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Prévia do material em texto

<p>Educação intercultural:</p><p>mediações necessárias</p><p>Reinaldo Matías Fleuri (org.)</p><p>Revisão de provas</p><p>Daniel Seidl</p><p>Projeto gráfico e diagramação</p><p>Carolina Falcão</p><p>Gerência de produção e capa</p><p>Maria Gabriela Delgado</p><p>Ilustração de capa</p><p>Cândida H. Andrade e Silva</p><p>CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte</p><p>Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ</p><p>Educação intercultural. Mediações necessárias/Reinaldo</p><p>Matías Fleuri (org.) - DP&A, 2003.</p><p>158p., 14 X 21 cm</p><p>Inclui bibliografia</p><p>ISBN 85-7490-229-2</p><p>1. Educação. 2. Multiculturalismo. I. Fleuri, Reinaldo Matías.</p><p>I. Título.</p><p>Reinaldo Matias Fleuri (org.)</p><p>Educação intercuStural</p><p>mediações necessárias</p><p>Gilberto Ferreira da Silva</p><p>Maria Isabel Orofino</p><p>Maria Izabel Porto de Souza</p><p>Maurício José Siewerdt</p><p>Nadir Esperança Azibeiro</p><p>DP&A</p><p>.</p><p>Maria Izabel Porto de Souza é mestre em Educação (UFSC) e</p><p>coordenadora pedagógica do Projeto Oficinas do Saber pela</p><p>ONG Centro de Educação Popular (Cedep), Florianópolis (SC).</p><p>E-mail: .</p><p>Gilberto Ferreira da Silva é doutor em Educação (UFRGS),</p><p>professor do Unilasalle/Canoas e assessor da área de Educação</p><p>da Universidade do Estado do Rio Grande do Sul (UERGS).</p><p>E-mail: .</p><p>Nadir Esperança Azibeiro é mestre e doutoranda em Educação</p><p>(UFSC). É docente do Centro de Ciências da Educação Faed/</p><p>Udesc e coordena o Projeto Entrelaços do Saber - Educação Popular</p><p>nas Periferias. E-mail: .</p><p>Maria Isabel Orofino é mestre em Educação (UFSC) e doutora</p><p>em Ciências da Comunicação (USP). É professora no Programa</p><p>de Pós-Graduação em Educação da UFSC e pesquisadora junto</p><p>ao Projeto Rizoma - Educação intercultural e movimentos sociais:</p><p>cidadania e reconhecimento identitário no sul do Brasil (CNPq/</p><p>Funcitec). E-mail: .</p><p>Maurício José Siewerdt é mestre em Educação (UFSC). É</p><p>professor do curso de Pedagogia no Centro de Educação</p><p>Superior da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). E-mail:</p><p>.</p><p>mailto:fleuri@ced.ufsc.br</p><p>mailto:izaemi@uol.com.br</p><p>mailto:gilfs@uol.com.br</p><p>mailto:f2nea@udesc.br</p><p>mailto:bel.orofino@th.com.br</p><p>mailto:siewerdt@big.univali.br</p><p>8 Educação intercultural</p><p>Os autores e as autoras dos capítulos deste livro integram o</p><p>Núcleo de Pesquisa Mover - Educação Intercultural e Movimentos</p><p>Sociais (UFSC), credenciado no Diretório de Grupos de Pesquisa</p><p>CNPq/UFSC. Página na rede: .</p><p>Os textos que compõem este volume resultam de pesquisas</p><p>vinculadas ao Projeto Integrado de Pesquisa Educação</p><p>intercultural: desafios e -perspectivas da identidade e da diferença</p><p>cultural em práticas educativas e movimentos sociais no Brasil,</p><p>(financiado pelo CNPq, 2000-2004), assim como ao Projeto</p><p>Rizoma - Educação intercultural e movimentos sociais: cidadania e</p><p>reconhecimento identitário no sul do Brasil (financiado pelo CNPq</p><p>e pela Funcitec, 2001-2003).</p><p>http://www.ced.ufsc.br/nucleos/mover_</p><p>http://www.ced.ufsc.br/nucleos/mover_</p><p>Apresentação</p><p>Educação intercultural: mediações necessárias</p><p>Reinaldo Matias Fleuri</p><p>Num mundo globalizado, onde as informações, os capitais</p><p>e as mercadorias atravessam fronteiras, torna-se inevitável a</p><p>pergunta formulada por Alain Touraine: "Poderemos viver</p><p>juntos?" (1998, p. 9). E o mesmo autor traz a resposta: "Nós já</p><p>vivemos juntos". Estamos coligados por redes de televisão, de</p><p>comunicação informática, consumimos produtos que circulam</p><p>por todo o planeta, discutimos problemas que atingem a todos.</p><p>Quanto mais as culturas do mundo se aproximam, mais são</p><p>sensíveis às diferenças entre elas. (...) Com a globalização do</p><p>saber e das comunicações, está-se, pela primeira vez na história,</p><p>"condenado" a pensar a unidade humana na base da sua</p><p>diversidade cultural (Stoer, 2001, p. 245).</p><p>Entretanto, a globalização pode representar uma palavra-</p><p>chave de retóricas estratégicas, que constituem um meticuloso</p><p>jogo político em que os discursos vão instituindo proposições</p><p>quase unánimemente inquestionáveis. Globalizar pode</p><p>significar homogeneizar, diluindo identidades e apagando as</p><p>marcas das culturas ditas inferiores, das raças, etnias, gêneros,</p><p>linguagens, religiões, grupos etc. que, segundo a lógica das</p><p>narrativas hegemônicas, foram identificadas como portadoras</p><p>de deficiências, inclusive de racionalidade. Assim, "neste final</p><p>de milênio, parece que não se trata mais apenas de lutar pela</p><p>sobrevivência física, material, dos grupos marginalizados; trata-</p><p>se agora de lutar pela própria possibilidade de sua existência no</p><p>campo do simbólico" (Costa, 1998b, p. 9), compreendendo suas</p><p>culturas como sistemas originais de viver e pensar.</p><p>10 Educação intercultural</p><p>Neste contexto, coloea-se a questão:</p><p>Se as culturas são singulares e constituem os seus significados</p><p>em uma semântica e léxico próprios, parece impossível falar</p><p>de uma cultura, a partir de outra, sem praticar alguma forma</p><p>de violência, sem imposição de sentidos. Seria então</p><p>concebível e exeqüível um projeto que aspire ao diálogo entre</p><p>culturas diferentes? Culturas diferentes podem conversar</p><p>entre si? E possível conceber projetos coletivos que preservem</p><p>as diferenças? (Costa, 1998a, p. 65-66).</p><p>A questão é muito pertinente, porque aponta a complexa e</p><p>fluida trama de relações sociais e de poder que configuram as</p><p>relações culturais, hoje tematizada nos estudos e nas práticas sociais</p><p>e educativas centradas na multiculturalidade e interculturalidade.</p><p>Hoje, esses dois termos apontam uma grande variedade de</p><p>perspectivas e propostas desenvolvidas em um amplo debate que</p><p>vem se constituindo recentemente. É esse o tema abordado por</p><p>Gilberto Ferreira da Silva em "Multiculturalisnio e educação</p><p>intercultural: vertentes históricas e repercussões atuais na</p><p>educação". O capítulo focaliza o debate estabelecido</p><p>historicamente sobre o multiculturalismo, retomando algumas</p><p>das principais correntes que deram origem à implementação de</p><p>políticas de ação afirmativa no contexto norte-americano, para</p><p>apresentar as concepções e práticas desencadeadas nos</p><p>cenários latino-americano e europeu. Da mesma forma,</p><p>tematiza a proposição da perspectiva intercultural para o campo</p><p>da educação, como uma possível resposta ao contexto</p><p>que garantem em boa parte a centralidade do conceito.</p><p>Mülticulturalismo e educação intercultural... 47</p><p>Em síntese, pode-se focalizar essa noção na direção de</p><p>um contexto amplo de configurações caracterizadas como</p><p>multiculturais. Nesse sentido, a idéia de uma sociedade</p><p>multicultural, constituída por diferentes expressões culturais</p><p>definidas a partir de grupos minoritários étnicos, pode ser</p><p>ilustrativa da distinção entre educação multicultural e educação</p><p>intercultural. Na tentativa de contribuir, podemos, inspirados</p><p>na proposição de Gloria Pérez Serrano (1996, p. 216),</p><p>pesquisadora da Universidade de Sevilha, trabalhar com a</p><p>óptica de um processo em etapas, do debate sobre a educação</p><p>multicultural e o multiculturalismo. Isso significa afirmar que</p><p>se pode pensar a evolução desse debate para uma perspectiva</p><p>do interculturalismo aplicado à educação. Segundo observação</p><p>da pesquisadora, as sociedades multiculturais devem caminhar</p><p>em direção à interculturalidade entre os diversos povos e</p><p>grupos, devem caminhar em direção ao conhecimento e à</p><p>compreensão das diferentes culturas e ao estabelecimento de</p><p>relações positivas de intercâmbio e enriquecimento mútuo</p><p>entre os diversos componentes culturais dentro de um país e</p><p>entre as diversas culturas do mundo. Dada essa tendência em</p><p>direção a uma maior diversidade cultural, fomentar a</p><p>intercultura significa superar de vez a assimilação e a</p><p>coexistência passiva de uma diversidade de culturas para</p><p>desenvolver a auto-estima, assim como o respeito e a</p><p>compreensão aos outros.</p><p>Portanto, prefiro reservar o termo multicultural para a</p><p>designação ou constatação do fato que resulta dos conflitos</p><p>das mais diferentes ordens (etnia, religião, cultura, tradição,</p><p>hábitos, movimentos migratórios etc.) e dos movimentos de</p><p>transformação social que estamos vivendo em praticamente</p><p>todas as sociedades, sejam do Primeiro Mundo, sejam do</p><p>Terceiro Mundo.</p><p>48 Educação intercultural</p><p>Acredito que a designação para os fatos sociais que têm</p><p>acentuado a presença de diferentes culturas convivendo nas</p><p>sociedades contribui para se pensar a multiculturalidade como</p><p>a realidade mais crua dessa composição. Por mais que a</p><p>bibliografia a respeito possa apresentar interpretações</p><p>interessantes, como é o caso da proposição de Peter McLaren</p><p>com o multiculturalismo crítico e de resistência, ainda assim um</p><p>significativo grupo de pesquisadores de multiculturalidade e</p><p>educação apontam para um consenso no uso do termo</p><p>interculturalidade aplicado à análise da problemática na</p><p>educação e formas de intervenção propositiva na realidade</p><p>multicultural.</p><p>A segunda direção diz respeito, então, à compreensão de</p><p>educação inter cultural. Esse termo é encontrado facilmente nas</p><p>produções dos meios acadêmicos europeus e latino- americanos.</p><p>Alguns eixos condutores da educação intercultural destacam-se.</p><p>1) Parte do pressuposto de uma intervenção crítica e</p><p>transformadora na realidade multicultural, trazendo uma</p><p>proposta de ação ou, segundo os educadores espanhóis Garcia</p><p>Martínez e Sáez Carrera (1998, p. 36),</p><p>o termo intercultura possui um traço denotativo mais</p><p>dinâmico que aponta para uma relação de interpenetração</p><p>cultural, de ativa relação entre os membros de grupos</p><p>humanos diferentes (...).</p><p>Nesse mesmo sentido, o educador português Ricardo</p><p>Vieira busca a distinção dos termos, destacando, na educação</p><p>intercultural, as relações de reciprocidade e de trocas nos</p><p>processos de aprendizagem e nas relações sociais, e prefere</p><p>situar esses movimentos no interior da educação a partir de</p><p>situações concretas que marcam o cotidiano.</p><p>Multiculturalismo e educação intercultural... 49</p><p>Quando utilizo o conceito de intercultural, faço-o justamente</p><p>a partir do momento em que há uma preocupação de</p><p>comunicação entre os indivíduos portadores de diferentes</p><p>culturas. Para isso, há que se pensar numa educação para o</p><p>plural, o que implica reestruturar o sistema de atitudes que em</p><p>cada um de nós é responsável pelas representações que temos</p><p>dos outros - quer dizer, metamorfosear a identidade pessoal</p><p>(Vieira, 1999, p. 20).</p><p>2) No caso europeu, ganha força esse termo tendo em</p><p>vista o maciço contingente de imigrantes terceiro-mundistas</p><p>nestas duas últimas décadas, com destaque para as populações</p><p>nômades. As preocupações geralmente privilegiam a análise</p><p>e o estudo de culturas novas/diferentes que convivem e se inserem</p><p>na sociedade e os desafios apresentados aos educadores</p><p>(bilingüismo, religião, costumes, hábitos, vestuários, conflitos</p><p>étnicos, ente outros, são alguns dos temas que têm feito parte</p><p>do rol das preocupações). Esse movimento acabou</p><p>distanciando-se do conceito de educação multicultural,</p><p>reservado para a denominação da</p><p>simultaneidade espacial de diferentes culturas e o respeito pela</p><p>diversidade, porém sem incorporar seus elementos</p><p>enriquecedores e prescindindo de suas mútuas implicações</p><p>(Fermoso Estébanez, 1998, p. 221).</p><p>Tal movimento pode ser localizado na década de 1970,</p><p>logo após a luta desencadeada pelos negros norte-americanos,</p><p>originário do debate sobre o multiculturalismo nos anos 1960.