Prévia do material em texto
<p>© Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho Todos os direitos reservados por</p><p>EDITORA PRAZER DA PALAVRA</p><p>É proibida a reprodução por quaisquer meios.</p><p>FICHA CATALOGRÁFICA BANDEIRA FILHO, Manuel Carneiro de</p><p>Sousa (1886-1968) Um mês de poesia com Manoel Bandeira. Organizado por</p><p>Maria Celeste de Castro Machado. Rio de Janeiro: Prazer da Palavra, 2021.</p><p>ISBN: 978-65-89202-70-7</p><p>1. Manoel Bandeira (1886-1968). 2. Poesia brasileira. I. Machado, Maria</p><p>Celeste de Castro. II. Título.</p><p>CDD 869</p><p>C���������� ��������� Israel Belo de Azevedo</p><p>E��������� (���� � �����) Leila Simões</p><p>EDITORA PRAZER DA PALAVRA</p><p>Rio de Janeiro</p><p>2021</p><p>www.prazerdapalavra.com.br</p><p>http://www.prazerdapalavra.com.br/</p><p>U� ��� �� ������ ���...</p><p>M����� B�������</p><p>Selecionados, organizados e editados por</p><p>Maria Celeste de Castro Machado</p><p>(Professora e doutora em Literatura)</p><p>Canção do vento e da minha vida O vento varria as folhas,</p><p>O vento varria os frutos, O vento varria as flores…</p><p>E a minha vida �cava Cada vez mais cheia De frutos, de �ores, de</p><p>folhas.</p><p>[...]</p><p>O vento varria os sonhos E varria as amizades…</p><p>O vento varria as mulheres…</p><p>E a minha vida �cava Cada vez mais cheia De afetos e de mulheres.</p><p>O vento varria os meses E varria os teus sorrisos…</p><p>O vento varria tudo!</p><p>E a minha vida �cava Cada vez mais cheia De tudo.</p><p>Q��� ��� ��� M����� B�������</p><p>Nasceu em 19/04/1886, no Recife e morreu em 13/10/68, no Rio de Janeiro.</p><p>Poeta que provavelmente foi a principal �gura do nascente Modernismo</p><p>brasileiro, embora tenha se recusado a participar da Semana da Arte Moderna de</p><p>1922, em São Paulo.</p><p>Bandeira foi educado no Rio e São Paulo, mas, em 1903, a tuberculose forçou-o</p><p>a abandonar seu sonho de ser arquiteto (o pai era engenheiro). Muitos dos seus</p><p>anos seguintes, ele passou viajando em busca da cura e, durante este período, leu</p><p>extensamente e retomou a produção de poesia (seu primeiro poema, em</p><p>alexandrinos, tinha saído em 1902).</p><p>Seus primeiros livros (A cinza das horas, 1917, e Carnaval, 1919) mostram a</p><p>in�uência tardia dos simbolistas e parnasianos, mas alguns poemas de seu livro</p><p>seguinte (Ritmo dissoluto, 1924) já contemplam a sensibilidade do Modernismo</p><p>emergente, que tentava liberar a poesia do academicismo e da in�uência europeia.</p><p>Libertinagem (1930) mostra claramente tendências modernistas nos seus versos</p><p>livres, linguagem coloquial, sintaxe pouco convencional e o uso de temas</p><p>folclóricos. Seus livros seguintes (Estrela da manhã, 1936, Lira dos</p><p>Cinquent’anos, 1940, Mafuá do malungo, 1948, Opus 10, 1949, e Estrela da</p><p>tarde, 1960) consolidaram sua posição como um dos maiores poetas brasileiros.</p><p>Apesar de sua longa vida como poeta, só começou a ter lucro material com sua</p><p>produção em 1937, quando ganha o prêmio da Sociedade Felipe d’Oliveira.</p><p>Na sua poesia, Bandeira trocou o tom discursivo de poetas anteriores e assumiu</p><p>a fala coloquial, bem dos modernistas da 1ª. Fase, para tratar de temas comuns do</p><p>dia a dia, como bem atestam seus poemas tirados de notícias de jornal, entre os</p><p>quais sua obra prima Tragédia Brasileira. Sua grande característica é a sua</p><p>expressão cheia de objetividade, humor melancólico e, com frequência, muito</p><p>lírico e cheio de puras e simples emoções.</p><p>Em 1935 é nomeado pelo Ministro Capanema inspetor de ensino secundário.</p><p>Ensinou literatura no Colégio Pedro II, no Rio, de 1938 a 1943 e tornou-se</p><p>professor na Universidade do Brasil, hoje UFRJ, naquele último ano.</p><p>Bandeira também foi tradutor de inúmeros autores (Goethe, Jorge Luís Borges,</p><p>Heine, Cummings, Rilke, Kahlil Gibran, Baudelaire, García Lorca, Elisabeth</p><p>Browning, Emily Dickinson, Verlaine, etc.). Também traduziu peças de teatro e</p><p>livros em prosa, entre eles Macbeth (Shakespeare), Maria Stuart (Schiller) e A</p><p>Prisioneira (de Em busca do tempo perdido, de Proust, em parceria).</p><p>Colaborou como articulista em vários jornais, durante toda sua vida; escreveu</p><p>crônicas e crítica artística. Organizou antologias (Antero de Quental, Gonçalves</p><p>Dias), escreveu Noções de História das Literaturas e escreveu também biogra�as.</p><p>“Vou-me Embora pra Pasárgada” é um dos seus poemas muito famosos, ao lado</p><p>de “Belo, Belo”. Foi professor de literatura, crítico literário e crítico de arte.</p><p>P��� �������� � P����� �� M����� B�������...</p><p>Bandeira é muito estudado por nossos teóricos de Literatura e identi�cado com</p><p>a ٢ª Fase do Modernismo Brasileiro, iniciada em 1930, apesar de apresentar</p><p>alguns traços do Parnasianismo que antecedeu a geração de sua idade, a que</p><p>empreendeu a Semana de Arte Moderna de 1922.