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<p>DR. EMERAN MAYER</p><p>A LIGAÇÃO</p><p>CÉREBRO-INTESTINO</p><p>Tradução de</p><p>Soraia Martins</p><p>info@almadoslivros.pt</p><p>www.almadoslivros.pt</p><p>facebook.com/almadoslivrospt</p><p>instagram.com/almadoslivros.pt</p><p>© 2022</p><p>Direitos desta edição reservados</p><p>para Alma dos Livros</p><p>The Mind-Gut Connection: How the Hidden Conversation Within Our Bodies</p><p>Impacts Our Mood, Our Choices, and Our Overall Health</p><p>© 2021 by Emeran Mayer, MD</p><p>Publicado por acordo com Harper Wave,</p><p>uma chancela de HarperCollins Publishers.</p><p>Título: A Ligação Cérebro-Intestino</p><p>Título original: The Mind-Gut Connection:</p><p>How the Hidden Conversation Within Our Bodies Impacts Our Mood,</p><p>Our Choices, and Our Overall Health</p><p>Autor: Emeran Mayer</p><p>Tradução: Soraia Martins</p><p>Revisão: André Carvalho</p><p>Paginação: Maria João Gomes</p><p>Capa: Vera Braga/Alma dos Livros</p><p>Imagens de capa: Shutterstock</p><p>Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.</p><p>Depósito legal: 502 175/22</p><p>1.ª edição: setembro de 2022</p><p>Todos os direitos reservados.</p><p>Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada</p><p>ou reproduzida em qualquer forma sem permissão</p><p>por escrito do proprietário legal, salvo as exceções</p><p>devidamente previstas na lei.</p><p>Este livro contém conselhos e informação relacionada com cuidados de saúde. Deverá ser usado</p><p>para complementar e não substituir o aconselhamento do seu médico ou qualquer outro profissional</p><p>de saúde. Se tem a certeza ou desconfia de que tem um problema de saúde, recomenda-se que</p><p>procure o aconselhamento de um médico antes de se aventurar num programa ou tratamento médico.</p><p>Foram feitos todos os esforços para garantir a exatidão da informação presente neste livro até à data</p><p>de publicação.</p><p>A editora e o autor renunciam à responsabilidade por quaisquer resultados médicos que possam</p><p>ocorrer ao serem aplicadas as metodologias sugeridas neste livro. Os nomes e características</p><p>identificadoras dos indivíduos referidos neste livro foram alterados para proteger a sua privacidade.</p><p>Para Minou e Dylan</p><p>pelo incentivo constante para</p><p>dar ouvidos ao meu instinto.</p><p>Para o meu mentor, John H. Walsh,</p><p>que alimentou o meu interesse pelas comunicações</p><p>entre o intestino e o cérebro.</p><p>D</p><p>PREFÁCIO</p><p>esde a primeira publicação de A Ligação Cérebro-Intestino, no</p><p>verão de 2016, que tenho vindo a falar com todo o tipo de público,</p><p>de leigos a académicos, na América e na Europa, sobre as</p><p>interações entre o cérebro e o intestino e o impacto da saúde intestinal na</p><p>nossa saúde mental e física. Além disso, tenho-me encontrado com muitos</p><p>leitores interessados em saber mais sobre como esta ciência emergente pode</p><p>melhorar o nosso bem-estar geral e, para alguns, a qualidade de vida diária.</p><p>Muitos destes indivíduos eram pacientes que reconheceram os próprios</p><p>sintomas ou os dos seus filhos nas histórias que partilho no livro. Alguns</p><p>procuravam conselhos sobre como tirar partido das mais recentes</p><p>descobertas sobre o microbioma para aliviar sintomas digestivos, melhorar</p><p>a ansiedade ou a depressão ou abrandar a progressão de doenças</p><p>neurológicas como a doença de Parkinson. Outros eram executivos da</p><p>crescente indústria da biotecnologia ou da indústria alimentar em busca de</p><p>orientação para adaptarem os seus produtos de forma a estes promoverem a</p><p>saúde do microbioma.</p><p>Estes acontecimentos convenceram-me de que o suposto «eixo cérebro-</p><p>intestino-microbioma» e o seu impacto na disposição e na saúde se tornou o</p><p>assunto do dia. Todos os dias, cada vez mais literatura científica apresenta</p><p>provas de que perturbações na interação entre o cérebro e o intestino têm</p><p>consequências para inúmeras patologias, de problemas como sensibilidades</p><p>alimentares e doenças gastrointestinais funcionais a transtornos</p><p>psiquiátricos, como depressão e adição alimentar, passando também por</p><p>distúrbios neurológicos, tais como Perturbação do Espectro do Autismo,</p><p>doença de Alzheimer e doença de Parkinson. Ainda que algumas destas</p><p>ideias e hipóteses sobre perturbações neurológicas específicas sejam</p><p>especulativas, algumas são já sustentadas por estudos bem concebidos</p><p>conduzidos em seres humanos.</p><p>A título de exemplo, no pouco tempo desde que este livro foi lançado,</p><p>foram publicados quatro estudos que demonstram claramente uma alteração</p><p>na composição microbiana intestinal em pacientes com depressão crónica.</p><p>No entanto, é importante sublinhar que a maioria dos estudos realizados em</p><p>seres humanos revelaram, até agora, apenas associações entre alterações na</p><p>composição microbiana intestinal e diagnósticos específicos, sem provas de</p><p>uma relação causal. Por outras palavras, não sabemos se as transformações</p><p>observadas no microbioma intestinal nestas doenças são a causa da</p><p>respetiva doença ou consequência de um distúrbio neurológico, de</p><p>alterações nos padrões alimentares devido à doença ou de uso de</p><p>medicação. Contudo, é evidente que existe uma relação entre microbioma e</p><p>função cognitiva. Estão a ser feitos estudos bem concebidos para determinar</p><p>uma potencial causalidade e identificar novos alvos para o tratamento de</p><p>distúrbios neurológicos comuns.</p><p>Dos diversos aspetos da comunicação entre o cérebro e o microbioma</p><p>intestinal abordada neste livro, aquele que mais feedback e questões me faz</p><p>chegar é o tópico da nutrição. Só depois de começar a conversar com</p><p>leitores me apercebi do quão desafiante se tem tornado para pessoas que</p><p>têm cuidados com a saúde determinarem que alimentos devem ingerir.</p><p>Tendo em conta a quantidade de informação e de dietas disponíveis –</p><p>muitas com mensagens contraditórias –, como decidir que estilo é melhor?</p><p>Existe um crescente número de livros e de sites que promovem estas</p><p>mensagens antagónicas baseadas, supostamente, nos mais recentes estudos</p><p>científicos e, muitas vezes, estas mensagens estão ligadas a sites para</p><p>comprar suplementos alimentares, incluindo prebióticos e probióticos.</p><p>Como é que alguém consciente da sua saúde decide se é melhor consumir</p><p>uma combinação de dez estirpes diferentes («cuidadosamente</p><p>selecionadas») de probióticos (conforme recomendado em vários sites) ou</p><p>se é importante comprar um probiótico com mais de 40 mil milhões de UFC</p><p>(unidades formadoras de colónias)? Apesar da informação fornecida online,</p><p>incluindo avaliações na Amazon (a maioria das quais provém de anúncios</p><p>pagos), não há, surpreendentemente, quaisquer evidências científicas que</p><p>comprovem muitas destas alegações. Se um paciente confuso se dirigir ao</p><p>seu médico em busca de conselhos, é provável que fique desiludido. A</p><p>maioria dos profissionais de saúde não está a par da ciência do microbioma</p><p>em exponencial evolução nem têm formação para fornecer aconselhamento</p><p>nutricional comprovado cientificamente.</p><p>Ao focar-me nos efeitos nocivos da dieta moderna norte-americana em O</p><p>Cérebro e o Intestino, tornou-se óbvio para mim que uma dieta rica em</p><p>hidratos de carbono complexos de origem vegetal (entre uma grande</p><p>variedade de plantas diferentes), gordura de origem vegetal, alimentos de</p><p>fermentação natural, peixe e pobre em carnes vermelhas, gordura de origem</p><p>animal, açúcares refinados e alimentos processados é o ponto de partida</p><p>para muitas dietas saudáveis em todo o mundo. Melhor ainda, se</p><p>adicionarmos os benefícios dos polifenóis (moléculas com efeitos benéficos</p><p>para a saúde processadas pela microbiota intestinal) presentes no azeite e no</p><p>vinho tinto, alguns produtos de origem vegetal com efeitos anti-</p><p>inflamatórios, como a curcuma, a curcumina e o gengibre, assim como um</p><p>número elevado de alimentos fermentados ricos em micro-organismos,</p><p>temos um roteiro simples para uma dieta benéfica para os micróbios</p><p>(aumenta a diversidade, a abundância e as populações de micróbios</p><p>promotores da saúde), benéfica para o intestino (reduz a permeabilidade</p><p>intestinal) e benéfica para o cérebro (previne a ativação da resposta</p><p>imunológica de inflamações de baixo grau no cérebro). Como cientista,</p><p>raramente renuncio ao meu ceticismo profissional perante novas alegações</p><p>de benefícios de qualquer tratamento. Contudo, no que diz respeito a</p><p>recomendações alimentares e de estilo de vida baseadas na nova ciência do</p><p>microbioma cérebro-intestino, estou aberto a deixar o meu</p><p>ao cérebro já havia descartado a existência de um</p><p>tumor.</p><p>O diagnóstico da mãe de Bill pesquisado na Internet estava, de facto,</p><p>correto: ele sofria de síndrome de vómitos cíclicos. O mais lamentável era</p><p>que, apesar de os médicos terem falhado repetidamente o diagnóstico,</p><p>chegar ao diagnóstico correto foi simples, e a mãe, sem qualquer formação</p><p>médica, encontrou-o na Internet.</p><p>Não é preciso sofrer dos sintomas incapacitantes da síndrome de vómitos</p><p>cíclicos para confirmar o conhecimento limitado que muitos profissionais</p><p>de saúde têm em relação a reações intestinais que correram mal e a</p><p>consequente ausência de terapêuticas eficazes. Cerca de 15% das pessoas</p><p>nos Estados Unidos sofrem de sintomas ou síndromes desencadeadas por</p><p>problemas de interações alteradas entre o cérebro e o intestino, incluindo</p><p>SII, azia funcional ou dispepsia funcional. No entanto, aqueles que não se</p><p>deixam abater por sensações intestinais desagradáveis devem ter</p><p>consciência de que não têm de sofrer de nenhuma destas perturbações para</p><p>que as reações ocorram.</p><p>A síndrome de vómitos cíclicos é um dos exemplos mais calamitosos de</p><p>reações que deram para o torto, mas não é o único. Interações alteradas</p><p>entre o cérebro e o intestino podem ter efeitos poderosos em todos nós.</p><p>O PEQUENO CÉREBRO NO INTESTINO</p><p>Imagine que saiu para jantar com um bom amigo. O empregado de mesa</p><p>acabou de lhe servir um rib eye médio/malpassado e você está deliciado</p><p>com a refeição à sua frente. Deixo-lhe aqui um breve resumo do que</p><p>acontece no momento em que leva o primeiro pedaço de bife à boca – mas</p><p>evite falar sobre o que se segue durante o jantar. Mesmo antes de mastigar e</p><p>engolir a sua comida, o estômago enche-se de ácido clorídrico concentrado,</p><p>que chega a ser tão corrosivo como ácido de bateria. Quando os pedaços</p><p>parcialmente mastigados de carne chegam lá, o estômago exerce uma força</p><p>tão intensa que consegue dividi-los em pequenas partículas.</p><p>Entretanto, a vesícula e o pâncreas preparam o intestino delgado para a</p><p>sua tarefa ao injetarem bílis e uma variedade de outras enzimas digestivas</p><p>para ajudar a assimilar a gordura. Quando o estômago passa as pequenas</p><p>partículas de bife para o intestino delgado, as enzimas e a bílis decompõem-</p><p>nas em nutrientes que o intestino consegue absorver e transferir para o resto</p><p>do organismo.</p><p>À medida que a digestão avança, os músculos das paredes intestinais</p><p>executam um padrão distinto de contrações musculares com o nome de</p><p>peristalse, que desloca os alimentos para baixo ao longo do trato digestivo.</p><p>A força, extensão e direção da peristalse depende do tipo de alimentos</p><p>ingeridos, assegurando que o intestino tem mais tempo para absorver</p><p>gordura e hidratos de carbono complexos e menos tempo para um</p><p>refrigerante, por exemplo.</p><p>Ao mesmo tempo, partes das paredes intestinais contraem para guiar os</p><p>alimentos para o revestimento do intestino delgado, onde os nutrientes são</p><p>absorvidos. No intestino grosso, ondas de contrações peristálticas</p><p>movimentam o conteúdo de um lado para o outro para permitir que o órgão</p><p>extraia e absorva 90% da água nos conteúdos intestinais. Outra onda intensa</p><p>movimenta o conteúdo em direção ao reto, desencadeando, habitualmente,</p><p>vontade de ir à casa de banho.</p><p>Entre refeições, uma onda mais lenta, denominada complexo mioelétrico</p><p>migratório, desempenha o papel de «governanta» do intestino, varrendo</p><p>tudo o que o estômago não conseguiu dissolver ou decompor em pedaços</p><p>suficientemente pequenos, tais como medicamentos não dissolvidos e</p><p>amendoins não mastigados. Esta onda viaja lentamente do esófago ao reto a</p><p>cada 90 minutos, gerando pressão suficiente para partir uma noz e expulsar</p><p>micróbios inconvenientes do intestino delgado para o cólon. Ao contrário</p><p>do reflexo peristáltico, esta onda atua apenas quando já não há alimentos no</p><p>trato gastrointestinal que possam ser digeridos – quando estamos a dormir,</p><p>por exemplo – e desliga-se assim que damos a primeira dentada no</p><p>pequeno-almoço.</p><p>O intestino consegue coordenar tudo isto e muito mais sem qualquer ajuda</p><p>do cérebro ou da medula espinal, e não são os músculos que compõem a</p><p>parede do intestino que sabem fazê-lo. Em vez disso, gerir a digestão é, em</p><p>grande parte, um trabalho do sistema nervoso entérico (SNE), uma rede</p><p>extraordinária de 50 milhões de células nervosas embrulhadas à volta do</p><p>intestino, do esófago até ao reto. Este «segundo cérebro» pode ser mais</p><p>pequeno do que o seu homólogo de quase 1,5 kg na nossa cabeça, mas a</p><p>digestão é a sua praia.</p><p>Michael Gershon, ilustre anatomista e especialista em biologia celular no</p><p>Centro Médico da Universidade de Columbia, na cidade de Nova Iorque,</p><p>nos EUA, pioneiro no estudo do papel da serotonina do intestino e autor do</p><p>popular livro The Second Brain, gosta de mostrar um clipe de vídeo que</p><p>revela a capacidade do sistema nervoso entérico funcionar de forma</p><p>independente. No vídeo, uma secção do intestino de um porquinho-da-índia</p><p>repousa num banho de fluído, conseguindo impulsionar uma pellet de</p><p>plástico de um lado do intestino para o outro sem qualquer ligação ao</p><p>cérebro. É muito provável que o intestino humano consiga também</p><p>funcionar desta forma.</p><p>É extraordinário que todas estas funções digestivas complexas estejam</p><p>coordenadas de forma autónoma através de circuitos programados –</p><p>ligações anatómicas entre milhões de células nervosas – no sistema nervoso</p><p>entérico e que tudo isto seja realizado sem grande ajuda do cérebro ou do</p><p>resto do sistema nervoso central, desde que tudo corra como esperado.</p><p>Por outro lado, o cérebro emocional pode arruinar praticamente todas</p><p>estas funções aparentemente autónomas. Se o jantar não correr bem e</p><p>começar a discutir com o seu amigo, a espantosa função trituradora de carne</p><p>do estômago desliga-se de imediato e, em vez disso, inicia uma série de</p><p>contrações espásticas que impedirão o esvaziamento adequado do mesmo.</p><p>Metade daquele bife delicioso ficará no estômago sem ser digerido. Algum</p><p>tempo depois de sair do restaurante, ainda sentirá espasmos no estômago</p><p>que o manterão acordado. Como ainda tem comida no estômago, as</p><p>contrações migratórias noturnas não acontecem, impossibilitando a limpeza</p><p>do intestino. Em doentes como Bill, que têm um eixo cérebro-intestino</p><p>hiperativo logo à partida, estímulos emocionais ou relacionados com</p><p>stresse, que não causarão grandes danos num indivíduo saudável, podem</p><p>inibir sobremaneira a peristalse e até revertê-la, ao mesmo tempo que</p><p>provoca contrações espásticas no cólon. É como se os pontos definidos no</p><p>sistema de alerta do cérebro estivessem desligados, desencadeando falsos</p><p>alarmes frequentes com consequências devastadoras para o seu bem-estar.</p><p>BALAS E REAÇÕES INTESTINAIS</p><p>Desde sempre que os seres humanos sentem emoções através do intestino</p><p>e, ao longo dos anos, muitos indivíduos curiosos tentaram saber mais sobre</p><p>este fenómeno. Quando William Beaumont, cirurgião militar, se viu perante</p><p>a oportunidade de descobrir mais acerca da ligação cérebro-intestino em</p><p>1822, não hesitou.</p><p>Eram os primeiros dias de verão, e Beaumont tinha sido destacado para o</p><p>Fort Mackinac, na ilha de Mackinac, no estado americano do Michigan, nas</p><p>margens superiores do lago Huron. Um comerciante de peles, Alexis St.</p><p>Martin, havia sido acidentalmente atingido com um mosquete a menos de</p><p>um metro de distância. Quando o Dr. Beaumont o viu pela primeira vez,</p><p>meia hora após o acidente, St. Martin tinha um buraco do tamanho de uma</p><p>mão humana na zona superior esquerda do abdómen. Ao observar o</p><p>ferimento, Beaumont conseguia ver o estômago, que tinha um buraco</p><p>grande o suficiente para caber um dedo indicador.</p><p>Os excelentes cuidados cirúrgicos de Beaumont salvaram a vida de St.</p><p>Martin, mas não foi possível fechar completamente o ferimento do</p><p>estômago, fazendo com que este desenvolvesse uma fístula gástrica – um</p><p>buraco permanente no estômago que ficava exposto para o exterior. Depois</p><p>de St. Martin recuperar, já não conseguia trabalhar como comerciante de</p><p>peles, por isso, quando Beaumont foi recolocado do Michigan para Fort</p><p>Niagara, no estado de Nova Iorque, contratou St. Martin</p><p>para trabalhar com</p><p>a sua família como um faz-tudo interno, e os dois tornaram-se uma equipa</p><p>inusitada de investigador e objeto de estudo.</p><p>Não tardou até Beaumont se tornar a primeira pessoa na História a</p><p>observar a digestão humana em tempo real. Conduziu uma experiência em</p><p>St. Martin que consistia em atar pequenos pedaços de carne de vaca cozida,</p><p>couve crua, pão seco e outros alimentos a um fio de seda e «pendurá-los»</p><p>no estômago de St. Martin, puxando-os em diferentes momentos para</p><p>analisar como o «suco gástrico» digeria a comida. As experiências eram</p><p>difíceis e desconfortáveis para St. Martin, que, por vezes, ficava</p><p>incomodado e chateado. Beaumont concluiu, ao observar diretamente as</p><p>mudanças que ocorriam na atividade gástrica de St. Martin, que a</p><p>irritabilidade desde abrandava a digestão. Desta forma, Beaumont tornou-se</p><p>o primeiro cientista na História a relatar que as emoções podem influenciar</p><p>a atividade do estômago.</p><p>As emoções não só têm impacto no estômago como em todo o trato</p><p>digestivo. Como relatado na Weeks, em 1946, um médico militar, a</p><p>trabalhar no terreno durante a Segunda Guerra Mundial, observou um</p><p>soldado que havia sofrido lesões profundas em combate na parede do</p><p>abdómen, expondo enormes porções do intestino delgado e grosso. Os</p><p>médicos perceberam que, quando os compatriotas feridos deste soldado</p><p>começaram a chegar à mesma enfermaria, deixando-o ainda mais</p><p>transtornado, o movimento nos intestinos delgado e grosso tornou-se mais</p><p>ativo.</p><p>Demorou quase vinte anos até estas observações mais gráficas das</p><p>ligações entre o cérebro e o intestino se transformarem em estudos</p><p>científicos em laboratório. Nos anos 1960, Thomas Almy, um gastro-</p><p>enterologista de renome da Escola de Medicina da Faculdade de Dartmouth,</p><p>em New Hampshire, examinou um número extenso de pacientes sob</p><p>condições mais controladas. Almy conduziu entrevistas de grande carga</p><p>emocional a indivíduos saudáveis e a pacientes com SII, monitorizando a</p><p>atividade do cólon de ambos os grupos. Quando os indivíduos reagiam com</p><p>hostilidade e agressividade, os cólones contraíam de imediato, ao passo que,</p><p>quando se sentiam desesperados, desajustados ou se autorrecriminavam, os</p><p>cólones contraíam mais lentamente. Mais tarde, outros cientistas</p><p>confirmaram estes resultados e concluíram que a atividade do cólon</p><p>aumentava apenas quando os temas discutidos eram pessoalmente</p><p>relevantes para os participantes.</p><p>Atualmente, os cientistas concordam que o cérebro está programado para</p><p>ligar as emoções que sentimos todos os dias a respostas corporais</p><p>específicas. E, na hora da verdade, essa programação comanda as nossas</p><p>reações intestinais.</p><p>Aqui está a analogia que gosto de usar nos meus pacientes para ajudá-los</p><p>a compreender as interações entre o cérebro, o sistema nervoso entérico e o</p><p>intestino.</p><p>Imagine que se aproxima um furacão. O governo federal não envia</p><p>instruções de emergência individualmente a cada cidadão. Em vez disso,</p><p>envia apenas a uma rede de agências locais, que transmitem e implementam</p><p>os planos, se necessário. Na ausência de uma ameaça grave, como uma</p><p>catástrofe natural, estas agências conseguem gerir as coisas sozinhas. No</p><p>entanto, quando uma diretiva específica é enviada pelo governo federal</p><p>durante uma emergência, muitas das atividades rotineiras, a acontecerem a</p><p>nível local, são anuladas. Assim que a ameaça passa, o país regressa</p><p>rapidamente às atividades usuais.</p><p>Do mesmo modo, o sistema nervoso entérico consegue gerir todos os</p><p>desafios habituais relacionados com a digestão. Contudo, quando nos</p><p>apercebemos de uma ameaça e nos sentimos com medo ou zangados, o</p><p>centro emocional do cérebro não envia instruções individuais para cada</p><p>uma das células no trato gastrointestinal. Em vez disso, os circuitos</p><p>emocionais do cérebro enviam sinais ao sistema nervoso entérico para</p><p>desviá-lo da sua rotina diária. O sistema digestivo volta ao controlo local</p><p>assim que a emoção passa.</p><p>O cérebro implementa estes programas motores no intestino através de</p><p>vários mecanismos, libertando hormonas do stresse, como cortisol e</p><p>adrenalina (conhecida também como epinefrina) e enviando sinais nervosos</p><p>ao sistema nervoso entérico. O cérebro envia dois conjuntos de sinais</p><p>nervosos: os que estimulam a função intestinal (transportados pelos nervos</p><p>parassimpáticos, incluindo o nervo vago) e os que inibem (os nervos</p><p>simpáticos). Normalmente ativados em conjunto, os dois canais nervosos</p><p>fazem um trabalho extraordinário de ajuste, aperfeiçoamento e coordenação</p><p>das atividades do sistema nervoso entérico para moldar a atividade</p><p>intestinal de forma a esta refletir uma emoção específica.</p><p>Há um vasto elenco de células especializadas a dar o litro sempre que as</p><p>emoções se apresentam no palco que é o intestino. Os atores incluem vários</p><p>tipos de célula intestinal, células do sistema nervoso entérico e os 100</p><p>biliões de micróbios do intestino – e as harmonias emocionais são</p><p>responsáveis pela alteração do seu comportamento e das conversas</p><p>químicas. Os enredos alternam ao longo do dia e incluem histórias</p><p>negativas e positivas. Por um lado, há preocupação com os filhos, irritação</p><p>quando o veículo na outra faixa se mete à nossa frente na autoestrada,</p><p>ansiedade quando nos atrasamos para uma reunião, medo de despedimentos</p><p>e stresse financeiro.</p><p>Por outro, há também um abraço do nosso mais-que-tudo, palavras</p><p>simpáticas de um amigo ou uma refeição agradável em família. Apesar de</p><p>termos aprendido bastante sobre as reações intestinais associadas a emoções</p><p>negativas como raiva, mágoa e medo, não sabemos praticamente nada sobre</p><p>reações intestinais a emoções positivas, como amor, criação de laços e</p><p>felicidade. Será que o cérebro evita interferir com as atividades do sistema</p><p>entérico nervoso quando está tudo bem? Ou envia um conjunto distinto de</p><p>sinais nervosos que refletem o nosso estado de felicidade? E que efeito</p><p>teriam esses sinais felizes nos micróbios e na sensibilidade do intestino ou</p><p>na digestão de uma refeição? O que acontece no intestino quando nos</p><p>sentamos para celebrar em família a licenciatura de um filho ou nos</p><p>sentimos incrivelmente serenos num retiro de meditação? Estas são</p><p>questões importantes às quais a ciência terá de responder se quisermos</p><p>compreender o impacto das reações intestinais no nosso bem-estar.</p><p>Para algumas pessoas, os espetáculos representados no intestino incluem</p><p>mais thrillers e histórias de terror do que comédias românticas. Células</p><p>intestinais numa pessoa cronicamente zangada ou ansiosa, seguindo um</p><p>guião que começou na infância, podem interpretar enredos sombrios dia</p><p>após dia. A maioria destas células nestas pessoas adaptam-se, ao longo do</p><p>tempo, para acomodar as indicações cénicas: as ligações nervosas no</p><p>sistema entérico nervoso mudam, os sensores no intestino tornam-se mais</p><p>sensíveis, os dispositivos de produção de serotonina aumentam a</p><p>velocidade, e até os micróbios intestinais se tornam mais agressivos. Não</p><p>admira que os cientistas, quando estudam o intestino em pacientes com</p><p>perturbações gastrointestinais funcionais, perturbações de ansiedade,</p><p>depressão ou autismo, encontrem alterações na estrutura e comportamento</p><p>de muitos destes intervenientes. A literatura científica está repleta de</p><p>observações deste foro. Contudo, as terapias em desenvolvimento</p><p>direcionadas a este tipo de alterações do intestino não têm conseguido</p><p>oferecer alívio sintomático para pacientes com estas perturbações.</p><p>Por outro lado, esperar-se-ia que, ao mudarmos o guião do cérebro para</p><p>algo mais positivo, com o objetivo de alterar as reações intestinais,</p><p>revertendo, assim, as mudanças celulares no intestino, fosse mais promissor.</p><p>Estão a ser desenvolvidos estudos para determinar se as alterações</p><p>microbiais no intestino estão associadas a intervenções positivas na mente,</p><p>tais como hipnose e meditação, e se estas mudanças levarão a melhorias de</p><p>sintomas em perturbações como síndrome do intestino irritável.</p><p>COMO O CÉREBRO PROGRAMA AS RESPOSTAS EMOCIONAIS</p><p>DO INTESTINO</p><p>Hoje em dia, sabemos bastante sobre como a emoção afeta o nosso corpo,</p><p>incluindo o nosso trato gastrointestinal.</p><p>Para compreendermos como</p><p>funciona, precisamos, em primeiro lugar, de conhecer o sistema límbico,</p><p>um sistema cerebral primitivo que partilhamos com outros animais de</p><p>sangue quente e que desempenha um papel importantíssimo na criação das</p><p>emoções. Nas zonas mais profundas da massa cinzenta, os circuitos</p><p>relacionados com emoções no sistema límbico são ativados sempre que nos</p><p>sentimos zangados, assustados, sexualmente atraídos por alguém ou</p><p>magoados, assim como quando temos fome ou sede.</p><p>Como um supercomputador em miniatura, estes circuitos têm como</p><p>objetivo ajustar o nosso organismo a responder de forma ideal a mudanças</p><p>no interior e no exterior do corpo. Quando deparamos com situações</p><p>perigosas, pode mudar num abrir e fechar de olhos, reorganizando</p><p>rapidamente milhares de mensagens para células individuais e órgãos do</p><p>organismo, que, por sua vez, alteram o seu comportamento de forma</p><p>igualmente rápida.</p><p>Estamos familiarizados com o que acontece a seguir. Os circuitos</p><p>cerebrais relacionados com as emoções enviam sinais ao estômago e</p><p>intestino para que se livrem de substâncias que poderão esgotar a energia</p><p>necessária para entrar em ação, fazendo com que tenha de ir à casa de</p><p>banho antes daquela apresentação importante. O sistema cardiovascular</p><p>redireciona o sangue rico em oxigénio do intestino para os músculos,</p><p>abrandando a digestão e preparando-nos para lutar (ou fugir).</p><p>Não somos os únicos no reino animal com experiências do género:</p><p>durante milhões de anos, os mamíferos tiveram de criar laços, lutar, avaliar</p><p>potenciais ameaças e, por vezes, fugir. A evolução concedeu--nos sabedoria</p><p>coletiva sobre qual a melhor maneira de responder a estas situações e</p><p>acondicionou essa sabedoria em circuitos e programas específicos que</p><p>executam automaticamente as nossas reações a ameaças. Isto poupa tempo</p><p>e energia num momento de crise porque, sem estas respostas programadas,</p><p>teríamos de estar constantemente a começar do zero. Estes programas,</p><p>conhecidos como programas de funcionamento emocional, podem ativar-se</p><p>em milissegundos, implementando um conjunto coordenado de</p><p>comportamentos que nos permitem sobreviver, prosperar e reproduzir.</p><p>Jaak Panksepp, neurocientista na Universidade de Washington State, nos</p><p>Estados Unidos, que tem feito contribuições importantes no domínio da</p><p>neurociência afetiva (que aplica neurociência ao estudo das emoções),</p><p>concluiu, por intermédio das suas experiências com animais, que o cérebro</p><p>tem, pelo menos, sete programas de funcionamento emocional que orientam</p><p>a resposta do corpo ao medo, raiva, mágoa, diversão, luxúria, amor e amor</p><p>maternal. Estes programas executam o conjunto apropriado de respostas</p><p>rápida e automaticamente, mesmo quando não sabemos que estamos a</p><p>sentir uma determinada emoção. São eles que nos fazem corar quando</p><p>sentimos vergonha, que nos dão pele de galinha quando vemos um filme de</p><p>terror, que fazem o nosso coração bater mais depressa quando sentimos</p><p>medo e que deixam o nosso intestino mais sensível quando nos sentimos</p><p>preocupados.</p><p>Os programas de funcionamento emocional estão escritos nos genes. Esta</p><p>codificação genética é, em parte, herdada dos nossos pais, bem como</p><p>influenciada por acontecimentos que ocorrem nos primeiros anos de vida.</p><p>Por exemplo, podem ter herdado genes que predispõem o vosso programa</p><p>de medo ou de raiva a exagerar em situações de stresse. Caso tenham</p><p>sofrido um trauma emocional quando eram crianças, o vosso corpo</p><p>acrescentou etiquetas químicas a estes genes importantes de resposta ao</p><p>stresse. O resultado efetivo é que, em adulto, é provável que tenha reações</p><p>intestinais exageradas ao stresse. Isto explica a observação comum de que</p><p>dois indivíduos expostos à mesma situação de stresse podem demonstrar</p><p>reações opostas: enquanto um não sofre de qualquer reação intestinal</p><p>percetível, o outro fica incapacitado por náusea, cólicas e diarreia. Ainda</p><p>que esta programação precoce para gerir problemas possa ser uma</p><p>vantagem para sobreviver num mundo perigoso, acaba por ser também uma</p><p>limitação na segurança de um ambiente protegido.</p><p>QUANDO O INTESTINO SE SENTE STRESSADO</p><p>De todos os programas de funcionamento emocional, aquele incitado por</p><p>acontecimentos stressantes está entre os mais estudados. Quando nos</p><p>sentimos ansiosos ou receosos, a resposta ao stresse está a dar o seu</p><p>máximo, tentando manter um estado de homeostasia, ou equilíbrio interno,</p><p>perante ameaças internas ou externas.</p><p>Quando falamos de stresse, normalmente referimo-nos a stresse</p><p>proveniente de pressões diárias ou de fatores mais expressivos, como</p><p>trauma ou catástrofes naturais. Mas o cérebro também considera muitos</p><p>acontecimentos corporais stressantes, incluindo infeções, cirurgias,</p><p>acidentes, intoxicações alimentares, défices de sono, tentativas de deixar de</p><p>fumar ou até algo tão natural como a menstruação.</p><p>Vamos revelar o que acontece no nosso corpo quando nos sentimos</p><p>stressados. Mas, antes disso, tem de saber mais sobre as impressionantes</p><p>capacidades do cérebro emocional, e as situações potencialmente fatais são</p><p>o melhor exemplo disso.</p><p>O cérebro ativa o programa de stresse se decidir que há uma ameaça,</p><p>orquestrando, então, a resposta mais adequada no nosso corpo, incluindo o</p><p>trato gastrointestinal. Cada um dos programas de funcionamento emocional</p><p>usa uma molécula de sinalização específica para que a libertação de uma</p><p>determinada substância no cérebro possa desencadear o envolvimento de</p><p>todo o programa com todas as consequências no corpo e no intestino. As</p><p>moléculas dedicadas do cérebro incluem algumas hormonas de que</p><p>provavelmente já ouviu falar: endorfinas, que atuam como um analgésico</p><p>no corpo e promovem um sentimento de bem-estar; dopamina, que desperta</p><p>o desejo e a motivação; e a oxitocina, também denominada de «hormona do</p><p>amor», que estimula sentimentos de confiança e de atração. Também</p><p>incluem a molécula referida anteriormente conhecida como fator libertador</p><p>de corticotropina, ou CRF, que atua como o interruptor central do stresse.</p><p>Mesmo que sejamos incrivelmente saudáveis e estejamos a relaxar na</p><p>praia, o CRF desempenha um papel fundamental no nosso bem-estar ao</p><p>regular a quantidade de cortisol produzido pelas glândulas suprarrenais.</p><p>Através das suas flutuações diárias normais, o cortisol mantém o</p><p>funcionamento do metabolismo dos hidratos de carbono, das gorduras e das</p><p>proteínas e ajuda a controlar o sistema imunitário.</p><p>No entanto, quando o programa de stresse é ativado, há um aumento</p><p>drástico no sistema de CRF e cortisol. Quando nos sentimos stressados, o</p><p>primeiro a responder no cérebro é o hipotálamo, uma pequena região</p><p>cerebral que controla todas as funções vitais e é a principal área de</p><p>produção de CRF. Através de um intermediário químico, a libertação de</p><p>CRF é seguida da ativação da glândula suprarrenal, que começa a produzir</p><p>cortisol em catadupa, aumentando, assim, o nível de cortisol na corrente</p><p>sanguínea e preparando o corpo para a exigência metabólica esperada.</p><p>Como interruptor central do stresse, o CRF libertado do hipotálamo</p><p>também se espalha para outra região do cérebro, a amígdala, que</p><p>desencadeia uma sensação de ansiedade ou até medo. Esta ativação da</p><p>amígdala revela-se no corpo através de palpitações, mãos suadas e uma</p><p>urgência em eliminar todo o conteúdo do trato gastrointestinal.</p><p>Estas alterações induzidas pelo stresse no nosso sistema digestivo podem</p><p>não parecer a forma ideal para desfrutar de uma refeição. E, de facto, não</p><p>são. A próxima vez que estiverem a ter um dia particularmente stressante,</p><p>lembrem-se de que comer muito ao almoço pode não ser a melhor opção.</p><p>Mesmo que comam quando se sentirem mais relaxados, há sempre a</p><p>hipótese de sofrerem uma reação intestinal menos agradável. Assim que o</p><p>programa emocional é acionado, os seus efeitos podem prolongar-se</p><p>durante horas – ou até anos. Os nossos pensamentos, memórias de</p><p>acontecimentos passados e expectativas para o futuro podem influenciar as</p><p>atividades no eixo cérebro-intestino, e as consequências podem, por vezes,</p><p>ser dolorosas.</p><p>Por exemplo, se voltarem ao restaurante onde discutiram com</p><p>o vosso</p><p>cônjuge, essas memórias podem ativar o programa de operação da raiva,</p><p>apesar de estarem a ter uma conversa amigável desta vez. Se o restaurante</p><p>era italiano, qualquer restaurante italiano ou o simples pensamento de risoto</p><p>pode desencadear esse programa. Apresento muitas vezes este cenário aos</p><p>meus pacientes, que culpam, de imediato, certos alimentos pelo seu</p><p>desconforto digestivo. Peço-lhes para tentarem descodificar se a</p><p>responsabilidade dos sintomas recairá sobre o alimento ou, de facto, sobre a</p><p>recordação de um acontecimento anterior. Assim que começam a prestar</p><p>atenção às circunstâncias que desencadeiam os seus sintomas, acabam por</p><p>compreender o poder incrível da ligação cérebro-intestino.</p><p>O ESPELHO NO INTESTINO</p><p>Uma das informações mais importantes que posso dar a um paciente</p><p>como Bill, que tem síndrome de vómito cíclico, ou a pacientes com outras</p><p>perturbações do eixo cérebro-intestino, é uma explicação simples e</p><p>científica dos motivos que causam os sintomas desagradáveis e como é que</p><p>esta informação determina o tratamento desta doença. Esta explicação</p><p>simples ameniza, geralmente, a incerteza do diagnóstico, algo que tende a</p><p>aliviar o espírito do paciente e da família. A ciência também constitui uma</p><p>base racional para a personalização de uma terapia eficaz.</p><p>Na clínica, disse a Bill que o seu cérebro estava a libertar demasiado CRF,</p><p>incitando não só a sensação de ansiedade, mas também palpitações, mãos</p><p>suadas, contrações exageradas no estômago que revertiam a peristalse e</p><p>impulsionavam o conteúdo estomacal no sentido ascendente, e contrações</p><p>excessivas no cólon, que lhe conferiam dores violentas e enviavam o</p><p>conteúdo do estômago no sentido descendente. Bill e a mãe estavam</p><p>visivelmente aliviados pela informação, já que era a primeira vez, ao que</p><p>parecia, que alguém lhes tinha mostrado uma explicação científica para os</p><p>sintomas.</p><p>«Mas porque é que os ataques acontecem sempre nas primeiras horas da</p><p>manhã?», perguntou a mãe de Bill. Disse-lhe que a secreção normal de CRF</p><p>no cérebro atinge o auge nas primeiras horas da manhã, reduzindo</p><p>gradualmente até ao meio-dia. Por isso, em pacientes com a síndrome de</p><p>vómito cíclico, o mais provável seria o CRF atingir níveis menos saudáveis</p><p>bem cedo pela manhã.</p><p>Expliquei-lhes que o CRF declara uma emergência e muda o estado do</p><p>organismo de uma situação de paz para guerra para lhes mostrar como o</p><p>cérebro e o sistema nervoso do intestino trabalham em conjunto para</p><p>direcionar a função intestinal. «Isto faz todo o sentido», disse Bill, «mas</p><p>porque é que acontece comigo numa altura em que não sinto stresse,</p><p>quando ainda estou a dormir?».</p><p>«É exatamente aí que está o problema», respondi, explicando que os</p><p>travões normais dos mecanismos de emergência do cérebro tinham algum</p><p>defeito, fazendo com que acontecimentos triviais desencadeassem o</p><p>programa relacionado com medo. «Isto faz com que haja muitos falsos</p><p>alarmes», disse.</p><p>«Estou tão feliz por saber finalmente o que é que se passa», disse a mãe.</p><p>Mas uma explicação é apenas meio caminho até chegarmos a uma solução.</p><p>Perguntou-me o que poderiam fazer para, antes de mais, prevenirem os</p><p>ataques.</p><p>Para ajudar Bill a prevenir os ataques horríveis que estavam a impedi-lo</p><p>de viver a sua vida ao máximo, prescrevi-lhe vários medicamentos que</p><p>acalmam circuitos de stresse hiperativos e um estado de alerta constante</p><p>associados ao nível elevado de secreção de CRF. Alguns serviam para</p><p>reduzir a frequência dos ataques, outros para parar rapidamente um ataque,</p><p>se acontecesse. Felizmente, com o tratamento adequado, a maioria dos</p><p>pacientes com síndrome de vómito cíclico melhoram consideravelmente:</p><p>têm menos ataques e aprendem a travar um ataque iminente. Com o tempo,</p><p>os pacientes perdem o medo de ataques recorrentes que os impediam de</p><p>andar com a sua vida para a frente, o que, muitas vezes, lhes permite reduzir</p><p>ou parar de tomar medicação.</p><p>Isto foi exatamente o que aconteceu com Bill. Quando o vi, três meses</p><p>depois, tinha tido apenas um episódio, que conseguiu travar ao tomar</p><p>Klonopin, um medicamento para o tratamento da ansiedade que tinha</p><p>prescrito anteriormente. Após anos de sofrimento e de aguentar comentários</p><p>humilhantes de médicos das urgências, sentia-se entusiasmado por poder,</p><p>finalmente, reconstruir a sua vida. Outros pacientes com síndrome de</p><p>vómito cíclico que acompanhei seguiram tratamentos adicionais para</p><p>recuperar, incluindo terapia cognitiva comportamental e hipnose. Mas Bill</p><p>não. Regressou à universidade e conseguiu, até, com o tempo, reduzir</p><p>bastante a medicação.</p><p>Podemos todos aprender com pacientes como Bill, tal como faço todos os</p><p>dias na clínica. Reações intestinais normais, como preocuparmo-nos com</p><p>uma entrevista de emprego ou aquele aborrecimento passageiro de quem</p><p>está preso no trânsito ou atrasado para um compromisso, nunca são um</p><p>problema muito grave. Contudo, devemos ter consciência dos efeitos</p><p>nocivos dessas emoções no nosso intestino e nos seus residentes quando se</p><p>tornam crónicas, em forma de raiva, mágoa ou medo recorrente. Lembrem-</p><p>se, o palco ocupado por estas reações é enorme, bem como o número de</p><p>atores. Pode não ser nada de mais quando sentimos sede, por exemplo, algo</p><p>que podemos saciar com um copo de água, ou uma dor aguda que dura</p><p>apenas uns minutos. Torna-se mais preocupante quando nos lembramos de</p><p>que as emoções têm sempre uma imagem invertida no intestino e</p><p>especulamos sobre os efeitos nocivos que essa raiva, mágoa ou medo</p><p>crónicos podem exercer não só na saúde digestiva, mas no nosso bem-estar</p><p>geral.</p><p>D</p><p>3</p><p>COMO O INTESTINO</p><p>COMUNICA COM O CÉREBRO</p><p>e manhã à noite, enquanto lida com as responsabilidades da vida</p><p>diária, quantas vezes pensa no que se passa na sua barriga? Se for</p><p>como a maioria das pessoas, não muito, provavelmente. Mas por</p><p>mais silencioso que seja o nosso sistema digestivo nas suas funções</p><p>normais, os acontecimentos no estômago e intestinos são decisivos. Para</p><p>ficar com uma ideia, em primeira mão, destas sensações intestinais,</p><p>experimente isto: num dia em que não esteja demasiado distraído, foque a</p><p>sua atenção, de manhã à noite, em todas as sensações que o intestino produz</p><p>ao longo do dia.</p><p>Estas são as sensações que normalmente passam despercebidas – as</p><p>impressões físicas e ruídos subtis, bem como as emoções de fundo que as</p><p>acompanham. Tente ter consciência do maior número de sensações que</p><p>conseguir e escreva-as numa folha de papel ou grave-as no telemóvel à</p><p>medida que vão ocorrendo. Pode também acrescentar informação sobre o</p><p>que estava a fazer na altura, como se sentia ou o que estava a comer. Aqui</p><p>está um exemplo desta experiência: um dia de sensações intestinais de Judy,</p><p>uma jovem voluntária de 26 anos que participou num estudo que</p><p>conduzimos há muitos anos.</p><p>Judy acorda cedo no domingo de manhã, bebe um café e segue para a sua</p><p>corrida matinal diária. Não come nada antes da corrida de cinco</p><p>quilómetros porque sabe, por experiência própria, que correr com o</p><p>estômago cheio interfere com o exercício. Quando regressa da corrida, faz</p><p>os telefonemas semanais para a mãe e uma grande amiga. Assim que</p><p>termina os telefonemas, está esfomeada e a ansiar pelo seu usual pequeno-</p><p>almoço de domingo: uma omeleta de cogumelos e uma baguete de massa</p><p>lêveda com queijo creme.</p><p>O pequeno-almoço deixa-a com um sentimento agradável após desfrutar</p><p>da refeição preferida. Ao mesmo tempo, não presta muita atenção ao que</p><p>está a comer porque está a ler um artigo interessante no jornal. A</p><p>determinada altura, sente-se saciada e deixa metade da omeleta no prato.</p><p>Combinou com o namorado irem andar de bicicleta na praia e, antes de sair</p><p>de casa, tem de ir à casa de banho devido a um movimento intestinal. Ela e</p><p>o namorado divertem-se bastante na praia. São 19:00 quando chega a casa.</p><p>Depois de um jantar leve, Judy lembra-se de que não tocou sequer na</p><p>apresentação de trabalho que tem de fazer na segunda-feira de manhã.</p><p>Começa a ficar preocupada e apercebe-se de uma sensação de má-</p><p>disposição no estômago. A sensação começa a melhorar aos poucos,</p><p>enquanto tenta terminar a apresentação,</p><p>e às 22:00 decide ir para a cama e</p><p>acordar cedo na manhã seguinte para dar um toque final na apresentação.</p><p>Põe o despertador para as 5:30, mas acaba por dormir mal. Sempre que</p><p>acorda, repara numa sensação gorgolejante na barriga, que se transforma,</p><p>por vezes, num ruído prolongado que se espalha lentamente de cima para</p><p>baixo no abdómen. Levanta-se, finalmente, vai à cozinha e termina a</p><p>omeleta que sobrou do pequeno-almoço. O ruído para, Judy sente-se melhor</p><p>e volta para a cama.</p><p>Se pensarmos bem nisto, é provável que tenhamos sensações semelhantes</p><p>no dia a dia, ainda que não estejamos totalmente cientes delas. Vivemos</p><p>com estas sensações a vida inteira e já se tornaram segunda natureza. Da</p><p>perspetiva da mera sobrevivência, esta falta de atenção geral e consciência</p><p>das nossas sensações intestinais é uma coisa boa: navegar as complexidades</p><p>e excesso de informação do mundo moderno já é difícil o suficiente.</p><p>Imaginem passarem todos os dias focados nos ruídos e contrações do</p><p>intestino ou serem forçados a acordar todas as noites quando mais uma</p><p>onda de contrações de alta amplitude atravessa o vosso trato</p><p>gastrointestinal? Se tivéssemos de dar atenção constantemente a estas</p><p>sensações, não nos seria possível concentrar em mais nada. Não</p><p>conseguiríamos manter uma conversa ao jantar, fazer uma sesta depois do</p><p>almoço, ler a edição de domingo do New York Times ou dormir a noite toda.</p><p>As únicas sensações intestinais de que temos consciência normalmente</p><p>são aquelas que requerem uma resposta: uma sensação de fome que nos</p><p>leva a comer qualquer coisa, uma sensação de saciedade quando devemos</p><p>parar de comer ou uma sensação de enfartamento que nos faz procurar uma</p><p>casa de banho. A maior parte das sensações intestinais é-nos completamente</p><p>desconhecida até enfrentarmos uma calamidade gastrointestinal, como uma</p><p>dor de estômago, azia, náusea, uma sensação persistente de inchaço ou,</p><p>pior, uma intoxicação alimentar ou uma gastroenterite viral. Ou podemo-</p><p>nos sentir mal ou como se tivéssemos comido demasiado, mesmo depois de</p><p>uma refeição normal. Subitamente, a informação sensorial do intestino</p><p>torna-se bastante relevante – por boas razões, normalmente. Estas sensações</p><p>desagradáveis levam-nos a procurar ajuda, e ajudam-nos, também, a evitar</p><p>o que quer que tenha causado o mal-estar no futuro fazendo com que nunca</p><p>nos esqueçamos.</p><p>O CÉREBRO QUE SENTIA MUITO</p><p>Apesar de a maioria das pessoas não se aperceber de praticamente</p><p>nenhuma sensação intestinal, há algumas exceções à regra. Uma inclui um</p><p>grupo restrito de pessoas que consegue sentir facilmente os batimentos</p><p>cardíacos e os alimentos a deslocarem-se nos intestinos. Estes indivíduos</p><p>demonstram uma maior sensibilidade a todos os sinais do corpo, incluindo</p><p>os do intestino. Em experiências com imagiologia cerebral, surgiram</p><p>respostas amplificadas de redes cerebrais relacionadas com a avaliação de</p><p>atenção e saliência.</p><p>As outras exceções são os malogrados 10% da população que recebem</p><p>sinais corrompidos do intestino que não correspondem à verdadeira</p><p>informação sensorial transmitida para o cérebro. Dos muitos pacientes que</p><p>acompanhei, destaca-se um sujeito muito simpático pela sua história única,</p><p>que ilustra este conceito de consciência amplificada de sensações corporais.</p><p>Frank era um professor reformado de 75 anos que veio ter comigo por</p><p>causa de problemas gastrointestinais que já o acompanhavam há cinco anos,</p><p>incluindo sintomas típicos de SII, como inchaço abdominal e desconforto e</p><p>evacuações irregulares. No entanto, os sintomas de SII não eram o seu</p><p>único problema: vivia também com a sensação desagradável de parecer que</p><p>algo estava preso na parte superior do esófago (o denominado globus</p><p>faringeus), episódios frequentes de arrotos, sensação de desconforto na</p><p>parte de trás do esterno que, por vezes, o fazia tossir, devido a uma</p><p>impressão semelhante a sabor a mentol, e a sensação de não conseguir</p><p>inspirar ar suficiente. Estes sintomas começaram de repente, cerca de cinco</p><p>anos antes de me ter procurado. O desencadear destes sintomas coincidiu</p><p>com a perda da esposa devido a uma doença grave.</p><p>Quando pedi mais informações que me pudessem ajudar a determinar um</p><p>diagnóstico, Frank admitiu que desde a infância que sofria com sintomas</p><p>ligeiros de SII. Depois de ser sujeito a repetidas avaliações de diagnóstico</p><p>ao peito, trato gastrointestinal e coração, que não revelaram quaisquer</p><p>causas plausíveis para os sintomas, o mais provável parecia ser algum tipo</p><p>de perturbação gastrointestinal funcional. Os sintomas eram mais</p><p>consistentes com uma hipersensibilidade generalizada a sensações</p><p>intestinais provenientes de diferentes zonas do trato gastrointestinal, da</p><p>parte superior do esófago à extremidade final do cólon. Ainda que alguns</p><p>médicos pudessem qualificar estes sintomas como de natureza puramente</p><p>psicológica, sabemos agora que temos um dispositivo sensorial elaborado</p><p>no trato gastrointestinal, incluindo moléculas especializadas (recetores) que</p><p>conseguem reconhecer substâncias químicas distintas, como mentol. O que</p><p>poderia ter desencadeado a hipersensibilidade de Frank cinco anos antes?</p><p>A parceira de Frank concedeu-nos uma potencial explicação. Há anos que</p><p>Frank mantinha um regime alimentar pouco saudável que englobava</p><p>alimentos com alto teor de gordura animal e açúcar, reparando que os</p><p>sintomas pioravam quando Frank não era capaz de controlar os desejos</p><p>compulsivos de bolo de chocolate, piza, batatas fritas ou queijos intensos.</p><p>Há alguma possibilidade de que estes alimentos ricos em gordura possam</p><p>ter desempenhado um papel de relevo na sensibilização da comunicação</p><p>entre o cérebro e o intestino? Pacientes como Frank não só são mais</p><p>sensíveis às funções intestinais normais, como contrações, distensões e</p><p>secreção de ácido. Graças a muitos estudos em pacientes como Frank,</p><p>sabemos agora que muitos são também mais sensíveis a estímulos</p><p>experimentais, como encher um balão no intestino ou expor o esófago a</p><p>uma solução ácida.</p><p>Dada a complexidade do sistema sensorial do intestino, não surpreende</p><p>que este sistema seja vulnerável a conturbações, tais como reações</p><p>exageradas a alimentos normais ou hipersensibilidade a aditivos alimentares</p><p>ou mudanças no abastecimento de alimentos que podem não ser favoráveis,</p><p>mas que a maioria das pessoas toleram sem quaisquer sintomas. Será que</p><p>pessoas como Frank são um indicador precoce de uma calamidade</p><p>iminente?</p><p>Mais de 90% da inflamação sensorial recolhida pelo intestino nunca chega</p><p>a ser sentida de forma consciente. Para a maioria de nós, é fácil ignorar as</p><p>sensações diárias da barriga, ainda que o sistema nervoso entérico esteja a</p><p>monitorizá-las bem de perto. Através de um sistema complexo de</p><p>mecanismos sensoriais, muitas das sensações intestinais são discretamente</p><p>direcionadas para o pequeno cérebro no intestino, fornecendo-lhe</p><p>informações vitais para assegurar o bom funcionamento do sistema</p><p>digestivo, vinte e quatro horas por dia. Mas uma série de sensações é</p><p>direcionada no sentido ascendente para o cérebro. Dos sinais transmitidos</p><p>através do nervo vago, 90% viajam do intestino para o cérebro, enquanto</p><p>apenas 10% correm na direção oposta, do cérebro para o intestino. Na</p><p>verdade, o intestino consegue gerir a maior parte das suas atividades sem</p><p>qualquer interferência do cérebro, ao passo que o cérebro parece depender</p><p>bastante de informação vital do intestino.</p><p>Que informação tão vital é essa que o intestino tem de transmitir? Muito</p><p>mais do que imaginam. Os vários sensores no intestino informam o sistema</p><p>nervoso entérico sobre tudo o que precisa para gerar o padrão de contrações</p><p>mais apropriado, ou seja, a força e a direção da peristalse para acelerar ou</p><p>abrandar o trânsito de alimentos ingeridos através do estômago e do</p><p>intestino e para produzir a quantidade certa de ácido e bílis para garantir</p><p>uma digestão adequada. Este reúne informação relacionada com a presença</p><p>e quantidade de alimentos no estômago, o tamanho e a consistência da</p><p>comida que ingerimos, a composição química de uma refeição e até a</p><p>presença e atividade da nossa comunidade de microbiota</p><p>intestinal. Em caso</p><p>de emergência, estes sensores conseguem detetar também a presença de</p><p>parasitas, vírus e bactérias patogénicas ou as suas toxinas, bem como a</p><p>resposta inflamatória do intestino. De facto, uma inflamação aguda pode</p><p>tornar muitos dos sensores ainda mais sensíveis a estímulos e</p><p>acontecimentos normais. Apesar de esta informação ser vital para assegurar</p><p>o bom funcionamento do trato digestivo, o sistema nervoso entérico não</p><p>tem capacidade de produzir sensações conscientes. Quando o livro de</p><p>Gershon, The Second Brain, foi publicado, surgiu muita especulação sobre</p><p>as capacidades do sistema nervoso entérico. Alguns até se questionaram se</p><p>o segundo cérebro não tem apenas a capacidade de perceção, mas também</p><p>de ser o centro das nossas emoções e da nossa mente inconsciente. No</p><p>entanto, podemos afirmar, com quase toda a certeza, de que estas</p><p>especulações eram falsas. A informação sensorial do intestino é também</p><p>enviada do cérebro «superior» e, se prestarem atenção a estas sensações,</p><p>decerto conseguirão senti-las.</p><p>Durante vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, o trato</p><p>gastrointestinal, o sistema nervoso entérico e o cérebro estão em</p><p>comunicação constante. E esta rede de comunicação pode ser ainda mais</p><p>importante para a nossa saúde e bem-estar geral do que alguma vez</p><p>imaginámos.</p><p>SENTIR O INTESTINO</p><p>Dê uma dentada num hambúrguer suculento, desfrute de uma baguete</p><p>estaladiça, acabada de sair do forno, saboreie um prato de arroz de marisco,</p><p>ou delicie-se com o sabor arrebatador de um pedaço de chocolate. A que é</p><p>que sabe?</p><p>A resposta chegará graças a uma coleção de recetores localizados nas</p><p>pupilas gustativas da língua. Estas moléculas enraizadas na membrana</p><p>exterior de uma célula reconhecem as substâncias químicas específicas de</p><p>tudo o que comemos ou bebemos, tal como uma fechadura reconhece uma</p><p>chave. Quando este recetor se une à substância química específica de um</p><p>alimento, envia uma mensagem para o cérebro que produz um determinado</p><p>sabor dos fluxos de informação sensorial que recebe da boca e da língua.