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1a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL À BÍBLIA
MÓDULO l: INSPIRAÇÃO BÍBLICA
1a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL À BÍBLIA
MÓDULO II: O CÂNON BÍBLICO
1a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL À BÍBLIA
MÓDULO III: HISTÓRIA DO TEXTO SAGRADO
1a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL À BÍBLIA
MÓDULO IV: INTERPRETAÇÃO1 DO TEXTO
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
1ª SUBETAPA: INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
MÓDULO l: INTRODUÇÃO GERAL AOS EVANGELHOS
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
1ª SUBETAPA: INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
MÓDULO II: EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
1ª SUBETAPA: INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
MÓDULO III: EVANGELHO SEGUNDO MARCOS
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
1ª SUBETAPA: INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
MÓDULO IV: EVANGELHO SEGUNDO LUCAS
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
1ª SUBETAPA: INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
MÓDULO V: EVANGELHO SEGUNDO SÃO JOÃO
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
2a SUBETAPA: OS ATOS DOS APÓSTOLOS
MÓDULO ÚNICO: OS ATOS
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO I: A PESSOA E A OBRA DE PAULO
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO II: AS DUAS CARTAS AOS TESSALONICENSES
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO III: A EPÍSTOLA AOS GÁLATAS
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO IV: A PRIMEIRA EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO V: A SEGUNDA EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO VI: A EPÍSTOLA AOS ROMANOS
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO VII: AS EPÍSTOLAS DO CATIVEIRO (I)
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO VIII: AS EPÍSTOLAS DO CATIVEIRO (II)
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO IX: AS EPÍSTOLAS PASTORAIS
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO X: A EPÍSTOLA AOS HEBREUS
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
4a SUBETAPA: AS EPÍSTOLAS CATÓLICAS (I)
MÓDULO l:Tg e 1/2/3 Jo
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
4a SUBETAPA: AS EPÍSTOLAS CATÓLICAS (II)
MÓDULO II: 1/2Pd, Jd
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
5a SUBETAPA: O APOCALIPSE
MÓDULO ÚNICO: O Apocalipse
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
1a SUBETAPA: OS LIVROS HISTÓRICOS
MÓDULO l: O Pentateuco
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
1a SUBETAPA: OS LIVROS HISTÓRICOS
MÓDULO II: O livro de Josué
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
1a SUBETAPA: OS LIVROS HISTÓRICOS
MÓDULO III: Os livros dos Juízes e de Rute
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
1a SUBETAPA: OS LIVROS HISTÓRICOS
MÓDULO IV: Os livros de Samuel
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
1a SUBETAPA: OS LIVROS HISTÓRICOS
MÓDULO V: Os livros dos Reis
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
1a SUBETAPA: OS LIVROS HISTÓRICOS
MÓDULO VI: A obra do Cronista (1/2 Cr, Esdr, Ne)
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
1a SUBETAPA: OS LIVROS HISTÓRICOS
MÓDULO VII: Tobias, Judite, Ester
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
1a SUBETAPA: OS LIVROS HISTÓRICOS
MÓDULO VIII: Os livros dos Macabeus
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
2a SUBETAPA: OS LIVROS SAPIENCIAIS
MÓDULO l: O livro de Jó
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
2a SUBETAPA: OS LIVROS SAPIENCIAIS
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
2a SUBETAPA: OS LIVROS SAPIENCIAIS
MÓDULO III: Eclesiastes e Cântico
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
2a SUBETAPA: OS LIVROS SAPIENCIAIS
MÓDULO IV: Sabedoria e Eclesiástico
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: OS LIVROS PROFÉTICOS
MÓDULO I: Os Profetas. Isaías
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: OS LIVROS PROFÉTICOS
MÓDULO II: Os escritos de Jeremias e Baruc
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: OS LIVROS PROFÉTICOS
MÓDULO III: Ezequiel e Daniel
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: OS LIVROS PROFÉTICOS
MÓDULO IV: Os profetas menores
4a ETAPA: EXEGESE DE TEXTOS SELETOS
MÓDULO I: O Hexaémeron
4a ETAPA: EXEGESE DE TEXTOS SELETOS
A pré-história bíblica (II)
MÓDULO II: As origens
4a ETAPA: EXEGESE DE TEXTOS SELETOS
A pré-história bíblica (III)
MÓDULO III: A queda original
4a ETAPA: EXEGESE DE TEXTOS SELETOS
A pré-história bíblica (IV)
MÓDULO IV: Caim e Abel, Cainitas, Setitas e Semitas
4a ETAPA: EXEGESE DE TEXTOS SELETOS
A pré-história bíblica (V)
MÓDULO V: O Dilúvio Bíblico
4a ETAPA: EXEGESE DE TEXTOS SELETOS
A pré-história bíblica (VI)
MÓDULO VI: Os setenta povos. Babel
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
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Prezado cursista,
Hoje é colocado em suas mãos o início de um Curso Bíblico por Correspondência. É uma
graça de Deus, pois lhe possibilitará mais penetrante compreensão da Palavra Sagrada. A fim de
que o seu estudo seja eficaz, sugerimos-lhe:
1) Utilize uma tradução moderna da Bíblia feita a partir dos originais. Utilize mapas
bíblicos.
2) Consulte todos os textos bíblicos citados em cada lição. Assim você terá a ocasião de
conhecer melhor as Escrituras.
3) Siga as pistas de aprofundamento que são insinuadas ou indicadas em cada lição. Um
curso por correspondência é sempre sucinto; indica pontos de partida para ulteriores estudos.
4) Esteja atento ao modo de citar a Bíblia indicado no verso desta folha. Caso contrário,
poderá haver citações ambíguas ou incompreensíveis.
5) Escreva-nos, se tiver dúvidas ou observações a nos propor.
E que Deus ilumine sua caminhada!
Atenciosamente
Pe. Estêvão Tavares Bettencourt O. S. B.
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
Prezado cursista,
É-lhe entregue uma tabela cronológica. Contém a espinha dorsal da história da
salvação. Procure
guardar na memória as suas principais datas, como você guarda as da história do Brasil (1500,
1792,
1822, 1889...). Sem o referencial à história de Israel, você mal poderá conhecer o Antigo e o
Novo
Testamento.
Procure folhear ao máximo o texto sagrado. Consulte todas as passagens bíblicas
citadas; assim
você irá conhecendo o Livro Sagrado. Sem revolver muito a Bíblia, você não a penetrará.
Com o tempo, você poderá fazer sua tabela cronológica própria, ampliando a que você
agora tem
nas mãos, acrescentando novos nomes, novas fontes, dados paralelos da história universal, etc.
Procure
crescer, melhorar e se aperfeiçoar sempre mais.
A Redação
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
LÉXICO BÍBLICO
Na elaboração de nossas aulas, resolvemos adotar uma linguagem acessível ao grande público, mas
enriquecida por vocábulos técnicos, específicos do linguajar exegético bíblico. Tais vocábulos são, por
vezes, insubstituíveis; daí a necessidade de utilizá-los. Conhecê-los exigirá do estudioso um certo esforço,
esforço, porém, bem compensado. Eis porque publicamos a seguir, um pequeno Vocabulário ou Léxico
bíblico, que poderá valorizar a cultura bíblica de nossos leitores e servirá de instrumental paramas dois
terços do mesmo foram reencontrados numa sinagoga do Cairo em 1896 e 1931;
outros fragmentos ainda foram descobertos nas grutas de Qumran e Massadá
(N.O. do Mar Morto). Todavia o texto grego continua sendo o oficial canônico.
O conhecimento das línguas bíblicas por parte dos estudiosos é de grande
importância, pois cada qual tem seu gênio e suas particularidades. O comum dos
leitores da Bíblia não precisa de conhecer essas línguas estrangeiras, mas deve
utilizar boas traduções da S. Escritura e estar alerta para os possíveis semitismos
e particularismos da linguagem sagrada. Vejamos algumas peculiaridades desses
idiomas:
a) O hebraico era escrito somente com consoantes, sem vogais, até o
século VII d. C. Isto quer dizer que o leitor devia mentalmente colocar as vogais
entre as consoantes das palavras hebraicas: visto que podia enganar-se,
compreende-se que no texto hebraico antigo haja oscilações, como as haveria em
português se quiséssemos completar com vogais o grupo l m; poderíamos ler
lama, leme, lume, lima, alma... Em hebraico, por exemplo, q r n pode ser lido
como qaran ( = brilhar) e qeren ( = chifre); por isto Moisés, que tinha o rosto a
brilhar (qaran), é representado na arte ocidental com dois chifres (qeren), visto
que S. Jerônimo leu qeren em lugar de qaran em Ex 34,29s. Mais: o hebraico
era pobre em vocabulário, de modo que, por exemplo, a mesma palavra ah podia
significar irmão e primo ou parente (ver Mc 6,3; Gn 13,8; 29,12-15; 31,23; 1
Cr 23,21-23); bekor podia significar primogênito e bem-amado (ver Lc 2,7 e
Zc 12,10s). Além disto, notemos que o hebraico não tinha termos de
comparativo e superlativo; por isto o versículo: "Muitos são chamados, mas
poucos os escolhidos" (Mt 22,14) deve ser traduzido por "maior é o numero dos
que são chamados (à fé); menor é o numero dos que chegam à vida definitiva",
podendo a diferença entre maior e menor, no caso, ser muito pequena. O
superlativo era expresso mediante um genitivo: assim o Cântico dos Cânticos ( =
o mais belo dos Cânticos), o Santo dos Santos (= o lugar mais santo); os céus
dos céus (= o mais alto dos céus)... O hebraico escrevia os números utilizando
consoantes; visto que estas podiam ser muito semelhantes e confundidas entre si,
podia haver dificuldades para lê-las - o que originava confusão na indicação dos
números nos livros sagrados. Mais: o hebraico não separava as palavras entre si -
costume este que viria a ser fonte de erros na transmissão do texto sagrado.
A escola de rabinos (= mestres) judeus que instituiu a vocalização do
texto hebraico da Bíblia é dita "dos massoretas" (massorá = tradição,
provavelmente). Fizeram bom trabalho aos poucos, entre o século VII e o século
X d. C. O texto hoje utilizado com vogais é chamado "Massorético" (M).
b) O aramaico, muito semelhante ao hebraico, tornou-se a língua
adotada pelo povo judeu a partir do século V a. C. Foi a língua falada por Jesus
Cristo, O hebraico, aos poucos, ficou sendo apenas o idioma usado no culto
divino.
c) O grego era língua de um povo inteligente. Na Bíblia aparece
impregnado de semitismos, pois foi utilizado por escritores hebreus. Tenhamos
em vista o vocábulo cálice, que designa "sorte" (Mt 20,22; 26,39); caminho, que
significa "doutrina, escola" (At 9,2; 18,25s; 19,9.23) ; língua, que significa
"nação" (Ap 5,9).
Os manuscritos gregos da Bíblia mais antigos apresentam letras trocadas
(eram semelhantes umas às outras, como também o são em português), muitas
palavras escritas abreviadamente, falta de pontuação - o que dificultou a
transmissão do texto sagrado por meio dos copistas da antiguidade.
Os escritores antigos não dividiam o texto sagrado em capítulos e
versículos. Os cristãos, porém, sentiram a necessidade de dividi-lo para poder
citá-lo e utilizá-lo na Liturgia; nos primeiros séculos assinalavam, por exemplo,
o trecho "a respeito dos magos" (= Mt 2,1-12),..."a respeito das crianças
assassinadas" (= Mt 2,13-18),... "a respeito da siro-fenícia" (- Mc 7,24-30)...
Eusébio de Cesaréia (†340) dividiu o texto dos quatro Evangelhos em 1162
capítulos (Mt 355, Mc 233, Lc 342, Jo 232). Na Idade Média, o arcebispo
Estêvão Langton, de Cantuaria († 1228), distribuiu o texto latino do Antigo e do
Novo Testamento em capítulos; esta divisão foi introduzida no texto hebraico do
Antigo Testamento e no texto grego dos LXX e do Novo Testamento. Está até
hoje em uso.
A divisão dos capítulos em versículos como atualmente a temos data do
século XVI. Santes Pagnino de Lucca († 1541) dividiu o Antigo e o Novo
Testamento em versículos numerados; este trabalho ficou sendo definitivo para o
Antigo Testamento. Roberto Estêvão, tipógrafo francês, refez a distribuição do
Novo Testamento em versículos no ano de 1551; é a que hoje em dia se utiliza,
embora tenha suas imperfeições; assim, por exemplo, Mt 19,30 deveria ser o
inicio do capitulo 20 de Mateus, pois o mesmo refrão ("os últimos serão os
primeiros e os primeiros serão os últimos") volta em Mt20,16, enquadrando a
parábola dos trabalhadores da vinha (Mt 20,1-15); notemos também que Gl 5,1a
deveria ser, conforme a lógica do pensamento, a conclusão de Gl 4,31.. -
Também a pontuação, que faltava nos autógrafos, foi sendo colocada
pelos copistas e intérpretes do texto sagrado nem sempre com muito acerto;
consideremos os casos de Jo 1,3s; 7,37s; Gl 4,31-5,1...
O material utilizado para escrever era papiro (junco cortado em tiras) ou
pergaminho (couro de animais). Este material era caro e raro, de modo que
pouco se escrevia na antiguidade; o ensinamento era feito por via oral mediante
recursos mnemotécnicos, que procuravam dar cadência à frase, para que se
gravasse melhor na memória; nos livros bíblicos encontram-se ecos escritos
desse cadenciamento; cf. Mt 5,21.27.31.33.38.43; 6,2-6 16-18... Dada a
fragilidade do papiro e do pergaminho, entende-se que não se tenha conservado
nenhum dos autógrafos (textos saídos das mãos dos autores sagrados) da Bíblia.
Todavia, se os autógrafos se perderam e só temos cópias dos mesmos, podemos
crer que se tenha conservado o teor original da Bíblia? - É o que veremos a
seguir
Lição 2: História do texto hebraico do Antigo Testamento
Sabe-se que nos séculos anteriores a Cristo o texto hebraico do Antigo
Testamento oscilava muito. Isto se compreende bem desde que se tenha em vista
a maneira como se escrevia antigamente: falta de vogais, ocasiões múltiplas de
confundir letras e números.
Todavia a partir dos séculos I/II d. C. a difusão dos escritos cristãos
(Evangelhos, epístolas...) obrigou os judeus a cuidar da forma do texto bíblico;
os cristãos argumentavam a favor de Cristo utilizando passagens do Antigo
Testamento. Julga-se que no século II d. C. já havia quase um texto oficial do
Antigo Testamento entre Judeus; é o que insinuam as traduções gregas de
Áquila, Símaco e Teodocião então realizadas; supõem um arquétipo hebraico
mais ou menos fixo ou constante.
Nos séculos VII -X, entre 650 e 1000 d. c., os massoretas fixaram o
texto, colocando-lhe as vogais. Verifica-se hoje, mediante apurados estudos de
lingüística, rítmica e literatura orientais, que as opções feitas pelos massoretas
eram autênticas.
Quanto aos manuscritos, notemos que até 1947 não possuíamos cópias
do texto hebraico anteriores aos séculos IX/X depois de Cristo. Naquela data,
porém, foram descobertos os manuscritos de Qumran, a N. O. do Mar Morto,
que datam dos séculosI a. C. e I d. C. Foi possível assim recuar mil anos na
história da tradição manuscrita; verificou-se então que há identidade entre os
manuscritos medievais e aqueles de Qumran - o que quer dizer que o texto se foi
transmitindo fielmente através dos séculos. Os judeus muito estimavam a sua
literatura sagrada a ponto de não permitirem que se deteriorasse gravemente.
Hoje em dia existem edições criticas do texto hebraico do Antigo
Testamento, como a de Rudolf Kittei, que permitem ao estudioso confrontar
entre si as fontes do texto e certificar-se de que está lidando com a face autêntica
do texto do Antigo Testamento.
Lição 3: A história do texto grego do Novo Testamento
Existem hoje mais de cinco mil cópias manuscritas do Novo Testamento
datadas dos dez primeiros séculos. Algumas são papiros, que remontam aos
séculos II/III. O mais antigo de todos é o papiro de Rylands, conservado em
Manchester (Inglaterra); data de 120 aproximadamente e contém os versículos
de Jo 18,31 -33.37.38; se consideramos que o Evangelho segundo João foi
escrito por volta de 100, verificamos que dele temos um manuscrito que é, por
assim dizer, cópia do autógrafo.
A multidão de cópias do Novo Testamento, apresenta, sem dúvida,
numerosas variantes na transmissão do texto: cerca de 200.000. Todavia trata-se,
em geral, de oscilações meramente gramaticais ou sintáticas: diferenças na
grafia, colocação ou omissão de artigo, de preposição, de advérbio... diferenças
estas que não alteram a substância do texto. Os estudiosos concluem que, em
vista do grande número e da antiguidade dos manuscritos do Novo Testamento, é
possível reconstituir a face autêntica do mesmo, de modo a não deixar dúvidas
sobre a fidelidade do texto que hoje utilizamos. Damos, a seguir, alguns
exemplos de oscilações dos manuscritos. A mais importante é a de 1Cor 15,51,
onde se poderia ler: "Nem todos morreremos, mas todos seremos transfigurados"
ou "morreremos todos, mas não seremos todos transfigurados". Pois bem; a
consulta dos manuscritos mais antigos e abalizados leva a ler com toda a
segurança: "Nem todos morreremos, mas..." (São Paulo julgava que quem
estivesse vivo no dia da segunda vinda de Jesus, não morreria; ver 1Ts 4,16s
e2Cor5,1-4). Outras variantes são as de Lc 22,43s (alguns copistas quiseram
eliminar a notícia do suor de sangue de Jesus, mas os melhores manuscritos a
afirmam); Jo 5,3s (parece que, segundo a boa tradição, se deve omitir o vers. 4
com a noticia de que um anjo agitava a água da piscina de Betesda); 1Jo 5,7s (a
referência ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo foi acrescentada tardiamente, ou
seja, por ocasião das controvérsias sobre a SS. Trindade no século IV); Mc 1,1
(os bons manuscritos atestam "Jesus Cristo, Filho de Deus"); Mt 1,16 (leia-se
"José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo", e não, como
atesta somente uma tradução síria: "José, com o qual estava desposada a virgem
Maria, gerou a Jesus"). - Estes exemplos, que são dos mais significativos, bem
mostram que não foi alterada a autenticidade substancial do texto do Novo
Testamento.
Os manuscritos do Novo (e também do Antigo) Testamento encontram-se
atualmente em diversas bibliotecas de Paris, Londres, Berlim, Leningrado,
Madrid, Vaticano...; podem ser consultados por qualquer pesquisador. Os
manuscritos bíblicos são patrimônio da humanidade e não pertencem apenas à
Igreja Católica.
Existem também edições criticas do Novo Testamento, preparadas tanto
por católicos como por protestantes; põem ante os olhos do leitor as principais
variantes dos manuscritos e o grau de autoridade que possuem. Tenha-se em
vista a edição de Kurt Alland, devida a uma comissão mista de católicos e
protestantes e que é a melhor no gênero
Apêndice: As traduções dos LXX e da Vulgata
Quem utiliza uma boa edição brasileira da Bíblia, encontra nela
referências às traduções dos LXX e da Vulgata. Daí a necessidade de
abordarmos também estes termos.
Os LXX
Os judeus se estabeleceram na cidade de Alexandria (Egito) nos séculos
IV/III a. C., lá constituindo próspera colônia. Adotaram a língua grega, de modo
que tiveram a necessidade de traduzir a Bíblia do hebraico para o grego - o que
foi feito devagar entre 250 e 100 a. C. Chama-se esta "a tradução alexandrina da
Bíblia". A lenda, porém, diz que esta tradução teve origem milagrosa, a saber: o
rei Ptolomeu II Filadelfo (285-247 A. C.), querendo possuir na sua biblioteca um
exemplar grego dos livros sagrados dos judeus, terá pedido ao sumo sacerdote
Eleázaro de Jerusalém os tradutores respectivos. Eleázaro terá enviado seis
sábios de cada uma das doze tribos de Israel (portanto, 72 sábios) para
Alexandria; estes terão sido encerrados em 72 cubículos isolados e, não obstante,
haverão produzido o mesmo texto grego do Antigo Testamento - o que só podia
ser milagre. Esta lenda, hoje bem reconhecida como tal, fez que a tradução
alexandrina fosse também chamada "dos Setenta Intérpretes". É importante,
porque nos refere o modo como os judeus liam a Bíblia nos séculos III/II a. C.
A Vulgata
Entre os cristãos do Ocidente, havia no século IV tantas traduções latinas
da Bíblia que os leitores se viam confusos a respeito. Foi por isto que o Papa São
Dâmaso (366-384) pediu a S. Jerônimo fizesse uma revisão dessas traduções. S.
Jerônimo revisou o texto grego do Novo Testamento e traduziu o hebraico do
Antigo Testamento, dando à Igreja um texto latino que logo se propagou e foi
chamado "Vulgata latina" (forma di-vulgada latina). -A Vulgata de S. Jerônimo
gozou de grande autoridade até o Concilio do Vaticano II; hoje em dia existe a
Neo-Vulgata, tradução latina dos originais realizada com mais recursos
lingüísticos e arqueológicos do que a Vulgata de S. Jerônimo.
Para aprofundamento;
VAN DEN BORN, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, verbetes
"Qumran", "Bíblia", "Manuscritos", "Bíblia, Texto da B.", "Setenta",
"Vulgata".
SCHARBERT, JOSEF, O mundo da Bíblia. Ed. Vozes, Petrópolis 1965.
ARENHOEVEL, DIEGO, Assim se formou a Bíblia. Ed. Paulinas 1978.
LOHF INK, GERHARD, Agora entendo a Bíblia. Ed. Paulinas 1978.
MANNUCCI, VALERIO, Bíblia, Palavra de Deus. Curso de
Introdução à Sagrada Escritura. Ed. Paulinas, São Paulo 1966.
JÚLIO TREBOLLE BARRERA, A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã. Ed.
Vozes 1996
* * *
PERGUNTAS
1) Quais são as línguas bíblicas e suas características?
2) De quando data a divisão do texto bíblico em capítulos e versículos?
3) Existem os autógrafos (textos escritos pelas mãos dos autores sagrados)?
Por quê?
4) Quem são os Massoretas?
5) Pode-se admitir a autenticidade do texto do Antigo Testamento hoje
divulgado em hebraico e nas diversas traduções?
6) Que houve de importante em Qumran? Quando?
7) Pode-se admitir a autenticidade do Novo Testamento hoje divulgado em grego
e nas diversas traduções?
8) Há variantes importantes na transmissão do texto? Exponha.
9) Diga o que é a tradução dos LXX.
10) Exponha o que são a Vulgata e a neo-Vulgata.
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
1a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL À BÍBLIA
MÓDULO IV: INTERPRETAÇÃO1 DO
TEXTO
Lição 1: Livro humano e divinoNas lições sobre a inspiração bíblica dizia-se que a S. Escritura é, toda ela, Palavra de
Deus feita palavra do homem. Disto se segue uma verdade muito importante: para entender a
Escritura, duas etapas são necessárias: o reconhecimento da sua face humana, para que,
depois, possa haver a percepção da sua mensagem divina. É impossível penetrarmos no
conteúdo salvífico da Palavra bíblica se não nos aplicamos primeiramente à análise da roupagem
humana de que ela se reveste. Isto quer dizer: não se pode abordar a S. Escritura somente em
nome da "mística", procurando ai proposições religiosas pré-concebidas; é preciso um pouco de
preparo ou de iniciação humana para perceber o sentido religioso da Bíblia. Doutro lado, não se
podem utilizar apenas os critérios científicos (lingüísticos, arqueológicos...) para entender a
Bíblia; é necessário, depois do exame científico do texto, que o leitor procure o significado
teológico do mesmo.
1 - Interpretação quer dizer "explicação, comentário" (Aurélio). Em grego a arte de interpretar é
dita "HERMENÊUTICA".
Examinemos mais detidamente cada qual das duas etapas acima assinaladas.
Lição 2: Livro humano
1. A Bíblia não é um livro caído do céu, mas um livro que passou por
mentes humanas de judeus e gregos existentes numa faixa de tempo que vai do
séc. XIV a. C. ao século I d.C.
Por conseguinte, o primeiro cuidado do bom intérprete é o de tomar
conhecimento da face humana da Bíblia mediante recursos científicos, a fim de
poder averiguar o que os autores bíblicos queriam dizer mediante as suas
expressões.
Isto não quer dizer que todo leitor da Bíblia deva ser um intelectual,
perito em línguas, história e geografia do Oriente, mas significa que
- é necessário usar uma tradução vernácula feita a partir dos originais
segundo bons critérios científicos;
- é preciso que o leitor procure uma iniciação no livro que está para ler, a
fim de conhecer o gênero literário, as expressões características, a finalidade, o
fundo de cena de tal livro. Podem bastar as páginas introdutórias que as boas
edições da Bíblia trazem; às vezes, porém, requer-se um livro ou um curso de
introdução na Bíblia (há livros e cursos de diversos graus, para as diversas
exigências do público);
- é preciso ter certo senso critico diante das múltiplas interpretações da
Bíblia que circulam. Com efeito; faz-se mister perguntar sempre: têm
fundamento no texto original da S. Escritura? Ou são a expressão de teses do
intérprete que não são as teses do autor sagrado?
Demos alguns exemplos:
1) Em Ap 13,18 lê-se que o número da besta é 666. Isto quer dizer que o
leitor tem que procurar um nome de homem cujas letras (dotadas de valor
numérico) perfaçam o total de 666. Tal procura tem que ser efetuada no
ambiente histórico e geográfico de S. João e dos primeiros leitores do
Apocalipse; teremos que indagar na Ásia Menor e no século I da era cristã que
personagem poderia ser esse. A conclusão mais provável é que se trata do
Imperador Nero (54-68), primeiro perseguidor da Igreja, cujos feitos malvados
os cristãos ainda estavam experimentando no fim do século I; São João deve ter
intencionado revelar discretamente esse nome aos seus leitores, a fim de lhes
dizer que o perseguidor pereceria. Por conseguinte, é despropositado dizer que o
Papa é a besta do Apocalipse, porque (assim afirmam sem fundamento) traz na
cabeça a inscrição "VICARIUS FILII DEI"; São João e os primeiros leitores do
Apocalipse não sabiam latim, que ainda era urna língua ocidental quando tal
livro foi escrito; não adiantaria aos leitores propor-lhes um nome que eles não
pudessem perceber através da linguagem cifrada de Ap 13,18.
Outro exemplo: quando as traduções vernáculas falam de irmãos de
Jesus, não usam esta expressão no sentido moderno, mas no sentido semita de
parente, familiar. A Bíblia está cheia de exemplos do uso de irmão (ah) para
designar tio e sobrinho (cf. Gn 13,8; 29,15), primos (1Cr 23,21s), familiares (Lv
10,4; 2Sm 19,12s).
Ainda mais: quando as traduções vernáculas da Bíblia falam de "sábado",
têm em vista não o que nós entendemos em português por sábado, mas o que os
hebreus entendiam por shabat e sheba = sétimo (dia) e repouso. Em
conseqüência, os cristãos, no seu serviço a Deus, não têm a obrigação de ficar
presos ao dia que o português chama sábado, e o inglês chama saturday (dia de
Saturno), mas compreenda que observar o sábado é observar todo sétimo dia
mediante repouso sagrado.
2) A partir de quanto foi dito, também se compreende que a interpretação
de certos textos da Bíblia tenha mudado nos últimos decênios. Neste período,
sim, foram descobertos alfabetos, peças literárias e monumentos arqueológicos
de povos orientais vizinhos do povo judeu. Foi possível, então, recolocar melhor
a Bíblia no seu ambiente originário, de modo a compreender mais
autenticamente as suas expressões; a interpretação dai decorrente é, por vezes,
diferente da clássica, mas é a interpretação certa. Tenha-se em vista o caso de Gn
1,1-2,4a: hoje é entendido como hino da liturgia judaica que tencionava incutir
muito calorosamente o preceito do repouso no sétimo dia, dando-lhe por
fundamento imaginário o comportamento do próprio Deus, que teria criado tudo
em seis dias e descansado no sétimo; intencionava também relacionar todas as
criaturas com Deus, sem entrar em questões modernas de evolucionismo e
fixismo. - As novas interpretações não alteram o Credo, mas referem-se a pontos
que nunca foram tidos como objeto de fé na Igreja e por isto são sujeitos a
revisão desde que haja motivos plausíveis para isto.
Lição 3: Livro divino
Uma vez entendido o texto bíblico com o instrumental das ciências
humanas que permitem compreender o que o autor sagrado queria significar, faz-
se mister procurar a mensagem teológica do respectivo texto. Como dito, a
mensagem bíblica é, antes do mais, religiosa.
Para perceber essa mensagem teológica, deverá o intérprete levar em
consideração a "analogia da fé" (Rm 12,6), ou o conjunto das verdades da fé, de
modo a nunca atribuir ao texto sagrado uma interpretação destoante das verdades
da fé, mas, ao contrário, entendê-lo segundo as demais proposições da fé. Por
exemplo, as palavras de Jesus "o Pai é maior do que eu" (Jo 14,28) não poderão
ser entendidas como se Jesus fosse simplesmente inferior ao Pai, em desacordo
com a fé, que diz ser Jesus consubstancial ao Pai ou uma só substância com o
Pai (cf. Jo 14,10s; 10,30); será preciso reconhecer que Jesus, como Deus, é igual
ao Pai, mas, como homem, é-lhe inferior.
A "analogia da fé" leva-nos a pensar na igreja e no seu magistério. A
Palavra de Deus escrita não pode ser entendida plenamente senão em
consonância com a Palavra de Deus oral, que é anterior à escrita e que continua a
ressoar viva dentro da Igreja através do magistério desta. É a Igreja, em última
análise, quem nos entrega as Escrituras e nos orienta na interpretação autêntica
das mesmas. Quem assim pensa, evita o subjetivismo arbitrário ("eu acho que...",
"parece-me que..."), subjetivismo ilusório, no qual incorre quem queira praticar a
interpretação da Bíblia segundo critérios pessoais (por mais bem intencionados
que sejam).
O magistério da Igreja não está acima da Escritura, nem é um canal
próprio pelo qual Deus revelaria novas verdades aos homens, mas é
simplesmente a expressão genuína da Tradição oral, que berçou a Tradiçãoescrita (Bíblia) e que jamais poderá ser separada desta.
Apêndice: Tipo e acomodação
Na Escritura, Deus nos fala não somente por palavras, mas também por
pessoas, coisas e fatos, que são imagens ou tipos de realidades futuras. Assim ele
quis fazer do primeiro Adão um esboço ou uma figura (tipo) do segundo Adão,
Jesus Cristo, conforme Rm 5,14; o primeiro Adão, qual homem compendioso,
recapitula toda a humanidade, como Jesus Cristo a recapitula. Melquisedec (Gn
14,17-20) também é figura de Cristo, conforme Hb 7,1-25; o cordeiro de Páscoa
(cf. Ex 12,1-14) é figura de Cristo, conforme 1Cor 5,7; a serpente de bronze
igualmente, segundo Jo 3,14s; cf. Nm 21,4-9... Quando as Escrituras do Novo
Testamento apontam trechos do Antigo Testamento, como portadores de figuras,
diz-se que tais textos têm sentido típico.
Outra coisa é a acomodação de textos bíblicos, que ocorre
freqüentemente na prática dos cristãos. Imaginemos que a S. Escritura nos
apresente determinado sujeito (S) com algum predicado (P): "A sabedoria (S) é a
mãe do belo amor, do temor, do conhecimento e da esperança" (Eclo 24,18). Ora
o leitor vê, no seu mundo cristão, um sujeito (Sl) semelhante ao sujeito bíblico
(S), ao qual podem convir os predicados atribuídos pela Bíblia a S; então faz a
acomodação ou a adaptação de tais predicados a S1 ... Se, por exemplo, me
parece que Maria, por ser a sede da Sabedoria Divina, pode ser dita também
"Mãe do belo amor... e da esperança", faço a acomodação do Eclo 24,18 a Maria.
Os próprios autores bíblicos fizeram tais acomodações; por exemplo, S. Paulo
em Rm 10,15.18 faz a acomodação, aos Apóstolos, de textos que não visavam
diretamente aos Apóstolos (cf. Is 52,7 e SI 18,5).
Os cristãos costumam fazer acomodação ou adaptação de textos bíblicos
aos fatos da sua vida cotidiana. Tal procedimento pode ser válido, se de fato há
semelhança entre o sujeito bíblico e o sujeito não bíblico (entre Jeremias
desolado, por exemplo, em Jr 15,18, e o cristão perseguido); mas será
condenável, se servir para brincadeiras ou aplicações irreverentes da Bíblia
(como às vezes ocorrem nos cartazes de publicidade, no rádio e na televisão).
Para aprofundamento deste estudo, sugere-se:
VAN DEN BORN, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, verbete "Bíblia,
Interpretação". Ed. Vozes, Petrópolis 1971.
LOHFINK, A., Agora entendo a Bíblia. Ed. Paulinas 1978.
SCHARBERT, JOSEF, O mundo da Bíblia. Ed. Vozes, Petrópolis 1969.
Introdução à Sagrada Escritura. Ed Vozes, Petrópolis 1980.
ARENHQEVEL, DIEGO, Assim se formou a Bíblia. Ed. Paulinas 1978.
PERGUNTAS
1) Que entende por "a Bíblia é livro humano e divino"?
2) Todas as traduções da Bíblia são igualmente valiosas?
3) Posso entender a Bíblia sem alguma introdução na mesma?
4) Dê alguns exemplos de como não se deve entendera Bíblia.
5) Qual a função da Igreja na interpretação da S. Escritura?
6) Que é "analogia da fé" (Rm 12,6)?
7) Que é um tipo bíblico?
8) Que é uma acomodação bíblica?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
1ª SUBETAPA: INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
MÓDULO l: INTRODUÇÃO GERAL AOS
EVANGELHOS
Lição 1: Generalidades
1. A palavra "Evangelho" vem do grego "evangélion", o que significa
"Boa Notícia".
Entre os cristãos, este vocábulo passou a designar a mensagem de Jesus
Cristo, "aquilo que Jesus fez e disse" (At 1,1). Dai fez-se a expressão
"Evangelho de Cristo", que significa o Evangelho pregado por Jesus Cristo e a
mensagem que Ele nos trouxe da parte do Pai.
O Evangelho, segundo a linguagem do Novo Testamento, é mais do que
uma doutrina; é força renovadora do mundo e do homem; produz uma nova
criação, como se deduz das palavras de Jesus: "Ide e anunciai a João o que
ouvistes e vistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são curados, os
surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados" (Mt 11,4-
6). O membro final da frase "os pobres são evangelizados" resume os
antecedentes: o Evangelho, levado a todos os carentes, implica a instauração de
nova ordem de coisas; o homem ferido pelo pecado é redimido deste e das
conseqüências deste, das quais a mais grave é a morte (ver penúltimo membro da
frase citada).
2. A Igreja reconhece quatro narrações do Evangelho ou quatro
Evangelhos canônicos: os de Mateus, Marcos, Lucas e João. Destes, os três
primeiros são chamados "sinóticos" porque podem ser lidos em sinopse ou em
três colunas paralelas; o quarto Evangelho segue roteiro assaz diferente do dos
anteriores.
Existem também Evangelhos apócrifos (de Tomé, Tiago, Nicodemos...),
que a consciência cristã não reconheceu como Palavra de Deus; contêm traços de
história e verdade, - ao lado de seções fantasiosas e heréticas. Quem compara o
texto dos apócrifos com o dos Evangelhos canônicos, verifica que aqueles são
exuberantes, tendentes a mostrar um "Jesus maravilhoso", ao passo que os
Evangelhos canônicos são muito sóbrios; não precisam de "ornamentar" a figura
de Jesus, porque o sabem aceito por seus leitores.
3. Os Evangelhos são simbolizados pelos animais descritos em Ez 1,10 e
Ap 4,6-8: o leão (Mc), o touro (Lc), o homem (Mt), a águia (Jo). A tradição
cristã adaptou esses símbolos aos autores sagrados levando em conta o inicio de
cada Evangelho: visto que Mateus começa apresentando a genealogia de Jesus, é
simbolizado pelo homem; Marcos tem início com João Batista no deserto,...
deserto que é tido como morada do leão; Lucas se abre com Zacarias a sacrificar
no templo; por isto é simbolizado pelo vitelo, vitima do sacrifício; João começa
apresentando o Verbo preexistente que se fez carne, à semelhança de uma águia
que voa muito alto para, depois, dar o bote na terra. Esta atribuição de símbolos
aos evangelistas não se deve aos autores de Ez e do Ap, mas é obra de escritores
cristãos dos séculos II/IV.
Lição 2: De Jesus ao texto dos Evangelhos
Sabemos que Jesus pregou entre 27 e 30 sem nada deixar por escrito. Também não mandou os
Apóstolos escreverem; conseqüentemente, o Evangelho foi primeiramente anunciado de viva
voz, e só aos poucos consignado por escrito. Há, pois, um intervalo de 20, 30 ou mais anos entre
Jesus e o texto definitivo dos Evangelhos. Depois de muito estudar o texto sagrado e a história
da Igreja nascente, os bons autores (e, com eles, a Igreja na sua Instrução "Sancta Mater
Ecclesia", de 21/04/1964) admitem três etapas nesse período de tempo:
1) De Jesus aos Apóstolos. Jesus pregava a Boa-Nova utilizando
recursos de linguagem dos rabinos, como são as parábolas. Antes de Páscoa, a
compreensão dos ouvintes era lenta; mas depois de Pascoa-Pentecostes, os
Apóstolos, guiados pelo Espírito Santo, penetraram profundamente na
mensagem do Senhor.
2) Dos Apóstolos às comunidades cristãs antigas. A mensagem de
Jesus foi levada de Jerusalém (após Pentecostes) para a Samaria, a Galiléia, a
Síria, a Ásia Menor, a Grécia, Roma... O núcleo da pregação era sempre a vitória
de Jesus sobre o pecado e a morte obtida na Páscoa: a este núcleo se
acrescentavam as narrações de milagres (para comprovar o poder de Jesus), de
parábolas (para manifestar a doutrinade Jesus sob forma de catequese), de
disputas com os fariseus, de profecias, etc. A pregação devia adaptar-se aos
diversos ambientes nos quais ela se realizava, a fim de tornar-se viva e
significativa ou ter seu Sitz im Leben (lugar na vida dos ouvintes). Isto não quer
dizer que a doutrina ia sendo deturpada. Não; os Apóstolos eram muito ciosos da
fidelidade a Jesus e ao passado; não queriam ser senão testemunhas (cf, At
1,8.22; 2,32; 3,15; 5,32; 1029.41; 13,31; 20,24...); sempre que alguma inovação
estranha se quisesse introduzir na mensagem, condenavam-na (cf. Gl 1,8s; 2Ts
2,1s; 1Tm 4,1-3; Tt2,1.8). Ademais sabemos que o Senhor não abandonou sua
mensagem ao bel-prazer dos homens, mas acompanhou-a enviando o Espírito
Santo à Igreja para que orientasse os Apóstolos na fiel pregação do Evangelho.
Este se foi desabrochando homogeneamente, mostrando suas conseqüências na
vida dos fiéis, como a semente se abre homogeneamente, passando a ser grande
árvore, cujas virtualidades são as da própria semente.
Ao propagar-se, a mensagem foi tomando formas literárias diversas,
como a da catequese sistemática, a da oração litúrgica, a da apologética
(destinada a provar a Divindade e a Messianidade de Jesus), a da controvérsia
(destinada a desfazer dúvidas dos ouvintes)...
À medida que iam pregando o Evangelho, os Apóstolos experimentaram
a necessidade de consignar por escrito ao menos algumas partes do mesmo, a
fim de facilitar a aprendizagem dos discípulos. Como a arte de escrever fosse
rara, difícil na antiguidade, a escrita era esporádica: escreviam-se séries de
parábolas, de milagres, de profecias, de ensinamentos, as narrativas da Paixão e
Ressurreição... com fins estritamente didáticos, ou seja, para promover a
transmissão das verdades da fé.
3) Das comunidades cristãs aos Evangelistas. Aos poucos, os cristãos
perceberam a vantagem de compilar num só todo sistemático esses fragmentos
da pregação evangélica. Esta tarefa foi empreendida por diversos discípulos,
como atestava S. Lucas entre 70 e 80: "Muitos se propuseram escrever uma
narração dos fatos que ocorreram entre nós como no-los transmitiram os que
deles foram testemunhas oculares desde o começo e, depois, se tornaram
ministros da Palavra" (Lc 1,1s).
Das diversas compilações assim feitas, quatro foram reconhecidas pela
Igreja como canônicas, ou seja, como autêntica Palavra de Deus: as de Mateus,
Marcos, Lucas e João. Os três primeiros estão em dependência entre si, de
acordo com o seguinte esquema:
Notemos: as datas acima são aproximadas, mas muito prováveis. A
primeira redação do Evangelho deu-se por obra de Mateus na terra de Israel e,
por isto, em aramaico. Esta redação serviu de modelo para Marcos e Lucas, que
utilizaram o esquema mateano, acrescentando-lhe características pessoais. O
texto de Mateus foi traduzido para o grego, visto que o aramaico entrou em
desuso quando Jerusalém caiu em 70; o tradutor, desconhecido a nós, retocou e
ampliou o texto aramaico servindo-se de Mc. Isto quer dizer que o texto grego
de Mateus (único existente, porque o aramaico se perdeu) é, segundo alguns
aspectos, o mais arcaico, e, segundo outros aspectos, o mais recente dentre os
sinóticos.1
1 - Não podemos deixar de mencionar as importantes descobertas do Pe. José O'Callaghan S.
J. Famoso papirólogo, encontrou em Qumran (Palestina) um fragmento manuscrito (7Q5), que deve datar
de 50 a. C. aproximadamente. Após longos estudos desse minúsculo documento, o Pe. O'Callaghan afirma
que apresenta o texto de Mc 6,52s - conclusão esta que vários estudiosos aceitam igualmente. Ora, se a
descoberta é autêntica, deve-se recuar a data de redação de Marcos ou de parte de Marcos para o quarto
decênio do século I (45-50). Isto, sem dúvida, provocará revisão das demais datas de composição do Novo
Testamento. O caso, porém, ainda é discutido.
Lição 3: A fidelidade histórica dos Evangelhos
Muito se tem perguntado se os Evangelhos, resultantes de tal processo,
são o eco fiel da verdade histórica. Há quem diga que, ao passar de instância a
instância antes de ser redigida de modo definitivo, a mensagem foi deturpada.
- Em resposta, ponderemos:
1) A mensagem de Jesus Cristo não se propagou a esmo, ou sem o
acompanhamento dos Apóstolos. Lembremo-nos, por exemplo, de que, "quando
os apóstolos souberam em Jerusalém que a Samaria tinha recebido a palavra de
Deus, enviaram Pedro e João para lá" (At 8,14), a fim de formar a comunidade
respectiva. "Pedro viajava por toda a parte" na terra de Israel, a fim de atender às
necessidades dos cristãos (cf. At 9,32). São Paulo mantinha intercâmbio com as
comunidades da Ásia Menor, da Grécia e de Roma, recebendo mensageiros e
enviando cartas às mesmas, como se depreende do seu epistolário. O mesmo se
diga a respeito de outros apóstolos cujos escritos atestam o zelo pela
conservação íntegra da doutrina de Jesus Cristo: S. Mateus, S. João, S. Judas, S.
Tiago... Vejam-se também At 11,27-29; 15,2; 18,22; 1Cor 16,3; 2Cor 8,14,
textos que mostram o contato constante das novas comunidades com a Igreja-
mãe de Jerusalém.
2) Os Apóstolos tinham consciência de lidar com uma tradição
(parádosis) santa e intocável. Por isto, dizia S. Paulo aos coríntios a propósito
da ressurreição e da Eucaristia: "Eu vos transmiti aquilo que eu mesmo recebi"
(1 Cor 15,3; 11,23). O Evangelho que ele pregava aos gentios, fora autenticado
pelos grandes Apóstolos de Jerusalém (cf. Gl 2,7-9). Em conseqüência, os
tessalonicenses eram exortados a manter a tradição recebida e a afastar-se de
quem não a seguisse (cf. 2Ts 2,15; 3,6). Insiste em que Timóteo transmita o
depósito santo a homens de confiança que sejam capazes de o passar a outros: cf.
2Tm 2,2. É dever fundamental dos ministros de Cristo que sejam fiéis; cf.
1Cor4,1s; 7,25; 1Ts 2,4.
3) Não há dúvida, na Igreja nascente houve tentativas de deteriorar a
mensagem evangélica. São Paulo se refere a fábulas, erros gnósticos, dualistas,
docetistas2..., que ele compreendia sob a palavra grega mythoi, mitos; e cuidou
fortemente de que tais mitos não se mesclassem com a autêntica doutrina de
Cristo chamada lógos, Rm 10,8; Tg 1,22s; a palavra da salvação, At 13,26;... da
verdade, 2Tm 2.15;... de Deus, 1Ts 2,13; 2Tm 2,9; Ti 2,5... da vida, 1 Jo 1,1...
Observemos como São Paulo tem consciência de que mitos não fazem
parte da mensagem evangélica e, por isto, devem ser banidos da pregação: 1Tm
1,4; 4,7; 2Tm 4,4; Tt 1,14; cf. 2Pd1,16.
Donde se vê que não se deve admitir tenha sido a mensagem cristã
penetrada por mitos e confundida com eles.
2 - Erros gnósticos são os que apregoam um conhecimento superior, reservado a homens
espirituais, cuja salvação estaria garantida. Erros dualistas são os que admitem antagonismo entre matéria
e espírito. Erros docetistas são os que negam tenha Jesus assumido realmente a natureza humana.
4) Os muitos erros e desvios ocorridos na pregação da mensagem crista
dos primeiros séculos foram recolhidos na chamada "literatura apócrifa", cujo
estilo é evidentemente imaginoso e fictício. A Igreja teve a assistência do
Espírito Santo para discernir claramente o autêntico e o não autêntico na caudal
de doutrinas propostas aos cristãos dos primeiros decênios.
5) Os mitos todos têm estilo vago, do ponto de vista da cronologia e da
topografia; não podem propor quadro geográfico e histórico preciso; é o que os
isenta de controle. Ora,dá-se o contrário nos Evangelhos; como se verá, a
topografia da Palestina é por estes minuciosamente mencionada; também a
cronologia é assaz exata, como se depreende das menções de César Augusto (Lc
2,1), Tibério César, Pôncio Pilatos, Herodes, Filipe, Lisânias... (Lc 3,1s).
6) Nenhum criador de mitos teria "inventado" o mito do Evangelho,
cujos traços são desafiadores e exigentes para a mente humana: a mensagem de
Deus feito homem e, mais,... crucificado era escândalo para os judeus e loucura
para os gregos (1 Cor 1,23); a promessa de ressurreição ou de reunião da alma
com o corpo era contrária ao pensamento grego; a moral cristã, que valorizava a
mulher, a criança mesmo indesejada, a família, o trabalho manual, o escravo, a
estrita monogamia... só podia encontrar oposição da parte da filosofia greco-
romana.
Donde se vê que a mensagem do Evangelho é de origem divina e não
pode ter sido produto do ficcionismo de judeus ou de pagãos da antiguidade.
Estes dados sumários nos preparam para entrar no estudo de cada
Evangelho em particular.
Para ulteriores estudos, ver
BALLARINI, T., Introdução à Bíblia, vol. IV Ed. Vozes 1972, pp. 67-
105.
BARBÀGLIO, FABRIS, MAGGIONI, Os Evangelhos I e II. Ed. Loyola
1990.
BEA, A., A historicidade dos Evangelhos. Ed. Paulinas 1966.
LAMBIASI Autenticidade histórica dos Evangelhos, Ed. Loyola 1978.
LATOURELLE, R., Jesus existiu? Ed. Santuário 1989.
PIAZZA, W., Os Evangelhos, Documentos da Fé Cristã. Ed. Loyola.
TERRA, J. E. M., Jesus. Ed. Loyoïa1977.
* * *
PERGUNTAS
1) Que significa a palavra Evangelho? Explique
2) Que são Evangelhos canônicos?... sinóticos?... apócrifos'?
3) Como se explicam os símbolos dos quatro evangelistas?
4) Quais as etapas entre Jesus e os escritos evangélicos?
5) O Evangelho segundo Mateus é o mais antigo ou o mais recente?
6) João depende da tradição sinótica? Explique.
7) Qual o significado de Tradição (parádosis) para os Apóstolos?
8) Como se comportavam os Apóstolos diante de mitos na Igreja
nascente?
9) Poderia a mensagem dos Evangelhos ser mero produto da mente
humana?
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2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
1ª SUBETAPA: INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
MÓDULO II: EVANGELHO SEGUNDO
MATEUS
Lição 1: Mateus, autor do 1° Evangelho
1. Mateus, também dito Levi, era publicano ou cobrador de impostos.
Chamado por Jesus, logo deixou tudo; cf. Mt 9,9-13; Mc 2,14-17; Lc 5,27-32.
Nada mais nos dizem os Evangelhos sobre Mateus. Afirmam outras fontes que,
após a Ascensão de Jesus, se dedicou ao apostolado entre os judeus; depois, terá
pregado aos pagãos da Etiópia, onde deve ter morrido mártir.
