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TOXICOLOGIA AULA 2 Profª Rachel Picada Bulcão 2 CONVERSA INICIAL Olá, alunos! Nesta aula, abordaremos diversos pontos ligados à toxicocinética e à toxicodinâmica: • Conceitos de toxicocinética; • Etapas da toxicocinética; • Toxicocinética versus farmacocinética; • Conceitos de toxicodinâmica; • Mecanismos de toxicidade. Bons estudos! TEMA 1 – CONCEITOS DE TOXICOCINÉTICA Toxicocinética é o percurso dos xenobióticos no organismo, caracterizado pelos parâmetros farmacocinéticos ou toxicocinéticos, condicionado por um conjunto de fenômenos associados ao respectivo processo de absorção, distribuição, metabolização (biotransformação) e excreção (ADME). A capacidade que os agentes tóxicos (AT) possuem de atravessar barreiras biológicas, assim como as afinidades físicas e químicas para diferentes tecidos ou proteínas, influencia a cinética dos compostos. Aliado a isso, os transportadores de membrana e os mecanismos enzimáticos presentes em órgãos como fígado, intestino, pulmões e rins, podem alterar de modo acentuado a disposição e atividade dos AT (Dinis-Oliveira et al., 2018). Eventualmente as substâncias podem se tornar tóxicas, ao ocorrer a formação de metabólitos ativos (reativos, bioativos), num processo denominado bioativação. Por outro lado, a capacidade de eliminar os metabólitos formados por via renal, pulmonar ou intestinal, é determinante para o processo de desintoxicação dos organismos. No entanto, as interações que ocorrem entre os agentes e seus metabólitos, seja pela interferência nos respectivos processos de transporte, seja na capacidade de metabolizar os mesmos, no caso de inibição ou indução enzimática, podem originar igualmente reações adversas. 3 1.1 Conceitos utilizados com frequência na toxicocinética Toxicocinética é o estudo da relação entre a quantidade de um toxicante que atua sobre um organismo vivo e a concentração deste no sangue, relacionando os processos de absorção, distribuição, biotransformação e eliminação da substância, em função do tempo. Alguns conceitos utilizados com frequência são: • Via: influencia na potência e velocidade de aparecimento dos efeitos; • Duração e frequência da exposição: dose única, repetida, aguda, subaguda, subcrônica, crônica; • Biodisponibilidade: quantidade que alcança a corrente circulatória; • Meia-vida plasmática: tempo para decrescer 50% do agente; • Absorção: contato da substância química com o corpo até sua entrada na circulação. • Volume de distribuição (VD): forma como os agentes tóxicos se distribuem no organismo. O VD é influenciado pela ligação às proteínas plasmáticas, as quais diminuem a distribuição do agente para o compartimento plasmático. Quanto mais a substância atinge tecidos menos perfundidos (tecido adiposo etc.), maior o seu VD. • Biotransformação: processo que modifica estruturalmente o agente tóxico em derivados mais ou menos tóxicos. Ocorre principalmente no retículo endoplasmático liso das células hepáticas. A maioria das substâncias torna-se menos tóxica, porém, existem os bioativos que possuem toxicidade aumentada após metabolização. • Excreção: eliminação da substância química do organismo. A principal via de excreção dos toxicantes e de seus metabólitos é pelos rins, porém, as substâncias também são eliminadas nas fezes, no suor, no ar expirado e no leite materno. • Depuração corpórea: refere-se à taxa de eliminação/concentração das substâncias. Medida do volume de plasma a partir do qual a substância química é depurada por unidade de tempo. A depuração total é a soma das depurações da excreção renal, metabolismo hepático e excreção por meio do suor, das fezes e do ar expirado. 