</p><p>Os recetores gustativos da língua conseguem detetar cinco atributos: doce,</p><p>amargo, salgado, azedo e umami. A combinação destes atributos, sempre</p><p>que prova um alimento, determina o seu sabor. Para lá disso, a textura do</p><p>que comemos – a consistência estaladiça de uma cenoura, a suavidade de</p><p>um iogurte ou a textura única de uma abóbora-esparguete – estimula outro</p><p>conjunto de recetores especializados em reconhecer atributos mecânicos da</p><p>comida. A combinação de todas estas sensações codificadas na boca dá</p><p>lugar àquilo que entendemos por sabor. A indústria alimentar é mestre em</p><p>inventar alimentos que maximizam esta experiência.</p><p>Incrivelmente, estudos recentes demonstraram que alguns destes</p><p>mecanismos e moléculas envolvidos na experiência gustativa não se</p><p>limitam à boca, estando também distribuídos ao longo do trato intestinal. A</p><p>ciência tem demonstrado categoricamente que é o que acontece com os</p><p>recetores gustativos amargos e doces. Na verdade, há evidência da</p><p>existência de cerca de 25 recetores gustativos no intestino humano. Apesar</p><p>de termos conhecimento de que os recetores do intestino têm pouco ou nada</p><p>que ver com experiência gustativa, não temos tanta informação sobre as</p><p>suas funções no eixo cérebro-intestino.</p><p>No entanto, estas moléculas recetoras estão localizadas nas terminações</p><p>sensoriais nervosas e nas células transdutoras de hormonas na parede</p><p>intestinal (como as células captadoras de serotonina de que falámos no</p><p>capítulo anterior), o que as posiciona no lugar perfeito para participar no</p><p>diálogo entre o cérebro e o intestino.</p><p>Alguns destes recetores são ativados por moléculas específicas</p><p>encontradas em ervas aromáticas e especiarias, como alho, malagueta,</p><p>mostarda e wasabi, enquanto outros respondem a mentol, cânfora, hortelã-</p><p>pimenta, agentes de refrigeração e até canábis. Até à data, vinte e oito</p><p>destes denominados recetores fitoquímicos (recetores que reconhecem</p><p>substâncias químicas específicas em plantas) foram identificados no</p><p>intestino de um rato, não havendo razões para duvidar de que os intestinos</p><p>humanos contêm uma diversidade igual ou ainda maior de recetores</p><p>sensíveis a uma série de substâncias químicas de diferentes plantas.</p><p>A maioria de nós usa especiarias e ervas aromáticas para estimular os</p><p>recetores gustativos na língua, amplificando, dessa forma, o sabor de uma</p><p>refeição. Um número crescente de indivíduos que acreditam em tratamentos</p><p>naturais consome ervas ou os seus extratos especificamente para fins</p><p>medicinais, e os herbalistas conseguem recitar inúmeros benefícios para a</p><p>saúde de cada uma delas. No entanto, em muitas partes do mundo, as</p><p>especiarias são um elemento integral da cultura: como é que seria possível</p><p>pensar em comida indiana ou mexicana sem malaguetas, comida persa sem</p><p>uma série de ervas frescas e iogurte ou chá marroquino sem hortelã-</p><p>pimenta?</p><p>É plausível que as diferenças regionais e geográficas na preferência por</p><p>várias ervas e especiarias tenham evoluído para encorajar o seu consumo e</p><p>oferecer proteção contra doenças comuns presentes em diferentes partes do</p><p>mundo. Por exemplo, estará o consumo de alimentos picantes em diferentes</p><p>áreas de países em vias de desenvolvimento a proteger as pessoas de</p><p>infeções gastrointestinais?</p><p>E será que o consumo de ervas frescas em pratos persas ou a ingestão</p><p>indispensável de chá de hortelã-pimenta depois de uma refeição em</p><p>Marrocos previne a indigestão? Independentemente de como explicamos o</p><p>seu uso por todo o mundo, estas substâncias derivadas de plantas unem-nos</p><p>e ao eixo cérebro-intestino à diversidade de plantas à nossa volta. O sem-</p><p>número de fitoquímicos derivados de uma dieta rica em diferentes plantas,</p><p>combinado com o leque de mecanismos sensoriais que combinam na</p><p>perfeição entre si no nosso intestino, sincroniza o nosso ecossistema interno</p><p>(microbioma intestinal) com o mundo que nos rodeia.</p><p>Porque existem tantos sensores no intestino? Alguns recetores, como os</p><p>que detetam os alimentos doces, desempenham um papel fundamental na</p><p>forma como metabolizamos a nossa comida.</p><p>Quando os nossos recetores de sabor doce detetam glucose (que surge</p><p>quando digerimos hidratos de carbono) ou adoçantes artificiais, estimulam a</p><p>absorção da glucose na corrente sanguínea e a libertação de insulina no</p><p>pâncreas. Além disso, estimulam também a secreção de outras hormonas</p><p>que sinalizam o cérebro e produzem a sensação de saciedade.</p><p>A função dos recetores de sabor amargo do intestino continua a ser um</p><p>mistério. A minha colega Catia Sternini, neurocientista na UCLA,</p><p>especialista do sistema entérico nervoso com foco nos recetores gustativos</p><p>do intestino, especula que alguns destes recetores podem responder a</p><p>metabolitos produzidos pela microbiota intestinal, e que alterações nestes</p><p>recetores, como consequência de ingestão de alimentos com altor teor de</p><p>gordura e mudanças relacionadas com gordura na microbiota intestinal,</p><p>podem ser imperativas em termos de desenvolvimento de obesidade. Num</p><p>estudo colaborativo, foi-nos possível demonstrar corroboração para esta</p><p>hipótese em participantes obesos.</p><p>Existem outros potenciais papéis propostos para os recetores de sabor</p><p>amargo no trato gastrointestinal. Tem sido demonstrado que a sua</p><p>estimulação resulta na libertação da hormona grelina, também conhecida</p><p>como hormona da fome, que viaja até ao cérebro para estimular o apetite.</p><p>Não me surpreenderia se o hábito antigo, em muitos países europeus, de</p><p>beber um aperitivo amargo antes das refeições se tivesse desenvolvido</p><p>devido à capacidade do aperitivo de estimular os recetores de sabor amargo</p><p>no intestino para libertar grelina, aumentando, assim, o apetite.</p><p>Pensem, também, em todos aqueles medicamentos à base de plantas de</p><p>sabor terrível oriundos da Medicina Tradicional Chinesa. Parece ser mais</p><p>provável que os efeitos terapêuticos destes medicamentos pouco têm que</p><p>ver com o sabor amargo que os acompanha, mas estão relacionados, de</p><p>alguma forma, com a ativação de um ou mais dos vinte e cinco recetores do</p><p>sabor amargo no intestino,</p><p>enviando, assim, mensagens terapêuticas para o</p><p>cérebro e o corpo. Mais intrigante ainda é a recente evidência de que os</p><p>mesmos recetores nasais olfativos que usamos para, por exemplo, usufruir</p><p>da fragrância de uma rosa, detetar um pacote de leite estragado ou sentir</p><p>uma boa churrascaria à distância se encontram também espalhados pelo</p><p>trato gastrointestinal. Tal como acontece com os recetores gustativos do</p><p>intestino, estes recetores olfativos estão localizados, em primeiro lugar, nas</p><p>células endócrinas, onde controlam a libertação de diferentes hormonas.</p><p>Tendo em conta que os recetores gustativos e olfativos estão localizados</p><p>ao longo do trato gastrointestinal, e não só na boca e no nariz, os seus</p><p>nomes originais – «sabor» e «olfato» – tornaram-se relativamente</p><p>obsoletos. Em vez disso, os cientistas compreendem agora que estes</p><p>recetores fazem parte de uma família mais alargada de mecanismos</p><p>sensoriais de químicos que se encontram nos pulmões e outros órgãos</p><p>viscerais, e desempenham diferentes papéis, dependendo da sua localização</p><p>em diferentes órgãos. Com base no que sabemos hoje, não me surpreenderia</p><p>se estes sensores químicos fossem capazes de intercetar mensagens de</p><p>diferentes comunidades microbianas a viverem nestes órgãos.</p><p>Como é que o sistema nervoso recebe a sua parte correspondente desta</p><p>informação vital vinda do interior do nosso intestino? Não faria qualquer</p><p>sentido para este sistema de recolha de dados de elevado desempenho ser</p><p>embrulhado neste mundo confuso de alimentos parcialmente digeridos e</p><p>químicos corrosivos a percorrer o intestino. Na verdade, não é isto que</p><p>acontece: os neurónios posicionam-se no interior do revestimento intestinal,</p><p>sem contacto direto com o conteúdo do intestino, e contam com células</p><p>especializadas que, estas sim, enfrentam o interior do intestino para detetar</p><p>os respetivos acontecimentos. Essas células sinalizam os intermediários na</p><p>parede intestinal, em particular as diferentes células endócrinas que, por sua</p><p>vez, enviam sinais aos neurónios sensoriais que se encontram ali perto,</p><p>especificamente ao nervo vago. Até à data, foi identificado um vasto</p><p>número de diferentes neurónios sensoriais, cada um especializado num</p><p>aspeto específico de sensações intestinais, respondendo a uma molécula</p><p>específica libertada nas células endócrinas do intestino. Cada um destes</p><p>nervos enviará sinais ao sistema nervoso entérico e ao cérebro.</p><p>As células endócrinas do intestino são tão abundantes e tão engenhosas a</p><p>sinalizar o nosso sistema nervoso que acabam por desempenhar um papel</p><p>crucial na nossa saúde e bem-estar. Imaginem por um segundo que</p><p>poderiam comprimir todas as células especializadas no intestino num só</p><p>conjunto de células: seria o maior órgão endócrino do nosso corpo. As</p><p>células endócrinas que revestem o intestino do estômago à extremidade do</p><p>intestino grosso conseguem detetar uma vasta gama de substâncias</p><p>químicas no que comemos e que são produzidas pela microbiota. Por</p><p>exemplo, quando o estômago está vazio, as células especializadas na parede</p><p>do estômago produzem uma hormona denominada grelina, que viaja na</p><p>corrente sanguínea ou envia sinais ao cérebro através do nervo vago,</p><p>desencadeando uma vontade extraordinária de comer. Por outro lado,</p><p>quando nos sentimos saciados e o intestino delgado está ocupado a digerir</p><p>os alimentos, as células libertam hormonas de «saciedade» que avisam o</p><p>cérebro que estamos cheios e que está na hora de parar de comer.</p><p>Além do canal de comunicação entre o cérebro e o intestino que envolve</p><p>células endócrinas, há um outro sistema que envolve o sistema imunitário</p><p>do intestino e as moléculas inflamatórias que estas células imunitárias</p><p>produzem, as denominadas citocinas. As células imunitárias no intestino</p><p>encontram-se preferencialmente em grupos no intestino delgado,</p><p>conhecidos como placas de Peyer, podendo ser encontradas também no</p><p>apêndice e espalhadas pela parede do intestino delgado e do intestino</p><p>grosso. Estas células estão separadas por uma fina camada de células do</p><p>espaço no interior do intestino e algumas delas, as chamadas células</p><p>dendríticas, estendem-se através da camada do intestino, onde interagem</p><p>com os micróbios intestinais e elementos patogénicos potencialmente</p><p>nocivos. Mais importante ainda, as citocinas libertadas por estas células</p><p>conseguem atravessar o revestimento intestinal, entrar na circulação</p><p>sistémica e, por fim, chegar ao cérebro. Em alternativa, as moléculas</p><p>sinalizadoras libertadas pelas células especializadas do intestino enviam</p><p>sinais ao cérebro através do nervo vago.</p><p>Com tantos mecanismos envolvidos na comunicação com o nosso sistema</p><p>nervoso sobre características dos alimentos que ingerimos, torna-se claro,</p><p>cada vez mais, que o intestino foi criado para fazer muito mais do que</p><p>absorver nutrientes. Os sofisticados sistemas sensoriais do intestino são a</p><p>Agência de Segurança Nacional do corpo humano, reunindo informação de</p><p>todas as áreas do sistema digestivo, entre eles, o esófago, o estômago e o</p><p>intestino, e ignorando a grande maioria dos sinais – contudo, soando o</p><p>alarme quando algo lhe parece suspeito ou corre mal. Ao que parece, é um</p><p>dos órgãos sensoriais mais complexos do organismo.</p><p>A CONSCIÊNCIA DO INTESTINO</p><p>Sempre que comemos ou bebemos algo, os relatórios procedentes do</p><p>sistema de recolha de dados do intestino fornecem informação vital sobre o</p><p>pequeno cérebro (o sistema nervoso entérico) e o cérebro na nossa cabeça.</p><p>Os nossos cérebros, o grande e o pequeno, têm todo o interesse em obter</p><p>estes relatórios sempre que ingerimos comida ou bebida, mas este interesse</p><p>varia consoante o tipo de informação.</p><p>O pequeno cérebro precisa de informação vital do intestino para gerar as</p><p>melhores respostas digestivas possíveis e, quando necessário, eliminar</p><p>toxinas, expelindo os conteúdos intestinais por ambas as extremidades do</p><p>trato gastrointestinal, seja através de vómito ou de diarreia. Estes relatórios</p><p>incluem o tamanho da refeição, os componentes que estão a entrar no</p><p>intestino (incluindo toda a informação química, como gorduras, proteínas e</p><p>hidratos de carbono, bem como concentrações, consistências e dimensões</p><p>das partículas). Para lá disso, também incluem informações que revelem</p><p>quaisquer sinais de intrusos, como bactérias, vírus ou outras toxinas de</p><p>alimentos contaminados. Quando obtém informação sobre o teor de gordura</p><p>elevado de uma sobremesa intensa a entrar no estômago, abranda o ritmo do</p><p>esvaziamento gástrico e do trânsito intestinal. Quando, por outro lado,</p><p>obtém informação sobre a baixa densidade calórica de uma refeição,</p><p>aumenta a velocidade de esvaziamento do estômago para entregar calorias</p><p>suficientes para absorção. E quando obtém informação sobre intrusos</p><p>potencialmente perigosos, estimula a secreção do fluido intestinal, alterando</p><p>a direção da peristalse para esvaziar o estômago e acelerando o trânsito</p><p>através do intestino delgado e do intestino grosso de forma a expelir o</p><p>agressor.</p><p>O cérebro, por seu lado, está mais preocupado com a nossa saúde e bem-</p><p>estar geral e, como tal, segue de perto os diferentes sinais do intestino e</p><p>integra-os juntamente com uma variedade de sinais de outras partes do</p><p>organismo, bem como informação sobre o ambiente envolvente. O cérebro</p><p>monitoriza o que se passa no sistema nervoso entérico, mas também está</p><p>bastante interessado nas reações intestinais, o estado do intestino ao refletir</p><p>as nossas emoções, as dolorosas contrações do estômago e do cólon quando</p><p>nos sentimos zangados e a ausência de atividade intestinal quando estamos</p><p>deprimidos. Por outras palavras, o cérebro assiste ao seu próprio espetáculo</p><p>no palco do intestino. O cérebro recebe também, quase de certeza,</p><p>informação gerada por biliões de micróbios que vivem no intestino, um</p><p>aspeto da sinalização entre cérebro e intestino tem vindo a tornar-se mais</p><p>claro apenas nos últimos anos. Apesar de o cérebro ter toda a sua atenção</p><p>focada nas informações sensoriais que chegam do intestino, as suas</p><p>responsabilidades diárias são delegadas a outros agentes locais, no nosso</p><p>caso, o sistema nervoso entérico. O</p><p>cérebro só se envolve diretamente se a</p><p>ação for uma ação solicitada por nós ou se a situação constituir uma ameaça</p><p>grave que exija uma resposta do cérebro.</p><p>Através desta miríade de mecanismos sensoriais, o intestino envia</p><p>informações ao cérebro a cada milissegundo do dia, estejamos acordados ou</p><p>a dormir, sobre tudo o que está a acontecer dentro de nós. Não é o único</p><p>órgão a dar feedback contínuo ao sistema nervoso central: o cérebro está</p><p>constantemente a receber informação sensorial de todas as células e órgãos</p><p>do organismo. Os pulmões e o diafragma transmitem sinais mecânicos ao</p><p>cérebro sempre que inspiramos ou expiramos. O coração gera sinais</p><p>mecânicos com cada batimento. As paredes arteriais enviam sinais acerca</p><p>da pressão arterial. E os músculos transmitem informações sobre tónus e</p><p>rigidez.</p><p>Os cientistas denominam estes relatórios constantes sobre o estado do</p><p>corpo de informação «interoceptora» – informação que o cérebro utiliza</p><p>para manter o equilíbrio e o bom funcionamento dos sistemas do</p><p>organismo. Apesar de a informação interoceptora ser transmitida de cada</p><p>uma das células do corpo, as mensagens que o intestino e os seus</p><p>mecanismos sensoriais enviam ao cérebro são únicas na sua quantidade,</p><p>variedade e complexidade. Comecemos pelo facto de a rede sensorial do</p><p>intestino estar distribuída na sua superfície total, que corresponde a uma</p><p>área 200 vezes maior do que a superfície da pele – aproximadamente do</p><p>tamanho de um campo de basquetebol. Agora, imaginem um campo de</p><p>basquetebol com milhões de pequenos sensores mecânicos que recolhem</p><p>informação sobre o movimento dos jogadores, o seu peso, a aceleração e</p><p>desaceleração e todos os saltos e aterragens. Tendo em conta que os sinais</p><p>do intestino incluem também informações, entre outras, químicas e</p><p>nutricionais, esta metáfora descreve apenas uma parte ínfima da quantidade</p><p>abismal de informações codificadas como sensações intestinais.</p><p>A AUTOESTRADA DA INFORMAÇÃO PARA TRÂNSITO ENTRE</p><p>O CÉREBRO E O INTESTINO</p><p>O nervo vago desempenha um papel particularmente importante na</p><p>comunicação de sensações intestinais ao cérebro. A grande maioria de</p><p>células e recetores intestinais que codificam as sensações do intestino estão</p><p>intimamente ligadas ao cérebro através do nervo vago. E muita da</p><p>sinalização da microbiota intestinal para o cérebro também conta com este</p><p>canal. Na maior parte dos estudos sobre os efeitos das alterações</p><p>microbianas intestinais nos comportamentos emocionais aplicados em</p><p>roedores, os efeitos desapareceram depois de o nervo vago ser cortado. Mas</p><p>o nervo vago é mais do que um canal de comunicação de um só sentido:</p><p>este nervo é uma autoestrada de seis faixas, em que o trânsito em hora de</p><p>ponta se desloca em ambas as direções, ainda que 90% deste trânsito se</p><p>movimente do intestino para o cérebro. O nervo vago comporta tanto</p><p>trânsito por ser um dos mais importantes reguladores dos nossos órgãos</p><p>viscerais, ligando o cérebro tanto ao trato gastrointestinal como a todos os</p><p>outros órgãos.</p><p>A história que se segue, sobre um paciente, ilustra o quão importantes</p><p>estas comunicações entre o intestino e o cérebro são para o nosso bem-estar</p><p>geral. Durante a minha formação na UCLA, conheci George Miller, que</p><p>sofria, há imenso tempo, de sintomas causados por uma úlcera de grandes</p><p>dimensões no duodeno – a primeira parte do intestino delgado. Não só</p><p>ficava de rastos e cheio de dores quando a úlcera inflamava, como teve de</p><p>ser hospitalizado duas vezes quando a úlcera começou a sangrar</p><p>intensamente. Depois de sofrer destes sintomas durante anos, o seu</p><p>gastroenterologista decidiu reencaminhá-lo para um cirurgião para que lhe</p><p>cortasse o nervo vago, removendo, assim, a capacidade para estimular a</p><p>produção de ácido no estômago. As histórias pessoais e os historiais de</p><p>sintomas sentidos por pacientes como Miller após uma vagotomia</p><p>revelaram bastante sobre as sensações intestinais e o que acontece às</p><p>pessoas quando retiramos ao cérebro a sua fonte vital de informação</p><p>interoceptiva.</p><p>No início dos anos 1980, a opinião predominante nas comunidades</p><p>médicas e cirúrgicas era que a maneira mais simples e eficaz de interromper</p><p>a produção de ácido e curar úlceras pépticas era cortar o nervo vago – um</p><p>procedimento médico conhecido como vagotomia troncular. Estas cirurgias</p><p>não tinham consideração pelo enorme fluxo de informação canalizado</p><p>através do nervo vago do intestino ao cérebro, bem como a possível</p><p>importância deste fluxo para o nosso bem-estar geral. Felizmente, hoje em</p><p>dia, é raro um cirurgião recorrer a um procedimento tão drástico, já que</p><p>agora é possível tratar a maioria das úlceras.</p><p>No caso de Miller, a sua cirurgia foi bem-sucedida, na medida em que esta</p><p>nunca mais o incomodou. Mas o preço que pagou foi enorme. Desse</p><p>momento em diante, começou a sofrer de uma série de sensações intestinais</p><p>desagradáveis. Sentia-se cheio após uma refeição leve e sofria de náuseas,</p><p>vómitos, cãibras, dores de barriga e diarreia constantes, entre outros</p><p>sintomas.</p><p>Os médicos de Miller não conseguiam explicar estes sintomas, que</p><p>também incluíam outros mais obscuros como palpitações, suores, tonturas e</p><p>fadiga extrema. Então, culparam o seu alegado neuroticismo e classificaram</p><p>este conjunto de sintomas como um caso de «síndrome de albatroz», um</p><p>termo usado para descrever pacientes como Miller, cuja cirurgia a uma</p><p>úlcera péptica resolveu com sucesso as úlceras gástricas, mas, como</p><p>consequência, deixou um rasto de sensações intestinais negativas, dor</p><p>abdominal prolongada, náuseas, vómitos e má nutrição. Mas, hoje em dia,</p><p>sabemos que estes sintomas tinham uma base psicológica forte – para</p><p>alguns deles, pelo menos.</p><p>Hoje, conhecemos a complexidade das sensações intestinais e o papel</p><p>crucial do nervo vago na transmissão destes sinais para regiões do cérebro</p><p>como o hipotálamo e as regiões límbicas, que, por sua vez, influenciam um</p><p>sem-número de funções vitais, como dor, apetite, disposição e até função</p><p>cognitiva. Olhando para trás, é fácil perceber que obstruir esta autoestrada</p><p>de informação vital (seria como fechar a A1 em ambas as direções) teria</p><p>efeitos avassaladores em como alguém se sente quando acorda de manhã ou</p><p>quando come.</p><p>É pouco provável que alguma vez percebamos os mecanismos por trás</p><p>dos sintomas de Miller, já que, hoje em dia, é raro realizarem--se</p><p>vagotomias. Por outro lado, surgiu novo interesse no estudo do papel do</p><p>nervo vago na transmissão das sensações intestinais para os principais</p><p>centros de controlo no cérebro. Estimulação vagal elétrica ou farmacológica</p><p>tem vindo a ser considerada como uma nova forma de estimular sensações</p><p>intestinais e como terapêutica para tratar uma série de perturbações</p><p>cerebrais, incluindo depressão, epilepsia, dor crónica, obesidade e até várias</p><p>doenças inflamatórias crónicas, como artrite. Estas novas descobertas vêm</p><p>apenas confirmar a importância da comunicação entre o nervo vago, o</p><p>intestino e o cérebro para a nossa saúde e bem-estar.</p><p>O PAPEL DA SEROTONINA</p><p>As mais dolorosas das sensações intestinais são aquelas associadas às</p><p>intoxicações alimentares. Há cerca de 40 anos, fiquei mais familiarizado</p><p>com elas do que desejaria. Estava quase a terminar uma viagem de um mês</p><p>de mochila às costas pela Índia. Esta aventura levou-me por mosteiros</p><p>budistas e oásis repletos de pessegueiros, por vales desertos e desfiladeiros,</p><p>do norte da Índia aos sopés dos Himalaias. Subsistia de rações diárias de</p><p>sopa de lentilhas, arroz e «chá de manteiga» – uma bebida tradicional feita</p><p>com folhas de chá, água, sal e leite de iaque – e bebia água diretamente de</p><p>riachos cristalinos. Raramente me havia sentido tão eufórico como quando</p><p>cheguei à estância de Manali e, para celebrar, desviei-me da minha rotina</p><p>normal e decidi usufruir de uma deliciosa e picante refeição num dos</p><p>restaurantes locais.</p><p>Na manhã seguinte, embarquei bem cedo no autocarro que me levaria a</p><p>Nova Deli numa viagem de vinte e quatro horas – um dia de infâmia</p><p>digestiva que jamais esquecerei. Tentar controlar as consequências</p><p>gastrointestinais daquela refeição foi como tentar dizer a um grupo</p><p>de</p><p>hienas para ficarem quietas e não me atacarem. A intensidade desta</p><p>experiência ficou gravada nas camadas mais profundas da minha memória</p><p>emocional, um lembrete permanente do quão poderosas podem ser as</p><p>sensações intestinais (e as suas memórias).</p><p>Uma intoxicação alimentar acontece quando ingerimos acidentalmente</p><p>uma refeição ou bebida contaminada com um vírus patogénico, bactérias ou</p><p>uma toxina produzida por estes organismos. Imaginemos que é a toxina de</p><p>uma espécie invasiva de E. coli. No intestino, a toxina une-se a recetores</p><p>localizados nas células produtoras de serotonina. Este sinal muda as</p><p>definições do trato gastrointestinal imediatamente para «vómitos</p><p>abomináveis e diarreia violenta». Alguns medicamentos de quimioterapia</p><p>para tratamento de cancro, incluindo a cisplatina, têm o mesmo efeito.</p><p>Este é um mecanismo de sobrevivência inato: quando o intestino deteta</p><p>uma quantidade suficiente de uma toxina ou de um elemento patogénico, o</p><p>nosso sistema nervoso entérico emite uma ordem de evacuação de todo o</p><p>trato gastrointestinal com o objetivo de expulsar a toxina pelas duas</p><p>extremidades do trato digestivo – apesar de não ser bonito, é uma reação</p><p>inteligente.</p><p>A reação é acionada pelas células produtoras de serotonina no trato</p><p>gastrointestinal superior, uma zona particularmente importante na produção</p><p>de sensações intestinais. Quando segregada em condições normais, a</p><p>serotonina ajuda o processo digestivo a desenvolver-se de forma regular,</p><p>sendo libertada através de impercetíveis forças mecânicas exercidas quando</p><p>o conteúdo do intestino se move pelo trato gastrointestinal e se «esfrega»</p><p>nas células enterocromafins. Tais como as restantes hormonas presentes nas</p><p>células endócrinas do intestino, a serotonina libertada ativa terminações</p><p>sensoriais nervosas no nervo vago e no sistema nervoso entérico (SNE),</p><p>que, por sua vez, mantém o SNE informado sobre o que está a descer o trato</p><p>intestinal, permitindo-lhe desencadear o importantíssimo reflexo</p><p>peristáltico. Por outro lado, uma libertação mais concentrada de serotonina,</p><p>como acontece com uma intoxicação alimentar ou em resposta à cisplatina,</p><p>leva a vómitos, movimentos intestinais intensos ou ambos.</p><p>O meu grupo de investigação, em colaboração com um grupo dos Países</p><p>Baixos, concluiu que, em indivíduos saudáveis, uma dieta pobre em</p><p>triptofano, um aminoácido essencial na sintetização da serotonina, reduz os</p><p>níveis de serotonina no cérebro, aumentando, assim, a atividade do sistema</p><p>de alerta deste. Estas alterações do sistema nervoso central estão também</p><p>associadas a um aumento da sensibilidade a uma estimulação mecânica</p><p>experimental do cólon. Foi demonstrado anteriormente que a mesma dieta</p><p>pobre em serotonina aumenta a probabilidade de depressão em indivíduos</p><p>em risco, incluindo aqueles com antecedentes familiares de depressão.</p><p>A serotonina é a derradeira molécula de sinalização entre o intestino e o</p><p>cérebro. As células produtoras de serotonina estão intrinsecamente ligadas a</p><p>ambos os cérebros. Este sistema de sinalização de serotonina no intestino</p><p>desempenha um papel fundamental na ligação de acontecimentos no</p><p>intestino relacionados com alimentos, micróbios intestinais e determinados</p><p>medicamentos à atividade do nosso sistema digestivo e a como nos</p><p>sentimos. Por outro lado, a quantidade reduzida de serotonina nos nervos do</p><p>intestino e do cérebro desempenham também um papel relevante: nervos</p><p>produtores de serotonina no intestino contribuem bastante para a regulação</p><p>do reflexo peristáltico ao mesmo tempo que grupos de células nervosas no</p><p>cérebro enviam os seus sinais para quase todas as regiões do cérebro,</p><p>exercendo influência sobre um vasto conjunto de funções vitais, incluindo</p><p>apetite, sensibilidade à dor e disposição.</p><p>Mike Gershon, investigador pioneiro do sistema de produção de</p><p>serotonina do intestino, gosta de afirmar que só quando as notícias são más</p><p>– em alguns casos, muito más, como foi o caso da minha viagem infernal</p><p>para Nova Deli – é que nos apercebemos das sensações intestinais</p><p>relacionadas com este sistema. Mas será isto verdade? Deixemos de lado</p><p>por um momento os acontecimentos dramáticos que se desenvolvem</p><p>quando uma infeção bacteriana ou viral desencadeia uma libertação</p><p>significativa de serotonina ou quando uma alteração no sistema de produção</p><p>de serotonina do intestino produz sintomas de SII ou diarreia. Considerando</p><p>as reservas consideráveis de serotonina no intestino, localizadas nas</p><p>imediações dos canais do nervo vago que ligam diretamente aos centros de</p><p>controlo afetivo do cérebro, é concebível, sem dúvida, que haja um fluxo</p><p>constante de sinais, de nível reduzido, relacionados com serotonina, a ser</p><p>enviado para os centros emocionais do cérebro em resposta à fricção do</p><p>conteúdo intestinal com as células produtoras de serotonina ou em resposta</p><p>aos metabólitos microbianos do intestino. Mesmo que não nos apercebamos</p><p>conscientemente destes sinais codificados, esta libertação de nível reduzido</p><p>de serotonina pode afetar as nossas emoções em segundo plano e</p><p>influenciar como nos sentimos, exercendo um «tom» positivo no nosso</p><p>humor – o que, por sua vez, poderia explica porque é que tantas pessoas</p><p>gozam de um sentimento de satisfação e bem-estar quando desfrutam de</p><p>uma determinada refeição.</p><p>ALIMENTOS SÃO INFORMAÇÃO</p><p>Tudo isto levanta uma questão importante: se a grande maioria de nós não</p><p>se apercebe conscientemente da generalidade das sensações intestinais –</p><p>incluindo a dupla distensão do estômago após uma refeição grande ou as</p><p>contrações de grande amplitude do complexo mioelétrico migratório</p><p>quando o intestino está vazio –, porque é que o intestino necessita do seu</p><p>mecanismo sensorial especializado?</p><p>A resposta simples e cientificamente comprovada é que estes mecanismos</p><p>sensores são essenciais para o funcionamento tranquilo e coordenação de</p><p>funções intestinais básicas, como esvaziamento gástrico, movimento dos</p><p>alimentos nos intestinos e secreção de ácido e enzimas digestivas; para</p><p>funções corporais relacionadas com ingestão de alimentos, como apetite e</p><p>saciedade; e para o nosso metabolismo básico, incluindo controlo da</p><p>quantidade de açúcar no sangue. Estes aspetos funcionais das sensações</p><p>intestinais remontam, muito provavelmente, a milhões de anos, quando</p><p>pequenos animais marinhos primitivos foram «colonizados» por micro-</p><p>organismos que os ajudaram a metabolizar determinados nutrientes.</p><p>A outra resposta, mais provocadora, tem que ver com o impressionante</p><p>fluxo de informação do intestino para ambos os cérebros – informação que</p><p>não está diretamente ligada às funções do intestino e às necessidades</p><p>metabólicas e que se mantém escondida dos nossos radares. A enorme</p><p>quantidade de informação relacionada com o intestino que é enviada ao</p><p>cérebro, incluindo a catadupa de mensagens dos biliões de micróbios que</p><p>vivem no intestino, proporciona ao nosso eixo cérebro-intestino um papel</p><p>único e inusitado de moldar a nossa saúde e bem-estar, os nossos</p><p>sentimentos e até, como veremos no Capítulo 5, as decisões que tomamos.</p><p>Quando consideramos as complexidades científicas dos diferentes</p><p>sensores intestinais e do nervo vago, juntamente com as suas funções no</p><p>processo digestivo, e as colocamos no contexto geral das sensações</p><p>intestinais, surge um cenário revolucionário dos nossos hábitos alimentares:</p><p>não só o nosso trato digestivo é capaz de absorver a maior parte dos</p><p>nutrientes e calorias de uma refeição (em que os micróbios intestinais lidam</p><p>com os restos que o intestino não consegue digerir) mas o sistema de</p><p>vigilância sofisticado do intestino consegue analisar a composição</p><p>nutricional dos alimentos e, ao mesmo tempo, extrair a informação</p><p>necessária para uma melhor digestão. Por outras palavras, os alimentos</p><p>chegam com instruções específicas sobre a melhor forma de serem</p><p>digeridos, ainda que com muitas letras miudinhas que desconhecíamos até</p><p>há bem pouco tempo e que ainda estamos a tentar descodificar. Isto é válido</p><p>para veganos, piscitarianos, omnívoros, aficionados de carne, viciados em</p><p>fast food, seguidores das dietas da moda, mestres do jejum</p><p>intermitente – ou</p><p>até os que apanharam uma infeção intestinal numa viagem ao México. Mais</p><p>impressionante ainda é que o complexo sistema sensorial do intestino</p><p>começa a extrair esta informação no momento em que colocamos os</p><p>alimentos na boca – quando os recetores gustativos na língua e os nervos</p><p>entéricos do esófago começam a transmitir informação sobre o que estamos</p><p>a ingerir – e continua a fazê-lo até os alimentos chegarem ao cólon. E o</p><p>nosso intestino faz tudo isto sem interferir, de forma alguma, com o nosso</p><p>funcionamento diário.</p><p>Quando olhamos para a densa distribuição e a vasta área que os recetores</p><p>sensoriais ocupam no revestimento da parede do intestino, torna-se claro</p><p>que este está continuamente a transmitir quantidades avultadas de</p><p>informação, tanto dos processos complexos relacionados com a digestão</p><p>como do contributo de 100 biliões de micróbios em constante diálogo nos</p><p>tratos intestinais. Por outras palavras, no que diz respeito a recolher,</p><p>armazenar, analisar e responder a esta quantidade imensa de informação, o</p><p>eixo cérebro-intestino é um verdadeiro supercomputador – um conceito</p><p>longínquo da laboriosa máquina a vapor digestiva que predominava noutros</p><p>tempos.</p><p>Esta tomada de consciência faz parte do nosso novo e moderno</p><p>entendimento da função intestinal, que inclui uma mudança da preocupação</p><p>com detalhes de micro e macronutrientes, metabolismo e calorias para a</p><p>consciência de que o nosso intestino, com o seu sistema nervoso e</p><p>residentes microbianos, é, na verdade, uma máquina de processamento de</p><p>informação extraordinária que supera consideravelmente os nossos cérebros</p><p>em termos de número de células envolvidas e rivaliza com algumas das</p><p>capacidades cerebrais. Através do fornecimento de alimentos, este sistema</p><p>permite-nos comunicar com o mundo à nossa volta, captando informação</p><p>vital sobre de onde vieram os alimentos, o que colocamos no solo e que</p><p>químicos foram adicionados antes de serem comprados no supermercado. E</p><p>tal como veremos em maior detalhe no próximo capítulo, os micróbios do</p><p>intestino desempenham um papel proeminente nesta ligação entre o que</p><p>comemos e como nos sentimos.</p><p>N</p><p>4</p><p>DISCURSO MICROBIANO:</p><p>UM ELEMENTO FUNDAMENTAL</p><p>NO DIÁLOGO ENTRE O CÉREBRO</p><p>E O INTESTINO</p><p>os anos 1970 e 1980, o principal grupo de investigação sobre a</p><p>comunicação entre o cérebro e o intestino encontrava-se no Center</p><p>for Ulcer Research and Education (CURE), no campus da</p><p>Administração de Veteranos dos Estados Unidos (conhecido agora como</p><p>Departamento de Assuntos de Veteranos dos Estados Unidos) na zona oeste</p><p>de Los Angeles. Fundado por Morton I. Grossman, um dos mais notáveis</p><p>fisiologistas do sistema digestivo, CURE era a meca de cientistas e</p><p>investigadores clínicos oriundos de todas as partes do mundo que queriam</p><p>estudar úlceras estomacais (que era o maior problema de saúde na altura) e,</p><p>mais alargadamente, os principais mecanismos do funcionamento do</p><p>sistema digestivo. Escreveram-se livros e ainda se contam histórias sobre o</p><p>centro, os seus avanços científicos e o fundador e carismático líder, e</p><p>discípulo do próprio Grossman, John Walsh.</p><p>Quando cheguei a Los Angeles, no início dos anos 1980, para trabalhar no</p><p>CURE como bolseiro de investigação, o meu objetivo era estudar a biologia</p><p>da comunicação no trato gastrointestinal. O tema das interações cérebro-</p><p>intestino não foi sequer digno de menção no programa da minha Faculdade</p><p>de Medicina da Universidade Ludwig Maximilian, em Munique, Alemanha.</p><p>Tinha acabado de terminar o meu internato em Medicina Interna na</p><p>Universidade de British Columbia, em Vancouver, Canadá, e mal podia</p><p>esperar para dar início ao que inicialmente estava planeado ser uma bolsa</p><p>de investigação de dois anos para concretizar o meu interesse científico.</p><p>Na altura, John Walsh era um jovem e brilhante investigador que tomava</p><p>muitas das suas decisões e fazia descobertas visionárias com base no seu</p><p>instinto – algo de que me apercebi muito mais tarde. Desde sempre na sua</p><p>carreira que o seu maior interesse estava focado num conjunto de</p><p>misteriosas moléculas de sinalização chamadas «hormonas intestinais» ou</p><p>«péptidos intestinais», primeiro isoladas da pele de rãs exóticas e, mais</p><p>tarde, dos intestinos e cérebros de mamíferos. Na altura, os biólogos</p><p>pensavam que estas moléculas sinalizadoras funcionavam apenas como</p><p>simples interruptores químicos que ligavam ou desligavam a produção de</p><p>ácido clorídrico no estômago, da secreção de hormonas digestivas no</p><p>pâncreas ou a capacidade de contração da bexiga. Contudo, nos incríveis</p><p>anos que se seguiram neste berço de investigação moderna do cérebro e do</p><p>intestino, tive a possibilidade de assistir, em primeira mão, à medida que a</p><p>nossa compreensão destas moléculas evoluía de meros interruptores para</p><p>uma linguagem biológica universal complexa usada pelos biliões de</p><p>micróbios nos intestinos para comunicar com o nosso sistema digestivo e,</p><p>até, o nosso cérebro.</p><p>Um grupo de biólogos italianos sob a orientação de Vittorio Erspamer</p><p>tinha descoberto alguns dos primeiros péptidos intestinais na pele de rãs</p><p>exóticas, cujo papel parecia ser ajudar a dissuadir predadores. Quando um</p><p>jovem e inexperiente pássaro ingeria essa rã, estas moléculas eram</p><p>libertadas no seu trato gastrointestinal, desencadeando uma má reação que</p><p>lhe estragava a refeição e provocava a regurgitação da rã. Isto ensinou ao</p><p>jovem pássaro que nunca mais poderia tocar nesse tipo de rã. E, tendo em</p><p>conta que a rã produziu um péptido ao qual os tecidos do pássaro reagiram,</p><p>os resultados provaram que as rãs e os pássaros partilhavam um sistema de</p><p>comunicação química.</p><p>Não muito depois de os italianos relatarem os resultados, Viktor Mutt e os</p><p>seus colegas do Instituto Karolinska, na Suécia, procuraram por péptidos</p><p>intestinais semelhantes em mamíferos. Conseguiram, por fim, extrair e</p><p>purificar estas moléculas a uma escala industrial de intestinos de suíno</p><p>cozinhados e distribuíram-nos a investigadores interessados no resto do</p><p>mundo. Quando estes preciosos extratos foram enviados em forma de pó</p><p>para o laboratório de Walsh, tratámo-los com reverência, considerando o</p><p>volume de trabalho e de tempo investidos a isolá-los. Mais tarde, ainda de</p><p>madrugada, dirigimo-nos a um matadouro em Los Angeles, regressando</p><p>com recipientes de intestinos suínos dos quais purificámos péptidos</p><p>intestinais. Quando injetámos uma destas substâncias, uma molécula</p><p>denominada gastrina, observámos que o estômago do animal começou a</p><p>aumentar a secreção de ácido clorídrico. Injetar outro péptido – secretina –</p><p>acionou a secreção dos sucos digestivos do pâncreas, ao passo que injetar o</p><p>péptido somatostatina fez com que ambas as funções se desligassem. Estes</p><p>péptidos intestinais foram também denominados de hormonas intestinais, já</p><p>que conseguiram alcançar alvos distantes no organismo quando injetados na</p><p>corrente sanguínea, tal como as hormonas produzidas pela glândula</p><p>tireóidea ou pelos ovários conseguem enviar mensagens de longa distância.</p><p>Não demorou muito até os cientistas descobrirem que os péptidos</p><p>intestinais estavam presentes não só nas células especializadas do intestino,</p><p>mas também nas células nervosas do sistema nervoso entérico, que os</p><p>usavam para aperfeiçoar a peristalse, a absorção de fluídos e secreção. E</p><p>quando neurocientistas começaram a olhar para o cérebro, encontraram</p><p>substâncias idênticas, no qual os péptidos funcionavam como importantes</p><p>interruptores químicos que tinham a capacidade de ligar e desligar</p><p>comportamentos e programas motores ligados à fome, raiva, medo e</p><p>ansiedade.</p><p>A história mudou de rumo inesperadamente no início dos anos 1980,</p><p>quando um grupo de cientistas dos Institutos Nacionais de Saúde, nos</p><p>Estados Unidos, liderado pelos biólogos visionários Jesse Roth e Derek</p><p>LeRoith, quiseram descobrir se micro-organismos eram capazes de produzir</p><p>as mesmas moléculas sinalizadoras que Walsh, Mutt e Erspamer tinham</p><p>isolado de rãs, suínos, cães e outros animais. Produziram diferentes micro-</p><p>organismos num caldo apinhado de nutrientes, separaram os micro-</p><p>organismos do caldo e testaram-nos para a presença</p><p>ceticismo cair</p><p>por terra e a apoiar incondicionalmente essas escolhas.</p><p>Nesta obra, foquei-me na dieta mediterrânica como exemplo de estilo de</p><p>alimentação com benefícios relevantes comprovados para a nossa saúde e a</p><p>dos micróbios do intestino. Há novos estudos a decorrer, suportados pela</p><p>emergente evidência científica, que avaliam os benefícios da dieta</p><p>mediterrânica no abrandamento da progressão da doença de Alzheimer ou</p><p>de Parkinson ou num melhor tratamento farmacológico da depressão. Antes</p><p>de a ciência do microbioma ter sido desenvolvida, até mesmo uns dez anos,</p><p>teria sido impossível realizar ou financiar estudos do género. Ainda que</p><p>neste livro me tenha focado no exemplo da dieta mediterrânica, não é, de</p><p>todo, a única associada a benefícios para a saúde do intestino e do cérebro.</p><p>Muitas das dietas tradicionais em todo o mundo partilham de uma</p><p>composição idêntica à da dieta mediterrânica, mesmo que os ingredientes</p><p>individuais variem de acordo com a respetiva área geográfica. As dietas</p><p>tradicionais asiáticas, por exemplo, incluindo a japonesa, a coreana e a</p><p>chinesa, têm em comum o consumo elevado de peixe, alimentos variados de</p><p>origem vegetal ricos em polifenóis e antioxidantes, cereais e alimentos de</p><p>fermentação natural, bem como pouca carne e laticínios. Além disso, a</p><p>ingestão de alimentos tradicionais nestas culturas asiáticas, tal como em</p><p>países mediterrânicos, possui um lado comunitário muito forte, incluindo a</p><p>partilha de vários pratos pequenos durante a refeição.</p><p>Durante uma viagem à Coreia, no outono de 2016, aprendi que a dieta</p><p>tradicional coreana consistia, em grande parte, em pratos de origem vegetal,</p><p>peixe e aves, com uma porção moderada de carnes vermelhas e muito pouca</p><p>gordura animal. E depois chegou a experiência reveladora de ver os</p><p>inúmeros alimentos fermentados que acompanhavam o prato principal. Para</p><p>cada refeição, havia um número e variedade estonteantes de banchan,</p><p>kimchi e sopa de kimchi. Depois de três dias a saborear estes pratos</p><p>tradicionais coreanos, incluindo cerca de 30 tipos diferentes de banchan</p><p>com arroz e sopa, comecei a questionar-me sobre quantos micro-</p><p>organismos vivos o típico coreano ingeriria todos os anos, começando na</p><p>infância, um período particularmente crítico para a formação de um</p><p>microbioma saudável e para o eixo cérebro-intestino.</p><p>No Japão, uma refeição tradicional consiste numa sopa de miso, uma</p><p>tigela de arroz, peixe e vários pratos de vegetais – cozinhados, fritos ou em</p><p>salmoura – servidos em pequenos pratos. Esta maneira de comer e, muitas</p><p>vezes, de partilhar múltiplas pequenas porções assemelha-se à forma como</p><p>os coreanos comem os seus banchan fermentados ou os espanhóis se</p><p>deliciam com as suas tapas. Outro elemento importante na gastronomia</p><p>japonesa é o estado consciente do momento com que preparam e consomem</p><p>uma refeição. A comida tradicional no Japão não se degusta enquanto se</p><p>conduz ou vê TV, e o seu valor não é calculado com base na quantidade ou</p><p>composição de macronutrientes. A experiência que retiro das minhas visitas</p><p>ao Japão é que uma refeição japonesa exige a nossa completa atenção,</p><p>cativando todos os sentidos, incluindo o aspeto visual, a textura e o sabor.</p><p>Os benefícios para a longevidade, saúde cardiovascular e saúde</p><p>neurológica da dieta tradicional japonesa estão bem consolidados. Tem-se</p><p>verificado um aumento significativo da prevalência de doenças tipicamente</p><p>ocidentais, tais como obesidade, síndrome metabólica e doença de</p><p>Alzheimer, na população japonesa que habita nos Estados Unidos,</p><p>aproximando-se dos números observados em americanos não japoneses.</p><p>Contudo, para os japoneses que não vivem nos Estados Unidos, a</p><p>prevalência de demência tem vindo a aumentar nas últimas décadas. Alguns</p><p>dos mecanismos propostos para explicar este fenómeno no Japão incluem a</p><p>transição gradual do consumo de peixe e de refeições de origem vegetal</p><p>para uma ingestão superior de carne e de produtos de origem animal. Dados</p><p>sugerem que o fator mais amplamente associado ao progresso da doença de</p><p>Alzheimer no Japão é o aumento do consumo de gordura animal.</p><p>Há outras populações no mundo que ilustram o impacto negativo na saúde</p><p>quando se passa de uma dieta maioritariamente de origem vegetal para a</p><p>dieta norte-americana. Estudos populacionais bem documentados sobre</p><p>hábitos alimentares e doença crónica demonstram os efeitos negativos</p><p>destas mudanças na saúde metabólica e neurológica em havaianos,</p><p>ameríndios e populações indígenas na América Central.</p><p>É interessante especular, apesar de não estar ainda provado, que os</p><p>benefícios para a saúde da dieta japonesa estão relacionados com a</p><p>influência positiva na composição e diversidade da microbiota intestinal.</p><p>Tal como refiro frequentemente neste livro, as dietas de origem vegetal</p><p>estão associadas a um microbioma intestinal mais saudável e com um risco</p><p>bastante reduzido de inflamação crónica de baixo grau no organismo,</p><p>incluindo no cérebro. Acredito piamente que os benefícios para a saúde da</p><p>dieta tradicional japonesa, incluindo a dieta de Okinawa, são, até um ponto</p><p>significativo, consequência de uma regulação otimizada das interações entre</p><p>a dieta, o microbioma intestinal e o intestino.</p><p>Espero que o leitor considere este livro útil não só para melhor</p><p>compreender os diferentes meios a que recorrem o cérebro, o intestino e o</p><p>microbioma para comunicarem entre si, na saúde e na doença, mas também</p><p>para passar a tomar decisões mais racionais e com bases científicas sobre o</p><p>que comer para estar bem. Apesar de ainda faltar muito tempo para</p><p>compreendermos a complexidade do microbioma intestinal e as interações</p><p>com o cérebro na sua plenitude, as recomendações simples deste livro</p><p>podem ser implementadas agora.</p><p>Emeran A. Mayer</p><p>Los Angeles, Califórnia</p><p>14 de agosto de 2017</p><p>PRIMEIRA PARTE</p><p>O NOSSO CORPO,</p><p>O SUPERCOMPUTADOR</p><p>INTELIGENTE</p><p>Q</p><p>1</p><p>O DIÁLOGO ENTRE O CÉREBRO</p><p>E O CORPO É REAL</p><p>uando entrei em Medicina em 1970, os médicos viam o corpo</p><p>humano como uma máquina complexa com um número infinito de</p><p>peças independentes. Poderia funcionar, em média, durante cerca</p><p>de 75 anos, se fosse bem tratado e alimentado com o combustível certo. Tal</p><p>como um automóvel de alta qualidade, andava bem, contanto que não</p><p>sofresse acidentes graves e que nenhuma parte ficasse irreversivelmente</p><p>comprometida ou danificada. Apenas alguns exames de rotina a vida inteira</p><p>seriam suficientes para prevenir catástrofes inesperadas, colmatados pelas</p><p>ferramentas infalíveis da Medicina e da cirurgia para tratar problemas mais</p><p>sérios, como infeções, ferimentos acidentais ou doenças cardiovasculares.</p><p>No entanto, nos últimos 40 a 50 anos, algo de fundamentalmente errado se</p><p>passou com a nossa saúde, e o modelo antigo parece já não conseguir</p><p>fornecer uma explicação ou uma solução para resolver os problemas. O que</p><p>está a acontecer já não pode ser facilmente explicado por um simples órgão</p><p>ou gene a funcionar mal. Ao invés disso, estamos a começar a</p><p>apercebermo-nos de que os mecanismos regulatórios complexos que</p><p>ajudam o nosso corpo e cérebro a adaptarem-se ao nosso ambiente em</p><p>constante mudança estão, por sua vez, a ser afetados pelo nosso estilo de</p><p>vida. Estes mecanismos não funcionam de forma independente, mas como</p><p>partes de um todo, regulando a ingestão de alimentos, o metabolismo e o</p><p>peso corporal, o sistema imunitário e o desenvolvimento e saúde do</p><p>cérebro. Só agora estamos a reconhecer que o intestino, os micróbios que aí</p><p>vivem – a microbiota – e as moléculas de sinalização que produzem a partir</p><p>do seu vasto número de genes – o microbioma – constituem um dos maiores</p><p>componentes destes sistemas regulatórios.</p><p>Neste livro, revelarei uma nova e revolucionária abordagem sobre a</p><p>comunicação entre o cérebro, o intestino e os biliões de micro-</p><p>-organismos que vivem no intestino. Focar-me-ei, particularmente, no papel</p><p>que estas ligações desempenham na saúde do cérebro e do intestino.</p><p>Indicarei as consequências negativas para a saúde quando o diálogo entre</p><p>estes órgãos é interrompido e proponho formas de conseguir uma saúde de</p><p>ferro ao restabelecermos</p><p>de insulina, a hormona</p><p>que sinaliza os nossos tecidos que deve armazenar energia do açúcar após</p><p>uma refeição.</p><p>Tanto nas células como no caldo, descobriram moléculas semelhantes à</p><p>insulina humana – semelhantes o suficiente para estimularem células</p><p>adiposas de ratos produzidas em laboratório a armazenarem energia do</p><p>açúcar. Este resultado impressionante sugeriu que, pela primeira vez, a</p><p>insulina não ocorreu originalmente nos animais, como pensavam os</p><p>biólogos, mas estava já presente em organismos unicelulares mais</p><p>primitivos que surgiram há mil milhões de anos.</p><p>Tomei conhecimento da investigação fascinante de LeRoith e Roth</p><p>quando enviaram extratos de outros micróbios para o laboratório de Walsh</p><p>no CURE, que recorria a testes de radioimunoensaio para identificar e</p><p>quantificar estas moléculas. Estes estudos revelaram resultados</p><p>surpreendentes: além de insulina, os meus colegas encontraram moléculas</p><p>semelhantes a outros péptidos intestinais mamíferos. Desde então, foram</p><p>identificadas versões microbianas ancestrais de muitos péptidos e hormonas</p><p>intestinais, incluindo noradrenalina, endorfinas e serotonina e seus</p><p>recetores.</p><p>Roth e LeRoith resumiram as suas descobertas num artigo científico</p><p>publicado em 1982 no New England Journal of Medicine, no qual</p><p>escreveram que as moléculas sinalizadoras que o nosso sistema endócrino e</p><p>cérebro usam para comunicar tiveram origem, provavelmente, em</p><p>micróbios. Vários anos mais tarde, fiquei tão intrigado por esta evolução</p><p>científica que decidi escrever um artigo científico especulativo em</p><p>colaboração com o meu amigo Pierre Baldi, um matemático brilhante que,</p><p>na altura, trabalhava no Instituto de Tecnologia da Califórnia, nos Estados</p><p>Unidos. Apesar de um proeminente professor de linguística da UCLA ter</p><p>tentando convencer-me de que só é possível falar sobre linguagem no</p><p>contexto da comunicação humana, intitulámo-lo «Are Gut Peptides the</p><p>Words of a Universal Biological Language». (Serão os Péptidos Intestinais</p><p>Palavras de uma Linguagem Biológica Universal). O artigo foi publicado</p><p>no American Journal of Physiology, em 1991.</p><p>Quando mostrei o manuscrito a Walsh, disse, em tom de graça: «Tem</p><p>sorte de este artigo especulativo ter sido aceite para publicação. Estas ideias</p><p>estão uns trinta anos à frente do seu tempo.» (Como acontecia normalmente</p><p>com as suas afirmações visionárias, esta previsão não estava longe da</p><p>realidade). No artigo, sugerimos que estas moléculas sinalizadoras</p><p>representam as palavras de uma linguagem biológica universal usada não só</p><p>pelo intestino, mas também pelo sistema nervoso, incluindo o cérebro</p><p>pequeno e o cérebro grande, e pelo sistema imunitário. Os humanos não</p><p>eram os únicos organismos a recorrer a este sistema de comunicação</p><p>celular: a ciência havia demonstrado que rãs, plantas e até micróbios no</p><p>interior dos intestinos também o faziam. Ao aplicarmos uma abordagem</p><p>matemática denominada teoria da informação aos dados biológicos,</p><p>especulámos até sobre a quantidade de informação que diferentes tipos de</p><p>molécula sinalizadora – de hormonas a neurotransmissores – eram capazes</p><p>de enviar entre diferentes células e órgãos.</p><p>Infelizmente, o mundo científico ainda não estava preparado para</p><p>perceber o impacto destas descobertas iniciais. Tal como Walsh previu,</p><p>foram precisas cerca de trinta décadas de investigação sobre interações</p><p>entre o cérebro e o intestino para que os micróbios intestinais se tornassem</p><p>elementos centrais novamente.</p><p>A DESVANTAGEM</p><p>DA LIMPEZA PREMATURA DO CÓLON</p><p>Dahlia entrou na minha clínica vestida de preto e de óculos escuros, como</p><p>se estivesse a caminho de um funeral. Como já tinha visto muitos pacientes</p><p>assim, a sua aparência não me apanhou de surpresa. Ou talvez a roupa que</p><p>vestia era um manto que Dahlia, uma mulher de 45 anos, usava para tentar</p><p>esconder o seu desgosto.