</p><p>A elaboração proposta por Padano Fermoso Estébanez</p><p>(1998, p. 221) é elucidativa em nossa busca pela definição da</p><p>educação intercultural. O autor propõe a compreensão de</p><p>interculturalidade como um conjunto de processos devidos às</p><p>interações de duas ou mais culturas, que podem ser tanto de</p><p>origem étnica quanto de caráter migratório, em um mesmo</p><p>50 Educação intercultural</p><p>espaço geográfico, apontando para a integração e</p><p>reciprocidade de tal maneira que possam enriquecer-se</p><p>mutuamente, conservando identidades próprias e ao mesmo</p><p>tempo possibilitando o cruzamento dessas culturas que</p><p>acabam, por sua vez, estimulando novas construções identitárias</p><p>híbridas ou mestiças. Nas -palavras do autor, a educação</p><p>intercultural é assim definida:</p><p>Educação intercultural é um processo tipicamente humano e</p><p>intencional coerente com a pluralidade, dirigido à otimização</p><p>do desenvolvimento de habilidades e competências</p><p>referentes, em primeiro lugar, à diferença, à peculiaridade e à</p><p>diversidade dos povos, e, em segundo, à própria identidade</p><p>cultural dos demais e à das comunidades, de forma que</p><p>resulte numa "cultura mestiça" ou de sínteses (Fermoso</p><p>Estébanez, 1998, p. 221).</p><p>No contexto acadêmico brasileiro, o debate tem ganhado</p><p>forma sob o termo multiculturalismo, tendo sido incorporado</p><p>como objeto de estudo e preocupação de um grupo restrito de</p><p>pesquisadores somente a partir das duas últimas décadas.</p><p>Fortemente influenciadas pelos debates da academia norte-</p><p>americana, as produções expressam noções que buscam</p><p>diferenciar os vários tipos de multiculturalismo, sem apresentar</p><p>preocupações distintivas no que diz respeito à interculturalidade.16</p><p>Objetivamente, o debate sobre a diferença cultural expressada</p><p>por grupos étnicos centra-se em discussões que envolvem</p><p>culturas indígenas e negras (afro-brasileiras), ou então o</p><p>estudo com imigrantes europeus, principalmente no Sul do</p><p>país. Da mesma maneira, constata-se que o debate no interior</p><p>das práticas educativas tem indicado alternativas para pensar</p><p>a educação dessas populações de formas diversas e seccionadas</p><p>16 Ver produções como a de Silva (1999) e a de Gonçalves e Silva (1998).</p><p>Muiticulturalismo e educação intercultural... 51</p><p>sem levar em conta a perspectiva intercultural, estando</p><p>inserido em um contexto social multicultural.17</p><p>Pontuando alguns elementos desse debate no contexto</p><p>brasileiro, podemos destacar:</p><p>1) uma trajetória consolidada no campo dos estudos raciais,</p><p>especialmente ligados à discriminação de populações afro-</p><p>brasileiras no espaço escolar;</p><p>2) propostas pedagógicas de intervenção na realidade</p><p>nacional multicultural a partir de projetos específicos para</p><p>atender e valorizar expressões culturais de grupos de</p><p>culturas distintas (principalmente negros e índios);</p><p>3) em grande medida, os trabalhos desenvolvidos no âmbito</p><p>da pesquisa acadêmica buscam explicitar/denunciar a</p><p>realidade</p><p>de discriminação racial de que são vítimas as</p><p>populações afro-brasileiras na sociedade de uma forma geral</p><p>(característica dos anos 1970 até metade dos anos 1990);</p><p>4) a combinação de diferentes culturas convivendo em um</p><p>mesmo território, seus cruzamentos, processos híbridos</p><p>forjadores de novas identidades culturais ainda não</p><p>ganharam o interesse de pesquisadores, restringindo-se a</p><p>um grupo muito pequeno. Os esforços, quando caminham</p><p>nessa direção, tomam por referência uma determinada</p><p>cultura, como é o caso do trabalho de Regina Pahim Pinto</p><p>(1993). A preocupação dessa autora, a partir desse artigo,</p><p>reside em evidenciar o desafio de pensar elementos da</p><p>cultura negra no espaço escolar e como se inserem ou</p><p>podem ser inseridos como contributos à construção de uma</p><p>educação mais plural, do ponto de vista cultural.</p><p>17 Trabalhos mais recentes de Luis Alberto Gonçalves e Petronilha Beatriz</p><p>Gonçalves e Silva (1998) têm oferecido um maior destaque à discussão da</p><p>multiculturalidade no contexto brasileiro, mas ainda com um acentuado</p><p>caráter historiográfico. Tal discussão encontra-se consolidada no contexto</p><p>educativo europeu e anglo-saxão.</p><p>52 Educação ¡ntercultural</p><p>Por essas razões, a noção de educação iníercultural parece</p><p>responder a uma definição conceituai que tanto articula em</p><p>seu interior aspectos herdados do movimento multiculturalista</p><p>norte-americano, como a luta por justiça social, quanto</p><p>potencializa a convivência de diferentes culturas em um</p><p>mesmo território, o diálogo e a comunicação entre os próprios</p><p>sujeitos, resultando em processos formadores de identidades</p><p>híbridas/mestiças.</p><p>Ainda que se encontre em um estágio no qual as</p><p>formulações apontam caminhos a serem seguidos, o debate</p><p>está em seu processo embrionário. Resta uma longa jornada</p><p>até que se possam, de forma clara e precisa, alinhar definições</p><p>conceituais com práticas coerentes no âmbito de uma educação</p><p>pluralista que seja capaz de potencializar os diferentes</p><p>elementos culturais expressos pelos mais diferentes grupos</p><p>étnicos no conjunto da estrutura social.</p><p>Acredito que ofereço um mapeamento do estado em que</p><p>se encontra, atualmente, o debate sobre a multiculturalidade e</p><p>a educação intercultural sem esgotar, necessariamente, todos</p><p>os pontos que merecem ainda um acúmulo de discussão e</p><p>práticas possibilitadoras de reflexão engajada e comprometida</p><p>com a transformação da educação e, como conseqüência, das</p><p>reais condições de convivência na sociedade de uma forma geral.</p><p>Entre limites e limiares de culturas:</p><p>educação na perspectiva intercultural</p><p>Maria Izabel Porto de Souza</p><p>Reinaldo Matias Fleuri</p><p>A experiência do entrelugar, da fronteira entre culturas</p><p>diferentes, apresenta-se como uma provocação à desconstrução'</p><p>de modelos unívocos de educação e à busca de construção de</p><p>novas perspectivas educacionais. Este capítulo enuncia reflexões</p><p>que nascem do desafio de rever posturas e experiências 1</p><p>1 "O termo desconstrução foi introduzido pelo filósofo francês Jacques Derrida,</p><p>indicando a necessidade de comportamentos críticos nos confrontos das</p><p>formas totalizantes e absolutizantes de cada tradição cultural, particularmente</p><p>daquela do Ocidente. Sob alguns aspectos, o desconstrucionismo se aproxima</p><p>de algumas posições do pensamento pós-moderno. A desconstrução é um</p><p>processo de historicidade e, portanto, de relativização dos saberes, incidindo</p><p>sobre os níveis da compreensão, da autocompreensão e, em particular, da pré-</p><p>compreensão. Uma certa desconstrução espontânea sempre existiu.</p><p>Continuamente, colocamos em discussão as linguagens, os conhecimentos,</p><p>os saberes, os instrumentos, as instituições ou, em outras palavras, a cultura de</p><p>pertencimento. Assim sendo, a desconstrução não é, em absoluto, uma</p><p>novidade, porque já podemos encontrá-la em algumas propostas realizadas</p><p>por educadores(as) que discutem o descondicionamento ideológico, a</p><p>ultrapassagem dos etnocentrismos, as didáticas contra os preconceitos etc.</p><p>Na desconstrução, entretanto, existe sempre uma disponibilidade para a</p><p>realização de uma experiência de descentramento, de se sair-fora das próprias</p><p>certezas. Mas por que usar o recurso da pedagogia da desconstrução (nos seus</p><p>vários níveis - lingüístico-conceitual, psicológico, instrumental, estrutural)</p><p>na didática intercultural? Eis, de forma sintética, algumas possíveis respostas:</p><p>a interculturalidade exige um 'novo pensamento' e este poderá surgir, tão-</p><p>somente, se aceitarmos a 'destruição' do pensamento único e a deslegitimização</p><p>dos dogmatismos; as relações entre culturas diversas não são totalmente</p><p>simétricas, pois são também relações de força numa dialética entre culturas</p><p>hegemônicas e subalternas, entre Centro e Periferia; a escola (e educadores/as)</p><p>não são mediadores culturais neutros, mas estão historicamente situados;</p><p>o etnocentrismo é uma característica de todas as culturas, inclusive da nossa.</p><p>A consciência de todos estes elementos exige um trabalho de desconstruções</p><p>culturais" (Nanni e Abbrucíati, 1999, p. 28-29 - tradução de Maria Izabel Porto</p><p>de Souza).</p><p>54 Educação intercultural</p><p>didático-pedagógicas, questionando a forma restrita,</p><p>homogeneizante, binária, de se relacionar com a realidade e</p><p>redescobrindo, numa perspectiva complexa, as possibilidades</p><p>de aprendizagens para a convivência intercul tural num mundo</p><p>multicultural e multiétnico. É um texto, portanto, em</p><p>construção, convidando cada leitora e cada leitor, na sua</p><p>diferença cultural produtora de traduções,2 a continuar o</p><p>processo de enunciação dessa modalidade complexa de pensar,</p><p>de propor e de fazer educação.</p><p>A perspectiva intercultural da educação</p><p>Que sentido pode ter a discussão sobre o tema</p><p>interculturalidade, ou da relação entre identidades cul turais, no</p><p>Brasil?</p><p>Somos uma sociedade multiétnica constituída</p><p>historicamente a partir de uma imensa diversidade de</p><p>culturas.3 Reconhecer nossa diversidade étnica implica saber</p><p>que os fatores constitutivos de nossas identidades sociais não</p><p>2 Tradução entende-se no sentido etimológico do latim, " transferir, transportar</p><p>entre fronteiras", característica das culturas híbridas (Hall, 1999, p. 89).</p><p>3 Os índios (nome genérico que Cristóvão Colombo usou por pensar ter</p><p>chegado à índia) na época da descoberta das Américas (nome atribuído pelos</p><p>europeus em homenagem a Américo Vespúcio) eram constituídos por cerca</p><p>de mil a 3 mil povos diferenciados, falando centenas de línguas e dialetos,</p><p>agrupados em 133 famílias linguísticas. Desenvolveram relações sociais</p><p>complexas, realizando amplos processos migratórios e construindo civilizações</p><p>poderosas. Exemplo é a civilização maia de Yucatán, que teve seu auge entre</p><p>300 e 900 d.C., expandido-se até a chegada dos espanhóis e sua destruição</p><p>agenciada pela ocupação liderada por Hernán Cortez. As terras do Brasil</p><p>atual são povoadas há pelo menos 15 mil anos (ossos humanos em Lagoa</p><p>Santa, cerâmica no baixo Amazonas). Constituíam dezenas de grupos tribais,</p><p>falando línguas dos troncos Tupi, Macro-jê, Aruak, Karib, Pano, Tukano e</p><p>outras. Em 1500, eram mais de novecentos grupos étnicos que somavam</p><p>perto de 5 milhões de pessoas (enquanto Portugal tinha 1,5 milhão). Esses</p><p>povos são dizimados (em 1957 chegam a 100 mil habitantes; hoje contam</p><p>cerca de 180 etnias com pouco mais de trezentas pessoas) por processos de</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 55</p><p>se caracterizam por uma estabilidade e uma fixidez naturais.</p><p>As identidades culturais - aqueles aspectos de nossas identidades</p><p>que surgem de nosso pertencimento a culturas étnicas, raciais,</p><p>lingüísticas, religiosas e nacionais - sofrem contínuos</p><p>deslocamentos ou descontinuidades. Segundo Hall (1999, p. 16),</p><p>as sociedades modernas não têm nenhum núcleo identitário</p><p>supostamente fixo, coerente e estável. "As sociedades modernas</p><p>(...) não têm nenhum centro, nenhum princípio articulador ou</p><p>organizador único e não se desenvolvem de acordo com o</p><p>desdobramento de uma única 'causa' ou 'lei'", uma vez que são</p><p>caracterizadas pela diferença. Ou seja,</p><p>"elas são atravessadas por</p><p>diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma</p><p>variedade de diferentes 'posições de sujeitos' - isto é,</p><p>identidades" (id., ib., p. 17).</p><p>Nesse sentido, o que significa ser brasileiro, ou ser sulista,</p><p>gremista ou corintiano, nordestino, branco, negro, índio, homem,</p><p>mulher, criança, idoso, militante, camponês, sem-terra, estudante,</p><p>operário, classe média...? Cada uma dessas identidades assume</p><p>significados específicos conforme os sujeitos, as relações</p><p>sociais e os contextos históricos em que se colocam? Mais do</p><p>que isso, cada identidade não seria híbrida, deslizante,</p><p>possibilitando a coexistência de identidades contraditórias?</p><p>Segundo Stuart Hall (1999, p. 12-13),</p><p>o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade</p><p>unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto</p><p>desagregação social agendados principalmente pelas estratégias de invasão,</p><p>escravização e mesmo pelas doenças (tuberculose, varíola) trazidas pela</p><p>colonização européia. As relações multiétnicas se ampliam e se complexificam</p><p>com o sistema escravocrata da colonização portuguesa, que produziu a</p><p>importação violenta de povos afrícanos, e com a politica de colonização do</p><p>território nadonal inidada no século XVIII, que favoreceu a imigração de enorme</p><p>contingente de povos provenientes da Europa, do Oriente Médio e da Ásia.