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<p>A NEUTRALIDADE DA CIÊNCIA – por Guilherme Reis Pereira</p><p>A ideia da neutralidade significa que a ciência não é influenciada pelo contexto social,</p><p>político e econômico. Existe uma muralha separando a comunidade científica que</p><p>protege a produção de conhecimento científico das interferências dos interesses</p><p>econômicos e políticos. Também não pode haver uma influência dos valores da</p><p>sociedade onde vive o cientista na pesquisa. A imagem clássica do cientista é de um</p><p>sujeito genial que fica em uma torre de marfim isolado da sociedade. Os dados do objeto</p><p>da pesquisa precisam ser analisados objetivamente sem ser contaminados pelo olhar do</p><p>que a sociedade considerar bom ou mau. Uma vez que a ciência não sofreu nenhum tipo</p><p>de influência externa ao ambiente científico ela é considerada neutra, porque se criou</p><p>uma barreira virtual entre a ciência e a sociedade. Nesta concepção, a produção de</p><p>conhecimento científico tem um desenvolvimento livre e espontâneo em busca da</p><p>verdade.</p><p>Apesar de alguns autores, como os humanistas ingleses, defenderem um</p><p>direcionamento da ciência para atender objetivos sociais, econômicos específicos, era</p><p>dominante no início do século XX a visão da ciência neutra. Só para citar alguns nomes,</p><p>Polanyi, em sua conferência “Autogoverno na Ciência”, se opõe à ideia da ciência</p><p>dirigida e defende a comunidade científica baseada na concepção de liberdade da</p><p>ciência e sua desvinculação de interferências políticas e religiosas. Outro autor</p><p>importante foi Merton que, em 1942, introduziu a ideia de que o cientista deve</p><p>desempenhar suas atividades de acordo com um conjunto de normas e valores</p><p>específicos, entre elas o desinteresse. É importante lembrar que o mundo estava em</p><p>plena Segunda Guerra Mundial e sob regimes totalitários, como o nazismo, que obrigava</p><p>os cientistas a fazer pesquisa para produção de armas de destruição em massa. A</p><p>intenção de Merton era mostrar que o nazismo e a ciência não podiam andar juntos. O</p><p>autor concebe a comunidade científica como um subsistema autônomo em relação à</p><p>sociedade. Dessa forma, Merton reforça a tradição da sociologia do conhecimento de</p><p>que a ciência é neutra, isto é, o fenômeno deve ser investigado sem interferência dos</p><p>valores sociais, interesses e opinião. Para fazer ciência a razão precisa estar separada da</p><p>emoção.</p><p>Havia um consenso sobre a liberdade e autonomia da ciência em relação à sociedade</p><p>que começou no Iluminismo, nos estudos da sociedade e foi denominado positivismo</p><p>que permanece impregnado nas mentes de muitos cientistas no final do século XX. A</p><p>valorização do conhecimento científico baseado na observação dos fenômenos para</p><p>entender a realidade com ela é, colocava a ciência acima sociedade. Os cientistas</p><p>acreditavam que a acumulação pura e simples de conhecimentos científico-tecnológicos</p><p>seria suficiente para garantir o progresso econômico e social de todos. Desse modo, essa</p><p>visão de ciência introduziu a ideia de progresso como um desenvolvimento linear que</p><p>começa com o avanço do conhecimento que transborda e se espalha para a sociedade</p><p>beneficiando a todos.</p><p>A consequência dessa visão de ciência neutra que prega a necessidade de</p><p>distanciamento em relação ao contexto social, político e econômico tornou a ciência um</p><p>assunto técnico exclusivo aos cientistas. Os demais segmentos e pessoas da sociedade</p><p>não estariam capacitados a discutir sobre quais problemas os cientistas deveriam se</p><p>debruçar. Isto fez com que a política científica, que estabelecia quais eram as prioridades</p><p>de pesquisa para receber recursos públicos, fosse definida pelos próprios cientistas. Só</p><p>que o conhecimento científico tornou-se importante demais para ser deixado por conta</p><p>dos cientistas, demasiadamente ocupados em fazer ciência. Existem vários exemplos na</p><p>História que comprovam o impacto causado pela ciência na relação entre os países,</p><p>como o desenvolvimento de armas, por exemplo, a bomba nuclear. Você pode perceber</p><p>o impacto da aplicação da ciência na vida das pessoas com a popularização de</p><p>tecnologias como o automóvel movido a álcool, o celular, a internet, o micro-ondas, etc.