</p><p>Dahlia tinha marcado a consulta para que a ajudassem a tratar a</p><p>obstipação intratável, mas os seus problemas de saúde não se limitavam aos</p><p>movimentos intestinais. Outros sintomas incluíam dor crónica em todo o</p><p>corpo, fadiga e enxaquecas. No decorrer da minha conversa com Dahlia,</p><p>tornou-se claro que tinha também depressão crónica, uma situação que</p><p>atribuía unicamente aos problemas gastrointestinais. Contou-me que as</p><p>dificuldades com movimentos intestinais regulares remontavam à infância,</p><p>quando a mãe lhe dava clisteres regulamente – uma prática comum a que</p><p>muitas mães dessa altura recorriam para assegurarem movimentos</p><p>intestinais diários dos filhos.</p><p>Lamentavelmente, a única forma com que Dahlia garantia movimentos</p><p>intestinais regulares era tomando clisteres diários e fazendo</p><p>hidrocolonterapia todas as semanas, uma prática que consiste na lavagem</p><p>do cólon com água à temperatura corporal. Sem os clisteres diários, disse-</p><p>me, não conseguia evacuar espontaneamente durante várias semanas</p><p>seguidas. Dahlia insistia que o seu cólon estava «morto» e já não conseguia</p><p>transportar quaisquer conteúdos, e tinha pavor de sentir um desconforto</p><p>insuportável se não provocasse os movimentos dessa forma. Estes factos,</p><p>combinados com o medo de desconforto da obstipação, alimentaram a</p><p>crença de que nunca iria conseguir parar com este procedimento.</p><p>Dahlia havia já tentado outras abordagens terapêuticas, mas todas</p><p>falharam, e tratou a depressão com vários tipos de medicação que lhe</p><p>trouxeram apenas um alívio passageiro em relação à obstipação. Parecia</p><p>que um mecanismo desconhecido estava a forçar o eixo cérebro-intestino a</p><p>voltar sempre a esta forma de comunicação alterada. Realizei uma série de</p><p>avaliações de diagnóstico, mas nenhuma delas revelou nada que pudesse</p><p>explicar a obstipação. O mais interessante foi o facto de que, com base num</p><p>teste especializado de nome «teste do tempo de trânsito cólico», o tempo</p><p>que levou os conteúdos digestivos a moverem-se ao longo do cólon foi</p><p>completamente normal.</p><p>Dahlia também estava convencida de que os sintomas de ansiedade,</p><p>depressão, fadiga e dor crónica eram causados pela fermentação de resíduos</p><p>tóxicos no trato intestinal e que a sua incapacidade para se livrar destes</p><p>resíduos estava a ter um impacto significativo no seu bem-estar geral.</p><p>Muitos médicos, perante um paciente com esta constelação de sintomas e</p><p>histórias um tanto bizarras, optariam por realizar uma colonoscopia,</p><p>prescrever o laxante mais recente no mercado e encaminhar o paciente para</p><p>um psiquiatra. Atualmente, sabemos que esta estratégia estaria a ignorar</p><p>alguns fatores biológicos importantes nos sintomas do paciente. É provável</p><p>que os clisteres que Dahlia recebeu quando era criança interferiram com o</p><p>desenvolvimento de uma composição microbiana intestinal normal durante</p><p>os primeiros anos de vida, resultando em alterações prolongadas na maneira</p><p>como os micróbios intestinais comunicavam com o sistema nervoso.</p><p>Mesmo que ainda não disponhamos das evidências científicas necessárias</p><p>para identificarmos estas alterações microbianas que levam aos sintomas de</p><p>que Dahlia sofria, a sua história sugere que alterações ao desenvolvimento</p><p>normal de um microbioma saudável pode colocar os pacientes em risco de</p><p>desenvolverem sintomas psiquiátricos, bem como uma falha de</p><p>comunicação crónica entre o intestino e o cérebro. Estou convencido de</p><p>que, no futuro, teremos estratégias terapêuticas que consigam reverter estes</p><p>erros de programação tão precoces no eixo cérebro-intestino. Até lá, a</p><p>abordagem mais benéfica é seguir um tratamento holístico que inclui uma</p><p>combinação de fármacos e tratamentos comportamentais para lidar com os</p><p>sintomas psiquiátricos, estabelecendo uma diversidade mais alargada de</p><p>micróbios intestinais recorrendo a probióticos e uma dieta rica em fibras de</p><p>origem vegetal, bem como a administração de laxantes naturais para</p><p>estimular a secreção de fluidos no cólon. Esta abordagem ajudará também a</p><p>validar o sofrimento do paciente e a sua história única. No caso de Dahlia,</p><p>esta abordagem não só permitiu melhorar gradualmente os sintomas</p><p>gastrointestinais, mas também reduzir os sintomas de ansiedade e</p><p>depressão.</p><p>Ao longo dos anos, acompanhei muitos pacientes com sintomas</p><p>complexos</p><p>e aparentemente inexplicáveis, e uma das lições mais</p><p>importantes que aprendi foi ouvir as suas histórias sem preconceitos – não</p><p>importa o quão estranhos pareçam ou quão distantes aparentem estar do</p><p>paradigma científico atual. Os estudantes de Medicina não são ensinados a</p><p>diagnosticar este tipo de pacientes, por isso, seria fácil até para um</p><p>gastroenterologista veterano desvalorizar as suposições disparatadas de</p><p>Dahlia como uma aberração psicológica com características específicas só</p><p>dela. Contudo, desconfio que, para lá do desenvolvimento alterado da</p><p>comunicação entre a microbiota intestinal e o cérebro, a sua rotina era, em</p><p>parte, um resquício da crença antiga e demasiado sofredora de que os</p><p>resíduos tóxicos que se acumulam no cólon desempenham um papel em</p><p>todo o tipo de doenças e incómodos, físicas e psicológicas, e que limpar o</p><p>cólon é uma solução necessária para isto. Esta crença, denominada</p><p>putrefação ou autointoxicação, é quase tão antiga como o papiro, e o seu</p><p>tratamento fazia parte de tradições terapêuticas antigas nos quatro cantos do</p><p>mundo.</p><p>AS DESCONFIANÇAS DO INTESTINO</p><p>No Antigo Egito e Mesopotâmia, as pessoas acreditavam que alimentos a</p><p>apodrecer nos intestinos formam toxinas, que depois se movimentam pelo</p><p>corpo através do sistema circulatório, causando febre e resultando em</p><p>doença. Para curar estas doenças, o Papiro de Ebers, um papiro médico</p><p>egípcio do século IV a. C., fornece direções para o uso de um clister para</p><p>tratar mais de vinte problemas estomacais e intestinais diferentes por</p><p>intermédio da «expulsão de excrementos».</p><p>Os antigos egípcios garantiam que o deus Thot lhes havia ensinado sobre</p><p>autointoxicação e a purificação do intestino para prevenir doenças. Isto</p><p>levou a que o faraó nomeasse um responsável conhecido como o «guardião</p><p>do reto», cuja função era gerir os clisteres reais – um dos primeiros cargos</p><p>mais penosos da História.</p><p>Do outro lado do mar Vermelho, na antiga Mesopotâmia, os sumérios,</p><p>membros da mais antiga civilização humana conhecida, também aplicavam</p><p>clisteres para expulsar doenças. Também os babilónios e os assírios, cujas</p><p>tabuletas remontam a 600 a. C., mencionam o uso de clisteres. Na Índia,</p><p>Susruta, pai da cirurgia indiana, era específico nas suas recomendações,</p><p>descrevendo em textos médicos sânscritos como usar seringas, algálias e</p><p>espéculos retais. A tradição continuou com praticantes de aiurveda: a mais</p><p>importante das cinco terapêuticas de desintoxicação e limpeza era a</p><p>utilização de clisteres para purgar a zona inferior do trato gastrointestinal.</p><p>Os curandeiros aiurvédicos também recorriam normalmente a niruha basti,</p><p>um tipo de clister medicinal, para tratar uma variedade de problemas,</p><p>incluindo artrite, dor nas costas, obstipação, SII, perturbações neurológicas</p><p>e obesidade. E no leste asiático, curandeiros chineses e coreanos estavam</p><p>também preocupados com os riscos de um intestino imundo. Prescreviam</p><p>clisteres e irrigação do cólon para gerir os perigos de «humidade interna»,</p><p>que acreditavam ser a causa de um sem-número de problemas, incluindo</p><p>colesterol elevado, síndrome de fadiga crónica, fibromialgia, alergias e</p><p>cancro.</p><p>Os fundadores da Medicina Ocidental tinham outras ideias sobre a</p><p>autointoxicação e de que forma afetava o organismo, mas concordavam</p><p>com uma coisa: não era nada de bom. Hipócrates, médico da Grécia antiga,</p><p>a quem se atribui o Juramento de Hipócrates, registou o uso de clisteres</p><p>para tratar febres e outros problemas. Também se atribui a Hipócrates a</p><p>afirmação marcante de que todas as doenças começam no intestino. Os</p><p>gregos antigos adotaram a ideia egípcia de que alimentos a apodrecer cá</p><p>dentro produzem toxinas que causam doenças, que conduziu ao conceito</p><p>dos quatro humores que tinham de se manter equilibrados para</p><p>continuarmos saudáveis – uma ideia que se estendeu ao longo da Idade</p><p>Média.</p><p>Porque é que os humanos vivem há tanto tempo obcecados com os</p><p>perigos à espreita nos intestinos? Muitos pacientes que recebo na minha</p><p>clínica, de diferentes contextos étnicos, educativos e socioeconómicos,</p><p>também acreditam veementemente nesta ideia. Aparecem convencidos de</p><p>que uma série de processos imprecisos e cientificamente infundados no seu</p><p>trato gastrointestinal é responsável por vários problemas digestivos e não</p><p>só. Ao longo dos anos, estes supostos processos incluíram infeções</p><p>intestinais causadas pelo fungo Candida, alergias e hipersensibilidades a</p><p>todo o tipo de componentes alimentares, incontinência fecal e, mais</p><p>recentemente, um desequilíbrio visível da microbiota intestinal. Muitos</p><p>destes indivíduos embarcaram em complicadas e, muitas vezes,</p><p>dispendiosas rotinas para combater estas alegadas maleitas, incluindo dietas</p><p>altamente restritivas, suplementos e até antibióticos. O facto de me</p><p>procurarem na minha clínica com problemas digestivos inalterados faz-me</p><p>questionar se algum dos tratamentos fez algo de bom ou se se limitaram,</p><p>simplesmente, a aliviar as ansiedades do paciente.</p><p>Os humanos sempre usaram todo o tipo de explicações não científicas e</p><p>rituais para reduzir o medo e a ansiedade perante ameaças à sua saúde que</p><p>estão fora do seu controlo. Rituais de desintoxicação são particularmente</p><p>populares, incluindo juicing (alimentação à base de sumos naturais com</p><p>frutas, vegetais e outros ingredientes de origem vegetal) e dietas especiais</p><p>para conseguir um intestino limpo, uma contradição por si só. Hoje em dia,</p><p>estas ansiedades básicas foram drasticamente extrapoladas graças ao fluxo</p><p>infinito de histórias de autores famosos em publicações famosas – histórias</p><p>que fazem afirmações instáveis sobre os perigos constantes presentes no</p><p>que comemos. Por outro lado, com a evidência científica de que dispomos,</p><p>sabemos hoje que o medo de micróbios nos intestinos e das muitas</p><p>substâncias que produzem tem alguma fundamentação.</p><p>Tal como existem criminosos, burlões e piratas informáticos na sociedade</p><p>humana, também há micróbios que contornam as regras. Alguns destes</p><p>micro-organismos passageiros, principalmente parasitas e vírus, têm os seus</p><p>próprios objetivos (normalmente, procriação) e ignoram ou até minam a</p><p>nossa saúde e bem-estar para atingi-los. Aprenderam a entrar no nosso</p><p>sofisticado sistema operativo, o cérebro, para fazerem uso dos programas</p><p>emocionais para seu próprio benefício.</p><p>Para demonstrar o quão sofisticados podem ser estes micróbios, deixem-</p><p>me partilhar uma história fascinante que ouvi, pela primeira vez, há uns</p><p>quinze anos num encontro de psiquiatras em São Francisco. Lá, Robert</p><p>Sapolsky, um proeminente especialista nos efeitos nocivos do stresse</p><p>crónico no cérebro, deu uma palestra inspiradora sobre um impiedoso, mas</p><p>astuto, micro-organismo denominado Toxoplasma gondii. Na palestra,</p><p>descreveu um trabalho publicado em 2000 por Manuel Berdoy e o seu</p><p>grupo de investigação na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Esse</p><p>estudo demonstrava que o T. gondii tem os seus próprios objetivos de</p><p>sobrevivência e reprodução, que tenta concretizar de forma incrivelmente</p><p>habilidosa e egoísta.</p><p>Apesar de o toxoplasma se reproduzir apenas num local – o trato</p><p>gastrointestinal de gatos infetados –, o parasita consegue infiltrar o cérebro</p><p>de qualquer mamífero (incluindo humanos) ao ser mais esperto do que a</p><p>barreira hematoencefálica, que funciona como uma camada protetora que</p><p>isola e protege o cérebro de todas e quaisquer influências indesejadas.</p><p>Quando os gatos são infetados, expelem este micro-organismo nos</p><p>excrementos. É por isso que os ginecologistas recomendam que as grávidas</p><p>mantenham os gatos e as caixas de areia fora de casa e evitem fazer</p><p>jardinagem em áreas onde os gatos possam ter enterrado as fezes. No</p><p>mundo ideal do toxoplasma, os gatos expelem o parasita e os roedores</p><p>ingerem-no. O parasita produz, então, quistos circulares no corpo do roedor,</p><p>particularmente, no cérebro. O gato, por sua vez, come o roedor infetado.</p><p>Os quistos ingeridos reproduzem-se no trato gastrointestinal do gato, o gato</p><p>expulsa parasitas acabados de nascer nas fezes e o ciclo da vida continua.</p><p>É aqui que a história muda totalmente de rumo, confirmando a</p><p>extraordinária inteligência deste micróbio. Em circunstâncias normais, seria</p><p>pouco provável que o elemento patogénico de um rato infetado fosse parar</p><p>ao interior de um gato, já que os roedores evitam felinos de forma</p><p>instintiva. Mas não só os roedores infetados com toxoplasma perdem este</p><p>medo instintivo, como passam a preferir áreas que cheirem a urina de gato.</p><p>Para que isto aconteça, os pequenos quistos do parasita estabelecem--se</p><p>numa região específica do cérebro do rato com a precisão de um míssil</p><p>cruzeiro com o mínimo de danos colaterais. O alvo é o sistema operativo</p><p>emocional responsável pela ativação da resposta de medo e fuga. Este</p><p>programa emocional e motor faz com que, normalmente, os ratos fujam ao</p><p>primeiro sinal de um gato, mas o parasita elimina em específico o medo de</p><p>gatos. Os ratos infetados continuam a exibir um comportamento defensivo</p><p>perante outros predadores que não sejam gatos e o seu desempenho em</p><p>testes laboratoriais de memória, ansiedade, medo e comportamento social é</p><p>normal. Contudo, no que diz respeito a gatos, os quistos não se ficam por</p><p>aqui, aumentando também a atividade de circuitos cerebrais que controlam</p><p>a atração sexual e fazendo com que ratos infetados se sintam sexualmente</p><p>atraídos por gatos. Esta apropriação inteligente dos sistemas operativos do</p><p>cérebro do rato destrói completamente a resposta inata de medo ao provocar</p><p>uma atração sexual ao odor do gato. Por outras palavras, os ratos infetados</p><p>desenvolvem uma atração fatal.</p><p>A inteligência evolucionista por detrás destas estratégias é fascinante. As</p><p>empresas farmacêuticas já gastaram mil milhões de dólares a desenvolver</p><p>medicamentos concebidos para desempenhar as mesmas funções que o</p><p>toxoplasma desempenha com tanta ligeireza. A maioria destes</p><p>investimentos falhou. Por exemplo, compostos para atenuar a resposta ao</p><p>medo em perturbações de ansiedade e bloquear a ação do CRF, a molécula</p><p>envolvida na resposta ao stresse, e compostos desenhados para aumentar a</p><p>líbido das mulheres com desejo sexual hipoativo provaram ser pouco</p><p>eficazes e têm efeitos secundários potencialmente perigosos.</p><p>Há muitos outros micróbios que desenvolveram formas incrivelmente</p><p>sofisticadas de manipular o comportamento animal do hospedeiro. Quando</p><p>o vírus da raiva faz com que o seu hospedeiro, seja um cão, uma raposa ou</p><p>um morcego, se torne agressivo, fá-lo ao infiltrar um circuito específico do</p><p>cérebro responsável pela raiva e pela agressividade. Isto aumenta a</p><p>possibilidade de o animal infetado atacar e morder outro animal (ou</p><p>humano), transferindo, assim, o vírus na sua saliva para os ferimentos da</p><p>vítima. Enquanto o parasita do toxoplasma e o vírus da raiva se destacam</p><p>em termos de conhecimento altamente especializado do sistema nervoso do</p><p>seu hospedeiro animal, muitos outros micróbios causadores de doenças,</p><p>incluindo bactérias, protozoários e vírus, desenvolveram formas</p><p>surpreendentes de manipular o comportamento dos hospedeiros.</p><p>Se um pirata informático tivesse manipulado o sistema informático de</p><p>uma empresa da mesma forma que o parasita do toxoplasma e do vírus da</p><p>raiva manipulam o cérebro, suspeitaríamos que o criminoso fosse um pirata</p><p>com um conhecimento aprofundado do código do sistema ao nível de um</p><p>infiltrado. O toxoplasma e a raiva evoluíram ao ponto de compreenderem</p><p>todas as minudências do eixo cérebro-</p><p>-intestino dos mamíferos e desenvolveram um conhecimento detalhado dos</p><p>seus sistemas operativos emocionais – e conseguem manipulá-los para</p><p>atingir os seus objectivos.</p><p>No entanto, parasitas e vírus não são os únicos micróbios com uma</p><p>capacidade incrível para influenciar o nosso cérebro. Ao longo da última</p><p>década, investigadores concluíram que alguns dos micróbios que vivem</p><p>pacificamente no intestino dispõem de competências igualmente</p><p>impressionantes, apesar de não as usarem contra nós. Mas, mesmo assim, os</p><p>efeitos no eixo cérebro-intestino são profundos.</p><p>CONSEGUIRÃO OS MICRÓBIOS MEDIAR</p><p>A COMUNICAÇÃO ENTRE O CÉREBRO E O INTESTINO?</p><p>Há apenas alguns anos, muitos dos que estudavam as interações entre o</p><p>cérebro e o intestino pensavam que havíamos identificado todos os</p><p>componentes essenciais que contribuem para a comunicação bidirecional</p><p>entre cérebro e intestino.</p><p>Tínhamos conhecimento de muitas das maneiras usadas pelo intestino</p><p>para vigiar a digestão e o nosso meio ambiente: como sente calor, frio, dor,</p><p>distensão, acidez, nutrientes dos alimentos e outras características – tantas,</p><p>na verdade, que a superfície do intestino é provavelmente o maior e mais</p><p>sofisticado sistema sensorial do nosso organismo. Parecia evidente que</p><p>essas sensações intestinais eram transmitidas para ambos os cérebros, o</p><p>pequeno e o grande, através da ação de hormonas que sinalizam moléculas</p><p>de células imunitárias e nervos sensoriais, particularmente o nervo vago.</p><p>Este novo conhecimento explicava porque é que o nosso sistema digestivo</p><p>funciona na perfeição e, na maioria das vezes, sem que nos apercebamos</p><p>dele, porque é que o intestino reage como reage a uma refeição estragada e</p><p>porque é que nos sentimos bem depois de uma refeição maravilhosa.</p><p>Também sabíamos que, para gerir a digestão, o sistema nervoso entérico –</p><p>o pequeno cérebro no intestino – atua como uma agência reguladora local</p><p>que se mantém em contacto constante com as autoridades federais, o</p><p>cérebro, em caso de emergências. Aprendemos que, quando sentimos</p><p>emoções, programas operativos especializados de emoções no cérebro</p><p>criam enredos distintos que se desenrolam nos intestinos, produzindo um</p><p>padrão característico de contrações, fluxo sanguíneo e secreção de fluídos</p><p>digestivos vitais para cada emoção.</p><p>Os médicos entre nós ficaram satisfeitos com o nosso novo conhecimento</p><p>de que perturbações na comunicação entre o cérebro e o intestino</p><p>desempenham um papel relevante nas doenças funcionais do intestino, tais</p><p>como SII. E, contrariamente à opinião da grande maioria de psiquiatras e</p><p>muitos dos meus colegas gastroenterologistas, desde cedo desconfiei que as</p><p>alterações neste sistema de comunicação podem estar envolvidas em</p><p>doenças não relacionadas com a digestão, como ansiedade, depressão e</p><p>autismo.</p><p>Ainda assim, como acontece muito na ciência, a nossa confiança inicial</p><p>relevou-se prematura. Apesar de termos descoberto bastante sobre as</p><p>comunicações bidirecionais entre o intestino e o cérebro, estava a tornar-se</p><p>mais óbvio que, na verdade, o organismo ordena as reações e emoções</p><p>intestinais como um circuito elaborado entre o cérebro e o intestino que</p><p>inclui a microbiota como um dos componentes essenciais. Chegámos às</p><p>primeiras conclusões e fizemos as nossas previsões sem termos em conta</p><p>este papel crucial da microbiota.</p><p>Ao que parece, as reações desencadeadas emocionalmente não se mantêm</p><p>presas nos espasmos e torções do intestino. Desencadeiam, também, uma</p><p>série de sensações que depois viajam de volta até ao nosso cérebro, onde</p><p>conseguem modular ou criar emoções e são armazenadas como memórias</p><p>emocionais de uma experiência específica. E só chegámos à conclusão nos</p><p>últimos anos – para surpresa dos cientistas em todo o mundo – de que os</p><p>nossos micróbios intestinais desempenham um papel fundamental nesta</p><p>interação entre as reações e as sensações intestinais.</p><p>O que sabemos agora é que esta massa de vida invisível consegue</p><p>comunicar constantemente com ambos os cérebros através de uma</p><p>variedade de sinais, incluindo hormonas, neurotransmissores e milhares de</p><p>pequenos compostos denominados metabólitos. Estes metabólitos resultam</p><p>dos hábitos alimentares peculiares dos micróbios e são produzidos quando</p><p>se alimentam de restos não digeridos do que consumimos, de ácidos biliares</p><p>segregados pelo fígado para o intestino ou da camada de muco que cobre o</p><p>intestino. De facto, na conversa entre o intestino e o cérebro, a microbiota</p><p>intestinal envolve-se num diálogo exaustivo, recorrendo a uma linguagem</p><p>bioquímica sofisticada a que chamarei «discurso microbiano».</p><p>Porque é que os micróbios intestinais e os cérebros necessitam de um</p><p>sistema de comunicação tão sofisticado? Como é que o discurso microbiano</p><p>se desenvolveu?</p><p>Para responder a estas questões, vou levar-vos numa</p><p>viagem no tempo até aos oceanos primitivos e repletos de micróbios.</p><p>OS PRIMEIROS PASSOS DO DISCURSO MICROBIANO</p><p>Há aproximadamente quatro mil milhões de anos, as primeiras formas de</p><p>vida na Terra surgiram na forma de micro-organismos unicelulares, os</p><p>archaea. Nos primeiros três mil milhões de anos de existência, os únicos</p><p>habitantes vivos do planeta eram os micróbios – e eram aos biliões, mais</p><p>numerosos do que as estrelas na nossa galáxia. Flutuavam num silencioso,</p><p>mas colossal universo marinho carregado de cerca de mil milhões de</p><p>espécies diferentes de micróbios invisíveis de diferentes formas, cores e</p><p>comportamentos.</p><p>Durante todo este tempo, através de tentativa e erro da seleção natural,</p><p>estes micróbios aperfeiçoaram gradualmente a capacidade de comunicarem</p><p>uns com os outros. Para concretizar este feito, produziram moléculas</p><p>sinalizadoras para enviar sinais, juntamente com moléculas recetoras para</p><p>descodificarem estes sinais. Desta forma, as moléculas sinalizadoras</p><p>libertadas por um micróbio podiam ser descodificadas por outro micróbio</p><p>ali perto. E esta sinalização desencadeia, na verdade, uma alteração</p><p>passageira ou persistente no comportamento de um micróbio recetor. Tal</p><p>como Jesse Roth e Derek LeRoith descobriram, muitas destas moléculas</p><p>sinalizadoras parecem-se bastante com as hormonas e os</p><p>neurotransmissores que o intestino usa hoje para comunicar com o sistema</p><p>nervoso entérico e o cérebro.</p><p>Há cerca de 500 milhões de anos, os primeiros animais marinhos</p><p>multicelulares começaram a evoluir no oceano, e alguns micróbios</p><p>marinhos alojaram-se no seu sistema digestivo. Um desses pequenos</p><p>animais marinhos, a hidra, ainda pode ser encontrado em massas de água</p><p>doce. Esta criatura é pouco mais do que um trato digestivo flutuante: é um</p><p>tubo com alguns milímetros de comprimento com uma boca numa das</p><p>extremidades, um sistema digestivo repleto de micróbios e um disco</p><p>adesivo na outra extremidade que lhe permite acoplar-se a uma rocha ou a</p><p>uma planta aquática.</p><p>Gradualmente, os animais e micróbios desenvolveram uma relação</p><p>simbiótica, e os micróbios encontraram novas formas de transferirem</p><p>informação genética vital aos seus hospedeiros animais. Esta informação</p><p>fornecia aos hospedeiros um conjunto de moléculas que lhes faziam falta,</p><p>mas que os micróbios tinham aprendido a produzir ao longo de mil milhões</p><p>de anos por tentativa e erro. Algumas destas moléculas tornaram-se</p><p>neurotransmissores, hormonas, péptidos intestinais, citocinas e outros tipos</p><p>de molécula sinalizadora de que o nosso organismo faz uso nos dias de</p><p>hoje.</p><p>Ao longo de milhões de anos, à medida que os animais marinhos</p><p>primitivos evoluíam para criaturas mais complexas, desenvolveram</p><p>sistemas nervosos simples em forma de redes de nervos à volta dos seus</p><p>intestinos primitivos, não muito diferentes das redes do sistema nervoso</p><p>entérico que hoje envolvem o nosso intestino. As redes nervosas destas</p><p>criaturas usavam algumas das instruções genéticas que recebiam dos</p><p>micróbios para produzirem substâncias químicas sinalizadoras, que</p><p>permitiam aos neurónios passar mensagens uns aos outros e instruir as</p><p>células musculares a contrair. Estes foram os precursores dos</p><p>neurotransmissores humanos.</p><p>Incrivelmente, estas simples redes nervosas e as suas moléculas</p><p>sinalizadoras permitiam a animais primitivos de há milhões de anos</p><p>responder a alimentos ingeridos de uma forma semelhante e programada, tal</p><p>como os nossos intestinos fazem hoje. Quando consumiam alimentos,</p><p>iniciavam movimentos estereotipados, equivalentes aos do trato digestivo</p><p>humano: uma série de reflexos que impeliam os alimentos ingeridos do</p><p>esófago através do estômago e zona superior do intestino, e isso ajudava a</p><p>expelir conteúdos intestinais indesejados. Quando estes animais consumiam</p><p>toxinas, também conseguiam expeli-los por uma, outra ou ambas as</p><p>extremidades do trato gastrointestinal, o equivalente humano a vómitos e</p><p>diarreia associados a uma intoxicação alimentar. Estes animais marinhos</p><p>também continham células que segregavam determinadas substâncias</p><p>químicas para ajudar a desencadear o reflexo digestivo. Estas células</p><p>segregadoras podem muito bem ser os antepassados das nossas células</p><p>enteroendócrinas, as células especializadas no intestino que produzem a</p><p>maior parte da serotonina do organismo e as hormonas intestinais que nos</p><p>permitem sentir fome ou saciados.</p><p>A nova simbiose entre as pequenas criaturas marinhas e os seus micróbios</p><p>residentes conduziu a muitos benefícios para ambos. Os animais ganharam</p><p>a capacidade de digerir certos alimentos, obter vitaminas que não</p><p>conseguiam sintetizar sozinhos e escapar ou expelir toxinas e outros perigos</p><p>do seu meio ambiente. Os micróbios nos seus sistemas digestivos ganharam</p><p>um ambiente contido e conveniente no qual podiam prosperar e</p><p>movimentar-se de um sítio para o outro. Essa coleção de micróbios pode ser</p><p>vista como a primeira versão da microbiota nos nossos intestinos.</p><p>Esta relação simbiótica entre os micróbios intestinais e os seus</p><p>hospedeiros revelou-se tão benéfica para ambas as partes que se preservou</p><p>em praticamente todos os animais multicelulares no planeta até hoje, de</p><p>formigas, térmitas e abelhas a vacas, elefantes e humanos. O facto de que</p><p>estas atividades digestivas básicas persistiram ao longo de centenas de</p><p>milhões de anos confirma a extraordinária inteligência evolutiva que foi</p><p>programada no nosso intestino e no seu sistema nervoso entérico. Além</p><p>disso, torna também muito claro o porquê de haver uma relação tão próxima</p><p>entre os micróbios, o intestino e o cérebro.</p><p>À medida que tipos mais complexos de animais foram evoluindo, os</p><p>sistemas nervosos primitivos transformaram-se numa rede mais elaborada</p><p>de nervos fora do sistema digestivo. Esta rede foi separada – mantendo-se,</p><p>contudo, intimamente ligada – do sistema nervoso entérico, retendo a maior</p><p>parte dos mecanismos sinalizadores. Esta nova rede nervosa transformou-</p><p>se, finalmente, num sistema nervoso central, que estabeleceu a sua base no</p><p>interior do crânio.</p><p>Aos poucos, os sistemas nervosos centrais passaram a gerir os</p><p>comportamentos relacionados com o mundo exterior que tinham sido</p><p>manuseados até então exclusivamente pelo sistema nervoso entérico,</p><p>incluindo a capacidade para abordar ou fugir de outros animais, se as</p><p>circunstâncias o exigissem. Estas funções foram, por fim, transferidas para</p><p>regiões do cérebro reguladoras de emoções, enquanto o sistema nervoso</p><p>entérico ficou responsável pelas funções digestivas básicas, uma divisão de</p><p>tarefas que tem persistido no nosso eixo cérebro-intestino.</p><p>Passaram centenas de milhões de anos desde que uma mão-cheia de</p><p>micróbios fez o contacto inicial com o intestino primitivo de um simples</p><p>animal marinho. Mas a longa viagem evolutiva que temos vindo a fazer</p><p>desde então ajuda a explicar porque é que o intestino, hoje, incluindo o seu</p><p>sistema nervoso entérico e o microbioma, continua a ter tanta influência nas</p><p>nossas emoções e no nosso bem-estar geral.</p><p>UM CONTRATO ANCESTRAL</p><p>Pense, por um momento, nas maravilhas da sua microbiota intestinal. Esta</p><p>coleção de cerca de um milhar de espécies de micróbios é composta por mil</p><p>vezes mais células do que no cérebro e na medula espinhal e dez vezes mais</p><p>do que o número de células humanas no corpo inteiro. No total, a</p><p>microbiota intestinal pesa tanto quanto o fígado e mais do que o cérebro ou</p><p>o coração. Isto levou a que algumas pessoas se referissem à microbiota</p><p>como um órgão recém-descoberto que consegue rivalizar com a</p><p>complexidade do cérebro.</p><p>A grande maioria de micróbios intestinais não só são inofensivos, como</p><p>são, na verdade, benéficos para a nossa saúde e bem-estar, denominados por</p><p>cientistas como simbiontes ou comensais. Os simbiontes obtêm nutrientes</p><p>dos hospedeiros e, em compensação, ajudam a manter o equilíbrio do</p><p>intestino e defendem-no de intrusos. Contudo, há um pequeno número de</p><p>micróbios potencialmente perigosos, os patobiontes, que também vivem no</p><p>intestino. Em determinadas condições, estes micróbios desleais podem</p><p>virar-se</p><p>contra nós.</p><p>Os patobiontes dispõem de ferramentas moleculares que servem de</p><p>artilharia para atacar o revestimento do intestino, causando inflamações ou</p><p>úlceras. Esta traição pode ser uma consequência de mudanças na dieta,</p><p>tratamento com antibióticos ou stresse grave, resultando numa acumulação</p><p>anormal ou aumento da virulência de determinadas populações de bactérias,</p><p>transformando, então, simbiontes em patobiontes.</p><p>No entanto, os micróbios intestinais humanos raramente recorrem a táticas</p><p>tão agressivas. Em vez disso, vivem em harmonia connosco, ocupados com</p><p>as suas tarefas, que incluem digestão, crescimento e reprodução. O nosso</p><p>sistema imunitário também não se vira contra a nossa microbiota pela</p><p>simples razão de que os custos para ambas as partes superam os benefícios.</p><p>É um contrato ancestral que funciona tanto como um tratado de paz e um</p><p>acordo comercial, assegurando benefícios substanciais recíprocos para</p><p>todos os envolvidos.</p><p>A simbiose entre os micróbios e os seus hospedeiros que se desenvolveu</p><p>na sua forma mais simples há milhões de anos ainda se mantém firme no</p><p>nosso organismo. Os micróbios ganham por serem capazes de viver uma</p><p>vida privilegiada nos nossos intestinos, compensada com um fornecimento</p><p>constante de alimentos, temperaturas moderadas e livre-trânsito ilimitado.</p><p>Isto dá-lhes, também, uma ligação livre à nossa Internet interna – o fluxo</p><p>constante de informação transmitida pelas hormonas, péptidos intestinais,</p><p>impulsos nervosos e outros sinais químicos. Esta informação permite-lhes</p><p>manter um registo dos nossos estados emocionais, níveis de stresse,</p><p>estejamos a dormir ou acordados, e a que condições ambientais estamos</p><p>expostos. Ter acesso a esta informação privada ajuda os micróbios a ajustar</p><p>a produção dos seus metabólitos não só para assegurar melhores condições</p><p>de vida, mas também para se manterem em harmonia com o ambiente</p><p>intestinal.</p><p>Em compensação, os micróbios fornecem-nos vitaminas essenciais,</p><p>metabolizam compostos digestivos, os ácidos biliares, que são produzidos</p><p>no fígado, e desintoxicam as substâncias químicas estranhas que o nosso</p><p>organismo não produz naturalmente, os xenobióticos. Mais importante</p><p>ainda, digerem a fibra dietética e moléculas complexas de açúcar que o</p><p>nosso sistema digestivo não consegue sintetizar ou absorver por si próprio,</p><p>fornecendo-nos, dessa forma, um número substancial de calorias adicionais.</p><p>Quando as pessoas estavam mais preocupadas em caçar ou recolher</p><p>alimentos suficientes para comer do que tentar vestir umas calças justas, as</p><p>calorias extras que a microbiota extraía dos alimentos ajudava-as a</p><p>sobreviver. Hoje em dia, porém, perante um excesso de comida e uma</p><p>epidemia de obesidade, as calorias extras que os micróbios fornecem</p><p>tornaram-se uma desvantagem.</p><p>Respeitar os pontos-chave deste contrato ancestral deu origem a uma</p><p>coexistência incrivelmente pacífica e mutuamente benéfica entre micróbios</p><p>e hospedeiros, que tem persistido por milhões de anos. É um feito</p><p>extraordinário: como humanos, estamos a anos-luz de atingir esta harmonia.</p><p>O DISCURSO MICROBIANO E A INTERNET INTERNA</p><p>Os micróbios intestinais estão em constante diálogo com o trato</p><p>gastrointestinal, o sistema imunitário, o sistema nervoso entérico e o</p><p>cérebro. Tal como em qualquer relação colaborativa, a chave é uma</p><p>comunicação saudável. Estudos recentes revelam que a perturbação destas</p><p>conversas pode causar doenças gastrointestinais, incluindo doença</p><p>inflamatória intestinal e diarreia associada a antibióticos, e obesidade,</p><p>juntamente com todas as suas consequências prejudiciais, e pode estar</p><p>relacionada com o desenvolvimento de vários transtornos mentais graves,</p><p>incluindo depressão, doença de Alzheimer e autismo.</p><p>A comunicação com o cérebro ocorre em vários «canais» paralelos que</p><p>usam diferentes modos de transmissão. Isto inclui moléculas que</p><p>conseguem comunicar com o cérebro como sinais inflamatórios, viajar</p><p>através da corrente sanguínea como as hormonas ou chegar ao cérebro na</p><p>forma de sinais nervosos. A comunicação nestes canais não ocorre</p><p>isoladamente. Tal como veremos mais adiante, há imensas conversas</p><p>paralelas entre eles. Os micróbios intestinais conseguem ouvir o diálogo</p><p>permanente do cérebro e vice-versa, e a informação que flui pelos canais</p><p>biológicos que os micróbios usam para comunicar com o cérebro é</p><p>extremamente dinâmica.</p><p>A quantidade de informação que pode viajar através do nosso sistema</p><p>depende, em grande parte, da espessura e integridade da fina camada de</p><p>muco que reveste a superfície do intestino, a permeabilidade da parede</p><p>intestinal e a barreira hematoencefálica. Por norma, estas barreiras são</p><p>relativamente firmes, e o fluxo de informação dos micróbios intestinais ao</p><p>cérebro é restrito. Mas o stresse, inflamação, uma dieta rica em gorduras e</p><p>alguns aditivos alimentares podem tornar estas barreiras naturais menos</p><p>estanques.</p><p>Para compreendermos exatamente o que é que os micróbios estão a fazer</p><p>cá dentro, considere, por agora, que os vários canais de comunicação</p><p>microbiana são uma conduta de informação semelhante ao cabo de fibra</p><p>ótica que lhe permite ter Internet em casa. A quantidade de informação</p><p>transmitida por esta conduta varia. Por vezes, os micróbios podem estar a</p><p>carregar «documentos de texto» relativamente pequenos, fazendo com que</p><p>a carga de informação seja menor; outras vezes, estão a carregar uma série</p><p>de clipes de vídeo pesados.</p><p>No entanto, este sistema de comunicação funciona de várias formas</p><p>diferentes do seu serviço de banda larga. O contrato com a sua operadora de</p><p>Internet limita a quantidade de informação que pode carregar ou</p><p>descarregar por segundo. Por outras palavras, dispõe de uma largura de</p><p>banda fixa, dependendo do tipo de plano que escolher. A ligação à Internet</p><p>entre os micróbios intestinais e o cérebro, em contrapartida, é incrivelmente</p><p>dinâmica, como se tivesse o plano mais económico durante muito tempo e,</p><p>de repente, mudasse para o plano premium quando se sentisse stressado –</p><p>por exemplo, depois de um jantar num restaurante francês com uma entrada</p><p>de foie gras e um filete de solha salteado em imensa manteiga.</p><p>Olhando agora para os canais de comunicação do discurso microbiano,</p><p>comecemos por analisar o papel do sistema imunitário na sinalização dos</p><p>micróbios ao cérebro. Há várias maneiras pelas quais este diálogo entre</p><p>micróbios, sistema imunitário e cérebro pode acontecer, e as consequências</p><p>de interações alteradas entre a microbiota e o sistema imunitário têm</p><p>recebido muita atenção ultimamente, já que perturbações neste diálogo</p><p>complexo têm sido implicadas em muitas doenças neurológicas.</p><p>Um dos meios de comunicação envolve células imunitárias</p><p>especializadas, as células dendríticas, localizadas sob o revestimento</p><p>interior do intestino. As células dendríticas têm «tentáculos» que se</p><p>estendem para o interior do intestino, onde conseguem comunicar</p><p>diretamente com o grupo de micróbios intestinais que vive perto da parede</p><p>do intestino. Estes sensores de células imunitárias são a primeira linha de</p><p>deteção. Em condições normais, os recetores dessas partes celulares – os</p><p>chamados recetores de tipo Toll (TLR) – reconhecem vários sinais de</p><p>micróbios benignos, garantindo ao sistema imunitário que está tudo bem e</p><p>que não é necessária nenhuma resposta defensiva. As nossas células</p><p>imunitárias aprenderam, desde muito cedo, a interpretar corretamente estes</p><p>sinais de paz de interações como uma grande variedade de micróbios</p><p>intestinais. Em contrapartida, quando bactérias prejudiciais ou</p><p>potencialmente perigosas são detetadas através destes mecanismos,</p><p>desencadeiam uma resposta imunitária inata – uma cascata de reações</p><p>inflamatórias na parede intestinal – para manter os elementos patogénicos</p><p>na ordem.</p><p>Estudos recentes demonstraram que o muco que protege a superfície do</p><p>intestino é produzido por células especializadas na parede intestinal,</p><p>organizando-se em duas camadas: uma camada interior fina que se cola às</p><p>células da parede intestinal e uma outra, mais espessa, que não se prende a</p><p>nada. Juntas, estas duas camadas transparentes são quase invisíveis</p><p>à vista</p><p>desarmada, medindo apenas 150 micrómetros de largura e cerca de 1,5</p><p>vezes a espessura de um fio de cabelo humano. A camada de muco interior</p><p>é densa e não permite a penetração de bactérias, mantendo a superfície</p><p>celular epitelial livre dessas intrusas. Por outro lado, a camada exterior é</p><p>onde reside a maioria dos micróbios intestinais, bem como as moléculas</p><p>complexas de açúcar, as mucinas, que atuam como uma fonte essencial de</p><p>nutrientes para os micróbios, principalmente quando jejuamos ou ingerimos</p><p>menos fibra.</p><p>Quando os micróbios penetram na camada protetora de muco que cobre o</p><p>revestimento do intestino, as moléculas das paredes celulares desencadeiam</p><p>a ativação das células imunitárias sob o revestimento, que depois adequam</p><p>a resposta imunitária se, e até que ponto, o micróbio for perigoso. Uma</p><p>dessas moléculas, o lipopolissacarídeo (LPS), é particularmente importante</p><p>neste diálogo entre micróbios e o sistema imunitário. O LPS, um</p><p>componente da parede celular de certos micróbios denominados organismos</p><p>gram-negativos, é capaz de aumentar o vazamento do intestino, facilitando,</p><p>assim, a transferência de micróbios para o sistema imunitário.</p><p>Apesar da convicção geral, não é necessário haver uma infeção intestinal</p><p>com uma bactéria ou um vírus perigoso para desencadear estas respostas no</p><p>sistema imunitário. No entanto, cientistas descobriram recentemente que</p><p>existem diferentes mecanismos, relacionados com a nossa dieta e com as</p><p>consequentes alterações na composição da nossa microbiota, que</p><p>desempenham um papel fulcral. Em primeiro lugar, pessoas que mantêm</p><p>uma dieta rica em gordura animal têm um aumento na abundância relativa</p><p>dessas bactérias gram-negativas no intestino, ou Firmicutes e</p><p>Proteobacteria, e estão mais suscetíveis à ativação crónica deste mecanismo</p><p>imunitário. Em segundo lugar, uma dieta pobre em fibras de origem vegetal</p><p>reduz a abundância de um micro-organismo específico, de nome</p><p>Akkermansia muciniphila, no interior do intestino. Em condições normais,</p><p>este organismo desempenha um papel fundamental na regulação da</p><p>qualidade e espessura da camada de muco que faz parte da barreira que</p><p>separa o interior do intestino do nosso sistema imunitário (a outra parte da</p><p>barreira é a própria parede intestinal). A bactéria consegue fazê-lo ao</p><p>estimular a produção de muco pelas células que revestem os intestinos.</p><p>Quanto mais fina for a camada de muco, mais perto chegam os micróbios</p><p>intestinais às células do revestimento do intestino, mais impermeável se</p><p>torna o intestino e mais fácil se torna para os micróbios ativarem o sistema</p><p>imunitário. Por isso, tendo em conta que a gordura em excesso que</p><p>ingerimos e a redução exponencial de fibra dietética – as imagens de marca</p><p>da dieta norte-americana moderna – comprometeu as duas barreiras naturais</p><p>do intestino (a camada de muco e o revestimento intestinal) que nos separa</p><p>dos biliões de micro-organismos no nosso lúmen intestinal, os micróbios ou</p><p>as suas moléculas sinalizadoras conseguem atravessar o revestimento do</p><p>intestino em maior quantidade, provocando um envolvimento ainda maior</p><p>do sistema imunitário intestinal, um processo inflamatório que pode</p><p>espalhar-se pelo corpo inteiro. Este processo tem sido designado por</p><p>toxemia metabólica.</p><p>Independentemente de como o sistema imunitário deteta micróbios, a</p><p>resposta será sempre a produção de um número de moléculas, as citocinas.</p><p>Em determinadas circunstâncias, estas citocinas podem causar uma</p><p>inflamação local de grande escala no intestino, tal como acontece com a</p><p>doença inflamatória do cólon ou a gastroenterite aguda. Mas, assim que as</p><p>citocinas são produzidas no intestino, estes sinais também podem ser</p><p>enviados para o cérebro. Por exemplo, podem unir-se a recetores nos</p><p>terminais sensoriais nervosos do nervo vago, a autoestrada de informação</p><p>entre o intestino e o cérebro, e enviar mensagens de longa distância para</p><p>regiões vitais neste que podem reduzir o nível de energia, aumentar a</p><p>sensação de fadiga ou sensibilidade à dor e até fazê-lo sentir-se deprimido.</p><p>E, com níveis menos acentuados de inflamação vagal, a sensibilidade dos</p><p>terminais nervosos vagais aos sinais de saciedade diminui, comprometendo</p><p>o mecanismo que nos impede de comer após uma refeição abundante.</p><p>Interferências com este mecanismo são, muitas vezes, um problema para</p><p>pacientes com um consumo elevado de gorduras.</p><p>Alternativamente, as citocinas podem entrar na corrente sanguínea, viajar</p><p>até ao cérebro como uma hormona, atravessar a barreira hematoencefálica e</p><p>ativar as células imunitárias, as células da micróglia, no interior do cérebro.</p><p>Tendo em conta que a maioria das células no cérebro são células de</p><p>micróglia, que respondem às citocinas, isto faz do cérebro um alvo recetivo</p><p>à sinalização oriunda do intestino, micróbios e sistema imunitário. Esta</p><p>sinalização imunitária de longa distância do intestino ao cérebro tem sido</p><p>implicada no desenvolvimento de doenças neurodegenerativas, como a</p><p>doença de Alzheimer.</p><p>Para lá das formas complexas de comunicar com o nosso sistema</p><p>imunitário, os micróbios também usam os seus metabólitos para comunicar</p><p>com o cérebro de formas menos calamitosas, mas igualmente vitais. Os</p><p>micróbios intestinais são bastante diversificados e numerosos – existem</p><p>cerca de 360 genes microbianos no intestino para cada gene humano – e</p><p>conseguem digerir substâncias que nós não conseguimos. Isto dá origem a</p><p>várias centenas de milhares de metabólitos diferentes, muitos dos quais o</p><p>nosso sistema digestivo não consegue produzir. Um grande número destes</p><p>metabólitos consegue chegar à corrente sanguínea, correspondendo a cerca</p><p>de 40% de todas as moléculas em circulação. Muitas são consideradas</p><p>neuroativas, o que significa que conseguem interagir com o sistema</p><p>nervoso.</p><p>O intestino grosso absorve alguns destes metabólitos, transferindo-os para a</p><p>corrente sanguínea, e podem entrar ainda mais se tiver uma permeabilidade</p><p>intestinal elevada. Assim que entram em circulação, os metabólitos</p><p>conseguem viajar para muitos órgãos do organismo, incluindo o cérebro, tal</p><p>como acontece com as hormonas.</p><p>Outra forma importante a que os metabólitos recorrem para sinalizar o</p><p>cérebro é através de células enterocromafinas carregadas de serotonina na</p><p>parede do intestino. Estas células estão repletas de recetores que detetam</p><p>uma variedade de metabólitos, incluindo metabólitos dos ácidos biliares, e</p><p>ácidos gordos de cadeia curta, como o butirato, que provêm de cereais</p><p>integrais, espargos ou a sua refeição de vegetais preferida. Alguns destes</p><p>metabólitos podem aumentar a produção de serotonina nas células</p><p>enterocromafinas, fazendo com que haja mais quantidade disponível desta</p><p>molécula para sinalizar o cérebro através do nervo vago. Podem também</p><p>alterar o sono, a sensibilidade à dor e o bem-estar geral. Em experiências</p><p>com animais, foi demonstrado que podem influenciar o desenvolvimento de</p><p>comportamentos sociais e relacionados com ansiedade. E podem até</p><p>desempenhar um papel importante no quão bem nos sentimos depois de</p><p>uma refeição saudável com fruta, cereais integrais e vegetais, ou quão mal</p><p>nos sentimos depois de comer demasiadas batatas fritas gordurosas ou um</p><p>balde de frango frito.</p><p>MILHÕES DE CONVERSAS</p><p>O que torna o papel da microbiota tão intrigante e abrangente é o facto de</p><p>esta massa de micróbios estar exatamente no ponto de ligação que separa as</p><p>reações intestinais das sensações intestinais. Dependendo do tipo de</p><p>refeição que acabou de comer ou se o seu intestino está completamente</p><p>vazio, o sistema nervoso entérico altera o ambiente intestinal e gere a</p><p>digestão ao controlar a acidez, fluidez, secreções de sucos digestivos e</p><p>contrações mecânicas do trato gastrointestinal. Desta forma, os micróbios</p><p>adaptam-se constantemente às alterações regionais de acidez, secreção de</p><p>sucos digestivos vitais, nutrientes disponíveis e quanto tempo demoram a</p><p>ser digeridos antes de serem expelidos. Do mesmo modo, quando stresse ou</p><p>ansiedade elevada fazem com que os programas emocionais do cérebro</p><p>criem enredos dramáticos para serem representados nos intestinos,</p><p>isto</p><p>acaba por alterar as contrações, índices de trânsito do estômago ao intestino</p><p>grosso e fluxo sanguíneo. Isto pode alterar drasticamente as condições de</p><p>vida dos micróbios no intestino delgado e no intestino grosso, e é</p><p>provavelmente uma das razões por que a composição dos micróbios se</p><p>altera em alturas de stresse. Por outro lado, quando nos sentimos</p><p>deprimidos e tudo no intestino abranda, os micróbios sentem estas</p><p>mudanças e ativam os genes que os ajudam a adaptar-se a estas condições</p><p>inconstantes.</p><p>Entretanto, os tecidos digestivos, imunitários e nervosos estão ocupados a</p><p>comunicar uns com os outros, usando moléculas sinalizadoras que incluem</p><p>péptidos, citocinas e neurotransmissores. Fundamentalmente, todas estas</p><p>substâncias são elementos de linguagens bioquímicas que, graças à nossa</p><p>longa e partilhada história evolutiva, são, na verdade, dialetos distantes do</p><p>«discurso microbiano».</p><p>À medida que nós, cientistas, fomos ultrapassando a nossa surpresa inicial</p><p>ao papel fulcral destes micróbios na comunicação entre o cérebro e o</p><p>intestino, e investigando esta relação mais a fundo nos últimos anos, tornou-</p><p>se claro que o cérebro, o intestino e o microbioma estão em constante</p><p>comunicação. Começámos a olhar para o cérebro, o intestino e o</p><p>microbioma como partes de um único sistema integrado, com imensas</p><p>conversas paralelas e feedback de uma parte para outra. Refiro-me a este</p><p>sistema ao longo do livro como o eixo cérebro-intestino-microbioma.</p><p>Durante todo o século XX, os cientistas não conseguiam ver os nossos</p><p>parceiros microbianos porque a maioria deles não podia ser produzida em</p><p>laboratório. Até ao aparecimento de técnicas automatizadas de</p><p>sequenciação genética para identificar classes de micróbios e</p><p>supercomputadores para processar a quantidade colossal de dados</p><p>microbianos, não tínhamos forma de conduzir inquéritos extensos para</p><p>determinar que micróbios existiam, de que genes dispunham coletivamente</p><p>e que metabólitos produziam. Mais especificamente, tínhamos um</p><p>entendimento limitado de como os diferentes intervenientes no eixo</p><p>cérebro-intestino-microbioma comunicam entre si.</p><p>Hoje, é evidente que os micróbios desempenham mais do que um papel</p><p>privilegiado no nosso organismo. Tal como referiu o reconhecido</p><p>especialista em microbioma David Relman, da Universidade de Stanford,</p><p>na Califórnia, «A microbiota humana é uma parte fundamental do que</p><p>significa ser humano.» Para lá da função indispensável que é digerir</p><p>grandes quantidades da nossa dieta, está a tornar-se cada vez mais claro que</p><p>os micróbios exercem uma imensa e totalmente inesperada influência nos</p><p>sistemas de controlo do apetite e sistemas operativos emocionais no</p><p>cérebro, no nosso comportamento e até nas nossas mentes. Estas criaturas</p><p>invisíveis no sistema digestivo têm a última palavra no que diz respeito a</p><p>como nos sentimos, como tomamos as nossas decisões e como o cérebro se</p><p>desenvolve e envelhece.</p><p>SEGUNDA PARTE</p><p>INTUIÇÃO E SENTIMENTOS</p><p>INSTINTIVOS</p><p>F</p><p>5</p><p>MEMÓRIAS NOCIVAS:</p><p>EFEITOS DOS ACONTECIMENTOS</p><p>NOS PRIMEIROS ANOS DE VIDA</p><p>NO DIÁLOGO ENTRE</p><p>O CÉREBRO E O INTESTINO</p><p>az objetivamente sentido que crescer num ambiente familiar</p><p>harmonioso e protetor tem um efeito positivo no nosso</p><p>desenvolvimento. Pais em todo o mundo esforçam-se ao máximo</p><p>para proporcionar o melhor cenário possível aos seus filhos. Mas, desde que</p><p>surgiu a psicanálise, sabemos que determinadas experiências negativas e</p><p>reprimidas na infância podem resultar em problemas psicológicos anos mais</p><p>tarde. Na maioria das vezes, estas experiências na infância fogem do</p><p>controlo dos pais. No seu êxito de vendas The Drama of the Gifted Child, a</p><p>psicóloga Alice Miller defendeu, durante quase 40 anos, que todos os casos</p><p>de doença mental tinham a sua origem de desenvolvimento em traumas de</p><p>infância subconscientes e não resolvidos, que podiam ser físicos ou</p><p>psicológicos. Apesar de ter ficado fascinado ao ler o livro de Miller durante</p><p>a minha formação médica no início dos anos 1980, levei mais de 20 anos a</p><p>compreender que essa ligação entre acontecimentos adversos nos primeiros</p><p>anos de vida e os resultados em termos de saúde em adulto expostos no</p><p>livro não só eram relevantes para o desenvolvimento de problemas</p><p>comportamentais e psicológicos, como depressão, ansiedade e compulsão ,</p><p>como também poderiam ser relevantes para os problemas médicos dos</p><p>meus pacientes, particularmente, aqueles com perturbações gastrointestinais</p><p>crónicas.</p><p>Atualmente, explorar os primeiros 18 anos de um paciente tornou--se uma</p><p>parte essencial de qualquer historial clínico que registo. E é, de facto, uma</p><p>tarefa simples, já que não requer formação psicanalítica especializada e não</p><p>leva muito tempo. Consigo obter mais pistas importantes sobre as doenças</p><p>de muitos dos meus pacientes ao indagar sobre os primeiros anos de vida do</p><p>que a pedir todos os detalhes dos seus sintomas. Faço sempre esta simples</p><p>pergunta: «Acha que teve uma infância feliz?» O mais extraordinário é que,</p><p>ao fazer esta pergunta, sem sondar muito mais, respondem-me,</p><p>normalmente, com honestidade sobre experiências traumáticas de que se</p><p>recordam dos seus primeiros 18 anos de vida. Na maioria das vezes, o</p><p>paciente não fez a ligação entre essas experiências e o problema de saúde</p><p>atual. Além disso, como fui aprendendo ao longo dos anos, as suas</p><p>respostas revelam muito sobre a origem e natureza dos problemas de</p><p>estômago de que sofrem em adultos.</p><p>Mais de metade dos meus pacientes, ao longo dos anos, relatou um</p><p>problema familiar durante a infância. Um dos pais ficou doente ou tiveram</p><p>de passar por um divórcio amargo, seguido de um litígio sem fim para se</p><p>decidir os direitos de custódia, talvez, em casos mais extremos, um familiar</p><p>próximo sofria de alcoolismo ou de toxicodependência. Alguns contam-me</p><p>que, quando eram crianças, sofreram de violência verbal, física ou sexual</p><p>por parte de um dos pais ou de um estranho.