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<p>Educação, Cultura e Trabalho no século XXI</p><p>Fascículo 1.</p><p>‘‘Outra ciência é possível!’’ Um apelo à Slow Science</p><p>Isabelle Stengers</p><p>ISSN: 2596-2566</p><p>https://ateliedehumanidades.com/cadernos-do-atelie/</p><p>Cadernos do Ateliê. Vol.1, n.5, fascículo 1, 2019.</p><p>Entre Humanismo, pragmatismo e complexidade:</p><p>Educação, Cultura e Trabalho no século XXI</p><p>C A D E R N O S D O A T E L I Ê</p><p>Plano de convergência</p><p>Entre Humanismo, pragmatismo e complexidade: Educação, Cultura e Trabalho no século XXI</p><p>Cadernos do Ateliê. Vol.1, n.5, fascículo 1, 2019. ISSN: 2596-2566</p><p>Produzido por: Ateliê de Humanidades l www.ateliedehumanidades.com</p><p>Fascículo 1.</p><p>‘‘Outra ciência é possível!’’ Um apelo à Slow Science - Isabelle Stengers</p><p>O Ateliê de Humanidades é uma iniciativa que parte de um diagnóstico sobre</p><p>as crises de nosso tempo, incluindo a do pensamento, da cultura e das</p><p>universidades; nossa instituição de livre estudo e pesquisa é fundada em</p><p>ideias e valores fortes, vistos como um norte e uma resposta às crises. Neste</p><p>sentido, nosso Plano de convergência Entre humanismo, pragmatismo e</p><p>complexidade: educação, cultura e trabalho no século XXI nos é central, pois</p><p>oferece uma autorreflexão constante sobre onde estamos, o que somos, o</p><p>que queremos e para onde temos que ir.</p><p>Lançamos agora nos Cadernos do Ateliê uma primeira série que traz textos,</p><p>traduzidos e inéditos, que permitam diagnosticar nosso tempo, ao mesmo</p><p>tempo que refletir sobre o Ateliê e seus valores. No primeiro fascículo,</p><p>iniciamos com a proposta, à qual nos vinculamos, de uma slow science. Após</p><p>termos publicado no nosso site uma tradução do Manifesto por uma slow</p><p>science, trazemos agora o texto da filósofa e historiadora da ciência Isabelle</p><p>Stengers, “'Outra Ciência é possível!': Um apelo à Slow Science”, com</p><p>tradução e apresentação de Maryalua Meyer e André Magnelli.</p><p>Tradução - Maryalua Meyer</p><p>Apresentação e Revisão - André Magnelli</p><p>1</p><p>'Outra Ciência é possível!'</p><p>Um apelo à Slow Science</p><p>Isabelle Stengers1</p><p>Há alguns anos, muitas dissertações acadêmicas fo-</p><p>ram escritas sobre os direitos das futuras gerações em re-</p><p>lação ao caráter insustentável do que chamamos de de-</p><p>senvolvimento. Mas agora percebemos que o futuro está</p><p>vindo em nossa direção a toda velocidade. Pode-se dizer</p><p>que nós, que estamos aqui, estamos na posição de imagi-</p><p>nar como responderemos àqueles que não estão aqui, mas</p><p>que, no entanto, já existem. O que diremos às crianças</p><p>nascidas neste século quando perguntarem: "Você sabia</p><p>tudo o que precisava saber; o que você fez? Qualquer</p><p>adulto hoje pode imaginar ser perguntado sobre essa</p><p>1 Este texto é uma tradução de: STENGERS, Isabelle. ‘Another Sci-</p><p>ence is Possible!’ A Plea for Slow Science. In: STENGERS, I. (2018)</p><p>Another science is possible! A manifesto for slow science. Cambridge:</p><p>Polity Press. p. 106-132. A primeira versão, menos desenvolvida e</p><p>mais contextualizada, é encontrada em: STENGERS, Isabelle. (2013)</p><p>Une autre science est possible!: manifeste pour un ralentissement des</p><p>sciences. Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond/La Découverte.</p><p>p. 83-112. A presente tradução foi feita por Maryalua Meyer e revi-</p><p>sada por André Magnelli. Aproveitamos para agradecer à Isabelle</p><p>Stengers e à editora La Découverte por terem gentilmente nos auto-</p><p>rizado a publicação deste ensaio.</p><p>2</p><p>questão. No entanto, como acadêmicos, eu diria que esta-</p><p>mos em uma posição especial.</p><p>Pode acontecer de fato que algumas pessoas, fora da</p><p>academia, estejam confiantes de que nós, que somos sele-</p><p>cionados, treinados e pagos para pensar, imaginar, ante-</p><p>ver e propor, estamos de fato fazendo isso em relação ao</p><p>futuro que encaramos. E também pode haver jovens en-</p><p>trando na universidade com a estranha esperança de ob-</p><p>ter uma melhor compreensão do mundo ameaçador em</p><p>que vivemos.</p><p>Podemos consentir com essa confiança e permitir que</p><p>o poder nos afete? Ou responderemos com o triste conto</p><p>de que estamos, ou estivemos, muito ocupados com as</p><p>exigências implacáveis a que agora temos que nos confor-</p><p>mar para sobreviver?</p><p>Não estou falando aqui apenas da economia do co-</p><p>nhecimento e do imperativo de produzir conhecimento</p><p>que interessa aos competitivos jogos de guerra do mundo</p><p>corporativo. Mesmo os campos acadêmicos que não pro-</p><p>duzem patentes agora foram submetidos ao imperativo</p><p>geral da avaliação de benchmark. Eles têm que aceitar o</p><p>julgamento de um pseudo-mercado acadêmico gover-</p><p>nado pela concorrência cega.</p><p>Em resumo, devemos admitir que fomos compelidos</p><p>com sucesso a entregar uma grande parte de nossa liber-</p><p>dade de nos engajarmos em dissensos. Agora, temos que</p><p>3</p><p>dizer aos nossos alunos para escolherem assuntos que le-</p><p>varão à publicação rápida em revistas de alto nível, espe-</p><p>cializadas em questões profissionalmente reconhecidas –</p><p>questões que, em geral, não interessam a ninguém, exceto</p><p>outros colegas de publicação rápida. Temos que lhes di-</p><p>zer que, se quiserem sobreviver, precisam aprender a se</p><p>conformar aos quadros normativos impostos por essas</p><p>publicações.</p><p>Então, meu primeiro ponto é: seja qual for o futuro,</p><p>as instituições de pesquisa não estão preparadas para for-</p><p>mulá-lo, ou mesmo vislumbrá-lo, de uma maneira que sa-</p><p>tisfaça a confiança que algumas pessoas ainda possam ser</p><p>ingênuas o suficiente para colocar em nós.</p><p>Mas também sabemos que, em todos os lugares, os</p><p>mesmos processos de desempoderamento estão em ação.</p><p>Em todos os lugares, um corte semelhante é introduzido,</p><p>separando pessoas e coletivos de sua capacidade de vis-</p><p>lumbrar, sentir, pensar ou imaginar. Em todos os lugares,</p><p>o mesmo tipo de ataque foi lançado, o que pode ser carac-</p><p>terizado como uma forma de feitiçaria que obstinada, fur-</p><p>tiva e perversamente paralisa nossa capacidade de resis-</p><p>tir.</p><p>É por isso que, diante de nossa falta de resistência,</p><p>não falarei de culpa. Prefiro falar em vergonha, lem-</p><p>brando a observação de Gilles Deleuze de que "o senti-</p><p>mento de vergonha é um dos motivos mais poderosos da</p><p>4</p><p>filosofia".2 Tal motivo pode ser estendido muito além da</p><p>filosofia, para todos nós que sentimos essa vergonha.</p><p>Afirmaria que o tipo de futuro que enfrentamos cria</p><p>o que William James chamou de “opção genuína”3, uma</p><p>opção que não pode ser evitada porque não há lugar para</p><p>ficar fora das alternativas de consentir ou recusar o desa-</p><p>fio que ela oferece.</p><p>O processo de destruição da academia não é, em si</p><p>mesmo, suficiente para criar tal opção. Há dez anos, eu</p><p>estava pronta para admitir que ela era uma instituição</p><p>moribunda, merecendo fortemente seu destino. Hoje, no</p><p>entanto, essa destruição pode ser vista, juntamente com</p><p>inúmeras outras destruições, como uma erradicação sis-</p><p>temática de recursos que poderiam se dirigir ao futuro,</p><p>cortando sistematicamente nossa capacidade de pensar,</p><p>ou seja, de escapar do desespero e do cinismo. De um jeito</p><p>ou de outro, muito do que está sendo destruído pode ser</p><p>caracterizado, como a academia, como merecedora de seu</p><p>destino, mas o significado de tal caracterização mudou.