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ALFABETIZAÇÃO, LETRAMENTO E LITERATURA INFANTIL Profª Luciana Carolina Santos Zatera AULA 3 2 INTRODUÇÃO Leitura, oralidade e escrita em classes de alfabetização Nesta aula, veremos os conteúdos a serem ensinados e capacidades a serem desenvolvidas em classes de alfabetização, considerando as proposições da BNCC. Antes de mais nada, é preciso entender quais os conhecimentos necessários e de que maneira o professor pode intervir no processo de alfabetização, desde a oralidade até a leitura e a escrita. O trabalho com os diferentes gêneros textuais é fundamental e, nesse sentido, vamos propor também sequências didáticas que podem servir de exemplos para o uso em sala de aula. TEMA 1 – O QUE APRENDER EM CLASSES DE ALFABETIZAÇÃO Para a criança aprender a ler e a escrever, precisa apropriar-se do sistema de escrita alfabético, que, no caso da língua portuguesa, é baseado nos sons da fala, ou seja, nos significantes. Sendo assim, aprender a ler e escrever em nossa língua é saber “converter sons da fala em letras, ou combinação de letras – escrita –, ou converter letras, ou combinações de letras, em sons da fala – leitura” (Soares, 2016, p. 46, grifos do original). As capacidades a serem desenvolvidas nesse componente, conforme Frade e Silva (2005), de modo geral, são: • Compreender a diferença entre letras e outras formas gráficas e saber grafá-las; • Conhecer o alfabeto em diversos tipos de letras; • Escrever de cima para baixo e da esquerda para a direita e deixar espaço entre as palavras; • Reconhecer as repetições de sons como rimas, sílabas, início e final de palavras; identificar e registrar as letras que representam esses sons; • Escrever ortograficamente, usando a representação direta de sons por letras (p, b, t, d, f, v) e grafar palavras irregulares de uso frequente. Não obstante, há ainda o sistema ortográfico para ser aprendido pela criança, isto é, “o conhecimento de regras para a representação das relações regulares entre os sons da fala e as letras e [...] a aprendizagem, por 3 memorização, de relações irregulares” (Frade; Silva, 2005, p. 33). As relações fonema-letra “não são sempre unívocas, isto é, a cada letra nem sempre corresponde um mesmo fonema, a cada fonema nem sempre corresponde uma só letra” (Soares, 2020, p. 143). Por essa razão, a ortografia não será completamente dominada no período inicial da alfabetização, mas ao longo do ensino fundamental. Além desses conteúdos que estão relacionados ao domínio do sistema alfabético e ortográfico, há outros tantos a serem explorados em classes de alfabetização, como a oralidade, a cultura escrita, a leitura e a produção de textos. Vamos expor cada um deles a seguir. A oralidade diz respeito às capacidades de compreensão de textos falados por outros e à produção de textos orais em diferentes situações informais (ouvir e dar recados, escutar e compreender o que se fala, conversar espontaneamente) e formais (apresentar trabalhos, representar uma peça teatral, apresentar um jornal falado etc.). É indispensável valorizar o uso público da linguagem, a exposição de ideias e opiniões, além das variedades linguísticas. Ainda, resgatar textos da tradição oral: trava-línguas, parlendas, cantigas, quadrinhas etc. Esses textos são importantes também para o trabalho com a escrita porque as crianças os conhecem, gostam deles e, sabendo-os de cor, conseguem perceber com mais facilidade, quando os veem transcritos no quadro de giz, noções iniciais importantes como a delimitação e o tamanho de cada palavra, a escansão em sílabas, a semelhança, na fala e na escrita, entre as palavras que rimam, algumas relações entre sons e letras. (Frade; Silva, 2005, p. 31) A cultura escrita, conforme Frade e Silva (2005), refere-se aos conhecimentos, atitudes e valores construídos pelos cidadãos quando inseridos em culturas letradas. Além da leitura e da escrita propriamente ditas, esses saberes referem-se à compreensão dos gêneros textuais escritos (poemas, certidões, rótulos, anúncios, notícias etc.); dos suportes textuais (livros, cartazes, jornais etc.); das esferas de circulação dos gêneros (familiar, jornalística, escolar, científica etc.), das formas de