</p><p>Há vários anos, recebi uma mulher de 35 anos, Jennifer. «Tenho sofrido</p><p>de dores de barriga toda a vida, mas piorou muito no último ano», disse-me.</p><p>Para melhor compreender a natureza da dor abdominal, perguntei-lhe sobre</p><p>os movimentos intestinais. Contou-me que há dias em que tem de ir a correr</p><p>para a casa de banho e outros em que passa muito tempo com prisão de</p><p>ventre, sem conseguir fazer nada. A dor era pior nos dias em que tinha</p><p>diarreia e os movimentos intestinais aliviavam-na temporariamente. À</p><p>medida que fomos conversando, tornou-se evidente que Jennifer também</p><p>estava a sofrer emocionalmente. Desde cedo na adolescência, disse-me, que</p><p>sofria de ansiedade com ataques de pânico e de episódios recorrentes de</p><p>depressão.</p><p>Jennifer já tinha sido vista por outros especialistas, incluindo dois</p><p>gastroenterologistas e um psiquiatra, e realizado a usual bateria de testes de</p><p>diagnóstico, incluindo endoscopias às áreas superior e inferior do trato</p><p>digestivo e uma TAC ao abdómen. Nenhum dos testes mostrou algo de</p><p>errado. «Os dois últimos médicos que consultei disseram-me que não havia</p><p>nada de errado comigo e deram a entender que estava tudo na minha</p><p>cabeça», contou-me.</p><p>Os médicos de Jennifer tinham prescrito o típico cocktail de</p><p>medicamentos para os sintomas inexplicáveis: Celexa, um antidepressivo, e</p><p>Prilosec, que reduz a acidez estomacal. Mas também lhe disseram que teria</p><p>de aprender a viver com os sintomas e que não havia mais nada que</p><p>pudessem fazer por ela. «Quase que deixei de acreditar completamente em</p><p>médicos», confessou.</p><p>Os médicos passam muito mais tempo a perguntar aos pacientes detalhes</p><p>sobre os hábitos intestinais e a verificar a pressão arterial e os níveis de</p><p>colesterol do que a explorar os fatores de risco relacionados com os</p><p>primeiros anos de vida. No entanto, um estudo recente com cerca de 54 000</p><p>americanos selecionados aleatoriamente demonstrou que crianças ou</p><p>adolescentes que passaram por situações adversas têm mais probabilidade</p><p>de sofrer, em adultos, de problemas de saúde, ataques cardíacos, tromboses,</p><p>asma e diabetes. O risco de tais resultados negativos aumentou com o</p><p>número de situações adversas pelas quais os participantes</p><p>passaram antes</p><p>dos 18 anos. Uma análise anterior dos registos de saúde de uma grande</p><p>organização de manutenção da saúde, no estudo Adverse Childhood</p><p>Experiences ou ACE (Experiências Adversas na Infância – EAI), relatou</p><p>descobertas similares, incluindo um aumento de quatro a doze vezes maior</p><p>de risco de alcoolismo, depressão e consumo de substâncias tóxicas, e uma</p><p>redução de duas a quatro vezes maior na autoperceção do estado de saúde.</p><p>O questionário usado em ambos os estudos, o questionário ACE,</p><p>perguntava aos participantes sobre acontecimentos traumáticos na infância</p><p>que envolvessem abuso sexual, físico e emocional, bem como situações de</p><p>disfunção familiar relacionadas com os pais. A maioria destas questões</p><p>explorou situações em que a estabilidade familiar havia sido corrompida e</p><p>as interações de afeto entre o principal responsável por uma criança e a</p><p>própria criança deixavam de existir. Outros estudos demonstraram que a</p><p>associação bem conhecida entre pobreza e situações sanitárias precárias está</p><p>particularmente relacionada com os efeitos do stresse crónico causado pela</p><p>realidade de um nível socioeconómico baixo.</p><p>Ainda que a ligação entre uma grande variedade de acontecimentos</p><p>traumáticos ou instáveis no desenvolvimento de uma criança e</p><p>consequências graves para a saúde faça sentido, apenas nos últimos trinta</p><p>anos é que a ciência deslindou os mecanismos biológicos responsáveis por</p><p>esta ligação, abrindo portas para a inversão dos efeitos nocivos desta</p><p>programação nos primeiros anos de vida. Estas descobertas científicas não</p><p>só são extraordinárias, como têm também implicações prolongadas na nossa</p><p>saúde. Se mais médicos estivessem a par destas ligações e questionassem os</p><p>seus pacientes sobre a infância, poderiam desvendar mais fatores de risco</p><p>importantes e, possivelmente, conceber planos de tratamento integrativos</p><p>mais eficazes.</p><p>Durante a consulta com Jennifer, perguntei-lhe porque lhe tinham</p><p>receitado o antidepressivo Celexa há tantos anos. Conversámos sobre a sua</p><p>depressão e ansiedade. «Não tem nada que ver com as minhas dores no</p><p>estômago», insistia. Não tentei mudar a sua opinião neste assunto delicado,</p><p>mas continuei a questioná-la com cuidado sobre fatores que me pareciam</p><p>estar na origem dos seus sintomas digestivos crónicos e dos sintomas</p><p>psicológicos.</p><p>«Acha que teve uma infância feliz?», perguntei-lhe. Quase por milagre, a</p><p>pergunta desvelou um livro de histórias carregadas de stresse. Quando</p><p>Jennifer estava ainda no ventre, a avó materna foi diagnosticada com cancro</p><p>da mama, e a situação deixou a mãe, grávida, muito angustiada. Viu os pais</p><p>discutirem durante anos a fio quando era pequena, acabando por se</p><p>divorciarem quando tinha oito anos. Jennifer não era a única pessoa na</p><p>família que sofria com sintomas de depressão e problemas intestinais. Tanto</p><p>a mãe como a avó tinham sofrido de depressão e ansiedade a vida toda, e</p><p>lembrava-se que passavam o tempo todo a queixarem-se dos seus</p><p>«problemas de estômago». A história de Jennifer abriu caminho para as</p><p>possíveis causas dos sintomas gastrointestinais e mentais – e fez-me</p><p>acreditar que conseguiria ajudá-la.</p><p>Como muitos pacientes, Jennifer nunca tinha considerado que o leque de</p><p>sintomas físicos e emocionais pudessem estar ligados, que pudessem estar</p><p>vinculados às experiências stressantes dos primeiros anos de vida ou que</p><p>essas experiências tinham programado as interações entre o cérebro, o</p><p>intestino e os micróbios de uma forma tão pouco saudável. Mas um</p><p>conjunto crescente de cientistas sugere que já está na altura de integrarmos</p><p>esta ideia na prática médica dos dias de hoje.</p><p>PROGRAMADO PARA O STRESSE</p><p>Na primavera de 2002, numa pequena conferência científica em Sedona,</p><p>no estado norte-americano do Arizona, dois médicos determinados</p><p>apresentavam opiniões antagónicas sobre a causa de perturbações</p><p>relacionadas com stresse. Juntamente com Charles Nemeroff, reconhecido</p><p>psiquiatra, na altura na Universidade de Emory, nos Estados Unidos,</p><p>organizámos a conferência para explorar o papel de acontecimentos</p><p>traumáticos nos primeiros anos de vida numa variedade de doenças médicas</p><p>e psiquiátricas crónicas. O cenário natural de Sedona, um refúgio envolvido</p><p>por falésias de rocha vermelha, atraiu os principais investigadores e</p><p>médicos da América do Norte.</p><p>No segundo dia da conferência, o reconhecido psicanalista e cirurgião</p><p>abdominal canadiano Ghislain Devroede subiu ao palco. Devroede era</p><p>especialista em tratar pacientes vítimas de abuso sexual quando crianças,</p><p>recorrendo à psicanálise para impelir à superfície a dor e a vergonha</p><p>reprimidas. Sem este tratamento, afirmou, a emoção reprimida fica</p><p>enterrada no organismo, causando sintomas físicos. Depois, contou histórias</p><p>de pacientes com dores pélvicas e problemas intestinais, como obstipação</p><p>crónica, que tinha tratado, cujos sintomas desapareceram depois de fazerem</p><p>psicanálise e enfrentarem o passado.</p><p>Mas Nemeroff, cuja reputação cresceu a estudar a base biológica dos</p><p>principais transtornos psiquiátricos, não aceitava aquela afirmação.</p><p>Desafiou Devroede: «Sabemos que a psicanálise não é muito eficaz no</p><p>tratamento de consequências mentais e físicas de traumas nos primeiros</p><p>anos de vida». Dava para sentir a tensão na sala. Nemeroff afirmou que não</p><p>há psicanálise suficiente que consiga reverter os vestígios de abusos nos</p><p>primeiros anos de vida no cérebro dos pacientes. A maioria dos</p><p>participantes que convidámos concordaram com este ponto. Já não</p><p>tínhamos de nos questionar sobre ideias freudianas tenebrosas sobre</p><p>sexualidade na infância ou neuroses para ajudarmos os nossos pacientes.</p><p>Em vez disso, a ciência mudou a nossa forma de pensar. Atualmente,</p><p>temos provas concretas de que situações de stresse nos primeiros anos de</p><p>vida, incluindo uma interação comprometida entre os principais</p><p>responsáveis por uma criança e a própria criança, podem deixar vestígios</p><p>duradouros no cérebro. Sabemos também, graças a questionários</p><p>aprofundados a populações humanas, que estas mudanças podem levar ao</p><p>desenvolvimento de transtornos mentais ligados ao stresse, como depressão</p><p>e ansiedade, e que estes podem desempenhar um papel relevante em</p><p>síndromes gastrointestinais, como a SII. Contudo, dados provenientes de</p><p>questionários e teorias psicológicas não são suficientes para ajudar os</p><p>indivíduos afetados. Para se poderem desenvolver novas terapêuticas com o</p><p>objetivo de reverter esta programação precoce nos pacientes, precisamos de</p><p>saber de que forma essas experiências alteram os circuitos neurológicos</p><p>específicos no cérebro que fundamentam a nossa resposta a uma série de</p><p>situações de stresse. Este conhecimento apenas podia ser adquirido</p><p>recorrendo a estudos básicos executados em modelos animais de</p><p>adversidades nos primeiros anos de vida.</p><p>Houve um avanço na nossa perceção quando os investigadores</p><p>psiquiátricos perceberam, nos anos 1980, que o stresse provoca os mesmos</p><p>efeitos biológicos em animais, como ratazanas, ratos e macacos, tal como</p><p>acontece com os humanos. Um dos principais focos destes estudos em</p><p>animais foi o papel das interações entre a mãe e a prole, já que tais</p><p>interações eram mais fáceis de recriar em laboratório, comparado a</p><p>comportamentos tão únicos como abuso verbal e emocional ou desavenças</p><p>conjugais.</p><p>Por exemplo, os roedores, tal como as pessoas, têm temperamentos</p><p>diferentes: alguns são tímidos, outros mais sociáveis; alguns são</p><p>exploradores intrépidos, outros mantêm-se perto de casa. E algumas mães</p><p>roedoras – até animais geneticamente idênticos – são melhores do que</p><p>outras a cuidar dos filhos. Uma mãe roedora que cuida bem dos filhos e lhes</p><p>faz todas as vontades posiciona-se sobre eles com a coluna manifestamente</p><p>arqueada e as pernas abertas obliquamente para fora, permitindo-lhes mudar</p><p>de mamilo, passando, também, muito tempo a lambê-los e a limpá-los. Uma</p><p>mãe ratazana mais negligente deita-se de lado ou em cima das crias</p><p>enquanto estas tentam mamar. Isto faz com que não consigam mudar de</p><p>mamilo ou agitar-se, ambas as coisas importantes para as crias.</p><p>Em experiências relevantes que começaram nos anos 1980,</p><p>Michael</p><p>Meaney, um neurocientista da Universidade de McGill, em Montreal, no</p><p>Canadá, estudou a forma como as interações entre mães roedoras e as suas</p><p>crias se desenvolviam ao longo da vida dessas crias. A sua equipa de</p><p>investigação pegou em mães geneticamente idênticas e gravou e analisou os</p><p>seus comportamentos enquanto as crias eram ainda pequenas. Depois,</p><p>deixou as crias crescerem e examinou as diferenças entre as crias de mães</p><p>cuidadoras e as de mães stressadas.</p><p>As crias que foram bem cuidadas tornaram-se adultos mais descontraídos,</p><p>menos reativos ao stresse e com menos probabilidade de ter</p><p>comportamentos aditivos, tais como exagerar perante um abastecimento de</p><p>álcool ou cocaína. Eram mais sociáveis com outros ratos, mais aventureiros</p><p>e mais disponíveis a explorar novos locais. As crias de mães stressadas e</p><p>negligentes tornaram-se adultos solitários com tendência para os</p><p>equivalentes a ansiedade, depressão e comportamentos aditivos. Estudos em</p><p>mães primatas e seus filhos demostraram resultados semelhantes. Filhos</p><p>primatas stressados cujas mães são inconsistentes, imprevisíveis e, por</p><p>vezes, desapegadas tornam-se tímidos, submissos, medrosos, menos</p><p>sociáveis e mais suscetíveis a depressão do que os seus pares mais bem</p><p>cuidados. Estas descobertas iniciais foram o princípio de uma mudança de</p><p>paradigma para compreendermos de que forma as experiências na infância</p><p>podem afetar a nossa saúde e o diálogo entre o intestino e o cérebro.</p><p>Noutro estudo em animais, os neurocientistas Paul Plotsky, da</p><p>Universidade de Emory, e Michael Meaney estudaram crias de rato cujas</p><p>mães eram naturalmente cuidadoras ou inteligentes. Depois de as crias</p><p>crescerem, impingiam-lhes situações de stresse ao prenderam-nas em</p><p>cubículos pequenos e estreitos. Os ratos mais bem cuidados apresentavam</p><p>níveis de corticosterona, a hormona do stresse dos roedores, mais reduzidos.</p><p>(O equivalente humano é o cortisol). Apresentavam, também, alterações</p><p>hormonais no sangue e no cérebro que impediam uma resposta ao stresse</p><p>descontrolada. Ao que parece, as crias que tinham sido limpas e acarinhadas</p><p>libertavam várias hormonas, incluindo a hormona do crescimento, essencial</p><p>para o desenvolvimento de um cérebro jovem.</p><p>Entretanto, tem-se acumulado uma grande quantidade de evidências</p><p>científicas que confirmam a relação próxima entre o nível de stresse da mãe</p><p>e a forma como o sistema nervoso da criança reagirá ao stresse mais tarde.</p><p>Em várias situações laboratoriais concebidas para provocar stresse numa</p><p>progenitora animal – afetando, assim, o comportamento com a cria –,</p><p>investigadores concluíram que alterações associadas ao stresse no</p><p>comportamento da mãe programam os cérebros das crias para se tornarem</p><p>mais suscetíveis a situações de stresse e criar mais ansiedade em adultos.</p><p>Independentemente do fator de stresse inicial ou o tipo de animal</p><p>envolvido, o efeito é semelhante. Quanto mais intenso for o stresse</p><p>impingido à mãe, pior será o seu comportamento com a cria, transformando</p><p>mães cuidadoras em progenitoras negligentes. Mães em stresse derrubavam</p><p>as crias, não lhes davam tempo suficiente para mamar e não as limpavam</p><p>tanto. Algumas estavam tão stressadas que mataram as crias e comeram-</p><p>nas!</p><p>Mais extraordinário do que observar os efeitos negativos constantes do</p><p>stresse maternal no comportamento das crias foi compreender os</p><p>mecanismos biológicos subjacentes a estas mudanças de comportamento.</p><p>Estudar os cérebros de ratos afetados revelou alterações drásticas a nível</p><p>estrutural e molecular. Circuitos e ligações cerebrais desenvolveram-se de</p><p>forma diferente, dependendo do comportamento da mãe, e vários sistemas</p><p>neurotransmissores envolvidos nestas ligações mostraram alterações. Os</p><p>animais negligenciados produziam a molécula CRF em maior quantidade,</p><p>ao passo que os sistemas eficazes que regulam a resposta ao stresse,</p><p>incluindo o circuito sinalizador que envolve o neurotransmissor GABA</p><p>(ácido gama-aminobutírico) e seus recetores, eram produzidos em menor</p><p>quantidade. Devido a estas alterações, nem o Valium, um medicamento</p><p>poderoso no tratamento da ansiedade, conseguia reduzir os níveis de</p><p>stresse.</p><p>Como consequência, em grande parte das minhas interações diárias com</p><p>pacientes que relatam situações adversas nos primeiros anos de vida –</p><p>estudos sugerem que a narrativa é partilhada por até 40% de pessoas</p><p>saudáveis e até 60 % de pacientes com SII –, a minha investigação, nos</p><p>últimos vinte anos, tem-se focado em compreender melhor a ligação entre a</p><p>mudança nas interações entre o cérebro e o intestino e adversidades nos</p><p>primeiros anos de vida.</p><p>STRESSE PRECOCE E INTESTINO HIPERSENSÍVEL</p><p>Não muito depois da publicação dos primeiros estudos sobre como a</p><p>maternidade pode programar os cérebros de ratos jovens, recebi um convite</p><p>para a conferência organizada pela American College of</p><p>Neuropsychopharmacology que junta psiquiatras biológicos da América do</p><p>Norte. Honrado pelo convite, participei num pequeno simpósio sobre</p><p>mecanismos de stresse, onde conheci Paul Plotsky, o neurocientista da</p><p>Universidade de Emory. Ao assistir à sua apresentação sobre o trabalho</p><p>desenvolvido em torno do stresse em mães roedoras e como este altera a</p><p>biologia e o comportamento das crias, questionei-me, de imediato, sobre</p><p>como poderiam ser aplicadas estas descobertas e, mais importante, que</p><p>benefícios poderia oferecer aos meus pacientes com perturbações</p><p>gastrointestinais crónicas.</p><p>Pouco tempo depois da conferência, viajei até Atlanta, nos Estados</p><p>Unidos, para explorar possíveis formas de colaborarmos. Estava uma noite</p><p>quente e chuvosa e, ao longo do jantar num restaurante e uma bebida em</p><p>sua casa, eu e Paul conversámos durante horas sobre o significado do seu</p><p>trabalho, não só para perturbações intestinais causadas por stresse, mas</p><p>também para a ciência do corpo e da mente no geral. Mencionei as</p><p>perturbações dos meus clientes, dores e outros sintomas psicológicos. «Sou</p><p>eu. Tenho isso tudo», brincou. Questionei-me, em voz alta, se os sintomas</p><p>dos meus pacientes poderiam ter origem na programação na infância do</p><p>eixo cérebro-intestino, e decidi passar algum tempo no laboratório de Paul a</p><p>explorar esta teoria.</p><p>Quando planeei estas experiências, tinha em mente pacientes com SII</p><p>como Jennifer. Nessa altura, já sabíamos que situações adversas na infância</p><p>predispunham os adultos a ansiedade, ataques de pânico e depressão.</p><p>Contudo, além de alguns relatórios que ligavam os sintomas de SII a abuso</p><p>sexual no passado, ninguém sabia se este tipo de acontecimentos causava</p><p>dores gastrointestinais e alterações nos movimentos intestinais, e não</p><p>tínhamos ideia alguma se as alterações nos micróbios intestinais estavam</p><p>envolvidas nestes processos.</p><p>Quando provocávamos stresse nas mães roedoras ao separá-las das crias</p><p>durante três horas por dia durante as primeiras semanas de vida, como fazia</p><p>Plotsky, as crias apresentavam características semelhantes a SII mais tarde.</p><p>Em pacientes com esta síndrome, a atividade normal do intestino pode</p><p>causar dor abdominal, cólicas e inchaço visível do estômago – sintomas que</p><p>têm origem num intestino hipersensível e hiperresponsivo. A maioria dos</p><p>pacientes têm também níveis de ansiedade elevados, e uma grande</p><p>percentagem sofre de uma perturbação de ansiedade ou depressão. Nas</p><p>nossas experiências, os ratos que tinham passado por uma infância menos</p><p>cuidada apresentavam atributos semelhantes. Os animais eram mais</p><p>ansiosos, os intestinos mais sensíveis e, perante uma situação de stresse,</p><p>expeliam mais pequenas bolinhas de fezes, o equivalente a diarreia nos</p><p>roedores. Quem já teve de correr para uma casa de banho antes de uma</p><p>apresentação importante ou uma entrevista de emprego conhece bem a</p><p>sensação, mas os pacientes com SII – e os nossos ratos – sofrem desses</p><p>sintomas a toda a hora.</p><p>Incrivelmente, uma substância química que bloqueia a ação do CRF, o</p><p>interruptor central do cérebro cuja produção aumenta com o stresse nos</p><p>primeiros anos de vida, acabou com todos os seus sintomas: os</p><p>comportamentos relacionados com stresse, hipersensibilidade do intestino e</p><p>diarreia.</p><p>Infelizmente, mesmo que tais medicamentos pudessem, um dia,</p><p>tratar SII e outras perturbações causadas por stresse, os esforços para</p><p>desenvolver uma medicação segura e eficaz direcionada ao sistema de</p><p>sinalização CRF no eixo cérebro-intestino têm sido infrutíferos até agora.</p><p>Muitos dos cientistas envolvidos nesta demanda, incluindo alguns do meu</p><p>laboratório, têm tido dificuldade em perceber este fracasso. Será a história</p><p>nos humanos mais complicada do que se pensava? Apesar de os cientistas</p><p>de investigação básica tenderem a elaborar conclusões imediatas sobre</p><p>possíveis tratamentos com novas medicações baseadas nas suas</p><p>experiências em roedores, o nosso cérebro não só é muito maior do que o</p><p>destes animais, mas possui também circuitos e regiões que são tanto</p><p>subdesenvolvidas quanto inexistentes no cérebro de um rato, como, por</p><p>exemplo, o córtex pré-frontal ou a ínsula. Decidi, então, desde cedo, que, se</p><p>queríamos determinar a relevância das observações inovadoras feitas em</p><p>animais para compreendermos melhor os sintomas nos humanos, era</p><p>essencial olhar diretamente para o cérebro de participantes humanos que</p><p>passaram por adversidades nos primeiros anos de vida.</p><p>Com este objetivo em mente, recorremos ao poder da neuroimagiologia</p><p>para observar diretamente o cérebro de participantes humanos vivos.</p><p>Usando esta tecnologia, estudámos, por via de imagens, os cérebros de 100</p><p>adultos saudáveis que, antes de completarem 18 anos, sofreram de</p><p>negligência; abuso verbal, emocional ou físico; doença grave ou morte de</p><p>um dos pais; ou divórcio dos pais ou outra desavença familiar grave. Fiquei</p><p>surpreendido ao descobrir que, até em indivíduos saudáveis que não</p><p>apresentavam sintomas de ansiedade, depressão ou perturbações intestinais,</p><p>as tomografias ao cérebro mostravam estruturas cerebrais alteradas e</p><p>atividade neural alterada em redes cerebrais que nos permitem calcular o</p><p>perigo de uma situação ou o significado de uma sensação corporal</p><p>específica. Esta suposta rede de saliência desempenha também um papel</p><p>importante na previsão de resultados positivos ou negativos de</p><p>determinadas situações e é uma parte integral da nossa tomada de decisão</p><p>com base no instinto (ou no que sentimos no intestino). Estas descobertas</p><p>foram fascinantes em vários aspetos. Demonstrámos em humanos, pela</p><p>primeira vez, que os nossos cérebros se reprogramam em resposta a</p><p>situações adversas nos primeiros anos de vida – e que essa reprogramação</p><p>pode persistir ao longo da vida. Tendo em conta que observámos estas</p><p>alterações em indivíduos totalmente saudáveis, concluímos, também, que</p><p>estas alterações não são necessariamente acompanhadas por um problema</p><p>de saúde específico. Apesar de estes indivíduos terem mais tendência a</p><p>preocuparem-se, a ficarem ansiosos e a terem mais noção do risco, podem</p><p>nunca sofrer dos mesmos problemas gastrointestinais que Jennifer sofria.</p><p>Será que estas redes cerebrais alteradas nos colocam simplesmente em</p><p>maior risco de desenvolver uma variedade de perturbações relacionadas</p><p>com stresse, incluindo SII? Os nossos estudos demonstraram que os</p><p>pacientes com esta síndrome sofrem de alterações nas redes cerebrais que</p><p>desempenham um papel crucial na sua hiperresponsividade a stresse</p><p>psicológico e a sinais normais do trato gastrointestinal que são enviados em</p><p>resposta a uma refeição.</p><p>COMO OS EFEITOS DO STRESSE</p><p>SE TRANSMITEM ENTRE GERAÇÕES</p><p>Uma das oradoras na nossa conferência em Sedona foi Rachel Yehuda,</p><p>uma reconhecida neurocientista na Faculdade de Medicina Icahn no Mount</p><p>Sinai, em Nova Iorque. Falou sobre as suas descobertas revolucionárias que</p><p>mostravam que filhos adultos de sobreviventes do Holocausto, que tinham</p><p>crescido sem passarem pela experiência traumática, tinham maior risco em</p><p>desenvolver perturbações psiquiátricas, como depressão, ansiedade e</p><p>síndrome de stresse pós-traumático. Desde então, vários estudos adicionais</p><p>mostraram exemplos semelhantes de «transmissão intergeracional» de</p><p>stresse e adversidade, incluindo estudos em filhos de indivíduos que</p><p>tiveram de evacuar o World Trade Center nos ataques do 11 de setembro ou</p><p>que passaram pelo «inverno da fome» na Holanda, durante a Segunda</p><p>Guerra Mundial. Como é que crianças educadas num ambiente seguro e</p><p>motivador por pais que tinham sofrido traumas inexplicáveis poderiam estar</p><p>mais em risco de desenvolverem alterações comportamentais que só são</p><p>verificadas, normalmente, em indivíduos que passaram por esses traumas?</p><p>Nos estudos em roedores de Meaney, quando as filhas de mães stressadas</p><p>e negligentes se tornam mães, o seu comportamento para com as suas crias</p><p>não foi muito diferente. O seu estudo concluiu que o efeito poderia</p><p>prolongar-se por várias gerações, sugerindo que o stresse sentido pela mãe,</p><p>e o consequente efeito no seu comportamento para com as crias, poderia</p><p>também passar, de alguma forma, para os seus filhos.</p><p>A pergunta era: como? Levou vários anos de trabalho investigativo em</p><p>laboratório de Meaney e do biólogo molecular Moshe Szyf, da</p><p>Universidade de McGill, para desvendar o mistério, mas os resultados</p><p>revolucionaram a biologia. Descobriram que vários aspetos específicos das</p><p>interações entre a mãe e a cria (como, por exemplo, a amamentação com a</p><p>coluna arqueada ou o ato de limpeza) podem modificar quimicamente os</p><p>genes do recém-nascido. No interior das células de crias negligenciadas, as</p><p>enzimas colocavam etiquetas químicas, os grupos metilo, no seu ADN. Este</p><p>modo de herança designa-se por epigenético, já que as etiquetas assentam</p><p>no ADN, e o prefixo epi-, de origem grega, exprime a ideia de «por cima</p><p>de» ou «sobre». Difere do modo de hereditariedade genética convencional</p><p>porque o gene com a etiqueta transporta a mesma informação e produz a</p><p>mesma proteína. Mas quando a etiqueta é colocada, é-lhe difícil gerir isso.</p><p>Eis outra perspetiva da biologia subjacente: se o genoma humano – a</p><p>coleção de todos os nossos genes – é o livro da vida, então, uma célula</p><p>nervosa, uma célula hepática e uma célula cardíaca leem, cada uma,</p><p>diferentes secções do livro. As etiquetas epigenéticas são os marcadores e</p><p>os sublinhados com marcador fluorescente que dizem à célula nervosa para</p><p>ler um excerto do livro e às células hepática e cardíaca para lerem outros.</p><p>Maus cuidados maternos alteraram apenas alguns dos marcadores e</p><p>sublinhados, mas alguns dos genes com etiquetas alteraram a sinalização do</p><p>cérebro, fazendo com que as filhas adultas se tornassem também más mães.</p><p>Isto fez com que as crias também criassem etiquetas nos genes, e o ciclo</p><p>continuou. Sabemos agora que esta edição epigenética dos nossos genes</p><p>pode afetar não só as células e mecanismos que determinam o</p><p>desenvolvimento do cérebro, mas também das células germinais ou</p><p>gâmetas, que transportam a informação genética que transmitimos aos</p><p>nossos filhos. A descoberta da epigenética pôs fim a um longo debate sobre</p><p>até que ponto os comportamentos inatos ou adquiridos causam doenças</p><p>relacionadas com stresse. A epigenética quebrou tudo o que os biólogos</p><p>modernos acreditavam sobre herança.</p><p>Lembre-se de que a mãe e avó de Jennifer sofriam de sintomas muito</p><p>semelhantes aos seus: depressão, ansiedade e dor abdominal. Muitos</p><p>médicos veriam isto como evidência de que os genes destas perturbações</p><p>«corre no sangue» da família de Jennifer. No entanto, um estudo realizado</p><p>em cerca de 12 000 pares de gémeos por Rona Levy, da Universidade de</p><p>Seattle, em Washington, nos Estados Unidos, para determinar o papel da</p><p>hereditariedade dos sintomas da SII, questionou esta simples explicação.</p><p>Não surpreendentemente, em gémeos geneticamente idênticos houve maior</p><p>probabilidade de que ambos sofressem de sintomas de SII, em comparação</p><p>com gémeos falsos. Esta descoberta confirmou que os genes têm um papel</p><p>importante no desenvolvimento de SII. Contudo, Levy também concluiu</p><p>que ter pais com um diagnóstico de SII era um indicador mais vincado de</p><p>um diagnóstico de SII nos filhos do que ter um gémeo com SII. Isto</p><p>significa que mecanismos para lá de genes desempenham um papel crucial</p><p>na transmissão intergeracional de um diagnóstico clínico. Apesar</p><p>e otimizarmos esta comunicação.</p><p>A abordagem tradicional predominante, mesmo na universidade de</p><p>Medicina, não fazia muito sentido para mim. Apesar do estudo aprofundado</p><p>dos sistemas de órgãos e mecanismos patológicos, fiquei abismado com o</p><p>facto de raramente mencionarem o cérebro ou o seu possível envolvimento</p><p>em doenças comuns, tais como úlceras gástricas, hipertensão ou dor</p><p>crónica. Além disso, cheguei até a observar inúmeros pacientes durante as</p><p>rondas no hospital para quem até as mais minuciosas investigações de</p><p>diagnóstico foram incapazes de revelar a causa dos seus sintomas. Estes</p><p>sintomas estavam maioritariamente relacionados com dor crónica sentida</p><p>em diferentes áreas do corpo: na barriga, na zona pélvica e no peito. Por</p><p>isso, no meu terceiro ano de Medicina, quando chegou a altura de iniciar a</p><p>minha dissertação, decidi estudar a biologia por detrás da interação do</p><p>cérebro com o organismo, na esperança de compreender mais a fundo</p><p>muitas destas doenças comuns. Durante vários anos, abordei diversos</p><p>professores de especialidades distintas. «Sr. Mayer», referiu o Professor</p><p>Karl, Professor Catedrático de Medicina Interna na minha universidade,</p><p>«todos sabemos que a psique desempenha um papel importante na doença</p><p>crónica, mas não há qualquer caminho científico que possamos tomar para</p><p>estudar este fenómeno clínico, e não há, certamente, qualquer hipótese de</p><p>que possa escrever uma dissertação inteira sobre isto».</p><p>O modelo de doença do Professor Karl, bem como de todo o sistema</p><p>médico, funcionava extremamente bem para determinadas doenças agudas</p><p>– doenças que surgem de repente, que não duram muito tempo ou ambos –</p><p>como infeções, ataques cardíacos ou emergências cirúrgicas, como um</p><p>apêndice inflamado. Baseada nestes casos de sucesso, a Medicina moderna</p><p>tornou-se confiante. Não restava qualquer doença infeciosa que não pudesse</p><p>ser curada por antibióticos cada vez mais poderosos. Novas técnicas</p><p>cirúrgicas podiam agora prevenir e curar muitas doenças. Partes danificadas</p><p>podiam ser removidas ou substituídas. Precisávamos apenas de decifrar os</p><p>minuciosos detalhes de engenharia que permitiam que as partes individuais</p><p>desta máquina continuassem a funcionar. Cada vez mais dependente de</p><p>novas e evoluídas tecnologias, o nosso sistema de saúde promovia um</p><p>otimismo generalizado que fazia crer que até o mais fatal dos problemas de</p><p>saúde crónica, incluindo o flagelo do cancro, podia, afinal, ser resolvido.</p><p>Quando o presidente Richard Nixon promulgou o National Cancer Act de</p><p>1971, a Medicina ocidental alcançou uma nova dimensão e uma nova</p><p>metáfora militar. O cancro tornou-se o novo inimigo nacional e o corpo</p><p>humano transformou-se num campo de batalha, no qual os médicos se</p><p>socorreram de uma política de terra queimada para livrar o corpo da doença,</p><p>recorrendo à utilização de substâncias tóxicas, radiação com consequências</p><p>letais e intervenções cirúrgicas para atacar as células cancerígenas com uma</p><p>força inimaginável. Na Medicina, já se usava uma estratégia semelhante</p><p>para combater doenças infeciosas com sucesso, libertando antibióticos de</p><p>amplo espectro – antibióticos que podem matar ou incapacitar várias</p><p>espécies de bactérias – para dizimar bactérias causadoras de doenças. Em</p><p>ambos os casos, desde que o sucesso estivesse garantido, os danos</p><p>colaterais passavam a ser um risco aceitável.</p><p>Durante décadas, o modelo de doença mecanicista e militarista</p><p>encabeçava a investigação médica: desde que conseguíssemos arranjar a</p><p>parte danificada da máquina, pensávamos nós, o problema ficava resolvido</p><p>e não havia necessidade de descobrir a derradeira causa. Esta filosofia</p><p>conduziu a tratamentos de hipertensão com betabloqueadores e antagonistas</p><p>de cálcio para bloquear sinais aberrantes do cérebro ao coração e vasos</p><p>sanguíneos e inibidores de bombas de protões que tratam úlceras gástricas e</p><p>azia refreando a produção excessiva de ácido no estômago. Tanto a</p><p>Medicina como a Ciência nunca prestaram muita atenção à avaria do</p><p>cérebro que era a principal causa destes problemas. Por vezes, a abordagem</p><p>inicial falhava, fazendo com que esforços redobrados entrassem em ação</p><p>como último recurso. Se o inibidor de bombas de protões não dominasse a</p><p>úlcera, poderíamos sempre cortar o nervo vago, o feixe de fibras nervosas</p><p>essencial que liga o cérebro ao intestino.</p><p>Não há dúvida de que algumas destas abordagens têm visto um sucesso</p><p>notável, e, durante muitos anos, não parecia haver qualquer razão para o</p><p>sistema médico e a indústria farmacêutica mudarem a sua abordagem, nem</p><p>ao doente se solicitava que prevenisse o desenvolvimento do problema.</p><p>Especificamente, não parecia haver a necessidade de se ter em consideração</p><p>o papel proeminente do cérebro e os sinais distintos que envia para o</p><p>organismo durante momentos de stresse ou de pensamentos negativos. Os</p><p>primeiros tratamentos para hipertensão, doença cardiovascular e úlceras</p><p>gástricas foram sendo gradualmente substituídos por outros mais eficazes</p><p>que salvavam vidas, reduziam o sofrimento e enriqueciam a indústria</p><p>farmacêutica.</p><p>No entanto, atualmente, as antigas metáforas mecanicistas estão a perder</p><p>terreno. As máquinas de há 40 anos, nas quais o modelo tradicional de</p><p>doença se baseia – carros, navios e aviões – não possuíam os computadores</p><p>sofisticados que desempenham um papel central nas máquinas de hoje. Até</p><p>os foguetões da Apollo que viajaram até à Lua dispunham apenas de</p><p>dispositivos computacionais rudimentares a bordo, milhões de vezes menos</p><p>poderosos do que um iPhone e mais comparáveis às calculadoras gráficas</p><p>dos anos 1980! Não surpreende, pois, que os modelos de doença</p><p>mecanicistas dessa altura não incluíssem potência ou inteligência</p><p>informática. Por outras palavras, não tinham o cérebro em consideração.</p><p>Paralelamente a esta mudança na tecnologia, também os modelos que</p><p>usamos para conceptualizar o corpo humano sofreram alterações. A</p><p>potência computacional cresceu exponencialmente; os automóveis</p><p>transformaram-se em computadores sobre rodas que dispõem de sensores e</p><p>regulam as diferentes partes para garantir o seu bom funcionamento – e, em</p><p>breve, deixarão de necessitar de seres humanos para serem conduzidos.</p><p>Entretanto, o antigo fascínio por mecânica e motores deu lugar a uma nova</p><p>predileção por recolha e processamento de informação. O modelo</p><p>mecanicista foi útil na Medicina para tratar algumas doenças, mas, no que</p><p>diz respeito à compreensão de doenças crónicas do corpo e do cérebro, já</p><p>perdeu o seu propósito.</p><p>O CUSTO DO MODELO MECANICISTA</p><p>A visão tradicional da doença como uma listagem detalhada de partes</p><p>individuais de um dispositivo mecânico complexo, que pode ser reparado</p><p>com medicação ou cirurgia, tem desencadeado uma indústria de cuidados</p><p>de saúde em constante crescimento. Desde 1970 que o custo per capita para</p><p>a saúde nos Estados Unidos aumentou em mais de 2000%.</p><p>Aproximadamente 20% de todos os bens produzidos, todos os anos, pela</p><p>economia norte-americana têm de pagar por este encargo monstruoso.</p><p>Num relatório de referência publicado em 2000, a Organização Mundial</p><p>de Saúde considerou o sistema de saúde norte-americano como um dos</p><p>mais dispendiosos ao mesmo tempo que o colocou num deplorável 37.º</p><p>lugar em termos de desempenho e em 72.º lugar no que diz respeito ao nível</p><p>de saúde entre 191 Estados-membros integrantes do estudo.</p><p>Os Estados Unidos não se saíram muito melhor num relatório mais</p><p>recente divulgado pela Commonwealth Fund, que classificou o sistema de</p><p>saúde norte-americano como o mais custoso per capita entre onze países</p><p>ocidentais, cerca de duas vezes mais elevado do que os restantes. Ao</p><p>mesmo tempo, os Estados Unidos ficaram em último lugar em termos de</p><p>desempenho geral. Estes dados refletem a dura realidade de que, apesar do</p><p>crescente número de recursos empregues a lidar com os problemas de saúde</p><p>do país, não progredimos o suficiente para tratar de dor crónica,</p><p>perturbações cérebro-intestino, como a síndrome do intestino irritável (ou</p><p>SII), ou doenças mentais, como a depressão clínica, a ansiedade ou doenças</p><p>neurodegenerativas. Estaremos a falhar porque os</p><p>de outras</p><p>interpretações serem possíveis (por exemplo, o papel da aprendizagem</p><p>social), é plausível que mecanismos epigenéticos contribuam para a</p><p>explicação do historial familiar comum de perturbações relacionadas com</p><p>stresse como SII.</p><p>A epigenética não só colocou em causa o dogma predominante de que</p><p>uma característica adquirida não poderia ser transmitida geneticamente, mas</p><p>também subverteu o dogma na psiquiatria. Durante um século, os</p><p>psiquiatras acreditaram que a mente inconsciente contém sentimentos</p><p>enterrados de trauma precoce, desejos escondidos e dinâmicas por resolver</p><p>entre mãe e filho. Estas questões por resolver podiam causar problemas</p><p>psicológicos em adultos, de acordo com a teoria psicanalítica, bem como</p><p>doenças relacionadas com stresse, como SII, em pacientes como Jennifer.</p><p>Sabemos agora que muitas destas ideias freudianas têm falhas. A ciência</p><p>apoia firmemente a opinião de que as adversidades sofridas nos primeiros</p><p>anos de vida, incluindo maus cuidados maternos, podem programar</p><p>sensibilidade ao stresse elevada no cérebro, e que esta programação pode</p><p>ser transmitida de geração em geração, perpetuando uma vulnerabilidade a</p><p>uma série de perturbações mentais.</p><p>O SEU FILHO TEM O EIXO</p><p>CÉREBRO-INTESTINO EM STRESSE?</p><p>Se a sua filha está na escola primária e é ansiosa, se o seu filho</p><p>adolescente fica tão stressado com testes e exames que fuma erva para</p><p>se acalmar, para depois ter de tomar estimulantes para ultrapassar os</p><p>sintomas de PHDA (Perturbação de Hiperatividade e Défice de</p><p>Atenção), ou se o seu filho sofre de sintomas de SII, será que é porque</p><p>não cuidou suficientemente deles quando eram mais pequenos? Pode</p><p>ter a certeza de que a resposta para estas perguntas é um redondo</p><p>NÃO. As mulheres cuidam dos seus recém-nascidos através da</p><p>amamentação, do toque e de outras formas de contacto corporal,</p><p>comportamentos semelhantes à amamentação com a coluna arqueada,</p><p>o lamber e o limpar que estimulam o desenvolvimento de um cérebro</p><p>saudável em ratos jovens.</p><p>No entanto, os cérebros humanos são tremendamente mais</p><p>complexos do que os de ratos jovens. E existem muitos exemplos de</p><p>indivíduos felizes e bem-sucedidos que foram criados por mães</p><p>solteiras stressadas a tentar viver a sua vida ou que superaram até as</p><p>mais graves formas de adversidade nos primeiros anos de vida. Nos</p><p>humanos, há muitos fatores que podem proteger-nos dos efeitos</p><p>negativos do stresse nos primeiros anos de vida, desde fatores</p><p>genéticos até efeitos de amortecimento nos anos de desenvolvimento.</p><p>Pais que ficam em casa, avós, irmãos mais velhos e amas podem</p><p>ajudar a criar um ambiente familiar estável e acolhedor, ajudando as</p><p>crianças a superarem os efeitos das adversidades nos primeiros anos</p><p>de vida. E tenha em consideração que a janela temporal durante a qual</p><p>o desenvolvimento do sistema de stresse é impactado por influências</p><p>exteriores dura até 20 anos nos humanos.</p><p>E, até se tais fatores de amortecimento não estiverem presentes,</p><p>como humanos, temos muitas ferramentas à nossa disposição que nos</p><p>permitem reverter parcialmente a programação provocada por stresse</p><p>e trauma precoce que ratos e outros animais não têm. Por exemplo,</p><p>várias terapêuticas de tratamento mental, incluindo terapia cognitivo-</p><p>comportamental, hipnose e meditação, demonstraram alterar a forma</p><p>como avaliamos situações e sensações corporais. Todas estas</p><p>modalidades terapêuticas não são apenas tratamentos psicológicos:</p><p>têm também a capacidade de melhorar o controlo cortical sobre</p><p>circuitos emocionais e produtores de stresse no cérebro. Sabemos</p><p>agora que tais terapêuticas podem alterar a estrutura e função das</p><p>redes cerebrais envolvidas na atenção, na ativação psicofisiológica e</p><p>na avaliação da saliência, fortalecendo, antes de mais, o nosso córtex</p><p>pré-frontal.</p><p>O MICROBIOMA INTESTINAL SOB STRESSE</p><p>Até agora, grande parte da nossa discussão focou-se na programação dos</p><p>nossos circuitos cerebrais devido a experiências nos primeiros anos de vida.</p><p>Não há dúvida de que, em indivíduos vulneráveis, o transtorno de um</p><p>ambiente estável e afetuoso durante as primeiras duas décadas de vida pode</p><p>alterar o desenvolvimento do cérebro e comportamento adulto. Estas</p><p>alterações podem ser entendidas como uma programação precoce do nosso</p><p>sistema nervoso de um modo que reflete as nossas primeiras interações</p><p>negativas com o mundo. E não nos podemos esquecer que um sistema de</p><p>stresse hiperreativo pode ser uma vantagem para quem nasce num ambiente</p><p>perigoso. Mas que benefícios traz sofrer sintomas de SII a vida toda como</p><p>um «efeito secundário» acidental da evolução? E quais são as</p><p>consequências dessa programação no eixo cérebro-intestino para as nossas</p><p>interações com os biliões de micróbios que vivem no nosso intestino?</p><p>Fizemos progressos tremendos na compreensão da relação entre</p><p>adversidades nos primeiros anos de vida, mudanças nas conversas paralelas</p><p>entre o intestino e o cérebro e o papel do microbioma nestas interações.</p><p>Está a tornar-se claro que o stresse precoce não só afeta o cérebro e o</p><p>intestino, mas também causa um impacto profundo no microbioma.</p><p>Estudos demonstraram que, quando macacos-rhesus adolescentes deixam</p><p>a mãe pela primeira vez, desenvolvem ansiedade de separação e diarreia –</p><p>tal como acontece com muitos adolescentes quando saem de casa e vão para</p><p>a universidade. A diarreia surge porque o stresse faz com que o intestino</p><p>contraia com mais força e impulsione os alimentos ingeridos mais depressa</p><p>até à extremidade. Além disso, o stresse aumenta a secreção de vários sucos</p><p>digestivos no intestino. Estas alterações nas funções do intestino</p><p>provocadas por stresse têm efeitos drásticos nas condições de vida dos</p><p>micróbios. Em resposta a isto, o número de bactérias fecais baixa</p><p>significativamente, e os níveis de lactobacilos, um género de bactérias</p><p>protetoras, diminuem em maior número. Os micróbios patogénicos, como,</p><p>por exemplo, Shigella ou E. coli sentem-se encorajados, abrindo a porta a</p><p>infeções intestinais. A norepinefrina, a hormona do stresse, também torna</p><p>estes invasores mais agressivos e mais persistentes. Em experiências com</p><p>primatas, contudo, os efeitos do stresse foram temporários.</p><p>No final da primeira semana, quando os jovens primatas se adaptaram à sua</p><p>nova independência, os níveis de lactobacilos voltaram ao normal. Tendo</p><p>em conta que o efeito na microbiota foi temporário, será que é importante?</p><p>Será que estas alterações microbianas passageiras têm algum efeito no</p><p>nosso cérebro?</p><p>Num estudo recente realizado pelo grupo de investigação de Premysl</p><p>Bercik da Universidade de McMaster, em Hamilton, no estado norte-</p><p>americano de Ontario, os investigadores confirmaram as nossas descobertas</p><p>iniciais no mesmo modelo animal que demonstra que maus cuidados</p><p>maternos eram responsáveis pelo aumento da resposta do intestino ao</p><p>stresse, consistente com alterações nos circuitos de stresse do cérebro.</p><p>Todavia, animais com cuidados maternos comprometidos também</p><p>apresentaram outras mudanças, tais como ansiedade e comportamentos</p><p>similares à depressão. O grupo de Bercik identificou, pela primeira vez, o</p><p>papel especial da microbiota no desenvolvimento destas alterações</p><p>comportamentais. Apenas estas consequências «psicológicas» estavam</p><p>dependentes das alterações da microbiota e dos seus metabólitos, ao passo</p><p>que as alterações na reatividade intestinal estavam relacionadas com a</p><p>resposta ao stresse em animais. Se estas descobertas extraordinárias</p><p>pudessem ser confirmadas em estudos em humanos, teriam implicações</p><p>profundas não só no nosso entendimento total do papel da microbiota em</p><p>perturbações psiquiátricas relacionadas com stresse, mas também no</p><p>tratamento de pacientes como Jennifer e outros com transtornos</p><p>relacionados com stresse e um historial de adversidades nos primeiros anos</p><p>de vida. Moldar a microbiota com intervenções dietéticas e prebióticos e</p><p>probióticos, revertendo, assim, alguns dos efeitos no cérebro dos micróbios</p><p>intestinais alterados, poderia tornar-se uma ferramenta importante no plano</p><p>de tratamento integrativo.</p><p>STRESSE NO VENTRE MATERNO</p><p>Sabe-se, desde há</p><p>muito tempo, que o nível de stresse numa mulher</p><p>grávida pode afetar a saúde do futuro bebé. Bebés nascidos de mães com</p><p>stresse elevado desenvolvem-se mais lentamente, pesam menos quando</p><p>nascem e são mais vulneráveis a infeções. No entanto, até muito</p><p>recentemente, pouco se sabia sobre os potenciais efeitos prejudiciais do</p><p>stresse materno no comportamento e desenvolvimento do cérebro dos</p><p>filhos.</p><p>Duas linhas de evidência imputaram alguns destes efeitos do stresse a</p><p>alterações nos nossos companheiros microbianos. Em primeiro lugar,</p><p>experiências em primatas demonstraram que o stresse materno altera a</p><p>nossa microbiota. O neurologista Chris Coe, da Universidade de Wisconsin-</p><p>Madison, nos Estados Unidos, expôs macacos-rhesus prenhes a sons</p><p>ameaçadores durante dez minutos, todos os dias durante seis semanas. Isto</p><p>deixou as mães macacas tão stressadas como se estivessem no trânsito, com</p><p>muito ruído ou a trabalhar até alguns dias antes de darem à luz, tal como</p><p>acontece com uma mãe humana grávida numa grande cidade.</p><p>Surpreendentemente, os recém-nascidos das mães primatas stressadas</p><p>tinham tão poucas bactérias benéficas – lactobacilos e bifidobactérias –</p><p>quanto recém-</p><p>-nascidos de mães que não tinham sido incomodadas.</p><p>À primeira vista, não se percebeu de que forma o stresse materno poderia</p><p>alterar a microbiota de um recém-nascido, já que o intestino do feto não tem</p><p>praticamente micróbios. Mas, atualmente, sabemos que o stresse pode</p><p>alterar a microbiota vaginal da mãe, o que, por sua vez, tem uma influência</p><p>enorme nos micróbios do bebé. A neurocientista Tracy Bale, da</p><p>Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e a sua equipa colocaram</p><p>ratos prenhes em situações de stresse recorrendo à sua exposição a uma</p><p>série de cenários desconfortáveis, incluindo o odor persistente de uma</p><p>raposa. O laboratório de Bale já tinha demonstrado anteriormente que o</p><p>mesmo paradigma de stresse pré-natal resultava em alterações graves no</p><p>desenvolvimento neurológico das redes cerebrais que regulam as emoções e</p><p>o stresse.</p><p>Para lá do que já sabemos sobre os efeitos do stresse na microbiota</p><p>intestinal de um animal, os investigadores descobriram alterações graves no</p><p>microbioma vaginal de mães stressadas, particularmente uma redução de</p><p>lactobacilos. Já se sabia, desde há muito tempo, que reduções causadas por</p><p>stresse nos lactobacilos vaginais podem alterar a acidez do ambiente</p><p>vaginal e predispor as mulheres a infeções. Mas por que carga de água é</p><p>que estes efeitos de stresse no microbioma vaginal são tão importantes para</p><p>o desenvolvimento neurológico e comportamental do jovem animal?</p><p>Devido ao facto de os micróbios vaginais da mãe serem os primeiros a</p><p>alimentar a microbiota intestinal do bebé, estes roedores deram à luz bebés</p><p>com menos lactobacilos nos intestinos, tal como aconteceu com as mães</p><p>primatas stressadas, que tiveram bebés com um nível de lactobacilos</p><p>reduzido. Este efeito de stresse é particularmente preocupante, já que ocorre</p><p>numa altura crucial, em que as arquiteturas complexas da microbiota</p><p>intestinal e dos circuitos cerebrais do bebé estão a ser programadas para</p><p>toda a vida.</p><p>Mas o stresse da mãe roedora não afetou apenas os micróbios intestinais</p><p>das crias: afetou também os cérebros! A equipa de Bale analisou a mistura</p><p>de moléculas produzida pela microbiota da cria. Encontraram alterações em</p><p>moléculas que fornecem energia aos animais, a qual é devorada pelo</p><p>cérebro do bebé, e um abastecimento reduzido de aminoácidos, que ajudam</p><p>o cérebro em desenvolvimento rápido a crescer e a formar novas ligações</p><p>entre algumas regiões cerebrais.</p><p>Quais são as implicações destes estudos laboratoriais para as mulheres</p><p>que passem pela experiência da gravidez e da maternidade nos dias de hoje?</p><p>Muitas perturbações neurológicas em adultos, incluindo ansiedade,</p><p>depressão, esquizofrenia, autismo e, provavelmente, SII, são agora</p><p>consideradas perturbações de desenvolvimento neurológico, o que significa</p><p>que as alterações básicas do cérebro começam muito cedo, muitas delas</p><p>ainda no útero. Tal como vimos até agora, o stresse é um fator de peso que</p><p>influencia estas alterações de desenvolvimento neurológico, havendo, pelo</p><p>menos, dois caminhos fundamentais pelos quais as adversidades nos</p><p>primeiros anos de vida podem afetar o eixo cérebro-intestino: um é por</p><p>modificação epigenética do sistema de resposta ao stresse e do eixo</p><p>cérebro-intestino; o outro é através de alterações causadas por stresse na</p><p>microbiota intestinal e seus produtos, que podem afetar ainda mais o</p><p>cérebro. Isto significa que, se realmente queremos ter um impacto</p><p>significativo e duradouro no desenvolvimento e trajetória destas doenças</p><p>devastadoras, as intervenções têm de começar desde logo cedo. Quando um</p><p>paciente adulto chega à clínica com uma síndrome no seu auge, a maioria</p><p>dos tratamentos será amplamente sintomática e passageira, ao mesmo</p><p>tempo que se torna mais desafiante conseguir uma terapêutica de sucesso</p><p>que perdure. Mas, como veremos no caso de Jennifer, esta nova perceção</p><p>proporcionada por evidências científicas recentes abre caminho para opções</p><p>de tratamento mais eficazes para o paciente adulto.</p><p>MICRÓBIOS PARA UM COMEÇO SAUDÁVEL</p><p>Alguns anos antes de iniciar a minha carreira de investigação, testemunhei</p><p>um acontecimento extraordinário que ainda hoje influencia a forma como</p><p>olho para os nossos parceiros microbianos. Nas férias de Natal da</p><p>universidade, tive a sorte de me juntar a um realizador de documentários</p><p>numa expedição para filmar o povo ianomâmi, que vive na região a norte</p><p>do rio Orenoco, nas profundidades da floresta amazónica que abrange o</p><p>Brasil e a Venezuela. Numa noite de luar, estava deitado na minha cama de</p><p>rede, perto da família ianomâmi que me tinha recebido, a escutar os sons da</p><p>selva, sem conseguir dormir. Levantei-me, ouvi um ruído ali perto e</p><p>caminhei em direção à floresta. Aí, vi uma rapariga indígena de quinze</p><p>anos, sozinha, de cócoras sobre uma grande folha de bananeira no chão, a</p><p>dar à luz em total silêncio. Depois de dar à luz, cortou o cordão umbilical</p><p>com um objeto afiado.</p><p>Aqui estava um bebé a nascer de forma natural, sem qualquer ajuda ou</p><p>intervenção médica, e tão silenciosamente que ninguém na aldeia parecia</p><p>ter reparado. As circunstâncias deste nascimento estavam a anos-luz dos</p><p>nossos modernos partos em hospital, que presenciei durante a minha</p><p>formação: nada de ambiente estéril nem de ginecologistas obstetras a tratar</p><p>a vagina da mãe com antissépticos para a «limpar» de micróbios. Em vez</p><p>disso, o novo membro do povo ianomâmi tinha sido exposto não só ao</p><p>microbioma vaginal da mãe, mas também a todos os micróbios (não</p><p>lavados e não desinfetados) das suas mãos, da folha de bananeira e do solo.</p><p>No entanto, nas semanas seguintes, o bebé, acarinhado pelos pais, parecia</p><p>perfeitamente saudável.</p><p>No mundo ocidental, o parto ocorre, obviamente, de forma</p><p>completamente diferente, e as raízes das nossas práticas são bastante</p><p>profundas. Na viragem do século XX, o pediatra francês Henry Tissier</p><p>sugeriu que os bebés humanos se desenvolvem num ambiente estéril, e que</p><p>o nosso primeiro contacto com micro-organismos ocorre quando somos</p><p>expostos à microbiota vaginal durante o parto. Esta opinião foi vista como</p><p>dogma durante mais de cem anos, mas, hoje em dia, há várias razões para</p><p>discordar dela.</p><p>Até em gravidezes saudáveis, surgiram bactérias maternais – a maioria</p><p>benéficas – no sangue do cordão umbilical, no fluido amniótico, no</p><p>mecónio e na placenta, de acordo com estudos recentes. À medida que o</p><p>nascimento se aproxima, a microbiota vaginal altera-se bastante. A</p><p>diversidade de espécies microbianas diminui e uma espécie de lactobacilo,</p><p>normalmente presente no intestino delgado, torna-se predominante. Durante</p><p>o parto, um bebé que nasça de forma natural está exposto à microbiota</p><p>vaginal da mãe, incluindo esta espécie de lactobacilo, que fornece a fonte</p><p>principal de micróbios que vão colonizar o intestino do bebé. Desta</p><p>maneira, o conjunto distinto de micróbios das nossas mães forma a base</p><p>para o nosso próprio padrão único de micróbios, e assim</p><p>será para o resto</p><p>das nossas vidas. Os micróbios da mãe também fornecem aos recém-</p><p>-nascidos uma parte fulcral da maquinaria metabólica, dando ao bebé a</p><p>capacidade de digerir os açúcares e os hidratos de carbono especiais</p><p>presentes no leite materno.