</p><p>Tornou-se uma maneira de recusar o desafio pelo qual so-</p><p>mos confrontados.</p><p>2 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. What is Philosophy?, trans.</p><p>Graham Burchell and Hugh Tomlinson, London: Verso, 2003, p. 108.</p><p>3 N.T. JAMES, William.(1896) A vontade de crer. Tradução Cecília</p><p>Camargo Bartalotti. – São Paulo: Loyola, 2001.</p><p>5</p><p>Eu nomearia esse desafio de "barbárie", como o resul-</p><p>tado mais provável do que está acontecendo hoje.4 Já sa-</p><p>bemos o sabor dessa barbárie, nas medidas ditas “difíceis</p><p>mas infelizmente necessárias”, que autoridades de todos</p><p>os tipos demandam que aceitemos, com consequências</p><p>que teriam julgado impensáveis ontem. Tais consequên-</p><p>cias, que já sabemos muito bem, só se multiplicarão e se</p><p>intensificarão no futuro. Isso está apenas começando.</p><p>Aceitar que se deve pensar, sentir e imaginar</p><p>a neces-</p><p>sidade de enfrentar a barbárie significa recusar a ideia de</p><p>que outras figuras mais merecedoras cheguem para virar</p><p>a mesa. Hoje, as perspectivas messiânicas são tentadoras,</p><p>até mesmo na moda, mas esperar a salvação de algum</p><p>Grande Outro [Great Outside] só nos joga nas mãos da bar-</p><p>bárie, evitando o desafio que nos é endereçado agora.</p><p>Minha intervenção toma “slow science” como um</p><p>nome para o desafio que é endereçado a nós como acadê-</p><p>micos. Um nome que inclui também uma armadilha à que</p><p>temos que resistir; ou seja, o clamor de um acordo “para</p><p>4 Ver STENGERS, Isabelle. (2009) In Catastrophic Times: Resisting the</p><p>Coming Barbarism, Open Humanities Press/Meson Press, 2015. (tra-</p><p>dução para o português: STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes.</p><p>São Paulo: UBU, 2015).</p><p>6</p><p>voltar ao passado”, conforme expresso pelo The Slow Sci-</p><p>ence Manifesto, discutido no capítulo anterior.5 Como vi-</p><p>mos lá, ele conclui pedindo a uma audiência não especifi-</p><p>cada que deixe os cientistas em paz: “Não podemos dizer</p><p>continuamente o que nossa ciência significa e à qual bem</p><p>ela serve, porque simplesmente não sabemos ainda. A ci-</p><p>ência precisa de tempo. — Fique com a gente, enquanto nós</p><p>pensamos”.6</p><p>Resistir ao consenso sempre nos expõe a risos7, mas</p><p>vou expor minha posição ainda mais, ousando defender</p><p>a definição da tarefa da universidade dada pelo matemá-</p><p>tico e filósofo Alfred North Whitehead em 1935:</p><p>A tarefa de uma universidade é a criação do futuro, na me-</p><p>dida em que o pensamento racional e os modos civilizados</p><p>de apreciação possam afetar o assunto. O futuro é grande</p><p>com todas as possibilidades de conquistas e tragédias.8</p><p>5 N.T.: A autora remete ao capítulo anterior do livro: Ludwik Fleck,</p><p>Thomas Kuhn and the Challenge of Slowing Down the Sciences. p.</p><p>83-105.</p><p>6 N.T. Cf. Slow Science Academy, Berlim, Alemanha, 2010</p><p>(http://slow-science.org/). Publicado em Manifesto por uma Slow</p><p>Science. Ateliê de Humanidades, janeiro de 2018.</p><p>7 N.T. A tradução do termo snigger é ambigua por ser uma expressão</p><p>de uso informal na língua inglesa, remete a um riso de deboche, a</p><p>uma zombaria. Optamos por traduzir como riso, risinho ou mesmo</p><p>zombadores, de acordo com a construção do texto.</p><p>8 WHITEHEAD, A. N. Modes of Thought, New York: The Free Press,</p><p>1968, p. 171.</p><p>http://slow-science.org/</p><p>https://ateliedehumanidades.com/2019/01/15/manifesto-por-uma-slow-science/</p><p>https://ateliedehumanidades.com/2019/01/15/manifesto-por-uma-slow-science/</p><p>https://ateliedehumanidades.com/</p><p>7</p><p>Podemos rir, na verdade, porque é fácil demais des-</p><p>construir a ideia de que as universidades já tiveram essa</p><p>tarefa. Mas este é precisamente o significado da noção de</p><p>William James de uma opção genuína. Como observei an-</p><p>teriormente, a destruição da academia não é em si mesma</p><p>suficiente para criar essa opção. Aqueles acadêmicos que</p><p>apenas pedem tempo para pensar – que não nomeiam</p><p>quem os pressiona, preferem abordar a “sociedade” e pe-</p><p>dir proteção – não sentem que existe uma opção em abso-</p><p>luto. Eles apenas sonham com um passado onde eles, e o</p><p>chamado conhecimento desinteressado que eles produzi-</p><p>ram, eram respeitados. A opção de “nos expor a zomba-</p><p>dores" exige que aceitemos que nós, acadêmicos, somos,</p><p>entre muitos outros, convocados a nosso papel na criação</p><p>do futuro. Não podemos evitar esse apelo alegando que</p><p>não merecemos desempenhar esse papel.</p><p>Além disso, o que acho interessante na proposta apa-</p><p>rentemente inócua de Whitehead é que ela não associa o</p><p>futuro nem ao avanço do conhecimento nem ao pro-</p><p>gresso, mas sim à incerteza radical. Não sabemos o que</p><p>será o nosso futuro, nem sabemos se, ou em que medida,</p><p>o que ele chama de pensamento racional e modos civili-</p><p>zados de apreciação podem afetar o assunto. Mas é por</p><p>isso que sua proposta é relevante hoje, mais do que nunca.</p><p>Primeiramente, enfatizarei que, já em 1935, a pro-</p><p>posta de Whitehead era algo como um apelo. De fato, o</p><p>que o transformou do matemático que era para o filósofo</p><p>em que ele se tornou não pode ser desvinculado de seu</p><p>8</p><p>profundo sentimento de ansiedade sobre os efeitos do</p><p>que ele caracterizou como uma descoberta importante</p><p>que marcou o século XIX:</p><p>a descoberta do método de treinamento de profissionais,</p><p>que se especializam em determinadas regiões do pensa-</p><p>mento e, assim, progressivamente adicionam à soma do</p><p>conhecimento dentro de suas respectivas limitações de as-</p><p>sunto.9</p><p>Deixe-me esclarecer, desde o início, que o ponto não</p><p>é criticar a especialização ou a abstração. Whitehead era</p><p>um matemático e, para ele, você simplesmente “não pode</p><p>pensar sem abstrações”. Ele nunca teria criticado o modo</p><p>como as ciências abstraem o que importa para cada uma</p><p>delas de um mundo sempre emaranhado. No entanto,</p><p>para ele, a racionalidade não era a capacidade de abstra-</p><p>ção, mas sim a capacidade de ser vigilante sobre as abs-</p><p>trações de alguém, de não ser cegamente conduzido por</p><p>elas. Como devemos lembrar, uma boa artesã não sabe</p><p>apenas como usar suas ferramentas, e não olhará para</p><p>uma situação em termos das exigências da ferramenta es-</p><p>pecífica a que está acostumada. Em vez disso, ela julgará</p><p>a adequação da ferramenta para a situação. Para Whi-</p><p>tehead, é o mesmo com o exercício do pensamento – você</p><p>precisa estar atento aos seus modos de abstração. Essa vi-</p><p>9 WHITEHEAD, A. N. (1925) Science and the Modern World. New York:</p><p>The Free Press, 1968. p. 196.</p><p>9</p><p>gilância é precisamente o que falta entre aqueles que Whi-</p><p>tehead caracteriza como profissionais, com suas “mentes</p><p>em um ritmo”:</p><p>Cada profissão progride, mas é progresso em seu próprio</p><p>ritmo... O ritmo evita a dispersão pelo país, e a abstração</p><p>abstrai de algo para o qual nenhuma atenção adicional é</p><p>dada... Claro, ninguém é meramente um matemático ou</p><p>apenas um advogado. As pessoas têm vidas fora de suas</p><p>profissões ou seus negócios. Mas o ponto é a restrição do</p><p>pensamento sério dentro de um ritmo. O restante da vida</p><p>é tratado superficialmente, com as categorias imperfeitas</p><p>de pensamento derivadas de uma profissão.10</p><p>Como tal, os profissionais, pessoas fixadas com deve-</p><p>res fixados, não são novidade no mundo. No entanto,</p><p>continua Whitehead:</p><p>no passado, os profissionais formaram castas não progres-</p><p>sivas. A questão é que o profissionalismo agora está asso-</p><p>ciado ao progresso. O mundo agora se depara com um sis-</p><p>tema de auto-evolução, que não pode parar.11</p><p>Não se pode parar os relógios, como Pascal Lamy12</p><p>uma vez observou.