falha é constitutiva da memória, assim como esquecimento. No entanto o que acontece com os sentidos de 68 é que eles não E a questão é, sem dúvida uma questão de memória. No falham apenas nessa memória, eles foram silenciados, censura- sentido discursivo. A memória interdiscurso, como defini- dos, excluídos para que não haja um já dito, um já significado mos na análise de discurso é saber discursivo que faz com constituído nessa memória de tal modo que isso tornasse, a par- que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela se consti- tir daí, outros sentidos possíveis. Há faltas (2) e não falhas tui pelo já-dito que possibilita todo dizer. de tal modo que eles não fazem sentido, colocando fora do dis- curso O que poderia ser significado a partir deles e do esqueci- Pois bem, como dissemos no início, sujeito é mento produzido por eles para que novos sentidos aí significas- assujeitado, pois para falar precisa ser afetado pela língua. Por sem. Há, assim, "furos", "buracos" na memória, que são luga- outro lado, para que suas palavras tenham sentido é preciso que res, não em que o sentido se "cava" mas, ao contrário, em que o já tenham sentido. Assim é que dizemos que ele é historicamen- sentido "falta" por interdição. Desaparece. Isso acontece por- te determinado, pelo interdiscurso, pela memória do dizer: algo que toda uma região de sentidos, uma formação discursiva, é fala antes, em outro lugar, independentemente. Palavras já ditas apagada, silenciada, interditada. Não há um esquecimento pro- 64 65duzido por eles, mas sobre eles. Fica-se sem memória. E isto impede que certos sentidos hoje possam fazer (outros) sentidos. to a repressão porque resvala para que, hoje, se considera como Como a memória é, ela mesma, condição do dizível, esses sen- ilegal, indo na direção do que se considera "mobilização soci- tidos não podem ser lidos. al", ilegal, e que, em maio-68, estava absolutamente dentro das espectativas do político. Para observarmos isso basta pensarmos nos sentidos dos nossos "companheiros" de maio-68 trucidados pela tortura e pela Para terminar, eu gostaria de dizer que real histórico repressão militar. Eu vi, em meu silêncio, muitos de meus cole- faz pressão, fazendo que algo irrompa nessa objetividade mate- gas com suas fotos afichadas como perigosos guerrilheiros em rial contraditória (a ideologia). O que foi censurado não desa- pilares da rodoviária de São Paulo toda vez que ia tomar ôni- parece de todo. Ficam seus vestígios, de discursos em suspenso, bus. Eram lidos, vistos, pensados como perigosos terroristas. in-significados e que demandam, na relação com saber Por onde passam os sentidos do terrorismo? Por onde passam discursivo, com a memória do dizer, uma relação equívoca com os sentidos da resistência política de 68? Os sentidos de liber- as margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites. dade? Acontece que estes sentidos excluídos, silenciados não puderam e não podem significar, de tal modo que há toda Eni P. Orlandi uma nossa história que não corresponde a um dizer possível. Não foram trabalhados socialmente, de modo a que pudésse- mos nos identificar em nossas posições. Do mesmo modo ficam sem ser politicamente significados os feitos da tortura e do que resultou dela na nossa política. Toda vez que vamos votar, mes- mo que nem pensemos nisso, o fato de que o Brasil é um país que tortura os dissidentes políticos faz parte de nossa memória e de nossos gestos políticos. E isso não mereceu ainda sua explicitação política (3) Está fora da memória, como uma sua margem que nos aprisiona nos limites desses sentidos. O que está fora da memória não está nem esquecido nem foi traba- lhado, metaforizado, transferido. Está in-significado, de-signi- ficado (4). Em a discursividade política tem seus pontos de tensão nos indícios desses silenciamentos. Hoje, dis- cursos como os do MST, que são uma ruptura no discurso polí- tico neo-liberal, têm dificudade de significar-se nessa margem em que muitos sentidos não podem fazer sentido do político, onde palavras como "movimento" podem significar algo sujei- 66 67BIBLIOGRAFIA CL.HAROCHE, P. HENRY PÊCHEUX (1975) "La couppure saussurienne: langue, langage, discours" in Langages, Larousse, Paris. E.P. ORLANDI (1993) As Formas do , Ed. Unicamp, Campinas. E.P. ORLANDI (1998) "Ética e Significação", trabalho apre- sentado em mesa-redonda da ANPOLL, Campinas. M. PÊCHEUX (1982) "Délimitations, Inversions, Deplacements" in L'Homme et la Société, Paris, trad. Bras. de José Horta Nunes, in Cadernos de Estudos , n°. 19, IEL, Unicamp, 1990. M. PÊCHEUX (1983) de la Mémoire", in Histoire et Linguistique, trad. José Horta Nunes, O Papel da Ed. Pontes, 1999, Campinas. 69NOTAS Uma primeira versão deste texto foi apresentada em Santa Maria (RS), no Colóquio "Utopias e Distopias", em maio de 1998. Agradeço a Amanda Scherer a oportunidade e a convivência com os que estiveram no 1. As teses de Bethania C.S. Mariani, sobre o discurso do Partido Comunista no Brasil (1997), a de Suzy Lagazzi Rodrigues sobre o discurso do Assentamento (1998) e a de Maria Onice Payer sobre memória da língua, na situação da imigração italiana (em curso), trabalham todas elas esses aspectos de cristalização, de apagamento, ou de ruptura e resistência. 2. Estou aqui fazendo uma distinção falha constitutiva e falta por inter- dição que corresponderia, em paralelo, à distinção que faço entre não- sentido (que aponta para o sentido que poderá vir, o irrealizado) e o sem-sentido (o que já significou e que não faz mais sentido). No caso, a falha é o lugar do possível, do sentido a vir; e a falta, é o que foi tirado do sentido, o que não pode significar. Essas formas se indistinguem e, na maior parte das vezes, não é fácil separá-las. E está aí justamente, do ponto de vista da ideologia, a eficácia de seus efeitos. 3. Mais recentemente, há referências públicas à tortura, mas que permane- cem à margem, como acasos sem história, violência que não aparece como parte da política mas à parte dela. Transferida para a polícia. 4. Conferir a respeito da falta de trabalho da memória, da dificuldade de dizer, de se identificar e de transferir (metaforizar) sentidos que se pode perceber na falta de palavras, na tensão dos gestos, dos olhares e do silêncio constrangido (e constrangedor para nós cidadãos brasileiros...) dos corpos o filme "15 Filhos": a imaterialidade da morte (sob tortura, fabricam-se os desaparecidos, a morte fica sem corpo...) é a imaterialidade da vida diz um dos, ou melhor, uma das filhas. 71

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