</p><p>Tendo em conta que os micróbios vaginais dão um ponto de partida</p><p>saudável ao trato intestinal do bebé, os cientistas estão agora a estudar se o</p><p>parto por cesariana pode comprometer a futura saúde cerebral do recém-</p><p>nascido. É espantoso que em países como Brasil e Itália as taxas de bebés</p><p>nascidos por cesariana ultrapassem os que chegam ao mundo de forma</p><p>natural, mesmo que não tenhamos a mínima ideia das consequências a</p><p>longo-prazo de «contornar» a programação do microbioma intestinal,</p><p>mediada vaginalmente, no desenvolvimento do cérebro. Até agora, sabemos</p><p>que os intestinos de bebés nascidos por cesariana são colonizados não por</p><p>micróbios vaginais da mãe, mas por micróbios da pele da mãe, de parteiras,</p><p>de médicos, de enfermeiras e de outros recém-nascidos na maternidade, e</p><p>essas importantes bactérias benéficas, como as bifidobactérias, demoram</p><p>mais tempo a colonizar os seus intestinos do que os de bebés nascidos de</p><p>parto natural. Sabemos que é mais provável o perigoso micróbio</p><p>Clostridium difficile crescer demasiado no intestino e prejudicar bebés</p><p>nascidos por cesariana, e que estes são mais suscetíveis a tornarem-se</p><p>obesos com a idade. Os cientistas suspeitam que o nascimento por cesariana</p><p>pode também deixar a criança mais vulnerável a alterações cérebro-</p><p>intestinais e perturbações neurológicas graves, incluindo autismo, e vários</p><p>estudos estão a ser atualmente realizados para confirmar isto. E, por fim,</p><p>graças a um estudo inovador efetuado em ratos pelo grupo de investigação</p><p>de M. Blazer, sabemos que as perturbações passageiras da microbiota</p><p>intestinal nos primeiros anos de vida, com doses reduzidas de antibióticos,</p><p>podem ter efeitos duradouros na vulnerabilidade dos adultos aos resultados</p><p>prejudiciais de uma dieta rica em gorduras na obesidade.</p><p>ADAPTADOS PARA A SOBREVIVÊNCIA</p><p>A sobrevivência das espécies é um dos dogmas da evolução e a natureza</p><p>programou todas as espécies para a concretizar. É assim que nós e os nossos</p><p>antepassados animais temos sobrevivido durante milhões de anos. Neste</p><p>capítulo, descrevi vários mecanismos através dos quais o stresse nos</p><p>primeiros anos de vida pode influenciar o cérebro e o comportamento de</p><p>animais e humanos, e foquei-me no nosso entendimento gradual de como os</p><p>ambientes stressantes e mães stressadas incutem alterações duradouras no</p><p>cérebro do bebé. Usando diferentes canais e mecanismos biológicos, estas</p><p>alterações programam o seu sistema de resposta ao stresse para um mundo</p><p>perigoso. Ao interagir com o seu bebé, a mãe acaba por modificar a rede de</p><p>saliência no cérebro para que os seus instintos sigam uma tendência que o</p><p>ajude a estar preparado para um mundo potencialmente perigoso quando</p><p>crescer. A mãe altera os micróbios na vagina, mudando também o</p><p>microbioma intestinal do bebé, e fixa etiquetas nos principais genes de</p><p>resposta ao stresse com substâncias químicas denominadas por grupos</p><p>metilo, fornecendo alterações epigenéticas que podem perdurar por várias</p><p>gerações.</p><p>Porque é que a evolução desenvolveu um sistema que nos deixa pouco</p><p>saudáveis e infelizes? Se a natureza, em toda a sua sabedoria, elaborou</p><p>várias estratégias com um único objetivo, e se essas estratégias podem ser</p><p>vistas em muitas espécies, incluindo nos humanos, devem existir por uma</p><p>razão.</p><p>A ciência aponta num sentido. Quando a mãe sente que há perigo, estas</p><p>estratégias imprimem no bebé uma reação de «luta ou fuga» acentuada,</p><p>bem como comportamentos mais cuidadosos, menos agressivos e menos</p><p>sociáveis. Mesmo sem saber, está a preparar o bebé para um mundo que vê</p><p>como perigoso.</p><p>Este sistema pode ter-nos ajudado quando tínhamos de fugir de leões ou</p><p>vencer um inimigo numa luta, como acontecia com os nossos antepassados.</p><p>Apesar de não haver dados científicos disponíveis que provem esta</p><p>hipótese, pode fazer com que milhões de pessoas, hoje em dia, que,</p><p>lamentavelmente, têm de enfrentar guerras, fome e catástrofes naturais, ou</p><p>que cresçam em bairros mais perigosos, se adaptem melhor e sejam mais</p><p>resilientes ao lidar com estas condições de vida.</p><p>Mas aqueles de nós que vivem em sociedades industrializadas e</p><p>relativamente seguras pagam um preço elevado por estes programas</p><p>biológicos inatos e ancestrais. Tal como vimos, um sistema hiperativo de</p><p>reação de «luta ou fuga» com hormonas em stresse elevado constante a</p><p>circular pelo nosso organismo pode levar a doenças mentais graves,</p><p>incluindo perturbações de ansiedade e de pânico e depressão. Pode também</p><p>causar um conjunto terrível de perturbações físicas relacionadas com</p><p>stresse, incluindo obesidade, síndrome metabólica, ataques cardíacos e</p><p>tromboses. E, por fim, a hiperresponsividade do eixo cérebro-intestino,</p><p>associada a esta programação, pode causar transtornos intestinais crónicos,</p><p>como síndrome do intestino irritável e dor abdominal crónica.</p><p>Não sabemos ainda se uma mulher grávida se deveria preocupar se tem de</p><p>lidar com trânsito, prazos de projetos e problemas financeiros e trabalhar</p><p>até poucos dias antes de dar à luz. E não sabemos ainda até que ponto</p><p>práticas que alteram o microbioma vaginal, como medicamentos</p><p>antimicrobianos antes e durante o parto, uma cesariana ou a dieta e nível de</p><p>stresse de uma jovem mãe, coloca a saúde do bebé em risco. Também não</p><p>sabemos se as enormes alterações que fizemos nos primeiros anos de vida</p><p>dos bebés ajudam a explicar o aumento desmedido de autismo, obesidade e</p><p>outras doenças nos últimos 500 anos. No entanto, é evidente que</p><p>determinados tipos de stresse durante a gravidez, e distúrbios familiares</p><p>durante o crescimento das crianças, são prejudiciais para o seu</p><p>desenvolvimento neurológico e carregam um risco elevado de alterar</p><p>permanentemente a arquitetura do eixo cérebro-intestino-microbioma.</p><p>Acredito veemente que qualquer interferência com a programação normal</p><p>do microbioma do bebé, como stresse, parto não vaginal, uso desnecessário</p><p>de antibióticos e hábitos alimentares pouco saudáveis durante os períodos</p><p>pré e pós- -natal, pode abrir caminho a perturbações neurológicas e</p><p>intestinais. E as mudanças do eixo cérebro-intestino de uma criança podem</p><p>ser percetíveis apenas numa idade mais avançada, quando já é demasiado</p><p>tarde para revertê-las. O primeiro passo é ter conhecimento destas ligações</p><p>e compreender os mecanismos biológicos de base. O mais difícil, muitas</p><p>vezes, é implementar estratégias para minimizar estas influências pouco</p><p>saudáveis. No entanto, aderir a uma dieta saudável, praticar técnicas</p><p>simples de redução de stresse durante a gravidez e ser vigilante para evitar</p><p>uma exposição desnecessária a antibióticos são opções que a maioria das</p><p>mães consegue ponderar.</p><p>NOVAS TERAPIAS PARA PERTURBAÇÕES</p><p>DO CÉREBRO E DO INTESTINO</p><p>Sabemos agora que, desde que o feto está no útero, os níveis de stresse</p><p>vividos pela mãe podem alterar a sua suscetibilidade ao stresse, doenças</p><p>intestinais, perturbações de ansiedade e depressão. E esta programação dos</p><p>primeiros anos de vida não se limita a comportamentos da mãe. Sabemos</p><p>também que qualquer acontecimento que represente uma ameaça ao bem-</p><p>estar de uma criança pode alterar a sua suscetibilidade a estas condições.</p><p>Todas estas descobertas podem ajudar-nos a compreender as raízes dos</p><p>problemas de saúde de Jennifer. Recordo que, quando ainda estava no</p><p>ventre da mãe, a avó materna foi diagnosticada com cancro da mama, o que</p><p>originou desgosto e ansiedade na mãe grávida. Quando Jennifer era criança</p><p>e necessitava de um ambiente familiar estável, os pais discutiam bastante.</p><p>Quando Jennifer tinha oito anos, os pais divorciaram-se. Um grande</p><p>número de pacientes com SII relata situações de stresse nos primeiros anos</p><p>de vida, e Jennifer teve-as às carradas. Muito provavelmente, todo este</p><p>stresse aumentou as probabilidades de desenvolver ansiedade, depressão e</p><p>sintomas gastrointestinais quando adulta. O facto de que tanto a mãe</p><p>como</p><p>a avó sofreram de síndromes relacionadas com stresse semelhantes às dela</p><p>ampliou a sua vulnerabilidade para desenvolver esses sintomas,</p><p>possivelmente através de mecanismos genéticos, epigenéticos ou ambos.</p><p>Hoje em dia, quando recebo um paciente como Jennifer que sofre de</p><p>sintomas crónicos relacionados com stresse, incluindo ansiedade ou SII,</p><p>baseio o meu aconselhamento na ciência em evolução das interações entre o</p><p>cérebro e o intestino, tal como vimos neste capítulo. «Os acontecimentos</p><p>nos primeiros anos de vida decerto tiveram um papel no desenvolvimento</p><p>dos seus sintomas», digo, «tanto em termos de sintomas intestinais, como</p><p>de ansiedade e depressão». Quero ter a certeza de que o paciente</p><p>compreende a natureza biológica dos seus sintomas – que não está só «na</p><p>sua cabeça», como outros médicos podem ter referido. «Mas, se tudo foi</p><p>programado durante os meus primeiros anos de vida, e se o meu historial</p><p>familiar aumenta exponencialmente as probabilidades de sofrer destes</p><p>sintomas, quer dizer que vou ter de viver com esta dor para sempre?»,</p><p>perguntou-me Jennifer, um pouco angustiada. Disse-lhe que as más notícias</p><p>eram que o eixo cérebro-intestino tinha sido programado para a vida, mas as</p><p>boas notícias é que os humanos possuem uma parte única do cérebro, o</p><p>córtex pré-frontal, que nos dá a capacidade de anular a função de circuitos</p><p>cerebrais alterados e aprender novos comportamentos.</p><p>Há várias terapias que nos ajudam a aprender estes novos</p><p>comportamentos, tal como adicionar código novo – um patch – num</p><p>programa informático pode anular defeitos no programa. Tais terapias</p><p>incluem um período curto de terapia cognitivo-comportamental, hipnose ou</p><p>outra intervenção da mente e do corpo, como redução de stresse com base</p><p>em mindfulness. Não só estas estratégias aliviam os sintomas do cérebro e</p><p>intestino, como os da síndrome do intestino irritável, como também ajudam</p><p>a tratar sintomas associados de depressão e ansiedade. Estas abordagens</p><p>podem mesmo mudar a programação do nosso cérebro, ajudando, assim, o</p><p>córtex pré-frontal a exercer algum controlo sobre uma rede cerebral</p><p>emocional hiperativa. Podem também ajudar a reiniciar a rede de saliência,</p><p>melhorando a forma como avaliamos situações potencialmente perigosas.</p><p>Por vezes, estas abordagens de base psicológica requerem uma pequena</p><p>ajuda da medicação psicotrópica, muitas vezes malograda, particularmente</p><p>os diferentes tipos de antidepressivos que demonstraram ser benéficos para</p><p>o stresse dos primeiros anos de vida em estudos com ratos. O meu plano de</p><p>tratamentos inicial inclui, quase sempre, doses muito reduzidas de</p><p>antidepressivos tricíclicos, como Elavil ou medicamentos similares, que</p><p>ajudam a acalmar a tempestade no sistema límbico na fase inicial da terapia.</p><p>Os mesmos medicamentos podem reduzir a dor abdominal com efeitos</p><p>secundários mínimos e sem quaisquer efeitos na disposição ou no estado</p><p>mental. E, se for apropriado para o paciente, doses normais de</p><p>antidepressivos modernos, incluindo SSRI, podem aliviar a ansiedade e a</p><p>depressão e a estabilizar o humor. Só estes medicamentos conseguem</p><p>proporcionar benefícios significativos em cerca de 30% de pacientes, mas a</p><p>taxa de sucesso é muito mais elevada quando combinados com outros</p><p>tratamentos não farmacológicos.</p><p>Com base nas nossas descobertas científicas sobre o papel da microbiota</p><p>nas interações alteradas entre cérebro e intestino, também sugeri a Jennifer</p><p>que aumentasse a ingestão de probióticos. Micróbios benéficos, como</p><p>lactobacilos e bifidobactérias, consumidos por intermédio de alimentos</p><p>fermentados, iogurtes ou em cápsulas de probióticos pode melhorar a</p><p>diversidade do ecossistema microbiano. Além de probióticos que ocorrem</p><p>naturalmente em alimentos fermentados, recomendo experimentarem uma</p><p>pequena quantidade de probióticos que têm demonstrado benefícios em</p><p>ensaios clínicos.</p><p>No final de contas, Jennifer concordou com a abordagem de terapia</p><p>integrativa que lhe recomendei, que incluía um período curto de terapia</p><p>cognitivo-comportamental, incluindo instruções para realizar</p><p>autorrelaxamento e auto-hipnose. Mudou para uma dieta rica em alimentos</p><p>fermentados e suplementos de probióticos e acrescentou uma dose reduzida</p><p>do antidepressivo Elavil à sua toma a longo prazo de Celexa. Reforcei que,</p><p>provavelmente, precisaria de ambas as medicações e de terapias não</p><p>farmacológicas para melhorar, mas, se seguisse o plano de tratamentos,</p><p>tinha uma boa hipótese de reduzir a medicação em menos de um ano.</p><p>Os sintomas de Jennifer não desapareceram por completo, mas, vários</p><p>meses mais tarde, quando regressou à minha clínica para uma consulta de</p><p>seguimento, anunciou uma melhoria de 50% da qualidade de vida e bem-</p><p>estar geral, assim como dor abdominal menos frequente, longos períodos de</p><p>hábitos intestinais quase regulares e muito menos ansiedade. Antes de se ir</p><p>embora, apertou-me a mão e, com lágrimas nos olhos, disse: «Quem me</p><p>dera que alguém me tivesse explicado estas ligações todas muito mais cedo,</p><p>particularmente o facto de que os meus primeiros anos de vida abriram</p><p>caminho para ansiedade, depressão e SII.» Jennifer não foi a única paciente</p><p>a dizer-me isso.</p><p>De certa forma, pessoas como Jennifer adaptaram-se na perfeição ao</p><p>mundo stressante da sua juventude, com o cérebro, o intestino e até os</p><p>micróbios intestinais programados, de diferentes maneiras, para o perigo.</p><p>Se mais médicos tivessem conhecimento disto, ajudariam, em vez de</p><p>frustrar, pacientes com SII e muitas outras perturbações relacionadas com</p><p>stresse. E, se mais pacientes soubessem disto, procurariam ajuda mais</p><p>rapidamente e teriam mais paz de espírito.</p><p>Contudo, a programação precoce afeta-nos a todos. As nossas mães,</p><p>instintiva e biologicamente, programaram-nos para sobrevivermos, desde</p><p>que estamos no útero. Mais tarde, as nossas famílias deram o seu melhor</p><p>para nos orientar num mundo complexo. Tudo isto deixa vestígios</p><p>duradouros na nossa estrutura emocional e influencia a forma como lidamos</p><p>com as situações, tomamos decisões e, possivelmente, a nossa</p><p>personalidade. Ao compreendermos como funciona esta programação</p><p>natural, e ao aprendermos a corrigir software desajustado, poderemos evitar</p><p>reações que já não nos satisfazem, se é que algum dia o fizeram.</p><p>D</p><p>6</p><p>UM NOVO ENTENDIMENTO</p><p>DAS EMOÇÕES</p><p>esde os nossos primeiros dias que as emoções embelezam os</p><p>nossos pensamentos e influenciam as nossas decisões. Quando o</p><p>perigo espreita, as emoções ajudam-nos a lutar ou a fugir;</p><p>sustentam os impulsos que nos permitem encontrar um parceiro e ajudam-</p><p>nos a criar uma ligação com os nossos filhos. As emoções geram os nossos</p><p>sentidos, influenciam a nossa saúde, alimentam os nossos ódios de</p><p>estimação e acalentam as nossas paixões. As emoções são a essência do que</p><p>nos faz humanos.</p><p>Filósofos, psicólogos e, mais tarde, neurocientistas investigaram as</p><p>emoções durante séculos, elaborando teorias cada vez mais sofisticadas</p><p>para explicar o surgimento das emoções, vinculando a sua origem à mente,</p><p>ao cérebro ou ao corpo. Mas, nos últimos anos, emergiram dados científicos</p><p>que sugerem que podem ter sido influenciadas por uma fonte que quase</p><p>ninguém esperava. Estas descobertas revolucionárias indicam que a</p><p>microbiota no nosso intestino tem um papel crucial nas interações</p><p>complexas entre a mente, o cérebro e o intestino. Esta entusiasmante linha</p><p>de investigação inspirou ideias que quebram com o paradigma no que diz</p><p>respeito ao papel destas criaturas invisíveis nas reações intestinais e nas</p><p>emoções instintivas, e como estas podem afetar os nossos humores, mentes</p><p>e pensamentos.</p><p>PODERÃO OS MICRÓBIOS ALTERAR O CÉREBRO?</p><p>Quando examinei Lucy pela primeira vez, uma mulher sexagenária, os</p><p>seus problemas médicos não pareciam particularmente anormais. Sofria, há</p><p>muito tempo, de obstipação leve e desconforto na barriga, e tinha recebido</p><p>um diagnóstico de síndrome do intestino irritável. O que tornou a história</p><p>de Lucy tão curiosa foram os sintomas de ansiedade. Quando a recebi,</p><p>sofria de ataques de pânico graves a cada poucas semanas, há dois anos. Os</p><p>sintomas incluíam medo</p><p>intenso, palpitações, falta de ar e uma «sensação</p><p>de fatalismo». Estes sintomas apareciam repentinamente e desapareciam em</p><p>menos de vinte minutos. Nos períodos entre estes ataques brutais, verificou</p><p>que o nível de ansiedade generalizada também tinha aumentado. Apesar de</p><p>muitos pacientes que vêm ter comigo por causa dos seus sintomas</p><p>gastrointestinais relatarem um historial de ataques de pânico, as</p><p>circunstâncias em torno do início dos sintomas de Lucy eram extremamente</p><p>incomuns.</p><p>Há cerca de dois anos, desenvolveu congestão nasal e dores de cabeça</p><p>crónicas e foi diagnosticada com sinusite. Ao tomar ciprofloxacina durante</p><p>duas semanas, um antibiótico de largo espectro bastante comum que mata</p><p>uma variedade abrangente de elementos patogénicos (assim como os nossos</p><p>micróbios intestinais), observou que os seus movimentos intestinais se</p><p>tinham tornado mais frequentes e líquidos, apesar de se sentir bem. Para</p><p>contrariar estes efeitos, tomou probióticos durante algumas semanas e, mais</p><p>uma vez, voltou a sentir-se ela própria.</p><p>Cerca de seis meses mais tarde, voltaram os mesmos sintomas de</p><p>congestão e dores de cabeça. O médico prescreveu um antibiótico de largo</p><p>espectro alternativo, que tomou durante três semanas. Novamente, sentiu</p><p>um desconforto recorrente na barriga. Até agora, nada disto parecia</p><p>invulgar: muitos pacientes desenvolvem mudanças passageiras nos hábitos</p><p>intestinais quando tomam antibióticos, pois os medicamentos reprimem</p><p>temporariamente a diversidade de micróbios intestinais que são essenciais</p><p>para uma função intestinal ideal. Graças a relatórios de pacientes e estudos</p><p>clínicos, sabemos que estes efeitos secundários podem incluir desconforto</p><p>gastrointestinal prolongado e, por vezes, até sintomas similares a SII. Na</p><p>grande maioria dos pacientes, contudo, estes problemas gastrointestinais</p><p>são temporários. Parece que pacientes que começam a vida com uma</p><p>microbiota menos diversa são mais suscetíveis a estes efeitos secundários.</p><p>Já que Lucy deixara de tomar antibióticos, encorajei-a a comer e beber</p><p>vários alimentos fermentados de todos os tipos, incluindo iogurte, chucrute</p><p>e kimchi, e a tomar mais probióticos. O objetivo era aumentar a diversidade</p><p>da microbiota intestinal na esperança de restabelecer a arquitetura</p><p>microbiana original. Ao mesmo tempo, incentivei-a bastante a recorrer a</p><p>abordagens que aliviassem os sintomas de ansiedade, incluindo técnicas de</p><p>autorrelaxamento, respiração diafragmática profunda e aulas de</p><p>mindfulness. Também prescrevi Klonopin, uma medicação semelhante a</p><p>Valium que se dissolve debaixo da língua, para tomar quando Lucy</p><p>começasse a sentir um ataque de pânico. Este regime de tratamento</p><p>combinado normalizou gradualmente os movimentos intestinais e, em seis</p><p>meses, os ataques de pânico passaram a ser menos frequentes. A última vez</p><p>que a vi, tinha sentido só um único e ligeiro ataque e já não precisava de</p><p>tomar Klonopin.</p><p>Os ataques de pânico de Lucy e a ansiedade crescente desenvolveram--se</p><p>várias semanas depois dos sintomas gastrointestinais, e tornaram-se menos</p><p>frequentes quando os sintomas digestivos melhoraram. Des-confio que os</p><p>dois períodos consecutivos de antibióticos de largo espectro podem ter</p><p>alterado temporariamente a população e função da microbiota. Isto levou-a</p><p>aos sintomas gastrointestinais semelhantes a SII, que desapareceram pouco</p><p>depois de parar de tomar a medicação. Terá o antibiótico induzido</p><p>mudanças microbianas que contribuíram também para os sintomas de</p><p>ansiedade?</p><p>A MICROBIOTA É A NOSSA FÁBRICA DE XANAX?</p><p>Com a exceção de alguns relatórios de casos clínicos, não havia muitas</p><p>evidências científicas que suportassem uma ligação entre a nossa</p><p>microbiota e os estados emocionais quando recebi Lucy pela primeira vez</p><p>na minha clínica, em 2011. Mas, nesse mesmo ano, um grupo de</p><p>investigadores pioneiros no Canadá relataram descobertas intrigantes de</p><p>experiências em animais que sugeriam que os micróbios produzem</p><p>neurotransmissores que podem alterar o comportamento emocional.</p><p>Premysl Bercik e o seu grupo de investigação na Universidade de</p><p>McMaster, no Canadá, tinha tratado um grupo de ratos normais durante uma</p><p>semana com um cocktail que consistia em três antibióticos de largo</p><p>espectro. Monitorizaram a composição da microbiota dos ratos e o seu</p><p>comportamento antes, durante e depois do tratamento antibiótico. Tal como</p><p>esperavam, o tratamento alterou profundamente a estrutura das populações</p><p>microbianas dos animais, aumentando populações de alguns grupos de</p><p>micróbios (em particular, várias espécies de lactobacilos) e reduzindo</p><p>populações de outros. No entanto, Bercik ficou surpreendido ao ver que os</p><p>ratos tratados com antibióticos adquiriram um comportamento mais</p><p>exploratório, como passar mais tempo nas áreas iluminadas e abertas das</p><p>gaiolas ou estruturas experimentais em vez dos espaços mais escuros e</p><p>protegidos que normalmente preferem. Tendo em conta que os ratos não</p><p>conseguem partilhar os sintomas de ansiedade, este comportamento é usado</p><p>como um indicador que demonstra que os animais estão menos ansiosos ou,</p><p>como dizem os cientistas, mostraram «comportamentos menos</p><p>representativos de ansiedade».</p><p>Duas semanas após os ratos terem terminado os antibióticos, tanto o</p><p>comportamento como a microbiota voltaram ao seu estado normal,</p><p>sugerindo que as alterações observadas no comportamento emocional dos</p><p>animais e as mudanças induzidas pelos antibióticos na microbiota estavam</p><p>relacionados. Mas como é que o cérebro foi informado acerca das</p><p>mudanças induzidas pelos antibióticos no intestino? Um candidato óbvio</p><p>para esta sinalização entre micróbios e cérebro era o nervo vago, o principal</p><p>canal de comunicação entre o intestino e o cérebro. E, de facto, os ratos nos</p><p>quais o nervo vago foi cortado já não mostraram a diminuição de ansiedade</p><p>quando os micróbios estavam suprimidos pelo antibiótico. Estas</p><p>descobertas sugeriam que, em ratos normais, os micróbios produziam um</p><p>abastecimento constante de substâncias que eram capazes de suprimir</p><p>ansiedade, e o seu efeito foi transmitido ao cérebro através do nervo vago.</p><p>Que substâncias podem os micróbios produzir que tenham este efeito</p><p>ansiolítico? Estudos prévios demonstraram que determinados micro-</p><p>organismos são capazes de produzir o neurotransmissor ácido gama-</p><p>aminobutírico. Esta substância, também conhecida como GABA, é uma das</p><p>mais abundantes moléculas sinalizadoras no sistema nervoso,</p><p>onde mantém a parte emocional do cérebro, o sistema límbico, sob</p><p>controlo. Muitos dos medicamentos para o tratamento da ansiedade, como</p><p>Valium, Xanax e Klonopin, visam o mesmo sistema de sinalização,</p><p>simulando os efeitos do GABA.</p><p>Foram observados indícios iniciais da ligação entre micróbios, GABA e</p><p>função cerebral há cerca de 30 anos em pacientes com cirrose do fígado</p><p>avançada; o estado mental e de alerta destes pacientes estão, geralmente,</p><p>debilitados. Quando lhes são dados medicamentos que bloqueiam o sistema</p><p>de sinalização do GABA, a função cognitiva e o nível de energia melhoram</p><p>de imediato. Surpreendentemente, a função cerebral também melhorou</p><p>quando receberam antibióticos de largo espectro. Na altura, os</p><p>investigadores não tinham conseguido explicar como a cirrose do fígado</p><p>aumentava a atividade do GABA no cérebro.</p><p>Mas, hoje em dia, sabemos que o aumento de GABA produzido no intestino</p><p>por micróbios alterados consegue encontrar os recetores de GABA</p><p>específicos no cérebro, onde amortecem os processos cognitivos e os</p><p>sistemas emocionais deste. Tal como nas experiências de Bercik em ratos,</p><p>os antibióticos de largo espectro reduziram as populações destas bactérias</p><p>produtoras de GABA, levando a níveis de GABA mais reduzidos no</p><p>cérebro e a uma melhoria da função cerebral.</p><p>Apesar de estas experiências terem claramente estabelecido o facto de que</p><p>os micróbios no nosso intestino conseguem produzir moléculas anti-</p><p>ansiedade e que estas substâncias podem afetar o cérebro em determinas</p><p>circunstâncias, a grande maioria de pacientes que recebem antibióticos não</p><p>mostram qualquer evidência de efeitos secundários emocionais. Mas</p><p>poderíamos usar</p><p>este conhecimento para tratar perturbações de ansiedade</p><p>com micróbios produtores de GABA em forma de probióticos? Sabemos</p><p>que determinadas estirpes de duas das mais bem estudadas famílias de</p><p>bactérias intestinais benéficas, os lactobacilos e as bifidobactérias, possuem</p><p>a maquinaria sintética para produzir GABA. Já que diferentes estirpes de</p><p>bactérias destas duas famílias são ingredientes ativos em muitos probióticos</p><p>disponíveis no mercado, e ambos os grupos tendem a ser abundantes em</p><p>alimentos fermentados, será que adicionar um abastecimento extra destes</p><p>micróbios à nossa dieta pode deixar-nos mais relaxados? Poderia um regime</p><p>tão simples como ingerir alimentos fermentados e tomar probióticos ajudar</p><p>indivíduos com tendência para serem mais ansiosos a reduzir os níveis de</p><p>ansiedade? Um número reduzido de estudos realizados em ratos sugere que,</p><p>de facto, pode ser mesmo verdade. Num estudo, investigadores observaram</p><p>uma redução de comportamentos ansiosos quando davam o probiótico</p><p>Lactobacillus rhamnosus a ratos adultos saudáveis. Num outro estudo, uma</p><p>espécie de probióticos diferente, Lactobacillus longum, diminuiu</p><p>nitidamente os comportamentos ansiosos de ratos com colite, uma</p><p>inflamação crónica do intestino grosso. E há também evidências clínicas</p><p>que sugerem que pacientes podem sentir esses efeitos «psicobióticos».</p><p>A única maneira fidedigna de avaliar o possível efeito de probióticos no</p><p>cérebro humano é realizar um ensaio clínico controlado em participantes</p><p>humanos. Nesse ensaio, os voluntários são aleatoriamente alocados a um</p><p>grupo que ingere o tratamento ativo – um probiótico, por exemplo – ou a</p><p>um grupo de controlo. Os que são alocados a um grupo de controlo ingerem</p><p>um placebo – uma substância idêntica em aspeto, gosto e sabor ao</p><p>tratamento, mas que não contém uma atividade intrínseca conhecida. Para</p><p>aumentar a fiabilidade deste estudo, nem os participantes nem os</p><p>investigadores podem ter conhecimento sobre a que grupos de tratamento</p><p>os participantes foram atribuídos, a não ser quando o estudo tiver</p><p>terminado. Estes modelos de estudo tão cegos, aleatórios e controlados são</p><p>o padrão de referência na avaliação da eficácia de todos os tratamentos.</p><p>Em 2013, Kirsten Tillisch recorreu a um destes modelos no nosso centro</p><p>de investigação e atribuiu 36 mulheres a um de três grupos experimentais.</p><p>Duas vezes por dia, durante quatro semanas, o grupo de tratamento ativo</p><p>ingeriu iogurte enriquecido com uma estirpe específica do probiótico</p><p>Bifidobacterium lactis, juntamente com três outros tipos de bactéria</p><p>(Streptococcus thermophiles, Lactobacillus bulgaricus e Lactococcus</p><p>lactis) tipicamente usadas para transformar leite em iogurte. Um segundo</p><p>grupo ingeriu um produto lácteo não fermentado que não tinha probióticos,</p><p>mas que era idêntico em sabor, textura e aspeto em relação ao iogurte</p><p>repleto de probióticos. Um terceiro grupo não ingeriu iogurte nem o</p><p>produto lácteo.</p><p>No princípio e no fim do estudo de quatro semanas, perguntámos a cada</p><p>mulher sobre o seu bem-estar geral, humor, nível de ansiedade e hábitos</p><p>intestinais. Depois, Tillisch examinou o cérebro de cada mulher num</p><p>dispositivo de ressonância magnética e executou uma tarefa concebida para</p><p>testar a sua capacidade de avaliar as emoções de outras pessoas pelas suas</p><p>expressões faciais.</p><p>A tarefa consistia em observar os rostos de três pessoas diferentes que</p><p>pareciam estar zangadas, assustadas ou tristes, e identificar rapidamente que</p><p>dois dos três rostos mostravam a mesma emoção apenas ao carregar num</p><p>botão. Em todo o mundo, qualquer que seja a raça, o país ou a língua, as</p><p>pessoas são incrivelmente boas a fazer essas avaliações numa fração de</p><p>segundo, sugerindo que este é um reflexo emocional inato e muito básico</p><p>que, provavelmente, está relacionado com o comportamento emocional</p><p>reflexivo dos animais. A tarefa não envolve as redes cerebrais complexas</p><p>necessárias para gerar emoções, por isso, os participantes não se sentem</p><p>tristes ou zangados ao desempenhá-la.</p><p>Em comparação às mulheres que ingeriram o produto lácteo sem</p><p>probióticos, as que receberam a combinação de probióticos durante quatro</p><p>semanas mostraram menos ligações entre uma série de regiões cerebrais</p><p>durante a tarefa de reconhecimento de emoções. Estes resultados</p><p>mostraram, pela primeira vez, que alguns dos resultados extraordinários de</p><p>estudos em ratos também são aplicáveis aos humanos – especificamente</p><p>que manipular a microbiota poderia, até certo ponto, alterar as funções</p><p>cerebrais nos humanos durante uma tarefa relacionada com emoções, pelo</p><p>menos a um nível muito básico de reflexos emocionais.</p><p>Mas como é que as bactérias probióticas do iogurte comunicam com o</p><p>cérebro das participantes? Inicialmente, pensámos que a ingestão regular de</p><p>probióticos pode alterar a composição da microbiota, o que, em</p><p>contrapartida, pode influenciar o cérebro. No entanto, quando analisámos a</p><p>composição microbiana nas fezes das participantes, não encontrámos</p><p>efeitos detetáveis na ingestão de probióticos nos tipos e números de</p><p>microbiota, a não ser a presença dos próprios organismos probióticos</p><p>ingeridos. Por isso, o consumo de iogurte não alterou os intervenientes na</p><p>microbiota. Contudo, com base num estudo prévio, sabíamos que os</p><p>tratamentos probióticos idênticos podem alterar os metabólitos que os</p><p>micróbios intestinais produzem. É, por isso, razoável especular que alguns</p><p>destes metabólitos estimulados por probióticos chegaram ao cérebro –</p><p>através da corrente sanguínea ou na forma de sinal do nervo vago – para</p><p>alterar a sua reatividade emocional. Pode até haver participação das células</p><p>produtoras de serotonina no intestino nesta comunicação entre micróbios e</p><p>cérebro. Foi recentemente demonstrado que determinados micróbios podem</p><p>estimular a produção de serotonina nestas células, alterando os seus níveis</p><p>no intestino e influenciando profundamente a disponibilidade deste sinal</p><p>entre o intestino e o cérebro para moldar as nossas emoções, sensibilidade à</p><p>dor e bem-estar. Se confirmado, as implicações destas descobertas para</p><p>futuros tratamentos de perturbações cérebro-intestinais são extraordinárias.</p><p>O consumo de determinados tipos de probiótico – seja nos alimentos</p><p>naturalmente fermentados ou em produtos lácteos ou sumos de fruta</p><p>enriquecidos com essa substância – que podem regular os níveis do</p><p>neurotransmissor vital que é a serotonina pode ajudar-nos a aperfeiçoar um</p><p>sistema de controlo no nosso organismo que desempenha um papel crucial</p><p>em muitas das nossas funções vitais, do humor à sensibilidade à dor e ao</p><p>sono.</p><p>Como os nossos participantes foram cuidadosamente selecionados para</p><p>serem saudáveis, sem evidências de sintomas físicos ou psicológicos,</p><p>podemos apenas especular se as alterações observadas com o probiótico</p><p>específico que avaliámos pode ter afetado os seus níveis de ansiedade. No</p><p>entanto, considerando que as participantes demonstraram uma redução na</p><p>capacidade de resposta das redes cerebrais emocionais ao observarem rostos</p><p>zangados, tristes e assustados, sabemos que determinados probióticos são</p><p>capazes de diminuir as reações emocionais a contextos negativos.</p><p>Fiquei abismado com estas descobertas. Há apenas alguns anos, poucos</p><p>teriam presumido que o consumo regular de um iogurte que pode ser</p><p>comprado no supermercado pudesse influenciar o nosso cérebro. Para a</p><p>nossa equipa de investigação, os resultados possibilitaram uma forma nova</p><p>de olharmos a função cerebral na saúde e na doença – e como podemos</p><p>manter as nossas mentes saudáveis.</p><p>Foi apenas há poucos anos que os cientistas começaram a investigar o</p><p>papel da nutrição na saúde do cérebro e a identificar um possível papel da</p><p>microbiota nesta relação. Com base na rápida evolução deste domínio da</p><p>ciência, estou convencido de que esta nova perspetiva vai mudar</p><p>profundamente os nossos conceitos sobre que alimentos são benéficos para</p><p>o nosso bem-estar emocional e mental, podendo influenciar, também, a</p><p>forma como tratamos perturbações de ansiedade e depressão no futuro.</p><p>O PAPEL DA MICROBIOTA NA DEPRESSÃO</p><p>Se alguma vez teve uma depressão, provavelmente</p><p>lembrar-se-á do quão</p><p>triste, desmotivado e desesperado se sentiu. Estes são os sintomas que</p><p>normalmente mencionamos para descrever a depressão a amigos e família,</p><p>e é extremamente doloroso. Mas talvez consiga lembrar-se de outros</p><p>sintomas. Sentia-se nervoso ou irritável? Tinha problemas em adormecer ou</p><p>concentrar-se? Estes são os mesmos sintomas que uma pessoa com</p><p>perturbação de ansiedade desenvolve. Cerca de metade das pessoas</p><p>diagnosticas com depressão sofrem de sintomas de ansiedade e muitas</p><p>pessoas com ansiedade crónica têm indícios de depressão. E as terapias para</p><p>a depressão – especificamente, medicamentos conhecidos como inibidores</p><p>seletivos de recaptação de serotonina ou ISRS – aliviam também, muitas</p><p>vezes, os sintomas de ansiedade.</p><p>Tendo em conta que várias manipulações da microbiota em ratos,</p><p>incluindo a ingestão de probióticos, podem aliviar o comportamento</p><p>relacionado com ansiedade destes animais, poderão também aliviar o</p><p>equivalente em ratos com depressão? John F. Cryan, um psiquiatra da</p><p>University College, em Cork, na Irlanda, publicou vários artigos a</p><p>corroborar esta hipótese, cunhando a expressão micróbios melancólicos</p><p>para se referir a essas propriedades alteradoras do humor dos micro-</p><p>organismos do intestino.</p><p>No entanto, até recentemente, esta hipótese, decorrente de estudos em</p><p>ratos de laboratório, não era suportada por muitos dados de pacientes</p><p>humanos. Atualmente, existem três estudos bem controlados realizados em</p><p>pacientes com um diagnóstico psiquiátrico de perturbação depressiva maior,</p><p>o que claramente implica um papel de micróbios alterados nos sintomas de</p><p>depressão. A depressão nos pacientes podia ser identificada simplesmente</p><p>com a observação da composição da microbiota. Até mais</p><p>surpreendentemente, quando as amostras fecais com microbioma alterado</p><p>foram transferidas para ambos os laboratórios livres de germes de ratos ou</p><p>ratazanas, cuja microbiota tinha sido eliminada por um tratamento com</p><p>antibióticos de largo espectro, os recipientes animais desenvolveram</p><p>comportamentos que indicavam aos investigadores uma mudança no humor,</p><p>os chamados comportamentos «similares à depressão». Por isso,</p><p>evidentemente, os micróbios no intestino de pacientes deprimidos eram</p><p>capazes de enviar sinais ao cérebro destes roedores de laboratório, alterando</p><p>as redes cerebrais geradoras de emoções e resultando num comportamento</p><p>emocional distinto. Apesar de estes resultados incríveis nos terem permitido</p><p>chegar mais perto de corroborar o conceito de «micróbios melancólicos»,</p><p>ainda há a grande questão a pairar: será que o cérebro de um paciente</p><p>deprimido envia sinais ao intestino que alteram a composição e função dos</p><p>micróbios ou os micróbios de pacientes deprimidos têm um papel causal</p><p>nos sintomas dos pacientes? Se a segunda hipótese estiver correta, alterar os</p><p>sinais que os micróbios intestinais enviam ao cérebro, através do consumo</p><p>de um probiótico ou uma dieta específica, poderia aliviar sintomas de</p><p>depressão.</p><p>A equipa de Cryan testou esta hipótese no laboratório ao dar a bactéria</p><p>probiótica Bifidobacterium infantis a ratos de laboratório, denominada</p><p>assim por ser uma das primeiras estirpes de bactérias que uma mãe recente</p><p>transmite ao seu bebé. Depois, fizeram com que os animais nadassem, algo</p><p>que estes animais não gostam, ativando, assim, o seu sistema de stresse.</p><p>Quando isto acontece, os níveis de sangue das citocinas, um tipo de</p><p>molécula inflamatória, aumentam (a mesma resposta que nos humanos).</p><p>Quando foi dado um probiótico aos ratos, pareceu moderar as alterações</p><p>tanto no sangue como no cérebro, ainda que não tenha alterado o</p><p>comportamento «depressivo» dos animais. Noutro estudo, os investigadores</p><p>conseguiram demonstrar que uma estirpe específica de Bifidobacterium</p><p>diminuía o comportamento, induzido experimentalmente, de depressão e de</p><p>ansiedade nos ratos, tanto quanto Lexapro, um antidepressivo vulgarmente</p><p>usado.</p><p>Será que este resultado sugere que os probióticos podem ajudar também</p><p>na depressão em humanos? Resultados preliminares sugerem que este pode</p><p>ser o caso para alguns indivíduos deprimidos. Num estudo de dupla</p><p>ocultação aleatório, investigadores franceses deram a 55 homens e mulheres</p><p>saudáveis um regime com a duração de um mês de probióticos diários</p><p>contendo espécies de lactobacilos e bifidobactérias. Os indivíduos no grupo</p><p>de probióticos mostraram uma ligeira melhoria nos distúrbios psicológicos</p><p>e ansiedade comparando com os que ingeriram a substância de controlo.</p><p>Noutro estudo, investigadores britânicos deram uma espécie diferente de</p><p>lactobacilos a 124 pessoas saudáveis. As que estavam mais deprimidas no</p><p>início do estudo viram o tratamento melhorar significativamente o seu</p><p>humor. Existem, também, novas evidências de que uma intervenção</p><p>alimentar, conhecida por afetar positivamente o microbioma, pode ter um</p><p>efeito benéfico no tratamento da depressão. Um estudo de controlo aleatório</p><p>realizado recentemente por Felice Jacka, na Austrália, em pacientes com</p><p>depressão moderada a grave avaliou o possível benefício de</p><p>aconselhamento nutricional em comparação a apoio social.</p><p>Aconselhamento nutricional sobre os benefícios de uma dieta</p><p>mediterrânica, além dos tratamentos tradicionais psicológicos e</p><p>farmacológicos, demonstrou um benefício estatisticamente significativo</p><p>para o grupo que recebeu apoio social.</p><p>Ainda que estes estudos sejam um bom começo, precisamos de ensaios</p><p>clínicos maiores e mais bem estruturados para estabelecer decididamente se</p><p>os micro-organismos probióticos conseguem animar quem estiver</p><p>deprimido, acalmar quem estiver ansioso ou afetar o nosso bem-estar geral.</p><p>Entretanto, podemos influenciar positivamente o diálogo entre o cérebro, o</p><p>intestino e a microbiota ao prestarmos mais atenção à alimentação que</p><p>damos aos micróbios. Como iremos observar em maior detalhe nos</p><p>capítulos seguintes, o que comemos pode ter um impacto abismal na nossa</p><p>saúde intestinal, concedendo--nos uma maneira fácil, agradável e</p><p>económica de modificarmos e melhorarmos as interações entre o intestino e</p><p>o cérebro.</p><p>O PAPEL DO STRESSE</p><p>A maioria dos pacientes com perturbações de ansiedade, depressão, SII ou</p><p>outros transtornos mentais ou cérebro-intestinais é particularmente sensível</p><p>a acontecimentos stressantes, tendo, muitas vezes, de lidar com sintomas</p><p>gastrointestinais agravados perante essas situações. Hoje, sabemos que os</p><p>micróbios intestinais têm um papel gigantesco na determinação da</p><p>responsividade dos circuitos de stresse do cérebro. Sabemos, também, que</p><p>os mediadores do nosso sistema de stresse, tal como a norepinefrina, a</p><p>hormona do stresse, podem alterar profundamente o comportamento</p><p>microbiano, tornando-os mais agressivos e perigosos.</p><p>Um dos primeiros indícios da possível influência dos micróbios nas</p><p>nossas emoções surgiu de experiências em supostos ratos livres de germes,</p><p>e a maioria dos estudos publicados sobre micróbios intestinais e o cérebro</p><p>sustentaram-se nesta abordagem. Ao contrário de animais criados sob</p><p>condições normais, que estão expostos a micróbios dos alimentos, do ar e</p><p>das pessoas que tomam conta deles, e das próprias fezes, os animais livres</p><p>de germes nascem e são criados em condições totalmente asséticas –</p><p>ambientes sem quaisquer vestígios de micróbios. Os cientistas criam ratos</p><p>livres de germes ao fazê-los nascer por cesariana, transferindo-os, de</p><p>seguida, para espaços isolados onde o ar, os alimentos e a água são</p><p>esterilizados. Depois de os animais crescerem num mundo estéril, os</p><p>cientistas estudam o seu comportamento e biologia, comparando-os ao de</p><p>animais geneticamente idênticos criados em condições normais. Os</p><p>comportamentos ou a bioquímica cerebral que diferem entre os dois grupos</p><p>de animais podem, então, ser considerados dependentes de microbiota</p><p>normal.</p><p>Não muito depois destes animais terem sido criados em laboratório, os</p><p>investigadores observaram que, em adultos, reagiam em demasia a</p><p>estímulos stressantes ao produzir mais corticosterona, a hormona de stresse</p><p>(como referido anteriormente, é o equivalente ao cortisol nos humanos).</p><p>Quando os investigadores</p><p>transplantaram microbiota benéfica para o</p><p>intestino destes animais nos primeiros anos de vida, conseguiam reverter a</p><p>resposta exagerada ao stresse. No entanto, este efeito benéfico no</p><p>tratamento microbiano já não funcionava em animais adultos. Estas</p><p>experiências revelaram que os micróbios intestinais podem influenciar o</p><p>desenvolvimento da resposta ao stresse do cérebro nesses primeiros anos.</p><p>Se pegar numa ninhada de ratos, separá-los à nascença em dois grupos e</p><p>criar um dos grupos livre de germes, ambos os grupos de irmãos serão</p><p>diferentes numa série surpreendente de aspetos. Os ratos livres de germes</p><p>são menos sensíveis à dor e menos sociáveis com os pares. Além disso, os</p><p>mecanismos bioquímicos e moleculares no cérebro e no intestino</p><p>apresentam alterações, ao contrário dos ratos normais. Por exemplo, o</p><p>grupo de investigação de Sven Pettersson, do Instituto Karolinska, na</p><p>Suécia, demonstrou que ratos livres de germes mostraram menos</p><p>comportamentos semelhantes à ansiedade do que os animais criados em</p><p>condições normais, bem como uma expressão alterada dos genes</p><p>envolvidos na sinalização de células nervosas em regiões do cérebro</p><p>envolvidas no controlo motor e no comportamento semelhante à ansiedade.</p><p>Contudo, quando os ratos livres de germes foram expostos a microbiota nos</p><p>primeiros anos de vida, não mostraram qualquer uma destas anormalidades</p><p>bioquímicas. Pettersson e os seus colegas concluíram que, quando a</p><p>microbiota coloniza o intestino, inicia, de alguma forma, os mecanismos de</p><p>sinalização bioquímicos no cérebro que afetam o comportamento</p><p>emocional.</p><p>Sabemos, há algum tempo, que diferentes tipos de stresse podem alterar</p><p>temporariamente a composição microbiana intestinal, diminuindo, em</p><p>específico, o número de lactobacilos nas fezes de animais stressados. Isto</p><p>foi confirmado num estudo recente em que ratos de laboratório subjugados</p><p>a diferentes tipos de stresse ao longo de várias semanas não só mostraram</p><p>uma redução da população de lactobacilos no intestino, mas desenvolveram,</p><p>também, comportamento semelhante à depressão. O nível de</p><p>comportamento semelhante à depressão correspondia estreitamente com a</p><p>quantidade de lactobacilos perdidos. Esta mudança na abundância</p><p>microbiana estava associada a uma mudança nas moléculas que estes</p><p>lactobacilos produzem, particularmente uma substância química que os</p><p>micróbios retiraram de um triptofano na nossa dieta, denominado</p><p>quinurenina. Esta substância química tem a capacidade de induzir</p><p>comportamentos semelhantes à depressão em animais sem stresse, e os</p><p>investigadores conseguiram reduzir esta produção ao alimentar os animais</p><p>com o probiótico Lactobacillus reuteri. Apesar de ainda estarmos a</p><p>aguardar confirmação desta ligação entre stresse, microbioma e depressão</p><p>em humanos, as descobertas sugerem que a célebre associação de stresse</p><p>crónico ao desenvolvimento de depressão em indivíduos vulneráveis pode</p><p>implicar alterações na microbiota.</p><p>Dados provenientes de uma área diferente de investigação sugerem que o</p><p>efeito do stresse vai para lá destas alterações temporárias na abundância de</p><p>populações microbianas. Sabe-se, há muito tempo, que a norepinefrina, a</p><p>substância química libertada durante momentos de stresse, faz o coração</p><p>bater mais rápido e a pressão arterial aumentar. Mas só recentemente</p><p>descobrimos que este mediador de stresse também pode ser libertado no</p><p>interior do intestino, onde consegue comunicar diretamente com os</p><p>micróbios intestinais. Vários laboratórios demonstraram que a norepinefrina</p><p>pode estimular o crescimento de elementos patogénicos bacterianos que</p><p>podem causar infeções intestinais graves, úlceras estomacais e até sépsis.</p><p>Além da capacidade de promoção do crescimento desta molécula de stresse,</p><p>também é capaz de ativar genes nas substâncias patogénicas, tornando-as</p><p>mais agressivas e aumentando as probabilidades de sobrevivência no</p><p>intestino. Determinados micróbios intestinais podem ainda modificar</p><p>norepinefrina a flutuar no intestino durante situações de stresse para uma</p><p>forma mais poderosa, intensificando o efeito da hormona noutros</p><p>micróbios. Tudo isto significa que apanhar uma infeção intestinal quando</p><p>estamos sob stresse grave pode levar a problemas sérios.</p><p>Um paciente que apresenta as consequências clínicas desta relação entre</p><p>stresse e infeções intestinais é a Sra. Stone, uma mulher de 50 anos que</p><p>recebi na minha clínica. A Sra. Stone tinha acabado de passar por um</p><p>divórcio longo, contencioso e stressante para terminar o casamento de 25</p><p>anos. O emprego como administradora executiva era incrivelmente</p><p>exigente, obrigando a semanas de trabalho de 80 horas e muitas viagens.</p><p>Nunca tinha tido sintomas gastrointestinais de que se lembrasse, mas desde</p><p>sempre tivera episódios de ansiedade e de dor crónica na lombar e dores de</p><p>cabeça. A Sra. Stone era incrivelmente stressada, e sabia-o perfeitamente.</p><p>Para poder usufruir de uma merecida pausa, foi de férias de Los Angeles</p><p>para Cabo San Lucas, no México. Os primeiros dois dias foram tudo o que</p><p>esperava e desfrutava da serenidade na piscina do hotel. No terceiro dia, na</p><p>maravilhosa praia de Baja, a Sra. Stone foi a um restaurante local de</p><p>marisco. No resto da semana, sentiu-se terrivelmente e mal saiu do quarto</p><p>de hotel, enquanto lutava contra os incessantes sintomas de cólicas,</p><p>inchaço, náusea e diarreia.</p><p>A Sra. Stone sentiu-se melhor quando regressou a Los Angeles, mas</p><p>contactou na mesma o seu médico. Este diagnosticou-a com diarreia do</p><p>viajante, uma forma comum de gastroenterite causada tipicamente por</p><p>bactérias na água local. Os sintomas da Sra. Stone já tinham melhorado</p><p>quando o procurou, e não havia bactérias infeciosas detetáveis na amostra</p><p>fecal, por isso, o médico não recomendou tomar um antibiótico e</p><p>assegurou-a de que os seus sintomas iriam desaparecer por completo em</p><p>poucos dias.</p><p>Infelizmente, não foi o que aconteceu. Após várias semanas de sintomas</p><p>residuais, incluindo inchaço constante, movimentos intestinais irregulares e</p><p>cólicas pontuais, a Sra. Stone marcou uma consulta comigo. Já que os</p><p>exames às fezes da Sra. Stone para organismos infeciosos tinham</p><p>novamente sido negativos, e nunca tinha sofrido de sintomas</p><p>gastrointestinais, recomendei uma colonoscopia. Quando este teste não</p><p>revelou nada de anormal, diagnostiquei-a com síndrome do intestino</p><p>irritável pós-infeciosa.</p><p>Esta síndrome afeta aproximadamente 10% de pacientes com</p><p>gastroenterite bacteriana ou viral e ocorre maioritariamente em pessoas com</p><p>sintomas antecedentes de dor e desconforto em qualquer parte do corpo,</p><p>cuja crise inicial de gastroenterite infeciosa dura mais do que o normal, e</p><p>que contraem a infeção gastrointestinal quando sofrem de stresse crónico</p><p>grave. (Se contrair esta doença, saiba que os sintomas desaparecem,</p><p>normalmente, em alguns meses, e que a síndrome é tratável com terapias</p><p>usuais de SII).</p><p>Indivíduos com estes fatores de risco têm mais probabilidade do que os</p><p>restantes de desenvolver sintomas semelhantes a SII pós-infeciosos quando</p><p>um elemento patogénico como E. coli enterotoxigénica, a causa mais</p><p>comum de diarreia do viajante, os infetam. Isto faz todo o sentido na</p><p>medida em que o stresse crónico estimula o crescimento de muitos</p><p>elementos patogénicos, incluindo E. coli, no intestino, e torna-os mais</p><p>agressivos. Faz com que, igualmente, o sistema nervoso automático no</p><p>nosso intestino liberte sinais de stresse que podem reduzir a espessura da</p><p>camada de muco que reveste a parede do cólon e aumentar a</p><p>permeabilidade do intestino, permitindo que os micróbios tenham mais</p><p>acesso ao sistema imunitário deste ao contornarem muitas das suas</p><p>estratégias de defesa. Esta cadeia de acontecimentos resulta numa ativação</p><p>da imunidade intestinal mais duradoura e sintomas prolongados.</p><p>Como sabemos, nem todo o stresse é mau para nós. Ao contrário do</p><p>stresse crónico ou recorrente, o stresse agudo e o estímulo emocional</p><p>associado melhoram o nosso desempenho a executar tarefas difíceis, como</p><p>fazer um teste ou dar uma palestra. Beneficia, também, a saúde do intestino</p><p>ao reforçar as nossas defesas a infeções intestinais.</p><p>Isto funciona de várias</p><p>maneiras. O stresse agudo aumenta a produção de ácido pelo estômago em</p><p>resposta aos sinais cerebrais relacionados com stresse, tornando-o mais</p><p>suscetível a que micróbios invasores dos nossos alimentos sejam mortos</p><p>antes de chegarem ao intestino. Também sinaliza o intestino a aumentar a</p><p>secreção de fluidos e a expulsar os conteúdos, incluindo os patogénicos. Por</p><p>fim, aumenta a secreção de péptidos antimicrobianos, as defensinas. Todas</p><p>estas respostas visam defender a integridade do trato gastrointestinal contra</p><p>invasores potencialmente perigosos e restringir a duração de uma infeção.</p><p>Contudo, apesar destes efeitos protetores de stresse agudo no nosso</p><p>intestino e os seus micróbios, tê-lo em grande quantidade pode transformar</p><p>os benefícios num inconveniente. O stresse crónico aumenta o risco de</p><p>desenvolvimento de infeções gastrointestinais, e é provável que prolongue o</p><p>sofrimento de sintomas após a infeção ser tratada. E se sofrer de</p><p>perturbações relacionadas com stresse, como SII ou síndrome de vómito</p><p>cíclico, o stresse crónico é uma das forças motrizes da severidade</p><p>sintomática.</p><p>EMOÇÕES POSITIVAS</p><p>Sabemos bastante sobre os efeitos prejudiciais do stresse crónico nas</p><p>interações entre o cérebro, o intestino e o microbioma. Mas será que outras</p><p>emoções, além do stresse, particularmente emoções positivas, afetam</p><p>também os micróbios no intestino? Ou seja, será que a felicidade ou uma</p><p>sensação de bem-estar provocam reações intestinais diferentes e benéficas?</p><p>Já vimos como cada uma destas emoções e os seus sistemas operativos</p><p>subjacentes no cérebro podem ser desencadeados por um sinal químico</p><p>distinto – endorfinas, quando estamos felizes, oxitocina, quando nos</p><p>sentimos próximos do nosso parceiro ou filhos, e dopamina, quando</p><p>desejamos algo. Quando estes interruptores químicos desencadeiam os</p><p>respetivos sistemas operativos no cérebro, provocam uma reação intestinal</p><p>distinta com padrões característicos de contrações, secreções e fluxo</p><p>sanguíneo intestinal.