4 TEMA 2 – ETAPAS DA TOXICOCINÉTICA A fase da toxicocinética é caracterizada pela ação que o organismo exerce sobre o toxicante – agente tóxico (AT). Atua em quatro etapas consecutivas: absorção, distribuição, metabolismo (biotransformação) e excreção. Vários fatores podem influenciar o processo de disposição dos toxicantes no organismo. Por exemplo, pode ocorrer a não absorção, o toxicante pode se depositar em um tecido de armazenamento ou o metabolismo pode reduzir sua toxicidade. Os processos de absorção, distribuição, biotransformação (metabolização) e excreção são meramente didáticos, uma vez que estão inter-relacionados e acontecem ao mesmo tempo (Dorta et al., 2018). Diversos fatores contribuem para alterações na resposta aos agentes, como diferença de gênero, massa corporal, idade, patologias prévias, interação entre as substâncias que podem alterar o curso destas no organismo, dentre outros. É importante salientar, que quando o organismo entra em contato com algum AT, na fase de exposição, existem barreiras que precisam ser transpostas. Todos os AT que atingem a circulação sistémica cruzam as membranas, exceto os que são introduzidos diretamente no sangue. Os principais mecanismos de transporte através das membranas são a difusão passiva, a difusão facilitada e o transporte ativo. • Difusão passiva: método utilizado pela maioria dos compostos, influenciado pela diferença de concentração no interior e no exterior das membranas e a facilidade com que as moléculas de xenobióticos atravessam as membranas, seja pelo grau de ionização, pela lipofilicidade do composto ou pelo seu tamanho. • Difusão facilitada: esse processo requer a participação de uma proteína carreadora, e pode ocorrer tanto contra, com gasto de energia, quanto a favor do gradiente de concentração. • Transporte ativo: além de participar do processo de absorção do AT, o transporte ativo é essencial à regulação do suprimento de nutrientes ao organismo. Ocorre gasto de energia, pois a entrada dos AT vai contra o gradiente de concentração, sendo uma via de transporte saturante, envolvendo carreadores proteicos. 5 2.1 Absorção Pode ser definida como a passagem do agente do meio externo para o meio interno, atravessando membranas biológicas. Os principais locais de absorção são o trato gastrointestinal (TGI), os pulmões e a pele. Não há mecanismos especiais para os xenobióticos, os quais utilizam os mesmos processos dos nutrientes. Mesmo sendo o TGI e os pulmões órgãos internos do organismo, seus conteúdos são considerados externos à circulação. Outras vias, assim como as parenterais, podem também ser meios de introdução de substâncias químicas que, dependendo da dose e das condições do indivíduo, podem produzir toxicidade, com desfechos graves (Dinis-Oliveira et al., 2018). 2.1.1 Fatores que influenciam a absorção • Características das membranas biológicas; • Propriedades físico-químicas dos agentes; • Gradientes de concentração; • Mecanismos de transferência; • Vias e sistemas de exposição. 2.1.2 Tipos mais comuns de absorção em toxicologia • Absorção pelo trato gastrintestinal (TGI) ou oral: uma vez no TGI, o toxicante poderá ser absorvido desde a cavidade oral até o reto, principalmente por difusão passiva. O TGI é muito importante para absorção de xenobióticos, pois estão presentes nos alimentos e, ainda, pode ser via comum em tentativas de suicídio. Os ácidos fracos não se ionizam em meio ácido, como o do estômago, sendo assim absorvidos na mucosa gástrica, enquanto as bases fracas por não se ionizarem no pH intestinal, são absorvidas no local (Leite; Amorim, 2003). • Absorção dérmica: a pele íntegra é uma barreira efetiva contra a penetração de xenobióticos. Entretanto, em certas ocasiões e dependendo de alguns fatores, podem ser absorvidos por essa via. Os AT podem ser absorvidos sistemicamente, principalmente, através das células epidérmicas ou folículos pilosos, caso ultrapassem as muitas camadas de células até atingir os capilares sanguíneos (Dinis-Oliveira et 6 al., 2018). Substâncias lipofílicas são maisabsorvidas do que as hidrofílicas. A absorção dérmica pode ser influenciada e é influenciada de diversas formas, por exemplo, quando houver algum tipo de lesão aumentando a permeabilidade na área danificada, conforme a hidratação da pele e o aumento da temperatura também influenciam, aumentando a absorção. • Absorção pulmonar (inalatória): diversas substâncias químicas podem ser absorvidas