</p><p>Logo, logo, assumiu a alma modernista, principalmente no uso da linguagem</p><p>mais cotidiana, mais próxima do homem comum brasileiro. Devido a esta</p><p>preferência, tornou-se o poeta mais simpatizado de sua geração, ao lado de Cecília</p><p>Meireles, ela também muito in�uenciada pelos cânones simbolistas.</p><p>Os temas mais comuns de sua obra são: a paixão pela vida; a presença da morte;</p><p>o desejo do amor; o erotismo; a solidão sempre presente em uma vida de jovem</p><p>doente desde os 17 anos; o cotidiano e a sua infância feliz no Recife.</p><p>Vou-me embora pra Pasárgada[1]</p><p>Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei</p><p>Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei</p><p>Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou</p><p>feliz</p><p>Lá a existência é uma aventura De tal modo inconsequente</p><p>Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente</p><p>Vem a ser contraparente</p><p>Da nora que eu nunca tive</p><p>E como farei ginástica</p><p>Andarei de bicicleta</p><p>Montarei em burro brabo</p><p>Subirei no pau-de-sebo</p><p>Tomarei banhos de mar!</p><p>E quando estiver cansado</p><p>Deito na beira do rio</p><p>Mando chamar a mãe-d’água</p><p>Pra me contar as histórias</p><p>Que no tempo de eu menino</p><p>Rosa[2] vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem</p><p>tudo</p><p>É outra civilização</p><p>Tem um processo seguro</p><p>De impedir a concepção</p><p>Tem telefone automático</p><p>Tem alcaloide à vontade</p><p>Tem prostitutas bonitas</p><p>Para a gente namorar</p><p>E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me</p><p>der</p><p>Vontade de me matar</p><p>— Lá sou amigo do rei —</p><p>Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei</p><p>Vou-me embora pra Pasárgada Este poema tão emblemático da obra bandeirina</p><p>representa, à perfeição, sua alma incompleta, insatisfeita com a realidade de sua</p><p>vida tão jovem e tão aprisionada à doença. Pasárgada é a grande metáfora da</p><p>esperança, da fuga para um lugar onde tudo seja perfeito, onde o poeta possa viver</p><p>tudo que sonha, realize todas as suas esperanças e possa haurir, usufruir de todos</p><p>os prazeres que sempre lhe foram negados, devido à falta de saúde.</p><p>Trata-se de um reino utópico, perfeito e, por isso mesmo, inalcançável. Em</p><p>Pasárgada, todas as ilusões do poeta poderão ser efetivadas. Quem de nós nunca</p><p>falou ou ouviu a bela expressão: “Vou-me embora pra Pasárgada”?</p><p>Poética</p><p>Estou farto do lirismo[3] comedido Do lirismo bem comportado</p><p>Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e</p><p>manifestações de apreço ao Sr. diretor.</p><p>Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho</p><p>vernáculo[4] de um vocábulo.</p><p>Abaixo os puristas.</p><p>Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções</p><p>sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou</p><p>farto do lirismo namorador Político</p><p>Raquítico</p><p>Si�lítico</p><p>De todo lirismo que capitula[5] ao que quer que seja fora de si mesmo</p><p>De resto não é lirismo</p><p>Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante exemplar com cem</p><p>modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.</p><p>Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos</p><p>O lirismo difícil e pungente[6] dos bêbedos O lirismo dos clowns[7] de</p><p>Shakespeare.</p><p>— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.</p><p>“Poética” é uma verdadeira plataforma em que se estabelece o estilo do poeta</p><p>que observamos aqui. Bandeira demonstra que não mais aceita as normas da</p><p>Poesia Parnasiana, cheia de purismo e perfeição formal e linguística.</p><p>Bandeira renega todas as afetações e normas dos poetas de Fases literárias</p><p>anteriores. Ele claramente admite que imperfeições sintáticas e ortográ�cas serão</p><p>cabíveis em seus poemas, em sua forma de expressar-se em Poesia. Assim, sua</p><p>obra vem a representar o Modernismo em sua fase de reconstrução, quando</p><p>confrontada com as revoluções profundas trazidas por Oswald de Andrade. Penso</p><p>que a poética de Bandeira faz um “ajuste” entre os ideais de destruição dos</p><p>modernos da primeira geração e a expressão muito fria e absolutamente perfeita</p><p>dos parnasianos. Realmente um poeta que merece nossa leitura. Não percam o</p><p>poema Teresa, um interessante diálogo com o importante poema de Castro Alves,</p><p>cuja protagonista tem o mesmo nome.[8]</p><p>1 Nome que signi�ca “campo dos persas” ou “tesouro dos persas”. Mas essa ideia de um país de delícias, trazido por Baudelaire, deixou</p><p>de ser a Pasárgada do rei Ciro e transformou-se na cidade de Bandeira. Pronuncie-se Pazárgada.</p><p>2 Sua ama, criada de infância, na casa paterna.</p><p>3 Atitude poética lírica, romântica, cheia de sentimentos.</p><p>4 Do Registro mais perfeito e puro do idioma, a estrutura gramatical mais perfeita de uma língua.</p><p>5 Desiste, dá-se por vencido.</p><p>6 Que faz sofrer, que dói.