</p><p>Desconfio que algumas destas reações intestinais associadas a emoções</p><p>positivas também estão ligadas à libertação de mensagens químicas</p><p>distintas para os micróbios intestinais. Já sabemos que a serotonina, a</p><p>dopamina e a endorfina são libertadas no interior do intestino e que podiam</p><p>ser boas candidatas para estes sinais tão positivos entre o intestino e os</p><p>micróbios. Esta sinalização relacionada com emoções do cérebro para os</p><p>micróbios intestinais pode alterar o comportamento dos micróbios de forma</p><p>a beneficiar a nossa saúde e proteger-nos de infeções intestinais. Os sinais</p><p>associados com felicidade ou afeto podem aumentar a diversidade</p><p>microbiana no intestino, melhorar a saúde intestinal e proteger-nos de</p><p>infeções intestinais e outras doenças.</p><p>OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DAS EMOÇÕES</p><p>PARA OS MICRÓBIOS</p><p>Até agora, sabemos apenas uma pequena parte desta história fascinante.</p><p>Estamos a começar a compreender de que forma os micróbios intestinais</p><p>conseguem traduzir informação contida nos alimentos que comemos em</p><p>sinais moleculares que influenciam muitos dos órgãos e tecidos no</p><p>organismo, incluindo o cérebro. Já sabemos que, dos milhares de</p><p>metabólitos diferentes na corrente sanguínea, até 40% vêm dos micróbios</p><p>intestinais. Mais do que isso, as reações intestinais a emoções específicas –</p><p>positivas e negativas – podem alterar drasticamente a mistura de</p><p>metabólitos que os micróbios produzem dos alimentos – por outras</p><p>palavras, editam profundamente os sinais moleculares que os micróbios</p><p>enviam para o resto do corpo. Suspeito que descobriremos que esses biliões</p><p>de bactérias nos intestinos, negligenciados por cientistas durante tantos</p><p>anos, não só são influenciados pelas nossas emoções, como também</p><p>exercem uma influência predominante nos intestinos, na forma como</p><p>pensamos e como nos sentimos.</p><p>OS MICRÓBIOS PODEM ALTERAR</p><p>O NOSSO COMPORTAMENTO SOCIAL?</p><p>Se os nossos micróbios conseguem afetar as nossas emoções, e se as</p><p>emoções e o instinto comandam as nossas decisões de como nos devemos</p><p>comportar, parece-me lógico que os micróbios intestinais consigam alterar o</p><p>nosso comportamento. E se os micróbios intestinais conseguem alterar o</p><p>nosso comportamento, poderia, então, uma mistura anormal de micróbios</p><p>conduzir a comportamentos anormais? E se isso for verdade, será que</p><p>substituir micróbios anormais por saudáveis melhoraria não só os</p><p>problemas intestinais, mas o próprio comportamento?</p><p>Jonathan e a sua mãe acreditaram que sim. Jonathan tinha vinte e cinco</p><p>anos quando os dois entraram na minha clínica. Tinha sido diagnosticado</p><p>com Perturbação do Espectro Autista (PEA), o termo atual para pessoas no</p><p>espectro do autismo, assim como perturbação obsessivo-compulsiva e</p><p>ansiedade crónica. Tal como muitas pessoas com PEA, Jonathan sofria,</p><p>desde sempre, de uma série de problemas gastrointestinais, que, no seu</p><p>caso, incluíam inchaço abdominal, dores e obstipação.</p><p>Os sintomas de inchaço de Jonathan pioraram muito depois de vários</p><p>períodos a tomar antibióticos de largo espectro, sugerindo que alterações na</p><p>microbiota podem ter desempenhado um papel significativo nos sintomas</p><p>gastrointestinais. Tal como muitos pacientes com PEA, já tinha tentado</p><p>várias dietas, incluindo uma dieta sem glúten e outra sem laticínios,</p><p>nenhuma das quais trouxe benefícios duradouros. A dieta diária pouco</p><p>comum também não estava a ajudá-lo, o que não era surpreendente. Não</p><p>comia praticamente fruta ou vegetais, pois não gostava da textura e do</p><p>cheiro. Em vez disso, a sua dieta consistia maioritariamente em hidratos de</p><p>carbono refinados, incluindo panquecas, waffles, batatas, macarrão, piza,</p><p>snacks e barras proteicas, bem como alguma carne vermelha e frango.</p><p>Graças à Internet, Jonathan estava bem informado em relação aos</p><p>problemas de saúde em geral e ao microbioma em particular. Tinha lido</p><p>sobre os efeitos de bactérias nocivas e parasitas no trato gastrointestinal, e</p><p>estava convencido de que os seus sintomas estavam relacionados com as</p><p>ações danosas de um parasita no intestino.</p><p>Tinha começado recentemente terapia cognitivo-comportamental para tratar</p><p>estas fobias e obsessões, e a terapia envolvia exposição a alimentos de que</p><p>não gostava. Isto causava-lhe uma quantidade imensa de ansiedade e</p><p>stresse, e desconfio que este stresse passageiro pudesse estar a piorar os</p><p>sintomas gastrointestinais.</p><p>Requisitei uma análise detalhada à microbiota nas fezes através do</p><p>American Gut Project, um projeto de investigação financiado pelo público</p><p>que recolhe amostras fecais de milhares de pessoas normais para</p><p>aprenderem mais sobre como a dieta e o estilo de vida moldam a nossa</p><p>microbiota. Uma série de estudos em anos recentes sugeriu que pacientes</p><p>no espectro de autismo podem ter uma combinação alterada de micróbios</p><p>intestinais relativamente a indivíduos sem sintomas de PEA, incluindo</p><p>proporcionalmente mais de um grupo bacteriano de nome Firmicutes e</p><p>menos de um grupo denominado Bacteroidetes. Pacientes com síndrome do</p><p>intestino irritável exibem um padrão similar. A análise de Jonathan revelou</p><p>que apresentavam o mesmo padrão e que tinha menos bactérias conhecidas</p><p>como Proteobacteria e Actinobacteria do que um americano normal. No</p><p>entanto, tendo em conta a sua dieta invulgar, sofria de ansiedade e stresse,</p><p>bem como de sintomas semelhantes a SII, não era possível saber se seria a</p><p>PEA, a SII ou os hábitos alimentares únicos os responsáveis pela</p><p>combinação alterada de micróbios intestinais.</p><p>Entre outras questões, Jonathan e a mãe queriam saber se ele deveria</p><p>considerar submeter-se a um transplante de microbiota fecal ou tomar</p><p>probióticos para alterar o seu microbioma e ajudá-lo com os sintomas</p><p>gastrointestinais e psicológicos. A pergunta surgiu por causa de um artigo</p><p>recente sobre um estudo em animais que se espalhou como um rastilho de</p><p>pólvora na comunidade autista, instigando toda a sua esperança nestas</p><p>terapias experimentais.</p><p>Até 40 % de pacientes com um diagnóstico de PEA sofre de problemas</p><p>gastrointestinais, maioritariamente hábitos intestinais alterados e dor e</p><p>desconforto abdominais, e muitos</p><p>destes pacientes cumprem com os</p><p>critérios para síndrome do intestino irritável. Além disso, pessoas com PEA</p><p>têm outras irregularidades no seu eixo cérebro-intestino-microbioma, como</p><p>níveis elevados de serotonina no sangue, a molécula de sinalização cérebro-</p><p>intestinal. (Lembre-se de que mais de 90% desta molécula está armazenada</p><p>no intestino</p><p>e que as células intestinais captadoras de serotonina comunicam</p><p>diretamente com o nervo vago e o cérebro). E, em pacientes com esta</p><p>perturbação, a composição da microbiota altera-se, tal como alguns</p><p>metabólitos no sangue.</p><p>Num dos melhores e mais influentes estudos em animais realizados até</p><p>hoje, Sarkis Mazmanian e Elaine Hsiao, do Instituto de Tecnologia da</p><p>Califórnia (Caltech), em Pasadena, injetaram ratos prenhes com uma</p><p>substância que imita uma infeção viral e ativa o sistema imunitário. Os</p><p>jovens ratos nascidos dessas mães apresentaram um leque de</p><p>comportamentos alterados que se assemelham aos de pessoas com PEA,</p><p>incluindo comportamento semelhante a ansiedade, comportamentos</p><p>estereotipados e repetitivos e interações sociais comprometidas. Por esta</p><p>razão, este suposto modelo de ativação imune maternal é um modelo animal</p><p>válido para autismo.</p><p>Os investigadores da Caltech concluíram que os jovens ratos</p><p>apresentavam alterações no intestino e na microbiota: uma combinação</p><p>desequilibrada de micróbios intestinais, aumento da impermeabilidade do</p><p>intestino e uma maior ativação do sistema imunitário no intestino. Os</p><p>investigadores identificaram um metabólito microbiano específico bastante</p><p>similar a um metabólito que havia sido anteriormente identificado na urina</p><p>de crianças com PEA. Quando deram este metabólito a ratos saudáveis</p><p>nascidos de mães cujo sistema imunitário não tinha sido ativado, esses ratos</p><p>apresentavam as mesmas irregularidades comportamentais que ratos</p><p>nascidos de mães cujos sistemas imunitários tinham sido ativados. O mais</p><p>intrigante é que, quando transplantaram as fezes de ratos anormais para</p><p>ratos livres de germes cujo comportamento era normal, os animais</p><p>transplantados começaram a comportar-se de forma anormal. Isto sugere</p><p>que as fezes transplantadas dos animais afetados produziram um metabólito</p><p>que conseguia chegar ao cérebro e alterar o comportamento de ratos</p><p>saudáveis. O mais importante para pessoas com PEA é que poderiam fazer</p><p>vários (apesar de não todos) dos comportamentos semelhantes a autismo</p><p>desaparecerem ao tratarem os ratos afetados com bactérias intestinais</p><p>humanas, as Bacteroides fragilis.</p><p>Este estudo cuidadosamente concebido atraiu muita atenção e entusiasmo</p><p>não só na comunidade científica, mas também entre pais de crianças</p><p>autistas e empresas ansiosas por desenvolver novas terapias para esta</p><p>perturbação devastadora. Jonathan e a mãe estavam entre aqueles que</p><p>ouviram falar do estudo, e perguntaram-me se Jonathan deveria considerar</p><p>submeter-se a um transplante de microbiota fecal ou tomar probióticos para</p><p>ajudar com os sintomas psicológicos e gastrointestinais.</p><p>Expliquei ao paciente que vários estudos ainda a decorrer em pacientes</p><p>humanos com PEA conseguirão responder às suas questões</p><p>conclusivamente nos próximos anos. Seria um avanço científico tremendo</p><p>se até apenas um subgrupo de pacientes com PEA mostrasse melhoria dos</p><p>sintomas com estas terapias. Mas, antes de estes resultados serem</p><p>conhecidos, há várias coisas que consegui recomendar para aliviar alguns</p><p>dos sintomas. É importante lembrar que existe uma panóplia de fatores que</p><p>contribuem para os sintomas gastrointestinais de Jonathan. Em primeiro</p><p>lugar, escolhe os alimentos com base na textura e não no sabor, o que</p><p>resulta numa dieta altamente restritiva em que evita muitos alimentos</p><p>vegetais. Em segundo lugar, consome muitos alimentos processados. Em</p><p>terceiro lugar, os níveis elevados de ansiedade e sensibilidade ao stresse</p><p>alteram as contrações e secreções gastrointestinais e aumentam a</p><p>permeabilidade do intestino.</p><p>O meu plano de tratamentos foi direcionado ao cérebro e ao intestino: o</p><p>nosso dietista trabalhou com ele para ajudá-lo a mudar gradualmente da</p><p>dieta altamente restritiva para um regime mais equilibrado, incluindo fruta,</p><p>vegetais e uma série de produtos fermentados (incluindo produtos lácteos</p><p>fermentados, refrigerantes ricos em probióticos, kimchi, chucrute e</p><p>diferentes queijos), todos com diferentes espécies de lactobacilos e</p><p>bifidobactérias. Aconselhei experimentar laxantes naturais, como doses</p><p>reduzidas de preparados de raiz de ruibarbo ou aloe vera para tratar a</p><p>obstipação. E, por último, mas não menos importante, ensinámos o paciente</p><p>exercícios de autorrelaxamento, como respiração diafragmática, e</p><p>recomendámos vincadamente que continuasse a terapia cognitivo-</p><p>comportamental para as suas fobias e nível elevado de ansiedade.</p><p>Quando Jonathan voltou à clínica, dois meses mais tarde, os sintomas</p><p>gastrointestinais tinham melhorado imenso. Aumentou a variedade de</p><p>alimentos que estava disposto a consumir e conseguia ter movimentos</p><p>intestinais regulares. Já não era obcecado com os parasitas nocivos no</p><p>intestino, mas estava mais interessado em compreender como é que a dieta</p><p>podia influenciar o comportamento da microbiota intestinal e como é que</p><p>esta interação podia melhorar os sintomas gastrointestinais.</p><p>EM DIREÇÃO A UMA NOVA TEORIA DE EMOÇÕES</p><p>Muito antes de alguém ter conhecimento da complexidade da microbiota</p><p>intestinal, sensações intestinais e os seus efeitos no cérebro, dois</p><p>reconhecidos académicos do século XIX formularam a primeira teoria</p><p>compreensiva de emoções. O filósofo, psicólogo e médico americano</p><p>William James e o médico dinamarquês Carl Lange propuseram, em</p><p>meados de 1880, que as emoções emergem da nossa avaliação cognitiva das</p><p>sensações corporais – ou seja, informação interocetiva dos nossos órgãos</p><p>durante atividade intensa, como batimento cardíaco acelerado, o estômago a</p><p>roncar, o cólon contraído em espasmos ou respiração acelerada. Esta teoria,</p><p>designada por teoria de James-Lange, é popular entre psicólogos, apesar de</p><p>haver poucas pessoas, hoje em dia, que acreditam que as emoções são</p><p>despertadas apenas por sensações corporais.</p><p>Em 1927, o reconhecido fisiologista Walter Cannon, da Universidade de</p><p>Harvard, nos Estados Unidos, refutou a teoria de James-Lange com um</p><p>vasto conjunto de dados empíricos, propondo uma teoria baseada no</p><p>cérebro em que a atividade em regiões cerebrais específicas, como a</p><p>amígdala e o hipotálamo, responde a estímulos exteriores gerados pela</p><p>experiência emocional. Apesar de sabermos agora que estas regiões do</p><p>cérebro são, de facto, essenciais para a criação de emoções, Cannon não</p><p>tinha acesso às ferramentas de imagiologia cerebral que temos, atualmente,</p><p>à nossa disposição. Por isso, não poderia ter conhecimento dos sistemas de</p><p>feedback mediados por químicos e nervos ao cérebro, nem poderia fazer</p><p>ideia do papel proeminente do intestino e dos micróbios intestinais neste</p><p>sistema interocetivo.</p><p>Foi só quando os neurocientistas da era moderna, incluindo António</p><p>Damásio e Bud Craig, conceberam teorias de base anatómica sobre os</p><p>circuitos entre o cérebro e o organismo, compostos por componentes</p><p>sensoriais e executivos, que as velhas teorias foram substituídas por um</p><p>conceito uniformizado de como as nossas emoções são geradas e moldadas.</p><p>Craig estudou consideravelmente a neuroanatomia de canais que</p><p>transportam a informação do organismo para o cérebro, ou seja, informação</p><p>interocetiva. Com base nestes estudos, propôs que todas as emoções têm</p><p>dois componentes intimamente ligados: um componente sensorial</p><p>(incluindo sentimentos instintivos) e um componente de ação (incluindo</p><p>reações intestinais). O componente sensorial é uma imagem interocetiva do</p><p>organismo que se forma no córtex insular desde um sem-número de sinais</p><p>neuronais de várias partes do corpo, incluindo o trato gastrointestinal. Esta</p><p>imagem está sempre ligada a uma ação – uma resposta motora que é</p><p>enviada de volta ao organismo de uma região diferente do cérebro, o córtex</p><p>do cíngulo. Isto desencadeia um circuito circular entre o organismo e o</p><p>cérebro. De acordo com a</p><p>nossos modelos para</p><p>compreender o corpo humano estão obsoletos? Existe um número crescente</p><p>de especialistas de Medicina Integrativa, profissionais de Medicina</p><p>Funcional e até cientistas tradicionais que concordariam com esta</p><p>suposição. Mas já não falta muito para vermos uma mudança.</p><p>O MISTERIOSO DECLÍNIO DA SAÚDE</p><p>A incapacidade de lidar eficazmente com várias doenças crónicas,</p><p>incluindo SII, dor crónica e depressão, não é a única lacuna do modelo</p><p>tradicional da Medicina baseado na doença. Desde os anos 1970 que temos</p><p>vindo a observar novos desafios à nossa saúde, incluindo a rápida ascensão</p><p>da obesidade e de distúrbios metabólicos relacionados, doenças autoimunes,</p><p>tais como doenças inflamatórias do intestino, asma e alergias e doenças</p><p>associadas ao desenvolvimento e envelhecimento do cérebro, como o</p><p>autismo, doença de Alzheimer e doença de Parkinson.</p><p>A taxa de obesidade nos Estados Unidos, por exemplo, aumentou</p><p>progressivamente de 13% da população em 1972 para 35% em 2012.</p><p>Atualmente, 154,7 milhões de adultos americanos têm excesso de peso ou</p><p>são obesos, incluindo 17% de crianças com idades entre os 2 e os 19 anos,</p><p>ou seja, uma em cada seis crianças americanas. Pelo menos 2,8 milhões de</p><p>pessoas morrem todos os anos como resultado do excesso de peso ou</p><p>obesidade. No geral, 44% de diabetes, 23% de cardiopatia isquémica e entre</p><p>7% e 41% de alguns cancros estão associados a excesso de peso ou</p><p>obesidade. Se a epidemia da obesidade continuar a bom ritmo, estima-se</p><p>que os custos para tratar pessoas com doenças relacionadas com a</p><p>obesidade subirão aos 620 mil milhões de dólares anualmente.</p><p>Continuamos desesperadamente à procura de respostas que expliquem o</p><p>aumento repentino de muitos destes novos problemas de saúde, para a</p><p>maioria dos quais nem sequer temos ainda soluções infalíveis. Ainda que o</p><p>aumento da longevidade nos Estados Unidos esteja no mesmo nível que</p><p>outros países desenvolvidos, estamos muito distantes em termos de bem-</p><p>estar físico e mental quando em relação às últimas décadas de vida. O preço</p><p>a pagar pelo aumento do número de anos que vivemos é o declínio da</p><p>qualidade desses anos.</p><p>Tendo estes desafios em consideração, está na altura de atualizar o modelo</p><p>do corpo humano em vigor para compreender realmente como funciona,</p><p>como pode continuar a funcionar e como podemos tratá-lo de forma eficaz</p><p>e segura quando algo corre mal. Não podemos continuar a suportar os</p><p>custos e os danos colaterais a longo prazo provocados pelo modelo antigo.</p><p>Até agora, temos ignorado completamente o papel fundamental de dois</p><p>dos mais complexos e cruciais sistemas no nosso organismo, no que diz</p><p>respeito à saúde global: o intestino (sistema digestivo) e o cérebro (sistema</p><p>nervoso). A ligação cérebro-intestino está longe de ser um mito. É um facto</p><p>biológico e um elo essencial para compreender tudo o que diz respeito à</p><p>nossa saúde global.</p><p>A VISÃO DE SUPERCOMPUTADOR</p><p>DO NOSSO SISTEMA DIGESTIVO</p><p>Durante décadas, a nossa perceção do sistema digestivo baseava-se no</p><p>modelo mecanicista do organismo. O intestino era visto maioritariamente</p><p>como um dispositivo antiquado que funcionava segundo princípios da</p><p>máquina a vapor do século XIX: comer, mastigar e engolir os alimentos para</p><p>que o estômago pudesse, então, decompô-los com a força de uma</p><p>trituradora mecânica auxiliada por ácido clorídrico concentrado e, depois,</p><p>despejar esta pasta homogénea no intestino delgado, que absorve as calorias</p><p>e os nutrientes e envia os alimentos não digeridos para o intestino grosso,</p><p>que acabaria por evacuar o remanescente. Esta metáfora da era industrial</p><p>era fácil de perceber e influenciou gerações de médicos, incluindo os atuais</p><p>gastroenterologistas e cirurgiões. De acordo com este ponto de vista, as</p><p>partes do aparelho digestivo que funcionassem mal poderiam ser facilmente</p><p>operadas ou removidas, e este poderia ser dramaticamente renovado para</p><p>promover a perda de peso. Tornámo-nos tão especialistas neste tipo de</p><p>intervenções que até podem ser realizadas através de um endoscópio sem</p><p>cirurgia.</p><p>Contudo, como seria de esperar, este modelo é demasiado simplista.</p><p>Ainda que a Medicina continue a ver o sistema digestivo como algo</p><p>amplamente independente do cérebro, sabemos que estes dois órgãos estão</p><p>intrinsecamente ligados, uma descoberta que se reflete no conceito de eixo</p><p>cérebro-intestino. Com base neste conceito, o nosso sistema digestivo é</p><p>muito mais delicado, complexo e poderoso do que se pensava. Estudos mais</p><p>recentes sugerem que, ao interagir com os seus micróbios residentes, o</p><p>intestino pode influenciar as nossas emoções mais básicas, a sensibilidade à</p><p>dor e as interações sociais, guiando, até, muitas das nossas decisões – e não</p><p>somente aquelas relacionadas com as nossas preferências e porções</p><p>alimentares. O sistema de comunicação complexo entre o intestino e o</p><p>cérebro desempenha um papel fundamental quando temos de tomar</p><p>decisões de vida importantes, validando, assim, a expressão popular de</p><p>seguir o nosso instinto (gut feeling) em termos neurológicos.</p><p>O diálogo entre o intestino e a mente não é algo em que somente os</p><p>psicólogos deveriam estar interessados – não está só na nossa cabeça. Este</p><p>diálogo está programado através de ligações anatómicas entre o cérebro e o</p><p>intestino, facilitada por sinais biológicos enviados através da corrente</p><p>sanguínea. Mas, antes de irmos demasiado longe, dêmos um passo atrás e</p><p>olhemos com atenção para o que queremos exatamente dizer com</p><p>«intestino» – o sistema digestivo, que é muito mais complexo do que um</p><p>simples processador de comida.</p><p>O intestino tem capacidades que superam as de todos os outros órgãos e</p><p>que até competem com o cérebro. Tem o seu próprio sistema nervoso,</p><p>conhecido cientificamente como sistema nervoso entérico, ou SNE, e é</p><p>referido recorrentemente nos media como o «segundo cérebro». Este</p><p>segundo cérebro é composto por 50 a 100 milhões de células nervosas,</p><p>tantas quanto existem na medula espinal.</p><p>As células imunitárias que vivem no intestino constituem a maior fatia do</p><p>sistema imunitário do organismo. Por outras palavras, existem mais células</p><p>imunitárias nas paredes do intestino do que a circular no sangue ou na</p><p>medula óssea. E há uma boa razão para a grande aglomeração destas células</p><p>nesta localização específica, que está exposta a muitos micro-organismos</p><p>potencialmente letais presentes no que comemos. O sistema imunitário de</p><p>defesa do intestino é capaz de identificar e destruir uma única espécie de</p><p>invasores bacterianos perigosos que entrem no sistema digestivo quando</p><p>ingerimos acidentalmente comida ou água contaminada. Ainda mais</p><p>extraordinário é o facto de cumprir esta tarefa ao reconhecer o número</p><p>reduzido de bactérias potencialmente letais num oceano de um bilião de</p><p>outros micróbios benéficos que vivem no intestino, a microbiota intestinal.</p><p>A concretização desta tarefa exigente assegura que conseguimos viver com</p><p>a nossa microbiota intestinal em perfeita harmonia.</p><p>O revestimento do intestino está repleto de um elevado número de células</p><p>endócrinas, células especializadas que contêm até vinte tipos diferentes de</p><p>hormonas que podem ser libertadas no sangue, se necessário. Se fosse</p><p>possível aglomerar todas estas células endócrinas numa massa, esta seria</p><p>maior do que todos os restantes órgãos endócrinos juntos – gónadas, tiroide,</p><p>hipófise e glândulas suprarrenais.</p><p>O intestino é, também, o maior depósito de serotonina no organismo,</p><p>sendo que 95% da serotonina está armazenada aqui. A serotonina é uma</p><p>molécula de sinalização que desempenha um papel crucial no eixo cérebro-</p><p>intestino: não só é essencial para as funções normais do intestino, como as</p><p>contrações coordenadas que movem os alimentos ao longo do sistema</p><p>digestivo, mas também em termos de funções vitais como, por exemplo,</p><p>sono, apetite, sensibilidade à dor, disposição e bem-estar geral. Devido ao</p><p>seu envolvimento generalizado na regulação de alguns destes sistemas</p><p>neurológicos, esta molécula de sinalização é o principal alvo de uma classe</p><p>elementar de antidepressivos, os inibidores seletivos de recaptação da</p><p>serotonina.</p><p>Se a</p><p>teoria de Craig, o propósito de todas as emoções</p><p>é manter o equilíbrio de todo o organismo.</p><p>FIG. 5 – A LIGAÇÃO PRÓXIMA ENTRE</p><p>O EIXO CÉREBRO-MICROBIOMA E O MUNDO EXTERNO</p><p>O eixo cérebro-intestino não só está envolvido em circuitos reguladores no organismo</p><p>(sistemas imunitário e endócrino), como também está intimamente ligado ao mundo que nos</p><p>rodeia. O cérebro responde a uma série de influências psicossociais, ao passo que o intestino e o</p><p>seu microbioma reagem ao que comemos, que medicação tomamos e a quaisquer organismos</p><p>infeciosos. O sistema inteiro funciona como um supercomputador que integra grandes</p><p>quantidades de informação do interior do organismo e do mundo exterior para produzir melhores</p><p>funções digestivas e cerebrais.</p><p>Ao longo de três livros, o neurologista e autor António Damásio elaborou</p><p>elegantemente a hipótese do marcador somático, que introduziu no livro O</p><p>Erro de Descartes: Emoção, Razão e Cérebro Humano. Segundo a teoria de</p><p>Damásio, temos os denominados circuitos corporais que consistem em</p><p>sinais que viajam do cérebro ao organismo e de volta ao cérebro. Esta</p><p>informação sobre a resposta do organismo a um estado emocional é</p><p>armazenada como memórias férteis e inconscientes de estados corporais,</p><p>tais como tensão muscular, batimento cardíaco acelerado e respiração</p><p>superficial. Ainda que Damásio não tenha referido muito na sua teoria sobre</p><p>o papel proeminente do trato gastrointestinal neste processo, o seu trabalho</p><p>e publicações pioneiras mudaram fundamentalmente o nosso entendimento</p><p>biológico das emoções.</p><p>A «ilha oculta» do cérebro, o córtex insular, discutido em mais detalhe no</p><p>próximo capítulo, pode e de facto extrai os clipes de vídeo editados de</p><p>como nos sentimos perante emoções vívidas, incluindo as motivações que</p><p>nos levaram a reagir. Pode, também, usar os clipes de vídeo arquivados da</p><p>memória para criar estados de repugnância, felicidade e desejo sem terem</p><p>de passar pelo extenso circuito cérebro-intestinal. Por isso, quando sentimos</p><p>emoções em adultos, o cérebro não precisa de sentir sensações que</p><p>descrevam o que está, de facto, a acontecer no cérebro. Em vez disso,</p><p>simplesmente reage a um estímulo ao aceder à sua biblioteca de vídeos</p><p>emocionais para produzir um sentimento. Os vídeos desta biblioteca podem</p><p>ter sido filmados durante a infância ou a adolescência como verdadeiras</p><p>reações intestinais, por exemplo, as contrações associadas a um sentimento</p><p>de raiva. São comunicadas de volta ao cérebro como sensações intestinais e</p><p>armazenadas na biblioteca como sentimentos, tais como náusea, bem-estar,</p><p>saciedade, fome, entre outros. Estes sentimentos podem ser acedidos</p><p>durante a vida inteira, instantaneamente.</p><p>Foi somente na última década que o crescimento exponencial do nosso</p><p>entendimento da microbiota e as suas interações com o intestino e o cérebro</p><p>nos forçou a expandir estas teorias modernas e a incluir a microbiota como</p><p>um terceiro componente essencial numa teoria das emoções alargada. Esta</p><p>teoria reivindica que o nosso circuito emocional no cérebro está, em grande</p><p>parte, determinado geneticamente, presente no nascimento, e é modificado</p><p>epigeneticamente durante os primeiros anos de vida. No entanto, o</p><p>desenvolvimento total das emoções e das reações intestinais requer um</p><p>extenso processo de aprendizagem que decorre durante toda a vida, através</p><p>do qual treinamos e aperfeiçoamos o nosso sistema do cérebro-intestino-</p><p>microbioma. O nosso desenvolvimento pessoal único, o estilo de vida e os</p><p>hábitos alimentares aprimoram a nossa maquinaria que produz emoções,</p><p>criando uma base de dados gigantesca no cérebro que armazena informação</p><p>altamente pessoal.</p><p>Ao que parece, a nossa microbiota intestinal tem um papel crucial neste</p><p>processo, permitindo-nos gerar padrões extremamente personalizados de</p><p>emoções, agindo de acordo com as nossas emoções primeiramente através</p><p>dos metabólitos que produz. Há cerca de 8 milhões de genes microbianos</p><p>no intestino – 400 vezes mais do que no genoma humano. Mais</p><p>extraordinário ainda, os humanos diferem geneticamente muito pouco uns</p><p>dos outros, partilhamos os nossos genes em mais de 90%, mas o conjunto</p><p>de genes microbianos no nosso intestino diverge drasticamente, e apenas</p><p>5% deles são partilhados entre quaisquer dois indivíduos. O microbioma</p><p>acrescenta toda uma nova dimensão de complexidade e possibilidades à</p><p>nossa maquinaria de produção de emoções do cérebro e do intestino.</p><p>Tal como ilustrado na Fig. 5, a comunicação bidirecional entre o cérebro e</p><p>o intestino e os micro-organismos que aí vivem força-nos a reavaliar a</p><p>resposta à famosa questão da «galinha e o ovo»: será que os micróbios</p><p>influenciam o que acontece no cérebro, os nossos sentimentos e emoções ou</p><p>serão os sinais que o cérebro envia ao intestino, baseados num estado</p><p>emocional específico, a influenciar os micróbios intestinais? Com base no</p><p>que aprendemos até agora, ambos os mecanismos desempenham um papel</p><p>fundamental, formando um circuito de comunicação circular ressonante,</p><p>que pode ser desencadeado ou moldado tanto pelo cérebro como pelo</p><p>intestino.</p><p>Devido ao facto de a nossa microbiota parecer tão fulcral para a maneira</p><p>como sentimos emoção, tudo o que modifique a atividade metabólica da</p><p>microbiota, incluindo stresse, dieta, antibióticos e probióticos, pode, em</p><p>princípio, moldar o desenvolvimento e responsividade dos circuitos que</p><p>geram emoções. Por exemplo, poderiam as diferenças geográficas em</p><p>termos de emotividade, que vemos em pessoas em diferentes partes do</p><p>mundo, estar relacionadas com as diferenças geográficas das dietas e na</p><p>função microbial do intestino? Se a nova teoria de emoções proposta estiver</p><p>correta, a resposta é sim. Ainda que sejam necessários futuros estudos para</p><p>confirmar estas ligações, podemos afirmar o seguinte: apesar de as bases</p><p>das emoções poderem ser, provavelmente, produzidas num cérebro</p><p>imaginário num frasco, totalmente isolado do intestino e do organismo, esse</p><p>cérebro teria um repertório muito limitado de experiências emocionais.</p><p>Acredito firmemente que é o envolvimento do intestino, e do seu</p><p>microbioma, que tem um papel decisivo na determinação da intensidade,</p><p>duração e carácter único das nossas emoções.</p><p>M</p><p>7</p><p>COMPREENDER A TOMADA</p><p>DE DECISÕES INTUITIVA</p><p>uitas das decisões que tomamos na vida são baseadas em lógica,</p><p>o resultado de consideração ponderada e cuidadosa. Por outro</p><p>lado, há aquelas escolhas que fazemos sem qualquer análise</p><p>verdadeira ou razão refletida. Tais escolhas são feitas, muitas vezes, sem</p><p>que nos apercebamos conscientemente, como acontece quando decidimos o</p><p>que comer, o que vestir ou que filme ver.</p><p>No seu êxito de vendas, Pensar, Depressa e Devagar, o psicólogo Daniel</p><p>Kahneman, um dos vencedores do Prémio Nobel de Economia, em 2002,</p><p>sugere que a tomada de decisões intuitiva é o «autor secreto de muitas das</p><p>escolhas e julgamentos que... fazemos». A ideia de que podemos tomar</p><p>decisões sobre o que é melhor para nós com base na intuição – ao invés de</p><p>pensarmos profundamente sobre isso – é central da condição humana.</p><p>De facto, esse tipo de tomada de decisões não racional tem tido um papel</p><p>fulcral na minha própria vida. Quando tinha dezassete anos, trabalhava,</p><p>depois das aulas, no negócio de família, uma confeitaria nos Alpes Bávaros.</p><p>Era um local idílico para crescer, no meio de uma zona abundante de esqui</p><p>e caminhadas, e apenas a algumas horas de carro de Itália. A loja foi</p><p>fundada pelo meu bisavô, em 1887, e estava na minha família desde então.</p><p>Quando era adolescente, fazia pastéis e bolos para todo o tipo de ocasiões, e</p><p>gostava particularmente de moldar chocolates requintados em formatos e</p><p>tamanhos exóticos. Foi assim que aprendi a associar determinados aromas a</p><p>diferentes estações e épocas festivas, preparando terreno (sem que me</p><p>apercebesse disso) para a minha futura carreira a estudar o diálogo</p><p>complexo entre comida, o intestino e o cérebro.</p><p>Quando chegou a altura de decidir se ia ou não para a universidade,</p><p>torturei-me durante meses entre tornar-me um pasteleiro de quinta geração</p><p>ou seguir uma carreira em Ciência e Medicina. Por um</p><p>lado, havia</p><p>vantagens em assumir o controlo de um negócio bem estabelecido e</p><p>lucrativo – manter-me próximo de uma comunidade unida, viver perto de</p><p>amigos e família e poder passar o meu tempo livre na paisagem magnífica</p><p>da cidade. Também havia expectativas da parte do meu pai, que tinha</p><p>planeado, desde sempre, que continuaria com a digna tradição familiar. Por</p><p>outro lado, sentia-me impelido para uma direção totalmente diferente: a</p><p>rejeição das tradições e das rotinas, o amor pela leitura, particularmente</p><p>livros de psicologia, filosofia e ciência, e uma curiosidade insaciável sobre</p><p>os fundamentos científicos da mente. Incapaz de escolher com base numa</p><p>lista de prós e contras, comecei, pela primeira vez na minha vida, a escutar</p><p>os meus sentimentos instintivos.</p><p>No fim de contas, para grande desilusão do meu pai, decidi deixar o</p><p>negócio de família para trás e iniciar os meus estudos em Munique.</p><p>Quando, muitos anos depois, terminei a Faculdade de Medicina, outra</p><p>decisão instintiva empurrou-me para ainda mais longe de casa e da carreira</p><p>estabelecida de professor universitário na Alemanha, quando rejeitei um</p><p>lugar cobiçado num internato no Hospital Universitário de Munique e me</p><p>juntei a um instituto de investigação em Los Angeles, o Center for Ulcer</p><p>Research and Education, conhecido pelo acrónimo CURE. O centro tinha-</p><p>se tornado um chamariz para investigadores de todo o mundo interessados</p><p>em aprender sobre o diálogo entre o intestino e o cérebro. Após os</p><p>primeiros dias no laboratório, tornou-se evidente que as minhas novas</p><p>tarefas – purificar e testar várias moléculas de intestinos de porco que</p><p>recolhemos no matadouro – não tinham a mesma magia da fábrica de</p><p>chocolate que deixei para trás.</p><p>No entanto, fiquei fascinado com o meu novo trabalho quando fui</p><p>percebendo, aos poucos, que as implicações da minha investigação não</p><p>estavam limitadas ao intestino: as moléculas de sinalização idênticas que</p><p>estávamos a isolar dos intestinos de porco também foram encontradas no</p><p>cérebro, e eram usadas também por uma grande variedade de plantas,</p><p>animais, rãs exóticas e, sim, até bactérias, para comunicarem uns com os</p><p>outros – um facto que se tornou conhecido, em dialeto científico, como</p><p>sinalização entre reinos. Mal sabia eu que esta área da comunicação entre o</p><p>cérebro e o intestino iria ocupar o meu interesse científico o resto da minha</p><p>carreira médica.</p><p>Ainda que os sentimentos instintivos tenham tido uma influência profunda</p><p>na minha vida, a realidade é que os riscos não eram assim tão elevados.</p><p>Deram-me muitas oportunidades nesses primeiros anos para explorar</p><p>diferentes percursos – e é provável que teria sido feliz com qualquer uma</p><p>das escolhas. Mas, para outros, os sentimentos instintivos podem ser uma</p><p>questão de vida ou morte.</p><p>No dia 26 de setembro de 1983, um jovem oficial das Forças de Defesa</p><p>Aérea Soviética, Stanislav Petrov, estava de serviço num centro de</p><p>comando secreto nos arredores de Moscovo quando os satélites detetaram,</p><p>por engano, cinco mísseis balísticos norte-americanos em direção à União</p><p>Soviética. Apesar de os alarmes terem soado e um ecrã mostrasse</p><p>«LANÇAMENTO», Petrov tomou a monumental decisão de que o alarme</p><p>era falso e recusou-se a confirmar o ataque iminente. Se tivesse atuado</p><p>segundo os procedimentos «racionais» que estavam estabelecidos para</p><p>essas situações (como muitos colegas militares poderiam ter feito), o ataque</p><p>de retaliação teria sido seguido de uma retaliação dos Estados Unidos</p><p>também, causando, muito provavelmente, muitos milhões de mortes.</p><p>Petrov começou por dar várias explicações racionais para a sua decisão,</p><p>incluindo acreditar que um ataque de cinco mísseis não fazia sentido.</p><p>Qualquer ataque dos Estados Unidos seria colossal, com centenas de</p><p>mísseis. Além disso, o sistema de deteção de lançamento era novo e, na sua</p><p>ótica, não totalmente de fiar. Por fim, as instalações de radar acabaram por</p><p>não confirmar o ataque.</p><p>No entanto, numa entrevista em 2013, quando era seguro fazer esse tipo</p><p>de afirmações mais honestas, Petrov revelou que nunca teve a certeza de</p><p>que o alarme era falso, mas que tomou a decisão com base num</p><p>«sentimento estranho na barriga».</p><p>Pessoas em todo o mundo referem-se a decisões tomadas com base no que</p><p>sentem visceralmente de uma forma semelhante. Não parece importar o tipo</p><p>de decisão que está a ser tomada – política, pessoal ou profissional, com</p><p>quem casar, que universidade frequentar, que casa comprar. Os presidentes</p><p>tomam decisões com base no instinto sobre guerra e paz, que afetam</p><p>milhões de pessoas, depois de escutarem os seus conselheiros e</p><p>considerarem cuidadosamente as opções disponíveis. Se for importante, os</p><p>humanos dão ouvidos ao instinto.</p><p>Os sentimentos instintivos e as intuições podem ser vistas como faces</p><p>opostas da mesma moeda. A intuição é a nossa capacidade de</p><p>discernimento rápido e pronto. Muitas vezes, sabemos e compreendemos</p><p>certas coisas de forma instantânea, sem qualquer pensamento ou ilação</p><p>racional. Sentimos quando algo não soa bem ou quando criamos um laço</p><p>pessoal com um estranho. Temos a certeza de que o político carismático na</p><p>televisão está a mentir com todos os dentes que tem na boca. Os</p><p>sentimentos instintivos refletem um conjunto extenso e, muitas vezes,</p><p>profundamente pessoal a que temos acesso e no qual confiamos mais do</p><p>que em conselhos familiares, conselheiros muito bem pagos e</p><p>autodeclarados especialistas ou redes sociais.</p><p>Então, o que são exatamente sentimentos instintivos? Qual é a sua base</p><p>biológica? E que papel têm os sinais com origem no intestino na produção</p><p>de sentimentos instintivos?</p><p>Algumas respostas podem ser encontradas no livro extraordinário de Bud</p><p>Craig, o neuroanatomista que avançou a nossa compreensão sobre os</p><p>circuitos que permitem ao nosso cérebro escutar o nosso organismo e vice-</p><p>versa. As suas ideias, expostas num livro recente, How Do You Feel? An</p><p>Interoceptive Moment with Your Neurobiological Self, tiveram um papel</p><p>importante na minha própria investigação, que olha para como o cérebro</p><p>escuta o intestino e os micróbios que aí vivem (e vice-versa).</p><p>O processo neurobiológico complexo pelo qual o nosso cérebro constrói</p><p>sentimentos instintivos subjetivos da vasta informação que recebe em forma</p><p>de sensações intestinais, ininterruptamente, é o pilar para a sensação</p><p>subjetiva de como nos sentimos quando acordamos, após uma refeição</p><p>deliciosa ou quando estamos em jejum durante muito tempo. Existem</p><p>provas crescentes que sugerem que o fluxo constante de informação</p><p>interocetiva do intestino (incluindo a conversa da nossa microbiota) pode</p><p>ter um papel fulcral na produção dos nossos sentimentos instintivos,</p><p>influenciando, assim, as nossas emoções.</p><p>Sentimentos (incluindo os instintivos) são sinais sensoriais que têm acesso</p><p>à chamada rede de saliência do cérebro. A saliência é o nível ao qual algo</p><p>no ambiente consegue captar e reter a nossa atenção por ser importante ou</p><p>percetível; algo que se destaca do resto. Uma abelha a zumbir à sua volta</p><p>enquanto lê este capítulo pode captar mais a sua atenção do que o próprio</p><p>conteúdo, particularmente porque existe uma potencial ameaça de a abelha</p><p>o picar. Uma tempestade lá fora pode ter saliência similar e ser igualmente</p><p>eficaz a tirar o seu foco do livro, ao passo que música de fundo a tocar a um</p><p>volume reduzido ou os sons de uma brisa leve podem passar despercebidas.</p><p>A rede de saliência do cérebro avalia a relevância de qualquer sinal,</p><p>independentemente de este ter origem no organismo ou no ambiente à nossa</p><p>volta, ao ponto de entrar nos nossos processos atencionais e na nossa</p><p>consciência.</p><p>Acontecimentos de saliência elevada relacionados com sensações</p><p>intestinais (incluindo náusea, vómitos e diarreia) vêm normalmente</p><p>acompanhados por sensações emocionais de desconforto e, por vezes, dor,</p><p>avisando-nos que algo de importante se está a passar que requer a nossa</p><p>atenção e reação corporal. No entanto, os sentimentos instintivos podem ser</p><p>também associados a sensações intestinais positivas, como quando nos</p><p>sentimos bem e saciados após uma boa refeição ou a sensação agradável</p><p>que sentimos no estômago num estado completamente relaxado. O limiar</p><p>para o que o cérebro avalia como relevante é influenciado por muitos</p><p>fatores, incluindo os genes, a qualidade e natureza dos acontecimentos dos</p><p>primeiros anos de vida, o estado emocional atual (quanto mais ansiosos nos</p><p>sentimos, menor será o limiar de saliência), a atenção às sensações</p><p>corporais e as extensas memórias de momentos emocionais, adquiridas ao</p><p>longo da vida. Contudo, tenha em atenção ao facto de que, em termos de</p><p>sinais com origem no nosso sistema digestivo, a rede de saliência, na</p><p>maioria das vezes, funciona abaixo do nível de perceção consciente. Todos</p><p>os dias, biliões de sinais sensoriais emergem do intestino e são processados</p><p>na rede de saliência do cérebro, ainda que a maioria não nos chame a</p><p>atenção. Mantêm-se sob a superfície, satisfeitos por penetrar no nosso</p><p>subconsciente.</p><p>Como é que a rede de saliência decide qual destes sinais se torna um</p><p>sentimento instintivo percetível conscientemente? Uma das regiões do</p><p>cérebro que tem um papel fundamental neste processo é o córtex insular, o</p><p>quartel-general da rede de saliência do cérebro. A ínsula, como também é</p><p>conhecida, recebeu este nome por causa da sua localização, uma «ilha</p><p>oculta» sob o córtex temporal. Numa teoria baseada nos conceitos de</p><p>mudança de paradigma e dados científicos abundantes do neurocientista</p><p>Bud Craig, pensa-se que diferentes regiões desta ilha oculta tenham papéis</p><p>específicos em gravar, processar, avaliar e responder a informação</p><p>interocetiva. De acordo com o nosso entendimento atual de como o cérebro</p><p>lida com esta tarefa colossal, a representação da primeira imagem do nosso</p><p>organismo é codificada, numa primeira instância, numa rede de núcleos</p><p>localizados na parte inferior do cérebro, o tronco cerebral. Daí, muita desta</p><p>informação chega à parte posterior do córtex insular. Onde a nossa perceção</p><p>desta imagem é comparada a uma fotografia a preto e branco granulada que</p><p>reflete o estado de todas as células no nosso corpo, ainda que quase</p><p>invisível à vista desarmada.</p><p>Na verdade, o nosso cérebro não está propriamente interessado nos nossos</p><p>comentários acerca desta informação, por isso, não é suposto vermos esta</p><p>imagem em estado bruto. A informação aqui contida é maioritariamente</p><p>relevante para feedback de rotina e constante envio do cérebro à região do</p><p>corpo onde a informação teve origem – no nosso caso, o trato</p><p>gastrointestinal. Em teoria, a Agência de Segurança Nacional norte-</p><p>americana manuseia dados da mesma forma. Num mundo perfeito, ninguém</p><p>teria acesso a nenhuma informação armazenada da agência, a não ser que o</p><p>limiar de saliência fosse transgredido, alertando os agentes de segurança</p><p>para vasculhar telefones, Internet e padrões de viagem.</p><p>FIG. 6 – COMO É QUE O CÉREBRO CONSTRÓI OS SENTIMENTOS INSTINTIVOS DE</p><p>SENSAÇÕES INTESTINAIS</p><p>Os sinais que emergem do intestino e do seu microbioma, incluindo sinais químicos, imunes e</p><p>mecânicos, são codificados por uma vasta quantidade de recetores na parede do intestino e</p><p>enviados para o cérebro através de canais nervosos (em particular, o nervo vago) e da corrente</p><p>sanguínea. Esta informação, no seu estado mais puro, é recebida na parte posterior do córtex</p><p>insular e depois processada e integrada em muitos outros sistemas cerebrais. Apenas nos</p><p>apercebemos de uma porção reduzida desta informação em forma de sentimentos instintivos.</p><p>Apesar de originados no intestino, os sentimentos instintivos surgem da integração de muitas</p><p>outras influências, incluindo memória, atenção e afeto.</p><p>De seguida, a imagem é refinada, editada e colorida, à semelhança do</p><p>processo por que passam as fotografias de atores e atrizes depois de uma</p><p>filmagem. Aquilo a que Craig designa por «re-representação» da imagem</p><p>interocetiva do organismo em versões ainda mais refinadas que podem ser</p><p>comparadas ao processo usado em fotografia profissional. Tal como um</p><p>fotógrafo usa Photoshop, o cérebro recorre a ferramentas afetivas,</p><p>cognitivas e atencionais, bem como a bases de dados de memórias de</p><p>acontecimentos anteriores, para refinar a qualidade e saliência da imagem.</p><p>Como nos processos de edição, as redes atencionais do cérebro tornam-se</p><p>mais envolvidas, tornando-nos mais conscientes da imagem, associando-a</p><p>com estados motivacionais – ou seja, uma vontade de fazer algo em</p><p>resposta ao sentimento gerado. É onde as sensações viscerais e as</p><p>experiências gustativas são enviadas para o cérebro, permitindo-nos sentir a</p><p>necessidade de comer ou eliminar, descansar ou correr, guardar energia ou</p><p>gastá-la. Assim que este processo chega à parte frontal do córtex insular, a</p><p>imagem possui todas as características de um sentimento emocional</p><p>consciente que descreve o estado de todo o organismo e que estamos a ligar</p><p>à nossa consciência do eu: sentirmo-nos bem, sentirmo-nos enjoados,</p><p>sentirmo-nos com sede, com fome ou saciados, sentirmo-nos relaxados ou</p><p>simplesmente maldispostos. Apesar do seu papel central neste processo, é</p><p>importante lembrarmo-nos de que a ínsula não lida com esta tarefa hercúlea</p><p>em isolamento, mas com interações próximas entre outras partes da rede</p><p>interocetiva do cérebro. Esta rede inclui vários núcleos no tronco cerebral e</p><p>em diferentes regiões do córtex cerebral.</p><p>Mas o que faz o cérebro com este sem-número de sentimentos instintivos</p><p>que acumulámos durante uma vida inteira? Não faria sentido algum que a</p><p>evolução tivesse inventando um sistema extraordinário complexo de</p><p>recolha e processamento de dados, apenas para deitar toda a informação</p><p>recolhida fora. Esta biblioteca de sentimentos instintivos é composta por</p><p>uma quantidade enorme de informação pessoal e relevante sobre cada um</p><p>de nós, recolhida a cada segundo do dia, 365 dias por ano. O atual</p><p>pensamento científico é que esta informação está armazenada numa base de</p><p>dados em constante crescimento, análoga aos sistemas de recolha de dados</p><p>criados por empresas e agências governamentais. Os dados recolhidos no</p><p>nosso cérebro contêm experiências pessoais, as nossas motivações e as</p><p>reações emocionais a estes acontecimentos, que o cérebro tem vindo a</p><p>construir desde o nascimento e até mesmo dentro do útero. Apesar de a</p><p>maioria das pessoas prestarem pouca atenção ou não pensarem nas suas</p><p>implicações, veremos que tem muito que ver com tomada de decisões</p><p>instintivas.</p><p>Esta informação armazenada representa inúmeros estados emocionais</p><p>positivos e negativos que sentimos na nossa vida. Por exemplo, as</p><p>memórias emocionais podem estar associadas a resultados negativos de</p><p>decisões que tomámos, tais como dor abdominal insuportável ou o</p><p>desconforto por que passei em Manali. Esta base de dados arquiva as</p><p>borboletas que sentimos na barriga antes de uma entrevista de emprego ou o</p><p>nó que se forma no estômago quando nos sentimos zangados ou</p><p>pessoalmente desapontados. Estes marcadores podem ser também</p><p>associados ao prazer de uma refeição maravilhosa, aos sentimentos intensos</p><p>de amor romântico ou à sensação de empoderamento.</p><p>DIFERENÇAS INDIVIDUAIS</p><p>Imagine que é um participante numa experiência concebida para observar</p><p>a relação entre inteligência interocetiva e inteligência emocional. Deita-se</p><p>num scanner cerebral, põe uns auscultadores e coloca o dedo médio</p><p>esquerdo num pequeno dispositivo que monitoriza a frequência cardíaca. A</p><p>mão direita é colocada num outro dispositivo com dois botões. À medida</p><p>que o scanner monitoriza a atividade cerebral, escuta, pelos auscultadores, a</p><p>várias séries de dez sinais sonoros. Após cada sequência de dez sinais</p><p>sonoros, há uma pausa e é-lhe pedido que faça uma escolha: pressionar um</p><p>botão se achar que os apitos coincidiam com os seus próprios batimentos</p><p>cardíacos ou pressionar o outro botão, se considerar que os apitos estavam</p><p>ligeiramente fora de tempo. Vai poder escutar estas sequências</p><p>repetidamente, algumas vezes sincronizadas, outras não. Consegue</p><p>distinguir entre um e outro?</p><p>Há muitos anos, quando esta experiência foi realizada em nove mulheres e</p><p>oito homens, quatro participantes estavam tremendamente confiantes sobre</p><p>quando os sons eram síncronos ou assíncronos</p><p>com os batimentos.</p><p>Conseguiam sentir a diferença de forma exata em todas as situações. Dois</p><p>participantes não conseguiam mesmo ler o coração. Não faziam ideia de</p><p>quando as pulsações estavam ou não fora de tempo e faziam apenas</p><p>escolhas aleatórias. Os restantes ficaram numa posição intermédia.</p><p>As imagens cerebrais revelaram atividade significativa em várias regiões</p><p>cerebrais de todos os participantes, especialmente na ínsula frontal direita.</p><p>Mostrou mais atividade naqueles que foram bem- -sucedidos a seguir os</p><p>batimentos cardíacos. Mais importante ainda, estas pessoas foram as que</p><p>tiveram uma pontuação mais alta no questionário padrão para sondar os</p><p>níveis de empatia. Por isso, quanto melhor for a seguir os batimentos</p><p>cardíacos, melhor será a sentir o leque completo de emoções humanas e</p><p>sentimentos instintivos. Quanto mais visceralmente consciente, mais</p><p>emocionalmente sintonizado. Apesar de este estudo ter sido realizado com</p><p>foco nas sensações do coração, não há razão para duvidar que poderia</p><p>aplicar-se à consciencialização dos sentimentos instintivos.</p><p>DESENVOLVIMENTO INICIAL</p><p>Sentimentos instintivos e intuições morais têm uma origem interessante,</p><p>relacionada com, incrivelmente, comida. A fome é uma emoção inicial</p><p>relacionada com sobrevivência, sendo, também, basilar a todos os</p><p>sentimentos instintivos que sentimos mais tarde na vida, incluindo a</p><p>consciência do que é certo ou errado.</p><p>Deixe-me explicar com uma história. Eu e a minha mulher recebemos em</p><p>nossa casa, recentemente, alguns amigos próximos para passar o fim de</p><p>semana, juntamente com a filha já adulta e a neta de sete meses, Lyla, que</p><p>passava o dia a balbuciar. O bebé estava feliz, na maior parte do tempo, mas</p><p>o sorriso e o bom humor eram interrompidos sempre que ficava com fome,</p><p>cansada ou estava quase a adormecer. Sabemos agora que o eixo cérebro-</p><p>intestino aos sete meses de idade é uma obra em evolução, particularmente</p><p>em termos de desenvolvimento total do cérebro e da rede de saliência. Além</p><p>disso, os micróbios intestinais só se estabelecem completamente no final do</p><p>terceiro ano de vida. Mesmo assim, a rede de saliência primitiva de Lyla</p><p>estava atenta a sensações intestinais relacionadas com fome, e isto levou a</p><p>um choro vigoroso que lhe conseguiu o leite que queria. Assim que acabou</p><p>de comer, os sentimentos negativos iniciais foram rapidamente substituídos</p><p>por sensações de conforto e prazer, desencadeadas por novas sensações</p><p>intestinais relacionadas com saciedade.</p><p>O meu ponto de vista central: os sentimentos instintivos relacionados com</p><p>fome abrangem os nossos sinais iniciais sobre o que é bom e o que é mau</p><p>no mundo, e começam no nascimento.</p><p>O sentimento de um estômago vazio pode ser a primeira protoemoção</p><p>negativa do recém-nascido, provocando um desejo incontrolável por</p><p>comida. Da mesma forma, o sentimento de saciedade que surge depois de</p><p>ingerir leite materno – repleto de prebióticos e probióticos – é,</p><p>provavelmente, a primeira experiência do que significa sentir-se bem.</p><p>Outros sentimentos instintivos positivos incluem o toque suave da mãe</p><p>(parte da interoceção), bem como afeto e sons reconfortantes.</p><p>Os sinais enviados do intestino ao cérebro, as sensações intestinais,</p><p>desempenham um papel crucial nestes acontecimentos iniciais e, por</p><p>arrastamento, a nossa capacidade de diferenciar o que é bom do que é mau.</p><p>Quando sentiu o estômago vazio, foi libertada uma hormona, a grelina, que</p><p>levou a uma sensação urgente de fome. Esta sensação, a par de uma</p><p>motivação forte, são a base para outros sentimentos instintivos negativos.</p><p>Os sentimentos instintivos podem estar também associados a sensações</p><p>positivas, como o prazer depois de uma refeição que nos deixou saciados, a</p><p>sensação agradável no estômago quando praticamos respiração</p><p>diafragmática ou sentimos os aromas a chocolate numa confeitaria de</p><p>família.