pelos pulmões, incluindo gases, vapores e material particulado. A absorção de gases e vapores é diferente de aerossóis, e o local de deposição dos aerossóis influenciará seu grau de absorção. A maioria das intoxicações ocupacionais é decorrente da inalação de substâncias contidas no ar ambiente, as quais são absorvidas, tanto nas vias aéreas superiores quanto nos alvéolos, e quanto maior a hidrossolubilidade da substância, mais ela ficará retida na parte superior do trato. Pode ocorrer ainda combinação química entre agente tóxico e elementos do sangue, como ocorre em casos de intoxicação por monóxido de carbono (CO), em que há fixação entre o CO e a hemoglobina em razão da afinidade química entre eles (Oga, 2014). 2.2 Distribuição Os xenobióticos são transportados pelo sangue e pela linfa para os diversos tecidos. O processo de distribuição é condicionado por diversos fatores, como características físicas e químicas dos compostos, mecanismos de passagem pelas membranas, ação dos transportadores, entre outros (Dinis- Oliveira et al., 2018). Após a entrada na corrente sanguínea, através da absorção ou por administração direta, o AT estará disponível para ser distribuído pelo organismo e, na maioria das vezes, essa distribuição ocorrerá rapidamente. A velocidade e a extensão da distribuição dependerão do fluxo sanguíneo e da facilidade com que o AT atravessa as membranas. A distribuição ocorre de maneira não uniforme, principalmente devido à sua afinidade por diferentes tecidos e à presença de barreiras. O equilíbrio é atingido mais facilmente nos tecidos mais perfundidos, como coração, cérebro e fígado, seguido pelos menos irrigados: ossos, unhas, tecido adiposo, e assim por diante. 7 O destino destes AT pode ser o órgão alvo de toxicidade ou os locais de armazenamento, como fígado, rim e cérebro, onde ocorrerá a biotransformação. A distribuição é realizada pelas proteínas plasmáticas, majoritariamente a albumina, onde o AT não tem ação, diferentemente da fração livre, em que a substância exerce ação tóxica sobre o organismo. Salienta-se também que nem sempre o local de maior distribuição é o órgão mais lesado, podendo este funcionar apenas como depósito. Por outro lado, o acúmulo do AT no tecido de depósito pode conferir toxicidade. 2.2.1 Barreiras biológicas Cada membrana biológica constitui uma barreira na passagem de substâncias químicas do sangue para os tecidos. As principais são a barreira que separa o compartimento sanguíneo do sistema nervoso central, chamada de barreira hematoencefálica, e a barreira do feto, chamada de barreira placentária. Ambas são dotadas de transportes ativos de absorção e fluxo que protegem o SNC e o feto da ação de substâncias químicas exógenas. 2.2.2 Armazenamento O tecido adiposo é capaz de armazenar grande quantidade de xenobióticos lipofílicos, e o equilíbrio nesse tecido demora a ser estabelecido, uma vez que sua perfusão é baixa. Além do tecido adiposo, o tecido ósseo também funciona como depósito para alguns AT, que se distribuem por eles através do fluido extracelular. Existem vários exemplos de toxicantes que se depositam nos ossos, como chumbo e flúor. Alguns outros órgãos também podem funcionar como depósito de substâncias, sendo que rins e fígado possuem a metalotioneína, uma proteína que tem a capacidade de ligar metais. 2.3 Biotransformação O organismo defende-se de ações farmacológicas ou tóxicas de substâncias pelo armazenamento, biotransformação e excreção. A intensidade e duração de uma ação tóxica são determinadas, na maioria das vezes, pela velocidade de biotransformação da substância no organismo. Portanto, a biotransformação pode ser definida como o conjunto de alterações que um AT 8 sofre no organismo, com o objetivo principal de aumentar sua polaridade e facilitar sua excreção. Os AT absorvidos serão excretados pela urina, bile, fezes, ar expirado. leite, suor, lágrima ou saliva, sob forma inalterada ou modificada quimicamente. Os metabólitos eliminados por urina e fezes são polares e hidrossolúveis. Para facilitar a excreção de agentes