</p><p>7 Palhaços, os clóvis carnavalescos do Brasil.</p><p>8 Leia-se o livro Um mês de Poesia com Castro Alves, também em e-book da Editora Prazer da Palavra.</p><p>Sumário</p><p>A estrela</p><p>A morte absoluta</p><p>Arte de amar</p><p>Auto-retrato</p><p>Belo belo</p><p>Canção do vento e da minha vida</p><p>Consoada</p><p>Cotovia</p><p>Chama e fumo</p><p>Debussy</p><p>Desencanto</p><p>Enquanto a chuva cai</p><p>Estrada</p><p>Irene no céu</p><p>Madrigal melancólico</p><p>Mascarada</p><p>Meu quintana</p><p>Minha grande ternura</p><p>O anel de vidro</p><p>O bicho</p><p>O exemplo das rosas</p><p>O inútil luar</p><p>O menino doente</p><p>O rio</p><p>Pneumotórax</p><p>Poema tirado de uma notícia de jornal</p><p>Sextilhas românticas</p><p>Testamento</p><p>Teresa</p><p>Tragédia brasileira</p><p>Versos escritos n’água</p><p>1</p><p>A ESTRELA</p><p>Vi uma estrela tão alta, Vi uma estrela tão fria!</p><p>Vi uma estrela luzindo Na minha vida vazia.</p><p>Era uma estrela tão alta!</p><p>Era uma estrela tão fria!</p><p>Era uma estrela sozinha Luzindo no �m do dia.</p><p>Por que da sua distância Para a minha companhia Não baixava aquela estrela?</p><p>Por que tão alta luzia?</p><p>E ouvi-a na sombra funda Responder que assim fazia Para dar uma esperança</p><p>Mais triste ao �m do meu dia.</p><p>2</p><p>A MORTE ABSOLUTA</p><p>Morrer.</p><p>Morrer de corpo e de alma.</p><p>Completamente.</p><p>Morrer sem deixar o triste despojo[9] da carne, A exangue[10] máscara de cera,</p><p>Cercada de �ores,</p><p>Que apodrecerão - felizes! - num dia, Banhada de lágrimas Nascidas menos da</p><p>saudade do que do espanto da morte.</p><p>Morrer sem deixar porventura uma alma errante...</p><p>A caminho do céu?</p><p>Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?</p><p>Morrer sem deixar um sulco[11], um risco, uma sombra, A lembrança de uma</p><p>sombra Em nenhum coração, em nenhum pensamento, Em nenhuma epiderme.</p><p>Morrer tão completamente Que um dia ao lerem o teu nome num papel</p><p>Perguntem: “Quem foi?...”</p><p>Morrer mais completamente ainda, - Sem deixar sequer esse nome.</p><p>9 Resto, o que sobra no cadáver.</p><p>10 Esvaído em sangue, pálida, enfraquecida.</p><p>11 Fissura, ranhura, depressão deixada na terra pelo arado.</p><p>3</p><p>ARTE DE AMAR</p><p>Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.</p><p>A alma é que estraga o amor.</p><p>Só em Deus ela pode encontrar satisfação.</p><p>Não noutra alma.</p><p>Só em Deus — ou fora do mundo.</p><p>As almas são incomunicáveis.</p><p>Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.</p><p>Porque os corpos se entendem, mas as almas não.</p><p>4</p><p>AUTO-RETRATO</p><p>Provinciano que nunca soube Escolher bem uma gravata; Pernambucano a</p><p>quem repugna[12]</p><p>A faca do pernambucano; Poeta ruim que na arte da prosa Envelheceu na</p><p>infância da arte, E até mesmo escrevendo crônicas Ficou cronista de província;</p><p>Arquiteto falhado, músico Falhado (engoliu um dia Um piano, mas o teclado</p><p>Ficou de fora); sem família, Religião ou �loso�a;</p><p>Mal tendo a inquietação de espírito Que vem do sobrenatural, E em matéria de</p><p>pro�ssão Um tísico[13] pro�ssional.</p><p>12 Desagrada, dá nojo.</p><p>13 Tuberculoso, doente grave dos pulmões.</p><p>5</p><p>BELO BELO</p><p>Belo belo belo,</p><p>Tenho tudo quanto quero.</p><p>Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.</p><p>E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes.</p><p>A aurora apaga-se,</p><p>E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.</p><p>O dia vem, e dia adentro Continuo a possuir o segredo grande da noite.</p><p>Belo belo belo,</p><p>Tenho tudo quanto quero.</p><p>Não quero o êxtase nem os tormentos.</p><p>Não quero o que a terra só dá com trabalho.</p><p>As dádivas dos anjos são inaproveitáveis: Os anjos não compreendem os</p><p>homens.</p><p>Não quero amar,</p><p>Não quero ser amado.</p><p>Não quero combater,</p><p>Não quero ser soldado.</p><p>— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.</p><p>BELO BELO II</p><p>Belo belo minha bela</p><p>Tenho tudo que não quero Não tenho nada que quero Não quero óculos nem</p><p>tosse Nem obrigação de voto</p><p>Quero quero</p><p>Quero a solidão dos píncaros[14]</p><p>A água da fonte escondida A rosa que �oresceu</p><p>Sobre a escarpa[15] inacessível A luz da primeira estrela Piscando no lusco-fusco</p><p>Quero quero</p><p>Quero dar a volta ao mundo Só num navio de vela</p><p>Quero rever Pernambuco Quero ver Bagdá e Cusco Quero quero</p><p>Quero o moreno de Estela Quero a brancura de Elisa Quero a saliva de Bela</p><p>Quero as sardas de Adalgisa Quero quero tanta coisa Belo belo</p><p>Mas basta de lero-lero Vida noves fora zero.</p><p>Petrópolis, fevereiro de 1947</p><p>14 O ponto mais elevado de um monte ou de uma construção.</p><p>15 Declive muito íngreme de terreno.</p><p>6</p><p>CANÇÃO DO VENTO E DA MINHA VIDA O vento varria</p><p>as folhas, O vento varria os frutos, O vento varria as �ores…</p><p>E a minha vida �cava Cada vez mais cheia De frutos, de �ores, de folhas.