</p><p>A experiência cíclica na infância de nos sentirmos cheios ou com fome –</p><p>bom ou mau – pode ser o fundamento para os julgamentos morais de bem</p><p>ou mal que se transformam, mais tarde, em sentimentos instintivos. Por</p><p>outras palavras, o nosso intestino regista se as nossas necessidades foram ou</p><p>não correspondidas na infância. Um bebé esfomeado deixado no berço a</p><p>chorar durante uma hora vê o mundo de forma muito diferente do que um</p><p>bebé que é agarrado imediatamente, embalado e alimentado. Por isso, os</p><p>nossos primeiros sentimentos instintivos servem de modelo para «como é</p><p>que o mundo é e o que tenho de fazer para sobreviver nele».</p><p>Sigmund Freud intuiu isto mesmo quando desenvolveu o seu</p><p>entendimento pragmático das primeiras forças motivacionais.</p><p>O fantástico psiquiatra relacionou o desenvolvimento psicológico e de</p><p>carácter à fixação da criança das regiões de «entrada e saída» do trato</p><p>digestivo – as famosas fases «oral» e «anal» do desenvolvimento psíquico.</p><p>Mas Freud esqueceu-se do contributo crucial dos sentimentos, construídos</p><p>pelo cérebro com base na informação sensorial que chega do trato digestivo</p><p>e os seus micróbios – algo que só agora estamos a começar a perceber.</p><p>Como é que agregados consideráveis de micróbios intestinais contribuem</p><p>para estes sentimentos iniciais de «bom» ou «mau»? Lembre-se de que o</p><p>corpo acolhe biliões de micróbios que superam em número todas as células</p><p>humanas no organismo.</p><p>Vivem praticamente em todo o lado – na pele, entre os dentes, na saliva, no</p><p>estômago e, mais relevante para os sentimentos instintivos, no trato</p><p>gastrointestinal. O intestino reúne mais de mil espécies microbianas que</p><p>comunicam, a muitos níveis, com o cérebro.</p><p>Com base em novas evidências sobre o desenvolvimento da ecologia</p><p>microbiana do intestino durante os primeiros três anos de vida, podemos</p><p>fazer algumas especulações intrigantes. É plausível, devido a estudos em</p><p>animais, que os micróbios influenciem o estado emocional e</p><p>desenvolvimento de crianças em todo o mundo, do choro aos arrulhos</p><p>típicos.</p><p>Como? Parte tem que ver com o leite materno, que contém algo parecido</p><p>a Valium. Os micróbios intestinais, em todas as crianças, estão adaptados</p><p>para metabolizarem, da melhor forma possível, os hidratos de carbono</p><p>complexos do leite materno. Um dos micróbios mais bem ajustado para isto</p><p>é uma determinada estirpe de lactobacilos que produz um metabólito de</p><p>GABA – uma substância que atua nos mesmos recetores cerebrais que o</p><p>Valium. Ao produzir Valium endógeno, um micróbio pode ajudar a acalmar</p><p>o sistema gerador de emoções de um bebé no cérebro e fazê-lo sentir-se</p><p>bem ao libertá-lo do tormento da fome.</p><p>O leite materno humano contém também açúcares complexos que não só</p><p>são essenciais para o desenvolvimento do microbioma do bebé, como</p><p>também podem contribuir para a sua sensação de bem-estar depois de ser</p><p>alimentado. Quando ratos recém-nascidos são alimentados com água com</p><p>açúcar, os recetores gustativos do doce no intestino e na boca produzem</p><p>sensações que são processadas pelo cérebro. Estas levam à libertação de</p><p>moléculas endógenas opiáceas que reduzem a sensibilidade à dor e,</p><p>provavelmente, fazem com que os roedores se sintam muito bem. O mesmo</p><p>acontece com as crianças.</p><p>O QUE TORNA O NOSSO CÉREBRO</p><p>UNICAMENTE HUMANO</p><p>De tudo o que se diz sobre o que faz dos humanos seres especiais,</p><p>deparar-se-á com muitos dos mesmos argumentos de sempre. Caminhamos</p><p>verticalmente. Temos polegares oponíveis. O nosso cérebro é enorme.</p><p>Temos línguas. Somos uns dos principais predadores. Mas há duas novas</p><p>características do nosso cérebro que são mais relevantes para a nossa</p><p>discussão sobre sentimentos instintivos e tomada de decisões intuitiva.</p><p>O tamanho e a complexidade da região insular frontal e o bem próximo</p><p>córtex pré-frontal – o centro da rede de saliência e onde os nossos</p><p>sentimentos instintivos são criados, armazenados e extraídos –</p><p>é o que nos distingue de todas as outras espécies. Os animais mais próximos</p><p>de nós, em termos de tamanho relativo da ínsula anterior, são alguns dos</p><p>nossos primos símios, em particular, algumas espécies de gorilas, seguidos</p><p>de baleias, golfinhos e elefantes – todos consideravelmente conhecidos</p><p>pelas capacidades emocionais, sociais</p><p>e cognitivas e, não coincidentemente,</p><p>a popularidade em programas como Animal Planet.</p><p>No entanto, existe uma outra característica específica do cérebro humano</p><p>de que, provavelmente, nunca ouviu falar. No interior da ínsula frontal</p><p>direita e das suas estruturas associadas encontra-se uma categoria especial</p><p>de células que não existe em mais nenhuma outra espécie a não ser grandes</p><p>símios, elefantes, golfinhos e baleias. Designados por neurónios von</p><p>Economo (ou NVE), graças ao cientista que os observou primeiro, em</p><p>1925, são neurónios grandes, corpulentos e altamente ligados, que parecem</p><p>estar numa posição invejável para nos permitirem fazer julgamentos rápidos</p><p>e intuitivos.</p><p>Somos capazes de fazer julgamentos céleres porque o nosso cérebro</p><p>contém NVE, mas, para simplificar, vamos chamar-lhes «células</p><p>intuitivas». Poucas semanas antes de nascermos, surge um pequeno número</p><p>de células intuitivas no cérebro. Estudos sugerem que, provavelmente,</p><p>tínhamos cerca de 28 000 células destas quando nascemos e 184 000</p><p>quando completámos quatro anos. Quando chegamos à idade adulta, temos</p><p>193 000 células intuitivas. Um símio adulto tem, normalmente, 7 000.</p><p>As células intuitivas são mais numerosas no lado direito do cérebro. A</p><p>ínsula frontal direita tem mais 30% do que a ínsula esquerda. As células</p><p>intuitivas parecem ser concebidas para passar informação rapidamente da</p><p>rede de saliência para outras partes do cérebro. Contêm recetores para</p><p>substâncias químicas no cérebro envolvidas nos laços sociais, na</p><p>expectativa de recompensa em condições de incerteza e para detetar perigo,</p><p>bem como para certas moléculas de sinalização no intestino, como a</p><p>serotonina – todos ingredientes da intuição. Quando pensamos que a nossa</p><p>sorte está prestes a mudar quando jogamos blackjack, estas células estão</p><p>ativas.</p><p>John Allman, neurocientista na Caltech e especialista reconhecido em</p><p>NVE, afirma que, quando conhecemos alguém, criamos um modelo mental</p><p>de como essa pessoa pensa e sente. Temos intuições iniciais e rápidas sobre</p><p>a pessoa – apelando à nossa base de dados de sentimentos instintivos,</p><p>estereótipos e perceções subliminares – que são seguidas de julgamentos</p><p>mais demorados e racionais segundos, horas ou anos mais tarde. Sabemos</p><p>agora que, quando tomamos uma decisão rápida, a ínsula frontal e cíngulo</p><p>anterior estão ativos. Estas áreas também podem estar ativas quando</p><p>sentimos dor, medo, náusea ou muitas emoções sociais. Quando pensamos</p><p>que algo tem piada, estas mesmas células ativam-se, provavelmente para</p><p>reajustar os julgamentos intuitivos em situações variáveis. O humor serve</p><p>para resolver incerteza, aliviar tensão, gerar confiança e promover laços</p><p>sociais.</p><p>Acredita-se que o sistema de comunicação rápida que envolve os NVE</p><p>pode ter evoluído em mamíferos a viver em organizações sociais</p><p>complexas, permitindo-lhes reagir e ajustar-se rapidamente a situações</p><p>sociais variáveis através de tomada de decisões com base no instinto.</p><p>Devido ao seu papel no comportamento social, intuição e empatia, foi</p><p>sugerido que anormalidades de NVE podem contribuir para a fisiopatologia</p><p>de perturbações do espectro do autismo, incluindo a falta de capacidade</p><p>destes pacientes sentirem empatia ou interagirem socialmente. Apesar de</p><p>não existirem, atualmente, evidências científicas diretas que sustentem esta</p><p>especulação, é concebível que o desenvolvimento do sistema de NVE no</p><p>cérebro esteja relacionado com alterações da composição e função da</p><p>microbiota intestinal nos primeiros anos de vida, incluindo sinais que</p><p>enviam ao cérebro.</p><p>A alteração das comunicações entre o intestino e o cérebro tem sido</p><p>associada, desde há muito tempo, em algumas formas de autismo, e</p><p>experiências recentes em ratos identificaram sinalizações alteradas entre</p><p>micróbios e cérebro como um possível mecanismo subjacente aos</p><p>comportamentos semelhantes a autismo nestes animais.</p><p>OS ANIMAIS TÊM SENTIMENTOS INSTINTIVOS?</p><p>Como humanos, tomamos as nossas emoções sociais como certas,</p><p>como embaraço, culpa, vergonha e orgulho, e assumimos que os</p><p>animais, principalmente aqueles que vivem connosco, partilham os</p><p>mesmos sentimentos. Os amantes de cães juram a pés juntos que os</p><p>seus companheiros caninos sentem as mesmas emoções de vergonha,</p><p>ciúmes, raiva e afeto da mesma forma que nós sentimos.</p><p>No entanto, se olharmos estritamente para a anatomia do cérebro, os</p><p>animais não possuem a mesma capacidade de sentir estas emoções; os</p><p>seus cérebros não estão programados para isso. A autoconsciência das</p><p>emoções conferida aos humanos pela ínsula anterior e as suas</p><p>interações com outras regiões corticais do cérebro, em particular, o</p><p>córtex pré-frontal, é única. Os cães possuem ínsulas, mas as estruturas</p><p>são rudimentares. As sensações produzidas internamente, incluindo as</p><p>que têm origem no intestino, são integradas na base dos cérebros e</p><p>nos centros emocionais subcorticais, e não na ínsula frontal. Os cães e</p><p>outros animais domésticos têm emoções, evidentemente, mas não têm</p><p>consciência disso. Por isso, independentemente do quão humanas</p><p>aparentem ser as suas expressões emocionais, não estão na mesma</p><p>liga do que nós, por mais que nos custe aceitar.</p><p>CONSTRUIR UM GOOGLE PESSOAL</p><p>Imagine que as nossas memórias de momentos emocionais estão</p><p>armazenadas no cérebro como se fossem pequenos clipes de vídeo do</p><p>YouTube. Estes vídeos contêm não só as representações visuais de todo e</p><p>qualquer momento, mas também os componentes emocionais, físicos,</p><p>atencionais e motivacionais associados. Raramente nos lembramos de datas</p><p>ou de circunstâncias específicas desses acontecimentos. Biliões desses</p><p>clipes, ou «marcadores somáticos», são guardados no equivalente biológico</p><p>de servidores em miniatura no cérebro e possuem «comentários» sobre os</p><p>estados motivacionais: um marcador negativo está associado a um</p><p>sentimento desagradável com um impulso motivacional de evitação, ao</p><p>passo que um marcador positivo está associado a uma sensação de bem-</p><p>estar e um comportamento motivacional de encontrar essa sensação.</p><p>Quando tomamos uma decisão com base no nosso instinto, o cérebro</p><p>acede à vasta videoteca de momentos emocionais no cérebro, como uma</p><p>busca no Google. Por outras palavras, não temos de passar pelos processos</p><p>demorados de considerar conscientemente todas as consequências positivas</p><p>e negativas possíveis de cada decisão específica que tomamos. Perante a</p><p>necessidade de ação, o cérebro prevê como é que uma determinada resposta</p><p>nos fará sentir, com base nas memórias emocionais do que aconteceu</p><p>quando fomos confrontados com outras situações semelhantes na vida. Este</p><p>processo probabilístico guia-nos, então, para longe de reações que,</p><p>provavelmente, nos farão sentir mal – ou seja, ansiosos, angustiados,</p><p>maldispostos, tristes, entre outros – e em direção a reações que estão ligadas</p><p>a memórias em que nos sentimos confortáveis, felizes, cuidados, etc. Além</p><p>de nos permitir tomar decisões mais rapidamente, este mecanismo deixa-</p><p>nos beneficiar de lições passadas sem o fardo psicológico de as reviver. Se</p><p>estivéssemos constantemente a revisitar e a reviver experiências dolorosas e</p><p>desagradáveis, enlouquecíamos.</p><p>A INTUIÇÃO FEMININA</p><p>Da minha experiência com pacientes, muitas mulheres parecem saber</p><p>escutar os instintos e tomar decisões intuitivas melhor do que os</p><p>homens. O interesse crescente em identificar diferenças com base no</p><p>sexo, no que diz respeito a processamento emocional e à prevalência</p><p>de dor crónica, conduziu a uma série de estudos financiados pelos</p><p>Institutos Nacionais de Saúde com o objetivo de identificar diferenças</p><p>nas reações cerebrais a estímulos dolorosos e emocionais.</p><p>Por um sem-número de razões políticas e de conveniência, o estudo</p><p>dessas diferenças biológicas entre mulheres e homens tem sido</p><p>extremamente negligenciado, já que se assume</p><p>automaticamente que o cérebro da mulher responde a esses estímulos,</p><p>bem como a medicações, da mesma forma que o cérebro do homem.</p><p>No entanto, estudos realizados pelo nosso grupo de investigação e por</p><p>outros sugerem que as mulheres tendem a mostrar mais sensibilidade</p><p>às redes de saliência</p><p>e emocionais do cérebro que estão em sintonia</p><p>com sensações físicas, como dor abdominal, e emoções, como tristeza</p><p>ou medo, do que os homens. Uma das explicações para estas</p><p>diferenças pode ter que ver com o facto de a mulher armazenar</p><p>memórias de estados de dor fisiológica ou estados desconfortáveis,</p><p>como menstruação, gravidez e parto. Quando espera uma experiência</p><p>potencialmente dolorosa, o cérebro da mulher possui uma biblioteca</p><p>de marcadores somáticos mais extensa para explorar, e a rede de</p><p>saliência pode obter mais informações sobre essas memórias do que o</p><p>sistema masculino.</p><p>AS DECISÕES BASEADAS EM INSTINTOS</p><p>SÃO SEMPRE AS MAIS ACERTADAS?</p><p>Se o que sabemos ou suspeitamos sobre sentimentos instintivos é verdade,</p><p>então as decisões tomadas com base no instinto não deveriam ser sempre as</p><p>melhores?</p><p>Sim e não. Apesar de os sentimentos instintivos estarem mais informados</p><p>acerca das nossas experiências e conhecimento adquirido do que alguma</p><p>vez considerámos, podem também ser facilmente corrompidos por uma</p><p>variedade de influências exteriores, incluindo eventos traumáticos,</p><p>distúrbios de humor e mensagens publicitárias.</p><p>Por exemplo, a programação televisiva está cheia de anúncios</p><p>direcionados diretamente aos nossos sentimentos instintivos, seja para nos</p><p>motivar a comer um hambúrguer, a fazer dieta ou a tomar um medicamento.</p><p>Estes anúncios, concebidos de forma inteligente, captam a nossa atenção ao</p><p>apresentarem imagens, incluindo uma promessa implícita de recompensa,</p><p>que são enraizadas, suavemente e sem esforço, na nossa biblioteca de</p><p>sentimentos instintivos e experiências.</p><p>Repare, por exemplo, no slogan de uma marca de manteiga de amendoim</p><p>que diz, «Choosy moms choose Jif» (algo como Mães exigentes escolhem</p><p>Jif). Ser exigente em relação à saúde dos filhos é um instinto que a maioria</p><p>dos pais possui; é digno de louvor. Anunciantes e outras influências podem</p><p>apoderar-se destes instintos básicos para se aproveitarem do facto de sermos</p><p>pessoas ocupadas. Podemos consolidar e simplificar a informação. O desejo</p><p>instintivo de «ser exigente quando alimenta os seus filhos» combina com o</p><p>slogan no cérebro para construir o imperativo «escolhem Jif», que é depois</p><p>confundido com um instinto. Por isso, a questão passa a ser se pode</p><p>aprender a identificar corretamente os verdadeiros instintos e não</p><p>propriamente se pode confiar neles. Apesar de os circuitos para a tomada de</p><p>decisões instantânea e intuitiva ter evoluído para nos permitir viver em</p><p>sociedades complexas, o desafio, hoje em dia, é usar o intestino para</p><p>compreender o que é mais importante para nós.</p><p>A nossa capacidade para fazer previsões e tomar decisões com base no</p><p>instinto é uma consequência da evolução; num mundo perigoso repleto de</p><p>situações que nos colocam em perigo de vida, uma inclinação sistémica em</p><p>presumir que a probabilidade de resultados maus é elevada pode dar-nos</p><p>uma vantagem de sobrevivência significativa. Atualmente, contudo, esse</p><p>sistema tornou-se inadequado na maioria do mundo desenvolvido, onde</p><p>ameaças físicas foram substituídas, em grande número, por situações diárias</p><p>de stresse – cujo desfecho se traduz no facto de as nossas decisões com</p><p>inclinação negativa resultarem, principalmente, em infelicidade e efeitos</p><p>negativos para a saúde.</p><p>Um bom exemplo disto é a história de Frank, que teve de se forçar a ter</p><p>almoços de negócios com os clientes, pois as previsões do cérebro,</p><p>relativamente ao que poderia acontecer num restaurante desconhecido,</p><p>criavam tanta ansiedade e sintomas gastrointestinais que não conseguia</p><p>focar-se na reunião. Este fenómeno é conhecido por catastrofismo, que</p><p>significa, simplesmente, que o cérebro faz a previsão (errada) de que o pior</p><p>(neste caso, sintomas digestivos graves) vai acontecer. No momento em que</p><p>Frank percebeu que tinha um novo compromisso, a sua predição intuitiva e</p><p>de tendência negativa de acontecimentos futuros no restaurante entrou em</p><p>ação, impedindo-o de avaliar racionalmente a situação. Esta natureza</p><p>catastrofista é comum também em pacientes que sofrem de depressão ou</p><p>dor crónica, cuja atenção está centrada apenas em estímulos negativos.</p><p>Algumas pessoas com estes problemas perderam, totalmente, a capacidade</p><p>de tomar decisões com base no instinto que são boas para o seu bem-estar.</p><p>COMO É QUE DECIDIMOS</p><p>No que diz respeito a comprar uma garrafa de vinho, existem três</p><p>tipos de determinantes, dependendo da estratégia de tomada de</p><p>decisões.</p><p>Primeiro estão os tipos lineares e racionais que baseiam a sua</p><p>decisão no que aprenderam numa aula de prova de vinhos (os</p><p>melhores anos para aquela casta específica, a quantidade de açúcar</p><p>adicionado, o ano, entre outros) ou no que leram na newsletter de um</p><p>enólogo famoso. Os especialistas em sensações intestinais, por outro</p><p>lado, tomam as suas decisões com base na capacidade inata ou</p><p>adquirida de detetar um número surpreendente de sabores e aromas</p><p>(que vão de chocolate a framboesa ou canela) quando cheiram ou</p><p>provam um vinho específico. Por fim, temos os tipos intuitivos, os</p><p>especialistas no instinto, que, durante a vida inteira, acumularam uma</p><p>vasta biblioteca de memórias emocionais relacionadas com o</p><p>consumo de vinho. Estas memórias podem incluir momentos</p><p>agradáveis vividos numa vila da Toscânia ou Provença ou a beber</p><p>uma simples garrafa de vinho tinto com comida deliciosa na</p><p>companhia de bons amigos. As memórias também podem incluir a</p><p>fragrância dos campos de lavanda e a tempestade que obrigou toda a</p><p>gente no restaurante a sair da esplanada. Os sentimentos instintivos</p><p>gerados e armazenados durante estes acontecimentos prazerosos</p><p>contêm não só o próprio aroma do vinho (a sensação intestinal), mas</p><p>também o contexto (cenário maravilhoso) e o estado emocional</p><p>(relaxado, feliz ou apaixonado).</p><p>Quando olhamos para os três tipos a tomar uma decisão sobre que</p><p>vinho comprar, o tipo racional dedicar-se-á a investigar na Internet e a</p><p>comparar cuidadosa e logicamente o preço, o ano e outras</p><p>informações sobre o vinho. Os especialistas sensoriais poderão ir a</p><p>uma sala de prova de vinhos para descobrir a mais recente</p><p>combinação de sabores e aromas.</p><p>Entretanto, o tipo intuitivo será influenciado, primeiramente, pelas</p><p>memórias que pode ter sobre aquela parte específica do mundo onde o</p><p>vinho foi cultivado ou sobre a ocasião em que partilharam o vinho em</p><p>boa companhia.</p><p>ACEDER AOS SENTIMENTOS</p><p>INSTINTIVOS NOS SONHOS</p><p>Se pudéssemos assistir a um documentário sobre a nossa vida baseado nos</p><p>sentimentos instintivos, composto por todos estes clipes individuais todos</p><p>juntos, seria, decerto, um filme biográfico fascinante e profundamente</p><p>pessoal de cores brilhantes.</p><p>À falta de uma fantasia do género, como é que podemos dar uma olhada</p><p>breve à videoteca na nossa mente? Assistir ao nosso filme biográfico</p><p>durante o dia, quando estamos ocupados a lidar com o mundo desafiante à</p><p>nossa volta, distrair-nos-ia imenso. Uma altura muito mais plausível para</p><p>ver essa película seria durante a noite, quando não estamos distraídos com</p><p>trabalho, família ou amigos, e quando o nosso corpo está temporariamente</p><p>offline e não se vai mexer durante as cenas mais assustadoras. E, de facto, é</p><p>exatamente aí que o filme começa para este cinema das emoções – quando</p><p>estamos a dormir ou, mais especificamente, quando estamos absortos nos</p><p>nossos sonhos.</p><p>A experiência de sonhar pode parecer, muitas vezes, como se</p><p>estivéssemos mesmo a ver um filme, e todos os que conseguem lembrar-se</p><p>dos seus sonhos concordarão que o cérebro humano é um realizador</p><p>fantástico. Assume-se, normalmente, que os sonhos mais vívidos ocorrem</p><p>durante o período do sono designado por fase de movimento rápido dos</p><p>olhos (sono REM, de rapid eye movement). Durante o sono REM, a nossa</p><p>respiração torna-se mais acelerada, irregular e superficial, os olhos</p><p>movimentam-se bruscamente em várias direções e o cérebro torna-se</p><p>extremamente ativo. Os filmes de maior relevância pessoal passam mais</p><p>frequentemente e surgem em formatos mais coloridos e emocionais.</p><p>Estudos de imagem cerebral em indivíduos a dormir demonstraram que as</p><p>regiões do cérebro</p><p>ativadas durante o sono REM incluem a familiar rede de</p><p>saliência das regiões corticais da ínsula e do cíngulo, juntamente com</p><p>muitas outras regiões geradoras de emoções – incluindo a amígdala e</p><p>regiões envolvidas na memória, tais como o hipocampo e o córtex</p><p>orbitofrontal – e a região cerebral essencial para contemplar as imagens, o</p><p>córtex visual. Ao mesmo tempo, áreas cerebrais envolvidas no controlo</p><p>cognitivo e perceção consciente, incluindo o córtex pré-frontal e córtex</p><p>parietal, e regiões que controlam o movimento voluntário estão desligadas.</p><p>Estamos paralisados. Desta forma, conseguimos assistir a uma versão não</p><p>censurada do nosso filme sem nos preocuparmos com cair da cama quando</p><p>temos vontade de fugir ou dar um murro a alguém. Não conseguimos</p><p>representar nos sonhos, a não ser que tenhamos uma perturbação do sono</p><p>rara.</p><p>Curiosamente, enquanto os movimentos corporais estão desligados, o eixo</p><p>cérebro-intestino-microbiota está mais ativo durante o sono do que em</p><p>qualquer outra altura. O complexo mioelétrico migratório – as poderosas</p><p>contrações e explosões de secreções gastrointestinais, analisadas no</p><p>Capítulo 2, que passam no intestino a cada 90 minutos quando não há</p><p>alimentos no trato gastrointestinal – está totalmente ativo durante o sono,</p><p>alterando drasticamente o ambiente para os nossos micróbios (e,</p><p>possivelmente, a sua atividade metabólica) durante este período. Com base</p><p>no que sabemos hoje, é provável que estas ondas contráteis estejam também</p><p>associadas à libertação de muitas moléculas sinalizadoras no intestino e à</p><p>transmissão desta informação ao cérebro através dos vários canais de</p><p>comunicação entre o intestino e o cérebro. Mesmo que não haja estudos</p><p>científicos que provem este ponto, não me surpreenderia se tais surtos de</p><p>intensa sinalização entre o intestino, os micróbios e o cérebro, com todas as</p><p>substâncias neuroativas que são libertadas durante este processo, tivessem</p><p>um papel relevante na coloração afetiva dos sonhos.</p><p>Porque é que sonhar é importante? Uma das teorias propostas é que</p><p>sonhar durante o sono REM ajuda a integrar e a consolidar vários aspetos</p><p>das nossas memórias emocionais. Tal como referirei adiante, a análise dos</p><p>sonhos é uma das formas de estabelecermos contacto e aprendermos a</p><p>confiar no nosso instinto. Apesar de haver muitas outras hipóteses sobre o</p><p>papel e a importância dos sonhos, a ideia de que uma das suas funções é</p><p>consolidar as memórias emocionais na forma de sentimentos instintivos que</p><p>acumulámos durante o dia encaixa-se em bastantes dados científicos que</p><p>têm vindo a ser recolhidos neste campo. Algumas das descobertas recentes</p><p>mais intrigantes, por exemplo, sugerem que o eixo cérebro-intestino,</p><p>possivelmente incluindo sinais da microbiota, tem um papel de peso na</p><p>modulação do sono REM e nos estados do sonho. Por isso, da próxima vez</p><p>que fizer uma refeição tardia antes de ir para a cama ou se levantar a meio</p><p>da noite para atacar o frigorífico, pense sobre o efeito não intencional que</p><p>pode ter na sessão de cinema noturna e na atualização da base de dados</p><p>interna!</p><p>Há um quarto de século, numa altura em que me sentia assoberbado com</p><p>decisões que tinha de fazer sobre o rumo da minha vida, tive a sorte de</p><p>passar pela psicanálise junguiana durante vários anos. Carl Gustav Jung foi</p><p>um famoso psiquiatra no hospital psiquiátrico de Burghölzli, em Zurique,</p><p>na Suíça, e contemporâneo de Sigmund Freud. Foi o fundador da psicologia</p><p>analítica, uma conceptualização complexa da psicologia que inclui</p><p>conceitos-chave como o inconsciente coletivo; padrões universais e inatos</p><p>de imagens inconscientes (os chamados arquétipos) que guiam o nosso</p><p>comportamento; e o conceito de individuação, um processo psicológico de</p><p>integrar tendências psicológicas opostas, como introversão e extroversão.</p><p>Jung via a análise dos sonhos como uma estratégia essencial para aceder ao</p><p>nosso inconsciente. Hoje, pergunto-me se este último processo não estará</p><p>relacionado com estabelecer contacto e aprender a confiar nos sentimentos</p><p>instintivos.</p><p>Ainda que os textos de Jung sobre análise dos sonhos me fascinassem</p><p>desde sempre, não estava propriamente preparado para as questões</p><p>semanais recorrentes do meu terapeuta, relacionadas com os sonhos que</p><p>havia tido desde a nossa última sessão. Apesar de ter iniciado a terapia em</p><p>busca de ajuda prática no que diz respeito a tomar as decisões mais</p><p>racionais possíveis sobre o meu futuro, o meu terapeuta desviava-me,</p><p>constantemente, da questão e fazia-me olhar para o meu interior e encontrar</p><p>respostas nos meus sonhos.</p><p>Houve semanas em que me senti apavorado ao dirigir-me para a minha</p><p>sessão semanal sem um único sonho apontado no meu caderno, prestes a</p><p>enfrentar uma sessão na qual não haveria nada para discutir. Depois de</p><p>alguns meses, contudo, comecei a ter sonhos mais frequentes, mais</p><p>detalhados e mais intensos, dos quais me conseguia lembrar. Estava</p><p>maravilhado com a beleza, enredos e complexidade dos «filmes internos» a</p><p>que assistia todas as noites. O mais rebuscado destes sonhos, associado com</p><p>os sentimentos mais profundos, acabou por ser um dos com mais</p><p>significado pessoal. A combinação entre registar os meus sonhos todas as</p><p>manhãs e refletir sobre eles, com ou sem o meu terapeuta, conduziu-me,</p><p>gradualmente, a um ponto onde conseguia estabelecer uma relação com a</p><p>minha base de dados interna de memórias emocionais, e comecei a confiar,</p><p>cada vez mais, na sabedoria interna espelhada nestes sonhos para tomar</p><p>decisões importantes, em vez de contar com os conselhos de amigos ou</p><p>colegas.</p><p>Mas a análise dos sonhos não é a única forma de estabelecer contacto com</p><p>os sentimentos instintivos. Há outras maneiras de nos treinarmos a escutar o</p><p>nosso instinto que são menos trabalhosas e dispendiosas do que a</p><p>psicanálise junguiana. A hipnose ericksoniana é uma delas. Milto Erickson,</p><p>um famoso hipnoterapeuta, era perito em colocar os pacientes em transe ao</p><p>direcionar as suas histórias rebuscadas e indutoras de hipnose para o lado</p><p>consciente e racional do cérebro (esquerdo) e, alternativamente, para o</p><p>sensato e omnisciente lado inconsciente (direito). Durante a indução</p><p>hipnótica, o indivíduo começava a confiar, cada vez mais, no lado</p><p>inconsciente, ao mesmo tempo que deixava de tentar controlar as coisas</p><p>através de mecanismos racionais e de pensamento linear. Não só a hipnose é</p><p>uma forma incrivelmente eficaz de desviar o cérebro de um foco de atenção</p><p>externo para um modo introspetivo, induzindo, dessa forma, um transe, mas</p><p>sessões repetidas de hipnose ericksoniana podem mudar a maneira como os</p><p>pacientes tomam decisões importantes quando não estão num estado de</p><p>transe. Ao longo do tempo, muitos dos participantes regulares de Erickson</p><p>aprenderam a confiar muito mais na sabedoria interna e a tomar as suas</p><p>decisões em conformidade.</p><p>A CONCLUSÃO A RETIRAR</p><p>Usamos, frequentemente, a expressão «sentimento instintivo» nas nossas</p><p>conversas diárias, sem nos apercebermos de que uma quantidade enorme de</p><p>evidência científica cumulativa estipula o suporte biológico para este termo.</p><p>A qualidade, exatidão e inclinações subjacentes deste diálogo entre o</p><p>intestino e o cérebro variam de pessoa para pessoa. Alguns sentimentos</p><p>instintivos são gravados com alta-fidelidade e repetidos de uma forma</p><p>subliminar: mesmo que raramente consigam chegar ao nosso consciente,</p><p>esses filmes, tal como os sonhos, têm, provavelmente, um papel importante</p><p>nos estados emocionais que estão em segundo plano. Além disso, alguns</p><p>indivíduos parecem ser mais sensíveis e conscientes de todos os sinais do</p><p>intestino. Podem olhar para eles próprios como pessoas que têm sempre um</p><p>«estômago sensível» ou pode ser-lhes dito pelas suas mães que tinham</p><p>muitas cólicas quando eram bebés. Alguns aprendem a viver com esta</p><p>hipersensibilidade e aceitam-na como sendo parte da sua personalidade.</p><p>Dir-vos-ão que são mais sensíveis a alimentos e medicamentos e sentirão</p><p>borboletas na barriga quando estão ansiosos. Outros neste grupo</p><p>desenvolvem perturbações gastrointestinais comuns, como SII, enquanto o</p><p>cérebro, inundado por um fluxo constante</p><p>de sinais irregulares do intestino,</p><p>produz reações intestinais desajustadas com base nos sinais que recebeu.</p><p>Ao estabelecermos contacto com os nossos sentimentos instintivos,</p><p>compreendermos o papel que a nossa coleção pessoal de memórias tem na</p><p>nossa tomada de decisões intuitiva e termos em conta que tudo o que</p><p>fizermos para influenciar as atividades dos micróbios intestinais – através</p><p>da nossa dieta ou ingestão de medicação – pode também influenciar as</p><p>nossas emoções e predições sobre o futuro, podemos aceder ao vasto</p><p>potencial do eixo cérebro-microbiota-intestino.</p><p>Parece estranho que, dada a importância crucial de tomada de decisões</p><p>com base no instinto, não haja nenhum mecanismo formal estabelecido para</p><p>treinar e otimizar esta competência extraordinária. Não será na escola que</p><p>aprendemos mais sobre isso, e muitos pais não dizem aos filhos para darem</p><p>ouvidos ao instinto. Em vez disso, insistem na importância de pensar nas</p><p>coisas logicamente (o que, claro está, é também uma competência valiosa</p><p>para adolescentes impulsivos treinarem). O derradeiro dogma da sociedade</p><p>moderna é tomar decisões racionais com base na suposição de que o mundo</p><p>é linear e previsível, e que, se tivermos informação suficiente sobre o</p><p>mundo, conseguimos tomar as melhores decisões. Acredito com veemência</p><p>que, assim que tivermos uma melhor compreensão das bases biológicas da</p><p>tomada de decisão intuitiva e aceitarmos esse facto como um objetivo</p><p>viável para investirmos as nossas energias mentais na melhoria dessas</p><p>competências, há uma série de estratégias que podemos seguir para</p><p>melhorar a nossa capacidade e inclinação para tomada de decisões com base</p><p>no instinto mais tarde na vida.</p><p>TERCEIRA PARTE</p><p>COMO OTIMIZAR A SAÚDE</p><p>CÉREBRO-INTESTINAL</p><p>E</p><p>8</p><p>O PAPEL DOS ALIMENTOS:</p><p>ENSINAMENTOS DOS CAÇADORES-</p><p>RECOLETORES</p><p>m todo o mundo, a comida é central à experiência social humana.</p><p>Sentamo-nos à volta da mesa para celebrar e rir com histórias de</p><p>família. Conhecemos novos amigos ao jantar e estes, por vezes,</p><p>tornam-se mais do que amigos. Marcamos pequenos-almoços que também</p><p>são reuniões, entregas de prémios com almoço incluído e jantares em que</p><p>cada um contribui com uma iguaria. Na maioria das vezes, as questões da</p><p>vida humana andam em redor de uma refeição em conjunto.</p><p>Contudo, à medida que a velocidade da vida moderna foi aumentando, os</p><p>nossos hábitos alimentares mudaram. Passámos de refeições sentados com a</p><p>família para hambúrgueres apressados, entradas congeladas, snacks</p><p>processados e refeições que podem ser encomendadas com um simples</p><p>clique num botão. Ao longo dessas décadas nos Estados Unidos, muitos de</p><p>nós viviam assombrados pelo sentimento de que algo tão central para a</p><p>nossa existência como a nossa dieta se estava a tornar profundamente não</p><p>natural. As repercussões duradouras e apelativas dessa tendência,</p><p>incorporadas em restaurantes de comida natural, nos mercados biológicos e</p><p>no movimento de slow food, revelam um desejo mais profundo de encontrar</p><p>o que perdemos nessa modernização – desvendar o que era bom, natural e</p><p>saudável na nossa subsistência.</p><p>Como é que podemos recuperar o que perdemos? Podemos começar por</p><p>olhar para a ciência. Durante milhões de anos, os nossos sistemas</p><p>digestivos, micróbios intestinais e cérebros evoluíram juntos, refinando a</p><p>nossa capacidade instintiva para encontrar, colher e preparar os alimentos</p><p>que são bons para nós e evitar comida não saudável. E durante quase todo</p><p>esse tempo, conseguimos obter comida através da caça e da recolha de</p><p>alimentos. Poderia a dieta dos caçadores-recoletores primitivos guiar-nos no</p><p>caminho certo?</p><p>Ao mesmo tempo, temos de nos lembrar que os humanos conseguem</p><p>prosperar com uma diversidade tremenda de dietas. Dos tubérculos, bagas e</p><p>frutos colhidos à mão pelos caçadores-recoletores da Tanzânia às focas,</p><p>baleias e narvais do povo inuíte amante de carne, as culturas tradicionais</p><p>prosperaram, geração após geração, com os mais variados mantimentos. Por</p><p>outro lado, os agricultores contavam com trigo, milho, arroz e outros</p><p>cereais essenciais, bem como vegetais, alguma carne, e talvez leite, queijo e</p><p>iogurte de animais domesticados. Devido à nossa versatilidade digestiva, as</p><p>pessoas conseguiram encontrar subsistência numa variedade inacreditável</p><p>de condições climáticas e ambientais.</p><p>Parte do crédito desse feito vai para o nosso próprio e extraordinário trato</p><p>gastrointestinal e a sua ligação com o poder computacional do nosso</p><p>sistema nervoso. Milhões de anos de evolução aperfeiçoaram o intestino a</p><p>sentir, reconhecer e codificar tudo o que comemos e bebemos em padrões</p><p>de hormonas e impulsos nervosos enviados para os centros reguladores no</p><p>cérebro. Mas, como aprendemos, uma grande parte do crédito vai também</p><p>para a nossa microbiota intestinal, que toma conta da fração variável da</p><p>nossa comida que não é absorvida no intestino delgado. Coletivamente, a</p><p>nossa microbiota é incrivelmente diversa e adaptável e, durante milhões de</p><p>anos de evolução, tornou-se uma ligação indispensável do nosso processo</p><p>digestivo.</p><p>Hoje, na América do Norte, é difícil fugir de uma dieta não natural que</p><p>não tenha adoçantes, emulsionantes, aromatizantes e colorantes, com</p><p>gordura extra, açúcares adicionados e glúten de trigo, recheada de calorias.</p><p>Já que os alimentos que ingerimos influenciam a atividade da nossa</p><p>microbiota, como é que esta seria se seguíssemos a dieta com que o nosso</p><p>organismo evoluiu? O que é que os nossos micróbios ancestrais nos dizem?</p><p>Conseguiremos, algum dia, descobrir qual era?</p><p>Na verdade, sim, conseguimos. E aprender mais sobre a nossa verdadeira</p><p>dieta ancestral pode até fornecer algumas respostas ao debate interminável</p><p>sobre que dieta é a melhor para o nosso corpo e mente: a dieta</p><p>hiperproteica, a dieta baixa em hidratos de carbono, a dieta omnívora rica</p><p>em frutos e vegetais, o extremo de uma dieta vegana ou o compromisso</p><p>saboroso da dieta mediterrânica. E, ao fazê-lo, podemos conseguir</p><p>vislumbrar uma época em que o cérebro, o intestino e os micróbios viviam</p><p>em harmonia – um vislumbre da dieta que acompanha a nossa evolução.</p><p>Uma forma de o fazer é estudando as pessoas que ainda praticam um</p><p>estilo de vida pré-histórico, cuja dieta não é muito diferente das dietas que</p><p>acompanharam a evolução do nosso organismo ao longo de dezenas de</p><p>milhares de anos. Falo-vos dos últimos agricultores primitivos e caçadores-</p><p>recoletores que restam no mundo, os malauianos rurais e os ianomâmis.</p><p>LIÇÕES ALIMENTARES DOS IANOMÂMIS</p><p>Há 40 anos, tive uma experiência pessoal fascinante que me concedeu</p><p>uma perspetiva em primeira mão sobre os ianomâmis e os seus hábitos</p><p>alimentares. Incluiu uma viagem que me levou milhares de quilómetros ao</p><p>interior da selva venezuelana, para uma parte da floresta tropical da</p><p>Amazónia onde vive um povo primitivo a montante do rio Orenoco.</p><p>Esta experiência na floresta tropical veio-me novamente à memória de</p><p>uma forma inesperada, em 2013, quando marquei presença numa</p><p>conferência científica importante sobre o microbioma intestinal em</p><p>Bethesda, Maryland, nos Estados Unidos. A conferência intitulava-se</p><p>«Ciência do Microbioma Humano: Visão para o Futuro». Um dos oradores</p><p>da conferência era a ecologista e microbiologista Maria Gloria Dominguez-</p><p>Bello, uma cientista reconhecida internacionalmente, autora de artigos</p><p>inovadores sobre como o tipo de parto influencia a composição microbiana</p><p>intestinal dos recém-nascidos. Também fazia parte de uma equipa de</p><p>investigadores que publicou uma comparação da composição microbiana</p><p>entre diferentes grupos, incluindo ameríndios (um povo indígena da</p><p>América do Sul) e pessoas a viver em cidades norte-americanas.</p><p>Quando vi os primeiros diapositivos do povo indígena do rio Orenoco não</p><p>podia acreditar no que via: as imagens destes indivíduos bonitos, de estatura</p><p>baixa, com as suas características distintas e penteados únicos, semelhantes</p><p>aos dos monges, transportaram-me, de imediato, para as memórias de 1972,</p><p>quando tive a sorte de ser convidado por um realizador de documentários</p><p>para ser assistente de câmara numa expedição à região</p><p>ianomâmi. Estava no</p><p>primeiro ano da universidade, e não foi preciso muito para decidir tirar um</p><p>semestre e embarcar nesta aventura única.</p><p>Tendo em conta que não tinha muito conhecimento sobre Antropologia e</p><p>Medicina na altura – sem falar da microbiota intestinal, cuja significância</p><p>não tinha ainda sido explorada –, a minha principal motivação para ir nesta</p><p>expedição foi uma combinação entre a busca por aventura e o fascínio por</p><p>fazer parte de uma produção cinematográfica. No entanto, enquanto me</p><p>preparava para a expedição, aprendi também um aspeto único dos hábitos</p><p>alimentares ianomâmis: a total ausência de sal como aditivo alimentar.</p><p>Vários estudos têm relacionado o baixo consumo de sódio dos ianomâmis</p><p>com uma quase inexistência de pressão arterial elevada e respetivas</p><p>complicações médicas. Mas, hoje, após décadas a exercer Medicina e a</p><p>investigar o diálogo complexo entre o cérebro, o intestino e o microbioma,</p><p>concluí que existem aspetos muito mais intrigantes sobre a dieta ianomâmi,</p><p>que não só influencia a sua saúde, mas, possivelmente, também a mente e</p><p>os comportamentos.</p><p>Falo-vos desta história pessoal porque os ianomâmis são um dos poucos</p><p>povos no mundo que continuaram a seguir o estilo de vida pré-histórico que</p><p>os nossos antepassados viveram há dezenas de milhares de anos. Estudar os</p><p>seus hábitos alimentares e os seus microbiomas oferecem-nos uma amostra</p><p>do passado, quando os humanos e os micróbios começaram uma vida</p><p>simbiótica juntos. Esta investigação pode dar-nos pistas sobre como os</p><p>nossos micróbios intestinais evoluíram e as consequências que isto pode ter,</p><p>hoje em dia, no nosso bem-estar.</p><p>Juntamente com os outros dois membros da nossa equipa de filmagem,</p><p>vivi numa aldeia ianomâmi durante dois meses. Tive a oportunidade de</p><p>observar e viver de perto as suas vidas diárias, incluindo como colhiam,</p><p>preparavam e consumiam os alimentos. Vi e provei o que comiam todos os</p><p>dias e observei, também, a variedade única de comportamentos emocionais,</p><p>das interações afetuosas entre os pais e os seus recém-nascidos às lutas</p><p>ritualísticas e violentas que ocorriam durante uma celebração importante,</p><p>bem como às preparações para a guerra com outra aldeia.</p><p>Após um ritual de iniciação demorado e ruidoso de familiarização,</p><p>durante o qual a aldeia inteira tocou nas nossas cabeças, rostos, peitos e</p><p>braços, e depois de ter sido atribuída uma cama de rede a cada um, os</p><p>habitantes da aldeia ignoravam-nos, praticamente – exceto as crianças, que</p><p>queriam mexer e brincar com tudo o que tínhamos nas mochilas, incluindo</p><p>as câmaras. Isto deu-nos uma oportunidade única de observar e filmar as</p><p>suas rotinas diárias e analisar os seus comportamentos, particularmente as</p><p>atividades recoletoras. Os ianomâmis têm uma divisão rigorosa de trabalhos</p><p>relacionados com a captura de alimentos: os homens caçavam pássaros,</p><p>macacos, veados, javalis e tapires (todos os animais selvagens com o</p><p>mínimo de gordura corporal), que pode ocupar até 60% do seu tempo.</p><p>Víamos, várias vezes, diversos homens a saírem dos shabonos (casas</p><p>tradicionais temporárias feitas, maioritariamente, de madeira e folhas de</p><p>palmeira) com arco e flecha, de manhã bem cedo, regressando apenas ao</p><p>final do dia com as presas. A carne destes animais é assada ou cozida; por</p><p>não usarem quaisquer óleos ou gorduras animais, nada é frito. As mulheres</p><p>penduravam pedaços de carne numa estaca dentro da área da família,</p><p>incluindo cabeças de macaco e pedaços de cobras, rãs e aves, bem como</p><p>grandes quantidades de plátanos, uma espécie de banana.</p><p>Era comum ver membros da família a alimentarem-se destes mantimentos</p><p>ao longo do dia, e convidavam-me várias vezes a juntar-me. Apesar da</p><p>abundância de animais selvagens na floresta, os produtos de origem animal</p><p>eram apenas uma pequena percentagem do abastecimento alimentar dos</p><p>ianomâmis. Além disso, o nosso guia informou- -nos que os ianomâmis</p><p>nunca comem os animais domésticos nem ovos de pássaro, que usavam</p><p>apenas para fins espirituais e cerimónias. As mulheres estão envolvidas na</p><p>horticultura, cultivando uma espécie de batata-doce, bem como plátanos e</p><p>tabaco. Acompanhámo-las e filmámo-las nas suas longas viagens ao</p><p>interior da floresta para apanhar larvas, térmitas, rãs, mel e rebentos. Tanto</p><p>os homens como as mulheres partilham a atividade de pescar nas águas</p><p>cristalinas do rio. Obter comida envolve bastante exercício físico, incluindo</p><p>caminhar e correr durante várias horas na floresta tropical. Acompanhar-</p><p>lhes o ritmo, neste ambiente quente e húmido, não foi tarefa fácil.</p><p>As famílias ianomâmis dependem da enorme diversidade da floresta para</p><p>sobreviverem, e essa diversidade reflete-se na variedade dos seus</p><p>microbiomas intestinais. Além da dieta essencial de fruta e vegetais,</p><p>também fazem uso de uma variedade alargada de plantas para outros</p><p>propósitos, incluindo diferentes venenos usados para construir pontas de</p><p>flecha para pescar e caçar, e centenas de plantas, bagas e sementes são</p><p>consumidas para propósitos dietéticos, medicinais e alucinogénios. Os</p><p>ianomâmis também empregam o princípio da fermentação na preparação da</p><p>comida, proporcionando-lhes um fornecimento natural de micro-</p><p>organismos. Vimos como um grupo de pessoas esmagaram uma grande</p><p>quantidade de plátanos até se formar um puré dentro de uma piroga e até a</p><p>fermentação natural transformar a polpa numa bebida alcoólica, que, de</p><p>seguida, os homens consumiram, e cujas consequências no comportamento</p><p>foram bem visíveis. Talvez os ianomâmis, ao longo de séculos de tentativa e</p><p>erro, tenham aprendido algo sobre como os compostos de alimentos e</p><p>plantas medicinais propiciam sinais específicos, desencadeando efeitos</p><p>tanto no cérebro como no intestino.</p><p>No geral, a dieta dos ianomâmis era rica em alimentos de origem vegetal,</p><p>complementados pelas ocasionais porções de carne. Mas, ao contrário dos</p><p>produtos de carne de vaca e porco processados e enriquecidos com gorduras</p><p>que compõem a maioria da alimentação na América do Norte, a carne que</p><p>os ianomâmis ingeriam provinha de animais selvagens, magros e saudáveis.</p><p>O povo ianomâmi está longe dos gurus nutricionais que hoje preenchem</p><p>estantes e ondas hertzianas, mas a sua dieta – rica em vegetais e fruta,</p><p>pontuada com peixe e carnes magras, sem quaisquer aditivos ou</p><p>conservantes – está de acordo com o conselho bem conhecido de Michael</p><p>Pollan no livro Em Defesa da Comida: «Coma comida. Mas não em</p><p>excesso. Vegetais, sobretudo».</p><p>Não estou a sugerir, de forma alguma, que se torne um caçador-</p><p>-recoletor; não acredito que todos deveríamos seguir uma dieta paleolítica</p><p>para uma saúde ideal. Estes povos indígenas apresentam crescimento</p><p>atrofiado (adaptado à sua vida na floresta como caçadores-</p><p>-recoletores), a esperança de vida não se aproxima minimamente da nossa, e</p><p>têm uma taxa de mortalidade elevada devido a guerras e ferimentos. Ao</p><p>mesmo tempo, observar o seu estilo de vida dá-nos, de facto, uma</p><p>oportunidade única de saber mais sobre os papéis interligados da dieta e do</p><p>microbioma na promoção de uma boa saúde humana.</p><p>A DIETA NORTE-AMERICANA</p><p>É NEGATIVA PARA OS MICRÓBIOS?</p><p>Poderá uma dieta frugal, rica numa variedade de alimentos vegetais com</p><p>uma pequena proporção de carne, ajudar-nos a manter a saúde da</p><p>microbiota? E terá a nossa dieta moderna norte-americana mudado para</p><p>pior a microbiota humana? Apenas nos últimos anos os cientistas</p><p>começaram a procurar respostas.</p><p>Há uns anos, Tanya Yatsunenko, Maria Gloria Dominguez-Bello e uma</p><p>equipa de especialistas em microbioma, sob a orientação de Jeffrey Gordon</p><p>da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, analisaram a</p><p>composição microbiana intestinal do povo guahibo, uma tribo amazónica</p><p>que vive na mesma região que os ianomâmis; população rural de uma aldeia</p><p>agrária na nação sul-africana do Maláui; e habitantes de cidades norte-</p><p>americanas. Os investigadores recorreram a uma metodologia moderna</p><p>conhecida como metagenómica: isolaram todos os micróbios intestinais de</p><p>amostras fecais, purificaram o material genético (ADN), usando, de</p><p>seguida, uma técnica automatizada de análise para identificar</p><p>todos os</p><p>genes bacterianos. Com esta técnica, descobriram que a microbiota dos</p><p>índios sul-americanos e dos malauianos rurais era composta por uma</p><p>mistura semelhante de micróbios, mas muito diferente da dos norte-</p><p>americanos. À primeira vista, estas descobertas não seriam de todo</p><p>surpreendentes, tendo em conta que os nossos estilos de vida e hábitos</p><p>alimentares são totalmente diferentes dos destes povos primitivos que</p><p>vivem em contextos geográficos e culturais bastante distintos.</p><p>Os malauianos e os ameríndios são geneticamente diferentes e vivem em</p><p>ambientes tropicais díspares – a floresta tropical da Amazónia, que</p><p>apresenta um clima relativamente constante o ano inteiro versus a savana</p><p>árida do Maláui, que ostenta estações secas e de chuva. Então, o que é que</p><p>explica a semelhança? Ao que parece, em ambas as sociedades tradicionais,</p><p>as pessoas consomem uma dieta similar com uma grande variedade de</p><p>alimentos de origem vegetal, bem como as pontuais carnes magras de</p><p>animais que caçaram.</p><p>De facto, os malauianos e os ameríndios possuem um padrão similar de</p><p>micróbios no intestino que compõem uma assinatura reveladora para os</p><p>humanos que aderem a uma dieta rica em plantas e pobre em produtos de</p><p>origem animal, um rácio reduzido de filos bacterianos – Firmicutes e</p><p>Bacteroidetes e, nestes últimos, um rácio elevado dos grupos Prevotella e</p><p>Bacteroides. Outros estudos que comparam crianças das zonas rurais do</p><p>Burkina Faso, no oeste de África, com crianças de Florença, Itália, ou o</p><p>povo caçador-recoletor hadza do Vale do Rift, na Tanzânia, a adultos de</p><p>Bolonha, Itália, confirmaram estas descobertas cruciais.</p><p>Tendo em conta que os estudos mencionados realizados em povos</p><p>caçadores-recoletores ocorreram num único momento temporal, não nos</p><p>permitiram incluir as normais variações sazonais na ingestão alimentar de</p><p>hadzas e malauianos, e o possível efeito na composição e função</p><p>microbiana. No entanto, um estudo recente realizado pelo grupo de</p><p>investigação de Justin Sonnenburg na Universidade de Stanford, nos</p><p>Estados Unidos, publicado na revista Science, esclarece esta questão</p><p>importante. Tal como Sonnenburg indicia, a aquisição de alimentos</p><p>consome a maior parte das atividades do povo hadza, e o padrão para estas</p><p>atividades está sujeito a duas estações distintas: a estação das chuvas, entre</p><p>novembro e abril, e a estação seca, entre maio e outubro. Ainda que o</p><p>consumo de tubérculos ricos em fibra e do fruto do baobá seja mais ou</p><p>menos constante durante o ano, o consumo de carne aumenta</p><p>exponencialmente durante a estação seca, pois é mais favorável à caça. Em</p><p>contrapartida, os hadzas deliciam-se com bagas doces e mel durante a</p><p>estação das chuvas. O aspeto mais fascinante deste estudo foi a observação</p><p>de que a composição e função microbianas intestinais alteraram-se</p><p>consoante a dieta dominante: a diversidade microbiana diminuiu durante a</p><p>estação seca com o consumo de carne a um nível semelhante ao que vemos</p><p>nas populações ocidentais, mas aumentou significativamente durante a</p><p>estação das chuvas, quando o consumo de fruta e vegetais aumentou</p><p>também. As próprias espécies microbianas que são sazonalmente voláteis</p><p>nos hadzas são as que parecem ter desaparecido totalmente nas populações</p><p>ocidentais. Quando os autores compararam os dados recolhidos de oito</p><p>populações de 16 países com diferentes estilos de vida, aperceberam-se de</p><p>que a estrutura da comunidade microbiana estava estreitamente relacionada</p><p>com a modernização, em que os organismos variáveis entre estações nos</p><p>hadzas são os mesmos que diferenciavam as populações industrializadas</p><p>das tradicionais.</p><p>O mais preocupante em relação às descobertas de um número crescente</p><p>destes estudos é o facto de mostrarem, consistentemente, que as pessoas que</p><p>seguem a típica dieta norte-americana perderam até um terço da diversidade</p><p>microbiana, em comparação a indivíduos com um estilo de vida pré-</p><p>histórico. E um pensamento igualmente desconcertante é que esta mudança</p><p>drástica no nosso ecossistema intestinal é diretamente comparável à perda</p><p>estimada de 30% de biodiversidade que o nosso planeta tem vindo a perder</p><p>desde 1970 – uma perda que tem ocorrido, na sua maioria, na floresta</p><p>tropical da Amazónia, o habitat dos ianomâmis. Infelizmente, esta redução</p><p>da biodiversidade em todo o mundo não se limita a plantas ou animas que</p><p>habitam as florestas subtropicais, fazendo com que ecologistas tenham</p><p>desenvolvido modelos matemáticos para determinar o seu efeito em vários</p><p>ecossistemas. A redução da biodiversidade afeta a vida marinha dos recifes</p><p>de coral, das abelhas e das borboletas-monarcas na América do Norte.</p><p>Poderemos usar os mesmos conhecimentos que os ecologistas adquiriram</p><p>ao estudarem o declínio dos ecossistemas à nossa volta para</p><p>compreendermos as consequências da biodiversidade decrescente nos</p><p>nossos intestinos? Tal como uma maior diversidade nos sistemas naturais</p><p>garante resiliência contra doenças, essa mesma diversidade e riqueza das</p><p>espécies microbianas de um hospedeiro e os seus metabólitos está associada</p><p>a uma maior resistência contra infeções, antibióticos, fornecimento</p><p>nutricional variável, substâncias químicas carcinogénicas e stresse crónico.</p><p>Nem todos na América do Norte seguem a típica dieta regional, claro. À</p><p>semelhança de sociedades que subsistem de dietas agrárias e pré-históricas,</p><p>as dietas tradicionais asiáticas e europeias, bem como vegetarianas, têm um</p><p>consumo mais baixo de gorduras saturadas e colesterol e um consumo mais</p><p>elevado de fruta, vegetais, cereais integrais, frutos secos, produtos de soja,</p><p>fibras e fitoquímicos (substâncias químicas que ocorrem naturalmente nas</p><p>plantas). E muitas populações em todo o mundo seguem um padrão de</p><p>variação sazonal no consumo alimentar, análogo ao exemplo dos hadzas.