lipofílicos e pouco polares, o organismo os transforma em substâncias mais polares e hidrossolúveis (Oga, 2014). Portanto, toda alteração que ocorre na estrutura química das substâncias no organismo é chamada de biotransformação, podendo ser catalisada por enzimas. A biotransformação também reduz a possibilidade de um AT desencadear toxicidade, diminui a quantidade dele no tecido e sua permanência no organismo. No entanto, pode ocorrer ativação ou bioativação dos agentes tóxicos, sendo o metabólito gerado ativo, com efeito igual ou maior do que o seu precursor. O principal órgão metabolizador é o fígado, seguido de intestino, rins, pulmões, pele, testículos, placenta, entre outros. 2.4 Tipos de reação O maior objetivo da etapa de metabolização é transformar os xenobióticos em moléculas mais simples e mais fáceis de serem eliminadas. Após as reações de biotransformação, as substâncias tendem a ser mais hidrossolúveis e com menor atividade biológica. Essas reações podem ser classificadas em duas categorias: reação de fase 1 e reação de fase 2. Recentemente foram descobertas e classificadas mais duas novas fases, a fase 0 e a fase 3. 2.4.1 Reações de fase 1 (catalíticas) Geram metabólitos ativos ou inativos: • Oxidação; • Redução; • Hidrólise. As reações de fase 1 envolvem redução, oxidação (Redox) e hidrólise; conferem polaridade aos xenobióticos por expor ou inserir grupamentos sulfi- drila, hidroxila, amina ou carboxila, que resultam em aumento da hidrofilicidade. 9 Esses metabólitos podem conferir maior toxicidade do que o composto original pelo caráter eletrofílico, nucleofílico ou radicalar que adquirem. Nessa condição, podem ser mais tóxicos do que o composto original e o processo é chamado de bioativação (Oga et al., 2014). 2.4.2 Reações de fase 2 (sintéticas) Geram principalmente metabólitos inativos: • Conjugação com a glutationa e com aminoácidos; • Glicuronidação; • Sulfatação; • Acetilação; • Metilação. As reações de fase 2 são caracterizadas pela incorporação de cofatores endógenos a moléculas provenientes das reações de fase 1. Essa cascata de reações ocorre na maioria das vezes, mas há exceções, como a morfina, a heroína e a codeína, que sofrem diretamente conjugação com ácido glicurônico. As reações de fase 2 consistem das sintetases, responsáveis pela síntese de cofatores, e das transferases, que catalisam a transferência dos mesmos (Oga et al., 2014). 2.4.3 Fatores que alteram a biotransformação • Indutores enzimáticos: aceleram a biotransformação; reduzem a intensidade e duração do efeito. • Inibidores enzimáticos: aumentam a T1/2 e a duração do efeito; aumentam o risco de toxicidade. • Exceção para pró-tóxicos: indutores reduzem a latência e intensificam o efeito; inibidores aumentam a latência e reduzem o efeito. 2.5 Excreção Processo inverso à absorção, pois fatores que interferem na entrada do xenobiótico podem dificultar sua saída. A excreção pode ser dividida em eliminação por meio das secreções; eliminação por meio das excreções; e 10 eliminação pelo ar expirado. O processo mais importante para a toxicologia é a excreção renal (Oga, 2014). 2.5.1 Excreção renal Eliminação dos produtos finais da biotransformação pelos rins, os quais utilizam três mecanismos: filtração glomerular, secreção tubular e difusãotubular passiva. Apenas substâncias não ligadas às proteínas plasmáticas podem ser filtradas, pois ultrapassam o limite de tamanho do poro, sendo impedida a sua passagem. 2.5.2 Excreção fecal A fração do AT não absorvida é o primeiro componente quantitativo da excreção fecal. Somada à fração não absorvida, há excreção biliar, em que metabólitos formados pelo fígado são diretamente excretados pela bile. Nas fezes são encontrados, além de AT não absorvidos, como inseticida Paraquat e Curare, produtos de biotransformação de diversas substâncias procedentes do fígado, via biliar. Há evidências da passagem do sangue diretamente para o intestino por difusão passiva (Dorta et al., 2018). 