</p><p>[...]</p><p>O vento varria os sonhos E varria as amizades…</p><p>O vento varria as mulheres…</p><p>E a minha vida �cava Cada vez mais cheia De afetos e de mulheres.</p><p>O vento varria os meses E varria os teus sorrisos…</p><p>O vento varria tudo!</p><p>E a minha vida �cava Cada vez mais cheia De tudo</p><p>7</p><p>CONSOADA</p><p>Quando a Indesejada das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável), talvez eu</p><p>tenha medo.</p><p>Talvez sorria, ou diga: — Alô, iniludível!</p><p>O meu dia foi bom, pode a noite descer.</p><p>(A noite com os seus sortilégios.) Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A</p><p>mesa posta,</p><p>Com cada coisa em seu lugar.</p><p>8</p><p>COTOVIA</p><p>— Alô, cotovia![16]</p><p>Aonde voaste,</p><p>Por onde andaste,</p><p>Que saudades me deixaste?</p><p>— Andei onde deu o vento.</p><p>Onde foi meu pensamento Em sítios, que nunca viste, De um país que não</p><p>existe . . .</p><p>Voltei, te trouxe a alegria.</p><p>— Muito contas, cotovia!</p><p>E que outras terras distantes Visitaste? Dize ao triste.</p><p>— Líbia ardente, Cítia fria, Europa, França, Bahia . . .</p><p>— E esqueceste Pernambuco, Distraída?</p><p>— Voei ao Recife, no Cais Pousei na Rua da Aurora.</p><p>— Aurora da minha vida Que os anos não trazem mais!</p><p>— Os anos não, nem os dias, Que isso cabe às cotovias.</p><p>Meu bico é bem pequenino Para o bem que é deste mundo: Se enche com uma</p><p>gota de água.</p><p>Mas sei torcer o destino, Sei no espaço de um segundo Limpar o pesar mais</p><p>fundo.</p><p>Voei ao Recife, e dos longes Das distâncias, aonde alcança Só a asa da cotovia,</p><p>— Do mais remoto e perempto[17]</p><p>Dos teus dias de criança Te trouxe a extinta esperança, Trouxe a perdida alegria.</p><p>16 Calhandra. Ave encontrada em quase todo o mundo. Ave canora, de belo canto.</p><p>17 Extinto, caduco, que não existe mais.</p><p>9</p><p>CHAMA E FUMO</p><p>Amor – chama, e, depois, fumaça…</p><p>Medita no que vais fazer: O fumo vem, a chama passa…</p><p>Gozo cruel, ventura escassa, Dono do meu e do teu ser, Amor – chama, e,</p><p>depois, fumaça…</p><p>Tanto ele queima! e, por desgraça, Queimando o que melhor houver, O fumo</p><p>vem, a chama passa…</p><p>Paixão puríssima ou devassa, Triste ou feliz, pena ou prazer, Amor – chama, e,</p><p>depois, fumaça…</p><p>A cada par que a aurora enlaça, Como é pungente[18] o entardecer!</p><p>O fumo vem, a chama passa…</p><p>Antes, todo ele é gosto e graça.</p><p>Amor, fogueira linha a arder!</p><p>Amor – chama, e, depois, fumaça…</p><p>Porquanto, mal se satisfaça (Como te poderei dizer?…), O fumo vem, a chama</p><p>passa…</p><p>A chama queima. O fumo embaça.</p><p>Tão triste que é! Mas… tem de ser…</p><p>Amor?… – chama, e, depois, fumaça: O fumo vem, a chama passa…</p><p>(Teresópolis, 1911 )</p><p>18 Que fere,</p><p>que dói, como se por uma perfuração aguda.</p><p>10</p><p>DEBUSSY</p><p>[19]</p><p>Para cá, para lá . . .</p><p>Para cá, para lá . . .</p><p>Um novelozinho de linha . . .</p><p>Para cá, para lá . . .</p><p>Para cá, para lá . . .</p><p>Oscila no ar pela mão de uma criança (Vem e vai . . .) Que delicadamente e</p><p>quase a adormecer o balança — Psio . . . — Para cá, para lá . . .</p><p>Para cá e . . .</p><p>— O novelozinho caiu.</p><p>19 Músico francês, inovador do ritmo de vários movimentos musicais.</p><p>11</p><p>DESENCANTO</p><p>Eu faço versos como quem chora</p><p>De desalento[20]… de desencanto…</p><p>Fecha o meu livro, se por agora</p><p>Não tens motivo nenhum de pranto.</p><p>Meu verso é sangue. Volúpia ardente…</p><p>Tristeza esparsa[21]… remorso vão…</p><p>Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração.</p><p>E nestes versos de angústia rouca, Assim dos lábios a vida corre,</p><p>Deixando um acre[22] sabor na boca.</p><p>— Eu faço versos como quem morre.</p><p>20 Desânimo, desesperança.</p><p>21 Espalhada pouco a pouco.</p><p>22 Amargo.</p><p>12</p><p>ENQUANTO A CHUVA CAI</p><p>A chuva cai. O ar �ca mole . . .</p><p>Indistinto . . . ambarino . . .[23] gris . . .[24]</p><p>E no monótono matiz</p><p>Da névoa enovelada bole</p><p>A folhagem como o bailar.</p><p>Torvelinhai,[25] torrentes do ar!</p><p>Cantai, ó bátega[26] chorosa, As velhas árias funerais.</p><p>Minh’alma sofre e sonha e goza À cantilena[27] dos beirais.</p><p>Meu coração está sedento</p><p>De tão ardido pelo pranto.</p><p>Dai um brando acompanhamento</p><p>À canção do meu desencanto.</p><p>Volúpia dos abandonados . . .</p><p>Dos sós . . . — ouvir a água escorrer, Lavando o tédio dos telhados</p><p>Que se sentem envelhecer . . .</p><p>Ó caro ruído embalador,</p><p>Terno como a canção das amas!</p><p>Canta as baladas que mais amas, Para embalar a minha dor!</p><p>A chuva cai. A chuva aumenta.</p><p>Cai, benfazeja, a bom cair!</p><p>Contenta as árvores! Contenta As sementes que vão abrir!</p><p>Eu te bendigo, água que inundas!</p><p>Ó água amiga das raízes,</p><p>Que na mudez das terras fundas Às vezes são tão infelizes!