</p><p>Hoje a população brasileira constitui-se de modo eminentemente híbrido.</p><p>56 Educação intercultural</p><p>não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes</p><p>contraditórias ou não-resolvidas.</p><p>Assim, a identidade, sendo definida historicamente, é</p><p>formada e transformada continuamente em relação às formas</p><p>pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas</p><p>culturais que nos rodeiam. À medida que os sistemas de</p><p>significação e representação cultural se multiplicam, somos</p><p>confrontados por uma multiplicidade desconcertante e</p><p>cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais</p><p>poderiamos nos identificar - ao menos temporariamente.</p><p>Frente a uma situação que coloque em evidência o jogo</p><p>de várias identidades possíveis, quais seriam as suas</p><p>conseqüências políticas? Hall (1999, p. 18-20) apresenta, para</p><p>análise da complexidade da identidade, o caso de um juiz</p><p>negro, que foi acusado de assédio sexual a uma mulher negra,</p><p>sua funcionária. Várias possibilidades de identidades em jogo</p><p>fluíram desse acontecimento. Alguns negros apoiaram o</p><p>assediador, baseados na questão da raça; outros a ele se</p><p>opuseram, tomando como base a questão sexual. Alguns ainda</p><p>estavam divididos, dependendo do fator identitário que</p><p>prevalecesse: seu sexismo ou seu liberalismo. As mulheres</p><p>negras estavam divididas, dependendo da identidade que</p><p>prevalecesse: sua identidade como negra ou sua identidade</p><p>como mulher. Os homens brancos estavam divididos,</p><p>dependendo da forma como se identificavam com respeito ao</p><p>racismo e ao sexismo. As mulheres brancas estavam divididas,</p><p>conforme sua oposição ou manifestação de apoio ao</p><p>feminismo. Além disso, as fragmentações identitárias eram</p><p>também atravessadas pela relação entre um membro da elite</p><p>judiciária e uma funcionária subalterna, trazendo para dentro</p><p>do jogo a questão da classe social.</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 57</p><p>Nesse jogo de identidades frente a uma mesma situação,</p><p>Hall (1999, p. 20-21) destaca os seguintes elementos: as</p><p>identidades são contraditórias, cruzando-se ou deslocando-</p><p>se mutuamente; as contradições atuam tanto fora, na</p><p>sociedade, atravessando grupos políticos estabelecidos,</p><p>quanto no íntimo de cada indivíduo; nenhuma identidade</p><p>singular (de classe, de gênero, de raça etc.) pode englobar todas</p><p>as diferentes identidades; existem hoje identificações rivais e</p><p>deslocantes, emergentes de novas identidades oriundas dos</p><p>novos movimentos sociais (o feminismo, as lutas negras, os</p><p>movimentos de libertação nacional, os movimentos pacifistas</p><p>e ecológicos etc.); a identidade muda de acordo com a forma</p><p>como o sujeito é interpelado ou representado, num processo</p><p>descrito como uma mudança de uma política de identidade (de</p><p>classe) para uma política da diferença.</p><p>Tais considerações perturbam e deslocam o eixo das</p><p>tendências estáveis e unificantes que muitas vezes perpassam</p><p>as nossas conversas ou os nossos estudos. Quando as</p><p>diferenças culturais são consideradas numa perspectiva</p><p>estereotipada, focalizam-se apenas as manifestações externas</p><p>e particulares dos fenômenos culturais. Deixa-se de valorizar</p><p>devidamente os sujeitos sociais que produzem tais</p><p>manifestações culturais, ou não se consegue compreender a</p><p>densidade, a dinamicidade e a complexidade dos significados</p><p>que eles tecem. _</p><p>Na maioria das vezes, as relações entre culturas diferentes</p><p>são consideradas a partir de uma lógica binária (índio x branco,</p><p>centro x periferia, dominador x dominado, sul x norte, homem</p><p>x mulher, normal x anormal...), que não permite compreender</p><p>a complexidade dos agentes e das relações subentendidas em</p><p>cada pólo, nem a reciprocidade das inter-relações, nem a</p><p>pluralidade e a variabilidade dos significados produzidas</p><p>58 Educação ¡ntercultural</p><p>nessas relações. Mesmo concepções críticas das relações</p><p>interculturais podem ser assimiladas a entendimentos</p><p>redutivos e imobilizantes. Assim, o conceito de dominação</p><p>cultural, se enredado numa lógica binária e bipolar, pode levar</p><p>a supor que os significados produzidos por um sujeito social</p><p>são determinados unidirecionalmente pela referência cultural</p><p>de outro sujeito. Tal entendimento pode reforçar o processo</p><p>de sujeição na medida em que, ao enfatizar a ação de um sujeito</p><p>sobre o outro, obscurece o hibridismo das identidades, a</p><p>ambivalência e a reciprocidade das relações sociais, assim</p><p>como a capacidade de autoria dos diferentes sujeitos sociais.</p><p>A complexidade da relação entre culturas</p><p>Uma experiência concreta de educação intercultural pode</p><p>nos ajudar a compreender como desconstruir essa lógica</p><p>binária que acompanha a nossa visão de mundo. Para tanto,</p><p>analisamos a experiência de intercâmbio pedagógico</p><p>intercultural realizada pelo Projeto Oficinas do Saber. Tal</p><p>experiência vem se desenvolvendo desde 1988, com base em</p><p>atividades pedagógicas em que interagem, de um lado, em</p><p>Florianópolis (SC), educadores(as) que trabalham com crianças</p><p>e pré-adolescentes no período oposto à atividade da escola e,</p><p>de outro lado, na Itália, professores e crianças de escolas</p><p>públicas de ensino fundamental.4 Nesse contexto relacionai,</p><p>buscamos investigar como tratamos (nós, educadores e</p><p>4 O Projeto Oficinas do Saber está sendo executado pelo Centro de Educação</p><p>e Evangelização Popular (Cedep), que desenvolve atividades pedagógicas</p><p>com crianças, nas faixas etárias de 6 a 14 anos, no período oposto à atividade</p><p>da escola. As Oficinas do Saber têm como parceiro o Projeto Aquilone, que</p><p>é constituído por um grupo de educadores e educadoras de escolas públicas</p><p>e operadores(as) culturais italianos(as), que desenvolvem estudos, pesquisas</p><p>e práticas educativas de educação intercultural nos seus espaços de ação</p><p>pedagógica.</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 59</p><p>educadoras) a nossa própria cultura quando experimentamos</p><p>concretamente relações interculturais (M. I. Souza, 2002).</p><p>Um aspecto que emergiu fortemente nos primeiros</p><p>contatos entre educadores e educadoras brasileiros e italianos</p><p>foi a polarização entre culturas predominantemente assumidas</p><p>como dominantes e dominadas.</p><p>Em um dos primeiros encontros organizados para discutir</p><p>a proposta de intercâmbio intercultural entre educadores e</p><p>educadoras brasileiros e italianos e entre crianças de ambos os</p><p>países, a primeira situação conflitante foi a que surgiu entre a</p><p>imagem do mundo europeu (Primeiro Mundo) e a imagem do</p><p>mundo brasileiro (Terceiro Mundo), expressas na fala de uma</p><p>das educadoras brasileiras:</p><p>Vejo diferença entre Primeiro e Terceiro Mundo. Áqui existe</p><p>apenas um pequeno número de gente "bem-feita" e lá são muitas</p><p>crianças, na Itália, que têm bem-estar. Como mostrou o slide [de</p><p>estudantes italianos], são crianças bem bonitinhas. A gente tem</p><p>que ter sempre presente que este bonitinho (que não é só na</p><p>Itália, mas em todo o mundo) é obtido com nosso suor, nosso</p><p>trabalho, nossa riqueza e nossa fome. Isto é muito forte. Você</p><p>continua sentindo indignação, não uma in dignação para afastar</p><p>(...) é um processo que está aí, é um processo que temos de</p><p>mudar (Cedep, 1992).</p><p>A resistência e a indignação foram os primeiros</p><p>sentimentos que emergiram, colocando em dúvida os</p><p>benefícios de uma relação intercultural com educadores(as) e</p><p>crianças italianas. Tais sentimentos trouxeram â tona a imagem</p><p>de vítimas e carrascos, explorados e exploradores, dominantes</p><p>e dominados, dicotomizando e simplificando uma realidade</p><p>muito complexa historicamente constituída.</p><p>A resposta da educadora italiana, que participava do</p><p>encontro, apresentou outra imagem da imigração italiana ao</p><p>60 Educação intercultural</p><p>Brasil, que possibilitou recuperar a complexidade das relações</p><p>entre Norte e Sul do mundo:</p><p>Quando falo da conquista como exploração, depois também</p><p>falo da imigração dos anarquistas italianos aqui no Sul do Brasil,</p><p>Os grupos de anarquistas italianos construíram uma política</p><p>cultural muito importante, Não porque eram italianos, mas</p><p>porque eram anarquistas, E' o nosso poder político, na Itália,</p><p>expulsou-os. A quem o poder italiano mandou embora? Expulsou</p><p>a classe mais pobre, porque aqui, no Brasil, precisavam de mão-</p><p>de-obra barata para desenvolvimento do capitalismo agrícola</p><p>e do latifúndio, bem como para a indústria que iniciava, e</p><p>porque muitas pessoas, na primeira fase do capitalismo na Itália</p><p>eram muito perigosas, tinham consciência do que estava</p><p>acontecendo. (...) É preciso não esquecer a exploração, para se</p><p>conseguir chegar a uma consciência bastante clara de como</p><p>se deram estas relações (...), mas é também preciso não fechar o</p><p>diálogo e seguir em frente (Cedep, 1992).</p><p>A primeira tensão que se colocou como desafio para a</p><p>realização do intercâmbio intercultural, nessa experiência, foi</p><p>a da relação entre (síorte e Sul do mundo. Tal tensão suscitou</p><p>fortemente a imagem colonialista dos europeus (como</p><p>colonizadores/expropriadores) em contraposição ao modo</p><p>como os brasileiros se viam (como colonizados/expropriados)</p><p>em relação a eles. A polarização eu/outro configurou uma</p><p>compreensão dicotômica da relação entre culturas dominantes</p><p>e dominadas, tomando-as como absolutas, monolíticas.</p><p>Enquanto no discurso do grupo brasileiro predominava a</p><p>perspectiva da dominação (a idéia da exploração), no discurso</p><p>do grupo italiano predominava a do não-domínio (as idéias</p><p>libertárias do anarquismo). É nesse vaivém entre uma coisa e</p><p>outra que se abre a fronteira cultural do hibridismo na história.</p><p>Em ambos os discursos, é perceptível o hibridismo que anuncia</p><p>o desejo de um outro lugar, da superação das relações bipolares</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 61</p><p>de exploração: "não uma indignação para afastar (...) é um</p><p>processo que temos que mudar; é preciso não fechar o diálogo</p><p>e seguir em frente".</p><p>Por outro lado, ao ser questionada a imagem do outro</p><p>(visto como colonizador, explorador, superior), evidenciava-</p><p>se a configuração socioistórica e cultural que, como brasileiros,</p><p>tínhamos de nós mesmos (colonizados, explorados, inferiores).</p><p>De um lado, a imagem do outro como classificação polarizada</p><p>mantinha o poder etnocêntrico da cultura européia; de outro,</p><p>subjugava a nossa própria imagem como a de vítimas,</p><p>explorados, dominados. O confronto com a diferença cultural</p><p>criou um deslocamento de sentido, que nos possibilitou sair</p><p>do gueto, dos limites estreitos da nossa dilaceração histórica</p><p>para, sem ignorá-la, superar a visão negativa de nós mesmos.</p><p>E nos encontramos com a nossa imagem positiva e digna de</p><p>sujeitos, em condições de estabelecer relações de paridade e</p><p>reciprocidade com o outro.</p><p>Ver-se como colonizado abre o lugar de ser não definido, que</p><p>habita a borda de uma realidade intervalar, provocando um</p><p>estranhamento e um descentramento cultural. O descentramento</p><p>é a experiência de olhar a si mesmo, a própria cultura, com o</p><p>olhar de uma outra cultura. O descentramento possibilita à</p><p>pessoa enriquecer a sua própria identidade com outros pontos</p><p>de vista, outras características, outras memórias, outras fontes,</p><p>outros sistemas de expectativas e de imaginação (Nanni e</p><p>Abbruciati, 1999, p. 28-29).