</p><p>Ao longo do século XX, a ciência e a tecnologia assumiram um caráter político, ou seja,</p><p>a ciência e a tecnologia são de interesse público por causa das transformações</p><p>provocadas na vida das pessoas e no desenvolvimento socioeconômico. Mesmo com</p><p>tantas evidências, existe uma tradição entre os cientistas naturais de manter uma</p><p>autonomia e liberdade da ciência pura e resistem às iniciativas do governo de</p><p>administração e direção do desenvolvimento científico.</p><p>CRÍTICA DA NEUTRALIDADE DA CIÊNCIA</p><p>a) Crítica dos cientistas naturais baseada em novas teorias</p><p>A partir da segunda metade do século XX, a visão de ciência neutra construída a partir</p><p>das contribuições de Galileu, Newton, Descartes e dos positivistas é colocada em dúvida</p><p>em função do avanço do conhecimento com novas teorias que questionam as bases</p><p>desse modelo de ciência e também recebe críticas sociológicas de autores que</p><p>defendem que existe influência do contexto sociocultural na produção de</p><p>conhecimento. Quando teorias paradigmáticas são negadas ou substituídas por outras,</p><p>chamamos à situação de revolução científica. Se as bases da ciência moderna que deu</p><p>origem à visão de ciência neutra estão sendo questionadas, consequentemente a</p><p>objetividade e neutralidade da ciência também caem por terra.</p><p>b) Crítica dos Cientistas Sociais</p><p>Alguns críticos da ideia de neutralidade da ciência adotam a sociedade como foco da</p><p>análise para afirmar a não-neutralidade. Boris Hessen em “Raízes Socioeconômicas de</p><p>principia de Newton” descreve os problemas técnicos colocados pela navegação</p><p>marítima, a indústria de mineração, metalurgia e da guerra que demandavam</p><p>conhecimento de mecânica. Os problemas técnicos da navegação impulsionaram</p><p>estudos de hidroestática, aeroestática e ótica. O problema da trajetória da bala inspirou</p><p>Galileu a estudar o movimento dos corpos, resistência e velocidade, a queda livre dos</p><p>corpos. O recuo do canhão levou ao estudo da lei de ação e reação. Estes são exemplos</p><p>de que os temas que a ciência procurou explicar foram determinados pelas necessidades</p><p>da nascente burguesia, pelos interesses econômicos e políticos. A principal obra de</p><p>Newton “Principia”, sistematizou todos os problemas físicos da mecânica da época</p><p>numa linguagem matemática abstrata sem aparecer as fontes de inspiração.</p><p>Além de Boris Hessen, outros construtivistas mostram com base em estudos de caso que</p><p>há influência das relações sociais e econômicas no desenvolvimento da ciência e</p><p>tecnologia. Estes autores entendem que a C&T é uma construção social, ou seja, o</p><p>desenvolvimento científico e tecnológico é influenciado pela política, economia e</p><p>cultura e também produz efeitos sociais e políticos. O desenvolvimento tecnológico</p><p>envolve conflito e negociação entre grupos sociais com concepções diferentes acerca</p><p>dos problemas e soluções. O desenho dos artefatos tecnológicos é definido pelas</p><p>correlações de força entre os diferentes grupos sociais, portanto, não é um processo</p><p>determinista. Um dos exemplos usados pelos construtivistas Wiebe Bijker e Trevor Pinch</p><p>de como os usuários interferem no desenho do artefato, é a história da bicicleta que</p><p>inicialmente tinha a roda dianteira grande e com tração para alcançar velocidade que</p><p>servia como equipamento esportivo, mas não era adequada como meio de transporte</p><p>devido à instabilidade. O desenho da bicicleta gradativamente foi se adequando para</p><p>atender melhor ao usuário.