</p><p>E eu te amo! Quer quando fustigas[28]</p><p>Ao sopro mau dos vendavais</p><p>As grandes árvores antigas,</p><p>Quer quando mansamente cais.</p><p>É que na tua voz selvagem,</p><p>Voz de cortante, álgida[29] mágoa, Aprendi na cidade a ouvir</p><p>Como um eco que vem na aragem A estrugir,[30] rugir e mugir, O lamento das</p><p>quedas-d’água!</p><p>23 Castanho como o âmbar.</p><p>24 Cinza.</p><p>25 Fazei torvelinho, girai como os redemoinhos.</p><p>26 Pancada de chuva, aguaceiro.</p><p>27 Cantiga monótona, repetida e sem variação.</p><p>28 Incomodas, como um aguilhão que perfura.</p><p>29 Dolorosa, que provoca dor.</p><p>30 Soar, vibrar fortemente.</p><p>13</p><p>ESTRADA</p><p>Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho, Interessa mais que uma</p><p>avenida urbana.</p><p>Nas cidades todas as pessoas se parecem.</p><p>Todo o mundo é igual, todo o mundo é toda a gente.</p><p>Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.</p><p>Cada criatura é única.</p><p>Até os cães.</p><p>Estes cães da roça parecem homens de negócios: Andam sempre preocupados.</p><p>E quanta gente vem e vai!</p><p>E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar: Enterro a pé ou a</p><p>carrocinha de leite puxada por um bodezinho manhoso.</p><p>Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos, Que a vida</p><p>passa! que a vida passa!</p><p>E que a mocidade vai acabar.</p><p>~14~</p><p>IRENE NO CÉU</p><p>Irene preta</p><p>Irene boa</p><p>Irene sempre de bom humor.</p><p>Imagino Irene entrando no céu:</p><p>— Licença, meu branco!</p><p>E São Pedro bonachão:</p><p>— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.</p><p>15</p><p>MADRIGAL MELANCÓLICO</p><p>O que eu adoro em ti</p><p>Não é a tua beleza</p><p>A beleza é em nós que existe A beleza é um conceito E a beleza é triste</p><p>Não é triste em si</p><p>Mas pelo que há nela</p><p>De fragilidade e incerteza O que eu adoro em ti Não é a tua inteligência Não é</p><p>o teu espírito sutil[31]</p><p>Tão ágil e tão luminoso Ave solta no céu matinal da montanha Nem é a tua</p><p>ciência</p><p>Do coração dos homens e das coisas.</p><p>O que eu adoro em ti Não é a tua graça musical Sucessiva e renovada a cada</p><p>momento Graça aérea como teu próprio momento Graça que perturba e que</p><p>satisfaz O que eu adoro em ti</p><p>Não é a mãe que já perdi E nem meu pai</p><p>O que eu adoro em tua natureza Não é o profundo instinto matinal Em teu</p><p>�anco[32] aberto como uma ferida Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.</p><p>O que adoro em ti lastima-me e consola-me: O que eu adoro em ti é a vida!</p><p>Não quero amar,</p><p>Não quero ser amado.</p><p>Não quero combater,</p><p>Não quero ser soldado.</p><p>— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples!</p><p>31 Delicado, re�nado.</p><p>32 Lado, lateral .</p><p>16</p><p>MASCARADA</p><p>Você me conhece?</p><p>(Frase dos mascarados de antigamente) – Você me conhece?</p><p>– Não conheço não.</p><p>– Ah, como fui bela!</p><p>Tive grandes olhos, que a paixão dos homens (estranha paixão!) Fazia</p><p>maiores…</p><p>Fazia in�nitos.</p><p>Diz: não me conheces?</p><p>– Não conheço não.</p><p>– Se eu falava, um mundo Irreal se abria à tua visão!</p><p>Tu não me escutavas: Perdido �cavas Na noite sem fundo Do que eu te dizia…</p><p>Era a minha fala Canto e persuasão…</p><p>Pois não me conheces?</p><p>– Não conheço não.</p><p>– Choraste em meus braços – Não me lembro não.</p><p>– Por mim quantas vezes O sono perdeste E ciúmes atrozes Te despedaçaram!</p><p>Por mim quantas vezes Quase tu mataste, Quase te mataste, Quase te mataram!</p><p>Agora me �tas E não me conheces?</p><p>– Não conheço não.</p><p>Conheço que a vida É sonho, ilusão.</p><p>Conheço que a vida, A vida é traição.</p><p>17</p><p>MEU QUINTANA[33]</p><p>Meu Quintana, os teus cantares Não são, Quintana, cantares: São, Quintana,</p><p>quintanares.[34]</p><p>Quinta-essência de cantares...</p><p>Insólitos,[35] singulares...</p><p>Cantares? Não! Quintanares!</p><p>Quer livres, quer regulares, Abrem sempre os teus cantares Como �or de</p><p>quintanares.</p><p>São cantigas sem esgares.</p><p>Onde as lágrimas são mares De amor, os teus quintanares.</p><p>São feitos esses cantares</p><p>De um tudo-nada: ao falares, Luzem estrelas luares.</p><p>São para dizer em bares</p><p>Como em mansões seculares</p><p>Quintana, os teus quintanares.</p><p>Sim, em bares, onde os pares Se beijam sem que repares</p><p>Que são casais exemplares.</p><p>E quer no pudor dos lares.</p><p>Quer no horror dos lupanares.[36]</p><p>Cheiram sempre os teus cantares Ao ar dos melhores ares,</p><p>Pois são simples, invulgares.</p><p>Quintana, os teus quintanares.</p><p>Por isso peço não pares,</p><p>Quintana, nos teus cantares...</p><p>Perdão! digo quintanares.</p><p>33 Mário Quintana, grande Poeta gaúcho, contemporâneo de Manoel Bandeira.</p><p>34 Bela criação linguística do poeta: Quintana + cantares= Cantanares. Chama—se prosodema ou traço suprassegmental.</p><p>35 Raro, incomum, anormal.