</p><p>10 WHITEHEAD, A. N. (1925) Science and the Modern World. op. cit. p.</p><p>197.</p><p>11 ibid. p. 205.</p><p>12N. T. Pascal Lamy é um político francês e ex-Diretor-Geral da OMC.</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/Pascal_Lamy</p><p>10</p><p>Embora Whitehead não se oponha à especialização</p><p>dos profissionais, ele os caracteriza como “falta de equilí-</p><p>brio” [lacking balance]. Seu treinamento, enquanto negli-</p><p>gencia “fortalecer os hábitos de apreciação concreta dos</p><p>fatos individuais em sua interação plena de valores emer-</p><p>gentes”13, deixa-os presos ao poder de um conjunto parti-</p><p>cular de abstrações, promovendo um valor particular.</p><p>Prefiro a formulação da “falta de equilíbrio”, por sua afi-</p><p>nidade com a imagem do "sonâmbulo", que acompanhou</p><p>a invenção do método de formação de cientistas e profis-</p><p>sionais durante o século XIX, no momento em que estava</p><p>sendo inventada o que chamo de “fast science”. O apelo de</p><p>Whitehead a respeito da tarefa das universidades visava</p><p>também a um “abrandamento” da ciência14, que é a con-</p><p>dição necessária para pensar com abstrações em vez de</p><p>obedecê-las.</p><p>Volto agora para a invenção desse tipo de treina-</p><p>mento, que se tornou o modelo geral em nossas universi-</p><p>dades. É notavelmente ilustrado pela redefinição radical</p><p>de Justus von Liebig do que</p><p>é ser um químico.</p><p>13 WHITEHEAD, A. N. (1925) Science and the Modern World. op. cit. p.</p><p>198.</p><p>14 NT. Traduzimos aqui por “abrandamento” a ideia de “ralentisse-</p><p>ment” da ciência e do pensamento, que é defendida por Stengers em</p><p>várias partes de sua obra. Esta noção é aquela que fundamenta sua</p><p>reivindicação por uma slow science. Isso fica claro quando vemos que</p><p>se, na versão inglesa do livro do qual é extraído o presente texto, o</p><p>subtítulo é “a Manifesto for Slow Science”, na versão original lê-se: “ma-</p><p>nifeste pour un ralentissement des sciences”.</p><p>11</p><p>No verbete “química” da Enciclopédia de Diderot e</p><p>d'Alembert, o químico Gabriel François Venel caracteri-</p><p>zava a química como uma paixão “louca” [madman pas-</p><p>sion]. Demorou uma vida inteira, ele escreveu, para ad-</p><p>quirir o conhecimento prático e a capacidade de dominar</p><p>a grande variedade de operações químicas sutis, comple-</p><p>xas e muitas vezes perigosas pertencentes às muitas artes</p><p>ou ofícios da química, desde a dos perfumistas até a dos</p><p>metalúrgicos ou os farmacêuticos. No laboratório de Lie-</p><p>big, por outro lado, um estudante obteria seu doutorado</p><p>após quatro anos de treinamento intensivo. No entanto,</p><p>ele não aprenderia nada sobre esses muitos ofícios tradi-</p><p>cionais e suas operações. Ele usaria apenas reagentes pu-</p><p>rificados e bem identificados, e protocolos padronizados,</p><p>e aprenderia apenas os mais recentes métodos e técnicas</p><p>instrumentais. Liebig foi nomeado o 'criador químico', de-</p><p>vido às centenas de estudantes que foram treinados em</p><p>seu laboratório em Giessen entre 1824 e 1851. Muitos fun-</p><p>daram laboratórios universitários similares, enquanto ou-</p><p>tros desempenharam um papel crucial na criação do la-</p><p>boratório da nova indústria química. A invenção de Lie-</p><p>big daquilo que podemos chamar de “química rápida”</p><p>implicou um corte que dividiu não a química pura e apli-</p><p>cada, mas sim todo o continente de artesanato químico de</p><p>um lado e, de outro, a pesquisa acadêmica e a nova rede</p><p>de química industrial, os dois entretendo uma nova rela-</p><p>ção simbiótica, como cada um precisava e alimentava o</p><p>outro.</p><p>12</p><p>A simbiose, no entanto, é um equilíbrio que deve ser</p><p>mantido. É impressionante que Liebig, que desempenhou</p><p>um papel muito importante no desenvolvimento da quí-</p><p>mica industrial, também se tornou, desde 1863, um pro-</p><p>motor apaixonado da necessidade de pesquisa acadêmica</p><p>pura e autônoma. Ele é o pai do que hoje chamamos de</p><p>“modelo linear”, junto com o famoso argumento do</p><p>“ganso que colocou o ovo de ouro”: é de seu interesse que</p><p>a indústria mantenha distância da pesquisa acadêmica,</p><p>deixando a comunidade científica livre para determinar</p><p>suas próprias questões, porque somente os cientistas po-</p><p>dem dizer, a cada passo, quais questões serão frutíferas, o</p><p>que levará a um rápido desenvolvimento cumulativo e</p><p>que resultará apenas em alguma reunião empírica de fa-</p><p>tos que não levem a parte alguma. Para a indústria ditar</p><p>suas próprias questões, seria como matar o ganso e perder</p><p>os ovos.</p><p>Ouvimos múltiplas variáveis do mesmo argumento,</p><p>como um lema para o arranjo que muitos cientistas asso-</p><p>ciam à Idade de Ouro, quando a ciência foi reconhecida</p><p>como uma fonte gratuita de novidades que levariam à</p><p>inovação industrial, beneficiando em última análise toda</p><p>a humanidade. No entanto, alguns aspectos do argu-</p><p>mento raramente são desenvolvidos. O primeiro é a divi-</p><p>são, uma verdadeira divisão de classes, entre cientistas</p><p>que trabalham em território acadêmico protegido e aque-</p><p>les que, ao vender sua força de trabalho à indústria, geral-</p><p>mente têm negadas a autonomia e a liberdade de contri-</p><p>buir para o conhecimento público. O segundo é que o</p><p>13</p><p>ganso com a metáfora do ovo de ouro esconde um aspecto</p><p>importante do papel que o cientista treinado desempenha</p><p>agora como um profissional rápido da ciência.</p><p>A história oficial é que o ganso põe seus ovos e fica</p><p>feliz em saber que alguns deles ficaram dourados, em ter-</p><p>mos de desenvolvimento industrial. Ela espera que isso</p><p>acabe resultando em benefícios para a humanidade, po-</p><p>rém não pode ser responsabilizada por qualquer abuso.</p><p>Ela insiste que sua única lealdade é, e deve ser, para o</p><p>avanço do conhecimento e, assim, escreveu Whitehead,</p><p>ela tem o direito de tratar o restante “superficialmente,</p><p>com as categorias imperfeitas de pensamento derivadas</p><p>da [sua] profissão”. Isso corresponde à imagem da “torre</p><p>de marfim” da ciência acadêmica, e é reforçada pela outra</p><p>imagem atual da criatividade científica, a do sonâmbulo</p><p>caminhando em um cume estreito, sem medo ou verti-</p><p>gem, porque ele é cego para o perigo. Pedir aos cientistas</p><p>criativos que se preocupem ativamente com as conse-</p><p>quências de seu trabalho seria o equivalente a despertar</p><p>os sonâmbulos, conscientizando-os de que o mundo está</p><p>longe de obedecer às suas categorias. Atingidos pela dú-</p><p>vida, eles cairiam do cume para o pântano de opiniões</p><p>turvas. Isto é, eles estariam perdidos para a ciência. Essa</p><p>imagem da criatividade científica como, nos termos de</p><p>Whitehead, intrinsecamente sem equilíbrio, está profun-</p><p>damente enraizada na educação científica rápida. De um</p><p>modo ou de outro, explicitamente ou não, os cientistas</p><p>aprendem que as questões que dizem respeito ao mundo</p><p>14</p><p>mais amplo, o mundo onde os ovos de ouro farão a dife-</p><p>rença, devem ser globalmente definidas como “não-cien-</p><p>tíficas”, mesmo que tais questões sejam objeto de muito</p><p>trabalho científico em outros departamentos que lidam</p><p>com problemas culturais, sociais ou econômicos. O inte-</p><p>resse no mundo em que vivemos se torna uma forma de</p><p>tentação de que os pesquisadores que “foram eleitos”15</p><p>sejam capazes de resistir.