</p><p>Os educadores e as educadoras brasileiros (as) passaram</p><p>a se ver, bem como a ver os educadores e as educadoras</p><p>italianos(as), como sujeitos híbridos (dominadores e</p><p>dominados), num espaço intermédio que é um movimento</p><p>exploratório, "um movimento de vaivém, sem aspirar a nenhum</p><p>modo específico ou essencial de ser que pensa as coisas como</p><p>62 Educação intercultural</p><p>categorias monolíticas e fixas" (Bhabha, 1998, p. 19), movi­</p><p>mento este que não cristalizaria a visão de dominantes contra</p><p>dominados. Nesse espaço do hibridismo, é provável que tenha</p><p>acontecido o que Bhabha denomina processos simbólicos de ne­</p><p>gociação ou tradução, dentro de uma temporalidade que tornou</p><p>possível a articulação de elementos antagônicos ou contradi­</p><p>tórios. Tal espaço de hibridismo teria possibilitado a ultrapas-</p><p>sagem das bases de oposição dadas (dominantes/dominados).</p><p>Não se trataria mais, nesse espaço de hibridismo, de uma coi­</p><p>sa (dominantes), nem de outra (dominados), nem mesmo de</p><p>uma superposição de ambas as categorias (dominantes e do­</p><p>minados), mas de um entrelugar que contestaria os termos</p><p>e o território de ambas as categorias. Isso possibilita ir além e</p><p>despertar o desejo de outro lugar e de outra coisa que, nesse</p><p>caso, podería ser identificado como novas possibilidades de</p><p>relações pessoais e sociais entre sujeitos marcados por uma</p><p>política de diferenças.</p><p>Foi necessário olhar o outro nos olhos, de frente,</p><p>confrontá-lo, para que, como brasileiros, pudéssemos nos</p><p>confrontar com nós mesmos, com as imagens estereotipadas</p><p>e discriminatórias que também temos dos outros, quando os</p><p>classificamos e reduzimos a uma concepção única, totalizante</p><p>e excludente, reduzindo com esse procedimento a nossa</p><p>própria imagem. A polarização é sempre redutora e está na</p><p>base em que se sustentam os estereótipos e as discriminações.</p><p>Como diz Jorge Larrosa (1998, p. 9),</p><p>o outro (...) põe-nos em questão, tanto o que nós somos, como</p><p>todas essas imagens que construímos para classificá-lo, para</p><p>nos proteger de sua presença incômoda, para enquadrá-lo.</p><p>No encontro de discussão da proposta de relação</p><p>intercultural, a presença da educadora italiana provocou um</p><p>confronto com o que nos incomodava - a história da conquista.</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 63</p><p>No primeiro momento, a reação ao incômodo tendeu a classifi­</p><p>car ambas as partes mediante o crivo do estereotipo e da dis­</p><p>criminação: carrascos e exploradores de um lado, vítimas e</p><p>explorados do outro. A passagem para além dessa imagem</p><p>classificatória só foi possível quando nos vimos hibridamente</p><p>atravessados por movimentos de dominação e de libertação.</p><p>É no momento desse hibridismo que se coloca para ambas as</p><p>partes a necessidade de termos que enfrentar, articulados,</p><p>o inimigo comum: o mesmo sistema político-econômico e o</p><p>mesmo modelo cultural que produz a exploração e dominação</p><p>de uns sobre outros.</p><p>Tal complexidade da relação entre culturas evidencia a</p><p>necessidade de analisar a abordagem da existência de uma</p><p>"fronteira cultural", uma "borda deslizante e intervalar nas</p><p>relações", que estimula "o desejo de reconhecimento de 'outro</p><p>lugar' e de outra coisa" (Bhabha, 1998, p. 27), para além de uma</p><p>simples divisão e classificação binária da existência humana.</p><p>Esse espaço intervalar da cultura configura-se como um</p><p>"espaço da intervenção (tensão-negociação-tradução) que</p><p>introduz a 'reinvenção criativa da existência"' (id., ib.), fundada</p><p>num profundo desejo de solidariedade social: a busca do</p><p>encontro.</p><p>Todos vivemos ao lado de semelhantes que estão</p><p>próximos a nós e dos quais diferimos culturalmente.</p><p>Também</p><p>podemos realizar nos espaços do cotidiano, entre os quais o</p><p>escolar, as mesmas relações de dominação que trazem à tona</p><p>as zonas conflitivas da relação com a diferença cultural, zonas</p><p>que comportam também as sementes de que podem germinar</p><p>outras formas de relação. Assim, as relações interculturais, em</p><p>certa medida, perturbam a visão hierarquizada e purificada</p><p>das culturas, do poder e do conhecimento. Possibilitam o</p><p>questionamento da ordem institucional educacional</p><p>64 Educação ¡ntercultural</p><p>estabelecida sob a óptica do poder hegemônico de educadores</p><p>e educadoras sobre os(as) alunos(as). Ensejam a possibilidade</p><p>de problematizar a pretensa procedência universalizante e</p><p>homogeneizante do conhecimento.</p><p>Esse fragmento de uma experiência de relações</p><p>ínterculturais, mais do que respostas, aponta-nos desafios à</p><p>própria compreensão das relações educativas e humanas,</p><p>à medida que nos movem a investigar com mais atenção os</p><p>possíveis intervalos, as fronteiras culturais, as margens</p><p>deslizantes que perpassam as classificações e análises</p><p>polarizadas.</p><p>Um desses desafios é o de elaborar novas perspectivas e</p><p>concepções para Compreender e enfrentar as questões da</p><p>identidade e da pluralidade cultural em nosso contexto</p><p>brasileiro. Tal questão se coloca com maior urgência hoje no</p><p>campo da educação, quando os Parâmetros Curriculares</p><p>Nacionais instituem orientações para se trabalhar com a</p><p>pluralidade cultural. Sem uma reflexão aprofundada e crítica, os</p><p>agentes educacionais correm o risco de assumir concepções</p><p>estereotipadas e promover práticas disciplinares, sem</p><p>conseguir interagir na perspectiva complexa que a proposta</p><p>de transversalidade pressupõe.</p><p>A relação entre culturas</p><p>No mundo atual, em que ocorrem mudanças profundas e</p><p>se acentua a multiplicidade de sujeitos e de culturas, as</p><p>concepções de educação e de cultura(s) passam por radicais</p><p>revisões.</p><p>De uma concepção reducionista da cultura - que privilegia as</p><p>dimensões artística e intelectual - passa-se a uma perspectiva</p><p>mais abrangente (...), em que a cultura é vista como estruturante</p><p>profundo do cotidiano de todo grupo social e se expressa em</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 65</p><p>modos de agir, relacionar-se, interpretar e atribuir sentido, ce­</p><p>lebrar etc. (Candau, 2000, p. 61).</p><p>Nessa perspectiva, a cultura pode ser entendida como</p><p>um sistema de concepções herdadas, expressas em formas</p><p>simbólicas por meio das quais os homens comunicam,</p><p>perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades</p><p>em relação à vida (Geertz, 1989, p. 103).</p><p>Assim sendo, a relação entre educação e cultura(s) não</p><p>pode mais se limitar ao âmbito dos conteúdos culturais, ou do</p><p>currículo escolar. Tal relação se configura na complexa teia de</p><p>interpretações tecida entre os pontos de vista dos sujeitos do</p><p>processo educacional. Assim, as relações entre os diferentes</p><p>sujeitos, que agenciam relações entre suas respectivas ópticas</p><p>e éticas, constituem-se como o próprio lugar do aprender (e requerem</p><p>o desenvolvimento de uma pedagogia do acolher e do escutar</p><p>o outro). E as ritualidades dos encontros trazem à tona a</p><p>complexidade do jogo de interações e intercâmbios que se</p><p>estabelecem nos espaços educacionais.</p><p>Essa visão mais abrangente da relação entre educação e</p><p>cultura(s), por sua vez, não nega os componentes ideológicos</p><p>ligados às relações sociais de classe e às estruturas económico-</p><p>políticas determinantes da sociedade atual (Thompson, 2000,</p><p>p. 181-212). Porém, considera as inter-relações significativas</p><p>existentes entre cultura, ideologia, política e economia, de tal</p><p>forma que a(s) cultura(s) não seja(m) entendida(s) como</p><p>simples subproduto(s) ou reflexo(s) da estrutura económico-</p><p>política vigente na sociedade, mas como uma "dimensão</p><p>configuradora do humano em níveis profundos, no nível</p><p>pessoal e coletivo" (Candau, 2000, p. 62).</p><p>Nessa concepção relacionai, a cultura não seria apenas</p><p>um ornamento da existência humana, mas uma condição</p><p>essencial para a existência humana, sendo a principal base de</p><p>66 Educação ¡ntercultural</p><p>sua especificidade. Segundo Clifford Geertz (1989, p. 58-61),</p><p>a cultura não foi um acréscimo ao processo evolutivo do animal</p><p>homem, mas ingrediente essencial para a produção desse animal.</p><p>O que chamamos de natureza humana não existe de forma</p><p>independente da cultura, pois o homem seria incapaz de dirigir</p><p>seu comportamento ou organizar sua experiência, como o fazem</p><p>geneticamente outros animais, sem a orientação fornecida por</p><p>sistemas simbólicos significantes. Tais símbolos não são simples</p><p>expressões, instrumentos ou correlatos da existência biológica,</p><p>psicológica e social do ser humano, mas pré-requisitos da</p><p>natureza humana, de tal forma que sem seres humanos não</p><p>haveria cultura e sem cultura não haveria seres humanos.</p><p>É nesse sentido que o conceito de cultura tem seu impacto</p><p>no conceito de homem</p><p>quando vista como um conjunto de mecanismos simbólicos</p><p>para controle do comportamento humano, (...) fornecendo o</p><p>vínculo entre o que os homens são intrínsecamente capazes de</p><p>se tornar e o que eles realmente se tornam, um a um (Geertz,</p><p>1989, p. 64).</p><p>Diferentemente dos animais inferiores, cujas fontes</p><p>genéticas de informação ordenam estreitamente suas ações,</p><p>o ser humano é dotado de capacidades inatas de respostas</p><p>muito gerais. Por isso, sua capacidade de ação é muito mais</p><p>plástica, complexa e criativa. Mas, por isso mesmo, depende</p><p>de sistemas de controle extracorporais para orientar sua ação.</p><p>A cultura pode ser vista justamente como</p><p>um conjunto de mecanismos de controle - planos, receitas,</p><p>regras, instruções (o que os engenheiros de computação</p><p>chamam de "programas") - para governar seu comportamento</p><p>(id., ib., p. 56).</p><p>Do ponto de vista do indivíduo, esses símbolos são dados.</p><p>Ele os encontra já em uso na comunidade em que vive. Utiliza-os</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 67</p><p>deliberada ou espontaneamente para se orientar na constru­</p><p>ção dos acontecimentos através dos quais ele vive. E, sobretu­</p><p>do, deles depende para se orientar. Sem a referência a padrões</p><p>culturais - sistemas organizados de símbolos significantes -</p><p>o ser humano seria incapaz de governar seu comportamento,</p><p>e sua experiência não apresentaria qualquer forma. A cultura</p><p>- 3. totalidade acumulada de tais padrões - é, pois, uma condição</p><p>essencial da existência humana e sua principal base de</p><p>concretização específica.</p><p>Assim verificamos, de um lado, que todos os grupos humanos</p><p>desenvolvem padrões culturais que tornam possível sua existência.</p><p>De outro lado, defrontamo-nos com uma enorme diversidade</p><p>de padrões culturais existentes na humanidade.</p><p>Na busca de entender a essência do ser humano, muitos</p><p>estudiosos tentaram identificar aspectos comuns entre as</p><p>diferentes culturas. Entretanto, mesmo verificando que a</p><p>maioria dos povos desenvolve instituições como religião,</p><p>casamento ou propriedade, constata-se que os padrões culturais</p><p>relativos a essas instituições variam muito de uma sociedade</p><p>para outra. Contrapondo-se à noção de que a conceituação do</p><p>ser humano se define pelos aspectos universais e similares das</p><p>culturas humanas, Clifford Geertz considera que a</p><p>compreensão do ser humano, em sua dimensão essencial, pode</p><p>ser encontrada justamente nas particularidades culturais dos</p><p>povos. Trata-se, portanto, do ponto de vista científico, de</p><p>buscar entender nos fenômenos culturais, basicamente, não a</p><p>similaridade empírica entre os comportamentos dos diferentes</p><p>grupos sociais, mas a relação que diferentes grupos, com</p><p>padrões culturais diferentes, estabelecem entre si, Para tanto,</p><p>seria preciso "procurar relações sistemáticas entre fenômenos</p><p>diversos, não identidades substantivas entre fenômenos</p><p>similares" (Geertz, 1989, p. 56).</p><p>68 Educação intercultural</p><p>Em outras palavras, a "essência" do ser humano não se revela</p><p>mediante o estudo comparativo entre diferentes culturas,</p><p>tomadas como objetos de investigação, na busca de identificar</p><p>aspectos comuns entre elas. O conhecimento do ser humano</p><p>pode ser desenvolvido, sim, na medida em que pessoas e grupos</p><p>de culturas diferentes entram em relação, na busca de</p><p>compreender os sentidos que suas ações assumem no contexto</p><p>de seus respectivos padrões culturais, Pois compreender a</p><p>cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir sua</p><p>particularidade, (...) Isso os torna acessíveis e torna possível</p><p>conversar com eles (Geertz, 1989, p. 24).