</p><p>Para você entender melhor os conflitos de valores que podem ocorrer com o avanço da</p><p>ciência, vamos tomar como exemplo o caso da pesquisa em genética. A polêmica em</p><p>torno da pesquisa de manipulação genética com embrião humano deu origem a uma</p><p>discussão sobre a ética na ciência e os limites do desenvolvimento científico. A</p><p>possibilidade de clonagem humana é vista como um risco, principalmente,</p><p>pelas pessoas</p><p>ligadas à religião. Mas, por outro lado, os resultados da pesquisa podem contribuir para</p><p>evitar doenças transmitidas de pais para filhos, como o câncer.</p><p>Na década de 1970, vários autores passaram a questionar a visão positiva e neutra da</p><p>ciência e denunciavam os impactos negativos que podiam ser observados no uso da</p><p>ciência e tecnologia. Havia vários casos que evidenciavam os efeitos nocivos da ciência.</p><p>Só para citar alguns exemplos, os trabalhadores estavam perdendo o emprego por conta</p><p>da introdução de novas tecnologias, o pesticida DDT provocava efeitos prejudiciais à</p><p>saúde humana, o uso da C&T na guerra do Vietnam com as bombas de napalm. Nesse</p><p>sentido, a degradação ambiental, o desemprego tecnológico e o uso destrutivo da C&T</p><p>vão contribuir para a desconstrução da ciência neutra e conter a euforia sobre os</p><p>resultados do avanço científico e tecnológico. Vários autores afirmam que a ciência</p><p>carrega valores, não está isolada da sociedade e muito menos é neutra e livre de</p><p>influências externas ao meio acadêmico. Neste período fortalece o argumento de que a</p><p>ciência precisa ser controlada e dirigida para solucionar problemas relevantes da</p><p>sociedade.</p><p>Já os críticos mais radicais da neutralidade, como os marxistas Coriat e Gorz, vão</p><p>defender a tese de que a C&T é gerada sob a égide da sociedade capitalista e, por isso,</p><p>é construída de forma que seja útil e funcional para aquela sociedade, isto é, ela faz</p><p>parte da engrenagem do sistema capitalista. A ciência e tecnologia estão</p><p>comprometidas com a manutenção da sociedade onde foram produzidas e, por isso, não</p><p>seriam funcionais nem adequadas em um sistema social muito diferente, como se</p><p>imaginava no socialismo. Também não poderia ser utilizada para a construção de uma</p><p>nova sociedade em uma direção diferente daquela que orientou o seu desenvolvimento.</p><p>Assim, pode-se dizer que C&T não existe historicamente de forma abstrata como é</p><p>ensinada nos diversos cursos. A C&T tem características de sua época e da sociedade</p><p>onde se desenvolve. O sucesso do cientista está ligado à utilidade do conhecimento para</p><p>alcançar os objetivos da sociedade. No caso da sociedade capitalista, o de promover a</p><p>inovação para gerar mais riqueza para as grandes empresas. Desde os tempos de Galileu</p><p>e Newton, a C&T é a ferramenta utilizada no capitalismo para dominar a natureza e</p><p>explorar os desprovidos de meios de produção. Por isso, por mais que a C&T tenha se</p><p>desenvolvido, isto não implicou em desenvolvimento social e nem em uma relação</p><p>sustentável com a natureza.</p><p>NOVA CONCEPÇÃO DA CIÊNCIA</p><p>A ideia da ciência neutra que se desenvolve a partir de uma lógica interna, da</p><p>curiosidade do cientista desprovido de interesse que se isola no laboratório, passou a</p><p>conviver com a visão de que a ciência é condicionada pelo contexto social, pelas</p><p>circunstâncias do momento histórico e orientada por objetivos de desenvolvimento</p><p>econômico e social. A ciência também deixa de ser vista como ponto de partida para se</p><p>alcançar desenvolvimento tecnológico para atender as necessidades dos usuários. Essa</p><p>mudança de entendimento de como é produzido o conhecimento científico e,</p><p>principalmente dos impactos benéficos ou maléficos que podem ser gerados provocou</p><p>uma mudança da política de C&T na qual as agências de financiamento passam a definir</p><p>temas e áreas do conhecimento que recebem recursos visando o desenvolvimento</p><p>científico e tecnológico em áreas consideradas mais importantes para o país. Neste novo</p><p>contexto do final do século XX, os cientistas continuam a ser os principais atores da</p><p>política de C&T, mas tiveram que dividir espaço com os gestores públicos, os</p><p>empresários e os políticos na definição das prioridades.