</p><p>36 Bordéis, prostíbulos.</p><p>18</p><p>MINHA GRANDE TERNURA</p><p>Minha grande ternura Pelos passarinhos mortos; Pelas pequeninas aranhas.</p><p>Minha grande ternura Pelas mulheres que foram meninas bonitas E �caram</p><p>mulheres feias; Pelas mulheres que foram desejáveis E deixaram de o ser.</p><p>Pelas mulheres que me amaram E que eu não pude amar.</p><p>Minha grande ternura Pelos poemas que Não consegui realizar.</p><p>Minha grande ternura Pelas amadas que Envelheceram sem maldade.</p><p>Minha grande ternura Pelas gotas de orvalho que São o único enfeite de um</p><p>túmulo.</p><p>NEOLOGISMO</p><p>Beijo pouco, falo menos ainda.</p><p>Mas invento palavras</p><p>Que traduzem a ternura mais funda E mais cotidiana.</p><p>Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.</p><p>Intransitivo:</p><p>Teadoro, Teodora.</p><p>19</p><p>O ANEL DE VIDRO</p><p>Aquele pequenino anel que tu me deste, – Ai de mim – era vidro e logo se</p><p>quebrou…</p><p>Assim também o eterno amor que prometeste, – Eterno! era bem pouco e cedo</p><p>se acabou.</p><p>Frágil penhor que foi do amor que me tiveste, Símbolo da afeição que o tempo</p><p>aniquilou, – Aquele pequenino anel que tu me deste, – Ai de mim – era vidro e</p><p>logo se quebrou…</p><p>Não me turbou,37 porém, o despeito[38] que investe Gritando maldições contra</p><p>aquilo que amou.</p><p>De ti conservo no peito a saudade celeste…</p><p>Como também guardei o pó que me �cou</p><p>Daquele pequenino anel que tu me deste…</p><p>37 Perturbou, incomodou.</p><p>38 Inveja, mau sentimento.</p><p>20</p><p>O BICHO</p><p>Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos.</p><p>Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com</p><p>voracidade.</p><p>O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato.</p><p>O bicho, meu Deus, era um homem.</p><p>Rio, 27 de dezembro de 1947</p><p>21</p><p>O EXEMPLO DAS ROSAS</p><p>Uma mulher queixava-se do silêncio do amante: – Já não gostas de mim, pois</p><p>não encontras</p><p>palavras para me louvar!</p><p>Então ele, apontando-lhe a rosa que lhe morria no seio: – Não será insensato</p><p>pedir a esta rosa que fale?</p><p>Não vês que ela se dá toda no seu perfume?</p><p>O IMPOSSÍVEL CARINHO</p><p>Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo Quero apenas contar-te a minha</p><p>ternura Ah! se em troca de tanta felicidade que me dás Eu te pudesse repor – Eu</p><p>soubesse repor – No coração despedaçado As mais puras alegrias de tua infância</p><p>22</p><p>O INÚTIL LUAR</p><p>É noite. A Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria</p><p>A sua imensa, a sua eterna</p><p>Melancolia . . .</p><p>Dormem as sombras na alameda Ao longo do ermo Piabanha.</p><p>E dele um ruído vem de seda Que se amarfanha . . .[39]</p><p>No largo, sob os jambolanos,[40]</p><p>Procuro a sombra embalsamada.</p><p>(Noite, consolo dos humanos!</p><p>Sombra sagrada!)</p><p>Um velho senta-se ao meu lado.</p><p>Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .</p><p>Talvez se lembre aqui, coitado!</p><p>De sua infância.</p><p>Ei-lo que saca de um papel . . .</p><p>Dobra-o direito, ajusta as pontas, E pensativo, a olhar o anel, Faz umas contas . .</p><p>.</p><p>Com outro moço que se cala, Fala um de compleição[41] raquítica.[42]</p><p>Presto atenção ao que ele fala: — É de política.</p><p>Adiante uma senhora magra, Em ampla charpa[43] que a modela, Lembra uma</p><p>estátua de Tanagra.[44]</p><p>E, junto dela,</p><p>Outra a entretém, a conversar: — “Mamãe não avisou se vinha.</p><p>Se ela vier, mando matar</p><p>Uma galinha.”</p><p>E embalde[45] a Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria</p><p>A sua imensa, a sua eterna</p><p>Melancolia . . .</p><p>39 Amarrota, enrola.</p><p>40 O mesmo que jambolão, árvore desse fruto.</p><p>41 Constituição física, biotipo, temperamento.</p><p>42 Muito magro, fraco, fraco.</p><p>43 Echarpe.</p><p>44 Cidade da antiga Grécia.</p><p>45 À toa, inutilmente.</p><p>23</p><p>O MENINO DOENTE</p><p>O menino dorme.</p><p>Para que o menino Durma sossegado, Sentada ao seu lado A mãezinha canta:</p><p>— “Dodói, vai-te embora!</p><p>“Deixa o meu �lhinho, “Dorme . . . dorme . . . meu . . .”</p><p>Morta de fadiga, Ela adormeceu.</p><p>Então, no ombro dela, Um vulto de santa, Na mesma cantiga, Na mesma voz</p><p>dela, Se debruça e canta: — “Dorme, meu amor.</p><p>“Dorme, meu benzinho . . . “</p><p>E o menino dorme.</p><p>24</p><p>O RIO</p><p>Ser como o rio que de�ui</p><p>Silencioso dentro da noite.</p><p>Não temer as trevas da noite.</p><p>Se há estrelas no céu, re�eti-las</p><p>E se os céus se pejam[46] de nuvens, Como o rio as nuvens são água,</p><p>Re�eti-las também sem mágoa</p><p>Nas profundidades tranquilas.</p><p>O ÚLTIMO POEMA</p><p>Assim eu quereria o meu último poema.</p><p>Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais Que fosse</p><p>ardente como um soluço sem lágrimas Que tivesse a beleza das �ores quase sem</p><p>perfume A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos A</p><p>paixão dos suicidas que se matam sem explicação.