</p><p>Na abordagem de Geertz é também importante destacar</p><p>a ênfase dada à manifestação das particularidades da cultura</p><p>nas relações, a partir da qual surgem os sentidos dos padrões</p><p>culturais específicos que se diferenciam uns dos outros. Essa</p><p>concepção coloca uma outra questão importante: a do</p><p>deslocamento da perspectiva do objeto para a óptica da "relação"</p><p>entre objetos; a do deslocamento da perspectiva de representação</p><p>do sujeito para a óptica da "relação" entre sujeitos.</p><p>Nessa direção, podemos dizer que a imagem de criança e</p><p>de infância só poderia ser compreendida em sua significação a</p><p>partir do encontro com crianças e infâncias específicas, ao</p><p>contrário da imagem corrente de criança e de infância,</p><p>pressupostamente essencial e universal, que retrata o que se</p><p>diz e o que se sabe sobre ela, propondo implicitamente também</p><p>o que se deve fazer com elas. A significação da infância e da</p><p>criança não se encontra, entretanto, no que dizemos dela, mas</p><p>no que ela nos diz na sua alteridade. Essa compreensão rompe</p><p>com uma visão de educação que pressupõe já saber o que são</p><p>as crianças e a infância e sobre o que se deve fazer com elas.</p><p>Tal olhar nos coloca, assim, face a face com o estranho,</p><p>com a diferença, com o desconhecido, que não pode ser</p><p>reconhecido nem apropriado, mas apenas conhecido na sua</p><p>especificidade diferenciadora. Não se trata de reduzir o outro</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 69</p><p>ao que pensamos ou queremos dele. Não se trata de assimilá-</p><p>lo a nós mesmos, excluindo sua diferença. Trata-se de abrir o</p><p>olhar ao estranhamento, ao deslocamento do conhecido para</p><p>o desconhecido, que não é só o outro sujeito com quem</p><p>interagimos socialmente, mas também o outro que habita em</p><p>nós mesmos.</p><p>Dessa forma, somos convidados a viver os nossos padrões</p><p>culturais como apenas mais um entre os muitos possíveis,</p><p>abrindo-nos para a aventura do encontro com a alteridade.</p><p>É nessa perspectiva que a educação intercultural se</p><p>preocupa com as relações entre seres humanos culturalmente</p><p>diferentes uns dos outros. Não apenas na busca de apreender</p><p>o caráter de várias culturas, mas, sobretudo, na busca de</p><p>compreender os sentidos que suas ações assumem no contexto</p><p>de seus respectivos padrões culturais e na disponibilidade de</p><p>se deixar interpelar pelos sentidos de tais ações e pelos</p><p>significados constituídos por tais contextos.</p><p>No espaço escolar, estamos atentos para acolher o que as</p><p>crianças nos dizem na sua alteridade? Para compreender os</p><p>sentidos que suas ações e posições assumem no contexto de</p><p>seus respectivos padrões culturais? Ou atuamos apenas com</p><p>as representações de criança e de infância abstraídas de padrões</p><p>culturais genéricos e unlversalizantes, que despem essas</p><p>crianças e essas infâncias de suas particularidades culturais?</p><p>A adoção dessa imagem universal de criança e de infância não</p><p>seria produtora da desconexão do saber escolar dos fatos e</p><p>acontecimentos que envolvem as suas vidas, no cotidiano?</p><p>E, por ser unlversalizante e homogeneizante, tal imagem</p><p>assumida não seria também responsável pela desconsideração</p><p>das diferenças, que dificulta o reconhecimento e a comunicação</p><p>entre as culturas escolares e as culturas vividas?</p><p>70 Educação intercultural</p><p>Recuperar o papel das culturas no processo educacional,</p><p>tanto em nível pessoal como coletivo, implica reconhecer a</p><p>interação entre diferentes modos de ser humano, que se</p><p>desenvolvem como forças em tensão. Tais campos de força,</p><p>intensamente conflitantes, podem estabelecer formas</p><p>criativas de interação entre culturas diversas, possibilitando</p><p>a reinvenção da existência humana. Nessa óptica, o</p><p>reconhecimento das complexas e conflitantes relações</p><p>interculturais pode ser fundamental para reverter os processos</p><p>de exclusão estabelecidos pela adoção de mecanismos</p><p>culturais hegemônicos que perpassam a escola e transformam</p><p>em estrangeiros muitos dos sujeitos sociais que não se ajustam</p><p>aos padrões predominantes de nacionalidade, língua, idade,</p><p>sexo etc.</p><p>É necessário também ampliar a visão de educação</p><p>intercultural, que não é apenas restrita à convivência numa</p><p>escola entre sujeitos de etnias diversas. Na escola coexistem</p><p>sempre diversas culturas - de acordo com o pertencimento da</p><p>pessoa a diferentes grupos que se identificam conforme as</p><p>gerações (criança, jovem, adulto, idoso); o gênero (homem,</p><p>mulher, homossexual); a classe econômica (operário,</p><p>funcionário público, profissional liberal, executivo, empresário,</p><p>proprietário rural...); a etnia e pertença regional (negro, índio,</p><p>italiano, gaúcho, manezinho...); as capacidades físicas e mentais</p><p>(surdo, ouvinte, cego, paraplégico, autista...), entre outros.</p><p>De acordo com a sua identificação com esses diferentes</p><p>universos relacionais e identitários, as pessoas desenvolvem</p><p>modos distintos de se conduzir e de interpretar a realidade.</p><p>Dessa forma, assumem seus sistemas de valores (religiosos,</p><p>políticos, étnicos, estéticos etc.), que servem de referência para</p><p>orientar suas opções e suas relações com as outras pessoas e</p><p>com os outros grupos.</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 71</p><p>Relações intercu Itu rais na escola</p><p>O espaço educativo é perpassado por múltiplas relações</p><p>entre padrões culturais diferentes que tecem uma gama</p><p>complexa de teias de significações. Essas teias de significações,</p><p>que se estabelecem na relação entre sujeitos com padrões</p><p>culturais específicos e diferentes, é a substância da educação</p><p>intercultural. Assim, para compreender a abrangência e</p><p>complexidade do tema da interculturalidade, é necessário</p><p>abordar como se configura a cultura escolar nas relações que se</p><p>dão no espaço institucionalizado da escola.</p><p>Candau (2000, p. 64), abordando o conceito de cultura</p><p>escolar, referenciada nos conceitos de Gimeno Sacristán, Pérez</p><p>Gómez e Forquin, demonstra a complexidade dos processos</p><p>culturais que se dão no âmbito da escola. Elucida que existe</p><p>uma ruptura entre a cultura escolar, com seus parâmetros de</p><p>homogeneização, normatização, rotinização e didatização,</p><p>e a cultura da escola, com suas múltiplas vertentes de cultura</p><p>vivida, intercambiada, na qual atuam as culturas sociais de</p><p>referência dos atores do espaço escolar, que vivendam</p><p>diferentes universos culturais. Conclui que a cultura escolar</p><p>ignora essa realidade plural e apresenta um caráter monocultural.</p><p>A cultura escolar, conforme os conceitos analisados por</p><p>Candau, estaria associada ao currículo formal, aos conteúdos-</p><p>objeto a serem trabalhados no processo ensino-aprendizagem,</p><p>ao que é explícita e intencionalmente proposto pela escola</p><p>como finalidade de aprendizagem. A escola acentua o caráter</p><p>de uma cultura didatizada, referida aos conteúdos cognitivos</p><p>e simbólicos que são selecionados, organizados, normatizados</p><p>e constituem o objeto de uma transmissão deliberada no</p><p>contexto escolar. A aprendizagem de tais saberes é reforçada</p><p>por papéis, normas, rotinas e ritos próprios da escola como</p><p>instituição social específica.</p><p>72 Educação intercultural</p><p>Candau registra ainda que chama atenção quando se con­</p><p>vive com o cotidiano de diferentes escolas, como são</p><p>homogêneos os rituais, os símbolos, a organização do espaço</p><p>e do tempo, as comemorações de datas cívicas, as festas, as</p><p>expressões corporais etc. (2000, p. 68). Embora mudem as culturas</p><p>sociais de referência, a cultura escolar gozaria de uma</p><p>capacidade de se autoconstruir independentemente e sem</p><p>interagir com os universos da cultura da escola, sendo possível</p><p>detectar um congelamento da cultura escolar que, na maioria</p><p>dos casos, a torna estranha aos seus habitantes e transforma</p><p>seus interlocutores em estrangeiros.</p><p>Já a cultura da escola estaria associada ao currículo vivido,</p><p>à cultura vivida realmente no espaço escolar pelo qual</p><p>transitam as culturas de referência social dos atores do</p><p>processo educacional. A cultura da escola se constitui pelo jogo</p><p>de intercâmbio e de interações presentes na dinâmica escolar de</p><p>transmissão-assimilação, em que estão presentes crenças, aptidões,</p><p>valores, atitudes e comportamentos dos sujeitos implicados nesse</p><p>processo. Tais sujeitos portam suas características e vidas</p><p>próprias, seus ritmos e seus ritos, suas linguagens, seus</p><p>imaginários, seus modos próprios de regulação e de</p><p>transgressão, seus regimes próprios de produção e de gestão</p><p>de símbolos. A cultura da escola consiste, portanto, em um campo</p><p>complexo no qual circulam, interagem, conflitam e compõem-</p><p>se múltiplas culturas, e no qual vão se constituindo múltiplas</p><p>identidades e múltiplos sujeitos em relações complexas e</p><p>recíprocas.</p><p>É dentro desse universo complexo, na busca de formas</p><p>possíveis para que o saber escolar interaja criativamente com</p><p>os saberes sociais e culturais de referência dos atores do</p><p>i</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 73</p><p>processo educacional, que a perspectiva intercultural da edu­</p><p>cação pode contribuir para a constituição de mediações críti­</p><p>cas e articuladoras no processo educacional e na própria for­</p><p>mação de educadores(as).</p><p>A educação intercultural, não sendo uma disciplina, coloca-</p><p>se como uma outra modalidade de pensar, propor, produzir e</p><p>dialogar com as relações de aprendizagem, contrapondo-se</p><p>àquela tradicionalmente polarizada, homogeneizante e</p><p>universalizante.</p><p>A educação intercultural ultrapassa a perspectiva</p><p>multicultural, à medida que não só reconhece o valor intrínseco</p><p>de cada cultura e defende o respeito recíproco entre diferentes</p><p>grupos identitários, mas também propõe a construção de</p><p>relações recíprocas entre esses grupos. Em suma, a educação</p><p>intercultural propõe</p><p>uma relação que se dá, não abstratamente, mas entre pessoas</p><p>concretas. Entre sujeitos que decidem construir contextos e</p><p>processos de aproximação, de conhecimento recíproco e de</p><p>interação. Relações estas que produzem mudanças em cada</p><p>indivíduo, favorecendo a consciência de si e reforçando a</p><p>própria identidade. Sobretudo, promovem mudanças</p><p>estruturais nas relações entre grupos. Estereótipos e</p><p>preconceitos - legitimadores de relações de sujeição ou de</p><p>exclusão - são questionados, e até mesmo superados, na medida</p><p>em que sujeitos diferentes se reconhecem a partir de seus</p><p>contextos, de suas histórias e de suas opções. A perspectiva</p><p>intercultural de educação, enfim, implica mudanças profundas</p><p>na prática educativa (...) pela necessidade de oferecer</p><p>oportunidades educativas a todos, respeitando e incluindo a</p><p>diversidade de sujeitos e de seus pontos de vista. Pela</p><p>necessidade de desenvolver processos educativos, metodologias</p><p>e instrumentos pedagógicos que dêem conta da complexidade</p><p>das relações humanas entre indivíduos e culturas diferentes.</p><p>E pela necessidade de reinventar o papel e o processo de</p><p>formação de educadores(as) (Fleuri, 2000, p. 78).</p><p>74 Educação intercultural</p><p>A formação de educadores(as) numa perspectiva intercultural</p><p>A formação e a requalificação dos educadores e das edu­</p><p>cadoras são talvez o problema decisivo, do qual depende o</p><p>sucesso ou o fracasso da proposta intercultural. O que está em</p><p>jogo na formação de educadores(as) é a superação da perspec­</p><p>tiva monocultural e etnocéntfica que configura os modos tra­</p><p>dicionais e consolidados de educar, a mentalidade pessoal, os</p><p>modos de se relacionar com os outros e de atuar nas situações</p><p>concretas.</p><p>Os modelos de formação de educadores(as) consolida­</p><p>dos - ainda que cercados por muitos referenciais teóricos e</p><p>conceituais, inclusive daqueles que questionam a forma</p><p>etnocêntrica e monocultural das práticas pedagógicas,</p><p>propagando a necessidade de uma formação para a diversidade,</p><p>para a incerteza, para o sistêmico, para o desenvolvimento do</p><p>pensamento complexo - apresentam ainda tendências de</p><p>mecanicismo, de rigidez, de certezas absolutas. Há uma</p><p>provável lacuna, nesse tecido mesclado de continuidades e</p><p>rupturas, presente no jogo paradigmático da ciência moderna</p><p>e pós-moderna. Isso implica a necessidade de desenvolver</p><p>instrumentos de formação de educadores(as), teóricos e</p><p>práticos, que abordem outras modalidades de pensar, propor,</p><p>produzir e dialogar com o processo de aprendizagem.