</p><p>A REVOLUÇÃO TECNOCIENTÍFICA – por Javier Echeverría</p><p>A revolução científica começou nas últimas décadas do século XVI e desenvolveu-se ao</p><p>longo do século XVII. Seus promotores (Copérnico, Galileu, Harvey, Descartes, Huygens,</p><p>Leibniz, Newton e muitos outros) mudaram radicalmente a concepção europeia de</p><p>mundo, rompendo com os moldes aristotélico-escolásticos que predominavam durante</p><p>a Idade Média. A mudança foi lenta e ocorreu em alguns países europeus (Itália,</p><p>Holanda, Grã-Bretanha, França, Alemanha), espalhando-se pouco a pouco pelo resto da</p><p>Europa e América do Norte. Afetou apenas algumas disciplinas (astronomia,</p><p>matemática, física, medicina), que foram a vanguarda da mudança filosófica e</p><p>metodológica. Posteriormente, a matematização do conhecimento e a metodologia</p><p>experimental foram alcançando as demais ciências, com o consequente surgimento de</p><p>novas teorias em química, biologia, geologia e, finalmente, no campo da ciência social.</p><p>Para promover a nova filosofia natural, inspirada no programa baconiano, criaram-se</p><p>novas instituições (sociedades científicas, observatórios astronômicos, laboratórios,</p><p>etc.), em torno dos quais se reuniam as comunidades científicas emergentes. As</p><p>Universidades se opuseram à mudança, com raras exceções, originando famosos</p><p>processos e disputas entre os defensores da nova metodologia científica e os</p><p>mantenedores do método aristotélico e da estrutura medieval do saber. Como resultado</p><p>deste longo processo, a ciência moderna foi institucionalizando-se aos poucos, com</p><p>diferenças notáveis segundo os países e disciplinas.</p><p>Ao longo do século XVIII, os cientistas encontraram importantes aliados nos</p><p>impulsionadores da Revolução Industrial, especialmente na Grã-Bretanha, onde a</p><p>ciência Newtoniana teve ampla difusão social. Com a Revolução Francesa e o</p><p>estabelecimento da escolaridade obrigatória, a difusão social do conhecimento</p><p>científico era progressivamente garantida, criando ao mesmo tempo um sistema de</p><p>reprodução das comunidades científicas emergentes. Durante o século XIX, outros</p><p>países europeus seguiram o exemplo francês, com o qual a ciência foi inserida no</p><p>sistema educativo europeu, culminando com a revolução científica. Universidade</p><p>Humboldt na Alemanha e a Politécnica Francesa tornaram-se um modelo a ser imitado</p><p>em todo o continente.</p><p>A primeira revolução industrial ocorreu na Grã-Bretanha. Seu impacto social, econômico</p><p>e político foi enorme na Europa. Um dos seus principais impulsionadores foi a</p><p>tecnologia. A ciência só teve uma influência indireta no desenvolvimento industrial.</p><p>Ambas revoluções, a científica e a industrial, foram constitutivas da Era Moderna,</p><p>juntamente com as profundas mudanças políticas que levaram ao estabelecimento de</p><p>formas democráticas de governo em alguns países europeus, bem como nos Estados</p><p>Unidos da América. Durante a segunda Revolução Industrial, a aliança entre indústria,</p><p>tecnologia e ciência consolidou-se em alguns países (Grã-Bretanha, Alemanha, em</p><p>menor medida França), gerando duas novas profissões, a de cientista e de engenheiro.</p><p>Ao longo do século XIX, a ciência e a tecnologia interagiam estreitamente, com</p><p>benefícios mútuos, embora fizessem parte de sectores profissionais claramente</p><p>diferenciados. Os cientistas começaram a mostrar que o seu conhecimento poderia ser</p><p>muito útil para a indústria e para a guerra. Os países que promoveram a colaboração</p><p>entre ciência, tecnologia e indústria, tornaram-se grandes potências ao longo do século</p><p>XIX, em detrimento das antigas potências (Espanha, Portugal, Turquia) que não deram</p><p>o passo para a nova sociedade científico-industrial.