</p><p>A fast science não se refere tanto a uma questão de ve-</p><p>locidade, mas ao imperativo de não desacelerar, de não</p><p>perder tempo, ou então…. Pode ser tentador associar a</p><p>esse "outro", que evoca a perspectiva de uma queda, com</p><p>as exigências nobres de uma vocação, que os cientistas</p><p>trairiam se não dedicassem toda a sua vida ao seu cum-</p><p>primento. No entanto, a forma como essa tão chamada</p><p>devoção é obtida e mantida, através de um treinamento</p><p>que canaliza atenção e ansiedade ao mesmo tempo que</p><p>restringe a imaginação, não tem nada de nobre nisso. O</p><p>que Whitehead chamou de “treinamento de profissio-</p><p>nais” refere-se, antes, ao tipo de anestesia induzida, ge-</p><p>rada por um exército mobilizado em movimento, onde o</p><p>imperativo é ir o mais rápido possível. Tal exército não</p><p>vagueia nem se surpreende. O imperativo significa que a</p><p>paisagem por onde ele passa não será de interesse algum,</p><p>apenas os obstáculos que ele tem para se movimentar.</p><p>15 N.T. O termo “The right stuff” é de difícil tradução, em relação ao</p><p>texto podemos remeter à obra de mesmo nome escrita por Tom</p><p>Wolfe, que foi traduzida como “os eleitos”.</p><p>15</p><p>Aqueles no exército que se queixam do dano que o seu</p><p>avanço causa (destruir colheitas, roubar mercadorias, es-</p><p>tuprar mulheres...) certamente não têm as coisas certas.</p><p>Essas coisas não devem retardar o avanço. Os soldados</p><p>devem esquecer seus apegos às suas próprias colheitas,</p><p>bens e esposas. Da mesma forma, os cientistas descartam</p><p>uma questão como “não científica”.</p><p>Deste ponto de vista, os biólogos que defendem os</p><p>OGMs [organismos geneticamente modificados], por</p><p>exemplo, podem se sentir justificados em afirmar ter en-</p><p>contrado uma solução racional para o problema de ali-</p><p>mentar os famintos, ignorando silenciosamente as causas</p><p>sociais e econômicas da fome no mundo. Eles apenas se</p><p>mostram como verdadeiros cientistas, ignorando tudo o</p><p>que poderia atrasá-los ou colocar obstáculos no caminho</p><p>do progresso possibilitado por seus ovos de ouro.</p><p>Mas este último exemplo é também suficiente para re-</p><p>velar o que a história oficial escondeu. Nunca houve uma</p><p>torre de marfim para o ganso com os ovos de ouro. A va-</p><p>lorização</p><p>de seu trabalho, o elo com aqueles capazes de</p><p>transformar seus ovos em ouro, sempre fez parte da ati-</p><p>vidade de cientistas acadêmicos, ainda que, como Pasteur</p><p>ou Marie Curie16, seu nome esteja associado à pesquisa</p><p>16N.T. Louis Pasteur foi um cientista francês, que fez importantes</p><p>contribuições para química e medicina; Marie Curie foi uma cientista</p><p>polonesa de naturalização francesa que conduziu pesquisas pioneiras</p><p>no ramo da radioatividade, sendo a primeira pessoa e única mulher</p><p>a ganhar o prêmio Nobel duas vezes.</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/Louis_Pasteur</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/Marie_Curie</p><p>16</p><p>desinteressada. O ganso é também um estrategista em-</p><p>preendedor. Ela está à procura daqueles que podem tirar</p><p>consequências douradas do que ela estabeleceu. O que ca-</p><p>racteriza a fast science não é isolamento, mas trabalhar em</p><p>um ambiente muito rarefeito, um ambiente dividido em</p><p>aliados que importam e aqueles que, sejam quais forem</p><p>suas preocupações e protestos, precisam reconhecer que</p><p>são os destinatários finais dos benefícios dourados e, por-</p><p>tanto, não devem perturbar o progresso da ciência. Já</p><p>quando fez o corte entre as artes e ofícios da química e a</p><p>química-em-atividade, Liebig eliminou também das pre-</p><p>ocupações sociais e práticas em que essas artes e ofícios</p><p>estavam incorporadas17 e às quais respondiam. Os únicos</p><p>verdadeiros interlocutores para os novos químicos acadê-</p><p>micos, os únicos que entendiam sua linguagem, eram</p><p>agora aqueles que habitavam o mundo industrializado,</p><p>também em formação.</p><p>E isso ainda corresponde ao equipamento intelectual</p><p>que o treinamento em fast science contemporânea fornece</p><p>aos cientistas. Eles irão facilmente dividir uma situação</p><p>em suas dimensões supostamente objetivas ou racionais e</p><p>o que seria simplesmente uma questão de complicações</p><p>17 Ao longo do texto, a autora utiliza um contraste entre dois tipos de</p><p>ciência, conhecimento e estratégias: embedded/desimbedded. Apesar do</p><p>termo ter uma tradução consolidada para o português, a partir da</p><p>obra de Karl Polanyi, para o contraste incrustrado/ desincrustrado,</p><p>optamos por traduzir como incorporado/ desincorporado, sentido</p><p>mais próximo do uso da autora.</p><p>17</p><p>contingentes e arbitrárias. E as dimensões que correspon-</p><p>dem às categorias da fast science são mais naturalmente</p><p>aquelas que são relevantes para o desenvolvimento in-</p><p>dustrial, já que ambas concordam em ignorar o mesmo</p><p>tipo de complicações. Nenhuma mobilização direta por</p><p>parte dos interesses industriais é necessária aqui; somente</p><p>esta relação simbiótica entre dois modos de abstração.</p><p>Mas hoje, até isso não é mais suficiente para os anti-</p><p>gos aliados da fast science. A economia do conhecimento</p><p>está agora destruindo a casa em que o ganso dos ovos es-</p><p>tava protegido. A relativa autonomia da pesquisa cientí-</p><p>fica, assegurada por Liebig e seus colegas, pertence ao</p><p>passado. Alguns podem ser tentados a afirmar que nunca</p><p>existiu, dada a íntima conexão entre a ciência acadêmica</p><p>acelerada e a indústria. Eu discordo, e afirmo que o que</p><p>está em processo de destruição é o próprio “tecido social”</p><p>da confiabilidade científica. No futuro, poderemos ver ci-</p><p>entistas trabalhando em todos os lugares, produzindo fa-</p><p>tos na velocidade que nossos novos instrumentos sofisti-</p><p>cados possibilitam; mas a forma como esses fatos serão</p><p>interpretados estará, em grande parte, de acordo com a</p><p>paisagem dos interesses investidos.</p><p>Como todos os cientistas que trabalham sabem, se</p><p>uma afirmação científica pode ser verdadeira como confi-</p><p>ável, não é porque os cientistas são objetivos, mas sim</p><p>porque a alegação foi exposta às exigentes objeções de co-</p><p>legas competentes, preocupados com sua confiabilidade.</p><p>E é essa preocupação compartilhada que pode muito bem</p><p>18</p><p>ser destruída se esses colegas forem ligados principal-</p><p>mente a interesses industriais, isto é, limitados pela neces-</p><p>sidade de manter as promessas que atraem seus parceiros</p><p>industriais.</p><p>A máxima que pode bem prevalecer, então, é que</p><p>você não corte o ramo em que está sentado junto com to-</p><p>dos os outros. Ninguém se oporá muito se as objeções à</p><p>fraqueza de uma reivindicação particular levarem a um</p><p>enfraquecimento geral das promessas de um campo. Vo-</p><p>zes dissidentes serão então desclassificadas como visões</p><p>de minorias que não precisam ser levadas em conta, pois</p><p>representam problemas desnecessários. O que aconte-</p><p>cerá, então, já tem um nome: a “economia prometida”, na</p><p>qual o que une os protagonistas não é mais um ovo cien-</p><p>tífico confiável que pode se tornar ouro para a indústria,</p><p>mas possibilidades cintilantes cuja força ninguém está in-</p><p>teressado em avaliar por mais tempo. Em outras palavras,</p><p>sob o disfarce da “economia do conhecimento”, a econo-</p><p>mia especulativa, a economia da bolha e do colapso, con-</p><p>seguiu recrutar a produção de conhecimento científico.