</p><p>PAISAGEM NOTURNA</p><p>A sombra imensa, a noite in�nita enche o vale . . .</p><p>E lá do fundo vem a voz</p><p>Humilde e lamentosa</p><p>Dos pássaros da treva. Em nós,</p><p>— Em noss’alma criminosa,</p><p>O pavor se insinua . . .</p><p>Um carneiro bale.</p><p>Ouvem-se pios [47]funerais.</p><p>Um como grande e doloroso arquejo Corta a amplidão que a amplidão continua</p><p>. . .</p><p>E cadentes,[48] metálicos, pontuais, Os tanoeiros[49] do brejo, — Os vigias da</p><p>noite silenciosa, Malham nos aguaçais.</p><p>Pouco a pouco, porém, a muralha de treva Vai perdendo a espessura, e em breve</p><p>se adelgaça[50]</p><p>Como um diáfano[51] crepe, atrás do qual se eleva A sombria massa</p><p>Das serranias.</p><p>O plenilúnio[52] via romper . . . Já da penumbra Lentamente reslumbra</p><p>A paisagem de grandes árvores dormentes.</p><p>E cambiantes[53] sutis, tonalidades fugidias, Tintas deliquescentes[54]</p><p>Mancham para o levante[55] as nuvens langorosas.[56]</p><p>En�m, cheia, serena, pura,</p><p>Como uma hóstia de luz erguida no horizonte, Fazendo levantar a fronte</p><p>Dos poetas e das almas amorosas, Dissipando o temor nas consciências</p><p>medrosas E frustrando a emboscada a espiar na noite escura, — A Lua</p><p>Assoma à crista da montanha.</p><p>Em sua luz se banha</p><p>A solidão cheia de vozes que segredam . . .</p><p>Em voluptuoso[57] espreguiçar de forma nua As névoas enveredam</p><p>No vale. São como alvas, longas charpas!</p><p>46 Enchem-se, �cam pesadas.</p><p>47 Piedosos, cheios de fé.</p><p>48 Em queda, que caem.</p><p>49 Sapos-martelo. Os que fabricam tonéis.</p><p>50 A�na-se.</p><p>51 Transparente, translúcido.</p><p>52 Lua cheia.</p><p>53 Mutáveis, que se trocam brevemente de aparência.</p><p>54 Que apresentam umidade, aquosas.</p><p>55 Onde nasce o Sol, Oriente.</p><p>56 Preguiçosas, frouxas.</p><p>57 Sensual.</p><p>25</p><p>PNEUMOTÓRAX[58]</p><p>Febre, hemoptise,[59] dispneia e suores noturnos.</p><p>A vida inteira que podia ter sido e que não foi.</p><p>Tosse, tosse, tosse.</p><p>Mandou chamar o médico: — Diga trinta e três.</p><p>— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .</p><p>— Respire.</p><p>-------------------------------------------------------------</p><p>— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito</p><p>in�ltrado.</p><p>— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?</p><p>— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.</p><p>58 Presença de ar entre as duas pleuras, camadas da cavidade pleural, que se situa nos pulmões. Causa muita di�culdade respiratória.</p><p>Método de tratamento da tuberculose pulmonar.</p><p>59 Expectoração de sangue, típica da tuberculose.</p><p>26</p><p>POEMA TIRADO DE UMA</p><p>NOTÍCIA DE JORNAL</p><p>João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num</p><p>barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu</p><p>Cantou</p><p>Dançou</p><p>Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.</p><p>POEMA DO BECO</p><p>Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?</p><p>— O que eu vejo é o beco.</p><p>PROFUNDAMENTE</p><p>Quando ontem adormeci Na noite de São João Havia alegria e rumor Vozes</p><p>cantigas e risos Ao pé das fogueiras acesas.</p><p>No meio da noite despertei Não ouvi mais vozes nem risos Apenas balões</p><p>Passavam errantes Silenciosamente Apenas de vez em quando O ruído de um</p><p>bonde Cortava o silêncio Como um túnel.</p><p>Onde estavam os que há pouco Dançavam</p><p>Cantavam</p><p>E riam</p><p>Ao pé das fogueiras acesas?</p><p>— Estavam todos dormindo Estavam todos deitados Dormindo</p><p>Profundamente.</p><p>Quando eu tinha seis anos Não pude ver o fim da festa de São João Porque</p><p>adormeci.</p><p>Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó</p><p>Meu avô</p><p>Totônio Rodrigues Tomásia</p><p>Rosa</p><p>Onde estão todos eles?</p><p>— Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo</p><p>Profundamente.</p><p>RENÚNCIA</p><p>Chora de manso e no íntimo... procura</p><p>Tentar curtir sem queixa o mal que te crucia: O mundo é sem piedade e até riria</p><p>Da tua inconsolável amargura.</p><p>Só a dor enobrece e é grande e é pura.</p><p>Aprende a amá-la que a amarás um dia.</p><p>Então ela será tua alegria,</p><p>E será ela só tua ventura...</p><p>A vida é vã como a sombra que passa</p><p>Sofre sereno e de alma sombranceira[60]</p><p>Sem um grito sequer tua desgraça.</p><p>Encerra em ti tua tristeza inteira</p><p>E pede humildemente a Deus que a faça</p><p>Tua doce e constante companheira...</p><p>60 Soberba, afetada, cheia de maneirismos. No poema, conota coragem, atitude valente.</p><p>27</p><p>SEXTILHAS ROMÂNTICAS</p><p>Paisagens da minha terra, Onde o rouxinol não canta – Mas que importa o</p><p>rouxinol?</p><p>Frio, nevoeiros da serra Quando a manhã se levanta Toda banhada de sol!</p><p>Sou romântico? Concedo.</p><p>Exibo, sem evasiva,[61]</p><p>A alma ruim que Deus me deu.