2. A tradição atribui a Mateus a redação do primeiro Evangelho. Tenha-se
em vista o mais antigo testemunho, que é o de Pápias, bispo na Frigia, datado de
130 aproximadamente: "Mateus, por sua parte, pôs em ordem os logia (dizeres)
na língua hebraica, e cada um depois os traduziu (ou interpretou) como pôde"
(ver Eusébio, Historiada Igreja III 39,16).
Neste texto Pápias designa o primeiro Evangelho como dizeres, "logia",
visto que realmente nesse livro chamam a atenção os discursos de Jesus,
dispostos de maneira ordenada ou sistemática. Este Evangelho, escrito em língua
hebraica ou, melhor, aramaica (já que o hebraico cairá em desuso no séc. VI a.
C.), foi logo por diversos pregadores traduzido para o grego, já que o hebraico só
era usual na terra de Israel. Vê-se, pois, que Mateus escreveu no próprio país de
Jesus, tendo em vista leitores cristãos convertidos do judaísmo.
S. Irineu (†200 aproximadamente) também testemunha: "Mateus compôs
o Evangelho para os hebreus na sua língua, enquanto Pedro e Paulo em Roma
pregavam o Evangelho e fundavam a Igreja" (Adv. haereses III 1,1).
Outros testemunhos poderiam ser citados. Procuremos, porém, no
primeiro Evangelho indícios da personalidade do seu autor.
3. Que diz o texto?
a) Observemos o catálogo dos apóstolos como se acha em Mc 3,16-19;
Lc 6,14-16 e Mt 10,2-4. Verificaremos que os nomes se dispõem em pares; ora,
no quarto par, Mateus vem antes de Tomé, conforme Mc e Lc; mas vem depois
de Tomé, segundo Mt. Note-se ainda que somente em Mt o apóstolo é
mencionado com o aposto "cobrador de impostos" ou "publicano", o que era
pouco honroso para um judeu. Quem terá tratado Mateus dessa maneira se não o
próprio Mateus?
Em Mt 22,19, ao narrar a disputa de Jesus com os fariseus a propósito do
tributo a ser pago a César, Mt usa termos técnicos em grego, que Mc e Lc não
utilizam.
Mt é o único a narrar o episódio do imposto do templo, em Mt 17,24-27,
o que demonstra o interesse do autor pelos tributos. Em conclusão, compreende-
se que, se havia no grupo dos Apóstolos um homem, e um só, habituado à arte
de escrever, calcular e dispor dados, este tenha sido o primeiro indicado (talvez
mesmo pelos outros Apóstolos) para redigir um resumo da catequese pregada
pelos Apóstolos Os outros estavam acostumados à pesca: tinham as mãos mais
adaptadas às redes, aos remos e ao barco do que ao estilete e ao pergaminho.
Lição 2: Mt, Evangelho para os Judeus
1. S. Mateus escreveu para os judeus convertidos ao Cristianismo,
querendo mostrar-lhes que Jesus é realmente o Messias que cumpriu as
profecias.
Esta destinação de Mt se percebe claramente através de um exame do
texto respectivo:
a) O autor supõe que seus leitores conheçam exatamente a língua
aramaica, os costumes dos judeus e a geografia da Palestina, de modo que alude
a esses elementos sem acrescentar alguma explicação. Ao contrário, Marcos e
Lucas, que escreveram para não judeus, tiveram o cuidado de acrescentar a esses
dados o necessário esclarecimento. Vejamos, por exemplo,
Mt 15,1 s e Mc 7,1-5. Ao falar das purificações dos judeus, Marcos abre
longo parêntese para indicar o que isso significa;
Mt 27,62 e Mc 15,42. Marcos explica o que quer dizer parasceve,
vocábulo técnico do ritual judaico;
Lc 8,26 localiza a região dos gerasenos, à qual Mt 8,28 alude
brevemente.
b) Além disto, Mt emprega grande número de semítismos ou expressões
próprias do judaísmo, que um não-judeu não entenderia: Reino dos Céus (=
Reino de Deus), Cidade Santa (= Jerusalém), Casa de Israel (= povo judeu),
consumação do século (= fim do mundo), Filho de Davi (=Jesus).
Em conseqüência, Mt é, dentre os evangelistas, o que mais nos aproxima
do sabor primitivo dos sermões de Jesus. O sermão da montanha (M15-7), por
exemplo, é uma peça na qual ressoa vivamente o linguajar semita1 de Jesus;
tenhamos em vista o esquema dentro do qual é encaixado o ensinamento sobre a
esmola, a oração e o jejum: Mt 6,1-18; temos aí fórmulas que voltam
constantemente para ajudar a recitação de cor, muito característica das escolas
judaicas e cristãs antigas:
"Não façais como os hipócritas...": 6,2.5,16.
"Quanto a ti, quando deres esmola (orares ou jejuares), faze assim":
6,3.6.17;
"E teu Pai, quevê às ocultas, te recompensará": 6,4.6.18.
1 - A palavra semita compreende todos os descendentes de Sem (sírios, árabes e também judeus).
2. Escrevendo na Palestina para judeus convertidos, Mateus deve ter
redigido seu Evangelho por volta do ano 50. Este livro terá gozado de grande
autoridade, pois continha a catequese oficial dos Apóstolos. Mas o fato de estar
redigido em aramaico criava obstáculo à sua difusão; sim, o aramaico só era
falado pelos judeus da Palestina; fora deste país, a língua comum era o grego.
Por isto os pregadores iam traduzindo para o grego trechos ou a obra inteira de
Mt, todavia nem todos com a devida competência. Para evitar a desfiguração do
texto de Mt, a Igreja deu preferência a uma das traduções, que se tornou oficial e
é a forma canônica do texto.
Quanto às demais traduções, perderam-se. O mesmo aconteceu com o
texto original aramaico - o que bem se compreende: em 70, Jerusalém foi
destruída e os judeus se viram dispersos para fora da Palestina, onde aos poucos
passaram a falar o grego; em conseqüência, deixou de ser utilizado o texto
aramaico de Mt, que assim veio a desaparecer.
Não se pode indicar o nome do tradutor grego de Mt aramaico. Trabalhou
por volta de 80 e certamente fez mais do que traduzir; procurou tornar o texto
sagrado ainda mais útil à catequese. O fato de que a autoridade da Igreja adotou
esse texto retocado fornece-nos a garantia de que a tradução é substancialmente
idêntica ao original. Aliás, os judeus reconheciam aos tradutores o direito de
retocar os originais de acordo com a mente do autor; foi o que se deu também
com o texto do Eclesiástico (escrito em hebraico e traduzido para o grego por
volta de 130 a.C.).
Lição 3: A mensagem de Mt
Os quatro evangelistas apresentam a mesma figura e a mesma Boa-Nova
de Jesus Cristo. Cada qual, porém, realça traços que mais importantes lhe
parecem para o seu público. Tal é, certamente, o caso de S. Mateus, cujas
particularidades de mensagem passamos a considerar.
1. Mt = o Evangelho sistemático por excelência
A ordem concatenada dos temas era mais importante para Mateus do que
a seqüência cronológica dos acontecimentos. Por isto o Evangelista agrupou, em
blocos, acontecimentos ou sermões de Jesus que, segundo a ordem histórica,
deveriam estar muito distantes uns dos outros, mas que, reunidos, melhor ajudam
o leitor a compreender a mensagem do Mestre. Vejamos
a) Mt apresenta cinco longos sermões de Jesus, que constituem como que
as pilastras do seu Evangelho; têm por tema central o Reino dos céus:
- a Magna Carta, fundamental, do Reino: Mt 5-7 (sermão da montanha);
- o sermão dos missionários do Reino: Mt 10;
- o sermão das sete parábolas do Reino: Mt 13;
- o sermão comunitário do Reino: Mt 18;
- o sermão da consumação do Reino: Mt 24s.
É possível que o evangelista, ao propor esses cinco sermões, tenha tido
em vista aludir aos cinco livros da Lei de Moisés. Principalmente no sermão da
montanha (Mt 5-7), Jesus se mostra como o novo Moisés ou o novo Legislador
do povo de Deus. Logo após o sermão sobre a montanha, Mateus quis reunir dez
milagres de Jesus (Mt 8-9), que, segundo a lente do evangelista, devem servir de
comprovante à autoridade do Mestre: 8,1-4 (cura do leproso); 8,5-13 (cura do
servo do centurião); Mt 8,14-17 (cura da sogra de Pedro); 8,23-27 (a tempestade
acalmada); 8,28-34 (libertação de dois possessos); 9,1-8 (cura do paralítico);
9,18-26 (a filha do chefe da sinagoga ressuscitada e a hemorroissa curada); 9,27-
31 (dois cegos recuperam a vista); 9,32-34 (o possesso mudo é libertado).
b) A árvore genealógica de Jesus dispõe-se em três séries de quatorze
gerações cada uma - o que dá um total de 42 nomes; cf. Mt 1,1-17. Para assim
chegar de Abraão até Jesus, Mateus teve que omitir alguns nomes dos
antepassados de Cristo. E por que o fez? Porque 14 é o valor numérico
correspondente à soma das letras do nome hebraico de Davi, DVD (daleth = 4;
vau = 6; daleth =: 4); donde 3x14 significava para o judeu a plenitude dos
títulos que ornavam Davi; Jesus, portanto, caracterizado pelo número 42 (3 x 14)
seria designado como o Filho de Davi, o Rei messiânico, por excelência. Para
Mateus, que tinha esta finalidade catequética, está claro que a enumeração
completa dos nomes da lista genealógica perdia importância.
c) O emprego artificioso dos números é também característico de Mt: são
sete as petições do Pai-Nosso (cf. Mt 6,9-13), oito as bem-aventuranças (cf. Mt
5,3-12); sete as advertências aos fariseus (cf. Mt 23,13-32); sete as parábolas do
Reino (cf. Mt 13,4-50); setenta vezes sete seja o perdão concedido ao irmão
pecador (cf. Mt 18,22 e Lc 17,4).
O numero três marca a estrutura de muitas passagens, como Mt 5,22.34s;
6,2-4.5s. 16-18; 7,7.22. 25.27; 8,9; 10, 40s; 17,1-4; 23,8-10.34.
2. Mt = o Evangelho dos judeus
Dirigindo-se a judeus convertidos ao Cristianismo, S. Mateus procurou
apresentar a doutrina de Jesus de modo especialmente significativo para os
hebreus.
a) Mateus recorre freqüentemente às Escrituras do Antigo Testamento
para mostrar que Jesus é o Filho de Davi, Filho de Abraão (Mt 1,1), o Rei dos
judeus (2,2), que veio salvar seu povo (1,21). Mateus cita dezenove vezes as
profecias, ao passo que Marcos apenas cinco, e Lucas oito. É característica do
estilo de Mt a fórmula: "Isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito
por..." (cf. 1,22; 2,15. 17.23).
Algumas vezes o texto da profecia influi sobre a redação do Evangelho.
Por exemplo, Mateus diz que Jesus se serviu de um jumento e de seu filhote para
entrar em Jerusalém (21,2-7), ao passo que os outros evangelistas mencionam
apenas o jumentinho (Mc 11,2-7; Lc 19,29= 35; Jo 12,14s); assim procedendo,
Mateus quis simplesmente adaptar-se às palavras da profecia de Zc 9,9s, que ele
cita e cujo cumprimento ele queria incutir ao leitor. - Mateus é também o único
dos evangelistas que menciona o preço pelo qual Judas vendeu o Senhor (trinta
moedas de prata), e isto porque o profeta Zacarias (11,12; cf. Mt 27,9) menciona
a quantia; comparar Mt 26,15 com Mc 14,11 e Lc 22,5.
b) De modo especial Mateus se refere à Lei de Moisés. Assim em Mt,
5,21-48 Jesus alude a seis preceitos de Moisés para os aperfeiçoar, aparecendo
assim como o novo Moisés ou Moisés levado à plenitude.
Observemos também que o primeiro versículo do texto grego do
Evangelho se abre com as palavras Biblos Genéseos... Estas lembram o titulo
grego do primeiro livro do Antigo Testamento (Gênesis), talvez para indicar que
nova criação e nova vida entraram no mundo por obra de Jesus Cristo.
Em suma, Jesus não veio abolir a Lei de Moisés, mas levá-la à plenitude,
isto é, cumprir todas as promessas e profecias nela contidas (cf. Mt 5,17).
c) É de notar que a catequese habitual dos Apóstolos devia começar pelo
Batismo de Jesus e terminar pela Ascensão do Senhor; foi assim que São Pedro
concebeu os seus primeiros sermões (cf. At 1,21 s; 10,37-41). O Evangelho de
Marcos se enquadra perfeitamente nesses termos. S. Mateus e S. Lucas, porém,
julgaram oportuno propor no início das suas narrações algumas notícias sobre a
infância de Jesus. Ora observa-se que em Mt a figura predominante dos cc. 1-2 é
São José (cf. Mt 1,18-21.24s; 2,13-15.19-23), ao passo que em Lc a figura mais
saliente é Maria. Isto permite concluir que os principais informantes de Mateus,
no caso, foram os familiares de São José e parentes de Jesus, que eram
particularmente zelosos das tradições de Israel.3. Mt = o Evangelho da Igreja
Mateus quis mostrar que o Reino do Messias, muito radicado nas
profecias e nos costumes do povo de Israel, é, não obstante, um reino universal
católico. Por isto pôs em relevo os traços de universalismo da mensagem de
Jesus.
a) A genealogia de Jesus em Mt 1,1-17, além da simetria de seus
números, apresenta quatro nomes de mulheres, contrariando o estilo das
genealogias: Raab, meretriz de Jericó (1,5); Tamar, pouco honesta e
provavelmente cananéia (1,3); Rute, moabita (1,5) e Betsabé, esposa de Urias,
hitita como seu marido (1,6). Note-se que são nomes de mulheres estrangeiras ou
de má vida. - Por que o Evangelista, quebrando o estilo das genealogias, quis
incluir essas mulheres entre os antepassados de Jesus? - Precisamente para
mostrar que Ele é o Salvador não apenas de Israel, mas também dos estrangeiros
e pecadores; Ele veio para salvar a todos indistintamente, pois em suas veias
corria o sangue de judeus e de pagãos.
b) O termo "Igreja" (ekklesia, em grego) só ocorre em Mt 16,18; 18,17
dentro dos escritos dos evangelistas. Mateus também é o único a descrever a
cena da promessa do primado a Pedro (Mi 16,13-20). A Igreja consta não apenas
de judeus, mas também de pagãos convertidos (cf. Mt 28,16-20; 8,11),
Aliás, todo o mistério da Igreja está contido no episódio dos magos (Mt
2,1-12), que só Mt refere; conduzidos de longe por uma estrela e orientados
pelos próprios judeus, os pagãos reconheceram e adoraram o Messias, ao passo
que o rei Herodes e sua corte o quiseram matar.
A São Pedro Mateus dedica especial reverência, como se depreende dos
episódios próprios: Mt 14,28-32; 16,17-19; 17,24-27. Compare-se Mt 26,40 com
Mc 14,37.
Assim concebido, o Evangelho segundo Mateus tornou-se "o livro mais
importante da história universal" (Renan), o livro insuperável das primeiras
gerações cristas.
Para aprofundamento:
BALLARINI, T., Introdução à Bíblia IV. Ed. Vozes, Petrópolis 1972.
BARBAGLIO, FABRIS, MAGGIONÍ, Os Evangelhos (I)
PIKAZA, S., A Teologia de Mateus. Ed. Paulinas, São Paulo 1978.
VÁRIOS AUTORES, Leitura do Evangelho segundo Mateus. Ed.
Paulinas, São Paulo 1982.
* * *
PERGUNTAS
1) Cite um testemunho de escritor antigo sobre a autoria do 1g
Evangelho.
2) O texto do 1g Evangelho diz-nos algo sobre a personalidade do seu
autor?
3) São Mateus explica aos seus leitores os vocábulos e os costumes dos
Judeus? Por quê...'?
4) Cite ao menos cinco passagens nas quais ocorrem semitismos em Mt.
5) Temos ainda hoje o texto origina! aramaico de Mt? Porquê?
6) Que significa "Evangelho sistemático"? Dê alguns exemplos.
7) Como é que Mt relaciona Moisés e Jesus? Explique.
8) Em que sentido se pode dizer que Mt é o Evangelho da Igreja ?
9) Comente a genealogia de Jesus em Mi 1.1-17 (42 nomes de homens e
4 de mulheres),
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
1ª SUBETAPA: INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
MÓDULO III: EVANGELHO SEGUNDO
MARCOS
Lição 1: Marcos, autor do 2° Evangelho
1. Marcos não foi um dos doze apóstolos, mas discípulo destes,
especialmente de Pedro, que o chama seu filho (1 Pd 5,13), talvez porque o
tenha batizado.
S. Marcos foi companheiro de S. Paulo no começo de sua primeira
viagem missionária (cf. At 13,5), mas não prosseguiu até o fim (cf. At 13,13).
Por isto o Apóstolo não o quis levar em sua segunda expedição missionária (cf.
15,37-40). Todavia Marcos reaparece como colaborador de São Paulo no
primeiro cativeiro romano do Apóstolo (cf. Cl 4,10; Fm 23s); no fim da vida,
São Paulo lhe faz um elogio: "é-me útil no ministério" (2Tm 4,11). Há quem
veja em Mc 14,51 uma alusão ao próprio Marcos.
A tradição lhe atribui a redação do segundo Evangelho. A propósito o
testemunho mais importante é o de Pápias († 135), bispo de Hierápolis (Ásia
Menor), de grande autoridade:
"Marcos, intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, mas sem ordem,
tudo aquilo que recordava das palavras e das ações do Senhor; não tinha
ouvido nem seguido o Senhor, mas, mais tarde..., Pedro. Ora, como Pedro
ensinava adaptando-se às várias necessidades dos ouvintes, sem se preocupar
com oferecer composição ordenada das sentenças do Senhor, Marcos não nos
enganou escrevendo conforme se recordava; tinha somente esta preocupação:
nada negligenciar do que tinha ouvido, e nada dizer de falso" (cf. Eusébio,
História Eclesiástica III, 39,15).
2. Este depoimento a respeito da autoria de Marcos é corroborado pelo
exame do texto do próprio Evangelho. Assim, por exemplo:
Os limites do Evangelho são exatamente os limites propostos pelos
discursos de Pedro em At 1,2 e 10,37: desde o batismo ministrado por João até a
glorificação de Jesus, sem tocar em cenas da infância do Senhor; cf. Mc 1,1-4 e
16,19s.
Pedro ocupa lugar saliente em Mc; cf. Mc 1,29-31.36; 5-37; 9,2-6; 11,21;
14,33. Pedro é explicitamente nomeado em Mc, enquanto nas passagens
paralelas Mt e Lc o silenciam; comparemos entre si Mt 21,20 e Mc 11,21 ; além
disto, Mt 24,3; Lc 21,7 e Mc 13,3; também Mt 28,7 e Mc 16,7. De modo
especial, em Mc as falhas de Pedro são salientadas (Mc 8,32s; 14,37.66-72) e é
silenciado o que redundaria em honra de Pedro (o caminhar sobre as águas, Mt
14,28-31, e a promessa do primado, Mt 16,17-19) - o que só se explica bem se a
pessoa de Pedro é indiretamente a responsável pela redação do Evangelho de
Marcos.
O 2o Evangelho se compraz em citar alguns termos aramaicos,
guardando o sabor original da catequese dos Apóstolos: assim Boanerges (Filhos
do Trovão), em 3,17; Talitha Koum (Filha, levanta-te), em 5,41; Ephphata
(Abre-te), em 7,34; Abba (Pai), em 14,36; Eloí, Eloí, lama sabachthani (Meu
Deus, meu Deus, porque me abandonaste?), em 15,34. - isto revela que o autor
do 2o Evangelho era um judeu que transmitia uma catequese outrora concebida
em aramaico.
O estilo de Mc é muito simples, quase não recorrendo à subordinação de
frases - o que bem corresponde ao gênio literário dos semitas.
Lição 2: Os destinatários de Mc
1. Mc escreveu não para judeus, mas para pagãos convertidos ao
Cristianismo. É o que se conclui dos seguintes dados:
Mc não cita vocábulos aramaicos sem os traduzir; cf. 3,17; 5,41; 7,11-34;
10, 46; 14,36; 15,22-34. Também explica os costumes dos judeus como se
fossem estranhos aos leitores: 7,3s; 14,12; 15,42.
Omite o que não seria claro a gente pouco familiarizada com o judaísmo:
as questões referentes à Lei de Moisés (cf. Mt 5-7) ; quase todas as censuras de
Jesus aos fariseus e escribas (cf. Mt 23 e Mc 12,3840); o voto de que a fuga de
Jerusalém não ocorra em sábado (no sábado o judeu não caminhava muito; cf.
Mt 24,20 e Mc 13,18); a menção do sinal de Jonas (cf. Mt 16,4 e Mc 8,12).
Poucas são as citações do Antigo Testamento em Mc, que não tem a
preocupação, típica de Mt, de mostrar que as profecias se cumpriamem Cristo.
Mc cuidou de mitigar ou suprimir tudo o que pudesse causar mal-
entendidos aos pagãos. Assim comparem-se entre si
Mt 15,26 e Mc 7,27: em Mc se lê primeiramente;
Mt 10,5s e Mc 3,14-19; 6,7-9: em Mc não se lê que os Apóstolos em sua
primeira missão tenham sido enviados apenas aos judeus.
Mt 10,17-19 e Mc 13,9-11 : em Mc "... a todas as nações";
Mt 21,13 e Mc 11,17: em Mc"... para todos os povos".
Assim a universalidade da salvação e da Igreja é incutida em Mc como
em Mt, todavia sem que Mc acentue a prioridade de Israel (devida ao fato de que
os judeus são diretamente os filhos de Abraão e da promessa).
2. Mais precisamente, podemos dizer que os pagãos convertidos para os
quais Marcos escreveu, eram latinos.
Na verdade, além de apresentar muitos aramaismos, Mc contém
numerosos latinismos (só perceptíveis para quem usa o texto grego original); cf.
5,9-15; 6,27.37; 12,14s; 14,5; 15,15.39.44. Às vezes, certas palavras gregas são
explicadas por equivalentes do latim, embora o grego fosse a língua comum do
Império Romano e o latim fosse o idioma próprio de Roma e do Lácio. Isto só se
explica se o autor tinha em vista leitores romanos, domiciliado ele mesmo em
Roma (um judeu residente na Palestina não conheceria tão exatamente o dialeto
do Lácio).
Estas observações são confirmadas por Mc 15,21: Simão o Cireneu era o
pai de Alexandre e Rufo,... desse Rufo, que São Paulo saúda em Rm 16,13.
Porque Marcos teria mencionado Rufo, ao escrever seu Evangelho, se não
porque Rufo pertencia à comunidade evangelizada por Marcos?
Lição 3: A mensagem de Mc
1. Marcos é sóbrio em discursos, mas rico em narrativas, que
apresentam pormenores vivazes, tornando o Evangelho muito movimentado
e colorido.
São Marcos é o mais breve dos evangelistas: conta 673 versículos,
enquanto Mt 1.068 e
Lc 1.149.
Chama-nos a atenção, porém, a maneira como S. Marcos é breve.
1. Dos cinco grandes discursos de Mt, Mc só registra dois: o das
parábolas (Mc 4,1-34, com três parábolas em vez de sete) e o escatológico (Mc
13,1-37). O cap. 23 de Mt é reduzido a Mc 12,38-40; Mt 18,1-10 é reduzido a
Mc 9,42-50; Mt 24,36-25,46, a Mc 13,33-37.
Ao contrário, as narrativas em Mc são mais minuciosas e vivazes do que
em Mt (que não
se detém em pormenores). Vejam-se
Mc 1,35-39 e Lc 4,42-44 Mc 9,14-27 e Mt
17,14-18
Mc 2, 1-12 e Mi 9,1-8 Mc 10,23-27 e Mt
19,23-26
Mc 5, 1-17 e Mt 8,28-34 Mc 10,46-52 e Mt
20,29-34
Mc 5,21-43 e Mt 9,18-26 Mc 1 i,12-24 e Mt
21,18-22
Mc 8,14-21 e Mt 16,5-12 Mc 11,27-33 e Mt
21,23-27
Muito típica também é a comparação de Mt 21,1 -22 com Mc 11,1-25.
Tenha-se em vista
a seguinte ordem de acontecimentos:
Mt
Mc
Destas duas séries, a de Mc parece corresponder simplesmente ao curso
real dos acontecimentos; por isto é tão cheia de movimento. A de Mateus é mais
sistemática em vista da catequese: reúne em um só dia o que se deu em
Jerusalém e em outro dia o que se deu fora de Jerusalém.
2. As narrações de Mc, espontâneas como são, revestem-se de grande
vivacidade. Isto se deve não só ao temperamento de Marcos (pouco dado aos
artifícios), mas também a figura de Pedro, que está por trás da redação de Mc.
Notemos, por exemplo, os seguintes traços:
- as multidões cercam e comprimem Jesus, não lhe deixando o tempo de
comer: Mc 1,37 45; 2,1-4.13; 3,7-10.20s.31 s; 4,1; 5,21.27.38-40; 6,31-34.55s;
- os atos de Jesus suscitam admiração e reverência: 1,22.27.45; 2,12;
4,41; 5, 20.42 6,2s; 10,32 (cf. Mi 20,17 e Lc 18,31);
- os afetos de Jesus são anotados com muita perspicácia 3,5.34; 5,32;
8,12.32; 10,16.21 23; 11,11. Durante a tempestade, Jesus está deitado sobre um
travesseiro, enquanto os após tolos se inquietam: Mc 4,38 (cf. Mt 8,24).
- Mc refere números (que certamente estimulam a reconstituição mental
das cenas), quando os outros evangelistas os silenciam. Comparemos entre si
Mc 2,3 e Mt 9,2; Lc 5,18 Mc 14,30.72 e Mt 26,34.74; Lc
22,34.60
Mc 5,13 e Mt8,33 Mc 14,41 e Mt 26,45
Mc 14,5 e Mt 26,9 Mc 15,25 e Mt 27,33-35; Lc
23,33
Mas só Mateus, o cobrador de impostos, refere o preço por que Jesus foi
entregue aos carrascos: Mt 26,15; cf. Mc 14,11; Lc 22,5.
2. Em Mc a Divindade de Jesus é especialmente realçada pela sua
humanidade.
Mc é tão destituído de artifícios ao apresentar Jesus que por vezes pode
causar problemas aos intérpretes. Assim, por exemplo,
- em Mc 3,21: os parentes de Jesus dizem que "está fora de si". Esta
afirmação foi entendida, por vezes, no sentido de que Jesus era doente mental. A
interpretação é falsa, pois o verbo grego exeste significa "estar fora de si, sair
das habituais normas de vida"; ora, segundo o contexto de Mc, Jesus chamava a
atenção por seu grande zelo apostólico, que não lhe permitia encontrar tempo
nem mesmo para comer;
- em Mc 10,18 Jesus parece rejeitar o qualificativo "bom", devido a Deus
só, como si Jesus não fosse Deus. O texto paralelo de Mt 19,16s mudou a
construção da frase. - Na verdade Jesus em Mc 10,18 não queria dizer que Ele
não é Deus, mas quis levar o jovem a tirar as ultimas conseqüências da sua
intuição: se havia reconhecido em Jesus algo que ultrapassava a bondade dos
homens, compreendesse que Jesus é Deus;
- em Mc 6,5s lê-se que Jesus não pôde fazer milagre em Nazaré, e
admirava-se da pouca fé dos seus concidadãos. Observe-se que Mt 13,58 tirou as
palavras ambíguas. Na verdade, Jesus tudo podia e sabia, como verdadeiro Deus
que é; o evangelista Marcos, porém, se exprimiu de acordo com o modo de ver
humano de um historiador.
- em Mc 13,32, o Filho (como os anjos) ignora a data do juízo final; Mt
24,36 atribui esse não saber aos anjos apenas. - Na verdade, Jesus tudo sabia
como Deus, mas não estava dentre da sua missão de doutor dos homens
comunicar a data do juízo final; Marcos referiu-se a Jesus precisamente como
Mestre dos Apóstolos.
Ora estes traços difíceis e toscos (não burilados) de Mc, longe de
diminuir o valor deste Evangelho, muito o aumentam. Mostram que S. Marcos
não usou de artifícios para recomendar a figura de Jesus; disse com simplicidade
o que sabia, certo de que não era preciso "dourar a pílula" para apresentar Jesus.
Este era aceito pelos cristãos como Deus e homem. - Verifica-se que
precisamente os apócrifos tentam embelezar ao máximo a figura de Jesus
atribuindo-lhe atitudes maravilhosas e fantasistas, como se a fé em Jesus
necessitasse de tais artifícios; estes são evidentes sinais da não-historicidade das
narrações apócrifas, ao passo que a simplicidade de Mc abona a historicidade e
fidelidade do evangelista.
É este mesmo Marcos que apresenta Jesus como Deus com clareza
surpreendente. Assim, por exemplo,
em 1,1: "início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus";
em 1,11; 9,7 é o Pai celeste quem proclama Jesus seu Filho bem-amado;
em 13,32; 14,62: Jesus mesmo se diz o Filho de Deus bendito;
em 2,5.10-12: Jesusperdoa os pecados, e faz um milagre para provar que
Ele pode usar desta prerrogativa de Deus.
Para comprovar a Divindade de Jesus assim professada, Marcos deixou
falar a linguagem dos fatos: Jesus em Mc aparece a imperar à doença, à morte,
aos demônios, aos homens, às forças da natureza, suscitando repetidamente
admiração nos espectadores.
3. Em Mc Jesus é apresentado como o Leão da Tribo de Judá.
A tradição atribuiu a Marcos o símbolo do leão. Realmente, o Cristo
descrito por S. Marcos é o "Leão da tribo de Judá" (Ap 5,5); é o Lutador forte
por excelência. Isto se percebe desde o inicio do segundo Evangelho: após o
Batismo de Jesus, Mc reúne cinco casos de conflito do Senhor com os fariseus
(2,1-3,6), após os quais resolvem condenar à morte o Mestre (3,6). Assim desde
3,6 Jesus é atingido pela sentença de morte; daí por diante ele trava a luta da
vida contra a morte.
Observem-se os cincos casos:
1) 2,1-12: os adversário agridem Jesus por pensamentos; cf. Mt 9,1-8;
2) 2,13-17: agridem os discípulos de Jesus; cf. Mt 9,9-13;
3) 2,18-22: agridem Jesus a respeito dos discípulos; cf. Mt 9,14-17;
4) 2,23-28: agridem Jesus a respeito dos discípulos; cf. Mt 12,1-8;
5) 3,1-6: tramam a morte de Jesus; cf. Mt 12,9-14.
Para enfatizar a tragicidade da vida de Jesus, Marcos reuniu numa
seqüência única (2,1-3,6) dois blocos de conflitos que em Mt ficaram separados
(cf. Mt 9,1-17 e Mt 12,1-14).
A figura de Jesus, tratada tão vivazmente pelo 2o Evangelho, toma um
caráter de grandeza e heroísmo notáveis.
Para aprofundamento:
BALLARÍNI, T., Introdução à Bíblia IV. Ed. Vozes, Petrópolis, 1972.
BARBAGLIO, FABRIS, MAGGIONI, Os Evangelhos (I). Ed. Loyola
1990.
DE LA CALLE, FR., A Teologia de Marcos. Ed. Paulinas, São Paulo
1978.
DELORME, J., Leitura do Evangelho segundo Marcos. Ed. Paulinas, São
Paulo 1982.
* * *
PERGUNTAS
1) Que relacionamento tinha Marcos com S. Pedro e com S. Paulo?
2) Cite e explique um testemunho antigo em favor de Marcos autor do 2o
Evangelho.
3) Como Pedro é tratado no 2o Evangelho?
4) Como é que Mc apresenta aos seus leitores as tradições judaicas?
5) Que tipo de pagãos convertidos eram os destinatários de Mc?
Explique.
6) Compare entre si Mc e Mt em três episódios comuns aos dois
Evangelistas.
7) Indique algumas características de Jesus segundo Mc.
8) Como é que Mc apresenta a humanidade e a Divindade de Jesus?
Explique.
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Corista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
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CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
1ª SUBETAPA: INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
MÓDULO IV: EVANGELHO SEGUNDO
LUCAS
Lição l: Lucas, autor do 3o Evangelho
1. S. Lucas não era judeu, mas gentio de Antioquia da Síria; cf.-Cl 4,10-
14. Era homem culto e formado em medicina. Não se pode dizer com segurança
quando se converteu ao Cristianismo. Associou-se a São Paulo em trechos da
segunda e da terceira viagens missionárias; cf. At 16,10-37; 20,5-21,18. Em 60
embarcou com Paulo para Roma (At 27,1-28,16), permanecendo-lhe fiel durante
o primeiro cativeiro (cf. Cl 4,14; Fm 24): Acompanhou o Apóstolo também no
segundo cativeiro romano; cf. 2Tm 4,11.
2. A este discípulo a Tradição atribui o 3o Evangelho. Eis o testemunho
de um dos prólogos latinos anteposto ao 3o Evangelho em fins do séc. II:
"Lucas foi sírio de Antioquia, de profissão médica, discípulo dos
Apóstolos; mais tarde seguiu Paulo até a confissão (martírio) deste, servindo
irrepreensivelmente ao Senhor. Nunca teve esposa nem filhos; com oitenta e
quatro anos morreu na Bitínia, cheio do Espírito Santo. Já tendo sido escritos os
Evangelhos de Mateus, na Bitínia, e de Marcos, na Itália, impelido pelo Espírito
Santo, redigiu este Evangelho nas regiões da Acaia, dando a saber logo no
inicio que os outros (Evangelhos) já haviam sido escritos".
Estes dizeres, simples e claros, resumem os principais dados da Tradição
sobre o assunto.
3. Vejamos o que o próprio texto permite depreender a respeito do seu
autor:
a) certamente a linguagem grega de S. Lucas é a de um homem culto
dotado de vocabulário variado (261 palavras próprias dentro do N.T.). Corrige as
construções difíceis de São Marcos; cf. Mc 4,25 e Lc 8,18.
b) O autor parece perito em medicina, a ponto de manifestar seu "olho
clínico" nas seguintes passagens:
- é o único a referir o suor sanguíneo de Jesus (22,44);
- muito abranda o juízo pessimista que Mc 5,25.29 profere sobre os
médicos; cf. Lc 8,43s;
- os sintomas dos enfermos são descritos com particular atenção em Lc
8,27-29; 9,38s; 13,11-13; 4,38 (cf. Mc 1,30);
- o 3o Evangelho apresenta Jesus como o Médico Divino; cf. Lc 4,23;
5,17 (comparar com Mt 9,1 e Mc 2,1 s); 6,18s; 9,1s.11. Somente em Lc Jesus
restitui a orelha de Maíco amputada no Getsêmani (cf. Lc 22,50s; Mi 26,51; Mc
14,47s; Jo 18,1 Os).
c) O 3o Evangelho apresenta notável afinidade de linguagem e doutrina
com o epistolário paulino. Cerca de 103 vocábulos são comuns a Paulo e Lc, e
alheios aos outros escritos do N.T.
O 3o Evangelho terá sido escrito por volta de 70, com vistas aos pagãos
convertidos ao Cristianismo. Estes parecem representados pelo "Excelentíssimo
Senhor Teófilo", ao qual S. Lucas dedica seu Evangelho (1,3).
Lição 2: Destinatários e plano de Lc
1. Escrevendo para pagãos convertidos, Lucas
- omitiu particularidades da história que só interessavam aos judeus: as
alusões à Lei de Moisés (cf. Mt 5,21-48), o uso das purificações rituais (cf. Lc
11,38 e Mc 7,1-23; Mt 15,1-20);
- referiu com carinho o que era favorável aos gentios: 3,14; 7,2-10;10,30-
37 (o bom samaritano); 17,11-19 (o leproso samaritano...);
- menciona com solenidade as autoridades romanas: 2,1 s; 3,1;
- silenciou tudo o que em Mt e Mc podia ser penoso para os não-judeus:
assim, por exemplo, Lc usa a palavra "pecadores" (6,33), em vez de "gentios"
(Mt 5,47)
2. A catequese tradicional seguia o plano traçado por S. Pedro na sua
primeira pregação (At 1,22): ministério do Batista, pregação de Jesus na
Galiléia, subida a Jerusalém (relato breve), morte e exaltação do Senhor. Marcos
seguiu fielmente este esquema; Lucas, sem o abandonar, quis enriquecê-lo. É o
que passamos a ver:
Iniciou as suas narrativas no templo de Jerusalém (1,8s), e terminou-as lá
também (24,52). Jesus começa a pregar na Galiléia, mas toda a sua atividade
tende para Jerusalém, teatro da exaltação final do Senhor. Em conseqüência
- na história das tentações de Jesus inverte a ordem de Mt, colocando a
tentação referente ao templo em terceiro, e não em segundo lugar (cf. Lc4,1-13 e
Mt4,l-11): assim Jesus no início do seu ministério publico triunfa sobre o
demônio em Jerusalém como ai há de triunfar definitivamente no fim da sua
vida;
- em Lc 9,51 Jesus inicia solene viagem para Jerusalém: "Como se
aproximasse o tempo em que havia de ser arrebatado1 deste mundo, Jesus tomou
resolutamente o caminho de Jerusalém".
1 -Arrebatado = elevado gloriosamente. Páscoa!
Essa viagem só termina em Lc 19,28.acompanhar
nossas aulas
A Redação
* * *
Amanuense: a pessoa que escreve quanto lhe é ditado por outrem, sem colocar algo de próprio. Ver
autor.
Apócrifo: em grego, apókryphos quer dizer oculto. Tal era o livro não lido em assembléia pública
de culto, mas reservado à leitura particular. Apócrifo opõe-se a canônico, pois canônico era o livro lido no
culto público, porque considerado Palavra de Deus inspirada aos homens. Ver inspiração.
Apócrifo não tem necessariamente sentido pejorativo. É simplesmente o texto que, por um motivo
qualquer, não era de uso público; pode conter verdades históricas, como a da Assunção corporal de Maria
SS. aos céus.
Apocalipse: do grego apokálypsis, revelação. É um gênero literário ou um modo de redigir escritos
que tem as seguintes características: imagina o fim da história, por ocasião do qual o Senhor virá à terra
sensivelmente para julgar os homens e restaurar a ordem violada. Esse aparecimento de Deus é assinalado
por sinais no mundo, abalo da natureza, catástrofes... Tal gênero literário recorre freqüentemente a símbolos
e imagens, que devem ser interpretados segundo critérios objetivos ou de acordo com a mentalidade dos
escritores antigos. Determinado símbolo podia significar uma coisa para os antigos e pode significar outra
para os modernos.
Apocalipse de São João é o nome de um apocalipse, que vem a ser o último livro da Bíblia. Há,
entre os apócrifos, o Apocalipse de Henoque, o de Elias...
Aramaico: língua dos filhos de Aram (cf. Gn 10,22), muito próxima do hebraico. Tornou-se língua
diplomática ou internacional no Oriente antigo a partir do V a. C. Os judeus após o exílio (587-538 a.C.) a
adotaram como língua corrente, reservando o hebraico para o culto sagrado, Havia o dialeto aramaico de
Jerusalém e o da Galiléia (cf. Mt 26,73). Jesus e seus discípulos falavam aramaico.
Autor: a pessoa que concebe idéias ou o conteúdo de determinado escrito; é o responsável supremo
pelo teor do seu livro. Tal é o caso de São Paulo em relação a 1/2 Ts, Gl, 1 Cor...
Em alguns, casos na antiguidade, o autor não escrevia diretamente, mas ditava a um companheiro,
que escrevia. Este era chamado escriba ou amanuense. Ver escriba.
Em outros casos, o autor não ditava, mas deixava ao companheiro a tarefa de compor e exprimir as
idéias do autor. Tal companheiro então se chamava redator, pois era ele quem redigia a mensagem do autor.
Há, por exemplo, quem admita que Hb teve como autor São Paulo e, como redator, um discípulo de Paulo,
como seria Apolo ou Barnabé.
Bíblia: a palavra vem do grego bíblos, livro. O diminutivo é bíblion, livrinho, que no plural faz
bíblia livrinhos. O diminutivo perdeu sua força própria com o passar do tempo, de modo que bíblia ficou
sendo simplesmente o mesmo que livros. A Bíblia é, pois, etimologicamente falando, uma coleção de livros.
Bispo: é o sacerdote que mais participa do sacerdócio de Cristo, estando colocado no grau supremo
do sacramento da Ordem. Abaixo dele vêm os presbíteros e, a seguir, os diáconos.
Enquanto os Apóstolos viviam, eram eles os pastores ambulantes de toda e qualquer comunidade
cristã. Em cada uma destas instituíam um colegiado de presbíteros (= anciãos: em grego), também
chamados "superintendentes" ou "vigilantes" (epískopoi, em grego); cf. At 14,23: 11,30; Ti 1,5; Fi 1,1; At
20,17.28. Governavam a comunidade sob a jurisdição dos Apóstolos. Com a morte dos Apóstolos, as
comunidades passaram a ser governadas por um pastor residente, escolhido dentre os presbíteros ou
epíscopos (superintendentes). Esse pastor supremo local ficou exclusivamente com o nome de epíscopo (=
bispo), ao passo que os membros do colegiado subalterno ficaram sendo chamados exclusivamente
presbíteros (= padres, no sentido de hoje). No inicio do século II, isto é, nas cartas de S. Inácio de
Antioquia(† 107) se registra a existência do episcopado monárquico como ele é hoje.
Cânon: do grego kanná, caniço. Significa medida, régua; em sentido metafórico, designa regra ou
norma de vida (cf. Gl 6,16). Os antigos falavam do cânon da fé ou da verdade, para designar a doutrina
revelada por Deus, que era critério para julgar qualquer doutrina humana e para nortear a vida dos cristãos.
Derivadamente cânon significava também catálogo, tabela, registro; neste ultimo sentido os cristãos
passaram a falar do cânon bíblico ou da Bíblia (= catálogo dos livros bíblicos).
Protocanônico é o livro que sempre pertenceu ao cânon ou catálogo. Deuterocanônico é o escrito
que primeiramente foi controvertido e só depois entrou definitivamente no cânon sagrado. Próton =
primeiro (da primeira hora). Déuteron = segundo (em segunda instância).
Carisma: do grego chárisma, quer dizer dom em geral. Já nas epístolas de São Paulo carisma é dom
para tal ou tal tipo de serviço; cf. 1Cor 12,7; 14,26-31; Ef 4,12-16. O dom das línguas, por exemplo, nada
vale se não há quem as interprete para o serviço e a edificação dos ouvintes; cf. 1Cor 14,5-13. Existem os
carismas da profecia, das curas, do governo, do apostolado... Mas o melhor carisma é o da caridade (ágape),
que não produz espalhafato, mas tudo perdoa, tudo crê, tudo suporta (1Cor 13,7). Muitos carismas nada têm
de portentoso: o de assistir aos enfermos, o de educar crianças, o de instruir os ignorantes, o de liderar um
grupo...
Catecúmeno: pessoa submetida à catequese ou ao ensinamento sistemático da fé cristã. Geralmente
o catecumenato precedia o batismo de adultos e foi rigorosamente aplicado até o século V.
O catecumenato e a catequese supunham o kérygma ou querigma, anuncio sumário e muito vivaz
da Boa-Nova de Jesus Cristo; quem aderisse a essa mensagem breve, era levado à catequese. Como
exemplos de querigma, temos os discursos de S. Pedro em At 2,14-36; 3,11-26; 4,8-12; 5,29-32... Como
exemplo de catequese, citem-se Mt 5-7 (o sermão da montanha), Mt 13 (as sete parábolas do Reino), Lc 15
(as três parábolas da misericórdia)...
Chalom: palavra hebraica que significa Paz. Em hebraico, tem sentido muito mais rico do que em
português: não significa apenas "ausência de guerra", mas "bem-estar, harmonia do homem com Deus, com
a natureza e consigo mesmo". Os profetas bíblicos tinham consciência de que o pecado introduzira a
desordem no mundo; em conseqüência anunciavam a Paz; esta seria o grande dom do Messias; cf. Mq 5,4;
Is 9,5s. No Novo Testamento, diz São Paulo que Cristo é a nossa Paz; Ele fez de dois povos (judeus e
pagãos) um só povo ou um só corpo (Ef 2,14-22). Por isto Cristo, vitorioso sobre a morte após a
ressurreição, deixou aos Apóstolos a sua paz, junto com o dom do Espírito Santo e o poder de perdoar os
pecados (cf, Jo 20,19-23); são estes que se opõem à paz dos homens com Deus e entre si. Temos que tornar
realidade crescente essa paz de Cristo na terra: "Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão
chamados filhos de Deus" (Mt 5,9). O nome da cidade "Jerusalém", símbolo da bem-aventurança final (Ap
21,9-27), é interpretado como "Visão da Paz".
Cheol: os judeus chamavam cheol um lugar subterrâneo, por eles imaginado, onde estariam,
inconscientes ou adormecidos, todos os indivíduos humanos após a morte. A terra era tida como mesa
plana, debaixo da qual se
encontraria a "mansão dos mortos'; esta em grego era chamada Hades: em latim, inferni (da preposição
infra, que significa abaixo; donde inferni = inferiores lugares.
Em conseqüência, os antigos judeus não podiam admitir retribuição póstuma nem para os homens
bons nem para os infiéis, pois todos se achavam inconscientes; ver, por exemplo, Jó "-21s; 21,21; Is 14,10;
38,18; 63,18;Na seção de 9,51 -19,28 Lc inseriu
muitos de seus episódios próprios (cf. Lc 1,3). O autor repetidamente observa
que Jesus está a caminho de Jerusalém (o que lhe parece muito importante); cf.
13,22; 17,11 ; 18,31 ; 19,11.28.
Após a morte e ressurreição de Jesus em Jerusalém, o evangelista omite
as aparições de Jesus na Galiléia: Jesus mesmo dá ordem para que os discípulos
"fiquem na cidade santa até serem revestidos da força do Alto" (cf. Lc 24,49). Os
Apóstolos cumprem esta ordem, de modo que o fim do Evangelho corresponde
ao começo.
Pergunta-se: por que Lc quis assim orientar todo o seu Evangelho? Qual
a razão deste direcionamento?
- Eis a resposta: assim como Mateus apresentou Jesus como o novo
Moisés, Lc quis descrever Jesus como o novo Elias ou o novo Profeta. Ora uma
das características do Profeta é morrer em Jerusalém, como diz o próprio Jesus
(cf. Lc 13,33). Tal é a chave da estrutura do Evangelho de Lucas. Observemos
que Jesus em Lc aparece freqüentemente como "um grande Profeta" (cf. 4,24;
7,16.39; 9,8; 13,33; 24,19); Jesus mesmo comparou a sua sorte com a dos
profetas Elias e Eliseu (cf 4,24-27).
Como se compreende, "profeta", no caso, não quer dizer "mero homem
dotado de graças especiais", mas, sim, o Messias Aguardado, que, na mente de
São Lucas, era o Filho de Deus feito homem (cf. Lc 1,32-35).
Lição 3: O estilo de Lc
Culto como era, S. Lucas apresenta certo esmero literário:
1. Observem-se, por exemplo, as antíteses, das quais sobressai muito
melhor o ensinamento de Jesus:
Lc 1,11 -22 e 1,26-38: duas aparições do anjo e dois anúncios: um a
Zacarias, que, incrédulo, perde a fala; o outro a Maria, que, cheia de fé,
prorrompe em cântico profético;
Lc 7, 36-50: a pecadora penitente, agradecida; o fariseu, confiante em si,
repreendido;
Lc 10, 38-42: Marta ativa e Maria contemplativa;
Lc 17, 11-18: dez leprosos curados, dos quais o único samaritano é grato
ao Senhor;
Lc 18, 9-14: a oração do fariseu e a do publicano;
Lc 23, 39-43: os dois ladrões em torno de Jesus.
Estes episódios são todos próprios do 3o Evangelho e bem mostram o
gosto literário do autor.
2. S. Lucas também quis consignar, como passagens próprias do seu
Evangelho, episódios e traços que evocam nobres afetos: a parábola do filho
pródigo (Lc 15,11-32), a história da pecadora anônima compreendida pelo
Senhor (7,36-50), a ressurreição do filho da viúva de Naim (7,11-17), o colóquio
de Jesus com os discípulos de Emaús (24,13-35).
De modo especial, Lc deu relevo às figuras femininas, delas fazendo
autêntico sinal de realidades religiosas. Assim, a mãe abençoada, Elisabete
(1,23-25.39-45.57s), a virgem e mãe Maria (cc. 1-2), a viúva em quatro figuras
(2,56-38; 7,11-17; 21,1-4; 18,1-8), a pecadora infame recuperada (7,36-50), a
mulher apóstola (8,1-3). Esta valorização da mulher chama-nos a atenção, pois,
ao mesmo tempo que Lucas, vivia Sêneca, filósofo estóico, que escrevia a
respeito da mulher: "é animal sem pudor e... feroz, que não domina suas cobiças"
(De constantia sapientis XIV 1).
3. Conseqüentemente, Lucas quis omitir ou mitigar traços que na
catequese anterior lhe pareciam demasiado duros:
-a repreensão de Pedro por parte de Jesus; cf. Mc 8,31-33; Mt 16,21-23 e
Lc9,22;
- o morticínio de João Batista; cf. Mc 6,17-29: Mt 14.3-12 e Lc 3,19s;
- os escarros infligidos a Jesus; cf. Mc 14,65; Mt 26,G7s; 27,30 e Lc
22,63s;
- a flagelação e a coroação de espinhos; cf. Mc 15,15-20 e Lc 23,23s;
- a expulsão dos vendilhões do Templo é sumariamente mencionada; cf.