</p><p>No entanto, existem evidências científicas consideráveis que demonstram</p><p>benefícios significativos para a saúde de dietas deste tipo que são ricas em</p><p>alimentos de origem vegetal e pobres em componentes de origem animal,</p><p>principalmente gordura. Por exemplo, muitos estudos têm demonstrado que</p><p>as pessoas que seguem dietas vegetarianas ou veganas têm uma prevalência</p><p>reduzida de obesidade, síndrome metabólica, doença coronária, hipertensão</p><p>e trombose, bem como risco reduzido de cancro. Infelizmente, há pouca</p><p>evidência até à data que indique que tais dietas tenham benefícios diretos</p><p>para a saúde cerebral – ou seja, benefícios que não são simplesmente um</p><p>reflexo de uma melhor saúde física.</p><p>Apesar de as diferenças na abundância e diversidade microbiana</p><p>observadas em adultos no estudo de Yatsunenko serem impressionantes, os</p><p>investigadores concluíram que as diferenças nos microbiomas entre índios</p><p>sul-americanos e grupos africanos e habitantes de cidades norte-americanas</p><p>não dependiam, necessariamente, do estilo de vida em adultos, mas eram já</p><p>aparentes durante os primeiros três anos de vida e mantinham-se na vida</p><p>adulta. Qual será o responsável por estas diferenças microbianas nos</p><p>primeiros anos de vida, antes de as crianças terem sido expostas às</p><p>diferentes dietas dos adultos?</p><p>ONDE TUDO COMEÇA</p><p>A comida tem um papel crucial na saúde do intestino e do cérebro e na</p><p>interação destes dois órgãos vitais, e esta relação próxima começa assim</p><p>que nascemos. Apesar de todos querermos melhorar a nossa saúde em</p><p>adultos, as descobertas do estudo de Yatsunenko relembram-nos de que não</p><p>nos podemos esquecer que algumas das influências alimentares mais</p><p>consequentes para o microbioma começam muito antes de conseguirmos</p><p>fazer as nossas próprias escolhas sobre o que comemos e por que</p><p>probióticos optamos. Estas influências precoces no nosso microbioma são</p><p>as fundações para a nossa diversidade microbiana em adultos e a resiliência</p><p>contra doenças, e erros neste processo nesta programação prematura pode</p><p>aumentar o risco para uma série de problemas de saúde, de obesidade a SII.</p><p>Além da formação inicial do microbioma de um bebé durante o parto, os</p><p>alimentos que a criança recebe da mãe têm um papel crucial neste processo.</p><p>Um estudo conduzido pela microbiologista Ruth Ley, da Universidade de</p><p>única função era gerir a digestão, porque haveria de conter esta</p><p>incomparável combinação de células especializadas e sistemas de</p><p>sinalização? Uma das respostas a esta questão é uma característica</p><p>amplamente desconhecida do intestino: a sua função crucial como um vasto</p><p>órgão sensorial que cobre a maior superfície do corpo. Se o estendermos, o</p><p>intestino tem as dimensões de um campo de basquetebol e encontra-se</p><p>pejado de milhares de pequenos sensores que codificam a elevada</p><p>quantidade de informação contida na nossa comida na forma de moléculas</p><p>de sinalização, do doce ao amargo, do quente ao frio, do picante ao suave.</p><p>O intestino está ligado ao cérebro através de densos tubos nervosos que</p><p>conseguem transferir informação em ambas as direções e através de canais</p><p>de comunicação que usam a corrente sanguínea: as moléculas hormonais e</p><p>inflamatórias de sinalização produzidas pelo intestino sinalizam o cérebro e</p><p>as hormonas produzidas pelo cérebro sinalizam as diferentes células no</p><p>intestino, tais como o músculo liso, os nervos e as células imunitárias,</p><p>alterando as suas funções. Muitos destes sinais do intestino que chegam ao</p><p>cérebro não só geram sensações no intestino, como o sentirmo-nos</p><p>enfartados após uma boa refeição, náusea e desconforto e sentimentos de</p><p>bem-estar, mas também desencadeiam respostas do cérebro que as devolve</p><p>ao intestino, gerando reações distintas. E o cérebro também não se esquece</p><p>destas sensações. As sensações do intestino são armazenadas no cérebro em</p><p>enormes bases de dados, que podem ser acedidas mais tarde, na altura de</p><p>tomar decisões. O que sentimos no intestino afeta não só as decisões que</p><p>tomamos em relação ao que comer ou beber, mas também às pessoas com</p><p>quem escolhemos passar tempo e à forma como avaliamos informação</p><p>importante como empregados, membros de um júri e líderes.</p><p>Na filosofia chinesa, o conceito de yin e yang descreve que forças opostas</p><p>ou contrárias podem ser vistas como complementares e interligadas,</p><p>abrindo caminho para um todo unificado ao interagirem entre si. Quando</p><p>aplicado ao eixo cérebro-intestino, podemos olhar para as sensações do</p><p>intestino como yin e as suas reações como yang. Tal como o yin e yang são</p><p>dois princípios complementares da mesma entidade – a ligação cérebro-</p><p>intestino – tanto as sensações como as reações são aspetos diferentes da</p><p>mesma rede bidirecional do cérebro-intestino que desempenha um papel</p><p>fundamental no nosso bem-estar, nas nossas emoções e na nossa capacidade</p><p>para tomar decisões intuitivas.</p><p>FIG. 1 – COMUNICAÇÕES BIDIRECIONAIS ENTRE</p><p>O INTESTINO E O CÉREBRO</p><p>O intestino e o cérebro estão intimamente ligados através de canais bidirecionais de</p><p>sinalização que incluem nervos, hormonas e moléculas inflamatórias. A informação</p><p>sensorial gerada no intestino chega ao cérebro (sensações do intestino) e o cérebro envia</p><p>sinais de volta ao intestino para ajustar a sua função (reações do intestino). As interações</p><p>próximas destes canais desempenham um papel crucial na conceção de emoções e na</p><p>função intestinal perfeita. Ambos estão intrincadamente ligados.</p><p>O DESPONTAR DO MICROBIOMA INTESTINAL</p><p>Embora poucas pessoas estivessem atentas às descobertas dos</p><p>investigadores que têm vindo a estudar, nas últimas décadas, as interações</p><p>entre o cérebro e o intestino, mais recentemente, o eixo cérebro-intestino</p><p>tornou-se o centro das atenções. Esta mudança pode ser atribuída, em</p><p>grande medida, ao aumento exponencial de conhecimento e dados sobre</p><p>bactérias, arqueobactérias, fungos e vírus que vivem no intestino,</p><p>denominadas coletivamente de microbiota intestinal. Apesar de sermos</p><p>excedidos em número por estes micro-organismos invisíveis (existem cerca</p><p>de 100 000 vezes mais micróbios no intestino do que pessoas no planeta),</p><p>os humanos tiveram conhecimento da sua existência apenas há cerca de 300</p><p>anos, quando o cientista holandês Antonie van Leeuwenhoek aprimorou</p><p>drasticamente o microscópio. Ao espreitar pela lente, conseguiu observar</p><p>micro-organismos vivos de raspagens de dentes, aos quais deu o nome de</p><p>«animálculos».</p><p>Desde então, a nossa capacidade para identificar e caracterizar estes</p><p>micro-organismos sofreu incríveis inovações tecnológicas, e a maior parte</p><p>do progresso ocorreu na última década. O Projeto do Microbioma Humano</p><p>desempenhou um papel de relevo neste progresso extraordinário. Este</p><p>projeto é uma iniciativa dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados</p><p>Unidos, lançado em outubro de 2007 com o objetivo de identificar e</p><p>caracterizar os micro-organismos que convivem com os humanos. Foi</p><p>criado para compreender os componentes microbianos da nossa estrutura</p><p>genética e metabólica e de que forma contribuem para a nossa fisiologia</p><p>normal e predisposição para doenças.</p><p>Na última década, o tópico do microbioma intestinal difundiu- -se para</p><p>praticamente todas as especialidades da Medicina, até para especialidades</p><p>tão díspares como Psiquiatria e Cirurgia. As comunidades invisíveis de</p><p>micróbios estão em todo o lado no nosso mundo, incluindo em plantas,</p><p>animais, solos, fontes hidrotermais e na atmosfera superior, e, por isso</p><p>mesmo, o fascínio pelo mundo dos micro-organismos também se estende</p><p>aos cientistas que estudam os micróbios que vivem nos oceanos, solos e</p><p>florestas. Até a Casa Branca se envolveu ao convocar, em 2015, cientistas</p><p>de todo o país para explorar a influência dos micróbios no clima terrestre,</p><p>abastecimento alimentar e saúde humana. À data de redação deste livro, o</p><p>Presidente Barack Obama planeava anunciar a Iniciativa Nacional do</p><p>Microbioma a 13 de maio de 2016, uma iniciativa análoga à anterior</p><p>Iniciativa BRAIN, de 2014, que resultou em milhares de milhões de dólares</p><p>de investimento em estudos do cérebro humano.</p><p>Os benefícios decorrentes das nossas microbiotas têm consequências</p><p>profundas na saúde. Alguns dos benefícios mais bem documentados</p><p>incluem assistência à digestão de componentes alimentícios que o intestino</p><p>não consegue gerir sozinho, regulação do metabolismo, processamento e</p><p>desintoxicação de substâncias químicas perigosas que ingerimos com a</p><p>comida, treino e regulação do sistema imunitário e prevenção da invasão e</p><p>desenvolvimento de elementos patogénicos nocivos. Por sua vez, as</p><p>perturbações e alterações no microbioma intestinal – a microbiota e o seu</p><p>conjunto de genes e genomas – estão associadas a um vasto leque de</p><p>doenças, tais como doença inflamatória intestinal, diarreia associada a</p><p>antibióticos e asma, e podem até contribuir para Perturbações do Espectro</p><p>do Autismo e doenças neurodegenerativas, como a doença de Parkinson.</p><p>Com a ajuda de novas tecnologias, estamos a descobrir e a caracterizar</p><p>populações microbianas distintas retiradas da pele, rosto, narinas, boca,</p><p>lábios, pálpebras e até entre os dentes. O trato gastrointestinal,</p><p>particularmente o intestino grosso, contudo, possui, de longe, as populações</p><p>mais vastas. Mais de 100 biliões de micróbios vivem no mundo escuro e</p><p>praticamente sem oxigénio do intestino humano, aproximadamente o</p><p>mesmo número de células existentes no organismo, se incluirmos os</p><p>eritrócitos nesta comparação. Isto significa que apenas 10% das células no</p><p>ser humano são, de facto, humanas. (Se incluirmos os eritrócitos do corpo</p><p>humano, este número pode aproximar-se de 50%). Se colocássemos todos</p><p>os micróbios intestinais juntos e os moldássemos para criar um órgão,</p><p>poderia pesar entre sensivelmente 0,9 e 2,72 kg – a par do cérebro, que pesa</p><p>cerca de 1,18 kg. Com base nesta comparação, algumas pessoas já se</p><p>referiram à microbiota intestinal como o «órgão esquecido». As 1000</p><p>espécies de bactérias que fazem parte da microbiota intestinal contêm mais</p><p>de 7 milhões de genes, ou até 360 genes bacterianos para cada gene</p><p>humano. Isto significa que menos de 1% dos genes humanos e microbianos</p><p>(os denominados hologenomas) combinados são, de facto, de origem</p><p>humana!</p><p>FIG. 2 – DIVERSIDADE MICROBIANA DO INTESTINO</p><p>E VULNERABILIDADE A DOENÇAS NEUROLÓGICAS</p><p>A diversidade e a abundância dos micróbios do intestino variam ao longo da vida de um</p><p>indivíduo. São mais reduzidas nos primeiros três anos de vida, altura</p><p>Cornell, nos Estados Unidos, e pela sua equipa destacaram a importante</p><p>influência desta dieta precoce na microbiota de um bebé saudável (do sexo</p><p>masculino), analisada em 60 momentos específicos, desde o nascimento até</p><p>aos dois anos e meio.</p><p>O bebé foi alimentado com leite materno apenas nos primeiros quatro</p><p>meses e meio de vida. Primeiro, Ley e os seus colegas concluíram, o</p><p>microbioma do bebé era rico em espécies que facilitam a digestão dos</p><p>hidratos de carbono do leite, principalmente bifidobactérias e alguns</p><p>lactobacilos, o que não era surpreendente. Mas, antes de começar a</p><p>consumir leite de fórmula ou a primeira comida sólida, surgiram micróbios</p><p>intestinais, como Prevotella, que conseguem metabolizar hidratos de</p><p>carbono complexos de plantas. Isto significava que a microbiota do bebé</p><p>estava preparada para alimentos sólidos antes de este ter sequer começado.</p><p>A mãe do bebé continuou a amamentar até completar nove meses, e os</p><p>pais introduziram, gradualmente, comida para bebés como cereais de arroz</p><p>e ervilhas, e alimentos mais complexos. Assim que o bebé passou a ingerir</p><p>apenas comida sólida, a microbiota alterou, novamente, para micróbios que</p><p>fermentam hidratos de carbono vegetais.</p><p>Nos primeiros meses de vida do bebé, relativamente poucas espécies</p><p>viviam no intestino, e situações como febre, introdução de ervilhas na dieta</p><p>ou tratamento antibiótico para curar uma infeção no ouvido faziam com que</p><p>as comunidades microbianas flutuassem drasticamente. Mas a diversidade</p><p>foi aumentando de mês para mês e, quando completou dois anos e meio, o</p><p>seu microbioma havia estabilizado e assemelhava-se ao de um adulto.</p><p>Assente neste e noutros estudos, parece-nos evidente que desses primeiros</p><p>dois anos e meio aos três anos, o microbioma molda-se para o resto da vida.</p><p>É como se o organismo de uma criança estivesse a compor uma orquestra</p><p>sinfónica, em que cada espécie de bactérias tocam um único instrumento.</p><p>No início, há um teste. Alguns são contratados e outros não, mas muitos dos</p><p>lugares mantêm-se vazios. Aos dois anos e meio, contudo, a orquestra já</p><p>conta com todos os «músicos» necessários, a maioria dos quais tem um</p><p>trabalho para a vida toda. Dependendo das circunstâncias, e o</p><p>abastecimento de comida, esta orquestra consegue tocar um repertório</p><p>extenso.</p><p>O PAPEL CRUCIAL DA DIETA NA CRIAÇÃO</p><p>DO DIÁLOGO CÉREBRO-INTESTINAL NO BEBÉ</p><p>Nos últimos anos, à medida que fomos aprendendo mais sobre as ligações</p><p>entre o cérebro, intestino e microbioma, lembrei-me, algumas vezes, da</p><p>adolescente ianomâmi que deu à luz a uma bebé na selva venezuelana, e</p><p>que observei, durante várias semanas, a interagir com a sua recém-nascida.</p><p>Vi a jovem mãe, regularmente, a juntar-se às outras mulheres da aldeia para</p><p>colher alimentos, enquanto carregava a bebé com a ajuda de uma alça do</p><p>ombro até ao peito e barriga, amamentando-a ao longo do dia.</p><p>A bebé parecia estar de perfeita saúde e, com base no que observei e no</p><p>que os investigadores descobriram, entretanto, o intestino da bebé – e a sua</p><p>microbiota – estavam num caminho muito saudável, demonstrando uma</p><p>abundância e diversidade elevadas de micro-organismos. Desde o parto,</p><p>esta jovem havia exposto a sua bebé não só à enorme diversidade</p><p>microbiana do seu ambiente natural, mas também aos componentes únicos</p><p>que recebia da mãe.</p><p>Sabemos hoje que é o que a criança ingere, em particular, o leite materno,</p><p>que ajuda o seu intestino a encher-se com a mistura inicial saudável de</p><p>micróbios. Tenha em consideração que a composição do leite materno</p><p>depende significativamente da dieta da mãe. Estudos recentes</p><p>demonstraram que a composição da dieta de uma mãe lactante aumenta</p><p>exponencialmente o risco de desenvolvimento de doença metabólica e</p><p>obesidade mais tarde, e grande parte é mediada pela programação inicial da</p><p>microbiota do bebé. Apesar de todas as mães saberem, desde sempre, que o</p><p>leite materno é a melhor opção alimentar para os seus bebés, estudos</p><p>recentes sobre o microbioma revelaram mecanismos inesperados pelos</p><p>quais este benefício para a saúde é mediado. Além de todos os nutrientes</p><p>essenciais para o desenvolvimento da criança, o leite materno contém</p><p>prebióticos – compostos com a capacidade de alimentar grupos específicos</p><p>de micróbios. Especificamente, contém oligossacarídeos – hidratos de</p><p>carbono complexos que resultam da ligação glicosídica de três a dez</p><p>monossacarídeos – que são essenciais na construção da microbiota do bebé</p><p>ao promoverem efetivamente o crescimento de bactérias benéficas. Estes</p><p>hidratos de carbono, denominados oligossacarídeos do leite humano (ou</p><p>HMO), são o terceiro maior componente do leite materno humano, e já</p><p>foram identificadas mais de 150 moléculas HMO distintas.</p><p>O mais fascinante acerca dos HMO é o facto de o organismo das mulheres</p><p>os fabricarem, apesar de não serem digeríveis pelo intestino humano. Estas</p><p>moléculas resistem à acidez no estômago de uma criança, bem como à</p><p>digestão de enzimas pancreáticas e do intestino delgado, alcançando o fim</p><p>do intestino delgado e do cólon (onde vive a maioria dos micróbios</p><p>intestinais) intactos. Assim que chegam ao seu destino, alimentam</p><p>microbiota benéfica, particularmente a espécie Bifidobacterium que</p><p>conseguem decompor parcialmente em ácidos gordos de cadeia curta e</p><p>outros metabólitos. Estes produtos decompostos criam um ambiente</p><p>favorável ao crescimento de micróbios benéficos ao invés de potenciais</p><p>substâncias patogénicas. Isto ajuda a explicar o facto de as crianças que não</p><p>são amamentadas terem menos bifidobactérias nas fezes do que as crianças</p><p>alimentadas a leite materno. Tal como refere David Mills, da Universidade</p><p>da Califórnia, um dos maiores especialistas do mundo em componentes do</p><p>leite humano, os HMO são o único alimento que evoluiu estritamente para o</p><p>propósito de alimentar a microbiota das crianças. Claramente, a evolução</p><p>concebeu estas moléculas em específico para ajudar na programação da</p><p>microbiota do bebé, ao mesmo tempo que confere proteção contra bactérias</p><p>patogénicas. Uma das formas que utilizam para concretizar isto é favorecer</p><p>a predominância de Bifidobacterium infantis (micróbios especialistas em</p><p>digeri-las), prevenindo, assim, o crescimento de bactérias potencialmente</p><p>perigosas enquanto competem por um fornecimento limitado de nutrientes.</p><p>Além disso, os HMO têm efeitos antimicrobianos diretos contra estes</p><p>elementos patogénicos, algo que se reflete numa redução de infeções</p><p>microbianas que afetam o bebé. Por isso, os HMO são essenciais para o</p><p>desenvolvimento de um microbioma saudável nos bebés e para a proteção</p><p>temporária contra infeções intestinais, numa altura em que o microbioma da</p><p>criança possui uma diversidade reduzida (constituída por um número</p><p>limitado de grupos e espécies microbianas) e ainda não está preparado para</p><p>uma defesa eficaz contra infeções.</p><p>A evolução inventou uma magnífica transição sem interrupções do feto</p><p>praticamente sem micróbios para um mundo repleto de micro-organismos</p><p>ao usar, antes de mais, o ambiente microbiano único da vagina da mãe para</p><p>inocular o intestino estéril do recém-nascido, programando-o, de seguida,</p><p>para o crescimento destes mesmos micróbios no intestino da criança com</p><p>moléculas específicas presentes no leite materno humano o tempo suficiente</p><p>para uma criança em crescimento desenvolver a sua composição microbiana</p><p>única.</p><p>Ao longo dos meus dois meses com os ianomâmis, vi mães a amamentar</p><p>não só bebés, mas também crianças mais velhas. Na verdade, amamentam</p><p>durante três anos completos ao mesmo tempo que acrescentam plátanos a</p><p>esta dieta inicial após o primeiro ano, tal como acontece noutras sociedades</p><p>de caçadores-recoletores. Durante este período, o microbioma intestinal de</p><p>uma criança não é apenas a única coisa que está a ganhar forma – o cérebro</p><p>também. O desenvolvimento cerebral continua ao longo da adolescência,</p><p>mas os primeiros anos de vida são particularmente importantes. Poderá a</p><p>amamentação mudar o diálogo entre o intestino, a microbiota e o cérebro</p><p>para promover o desenvolvimento saudável de circuitos e sistemas cerebrais</p><p>fundamentais?</p><p>Estudos a longo</p><p>em que o</p><p>microbioma ainda se está a estabelecer, atingindo o seu máximo na idade adulta e</p><p>diminuindo à medida que envelhecemos. O período inicial de diversidade reduzida</p><p>coincide com a janela de vulnerabilidade a doenças do foro do desenvolvimento</p><p>neurológico, como autismo e ansiedade, ao passo que o período tardio de diversidade</p><p>reduzida coincide com o desenvolvimento de doenças neurodegenerativas, como a doença</p><p>de Parkinson e a doença de Alzheimer. Poder-se-ia especular que estes períodos de</p><p>diversidade reduzida constituem fatores de risco para o desenvolvimento das referidas</p><p>doenças.</p><p>Todos estes genes conferem aos micróbios não só uma capacidade enorme</p><p>para gerar moléculas através das quais conseguem comunicar connosco,</p><p>mas também uma impressionante aptidão para mudanças. A microbiota</p><p>intestinal difere bastante de pessoa para pessoa, fazendo com que não haja</p><p>duas microbiotas exatamente iguais no que diz respeito às diferentes</p><p>estirpes e espécies que contêm. Os micróbios presentes no intestino</p><p>dependem de muitos fatores, incluindo genes, microbiota da mãe, que todos</p><p>nós herdamos de alguma forma, micróbios de outros indivíduos que vivem</p><p>connosco na mesma casa, regime alimentar e – como discutiremos no livro</p><p>– a atividade e estado de espírito do cérebro.</p><p>Para compreender plenamente a importância extraordinária que os</p><p>micróbios têm no nosso organismo, vale a pena recordar de onde vieram e</p><p>como é que se acoplaram a nós, humanos. Este conto evolucionário foi</p><p>transformado numa belíssima narrativa da autoria de Martin Blaser no seu</p><p>livro, Missing Microbes:</p><p>Durante cerca de 3 mil milhões de anos, as únicas habitantes da</p><p>Terra eram as bactérias. Estas ocupavam cada parcela de terra, ar e</p><p>água, impulsionando reações químicas que criavam as condições para</p><p>a evolução da vida multicelular. Aos poucos, por tentativa e erro, ao</p><p>longo da infinidade do tempo, inventaram sistemas de feedback</p><p>complexos e robustos, incluindo o mais eficiente «idioma» que, até</p><p>hoje, sustém toda a vida na Terra.</p><p>Tudo o que sabemos sobre a microbiota intestinal até agora põe as crenças</p><p>científicas tradicionais à prova, uma das razões pelas quais se tornou um</p><p>assunto de tanto interessante e controvérsia, tanto no mundo da ciência</p><p>como nos media. É também a razão que tem levado algumas pessoas a fazer</p><p>perguntas mais profundas e filosóficas sobre o impacto do microbioma: será</p><p>o nosso corpo humano apenas um veículo para a continuidade dos</p><p>micróbios? Será que os micróbios manipulam o nosso cérebro para que este</p><p>procure os alimentos que eles querem? Deveria o facto de nós, humanos,</p><p>sermos ultrapassados em número por células não-humanas mudar o nosso</p><p>conceito de humano?</p><p>Tais especulações filosóficas são fascinantes, mas, atualmente, não há</p><p>suporte científico que as corrobore. No entanto, as implicações do que a</p><p>ciência do microbioma humano tem revelado até agora, são igualmente</p><p>profundas, na última década. E mesmo estando no início dos inícios deste</p><p>caminho de descoberta científica em acelerado desenvolvimento, já não nos</p><p>é possível olhar para os humanos como o único produto inteligente da</p><p>evolução, distinto de todas as outras criaturas vivas no planeta. Tal como a</p><p>Revolução Copernicana transformou fundamentalmente, no século XVI, a</p><p>nossa compreensão da posição do nosso planeta no sistema solar ou a teoria</p><p>revolucionária da evolução que Darwin propôs no século XIX mudou para</p><p>sempre a nossa opinião em relação ao reino animal, a ciência do</p><p>microbioma humano está a forçar-nos, uma vez mais, a reavaliar o nosso</p><p>lugar na Terra. Segundo a nova ciência do microbioma, os humanos são</p><p>verdadeiros superorganismos compostos por elementos humanos e</p><p>microbianos intrinsecamente interligados, inseparáveis e dependentes entre</p><p>eles para poderem sobreviver. E o mais preocupante é o facto de que as</p><p>componentes microbianas são em maior número do que a nossa</p><p>contribuição humana para este superorganismo. Tendo em conta que a</p><p>componente microbiana está tão intrinsecamente ligada através de um</p><p>sistema de comunicação biológico comum a todos os outros microbiomas</p><p>no solo, no ar, nos oceanos e em todos os outros micróbios que vivem em</p><p>simbiose com quase todas as criaturas vivas, estamos íntima e</p><p>inextricavelmente vinculados à teia da vida terrestre. O novo conceito de</p><p>superorganismo microbiano humano tem implicações profundas para a</p><p>compreensão do nosso papel no mundo e para muitos aspetos relacionados</p><p>com saúde e doença.</p><p>QUANDO O EIXO</p><p>INTESTINO-MICROBIOTA-CÉREBRO</p><p>PERDE O EQUILÍBRIO</p><p>A saúde de todos os ecossistemas pode ser verificada através da</p><p>estabilidade ou resiliência contra infrações e perturbações. Os principais</p><p>fatores que contribuem para esta saúde são a diversidade e a abundância de</p><p>organismos no ecossistema. As mesmas considerações aplicam-se ao</p><p>ecossistema do microbioma intestinal. Há cada vez mais evidência de que a</p><p>composição dos micróbios intestinais se desvia do seu estado estável em</p><p>várias perturbações do intestino (um estado denominado disbacteriose). Um</p><p>dos mais graves e mais bem caracterizados estados de disbacteriose foi</p><p>relatado num pequeno número de pacientes hospitalizados e tratados com</p><p>antibióticos que desenvolveram diarreia grave e inflamação intestinal após</p><p>o tratamento.</p><p>Esta alegada colite pseudomembranosa surge quando um tratamento com</p><p>antibióticos de largo espectro reduz sobremaneira a diversidade e a</p><p>abundância da microbiota normal, permitindo a invasão do agente</p><p>patogénico C. difficile. A observação de que a inflamação no cólon pode ser</p><p>rapidamente curada ao restabelecer-se a arquitetura comprometida do</p><p>microbioma vem também confirmar a importância da diversidade</p><p>microbiana para a saúde do intestino. A única maneira atualmente</p><p>disponível para repor a diversidade microbiana nestes doentes é a</p><p>transferência de uma microbiota intacta das fezes de um dador saudável</p><p>para o intestino do doente afetado. Este tratamento, denominado transplante</p><p>de microbiota fecal, resulta numa quase milagrosa reconstituição da</p><p>composição microbial do paciente. Exploraremos mais sobre este novo tipo</p><p>de tratamento adiante.</p><p>No entanto, a extensão e o papel concreto do estado de disbacteriose na</p><p>fisiopatologia de outras doenças crónicas do intestino, como a colite</p><p>ulcerosa, a doença de Crohn ou SII causada por perturbações cérebro-</p><p>intestino, são menos compreendidas na sua plenitude e deixam muitas</p><p>perguntas por responder. Até 15 % da população mundial sofre de sintomas</p><p>cardinais de SII, hábitos intestinais alterados e dor e desconforto abdominal.</p><p>Vários estudos relataram comunidades microbianas alteradas num subgrupo</p><p>de doentes, mas não é evidente qual das terapêuticas disponíveis – que</p><p>visam restaurar o equilíbrio destas microbiotas (incluindo antibióticos,</p><p>probióticos, uma dieta especial ou transplante de microbiota fecal) –</p><p>funciona melhor individualmente para cada doente.</p><p>O PAPEL EMERGENTE DOS MICRÓBIOS</p><p>Até há poucos anos, considerar-se-ia ficção científica. Mas novos estudos</p><p>científicos confirmam que o nosso cérebro, intestino e micróbios intestinais</p><p>comunicam entre si numa língua biológica comum. Como é que estas</p><p>criaturas invisíveis podem estabelecer contacto connosco? Como é que</p><p>conseguimos escutá-las e como é que elas conseguem comunicar connosco?</p><p>Os micróbios não só habitam o interior do intestino, como muitos deles se</p><p>encontram numa camada extremamente fina de mucosa e células que cobre</p><p>o revestimento interno do intestino. Neste habitat único, os micróbios</p><p>vivem próximos das células imunitárias do intestino e dos inúmeros</p><p>sensores celulares que codificam as sensações intestinais. Por outras</p><p>palavras, vivem em estreito contacto com os principais sistemas de recolha</p><p>de informação do nosso organismo. Esta localização permite-lhes escutar</p><p>com atenção quando o cérebro envia informação ao intestino sobre o nosso</p><p>nível de stresse, bem como quando nos sentimos felizes, ansiosos ou</p><p>zangados, mesmo que não estejamos plenamente cientes destes estados</p><p>emocionais. O seu papel, contudo, não se limita a escutar. Por mais incrível</p><p>que pareça, os</p><p>micróbios do intestino estão numa posição privilegiada para</p><p>influenciar as nossas emoções ao gerar e modular os sinais que o intestino</p><p>envia de volta ao cérebro. Desta forma, o que começa por ser uma emoção</p><p>no cérebro acaba por influenciar o nosso intestino e os sinais gerados pelos</p><p>micróbios, e estes sinais, por sua vez, comunicam de volta ao cérebro,</p><p>reforçando e, às vezes, até prolongando esse estado emocional.</p><p>Quando as primeiras publicações sobre este tópico – na sua maioria, com</p><p>base em estudos em animais – surgiram na literatura científica há cerca de</p><p>dez anos, fiquei cético em relação aos resultados e implicações, que me</p><p>pareciam estar demasiado afastados da visão convencional da Medicina. No</p><p>entanto, depois de o meu grupo de investigação da Universidade da</p><p>Califórnia, em Los Angeles, sob a orientação de Kirsten Tillisch, ter</p><p>concluído o nosso estudo em participantes humanos saudáveis, foi-nos</p><p>possível confirmar os resultados dos estudos em animais – e eu decidi</p><p>explorar ainda mais se as interações entre a microbiota intestinal e o cérebro</p><p>poderiam afetar as nossas emoções de fundo, interações sociais e até a</p><p>nossa capacidade de tomar decisões. Será o equilíbrio adequado de</p><p>micróbios um pré-requisito para a saúde mental? E quando estas ligações</p><p>entre a mente e o intestino se alteram, poderão aumentar o risco de um</p><p>indivíduo desenvolver doenças crónicas do cérebro? Estas questões são</p><p>fascinantes não só da perspetiva de um cientista, mas também de uma</p><p>perspetiva humana: é urgente compreender melhor a ligação cérebro-</p><p>intestino devido ao impacto que muitas perturbações neurológicas têm no</p><p>sofrimento humano e nos custos de cuidados de saúde.</p><p>Tem-se verificado uma redução drástica e contínua na prevalência relatada</p><p>das perturbações do espectro do autismo, de 4,5 em cada 10 000 crianças,</p><p>em 1966, para 1 em cada 68 crianças com 8 anos de idade, em 2010. Dados</p><p>mais recentes provenientes do inquérito National Health Interview, de</p><p>2014, revelam que 2,2% de crianças norte-americanas foram diagnosticadas</p><p>com PEA a determinada altura das suas vidas, sugerindo que a prevalência</p><p>atual seja de 1 em cada 58 crianças. Parte deste aumento deve-se,</p><p>provavelmente, a uma maior consciencialização e mudanças nos critérios de</p><p>diagnóstico, mas há indícios que sugerem também que as Perturbações do</p><p>Espectro do Autismo se tornaram duas vezes mais prevalentes só na última</p><p>década.</p><p>À medida que as Perturbações do Espectro do Autismo foram</p><p>aumentando, também outras doenças ligadas a uma alteração na microbiota</p><p>intestinal, incluindo doenças autoimunes e metabólicas, aumentaram. As</p><p>semelhanças no decurso temporal destas novas epidemias sugeriam um</p><p>mecanismo subjacente comum relacionado com uma mudança na</p><p>microbiota intestinal nos últimos 50 anos. Mudanças no nosso estilo de vida</p><p>e dieta e o uso generalizado de antibióticos são possíveis causas. Estudos</p><p>recentes em animais reforçaram esta ligação. Ensaios clínicos recentes com</p><p>probióticos específicos e transplantes de microbiota fecal começaram já a</p><p>testar esta ligação entre a microbiota intestinal e anormalidades</p><p>comportamentais.</p><p>Tem havido, igualmente, um aumento exponencial de doenças</p><p>neurodegenerativas. Nos países industrializados, 1 em cada 100 pessoas</p><p>com mais de 60 anos tem doença de Parkinson e, nos Estados Unidos, esta</p><p>doença afeta, pelo menos, meio milhão de pessoas, com cerca de 50 000</p><p>novos casos diagnosticados todos os anos. Apesar de se estimar que o</p><p>número de casos de doença de Parkinson atingirá o dobro em 2030, a</p><p>prevalência real da doença é difícil de avaliar por ser normalmente</p><p>diagnosticada, através dos seus sinais neurológicos e sintomas clássicos,</p><p>quando já está demasiado avançada. De facto, estudos recentes demonstram</p><p>que o sistema nervoso entérico começa a sofrer uma degeneração das</p><p>células nervosas típica da doença de Parkinson muito antes dos sintomas</p><p>usuais aparecerem, e que alterações na composição microbiana intestinal</p><p>acompanham a doença.</p><p>Entretanto, 5 milhões de americanos viviam com a doença de Alzheimer</p><p>em 2013 e, em 2050, projeta-se que este número aumente para os 14</p><p>milhões, três vezes mais. Tal como acontece com a idade média de</p><p>surgimento da doença de Parkinson, os primeiros sintomas da doença de</p><p>Alzheimer podem aparecer após os 60 anos, e o risco aumenta com o</p><p>avançar da idade. O número de pessoas com a doença duplica a cada cinco</p><p>anos após os 65 anos. O custo económico da doença de Alzheimer é já</p><p>bastante avultado, e, caso a tendência atual se mantenha, espera-se que</p><p>aumente rapidamente para 1,1 biliões de dólares por ano em 2050.</p><p>Poderiam as alterações vitalícias na funcionalidade da microbiota intestinal</p><p>desempenhar um papel nestas doenças neurodegenerativas que afetam seres</p><p>humanos sensivelmente na mesma idade?</p><p>A microbiota intestinal tem sido também ligada à depressão, a segunda</p><p>causa principal de incapacidade nos Estados Unidos.</p><p>Os medicamentos mais frequentemente usados para tratar a depressão são</p><p>os denominados inibidores seletivos de recaptação da serotonina, como</p><p>Prozac, Paxil e Celexa. Estes medicamentos impulsionam a atividade do</p><p>sistema de sinalização da serotonina, algo que a Psiquiatria considerava</p><p>estar presente exclusivamente no cérebro. No entanto, sabemos hoje que</p><p>95% da serotonina do organismo está, na verdade, contida em células</p><p>especializadas no intestino, e que estas células são influenciadas pelo que</p><p>comemos, por substâncias químicas expelidas de determinadas espécies de</p><p>micróbios intestinais e por sinais que o nosso cérebro envia para as mesmas,</p><p>informando-as do nosso estado emocional. O mais extraordinário é que</p><p>estas células estão intimamente ligadas aos nervos sensoriais que sinalizam</p><p>de volta diretamente aos centros reguladores de emoções do cérebro,</p><p>tornando-as um ponto central no eixo cérebro-intestino. Graças a esta</p><p>localização estratégica, é provável que os micróbios intestinais e os seus</p><p>metabolitos desempenhem um papel importante e amplamente ignorado no</p><p>desenvolvimento da depressão, assim como a sua gravidade e duração –</p><p>uma possibilidade intrigante que, se confirmada em estudos de controlo,</p><p>poderia criar oportunidades para o desenvolvimento de tratamentos mais</p><p>eficazes, incluindo intervenções alimentares específicas.</p><p>Neste livro, olharemos para novas evidências que começam a ligar</p><p>algumas das mais devastadoras doenças neurológicas e algumas das mais</p><p>comuns perturbações do eixo cérebro-intestino a alterações na comunicação</p><p>entre os micróbios intestinais e o cérebro, e de que forma o nosso estilo de</p><p>vida e regime alimentar podem influenciar esta ligação.</p><p>SOMOS O QUE COMEMOS – DESDE QUE CONTEMOS COM OS</p><p>MICRÓBIOS INTESTINAIS</p><p>«Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és» foi escrito por Jean Anthelme</p><p>Brillat-Savarin, um advogado, físico e autor francês que publicou, no século</p><p>XIX, um livro influente sobre a fisiologia do gosto. Este perito em alta-</p><p>cozinha, que deu nome ao queijo Savarin e ao bolo Savarin, apresentou</p><p>algumas perspetivas iniciais aprofundadas quanto à relação entre dieta,</p><p>obesidade e indigestão. Mas, em 1826, quando escreveu isto, não poderia</p><p>saber que os micróbios intestinais mediam a forma como os alimentos</p><p>afetam o bem-estar mental e importantes funções cerebrais. De facto, a</p><p>microbiota intestinal na área comum entre o nosso intestino e o nosso</p><p>sistema nervoso encontra-se numa posição fundamental para ligar o nosso</p><p>bem-estar físico e mental diretamente ao que comemos e bebemos e, por</p><p>sua vez, os nossos sentimentos e emoções ao processamento dos alimentos.</p><p>O intestino reúne informação sobre os nossos alimentos e o nosso</p><p>ambiente a cada milissegundo durante vinte e quatro horas por dia, sete dias</p><p>por semana, até mesmo quando estamos a dormir. Grande parte da recolha</p><p>de informação ocorre no estômago e no início do intestino delgado, onde</p><p>vive um pequeno número de micróbios cuja contribuição para o diálogo</p><p>cérebro-intestino deverá ser reduzida. Mas os biliões de micróbios no</p><p>intestino grosso digerem os restantes componentes alimentares para</p><p>produzir vastos números de moléculas</p><p>que acrescentam toda uma nova</p><p>dimensão a este processo. Do que sabemos das experiências em animais,</p><p>uma ausência de micróbios intestinais é compatível com a vida, incluindo a</p><p>digestão e absorção de nutrientes, isto é, desde que se viva num ambiente</p><p>sem agentes patogénicos. Contudo, sabemos agora que esses animais livres</p><p>de germes – ratos, ratazanas e até cavalos – têm alterações significativas no</p><p>desenvolvimento do cérebro, particularmente em regiões que envolvem a</p><p>regulação das emoções. Crescer num ambiente livre de germes causa danos</p><p>graves no desenvolvimento do cérebro.</p><p>O bem-estar dos micróbios intestinais depende dos alimentos que</p><p>ingerimos, e estão mais ou menos programados em termos de preferências</p><p>alimentares nos primeiros anos de vida. No entanto, apesar da programação</p><p>original, podem digerir praticamente tudo o que lhes dermos, sejamos</p><p>omnívoros ou piscitarianos. Independentemente do que lhes presentearmos,</p><p>recorrerão à vasta quantidade de informação armazenada nos milhões de</p><p>genes para transformar alimentos parcialmente digeridos em centenas de</p><p>milhares de metabolitos. Apesar de estarmos somente no início de</p><p>compreender que efeitos têm estes metabolitos no nosso organismo,</p><p>sabemos que alguns deles afetam profundamente o nosso trato</p><p>gastrointestinal, incluindo os nervos e as células imunitárias. Outros</p><p>conseguem chegar à corrente sanguínea e estão envolvidos em sinalização</p><p>de longa distância, influenciando todos os órgãos, incluindo o cérebro. Um</p><p>papel particularmente importante destas moléculas produzidas por</p><p>micróbios é a capacidade de induzir um estado de inflamação de baixo grau</p><p>nos órgãos-alvo, o que tem sido relacionado com obesidade, doenças</p><p>cardiovasculares, dor crónica e doenças degenerativas do cérebro. Estas</p><p>moléculas inflamatórias e o seu efeito em determinadas regiões do cérebro</p><p>podem ser, sem dúvida, uma pista crucial para compreendermos inúmeras</p><p>doenças neurológicas no ser humano.</p><p>QUE IMPLICAÇÕES TEM</p><p>ESTA NOVA CIÊNCIA NA SAÚDE?</p><p>Não há dúvida de que a ciência emergente da comunicação cérebro-</p><p>intestino tem sido um dos mais fascinantes assuntos para cientistas e media</p><p>nos últimos anos. Quem poderia alguma vez acreditar que simplesmente</p><p>transferir pequenas bolas de fezes contendo microbiota intestinal de um rato</p><p>«extrovertido» poderia alterar o comportamento de um rato «tímido»,</p><p>tornando o seu comportamento mais parecido ao do sociável dador? Ou que</p><p>fazer uma experiência semelhante, como transplantar fezes e os seus</p><p>micróbios de um rato obeso com um apetite voraz transformaria um rato</p><p>magro num animal com as mesmas tendências? Ou que a ingestão de um</p><p>iogurte enriquecido com probióticos durante quatro semanas em mulheres</p><p>saudáveis poderia reduzir a resposta do cérebro a estímulos emocionais</p><p>negativos?</p><p>O conhecimento emergente de um sistema integrado de microbiota-</p><p>cérebro e a íntima relação com o que comemos revela como a mente, o</p><p>cérebro, o intestino e a microbiota interagem. Estas interações podem</p><p>tornar-nos vulneráveis a um sem-número de doenças ou ajudar a garantir</p><p>um estado de saúde pleno. Mas, ainda mais revolucionário, é estarmos a</p><p>estabelecer um novo entendimento de doença, saúde e bem-estar mental,</p><p>baseado numa visão ecológica dos nossos organismos, enfatizando a</p><p>interligação de uma infinidade de intervenientes no intestino e no cérebro,</p><p>criando estabilidade e resistência contra doenças.</p><p>Este novo entendimento obrigar-nos-á a pedir mais do nosso sistema de</p><p>cuidados de saúde. Precisaremos que se distancie de ideias dominantes e</p><p>obsoletas do corpo como uma máquina complexa com peças separadas e se</p><p>aproxime mais da ideia de um sistema ecológico amplamente interligado</p><p>que cria estabilidade e resiliência contra perturbações através da sua</p><p>diversidade. Como referido por um famoso cientista que estuda o</p><p>microbioma, teremos também de parar de declarar guerra a células ou</p><p>micróbios individuais e começar a olhar para o nosso microbioma intestinal</p><p>como o guarda-florestal afável que ajuda a manter a biodiversidade num</p><p>ecossistema complexo. Esta mudança de paradigma é essencial para manter</p><p>o nosso intestino e, consequentemente, nós próprios, saudáveis e resilientes</p><p>contra doenças. Este novo entendimento irá, provavelmente, revelar novos</p><p>caminhos para tratar e prevenir doenças comuns que afligem milhões de</p><p>americanos.</p><p>Chegou o momento de resgatarmos o nosso poder e tornarmo-nos</p><p>engenheiros do nosso ecossistema interno, dos nossos corpos e das nossas</p><p>mentes. Para isso, precisamos de, antes de mais, compreender como o</p><p>cérebro comunica com o intestino, como o intestino comunica com o</p><p>cérebro e como os micróbios intestinais influenciam ambas as interações.</p><p>Nas páginas que se seguem, olharemos para as descobertas científicas mais</p><p>recentes sobre estes sistemas de comunicação. Se for bem-sucedido, quando</p><p>chegar ao final do livro já estará a olhar para si e para o mundo à sua volta</p><p>de uma maneira totalmente diferente.</p><p>I</p><p>2</p><p>COMO O CÉREBRO COMUNICA</p><p>COM O INTESTINO</p><p>maginem que estão na autoestrada e o condutor que vem colado ao</p><p>vosso automóvel se lança abruptamente para o trânsito, dá uma</p><p>guinada violenta para a vossa frente e trava a fundo. Não têm outra</p><p>hipótese senão também travar para evitar chocar contra ele, fazendo com</p><p>que se lancem para a outra faixa. E depois veem que ele se está a rir. Os</p><p>vossos músculos do pescoço começam a ficar tensos, o maxilar a cerrar-se,</p><p>os lábios a apertar, a testa a franzir. A pessoa sentada no lugar do passageiro</p><p>reconhece, de imediato, a irritação espelhada no vosso rosto. Agora pensem</p><p>numa altura em que se sentiram deprimidos. O semblante abatido, o olhar</p><p>cabisbaixo, e todos à vossa volta a aperceberem-se disso.</p><p>Reconhecer emoções no rosto de outras pessoas é-nos muito natural. Esta</p><p>habilidade transcende as barreiras da língua, da raça, da cultura, da</p><p>nacionalidade e até das espécies, já que conseguimos facilmente ver quando</p><p>um cão está zangado ou um gato se sente assustado. A natureza programou-</p><p>-nos para que conseguíssemos reconhecer facilmente diferentes emoções e</p><p>medir as nossas respostas de acordo com as mesmas. As nossas emoções</p><p>são assim evidentes porque o cérebro envia um padrão distinto de sinais</p><p>para os músculos do rosto, fazendo com que cada emoção tenha uma</p><p>expressão facial correspondente. As pessoas à nossa volta conseguem</p><p>distinguir as nossas expressões faciais num piscar de olhos. Cada um de nós</p><p>é um livro aberto.</p><p>FIG. 3 – O INTESTINO É UM REFLEXO</p><p>DAS EXPRESSÕES FACIAIS EMOCIONAIS</p><p>As emoções refletem-se nas nossas expressões faciais. Uma expressão similar das nossas</p><p>emoções ocorre nas diferentes secções do trato gastrointestinal, que é influenciado por sinais</p><p>nervosos gerados no sistema límbico. Os sinais enviados para as secções superior e inferior do</p><p>trato gastrointestinal podem ser síncronos ou ir em direções opostas. As setas brancas mais</p><p>densas indicam o aumento ou redução das contrações gastrointestinais associadas a uma emoção</p><p>específica.</p><p>Mas, em relação às manifestações do intestino perante estas emoções,</p><p>somos literalmente cegos. Quando nos irritamos no trânsito, o cérebro envia</p><p>um padrão característico de sinais para o sistema digestivo, tal como</p><p>acontece com os músculos do rosto. O sistema digestivo responde de forma</p><p>igualmente dramática. Enquanto a vossa raiva crescia por causa do</p><p>automóvel que se meteu à vossa frente, o vosso estômago contorcia-se</p><p>vigorosamente, fazendo com que a produção de ácido aumentasse e os ovos</p><p>mexidos do pequeno-almoço ficassem pelo caminho. Ao mesmo tempo, os</p><p>vossos intestinos retorciam-se e expeliam muco e outros sucos digestivos,</p><p>um padrão similar, ainda que com as suas diferenças, que ocorre também</p><p>quando nos sentimos ansiosos ou chateados. Quando estamos deprimidos,</p><p>os intestinos mal se mexem. De facto, sabemos agora que o intestino reflete</p><p>todas as emoções que surgem no cérebro.</p><p>A atividade destes circuitos cerebrais também afeta outros órgãos, criando</p><p>uma resposta coordenada a cada emoção que sentimos. Quando nos</p><p>sentimos stressados, por exemplo, o batimento cardíaco</p><p>aumenta e os</p><p>músculos do pescoço e dos ombros ficam mais tensos. O oposto acontece</p><p>quando estamos relaxados. Contudo, o cérebro está vinculado ao intestino</p><p>como nenhum outro órgão, cujas ligações são muito mais profundas e</p><p>programadas. A nossa língua está repleta de expressões que traduzem esta</p><p>ligação: sempre que sentimos um nó no estômago ou vivemos uma situação</p><p>de dar a volta ao estômago ou sentimos borboletas na barriga, os</p><p>responsáveis são os circuitos do cérebro que geram emoções. As emoções,</p><p>o cérebro e o intestino têm um vínculo único.</p><p>Se um doente com reações intestinais anormais procurar ajuda no sistema</p><p>de saúde e uma endoscopia não revelar nada de grave, como uma</p><p>inflamação ou um tumor, os profissionais de saúde tendem a desconsiderar,</p><p>na maioria das vezes, a importância dos sintomas. Frustrados com o facto</p><p>de não conseguirem conceder alívio imediato ao doente, acabam por</p><p>recomendar dietas especiais, probióticos ou medicamentos para normalizar</p><p>os hábitos intestinais sem sequer procurarem a verdadeira causa do</p><p>problema.</p><p>Se alguns médicos ou doentes tivessem noção de que o intestino é, na</p><p>verdade, um palco no qual as emoções desempenham os seus melhores</p><p>papéis, o resultado talvez pudesse ser menos doloroso para os doentes.</p><p>Cerca de 15% da população americana sofre de uma série de reações</p><p>intestinais irregulares, entre eles, síndrome do intestino irritável, obstipação</p><p>crónica, indigestão e pirose funcional, que entram na categoria das</p><p>perturbações cérebro-intestinais.</p><p>Os sintomas incluem náuseas, borborismo, inchaço e até dor insuportável.</p><p>Incrivelmente, a maioria dos doentes que sofre de reações intestinais</p><p>anormais não faz ideia de que estes problemas refletem o seu estado</p><p>emocional.</p><p>Ainda mais incrível é perceber que, na maioria das vezes, nem os seus</p><p>médicos.</p><p>O HOMEM QUE NÃO CONSEGUIA</p><p>PARAR DE VOMITAR</p><p>Dos muitos doentes que acompanhei na minha longa carreira como</p><p>gastroenterologista, Bill sobressai mais do que qualquer outro na minha</p><p>memória. Bill tinha 25 anos e nenhum outro problema de saúde quando</p><p>entrou no meu gabinete com a mãe de 52 anos, que, surpreendentemente,</p><p>foi quem iniciou a conversa: «Espero mesmo que consiga ajudar o Bill. O</p><p>doutor é o nosso último recurso. Estamos desesperados.»</p><p>Nos últimos oito anos, Bill passou horas infinitas em vários serviços de</p><p>urgência com dores de estômago insuportáveis e vómitos incontroláveis.</p><p>Em alturas particularmente difíceis, ia às urgências várias vezes por</p><p>semana. Normalmente, os profissionais dos serviços de urgências</p><p>prescreviam medicação para as dores e sedativos para controlar o</p><p>desconforto, mas ninguém parecia ter a menor ideia do que ele tinha. Pior</p><p>ainda, alguns determinaram que era apenas um paciente em busca de</p><p>medicação pois nada nos exames parecia corresponder à gravidade dos</p><p>sintomas.</p><p>Além disso, havia já consultado vários gastroenterologistas especializados</p><p>que realizavam exames de diagnóstico aprofundados sem nunca</p><p>descobrirem a causa para estes sintomas horríveis. A dor e os vómitos</p><p>constantes forçaram-no a desistir da universidade e a voltar para casa dos</p><p>pais preocupados.</p><p>A mãe, uma mulher de negócios, sentia-se frustrada por nenhum dos</p><p>médicos de Bill ter conseguido ainda encontrar um diagnóstico, por isso,</p><p>começou a procurar respostas na Internet. «Acho que tem todos os sintomas</p><p>da síndrome de vómitos cíclicos», disse.</p><p>Como médico de Bill, queria perceber isso por mim.</p><p>Tal como acontece várias vezes nas perturbações cérebro-intestinais, há</p><p>muitas teorias pouco habituais que tentam explicar a constelação única de</p><p>sintomas na síndrome de vómitos cíclicos. Mas, com base em décadas de</p><p>investigação que a minha equipa desenvolveu com outros grupos de</p><p>investigação na UCLA, tudo fazia crer que a explicação mais plausível era</p><p>uma reação intestinal excessiva desencadeada por uma resposta hiperativa</p><p>ao stresse no cérebro.</p><p>FIG. 4 – REAÇÕES DO INTESTINO EM RESPOSTA AO STRESSE</p><p>Em resposta a quaisquer perturbações do estado equilibrado e normal de um indivíduo, como</p><p>o stresse, o cérebro organiza uma resposta coordenada com o objetivo de otimizar o bem-estar e</p><p>sobrevivência do organismo. O fator libertador de corticotropina (CRF) é o interruptor químico</p><p>central que põe esta resposta ao stresse em marcha, sendo produzido pelo hipotálamo, que atua</p><p>em regiões contíguas do cérebro. O CRF induzido por stresse no cérebro está associado ao</p><p>aumento das hormonas de stresse (como o cortisol e a norepinefrina) no organismo. Este</p><p>processa estimula, também, a reação intestinal induzida por stresse que tem impacto sobre a</p><p>composição e a atividade da microbiota intestinal.</p><p>Em doentes com síndrome de vómitos cíclicos, os ataques ocorrem</p><p>normalmente devido a acontecimentos stressantes do dia a dia. Um vasto</p><p>leque de estímulos aparentemente não relacionados, incluindo exercício</p><p>físico intenso, menstruação, exposição a elevadas altitudes ou simplesmente</p><p>stresse psicológico prolongado podem causar um desequilíbrio no</p><p>organismo capaz de provocar um ataque. Quando o cérebro (não</p><p>necessariamente o cérebro consciente) se apercebe de uma ameaça deste</p><p>género, envia sinais ao hipotálamo, uma região importante que coordena</p><p>todas as nossas funções vitais, para que este produza uma molécula</p><p>mediadora do stresse, o fator libertador de corticotropina, ou CRF, que</p><p>funciona como um interruptor central que coloca o cérebro (e o corpo) em</p><p>modo de resposta ao stresse. Os doentes que sofrem desta perturbação</p><p>podem não ter quaisquer sintomas durante meses ou até anos, ainda que o</p><p>sistema CRF esteja sempre pronto a avançar. Contudo, assim que os níveis</p><p>de stresse aumentam, os sintomas podem regressar.</p><p>Quando os níveis de CRF aumentam o suficiente, todos os órgãos e</p><p>células do organismo, incluindo o intestino, entram em stresse. Numa série</p><p>de experiências em animais, a minha colega da UCLA, Yvette Tache, uma</p><p>das maiores especialistas do mundo em interações cérebro-intestinais</p><p>provocadas por stresse, revelou as várias mudanças no organismo induzidas</p><p>pelo CRF.</p><p>No cérebro, o aumento exponencial dos níveis do CRF aumenta também a</p><p>ansiedade e faz com que fiquemos suscetíveis a diferentes sensações,</p><p>incluindo sinais do intestino, que ocorrem sob a forma de dores de barriga</p><p>intensas. O próprio intestino contrai mais e o conteúdo é evacuado,</p><p>resultando em diarreia. O estômago abranda e até inverte o próprio sentido</p><p>para esvaziar o que lá tem dentro.</p><p>A parede do intestino torna-se um verdadeiro passador, o cólon produz mais</p><p>água e muco e a quantidade de sangue a correr no revestimento do</p><p>estômago e do intestino aumenta.</p><p>No caso de Bill, bastavam apenas algumas questões-chave sobre os seus</p><p>sintomas para chegar a um diagnóstico. Perguntei-lhe se não tinha</p><p>quaisquer sintomas nos intervalos destes ataques de vómito, o que era o</p><p>caso. Perguntei-lhe a ele e à mãe se o historial familiar incluía enxaquecas,</p><p>uma doença crónica relacionada geneticamente com a síndrome de vómitos</p><p>cíclicos. E, de facto, tanto a mãe como a avó sofriam de enxaquecas.</p><p>«Que tipo de sintomas sente imediatamente antes de um ataque?»,</p><p>perguntei-lhe. Bill contou-me que um ataque severo era por norma</p><p>precedido de aproximadamente 15 minutos de ansiedade intensa,</p><p>transpiração, mãos frias e palpitações, tudo sintomas de uma reação</p><p>induzida por stresse. Além disso, estes sintomas acordavam-no muito cedo</p><p>de manhã, outra característica específica da doença – causada,</p><p>provavelmente, pelo aumento diurno na atividade do sistema central de</p><p>stresse. Um duche quente ou um Ativan podiam prevenir os ataques, mas,</p><p>na maioria das vezes, não ajudavam. «Assim que os vómitos começam e</p><p>não consigo parar, tenho de ir logo às urgências.»</p><p>«O que acontece nas urgências?», perguntei. Disse-me que os médicos lhe</p><p>davam, ainda que de forma hesitante, analgésicos, que faziam com que</p><p>adormecesse de imediato, acordando uma hora mais tarde livre de sintomas.</p><p>Os vários exames de diagnóstico anteriores, incluindo endoscopias e TAC à</p><p>barriga, não revelaram quaisquer anormalidades que pudessem explicar os</p><p>sintomas, e uma TAC</p>