armazenamento (bibliotecas, livrarias, internet etc.); e das formas de aquisição (compra, troca, empréstimo). O componente leitura remete à decifração e à compreensão. As seguintes capacidades estão envolvidas nesse processo: fazer antecipações acerca do que será lido, por meio de pistas como o título, as imagens, a estrutura 4 do texto; confirmar as hipóteses levantadas; relacionar as partes do texto, buscando compreensão; relacionar o texto lido com outras leituras etc. No tocante à produção de textos, é essencial criar diversas situações de escrita, desenvolvendo diferentes capacidades: “definir para que se escreve e para quem se escreve; planejar a escrita relacionando-a às intenções e ao tema proposto; organizar o texto conforme o gênero textual escolhido (carta, bilhete, conto, lista etc.); usar as convenções da escrita para tornar o texto legível para o leitor” (Frade; Silva, 2005, p. 39). Na alfabetização, as produções de texto coletivas são muito produtivas. Ao questionar as crianças sobre questões como a finalidade do texto que está sendo produzido, como iniciá-lo, que nível de linguagem utilizar, que letras usar para grafar determinadas palavras etc., elas vão aprendendo as convenções de escrita, as características dos gêneros textuais e a adequação da linguagem a cada situação de comunicação. Para Frade e Silva (2005, p. 43-44): Havendo motivação suficiente para a produção escolar de textos autênticos, as decisões curriculares modificam-se. Será importante oferecer modelos de textos variados, através de leituras feitas pelo professor e por colegas que se encontram em níveis diferenciados; trazer para a sala de aula discussões de temas que estejam na ordem do dia, valorizar a produção oral de textos, promover situações em que seja necessário fazer o registro escrito para organização do trabalho, para apoio à memória ou para interagir com outros etc. Além dos ganhos quanto à dimensão textual e discursiva, essas atividades também favorecem a apropriação do sistema de escrita, porque é nesses contextos que problemas relativos ao conhecimento alfabético e ortográfico passam a ter mais sentido. É, portanto, na prática de produção de textos, que os problemas relacionados ao domínio do sistema alfabético e ortográfico ficarão evidentes, e será possível intervir, a fim de que a criança avance em seus conhecimentos. TEMA 2 – CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA Para a criança, em seu processo de desenvolvimento e aprendizagem, a escrita é um sistema de representação e um sistema notacional. É sistema de representação porque, segundo Soares (2016, p. 49, grifos do original), “em seu processo de compreensão da língua escrita [...], a criança [...] ‘reconstrói’ o processo de invenção da escrita como representação”, ao compreender seu processo de construção e suas regras de produção. É também um sistema notacional, pois, “ao compreender o que a escrita representa (a cadeia sonora da fala e não seu conteúdo semântico), precisa também aprender a notação com 5 que, arbitrária e convencionalmente, são representados os sons da fala (os grafemas e suas relações com os fonemas), bem como a posição desses elementos no sistema” (Soares, 2016, p. 49, grifos do original). No início do processo de alfabetização, especialmente na fase silábica, é preciso que a criança aprenda a focalizar os sons das palavras, distanciando-as de seu significado, e aprenda a segmentar as palavras nos sons que as constituem. Esse processo é denominado consciência fonológica. Soares (2016) explica que há três diferentes níveis de consciência fonológica: a lexical,a silábica e a fonêmica, conforme a Figura a seguir. Figura 1 – Níveis de consciência fonológica Fonte: elaborada com base em Soares, 2020. Segundo Soares (2020), a aprendizagem das letras está associada ao desenvolvimento da consciência fonológica. Primeiro, a criança aprende que a palavra é uma cadeia sonora representada por várias letras, entendendo a diferença entre significante e significado (consciência lexical). Depois, ela se torna capaz de segmentar a cadeia sonora da palavra em sílabas, representando-as por um conjunto de letras (consciência silábica). Por fim, identifica fonemas nas sílabas, representando-os pelas letras (consciência fonêmica). Consciência lexical •A palavra é uma cadeia de sons. •Segmentos de palavras podem ser iguais (aliterações e rimas). Consciência silábica •A palavra pode ser dividida em sílabas. Consciência fonêmica •As sílabas são formadas por pequenos sons (os fonemas). 