</p><p>Tomando como referência essas duas grandes revoluções da Era Moderna1, nos</p><p>detemos em uma mudança não menos importante, a revolução tecnocientífica, o que</p><p>implica uma nova forma de fazer ciência. Começou nos EUA na época do Segunda</p><p>Guerra Mundial, consolidou-se com a Guerra Fria e posteriormente espalhou-se para</p><p>outros países, particularmente na Europa, Japão e Canadá. Vamos nos concentrar nos</p><p>Estados Unidos, uma vez que, tal como a ciência moderna foi uma criação europeia, a</p><p>tecnociência contemporânea tem uma forte marca norte-americana. Façamos a</p><p>distinção de 3 etapas. Na primeira (1940-1965),</p><p>surgiu a macrociência (Big Science), a</p><p>qual consideramos a primeira modalidade da tecnociência. A pesquisa básica</p><p>desempenhou um papel fundamental como impulsionadora da macrociência,</p><p>especialmente no campo da física, mas também da química e da matemática. Depois de</p><p>uma década de crise e estagnação (1966-1976), causada pelo fracasso americano na</p><p>1 A terceira foi a revolução política, que estabeleceu a democracia nestes países (Inglaterra, EUA, França,</p><p>etc.) e o Estado de Direito, criando Estados laicos, com separação dos três poderes e princípio da</p><p>soberania popular baseada na democracia representativa. O quarto, o capitalismo, o principal motor do</p><p>desenvolvimento industrial, militar e colonial.</p><p>guerra do Vietnam e o amplo protesto social que surgiu nos Estados Unidos e na Europa</p><p>contra a macrociência militarizada (maio de 1968), no último quarto de século surgiu a</p><p>tecnociência propriamente dita, promovida por algumas grandes empresas, mais que</p><p>pelos Estados, e focada no desenvolvimento de novas tecnologias. A Tecnociência</p><p>também procede dos EUA, embora tenha se espalhado rapidamente para outros países.</p><p>A União Soviética não foi capaz de dar o novo salto, devido à falta de capacidade</p><p>financeira e tecido empresarial. Se considerarmos a macrociência e a tecnociência como</p><p>a primeira e a segunda revolução técnico-científica, respectivamente, pode-se dizer que</p><p>o atual predomínio militar, econômico, político, diplomático e comercial dos Estados</p><p>Unidos provem, entre outras razões, da sua liderança técnico-científica.</p><p>A ciência não desapareceu. Sociedades científicas e ciência acadêmica continuam</p><p>existindo. No entanto, os seus dois novos descendentes, a macrociência e a</p><p>tecnociência, manifestam um impulso enorme, a tal ponto que alguns autores tendem</p><p>a pensar que hoje tudo é tecnociência. Mas há diferenças entre ciência e macrociência,</p><p>em primeiro lugar e entre ciência e tecnociência. A revolução tecnocientífica difere em</p><p>aspectos fundamentais das revoluções científicas de que falava Thomas Kuhn. Mais que</p><p>conhecimento, transforma-se a prática científico-tecnológica, gerando uma nova</p><p>estrutura, os sistemas nacionais de ciência e tecnologia, com foco no sistema norte-</p><p>americano, que permanece canônico. Embora o desenvolvimento da tecnociência tenha</p><p>gerado novas teorias científicas e grandes descobertas, os paradigmas básicos</p><p>permanecem subsistindo em física, química, biologia e matemática. Não estamos</p><p>enfrentando uma revolução epistemológica ou metodológica, embora tenha havido</p><p>grandes mudanças no conhecimento e métodos científicos, mas em face de uma</p><p>revolução praxiológica. Por isso analisaremos a nova estrutura da prática científico-</p><p>tecnológica, que é a característica mais pronunciada da revolução tecnocientífica. Para</p><p>isso trataremos de elucidar dois conceitos básicos: os sistemas tecnocientíficos e as</p><p>ações tecnocientíficas. Diante da revolução científica