</p><p>Um desses paradigmas é o da complexidade. Pensar a</p><p>complexidade é o maior desafio do pensamento contemporâneo.</p><p>Fomos educados para separar e isolar as coisas. Separamos os</p><p>objetos de seus contextos, subdividimos a realidade em</p><p>disciplinas compartimentadas, classificamos os saberes de</p><p>modo seqüencial e hierárquico. Mas a realidade é feita de laços</p><p>e de interações. Trata-se, aqui, de reconhecer a existência de</p><p>uma epistemología da complexidade, necessária para a</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 75</p><p>compreensão de novos paradigmas na educação. Para Edgar</p><p>Morin, "tudo está em tudo e reciprocamente (...) como</p><p>proposição de que não só a parte está no todo, como também</p><p>o todo está na parte" (1996, p. 275), compondo um paradigma</p><p>sistêmico. Opondo-se ao paradigma mecanicista, o paradigma da</p><p>complexidade reconhece e assume a multiplicidade de práticas</p><p>culturais desenvolvidas pela interação de diferentes sujeitos</p><p>nas relações sociais e nos processos educativos. A complexidade</p><p>implica perceber os diferentes sujeitos e orientar suas relações</p><p>e interações segundo uma lógica (ou paradigma epistemológico)</p><p>capaz de compreender a relação da unidade do conjunto com a</p><p>diversidade de elementos que o constituem.</p><p>A visão da prática educativa, nessa óptica, deixa de ser</p><p>fragmentária e binária, para recuperar a diversidade na unidade</p><p>e vice-versa, numa visão sistêmica, complexa, ecológica, do</p><p>conhecimento. Assim, nosso conhecimento, para ser capaz de</p><p>perceber o complexus - o tecido que junta o todo -, deve</p><p>desconstruir estruturas de pensamento mecanicistas</p><p>(paradigmas que separam e absolutizam as partes) por</p><p>estruturas de pensamento complexas (paradigmas que</p><p>articulam a separabilidade e inseparabilidade das partes) por</p><p>meio de uma visão sistêmica (a relação das partes com o todo</p><p>e do todo com as partes) e dialógica (convivência de noções</p><p>excludentes, mas indissociáveis numa mesma realidade,</p><p>constituindo a interação de lógicas diferentes),</p><p>Um exemplo dessa complexidade, pouco considerada no</p><p>processo educacional, pode ser entrevista na maneira como</p><p>educadores(as) podem separar e absolutizar partes de um</p><p>contexto cultural mais amplo e complexo, impedindo a</p><p>convivência de padrões culturais aparentemente contraditórios,</p><p>mas que dizem respeito à mesma realidade.</p><p>76 Educação intercultural</p><p>Em um encontro no Núcleo Mover,5 compartilhando com</p><p>um grupo de companheiros e companheiras, graduandos e</p><p>mestrandos, percepções e análises sobre estudos culturais, uma</p><p>das companheiras faz a seguinte narração:</p><p>Minha sobrinha ao fazer uma prova, diante do enunciado que</p><p>solicitava a apresentação do nome de três animais, os apresentou</p><p>como sendo "Feio, Scubidu e Pavarotti". Essa resposta foi</p><p>considerada incorreta pela professora. Inconformada com a</p><p>não-aceitação de sua resposta, a menina chorou silenciosamente</p><p>na escola. Essa manifestação não-verbal, pela sua insistência,</p><p>levou a professora a perguntar a razão do choro, possibilitando</p><p>então à criança manifestar o seu ponto de vista: "Scubidu é o</p><p>meu cachorro, Feio é o meu gato e Pavarotti é o meu periquito".</p><p>A visão cultural da educadora, referenciada na concepção</p><p>genérica de animais (cachorro, gato, periquito), deixava de lado</p><p>a referência cultural da criança, de batismo nominal de seus</p><p>animais de estimação. Há uma interação de padrões culturais</p><p>na resposta da criança, complexificando o sentido cultural de</p><p>animal e uma homogeneização e simplificação na resposta</p><p>esperada pela educadora, embasada em um único padrão</p><p>cultural.</p><p>Nesse exemplo, poder-se-ia dizer</p><p>que o todo (a identificação</p><p>da espécie animal) inclui as partes (tanto a noção genérica de</p><p>animal como a noção particular' e personalizada de animal). Isto</p><p>é, inclui mais de um padrão cultural, tanto os generalizantes como</p><p>os particulares. E a noção da natureza do animal, em sua dimensão</p><p>essencial, sob esse aspecto, não pode ser compreendida a não ser</p><p>na particularidade do padrão cultural enunciado pela criança.</p><p>5 O Núcleo Mover (Educação Intercultural e Movimentos Sociais) está sediado</p><p>no Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa</p><p>Catarina, Florianópolis, desenvolvendo estudos e pesquisas no âmbito da</p><p>cultura e da educação popular. Confira o site .</p><p>http://www.ced.ufsc.br/nucleos/mover_</p><p>http://www.ced.ufsc.br/nucleos/mover_</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 77</p><p>Ou seja, o conhecimento da essência da natureza animal (hu­</p><p>mana e nao-humana) só poderia ser desenvolvido na medida</p><p>em que pessoas diferentes, entrando em relação, buscam com­</p><p>preender "os sentidos que suas ações assumem no contexto de</p><p>seus respectivos padrões culturais" (Geertz, 1989, p. 24).</p><p>A partir ainda da concepção de que todo saber só existe</p><p>como forma de representação, não podendo ser identificável</p><p>fora dos termos e condições de sua interpelação discursiva,</p><p>a questão adquire mais complexidade, porque o discurso,</p><p>o enunciado, funciona como um elemento de deslocamento</p><p>de significados, de acordo com a posicionalidade do sujeito.</p><p>Segundo Hall (1999, p. 40-41), citando Saussure, "a língua é</p><p>um sistema social, e não um sistema individual", na medida</p><p>em que preexiste a nós, de tal forma que</p><p>falar uma língua não significa apenas expressar nossos</p><p>pensamentos mais interiores e originais; significa também ativar</p><p>a imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa</p><p>língua e em nossos sistemas culturais.</p><p>Assim, o(a) enunciador(a) de um discurso não pode, nunca,</p><p>fixar o significado de uma forma rígida, porque as palavras são</p><p>multimodulantes. As palavras sempre carregam ecos de outros</p><p>significados que elas colocam em movimento, apesar de nossos</p><p>melhores esforços para fechar o significado. A palavra nome, no</p><p>contexto enunciativo da educadora, tinha um significado, mas</p><p>não a condição de fechar esse significado, pois a criança colocou</p><p>em movimento outro contexto cultural de significado.</p><p>É também nessa direção que Bhabha aborda a questão do</p><p>discurso (do enunciado), da linguagem como representação</p><p>simbólica, como formas que estabelecem sistemas complexos</p><p>de significação. O enunciado constitui margens deslizantes</p><p>de deslocamento cultural, hibridismos ou espaços intervalares</p><p>7ft Educação ¡ntercultural</p><p>de ambivalência, em que atuam processos simbólicos de tra­</p><p>dução que tornam possível a articulação de elementos</p><p>antagônicos ou contraditórios. Infelizmente, o ato mecânico</p><p>da correção da resposta, considerada errada pela educadora</p><p>sob óptica embasada num único ponto de vista, não</p><p>possibilitou a emergência da dúvida, da perplexidade ou da</p><p>análise da contradição daquela resposta. Esse movimento</p><p>poderia ser desencadeado se, ao invés de uma preocupação</p><p>normatizadora, a educadora tivesse logo assumido uma</p><p>perspectiva problematizadora, que poderia se expressar, por</p><p>exemplo, na pergunta à criança: "O que você quis dizer com</p><p>isso?". Não teria, assim, sido suprimida, pela prática disciplinar,</p><p>a possibilidade, de que fala Bhabha e confirma Morin, de</p><p>articulação de elementos antagônicos ou contraditórios como</p><p>parte da complexidade do conhecimento.</p><p>Além disso, como se estranha, nessa perspectiva, a pergunta</p><p>tão simples que não se faz. Não fazer essas perguntas exclui-</p><p>nos do jogo das relações, cristalizando certezas, absolutizando</p><p>princípios (como o do poder) e etnocentrando o nosso saber de</p><p>educadores(as).</p><p>No acontecimento relatado, existe uma indeterminação do</p><p>significado (um intervalo) entre o significado proposto pela</p><p>educadora e o significado construído pela criança frente a um</p><p>mesmo significante (ou enunciado), provocado pela</p><p>indeterminação da intertextualidade que atua em ambas e são</p><p>diferentes. Frente à questão do nomè de animais, educadora e</p><p>criança assumem significados diferentes, porque</p><p>tudo que dissemos tem um antes e um depois - uma margem</p><p>na qual as outras pessoas podem escrever. O significado é</p><p>inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade),</p><p>mas é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está</p><p>constantemente escapulindo de nós. Existem sempre</p><p>79Entre limites e limiares de culturas...</p><p>■’-Él!' ''</p><p>significados complementares sobre os quais não temos qual­</p><p>quer controle, que surgem e subvertem nossas tentativas para</p><p>criar mundos fixos e estáveis (Hall, 1999, p. 41).</p><p>O fato explicitado, ao apresentar a ambivalência, o</p><p>hibridismo do enunciado, não é mais a representação única do</p><p>padrão cultural da educadora, nem é a simples incorporação</p><p>do padrão cultural utilizado pela criança, mas ambas as coisas.</p><p>E não só. É também a abertura da possibilidade de explicitação</p><p>de outros padrões culturais. A ambivalência dos significados</p><p>produziu um problema irresolúvel de diferença cultural para a</p><p>própria interpelação da autoridade dominante da educadora,</p><p>pois a sua enunciação perdeu a dimensão do saber absoluto e</p><p>da pretensa tendência de criação de mundos fixos e estáveis.</p><p>Nessa perspectiva, a formação de educadores(as) para</p><p>lidar com a complexidade dos enunciados, para trabalhar com</p><p>a explicitação e a articulação de vários padrões culturais,</p><p>configura-se como uma das estratégias fundamentais para</p><p>enfrentar as relações dominantes de poder e de conhecimento.</p><p>Outro elemento que chama atenção nessa situação é o</p><p>aspecto caracterológico do enunciado - "cite o nome de três</p><p>animais" - que toma para si a tarefa de mapear o território de</p><p>forma redutora, tecnicista, impessoal, asséptica, deixando de</p><p>fora o sujeito humano que é o codificador (o significador) de</p><p>qualquer mapa. Qual o sentido de categorizar os animais? Não</p><p>haveria mais sentido na significação das relações que as</p><p>pessoas estabelecem com os animais, colocando em cena a</p><p>percepção de sua própria natureza animal? Essas questões nos</p><p>remetem a pensar que nesse enunciado existe predominância</p><p>da cultura escolar (normatdzadora, homogeneizante, rotinizante,</p><p>didatizada), presa das grades curriculares e dos conteúdos que</p><p>mapeiam os percursos de aprendizagem, ignorando nesses</p><p>80</p><p>i.</p><p>Educação intercultural</p><p>percursos mapeadores a cultura da escola (vivida pelos sujeitos</p><p>humanos e manifestadas em diferentes padrões culturais),</p><p>conforme analisa Candau (2000, p. 64).</p><p>Segundo Gregory Bateson, "o mapa não é o territorio", pois</p><p>"em todo pensamento, percepção ou comunicação sobre</p><p>percepção, há uma 'transformação', uma 'codificação' entre o</p><p>relatório e a coisa relatada" (1986, p. 36). Assim, embora possa</p><p>existir uma relação entre a mensagem (o enunciado) e o referente</p><p>(a coisa enunciada), ela não é simples nem direta, porque o</p><p>significado de um determinado tipo de ação, de comportamento</p><p>e de enunciado muda de acordo com o contexto,6 possibilitando</p><p>o surgimento de mensagens de tipos lógicos diferentes. Os</p><p>códigos (verbais e não-verbais), sendo elementos condicionais,</p><p>dependem do contexto para constituírem significados.