6 Agora, vamos acompanhar alguns objetivos de trabalho com a consciência fonológica em sala de aula, destacando cada um dos diferentes níveis, bem como algumas sugestões de atividades, no quadro a seguir. Quadro 1 – Consciência fonológica Níveis de consciência fonológica Objetivos Exemplos de atividades Consciência lexical - Compreender o conceito de palavra. - Diferenciar palavras de conteúdo (substantivos, adjetivos, verbos) de palavras funcionais (conjunções, preposições, artigos). - Superar o realismo nominal (suposição de que o tamanho da palavra tem relação com o tamanho do objeto a que se refere). - Explorar rimas e aliterações entre palavras. - Mostrar que segmentos de sons iguais se escrevem com as mesmas letras. - Destacar as palavras de um texto (parlenda, quadrinha, cantiga, fábula etc.) para desenvolver atividades: da fábula O leão e o ratinho, trabalhar com os nomes dos dois animais. Contar a quantidade de letras de cada palavra e mostrar que o tamanho da palavra não tem relação com o tamanho do animal. - Brincadeira Lá vai o meu barquinho. Apresentar a dobradura de um barco e dizer que dentro dele só podem entrar palavras que comecem com o mesmo som da palavra LARANJA. Cada criança dirá uma palavra que começa com LA (aliteração). Ou então, no barco só entram palavras que terminem com ÃO, como AVIÃO (rima). Consciência silábica - Segmentar a cadeia sonora da palavra em sílabas (inicialmente, utilizando qualquer letra; depois, percebendo em cada sílaba o som que mais se destaca e escolhendo a letra que representa esse som). - Orientar a reflexão da criança sobre sua escrita silábica sem valor sonoro. - Segmentar as palavras em sílabas batendo uma palma para cada sílaba. - Andar pela sala falando uma palavra. Cada passo corresponde a uma sílaba. - Em uma folha com figuras de animais, colocar um tracinho para cada sílaba da palavra. - Pedir para que as crianças retirem a sílaba final de uma palavra. Ex.: retirar MA de MACACO, o que sobra? Retirar CO de MACACO, o 7 que sobra? Quais novas palavras formamos? - Em brincadeiras com parlendas, cantigas, trava- línguas, escrever as palavras ou textos, grifando ou separando cada sílaba à medida que escreve e lendo- as em voz alta, destacando a escrita igual de rimas e aliterações. - Ensinar músicas que apresentam o alfabeto (relacionar as letras com palavras que comecem com elas). Consciência fonêmica - Perceber a estrutura interna da sílaba. - Perceber os fonemas que as letras representam. - Desenvolver a consciência grafofonêmica: consciência das correspondências entre letras (grafemas) e fonemas. - Relacionar fonemas e letras e escrever alfabeticamente. - Identificar um fonema por estar em oposição a outro, produzindo significados diferentes1. Ex.: pata – bata; vaca – faca; fica – figa etc. - Com o alfabeto móvel, trabalhar com pares mínimos, solicitando a troca de uma letra por outra, como em mar, dar, lar, bar etc. e chamando a atenção para o fato de que a substituição de uma letra por outra (alterando também o som, ou o significante), leva à mudança de significado. - Ler em voz alta as palavras que a criança escreveu, suscitando a consciência fonêmica. Ao identificar lacunas na cadeia sonora, voltar a atenção da criança para a representação de sons da fala por letras. - A criança deve escolher a ficha onde está o nome da figura. Ex.: figura de um gato e três opções: pato, gato, rato. - Completar o nome da figura com a letra que está faltando. Ex.: figura de um galo (GA__O) e de um gato (GA__O. - Circular a figura cujo nome começa com a mesma letra 1 Esse fenômeno é chamado de par mínimo, ou seja, “duas palavras com significados diferentes cuja cadeia sonora seja idêntica exceto por um segmento na mesma posição estrutural. Um par mínimo identifica dois fonemas” (Soares, 2016, p. 195), como caça [kasa] e casa [kaza], caracterizando os fonemas /s/ e /z/. 