Mc 11,15-17; Mt 21,12s;Jo 2,13-22 e Lc 19,45s;
- na história da Paixão Pilatos é poupado o mais possível; cf. Lc 23,25 e
Mc 15,15; Mt 27,26.
Lição 4: A mensagem de Lc
S. Mateus apresentava Jesus como o Mestre notável por seus sermões; S.
Marcos o descreveu como o herói admirável por seus feitos. Lucas se detém
mais nos traços pessoais e delicados da alma de Jesus, o que torna o 3o
Evangelho alimento substancioso da vida espiritual.
1. Lc = Evangelho da salvação e da misericórdia
1. Tenhamos em vista a genealogia de Jesus conforme Lc 3,23-38: Jesus
é apresentado não apenas como Filho de Abraão e Filho de Davi (cf. Mt 1,1),
mas como filho de Adão (Lc 3,38). Isto quer dizer que Ele é irmão de todos os
homens (judeus e gentios); Ele é o Salvador de todos.
Observemos também o episódio de Lc 2,1-11. Abre-se com a menção de
César Augusto e do seu decreto de recenseamento universal; é sobre este pano
de fundo que o Evangelista introduz a figura de Jesus recém-nascido e anunciado
pelos anjos como o Cristo Senhor e Salvador (2,10s), Tal apresentação constituía
o autêntico "Evangélion" (Boa-Nova) num mundo em que todos os cidadãos
aguardavam os precários "Evangelia" (mensagens de paz e bonança) dos Césares
Romanos.
Comparemos entre si Mt 3,3; Mc 1,2s e Lc 3,4-6: a mesma profecia de Is
40,5 é citada, com um acréscimo peculiar a Lc.
As palavras finais de Jesus fazem ressoar a mensagem da salvação
universal: Lc 24,46s.
2. O Salvador de todos é também o portador do grande perdão. É o que
se depreende especialmente de Lc 15, onde três parábolas concatenadas afirmam
a condescendência de Deus, recorrendo mesmo a refrões; Lc 15,7,10.24.32.
Jesus dá o exemplo do perdão em 7,36-50 (a pecadora agraciada), em
13,10-17 (a mulher encurvada), em 19,1-10 (Zaqueu, o publicano), em 23,34
("não sabem o que fazem"), em 23,39-43 (o bom ladrão).
S. Lucas não refere o episódio da figueira amaldiçoada (cf. Mc 11,12-
14.20-25 e Mt. 21,18-22), mas narra outro episódio, em que a figueira é objeto
de misericórdia: 13,6-9 (parábola própria de Lc).
Por conseguinte, não sem motivo S. Lucas foi chamado "o escritor da
mansidão de Cristo" (Dante Alighieri).
2. Lc = Evangelho do Espírito Santo e da oração
O Espírito Santo era o dom prometido pelos profetas como fruto da vinda
do Messias.
Ora em todo o 3o Evangelho é enfatizada a constante ação do Espírito
Santo: Lc 1,15.35.41.67; 2,25-27; 3,16.22; 4,1.14.18; 10,21; 11,13; 12,10.12;
24,49 (o mesmo, aliás, se dá no livro dos Atos dos Apóstolos).
O Espírito é o inspirador da oração (cf. Rm 8,26). Por isto Lc é também, muito
mais do que Mt e Mc, o mensageiro da oração.
Encontram-se um bloco de ensinamentos sobre a oração em Lc 11,1-13, e
duas parábolas em Lc 18,1-8 (a viúva) e 18,9-14 (o fariseu e o publicano).
Além disto, Jesus dá o exemplo da oração. Os três sinóticos referem que
Ele orou no Horto das Oliveiras (Mt 26,39; Mc 14,35; Lc 22,42); Marcos
acrescenta que Ele se retirou ao deserto para rezar (1,35). Somente Lc nos diz
que Jesus rezou em nove outras ocasiões: 3,21; 5,16; 6,12; 9,18; 9,28s; 11,1s;
22,32; 23,34.46.
Também Lc é o único a consignar os quatro cânticos solenes da Liturgia:
o de Maria SS. (1,46-55), o de Zacarias (1,68-79), o dos anjos (2T14) e o de
Simeão (2,29-32).
Sendo assim, entende-se que uma das expressões mais usuais do 3o
Evangelho (não ocorrente em Mt e Mc) é "louvar a Deus"; cf. 1,64; 2,13.20.28;
18,43 (cf. Mc 10,52); 19,37(cf. Mc 11,7-10); 24,53.
3. Lc = o Evangelho da pobreza e da alegria
A pobreza ou simplicidade de vida como quadro dentro do qual o espírito
é livre de apegos e paixões era estimada desde o exílio dos judeus na Babilônia
(Jeremias dá início à escola dos pobres, anawim, no séc.VI a. C.).
Ora Jesus dá o exemplo e transmite os ensinamentos de tal pobreza: Lc
9,58 (não tem onde reclinar a cabeça); 2,7 (uma mangedoura); 2,24 (a oferta dos
pobres); 2,8.12 (anunciado aos pastores).
Ao proclamar as bem-aventuranças, Jesus em Lc se refere a situações de
desconforto: pobreza material, fome material, pranto, perseguição (cf. 6,20-24);
em Mt 5,1-13 as bem-aventuranças se referem primeiramente a atitudes
interiores ou a qualidades éticas. Ora Jesus certamente acentuou a importância
do quadro exterior pobre, indispensável para que a virtude possa florescer, e S.
Lucas fez-se arauto deste aspecto das bem-aventuranças, ao passo que S. Mateus
quis mostrar que o quadro exterior (a pobreza, a fome) nada vale se não é
vivificado por virtudes (pobreza de coração, fome e sede de justiça).
Em Lc 12,16-21; 16,1-9 e 16,19-31 são apresentadas três parábolas de
"perspectiva sapiencial": incutem a compreensão exata dos bens que esta vida
oferece; só merecem a estima do cristão se são capazes de o levar à vida eterna.
A posse de riquezas pode acarretar surpresa ou inversão de sortes para quem não
as usa sabiamente, isto é, à luz da eternidade.
Em Lc 8,1-3e 19,8s aparecem respectivamente as mulheres generosas e
Zaqueu como tipos daqueles que sabem fazer bom uso de seus haveres.
Ao mesmo tempo que recomendava o desapego, Lucas apregoou
também, mais que nenhum evangelista, a alegria. Tenhamos em vista os cantos
de Maria (1,46-55), Zacarias (1,68-79), Simeão (2,28-32), a mensagem dos anjos
aos pastores (2,10s). Vejam-se ainda 10,20s; 13,17; 19,37. O livro se encerra
referindo a alegria dos Apóstolos, que aguardavam o Espírito prometido
(24,52s).
Para aprofundamento:
BALLARINI,T., Introdução à Bíblia IV. Ed. Vozes, Petrópolis 1972.
BARBAGLIO, FABRIS, MAGGIONI, Os Evangelhos. Ed. Loyola
1990.
GEORGE A., Leitura do Evangelho segundo Lucas. Ed. Paulinas, São
Paulo 1982.
PIKAZA, J., A Teologia de Lucas. Ed. Paulinas, São Paulo 1978.
* * *
PERGUNTAS
1) S. Lucas foi um dos doze apóstolos? Explique
2) Quais são os indícios de interesse médico próprio de Lc?
3) Como S. Lucas tratou os pagãos no seu Evangelho?
4) Qual o papel atribuído por Lc à cidade de Jerusalém? Por que assim
procedeu?
5) Cite e explique três das antíteses de Lc.
6) Que papel desempenha a mulher em Lc?
7) Qual a atitude de Lucas diante de episódios violentos?
8) Desenvolva duas das características da mensagem de Lc.
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
1ª SUBETAPA: INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
MÓDULO V: EVANGELHO SEGUNDO SÃO
JOÃO
Lição 1: O autor do IV Evangelho
Nos últimos dois séculos discutiu-se muito a autoria do IV Evangelho:
tocaria a João, filho de Zebedeu e Salomé (cf. Mc 15,40; Mt 27,50; Mt 20,20),
irmão de Tiago o maior (cf. Mc 1,16-20)?
Depois de calorosamente debater o assunto, a crítica hoje aceita a autoria
de João Apóstolo, baseada nas seguintes verificações, tiradas do texto do próprio
Evangelho:
1) O autor do IV Evangelho é judeu da Palestina1.
1 - Distinto do Judeu da Palestina, havia o Judeu da diáspora, que vivia na dispersão ou no
estrangeiro.
Conhecia bem a geografia da Palestina: Caná (2,1); Enom, junto a Salim
(3,23); Sicar (4,5); sinagoga de Cafarnaum (6,59); Efraim (11,54); Cedron e
Horto das Oliveiras (18,1); Gábata ou Litóstrotos (19,13), Betânia da
Transjordânia e Betânia de Lázaro (1,28 e 11,18).
Conhecia bem a mentalidade dos judeus, inconstantes e divididos entre si
como haviam sido outrora no deserto: 10,19-21; 7,12s; 9,16. Alguns crêem
(2,23-25; 12,19.42), enquanto outros se endurecem na incredulidade (7,5; 9,18).
Ora querem apedrejar Jesus (8,59; 10,39) ou prendê-lo (10,39) ou matá-lo
(5,18;7,1), ora querem aclamá-lo Rei (6,15).
Conhecia bem as festas dos judeus e seus usos: 2,6.13; 4,9; 5,1; 6,4; 7,2;
11,55; 18-28. Há 20 citações do Antigo Testamento no IV Evangelho.
O autor usa de linguagem grega impregnada de vocábulos e expressões
semitas2: Rabbi (1,38; 20,16), Messias (1,41), Kepha (1,42), Siloé (9,7), Gábata
(19,13), Gólgota (19,17).
2 - Semita, no caso, quer dizer "hebraico" ou "aramaico" (língua muito vizinha ao hebraico).
Acrescentamos:
2) O autor foi judeu que testemunhou o que narra.
Tenham-se em vista as alusões ao testemunho ocular: 1,14; 19,35; 21,24;
também 1Jo 1,1 -4 (a 1Jo parece ter sido a carta que acompanhava e apresentava
o Evangelho). Observem-se as minúcias em 1,29-35.39; 2,1; 4,6.52; 6,19 (cf. Mt
14,24s e Mc 6,47, onde a distância é expressa em termos mais vagos).
3) O autor é membro da comunidade dos Apóstolos, chegado a Jesus.
Conhecia bem as atitudes dos Apóstolos:
Pedro: 1,42; 6,68s; 13,6-9.24.36; 18,17; 20,2-10; 21,3.7-11.15-22.
Filipe: 1,45s; 6,7; 12,21s; 14,8-10.
Tomé: 11,16; 14,5; 20,24.26.28.
Natanael: 1,46.48s.
Judas Tadeu: 14,22.
Esteve presente à última ceia, da qual só os Apóstolos tomaram parte
com Jesus: 13,4s.12 (observar as minúcias), 13,21-30 (anuncio da traição).
O autor era mesmo o "discípulo que Jesus amava": comparar Jo 21,24
com 21,20 e 13,23.
4) Tal amigo de Jesus só podia ser o Apóstolo São João.
Três eram os discípulos mais chegados a Jesus: Pedro, Tiago e João (cf.
Mc 5,37; 9,2; 14,33).
Fica excluído Pedro, pois o autor se distingue de Pedro: ver 13,24; 18,15;
20,2; 21,7.20. Ademais a redação do Evangelho supõe a morte de Pedro já
ocorrida; cf. 21,18s.
Também Tiago não vem ao caso, pois sofreu o martírio por volta de 44
(cf. At 12,1 s), ao passo que o 4o Evangelho foi redigido depois desta data, tendo
o evangelista chegado a avançada idade (Jo 21,22s).
Donde se conclui que o autor do 4o Evangelho é o Apóstolo S. João,
como, aliás, atesta a tradição cristã.
Esta conclusão explica que o 4o Evangelho nunca cite pelos nomes o
Apóstolo João, seu irmão Tiago, e sua mãe Salomé, embora mencione com
freqüência os nomes de sete outros Apóstolos, como se depreende do quadro
abaixo:
Jo Mt Mc Lc
Pedro 40x 26x 25x 29x
Filipe 12x — — —
Judas Iscariotes 8x 4x 2x 3x
Tomé 7x — — —
Natanael (Bartolomeu) 6x — — —
André 5x 1x 3x —
Judas Tadeu 1x — — —
Em conseqüência, todas as vezes que o Precursor João é mencionado no
4o Evangelho, o seu nome ocorre sem aposto, como se não houvesse outro João
com quem pudesse ser confundido; cf. Jo 1,6.19.26.28.35; 3.,23-27. Este
procedimento é estranho, pois o autor faz questão de diferenciar bem os seus
personagens sempre que haja dois ou mais indivíduoscom o mesmo nome; cf.
6,71; 14,22; 19,38s.
Visto que João gozava de grande autoridade na Igreja (cf. Gl 2,9),
pergunta-se: quem terá ousado assim proceder se não o próprio João?
Uma vez provada a autoria joanéia do 4o Evangelho, perguntamos: em
que circunstâncias foi escrito?
Lição 2: Circunstâncias de origem
1. O Evangelho segundo S. João foi escrito entre 95 e 100 d.C.,
provavelmente em Éfeso, onde S. João residia.
Escrevendo tão tardiamente,
a) S. João não quis repetir quanto haviam dito os sinóticos, mas supôs os
escritos de Mt, Mc e Lc. Por exemplo, João Batista não é apresentado (com seu
gênero de vida, sua família...), mas logo posto em atividade em 1,15.19-34; a
Mãe de Jesus não é chamada por seu nome "Maria" (cf. 2,1; 19,25), embora o
evangelista se refira a outras "Marias" em 11,1; 19,25 e 20,1. Nada se encontra
em Jo sobre a origem humana de Jesus; em Jo 3,24 está dito que "João ainda não
fora encarcerado", mas não é narrado o encarceramento de João. As notícias de
11,1 fazem o eco a Lc 10,38-42. Em Jo 11,2 há alusão a Mc 14,2-9;
b) S. João escreveu um Evangelho profundamente meditado e teológico.
Escolheu alguns dados da tradição anterior, entre os quais sete milagres,
chamados "sinais" (2,1-11; 4,46-54; 5,1-9; 6,5-14; 6,16-21; 9,1-11; 11,1-37); a
esses sinais acrescentou discursos de Jesus, que expõem a transcendência de
Deus (Pai, Filho e Espírito Santo), o valor do Batismo (c. 3), da Eucaristia (c. 6),
da graça (c. 4), da fé (c. 9)...
Apresentando essa doutrina, o evangelista tinha em mira fortalecer na fé
os leitores, agitados pelas falsas idéias de Cerinto e Ebion; estes negavam a
Divindade de Jesus, afirmando que o Espírito Santo descera sobre o homem
Jesus no Batismo e dele se afastara na Paixão.
Por isto afirma o evangelista: "Jesus fez muitos outros sinais que não
estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus
é o Messias, e, acreditando, tenhais a vida em seu nome" (Jo 20,30s).
2. Poderia alguém julgar que, por ser um Evangelho profundamente
teológico, Jo se distanciou da história real cedendo a ficções. Na verdade, isto
não se deu. É somente através de Jo que sabemos que a vida pública de Jesus
incluiu três Páscoas (Jo 2,13; 6,4; 12,1) e, portanto, durou cerca de três anos;
somente Jo nos dá a saber que Jesus pregava na Galiléia e na Judéia em viagens
sucessivas (cf. 2,1.13; 4,4s.45; 5,1; 6,1...). Em Jo há dez alusões à topografia da
Palestina não encontradas nos sinóticos. No último século, a arqueologia
confirmou a existência da piscina de Betesda, com cinco pórticos (cf. Jo 5,2) e a
do Litóstrotos ou Esplanada (cf. 19,13). Em conseqüência, verifica-se que o mais
teológico dos evangelistas é também o mais minucioso em matéria de história.
Deve-se reconhecer que a conclusão do Evangelho (21,24s) não é de
João, mas dos discípulos de João, sem deixar de ser parte integrante do
Evangelho canônico.
Lição 3: A mensagem de Jo
Quais os principais traços da mensagem teológica de Jo?
1) A figura de Cristo é muito elaborada. São postos em relevo os traços
divinos e os traços humanos de Jesus:
- desde o início da sua vida pública Jesus é reconhecido como Messias e
Deus (Jo 1,15.29.35s.41.49). Ele mesmo afirma ser o Messias e o Filho de Deus
(Jo 1,51; 3,11-13; 4,26; 5,16-18; 8,58; 9,36-39).
Jesus aparece cheio de majestade, de modo que, quando o querem
prender antes da sua hora, não o conseguem (cf. 7,30; 8,20); ninguém lhe tira a
vida, mas Ele a dá por sua própria vontade (cf. Jo 10,17s); antes de ser preso, Ele
põe por terra os seus adversários (cf. Jo 18,4-6). Por trinta e oito vezes em Jo
ocorre nos lábios de Jesus a expressão "Eu sou...", que lembra o Santo nome de
Deus (Javé, Eu sou aquele que é; Ex 3,14).
- A natureza humana de Jesus aparece por ocasião do episódio de Lázaro,
quando Ele revela seu coração (cf. Jo 11,5.11.33-38); por ocasião das bodas de
Caná (cf. Jo 2,1-11); quando, cansado e sedento, se senta junto ao poço de Jacó
(cf. Jo 4,6-8.31); quando manifesta angústia diante da sua Paixão (cf. 12,27);
quando prediz a traição (cf. 13,21). Ele é profundo conhecedor da psicologia
humana, como se depreende de Jo 4,7-9.16-18.29; 9,7.35-38.
2) Jo apresenta seus episódios de modo que se percebam através deles
alusões aos sacramentos da Igreja: assim em Jo 3,1-12; 4,1-26; 5,1-9; 9,1.11 as
referências à água que salva, são acenos ao Batismo; em Jo 2,1 -11; 6,25-58;
19,31 -37, as referências ao vinho, ao pão, ao sangue são menções da S.
Eucaristia. O Evangelho termina precisamente afirmando que, do lado de Jesus
pendente da cruz, jorraram água e sangue, símbolos do Batismo, da Eucaristia e
dos demais sacramentos, que prolongam a ação salvífica da humanidade de Jesus
através dos séculos (cf. 19,31 -37).
3) Jo utiliza também figuras (tipos) do Antigo Testamento para ilustrar
elementos do Novo Testamento; mostra assim como a própria Escritura explica
aos nossos olhos o seu sentido; assim em
Jo 1,14 há alusão à tenda de Ex 33,7-11.18-23; 40,34s.
Jo 3,14s O Nm 21,4-9 (a serpente de bronze);
Jo 6,32.488.58 O Ex 16,2-36; Nm 11,4-9 (o maná) ;
Jo 7,37-390 Ex 17,1-7 (água que jorra da pedra);
Jo 8,12 (cf. 12,46) O Ex 40,36-38 (a luz que guiava Israel) ;
Jo 19,36; cf. 1,29) O Ex 12,46; Nm 9,12 (cordeiro de Páscoa);
Jo 19,26; 2,40 Gn 3,15 (Maria, a nova Eva).
Conforme Jo 1,19.29.35.48; 2,1, Jesus realiza o primeiro sinal no sétimo
dia da sua vida publica. Ora, segundo Gn 2,2s, o Criador terminou sua obra
precisamente no sétimo dia; Jesus aparece então como o novo Criador ou o Re-
criador do mundo e do homem.
Em Jo 1,1 "no princípio lembra "no princípio" de Gn 1,1 (primeiro
versículo da Bíblia).
4) O vocabulário de S. João bem mostra os interesses teológicos do
evangelista. Levemos em conta a ocorrência de palavras-chaves em Jo e nos
sinóticos:
Jo
Mt
Mc
Lc
Pai
137x
64x
18x
53x
Mundo
76
9
3
3
Vida
36
7
4
5
Testemunhar
33
1
—
—
Enviar
32
4
1
10
Água Luz
24 23
8
7
5
1
6
7
Glória
18
8
3
13
Pecado
17
7
6
11
Eterno 17 6 3 4
Trevas
9
1
—
1
Nos sinóticos, os
vocábulos
predominantes são:
Mt
Mc
Lc
Jo
Reino
56
18
45
5
Escriba
23
22
14
1
Parábola
17
13
18
—
Geração
Poder
(milagre)
Fé
13
13
9
5
10
5
15
15
11
—
São estes os principais traços da teologia de Jo.
Para ulteriores estudos, recomendamos:
BALLARINI, T., Introdução à Bíblia, vol. IV. Ed. Vozes, Petrópolis
1972, pp. 295-400.
417-428.520-555.
BARBAGLIO, FABRIS, MAGGIONI, Os Evangelhos (II). Ed. Loyola
1990.
DE LA CALLE, A Teologia do Quarto Evangelho. Ed. Paulinas, São
Paulo 1978.
AUBERT, A., Leitura do Evangelho de João Ed. Paulinas, São Paulo
1982.
SILVA SANTOS, B., A Teologia do Evangelho de São João. Ed.
Santuário 1994.
TUNI VANCELLS, O Testemunho do Evangelhos de João. Ed. Vozes,
1989.
* * *
PERGUNTAS
1) O autor do 4o Evangelho era judeu?
2) O autor do 4o Evangelho era Apóstolo?
3) Quem era "o discípulo que Jesus amava"? Explique claramente.
4) Quando e ondeescreveu S. João seu Evangelho?
5) Quais as finalidades de João ao escrever o 4o Evangelho?
6) Qual é a imagem de Cristo apresentada por Jo?
7) Como o 4o Evangelho vê os sacramentos da Igreja?
8) Como o Antigo Testamento é tratado em Jo?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
2a SUBETAPA: OS ATOS DOS APÓSTOLOS
MÓDULO ÚNICO: OS ATOS
Lição 1: Conteúdo de At
O livro dos Atos refere a história da Igreja, que nasceu em Jerusalém e se
propagou até Roma, ilustrando de certo modo as palavras do Senhor em At 1,8:
"O Espírito Santo descerá sobre vós e dele recebereis força. Sereis então minhas
testemunhas em Jerusalém e Samaria, e até os confins da terra". Com outras
palavras: tem-se a história da igreja que passa dos judeus para os gentios, sob o
impulso do Espírito Santo. Por isto Teofilacto († após 1078) dizia: "Os
Evangelhos apresentam os feitos do Filho, ao passo que os Atos descrevem os
feitos do Espírito Santo". Na verdade os Atos registram com freqüência a ação
propulsora do Espírito: 2,4; 4,8.31; 6,3; 7,55; 8,29; 13,2.4.52; 15,28; 16,6...
O livro se divide em duas partes: uma marcada por Pedro (At 1-12), e a
outra marcada por Paulo (At 13-28). Entre estas duas partes existe concatenação
lógica, pois a atividade de Pedro, Apóstolo dos judeus, prepara a de Paulo,
Apóstolo dos gentios: Pedro leva o Evangelho de Jerusalém à Judéia e à
Samaria, chegando ao seu ponto extremo na conversão do primeiro pagão,
Cornélio (10,1-11,18). Paulo desenvolve a evangelização dos gentios mediante
três viagens missionárias em terras pagãs. O capítulo 15 é como que a solda
entre as duas partes do livro: relata os debates do Concílio de Jerusalém, que
terminaram pelo reconhecimento de que o Reino de Deus superara os limites do
judaísmo e se estendia aos gentios.
Lição 2: Autor e circunstâncias de origem
A tradição atribui a S. Lucas, autor do 3o Evangelho, a autoria de Atos.
1. O testemunho mais antigo que se tenha, é o do cânon de Muratori, de
meados do séc. II: "As proezas de todos os apóstolos foram escritas num livro.
Lucas, com dedicatória ao excelentíssimo Teófilo, aí recolheu todos os fatos
particulares que se desenrolaram sob seus olhos e os pôs em evidência, deixando
de lado o martírio de Pedro e a viagem de Paulo da Cidade (Roma) rumo à
Espanha".
Os escritores posteriores fazem eco a este testemunho.
2. Examinemos agora o texto de At para perceber o que nos diz sobre seu
autor:
A identidade de autor, para Lc e At, depreende-se de que ambos estes
escritos têm um prólogo (Lc 1,1-4 e At 1,1-3); o segundo alude à "obra anterior".
Os dois livros são dedicados ao "Excelentíssimo Teófilo" (At 1,1 e Lc 1,3),
Além disto, nota-se que o início de At dá continuidade exata ao fim de Lc (cf. Lc
24,47-53 e At 1,8-12).
O autor nunca cita o próprio nome nas listas dos numerosos personagens
que acompanhavam S. Paulo. Todavia ele descreve segmentos das viagens de
São Paulo recorrendo à primeira pessoa do plural (seções em nós: 16,10-17;
20,5-15; 21,1-18; 27,1-28,16), isto é, incluindo-se entre os companheiros de São
Paulo. A modéstia impedia-o de inscrever-se ao lado dos seus companheiros.
Donde se conclui: se a tradição apontou Lucas como autor dos Atos, de
preferência a outros mais conhecidos (Silvano, Timóteo, Tito...), esta indicação
só se explica porque Lucas de fato escreveu At.
O estilo e o vocabulário de Lc e At são afins entre si: 33 termos do N. T.
só se encontram em Lc e At.
Quanto aos indícios de autor médico em At, são tênues: citam-se a cura
do paralítico com seus pormenores em At 3,7, e a descrição da moléstia do pai
de Públio em At 28,8.
O autor dá provas de espírito culto, de visão ampla e de fino senso
teológico ao descrever a difusão do Evangelho.
3. O livro dos Atos, dedicado a Teófilo e a todos os gentios convertidos,
foi escrito em Roma, conforme S. Jerônimo ou, como prefere a exegese
moderna, na Grécia.
A época de origem é discutida. Muitos argumentam a partir do fecho de
At: o autor diz que Paulo ficou por dois anos (61-63) em Roma sob regime de
prisão domiciliar (28,30s). Perguntam, pois: por que Lucas não relatou o
desfecho desse período de prisão? Por que não referiu a libertação de Paulo
(muito provável) ou a condenação (improvável) do mesmo? A resposta estaria
no fato de que Lucas escreveu antes do fim do período de prisão, ou seja, por
volta de 63. O argumento é significativo; obrigaria a recuar a data de origem do
3o Evangelho para antes de 63, visto que os Atos são posteriores a Lc.
Outros estudiosos não se prendem ao silêncio de Lucas acerca do fim do
período de prisão. Julgam que, para Lucas, o importante era apenas mostrar que
o Evangelho, na pessoa de Paulo, havia chegado à capital do mundo antigo; o
autor sagrado teria atingido seu objetivo narrando a vinda de Paulo a Roma. Em
conseqüência, tais autores atribuem a At origem mais tardia, a saber: entre 70 e
80.
Não merecem atenção outras sentenças. Os racionalistas de Tubinga, por
exemplo, pretendiam, no século passado, atribuir aos Atos origem por volta de
150, pois tal livro teria sido escrito para harmonizar entre si as supostas facções,
petrina e paulina, da Igreja antiga. É artificial ou destituída de fundamento tal
hipótese.
O livro dos Atos aparece, antes, como a continuação do 3o Evangelho: é
obra de catequese que tenciona complementar a formação cristã dos leitores e
mostrar-lhes a Igreja como obra viva do Espírito Santo.
Lição 3: Fontes e historicidade dos Atos
Uma obra tão rica em notícias e documentos supõe ampla informação da
parte do autor, que, aliás, era um pesquisador dedicado (cf. Lc 1,1-4, prólogo que
precede toda a obra de Lucas a Teófilo). Os estudiosos têm procurado determinar
as fontes utilizadas por Lucas, pois desta questão depende a fidelidade histórica
de At.
1. Antes do mais, deve-se registrar o próprio testemunho ocular de Lucas.
Este foi companheiro de Paulo em viagens missionárias, como também no
itinerário de Cesaréia a Roma; em conseqüência, deve ter escrito suas Memórias
ou seu Diário, que aparecem com minúcias e intenso colorido nas seções em
nós: 16,10-17; 20,5-15; 21,1-18; 27,1-28,16. Especialmente esta última, marcada
por linguagem técnica e vivaz, relatando peripécias de viagem e naufrágio, é
testemunho eloqüente da perspicácia e da cultura do autor.
A seguir, registramos tradições - escritas ou orais - recolhidas por São
Lucas: as que dizem respeito à comunidade primitiva de Jerusalém (At 1-5), as
que se referem à obra apostólica de determinados personagens, como Pedro
(9,32-11,18; 12,1-19) e Filipe (8,4-40; cf. 21,8). A comunidade de Antioquia,
primeiro centro missionário em terra pagã, deve ter oferecido a Lucas tradições
referentes à sua fundação e aos judeus helenistas1 (6,1-8,3; 11,19-30; 13,1-3). A
tradição refere que Lucas mesmo era antioqueno; cf. At 11,27, onde, segundo
alguns manuscritos, Lucas se teria incluído entre os cristãos de Antioquia. O
próprio S. Paulo deve ter oferecido a Lucas informações sobre a sua conversão e
suas viagens (9,1-30; 13,4-14,28; 15,36s). Lucas soube harmonizartodo esse
material, dispondo-o em seqüência concatenada; algumas vezes terá praticado
cortes ou deslocamentos de dados, como parece ocorrer no capítulo 12:12,25 se
liga diretamente a 11,30, de modo que 12,1-24 quebra o relato da viagem a
Jerusalém.
1 - Judeu helenista é aquele que tem o sangue israelita, mas vive no estrangeiro, imbuído da
cultura do Império greco- romano.
2. A fidelidade histórica de At se depreende da precisão e da sobriedade
das narrações: estas parecem fazer eco à vida real e concreta; tenham-se em vista
especialmente a descrição da viagem para Roma (27,1-28,16), a estada de Paulo
em Atenas (17,16-34), o tumulto dos ourives em Éfeso (19,21 -40), a celeuma
levantada contra Paulo no Templo (21,27-22,22)...
Especialmente os discursos transmitidos por Lucas em At foram
impugnados: seriam obra artificial, pela qual Lucas teria posto nos lábios dos
oradores suas próprias palavras, à semelhança do que faziam antigos
historiadores. Todavia é difícil admitir que Lucas, por mais culto que fosse,
pudesse após decênios compor discursos de caráter tão arcaico e semitizante
como são os de Pedro (1,16-22; 2,14-36; 3,12-26; 4,8-12; 10,34-43; 11,5-17) e
Estêvão (7,1-53); sem dúvida, Lucas dispunha de documentos, que referiam
esses discursos. Isto não nos surpreende, se levamos em conta que a catequese
primitiva voltava sempre a alguns temas essenciais (promessas feitas aos
Patriarcas, cumprimento em Cristo, infidelidade dos judeus, ressurreição do
Senhor, apelo à penitência...), apoiados em argumentos ou raciocínios
tradicionais e expressos de maneira cadenciada (mnemônica)2; havia florilégios
de textos do A. T. para apresentar Jesus aos judeus e reflexões de filosofia
comum para interpelar os pagãos. A temática da pregação dos Apóstolos era
quase sempre a mesma.
2 • Mnemônico = apto a ajudar a memorização.
Ademais é de notar que grande parte desses discursos foram proferidos
em aramaico; S. Lucas teve que lhes dar a sua forma grega, recorrendo ao seu
estilo pessoal. Chama-nos a atenção também o fato de que o desenrolar de tais
discursos se adapta bem aos respectivos destinatários: um é o modo de Paulo
falar aos judeus (13,16-41), outro aos cristãos (20,18-35), outro aos pagãos
(17,22-31), outro ao Procurador romano (21,10,21), outro ao rei Agripa (26,2-
23).
Lição 4: A mensagem de At
O livro dos Atos é precioso documento da história da Igreja nascente:
informa-nos sobre a vida das comunidades primitivas (cf. 2,44-47; 4,32-34; 6,1-
7; 8,4-8; 12,12-17...), sobre a sua oração e a partilha de bens; sobre a
administração do Batismo até mesmo a uma família inteira, inclusive às crianças
(10,1 -2.24.44.47s; 16,13-15; 16,31 -33; 18,8; 1 Cor 1,16); sobre a celebração da
Eucaristia (2,42.46; 20,7.11; 27,35); sobre a organização da igreja nascente com
seus presbíteros = epíscopos (cf. 11,30; 14,23; 20,17.28)... Isto tudo sempre
aparece como obra do Espírito Santo, Espírito sobre o qual Lucas havia insistido
no seu Evangelho (Lc 4,1.14.18; 10,21; 11,13...) e que preside à expansão da
Igreja. É essa ação do Espírito que comunica a Atos o seu perfume de alegria
espiritual e de maravilhoso sobrenatural, que só pode ser estranho para quem não
compreenda aquele fenômeno único no mundo que foi o nascimento do
Cristianismo.
Além disto, os Atos nos informam sobre as concepções teológicas dos
primeiros cristãos, que têm sua expressão fiel também nas epístolas de São
Paulo: Jesus é o Kyrios, o Senhor, estando a sua humanidade, outrora padecente,
totalmente penetrada pela glória da Divindade {2,22-36; 3,17-21; 4,10-12...).
Percebe-se que os antigos cristãos se compraziam em ver na figura do Cristo o
cumprimento da profecia do Servidor de Javé descrito em Is 52,13-53,12 (cf. At
3,13.26; 4,27.30; 8,32s); descreviam-no também, especialmente quando falavam
a judeus, como o novo Moisés (3,22s; 7,20s). O salmo 15 (16), 8-11 servia para
comprovar a ressurreição de Jesus (cf. Aí 2,24-32; 13,34-37), assim como o
S1109 (110), segundo At 2,34s.
Lição 5: O texto dos Atos
Os manuscritos gregos dos Atos apresentam duas recensões: a chamada
oriental e a ocidental (código D e escritores latinos até S. Agostinho, † 430). A
forma ocidental é mais do que 8% mais longa do que a oriental, acrescentando a
esta pormenores de grande vivacidade; tenham-se em vista 11,27; 15,20.29;
19,1; 20,2; 24,6; 26,7s... Todavia não é mais credenciada; por isto é reproduzido
nas edições modernas dos Atos o texto oriental, mais enxuto. - Como quer que
seja, ao estudioso importará, sempre que possível, consultar as variantes do texto
que as notas de rodapé lhe ofereçam, pois assim enriquecerá sua leitura.
Para ulterior aprofundamento, veja
BALLARINI, T., Introdução à Bíblia, vol. V/1. Ed. Vozes 1974
BARBAGLIO, FABRIS, MAGGIONI, Atos dos Apóstolos. Ed. Loyola
1990.
DUPONT, J., Estudos sobre os Atos dos Apóstolos. Ed. Paulinas
1974.
GRELOT, P., Introdução à Bíblia, Ed. Paulinas 1971.
LAPPLE, A., Bíblia: Interpretação atualizada e catequese; vol. 3:
Novo Testamento. Ed. Paulinas 1980.
* * *
PERGUNTAS
1) Diga em síntese qual a história relatada por At.
2) Como se prova que Lucas foi o autor de At?
3) Há continuidade entre At e Lc?
4) A que destinatários se dirige At?
5) Pode-se crer na fidelidade histórica de At? Demonstre-o.
6) Qual a importância do livro dos Atos para a história da Igreja
nascente
(organização, culto...) e para a teologia do Cristianismo?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
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ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO I: A PESSOA E A OBRA DE
PAULO
Lição 1: Traços biográficos de S. Paulo
Paulo (ou Saulo) nasceu em Tarso na Cilícia (Ásia Menor) no limiar da
era cristã, pois, quando escrevia a Filemon em 62, dizia ser ancião (cf. Fm 9; At
21,39; 22,3; F! 3,5). Nasceu de família israelita, muito fiel às tradições
religiosas; seu pai comprara a cidadania romana, de modo que Saulo nasceu
como cidadão romano. Em conseqüência Paulo era, desde as suas origens,
herdeiro de três culturas: a hebraica, essencialmente religiosa; a helenista,
filosófica e artística, e a romana, de índole jurídica.
Aos quinze anos de idade, foi enviado para Jerusalém, onde se sentou aos
pés do rabino Gamaliel (cf. At 22,3; 26,4; 5,34): foi então iniciado na arte
rabínica de interpretar a S. Escritura, como também deve ter aprendido uma
profissão manual: a de curtidor de couro ou seleiro, profissão que o Apóstolo
havia de exercer a vida inteira.
Cerca de vinte anos depois ou em 36 aproximadamente, Paulo era
ardoroso perseguidor dos cristãos, julgando assim servir a Deus. Na estrada de
Jerusalém para Damasco, onde pretendia prender cristãos, foi prostrado pelo
Senhor, que lhe perguntou: "Por que me persegues?" Era Jesus que assim lhe
falava e o enviava à casa de Ananias em Damasco, onde seria batizado; cf. At
9,1-18; 22,4-21; 26,11-18; Gl 1,13-16
Feito cristão,Paulo quis iniciar em Damasco mesmo a pregação do
Evangelho, mas não foi aceito pelos ouvintes. Retirou-se então para um lugar
chamado Arábia, talvez não muito longe de Damasco, onde permaneceu três
anos; a nova personalidade de Paulo foi amadurecendo sob o influxo da graça de
Cristo, que lhe revelou a doutrina cristã. Após três anos, regressou a Damasco,
onde mais uma vez quis tentar a pregação do Evangelho; mas os judeus
tramaram a sua morte, obrigando-o a fugir dentro de uma cesta por uma janela
que se abria na muralha da cidade para fora. Cf. At 9,19-25; Gl 1,17.
Era o ano de 39, quando Paulo em Jerusalém se avistou com Pedro e
Tiago durante quinze dias; cf. Gl 1,18s. Também tentou pregar o Evangelho aos
judeus, mas não encontrou acolhida. Para escapar novamente da morte, o
Apóstolo teve que deixar a Cidade Santa e retornou à sua cidade natal, bastante
acabrunhado pelos fracassos de sua missão apostólica; cf. At 9,26-30.
Em Tarso deve ter permanecido quatro ou cinco anos, até 43. A esta
altura, algo de importante se deu na vida de Paulo: Antioquia da Síria tornara-se
importante centro missionário, onde trabalhava Barnabé, primo de Paulo. Ora
Barnabé, consciente da capacidade apostólica de seu parente, resolveu ir buscá-
lo em Tarso para que colaborasse na missão em Antioquia; cf. At 11,25s. Esta
nova tentativa foi bem sucedida, tanto que no ano seguinte, em 44, Barnabé e
Paulo foram enviados pelos cristãos de Antioquia, para levar os frutos de uma
coleta feita em favor dos pobres de Jerusalém; cf. At 11,27-30;12,25.
De regresso a Antioquia, Barnabé e Paulo continuaram o seu ministério, até que
em 45, por designação do Espírito Santo, foram indicados, juntamente com João
Marcos, para o apostolado em terras distantes; cf. At 13,1-3.
Paulo fez assim a sua primeira viagem missionária, que durou cerca de
três anos (45-48), percorrendo a ilha de Chipre e parte da Ásia Menor (cf. At
13,1-14,28): muitos gentios abraçaram o Evangelho, constituindo comunidades
cristãs esparsas pelo Sul da Ásia Menor. Eis, porém, que, em conseqüência, se
levantava sério problema para Paulo: os judaizantes (judeus convertidos ao
Cristianismo, mas adeptos das observâncias judaicas) queriam que os pagãos não
fossem batizados sem abraçar antes a Lei de Moisés (como eles mesmos a
tinham abraçado). Ora Paulo havia pregado o Evangelho e batizado sem
mencionar a Lei de Moisés e a circuncisão. O Apóstolo compreendia bem que a
Lei era como uma preparação provisória para o Evangelho; ela significava a
vinda do Messias; por conseguinte, perdera seu papel logo que chegara o Cristo.
Não haveria sentido, pois, em dar o batismo e impor a circuncisão
simultaneamente. Paulo assim aparecia como o arauto da liberdade cristã frente
às observâncias judaicas; todavia muitos judaizantes o viam como libertino ou
traidor.
O problema assim colocado tornou-se agudo logo após a primeira viagem
missionária de Paulo. Em vista disto, a igreja-mãe de Jerusalém resolveu chamar
Paulo e Barnabé àquela cidade; reuniram-se com Pedro, Tiago e seus imediatos
colaboradores constituindo o chamado "Concilio de Jerusalém" (49). Após os
debates oportunos, os Apóstolos reconheceram a liberdade dos cristãos em
relação às observâncias judaicas. Apenas pediram às comunidades da Cilícia e
da Síria que respeitassem quatro cláusulas destinadas a preservar a paz nas
regiões em que havia grande número de judeo-cristãos. Tais são as "cláusulas de
Tiago":
1) abster-se de idolotitos ou carnes imoladas aos ídolos nos templos
pagãos, pois aos fiéis de consciência fraca pareciam contaminadas pelo demônio
(o que não acontecia) ; 2) abster-se de carne portadora de sangue; 3) abster-se de
tomar sangue, pois os judeus julgavam que o sangue é a própria vida, que só a
Deus pertence (cf. Gn 9,4); 4) não ceder às paixões impuras. Cf. At 15,1-35.
O Concilio de Jerusalém esclareceu as mentes, mas não conseguiu deter
os judaizantes, que continuaram a hostilizar São Paulo.
Pouco depois do Concilio, Pedro e Paulo se achavam em Antioquia.
Pedro comia de todos os alimentos, sem observar a distinção judaica de
alimentos puros e impuros. Quando, porém, chegaram alguns judaizantes, Pedro
começou a proceder como se fosse ele mesmo judaizante. Paulo, vendo isto,
opôs-se a Pedro, pois o exemplo deste podia arrastar multidões para o erro. Este
é o "incidente de Antioquia"; cf. Gl 2,11-14. O episódio mostra a autoridade de
Pedro; o seu exemplo era tomado como norma.
Seguiu-se a segunda viagem missionária (50-53), durante a qual Paulo
em Corinto escreveu 1/2 Ts. Cf. At 15,36-18,22.
A terceira viagem missionária (53-58) sucedeu-se logo; cf. At 18,23-
21,17. Deu ocasião a mais quatro cartas de São Paulo, chamadas "as grandes
epístolas": Gl e 1Cor em Éfeso; 2Cor em Filipos; Rm em Corinto.
O êxito dessas viagens provocou os judaizantes de Jerusalém.
Conseguiram mandar prender Paulo, que regressara recentemente da terceira
expedição apostólica. O tribuno romano Cláudio Lísias, perplexo como estava
(pois não entendia o problema religioso em foco), resolveu mandar Paulo para
Cesaréia, onde residia o procurador romano Félix. O apóstolo passou dois anos
(58-60) nesta cidade, aguardando julgamento; vendo que o caso não se resolveria
em breve, Paulo apelou para o tribunal de César em Roma. Tinha direito a isto,
pois era cidadão romano.
O embarque para Roma deu-se no começo de outubro de 60, quando se
aproximava o inverno. Lucas, companheiro de Paulo a bordo, deixou-nos
impressionante relato dessa viagem infeliz; cf. At 27,1-28,15. O navio naufragou
junto à ilha de Malta, onde Paulo, Lucas e Aristarco passaram o inverno.
Finalmente prosseguiram para Puteoli perto de Nápoles, donde chegaram a
Roma (61). Paulo ficou nesta cidade em prisão domiciliar até 63. S. Lucas não
nos diz qual o desfecho do processo, mas é de crer que tenha terminado com a
libertação de Paulo; cf. At 28, 16-31. Durante esses dois anos Paulo manteve
intercâmbio com os fiéis do Oriente, resultando daí as quatro cartas do cativeiro:
Fm, Cl, Ef, Fl.
O resto da vida de S. Paulo é-nos incerto. É de crer que tenha passado de
Roma para a Espanha, aonde desejava ir para atingir "os confins do mundo" (Rm
15,24). Da Espanha terá voltado para o Oriente, onde se julga que escreveu mais
duas cartas (ditas "pastorais"): 1Tm e Tt, entre 64 e 66. Finalmente foi preso em
66 e levado para Roma; este segundo cativeiro romano foi mais penoso do que o
primeiro, pois Paulo estava em prisão comum, como malfeitor (desde 64, o
nome de cristão era ilícito); somente Lucas o acompanhava, como se depreende
da 2Tm 4,11, testamento do Apóstolo, escrito naquele cárcere como terceira
carta pastoral. É de crer que a condenação à morte tenha sido proferida e
executada em 67.
Assim terminou a sua missão um dos maiores vultos do Cristianismo. Ao
Apóstolo tocou o papel de proclamar e defender a liberdade dos cristãos frente à
Lei de Moisés. Se Paulo não o tivesse feito, o Cristianismo se teria tornado uma
seita judaica e teria perecido como outras seitas judaicas do início da era cristã.
Em prol dessa causa Paulo padeceu horrivelmente durante toda a sua carreira
apostólica; uma imagem desses sofrimentos encontra-se no catálogo das dores
do Apóstolo em 2Cor 11,23-29.
Este trecho mostra a têmpera enérgica e a fibra entusiástica do Apóstolo,
que, além do mais, devia sofrer de moléstia crônica, com acessos dolorosos e
imprevisíveis, como se depreende de 2Cor 12,7-10... Não se pode explicar o que
tenhasido o aguilhão da carne de Paulo (doença dos olhos, conforme Gl 4,12-15,
a resistência dos israelitas, irmãos de Paulo segundo a carne?, a fé cristã,
conforme Rm 9,1-3?).
O Apóstolo deixou-nos treze cartas, como se pode perceber. A epístola
aos Hebreus é agregada ao epistolário paulino, mas certamente não é da autoria
de Paulo, sem deixar de ser canônica. Alguns críticos modernos discutem
também a autoria paulina de 1Ts, Ef, 1/2 Tm e Tt; o assunto será estudado na
introdução a cada uma destas cartas.
Lição 2: A Redação das Cartas
Sabemos que a tarefa de escrever, na antiguidade, era difícil e lenta, pois
se usava papiro ou pergaminho, a que se aplicavam estiletes de plantas ou penas
de ganso.
Paulo não escrevia diretamente, mas recorria a escribas peritos (Tércio,
em Rm 16,22, Silvano, Timóteo...; cf. 1Ts 1,1; Gl 6,11; 1 Cor 16,21; Cl 4,18), a
quem o Apóstolo ditava. Fazia-o não durante o dia, pois então pregava e
trabalhava com as mãos, mas em serões noturnos, que não podiam durar mais de
2/3 horas: a luz era fraca e amarelada, de azeite; as posições, sobre o chão ou
almofadas, muito incomodas. Em tais circunstâncias o rendimento do trabalho
era exíguo: 3 sílabas por minuto, 72 palavras por hora.
Na base destes dados, julga-se que a carta aos Romanos, que tem 16
capítulos e 1.701 palavras, deve ter exigido mais de 98 horas de escrita e 50
folhas de papiro hierático; isto equivale a 32 dias com 3 horas de trabalho ou a
49 dias com 2 horas de trabalho; facilmente, porém, poderíamos admitir que a
redação de Rm se tenha protraído por dois meses ou mais, se levássemos em
conta as depressões de saúde e os imprevistos que perturbavam a vida do
Apóstolo. A 1Ts, com 1.472 palavras, pode ter exigido 20 horas de escrita; a
1Cor, com 6.820 palavras, 94 horas; a 2Cor, com seus 13 capítulos, 62 horas;
Galatas, com 2.200 vocábulos, 22 horas; Colossenses, com 4 capítulos, 21 horas;
2Ts, com 3 capítulos, 11 horas; 1Tm, com 6 capítulos, 22 horas; a 2Tm, com
1.329 vocábulos, 17 horas; Tt com seus 3 capítulos, 9 horas; Filemon com 335
palavras, 5 horas ou 2/3 serões.
Estes números não são aceitos por todos os estudiosos. Julgam que o
temperamento enérgico do Apóstolo não se concilia com tal morosidade na
redação de mensagens que, muitas vezes, eram urgentes.
Em qualquer hipótese é claro que as cartas de S. Paulo foram redigidas por etapas,
com repetidas interrupções do fio das idéias. Estas concorrem para explicar a falta de conexão
entre certas passagens, a transição brusca de um tema para outro, as repetições, os
truncamentos de textos, as mudanças repentinas de estilo e sintaxe do epistolário paulino.
Lição 3: O estilo de Paulo
O Apóstolo mesmo reconhecia que não fazia caso da sabedoria da
linguagem (lCor 1,17). Interessavam-lhe acima de tudo o conteúdo dos
vocábulos e a doutrina a ser transmitida. Ora, esta, São Paulo a possuía em
profusão: "Ainda que seja imperito no falar, não o sou na ciência de Cristo. Nós
sempre o manifestamos diante de vós em todos os pontos" (2Cor 11,6).
Paulo vibrava com todas as fibras do seu ser ao tratar do Evangelho. Em
conseqüência, a sua palavra não podia deixar de ser rica de vigor e vida. A todos
impressionava não tanto pela forma literária, mas pela profundidade do
conteúdo. Aliás, Quintiliano († 95), famoso mestre romano de eloqüência,
observava: "O coração e a sólida convicção é que tornam os homens
eloqüentes". Ora é justamente isto que se dava com S. Paulo. Por isto também os
crítico, reconhecem, nas cartas do Apóstolo passagens de admirável eloqüência,
que merecem para S. Paulo um lugar de destaque entre os grandes escritores da
literatura mundial. Tenham-se em vista especialmente Rm 8,31-39 (o hino da
vitória de Cristo), 1Cor 13,1-13 (a Dama Caridade), 1Cor 1,18-30 (a loucura da
cruz).