</p><p>Decorei “Amor e medo”, “No lar”, “Meus oito anos”… Viva José Casimiro</p><p>Abreu!</p><p>Sou assim, por vício inato.</p><p>Ainda hoje gosto de Diva, Nem não posso renegar</p><p>Peri, tão pouco índio, é fato, Mas tão brasileiro… Viva, Viva José de Alencar!</p><p>Paisagens da minha terra, Onde o rouxinol não canta – Pinhões[62] para o</p><p>rouxinol!</p><p>Frio, nevoeiros da serra Quando a manhã se levanta Toda banhada de sol!</p><p>Ai tantas lembranças boas!</p><p>Massangana[63] de Nabuco!</p><p>Muribara[64] de meus pais!</p><p>Lagoas das Alagoas,</p><p>Rios do meu Pernambuco, Campos de Minas Gerais!</p><p>61 Desculpa.</p><p>62 Semente do pinheiro.</p><p>63 Con�uência, foz, designação apropriada para a localização do engenho. A palavra deve ser de origem angolana.</p><p>64 Engenho dágua.´Localidade pernambucana, em São Lourenço da Mata.</p><p>28</p><p>TESTAMENTO</p><p>O que não tenho e desejo É que melhor me enriquece.</p><p>Tive uns dinheiros — perdi-os…</p><p>Tive amores — esqueci-os.</p><p>Mas no maior desespero Rezei: ganhei essa prece.</p><p>Vi terras da minha terra.</p><p>Por outras terras andei.</p><p>Mas o que �cou marcado No meu olhar fatigado, Foram terras que inventei.</p><p>Gosto muito de crianças: Não tive um �lho de meu.</p><p>Um �lho!… Não foi de jeito…</p><p>Mas trago dentro do peito Meu �lho que não nasceu.</p><p>Criou-me, desde eu menino Para arquiteto meu pai.</p><p>Foi-se-me um dia a saúde…</p><p>Fiz-me arquiteto? Não pude!</p><p>Sou poeta menor, perdoai!</p><p>Não faço versos de guerra.</p><p>Não faço porque não sei.</p><p>Mas num torpedo-suicida Darei de bom grado a vida Na luta em que não lutei!</p><p>29</p><p>TERESA</p><p>A primeira vez que vi Teresa</p><p>Achei que ela tinha pernas estúpidas</p><p>Achei também que a cara parecia uma perna Quando vi Teresa de novo</p><p>Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo (Os olhos</p><p>nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse) Da</p><p>terceira vez não vi mais nada</p><p>Os céus se misturaram com a terra</p><p>E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.</p><p>30</p><p>TRAGÉDIA BRASILEIRA</p><p>Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, Conheceu Maria Elvira</p><p>na Lapa, – prostituída, com sí�lis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e</p><p>os dentes em petição de miséria.</p><p>Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou</p><p>médico, dentista, manicura… Dava tudo quanto ela queria.</p><p>Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.</p><p>Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez</p><p>nada disso: mudou de casa.</p><p>Viveram três anos assim.</p><p>Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.</p><p>Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria,</p><p>Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado,</p><p>Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do</p><p>Mato, Inválidos…</p><p>Por �m na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de</p><p>inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em</p><p>decúbito[65] dorsal, vestida de organdi azul.</p><p>65 Corpo em repouso, em plano horizontal (de barriga para cima, no dorsal)</p><p>31</p><p>VERSOS ESCRITOS N’ÁGUA Os poucos versos que aí vão,</p><p>Em lugar de outros é que os ponho.</p><p>Tu que me lês, deixo ao teu sonho Imaginar como serão.</p><p>Neles porás tua tristeza</p><p>Ou bem teu júbilo, e, talvez, Lhes acharás, tu que me lês, Alguma sombra de</p><p>beleza…</p><p>Quem os ouviu não os amou.</p><p>Meus pobres versos comovidos!</p><p>Por isso �quem esquecidos Onde o mau vento os atirou.</p><p>C�������</p><p>A estrela</p><p>A morte absoluta</p><p>Arte de amar</p><p>Auto-retrato</p><p>Belo belo</p><p>Canção do vento e da minha vida</p><p>Consoada</p><p>Cotovia</p><p>Chama e fumo</p><p>Debussy</p><p>Desencanto</p><p>Enquanto a chuva cai</p><p>Estrada</p><p>Irene no céu</p><p>Madrigal melancólico</p><p>Mascarada</p><p>Meu quintana</p><p>Minha grande ternura</p><p>O anel de vidro</p><p>O bicho</p><p>O exemplo das rosas</p><p>O inútil luar</p><p>O menino doente</p><p>O rio</p><p>Pneumotórax</p><p>Poema tirado de uma notícia de jornal</p><p>Sextilhas românticas</p><p>Testamento</p><p>Teresa</p><p>Tragédia brasileira</p><p>Versos escritos n’água</p><p>M���������</p><p>1. Capa</p><p>2. Sumário</p><p>clbr://internal.invalid/book/OEBPS/cover.xhtml</p><p>A estrela</p><p>A morte absoluta</p><p>Arte de amar</p><p>Auto-retrato</p><p>Belo belo</p><p>Canção do vento e da minha vida</p><p>Consoada</p><p>Cotovia</p><p>Chama e fumo</p><p>Debussy</p><p>Desencanto</p><p>Enquanto a chuva cai</p><p>Estrada</p><p>Irene no céu</p><p>Madrigal melancólico</p><p>Mascarada</p><p>Meu quintana</p><p>Minha grande ternura</p><p>O anel de vidro</p><p>O bicho</p><p>O exemplo das rosas</p><p>O inútil luar</p><p>O menino doente</p><p>O rio</p><p>Pneumotórax</p><p>Poema tirado de uma notícia de jornal</p><p>Sextilhas românticas</p><p>Testamento</p><p>Teresa</p><p>Tragédia brasileira</p><p>Versos escritos n’água</p>