do século XVII, que modificou a</p><p>estrutura do conhecimento, a revolução tecnocientífica do século XX transformou,</p><p>sobretudo, a estrutura da prática científico-tecnológica. Em particular, mudaram os</p><p>sistemas de valores que norteiam a atividade científica. Temos uma nova axiologia da</p><p>tecnociência. Não é a única abordagem filosófica possível, mas no nosso entender é uma</p><p>das mais claras e promissoras. Os valores da tecnociência são muito mais amplos e</p><p>complexos do que os da ciência moderna. Os conflitos de valores são uma componente</p><p>estrutural da tecnociência.</p><p>A revolução tecnocientífica não mudou apenas as ciências e as tecnologias. Além disso,</p><p>contribuiu para gerar uma grande mudança econômica e social, a revolução da</p><p>informação, que começou nas últimas décadas do século XX e que, previsivelmente,</p><p>continuará a desenvolver-se durante o século XXI. A ligação entre a tecnociência e a</p><p>sociedade da informação emergente é muito estreita, pelo que esta aliança pode ser</p><p>comparada àquela que a ciência e a tecnologia modernas mantiveram com a revolução</p><p>industrial. Estas duas novas revoluções não têm a sua origem na Europa, mas sim nos</p><p>Estados Unidos da América, que se tornaram uma potência hegemônica em todo o</p><p>mundo, em parte devido ao seu apoio determinado à tecnociência. Tal como a ciência</p><p>moderna era europeia, a tecnociência é norte-americana, assim como a revolução da</p><p>informação. Atualmente, ambas as revoluções estão a expandir-se para outros países.</p><p>Ao fazê-lo, surgem diferentes versões da tecnociência, dependendo das diversas</p><p>culturas em que está inserida. Deve-se dizer que o Primeiro Mundo é formado por</p><p>aqueles países onde estas duas novas revoluções se consolidaram ou estão em fase</p><p>avançada de desenvolvimento. Ao conceito moderno de desenvolvimento industrial,</p><p>científico e tecnológico, devemos acrescentar a noção contemporânea de</p><p>desenvolvimento técnico-científico e informacional. Um país pode ser uma potência</p><p>científica e industrial e, ainda assim, ser subdesenvolvido do ponto de vista técnico-</p><p>científico e informacional. Portanto entendemos que a tecnociência é um dos grandes</p><p>desafios do século XXI.</p><p>Os novos modos de produção de riqueza e de conhecimento modificaram radicalmente</p><p>as relações de poder e a distribuição da riqueza nos países, regiões e empresas. O poder</p><p>militar, por exemplo, exige elevado desenvolvimento técnico-científico e informacional.</p><p>É importante ter em mente que a tecnociência não serve apenas para criar, descobrir,</p><p>inventar e construir, mas também para aniquilar e destruir. Os vínculos entre a</p><p>tecnociência e as instituições militares foram e continuam a ser muito estreitos, desde</p><p>a origem da macrociência. Os seres humanos desenvolveram inúmeros conflitos bélicos</p><p>ao longo da história, mas a Segunda Guerra Mundial e os conflitos subsequentes em que</p><p>os EUA participaram (Coreia, Guerra Fria, Vietname, Golfo Pérsico, Kosovo,</p><p>Afeganistão...) representam uma novidade radical: a tecnociência é uma condição</p><p>necessária para a vitória militar. Não importa quantos soldados e quanta coragem você</p><p>tenha, a derrota militar está garantida se você não tiver um desenvolvimento técnico-</p><p>científico adequado. O mesmo pode ser dito sobre o ambiente de negócios,</p><p>especialmente na era da globalização. Em síntese, a tecnociência é condição de</p><p>possibilidade do poder econômico e militar, razão pela qual os países mais poderosos</p><p>são aqueles que apresentam um elevado nível de desenvolvimento tecnocientífico e</p><p>informacional. A curiosidade e a busca pelo conhecimento podem ter estado na base do</p><p>surgimento da ciência moderna. Em vez disso, a luta pelo poder é a força motriz da</p><p>tecnociência contemporânea. Por isso, finalizaremos este trabalho com uma reflexão</p><p>sobre tecnociência e poder.</p>