</p><p>É por isso que podemos simpatizar com o sonho do</p><p>Manifesto da Slow Science de um retorno à Idade de Ouro,</p><p>quando a autonomia da pesquisa científica era respeitada.</p><p>Porém temos que lembrar que, embora a autonomia da</p><p>fast science possa ter protegido a confiabilidade das afir-</p><p>mações científicas, nunca garantiu a confiabilidade de um</p><p>modo de desenvolvimento que agora somos vergonhosa-</p><p>mente forçados a reconhecer como tendo sido, e ainda</p><p>19</p><p>sendo, radicalmente insustentável. Isto não é de forma al-</p><p>guma um acidente. A confiabilidade dos resultados da</p><p>fast science é relativa a experimentos de laboratório purifi-</p><p>cados e bem controlados. E as objeções competentes são</p><p>competentes apenas em relação a tais ambientes controla-</p><p>dos. O que significa que a confiabilidade científica está si-</p><p>tuada, ligada às restrições de sua produção. O que signi-</p><p>fica também que, quando os ovos deixam seu ambiente</p><p>nativo e se tornam dourados, eles terão deixado para trás</p><p>essa confiabilidade e robustez específicas. A pergunta so-</p><p>bre qual é a confiabilidade que eles têm agora não é mais</p><p>apenas uma questão de julgamento científico, mas sim</p><p>uma questão social e política.</p><p>Por exemplo, os aviões são seguros o suficiente por</p><p>causa da existência de um consenso sobre a necessidade</p><p>de evitar colisões a todo custo. Em contraste, a preocupa-</p><p>ção com a sustentabilidade de nosso modo de desenvol-</p><p>vimento, que está longe de ser nova, até recentemente foi</p><p>tudo, menos consensual. As pessoas que se opunham a</p><p>essas razões nem sequer foram ouvidas, mas foram ataca-</p><p>das e ridicularizadas como se elas quisessem nos mandar</p><p>de volta para a caverna! Não há dúvida de que o serviço</p><p>prestado foi pago ao fato de que algumas inovações po-</p><p>dem ter consequências indesejadas, mas, acrescentou-se,</p><p>o progresso tecnocientífico está fadado a encontrar uma</p><p>maneira de consertar o dano. Duvidar disso é duvidar do</p><p>progresso! E, como sabemos, essa dúvida é blasfêmia.</p><p>Aqui, podemos reconhecer um eco do ponto de vista de</p><p>Whitehead sobre o pensamento profissional ser preso em</p><p>20</p><p>um ritmo, enquanto que o restante da vida é tratado su-</p><p>perficialmente. E a resposta de vários cientistas é muito</p><p>superficial quando afirmam que não têm culpa pela sus-</p><p>tentabilidade não ser uma preocupação pública, pois eles</p><p>não poderiam ser responsabilizados pela maneira como a</p><p>“sociedade” decide usar o que eles produzem. Essa é a</p><p>resposta típica do ganso. Como de costume, ignora o fato</p><p>de que o alegado uso irresponsável de seus produtos</p><p>nunca impediu cientistas acadêmicos de associar o pro-</p><p>gresso científico ao progresso social; de juntar-se aos in-</p><p>sultos "de volta à caverna"; de apresentar sua ciência</p><p>como oferecendo, enfim, soluções racionais para proble-</p><p>mas de interesse geral; ou de formular objeções em ter-</p><p>mos de uma simples oposição entre ciência e valor – como</p><p>se todos os aspectos de uma situação concreta com a qual</p><p>eles não estivessem preparados pudessem ser</p><p>reduzidos</p><p>a uma questão de valor! Para colocar de forma educada,</p><p>não temos memória de um clamor coletivo de cientistas</p><p>escandalizados, denunciando publicamente um de seus</p><p>colegas por se entregar a tais pretextos.</p><p>Mas a slow science não é – enfaticamente não – sobre o</p><p>ganso se tornar uma inteligência onisciente, capaz de vi-</p><p>sualizar as consequências das inovações que sua ciência</p><p>torna possível. Pelo contrário, coincide com a definição,</p><p>aparentemente modesta, dada por Whitehead a respeito</p><p>do que as universidades deveriam promover: o pensa-</p><p>mento racional e os modos civilizados de apreciação. Pen-</p><p>samento racional significaria estar ativamente lúcido so-</p><p>21</p><p>bre o que é realmente conhecido, evitando qualquer con-</p><p>fusão entre as questões que podem ser respondidas em</p><p>um ambiente purificado ou restrito e aquelas que inevita-</p><p>velmente surgirão no ambiente mais amplo e confuso.</p><p>Um modo de apreciação civilizado implicaria nunca iden-</p><p>tificar o que é bem controlado e limpo com alguma ver-</p><p>dade que transcende a confusão. O que é confuso do</p><p>ponto de vista da fast science nada mais é do que a intera-</p><p>ção irredutível e sempre incorporada de processos, práti-</p><p>cas, experiências e formas de conhecer e valorizar que</p><p>compõem o nosso mundo comum.</p><p>Esse pode ser o desafio que a slow science deve respon-</p><p>der, permitindo aos cientistas aceitar que o que é confuso</p><p>não é defeituoso, mas sim aquilo que temos simplesmente</p><p>de aprender a viver e a pensar. A simbiose entre fast sci-</p><p>ence e indústria tem privilegiado o conhecimento desin-</p><p>corporado; e as estratégias de desincorporamento tem</p><p>sido abstraídas das complicações confusas deste mundo.</p><p>Porém, ao ignorar a confusão e sonhar com sua erradica-</p><p>ção, descobrimos que confundimos o mundo. Então, eu</p><p>caracterizaria a slow science como a operação exigente que</p><p>reativa18 a arte de lidar com o que os cientistas muitas ve-</p><p>zes consideram confuso, ou seja, de lidar com o que es-</p><p>capa das categorias gerais, chamadas de objetivas.</p><p>18 N.T. A respeito do verbo reclaim e seus derivados reclaiming/reclai-</p><p>med, optamos pela mesma tradução que foi utilizada no texto STEN-</p><p>GERS, Isabelle. Reativar o animismo. In. Caderno de Leituras, n.62,</p><p>22</p><p>O termo “reativar”, como usado por ativistas dos</p><p>EUA, refere-se a operações de cura que reapropriariam</p><p>aquilo do qual nos separamos, recuperando [recovering]</p><p>ou reinventando o que essa separação destruiu. Reativar</p><p>sempre começa aceitando que estamos doentes em vez de</p><p>culpados, e entendendo como nosso ambiente nos deixa</p><p>doentes. A partir dessa perspectiva, poderíamos conside-</p><p>rar a maneira pela qual nossas universidades, tão orgu-</p><p>lhosas de sua autonomia, têm aceitado em nome do mer-</p><p>cado o imperativo da competição e da avaliação do bench-</p><p>marking. Da mesma forma, [poderíamos considerar] a ma-</p><p>neira pela qual os pesquisadores aceitaram sem muita re-</p><p>sistência a redefinição da pesquisa pela economia do co-</p><p>nhecimento. Quaisquer que sejam as explicações que pos-</p><p>samos oferecer, todas elas atestam a profunda vulnerabi-</p><p>lidade daquilo do qual uma vez nos orgulhamos tanto –</p><p>o arranjo que promoveu a fast science, a ciência desincor-</p><p>porada, como modelo para a pesquisa científica, deixou-</p><p>nos doentes demais para defendê-la. Jogando o ganso, os</p><p>pesquisadores aceitaram um papel que os obrigava a ig-</p><p>norar o fato de que conquistar, destruir e objetivar cega-</p><p>mente nunca teve a necessidade de conhecimento confiá-</p><p>vel. Agora, no entanto, eles entendem que a competição é</p><p>2017 (ver: nota 2, p. 8 do texto). Como explicitado pela tradutora Ja-</p><p>mille Pinheiro Dias, podemos compreender o verbo reclaim em ao</p><p>menos três sentidos: como reativar, recuperar ou reclamar. Optare-</p><p>mos por um ou outro sentido conforme o emprego. Nas únicas ocor-</p><p>rências em que houver recuperar/recuperando/recuperado sem ser</p><p>tradução de reclaim/reclaiming/reclaimed, indicaremos qual é o termo</p><p>do qual se trata colocando-o entre colchetes.