Para terminar, seguem-se três sugestões práticas:
1) Não ler as epístolas paulinas como estão dispostas no cânon (a ordem
é de tamanho decrescente), mas segundo a seqüência cronológica (a partir de
1Ts...);
2) colocar cada epístola no seu contexto histórico e geográfico próprio,
ou seja, no contexto da biografia de São Paulo; usar cronologia e mapa das
viagens paulinas;
3) ler anotando as dúvidas para levá-las a quem as possa elucidar.
Para ulterior aprofundamento:
BALLARINI, T., Introdução à Bíblia, vol. V/1. Ed. Vozes 1974.
BARBAGLIO, FABRIS, MAGGIONI, As Cartas de Paulo. Ed. Loyola
1990.
BELLINATO, G., Paulo: cartas e mensagens. Ed. Loyola 1979.
CERFAUX, L, O Cristo na Teologia de São Paulo. Ed. Paulinas 1975.
7"
DATTLER, FR., Eu, Paulo. Ed. Vozes 1976.
MOHANA, J., A Cristo por Paulo. Ed. Agir 1985.
* * *
PERGUNTAS
1) Cite três episódios da vida de São Paulo que mais o(a) tenham
impressionado. Justifique sua escolha.
2) Diga como São Paulo escrevia suas cartas.
3) Aponte três textos paulinos cujo conteúdo lhe pareça especialmente
significativo. Justifique a escolha.
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2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO II: AS DUAS CARTAS AOS
TESSALONICENSES
Lição 1: A 1Ts
As 1/2 Ts têm como tema central a segunda vinda de Cristo, que as
primeiras gerações esperavam para breve. As cartas seguintes a 1/2 Ts se
voltarão não tanto para a imagem do Cristo vindouro, mas para a do Cristo
presente na sua Igreja.
1.1. O pano de fundo de 1Ts
Em At 17,1-10 é narrada a fundação da comunidade cristã de
Tessalônica. Esta cidade era porto marítimo muito florescente na Grécia. A
prosperidade material contribuía para baixar o nível moral da população
respectiva: para Tessalônica confluíam homens, idéias e costumes do Oriente e
do Ocidente, dando lugar ao cosmopolitismo, ao sincretismo religioso e à
devassidão dos costumes.
Ao lado dos cultos pagãos, havia uma colônia judaica na cidade.
Conforme o seu costume, Paulo, ao chegar a Tessalônica, foi primeiramente
procurar os judeus na sinagoga, anunciando-lhes o Evangelho por três sábado
consecutivos. Diante do pouco êxito obtido, Paulo voltou-se para os gentios da
cidade, que aderiram fervorosamente ao Evangelho. Constituíram assim a
comunidade cristã de Tessalônica, recrutada majoritariamente entre os pagãos.
Irritados com os fatos, os judeus levantaram uma celeuma contra Paulo e Silas,
obrigando-os a deixar a comunidade, ainda de catequese incompleta.
O apóstolo foi descendo pelo litoral da Grécia, chegando finalmente a
Atenas. Nesta cidade, aflito para ter notícias de Tessalônica, Paulo resolveu
mandar para lá seu discípulo Timóteo. Este, após visitar os fiéis tessalonicenses,
voltaria para junto do mestre em Corinto, um pouco ao Sul de Atenas (cf. 1Ts
3,1s).
Em fins de 51, Timóteo tornou a se encontrar com Paulo, dando-lhe as
informações desejadas, em parte boas, em parte sombrias.
De um lado, Timóteo relatava que os fiéis perseveravam na fé, apesardas
perseguições sofridas da parte dos judeus (cf. 1,3.6-10; 3,4); a caridade dos fiéis
impressionava os gentios da Macedônia (4,10). Em relação ao Apóstolo,
conservavam vivo afeto, não obstante as calúnias difundidas pelos judeus (3,6);
os tessalonicenses, contrariamente ao que diziam os judeus, sabiam que Paulo
não era interesseiro explorador, mas trabalhara com as mãos dia e noite para
poder sobreviver às próprias custas sem onerar os fiéis (2,3-19).
Doutro lado, havia que registrar nuvens: sob o peso da perseguição,
alguns cristãos se entregavam ao roubo, à avareza e à luxúria (4,6s.11s). Mais: a
população do Império Romano em geral aguardava uma catástrofe iminente,
visto que o poder imperial, sob Calígula e Cláudio, homens fracos, ia
declinando; tal expectativa era alimentada por notícias de terremotos,
aparecimento de cometas, nascimentos de monstros entre os homens e os
animais, aves de rapina pousadas sobre o Capitólio de Roma... isto tudo
corroborava nos cristãos a expectativa, típica da Igreja nascente, de que Cristo
voltaria em breve para pôr fim à história. Daí duas atitudes errôneas entre os
fiéis: alguns deixavam de trabalhar, esperando ver o Senhor descer sobre as
nuvens; pelo fato de não trabalharem, entregavam-se à imaginação e, na hora de
comer, nada tinham; por isto, roubavam... Outros cristãos punham-se a pensar na
sorte dos seus familiares e amigos já falecidos sem ter visto o Senhor Jesus em
sua glória: ficariam excluídos do Reino de Deus? É bem possível que os
tessalonicenses tenham apresentado tal pergunta ao Apóstolo.
Diante de tais informações, Paulo resolveu sem demora escrever aos
fiéis, já que não os podia visitar pessoalmente (2,17s). Assim se redigiria a
primeira página do Novo Testamento em fins de 51 ou começo de 52.
1.2. O conteúdo de 1Ts
A 1Ts é epístola marcadamente pastoral, em que o coração do pastor e
pai se dirige aos filhos bem-amados para reconfortá-los (2,7-11). Daí a índole
simples e familiar da carta; diríamos que o Apóstolo queria continuar por escrito
os colóquios orais, que outrora iniciara nas casas dos tessalonicenses. Por isto
muitas vezes lhes lembra a catequese oral: "sabeis, bem sabeis, estais
recordados, ainda vos lembrais..." (cf. 1,5; 2,1-2.5.9.11; 3,3s; 4,2; 5,2).
Toda a epístola foi escrita na perspectiva da segunda vinda de Cristo (em
linguagem técnica: parusia)1: 1,10; 2,12.19s; 3,13; 4,15; 5,23. Aliás, toda a vida
cristã é concebida como expectativa do retorno de Cristo: 1,9s.
1- Parusia designava, na linguagem do Império greco-romano, a visita do Imperador a
determinada cidade, acontecimento faustoso e benéfico para a população visitada. Os cristãos assumiram
este termo da linguagem civil, para designar assim o retorno de Cristo ao mundo como Senhor da história.
A epístola contém uma parte teológica importante: 4,13-5,11, seção em
que o Apóstolo tenta dissipar as dúvidas dos fiéis relativas à parusia. Em 4,13-18
trata da sorte dos defuntos por ocasião da parusia, ao passo que em 5,1-11
disserta sobre a hora do retorno de Cristo.
Ler 4,13-18... S. Paulo quer dizer que os fiéis defuntos nenhum prejuízo
sofrerão pelo fato de já terem morrido, pois ressuscitarão e serão associados com
os demais fiéis na glória do Senhor. Quatro pontos merecem nossa atenção nesta
seção:
Em 4,13 a morte é comparada a um sono, como já ocorria no Antigo
Testamento e entre escritores gregos clássicos. Este uso transparece ainda hoje
no vocábulo "cemitério", que vem do grego koimetérion, dormitório. Na
verdade, para o cristão, a morte é apenas a passagem da vida peregrina para a
vida em plenitude; não morremos, mas apenas trocamos de morada.
Em 4,16s ocorrem as imagens da "voz do arcanjo, da trombeta divina, do
arrebatamento nos ares", que não hão de ser tomadas ao pé da letra, porque
pertencem à linguagem apocalíptica. Ver "Léxico Bíblico", verbete
"Apocalipse".
Em 4,15.17 São Paulo propõe a doutrina de que não morrerão aqueles
que estiverem vivos no dia do juízo final; serão glorificados corporalmente, sem
passar pelo túnel da morte. A mesma doutrina ocorre também em 1Cor 15,51
e2Cor5,2.4. Há, pois, uma exceção para a lei da morte, exceção que beneficiará
quem estiver presente à parusia.
Em 4,15.17 as expressões "nós que estivermos vivos" fizeram correr rios
de tinta. Em síntese, exprimem a esperança que São Paulo tinha, de assistir ao
fim dos tempos. Essa esperança não significava certeza, pois o Apóstolo mais de
uma vez afirma que ninguém pode definir o dia da vinda do Senhor; cf. 1Ts
5,2.3; 2Cor5,9.
Ler 5,1-11... É precisamente o não-saber que inspira ao cristão uma
atitude de vigilância permanente. Qualquer momento pode ser o definitivo; o
Senhor virá como um ladrão durante a noite. Se não o virmos como juiz e
consumador da história, nós o veremos como o esposo que virá chamar-nos para
a ceia da vida eterna no dia "da nossa morte". Por isto o cristão deve viver
sempre na presença do Senhor, que lhe está presente, embora velado (mas
prestes a se revelar a qualquer momento). Quem procede reta e santamente, nada
tem a recear; é filho da luz, puro como a luz, e será chamado para a luz eterna.
"Consolai-vos, pois, e edificai-vos mutuamente" (5,11). A palavra final
do cristão diante do mistério da morte é de plena confiança e esperança; já agora
vivemos dos valores definitivos, que nos estão presentes, mas encobertos, à
espera de ser descobertos.
Lição 2: A 2Ts
2.1. Pano de fundo
A 1Ts só em parte atingiu seus objetivos. Com efeito, dissiparam-se as dúvidas
dos fiéis a respeito dos irmãos falecidos. Mas a questão do dia e da hora da
segunda vinda de Cristo continuou a perturbar. O Apóstolo, em sua carta,
deixava o assunto em suspenso, apenas admoestando todos à vigilância. Em
conseqüência, alguns membros da comunidade, agitados, perturbavam os
irmãos, afirmando que o dia do juízo estava às portas. Isto deixava muitos
membros da comunidade apavorados, como pessoas cujos dias tivessem sido
cortados drasticamente.
Para fundamentar sua afirmação, alguns se baseavam na palavra profética
de um irmão carismático. Outros talvez apelassem para a própria carta de Paulo,
onde liam: "Nós, os vivos, que estivermos presentes..."; ao escrever assim,
pensavam, São Paulo não terá intencionado afirmar a iminência da parusia? Mas
outros devem ter falsificado uma carta de São Paulo, apresentando-a como se
fosse autêntica mensagem do Apóstolo... É o que se depreende de 2Ts 2,1s (neste
contexto, "dia do Senhor" é uma expressão dos Profetas que significa o dia da
consumação da história). Também é de notar 2Ts 3,17, onde o Apóstolo chama a
atenção para a sua genuína assinatura.
As notícias de agitação da comunidade devem ter sido levadas a Paulo
por cristãos que viajavam de Tessalônica a Corinto; como se compreende, estes
também relataram o que havia de bom entre os irmãos (cf. 2Ts 1,3s; 2,16). Em
conseqüência, Paulo quis logo escrever nova carta aos tessalonicenses:
procuraria tranqüilizar os fiéis e exortá-los a trabalhar, pois a parusia do Senhor
ainda estava distante. E, precisamente para provar essa distância, o Apóstolo
apontaria algo de novo, ou seja, os sinais precursores da segunda vinda de
Cristo; é a indicação destes sinais que caracteriza a 2Ts.
Deve ter sido curto o intervalo entre 1Ts e 2Ts, pois ambas reproduzem
as mesmas preocupações.Daí colocarmos a 2Ts no ano de 52.
2.2. O conteúdo de 2Ts
O conteúdo da carta é breve e sistemático:
a) 1,1-12: elogio dos fiéis que perseveraram na prática do bem; conclui-
se com oração
b) 2,1-17: os sinais precursores da parusia; conclui-se com oração
(2,16s);
c) 3,1-16: exortações morais; termina com oração (3,16). A passagem
principal é a de 2,1-12 (sinais...). Examinemo-la.
Tal seção é difícil, em parte porque supõe a pregação oral do Apóstolo,
que não conhecemos: "Não vos lembrais de que vos dizia isto quando estava
convosco?" (2,5). Como quer que seja, tentemos compreender.
Em síntese, o Apóstolo diz que
-os fiéis não se devem deixar perturbar (2, 1s);
- antes que o Senhor venha, deverão ocorrer grande apostasia e o
aparecimento do Homem do Pecado (2,3s);
- há, porém, um obstáculo (neutro e masculino, conforme o texto grego)
que impede o aparecimento do Iníquo (2,6s);
- todavia o obstáculo (que age como dique) será retirado e o Pecador fará
sua "parusia", com toda espécie de prodígios (2,6s.9-1 2);
- o Senhor Jesus vencerá o Iníquo (2,8).
Mais precisamente: o Apóstolo aponta dois sinais que devem anteceder o
fim dos tempos - a grande apostasia e o surto de famoso Pecador.
A apostasia é predita também em 2Tm 3,1 -1 0; será uma das expressões
mais evidentes do mistério da iniqüidade, que se exerce em todos os tempos
(2,7).
Essa apostasia será provocada por um ser chamado "o ímpio, o
Adversário, o Filho da Perdição"1. É muito difícil dizer se se trata de um
indivíduo ou de uma coletividade; será, sem duvida, uma violentíssima
manifestação do mal no mundo, marcada por muitos portentos sedutores, que
deixarão os homens boquiabertos e dispostos a aderir ao mal envernizado por
aparentes milagres.
1 - Notemos que São João fala de Anticristo(s) (cf. 1Jo 2,18.22), mas em sentido mais amplo,
compreendendo todo aquele que, em qualquer época, negue a Messianidade de Jesus.
Eis, porém, que o mistério da iniqüidade não se expande agora de
maneira plena, porque há um obstáculo que o detém. Este é de gênero neutro (to
katéchon, 2,6) e masculino (ho katéchon, v. 7) e já dura quase dois mil anos,
pois desde os tempos de São Paulo detém a explosão do mal. Que obstáculo será
esse, tão duradouro e tão poderoso? Muitas sentenças têm sido proferidas, das
quais destacaremos duas:
a) conforme Dn 10,21; 12,1, Miguel e seus anjos são os tutores do povo
de Deus. Ora é possível que Paulo tenha pensado em Miguel (obstáculo
masculino) e seu exército (obstáculo neutro)...
b) tratar-se-ia do próprio Deus e do plano salvífico da Providência
Divina.
A escolha é livre. O que imporia frisar é que a oração assídua e a
fidelidade ao Senhor Deus são os meios mais eficazes para nos precavermos
contra as seduções do mal neste mundo. S. Agostinho diz sabiamente que o
demônio é como um cão acorrentado que pode ladrar muito alto, mas que não
morde senão a quem se lhe chega perto. A palavra final da história será a de
Cristo.
A propósito, ainda uma reflexão. Não só nos tempos de S. Paulo, mas
também hoje os homens esperam o fim dos tempos para breve, disseminando
"profecias"... Diante deste fenômeno, lembremo-nos de que o Apóstolo quis
dissuadir os fiéis de procurar saber a data do fim do mundo; Jesus também se
recusou a tais profecias (cf. At 1,7). Mais importante do que a data do fim do
mundo é o encontro pessoal de cada um com o Senhor no dia da "morte"; este
não está longe; cada um o experimentará, e será decisivo.
O Apóstolo, em síntese, quer induzir seus leitores a evitar os devaneios
da mente, pois estes levam à ociosidade, que, por sua vez, leva ao roubo e aos
crimes: "Quem não quer trabalhar, também não há de comer" (2Ts 3,10).
Encerra-se assim o estudo de 1/2Ts: tratam do tema mais presente às
primeiras gerações - o da volta do Senhor Jesus. Para nós, este tema implica,
antes do mais, o encontro pessoal com o Cristo que, no fim desta carreira
terrestre, virá chamar cada um para a ceia da vida eterna; Ele será (como, aliás,
já é através dos véus da fé e dos sacramentos) a grande resposta a todos os
nossos anseios.
Para ulterior aprofundamento, ver pág. 56.
* * *
PERGUNTAS
1) Qual o tema dominante de 1/2Ts? Porquê?
2) Em que circunstâncias foi fundada a comunidade de Tessalônica?
3) Qual a sorte dos falecidos por ocasião da parusia ? Explique 1 Ts
4,13-17.
4) Quais os frutos de 1Ts na comunidade de Tessalônica?
5) Como o Apóstolo define os sinais precursores da segunda vinda de
Cristo?
6) Para cada um, qual o fruto da discussão sobre a parusia do Senhor?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO III: A EPÍSTOLA AOS GÁLATAS
Lição 1: O fundo de cena
1.1. Quem eram os galatas?
No século III a.C. algumas tribos celtas (gálataí é a forma mais recente
de kéltai, em grego) se moveram da Gália e penetraram na Ásia Menor; após
guerras violentas estabeleceram-se na região central desta, tendo por capital
Ancira (Ankara de hoje, na Turquia). Em 25 a.C. os romanos invadiram a
Galácia e a integraram numa confederação mais ampla, chamada "Província
Romana da Galácia", que chegava até o sul da Ásia Menor (compreendendo a
Pisídia, a Licaônia e a Panfilia). Havia, pois, a Galácia étnica, situada no centro
da Ásia Menor, com população rude e belicosa, e a Galácia política, que
chegava até o sul da Ásia Menor e compreendia outros povos além dos celtas.
Os exegetas perguntam se a epístola aos galatas se dirige à Galácia étnica
ou à Galácia política.
Para não nos alongar inutilmente, optamos, com a maioria dos autores,
pela Galácia étnica ou Galácia no sentido estrito da palavra. São Paulo visitou tal
região tanto na segunda como na terceira viagens missionárias (cf. At 16,6;
18,23). Certamente Paulo não teria chamado "galatas" (Gl 3,1) os habitantes da
Galácia política, que não eram de sangue celta ou galata.
Pouco se sabe a respeito da fundação das comunidades da Galácia. Em
Gl 4,13s o Apóstolo diz que na Galácia foi afetado por grave enfermidade
(talvez dos olhos), quando lá esteve "pela primeira vez", ou seja, por volta de 50;
pode ser que tal moléstia tenha prolongado, para além do que esperava, a estada
do Apóstolo na região. Na terceira viagem missionária (53/58), diz-nos Lucas
apenas que Paulo "percorreu sucessivamente o território galata e a Frigia,
confirmando todos os discípulos" (At 18,23). Já então se realizara o Concilio de
Jerusalém (At 15).
1.2. A problemática de Gl
Da Galácia, durante a terceira viagem missionária, por volta de 54, Paulo
dirigiu-se a Éfeso, onde permaneceu durante três anos (cf. At 19,1 -10; 20,31),
mantendo intercâmbio muito intenso com as comunidades da Ásia e da Grécia.
Foi nesse contexto que se apresentaram a Paulo irmãos portadores de notícias da
Galácia: tinham sobrevindo a esta região judaizantes estremadosque
perturbavam as comunidades, declarando que, sem a circuncisão e a Lei de
Moisés, não haveria salvação. Os argumentos desses pregadores estavam para
induzir os galatas a abraçar as observâncias mosaicas; cf. Gl 1,6-9;
3,1;4,9s.21;5,1.12. Os judaizantes tentavam enfraquecer ou anular a autoridade
de Paulo, dizendo que este não era apóstolo propriamente dito, pois não seguira
Cristo na terra como Pedro e Tiago (cf. Gl 1,1); era, sim, discípulo dos
apóstolos; para compensar a autoridade que não tinha, Paulo seria um
oportunista, pregando um Cristianismo mutilado (sem as observâncias da Lei)
somente para agradar aos ouvintes; Paulo procuraria tão somente o favor dos
homens, pois tinha mandado circuncidar Timóteo para não melindrar os judeus
(cf. At 16,3), mas se tinha oposto à circuncisão de Tito para não desagradar aos
pagãos (cf. Gl2.3) ; cf. Gl 1,10. As calúnias e difamações dividiam e
amarguravam os galatas, que "se mordiam e devoravam reciprocamente" (5,15).
O Apóstolo não pode ter deixado de experimentar viva indignação em
vista dos acontecimentos. Suportaria em silêncio a deturpação de sua imagem
pessoal. Mas não podia permitir que a autenticidade do Evangelho fosse posta
em causa pelos judaizantes; impor a Lei de Moisés aos cristãos significava
esvaziar a obra salvífica de Cristo; equivalia a dizer que Cristo não foi o
suficiente Salvador, seria pôr os preliminares da obra e a própria obra de Cristo
no mesmo pé.
Por isto Paulo houve por bem escrever sem demora a epístola aos
Galatas, já que não podia abandonar o intenso ministério que praticava em
Éfeso. Esta carta deve datar de 54, escrita na cidade de Éfeso. É um dos mais
veementes escritos do Apóstolo, em que faltam os habituais elogios à
comunidade, próprios do início de cada carta (cf. 1Ts 1,2-10; 2Ts 1,3-5; 1 Cor
1,4-9; Fl 1,3-11...).
Lição 2: O conteúdo de Gl
A epístola compreende três partes: 1) apologética, pessoal, autobiográfica
(1,1 -2,14); 2) teológica (2,15-5,12) ; 3) parenética ou exortatória (5,13-6,18).
Na 1a parte (1,1-2,14), distingue-se a seção 1,1-5, que propõe logo os
dois temas capitais da carta: Paulo não é Apóstolo escolhido pelos homens, mas
chamado por Deus (1,1); a salvação nos vem mediante a morte de Jesus Cristo, e
não pela Lei de Moisés (1,4s).
Em 1,6-24 o Apóstolo afirma que o Evangelho por ele apregoado não foi
aprendido em escola humana; é, sim, o fruto de revelação divina. Para prová-lo,
Paulo recorda o chamado à conversão (1,13-16) que Cristo lhe dirigiu. Paulo não
teve a pressa de procurar a aprovação dos demais Apóstolos, mas foi para a
Arábia, e só três anos depois subiu a Jerusalém para encontrar-se com Pedro; não
viu então nenhum dos outros Apóstolos; como teria recebido o apostolado de
mãos humanas?
Em 2,1-10, o Apóstolo confirma sua fidelidade à Igreja-mãe referindo-se,
em narração um pouco obscura, à sua participação no Concílio de Jerusalém. As
"colunas da Igreja", Pedro, Tiago e João, deram-lhe as mãos, ficando entendido
que os gentios estariam isentos da Lei de Moisés. Paulo se dedicaria doravante
ao mundo pagão, ao passo que Pedro ficaria com o mundo judaico
(prevalentemente).
Em 2,1-14 é mencionado o incidente de Antioquia. Nesta cidade em
território pagão, Pedro não observava as prescrições de Moisés quanto aos
alimentos; mas, tendo sobrevindo irmãos judaizantes, passou a dobrar-se às
injunções da Lei. Paulo lhe resistiu abertamente, pois o exemplo de Pedro era tão
significativo que induziria muitos cristãos ao erro. O incidente não teve
conseqüências, nem versou sobre pontos de fé, mas apenas sobre disciplina.
A segunda parte (2,15-5,12) desenvolve o tema da justificação pela fé, e
não pelas obras.
Após enunciar a tese em 2,15-21 o Apóstolo propõe argumentos, que
mostram a caducidade da Lei de Moisés após a vinda de Cristo:
- a experiência dos galatas, que receberam os dons do Espírito não como
fruto da observância da Lei, mas como efeito de sua adesão ao Evangelho (3,1-
7);
- a promessa, feita a Abraão, de que por ele todos os povos seriam
abençoados, é independente da Lei de Moisés, pois esta sobreveio somente 430
anos após a promessa; por conseguinte, todos os povos são abençoados como
Abraão, isto é, pela fé na promessa de Deus, e não pelo cumprimento das obras
da Lei (cf. 3,8-18);
- a finalidade da Lei... Esta foi dada ao povo de Israel como pedagogo1,
isto é, como escravo que devia levar o filho da casa à escola e ao Mestre (Jesus
Cristo). A Lei escravizou o povo; tendo-o levado ao Cristo, só lhe resta
desaparecer, pois terminou sua função (3,19-4,11). - Em 4,12-20 o Apóstolo
mostra seu ânimo afetivo, queixando-se de que tenha arrefecido o amor dos fiéis
para com seu pai espiritual. O coração de Paulo sabia ser muito terno, mesmo
quando censurava com veemência os seus discípulos;
1 - Em Gl 3,24 a palavra "pedagogo"tem o sentido etimológico de "condutor da criança". Quem
exercia função na antiguidade, era geralmente um escravo, que, por sua índole mesma, só podia
dominar e "escravizar" o herdeiro. A Lei de Moisés é pelo Apóstolo comparada a esse tipo de
pedagogo ou de escravo, que devia levar o povo de Israel ao Mestre Jesus Cristo.
- a história da família de Abraão... São Paulo interpreta em sentido típico
as figuras de Abraão, Sara e Agar, Isaque e Ismael, recorrendo a método
exegético rabínico; quer provar que somente Sara e Isaque representam a nova e
definitiva aliança, portadora da bênção prometida a Abraão (4,21-31).
Deste longo arrazoado o Apóstolo deduz conseqüências práticas, visando
a incutir aos fiéis permaneçam na liberdade adquirida por Cristo; sobre os falsos
pregadores pesa o severo juízo de Deus (5,1-12).
A terceira parte (5,13-6,18) exorta a viver no Espírito, com renúncia às
paixões da carne (5,13-25), e incita a aproveitar o tempo dado por Deus para a
prática de boas obras (5,26-6,10). No epílogo o Apóstolo professa não procurar
senão Jesus Cristo (6,11-18).
Lição 3: A mensagem de Gl
1) A epístola aos Galatas é certamente uma das mais difíceis do
epistolado paulino, não só por seu estilo fogoso, às vezes truncado e incompleto
(cf. Gl 4,25-27), mas também pela sua temática: aborda uma questão que para os
cristãos de hoje está resolvida e ultrapassada - a vigência ou não da Lei de
Moisés depois da vinda de Cristo. O leitor cristão hoje deverá compenetrar-se da
importância que tal problema tinha para as primeiras gerações: muitos judeus
que haviam abraçado o Evangelho depois de haver passado pela escola de
Moisés, não podiam deixar de crer que esta era obrigatória também para os não-
judeus; ficaria simplesmente ao lado de Cristo, na sua perspectiva de
judaizantes. O papel reservado pela Providência Divina ao Apóstolo São Paulo
foi de importância capital para "desatrelar" o Cristianismo do judaísmo; embora
judeu, o Apóstolo identificou-se tanto com o espírito de Cristo que compreendeu
a provisoriedade da Lei de Moisés.
2) Por seu conteúdo tão veemente, Gl foi chamada por Lutero e outros
reformadores "a Magna Carta da Liberdade Cristã", isto deve ser sabiamente
entendido: Gl só apregoa a liberdade em relação à Lei de Moisés, não frente a
toda lei: o cristão está obrigado a praticar as obras da lei superior da caridade e
da graça; cf. 5,6.13s.16.
Mais precisamente: quando São Paulo afirma que somos salvos pela fé, e
não pelas obras daS! 6,6; 29(30), 10,.. A justiça divina, segundo tal concepção, devia exercer-se no decorrer
mesmo da vida presente; os homens fiéis seriam recompensados com saúde, vida longa, dinheiro..., ao
passo que os pecadores sofreriam doenças, morte prematura, miséria...
Com o tempo, as concepções antropológicas dos judeus foram-se esclarecendo, de modo que já no
século II a.C. admitiam a ressurreição dos mortos e a retribuição final para bons e maus depois da morte.
Ver Dn 12,2s: "Muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna, e outros para o
opróbrio, para o horror eterno. Os sábios resplandecerão como o esplendor do firmamento; e os que
tornaram justos a muitos, como as estrelas por toda a eternidade refulgirão" (cf. 2Mc7,9.11.14).
No tempo de Jesus, os judeus já admitiam sorte póstuma diferente para os bons e os maus; veja-se,
por exemplo, a parábola do ricaço e do pobre Lázaro, em Lc 16,19-31, onde aparece a separação de uns e
outros. Na terminologia cristã latina, a palavra inferno ficou reservada para designar a sorte póstuma dos
réprobos. Todavia a topografia do além, supondo terra plana e compartimentos subterrâneos para bons e
maus, está superada. A fé cristã professa a realidade da vida póstuma ou a subsistência da alma humana
após a morte, mas não pode indicar lugar determinado para o céu e o inferno (o que não esvazia em
absoluto os conceitos respectivos).
Circuncisão: ablação ou retirada do prepúcio feita com um cutelo de pedra (cf. Js 5,3).
Originariamente, fora de Israel, era um rito de integração do menino no clã e de iniciação ao matrimônio.
No século XIX a.C., com Abraão, a circuncisão veio a ser o sinal da aliança do israelita com Javé. Através
dos tempos, os Profetas insistiam na espiritualização da circuncisão, que deveria coincidir com a conversão
do coração; cf. Jr 4,4; 6,16; Dt 10,16; 30,6.
Concílio: é uma reunião de pastores da Igreja ou de rabinos da Sinagoga, destinada a tratar de
assuntos doutrinários ou disciplinares. Pode ser regional ou local, se congrega apenas os responsáveis de
uma determinada região. É ecumênico (ou universal) quando reúne os bispos do mundo inteiro. Diz-se que
o primeiro Concílio da história da Igreja foi o de Jerusalém (At 15), embora só uma minoria dos Apóstolos
tenha lá comparecido; no ano de 49, vários dos Apóstolos já se tinham dispersado para pregar o Evangelho.
Epíscopo: ver bispo.
Escatologia: é a doutrina referente ao eschatón ou aos últimos acontecimentos ou ainda à
consumação da história. Esta pode ser coletiva (a consumação da história da humanidade ou o fim do
mundo), como pode ser individual (a consumação da história terrestre ou da peregrinação de determinada
pessoa).
Escatológico é o que se refere aos últimos acontecimentos. Perspectiva escatológica, por exemplo, é
a consideração dos fatos presentes à luz da eternidade ou da consumação para a qual tendem. Bens
escatológicos são os bens definitivos já presentes em meio ao tempo.
Escriba: entre os cristãos, é o amanuense, que escreve quanto lhe é ditado; tal foi o caso de Tércio
(cf. Rm 16,22). Entre os judeus, os escribas eram aqueles que, desde o tempo de Esdras (século V a.C.),
eram entendidos nas coisas da Lei; por isto eram também chamados legisperitos" ou "doutores da Lei" (cf.
Lc5,17; Mt 22,35). Os escribas tiveram grande influência sobre a vida do povo judeu.
Exegese: do grego exégesis, explicação, explanação. É a arte de expor ou explicar o sentido de
determinado texto, especialmente da Bíblia; para ser rigorosamente conduzida, requer o estudo de línguas,
história, arqueologia...
orientais. Segundo S. João(Jo 1, 18) Jesus é o Grande Exegeta do Pai, pois Ele nos revelou (exegésato) o
Pai.
Exegeta é a pessoa que cultiva a exegese.
Geena: vem de ge-hinnom, em aramaico. Nos arredores de Jerusalém havia um vale (ge’, em
hebraico) pertencente aos filhos de Hinnom (ben-hinnom) Donde ge'-ben-hinnom ou ge'-hinnom, em
hebraico. Nesse vale se sacrificavam crianças ao deus Moloc, da Babilônia; cf_ 2Rs 16,3; 21,6; Jr 32,35.
Depois do exílio (587-538 a.C.), os judeus lá queimavam seu lixo. Por isto, o ge'-hinnom ou a ge'-hinnam
era um lugar de fogo. Jesus se serviu do vocábulo para designar a sorte póstuma dos que renegam a Deus;
cf. Mc 9,43.45.47.
Gênero literário: conjunto de normas de estilo e de vocabulário que regem a explanação: de
determinado assunto. Assim os textos de leis tem seu expressionismo e seu estilo próprio (claro e conciso);
ao contrário, a poesia tem outro expressionismo (metafórico e reticente): uma carta familiar difere, por seu
linguajar, de uma carta comercial... - Como há gêneros literários na linguagem moderna, há-os também na
linguagem bíblica; a consciência disto tornou-se clara aos cristãos a partir de fins do século passado; em
consequência, hoje, quando o leitor está para abordar o texto bíblico, deve informar-se a respeito do
respectivo género literário (será poesia?... história edificante?... história estrita?... parábola?...). Cada gênero
literário, tendo suas regras de expressão próprias, tem também suas regras de interpretação particulares, de
modo que não se pode entender um texto de leis como se entende uma poesia ou uma parábola.
A definição do gênero literário de determinado texto não se pode fazer arbitrariamente, mas deve
obedecer a critérios científicos (exame das características do texto).
Hagiógrafo: autor sagrado ou autor de algum escrito bíblico. Um só livro pode ter mais de um autor
ou hagiógrafo.
Hermenêutica: arte de interpretar (hermeneuein, em grego). Interpretar é procurar compreender e
explicar - o que tem de ser feito segundo critérios objetivos e não conforme opiniões ou pareceres
subjetivos. Embora a Bíblia seja Palavra de Deus, que tem eficácia santificadora própria, ela é a Palavra de
Deus encarnada na palavra do homem; por isto precisa de ser entendida primeiramente com o instrumental
das ciências históricas e lingüísticas para se perceber o sentido da roupagem que a Palavra de Deus quis
assumir. Só depois de depreender o que o autor sagrado tinha em vista exprimir com sua linguagem, é
possível passar para o plano da fé e da teologia.
Inferno: do latim infernus, adjetivo que vem de infra, abaixo. Inferno seria a região inferior,
colocada debaixo da superfície da terra. Significaria o cheol dos judeus antigos. Na linguagem cristã, feita
abstração de topografia ou de geografia do além, inferno significa o estado póstumo dos que renegaram
consciente e voluntariamente a Deus.
Inspiração bíblica: distingue-se da inspiração no sentido usual da palavra, pois não é ditado
mecânico nem é comunicação de idéias que o homem ignorava, inspiração bíblica é a iluminação da mente
de um escritor para que, sob a luz de Deus, possa escrever, com as noções religiosas e profanas que possui,
um livro portador de autêntica mensagem divina ou um livro que transmite fielmente o pensamento de Deus
revestido de linguajar humano.
A finalidade da inspiração bíblica é religiosa, e não da ordem das ciências naturais.
Toda a Bíblia é inspirada de ponta a ponta, em qualquer de suas partes.
Certas passagens bíblicas, além de inspiradas, são também portadoras de revelação ou da
comunicação de doutrinas que o autor sagrado não conhecia através da sua cultura (Deus é Pai, Filho e
Espírito Santo, chamou-nos para o consórcio da sua vida, mandou-nos o Filho como Redentor, etc.).Lei, quer dizer que entramos na justificação ou na amizade
com Deus não porque tenhamos praticado obras boas e meritórias, mas
unicamente porque Deus nos chamou e demos fé a esse chamado (como Abraão
foi chamado e deu fé a esse chamado). Por conseguinte, ninguém "compra" a
amizade com Deus ou ninguém sai do estado de pecador porque o mereça; é
Deus quem gratuita e soberanamente dá a graça que perdoa o pecado e nos faz
filhos de Deus. Mas São Paulo não é menos enérgico ao afirmar que ninguém
permanece na amizade com Deus, gratuitamente recebida, se não pratica as
obras boas que a filiação divina impõe ao homem: "Em Cristo Jesus nem a
circuncisão nem a incircuncisão tem valor, mas a fé agindo pela caridade" (Gl
5,6); o mesmo é dito em 1Cor 7,19; 13,1-13; Rm 13,16. São Tiago, sem negar a
gratuidade da justificação (cf. Tg 1,8), incute, como São Paulo, a necessidade
das boas obras como fruto da graça dentro do cristão (cf. Tg 2,14-26).
3) A epístola aos Romanos, a poucos anos de intervalo, retoma o tema de
Gl, todavia em tom muito mais sereno, pois o Apóstolo não tinha em vista uma
comunidade prestes a fraquejar como a galata. Mais exatamente podemos dizer:
Em Gl Paulo quer inculcar que a Lei de Moisés está ab-rogada; por
conseguinte, são falsas as pretensões dos judaizantes. Os aspectos positivos da
vida cristã são menos focalizados. Neste contexto, a Lei de Moisés é vista como
"regime de maldição" (3,10-12), pedagogo ou escravo que domina (3,23),
prefigurada por Agar escrava e geradora de escravidão (4,24s).
Em Rm Paulo tenciona descrever diretamente o que é a vida cristã: é
dom de Deus gratuito, derivado dos méritos de Cristo. A Lei de Moisés, neste
quadro, é mencionada em função da vida cristã - o que quer dizer:... com mais
objetividade; São Paulo diz que a Lei é santa (7,12), é espiritual ou vivificada
pelo Espírito de Deus (7,14). Onde o pecado abundou, São Paulo, em vez de
falar da morte, diz que a graça super-abundou (Rm 5,20).
4) Gl é importante também como documento autobiográfico do Apóstolo,
especialmente nos cc. 1 e 2. Apresenta-nos viva imagem do ânimo de Paulo,
solícito pela salvação dos filhos espirituais; cf. 4,12.19s; 6,11. - Também a
história da Igreja nascente é ilustrada por esse documento, revelador de
problemas que para nós hoje parecem insignificantes ou nulos; nem a recepção
do pagão Cornélio na Igreja (At 10), nem o Concilio de Jerusalém (At 15) foram
suficientes para eliminar todas as dificuldades do relacionamento de judeus e
gentios na Igreja (cf. Gl 2,11 -14); a coragem e a tenacidade de Paulo tiveram
que enfrentar a dureza de tais dificuldades.
5) Gl é também um documento de alta mística, apesar do seu tom
polêmico. O Apóstolo elabora ai uma preciosa "teologia da cruz" (1,4; 2,19s;
3,13s, 6,14), acompanhada da profissão de filiação divina: 3,26-28; 4,4-7. Em
conseqüência, não poucos escritores cristãos hauriram em Gl a inspiração para
suas reflexões, deixando-nos um exemplo valioso a seguir.
Em vista de aprofundamento, ver pág. 56.
* * *
PERGUNTAS
1) Quem eram propriamente os destinatários de Gl?
2) Quem eram os judaizantes?
3) Como era Paulo considerado pelos seus adversários?
4) Exponha sumariamente o conteúdo de Gl e indique três passagens que
mais o(a) tenham impressionado.
5) Que entende São Paulo por "justificação pela fé sem as obras"?
6) Como se distinguem entre si Gl e Rm no tocante à Lei de Moisés?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
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CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO IV: A PRIMEIRA EPÍSTOLA AOS
CORÍNTIOS
Lição 1: Fundo de cena
Corinto ficava na Acaia, num istmo entre dois golfos - o Sarônico, com
seu porto de Cêncreas no mar Egeu, e o Coríntio, com o porto de Lequem no
mar Adriático. Esta posição geográfica assegurava a Corinto prosperidade
material crescente, pois para lá afluíam viajantes, com suas mercadorias e seus
sistemas de vida, provenientes de diversas partes do mundo. Em 27 a. C., César
Augusto fez de Corinto a capital da província romana da Acaia (Grécia
Meridional).
Os cultos pagãos praticados na cidade concorriam, juntamente com a
riqueza e o bem-estar, para promover a devassidão moral. Das numerosas
divindades cultuadas em Corinto, a que mais em voga se achava, era Venus ou
Afrodite, em cujo templo se abrigavam mais de mil mulheres prostituídas; as
festas desta deusa, cognominadas Pandemos (de todo o povo), provocavam a
massa da população à luxúria mais grosseira.
A mentalidade de tal população só podia ser fútil. Mesmo os coríntios
que se gabavam de sabedoria, só possuíam a sabedoria eclética, decadente, da
sua época - estoicismo panteísta, cinismo, epicurismo materialista -, que, para os
atenienses, havia tornado "absurda" a pregação de São Paulo (cf. At 17,18-
21.32s).
Ora a fundação de uma comunidade cristã em tal ambiente deu-se por
ocasião da segunda viagem missionária de Paulo (cf. At 18,1-18). O Apóstolo
chegou a Corinto depois de haver sido expulso sucessivamente de Filipos,
Tessalônica, Beréia e Atenas. Paulo se encontrava só, em um contexto pouco
favorável - o que o deixou assaz temeroso (cf. 1 Cor 2,3s). Corria o ano de 52.
Antes do mais, Paulo procurou apoio na colônia judaica, que era assaz
numerosa em Corinto; entre esses judeus, encontrava-se o casal Áquila e
Priscila, provavelmente já cristão, que exercia a profissão de curtidor como
Paulo; ofereceu ao Apóstolo não somente hospedagem, mas também a
possibilidade de trabalhar e ganhar o pão (coisa que S. Paulo aceitou de bom
ânimo, a fim de não se tornar pesado a nenhum de seus fiéis).
Consoante a sua tática, Paulo começou a pregar aos judeus.
Converteram-se o chefe da sinagoga Crispo e companheiros, mas os judeus que
não aceitavam o Evangelho, levaram Paulo ao tribunal do pro cônsul romano
Galião, que não quis intervir, pois se tratava de questão religiosa judaica.
Passando aos gentios, Paulo conseguiu muitas conversões,
principalmente entre as camadas humildes (At 18,8; 1 Cor 1,26-29). Foi mesmo
reconfortado pelo Senhor em visão noturna(cf. At 18,9s).
Paulo deteve-se um ano e seis meses em Corinto, ou seja, até 52/3,
seguindo depois para Éfeso. Depois de Paulo, esteve em Corinto um judeu, de
nome Apolo, imbuído de cultura helenista e dotado de talentos de oratória que
Paulo não possuía (cf. At 18,24-28; 1 Cor 1,17-25; 2,1-5; 3,1-4).
Nos anos seguintes as relações de Paulo com a comunidade de Corinto
não cessaram. Principalmente na terceira viagem missionária, Paulo, deixando-
se ficar três anos em Éfeso, deve ter tido freqüente intercâmbio com os coríntios.
Ora as notícias que chegavam de Corinto, não eram boas: davam-se
freqüentes escândalos por causa da luxúria. Em conseqüência, Paulo resolveu
intervir, escrevendo de Éfeso aos coríntios uma carta, datada de cerca de 55 e
mencionada em 1Cor 5,9-11; tal missiva perdeu-se, de modo que só sabemos
que o Apóstolo proibia aos fiéis tivessem comunhão com os cristãos impudicos.Apesar da admoestação, a situação não melhorou. Alguns cristãos
queriam desacreditar o Apóstolo aos olhos da comunidade, assegurando que
Paulo intencionara proibir as relações com quaisquer fornicadores, avarentos ou
idolatras, fossem pagãos, fossem batizados; isto tornaria impossível a vida social
aos cristãos numa cidade corrupta como Corinto.
As preocupações do Apóstolo se agravaram quando familiares de uma
rica senhora, chamada Cloé, de Corinto, chegaram a Éfeso, referindo a formação
de partidos naquela cidade: o de Paulo (o pai espiritual), o de Apolo (o orador
eloqüente), o de Pedro (judaizantes) e o de Cristo (libertinos). Estes partidos
favoreciam disputas, em que a sutileza da dialética e a ostentação da sabedoria
vaidosa tinham largas partes (cf. 1 Cor 1,11.17-25; 2,1-5; 3,3-9).
Outros mensageiros ainda falavam a Paulo de luxúria como não a
praticavam os próprios pagãos (cf. 1Cor 5,1); referiam que os cristãos se
acusavam mutuamente diante de tribunais pagãos (cf. 1Cor 6,1-6); as mulheres
se comportavam imodestamente nas assembléias de culto (1Cor 11,5-10; 14,30);
verificavam-se abusos na celebração da Eucaristia (cf. 1Cor 11,17-22).
Assim informado, Paulo primeiramente pediu a Apolo que fosse ele
mesmo a Corinto, testemunhando a sua plena concórdia com Paulo - o que
dissiparia o espírito partidário. Apolo, porém, declinou (cf. 1Cor 16,12). Por isto
Paulo resolveu mandar o jovem Timóteo, que não estava envolvido nos litígios
da comunidade (cf. 1Cor 4,17; 16,10). Todavia, após a partida de Timóteo,
Paulo, tencionando fortalecer a autoridade do mesmo, houve por bem escrever
pessoalmente aos coríntios. Assim se originou a 1Cor.
A redação deste escrito havia de consumir, durante várias semanas, os
serões de Paulo e seu escriba Sóstenes (1,1). Ora parece que, quando estavam
terminando o c. 4 (cf. 5,1: "ouve-se claramente dizer..."), novos emissários
(Estefanaz, Fortunato e Acaico) chegaram de Corinto, trazendo uma carta em
que várias questões eram apresentadas ao Apóstolo (cf. 16,17): matrimônio e
virgindade (cf. 7,1), carnes imoladas aos ídolos (cf. 8,1), uso dos carismas (cf.
12, l ), ressurreição dos mortos (cf. 15,12.35). Todos estes pontos seriam
abordados na carta, fazendo desta um dos documentos mais ricos do epistolário
paulino.
Deve ter sido escrita poucos meses após a carta mencionada em 1Cor 5,9,
pois supõe o equívoco ainda recente. Considerando-se 5,7 e 16,8, deve-se
dizer:... redigida pouco antes da Páscoa de 56, três ou quatro anos depois que
Paulo deixara Corinto. De 16,8 e 18 se depreende que foi escrita em Éfeso.
Lição 2: O conteúdo de 1Cor
A epístola apresenta duas partes bem distintas uma da outra: 1)
repreensão dos defeitos; 2) respostas às questões. Mais precisamente:
Introdução: 1,1-9 - saudação, ação de graças
l. Repreensão dos defeitos: 1,10-6,20
a) os partidos na comunidade: 1,10-4,21
A unidade da Igreja, cuja cabeça é um só, Cristo, exclui toda
possibilidade de divisão: 1,10-16. Deus não quis que o Evangelho fosse pregado
com os artifícios da oratória, embora contenha suma sabedoria, que Paulo não
pôde revelar aos coríntios carnais (1,17-3,4). Os pregadores do Evangelho são
ministros de Deus; por isto não devem ser preferidos uns aos outros (3,5-4,21).
b) Os abusos a reprimir: 5,1-6,20
Seja excomungado o pecador público da comunidade (5,1-13). Não
sejam levados a tribunais pagãos os litígios entre cristãos (6,1-11). A fornicação
é profanação do Corpo de Cristo e do templo do Espírito Santo (6,12-20).
II. Respostas às questões propostas: 7,1-15,58
a) Matrimônio e virgindade: 7,1-40
É licito o matrimônio (7,1-9). O matrimônio entre cristãos é indissolúvel.
A união de parte cristã e parte pagã pode ser dissolvida sob certas condições
("privilégio paulino"): 7,10-24. A virgindade é dom especial de Deus, atitude
que brota da consciência de que os valores definitivos começam no tempo (7,25-
40).
b) Os idolotitos: 8,1-11,1
Em principio, é licito comer carnes imoladas aos ídolos, já que estes nada
são. Todavia, se isto causa escândalo aos irmãos mais fracos, é preciso abster-se
dos idolotitos (8,1-13). O próprio Paulo abstém-se do que lhe é lícito, não
querendo receber dos fiéis nem mesmo o sustento cotidiano a que teria direito.
Castiga o seu corpo, pois a abstinência é necessária para se vencerem as
tentações como o demonstra a história mesma do povo de Deus (9,1-10,13).
Solução de casos práticos (10,14-11,1).
c) As assembléias de culto: 11,2-34
Esta secção, por ser censura de abusos, melhor se encaixaria na parte 1.
O véu das mulheres é sinal de reverência: 11,2-16. A ceia eucarística seja
dignamente celebrada: 11,17-34.
d) Os carismas: 12,1-14,40
É necessário que haja diversos carismas, como num corpo é preciso que
haja diversas funções: 12,1-31a. A caridade é o mais nobre dos dons de Deus,
embora nem sempre aparatosa: 12,31b-13,13. Entre os demais carismas, o da
profecia é preferível ao das línguas, pois é mais útil ao próximo: 14,1-40.
e) A ressurreição dos mortos: 15,1-58
Já que a ressurreição de Cristo é um fato, que os coríntios não negam,
admitam conseqüentemente a ressurreição dos homens: 15,1-34. A maneira
como se dará a ressurreição, é ilustrada por analogias da natureza: 15,35-58.
Epílogo: 16,1-24: normas e providências práticas.
Lição 3: A mensagem de 1Cor
1. Ao passo que, nos demais escritos. S. Paulo geralmente tratava de uma
só doutrina, em 1Cor ele explana com profundidade assuntos muito variados,
estabelecendo princípios básicos para os diversos tratados teológicos, lançando
mesmo os rudimentos do Direito eclesiástico (1Cor 5,3-5). Esta variedade de
temas é a imagem viva de uma comunidade importante da Igreja nascente e dá à
1Cor o caráter de "enciclopédia paulina".
2. Ao passo que em 1/2Ts São Paulo se voltava para o Cristo vindouro e
os problemas da parusia, em 1Cor (assim como em Gl, 2Cor, Rm) o Apóstolo
manifesta a consciência de que o Cristo está presente e vive nos membros da sua
Igreja. Esta doutrina, perpassando os diversos temas de 1Cor à semelhança de
linha-mestra, confere a esta carta uma unidade superior muito bela. Observemo-
lo de mais perto:
As facções são condenadas pela razão de que Cristo é um só; cabeça e
corpo constituem uma comunhão de vida, na qual não se pode admitir divisão
sem que haja morte (1,13).
A sabedoria de Deus, que Paulo opõe à sabedoria deste mundo,
encarnou-se no Cristo Jesus, que foi crucificado. Este aspecto paradoxal da
sabedoria divina, reflete-se nos membros da comunidade coríntia, que, aos olhos
dos sábios da terra, são desprezíveis, mas possuem bens indizíveis (1,18-31).