</p><p>Na situação considerada, pode-se observar que há uma</p><p>predominância do contexto escolar (mensagem de definição</p><p>simbólica, normatizadora, inerente ao currículo escolar e à sua</p><p>didatização). Tende-se a fixar o mapeamento dos animais como</p><p>espécie e a associar a mensagem (resposta provável esperada)</p><p>diretamente ao referente. Com isso, ignora-se o contexto das</p><p>metacomunicações (mensagens de tipos lógicos diferentes), que</p><p>faz emergir representações múltiplas, essenciais para a comunicação</p><p>e o conhecimento humanos (Bateson, 1986, p. 124-125). Sob esse</p><p>aspecto, as definições só poderíam ser apreendidas nos</p><p>intercâmbios, nas formas como as pessoas ou grupos de pessoas</p><p>em relação estabelecem combinações entre múltiplas</p><p>formas</p><p>6 Contexto como uma criação simbólica - um signo que necessita da interação de</p><p>sujeitos para ser decifrado, na medida em que é um conceito que porta uma</p><p>noção indefinida - o significado. Dessa maneira, o contexto não possui</p><p>uma significação inerente em si, mas depende da significação de quem o</p><p>produz e do propósito a que se coloca. Em outras palavras, a compreensão</p><p>do contexto é construída pelos sujeitos em interação, que configuram os</p><p>significados de seus atos e de suas relações (Bateson, 1986, p. 23).</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 81</p><p>de representação e significado, que Bateson identifica como</p><p>combinação de "descrições duplas" ou "de dupla ação" (1986, p. 124).</p><p>De um lado, no enunciado da criança emerge um padrão</p><p>que liga, um padrão que relaciona, que mistura num processo</p><p>mental que tem caráter complexo, baseado na diferenciação e</p><p>interação de partes múltiplas (Bateson, 1986, p. 109-110),</p><p>proporcionando a eclosão do pensamento complexo e</p><p>ecológico da relação entre os seres viventes (humanos e não-</p><p>humanos). De outro lado, no enunciado normalizante,</p><p>formulado naquela ocasião pela educadora, aparece um padrão</p><p>linear e simplificador de causa-efeilo, urna lógica que se</p><p>contrapõe à própria natureza complexa da mente.</p><p>A tradução da criança tem significados próprios, a partir de</p><p>padrões culturais diferentes da professora, adulta. Mas, se essa</p><p>diversidade é compreendida a partir de uma lógica que</p><p>simplesmente opõe um significado ao outro, impedimos a</p><p>comunicação, e as relações humanas se tornam estéreis e</p><p>conflitantes. Dando predomínio ao pensamento bipolarizado,</p><p>fazemos do espaço da educação um lugar do encontro como</p><p>confronto dilacerante. Ao contrário, se damos lugar ao espaço</p><p>da conexão, da complexidade, tornamos o espaço da educação</p><p>um lugar de encontro como aproximação, articulador das</p><p>diferenças. Assim, reconhecer o padrão cultural em que a criança</p><p>define o nome de seus animais não implica que o padrão cultural</p><p>de categorização dos tipos de animais enunciado pela professora</p><p>esteja errado. O equívoco está em opor esses sentidos, segundo</p><p>o critério binário (ou/ou), que distingue os enunciados apenas</p><p>entre verdadeiros e falsos, dentro de uma hierarquia de</p><p>superioridade de um padrão cultural sobre outros. O equívoco</p><p>está em considerar de modo exclusivo um padrão cultural como</p><p>o único, em vez de considerar todo e qualquer padrão cultural</p><p>como um dos padrões possíveis.</p><p>82 Educação intercultural</p><p>Provavelmente, um dos fatores que obstruem a passagem</p><p>para a relação entre culturas, no espaço educacional, é a cultura</p><p>escolar formal e normatizadora, a nossa concepção de cultura</p><p>como transmissão e assimilação de conhecimentos/ que manda para</p><p>os lados externos da escola a relação entre aprendizagem e</p><p>elaboração, tão presente nas brincadeiras entre as crianças.</p><p>Na instituição escolar, as traduções das crianças normalmente</p><p>são privadas de importância ou são consideradas lógicas</p><p>erradas de representação, por não se enquadrarem nos padrões</p><p>culturais normativos de entendimento, por não se enquadrarem</p><p>nos padrões culturais universalizantes e de similitude, que</p><p>ignoram os padrões culturais particulares.</p><p>Mas na escola estão lá, presentes, todos os dias, por anos</p><p>e anos consecutivos, circulando e mediando as relações entre</p><p>as pessoas, múltiplos padrões culturais, complexificados por</p><p>inumeráveis discursos da diferenciação cultural. O que nos</p><p>impede de experimentar o sabor de fazer a articulação desses</p><p>saberes, recuperando para nós mesmos o sabor prazeroso e</p><p>poético da aventura de sermos humanos?</p><p>Por outro lado, na existência cultural da criança e na da</p><p>educadora a que nos referimos, os diferentes padrões culturais</p><p>subsistem na representação de animal. Tanto a criança sabe</p><p>que Scubidu é um cachorro como a educadora sabe das relações</p><p>afetivas que podem existir entre os seres humanos e os</p><p>7 Fazemos referência aqui a todos nós, educadores e educadoras, que, ao</p><p>mantermos maior ou menor grau de aderência às estruturas</p><p>institucionalizadas da escola, produtoras da cultura escolar, nos deixamos</p><p>influenciar pela hegemonia dos referentes programáticos e pelos sistemas</p><p>burocráticos, assumidos no seu aspecto de quantidade de conteúdos a</p><p>serem vencidos, aceitando as pressões institucionais pelo término do</p><p>programa previsto para determinada série escolar, sem considerar a</p><p>pertinência, a validade e a adequação dos conhecimentos inerentes a esses</p><p>programas à presença das crianças e de sua realidade histórica, social e</p><p>cultural.</p><p>Entre limites e limiares de culturas... 83</p><p>animais, e que tais relações os tornam de uma natureza dife­</p><p>rente. É na lógica da conexão (e/e), nesse espaço ambivalente,</p><p>intersticial do entrelugar, que se abre a fronteira de um espaço</p><p>novo, no qual se pode encontrar o lugar para o desenvolvimento</p><p>do pensamento complexo, o pensamento que articula as</p><p>diferenças, transformando a educação num processo de</p><p>relações interculturais.</p><p>O que nos impede de estranhar quando as crianças nos</p><p>dão respostas inesperadas? O que nos impede de ver na</p><p>diferença de uma resposta ou de uma significação portas</p><p>abertas para o hibridismo do conhecimento e novas passagens</p><p>para ligar, por meio de uma mesma ponte, a existência concreta</p><p>e os saberes?</p><p>A relação entre teoria e prática é complexa. Segundo</p><p>McLaren (2000, p. 40), "a teoria, em alguns casos, informa</p><p>diretamente a prática; em outros, a prática reestrutura a teoria</p><p>como uma força fundamental para a mudança".</p><p>Na análise efetuada, podemos verificar a complexidade</p><p>dessa relação: de um lado, uma teoria totalizante, definitiva e</p><p>consensual que informa a prática da educadora; de outro,</p><p>a possibilidade de uma prática que, ancorada no dissenso e</p><p>numa visão nem definitiva nem totalitária da teoria, reestrutura</p><p>a própria teoria.</p><p>Atuar com educação intercultural é um processo de</p><p>intervenção contínua nas relações entre teoria e prática, entre</p><p>os conceitos e suas múltiplas significações, oriundas do diálogo</p><p>entre diferentes padrões culturais de que são portadores os</p><p>sujeitos que vivendam o processo educativo, recuperando a</p><p>visão complexa e sistêmica de todas as produções de</p><p>conhecimento. É a busca pela ruptura de uma visão de escola</p><p>como reprodução e resistência para ir além dessa visão,</p><p>84 Educação intercultural</p><p>assumindo os espaços educativos como produtores e</p><p>legitimadores de formas de subjetividades e de modos de vida,</p><p>procurando-se perceber como as</p><p>subjetividades são construídas na forma como se organiza o</p><p>espaço, o tempo e o corpo, e na forma como a linguagem é</p><p>utilizada tanto para legitimar como para marginalizar diferentes</p><p>posições subjetivas (...), produzindo identidades, desejos e</p><p>necessidades (McLaren, 2000, p. 28).</p><p>Trata-se, portanto, de adentrar nas redes de relações</p><p>complexas que se dão no contexto educativo para questionar</p><p>de que</p><p>maneira as formas sociais (e culturais) existentes encorajam,</p><p>rompem, aleijam, deslocam, diluem, marginalizam, tornam</p><p>possíveis ou sustentam capacidades humanas diferentes que</p><p>aumentem as possibilidades dos indivíduos de viver em um</p><p>mundo e em uma sociedade verdadeiramente democrática e</p><p>afirmadora da vida (id., ib., p. 28).</p><p>Educação intercu ¡tu ral e complexidade:</p><p>desafios emergentes a partir das relações em</p><p>comunidades populares</p><p>Nadir Esperança Azibeiro</p><p>A educação escolar e os processos de formação de</p><p>educador@s‘ não podem estar alheios aos contextos em que</p><p>nos movemos hoje, que são plurais e complexos. Nisso, ao</p><p>que parece, estamos todos de acordo. No entanto, os</p><p>consensos parecem desaparecer, quando se trata de tomar</p><p>decisões concretas quanto ao que significa "educar para uma</p><p>cidadania plural", "pensar a educação levando em conta a</p><p>pluralidade de culturas de nossas sociedades complexas",</p><p>"inverter prioridades e democratizar o acesso e permanência</p><p>na escola das crianças e jovens das classes populares".</p><p>Como bem lembra Vera Candau:</p><p>A instituição escolar está construída sobre a afirmação da</p><p>igualdade,</p><p>enfatizando a base cultural comum à que todos os</p><p>cidadãos e cidadãs deveríam ter acesso e colaborar na sua</p><p>permanente construção. Articular igualdade e diferença, a base</p><p>cultural comum e expressões da pluralidade social e cultural,</p><p>constitui hoje um grande desafio para todos os educadores</p><p>(2002, p. 9). 1</p><p>1 Se você reparou na forma como está grafado o plural, com o símbolo "@"</p><p>em vez das letras "e" (nesse caso) e "o" (em outros casos, adiante), que seria</p><p>o gramaticalmente correto, pode estar pensando que há aí um erro de</p><p>digitação. No entanto, essa forma gráfica foi escolhida propositalmente para</p><p>levantar a questão - política e cultural - da nossa linguagem, que transforma</p><p>o masculino no genérico, incluindo nele o feminino. Isso já se tornou tão</p><p>certo para nós, que nem o percebemos, muito menos levantamos qualquer</p><p>tipo de questionamento. Experimente, no entanto, usar o feminino plural</p><p>numa sala em que haja um ou dois homens, no meio de trinta ou quarenta</p><p>mulheres. Qual é a reação não apenas deles, mas também delas?</p><p>86 Educação ¡ntercultural</p><p>Situar esse desafío, a partir de um trabalho continuado de</p><p>ensino, pesquisa e extensão que vem se desenvolvendo numa</p><p>comunidade da periferia urbana de Florianópolis, a Comunidade</p><p>Nova Esperança, é a proposta deste capítulo.</p><p>Reconhecimento da diversidade</p><p>e discussão da diferença na escola</p><p>No âmbito da escola, o que podemos chamar de</p><p>reconhecimento da diversidade cultural tem estado presente, em</p><p>muitos discursos e em inúmeras experiências didáticas ou</p><p>mesmo curriculares nos últimos anos, entre as quais podemos</p><p>lembrar as experiências de educação indígena, o reconhecimento</p><p>da cidadania para os homossexuais, o reconhecimento da</p><p>cultura infantil, os pré-vestibulares para pessoas carentes, as cotas</p><p>nas universidades para alun@s de escolas públicas. Tudo isso</p><p>é ainda, no entanto, embrionário e insuficiente.</p><p>Entre os enfoques que têm dado suporte teórico a esse</p><p>novo modo de enxergar e construir o papel social da escola,</p><p>dois merecem especial atenção. Ambos surgiram como</p><p>tentativa de resposta à realidade da chamada evasão escolar -</p><p>ou exclusão escolar - particularmente de alun@s oriund@s das</p><p>classes populares.</p><p>O primeiro enfoque enfatiza a privação, déficit ou carência</p><p>cultural de certos grupos sociais, tomando como referência os</p><p>padrões culturais hegemônicos. Nessa perspectiva, entende-</p><p>se que a cultura (ou falta de cultura) das pessoas de classes</p><p>populares é que determina a incapacidade de permanência de</p><p>seus filhos na escola. Esse jeito de entender admite as</p><p>diferenças culturais, mas as hierarquiza, colocando a cultura</p><p>dominante como superior e entendendo o papel da escola</p><p>como compensatório. Ou seja, a função da escola seria a de</p><p>Educação inLercultural e complexidade... 87</p><p>oportunizar a apropriação da cultura dominante, tida como</p><p>universal. Isso termina por negar a diferença, já que a escola,</p><p>tendo como referência um padrão cultural único, universal,</p><p>deveria restituir a igualdade negada pela origem - de etnia, de</p><p>classe, de gênero... A perspectiva do déficit cultural faz com que</p><p>nos aproximemos das pessoas das comunidades de periferia -</p><p>ou de alun@s de escolas de periferia - tratando-@s como</p><p>perigos@s ou, no mínimo, como coitadinh@s, que não têm acesso</p><p>aos bens da cultura, não têm educação, não têm higiene, não têm...,</p><p>não têm..., não têml E nós, os bons, os sábios, os altruístas... vamos</p><p>lá para compensar, para suprir essas carênciasl</p><p>O outro enfoque procura assumir a diferença cultural. Não</p><p>apenas admite a existência de diferentes culturas, mas busca</p><p>entender a singularidade e a originalidade de linguagens,</p><p>valores, símbolos e estilos diferentes de comportamento que</p><p>são tecidos pelas pessoas em seu contexto histórico e social</p><p>peculiar. Nesse sentido, não se consideram as diferenças</p><p>culturais a partir de uma classificação hierárquica: nenhuma</p><p>cultura deveria ser vista como melhor ou pior, mais rica ou</p><p>mais pobre do que a outra, uma vez que cada uma faz sentido</p><p>em si mesma e pode ser enriquecida ou transformada na relação</p><p>com outras culturas.