2.5.3 Excreção pulmonar As substâncias gasosas e voláteis são excretadas principalmente pelos pulmões. Exemplo disso são os etilômetros, utilizados para determinação de álcool no sangue (proporção entre quantidade de álcool eliminada e pressão de vapor) (Dinis-Oliveira et al., 2015). Na absorção, o fator limitante de excreção para compostos altamente solúveis no sangue é a ventilação (respiração), enquanto para os pouco solúveis é a perfusão (circulação) (Dinis-Oliveira et al., 2015). 2.5.4 Outras Substâncias químicas podem ser excretadas também por outras vias, como suor, saliva, lágrimas e Ieite. Essas vias são dependentes de pH diferente entre o sangue e as glândulas ou tecidos, do pKa das substâncias, da presença de transporte ativo, da lipossolubilidade etc. 11 TEMA 3 – TOXICOCINÉTICA VERSUS FARMACOCINÉTICA Cabe chamar a atenção para as principais diferenças entre os processos farmacocinéticos e toxicocinéticos, pois não podem ser encarados apenas como uma questão de extrapolação de dose. As doses tóxicas são mais altas que as doses terapêuticas, podendo ocorrer saturação dos processos cinéticos, fixação ou armazenamento de toxicantes em tecidos, ossos, pelos, unhas, dentre outros. Além disso, estudos farmacocinéticos são realizados em plasma e urina; na toxicocinética se utiliza também sangue total, vísceras e fâneros. Semelhante à farmacocinética, a toxicocinética permite avaliar matematicamente os movimentos dos toxicantes no organismo. 3.1 Toxicocinética: paralelismo com a farmacocinética • Absorção, distribuição, biotransformação e excreção dos compostos potencialmente tóxicos. • Principais vias de entrada dos compostos no organismo e consequências na sua absorção e distribuição. • Distribuição dos AT: órgãos e/ou tecidos utilizados como depósito. Salientando a importância na seleção das amostras biológicas para análise. • Biotransformação: reações de Fase I e reações de Fase II (detoxificação e bioativação dos AT). • Excreção: principais vias, influência da faixa etária e do estado patológico, dentre outros fatores. • Intoxicações múltiplas: interação entre compostos; indução e inibição enzimática. • Biomarcadores de exposição e de efeito: caracterização do AT para prevenção da doença. TEMA 4 – CONCEITOS DE TOXICODINÂMICA A toxicodinâmica, terceira fase da intoxicação, considera as interações dinâmicas dos xenobióticos com alvos biológicos e seus respectivos efeitos tóxicos decorrentes, procurando descrever como dado composto tóxico lesa as células e os tecidos. 12 A toxicodinâmica está relacionada com o estudo dos mecanismos de ação dos agentes tóxicos, um dos aspectos mais relevantes da toxicologia moderna. Pode ser definida ainda, como a relação entre a concentração e o efeito de um dado agente tóxico, com ênfase nos mecanismos de ação subjacentes. Ou seja, está intimamente relacionada ao estudo dos mecanismos de toxicidade. Por outro lado, o efeito toxicodinâmico pode ser revertido ou modificado por diversos fatores, por exemplo, mecanismos de reparação do DNA ou mecanismos compensatórios de reparação celular. É importante ressaltar que tanto os fatores toxicocinéticos quanto os toxicodinâmicos são determinantes na ação tóxica de um xenobiótico. A toxicocinética e a toxicodinâmica de um dado composto tóxico não são mutuamente exclusivas, no sentido de que os efeitos que um AT desencadeia em nível fisiológico, bioquímico e ou molecular são dependentes não apenas do seu mecanismo de ação e de sua relação dose-resposta, mas também da disponibilidade e toxicocinética do composto. Os mecanismos de toxicidade são muitos, e cada vez mais os estudos estão direcionados para suas descobertas. Deve-se levar em consideração que muitas vezes mais de um mecanismo pode ser responsável pela toxicidade de uma substância, ou que elas ocorram ao mesmo tempo ou sequencialmente. Outro fato importante são as múltiplas exposições, em que mais de um composto pode atuar ao mesmo tempo, podendo esta interação tanto aumentar quanto diminuir a toxicidade. O aumento pode estar relacionado à adição, sinergismo ou potencialização. Já a redução pode ocorrer por antagonismo. • Efeito aditivo (adição): efeito final é igual à soma dos efeitos de cada composto envolvido. • Efeito sinérgico (sinergismo): efeito final é maior do que a soma dos efeitos de cada composto isolado. • Potencialização: efeito final de um composto é aumentado quando combinado a outro. • Antagonismo: efeito final do composto é reduzido, inativado ou eliminado quando combinado a outro. 