</p><p>23</p><p>geralmente indiferente a conquistas, tais como a produ-</p><p>ção coletiva de conhecimento confiável; o que se requer,</p><p>em vez disso, é a “flexibilidade”: isto é, cientistas que</p><p>aceitem que o conhecimento produzido por eles só é bom</p><p>o suficiente desde que leve a patentes e satisfaça às partes</p><p>interessadas.</p><p>Pode ser que, se tivéssemos que contar o conto de</p><p>como cientistas e acadêmicos foram incapazes de defen-</p><p>der as condições que lhes permitem existir, teríamos que</p><p>relatar como eles foram finalmente vítimas da mentira</p><p>que os tornou modernos, permitindo-lhes reivindicar</p><p>uma autoridade geral, ao passo que a especificidade de</p><p>sua prática recuou em segundo plano. As operações de</p><p>reativação nunca são fáceis. Se recuperar a pesquisa cien-</p><p>tífica significa reincorporar as ciências em um mundo</p><p>confuso, não é apenas uma questão de aceitar esse mundo</p><p>como tal, mas de apreciá-lo positivamente, de aprender</p><p>como cultivar e fortalecer, nas palavras de Whitehead, “os</p><p>hábitos de valorização concreta dos fatos individuais em</p><p>sua plena interação de valores emergentes”.19 Isso, como</p><p>já enfatizei, não implica evitar a especialização e a abstra-</p><p>ção, que têm um óbvio valor próprio. Mas a apreciação</p><p>concreta não significa apenas abster-se de tratar como um</p><p>mero remanescente, independentemente do que nossas</p><p>abstrações foram abstraídas, ou de abster-se de julgá-las.</p><p>Precisamos aprender também como situar ativamente</p><p>19 WHITEHEAD, A. N. (1925) Science and the Modern World. op. cit. p.</p><p>246.</p><p>24</p><p>nossas abstrações no que Whitehead chama de “interação</p><p>de valores emergentes”. Reativar nunca é apenas uma</p><p>questão de boa vontade, do beijo da paz transformando o</p><p>sapo decepcionante em um príncipe simpático, educado</p><p>e construtivo. O aprendizado é necessário para se interes-</p><p>sar pelo próprio sapo, isto é, pela confusão em que todos,</p><p>incluindo os cientistas, são participantes.</p><p>Aqui, novamente, tocamos no conhecimento radical-</p><p>mente assimétrico desenvolvido sob o modelo da fast sci-</p><p>ence. Sabemos muito sobre o desenvolvimento de materi-</p><p>ais (e sobre as tão chamadas tecnologias imateriais), mas</p><p>quando se trata de técnicas muito mais antigas – o tipo de</p><p>técnica necessária no momento em que as pessoas estão</p><p>divididas sobre um assunto e têm que aprender umas</p><p>com as outras através de seus desacordos –, não somos</p><p>muito bons em tudo, pois perdemos aquilo que uma vez</p><p>conhecemos, isso que outros povos chamariam de “civili-</p><p>zação”. Basta pensar na tecnologia presente no Power-</p><p>Point, que está se tornando um imperativo de comunica-</p><p>ção, vendo o modo como permite que alguém faça uma</p><p>observação de maneira marcante, autoritária e esquema-</p><p>tizada. Em “balas”, nada menos do que isso (apenas ouça</p><p>essa palavra...). Pense também no tédio ao qual todos es-</p><p>tão acostumados quando, silenciosa e pacientemente,</p><p>meio que ouvimos um querido colega falando por uma</p><p>hora. Temos nossos departamentos de psicologia, psico-</p><p>logia social, pedagogia e assim por diante, mas não apren-</p><p>demos nem mesmo uma fração do que os ativistas que</p><p>estão envolvidos em operações de recuperação precisam</p><p>25</p><p>aprender quando querem trabalhar em conjunto com os</p><p>outros sem afirmar sua autoridade. De fato, eles aprende-</p><p>ram a considerar cada encontro como o que, segundo</p><p>Whitehead, eu chamaria de “fato individual”, ou seja,</p><p>como sendo dependente da interação de valores emer-</p><p>gentes; valores que podem surgir apenas porque os parti-</p><p>cipantes aprenderam como permitir que se torne impor-</p><p>tante a questão que está presente no coração de seu en-</p><p>contro com o poder, o poder de conectar todos os presen-</p><p>tes.</p><p>Produzir conhecimento sobre tais fatos individuais,</p><p>sem dúvida, exige uma abordagem que não esteja de</p><p>acordo com o modelo da fast science. Momentos em que os</p><p>valores emergem não podem ser desincorporados</p><p>e sub-</p><p>metidos a categorias gerais; por exemplo, o momento em</p><p>que alguém se sente transformado por ter entendido a</p><p>perspectiva de outra pessoa; ou o encontro que descobre</p><p>o poder transformador de seus participantes pensando</p><p>juntos; ou a experiência de que algo que até agora parecia</p><p>insignificante pode de fato importar. Tais momentos fo-</p><p>ram tratados superficialmente, com categorias inadequa-</p><p>das derivadas do imperativo da reprodutibilidade. Eles</p><p>têm sido julgados impróprios para o conhecimento, ou</p><p>pior, relegados ao irracional e, portanto, considerados in-</p><p>dignos de nossa atenção. Mas pode ser que a abordagem</p><p>da qual eles precisam seja apenas um pouco diferente,</p><p>que o que precisamos aprender não é como defini-los,</p><p>mas sim como cultivá-los. Precisamos descobrir o que os</p><p>apoia e sustenta, e o que os frustra ou envenena: ganhar</p><p>26</p><p>algo como o conhecimento lento do jardineiro, em oposi-</p><p>ção ao rápido conhecimento da agricultura industrial “ra-</p><p>cionalizada”. A esse respeito, o tipo de conhecimento pro-</p><p>duzido em nossas universidades é, de fato, radicalmente</p><p>desprovido de equilíbrio, e todos nós estamos pagando o</p><p>preço por isso.</p><p>Novamente, reativar significa, antes de mais nada, re-</p><p>conhecer que estamos doentes e precisamos nos curar. A</p><p>slow science não fornece uma resposta pronta; não é uma</p><p>pílula. É o nome para um movimento no qual podem se</p><p>juntar muitos caminhos rumo à recuperação [to recovery].</p><p>Quanto a nós acadêmicos, que tal introduzir reuniões len-</p><p>tas, isto é, reuniões organizadas de tal maneira que a par-</p><p>ticipação não seja apenas formal? Que tal conversas len-</p><p>tas, não apenas convidando pessoas que alguém real-</p><p>mente deseja ouvir, mas também lendo e discutindo de</p><p>antemão, para que a reunião não seja reduzida ao ritual</p><p>de assistir a uma palestra preparada que termina com al-</p><p>gumas perguntas banais? Que tal exigir que, quando os</p><p>colegas falam ou escrevem sobre questões que estão além</p><p>de sua área de especialização, eles apresentem as infor-</p><p>mações, o aprendizado e as colaborações que lhes permi-</p><p>tiram fazê-lo? Que tal assegurar, quando é necessária es-</p><p>pecialização numa questão de interesse comum, que os</p><p>co-especialistas estejam presentes e sejam capazes de re-</p><p>presentar eficazmente as muitas dimensões relevantes</p><p>para a questão? Do ponto de vista dos cientistas rápidos,</p><p>todas essas propostas têm um defeito comum. Todos eles</p><p>envolvem perder tempo, ou pior, romper com a relação</p><p>27</p><p>simbiótica que liga o “verdadeiro progresso” à inovação</p><p>industrial.</p><p>Estas são apenas sugestões, e devo admitir que passei</p><p>muito mais tempo falando sobre a fast science do que sobre</p><p>o que seria a slow science. Acompanhando aqueles que</p><p>hoje insistem que “outra ciência é possível”, meu traba-</p><p>lho, como filósofa, é tentar ativar a imaginação, que en-</p><p>volve ir além da questão da atual mobilização da pesquisa</p><p>tão chamada “economia do conhecimento” para exami-</p><p>nar as consequências da mobilização mais antiga. A po-</p><p>derosa apreensão dessas consequências em nossos recur-</p><p>sos imaginativos tem que ser desafiada.