Os Apóstolos são cooperadores de Deus (3,9), ministros pelos quais
Cristo age (4,1).
A pureza moral decorre do fato de que o cristão é membro de Cristo,
constitui um só espírito com Cristo à semelhança de esposo e esposa, que entre
si constituem uma só carne (6,15-17). É por isto que os cristãos devem fazer do
seu corpo o reflexo da glória de Deus, que neles habita (6,19s).
No lar em que nem todos são cristãos, a parte fiel santifica a parte não
cristã e os filhos (7,14). A virgindade é preferível ao matrimônio porque permite
mais íntimaaplicação às coisas do Senhor (7,32-35).
Quanto aos idolotitos, há cristãos de consciência fraca que se
escandalizam quando vêem seus irmãos comer de tais carnes. Por isto os mais
esclarecidos devem renunciar aos seus direitos, quando necessário, a fim de não
causar dano aos pequeninos, pois também por estes morreu Cristo, e ofender a
consciência destes seria ofender ao próprio Cristo (8,4.11-13).
As reuniões de culto merecem o máximo respeito, pois então é a vida do
Pai que, através do Cristo, se comunica ao homem e à mulher (11,2-16).
Também a diversidade de dons é explicada e regrada dentro da
perspectiva do Corpo de Cristo; as múltiplas atribuições devem-se adaptar umas
às outras para preencherem sua finalidade: o maior bem do Corpo (12,1-31;
14,1-40). Neste contexto, a caridade, que congrega todos na unidade, aparece
como o dom por excelência (13,1 -13).
A ressurreição dos mortos era odiosa aos gregos, que só conheciam o
corpo como cárcere da alma. S. Paulo afirma que, se Cristo ressuscitou (e disto
os coríntios não duvidam), não pode haver dúvida de que os membros do seu
Corpo Místico ressuscitarão com Ele para uma vida gloriosa como a do próprio
Senhor ressuscitado (15,1-58).
Para aprofundamento, ver pág. 56.
* * *
PERGUNTAS
1) Qual era o ambiente humano da cidade de Corinto?
2) Como e quando Paulo ai fundou a comunidade cristã?
3) Quais os antecedentes próximos de 1Cor?
4) Escolha três temas que lhe parecem mais importantes em 1Cor e
desenvolva-os à luz do pensamento paulino.
5) Qual a característica dominante da mensagem de 1Cor?
6) Mostre em três seções da carta a importância da doutrina do Corpo
de Cristo, com multiplicidade de membros dentro da unidade do conjunto.
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO V: A SEGUNDA EPÍSTOLA AOS
CORÍNTIOS
Lição 1: O fundo de cena da 2Cor
Quem compara entre si 1 e 2Cor, verifica grandes diferenças entre uma e
outra. A primeira é doutrinaria, abordando diversos temas teológicos como a
unidade da Igreja, a ceia eucarística, a ressurreição dos mortos, os carismas, etc.
Ao contrário, a 2Cor, entre outras coisas, trata das relações de S. Paulo com a
comunidade, desfaz mal-entendidos, expõe os sentimentos de alma do
Apóstolo...
Daí a pergunta: que terá acontecido entre 1 e 2Cor para provocar tal
mudança de conteúdo e de estilo?
- Não há como responder muito precisamente, pois o livro dos Atos nada
refere a propósito. Somente da própria 2Cor podemos deduzir alguns dados
conjeturais, como faremos a seguir. O trabalho de consulta de textos e leitura em
filigrana, que vamos empreender, requer paciência e atenção do leitor; se não,
pouco compreenderia da exposição seguinte:
1) Timóteo volta de Corinto a Éfeso com más noticias: os partidos e os
ânimos não se acalmaram na comunidade; cf. 1Cor 4,17; 16,10 (textos que falam
da missão de Timóteo em Corinto).
2) Paulo então resolve ir a Corinto pessoalmente para apaziguar os
ânimos; cf. 2Cor 12, 14; 13,1. - Com efeito, se, ao escrever 2Cor, Paulo já tinha
estado duas vezes em Corinto, pergunta-se: quais seriam essas duas estadas? A
primeira é obviamente a da fundação da comunidade (At 18,1-11); o texto de At
20,2s é posterior à 2Cor. Só resta postular uma viagem intermediária entre 1 e
2Cor.
3) Em Corinto Paulo é publicamente injuriado; cf. 2Cor 2,5-10; 7,12.
4) Para não punir logo, Paulo deixa Corinto, prometendo voltar em breve.
Mas, absorvido por afazeres, adiou o seu retorno; pelo que, foi acusado de
leviano, inconstante e covarde; cf. 2Cor 1,15s.23.
5) Em vez de retornar, Paulo escreveu a "epístola das lágrimas"; cf. 2Cor
2,3-9; 7,5-12. Esta seria a terceira carta aos coríntios, pois a primeira se acha
documentada em 1 Cor 5,9-11, mas se perdeu; a segunda é a canônica 1Cor.
Também a epístola das lágrimas se perdeu, embora alguns a queiram identificar
com a polêmica secção de 2Cor 10-13 (esta secção visa aos judaizantes, e não a
comunidade de Corinto como tal).
6)Tito é o portador da "epístola das lágrimas"; cf. 2Cor8,17; 12,18.
7) Antes que partisse, Paulo marcou encontro com Tito em Trôade (Ásia
Menor). Mas, como teve que deixar Éfeso precipitadamente por causa da
celeuma de Demétrio (At 19,23-20,1), Paulo não encontrou Tito em Trôade (cf.
2Cor 2,12s).
8) Paulo seguiu de Trôade para a Macedônia, onde encontrou Tito em
Filipos; cf. 2Cor 2,13; 7,5-7. A alegria de Paulo deve ter sido reforçada pela
presença de Lucas em Filipos (cf. At 20,6); Lucas era o médico muito caro e
dedicado a São Paulo.
9) As notícias que Tito comunicava a Paulo, eram satisfatórias; a
comunidade se reconciliara com o Apóstolo e resolvera afastar de si o mal: 2Cor
7,7.11. Estava disposta a colaborar na coleta em favor dos pobres de Jerusalém
(cf. 2Cor 9,1-15).
10) Todavia Tito não podia deixar de relatar calúnias e invectivas dos
judaizantes em Corinto. À semelhança do que se dera na Galácia, acusavam
Paulo de não ser verdadeiro Apóstolo, pois não convivera com Jesus. O
procedimento de Paulo seria um aberto testemunho de que não estava seguro da
sua autoridade; sim, o adiamento da viagem prometida era tornado como sinal de
hesitação e inconstância, próprias de um homem sujeito às suas paixões, não de
quem está revestido da autoridade de Cristo (cf. 2Cor 1,17); Paulo era dito
covarde, pois à distância ameaçava duros castigos, escrevia cartas severas, mas
não ousava comparecer e, quando presente entre os coríntios, tinha aparência
fraca, desprezível, usava de linguagem simples e não se aventurava a punir
ninguém (cf. 2Cor 10,2-11; 11,2; 13,2-4). Além disto, o fato mesmo de ter Paulo
procurado viver do trabalho de suas mãos em Corinto, sem pesar aos fiéis (cf.
1Cor 9,12-18; 1Ts2,9; 2Ts 3,7-10), era interpretado como indício de que ele
reconhecia não ter direito às esmolas dos fiéis e não ser Apóstolo como os
demais (cf. 2Cor 11,7-12; 12,13); e, não obstante o aparente desinteresse
pecuniário, ainda acusavam Paulo de viver das esmolas que arrecadava para a
comunidade de Jerusalém (cf. 2Cor 6,8).
11) Ciente das boas disposições da comunidade, Paulo decidiu voltar lá,
numa terceira visita (cf. 2Cor 12,14; 13,1). Para preparar esse novo encontro
com os fiéis, quis escrever a 2Cor, que na verdade é a quarta carta de São Paulo
aos coríntios. Esta devia mais uma vez chamar os coríntios à ordem, para que,
presente, o Apóstolo não tivesse de censurá-los (cf. 2Cor 13,10).
Tito, acompanhado de mais dois irmãos, talvez Lucas e Aristarco, devia
voltar sem demora a Corinto, como portador da carta (cf. 2Cor 8,16-22). Esta foi
escrita em Filipos. A série de acontecimentos supostos entre 1 e 2Cor exige o
intervalo de um ano ou mais entre estas duas epístolas, de sorte que a 2Cor
parece datar de meados ou da segunda metade de 57.
Lição 2: O conteúdo de 2Cor
São Paulo via-se caluniado pelos judaizantes. Tais acusações, porém, não
afetavam apenas a pessoa do Apóstolo, mas punhamem xeque a própria causa
do Evangelho. Daí a necessidade que incumbia a Paulo, de responder fazendo
longa exposição de suas intenções, de seus trabalhos e da eminente dignidade da
sua missão apostólica. Nessa epístola Paulo expandiria toda a sua alma de
homem ardente que lutava pela mais sublime das causas. Ao fazer isto, porém, o
Apóstolo não se fechou numa visão individualista ou mesquinha da realidade; ao
contrario, desenvolveu perspectivas teológicas muito vastas e belas.
Introdução 1,1-11. Saudações. Paulo dá graças a Deus, que o libertou de
gravíssimos perigos de morte.
l. Apologia de Paulo diante dos Coríntios: 1,12-7,16
1) As relações de Paulo com os coríntios após a 1Cor: 1,12-2,17
Paulo mudou o seu plano de viagem, não indo a Corinto, como
prometera, não em virtude de inconstância ou falta de amor, mas para não
contristar os fiéis (1,12-2,4). Recomenda caridade para com o irmão penitente
(2,5-11). "Somos o bom odor de Cristo" (2,12-17).
2) A dignidade do ministério apostólico: 3,1 -7,1
O ministério da Nova Aliança é mais nobre do que o da Antiga (3,1-4,6).
O poder de Deus se manifesta na debilidade humana (4,7-5,10). É a caridade de
Cristo que move o Apóstolo e o leva a apregoar a reconciliação com Deus. Não
vivam os coríntios como os pagãos (5,11-7,1).
3) O restabelecimento das boas relações de Paulo com os coríntios:
7,2-10
Exposição dos fatos recentes, principalmente da vinda alegre de Tito;
manifestação do prazer conseqüente.
II. A coleta em favor da comunidade de Jerusalém 8,1-9,15
Sigam os coríntios o exemplo dos fiéis da Macedônia (8,1-15). Paulo
recomenda aos coríntios Tito e os irmãos que se encarregarão da coleta (8,16-
9,5). Deus recompensa a generosidade dos seus fiéis (9,6-15).
III. Apologia polêmica diante dos adversários: 10,1-13,10
1) Refutação das calúnias: 10,1-18
Paulo não procede segundo as paixões, mas por espírito de fé (10,1-11);
tem justos títulos de glória diante dos seus adversários (10,12-18).
2) A justa glória de Paulo: 11,1-12,18
Em um só ponto Paulo é inferior aos pregadores judaizantes ("apóstolos
por excelência"): pregou o Evangelho aos coríntios sem lhes ficar
financeiramente a cargo. Continuará a fazê-lo (11,1-15).
Embora seja tolo expor os próprios títulos de glória, Paulo ousa fazê-lo,
coagido pelos adversários: recorda os seus trabalhos, os dons extraordinários
recebidos de Deus e também as moléstias corporais, nas quais o poder de Deus
se manifesta (11,16-12,10).
Paulo indica novos sinais da autenticidade da sua missão. Os coríntios
deveriam defendê-lo das calúnias, já que tanto amor lhes demonstrou no passado
(12,11 -18).
3) Admoestação preparatória da próxima visita: 12,19-13,10. Paulo
procederá severamente contra os mal intencionados (12,19-13,6). Espera, porém,
que isto não se torne necessário (13,7-10).
Epílogo: 13,11-13. Ultimas exortações. Saudações. Bênção.
A primeira e a terceira partes são intimamente conexas entre si: visam a
defender a autoridade de Paulo ora aos olhos dos coríntios (1-7), ora perante os
judaizantes (10-13). Entre as duas apologias, a segunda parte parece interromper
o curso das idéias. Mas tem seu nexo lógico com os capítulos antecedentes e os
subseqüentes. Com efeito, São Paulo, que combatia os judaizantes, podia dar a
impressão de ser contrário à Igreja-mãe de Jerusalém e de estar suscitando um
cisma entre étnico-cristãos e judeo-cristãos1. Ora, justamente para dissipar tal
equivoco, o Apóstolo, ao mesmo tempo em que combatia os judaizantes, se
mostrava fiel à Igreja-mãe (judeo-cristã) e inculcava aos coríntios (étnico-
cristãos) que também o fossem mediante as suas esmolas.
1 - Étnico-cristãos são os cristãos de origem pagã. Judeo-cristãos são os de origem judaica.
Os efeitos alcançados pela 2Cor foram muito satisfatórios: a
reconciliação da comunidade com seu pai espiritual se consolidou. Por isto,
pouco depois de enviada a 2Cor, Paulo, no inverno de 57/58, se deteve três
meses em Corinto; esta terceira visita parece ter decorrido numa atmosfera de
muita calma, que permitiu ao Apóstolo redigir a epístola aos Romanos,
profundamente mergulhado na teologia.
Lição 3: A mensagem de 2Cor
A 2Cor é um dos escritos que mais manifestam a alma de Paulo.
Envolvido pelas tramas maldosas dos adversários e vítima dos achaques
corporais, Paulo experimentou em grau muito intenso a angústia da vida nesta
terra.
Hoje os homens são muito sensíveis à angústia; não poucos se sentem
"condenados à morte", sem esperança e sem consolo.
Precisamente a 2Cor é importante por mostrar como o Apóstolo reagiu
diante das tribulações. Paulo, de um lado, não se entregou à lamentação e ao
desânimo; de outro lado, não quis negar artificialmente a angústia como se
reconhecê-la não fosse digno do homem perfeito.
Paulo aludia freqüentemente às tribulações que o afligiam: 1,8; 7,5;
11,23-27 (o catálogo de dores físicas e morais do Apóstolo); 12,7 (o aguilhão na
carne, o anjo de Satanás que o esbofeteava e que não sabemos identificar). Em
5,2-4 o Apóstolo confessava mesmo o pesar que experimentava por ter que
morrer.
Ora, essas tribulações, efeitos da fragilidade humana, eram interpretadas
pelos judaizantes como sinais de que Deus não dera a Paulo a missão do
apostolado; pareciam incompatíveis com a autoridade e a dignidade de um
legado de Deus.
O argumento em favor dos judaizantes era forte. Contudo Paulo quis dar
às suas deficiências físicas uma interpretação contrária à dos adversários.
Conforme o Apóstolo, as misérias físicas do cristão são justamente o sinal da
presença de Deus no fiel. No caso de Paulo, os achaques significariam que não
era Paulo, como simples homem, que agia, mas era Deus, quem agia por meio de
Paulo. Toda a obra missionária de Paulo era efeito da graça de Deus, que Paulo
trazia como um tesouro em vaso de argila (4,7-10). Por conseguinte, pelas
deficiências do instrumento Paulo comprovava a autenticidade da sua missão. É
justamente próprio de Deus mostrar em meio à fraqueza humana todo o poder
divino (12,9).
Mais: Paulo confessava suas angústias diante da morte para mais
altamente proclamar a sua esperança na ressurreição; o definhar do velho
homem seria a condição para o desenvolvimento do homem novo; ressurreição e
vida nova constituem um processo que opera paralelamente com definhar e
morte (4,11-16). Por isto a vida do cristão tem duas faces: uma exterior, visível,
um tanto ilusória, e outra interior, oculta, que é mais verídica, porque derivada
da posse da eternidade. Observe-se o paradoxo com que São Paulo caracteriza a
vida do cristão: "somos considerados como moribundos, e eis que vivemos...
somos considerados como quem nada tem, embora tudo possuamos!" (2Cor
6,9s).
Em suma, a mensagem da 2Cor se compendia nas palavras de 12,9s: "É
na fraqueza (do homem) que a força (de Deus) manifesta todo o seu poder... Por
isto eu me comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas
perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois, quando sou fraco, então é
que sou forte".
Para aprofundamento do estudo, ver pág. 56.
PERGUNTAS
1) Compare o que Paulo diz nos capítulos 2-3 com o que diz nos cap. 10-
13 de 2Cor e diga se a epístola das lágrimas poderia ser2Cor10-13.
2) Como é que os coríntios receberam Tito e a epístola das lágrimas?
Cite textos.
3) Indique as três passagens que mais lhe falam na 2Cor.
4) Que seria o aguilhão da carne de que fala 2Cor 12,7?
5) Compare 2Cor 2,5-10; 7,12 e 1 Cor 5,1-7. Será o mesmo caso em
ambas as epístolas?
6) Como você aplicaria à sua vida e à vida do mundo de hoje a
interpretação do sofrimento proposta peta 2Cor?
7) Qual a atitude que São Paulo propõe aos seus fiéis diante da
perspectiva de coleta ? Deduza os traços principais dos capítulos 8 e 9.
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
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2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO VI: A EPÍSTOLA AOS
ROMANOS
Lição 1: O fundo de cena de Rm
Já à primeira leitura, Rm apresenta índole diversa da de outros escritos
paulinos. Em parte, isto se deve ao fato de que se dirigia a uma comunidade não
fundada por S. Paulo. Quais as origens da comunidade cristã em Roma?
Havia em Roma uma colônia judaica formada por prisioneiros judeus
levados para Roma pelo general Pompeu em 63 a. C. Muitos destes conseguiram
a liberdade e fixaram residência em Roma. É de crer que, por ocasião do
primeiro Pentecostes cristão, muitos judeus de Roma se achavam na Cidade
Santa. Convertidos ao Evangelho, regressaram a Roma, onde deram origem a um
núcleo de cristãos provenientes do judaísmo.
Essa comunidade deve ter sido confirmada na fé pela pregação do
Apóstolo São Pedro. Em conseqüência, quando Paulo escrevia aos romanos, já
existia em Roma uma Igreja numerosa, bem organizada e famosa por sua fé (cf.
Rm 1,8; 15,14; 16,16.19). Constava, em sua maioria, de pagãos convertidos à fé.
Sabe-se que em 49/50 o Imperador Cláudio expulsou de Roma judeus que
provocavam tumultos por causa de Cristo. Isto deve ter diminuído sensivelmente
o número de judeo-cristãos de Roma, pois Paulo se lhes apresenta como
"apóstolo dos gentios" (Rm 11,13; 1,5) e "ministro de Cristo Jesus entre os
pagãos" (Rm 15,16); exorta os destinatários a não desprezar os israelitas (Rm
11,17-25) e a observar deveres que eles têm para com os judeus (Rm 15,25-27).
Cf. também Rm 1,13.
Pergunta-se: por que é que o Apóstolo quis escrever a tal comunidade?
São Paulo tinha por princípio, em sua vida missionária, não intervir na
vida de comunidades que outros haviam evangelizado (cf. Rm (15,20s), 2Cor
10,13-16). Todavia o caso da Igreja Romana lhe parecia diferente: Roma era a
capital do Império pagão. Ora, consciente da sua missão de anunciar a fé entre os
gentios (cf. Gl 1,15s; Rm 1,14s; Ef 3,8s), Paulo julgava que devia chegar até
Roma e mesmo até a Espanha (que marcava os limites do Império romano e da
oikouméne, terra habitada). Já no fim da sua permanência em Éfeso (56), o
Apóstolo concebeu o projeto de ir até Roma (At 19,21); depois passaria para a
Espanha (Rm (15,23s). Das relações com os irmãos de Roma o Apóstolo só
podia esperar confirmação e proveito na fé (Rm 1,10-15).
Nutrindo tal desejo, Paulo quis preparar sua visita aos cristãos de Roma
mediante uma carta (Rm 15,23s.28s). Esta foi escrita no fim da terceira viagem
missionária, quando Paulo passava os três meses de inverno de 57/58 em
Corinto, à espera de uma nave que o levasse à Palestina. Estas circunstâncias são
confirmadas pelo fato de que o Apóstolo está para ir a Jerusalém levando as
esmolas dos fiéis da Acaia e da Macedônia - o que bem concorda com o quadro
do fim da terceira viagem missionária (cf. At (19,21); 1Cor 16,1-4; 2Cor8s).
Além disto, em Rm 16,1s Paulo recomenda aos leitores Febe, diaconisa da
igreja de Cêncreas e portadora da carta (ora Cêncreas era porto contíguo a
Corinto).
Paulo deve ter ditado a Tércio, seu escriba (cf. Rm 16,22). A redação da
carta pode ter levado uma centena de horas ou o equivalente a 32/49 serões de
trabalho1.
1 - Ver na Introdução Geral ao epistolário paulino a maneira como São Paulo redigia suas
cartas.
Por conseguinte, Rm é fruto maduro das reflexões diurnas e do trabalho
noturno do Apóstolo durante quase a metade de um inverno coríntio. Representa,
sem dúvida, o ponto mais elevado da elaboração teológica do Apóstolo. Foi
redigida em tom muito impessoal, à guisa de tratado teológico, visto que o autor
não conhecia pessoalmente a comunidade destinatária.
Lição 2: O conteúdo de Rm
Não tendo problemas particulares a tratar, São Paulo quis abordar o tema
geral "vida cristã", ou melhor, a justificação que nos faz viver como filhos de
Deus, herdeiros do Pai e co-herdeiros com Cristo (cf. Rm 8,15-17).
Essa justificação ou a maneira de nos tornarmos justos ou amigos e filhos
de Deus, é a do Patriarca Abraão; este, sem méritos prévios, foi chamado por
Deus para receber a bênção; acreditou na Palavra de Deus, obedecendo-lhe
corajosamente, e, em conseqüência, foi feito amigo de Deus. - O modelo de
Abraão é perene e definitivo também para os cristãos.
Ao falar de Abraão, chamado gratuitamente, São Paulo não podia deixar
de pensar em Moisés, que, seis séculos depois de Abraão, trouxe a Lei, com
promessas de bênçãos para quem cumprisse os seus preceitos, e de punição para
os transgressores. Afirma, porém, que a Lei foi algo de provisório na história do
povo de Deus; terminou sua missão com a vinda de Cristo, de modo que
atualmente o modelo de Abraão é o que Deus propõe ao homem.
A tese afirmada por S. Paulo é desenvolvida em suas diversas facetas em
Rm, de maneira sistemática e completa, como se pode depreender do esquema
seguinte:
Introdução: 1,1-17. Saudação. Ação de graças. Desejo de ir a Roma. O
tema da epístola é anunciado em 1,16s.
l. Parte teológica: A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ (1,18-11,36)
Quatro aspectos são desenvolvidos: necessidade da justificação, modo,
frutos da justificação, a situação dos judeus.
1) A necessidade da justificação: 1,18-3,20
A justificação é necessária aos gentios, mergulhados nos vícios (1,18-32).
A justificação é necessária aos judeus, também pecadores (2,1-3,8).
O mundo inteiro (gentios e judeus) se reconhece réu diante de Deus (3,9-
20).
2) O modo como se dá a justificação: 3,21-4,25
Todos são justificados pela fé em Cristo, e não pela observância da Lei
de Moisés, de modo que não fica título de vã glória para o homem (3,21-30).
Esta verdade é ensinada pela história de Abraão, que foi feito amigo de
Deus séculos antes que Moisés trouxesse a Lei. Abraão é o pai (modelo) de
todos os que crêem (3,31-4,25).
3) Os frutos da justificação: 5,1-8,39
a) A reconciliação com Deus e a esperança segura da salvação (5,1-21).
b) A libertação da servidão do pecado pelo batismo (6,1-23).
c) A libertação da servidão da Lei (7,1-25).
d) A filiação divina, pela qual somos constituídos herdeiros da glória
celeste (8,1-30).
Hino de ação de graças (8,31-39)
4) Os judeus e a justificação: 9,1-11,36
A rejeição de Israel não está em antítese com as promessas de Deus feitas
a este povo. Em última análise, nãoé a descendência carnal de Israel que salva,
mas a livre escolha de Deus, o que se evidencia na história dos Patriarcas e de
Moisés (9,1-29).
Os judeus, procurando justificar-se pela observância da Lei de Moisés,
negligenciando a fé no Messias, foram rejeitados por sua incredulidade (9,30-
10,21).
Na rejeição, parcial e temporal, dos judeus, manifesta-se admirável
providência divina: a apostasia dos judeus deu lugar à conversão dos gentios,
que será cumulada pela volta dos judeus no fim dos tempos (11,1 -36)
II. Parte moral: OS DEVERES DOS FIÉIS (12,1-16,13)
1) Deveres de ordem geral: 12,1-13,14
2) As relações entre os fortes e os fracos; 14,1-15,13
Epílogo: 15,14-16,27
Chama a atenção o trecho de Rm 16,1 -16.21 -23, que apresenta longa
lista de saudações aos fiéis de Roma, como se Paulo já conhecesse a
comunidade. Alguns críticos quiseram identificar esta secção com fragmento de
uma epístola de S. Paulo aos Efésios (Paulo esteve três anos em Éfeso) ou de
uma carta posterior aos Romanos. Estas hipóteses, porém, suscitam dificuldade
ainda maior: como explicar que tais epístolas aos Efésios e aos Romanos se
tenham perdido sem deixar vestígio na Tradição, ficando apenas o seu capitulo
de saudações anexo a Rm? É mais fácil admitir o testemunho da tradição e dar-
lhe a seguinte explicação: Paulo pregava o Evangelho a pessoas de vida um tanto
nômade (como eram os comerciantes); por isto muitos daqueles que Rm 16
supõe em Roma, já deviam ser conhecidos de Paulo no Oriente (Andronico e
Júnias são parentes e companheiros de prisão de Paulo, 16,7; a mãe de Rufo era
também "a mãe" de Paulo, 16,13; Epeneto, Ampliato, Pérsida eram muito caros
a Paulo, 16,5.8.12). Ademais é de crer que Paulo tivesse algum conhecimento da
importante comunidade romana, famosa por sua fé (1,8).
Lição 3: A mensagem de Rm
Rm é considerada a mais importante das epístolas paulinas pela
profundidade com que explana o tema central do Cristianismo: a santificação do
homem se faz mediante a fé em Cristo. É a expressão de certa plenitude de
pensamento do Apóstolo.
O ponto culminante de toda a epístola é o capítulo 8, também de todos o
mais longo. Este capítulo continua, em tom cada vez mais inflamado, a descrição
da nobreza da vida cristã, descrição iniciada no cap. 6 (batismo, ressurreição
para uma vida nova). Vida cristã é vida conforme o Espírito de Deus, que habita
em nós, mas vida de luta, pois o espírito deve obter o triunfo sobre a carne,
levando-a à transfiguração no dia da ressurreição universal (8,1-13). Este triunfo
é preparado por Deus Pai, que nos fez filhos, a fim de dar ao Cristo Jesus muitos
irmãos, co-herdeiros da glória do Primogênito (8,14-18). Atualmente, desta
gloria só temos uma esperança. O apóstolo, por conseguinte, se detém em
enumerar os argumentos que nos garantem o cumprimento dessa esperança. Tais
são:
a) a aspiração das criaturas irracionais, que, sujeitas à desordem pelo
pecado do primeiro homem, aguardam a restauração da ordem, isto é, o
cumprimento do direito de servir a Deus mediante o homem regenerado; cf.
8,19-22;
b) o nosso próprio desejo de cristãos, que, tendo recebido as primícias,
somos intimamente levados a aspirar ao complemento; cf. 8,23-25;
c) O Espírito mesmo de Deus, que habita em nós, e dentro de nós geme
ao Pai numa prece que Deus sabe ouvir; cf. 8,26s;
d) enfim, a própria vontade de Deus, que, em seu amor, tudo dispõe para
nos levar à salvação (8,28-30).
Note-se a força gradativa desses argumentos: criaturas irracionais, o
Cristo, o Espírito de Deus no cristão, o próprio Deus em seu amor eterno.
À medida que o Apóstolo desvenda aos leitores essas perspectivas
grandiosas, a sua mente parece arrebatada em ardor e alegria crescentes. Por isto
no auge da sua ascensão prorrompe em belíssimo hino, que canta a confiança do
cristão no indefectível amor de Deus (8,31 -39); o pecado (Rm 1-3) levava à
morte (Rm 5), da qual a Lei justa e santa era incapaz de nos libertar (Rm 7); ao
contrário, o pecado servia-se da Lei para dar morte ao homem (Rm 7). Eis que
pelo Cristo Jesus somos libertados do pecado e da morte, defendidos contra a
condenação e assegurados da vida (Rm 8). Este hino é bem a conclusão de todo
o ensinamento iniciado em Rm1 a respeito da emancipação do cristão do jugo do
pecado e da Lei. Com este hino de triunfo também estava terminada a exposição
de que "o Evangelho é força de Deus para a salvação de todo homem que crê"
(1,16). Por conseguinte o Apóstolo continuaria a epístola considerando de mais
perto o apêndice do enunciado... "primeiramente para o judeu, depois para o
gentio"; é este o conteúdo dos capítulos 9-11, conclusão da parte teológica da
epístola.
Além do c. 8, merecem particular atenção as seguintes passagens:
Rm 1,18-23 - o conhecimento de Deus mediante as criaturas;
5,12-21 - o pecado original;
6,1-14 - o Batismo;
11,11 -36 - a infidelidade dos judeus, a vocação dos gentios e seu
sentido providencial;
13,8-10 - a caridade;
14,22s - a consciência.
A epístola aos Romanos sempre foi muito lida entre os cristãos. Sabe-se,
porém, que não é de fácil interpretação; os Reformadores protestantes fizeram
desse documento o esteio da doutrina da fé sem as obras, interpretando
unilateralmente o pensamento paulino. Quem estuda Rm, deve conjugar esse
estudo com o de Gl e o de Tg. Com razão afirmava São Pedro que "nas cartas de
Paulo se encontram pontos difíceis de entender, que os ignorantes e vacilantes
torcem, como fazem com as demais Escrituras, para a sua própria perdição"
(2Pd3,16). Quando S. Paulo diz que a fé, sem obras boas, nos faz amigos de
Deus, tem em vista a nossa entrada na filiação divina; ninguém a "compra" por
merecimentos prévios. Uma vez, porém, feitos amigos de Deus, temos que
praticar obras boas, como ensinam S. Paulo e S. Tiago; ver Gl 6,10; 1ïs 5,15; Fl
2,12; Tg 2,14-26.
Para aprofundamento deste estudo, ver pág. 56.
* * *
PERGUNTAS
1) Por que São Paulo quis escrever aos Romanos?
2) Que é a justificação, segundo São Paulo?
3) Queira ler Rm 6,1-11. E diga com suas palavras o que S. Paulo
propõe sobre o Batismo.
4) Em Rm 4,1ls, o Apóstolo apresenta Abraão como o pai de todos os
que crêem. Como entender esta proposição?
5) São Paulo diz que o homem não faz o bem que quer e comete o mal
que não quer; onde o diz?
6) O Apóstolo afirma que o Espírito geme em nós com gemidos
inenarráveis. Onde o afirma?
7) Onde é dito que Abraão esperou contra toda esperança?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO VII: AS EPÍSTOLAS DO
CATIVEIRO (I)
Lição 1: Introdução Geral
1. Chamam-se "epístolas do cativeiro" as cartas a Filemon, aos
Colossenses, aos Efésios, aos Filipenses. E com razão, pois cada qual apresenta
Paulo prisioneiro: Fm 1.9.10.13; Cl 4,3.10,18;Ef 3,1; 4,1; 6,20; Fl,7.13s.
2. Pergunta-se, porém: em qual cativeiro Paulo escreveu essas cartas?
Contam-se cinco cativeiros na vida de São Paulo: em Filipos (At 16,23-
40), em Jerusalém (At 21,31 -23,31), em Cesaréia (At 23,35-26,32), em Roma
primeira vez (At 27,1 -28,16), em Roma segunda vez (2Tm 1,8.12.16s; 2,9).
Há quem julgue que Paulo esteve preso também em Éfeso, pois nesta
cidade permaneceu três anos (cf. At 20, 31) e sofreu hostilidades (cf. 1Cor 16,8,
"adversários numerosos"; 15,32, "luta contra as feras; At 19, 13-40, tumulto dos
ourives). Mais: em 2Cor 11,23 Paulo afirma que sofreu várias vezes a prisão; ora
os Atos só referem até a data de 2Cor a prisão em Filipos (cf. At 16,23-40); não
se deveria, por isto, supor um encarceramento em Éfeso? Em Rm 16,4 é dito que
Priscila e Áquila expuseram sua cabeça para salvar a vida de Paulo - o que se
supõe tenha ocorrido em Éfeso (cf. At 19, 23s).
Os argumentos em favor de um cativeiro de Paulo em Éfeso são fracos e
genéricos. Em contrário esta o silêncio do livro dos Atos
3. Já podemos responder à pergunta: qual o cativeiro suposto por Fm, Cl,
Ef e Fl?
Até o século XVIII, os autores admitiam, em resposta, o primeiro
cativeiro romano de Paulo (61 -63). Desde 1731, porém, vários críticos foram
pensando no possível cativeiro efésio como contexto histórico de tais cartas. Até
hoje há quem admita que ao menos Fl data do hipotético cativeiro efésio em
56/57, quando Paulo esperava partir para a Macedônia depois da sua libertação
(cf. Fl 1,26; 2,19-24 e At 19,21s; 20,1; 1 Cor 16,5).
Não faltou também quem quisesse atribuir às quatro epístolas origem no
cativeiro de Cesaréia (58-60). Tal hipótese hoje quase não tem defensores.
Neste nosso Curso, seguiremos a sentença mais antiga, que atribui as
quatro cartas ao primeiro cativeiro romano, embora reconheçamos que entre
Filemon-Colossenses-Efésios, de um lado, e Filipenses, do outro lado, há
diferenças, que permitiriam admitir para Fl outro contexto. Notemos os seguintes
pontos diferenciais:
em Cl e Ef: Cristo e a Igreja, culto dos anjos, falso
ascetismo;
Conteúdo em Fl: vida cristã, tom exortatório semelhante ao de 1/2 Ts,
Gl, 2Cor; a seção
cristológica de Fl 2,5-11 é ocasionada por problemas
da comunidade
em Cl e Ef: o estilo é denso e pesado:
Linguagem em Fl: cheio de vida
de Cl e Ef: Tíquico (cf. Cl 4,7s; Ef 6,21s);
Portadores Onésimo (cf. Cl 4,9);
de Fl: Epafródito (Fl 2,25-30).
em Cl e Ef: Tíquico, Aristarco e arcos (cf. Cl 4,10;
Fm24); Epafrás
Companheiros (Cl 4,12; Fm 23); Lucas e Demas
(Cl 4,14; Fm 24); Timóteo
de Paulo (Cl 1,1; Fm 1);
em Fl: Epafródito (Fl 2,25) e Timóteo (4,19).
Como dito, na impossibilidade de provar a existência de um cativeiro
efésio de Paulo, seguiremos a hipótese antiga, que enquadra as quatro epístolas
no cativeiro romano de 61 a 63.
4. A ordem de origem de Fm, Cl e Ef é provavelmente esta: Paulo, detido
em Roma, foi procurado por Onésimo, escravo fugitivo da cidade de Colossos;
tendo gerado este filho para Cristo, Paulo o devolveu ao patrão Filemon com
uma carta para este (Fm) e com outra carta para toda a comunidade de Colossos
(Cl), ameaçada por falsas doutrinas. A epístola aos Colossenses assim redigida
foi ampliada por Paulo ou por um discípulo de Paulo, devendo circular pelas
comunidades cristãs da Ásia Menor, ameaçadas pelos mesmos males; visto que
Éfeso era a cidade capital desta província, tal epístola circular tomou o nome de
"epístola aos Efésios".
Quanto a Fl, será examinada oportunamente a sua situação de origem.
Nos nossos estudos subseqüentes, consideraremos Fm e Fl (Módulo VII), Cl e Ef
(Módulo VIII).
Lição 2: A carta a Filemon
Estando Paulo cativo em Roma entre 61 e 63, foi procurado por um
escravo, Onésimo, que fugira da casa de seu patrão Filemon em Colossos (Ásia
Menor) e procurava abrigo em Roma, cidade cosmopolita. A legislação judaica
mandava não devolver ao amo o escravo fugitivo (cf. Dt 23,16). Ao contrário, a
legislação romana considerava o escravo como propriedade do patrão e impunha
a devolução do mesmo; além do que previa penas severas para esses desertores;
Paulo estava a par dessas normas. Todavia quis reter Onésimo consigo; embora
não lhe pudesse dar a alforria no foro civil, podia apregoar-lhe a redenção trazida
por Cristo e gerá-lo para a vida nova dos cristãos. Tendo feito isto (v. 10), Paulo
pensou em guardar consigo Onésimo para que este colaborasse na difusão do
Evangelho (v. 17). Todavia acabou resolvendo devolver o escravo, pois não
queria assumir atitude desleal para com Filemon e, doutro lado, a Lei romana
exigia a devolução. Ao enviar Onésimo de novo para a casa do patrão, o
Apóstolo quis escrever uma carta cheia de calor humano e de vivacidade, em que
recordava ao patrão a necessidade de receber o escravo não mais como "coisa"
ou propriedade sua, mas como caríssimo irmão em Cristo (v. 16). Se Onésimo
tinha roubado algo a Filemon, que este o pusesse na conta de Paulo, o qual
prometia pagar por Onésimo (embora na verdade Filemon é que devia a Paulo a
sua conversão a Cristo); cf. v. 18s; São Paulo usa assim autêntica linguagem
comercial para persuadir Filemon. Este, aliás, devia ser um cristão bem formado,
que exercia "caridade para com todos os santos, reconfortando os corações dos
irmãos" (cf. v. 5.7); por isto Paulo concluía sua carta exprimindo a certeza de
que Filemon seria ainda mais generoso do que Paulo lhe pedia.
Esta é a primeira declaração dos direitos humanos no Cristianismo;
baseava-se na verdade de que todos somos irmãos, porque todos participamos da
mesma natureza humana; ademais a regeneração batismal faz que todos sejam
um só em Cristo, sem distinção de judeu, grego ou bárbaro, escravo ou livre; cf.
Rm 6,5; Ef 4,24; Gl 3,27; Cl 3,11 ; 1Cor 12,13.
O Apóstolo não quis apregoar uma violenta
revolta dos escravos contra os patrões nem a eliminação brusca do regime de
escravidão, pois esta teria sido fatal para a vida do Império Romano; os escravos
eram mais numerosos do que os homens livres e garantiam a indústria e a
agricultura da época. Se, de um momento para o outro, a escravatura tivesse sido
abolida, milhões de pessoas morreriam de fome, pois a civilização da época não
tinha a capacidade de criar para si novos sistemas e recursos de subsistência.
O que importava a Paulo era transformar as relações entre escravos e
patrões, proclamando em cada escravo um irmão que compartilhava a dignidade
do seu patrão. Era preciso realizar a emancipação dos escravos nas mentes dos
homens antigos para depois concretizá-la na praxe e nas leis civis. Por isto,
Paulo, além de respeitar o Direito Romano vigente na sua época, quis lembrar a
Filemon outros direitos, como os da caridade decorrentes do ser cristão: Paulo já
ancião (v. 9), carregado de algemas (v. 10), amigo e credor espiritual de Filemon
(v. 19), suplicou em favor de um filho (v. 10), para que este fosse recebido como
irmão caríssimo em Cristo(v. 16). Caso Filemon compreendesse o alcance de
tais palavras, faria de Onésimo um liberto feliz, servidor de Cristo juntamente
com seu patrão.
Assim Fm aparece como obra prima da arte epistolar, portadora de
princípios que revolucionariam a história dos homens.
Lição 3: A epístola aos Filipenses
3.1. O pano de fundo
Em 358-7 a.C., Filipe II da Macedônia, pai de Alexandre Magno, ocupou
a comarca de Krenides (= pequenas fontes) e transformou-a em florescente
cidade, à qual impôs o nome de Filipos. O Imperador Romano Augusto isentou a
cidade de taxas e impostos e conferiu-lhe privilégios; fez de Filipos um posto
avançado da civilização romana ( = colônia, conforme At 16,12).
Paulo esteve três vezes em Filipos: por ocasião da segunda viagem
missionária (50-53), conforme At 16,12-40, e ainda durante a terceira viagem
apostólica, segundo At 20,1 s (fins de 57) e At 20,3-6 (Páscoa de 58). Entre o
Apóstolo e os fiéis estabeleceram-se relações de grande ternura, a ponto que
Paulo chama os filipenses "irmãos amados e queridos, minha alegria e coroa"
(4,1) ou ainda exclama: "Deus me é testemunha de que vos amo a todos com a
ternura de Cristo Jesus" (Fl 1,8).
Por causa dos laços afetivos com os filipenses, Paulo mais de uma vez
aceitou deles auxílio em dinheiro (cf. 2Cor 11,8s; FI 4,15-16). Paulo não
costumava aceitar ofertas, pois queria pregar o Evangelho sem ser, de algum
modo, oneroso aos fiéis ou vivendo unicamente do trabalho de suas mãos.
Precisamente, estando Paulo cativo em Roma, os filipenses, após certo recesso,
enviaram-lhe alguns recursos por intermédio de Epafródito, delegado da
comunidade junto a Paulo (cf. Fl 4,10-13; 2,25). Epafródito, porém, adoeceu
gravemente. Este fato muito preocupou os fiéis de Filipos e o próprio enfermo.
Paulo então resolveu mandar este de volta aos seus, juntamente com uma carta
(cf. Fl 2,25-29), que teria como principal objetivo agradecer aos fiéis os socorros
materiais e o afeto que dedicavam ao Apóstolo (Fl 4,15-20); aproveitando o
ensejo, Paulo mandaria notícias suas, principalmente do seu apostolado (cf. 1,12-
25); exortaria os fiéis à unidade e à concórdia fraternas (1,27-2,18; 4,1-4) e os
acautelaria contra as ciladas dos judaizantes (cf. 3,1-6).
Por duas vezes (1,25s e 2,24), o Apóstolo manifesta a esperança de em
breve retornar à companhia dos seus fiéis; donde se conclui que a epístola foi
escrita no fim do período de cativeiro, quando o processo se encaminhava para
um desfecho feliz.
Em favor do cativeiro romano, citam alguns estudiosos os textos de Fl
1,13 (menção do pretório) e 4,22 (referência à casa de César). Todavia esses
argumentos hoje têm pouco significado, pois se sabe que toda sede de pro cônsul
ou de magistrado inferior podia chamar-se pretório, e membros da casa de César
podiam ser os agregados à casa de um governador. - Contra a origem de Fl
durante o primeiro cativeiro romano, está o fato de que Paulo espera em breve
rever os filipenses (1,25.27; 2,24); na verdade, sabe-se que Paulo intencionava
passar de Roma para a Espanha (cf. Rm 15,24.28). - Quem não aceita a tese
tradicional (Fl oriunda em Roma), postula um cativeiro de Paulo em Éfeso - o
que é hipótese mal fundamentada. A questão, pois, do lugar de origem de Fl é de
difícil solução, mas não representa empecilho para o frutuoso entendimento da
mensagem desta carta. Vimos à p. 77 que também há quem suponha um
cativeiro em Cesaréia da Palestina, mas com pouca probabilidade.
3.2. Conteúdo e mensagem de Fl
1. A epístola aos Filipenses é, com razão, tida como "a carta da alegria
cristã". O vocábulo "alegria" e seus sinônimos constituem a trama desse
documento, recorrendo 24 vezes; cf. 1,4.7.25; 2,2.18; 3,1; 4,1.4... E São Paulo,
portador da alegria, quer que ela seja a partilha também de todos os seus fiéis.
Todavia essa alegria paulina é paradoxal: existe num homem já adiantado em
anos e detido na prisão, de onde escreve uma carta cheia de entusiasmo. Parece
reproduzir-se, na prisão donde Paulo escreve, o que ocorrera na cidade de Filipos
muitos anos antes: Paulo e Silas estavam detidos em cárcere público, sofrendo
terrivelmente pelas feridas da flagelação que ainda sangravam; e contudo, pela
meia-noite, cantavam hinos de louvor a Deus (cf. At 16,23-25).
É de notar que também os filipenses, na época em que esta carta lhes era
escrita, sofriam perseguições por causa da fé (cf. Fl 1,27-30). Todavia São Paulo
os admoesta a não se deixarem abater, mas antes exorta-os a agradecer a Deus
não só pela garça de crerem em Cristo, mas também pela de sofrerem por Ele,
empenhados todos num duro combate (cf. 1,27-30). A eles, sofredores, dirige
Paulo o estribilho: "Alegrai-vos sempre no Senhor. Repito: alegrai-vos!" (Fl 4,1).
Pergunta-se: como explicar situações tão paradoxais? A resposta se
encontra a seguir.
2. Paulo se identificava com um modelo, que ele propunha aos fiéis: o
Cristo Jesus: "Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus" (2,5).
Precisamente a seção de 2,6-11 desenvolve a imagem de Cristo Jesus num hino
que talvez fosse usual na liturgia da Igreja antiga: o Cristo, antes de se fazer
homem, preexistia em igualdade de condições com o Pai, mas não hesitou em
despojar-se da gloria que lhe competia como Deus, para assumir as condições de
fragilidade e esvaziamento próprias da natureza humana; feito homem,
experimentou, por obediência ao Pai, a morte do escravo pregado a cruz. Em
conseqüência, Deus Pai o quis exaltar (a Ele, o crucificado), dando-lhe um nome
que esta acima de todo nome: assim, como homem, o Cristo participa da gloria
de Deus. Essa transfiguração da Cruz e da dor realizada por Cristo é que se devia
tornar o segredo da fortaleza de ânimo e da profunda alegria do Apóstolo
identificado com Cristo. Esse segredo, São Paulo o revelou aos filipenses e o
revela ainda hoje a todos os leitores de tão bela carta.
Para aprofundamento, ver pág. 56.
* * *
PERGUNTAS
1) Porque damos a Fm, Cl, Ef e Fl o titulo de "epístolas do cativeiro"?
2) Qual a provável ordem de origem das epístolas do cativeiro?
3) Qual a problemática suposta por Fm e como Paulo a abordou?
4) Em que lugar e em que época foi escrita a epístola aos Filipenses?
5) Qual a mensagem de Fl?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
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CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO VIII: AS EPÍSTOLAS DO
CATIVEIRO (II)
Lição 1: Epístola aos Colossenses
Cl e Ef são duas epístolas afins entre si, pois supõem a mesma
problemática e a segunda parece ser a reedição ampliada e retocada da primeira.
Estudemos cada qual de per si.
Lição 1: Epístola aos Colossenses
1.1. O fundo de cena geográfico
A cidade de Colossos ficavana Frigia, região montanhosa que,
juntamente com Trôade, a Mísia, a Lídia e a Caria, constituía a província da Ásia
pro consular. Em 133 a.C. os romanos adquiriram o domínio da região, por onde
passava o rio Lico, banhando as cidades de Colossos (distante uns 200 km de
Éfeso), Laodicéia e Hierápolis (distante de Colossos 16 e 20 km
respectivamente). Colossos era originariamente notável centro comercial, que foi
ofuscado por Laodicéia.
Os povos da Ásia Menor, especialmente os da Frigia, eram inteligentes e
dotados de propensão filosófica; entregavam-se a indagações sobre o mundo e a
natureza assim como ao estudo da religião. Entre os pensadores filhos da região,
podem-se mencionar os filósofos jônicos e Heráclito; os cultos religiosos tinham
seus rituais exuberantes e violentos, como os da deusa Cibelis e do deus Atis.
1.2. O fundo de cena cristão
Sabemos que Paulo por duas vezes evangelizou a Frigia: por ocasião da
segunda viagem missionária (cf. At 16,6) e no fim da terceira expedição (cf. At
18,23). Todavia a comunidade cristã de Colossos foi fundada sem a intervenção
direta de Paulo, como atesta a própria carta aos Colossenses (2,1: não conheciam
Paulo pessoalmente). A sua origem se deve à prolongada permanência do
Apóstolo em Éfeso nos anos de 54-57, tempo durante o qual "todos os habitantes
da Ásia, judeus e gregos, puderam ouvir a Palavra do Senhor" (At 19,10). Entre
esses ouvintes, estavam certamente Epafrás (Cl 1,7) e Filemon (Fm 1), cidadãos
colossenses, que, convertidos em Éfeso, se encarregaram de fundar a
comunidade cristã de sua cidade; de modo especial, Epafrás parece ter sido o
grande arauto da Palavra nas cidades de Colossos, Laodicéia e Hierápolis (cf. Cl
4,12-14).
É de notar ainda que a maioria dos fiéis de Colossos era de origem pagã
(cf. Cl 2,13; 1,21.27), embora ainda devesse haver também judeus, que eram
numerosos na Frigia.
1.3. A problemática suposta por Cl
A comunidade de Colossos, em seus primeiros anos, deve ter sido assaz
fervorosa; além do que, nutria por Paulo afeto filial (cf. Cl 1,3-8). Todavia
sobrevieram-lhe pregadores, portadores de doutrinas aberrantes, das quais se
podem recolher alguns traços no texto de Cl: deviam disseminar um sincretismo
religioso, composto de elementos judaicos, cristãos e pré-gnósticos1, sincretismo
que Paulo chamava "filosofia segundo a tradição dos homens... e não segundo
Cristo" (Cl 2,8).
1 - A gnose era uma corrente em que se mesclavam proposições da filosofia grega, da mística
oriental e das Escrituras Sagradas. Expandiu-se sob diversas formas nos séculos II e III d.C., de
modo que no século l (época de Cl) só podia haver os antecedentes da gnose ou a pré-gnose.
Uma das características desta eram o dualismo ou a oposição entre o espírito (bom, santo) e a
matéria (má, pecaminosa).