13 TEMA 5 – MECANISMOS DE TOXICIDADE O entendimento do mecanismo molecular e bioquímico de xenobióticos, bem como do local específico de sua ação, é de grande importância para a aplicação de medidas preventivas e terapêuticas de intoxicação (Oga, 2014). 5.1 Interação de agente tóxico com receptores Receptores são elementos sensoriais no sistema de comunicações químicas que coordenam a função de todas as células no organismo. São constituídos por macromoléculas ou partes delas, situadas nas membranas celulares, no citoplasma ou no núcleo. Fisiologicamente, a estimulação de receptores é feita por um agonista que promove efeitos biológicos característicos. As respostas desencadeadas pelos órgãos são rápidas ou lentas, dependendo da estrutura molecular e dos mecanismos de transdução envolvidos. Por exemplo, a atropina e a escopolamina se ligam ao receptor muscarínico nos sistemas nervosos central e autônomo bloqueando a ação da acetilcolina (Oga et al., 2014). 5.2 Interferências nas funções de membranas excitáveis A manutenção e estabilidade das membranas excitáveis são essenciais à fisiologia normal dos tecidos. As substâncias químicas podem alterar a função das membranas por vários meios. Por exemplo, o fluxo de íons através de axônio neuronal pode ser bloqueado pelas substâncias que agem como bloqueador do canal de íons. É o caso do bloqueio de canais envolvidos na liberação da acetilcolina nas terminações do axônio neuronal, que medeia as contrações dos músculos esqueléticos, dentre outros efeitos. Nesse processo de transmissão de informação nervosa para as fibras musculares, a liberação de acetilcolina é precedida de vários eventos físico- químicos, caracterizados pela entrada de íons sódio e saída de potássio através de membranas (Oga et al., 2014). Os solventes orgânicos produzem depressão no SNC pelo mecanismo de alterar a fluidez das membranas, por exemplo, o álcool. Outro exemplo são as toxinas botulínicas, produzidas pelo micro-organismo Clostridium botulinum, que agem complexando irreversivelmente o axônio terminal colinérgico e, por consequência, bloqueiam a liberação de acetilcolina. 14 5.3 Inibição da fosforilação oxidativa Há compostos capazes de desenvolver efeitos adversos interferindo com a oxidação de carboidratos na síntese de Adenosina Trifósforo (ATP). Essa interferência pode ocorrer por bloqueio do fornecimento de oxigênio aos tecidos. Por exemplo, a oxidação de ferro na hemoglobina (metemoglobina) pelos nitritos também interfere com o fornecimento de oxigênio, uma vez que ametemoglobina não consegue transportar moléculas de oxigênio. A utilização de oxigênio pelos tecidos é bloqueada pelo cianeto, sulfeto e azida, por causa da sua afinidade ao citocromo oxidase (Oga et al., 2014). 5.4 Complexação com biomoléculas • Componentes enzimáticos: neste caso específico, cabe usar como exemplo, a atuação dos compostos organofosforados, do N- metilcarbamato e do cianeto. Os inseticidas fosforados inativam as enzimas colinesterases reforçando os efeitos da acecilcolina endógena. Os grupamentos fosfatos dos inseticidas fosforilam o sítio esterásico, tomando a regeneração da enzima extremamente difícil, razão pela qual esta inibição é considerada irreversível. A função enzimática fica dependendo de nova síntese de enzimas e a toxicidade é decorrente do acúmulo da acetilcolina nas terminações nervosas (Oga, 2014). • Proteínas: muitos metabólitos resultantes das reações de fase I são intermediários eletrofílicos os quais interagem com os sítios nucleofílicos das macromoléculas celulares, como das proteínas, polipeptídeos, RNA e DNA. Um exemplo é o do Paracetamol, que é oxidado na primeira fase da reação, catalisada pelo citocromo P-450, e conjugado na segunda fase, com ácido glicurônico. O metabólito tóxico é o responsável pela necrose hepática (Oga, 2014). • Lipídios: alguns processos são capazes de produzir respostas adversas sem a morte das células, porém, outros ocasionam perda de função do órgão e morte celular. Isso ocorre principalmente quando a exposição é crônica, na qual danos são recorrentes. Um dos principais mecanismos de morte celular é a peroxidação lipídica. O herbicida Paraquat possui a peroxidação lipídica como principal mecanismo de toxicidade e letalidade (Oga, 2014). 