</p><p>Tentei confrontar o que tem sido chamado de “auto-</p><p>nomia”, vendo isso como um presente venenoso. O nome</p><p>do veneno é progresso, mobilização para o avanço do co-</p><p>nhecimento como um fim em si mesmo, e sua consequên-</p><p>cia é o extraordinário contraste entre, de um lado, a coo-</p><p>peração imaginativa e exigente entre colegas para quem a</p><p>confiabilidade é o valor primordial e, de outro, a maneira</p><p>fácil e arrogante pela qual esses mesmos colegas descar-</p><p>tam ou ignoram o mundo, que é reduzido a um campo de</p><p>operação para o progresso racional.</p><p>A mobilização desafiadora – que é o que separa os ci-</p><p>entistas de seu poder de pensar, imaginar e conectar, de-</p><p>finindo qualquer coisa que a atrapalhe como sendo neces-</p><p>sariamente secundária, pois o que seria desacelerado é</p><p>progresso – implica repensar e reinventar instituições ci-</p><p>28</p><p>entíficas. Mas quero abordar agora a questão de outro ân-</p><p>gulo, sem me antecipar a essa reinvenção, que não é mi-</p><p>nha tarefa como filósofa, mas sim ativando outra imagi-</p><p>nação complementar, que diz respeito àqueles campos</p><p>acadêmicos sem quaisquer ovos de ouro, a saber, as hu-</p><p>manidades.</p><p>De fato, ouvi dizer com certa frequência que o que</p><p>falta aos cientistas dos ovos de ouro é a reflexividade, es-</p><p>pecificamente a reflexividade crítica cultivada pelas hu-</p><p>manidades. Eu até ouvi dizer que, se as humanidades es-</p><p>tão hoje drasticamente sub-financiadas, é porque essa re-</p><p>flexividade crítica deve ser mantida à distância, uma vez</p><p>que representa uma ameaça à mobilização. Minha alega-</p><p>ção, no entanto, é que essa reflexividade pode também ter</p><p>de ser recuperada como parte do problema, e não da so-</p><p>lução, ao menos na medida em que isso também se define</p><p>como algo que falta a “outros”, garantindo assim às hu-</p><p>manidades o autoproclamado ponto de vista privilegi-</p><p>ado: eles acreditam, mas sabemos melhor; e melhor e me-</p><p>lhor a cada nova virada teórica.</p><p>Minha posição não deve ser confundida com “acrí-</p><p>tica”.20 Mas pretendo, certamente, dar voz à minha pro-</p><p>funda frustração com a relação quase constitutiva entre</p><p>reflexividade crítica e suspeita, em que desmascarar ou</p><p>20 Em “Experimenting with Refrains: Subjectivity and the Challenge</p><p>of Escaping Modern Dualism”, Subjectivity, 22 (2008). p. 38–59, pro-</p><p>pus uma distinção entre crítica e discriminação, duas palavras com a</p><p>mesma raiz etimológica.</p><p>29</p><p>desconstruir aparecem como realizações em si mesmas.</p><p>Isso fala para mim de uma mobilização de sua própria es-</p><p>pécie, implicando que uma distância deve ser mantida em</p><p>relação ao que os outros apresentam como realmente im-</p><p>portante para eles.</p><p>Whitehead, como citei acima, definiu a tarefa da uni-</p><p>versidade como a criação do futuro, na medida em que o</p><p>pensamento racional e os modos civilizados de aprecia-</p><p>ção podem afetar a questão. A reflexividade crítica, para</p><p>resumir, não me parece estar envolvida com a questão de</p><p>como suas próprias intervenções são passíveis de “afetar</p><p>a questão”. Na verdade, parece ser muitas vezes uma ten-</p><p>tativa de obrigar os outros – por exemplo, aqueles que le-</p><p>vantam questões relativas à criação de um futuro que vale</p><p>a pena viver – a reconhecer que eles estão uma ou muitas</p><p>viradas teóricas atrasados demais. Não é a luta de Van-</p><p>dana Shiva21 contra o patenteamento ou a industrializa-</p><p>ção da vida, ignorando a virada antiessencialista? No en-</p><p>tanto, observei que hoje em dia a assustadora questão da</p><p>mudança climática se tornou um tópico popular para os</p><p>pensadores críticos, sob o tema do “Antropoceno”. Mui-</p><p>tas viradas teóricas rivais estão em gestação, caçando no-</p><p>vos bodes expiatórios, incluindo quaisquer colegas que</p><p>possam estar associados ao “antropocentrismo” por te-</p><p>rem ignorado o desafio teórico de lidar com a nossa espé-</p><p>cie como uma “força geológica”. Pode ser bem que tais</p><p>21 N.T. Vandana Shiva é uma estudiosa indiana, física, ecofeminista</p><p>e ativista ambiental e anti-globalização.</p><p>https://pt.wikipedia.org/wiki/Vandana_Shiva</p><p>30</p><p>pensadores críticos considerem as lutas ambientais, polí-</p><p>ticas e sociais de muitos ativistas como irremediavel-</p><p>mente “antropocêntricas”.</p><p>Recuperar o pensamento racional em relação à mobi-</p><p>lização, e recuperar os modos civilizados de apreciação</p><p>em relação à sua tentação de contrastar a si mesmos com</p><p>os outros que necessitam de esclarecimento (qualquer luz</p><p>que um campo acadêmico alega prover), claramente não</p><p>é suficiente. Também temos que recuperar o desconhe-</p><p>cido que figura na definição de Whitehead: “na medida</p><p>em que [o que assim reativamos] pode afetar a questão”,</p><p>isto é, pode afetar outras lutas que visam a criação de um</p><p>futuro digno de ser vivido. Isso, eu argumentaria, não é</p><p>uma questão de reflexividade. Em vez disso, ela exige o</p><p>que eu chamaria de uma “ecologia de conexões</p><p>parciais”,</p><p>que requer aprender com os outros, ser transformado</p><p>pelo que é aprendido e reconhecer nossa dívida para com</p><p>essa experiência transformadora enquanto exploramos</p><p>seus impactos problematizantes em nossos próprios ter-</p><p>mos.</p><p>Fazer conexões parciais significa antes de tudo aceitar</p><p>estar situado. As operações de recuperação, sejam elas re-</p><p>alizadas por ativistas, acadêmicos, camponeses indianos,</p><p>feministas ou outros, são sempre particulares e parciais,</p><p>porque estão sempre situadas, começando exatamente no</p><p>ponto em que fomos humilhados, isto é, separados de</p><p>nosso poder para pensar, sentir, imaginar e agir. E esta é</p><p>a principal razão pela qual os participantes precisam uns</p><p>31</p><p>dos outros e podem se conectar uns com os outros; ou me-</p><p>lhor, precisam aprender como se conectar uns com os ou-</p><p>tros para aprender e tirar novas consequências da experi-</p><p>ência um do outro.</p><p>É por isso que, citando os Mil Platôs de Deleuze &</p><p>Guattari, eu diria que as operações de reativação nos fa-</p><p>lam de “um povo ambulante de retransmissão, em vez de</p><p>uma sociedade modelo”.22 Referindo a William James, eu</p><p>diria que sua lógica é a de fazer um pluriverso, ou, nos</p><p>termos de Mario Blaser23, [é a lógica da] tecelagem do que</p><p>sempre será mais do que um, mas menos do que muitos.</p><p>O teste, aqui, poderia muito bem existir se pudermos</p><p>recuperar, para aquelas ideias que nos fazem sentir e pen-</p><p>sar, a capacidade de “adicionar” algo à realidade, ao invés</p><p>de considerar ideias e conhecimento em termos de ver-</p><p>dade, explicação ou objetividade. Retransmitir nunca é</p><p>“refletir sobre”, mas sempre “adicionar”, e assim comu-</p><p>nicar com o que William James definiu como a “ótima</p><p>questão” associada a um pluriverso em formação: o que</p><p>fez com o que nós transmitimos “com nossas adições,</p><p>22 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. A Thousand Plateaus, trans.</p><p>Brian Massumi, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987, p.</p><p>377.