8 do nome da primeira figura: peteca, panela, lata, cola. Fonte: elaborado com base em Soares, 2016; Soares, 2020. Como se pode notar, o desenvolvimento da consciência fonológica não se dá naturalmente; ocorrerá somente por meio de atividades que explorem rimas (palavras que terminem com o mesmo som: macarrão, coração, avião), aliterações (palavras que iniciem com o mesmo som: laranja, lata, laço), contagem de sílabas das palavras (batendo palmas, dando passos) etc. Por isso, a mediação docente é crucial nesse processo. TEMA 3 – ALFABETIZAÇÃO NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR Visando atender à exigência feita pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN 9394 (Brasil, 1996), a Base Nacional Comum - BNCC (Brasil, 2018) foi elaborada com o objetivo de garantir o conjunto de aprendizagens fundamentais aos estudantes brasileiros e seu desenvolvimento integral. Segundo a BNCC (Brasil, 2018), nos anos iniciais (1º e 2º anos) do ensino fundamental é que se espera que a criança se alfabetize, pois a alfabetização é o foco da ação pedagógica. Nesse processo: é preciso que os estudantes conheçam o alfabeto e a mecânica da escrita/leitura – processos que visam a que alguém (se) torne alfabetizado, ou seja, consiga “codificar e decodificar” os sons da língua (fonemas) em material gráfico (grafemas ou letras), o que envolve o desenvolvimento de uma consciência fonológica (dos fonemas do português do Brasil e de sua organização em segmentos sonoros maiores como sílabas e palavras) e o conhecimento do alfabeto do português do Brasil em seus vários formatos (letras imprensa e cursiva, maiúsculas e minúsculas), além do estabelecimento de relações grafofônicas entre esses dois sistemas de materialização da língua. (Brasil, 2018, p. 89-90) Desse modo, para a BNCC (Brasil, 2018), alfabetizar significa conduzir o aluno à apropriação da ortografia do português escrito do Brasil. Para isso, é necessário conhecer o funcionamento da escrita alfabética para ler e escrever, compreendendo especialmente as relações complexas entre os sons da fala e as letras. O documento baseia-se nas recentes pesquisas sobre a construção da língua escrita pela criança – como as de Emilia Ferreiro, afirmando que esse processo – a alfabetização propriamente dita –, que pode ocorrer em dois anos, será complementado por outro, mais demorado, chamado de ortografização – 9 o conhecimento da ortografia do português do Brasil. Assim, as capacidades ou habilidades envolvidas na alfabetização, de acordo esse documento, são: - Compreender diferenças entre escrita e outras formas gráficas (outros sistemas de representação); - Dominar as convenções gráficas (letras maiúsculas e minúsculas, cursiva e script); - Conhecer o alfabeto; - Compreender a natureza alfabética do nosso sistema de escrita; - Dominar as relações entre grafemas e fonemas; - Saber decodificar palavras e textos escritos;- Saber ler, reconhecendo globalmente as palavras; - Ampliar a sacada do olhar para porções maiores de texto que meras palavras, desenvolvendo assim fluência e rapidez de leitura (fatiamento). (Brasil, 2018, p. 93) Para o desenvolvimento dessas capacidades, o texto é objeto de ensino, em seus usos significativos, nas atividades de leitura, escuta e produção de textos em várias mídias e semioses. As práticas de linguagem, portanto, são organizadas em quatro eixos, conforme a Figura a seguir. Figura 2 – Eixos organizadores das práticas de linguagem na BNCC Fonte: elaborado com base em Brasil, 2018. Além da organização por eixos, a BNCC propõe outra categoria organizadora do currículo, denominada de campos de atuação, de modo Oralidade (práticas com ou sem contato face a face) Leitura/escuta (de texto escrito, imagens estáticas ou em movimento e som) Produção (escrita e multissemiótica) Análise linguística/semiótica (envolve conhecimentos linguísticos) 10 articulado à leitura/escuta, produção e análise linguística/semiótica. Nos anos iniciais do ensino fundamental e, portanto, também nas classes de alfabetização, os campos de atuação são: campo da vida cotidiana, campo artístico-literário, campo das práticas de estudo e pesquisa e campo da vida pública. Esses eixos contemplam usos variados da linguagem e contribuem para a definição de objetos de conhecimento (conteúdos) e das habilidades (objetivos) a serem desenvolvidos em cada etapa da escolarização. Vamos listar alguns exemplos de habilidades, relacionadas ao eixo análise linguística, que poderiam ser trabalhadas em sala de aula. Acompanhe o quadro a seguir. Quadro 2 – Propostas de atividades baseadas nas habilidades presentes na BNCC Objeto do conhecimento Habilidade (BNCC) Atividades propostas Construção do sistema alfabético Relacionar elementos sonoros (sílabas, fonemas, partes de palavras) com sua representação escrita. 