O fundo judaico e, ao mesmo tempo, pré-gnóstico (dualista) das novas
doutrinas se percebe, por exemplo, em Cl 2,16.18: os fiéis deveriam abster-se de
certos alimentos e bebidas; deviam observar novilúnios e sábados; em Cl 2,20s
refere-se que esses pregadores proibiam "pegar, provar, tocar..." Transmitiam
preceitos judaizantes, que São Paulo chama "tradição dos homens" (2,8.22; cf.
Mc 7,5); incutiam provavelmente a circuncisão (cf. Cl 2,11).
Os novos mensageiros apregoavam também um exagerado culto aos
anjos (2,18), que punha em perigo o próprio primado que a fé crista atribui a
Cristo e que Paulo reafirma (tendo em vista precisamente a subordinação dos
anjos) em Cl 1,15-20. Na mentalidade judaica os anjos eram os intermediários
entre Deus e os homens, executores da justiça divina sobre a terra. Mais: os
judeus os consideravam como prepostos aos astros, que com suas órbitas rígidas
influíam na vida dos homens; em conseqüência, os anjos, tidos como regentes
dos astros, eram tidos também como dotados de influência na vida dos homens -
o que lhes merecia um culto de temor servil.
Os arautos intrusos preconizavam também ascese ou mortificação
corporal, que, a quanto parece, se lhes tornava motivo de vã glória hipócrita; cf.
Cl 2,23. Essa ascese levaria a visões extraordinárias e a conhecimento superior, à
semelhança do que se pregava nas religiões dos mistérios de Cibelis e Atis; cf.
Cl 2,18.
A pré-gnose, estabelecendo antítese entre o espírito (Deus) e a matéria
(ou o mundo material), havia de favorecer o abusivo culto dos anjos, como
intermediários entre Deus e a matéria. Os gnósticos chamavam esses
intermediários eons; os eons eram emanações do Ser Supremo, que se tornavam
tanto mais imperfeitos quanto mais distanciados dele; alguns gnósticos contavam
até 365 emanações ou eons. Os eons enchem o espaço cósmico entre a
Divindade, no alto, e a matéria em baixo; constituem o pléroma (= plenitude) e
o reino da luz. Ora São Paulo, aludindo à plenitude em Cl 1,19 e ao reino da luz,
em Cl 1,12s, faz eco a essas concepções, e mostra que a plenitude da vida, dos
bens e das graças a que os homens possam aspirar, se acha contida em Cristo;
Este enche a história e os espaços, pois é o Senhor de todas as criaturas visíveis e
invisíveis (qualquer que seja o nome destas): "Nele foram criadas todas as
coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis: Tronos, Soberanias,
Principados, Autoridades... Nele aprouve a Deus fazer habitar toda a Plenitude"
(Cl 1,15-19). Cristo aparece assim como o único e suficiente Mediador, ao qual
os anjos e os homens estão subordinados.
1.4. Conteúdo e mensagem de Cl
Paulo, prisioneiro em Roma (61-63), foi procurado por Epafrás, o
apóstolo das comunidades do vale de Lico. Este mensageiro não tinha apenas
boas novas a referir a Paulo, mas era também portador das notícias de males que
afligiam a comunidade de Colossos (e, certamente, as das regiões vizinhas);
aliás, os frígios eram dados à imaginação e a extravagantes experiências
religiosas o que oferecia terreno muito propicio para a propagação das novas
doutrinas.
Em vista dessas nuvens, Paulo quis escrever a epístola aos Colossenses,
que seria levada por Tíquico e Onésimo juntamente com a epístola a Fílemon.
O teor de Cl visa a por em relevo o primado absoluto de Jesus Cristo. O
Apóstolo, para melhor persuadir seus leitores, recorre a vocábulos da linguagem
pré-gnóstica (Cristo é imagem de Deus, 1,15, Plenitude de Deus, 2,9, Plenitude,
2,10; 1,19); recorre também a conceitos técnicos do pensamento judaico
(criação, salvação, perdão, Tronos, Soberanias, Principados, Autoridade...), em
suma, utiliza 35 palavras que não ocorrem nos outros escritos paulinos. O
Apóstolo quer apresentar Cristo como a Grande Resposta que os colossenses
procuravam. O ponto alto da epístola é precisamente o hino cristológico
apresentado em 1,15-20, onde se diz o seguinte:
Cristo é o PRIMEIRO e o ÚLTIMO, o Senhor absoluto no plano da
criação (1,15). Ele é também o PRIMEIRO no plano da redenção como
Salvador do mundo, cujo sangue reconcilia todas as criaturas entre si e com
Deus (1,18).
É claro que a salvação oferecida por Cristo requer, da parte do cristão,
ascese e renúncia ao velho homem; esta ascese, porém, é efeito da graça ou
transbordamento da vida de Cristo lançada no cristão através do Batismo (cf. Cl
2,11s; 3,1-3.9s).
A Cristologia de Cl é certamente mais evoluída que a das epístolas
anteriores; revela o pensamento de Paulo ainda mais perspicaz e amadurecido
que em 1/2 Cor. Estas duas cartas jápreparavam, de certo modo, Cl; cf.
1Cor8,5s; 10,4; 2Cor5,19. Ef é, por sua vez, a continuação de Cl.
Lição 2: A epístola aos Efésíos 2.1 Os destinatários
Éfeso era a capital da Ásia pro consular, cidade famosa, na qual se
cultuava a deusa Artemis. Nessa cidade Paulo esteve no fim da segunda viagem
missionária (cf. At 18,19-21) e, mais demoradamente, durante a terceira
expedição apostólica (cf. At 19,1-20,1); obteve numerosos frutos de
evangelização não só na capital, mas em toda a região vizinha; cf. At 19,10.18-
20. Isto tudo criou laços de profunda amizade de Paulo com os efésios, como se
depreende de At 20,17-38.
Ora quem examina a carta aos Efésios, verifica que não se refere a fatos,
pessoas e acontecimentos determinados, como as outras cartas; apresenta tom
impessoal, a ponto de faltarem as habituais saudações dos numerosos
colaboradores, como Timóteo e Aristarco, tão conhecidos aos efésios (cf. Aí
19,22-29; 1 Cor 4,17); também não se encontram saudações aos amigos
residentes em Éfeso. Dir-se-ia mesmo que os destinatários só conheciam Paulo
indiretamente ou por ter ouvido falar (cf. Ef 3,2-4;4,21). Em síntese, o texto de
Ef dá a impressão de ser um tratado teológico, apresentado a leitores
desconhecidos, sem polêmica nem intervenção em casos particulares, e não uma
carta a discípulos muito amados.
Os críticos levantaram então a questão: terá sido Ef realmente uma carta
enviada aos efésios? As dúvidas aumentam desde que se leve em conta que as
palavras "em Éfeso" faltam em alguns manuscritos antigos de Ef, embora não
em todos (ver Ef 1,1).
A problemática sugeriu diversas soluções, das quais a mais plausível é a
seguinte: Ef é uma carta-circular, destinada não somente à capital da Ásia pro
consular, mas a todas as cidades vizinhas; por isto faltam-lhe comunicações
pessoais e alusões a circunstâncias locais. Terá prevalecido na tradição dos
manuscritos o costume de mencionar "em Éfeso" no início da carta (1,1), porque
Éfeso era a cidade mais importante da região. Assim se explicam tanto o caráter
impessoal da carta como a notícia tradicional de que foi dirigida aos Efésios.
2.2. Autor e mensagem de Ef
1. Ciente dos perigos que ameaçavam a comunidade de Colossos, Paulo
escreveu um tanto apressadamente a carta aos Colossenses; tentaria assim conter,
de imediato, os erros dos falsos doutores. Com o passar do tempo, porém, o
Apóstolo foi-se lembrando das comunidades que se haviam formado em toda a
região da Ásia pro-consular e que corriam o mesmo perigo que a de Colossos.
Em conseqüência, resolveu retomar o teor de Cl e desenvolvê-lo numa versão
ampliada, sem caráter polêmico, mas, antes, em atitude contemplativa. Na carta-
circular (Ef) assim oriunda, a Cristologia é explanada sem alusões a
controvérsias e com ênfase mais acentuada sobre a Igreja como Corpo de Cristo
(Ef 1,23; 4,12.16; 5,23.30), doutrina esta já esboçada em 1 Cor 12,27; Rm 12,15.
O tema de Rm, que encarava judeus e pagãos como pecadores, atingidos
gratuitamente pela misericórdia do Salvador, é retomado em Ef 2,1-21: os dois
povos se encontram em Cristo, e por Ele caminham para o Pai no Espírito Santo
(2,18; cf. Rm 9-11). A Igreja está estritamente associada ao Espírito, a Cristo, ao
Pai e aos sacramentos: "Há um só corpo e um só Espírito, um só Senhor, uma só
fé, um só Deus e Pai de todos" (Ef 4,4s). Temos aqui o ponto alto de toda a
eclesiologia paulina.
Mais precisamente, comparando entre si Cl e Ef, verifica-se o seguinte:
Cl tem apenas 30% de próprio, isto é, sem paralelos em Ef; esta possui
50% de exclusivamente seu. São passagens próprias de Cl: 1,15-20 (hino
cristológico, talvez tirado da Liturgia antiga); 2,1-9.16-23 (polêmica contra os
falsos pregadores) ; 3,1-4 (exortação a procurar as coisas do alto); 4,9 (saudações
e encargos). Ef tem de exclusivamente seu: 1,3-14 (o grande prólogo de ação de
graças); 2,1-10 (a vida nova em Cristo); 3,14-21 (oração para que os fiéis
compreendam o mistério); 4,1-16 (exortação à unidade); 5,8-14 (exortação a
caminhar na luz); 5,23-32 (o matrimônio inserido no mistério de Cristo e da
Igreja) ; 6,10-17 (a armadura do cristão).
Nas seções comuns, não existe identidade absoluta de conteúdo, menos
ainda de palavras.
2. É a "concórdia discorde" de Cl e Ef que leva alguns críticos a
perguntar se ambas estas cartas são do Apóstolo Paulo. Há quem atribua Ef a um
autor do tempo pós-paulino (século II ou, no mínimo, da década de 80); terá
desenvolvido de maneira própria a temática de Cl, utilizando em Ef 30 palavras
que não mais ocorrem em todo o Novo Testamento, e 83 palavras que não
aparecem nas outras epístolas de São Paulo.
Esta hipótese relativamente recente não é compartilhada pela maioria dos
exegetas católicos. Estes preferem guardar a tese de que Paulo é o autor de Cl e
Ef; para a elaboração de Ef, o Apóstolo terá recorrido a um redator (não simples
escriba, mas compositor de frases); assim se explicariam as particularidades de
linguagem e estilo de Ef, como também as passagens de Ef 2,20; 3,5, em que o
redator aparece. A sublimidade teológica de Ef dissuade bons críticos de
considerá-la apenas como obra de um discípulo de Paulo; este no fim de sua
atividade apostólica percebia cada vez melhor que um único e grande "mistério"
dava sentido à sua aventura pessoal e à história da humanidade: na plenitude dos
tempos, Deus Pai houve por bem "recapitular todas as coisas em Cristo, tanto as
terrestres quanto as celestes" (cf. Ef 1,9s). Arrebatado pela contemplação desta
verdade, Paulo explanou o mistério de Cristo-Cabeça, cujo corpo vai realizando
seu crescimento no amor (cf. Ef 4,15s).
3. Como "jóia" do epistolário paulino e do Novo Testamento, ocorre o
prólogo de Ef 1,3-14. Trata-se de um hino de ação de graças (eucharistia), que
tem semelhança com os prefácios da Missa (Eucaristia). Consta de três estrofes,
terminadas pelo mesmo refrão: "para louvor e glória da sua graça" (cf.
1,6.12.14). -A primeira estrofe (1,3-6a) conta a obra do Pai, que é de pré-
escolher, pré-destinar em Cristo desde toda a eternidade; a segunda estrofe (1,6b-
12) louva a obra do Filho, manifestada na plenitude dos tempos, quando Cristo
quis recapitular (assumir em si, fazendo-se Cabeça) toda a história e todas as
criaturas; a terceira estrofe (1,13-14) se volta para a ação do Espírito Santo, que
é o selo (ou confirmação) das promessas e o penhor da nossa herança. - O
Espírito é menos enfatizado no prólogo de Ef do que o Pai e o Filho, mas Ele
ocorre em toda a trama da carta até o fim - o que bem significa que a vida cristã
e essencialmente vida no Espírito; cf. 2,18.22; 3,16; 4,4.30; 5,18; 6,17.
Assim todo cristão encontrará em Ef rico alimento para a sua vida
espiritual.
Para aprofundamento, ver pág. 56.
PERGUNTAS
1) Como foi fundada a comunidade de Colossos?
2) Porque São Paulo quis escrever aos Colossenses?
3) Quais as linhas principais da mensagem de Cl?
4) Quais os destinatários de Ef? Exponha o problema.
5) É discutida a questão do autor de Ef?
6) Quais as linhas doutrinárias de Ef?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3aA distinção entre inspiração bíblica e revelação se faz muito clara no livro de Jó. Este trata do
sofrimento do homem justo; por que é abatido pela doença? O autor sagrado só tinha noção do cheol;
ignorava a retribuição póstuma; Deus não lhe quis revelar a vida póstuma consciente; mas quis inspirá-lo
para escrever o livro de Jó. Isto quer dizer que o autor procurou dentro dos limites da vida presente uma
resposta para a questão do sofrimento dos justos. Não a encontrou, porque só se elucida à luz da
ressurreição e da vida póstuma, consciente. Em consequência, o hagiógrafo apenas pôde dizer que o
sofrimento nem sempre supõe pecados pessoais, como se fosse um castigo (o que já era um progresso na
mentalidade de Israel); quanto ao mais, terminou pedindo o silêncio do homem diante do mistério da dor; é
certo que Deus é mais sábio do que o homem e não se engana, mas o homem não é capaz de abarcar os
desígnios de Deus. Esta conclusão é plenamente válida, é digna de um livro inspirado; mas não contém a
revelação da ressurreição dos mortos e da vida póstuma consciente, que só mais tarde teria lugar em Israel.
Por último, Jesus nos revelou que o sofrimento, aceito em união com Ele, é Páscoa ou passagem para a
ressurreição e a glória definitiva.
Algo de semelhante se deu com o livro do Eclesiastes. É inspirado de ponta a ponta, mas não traz a
revelação da vida póstuma consciente, sem a qual é impossível debater o problema da felicidade, que o
hagiógrafo encara. Não obstante, a conclusão do livro é verídica não só para um judeu, mas para um leitor
cristão; cf. Ecl 12,13s. Ver revelação.
Javé: é o nome com o qual Deus se revela a Moisés em Ex 3,14s. Pode ser interpretado de várias
maneiras: a tradição dos judeus de Alexandria, muito dados a especulações filosóficas, traduziu Javé para o
grego por ho on, Aquele que é; queriam indicar assim o Absoluto ou o Transcendente de Deus. Todavia
parece que, segundo a concepção dos judeus da Palestina, menos propensos a elevações filosóficas, o nome
Javé significa Aquele que é fiel, que acompanha o seu povo e lhe está sempre presente.
Lei: na linguagem paulina designa freqüentemente a Torá ou a Lei de Moisés de modo que, quando
o Apóstolo censura a Lei (cf. Gl 2,6; 3,10.19), tem em vista não qualquer lei nem a boa ordem publica, mas
a Lei de Moisés, que era um provisório preparativo da vinda do Cristo.
Messias: vocábulo hebraico que significa Ungido; foi traduzido para o grego por Christós. Eram
ungidos os reis de Israel (cf. 1Sm 10,1; 16,13; 2Sm 2,4...), que por isto traziam o nome de "Ungidos de
Javé". A unção significa relação particular entre o Senhor Deus e o ungido, que assim era revestido de
autoridade especial e inviolável (cf. 1Sm 24,7; 26,9.11...). Ungidos eram também os sacerdotes em Israel
(cf. Ex 28,41; Lv 10,7; Nm 3,3). Aos profetas se aplicava uma unção não em sentido próprio, mas em
sentido metafórico (cf. 1Rs 19,19; 2Rs 2,9-15). -Visto que o Salvador prometido desde Gn 3,15 seria Rei,
filho de Davi (cf. 2Sm 7,12-16), Sacerdote (cf. Hb 7,1-25; Gn 14,17-20) e Profeta, o titulo de Ungido lhe
foi atribuído na literatura judaica e nos escritos do Novo Testamento (cf. Jo 1,41; 4,25). Jesus foi ungido
com o Espírito Santo e com poder (At 10,38); Ele mesmo aplicou a Si o texto de Is 61,1, apresentando-se
corno o Ungido que veio anunciar aos povos a Boa-Nova (cf. Lc 4,18-21).
Com o tempo, a palavra Ungido, que era um adjetivo próprio para significar uma função, tornou-se
nome próprio, justaposto a Jesus; donde Jesus Cristo, e não Jesus o Cristo.
Midraxe: é uma narração de fundo histórico, ornamentada pelo autor sagrado para servir à instrução
teológica e à edificação dos seus leitores. O autor conta o fato de modo a pôr em relevo o valor ou o
significado religioso desse fato. A sua intenção não é estritamente a de um cronista, mas a de um catequista
ou teólogo. Como exemplo, citemos o caso do maná: em Nm 11,4-9 é apresentado como alimento insípido e
pouco atraente; mas em Sb 16,20s é tido como cheio de sabor, adaptando-se ao paladar dos que comiam.
Parece haver contradição; na verdade não a há: o autor de Nm escreve uma narração de cronista, ao passo
que o de Sb nos apresenta o sentido teológico do maná num midraxe: o maná era pão delicioso não por seu
paladar, mas porque era o penhor da entrada do povo na Terra Prometida; visto no contexto da história da
salvação, o maná foi delicioso.
Parábola: história fictícia que serve para ilustrar uma verdade teológica. É, pois, uma longa
comparação; caracteriza-se pelas fórmulas "O reino dos céus é semelhante..., é como...". A parábola nunca
aconteceu. Deve-se interpretar a parábola procurando a linha-mestra do seu ensinamento e transpondo tal
mensagem para o plano da fé. Assim em Lc 15,11-32 a bondade do pai para com o filho pródigo ilustra a
misericórdia de Deus para com os pecadores; em Lc 10,30-37 a solicitude caridosa do bom samaritano
ilustra a maneira como devemos tratar o próximo, qualquer que seja a sua condição humana ou social.
A alegoria carece da fórmula "é semelhante, é como..." Exprime diretamente o nexo entre o sujeito e
o predicado: "Eu sou o Bom Pastor" (Jo 10,11), "Eu sou a verdadeira videira" (Jo 15,1)... Na alegoria os
pormenores da imagem podem ser aplicados ao plano transcendental com mais rigor do que na parábola
(esta geralmente fala apenas por seu fio condutor}.
Parusia: visita que o Imperador Romano fazia às cidades do Império; tal aparição do Imperador era
sempre ocasião de alegria festiva. - Ora os cristãos assumiram este vocábulo para designar a segunda vinda
de Cristo ao mundo a fim de consumar a história; Ele virá como Senhor, Kyrios, Imperador a fim de julgar
o mundo e restaurar plenamente a ordem.
Presbítero: ver Bispo.
Promessa: no vocabulário paulino, é a promessa, feita por Deus a Abraão, de que sua posteridade
seria numerosa e por ela todos os povos receberiam a bênção (= o Messias); cf. Gl 3,16.18. Tal promessa se
cumpriu em Cristo; cf. 2Cor 1,20.
Querigma: ver catecúmeno.
Revelação: a Bíblia nos dá, a saber, que Deus falou aos homens comunicando-lhes o mistério da sua
vida trinitáría e o seu desígnio de salvação, centrado em Cristo Jesus. Nunca os homens chegariam por si a
conhecer tais verdades. Por isto o judaísmo e o Cristianismo são religiões reveladas.
A Bíblia contém a revelação de Deus aos homens, mas nem todas as páginas da Bíblia, embora
inspiradas, são portadoras de revelação divina. Note-se, por exemplo, que em Is 7,14 está predito que uma
virgem conceberia e daria à luz um filho: isto foi consignado no texto sagrado por efeito de dois carismas (o
da revelação e o da inspiração); mas, quando Mt 1,20-23 e Lc 1,26-38 nos dizem que a virgem concebeu e
deu à luz um filho, já não escrevem por efeito de revelação (o fato já ocorrera e era notório), mas
unicamente por efeito do dom da inspiração bíblica. - Toda profecia é fruto de revelação divina.
Salmos (numeração): O texto hebraico (M) e o dos LXX e da Vulgata latina contêm 150 salmos,
mas o modo de numerá-los é diverso, como se pode ver na seguinte tabela:
Texto hebraico (M) LXX e Vulgata
1-8 1-8
9-10 9
11-113 10-112
114-115 113
116,1-9SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO IX: AS EPÍSTOLAS PASTORAIS
Chamam-se "Pastorais" as epístolas 1/2 Tm e Tt, pois se dirigem a
pastores de comunidades, aos quais propõem normas administrativas. O titulo de
"Pastorais" data do século XVIII e deve-se ao teólogo protestante Paul Anton (†
1730). Há quem duvide da autoria paulina destas cartas. Daí o primeiro título do
nosso estudo.
Lição 1 : Autenticidade
1. Até o começo do séc. XIX admitia-se tranquilamente a autoria paulina
das epístolas pastorais. Esta até hoje é afirmada por grande número de autores
católicos. Todavia os críticos apontam em contrário os seguintes argumentos:
1) O estilo das Pastorais é regular e harmonioso, contrastando com a
impetuosidade e a exuberância das epístolas anteriores. O próprio vocabulário
difere: de 848 vocábulos das cartas pastorais, 306 são exclusivos destas cartas no
conjunto do epistolário paulino.
2) A organização da Igreja e a evolução da hierarquia apresentadas pelas
Pastorais são demais desenvolvidas para se situar na época de S. Paulo († 67).
Para entender este argumento, devemos lembrar que, enquanto os
Apóstolos viviam, eles eram os pastores de toda e qualquer comunidade;
todavia, como não tinham estabilidade, deixavam em cada comunidade um
Colégio de anciãos (presbýteroi, em grego) ou superintendentes (epískopoi, em
grego), que governavam a comunidade na ausência do Apóstolo e que tinham
abaixo de si os diáconos (diákonoi, ministros, em grego). É o que se depreende,
por exemplo, de At 11,30; 14,23; 15,23; 1 Pd 5,1; Fl 1,1 e de At 20,17 (São
Paulo manda chamar os presbýteroi, anciãos, de Éfeso) e At 20,28 (S. Paulo
designa esses anciãos como sendo epískopoi, superintendentes, guardas,
vigilantes). - Com o passar da geração dos Apóstolos, essa organização devia
ceder ao chamado "episcopado monárquico": um dos presbýteroi-epískopoi
seria escolhido como chefe do colégio e ficaria com o nome exclusivo de
epískopos (bispo), ao passo que os restantes, subalternos, teriam o nome de
presbyteroi, presbíteros (sacerdotes, no sentido comum da palavra hoje). Esta
nova organização nos é atestada pelas cartas de S. Inácio de Antioquia (f†107).
Ora, dizem os críticos, as epístolas pastorais supõem o episcopado
monárquico (que é posterior à época de S. Paulo), pois Timóteo e Tito parecem
ser os pastores de uma comunidade, cada qual. Por conseguinte um discípulo do
séc. II terá usado o pseudônimo de Paulo para escrever as cartas pastorais -
Voltaremos ao assunto.
3.) Os erros combatidos em 1/2 Tm e Tt supõem o gnosticismo do século
II1. Tenham-se em vista 1Tm 4,1-5; 6,3.20:; 2Tm 2,14-18; 4,3s; Tt 1,10-16...
1 - O gnosticismo é uma corrente que mistura doutrinas gregas, judaicas e orientais (místicas);
prepondera aí o
dualismo ou a oposição entre o espírito (tido como o bom e puro) e a matéria (considerada como
má e impura).
4) O Cristianismo das Pastorais é jurídico, ao passo que o paulino é
místico. As Pastorais recomendam a ortodoxia (1Tm 1,10;4,1;Tt 1,9;2Tm4,3);
insistem nas boas obras (1Tm2,10; 5,10; 6,18;Tt2,7.14; 2Tm 2,21), ao passo que
São Paulo recomenda muito a fé.
Em conseqüência, as Pastorais seriam de um autor do séc. II. Este,
recorrendo a pseudonímia, teria procurado fazer eco aos Atos, a 2Cor, a Fl e Cl,
para escrever cartas que visavam a preservar a sã doutrina e a hierarquia da
Igreja em comunidades ameaçadas pelas especulações extravagantes do
gnosticismo.
2. Que dizer a tal propósito?
Na verdade, os argumentos não são decisivos, como se poderá perceber:
1) Compreende-se que um autor dinâmico, como era São Paulo, não se
tenha fixado num linguajar único, principalmente quando novas circunstâncias e
novos temas exigiam novos vocábulos e novo estilo. Vimos que entre Gl e Rm
existe evolução de pensamento e expressão. Também se deve considerar que a
idade avançada pode ter abrandado a linguagem ardente de Paulo. Mais: na
antiguidade, sendo o trabalho de escrever penoso e longo, as pessoas mais
atarefadas limitavam-se a indicar idéias e palavras-chaves a um redator; este se
encarregava, de dar a tal material o estilo e a forma literária que julgasse
convenientes; o escrito assim redigido era atribuído ao doador das idéias. Ora é
possível que Paulo tenha recorrido a este expediente para produzir as Pastorais
(como também Ef); há mesmo quem julgue que esse redator foi Lucas, pois
apontam afinidades entre o estilo de Lucas e o das Pastorais.
2) As Cartas Pastorais ainda não supõem o episcopado monárquico. O
título de "epíscopo" aparece ai como sinônimo de "presbítero" (cf. Tt 1,5-7),
como em At 20,17.28. Nem Timóteo nem Tito são bispos residenciais, postos à
frente de uma comunidade só, mas são pastores peregrinantes, postos à
disposição de Paulo, que os desloca como lhe apraz {cf. Tt 3,12; 2Tm 4,11-13). -
Verdade é que nas epístolas pastorais é realçada a diversidade dos ministérios (o
autor se refere também aos diáconos e às viúvas cf. 1Tm 3,8-13; 5,3-16), como
se S. Paulo quisesse descentralizar o serviço da comunidade, preparando o
episcopado monárquico que aparece nas cartas de S. Inácio de Antioquia (aos
Magnésios 3,2; 6,1; aos Esmirnenses 8,1).
3) As doutrinas combatidas nas Cartas Pastorais não são necessariamente
as da gnose do século II. A descoberta, em 1947, de documentos judaicos em
Qumran, datados do limiar da era cristã, ajuda a identificar tais erros: trata-se de
teorias sutis (1 Tm 6,4), fábulas e genealogias sem fim (cf. 1Tm 1,4), polêmicas
a respeito da Lei (cf. Tt3,9), contos de gente caduca (cf. 1Tm 4,7), associados a
ascetismo dualista (cf. 1Tm4,3; 2Tm 2,18); isto tudo sugere a pré-gnose, já
reconhecida no estudo de Cl e Ef.
4) A insistência de Paulo sobre a fidelidade às proposições da fé aparece
nas epístolas mais antigas: 1 Cor 11,2.23; 15,3; 2Ts2,15; 3,6; Rm6,17 ("forma de
doutrina"). Não é, pois, para estranhar que ocorra nas Pastorais. - Também a
exortação às boas obras é familiar a S. Paulo: Gl5,6; Rm2,7s; 2Cor 9,8; Fl1,6. -
Por sua vez, o tema da graça e da gratuidade, caro às epístolas mais antigas,
ocorre em ITm1,12-17; Tt3,4-7.
Vemos assim que há continuidade entre as epístolas pastorais e o clássico
epistolário paulino. Podemos, pois, manter, com a tradição, a tese de que Paulo
também é o autor (se não o redator) das Pastorais.
Mais precisamente, descrevemos nos seguintes termos o contexto de tais
cartas:
O primeiro cativeiro romano (61 -63) de Paulo terminou com sentença
favorável a Paulo. Este, então, conforme seus anseios, foi à Espanha (cf.
Rm15,24-28). A seguir, em 65 e 66 empreendeu nova viagem ao Oriente (cf.
Fm22), a fim de visitar e multiplicar as comunidades cristãs. No decurso dessa
viagem, terá deixado Tito em Creta e Timóteo em Éfeso (Ásia Menor); a estes
dirigiu pouco depois, em 65-66, as duas primeiras cartas pastorais, a fim de
fortalecê-los no exercício da sua missão. Não muito depois, Paulo foi preso,
talvez em Trôade (cf. 2Tm 4,13), pois o nome de cristão era ilícito; levado a
Roma para um segundo cativeiro, escreveu 2Tm marcada pela consciência da
morte próxima.
Lição 2: Os destinatários
Timóteo era originário de Listra, na Licaônia, filho de pai pagão e de mãe
judia convertida ao Cristianismo e chamada Eunice (At 16,1; 2Tm 1,5). Por
ocasião da primeira viagem missionáriade Paulo provavelmente, foi batizado
em 45; instruído nas Escrituras Sagradas por sua avó Loide e sua mãe Eunice
(2Tm 3,15), foi assumido por Paulo como auxiliar de apostolado durante a
segunda viagem missionária; Paulo mandou circuncidá-lo, porque todos sabiam
que o pai de Timóteo era pagão (cf. At 16,1-3).
- Desde então, Timóteo tornou-se fiel companheiro de Paulo, dócil ao
Apóstolo e plenamente identificado com o mestre; cf. 2Tm l,2; 2,1 ; 1Tm 1,2; 1
Cor4,17; FI2.20. Não sem razão Timóteo é associado a Paulo no cabeçalho de
seis cartas; 1/2 Ts, 2Cor, Cl, Fl, Fm.
Timóteo compartilhou o primeiro cativeiro romano de Paulo. Depois
acompanhou o Apóstolo em sua viagem pelo Oriente e foi constituído epíscopo
missionário em Éfeso, com a finalidade de admoestar "alguns a não ensinar outra
doutrina" (1 Tm 1,3). Diz a tradição que morreu em Éfeso, como mártir em 97.
Tito, que devia ter a mesma idade que Timóteo, é-nos conhecido apenas
por referências em quatro cartas de S. Paulo: Gl, 2Cor, Tt, 2Tm. Os Atos não
falam deste discípulo. Filho de pais pagãos (cf. Gl 2,1 s) e convertido à fé
provavelmente por Paulo (cf. Tt 1,4), Tito pertencia à comunidade cristã de
Antioquia. Pela primeira vez aparece como companheiro de Paulo, por ocasião
do Concilio de Jerusalém (Gl 2,1-2). Após o fracasso de Timóteo, aceitou o
convite de reconduzir à obediência e paz a comunidade agitada dos coríntios;
levando a estes a "carta das lágrimas", viu seus esforços bem sucedidos (cf.
2Cor7,13-15; 8,6; 12,17s). Foi também o portador da 2Cor (cf. 2Cor 8,6.16-24).
Após longo intervalo, Tito reaparece ao lado de Paulo em Creta, onde é deixado
com a tarefa de concluir a organização das comunidades locais (cf. Tt 1,5); aí
devia ficar até que Artemas ou Tíquico o fosse substituir (Tt 3,12). Segundo a
tradição, morreu em 93 como bispo da ilha de Creta. Em conseqüência, pode-se
dizer que Tito possuía um temperamento sólido forte e ponderado; era apto a
tarefas difíceis, bom organizador, zeloso no ministério... Salientaremos, a seguir,
alguns traços mais importantes das Pastorais.
Lição 3: Traços importantes
3.1. Vida cristã e beleza
O termo kalós (belo e bom) é característico de 1/2 Tm e Tt. Ocorre aí 24
vezes, quase sempre como adjetivo, ao passo que nas outras dez cartas paulinas
só aparece num total de 20 vezes. Assim a beleza parece tornar-se, aos olhos de
Paulo ancião, uma nota característica da vida cristã ou uma expressão da vida de
fé. Tenhamos em vista algumas das passagens que empregam o adjetivo kalós
(bom e belo): 2Tn 4,7e 1Tm6,12 (o belo ou nobre combate da fé); 1 Tm 6,13 (a
bela ou heróica confissão); 1Tm 1,18 (a bela ou fiel militância); 1 Tm 4,6 (bela
ou sadia doutrina); 1Tm 3,7 (belo ou favorável testemunho); 2Tm 1,14 (belo ou
precioso depósito); 1Tm 1,5.19 (bela ou reta consciência); 1Tm 1,8 (bela ou
válida Lei); 1Tm 2,10; 3,1; 5,25; 2Tm 2,21; 3,17 (belas ou santas obras). Assim
toda a vida crista é bela e o pastor deve procurar formar os fiéis a vivê-la
conseqüentemente (cf. Tt 3,8; 2,3; 1Tm 2,3). Verdade é que as traduções
portuguesas nem sempre conservam a força da palavra kalós; como quer que
seja, é oportuno que o leitor saiba quanto ela está presente nas pastorais. Este
fato é especialmente surpreendente se levarmos em conta que, para o filósofo
Aristóteles (f 322 a.C.), os anciãos não vivem para a beleza de ideais, mas para o
que é útil ou pragmático; ora precisamente São Paulo ancião fala mais da beleza
da vida do que em sua idade madura; isto só se pode explicar pela fé do
Apóstolo, que lhe apontava o fim da vida terrestre como consumação ou
plenitude da verdadeira vida, que já existe, sob forma de semente, em cada
cristão desde o dia do seu batismo.
3.2. A vida cristã como treinamento atlético
São Paulo usava de muitas metáforas para melhor se fazer compreender.
Entre estas, não pendia negligenciar a dos exercícios atléticos muito estimados
pelos gregos.
Em suas primeiras epístolas, o Apóstolo se referiu ao pugilato ou jogo de
box (1 Cor 9,26; 2Cor4,8s), às corridas atléticas (1 Cor 9,24; Gl 5,7; Fl 3,12-14;
cf. Hb 12,1), a fim de ilustrar o zelo com que o cristão se deve dedicar à
conquista da coroa da vida eterna. Em 1 Tm 4,7s Paulo retoma a imagem do
atletismo e recomenda mais explicitamente o empenho pelo treinamento
espiritual: "Exercita-te na piedade. A pouco serve o exercício corporal, ao passo
que a piedade é proveitosa para tudo, pois contém a promessa da vida presente e
futura". Estas palavras se tornam particularmente ricas de sentido, se
compreendemos que foram escritas para um discípulo que devia educar-se ou
formar-se para o encargo de pastor do rebanho de Cristo. O Apóstolo afirma que
muito mais valioso do que o atletismo corporal (praticado com tanto afinco pelos
homens) é a áskesis, a ascese ou o treinamento espiritual; este exigirá não
menos esforço do que a luta do estádio, pois tem para si melhores promessas do
que as das competições atléticas.
3.3. Solidariedade e não solidariedade com Cristo
Em 2Tm 2,11-13, o Apóstolo transcreve um possível hino da Liturgia
antiga, que assim reza:
"Se com Ele morrermos, com Ele viveremos.
Se com Ele sofrermos, com Ele reinaremos.
Se nós o renegarmos, também Ele nos renegará.
Se lhe somos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode renegar a si
mesmo".
Esta estrofe compõe-se de quatro versos: os dois primeiros afirmam
plena solidariedade do cristão com Cristo no morrer e no ressuscitar; o terceiro
ainda mostra um paralelo entre o cristão e o Cristo, mas trágico; o quarto nega
qualquer paralelo. - Que significam, pois, o terceiro e o quarto verso? O terceiro
supõe a renegação no momento final desta peregrinação terrestre; se o cristão é
então encontrado avesso a Cristo, a sua opção negativa é respeitada; Deus não o
forçará a converter-se (tal é a tragédia do inferno). O quarto verso refere-se aos
pecados da vida cotidiana: ainda que o cristão peque (seja infiel), Cristo não lhe
é infiel, de modo que, sempre que deseje voltar, arrependido, ao Senhor, o
pecador encontra Este de braços abertos, como Ele sempre foi; com efeito, Deus
não nos pode dizer não depois de haver dito sim; não pode retratar-se,
precisamente porque é Deus perfeito e não criatura volúvel. A perfeição de Deus,
tornando Deus diferente do homem, é que fundamenta a confiança e a esperança
do cristão.
Eis algumas seções que recomendam a leitura atenta e proveitosa das
epístolas pastorais.
Para aprofundamento, ver pág. 56.
* * *
PERGUNTAS
1) Leia as epístolas pastorais e aponte, em cada uma, três passagens que
revelem a solicitude do pastor. Justifique sua escolha,
2) Onde é que, nas Cartas Pastorais, o autor nos diz que "toda Escritura
é inspirada por Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir..., a
fim de que o homem de Deus seja perfeito"?
3) Em que passagem das pastorais São Paulo diz que "é grande o
mistério da piedade..."?
4) Himeneu e Fileto têm uma palavra que é como gangrena. Onde se
encontra isto?
5) Onde São Paulo nos diz que a graça de Deus se manifestou a todos os
homens e nos ensina a viver santa, justa e piedosamente neste mundo?
6) Na 2Tm qual a secção que mais manifesta a solidão do Apóstolo?
7) Onde São Paulo diz a Timóteo que tome um pouco de vinho por causa
do estômago?
8) Como deve ser a viúvaque serve ao Senhor, conforme 1 Tm? Indique
capitulo e versículos?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
3a SUBETAPA: SÃO PAULO E SUAS EPÍSTOLAS
MÓDULO X: A EPÍSTOLA AOS HEBREUS
Lição 1: O autor de Hb
Até cinqüenta anos atrás era comum dizer-se que Hb é carta de S. Paulo
Apóstolo. Em nossos dias, porém, já não se afirma isto, mesmo entre os
católicos. Aliás, faz-se oportuno notar que é lícito discutir a autoria de algum
escrito bíblico, contanto que não se ponha em dúvida a canonicidade do mesmo
ou o seu valor de Palavra de Deus. É o que ocorre com Hb: pergunta-se qual o
autor humano dessa carta inspirada pelo Espírito Santo.
1.1. Os dados da tradição
A própria tradição é hesitante sobre a origem paulina da carta. Os
escritores orientais a atribuíram a São Paulo; verdade é que Orígenes de
Alexandria († 258) admitia que Paulo fora o autor de Hb (isto é, a fonte da
doutrina de Hb), mas não o redator; assim tentava explicar as diferenças de estilo
existentes entre Hb e as cartas propriamente paulinas.
No Ocidente os testemunhos são mais divergentes. Até o século IV
houve quem duvidasse não só da autoria paulina de Hb, mas até da
canonicidade. A razão desta posição extremada é a seguinte: nos séculos II/III
ocorreram movimentos heréticos, como o dos Montanistas e o dos Novacianos;
estes se valiam de Hb 6,4-8 para afirmar que havia pecados irremissíveis (= sem
perdão). Ora, a fim de combater tal rigorismo herético, alguns mestres ocidentais
negaram a própria canonicidade de Hb (não queriam que fosse lida em público).
Todavia, a partir de meados do século IV, tais correntes perderam sua voga, e os
escritores ocidentais passaram a aceitar tanto a canonicidade quanto a autoria
paulina de Hb.
Eis, porém, que os críticos dos últimos decênios voltaram a levantar a
questão da autoria da carta, apoiando-se principalmente no exame do texto. Daí
o novo subtítulo:
1.2. Critérios internos do texto
a) Em Hb 2,3 o autor distingue: primeiramente o Senhor, que começou a
pregar a Boa-Nova, depois os Apóstolos e discípulos, que imediatamente a
ouviram, e finalmente nós, isto é, uma segunda geração, que é discípula dos
Apóstolos e dos primeiros ouvintes da Palavra. Ora São Paulo nunca se incluiria
entre os discípulos, como se inclui o autor de Hb; fazia questão absoluta de
afirmar que ele recebera o Evangelho diretamente de Cristo; cf. Gl 1,1 s. 12.16s.
b) Em Hb falta a introdução, que é habitual nas cartas paulinas; começa
sem o nome do remetente e sem as costumeiras saudações. Comparem-se entre
si o início de 1 Cor, por exemplo, com o início de Hb. Esta carta parece, antes,
um tratado teológico ou uma homilia, à qual se acrescentou um fecho de carta
(cf. 13,18-25).
c) Hb apresenta 168 palavras que não se encontram no resto do Novo
Testamento, e outras 124 que faltam nas cartas paulinas. Algumas destas se
derivam da filosofia grega do século I: demiourgos, em Hb 11,10;
metriopathein, ter compreensão, em 5,2. O autor prefere falar de Jesus Cristo
ou simplesmente de Jesus ou de Cristo, em vez da habitual formula paulina
Cristo Jesus (cf. Hb 2,9; 3,1; 13,8 e Fl 2,5; Gl 5,14). De modo geral, o estilo de
Hb revela escritor que conhecia muito bem o vocabulário e a sintaxe gregos, ao
passo que as cartas paulinas são muito menos buriladas.
d) O modo de citar a Bíblia também é diferente: S. Paulo usa as formulas
"está escrito..., como está escrito..., diz a Escritura..., Moisés diz..., Davi diz...".
Ao contrário, conforme Hb, Deus diz diretamente (cf. 1,5.6.7.13; 4,3; 7,21 ;
8,5.8; 10,30.37.38; 11,18; 12,15; 13,5.6) ou o Espírito Santo diz (cf. 3,7; 9,8;
10,15).
e) O Antigo Testamento é interpretado como tipo ou imagem do Novo
Testamento. Assim a Lei é a sombra ou o esboço dos bens da nova Aliança
(10,1); Melquisedec, rei e sacerdote, é figura de Cristo (7,1 -28); o tabernáculo
terreno é vislumbre pálido do celeste (8,1 -13); os sacrifícios do Antigo
Testamento são prefigurações do sacrifício de Cristo (9 1-19).
f) O conteúdo doutrinário de Hb é, sem duvida, em sua essência, o das
cartas paulinas. Todavia há diferenças de ênfase, que não constituem
contradições:
Para São Paulo, Cristo é sobretudo a Cabeça de um grande corpo;
comunica vida e movimento aos membros desse corpo, que são os fiéis (cf.
principalmente Cl e Ef). Ora, para Hb, Cristo vem a ser, antes do mais, o Guia
que dirige os fiéis (Hb 2,10; 12,2) ou o Precursor que os precedeu atravessando o
véu do tabernáculo celeste, onde Ele é Pontífice para sempre (cf. Hb6,19).
São Paulo põe em relevo os aspectos precários da Lei de Moisés: esta
tinha a função de mostrar aos judeus a sua insuficiência e miséria morais (cf. Rm
4,15; 7,7-13; Gl 3,19). Ao contrário, o autor de Hb enfatiza a Lei de Moisés
como prenúncio da dispensação da graça cristã (cf. Hb 8,13; 10,1) - o que é mais
positivo e otimista do que o enfoque expresso em Rm e Gl.
São estas e outras observações que levam os estudiosos modernos,
mesmo católicos, a dizer que Hb não foi redigida por S. Paulo. Inegavelmente,
porém, há traços comuns de doutrina e até idênticas expressões em Hb e nas
epístolas paulinas. Assim a eminente dignidade de Cristo, Filho eterno de Deus
(cf. Rm 1,3 e Hb 4,14); Cristo, imagem da substância do Pai e mediador na obra
da criação (cf. Cl 1,15-17 e Hb 1,3s); a mesma teologia da cruz, ato de
obediência, aparece em Fl 2,8 e Hb 5,7; Cristo oferece um sacrifício de expiação
(cf. Rm 3,25 e Hb 10,12); após a Paixão, Cristo é elevado à direita de Deus (cf.
Rm 8,34 e Hb 10,12).
Notem-se ainda a referência a Timóteo, o caro discípulo de Paulo, em Hb
13,23, assim como os ecos do fraseado paulino em Hb 13,18s (cf. 2Cor 1,11s),
Hb 13,19.23 (cf. Fm 22 e Fl 2,1.23s), Hb 13,14.25 (cf. FI4,18.21s).
Uma vez considerados todos estes pontos, pergunta-se: que autor terá
escrito um tal documento?
1.3. A indicação do autor
A carta supõe um escritor de origem judaica e de formação helenista,
capaz de escrever de modo original (embora sob a influência de S. Paulo); devia
ser bem versado na tradução grega ou alexandrina das Escrituras, dita "dos
LXX", que ele cita ao pé da letra, e não de memória; devia também conhecer o
ritual do Antigo Testamento, com suas solenidades, às quais faz freqüentes
alusões; além do mais, o escritor gozava de certa autoridade nas comunidades
judeo-cristãos, para poder escrever-lhes tal carta, que não raro censura os leitores
(cf. 5,11-14; 6,7s.9-12;3,12s; 4,1; 13,22).
Ora a tais requisitos parece satisfazer Apolo, o judeu nascido e educado
em Alexandria, do qual falam os Atos em 18,24-28; Apolo certamente gozava de
autoridade, pois em Corinto quiseram contrapô-lo a Paulo e a Pedro (cf. 1Cor
1,13; 3,4-6; 4,6). Há quem admita Barnabé, que era hebreu, levita, amigo e
colaborador de Paulo (cf. At 4,36; 13,2); todavia esta hipótese goza de menos
sólido fundamento do que a anterior.
Lição 2: Os destinatários de Hb
Como diz o título, a carta se dirige a judeus convertidos ao Cristianismo.
Sim; o escritor faz amplo uso dasEscrituras, que ele cita muitas vezes como
fonte principal de argumentação. Mais precisamente, podemos dizer: os
destinatários eram sacerdotes judeus que haviam abraçado a fé cristã, julgando
estar aderindo ao Messias; deixaram o solene culto do templo de Jerusalém para
abraçar a simplicidade das celebrações cristãs, cujo valor eles entreviam na fé.
Desde o início da sua vida cristã, tinham suportado perseguições (tenhamos em
vista At 8,1-3; após o martírio de S. Estêvão, em 36, os cristãos foram
atormentados em Jerusalém, de modo que se dispersaram pela Judéia e a
Samaria. Com o decorrer dos tempos, porém, esses cristãos sentiam sua fé
fraquejar. Sim; em 64 o Imperador Nero decretou a primeira perseguição romana
contra os cristãos; o Senhor Jesus parecia ter esquecido os seus amigos, pois não
voltava, como prometera, para pôr fim à história. Entrementes, o templo de
Jerusalém continuava de pé, incólume; parecia que Deus lá estava presente,
desabonando a fé cristã. Compreende-se então que tais sacerdotes judeus feitos
cristãos sofressem a tentação de voltar para o judaísmo e continuar a servir no
Templo. A sua conversão a Cristo podia parecer-lhes grave erro.
Supondo tais circunstâncias, Hb é uma palavra de exortação (cf. Hb
13,22). Tenciona reavivar a fé dos leitores (tenha-se em vista especialmente Hb
11, que traía profundamente da fé). E, para avivar a fé, o autor se detém, de
ponta-a-ponta da epístola, na comparação mútua da antiga e da nova Lei,
mostrando que a antiga Aliança era apenas uma imagem e um prenúncio da
Aliança travada por meio de Jesus Cristo; não teria, pois, sentido voltar aos
preceitos do ritual judaico, pois este envelhecera e cumprira sua missão (cf. Hb
8,13). Observemos Hb 5,12: os que deviam ser mestres, precisam de que se lhes
ensinem os rudimentos da fé crista; eram cristãos convertidos havia muito
tempo; todavia pareciam crianças desanimadas (cf. principalmente Hb 10-12);
eram também semelhantes a atletas que haviam corrido corajosamente no
estádio, mas, já na reta finai, se sentiam prestes a desfalecer e entregar os pontos;
perto de obter a coroa da vitória, estavam dispostos a jogar fora todos os
esforços anteriores e capitular; faltava-lhes o fôlego para correr os 10% finais,
depois de haverem superado tantos obstáculos!
Não é difícil indicar a data de origem de Hb. Se levamos em conta a
situação dos destinatários, devemos colocá-la entre 64 e 66. Com efeito; 64 é o
ano da perseguição decretada por Nero, e 66 é o ano em que começa a guerra
dos judeus contra os romanos, guerra que acabaria em 70 com a destruição do
templo de Jerusalém. Só enquanto o culto era celebrado normalmente em
Jerusalém, podiam os judeo-cristãos sentir a tentação de aderir novamente a ele.
Portanto admitimos a redação de Hb entre 64 e 66.
O lugar da redação de Hb fica sendo incerto. Terá sido escrita na Itália
por causa da alusão aos "irmãos da Itália" em Hb 13,24?
Lição 3: A mensagem de Hb
A carta aos Hebreus é perpassada por uma linha central, a saber: o
confronto entre a antiga e a nova Aliança.
3.1. Antiga e nova Aliança
O autor de Hb quer mostrar a superioridade da dispensação cristã da
graça, comparada com a dispensação judaica. Daí as antíteses:
a) O Filho é superior aos anjos: Hb 1,5-14.
b) O Filho é superior a Moisés, pois Moisés não era mais do que um
servidor fiel, ao passo que Cristo é o Senhor da Casa: Hb 3,1-6.
c) O sacerdócio de Cristo é mais agradável a Deus e mais útil aos homens
do que o sacerdócio levítico; Hb7,1-28.
d) O sacrifício de Cristo é muito mais nobre do que os sacrifícios da
antiga Aliança, pois Jesus se ofereceu ao Pai, em vez de oferecer vítimas
irracionais: Hb 9,1-27.
e) A geração do deserto, que não entrou no repouso da terra prometida,
prefigurava o novo povo chamado por Deus ao verdadeiro repouso ou à vida
eterna: Hb 3,7-4,1 3.
f) O Sinai é a montanha na qual o Senhor deu a Moisés a Lei antiga em
meio a fogo ardente, tempestade e temor. Ao contrário, Sion é o monte em que
Jesus se entregou aos discípulos na última ceia em sinal do maior amor possível:
Hb 1 2,1 8-29.