</p><p>23 Mario Blaser é associate Professor Tier II Canada Research Chair</p><p>in Aboriginal Studies. Academics. Ph.D. McMaster University, 2003</p><p>32</p><p>suba ou desça de valor? As adições são dignas ou indig-</p><p>nas?”.24</p><p>A transmissão é apenas um exemplo. Indo além</p><p>disso, estou convencida de que reativar, para nós acadê-</p><p>micos, exige que nós aprendamos coletivamente como</p><p>pensar, a partir da pergunta do James: o que nossas ideias</p><p>acrescentam ao que elas intervêm (ou presidem)? Longe</p><p>de lutar para manter nossos antigos privilégios, devemos</p><p>nos atrever a pensar na possibilidade de podermos fazer</p><p>valiosos acréscimos à tecelagem de situações que nos ca-</p><p>pacitarão a resistir à barbárie vindoura. E esta pode muito</p><p>bem ser a versão mais exigente do que chamei, com Ja-</p><p>mes, uma “opção genuína”, o desafio de consentir ou fu-</p><p>gir. Eu descrevi a definição de Whitehead da tarefa da</p><p>universidade como sendo exposta à zombaria. Aqui, te-</p><p>mos que encarar e sentir o risinho dentro de nós, a voz</p><p>triste que sussurra: ”quem vocês pensam que são?”. E</p><p>essa é uma voz que facilmente assume o tom da reflexivi-</p><p>dade crítica.</p><p>A pergunta de James é um teste; e consentir com isso</p><p>significa antes de tudo levar a questão a sério, sabendo</p><p>que nenhuma teoria ditará ou autenticará a resposta, e</p><p>que não é tarefa de ninguém fazê-la. O valor de aquisição,</p><p>ou mesmo a possibilidade de atribuir qualquer valor à</p><p>aquisição como tal, não é, contudo, uma questão de fé</p><p>24 JAMES, William. (1907) Pragmatism: A New Name for Some Old Ways</p><p>of Thinking. New York: Longman Green and Co. p. 98.</p><p>33</p><p>cega. E a questão não é silenciar a voz crítica com algum</p><p>retumbante obamiano: “Sim, nós podemos!”.25 Consentir</p><p>ao teste significa antes de tudo medir o quanto temos que</p><p>aprender para escapar dessa alternativa infernal: ou sen-</p><p>tindo-se autorizado ou confiando na fé cega.</p><p>Ativistas podem realmente nos ajudar. Estou pen-</p><p>sando aqui, por exemplo, nas operações de reativação de</p><p>ativistas neopagãos e nos rituais que eles experimentam</p><p>para se tornarem capazes de fazer o que chamam de “obra</p><p>da deusa”. Mas podemos pensar também nos rituais dos</p><p>Quakers. Os Quakers não se abalaram diante de seu Deus,</p><p>mas sim antes do perigo de silenciar a experiência que re-</p><p>velaria o que lhes estava sendo pedido em uma situação</p><p>particular, antes do perigo de responder à essa situação</p><p>em termos de crenças e convicções predeterminadas. O</p><p>ponto crucial em ambos os casos não é, parece-me, a</p><p>crença em alguma inspiração sobrenatural a que pode-</p><p>mos nos sentir livres para rir. O ponto é a eficácia do ri-</p><p>tual, um aspecto estético, reforçando o que Whitehead</p><p>chamou de “apreciação concreta dos fatos individuais em</p><p>sua interação plena com valores emergentes”; ou a valo-</p><p>rização dessa situação, sempre concreta, acompanhada</p><p>do halo do que poderia se tornar possível.</p><p>25 N.T.: com a expressão “obamiano”, a autora alude ao ex-Presidente</p><p>dos EUA Barack Obama e seu slogan de campanha presidencial.</p><p>34</p><p>Podemos entender essa eficácia em termos do que De-</p><p>leuze e Guattari chamaram de “agenciamento” [agence-</p><p>ment]26, lembrando que, para eles, a maneira de pensar e</p><p>sentir nossa existência é nossa própria participação em</p><p>agenciamentos. O canto ritual das bruxas em reativação –</p><p>“Ela muda tudo o que ela toca, e tudo o que Ela toca</p><p>muda” – poderia ser, certamente, comentado em termos</p><p>de agenciamentos criados artesanalmente para resistir à</p><p>atribuição desmembradora da agência. A mudança per-</p><p>tenceu à deusa como “agente” ou àquela que muda</p><p>quando tocada? Mas a primeira eficácia do refrão está no</p><p>“Ela toca”. Resistir ao desmembramento não é conceitual.</p><p>É parte de uma experiência que afirma que o poder de</p><p>mudar NÃO deve ser atribuído a nós mesmos, nem ser</p><p>reduzido a algo “natural” ou “cultural”. Faz parte de uma</p><p>experiência que honra a mudança como criação. Além</p><p>disso, o ponto não é comentar. O refrão deve ser cantado;</p><p>é parte e parcela da prática da adoração.</p><p>O ponto, portanto, não é teorizar os agenciamentos,</p><p>mas sim aceitar que nós mesmos fazemos parte dos agen-</p><p>ciamentos acadêmicos que nos induzem e nos permitem</p><p>comentar e dissecar criticamente. Levar a sério a pergunta</p><p>de William James pode muito bem exigir que aprenda-</p><p>mos a viver sem a proteção desses agenciamentos e a criar</p><p>artesanalmente outros diferentes: atraindo agenciamen-</p><p>tos, atraindo-nos para o que Whitehead chamou de “apre-</p><p>ciação concreta”. Como um ato de desafio, pode ser que</p><p>26 NT: O termo assemblage</p><p>35</p><p>devamos, ao falar da eficácia de tais agenciamentos, ousar</p><p>usar a palavra que as próprias bruxas reativadoras usam:</p><p>magia [magic].</p><p>Mas nós, que não somos bruxas, não precisamos imi-</p><p>tar seu ofício. O que eles exploram não é uma via rápida</p><p>a ser entusiasticamente apressada, como mais um desses</p><p>famosos turnos acadêmicos. Qualquer que seja o modo</p><p>como podemos reivindicar a capacidade de honrar a mu-</p><p>dança, ela deve resistir à pressão de dentro da academia:</p><p>a de nossos queridos colegas que objetarão que não esta-</p><p>mos sendo suficientemente objetivos ou críticos, ou de pe-</p><p>riódicos que insistem na necessidade de respeitar suas</p><p>normas, a necessidade de começar expondo “Materiais e</p><p>Métodos” (ou a Revisão da Literatura!). Assim, eu reivin-</p><p>dicaria que, se nós, acadêmicos, desejamos recuperar nos-</p><p>sas práticas como dignas, precisamos também nos tornar</p><p>ativistas reivindicadores à nossa própria maneira, inven-</p><p>tando nossas próprias maneiras de responder à barbárie</p><p>que ganha terreno toda vez que nos curvamos diante da</p><p>necessidade, incluindo a necessidade de aceitar as regras</p><p>do jogo ou de ser excluído dele.</p><p>Mais uma vez, reconhecer que estamos infectados e</p><p>que podemos estar espalhando a infecção não é uma</p><p>questão de culpa a ser expiada, mas sim de aprender</p><p>como criar meios</p><p>de proteção. Temos que aprender, tal</p><p>como fizeram as bruxas, como fazer círculos que nos pro-</p><p>tejam de nosso meio insalubre e infeccioso, sem nos isolar</p><p>36</p><p>do trabalho a ser feito, das situações concretas que preci-</p><p>sam ser enfrentadas. Nossa preocupação pragmática e</p><p>empírica exigiria então cultivar, junto com aqueles em</p><p>quem confiamos, uma arte informada de deslealdade, a</p><p>arte de desmantelar discretamente hábitos acadêmicos,</p><p>de confundir o olhar dos inquisidores, de formas regene-</p><p>radoras de honrar o que nos faz pensar e sentir e imagi-</p><p>nar. Como enfatizei, cada operação de reativação é parti-</p><p>cular. Ou seja, cada um tem que inventar seus próprios</p><p>meios, criar seus próprios interstícios, seus próprios</p><p>meios de se proteger e fazer os outros sentirem que a re-</p><p>sistência é possível. Isso pode ser o que devemos inventar</p><p>com colegas de confiança e ensinar aos nossos alunos ou</p><p>aos alunos em quem confiamos. É também, a propósito,</p><p>que movimentos de resistência no terreno aprenderam a</p><p>fazer durante a Segunda Guerra Mundial na Europa. Isso,</p><p>no mínimo, é o tipo de conto que poderíamos contar às</p><p>crianças nascidas neste século, quando perguntam: “Você</p><p>sabia o que você fez?”.</p>

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