1- Veja a figura. Faça um X na alternativa em que está escrito o nome desse animal. A) PATO B) PANELA C) PAVÃO D) PAPAI Construção do sistema alfabético e da ortografia Segmentar palavras em sílabas e remover e substituir sílabas iniciais, mediais ou finais para criar novas palavras. 2- Marque um X na alternativa em que aparece o número de sílabas da palavra BARATA. A) 6 B) 3 C) 4 D) 5 Construção do sistema alfabético e da ortografia Ler e escrever corretamente palavras com sílabas CV, V, CVC, CCV, identificando que existem vogais em todas as sílabas. 3- Veja o desenho. 11 Faça um X na alternativa em que está escrito o nome do desenho. A) AGITO B) APITO C) PALITO D) PILOTO Conhecimento das diversas grafias do alfabeto Conhecer, diferenciar e relacionar letras de forma e cursiva, maiúsculas e minúsculas. 4- Veja as palavras: BATATA - GIRAFA Faça um X na alternativa em que estão escritas as mesmas palavras lidas acima. A) Batata – Girafa B) BATATA – GARRAFA C) Barata – GELATINA D) BALEIA – geladeira Fonte: elaborado com base em Brasil, 2018. Créditos: vectorlab2D/ Shutterstock; julio chaniago 76/Shutterstock. Além de questões como essas apresentadas no Quadro, que focalizam a codificação e a decodificação, há outras habilidades descritas na BNCC relacionadas à leitura, oralidade e escrita que contemplam práticas de letramento e acompanham os demais anos do ensino fundamental. TEMA 4 – O SISTEMA GRÁFICO DO PORTUGUÊS No início do processo de alfabetização, a criança se apoia na sua fala para realizar seus registros, mas, aos poucos, é imprescindível que ela evolua para uma escrita ortográfica. Oliveira (2005) esclarece que ela deve passar de uma fase inicial – com caráter de código, baseada na fala, procurando representar concretamente os sons na escrita, deixando-a muito próxima de uma escrita fonética, mas distante da escrita ortográfica oficial – para uma fase final, com base na língua, abstrata e com caráter de representação. 12 Vamos, portanto, detalhar como funciona o sistema gráfico do português, de modo a auxiliar os aprendizes a mover-se, conforme Oliveira (2005, p. 39), “de um sistema de representação calcado na fala para um sistema de representação calcado na língua”. Para isso, precisamos conhecer os símbolos fonéticos, que representam os sons vocálicos e consonantais do português. Quadro 3 – Símbolos fonéticos do português Símbolos fonéticos Exemplos Símbolos fonéticos Exemplos Símbolos fonéticos Exemplos [p] pata, sapato. [ v ] vazio, cavalo. [ m ] macaco, camisola. [b] baleia, lobo, abraço. [ s ] seu, céu, máximo, piscina, pais, voz, exceto, nasça, calçada. [ n ] nata, canavial, nudez. [t] tábua, pacote, trator. [ z ] zelo, exercício, azul, casa. [ ɲ ] ninho, nhoque, manhã. [d] adocicado, dado. [ ʃ ] chuva, caixa, achado, xícara. [ l ] lilás, laranja, canela. [k] cama, química, coisa. [ʒ] gentil, jacaré, ajudar. [ ʎ ] calha, milho. [g] gata, gueto, gorila. [t ʃ ] tio, time, leite (dialeto mineiro, por exemplo). [ h ] porta, rato, cachorro. [f] cafezal, festa, fritura. [d ʒ] dia, verde, ande (dialeto mineiro, por exemplo) [ ɾ ] barata, fraco, cratera, maravilhoso. [ i ] viola, idade, neve. [ a ] fato, bola, abacaxi. [ ɛ ] café, leva, pega. [ u ] luta, tatu, tato. [ e ] telha, escola. [ o ] bolo, avô. [ ɔ ] bola, avó, volta. ~ [ I ] vinda, hino, capim. [ ~ ] e pente, ema, renda [ õ ] onda, bomba, goma [ ~ ] u fundo, fuma, atum. [ ã ] canta, andorinha, manhã. [ w ] Brasil, mau, mal, altura. [ y ] pai, vai, foi. Fonte: elaborado com base em Oliveira, 2005. Segundo Faraco (2012, p. 122), “a língua portuguesa tem uma representação gráfica alfabética com memória