15 • Ácidos nucléicos: os sítios nucleofílicos do DNA e do RNA podem reagir com agentes eletrofílicos, provenientes, muitas vezes, da reação de fase I. 5.5 Perturbação da homeostase cálcica O cálcio é considerado um segundo mensageiro na regulação de funções intracelulares vitais para as células. A alteração na homeostase desse composto desencadeia seu influxo, sua liberação do estoque intracelular e inibição de seu efluxo pela membrana plasmática. A interferência nesses processos é um mecanismo importante na ação dos seguintes compostos: alguns íons metálicos, nitrofenóis, quinonas, dioxinas. alcanos e alcenos halogenados, dentre outros. 5.6 Formação de espécies reativas de oxigênio O mecanismo de toxicidade de oxigênio é atribuído atualmente às reações de radicais livres de oxigênio com componentes celulares. Apesar de desempenhar papel crucial nos processos biológicos normais e nas reações de oxidação e redução no nível celular, essas espécies são potencialmente lesivas. Podem romper a membrana lipoprotéica, destruir as funções enzimáticas celulares, alterar o DNA e conduzir à morte celular (Rodrigues, 1998). A injúria causada pelos radicais livres de oxigênio é comumente combatida tanto por defesas antioxidantes enzimáticas, através das enzimas superóxido dismutase, catalase e glutationa peroxidase, quanto por antioxidantes não enzimáticos, entre os quais a vitamina E, a vitamina C, o ácido úrico e a bilirrubina (Rodrigues, 1998). Por fim, a elucidação dos mecanismos básicos da toxicidade, assim como estudos sobre os fatores que modificam a intensidade da toxicidade de compostos são fundamentais ao exercício da toxicologia. A utilização desses conhecimentos, por exemplo, para desenvolvimento de antídotos e de medidas preventivas, constitui uma das principais metas dos profissionais envolvidos em investigações toxicológicas. NA PRÁTICA Boate Kiss – dois AT que podem ocasionar o óbito por asfixia, possuindo mecanismos de toxicidade e, em consequência, antídotos 16 completamente diferentes, como é o caso do monóxido de carbono e do gás cianídrico. FINALIZANDO Apresentamos brevemente alguns conceitos importantes, bem como as fases de absorção, distribuição, biotransformação e excreção envolvidas na toxicocinética da substância, e alguns mecanismos de toxicidade envolvidos no processo de intoxicação de muitas substâncias tóxicas importantes. 17 REFERÊNCIAS DORTA, D. J.; YONAMINE, M.; COSTA, J. L. da; MARTINIS, B. S. de. Toxicologia forense. São Paulo: Blucher, 2018. DINIS-OLIVEIRA, R. J.; BASTOS, M. L.; CARVALHO, F. D. Toxicologia Forense. Editora Pactor, 2015. DINIS-OLIVEIRA, R. J.; BASTOS, M. L.; CARVALHO, F. D. Toxicologia Fundamental. Editora Lidel, 2018. KLAASSEN, C. D.; WATKINS III, J. B. Fundamentos em Toxicologia de Casarett e Doull. Porto Alegre: Editora AMGH, 2012. LARINI, L. Toxicologia. 1. ed. São Paulo: Manole,1997. LEITE, E. M. A.; AMORIM, L. C. A. Toxicologia geral. Nota de aula, Faculdade de Farmácia. Universidade Federal de Minas Gerais, 2003. Disponível em: . Acesso em: 07 abr. 2021. MOREAU, R. L. M.; SIQUEIRA, M. E. P. B. Toxicologia analítica. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016. OGA, S. Fundamentos de Toxicologia. 4. ed. São Paulo: Atheneu Editora, 2014. RODRIGUES, F. P. M. Importância dos radicais livres de oxigênio no período neonatal. J. pediatr. v. 74, ano 2, Rio de Janeiro, 1998. p. 91-98. https://pesquisa.bvsalud.org/controlecancer/?lang=pt&q=au:%22Rodrigues,%20Francisco%20Paulo%20M%22