3.2. A figura de Cristo
A Cristologia de Hb já é bem elaborada; Cristo aí aparece nitidamente
como Deus e homem.
Como Deus... Cristo preexistia à Encarnação, como Deus que era; cf. Hb
13,8. Em Hb 1,10-12 é aplicado a Cristo o Sl 101 (102), 26-28, que louva a Javé
e opõe a imutabilidade de Deus à caducidade da criatura. Também merece a
adoração dos anjos (1,6); é como o resplendor que procede da glória do Pai; é
como a imagem que reproduz fielmente a substância do Pai (1,3).
Cristo é verdadeiro homem. Embora fosse Filho de Deus, convinha que
o Salvador fosse em tudo e por tudo semelhante àqueles que haviam de ser
salvos (2,10-15).
O episódio do horto das Oliveiras é recordado com muita vivacidade em
Hb 5,7-10: está dito aí que Jesus foi atendido;... atendido não no sentido de que
tenha sido dispensado do cálice, mas pelo fato de pedir, acima de tudo, que se
fizesse a vontade do Pai; ora esta se cumpriu, dando a Jesus mais do que a
isenção do cálice; o Pai o fez, através da Paixão e da morte, o Senhor da vida e
da morte. - O autor também nos diz que, embora fosse Filho, Jesus aprendeu a
obediência pelo sofrimento; há, pois, uma correlação entre sofrer e aprender,
correlação que já os gregos exprimiam no trocadilho páthos-mâthos, sofrimento
é escola.
Para aprofundamento, ver pág. 56.
* * *
PERGUNTAS
1) Explique o sentido de Hb 2,3 e compare com Gl 1, 1s. 12. 16s. Que se
segue daí a respeito do autor de Hb?
2) Hb 6,4-8 quer dizer que há pecados sem perdão? Procure o sentido
exato destes versículos.
3) É licito discutir a respeito do autor de um escrito bíblico? Explique.
4) Indique três textos de Hb em que apareça a crise de fé aos leitores.
5) Em que passagem o autor trata de sábado e repouso? Qual a sua
mensagem?
6) Onde é que o autor compara a Palavra de Deus a uma espada de dois
gumes?
7) Onde Hb diz que Deus é o arquiteto e construtor da cidade definitiva?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
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2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
4a SUBETAPA: AS EPÍSTOLAS CATÓLICAS (I)
MÓDULO l:Tg e 1/2/3 Jo
São sete as epistolas ditas "católicas" ou "universais": Tg, 1/2Pd, 1/2/3Jo,
Jd. A designação de "católicas" é antiga, pois data do século IV; deve-se ao fato
de que tais cartas têm destinação mais universal do que as cartas paulinas: Tg
(1,1) se dirige às doze tribos da dispersão; 1 Pd (1,1) se dirige aos fiéis do Ponto,
da Galácia, da Capadócia, da Ásia e da Bitínia; 2Pd, 1 Jo e Jd são destinadas aos
fiéis da Ásia Menor e a outros cristãos. As 2/3Jo fazem exceção (2Jo 1, à Sra.
Eleita; 3Jo 1, a Gaio). Estas duas últimas foram colocadas após 1Jo por causa da
identidade do autor.
A ordem de tais epístolas no Cânon data do século IV. É a ordem de
prestígio dos Apóstolos no Oriente antigo; Tiago, Céfas e João (cf. Gl 2,9); Jd
ficou por último, porque o autor era menos conhecido.
Trataremos destas epístolas em dois Módulos: um abordará Tg, 1/2/3 Jo; o outro,
1Pd,2Pd e Jd. .
Lição 1: A epístola de Tiago
1.1. O autor de Tg
a) É certamente um judeu, que fala como um sábio ou um profeta do
Antigo Testamento; veja-se o estilo das sentenças em Tg 3,13-18; 4,13-17; 5,1-6.
Em Tg 2,21, Abraão é chamado "nosso pai".
Em 1,27; 3,9 Deus é dito "Nosso Pai", sem que haja menção do Filho; é
Pai dos homens, à semelhança das concepções do Antigo Testamento.
Conhece bem as Escrituras do AT, das quais tira os modelos inspiradores
da virtude: Abraão (2,21), Raab (2,25), Jó (5,11), Elias (5,17s).
Também conhece a vegetação da Palestina e o regime de chuvas desta:
3,12; 5,7.
b) O autor é certamente um cristão. Chama Jesus Senhor (Kyrios); cf.
1,1; 2,1. O fato de pouco falar das verdades do Cristianismo se explica por
dirigir-se a judeo-crisíãos.
Em 5,7-9, o autor professa aguardar a segunda vinda de Cristo
ressuscitado.
Em 1,18 fala da regeneração pela palavra da verdade (Batismo).
Em 1,25; 2,12 menciona a lei perfeita da uberdade.
Em 5,14 refere-se aos presbíteros da Igreja.
c) O autor deve ser identificado com Tiago, bispo de Jerusalém; cf. 1,1.
No Novo Testamento ocorrem três homens apostólicos de nome "Tiago":
- Tiago, irmão de João, filho de Zebedeu. É dito "Tiago Maior"; está fora
de cogitação, pois morreu em 44 (cf. At 12,2) e a epistola é posterior a esta data.
-Tiago, filho de Alfeu: Mc 3,18; Mt10,3; Lc 6,15; At 1,13. É o Tiago
Menor de Mc 15,40.
-Tiago, irmão do Senhor: Mc 6,3; Mt 13,55. É muito provável que este se
identifique com Tiago, irmão do Senhor, encontrado por Paulo em Jerusalém,
conforme Gl 1,19; era personagem de autoridade (cf. 2,9.12). O Tiago, irmão do
Senhor, deve ser também o Tiago que gozava de grande consideração na Cidade
Santa (cf. At 12,17; 15,13; 21,18; 1Cor 15,7), e que se tornou bispo em
Jerusalém, conforme a tradição antiga. Foi martirizado depois da morte do
procurador Festo (f 62).
Identificamos, pois, o autor de Tg com Tiago, filho de Alfeu, irmão do
Senhor e bispo de Jerusalém, fiel observante das tradições judaicas.
A tradição confirma esta tese. Objeta-se porém, contra a mesma o fato de
que a epístola de Tiago é escrita em linguagem e estilo gregos muito polidos. - A
isto respondem os estudiosos, lembrando que Tiago, filho de Alfeu, muito
dedicado às tradições judaicas, pode ter recorrido a um redator, de cultura
helenista; além do que, deve-se notar que o próprio Tiago pode ter adquirido a
cultura helenista, muito disseminada por todo o Império Romano; cf. At 6,1 -3.
A expressão "irmão(s) do Senhor Jesus" requer explicação: não se trata
de filhos de José e Maria nascidos após Jesus, nem de filhos de S. José nascidos
de um primeiro matrimônio. A linguagem semita era pobre, e por isto utilizava a
mesma palavra ah para designar Irmão e outros familiares. Na verdade, os
"irmãos de Jesus" (Mc 6,3; Mt 13,55) eram primos do Senhor, como se
depreende do seguinte: comparando Mt 27,56 com Jo 19,25, observamos que
"Maria, Mãe de Tiago e José" parece ser a mesma que "Maria, esposa de
Cleopas"; Cleopas, por sua vez, é o mesmo que Alfeu (Cleopas é a forma grega
do nome aramaico Chalphai); ora Cleopas era irmão de S. José, conforme o
antigo historiador Hegesipo. Donde se segue que os filhos de Cleopas e Maria,
entre os quais Tiago, eram primos de Jesus. Pode-se completar este quadro
mediante a seguinte suposição: S. José deve ter morrido cedo, e Jesus aos trinta
anos deixou a casa para se entregar ao seu ministério. Maria, tendo ficado só, foi
amparada pelos seus sobrinhos (= os primos de Jesus); é o que explica que no
Evangelho Maria aparece freqüentemente "com os irmãos de Jesus" (nunca se
diz: Maria com seus filhos); cf. Mt 12,46; Mc 3,31; Lc 8,19.
1.2. Os Destinatários de Tg
A carta é dirigida "As doze tribos da dispersão" (1,1). Esta expressão
sugere as doze tribos de Israel encontradas na dispersão ou fora da terra de
Israel. - Deve-se, porém, afastar a hipótese de que eram judeus: trata-se de
destinatários cristãos. Como entender isto? Há duas sentenças:
1) Seriam judeo-cristãos residentes na Palestina, pois na carta não há
advertência, sobre idolatria ou luxúria ou outras práticas pagãs. Mais: na
comunidade há pessoas abastadas (1,1 Os; 2,1-13; 4,13-16; 5,1-5) - o que era
mais comum nas comunidades recrutadas do judaísmo. Entre os pagãos, só
tardiamente as classes abastadas se voltaram para o cristianismo.
2) Outra sentença julga que Tiago se dirige ao conjunto dos cristãos de
determinada região designados como "as doze tribos", à semelhança de Pedro
(cf. 1 Pd 1,1; 2,11).
Os destinatários estavam em tribulação: 1,2-4.12. Sofriam não só por
causa da fé, mas especialmente por causa do comportamento dos ricos que
pertenciam à comunidade e ostentavam fausto (2,2-4) e arrogância (2,5-7; 5,1-6).
Os mais tímidos caiam na adulação (2,1-9), outros se entregavam a cólera
(1,19s), às contendas (3,14s; 4,1-3), à maledicência (4,11) e à murmuração (5,9).
Quanto à data de origem, há quem indique, com boas razões, os anos
anteriores ao Concílio de Jerusalém (49) - o que faria de Tg a primeira página do
N.T. Lugar de origem: Jerusalém.
1.3. Mensagem de Tiago
A carta de Tg tem o aspecto de um escrito sapiencial (portador de
sabedoria): exorta a praticar a verdadeira sabedoria, harmonizando pensamento e
ação, fé e obras.
A insistência de S. Tiago sobre a necessidade das boas obras tem sido
considerada como contrária à doutrina de S. Paulo, que recomenda a justificação
mediante a fé e não as obras. - Respondemos que não há oposição entre Tiago e
Paulo. Este tem em vista a entrada na amizade com Deus ou o início da
justificação e afirma que ninguém "compra" a amizade de Deus, mas que todos a
recebem gratuitamente numa atitude de fé. Ninguém pode dizer que, por suas
obras anteriores, mereceu a amizade de Deus. - Ao contrário, S. Tiago tem em
mira a perseverança na amizade com Deus, e afirma que ninguém conserva a
graça recebida se não a faz frutificar em boas obras; a fé inerte ou sem obras
morre. Aliás, a recomendação das boas obras faz eco ao Evangelho ou, mais
precisamente, ao sermão da montanha (Mt 5-7).
Muito importante também em Tg é a seção de 5,14s, que promulga o
sacramento da Unção dos Enfermos.
Em toda a sua epístola, o Apóstolo aborda calorosamente o tema "riqueza
e pobreza"', cf. 1,9-11; 1,27-2,9; 4,18-5,6. Faz eco assim a uma tradição bíblica
que começa com o profeta Jeremias e valoriza os humildes como criaturas
abertas para Deus; as bem-aventuranças evangélicas retomam esta temática; cf.
Ml 5,3; Sf 2,3.
Tenha-se em vista outrossim a exortação ao domínio da língua em 3,1-13.
Lição 2: As epístolas de João
As três epístolas de João estão intimamente relacionadas entre si.
2.1. A 1JO
2.1.1. O autor
Uma longa série de autores, desde a metade do século II, atribui ao
Apóstolo João um escrito chamado "primeira epístola de João". Quem examina o
respectivo texto, verifica grande afinidade de estilo e conteúdo entre 1Jo e Jo.
Em ambos estes escritos se revela um autor contemplativo, capaz de perceber a
verdade através das mais simples imagens da vida cotidiana: luz e trevas,
verdade e mentira, vida e morte, amor e ódio...O vocabulário é simples, mas
rico em significado. O autor contempla e volta a contemplar a verdade, repetindo
a mesma coisa de diversas maneiras, até por meio de teses e antíteses; o
pensamento vai para diante e para trás, à semelhança das ondas do mar; cf. 1 Jo
3,4.5.6.7.8.9... ; Jo 8,44.46-47.49.50.54...
Em seu conteúdo a 1Jo refere-se, não raro, a Jo. Assim, o autor diz
explicitamente que é testemunha ocular do que narra, mas nunca diz o seu nome;
cf. 1Jo 1,1-3; 4,14; Jo 1,14; 19,35. Em 1Jo 2,13s, o autor diz que escreve... e
escreveu; isto não são fórmulas retóricas, mas o presente se refere a 1Jo, ao
passo que o pretérito a Jo.
A finalidade de 1Jo e a de Jo é a mesma; cf. 1Jo 5,13; Jo 20,31. A mesma
doutrina fundamental é transmitida pelos dois escritos: Jesus é o Messias, o
Filho de Deus, enviado pelo Pai ao mundo para redimi-lo com o seu sangue;
comparemos
1Jo 1,1s com Jo 1,1-4
2,2 " 11,51 s
4,9 " 3,16s
5,6 " 19,34s
5,12 " 3,36
5,20 " 17,3
O mesmo grande mandamento do amor é incutido em 1Jo 2,8-11; 3,1 Os;
4,11 e Jo 13,34s; 1S,12.
Aliás, dados os vários títulos de afinidade entre 1Jo e Jo, bons exegetas
julgam que a 1Jo foi escrita para apresentar aos leitores o Evangelho segundo
João.
2.1.2. Os destinatários
Os destinatários parecem ser fiéis convertidos do paganismo (5,21). Não
faltam indícios, porém, de que entre eles havia numerosos judeo-cristãos, como
se deduz da menção de Caím (3,12), das alusões a falsos profetas (4,1), aos
anticristos (anti-Messias) em 2,18.22... Esses cristãos já estavam convertidos, à
fé desde muito (cf. 2,7.24; 3,11).
O autor sabe que tais leitores correm perigo por parte de falsos
pregadores, que querem quebrar a unidade existente entre Cristo-Deus e Jesus-
homem; cf. 1Jo 2,18-22.26; 4,1-3.14s; 5,1.5-13. Negavam que, por ocasião da
Paixão, o Filho de Deus estivesse unido à humanidade de Jesus; em
conseqüência, negavam que a Redenção tenha sido obtida mediante o sangue do
Filho de Deus.
Tais hereges são os mesmos que o Evangelho segundo João combate.
Eram inspirados por um certo Cerinto. Este ensinava que Jesus fora mero
homem, filho de José e Maria; no Batismo uniu-se-lhe o Cristo (o Filho de
Deus), de modo que Jesus em sua vida pública possuía uma ciência elevada e o
poder de fazer milagres, mas antes da Paixão o Cristo deixou Jesus. É por causa
destas idéias que a 1Jo tanto incute a realidade da Encarnação (1,1 -3), a
identidade de Jesus-Cristo-Filho de Deus (4,14s; 5,1.5), a Redenção realizada
mediante o sangue de Jesus (1,7).
Pode-se crer que na 1Jo sejam também considerados os primeiros
vestígios do gnosticismo do séc. II; em 2,27 há alusão à sublime gnose
(conhecimento) que os hereges julgavam possuir.
2.1.3. A mensagem da 1 Jo
A 1Jo apresenta-se como uma carta encíclica ou circular destinada às
comunidades da Ásia Menor ameaçadas por heresias.
O autor aí desenvolve principalmente o tema "comunhão (koinonia) com
Deus". Com efeito,
Em 1,1-4 é proposta a comunhão com Deus;
Em 1,5-2,28, Deus é apresentado como Luz (1,5-7); o homem une-se a
Ele caminhando na luz (1,8-2,28).
Em 2,29-4,6, Deus é apresentado como o Justo por excelência (2,29); o
homem une-se a Ele praticando a justiça, e vivendo a filiação divina (3,1-2).
Quem é filho de Deus não peca (3,3-10), pratica a caridade fraterna (3,10-24),
crê em Jesus, Filho de Deus encarnado (3,24-4,6).
Em 4,7-5,12 Deus é apresentado como Amor (ágape); cf. 4,8.16. O
homem une-se a Ele vivendo de amor, que é eficiente (4,7-12) e crê (5,1-12).
2.2. As2/3Jo
A tradição atribui estas duas cartas ao mesmo João evangelista. Esta
noticia é confirmada pelo exame do texto sagrado:
O autor é chamado "o ancião (cf. 2Jo 1; 3Jo 1). Este apelativo indica a
dignidade do escritor e lembra o titulo que os discípulos atribuíam a S. João em
Éfeso na sua velhice
A temática é a de Jo e 1Jo. Incutem o mandamento do amor (2Jo 5; 3Jo
11), exortamos fiéis a não se deixar arrastar pelos anticristos, "que não
confessam que Jesus Cristo veio na carne" (2Jo 7). Ocorrem as mesmas
expressões: "amar na verdade' (1Jo 3,18; 2Jo 1; 3Jo 1), "caminhar na verdade,
nas trevas" (Jo 12,35; 1Jo 2,11; 2Jo 4; 3Jo 3), "dar testemunho" (Jo 21,24; 19,35;
3Jo 12), "ser de Deus" (Jo 8,47; 1Jo 3,10; 4,6; 3Jo 11). E a mesma a conclusão
em 2Jo 12 e3Jo 13s.
A 2Jo parece ser um compêndio da 1Jo. Teria sido escrita a uma
comunidade (Eleita), que não podemos identificar e que o Apóstolo espera
visitar em breve (2Jo 12).
A 3Jo é dirigida a um certo Gaio, que também não podemos identificar.
Louva a benevolência com que Gaio tratou os pregadores da fé, em oposição a
Diotrefes, bispo da comunidade, homem ambicioso, que resistiu à autoridade do
Apóstolo e não recebeu os irmãos enviados por João
Para aprofundamento, ver, além da bibliografia indicada à p. 59:
BARBAGLIO, FABRIS, MAGGIONI, As Cartas Católicas. Ed.
Loyola. 1990.
* * *
PERGUNTAS
1) Em Tg 2,23; Rm 4,3 e Gl 3,6 é citado o texto de Gn 15,6. Exponha o
sentido que S.
Paulo e S. Tiago dão a este texto. Como o interpretam?
2) S. Tiago e S. Paulo se opõem no tocante à fé e às obras? Cf. Tg2,24 e
Ef 2,8-10.
3) Escolha em Tg dois trechos que muito lhe falam, e exponha o seu
sentido.
4) Leia 1Jo 1,1-4 e compare com Jo 1,1-14. Aponte as semelhanças.
5) Conte quantas vezes ocorre a metáfora de luz e trevas em 1Jo. Indique
os lugares.
6) Aponte os textos de 1Jo em que ocorrem os vocábulos mentira e
verdade.
7) Escolha, da 2a ou da 3a epístola de S. João, os versículos que mais
o(a) impressionaram.
E explique por quê.
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
4a SUBETAPA: AS EPÍSTOLAS CATÓLICAS (II)
MÓDULO II: 1/2Pd, Jd
Lição 1: A1Pd
1.1. A pessoa do Pedro
Simão, filho de João (Jo 1,42; 21,15-17; Mt 16,17) era, como seu irmão
André, discípulo de João Batista (Jo 1,40s). Foi chamado pelo Senhor, que lhe
impôs o nome de Cephas = Pedro (Jo 1,42). Durante toda a vida pública de
Jesus, exerceu papel de destaque; cf. Mt 14,28-31; 17,24-27; Jo 6,67-69. A Pedro
o Senhor prometeu e outorgou o primado entre os Apóstolos; cf. Mt 16,16-19;
Lc 22,31s;Jo 21,15-17.
Após a Ascensão do Senhor, teve atividade primacial na escolha de
Matias, no dia de Pentecostes, diante do sinédrio de Jerusalém, na recepção do
pagão Cornélio na Igreja (cf. At 1 -5; 8-11; Gl 1,18)...
A tradição refereque Pedro esteve em Roma, onde morreu como bispo
local após ter sofrido a crucificação de cabeça para baixo. A sua sepultura foi
encontrada na basílica de S. Pedro em Roma. Deve ter morrido no ano de 67, em
dia incerto para nós.
Pedro tinha caráter impetuoso, coração generoso e ardente. Em Jo 6,68s,
num momento de perplexidade, ele toma a palavra em nome dos demais
Apóstolos; caminha ao encontro de Jesus sobre as águas, conforme Mt 14,28-33;
Jo 21,7; quando Cristo anuncia sua Paixão, protesta com energia (Mc 8,32; Mt
16,22) ; no jardim das Oliveiras, desembainha a espada e fere Malco (Jo 18,10)...
1.2. A autoria e os destinatários da 1Pd
1. Ao Apóstolo Pedro a tradição, através de numerosos testemunhos,
atribuí a autoria da 1Pd. Até em 2Pd 3,1 encontramos referência a uma carta
precedente, escrita pelo Apóstolo Pedro.
O exame do texto da 1Pd confirma tal noticia:
O autor se apresenta como Pedro (1,1), testemunha da Paixão de Cristo
(5,1); refere-se a Marcos como seu filho - o que corresponde a antiga tradição,
que apontava Marcos como colaborador de Pedro. Como testemunha ocular,
alude aos sermões e feitos de Jesus; cf.
3,14;4,14 e Mt 5,10-12
2,12 e Mt 5,16
2,6-8 e Mt 21,42
A freqüente recordação da Paixão de Cristo (cf. 1,18s; 2,21-25; 3,18;
4,1.13s) corresponde ao modo como Pedro prega em At (cf. At 2,23; 3,13-15;
4,9-12).
Contra a autoria petrina de 1Pd objetam-se a correção e a linguagem
discreta da epístola; segundo alguns críticos, tal estilo não pode convir a um
pescador da Galiléia, que, segundo At 4,13, era iletrado. A propósito observe-se:
a) o ser iletrado de Pedro podia significar apenas que não tinha
freqüentado escola rabínica como Paulo;
b) o Apóstolo pode ter assimilado um tanto de cultura helênica, que
penetrara na Palestina, É de notar, por exemplo, que, quando alguns gregos
quiseram ver Jesus, pediram a Filipe, de Betsaida da Galiléia (cidade natal de
Pedro), que os introduzisse junto ao Divino Mestre; aliás, Filipe e André (irmão
de Pedro) são nomes gregos - o que bem mostra quanto a cultura grega se
tornara natural entre os próprios Judeus da Palestina;
c) o Apóstolo Pedro recorreu a Silvano como escriba ou talvez redator
(cf. 5,12). Ora Silvano ou Silas era cidadão romano (cf. At 16,19.37s) e
companheiro de Paulo na segunda e na terceira viagens apostólicas (cf. At 15,40-
18,5; 1 Ts 1,1; 2Ts 1,1; 2Cor 1,19). Silvano pode ter colaborado para a pureza da
linguagem de 1 Pd assim como para dar certo colorido paulino à 1 Pd.
Não tem fundamento a sentença segundo a qual Silvano teria escrito toda
a 1 Pd, de acordo com as idéias de Pedro, muito depois da morte do Apóstolo.
2. Os destinatários da carta eram cristãos esparsos pela Ásia Menor
(Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia, Bitínia: 1,1). Eram, em grande maioria,
convertidos do paganismo; cf. 1,14.18; 2,9s; 3,6; 4,3. Não se exclui, entre eles, a
presença de judeu-cristãos, vista que eram freqüentes os judeus naquela região.
Esses fiéis sofriam de várias tribulações (cf. 1,6s; 3,14; 4,12; 5,7.9).
Houve quem as quisesse identificar com as perseguições desencadeadas por
Domiciano (81-96) ou Trajano (98-117), o que nos levaria a época muito
posterior à de S. Pedro. Na verdade; tratava-se de sofrimentos devidos a injúrias
e calúnias que os convertidos experimentavam por causa da sua pureza de vida;
os concidadões pagãos os tinham como lucífugas (gente que foge da luz) e hostis
ao consórcio dos homens pelo fato de não participarem das orgias dos gentios
(cf. 4,4); eram acusados como malfeitores pelos antigos companheiros de vida
desregrada (cf. 2,12; 3,16,4,14s). Além disto, os judeus, geralmente infensos aos
cristãos nos primeiros decênios, não deixavam de atribular a vida destes. Ora,
em tais circunstâncias, era de temer que os cristãos pressionados cedessem aos
adversários e retomassem os hábitos depravados de outrora.
Foi por isto que o autor de 1 Pd muito enfatizou a dignidade da vocação
cristã (2,1-10, especialmente 2,9), a necessidade e fecundidade do sofrimento,
que redunda em purificação da fé (1,6-9), a imitação e a participação da Paixão
de Cristo (2,21-25). Incute-lhes que a melhor resposta aos caluniadores é a
retidão da vida e o cumprimento fiel dos deveres (3,13-17; 4,14-16).
Portanto, a finalidade da epístola não é doutrinária, mas exortatória ou
parenética (cf. 5,12).
O lugar de redação deve ter sido Roma (cf. 5,13, onde Babilônia é alusão
a Roma). Como data de origem, assinalamos os anos de 63-64 anteriores à
perseguição de Nero, pois na 1 Pd não há indícios de tal perseguição.
A 1 Pd é valioso documento da vida cristã: fortalece o leitor para que,
com paciência suporte as tribulações (cf. 1,6-9; 2,20-25; 4,13s, 5,6s); assim
desenvolve a "teologia da cruz". Eis as principais passagens de significado
teológico: 1,2.19 (a redenção pelo sangue de Cristo); 2,5.9 (a dignidade
sacerdotal do povo cristão); 3,19s (a descida de Jesus à mansão dos mortos);
3,22 (a ascensão do Senhor aos céus).
Lição 2: A epístola de Judas
A 2 Pd difere assaz da 1 Pd e muito mais se assemelha a Jd, da qual
parece ser uma nova edição, ampliada e melhorada. Eis por que estudaremos Jd
antes de 2Pd.
2.1. O autor de Jd
O autor da carta se chama "Judas... irmão de Tiago" (v. 1). Ora em Mc 6,3 e Mi
13,55 são mencionados, entre os primos de Jesus, Tiago e Judas. É de crer que
este seja o autor da carta em foco. - Outra sentença julga que tal autor é o próprio
Apóstolo Judas, de cognome Tadeu (= homem de coração), mencionado no
catálogo dos Apóstolos (Lc 6,16; Aí 1,13; Mi 10,3; Mc 3,18). Contra esta tese,
aponta-se o v. 17, no qual o autor se distingue do grupo dos Apóstolos.
Deve-se ainda notar que, embora os primos de Jesus fossem hostis ao
Senhor (cf. Jo 7,2-5), alguns acreditaram nele posteriormente (cf. At 1,14) e
colaboraram no apostolado com Paulo e os onze (cf. 1 Cor 9,5).
Muitos testemunhos da antiga tradição cristã reconhecem Jd como escrito
canônico; todavia só houve unanimidade a respeito depois de uma fase de
hesitação, devida ao tato de que Jd cita dois livros apócrifos; a Assunção de
Moisés (v. 9) e o Apocalipse de Henoque (v. 14s); com o tempo, os cristãos
tomaram consciência de que citar estes livros não significa tê-los por Inspirados;
S. Paulo citou mesmo os poetas pagãos Arato ou Cleantes em At 17,28;
Epimênides em Tt 1,12; Menandro em 1 Cor 15,33; citou também tradições não
canônicas dos judeus em 2Tm 3,8.
2.2. Destinatários de Jd
Os leitores da epístola são cristãos de origem pagã e de origem judaica...
De origem pagã, dada a facilidade com que se propagava entre eles a
licenciosidade de costumes... (w. 8.12.16.18.). De origem judaica, por causa do
amplo uso do A.T. e dos apócrifos judaicos (w. 5.7.9.11.14s). - Talvez se trate
dos mesmos leitores aos quais S. Tiago escreveu (pois Judas se apresenta como
"irmão de Tiago", v. 1).
Tais fiéis estavam sendo ameaçados pela pregação de falsas doutrinas,
levadas por cristãos apóstatas, que se entregavam aos mais baixos vícios do
paganismo (v. 12.18), negavam a divindade de Cristo (v. 8), injuriavam os anjos
(v. 8), zombavam das verdades pregadas pelos Apóstolos como se fossem
fábulas (vv. 3 e 4) e causavam divisões nas comunidades (v. 19). É difícil
identificar pelo nome tal facçãoherética; podiam ser discípulos de Simão Mago
(cf. At 8,18-24), mal afamados na Tradição; defendiam teses que constituiriam
no séc. II o corpo doutrinário da gnose.
O tom da carta é vivaz, enérgico e rude. A linguagem grega é polida
(tenha-se em vista especialmente a doxologia final, vv. 24s); as metáforas são
várias e pitorescas (cf. vv. 12s). Esse breve escrito contém dez palavras que
nunca mais ocorrem em todo o Novo Testamento. Todos estes elementos levam a
supor que Judas tenha adquirido boa cultura helenística ou, melhor, que tenha
recorrido a um redator para escrever a carta. Ele o terá feito entre os anos de 62
(morte de São Tiago) e 66 (início da guerra dos judeus contra Roma, que acabou
com a destruição de Jerusalém em 70).
2.3. Jd e 2Pd
Chama-nos a atenção a grande afinidade entre Jd e 2Pd: em ambas
aparecem as mesmas expressões raras, as mesmas idéias, especialmente quando
se trata de descrever os falsos pregadores e os espécimes do juízo de Deus sobre
os malvados. Veja-se a seguinte tabela:
Jd4 - 2Pd2,1
Jd6 - 2Pd 2,4.9
Jd7 - 2Pd2,6
Jd8 - 2Pd2,10
Jd10 - 2Pd2,12
Jd11s - 2Pd 2,13-15
Jd13 - 2Pd2,17
Jd16 - 2Pd2,18
Jd17 - 2Pd3,1s
Jd18 - 2Pd3,3
É muito provável que haja dependência da 2Pd em relação a Jd, e não
vice-versa. Na verdade, a 2Pd parece retomar Jd em seu capítulo 2, melhorando
os textos de Jd: por exemplo,
Em Jd 4 é dito brevemente que os ímpios se infiltravam na Igreja; em
2Pd 2,1-3 esses ímpios são minuciosamente descritos.
Em Jd 5-7 são enumerados os castigos de Deus sem ordem cronológica
(Israel no deserto, os anjos maus, Sodoma e Gomorra). Em 2Pd 2,4-6, a ordem
cronológica é retificada; ao que 2Pd 2,5-7 acrescenta a salvação de Noé e Ló,
que não pereceram no castigo enviado aos pecadores.
Note-se também como a 2Pd corrige Jd: em Jd 12 há menção de nuvens
sem água (o que é paradoxal), ao passo que em 2Pd 2,17 se fala de fontes sem
água. A 2Pd elimina a citação dos apócrifos; cf. Jd 9 e 2Pd 2,11; Jd 14s e 2Pd
2,17.
Assim passamos para o estudo da 2Pd.
Lição 3: A 2Pd
2.1. O autor de 2Pd
Tem-se discutido a questão do autor da 2Pd.
Nos três primeiros séculos, os escritores cristãos hesitavam sobre a
autoria petrina da carta. Somente no século IV se firmou o consenso sobre o
nome do Apóstolo S. Pedro.
1) Em favor da autoria petrina, cita-se:
-o nome com que o autor se apresenta em 2Pd 1,1;
-a referência à presença no monte da transfiguração em 2Pd 1,18(cf. Mt
17,1-9);
- a menção de uma epístola anterior dirigida aos mesmos leitores e que
seria a 1 Pd; cf. 2Pd 3,1;
-a designação de "irmão caríssimo" atribuída a Paulo, em 3,15;
-a referência à proximidade da morte, predita por Jesus, lembra Jo 21,18s
(cf. 2Pd2,13-15).
2) Contra a autoria petrina, apresentam-se os seguintes pontos:
- a linguagem e o estilo da 2Pd muito diferem dos que ocorrem na 1 Pd; a
maioria das palavras são diferentes, mesmo quando indicam os mesmos
acontecimentos;
- em 2Pd 3,16 tem-se a impressão de que as cartas paulinas já estão
reunidas numa só coleção, o que supõe certo intervalo após a morte de S. Paulo;
- a descrença de muitos em relação à segunda vinda de Cristo supõe
época tardia; cf. 2Pd 3,8s. A 1 Pd anunciava a parusia como próxima; cf. 1 Pd
4,7; 5,1;
- o autor apresenta a primeira geração como passada (3,4), e parece
distinguir-se dos Apóstolos (3,2), embora se diga Apóstolo em 1,1.
Diante destas diferenças os estudiosos admitem um redator para a 2Pd
(Silvano; cf. 1Pd 5,12). Outros, porém, julgam (e talvez com mais razão) que um
discípulo posterior a Pedro, e a nós desconhecido, apresentou o seu próprio
escrito como sendo de São Pedro, a fim de lhe dar mais autoridade; devia
pertencer aos círculos que dependiam do Apóstolo, talvez tenha utilizado um
escrito proveniente de Pedro, escrito que ele adaptou e completou com o auxílio
de Jd. - Esta hipótese não se opõe à inspiração e à dignidade do texto bíblico; os
antigos eram mais liberais do que nós na tocante a direitos autorais e propriedade
literária: estavam também acostumados ao uso de pseudônimos (cf. Eclesiastes e
Sabedoria literariamente atribuídos a Salomão).
Aliás, para o cristão, basta que a epístola tenha sido reconhecida pela
Igreja como canônica e represente um legado da época dos Apóstolos. O autor
queria prevenir seus leitores (genericamente indicados em 1,1) contra a invasão
de falsas doutrinas (2Pd 2), como também lembrar-lhes verdades fundamentais:
a participação na natureza divina pela graça (1,4), o caráter inspirado das
Escrituras (1,20s), a certeza da parusia futura (3,3-13).
Para aprofundamento, ver bibliografia indicada à p. 96
* * *
PERGUNTAS
1) Procure nos Evangelhos três passagens em que Pedro toma a
dianteira sobre os demais Apóstolos. Faça o mesmo no livro dos
Atos.
2) Onde é que a 1 Pd fala do batismo, cuja imagem foi o dilúvio? Queira
explicar esse texto.
3) A 1Pd cita Is 53? Queira explicar em que contexto e com que
finalidade.
4) A partir do texto de Jd, descreva o tipo de hereges e de heresias que
ameaçavam os leitores da carta.
5) Jd 3 fala da fé "uma vez por todas confiada aos santos". Queira
explicar o sentido desta expressão.
6) Ponha lado a lado numa folha o texto de Jd 3-19 e o de 2Pd2,1-22 e
sublinhe com tinta vermelha o que lhes é comum.
7) Em 2Pd2,13 e em Jd 12 há referência a banquetes e ágapes (refeições
fraternais). Trata-se da Eucaristia?
8) Que diz 2Pd 1,19-21 sobre a profecia e as Escrituras ?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
2a ETAPA: INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO
5a SUBETAPA: O APOCALIPSE
MÓDULO ÚNICO: O Apocalipse
Lição 1: As circunstâncias de origem
Nos últimos decênios do séc. I vários cristãos atravessavam séria crise de
fé. Com efeito; a expectativa da segunda vinda de Cristo para breve ficava de pé,
mas achava-se um tanto abalada: em 64 Nero imperador declarou ilícito o nome
de cristão, desencadeando então forte perseguição aos discípulos de Cristo; os
judeus, por sua vez, hostilizavam-nos; Cristo, porém, não voltava para
reconfortar os seus; parecia ter esquecido a sua igreja peregrina na terra. O
Imperador Domiciano (81-96) moveu nova perseguição aos cristãos, deportando
então S. João, bispo de Éfeso, para a ilha de Patmos (cf. 1,9). Nestas
circunstâncias, o Apóstolo quis escrever aos fiéis da Ásia Menor um livro de
consolação e esperança, que seria o Apocalipse.
Apocalipse (em grego, apokálypsis = revelação) é um gênero literário
que se tornou usual entre os judeus após o exílio da Babilônia (587-583 a.C.):
versa sobre o fim dos tempos; descreve o juízo de Deus sobre os povos, de modo
a punir os maus e premiar os bons. Essa intervenção de Deus é acompanhada de
sinais que abalam a natureza (todo apocalipse descreve sempre cenários
cósmicos); é freqüente o recurso a símbolos e números simbólicos nesse gênero
literário.
Sobre este fundo de cena situa-se o Apocalipse de S. João,que tenciona
levantar os ânimos dos leitores abatidos, servindo-se das regras de estilo dos
autores apocalípticos da época.
E como João haveria de reerguer as forças espirituais dos seus leitores?
Não lhes diria que o dia de amanhã seria próspero para os amigos de Deus ou
que o Senhor isentaria de maus tratos os seus fiéis. Tal maneira de consolar seria
infantil. O autor quis proceder de outro modo: descreveu cenas de horríveis
calamidades (simbolizando os males que os cristãos sofrem no cotidiano da sua
existência terrestre), entrecortadas por visões da corte celeste, onde os anjos e os
santos cantam "Aleluia! A vitória compete ao Cordeiro que foi imolado e está de
pé". No Apocalipse há, pois, uma sucessão de quadros dolorosos e de quadros de
paz e confiança: na terra existe dor, enquanto no céu há plena serenidade. Por
que São João quis montar o seu livro segundo tal estrutura?
- Para dizer-nos que a história é como um belíssimo tapete persa. Este
tem seu lado de cima, que é trabalhado e harmonioso, e seu lado de baixo, que é
o avesso, cheio de fiapos e sujeiras. Quem olha o tapete de baixo para cima,
pode lamentar-se por ver coisa sem beleza nem graça; mas quem olha de cima
para baixo (o que é o autêntico modo de encarar o tapete), verifica que é
esplendoroso e se regozija profundamente. O problema dos que se lamentam,
decorre do fato de que estão vendo mal ou estão olhando como não deveriam
olhar; o tapete não foi feito para ser contemplado de baixo para cima ou pelo
avesso. Assim é a história dos cristãos: quem a considera a partir dos homens e
com olhar meramente humano, acha-a dolorosa e desanimadora; mas quem a
contempla de cima para baixo ou como Deus a contempla, a partir da eternidade,
verifica que as calamidades e perseguições que afligem os cristãos, estão
envolvidas num plano grandioso de Deus, que as faz concorrer para o bem dos
que amam a Deus; a palavra final da história tocará ao Senhor Deus. Por isto os
justos no Céu cantam Aleluia, enquanto os homens peregrinos na terra gemem:
"Ai, ai, ai!"
Estas idéias serão ainda desenvolvidas sob o título seguinte.
Lição 2: A interpretação do Ap
O Ap, com suas múltiplas imagens, tem suscitado a curiosidade dos
cristãos através dos séculos. As numerosas interpretações que se tem dado ao
livro, podem reduzir-se a quatro sistemas:
1) Sistema escatológico: os mais antigos intérpretes julgavam que o
Apocalipse se referia aos acontecimentos do fim dos tempos e da consumação do
mundo (perseguições, apostasia, Anticristo, ressurreição dos mortos e juízo
final). O livro mostraria como a história acabará com o triunfo do Reino de Deus
sobre o pecado. Sendo assim, não tinham a preocupação de relacionar os quadros
do Apocalipse com episódios e personalidades dos primeiros tempos da era
cristã.
Este sistema esteve mais ou menos abandonado durante a Idade Média.
É, porém, de novo prestigiado do séc. XVI aos nossos dias: há quem julgue que
as calamidades anunciadas pelo Apocalipse se cumprirão ao pé da letra na última
quadra da história.
- Reconheçamos que o autor sagrado tem em vista levar aos seus leitores
uma mensagem de grande esperança referente ao fim dos tempos. Contudo ele
não perdeu o contato com a história da sua época (Nero, Roma, as invasões dos
bárbaros no império...). Por isto o sistema meramente escatológico é
insuficiente.
2) Sistema da história antiga: Supõe que São João descreva os
acontecimentos não do fim, mas do início da história da Igreja: apresentaria a
luta do judaísmo e do paganismo contra os cristãos, luta que terminou com a
queda da Roma pagã e o triunfo do Cristianismo em 313; assim o ciclo da
história considerada pelo Apocalipse se encerraria no séc. IV, o que também é
insuficiente.
3) Sistema da história universal: O Apocalipse apresentaria, sob a
forma de símbolos, uma visão completa de toda a história do Cristianismo:
descreveria sucessivamente os principais episódios de cada época e do fim do
mundo.
4) O sistema da recapitulação: Parte da observação de que o corpo do
livro do Apocalipse consta de três septenários: 7 selos, de 6,1 a 8,1; 7 trombetas,
de 8,2 a 11,15; 7 taças, de 15,6 a 16,21. Ora sete é o símbolo de totalidade, para
os antigos. Cada septenário, portanto, recapitula toda a história da Igreja;
descreve não os acontecimentos sucessivos de cada século, mas o fio condutor
que está por debaixo de todos esses acontecimentos, a saber: a luta entre Cristo e
Satanás ou entre a linhagem da mulher e a da serpente (cf. Gn 3,15); em
qualquer época, essa luta prossegue, tendo diversos protagonistas, sim, mas
sempre o mesmo sentido básico; somente depois da terceira recapitulação ou do
terceiro septenário, o livro se encaminha para o desfecho da história, que é
descrito especialmente nos capítulos 21 e 22: dá-se então o triunfo definitivo do
Reino de Cristo sobre o de Satanás, triunfo que implica em ressurreição dos
corpos e renovação da natureza material.
Por conseguinte, as calamidades que o Apocalipse apresenta, não hão de
ser interpretadas ao pé da letra; o seu sentido depreende-se à luz das cenas de
paz e triunfo que o autor intercala entre as narrativas de flagelos; cf. Ap 7,9-12;
11,15-18; 12,10-12; 15,3s; 19,1-8... Justapondo aflições (na terra) e a alegria (no
céu), São João queria dizer aos seus leitores que as tribulações desta vida não
surpreendem o Senhor e os justos; foram cuidadosamente previstas pela
sabedoria divina, que as quis incluir num plano muito harmonioso, ao qual nada
escapa. Com outras palavras: os acontecimentos que nos afligem na terra, têm
dupla face: uma exterior, visível, que tende a nos abater; outra, interior, só
perceptível aos olhos da fé, que é grandiosa, pois faz parte da vitória do Bem
sobre o mal; é mesmo a prolongação da obra do Cordeiro que foi imolado, mas
atualmente reina sobre o mundo com as chagas glorificadas, como Senhor da
história (cf. 5,5-14).
O sistema da recapitulação assim proposto merece francamente ser
preferido aos demais, pois é o que mais leva em conta a mentalidade e o estilo
(de repetição ou recapitulação) de S. João.
Lição 3: Textos difíceis do Ap
Detenhamo-nos em especial sobre passagens do Ap.
3.1. O número da Besta em 13,18
Consoante o simbolismo dos números (gematria) dos antigos, o autor
quer designar o perseguidor dos cristãos (figurado por uma Besta), dizendo que
o nome desse homem tem o valor numérico 666. - Note-se que, para os antigos,
as letras tinham valor numérico (como no alfabeto romano V = 5; L = 50; C =
100; D - 500...); a soma dos números correspondentes a cada letra de um nome
dava o valor numérico de tal nome.
Procura-se então: qual o nome cujas letras somadas dão o total de 666?
Logo para início de resposta, note-se que não se deve procurar tal nome
entre os latinos ou na história posterior a S. João; os leitores do Ap não sabiam
latim (sabiam grego e, talvez, hebraico); só conheciam os acontecimentos do seu
passado e do seu presente. Ora era para esses leitores que João queria transmitir
uma mensagem que eles compreendessem.
É, pois, anticientífico dizer que o Papa é a Besta do Apocalipse por trazer
na cabeça a inscrição latina "VICARIUS FILII DEI"! - Aliás, ele não traz essa
inscrição.
A exegese científica observa que o numero 666 corresponde às letras da
expressão César Nero (escrita em caracteres hebraicos, da direita para a
esquerda:N V R N R S Q
50 6 200 50 200 60 100 = 666
Caso se omita o Nun (N) final de Nero (n), dando-se a forma latina Nero
ao nome, tem-se o total 666-50 = 616. Isto explicaria que alguns manuscritos do
Ap tenham 616 em vez de 666. - Nero, na verdade, foi o tipo do perseguidor
anticristão, de modo que S. João o deve ter tido em vista no texto de 13,18.--
Se o leitor foge às normas sóbrias e objetivas do estudo cientifico, pode
designar até mesmo a doutora do Adventismo, que viveu no século passado,
como a Besta do Apocalipse:
H E L L E N G O V L D W H I T E
50 50 5 50 500 5+5 1 = 666
Ora também esta interpretação é falsa, pois está fora do alcance dos
leitores imediatos de Ap.
3.2. O reino milenar de Cristo em Ap 20,1-15
Este trecho foi na antiguidade, e ainda hoje é, entendido como se
anunciasse um reino de Cristo em paz e bonança durante mil anos imediatamente
antes do fim dos tempos. Tal é a tese dos milenaristas (S. Justino, S. Ireneu,
Tertuliano no séc. II...) como também de denominações cristãs recentes. Haveria
o acorrentamento de Satanás, a ressurreição dos justos apenas (ressurreição
primeira), mil anos de felicidade tranqüila sobre a terra, e, finalmente, a
ressurreição segunda (para os demais homens) e o juízo final.
A tradição cristã, a partir do séc. V, rejeitou decididamente o
milenarismo. E com propósito. Para entender Ap 20,1 -15, é necessário recorrer
a Jo 5,25-29 (que é do mesmo autor); neste trecho Jesus fala de duas
ressurreições (5,25.28): a primeira se dá agora ("vem a hora - e é agora") e a
outra é futura. Ora a primeira ressurreição, agora, é a sacramental, a que se dá
pelo Batismo e a vida da graça (que S. João tanto estima em seu Evangelho); a
segunda ressurreição se dará no fim dos tempos, quando ressuscitarmos
corporalmente. - É, pois, na perspectiva deste trecho do Evangelho que se deve
entender Ap 20; os mil anos de reinado de Cristo simbolizam toda a história da
Igreja inserida entre a ressurreição batismal (no inicio da vida de cada cristão) e
a ressurreição final dos corpos. Mil é símbolo de bonança e paz, porque a
primeira ressurreição nos comunica a graça santificante, que é o antegozo da
felicidade eterna. Está, portanto, afastada a hipótese de um reino milenar
material de Cristo no fim dos tempos.
A propósito observe-se que a história da Igreja também pode ser
simbolizada pelos números 3 1/2 anos, 42 meses ou 1.260 dias (cf. Ap 11,2.3.9;
12,6.14). Sendo 3 1/2 a metade de 7 (símbolo da plenitude), o autor sagrado,
recorrendo a este número, tenciona significar que a Igreja tem duas faces: a da
viandante sôfrega (3 1/2) e a da presença dos bens definitivos (1000).
Lição 4: Dados complementares
Os autores modernos discutem a autoria do Ap. Verificam que há, entre
os escritos joaneus e Ap, diferenças de linguagem e estilo; o Apocalipse parece
compor-se de seções quase independentes umas das outras (8,2-5; 11,1-13; 12,1-
17; 14,1-15-4), que supõem diversos autores. Por isto com boas razões há quem
atribua o Apocalipse à escola de São João, ficando o Apóstolo como fonte
inspiradora de todo o livro. A composição final deve datar de fim do séc. l. - Ap
2-3 contém sete cartas dirigidas a sete comunidades da Ásia Menor, que corriam
o risco de cair na tibieza. Constituem uma parte do livro quase independente dos
capítulos 4-22. São muito úteis para o exame de consciência dos cristãos.
A canonicidade de Ap foi posta em dúvida nos primeiros séculos da
Igreja em parte por causa do c. 20, que os milenaristas entendiam em sentido
materialista. Todavia no fim do século IV fez-se o consenso dos mestres cristãos
sobre a canonicidade de Ap.
Em suma, o Ap fica sendo até hoje o livro da consolação e da esperança
dos cristãos, pondo em relevo o triunfo de Cristo. "Feliz aquele que lê e ouve as
palavras desta profecia" (1,3).
Para aprofundamento,
BARBAGLIO, FABRIS, MAGGIONI, O Apocalipse. Ed. Loyola, 1990.
* * *
PERGUNTAS
1) Como o Apocalipse é o livro da esperança cristã?
2) Percorra as sete cartas iniciais do Ap e ponha em relevo cinco
características de Cristo que aí mais o impressionem.
3) Onde é que o Apocalipse fala do Verbo de Deus? Onde menciona o
Rei dos Reis e o Senhor dos Senhores?
4) Onde, dentro das sete cartas iniciais (cc. 2-3), o Apocalipse fala de
quem não é quente nem frio e por isto merece ser rejeitado?
5) Onde o Apocalipse fala da mulher revestida de sol? Quem seria ela?
6) Qual das comunidades de Ap 2-3 que não merece censura nenhuma?
E qual a que é mais severamente é censurada?
7) Onde o Apocalipse fala de uma cidade que é também esposa?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
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CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
3a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL AO ANTIGO TESTAMENTO
1a SUBETAPA: OS LIVROS HISTÓRICOS
Entramos agora no Antigo Testamento, conscientes de que quem
conhece o Novo Testamento tem necessidade de estudar o Antigo. Não
entenderíamos bem os Evangelhos, São Paulo e os demais escritos cristãos se
não conhecêssemos com exatidão Abraão, Jacó, Moisés, Davi, Isaías...