etimológica”. O princípio geral da escrita alfabética é que cada fonema é representado por um grafema e cada grafema representa um fonema. Entretanto, por conta da memória etimológica, as formas gráficas de certas palavras são fixadas não só pelas unidades sonoras, mas também por sua origem – grega, latina, tupi etc. Por isso, a relação 13 grafema e fonema não será sempre regular, surgindo, assim, as representações arbitrárias – que irão gerar dificuldades para o alfabetizando. A grande vantagem é que as representações regulares são a maioria. Também que a grafia é, de certo modo, neutra em relação à pronúncia. A palavra leite, por exemplo, pode ser falada de vários modos, mas a forma de grafar é única e não representa diretamente nenhuma das pronúncias possíveis. Há dois tipos de relações possíveis no sistema gráfico do português entre unidades sonoras e unidades gráficas: as relações biunívocas e as cruzadas. As biunívocas são relações totalmente regulares, ou seja, “a unidade gráfica (letra ou dígrafo) representa uma e só aquela unidade sonora; e a unidade sonora é representada por uma e só aquela unidade gráfica” (Faraco, 2012, p. 131). Veja o quadro a seguir. Quadro 5 – Relações biunívocas Unidade sonora Unidade gráfica Exemplo / p / p palhaço, arrepio, prato, apto. / b / b bolacha, abajur, abrir, obter. / f / f foto, bafo, fritura, afta. / v / v violento, chave, livro. / ɲ / nh ninho, nhoque, rainha. / t / t pacote, taco, trabalho. / d / d doce, adoçante, drástico, advogado. / ʎ / lh milho, lhama, palhaçada. Fonte: elaborado com base em Faraco, 2012. Nas relações cruzadas, de acordo com Faraco (2012, p. 128), por sua vez, “uma unidade sonora tem mais de uma representação gráfica possível”, como ocorre com /ã/, que pode ser representada por ã (irmã), am (samba) ou an (manga), ou “uma unidade gráfica representa mais de uma unidade sonora”, como é o caso da letra r, que pode ser forte em rato e fraca em barata. Vamos acompanhar o quadro a seguir, que exemplifica essas relações. 14 Quadro 6 –Relações cruzadas Relações cruzadas Unidade sonora Unidade gráfica Exemplos Previsíveis /m/; /n/; /r/; /l/ /R/ /k/ /g/ m; n; r (fraco); l rr; r (forte) c; qu g mata, caneta, barata, lago. carro, rato, amor, honra. casa, coração, queijo, quarto, adequo, tranquilo. gota, guloso, grato, água, guerra. Parcialmente previsíveis e parcialmente arbitrárias / ʒ / /z/ /s/ j; g z; s; x s; x; c; z; ç; ss; sc; x; xc jacaré, jeito, jiló, jogo, justo, gente, girafa. azar, mesma, mesa, exato. sapato, balas, pista, texto, certo, gás, giz, caçar, pássaro, nascer, máximo, excelente. Totalmente arbitrárias / ʃ / x; ch caixa, xale, chalé, chuva, enxuto, abacaxi. Fonte: elaborado com base em Faraco, 2012. Como se pode notar, o som /s/ é bastante produtivo na língua portuguesa e, em várias situações, suas representações gráficas são arbitrárias, o que dificulta a apreensão da ortografia correta por parte dos aprendizes iniciantes. Contudo, Faraco (2012) aconselha trabalhar, inicialmente, com as formas regulares. Depois, aos poucos, introduzir as arbitrárias, com a forma global da palavra e com as respectivas famílias, evitando as mais raras. Nas séries iniciais, faz mais sentido trabalhar com a memorização das palavras de uso frequente e, nas séries mais avançadas, promover maior reflexão acerca das regularidades e arbitrariedades da língua. TEMA 5 – GÊNEROS TEXTUAIS E SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS PARA A ALFABETIZAÇÃO Bakhtin (2000, p. 279) definiu gêneros do discurso como “tipos relativamente estáveis de enunciados”, isto é, “modos de dizer” (orais, escritos, multissemióticos) que usamos em nosso dia a dia para interagirmos em sociedade. Esses tipos de enunciados não são totalmente estáveis porque sofrem modificações com o passar do tempo e de acordo com o uso que fazemos deles. Por exemplo, a carta pessoal é um gênero textual pouco usado atualmente, devido ao avanço da tecnologia digital. Hoje temos meios mais 15 eficientes e rápidos que substituíram esse gênero, como o e-mail, as mensagens via celular etc. Concomitantemente, os gêneros têm certa estabilidade, pois, ao contrário disso, teríamos de criar um gênero novo cada vez que precisássemos interagir. Há, em circulação, formas previamente definidas, às quais recorremos cada vez que precisamos falar ou escrever. Se preciso registrar por escrito observações acerca de um aluno que está sendo avaliado por uma equipe especializada para diagnosticar algum problema específico de aprendizagem, escolherei o gênero relatório para escrever essas observações. Não utilizarei uma história em quadrinhos, um poema ou uma receita para realizar tal tarefa. Há gêneros mais maleáveis (os literários, por exemplo) e outros mais rígidos (como os documentos oficiais). Contudo, os gêneros possuem três características comuns, citadas por Bakhtin (2000): conteúdo temático, construção composicional e estilo. O conteúdo temático refere-se àquilo que pode ser dito em determinado gênero. A construção composicional diz respeito à organização do texto, isto é, à forma de dizer o que diz. Já o estilo refere-se à seleção que o autor faz dos recursos disponibilizados pela língua para produzir seu texto. Além dessas características, é importante destacar a função social dos gêneros textuais, pois, como afirma Marcuschi (2002), os gêneros se caracterizam por suas funções comunicativas e devem ser compreendidos em seus contextos de uso. Marcuschi (2002) colabora ainda para a distinção entre tipos e gêneros textuais, pois é muito comum a confusão entre esses dois termos. Tipos são sequências textuais por meio das quais se constrói um texto. Um conto, por exemplo, pode ser construído predominantemente por sequências narrativas, caracterizadas pelas ações das personagens. Mas também pode conter sequências que descrevem o tempo, o espaço, as personagens. Assim, em um texto, pertencente a um gênero, pode haver mais de um tipo textual. Os tipos textuais, segundo Marcuschi (2002), são bastante restritos. Há narração, descrição, injunção, exposição e argumentação. Já os gêneros são praticamente incontáveis, devido a sua imensa variedade. Os gêneros, por cumprirem diferentes funções, de acordo com cada situação comunicativa, são objeto de estudo nas classes de alfabetização. Sendo assim, vamos, na próxima seção, verificar como é possível tratá-los didaticamente, em sala de aula. 16 5.1 Sequências didáticas em classes de alfabetização O trabalho diário com gêneros textuais facilita o processo de alfabetização e letramento, pois, por meio de textos, é possível explorar leitura, interpretação, escrita e análise linguística, contemplando tanto o processo de alfabetização como o de letramento. Para esse trabalho, sugerimos o uso de sequências didáticas para a prática com gêneros textuais, conforme propõem os estudiosos suíços Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), baseados em uma concepção interacionista e dialógica de linguagem, divulgada pelo Círculo de Bakhtin. Definindo sequência didática como “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”, Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 97) apresentam uma forma de auxiliar os alunos a dominarem melhor um gênero textual, especialmente aqueles pouco acessíveis a eles, como os gêneros de esferas2 públicas. Para a realidade brasileira dos anos iniciais do ensino fundamental, Baumgärtner e Costa-Hübes (2007) apresentam uma adaptação dessa proposta, conforme figura a seguir: Figura 3 – Sequência didática para os anos iniciais Fonte: elaborada com base em Baumgärtner; Costa-Hübes, 2007. Para exemplificar esse modelo de sequência didática, especificamente para as classes de alfabetização, apresentamos uma proposta de atividade para o primeiro ano do ensino fundamental, utilizando o gênero adivinhas. 2 Esfera discursiva ou domínio discursivo refere-se a estâncias que oportunizam a manifestação de discursos específicos, de acordo com Marcuschi (2002). Ex.: discurso jurídico, jornalístico, religioso, literário etc. Apresentação da situação Reconhecimento do gênero Produção textual 17 Quadro 7 – Sequência didática com o gênero “adivinhas” Apresentação da situação Motivar a turma para a participação da Semana do Folclore, em agosto. O primeiro ano ficará responsável por confeccionar uma caixa de adivinhas e convidará as crianças de outras turmas para sortear uma adivinha, ler e tentar descobrir a resposta. Reconhecimento do gênero - Adivinhas ou adivinhações são perguntas e respostas de humor, com conteúdo dúbio ou desafiador e, quase sempre, subentendido. - Começa com “O que é, o que é?”