Os livros do Antigo Testamento são 46. Costumam ser distribuídos em
três categorias: históricos (desde o Gênesis até o 2Mc), sapienciais ou didáticos
(Jó, Pr, Sl, Ct, Ecl, Sb, Eclo) e proféticos (Is, Jr, Lm, Br, Ez, Dn e os doze
profetas menores). A nossa exposição seguirá tal ordem, que é também a ordem
do Cânon adotada por nossas edições da Bíblia.
Os cinco primeiros livros da Bíblia (Gn, Ex, Lv, Nm, Dt) constituem a
Lei ou Torá de Moisés, também chamada Pentateuco (em grego, pente = cinco;
teuchos = rolo ou livro). Começaremos por este conjunto de cinco livros; a
princípio, entre os judeus, constituíam uma obra só (= a Lei); mas, por razões
práticas, a Lei foi dividida em cinco partes.
MÓDULO l: O Pentateuco
Lição 1: Generalidades
Os nomes das cinco partes do Pentateuco são gregos e devem-se aos
judeus que fizeram a tradução alexandrina ou dos LXX; ver Etapa I, módulo III.
Gênesis quer dizer origem, porque este livro começa falando das origens do
mundo e do homem. Êxodo significa saída, porque o livro trata da saída dos
judeus prisioneiros no Egito; Levítico é o livro dos levitas ou sacerdotes, pois
apresenta leis para o culto; Números é o livro que começa pela história de um
recenseamento feito por Moisés no deserto; Deuteronômio é o livro que contém
a repetição da Lei (déuteron = segundo; nómos = Lei).
O Gênesis compreende duas partes: Gn 1-11 e 12-50. A primeira é
chamada "pré-história bíblica", porque apresenta acontecimentos anteriores à
história bíblica; esta começa no capítulo 12 com Abraão (séc. XIX a.C.) Tudo o
que precede Gn 12, vem a ser o fundo de cena que explica por que Deus quis
chamar Abraão e fazer-lhe promessas; o Criador fez o mundo e o homem muito
bons, mas o pecado estragou a obra114
116,10-19 115
117-146 116-145
147,1-11 146
147,12-20 147
148-150 148-150
As razões da diversidade de numeração são históricas e de pouca monta.
Em nossas aulas indicaremos sempre as duas numerações de cada salmo, quando as houver; a
anterior será a da Vg, e a posterior a do texto hebraico.
Satã ou Satanás: termo hebraico que significa "adversário". Satã podia ser o indivíduo que diante
de um tribunal exercesse o papel de acusador (cf. S1108,6). Tal vocábulo, aos poucos a partir do século V a.
C., foi reservado a um anjo que Deus criou bom, mas que se perverteu pelo pecado e se tornou adversário
ou tentador do gênero humano; cf. Jó 1,6-2,7; 1 Cr 21,1. Foi identificado com a serpente de Gn 3,1 (cf. Sb
2,24). Portanto Satã não é uma figura mitológica nem é a realidade neutra do Mal, mas é uma criatura
inteligente, incorpórea, que o Criador fez para a sua glória e que se afastou livremente de Deus; atualmente
recebe do Senhor autorização para provar os homens, dando-lhes ocasião de acrisolar e corroborar a sua
fidelidade a Deus; cf. Rm 16,20; Ef 6,16; 1Pd 5,8. Com Satã muitos outros anjos se perverteram pelo
pecado e são atualmente chamados "anjos maus" ou "demônios". Estes estão subordinados a Deus; cf. Ap
12,7.-17. S. Agostinho nos diz que Satã é um cão acorrentado, que pode latir fortemente, mas só consegue
morder a quem se lhe chega perto ou a quem se lhe entrega.
Semitas; são os descendentes de Sem, filho de Noé; cf. Gn 10,22-30. Correspondem a diversos
povos, entre os quais o hebreu ou israelita, o assírio, o babilônico, o etíope, o fenício, o púnico, o moabítico,
o aramaico.
Sínodo: congresso de rabinos ou de bispos. Tenha-se em vista o Sínodo de Jâmnia ou Jabnes, no
qual os rabinos, por volta de 100 d. C., definiram quatro critérios para reconhecer um livro sagrado como
inspirado por Deus e canônico: fosse escrito em hebraico (não em aramaico nem em grego), na terra de
Israel (não no estrangeiro), antes de Esdras (século V a.C.), em conformidade com a Lei de Moisés. -
Tenha-se em vista também o Sínodo de Trulos II (Constantinopla), que em 692 no Oriente definiu o cânon
bíblico, incluindo os sete livros deuterocanônicos que os judeus em Jâmnia não aceitaram.
Teofania: etimologicamente, manifestação de Deus, em grego. Ocorre, por exemplo, na sarça
ardente em favor de Moisés (Ex 3,2), no final do livro de Jó (38,1-42,6), antes da Paixão de Jesus (Jo 12,27-
30).
Testamento: A Bíblia consta de dois Testamentos: o Antigo e o Novo. A razão desta divisão e
nomenclatura é a seguinte: Os judeus, movidos pelo próprio Deus, designavam as suas relações com Javé
como sendo um Berith (= aliança); por isto falavam dos livros da Aliança. Todavia nos séculos III/II a. C.,
quando se fez a versão da Bíblia hebraica para o grego em Alexandria, os intérpretes traduziram Berith por
diathéke (- disposição); queriam desta maneira ressalvar a unicidade e soberania de Deus; na verdade,
quem faz Aliança com alguém, é par ou igual a esse alguém, ao passo que quem faz uma disposição é
soberano ou Senhor. Assim os livros sagrados de Israel foram chamados livros da diathéke ou da
disposição (de Deus em favor dos homens). Quando a palavra diathéke foi traduzida para o latim entre os
cristãos, estes usaram o vocábulo testamentum (- disposição que se torna válida em caso de morte do
testador). Recorreram à palavra testamentum, porque ficou comprovado que a disposição de Deus em
favor dos homens só se tornou plenamente válida e eficiente mediante a morte de Cristo. Assim os livros
sagrados, entre os cristãos, foram distribuídos em duas categorias: os da Aliança (ou Testamento) antiga e
os da nova Aliança ou do novo Testamento; cf. 2Cor3,14s.
Traduções gregas do Antigo Testamento. Além da tradução dita dos Setenta, que será
apresentada no módulo III deste Curso (1a Etapa), devem ser mencionadas as de Teodocião,
Áquila e Símaco.
Teodocião é um prosélito ou pagão convertido ao judaísmo, que traduziu o Antigo Testamento para
o grego no século II d. C. a fim de tentar extinguir o uso do texto dos LXX. Esta tradução, realizada em
Alexandria entre 250 e 100 a. C., era muito utilizada pelos cristãos para provar a messianidade de Jesus,
Visto que isto desagradava aos judeus, Teodocião se dispôs a fazer nova versão, que é mais propriamente
uma revisão retocada do texto dos LXX. O texto de Teodocião teve importância para os cristãos, pois a
partir dele se fez a tradução latina das partes deuterocanônicas do livro de Daniel.
Áquila, também no século II, fez urna autêntica tradução grega do A. T. O seu texto se prende muito
à letra do hebraico, esforçando-se por guardar em grego expressões tipicamente semitas.
Símaco é o terceiro tradutor do Antigo Testamento para o grego. A sua versão é mais livre do que as
anteriores; procura levar em conta o espírito e as peculiaridades da língua grega. Tanto Símaco como Áquila
tentaram suplantar o uso dos LXX.
Vulgata é a tradução latina da Bíblia que se deve a S. Jerônimo († 421). No século IV era grande o
número de traduções latinas das Escrituras, todavia apresentavam grandes deficiências de forma e de
conteúdo. Por isto o Papa São Dâmaso pediu a S. Jerônimo preparasse uma versão nova e fiel dos livros
sagrados. Este sábio, de grande erudição na sua época, aplicou-se à tarefa entre 384 e 406. Não chegou a
traduzir de novo o texto do Novo Testamento, mas fez a revisão dos textos já existentes cotejando-os com
bons manuscritos gregos. Para traduzir o Antigo Testamento, Jerônimo estabeleceu-se na Terra Santa, onde
aprendeu o hebraico com os rabinos e traduziu em Belém todo o Antigo Testamento, menos Br, 1/2Mc,
Eclo e Sb.
A tradução de São Jerônimo aos poucos substituiu as anteriores, de modo a chamar-se Vulgata
editio ou edição divulgada. Tornou-se a tradução oficial da Igreja até o Concilio do Vaticano II (1962-65).
Todavia a tradução de S. Jerônimo não podia deixar de ter suas falhas, pois foi feita em época na qual não
havia os recursos arqueológicos, históricos, lingüísticos... de nossos tempos. Por isto, após o Concílio do
Vaticano II, Paulo VI mandou refazer, a tradução latina dos livros sagrados, que, uma vez pronta, é chamada
a Neo-Vulgata.
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
Iniciaremos o nosso estudo pela Introdução Geral à Bíblia (1a Etapa), que trata da
Inspiração, do Cânon, da História do Texto e da Hermenêutica (Interpretação) da S. Escritura.
Estes primeiros passos poderão parecer áridos ao cursista, porque não abordam diretamente o
texto sagrado; mas, com paciência e perseverança, o estudante adquirirá noções fundamentais e
indispensáveis para poder entrar no estudo do próprio texto sagrado. Na 2a Etapa estudaremos o
Novo Testamento (entraremos na Bíblia pela porta do Novo Testamento, que é mais acessível) e
na 3a Etapa consideraremos o Antigo Testamento, detendo-nos sobre cada um dos livros
sagrados. Serão apontadas as notas características de cada qual e os traços importantes para
facilitar a respectiva leitura. A 4a Etapa do Curso apresentará a exegese (explicação) dos onze
primeiros capítulos do Gênesis, quede Deus (como se vê no caso de Caím, no do
dilúvio, no da torre de Babel); por isto Deus separa um homem e sua
descendência para serem os depositários da esperança de um Messias Salvador.
A segunda parte do Gênesis (12-50) apresenta os patriarcas Abraão, Isaque e
Jacó, mediante os quais Deus vai realizando a preparação do Messias.
O Êxodo descreve: 1) a saída do Egito mediante as dez pragas e a
celebração de Páscoa (1,1-15,21); 2) a caminhada até o monte Sinai (15,22-
18,27); 3) a aliança e a legislação do Sinai (19,1-40,38).
O Levítico apresenta coleções de leis relativas ao culto (1,1-10,20) e à
santidade do povo (11,1-27,34).
O livro dos Números contém outras leis mescladas com a narrativa da
caminhada até as margens do Jordão (1,1-36,13).
O Deuteronômio consta de cinco sermões de Moisés que recapitulam a
Lei (1,1-4,43; 4,44-11,32; 12,1-28,68; 28,69-30,20; 31,1-29) e da narração do
fim da vida de Moisés (31,30-34,12).
Estes dados permitem avaliar a importância histórica, religiosa e moral
do Pentateuco, ao qual nenhum outro documento da antiguidade pode ser
comparado.
Lição 2: A origem do Pentateuco - o problema
Sem negar a inspiração divina do Pentateuco, o estudioso tem o direito
de investigar qua' tenha sido o autor humano de tal obra.
1.Até o século XVIII d.C. admitia-se que Moisés no séc. XIII a.C. tivesse
escrito os cinco livros da Lei. Em favor desta tese, podem ser citados textos do
Antigo Testamento, como Ex 17,14; 24,4; Nm 33,2; Dt 31,9.22.24... e do Novo
Testamento: Jo 5,45-47; Mt 8,4; 19,8; Mc 7,10; 12,26...
2. Todavia nos últimos séculos o estudo atento do Pentateuco mostrou
que Moisés não parece ser simplesmente o autor de toda esta obra. Eis os
principais argumentos que justificam este novo modo de pensar;
1) a morte de Moisés é narrada em Dt 34,1-12;
2) Há trechos em que Deus é designado, de preferência, pelo nome
revelado Javé, ao passo que em outros predomina a designação Elohim. Isto
parece insinuar diversidade de autores.
3) Há narrações em duplicata. Por exemplo,
- há dois relatos da criação do mundo (Gn 1,1 -2,4a e 2,4b-25), da
expulsão de Agar (Gn 16,4-16 e 21,9-21), da aliança de Deus com Abraão (Gn
15,1-21 e 17,1-27), da vocação de Moisés (Ex 3,1-4 e 6,2-8), da queda do
maná e das codornizes (Ex 16,2-36 e Nm 11,4-34), da produção da água do
rochedo (Ex 17,1-7 e Nm 20,1-13);
-há três recensões do decálogo (Ex 20,1-17; 34,10-28; Dt 5,6-21), da lei
concernente aos escravos (Ex 21,2-11; Lv 25,39-46; Dt 15,12-18), da lei
referente ao homicídio (Ex 21,12-14; Dt 19,1 -13; Nm 35,9-34);
- há cinco recensões do catálogo das festas: Ex 23,14-19; 34,18-26; Dt
16,1-17; Lv 23,4-44; Nm 28,1-29,39;
- há nove recensões da lei do sábado: Ex 20,8-11; 23,12; 31,12-17; 34,21;
35,2s; Dt 5,13s; Lv 23,3; 25,2; Nm 28,9s.
4) Há cortes e enxertos: assim
- em Gn 4,25s ocorre o início da genealogia de Adão, que recomeça e
continua em Gn 5,1;
- as palavras de Ex 2,23a não se ligam com 2,23b, mas, sim, com Ex 4,19;
- em Ex 19,25 lê-se: "Moisés desceu, foi ter com o povo e disse-lhe..."
sem continuação;
- em Ex 32-34 a narrativa da infidelidade de Israel e da restauração da
Aliança interrompe um trecho jurídico homogêneo (Ex 25-31 e 35-40).
Estes dados são suficientes para justificar as dúvidas dos críticos sobre a
origem do Pentateuco: dificilmente se poderia sustentar que Moisés tenha
escrito o "livro da Lei" como ele hoje se encontra.
Lição 3: A solução
Depois de muito pesquisar a questão, os estudiosos propõem hoje a
seguinte teoria para a origem do Pentateuco, teoria que a Igreja Católica
aceita:
O povo de Israel teve seu começo quando Deus chamou o Patriarca
Abraão no séc. XIX a.C., levando-o a emigrar para a terra de Canaã. Abraão
deu início ao povo de Israel (Israel-Jacó era filho de Isaque, e este era filho de
Abraão). No decorrer dos tempos, o povo foi criando suas tradições históricas
e jurídicas (leis sociais, militares, religiosas...).
No século XIII a.C. Moisés tornou-se o chefe do povo cativo no Egito,
Por essa ocasião, no deserto Deus quis travar aliança com o povo eleito;
mandou, pois, que Moisés codificasse leis e tradições históricas já existentes
em Israel (cf, Ex 24,3-8; 34,28). O mesmo Moisés terá redigido outras leis,
ampliando o bloco legislativo da sua gente. Assim Moisés tornou-se para a
posteridade o legislador de Israel por excelência; o seu nome e o conceito de
Lei (Torá) ficaram definitivamente associados entre si.
Uma vez estabelecido na terra de Canaã, após o cativeiro egípcio, o povo
de Israel foi constituindo seus santuários (Betel, Hebron, Dã, Siquém,
Mambré, Bersabé, Jerusalém...), aonde os fiéis iam periodicamente para
celebrar o culto do Senhor. Nesses santuários residiam sacerdotes e levitas,
que cultivavam as tradições históricas e jurídicas de Israel; redigiam-nas em
peças adaptadas à catequese ou à liturgia, e assim as comunicavam ao povo.
Desta forma o bloco de tradições que no séc. XIII recebeu o cunho de Moisés,
foi aos poucos sendo acrescido de novas leis motivadas pelas sucessivas
mudanças de condições históricas e sociais do povo de Israel.
A partir dos tempos de Salomão (972-932), passou a existir na corte dos
reis tanto de Judá como da Samaria (reino cismático desde 930) um corpo de
escribas, que zelavam pelas tradições de Israel; eram homens letrados, que se
achavam em estrito contato com os sacerdotes. Os escribas e os sacerdotes
procuravam recolher em compilações mais ou menos sistemáticas os
ensinamentos (da história e da legislação) de Israel, a fim de possuir uma
visão de conjunto dos benefícios de Deus para com seu povo.
Do trabalho dos escribas e sacerdotes, resultaram algumas coleções de
narrativas históricas e de leis. Dessas coleções, quatro podem ser identificadas,
pois entraram como fontes na composição do Pentateuco:
1) A coleção ou o código ou o documento dito Javista (J), no qual
predomina o nome Javé para designar Deus. Teve origem no reino de Judá sob
Salomão (972-932).
O código J caracteriza-se por seu estilo simbolista e antropomórfico1,
mostrando Javé muito perto dos homens - o que é forte sinal de antiguidade:
assim notemos o segundo relato da criação (Gn 2,4b-25), onde o Senhor é
descrito como oleiro (2,7), jardineiro (2,8), cirurgião (2,21), arquiteto (2,22);
Javé passeia no jardim em 3,8, é alfaiate em 3,21, fecha a porta da arca de Noé
em 7,1 G, visita Abraão e ceia com ele em 18,1-8; desce para ver o pecado de
Sodoma em 18,21.
1 - O antropomorfismo representa Deus à semelhança de um homem.
O código J apresenta narrativas cheias de vivacidade, realçando o
dramático da história; ver Gn 3 (a queda dos primeiros pais), Gn 18s (a visita do
Senhor a Abraão), Ex 7,8-10,29 (as pragas do Egito)... Reproduz também as
etimologias populares de nomes de pessoas e lugares; ver Gn 3,20 (Eva); 11,9
(Babel); 25,26 (Jacó); 25,30 (Edom); 32,29 (Israel); Nm 20,13 (Meriba).
2) O código (ou documento) Eloista (E). Dá larga preferência ao nome
Elohim (= Deus). Foi redigido entre 850 e 750 no reino cismático da Samaria
(parte setentrional da Palestina).
Evita os antropomorfismos de J, pondo mais em relevo a transcendência
de Deus; Este fala aos homens por vias menos diretas, servindo-se de sonhos ou
da intervenção de anjos (cf. 15,1; 20,3.6; 21,17; 22,11.15; 28,12).tratam da criação do mundo, do homem, do pecado, do
dilúvio e da torre de Babel. Ao todo, o Curso consta de 45 Módulos, que poderão oferecer ao
cursista perseverante e "teimoso" um instrumental apto para aprofundar seus conhecimentos
bíblicos.
1a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL À BÍBLIA
MÓDULO l: INSPIRAÇÃO BÍBLICA
Lição 1: Noção e Extensão
1.1. Inspiração Bíblica: noção
O estudo da Bíblia deve começar pela prerrogativa que cristãos e judeus reconhecem a este livro: é a
Palavra de Deus inspirada. Por causa disto é que tanto a estimamos.
a) Mas, quando se fala de inspiração bíblica, talvez aflore à mente a noção de ditado mecânico,
semelhante ao que o chefe de escritório realiza junto à sua datilógrafa; esta possivelmente escreve coisas
que não entende e que são claras apenas ao chefe e à sua equipe.
Ora tal não é a inspiração bíblica. Ela não dispensa certa compreensão por parte do autor bíblico (-
hagiógrafo) nem a sua participação na redação do texto sagrado.
b) A inspiração bíblica também não é revelação de verdades que o autor humano não conheça.
Existe, sim, o carisma (= dom) da Revelação, que toca especialmente aos Profetas, mas é diverso da
inspiração bíblica; esta se exercia, por exemplo, quando o hagiógrafo descrevia uma batalha ou outros fatos
documentados em fontes históricas, sem receber revelação divina.
c) Positivamente, a inspiração bíblica é a iluminação da mente do autor humano para que possa, com
os dados de sua cultura religiosa e profana, transmitir uma mensagem fiel ao pensamento de Deus. Além de
iluminar a mente, o Espírito Santo fortalece a vontade e as potências executivas do autor para que realmente
o hagiógrafo escreva o que ele percebeu; cf. 2Pd 1,21. As páginas que assim se originam, são todas
humanas (Deus em nada dispensa a atividade redacional do homem) e divinas (pois Deus acompanha passo
a passo o trabalho do homem escritor). Assim diz-se que a Bíblia é um livro divino-humano, todo de Deus e
todo do homem; transmite o pensamento de Deus em roupagem humana; assemelha-se ao mistério da
Encarnação, pelo qual Deus se revestiu da carne humana, pois na Bíblia a palavra de Deus se revestiu da
palavra do homem (judeu, grego, arameu, com todas as particularidades de expressão).
d) Notemos agora que a finalidade da inspiração bíblica é estritamente religiosa. Os livros sagrados
não foram escritos para nos ensinar dados de ciências naturais (pois, estas, o homem as pode e deve cultivar
com seus talentos), mas, sim, para nos ensinar aquilo que ultrapassa a razão humana, isto é, o plano de
salvação divina, o sentido do mundo, do homem, do trabalho, da vida, da morte... diante de Deus. Não há,
pois, contradição entre a mensagem bíblica e as das ciências naturais, nem se devem pedir a Bíblia teorias
de ordem física ou biológica... Mesmo Gênesis 1-3 não pretendem ensinar como nem quando o mundo foi
feito.
1.2. Inspiração Bíblica: extensão
Pergunta-se então: a Bíblia só é inspirada quando trata de assuntos religiosos? Haveria páginas da
Bíblia não inspiradas?
a) Respondemos que toda a Bíblia, em qualquer de suas partes, é inspirada; ela é, por inteiro,
Palavra de Deus; cf. 2Tm 3,15s. Mas há passagens bíblicas que são inspiradas por si, diretamente, e há
outras que só indiretamente são inspiradas. Em outros termos: a mensagem religiosa que Deus quer
comunicar diretamente aos homens, tem que aludir a este mundo e às suas diversas criaturas (céu, terra,
mar, aves, peixes...); ela o faz, porém, em linguagem familiar pré-científica, que costuma ser bem entendida
no trato quotidiano. Também nós usamos de linguagem familiar, que, aos olhos da ciência, estaria errada,
mas que não leva ninguém ao erro porque todos entendem que essa linguagem familiar não pretende ensinar
matéria científica. Tenham-se em vista as expressões "nascer do sol", "pôr do sol", "Oriente e Ocidente":
supõem o sistema geocêntrico, a terra fixa e o sol girando em torno da terra (ultrapassado), mas não são
censuradas como mentirosas, porque, quando as usamos, todos sabem que não intencionamos definir
assuntos de astronomia. Assim, quando a Bíblia diz que o mundo foi feito em seis dias de vinte e quatro
horas, com tarde e manhã..., quando diz que a luz foi feita antes do sol e das estrelas, ela não ensina alguma
teoria astronômica, mas alude ao mundo em linguagem dos hebreus antigos para dizer que o mundo todo é
criatura de Deus; cf. Gn 1,1 -2,4a. A Bíblia não poderia transmitir esta mensagem de ordem religiosa sem
recorrer a algum linguajar humano, que, no caso, é mero veículo ou suporte da mensagem religiosa.
Por conseguinte, todas as páginas da Bíblia são inspiradas, qualquer que seja a sua temática.
Acrescentemos que também as palavras da Escritura são inspiradas. A razão disto é que os
conceitos ou as idéias do homem estão sempre ligadas a palavras; não há conceitos, mesmo não expressos
pelos lábios, que não estejam, em nossa mente, ligados a palavras. Por isto, quando o Espírito Santo
iluminava a mente dos autores sagrados, para que vissem com clareza alguma mensagem, iluminava
também as palavras com as quais se revestia essa mensagem na mente do hagiógrafo. É por isto que os
próprios autores sagrados fazem questão de realçar vocábulos da Bíblia; veja Hb 8,13; Gl 3,16; Mc 12,26s.
Observemos, porém, que somente as palavras das línguas originais (hebraico, aramaico, grego)
foram assim iluminadas. As traduções bíblicas não gozam do carisma da inspiração. Por isto, quando
desejamos estudar a Bíblia, devemos certificar-nos de que estamos usando uma tradução fiel e equivalente
aos originais. Além disto, é absolutamente necessário levar em conta o gênero literário do respectivo texto,
como se verá abaixo.
Lição 2: Gêneros literários
2.1. Gêneros literários: noção
Se a Bíblia é a Palavra de Deus revestida da linguagem humana, entende-se que ela utiliza os
gêneros literários ou os artifícios do linguajar dos homens.
Gênero literário é o conjunto de normas de vocabulário e sintaxe que se usam habitualmente para
abordar algum assunto. Assim o assunto "leis" tem seu gênero literário próprio (claro e conciso, para que
ninguém se possa desculpar por não haver entendido a lei); a poesia tem seu gênero literário antitético ao
das leis (é metafórica, reticente, subjetiva...); uma crônica tem seu gênero próprio, que é diferente do de
uma carta; uma carta comercial é diferente de uma carta de família, uma fábula é diferente de uma peça
histórica, etc.
Ora na Bíblia temos os gêneros literários dos antigos judeus e gregos; existe por exemplo, a história
no sentido estrito do termo (1° Macabeus), a história edificante ou midraxe ou ainda hagadá (Tobias,
Judite, Ester, Rute), a história em estilo popular (como a de Sansão em Juízes, 13,1-16,31), a parábola (Mt
13,1-51; Lc 15,1-32), a alegoria (Jo 15,1-6), a lei (Ex 20,1-17), a poesia (Isaías 5,1-7), o apocalipse (Mt
24,4-44) ; merece especial atenção a história etiológica ou a história narrada em vista de propor a causa
(aitía, em grego) de um fato estranho (assim Gn 19,30-38 explica pelo incesto das filhas de Lote a
inimizade existente entre Israel e os povos de Amon e Moab; tais povos seriam filhos do pecado)...
2.2. Gêneros literários: interpretação1
Se cada gênero literário supõe regras próprias de vocabulário e redação, compreende-se que cada
qual tem também suas regras de interpretação próprias. Não me é licito entender uma poesia (cheia de
imagens) como entendouma lei (que deve ser clara e sem imagens). Uma das principais causas de erros na
interpretação da Bíblia está em que muitas pessoas querem tomar tudo ao pé da letra ou tomar tudo em
sentido figurado.
Antes da interpretação ou da utilização de algum livro sagrado, devo certificar-me do respectivo
gênero literário: estou diante de uma poesia?... diante de uma crônica? Crônica de guerra? Crônica de
família? Crônica de corte real? Por exemplo: Gn 1,1 -2,4ª, é poesia ou hino litúrgico, e não um relato
científico. Estou obrigado a não tomar essa seção ao pé da letra para não trair o autor ou não lhe atribuir o
que ele não queria dizer. Mas a narração da última Ceia em Mt 26,17-29 é relato histórico, que tenho de
entender ao pé da letra para não trair o autor.
Não é licito, de antemão ou antes da abordagem criteriosa do texto, "definir" o respectivo gênero
literário, como quem diz: "Eu acho que isto é poesia", ou "Para mim, isto é uma tradição folclórica". Mas é
preciso que o leitor se informe objetivamente a respeito do gênero literário do livro que está para ler, a fim
de entender o livro segundo os critérios de redação adotados pelo autor. Tal informação pode ser colhida nas
Introduções que as edições da Bíblia apresentam antes de cada livro sagrado. Não é necessário que todo
leitor da Escritura conheça as línguas originais e sua variedade de expressionismos, mas basta que leia a
Escritura com alguma iniciação, que pode ser facilmente encontrada. Todos compreenderão que não se pode
ler a Bíblia escrita do século XIII antes de Cristo até o século I depois de Cristo como se leria um jornal de
hoje.
1 - Interpretação = explicação, comentário.
Lição 3: Veracidade da Bíblia
3.1. Veracidade da Bíblia: âmbito
Se a Bíblia é a Palavra de Deus feita palavra do homem, entende-se que ela deva ser inerrante (sem
erro de espécie alguma) ou veraz (portadora da verdade).
Mas como se pode sustentar isto, se à Escritura, à primeira vista, está cheia de "erros"? O sol terá
parado no seu curso em torno da terra, conforme Js 10,12-14; Is 38,7s... Nabucodonosor era rei de Nínive,
segundo Jt 1,5; Dario terá sido filho de Assuero, conforme Dn 9,1..
Eis a resposta:
1) É isento de erro ou veraz tudo aquilo que o hagiógrafo como tal afirma...
2)... no sentido em que o hagiógrafo o entendeu.
Comentemos:
1) O autor sagrado pode afirmar algo em seu nome, como pode afirmar em nome de outrem. Por
exemplo, em Jo 1,18, o Evangelista afirma que Jesus nos revelou Deus Pai. Mas no salmo 53 (52), 22 se lê:
"Deus não existe". Como explicar a contradição? Em Jo 1,18 é o autor sagrado como tal quem afirma; a sua
afirmação é absolutamente verídica; mas no Sl 53 (52), 1, o salmista apenas afirma que o insensato diz em
seu coração: "Deus não existe". Quem diz que Deus não existe, não é o autor sagrado; este apenas afirma (e
afirma com plena veracidade) que o insensato nega a existência de Deus (o insensato erra ao negá-la; o
salmista apenas verifica o fato).
2 - Muitos Salmos podem ser numerados de duas maneiras (a hebraica e a grega). O
cursista o aprenderá quando estudar o Módulo referente aos Salmos.
2) "... no sentido em que o hagiógrafo o entendeu". Com outras palavras:.. de acordo com o
gênero literário adotado pelo autor bíblico. Se este quis usar de metáfora, não deverei tomá-lo ao pé da
letra; se quis usar de gênero estritamente narrativo, não deverei entendê-lo metaforicamente.
Voltando aos casos apontados, diremos: quando Js 10,12-14 diz que Josué mandou parar o sol, o
gênero é de poesia lírica; há, pois, uma imagem literária, segundo a qual o "estacionamento do sol" quer
dizer "escurecimento da atmosfera, clima de tempestade de granizo"; por conseguinte, Josué pediu a Deus
uma tempestade de granizo que o ajudasse a vencer a batalha, tempestade da qual fala o texto de Js 10,11.
Quando os livros de Judite e Daniel parecem errar na cronologia dos reis, estão recorrendo ao gênero do
midraxe, que intencionalmente não pretende ser crônica, mas apresenta a história como veículo de
edificação religiosa (ver no Léxico Bíblico anexo o verbete Midraxe). Quando Mateus 1,1-17 diz que de
Abraão até Cristo houve 42 gerações (na verdade houve mais do que isto), quer jogar com a simbologia do
número 42 - o que também pertence ao gênero midráxico; de resto, o assunto voltará a ser estudado na
Introdução ao Evangelho de Mateus.
3.2. Veracidade da Bíblia: conclusão
Vê-se, pois, que a Bíblia é isenta de erro em todas as suas páginas, mesmo quando fala de assuntos
não religiosos. Qualquer erro atribuído à Bíblia, recairia sobre o próprio Deus. Todavia a veracidade ou a
mensagem de cada passagem da Bíblia deverá ser depreendida do respectivo gênero literário: a poesia tem
veracidade diversa da veracidade da lei ou da veracidade do midraxe. Ademais, notemos que a Bíblia só
pretende afirmar categoricamente verdades de ordem religiosa. Em assuntos não religiosos, ela não comete
erros, mas adapta-se ao modo de falar familiar ou pré-científico dos homens que, devidamente entendido,
não é portador de erro, como atrás foi dito.
Diante das dúvidas no entendimento da S. Escritura, o cristão rezará com S. Agostinho: "Faze-me
ouvir e descobrir como no começo criaste o céu e a terra. Assim escreveu Moisés, para depois ir embora,
sair deste mundo, de Ti para Ti. Agora não posso interrogá-lo. Se pudesse, eu o seguraria, implorá-lo-ia em
teu nome para que me explicasse estas palavras,... mas não posso interrogá-lo; por isto dirijo-me a Ti,
Verdade, Deus meu, de que estava ele possuído quando disse coisas verdadeiras; dirijo-me a Ti: Perdoa
meus pecados. E Tu, que concedeste a teu servo enunciar estas coisas verdadeiras, concede também a mim
compreendê-las" (Confissões XI 3,5).
Bibliografia:
ARENHOEVEL, DIEGO, Assim se formou a Bíblia. Ed. Paulinas.
BARRERA, JÚLIO TREBOLLE, A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, Ed. Vozes 1996.
CASTANHO, AMAURY, Iniciação à Leitura da Bíblia. Ed. Santuário.
CECHINATO, LUIZ, Iniciação à Sagrada Escritura. Ed. Vozes.
HARRINGTON, WILFRÍD J., Chave para a Bíblia. Ed. Paulinas.
MANNUCCI, VALERIO, Bíblia. Palavra de Deus. Ed. Paulinas.
SCHARBERJ, JOSEF, Introdução à Sagrada Escritura. Ed. Vozes.
ENCICLOPÉDIA ILUSTRADA DA BÍBLIA. Ed. Paulinas.
MUNDO DA BÍBLIA, por vários autores. Ed. Paulinas.
* * *
PERGUNTAS
1) Que é Inspiração bíblica? Como se distingue de Revelação?
2) A Inspiração bíblica se estende a todos os temas da Bíblia? E a todas as palavras? Explique.
3) Que é gênero literário? E quais as normas de interpretação dos gêneros literários?
4) A Bíblia não contém erros? Como?
5) Como devo entenderas alusões da Bíblia, aparentemente errôneas, às ciências naturais?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o endereço do(a) Cursista, para:
CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa Postal 1362, 20001-970 de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
1a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL À BÍBLIA
MÓDULO II: O CÂNON BÍBLICO
Vimos no Módulo I que Deus quis falar aos homens, dando origem à S. Escritura.
Perguntamos agora: quantos e quais são os livros sagrados? Qual é o seu catálogo'?
Lição 1: Nomenclatura
Notemos os termos habitualmente utilizados neste estudo:
1) Cânon, do grego kanón = regra,medida -> catálogo.
2) Canônico = livro catalogado - o que implica seja inspirado (no sentido do Módulo I).
3) Protocanônico = livro catalogado próton, isto é, em primeiro lugar ou
sempre catalogado.
4) Deuterocanônico = livro catalogado déuteron ou em segunda
instância, posteriormente (após ter sido controvertido).
5) Apócrifo, do grego apókryphon = livro oculto, isto é, não lido nas
assembléias públicas de culto, reservado à leitura particular. Em conseqüência
livro não canônico ou não catalogado, embora tenha aparência de livro canônico
(Evangelho segundo Tomé, Evangelho da Infância, Assunção de Moisés...).
Os apócrifos, embora tenham sido, durante séculos, tidos como
desprezíveis portadores de lendas, são ultimamente reconhecidos como valiosos
para a história do Cristianismo, porque 1) através de suas afirmações referem o
modo de pensar dos judeus e cristãos dos séculos pouco anteriores e pouco
posteriores a Cristo (século II a.C. até século V d.C.); 2) podem conter
proposições verdadeiras que não foram consignadas pelos autores sagrados (os
nomes dos genitores de Maria SS., a Apresentação de Maria no Templo aos três
anos de idade, a assunção corporal de Maria após a morte...); 3) contêm
sentenças de hereges, que contribuem para a compreensão da história do
Cristianismo.
O Cânon católico compreende 47 livros do A.T, se se conta como
unidade distinta a carta de Jeremias (= Baruque 6); se, ao contrário, é
considerada como o capitulo 6 de Baruque, o total é de 46 livros. No Novo
Testamento há 27 livros - o que perfaz 74 (73) livros sagrados ao todo.
Examinaremos, a seguir, a história do Cânon ou a maneira como se foram
formando os catálogos do Antigo e do Novo Testamento respectivamente.
Lição 2: História do Cânon do Antigo Testamento
As passagens bíblicas começaram a ser escritas esporadicamente desde
os tempos anteriores a Moisés; é de notar que a escrita era uma arte rara e cara
na antiguidade. Moisés foi o primeiro codificador das tradições orais e escritas
de Israel, no século XIII a.C. - Essas tradições (leis, narrativas, peças litúrgicas)
foram sendo acrescidas aos poucos por outros escritos no decorrer dos séculos,
sem que os judeus se preocupassem com a catalogação das mesmas... Assim foi-
se formando a biblioteca sagrada de Israel.
Todavia, no século I da era cristã, deu-se um fato importante: começaram
a aparecer os livros cristãos (cartas de S. Paulo, Evangelhos...), que se
apresentavam como a continuação dos livros sagrados dos judeus. Estes, porém,
não tendo aceito o Cristo, trataram de impedir que se fizesse a aglutinação de
livros judeus e livros cristãos. Por isto, segundo bons autores modernos, vários
rabinos reuniram-se no sínodo de Jâmnia ou Jabnes ao Sul da Palestina, por volta
do ano 100 d.C., a fim de estabelecer as exigências que deveriam caracterizar os
livros sagrados ou inspirados por Deus. Foram estipulados os seguintes critérios:
1) o livro sagrado não pode ter sido escrito fora da terra de Israel;
2) ... não em língua aramaica ou grega, mas somente em hebraico;
3) ... não depois de Esdras (458-428 a.C.);
4) ... não em contradição com a Torá ou Lei de Moisés.
Em conseqüência, os judeus da Palestina fecharam o seu Cânon sagrado sem
reconhecer livros e escritos que não obedeciam a tais critérios. Acontece, porém, que em
Alexandria (Egito) havia próspera colônia judaica, que, vivendo em terra estrangeira e falando
língua estrangeira (o grego), não adotou os critérios nacionalistas estipulados pelos judeus de
Jâmnia. Os judeus de Alexandria chegaram a traduzir os livros sagrados hebraicos para o grego
entre 250 e 100 a.C., dando assim origem à versão grega dita "Alexandrina" ou "dos Setenta
Intérpretes". Essa edição grega bíblica encerra livros que os judeus de Jâmnia não aceitaram,
mas que os de Alexandria liam como palavra de Deus; assim os livros de Tobias, Judite,
Sabedoria, Baruque, Eclesiástico (ou Siracides), 1/2 Macabeus, além de Ester 10,4-16,24; Daniel
3,24-90; 13-14. -A respeito da versão dos Setenta, ver Módulo III.
Podemos, pois, dizer que havia dois cânones entre os judeus no início da
era cristã: o restrito da Palestina, e o amplo de Alexandria.
Ora acontece que os Apóstolos e Evangelistas, ao escreverem o Novo
Testamento em grego, citavam o Antigo Testamento, usando a tradução grega de
Alexandria, mesmo quando esta diferia do texto hebraico; tenham-se em vista
Mt 1,23 (-> Is 7,14); Hb 10,5 (-> SI 39/40,7); Hb 10,37s(Hab2,3s); At 15,16s(->
Am 9,11 s). O texto grego tornou-se a forma comum entre os cristãos; em
conseqüência o Cânon amplo, incluindo os sete livros e os fragmentos citados,
passou para o uso dos cristãos.
Verificamos também que nos escritos do Novo Testamento há citações
implícitas dos livros deuterocanônicos. Assim, por exemplo, Rm 1,19-32 -> Sb
13,1-9; Rm 13,1 -> Sb 6,3; Mt 27,43 -v Sb 2,13.18-Tg 1,19-> Eclo5.11;
Mt11,29s-> Eclo 51,23-30; Hb 11,34s -> 2Mc 6,18-7,42; Ap 8,2 -> Tb 12,15.
Deve-se, por outro lado, notar que não são (nem implicitamente) citados
no Novo Testamento livros que, de resto, todos os cristãos têm como canônicos;
assim Eclesiastes, Ester, Cântico dos Cânticos, Esdras, Neemias, Abdias, Naum,
Rute.
Nos mais antigos escritos patrísticos são citados os deuterocanônícos
como Escritura Sagrada: Clemente Romano (em cerca de 95), na epístola aos
Coríntios, recorre a Jt, Sb, fragmentos de Dn, Tb e Eclo; o Pastor de Hermas, em
140, faz amplo uso do Eclo e do 2 Mc (cf. Semelhanças 5,3.8; Mandamentos
1,1...); Hipólito († 235) comenta o livro de Daniel com os fragmentos
deuterocanônicos; cita como Escritura Sagrada Sb, Br e utiliza Tb, 1/2 Mc.
Nos séculos II/IV houve dúvidas entre os escritores cristãos com
referência aos sete livros, pois alguns se valiam da autoridade dos judeus de
Jerusalém para hesitar; outros deixavam de lado os deuterocanônicos, porque
não serviam para o diálogo com os judeus. Finalmente, porém, prevaleceu na
Igreja a consciência de que o cânon do Antigo Testamento deveria ser o de
Alexandria, adotado pelos Apóstolos. Sabemos que das 350 citações do Antigo
Testamento no Novo, 300 são tiradas da versão dos Setenta. Em conseqüência,
os Concílios regionais de Hipona (393), Cartago III (397), Cartago IV (419),
Trulos (692) definiram sucessivamente o Cânon amplo como sendo o da Igreja.
Esta definição foi repetida pelos Concílios ecumênicos de Florença (1442),
Trento (1546), Vaticano I (1870).
S. Jerônimo († 421) foi, sem dúvida, uma voz destoante neste conjunto.
Tendo ido do Ocidente para Belém da Palestina a fim de aprender o hebraico,
assimilou também o modo de pensar dos rabinos da Palestina neste particular.
Durante a Idade Média pode-se dizer que houve unanimidade entre os
cristãos a respeito do Cânon.
No século XVI, porém, Martinho Lutero (1483-1546), querendo
contestar a Igreja, resolveu adotar o Cânon dos judeus da Palestina, deixando de
lado os sete livros e os fragmentos deuterocanônicos que a Igreja recebera dos
judeus de Alexandria. É esta a razão pela qual a Bíblia dos protestantes não tem
sete livros e os fragmentos que a Bíblia dos católicos inclui. Para dirimir as
dúvidas, observamos que:
- os critérios adotadospelos judeus de Jâmnia para não reconhecer certos
livros sagrados eram critérios nacionalistas; tal nacionalismo decorria do fato de
que desde 587 a.C. os judeus estavam sob domínio estrangeiro, que muito os
aborrecia;
- é o Espírito Santo quem guia a Igreja de Cristo e fez que, após o
período de hesitação (séc. I-IV), os cristãos reconhecessem como válido o cânon
amplo.
Aliás, o próprio Lutero traduziu para o alemão os livros
deuterocanônicos; na sua edição alemã datada de 1534 o catálogo é o dos
católicos - o que bem mostra que os deuterocanônicos eram usuais entre os
cristãos. Não foi o Concilio de Trento que os introduziu no cânon. De resto, as
Sociedades Bíblicas protestantes até o séc. XIX incluíam os deuterocanônicos
em suas edições da Bíblia.
Para os católicos, os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento são
tão valiosos como os protocanônicos; são a Palavra de Deus inerrante, que, aliás,
os próprios judeus da Palestina estimavam e liam como textos edificantes. Por
exemplo, os próprios rabinos serviam-se do Eclesiástico até o séc. X como
Escritura Sagrada; o 1Mc era lido na festa de Encênia, ou da Dedicação do
Templo (Hanukkah). Baruque era lido em alta voz nas sinagogas do séc. IV d.C.,
como atestam as Constituições Apostólicas. De Tobias e Judite temos
midrachim ou comentários em aramaico, que atestam como tais livros eram
lidos na sinagoga.
Lição 3: História do Cânon do Novo Testamento
O catálogo dos livros do Novo Testamento também foi objeto de dúvidas
na Igreja antiga, mas hoje é unanimemente reconhecido por católicos e
protestantes. Os livros controvertidos e, por isto, chamados deuterocanônicos do
Novo Testamento são os seguintes: Hb, Ap, Tg, 2Pd, Jd, 2/3 Jo. Vejamos o
porquê das hesitações:
Hebreus: a carta não indica nem autor nem destinatários. Os cristãos
orientais a tinham como paulina, ao passo que os ocidentais não. Entre os
latinos, em meados do séc. III, os novacianos rigoristas (que ensinavam haver
pecados irremissíveis) valiam-se de Hb 6,4-8 para propor sua tese errônea. Por
isto, os autores ortodoxos relegaram Hebreus para o esquecimento até a segunda
metade do séc. IV, quando S. Ambrósio e S. Agostinho a reconsideraram. Hoje
todos os cristãos a reconhecem como carta canônica (= Palavra de Deus),
embora reconheçam que não é diretamente da autoria de S. Paulo.
Apocalipse: nos primeiros séculos discutia-se a autoria joanéia deste
livro entre os orientais. Também ocorria que uma facção dita "milenarista"
apelava para Ap 20,1-15 a fim de afirmar um reino milenar e pacífico de Cristo
sobre a terra antes da consumação da história. Por isto o Apocalipse foi objeto de
suspeitas, que cederam ao reconhecimento unânime no séc. IV.
Tiago: também foi discutida a autoria deste escrito, que, além do mais,
parecia contradizer a S. Paulo em Rm e Gl; a fé sem as obras seria morta (cf. Tg
2,14-24). Prevaleceu, porém, a consciência de que é escrito canónico,
perfeitamente conciliável com S, Paulo: ao passo que este afirma que a fé sem
obras (sem méritos do indivíduo) basta para entrarmos na amizade com Deus
(ninguém compra a amizade), S. Tiago quer dizer que ninguém persevera na
graça se não pratica boas obras ou se não vive de acordo com a fé.
Portanto, São Paulo trata do ingresso na amizade com Deus, São Tiago trata da
perseverança na mesma.
Judas: também foi discutida a autoria desta carta. Ademais cita os
apócrifos "Assunção de Moisés" (v. 9) e "Apocalipse de Henoque" (v. 14s)- o
que a tornou suspeita. Este fato, porém, nada significa, porque S. Paulo cita os
escritores gregos Epímênides e Aratos, em Tt 1,12 e At 17,28 respectivamente,
sem que Tt e At tenham sido excluídos do cânon por causa disto.
A 2Pd, as 2/3Jo também foram controvertidas nos três primeiros séculos
por motivos de pouca monta. - A 2Pd aparentemente é uma reedição ampliada de
Jd; por isto, terá sofrido a sorte deste escrito. As 2/3Jo, sendo bilhetes pequenos,
de pouco conteúdo teológico, nem sempre foram consideradas canônicas.
Como dito, porém, em 393 o Concílio de Hipona definiu o cânon
completo da Bíblia, incluindo os sete escritos controvertidos ou
deuterocanônicos do Novo Testamento.
Em conclusão: a própria Bíblia não define o seu catálogo. Portanto, este
só pode ser depreendido mediante a Tradição (= transmissão) oral, que de
geração em geração foi entregando os livros sagrados ao povo de Deus,
indicando-os, ao mesmo tempo, como livros inspirados e, por conseguinte,
canônicos. Essa tradição oral viva fala até hoje pelo magistério da Igreja, que
não é senão o eco autêntico da Tradição oral.
São palavras do Concílio do Vaticano II: "Pela Tradição torna-se
conhecido à Igreja o cânon completo dos livros sagrados. As próprias Sagradas
Escrituras são, mediante a Tradição, cada vez mais profundamente
compreendidas e se fazem, sem cessar, atuantes. Assim o Deus que outrora
falou, mantém um permanente diálogo com a Esposa de seu dileto Filho, e o
Espírito Santo, pelo qual a voz viva do Evangelho ressoa na Igreja..., leva os
fiéis a toda verdade e faz habitar neles copiosamente a Palavra de Cristo" (Dei
Verbum n° - 8).
Bibliografia:
HARRINGTON, WILFRID, Chave para a Bíblia. Ed. Paulinas 1985.
ARENHOVEL, DIEGO, Assim se formou a Bíblia. Ed. Paulinas 1978.
PERGUNTAS
1) Exponha o significado de "cânon, canônico, protocanônico,
deuterocanônico, apócrifo".
2) Por que a Bíblia dos protestantes não tem sete livros que a Bíblia dos
católicos tem? Exponha a história completa.
3) Há livros deuterocanônicos no Novo Testamento? Por que foram
discutidos alguns livros?
Escreva suas respostas em folhas à parte, e mande-as, com o nome e o
endereço do(a) Cursista, para: CURSOS POR CORRESPONDÊNCIA, Caixa
Postal 1362, 20001-970 Rio de Janeiro (RJ).
ESCOLA "MATER ECCLESIAE"
CURSO BÍBLICO POR CORRESPONDÊNCIA
1a ETAPA: INTRODUÇÃO GERAL À BÍBLIA
MÓDULO III: HISTÓRIA DO TEXTO
SAGRADO
Lição 1: A Escrita Bíblica
Três são as línguas bíblicas:
1) O hebraico, no qual foram escritos todos os livros protocanônicos do
Antigo Testamento;
2) o aramaico, língua vizinha do hebraico, falada pelos arameus, que
eram bons comerciantes na Mesopotâmia, na Ásia Menor e nas costas do
Mediterrâneo; por isto a sua língua se tornou o idioma comercial internacional
como também a língua dos diplomatas e das chancelarias. Em aramaico foram
redigidos trechos de livros protocanônicos do Antigo Testamento, como Esdr
4,8-6,18; 7,12-26; Dn 2,4-7,28; uma frase em Jr 10,11 e duas palavras em Gn
31,47; além disto, também o original de S. Mateus (hoje perdido);
3) o grego, em que foram redigidos os livros do Novo Testamento (de Mt
temos uma tradução grega antiga), Sb, 2Mc. Além disto, os livros e fragmentos
deuterocanônicos do Antigo Testamento cujos originais se perderam, encontram-
se em tradução grega: 1Mc, Jt, Tb, algumas secções de Daniel (Dn 3,24-90; 13-
14) e os acréscimos de Ester recolhidos desordenadamente em Est 10,4-16,24
(da Vulgata Latina).
O texto do Eclesiástico encontra-se em situação especial. Apresenta-se
como tradução grega do original hebraico; ver Prólogo, vv. 15-35. O texto
original hebraico se perdeu desde os tempos de S. Jerônimo († 420);