. - É formulado como uma pergunta, marcada pelo ponto de interrogação. - Possui uma resposta convencionada. - Apresenta um desafio. - É considerado um gênero folclórico, portanto, dificilmente sabemos quem é o autor de cada adivinha. - É criado e aceito; passa a ser repetido entre as gerações, fazendo parte do domínio público. - Seu objetivo é lúdico (fazer rir) e provoca reflexões por meio de enigmas. - Oralidade: apresentar a seguinte adivinha aos alunos: O QUE É, O QUE É? QUANDO PARTE UMA, PARTE OUTRA, QUANDO CHEGA UMA, CHEGA OUTRA. (Resposta: as pernas) - Anotar no quadro as respostas dadas pelos alunos e verificar sua coerência. - Questioná-los sobre o nome desse gênero textual e por que tem esse nome. - Mostrar como começa toda adivinha (O que é, o que é?). - Perguntar se conhecem outras adivinhas. - Solicitar uma pesquisa em casa sobre outras adivinhas. - Dentre as adivinhas trazidas pelas crianças, selecionar as que farão parte da caixa de adivinhas. - Trazer diferentes adivinhas para a sala de aula e escrevê-las em cartazes e afixá-los na parede. - Fazer a leitura das adivinhas diariamentee motivar os alunos a tentar descobrir a resposta. - Escrita: selecionar a seguinte adivinha para trabalhar com atividades de sistematização da escrita: O QUE É, O QUE É? É VERDE, MAS NÃO É PAPAGAIO FALA, MAS NÃO TEM BOCA. (Resposta: quadro de giz verde) - Atividades: 1- Escreva o nome de cada figura abaixo: (figura de uma boca) (figura de um quadro de giz) (figura de um papagaio) 2- Observe e palavra QUADRO. Na adivinha encontramos palavras com Q? Quais? 18 3- Pesquise em revistas palavras que iniciem com a letra Q e cole-as abaixo. 4- Qual a letra que sempre aparece depois da letra Q nas palavras? 5- Pinte as duas letras que aparecem depois do Q. Ex.: QUEIJO – QUIBE – QUATI 6- Leia as palavras a seguir e classifique-as de acordo com o som inicial: QUIABO – som de /KI/ QUADRO – som de /KWA/ QUEIJO – som de /KE/ Obs.: Somente no “QUA” a letra U é pronunciada. Produção textual - As adivinhas selecionadas para compor a caixa de adivinhas podem ser copiadas pelas crianças em pequenos cartões. - As respostas podem ser escritas em cartões separados e ilustradas pelas crianças para apresentarem ao participante. Exemplo: O que é, o que é? Cai de pé e corre deitada? No cartão- resposta, o aluno escreve CHUVA e faz um desenho que represente essa resposta. Fonte: elaborado com base em Costa-Hübes, 2007. As sequências didáticas organizadas desse modo proporcionam ao aluno diversas situações que envolvem o contato com textos representantes do gênero que se deseja abordar, por meio da oralidade/escuta, leitura e análise linguística. 19 REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo, Martins Fontes, 2000. BAUMGÄRTNER, C. T.; COSTA-HUBES, T. da C. (Org.). Sequência didática: uma proposta para o ensino da língua portuguesa nas séries iniciais. Caderno Pedagógico 2. Cascavel: Assoeste, 2007. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. 2018. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2023. BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2023. COSTA-HÜBES, T. da C. (Coord.). Sequência didática: uma proposta para o ensino de língua portuguesa nas séries iniciais. Caderno Pedagógico 1. Cascavel: Assoeste, 2007. DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. e org. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. FARACO, C. A. Linguagem escrita e alfabetização. São Paulo, Contexto, 2012. FRADE, I. C. A. da S. Métodos e didáticas de alfabetização: história, características e modos de fazer de professores: caderno do professor. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2023. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. OLIVEIRA, M. A. de. Conhecimento linguístico e apropriação do sistema de escrita: caderno do formador. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. Disponível em: 20 . Acesso em 13 mar. 2023. SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. 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