</p><p>A partir desse entendimento, o que precisa ser mudado é</p><p>o caráter monocultural da escola, construída a partir de um</p><p>único modelo cultural, o hegemônico. Em vez de ser apenas</p><p>um meio de transmissão dos saberes e valores da cultura</p><p>dominante, a escola pode configurar seus processos educativos</p><p>com base nas relações interculturáis: a interação crítica e</p><p>dialógica se torna muito mais fecunda e educativa na medida</p><p>em que as pessoas buscam compreender não só o que cada</p><p>uma quer dizer, mas também os contextos culturais a partir</p><p>dos quais seus atos e suas palavras adquirem significado.</p><p>88 Educação intercultural</p><p>Carência ou intensidade?</p><p>Recentemente, numa conversa em um Seminário Especial</p><p>sobre Educação Intercultural, no Programa de Pós-Graduação</p><p>em Educação da UFSC, uma das participantes, Maria Izabel</p><p>Porto de Souza,2 lembrou que a característica mais marcante</p><p>que ela tem encontrado nos integrantes de comunidades de</p><p>periferia é a luta pela sobrevivência, e não a carência. Essa</p><p>afirmação remete a pensar as pessoas da periferia não pelo</p><p>que lhes falta, mas por sua força e criatividade. Essa idéia se</p><p>aproxima muito daquela proposta por Valia (1998, p. 198), e já</p><p>incorporada a nossas pesquisas, da intensidade, como categoria</p><p>fundamental de análise, quando nos referimos aos movimentos</p><p>populares e às comunidades de periferia: o que os move não</p><p>são principalmente as carências, mas os desejos, os sonhos, os</p><p>projetos.</p><p>Um fato observado na Comunidade Nova Esperança pode</p><p>ilustrar esse entendimento. Essa comunidade se constituiu no</p><p>início da década de 1990, a partir do Movimento Sem Teto, em</p><p>Florianópolis (SC). Uma das participantes dessa comunidade,</p><p>Ana, é moradora do bairro desde a ocupação realizada pelo</p><p>movimento. Ana estava freqüentemente alcoolizada. Essa era</p><p>uma condição sua, desde antes de participar da ocupação,</p><p>quando morava no Montserrat, um dos morros da Ilha de</p><p>Florianópolis, onde se concentrava grande parte da população</p><p>afro-descendente. Tivera que sair de lá porque o marido,</p><p>também alcoólatra, além de espancá-la habitualmente,</p><p>2 Maria Izabel Porto de Souza recentemente defendeu a dissertação Construtores</p><p>de pontes: explorando limiares de experiências em educação intercultural (2002), que</p><p>estuda o Projeto Oficinas do Saber, desenvolvido nos últimos onze anos em</p><p>comunidades de periferia de Florianópolis, em cooperação com o Movimento</p><p>di Cooperazione Educativa e algumas escolas públicas italianas.</p><p>Educação intercultural e complexidade... 89</p><p>vendera o barraco onde moravam, com os poucos pertences</p><p>que tinham iá dentro, deixando-a na rua, com três filhos</p><p>pequenos.</p><p>No final de 1999, quando passamos de casa em casa para</p><p>decidir com as pessoas da comunidade que atividades o Projeto</p><p>Entrelaços do Saber3 passaria a desenvolver, ela foi uma das</p><p>que solicitaram a realização de oficinas de cerâmica. Desde</p><p>então, não deixou mais de participar. Tem usado álcool cada</p><p>vez menos. Já tem encomendas de peças de cerâmica, além de</p><p>já poder começar a ensinar outras pessoas da comunidade que</p><p>não participam das oficinas e desejam começar.</p><p>Na Semana Santa desse ano, fomos com o grupo da</p><p>cerâmica visitar o ateliê de uma artista plástica de Florianópolis,</p><p>Eli Heil. Quando soube que Eli nunca havia estudado artes,</p><p>que não tinha sido artista desde criança, que não se importava</p><p>se as pessoas achavam feio ou bonito o que ela fazia, parece</p><p>que Ana começou a acreditar na possibilidade, que até então</p><p>era um sonho distante, de ela própria ser uma artista. Isso a fez</p><p>como que desabrochar. Vendo Eli, Ana se encorajou, deixou de</p><p>achar feio o que fazia, acreditou mais em sua própria</p><p>capacidade. Começou a valorizar seu próprio saber, mudando</p><p>inclusive sua casa. A estante com as peças de cerâmica que</p><p>produzia saiu do canto do quarto em que se achava escondida</p><p>e ganhou o espaço central da sala. A televisão, que antes era o</p><p>centro da</p><p>cultural</p><p>brasileiro. Gilberto da Silva considera que a noção de</p><p>interculturalidade tenha potencial para construir alguns</p><p>referentes básicos que sustentam a educação intercultural como</p><p>projeto de intervenção na realidade constituída pela diversidade</p><p>cultural brasileira.</p><p>Voltando-nos para o campo da educação popular, Maria</p><p>Izabel Porto de Souza e eu, em "Entre limites e limiares de</p><p>Apresentação 11</p><p>culturas: educação na perspectiva intercul turar, discutimos a</p><p>perspectiva intercultural da educação, analisando a complexidade</p><p>tanto da formação da identidade pessoal num contexto</p><p>multicultural quanto da relação entre sujeitos de culturas</p><p>diferentes. A identidade, sendo definida historicamente, é</p><p>transformada continuamente em relação às formas pelas quais</p><p>somos representados ou interpelados nos sistemas culturais</p><p>que nos rodeiam, de tal forma que, à medida que os sistemas</p><p>de significação e representação cultural se multiplicam, somos</p><p>confrontados por uma multiplicidade desconcertante e</p><p>cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais</p><p>poderiamos nos identificar. Na maioria das vezes, as relações</p><p>entre sujeitos e entre culturas diferentes são consideradas a</p><p>partir de uma lógica binária (índio x branco, centro x periferia,</p><p>dominador x dominado, sul x norte, homem x mulher, criança</p><p>x adulto', normal x deficiente...) que não permite compreender</p><p>a complexidade dos agentes e das relações subentendidas em</p><p>cada pólo, nem a reciprocidade das inter-relações, nem a</p><p>pluralidade e a variabilidade dos significados produzidas</p><p>nessas relações. Entretanto, a complexidade da relação entre</p><p>culturas evidencia a necessidade de analisar a abordagem da</p><p>existência de uma fronteira cultural, uma borda deslizante e</p><p>intervalar nas relações, para além de uma simples divisão e</p><p>classificação binária da existência humana. Esse espaço</p><p>intervalar da cultura aparece como um espaço da intervenção</p><p>(tensão-negociação-tradução) que introduz a reinvenção</p><p>criativa da existência, fundada num profundo desejo de</p><p>solidariedade social: a busca do encontro. Nesse estudo,</p><p>focalizamos uma experiência concreta de educação</p><p>intercultural realizada entre crianças e educadores(as) do</p><p>Projeto Oficinas dq Saber, investigando como educadores e</p><p>12 Educação intercultural</p><p>educadoras tratam a própria cultura quando experimentam</p><p>concretamente relações interculturais.</p><p>Na mesma direção, Nadir Esperança Azibeiro explora a</p><p>dimensão complexa da interculturalidade em práticas de</p><p>educação popular. No capítulo "Educação intercultural e</p><p>complexidade: desafios emergentes a partir das relações em</p><p>comunidades populares", parte do pressuposto de que a</p><p>educação escolar e os processos de formação de educadores e</p><p>de educadoras não podem estar alheios aos contextos plurais</p><p>e complexos em que nos movemos hoje. Busca refletir sobre o</p><p>que significa, na prática, educar para uma cidadania plural, pensar</p><p>a educação levando em conta a pluralidade de culturas de nossas</p><p>sociedades complexas, inverter prioridades e democratizar o acesso e a</p><p>permanência na escola das crianças e jovens das classes populares.</p><p>Para além de discursos sobre carência cultural ou diferenças</p><p>culturais que têm gerado propostas de educação compensatória,</p><p>Nadir Azibeiro reflete sobre a possibilidade da construção</p><p>cotidiana de espaços de exercício de uma cidadania plural. Tal</p><p>perspectiva, em vez de enquadrar todos os indivíduos num</p><p>estado de direito universal, possibilita a criação de um campo</p><p>de forças em que cada conjunto de significados pode eclodir e</p><p>interagir. Isso não significa cair em formas extremas de</p><p>relativismo cultural, em que o vale-tudo pode deixar espaço</p><p>aberto para que as regras do mercado se estabeleçam como</p><p>critério absoluto de valor e verdade. A autora questiona os</p><p>preconceitos e os estereótipos, propondo reinventar</p><p>possibilidades de deixar emergir e interagir vozes e significados</p><p>tradicionalmente reprimidos e excluídos. Tomando como</p><p>referência uma experiência de educação intercultural vivida</p><p>com uma comunidade de periferia, defende que as perspectivas</p><p>da interculturalidade e da complexidade podem redimensionar</p><p>Apresentação 13</p><p>tanto os processos de formação de educadores e de educadoras</p><p>quanto a atuação cotidiana em sala de aula.</p><p>Os outros dois capítulos se voltam para a discussão das</p><p>mediações que se desenvolvem no campo da educação,</p><p>particularmente pela incidência da ação da mídia na escola.</p><p>A atualidade dessa temática se evidencia pela importância da</p><p>mídia como fator de comunicação, que coloca em contato</p><p>instantâneo as mais diferentes pessoas e contextos de todo o</p><p>planeta, com profundas e vastas implicações para as relações</p><p>interculturais e práticas educacionais: não obstante o caráter</p><p>massificador inerente às redes de comunicação que atravessam</p><p>o mundo inteiro, os diferentes grupos e povos tecem múltiplos</p><p>processos históricos e sociais de mediações culturais e</p><p>educacionais, qué podem potencializar tanto sujeições quanto</p><p>resistências.</p><p>Em "Mídia e educação", Maria Isabel Orofino estuda as</p><p>contribuições dos estudos da mídia e comunicação para uma pedagogia</p><p>dos meios na escola. Discute, a partir da contribuição das teorias</p><p>da comunicação, o papel da escola enquanto mediadora das</p><p>informações veiculadas pela mídia. Enfoca a comunicação</p><p>social a partir das teorias dos usos sociais da mídia e do</p><p>consumo cultural, sobretudo da obra de Jesús Martín-Barbero</p><p>e Guillermo Orozco, que elaboraram a teoria latino-americana</p><p>das mediações. Nessa óptica, Maria Isabel Orofino propõe que</p><p>a escola seja um espaço de uso dessas tecnologias de</p><p>comunicação como uma questão de direito à voz e à</p><p>visibilidade cultural dos estudantes, pois, cada vez mais, a</p><p>cultura da escola convive e compete com a cultura da mídia.</p><p>Neste sentido, torna-se imprescindível analisar a presença das</p><p>mídias no cotidiano dos estudantes, para compreender a</p><p>complexidade das relações que se desenvolvem na educação</p><p>14 Educação intercultural</p><p>escolar, envolvendo a articulação entre diferentes identidades</p><p>sociais, bem como as relações interculturais. É preciso,</p><p>assim, prestar atenção nos modos como as mídias mobilizam</p><p>as audiências e nos usos que diferentes grupos sociais fazem</p><p>das tecnologias de informação e comunicação.</p><p>Sob a mesma perspectiva teórica, em "Mídia e mediações</p><p>culturais na escola", elaborado por Maurício José Siewerdt em</p><p>co-autoria comigo, analisamos o processo de pesquisa</p><p>realizado junto a um grupo de professores de três escolas</p><p>articuladas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra</p><p>(MST). Procuramos entender que mediações são recorrentes</p><p>para esses professores, diante da necessidade de seleção crítica</p><p>dos recursos da linguagem audiovisual (televisão e vídeo) para</p><p>a sua utilização escolar. Buscamos localizar na formação</p><p>cultural desses professores, através de suas histórias de vida e</p><p>de suas posturas diante das mídias, o lugar onde se</p><p>materializam as mediações. Observamos que os professores e</p><p>as professoras, de acordo com as mediações vivenciadas em</p><p>seu contexto social e em sua história pessoal, atribuem</p><p>significados diferentes aos produtos da mídia (por exemplo, os</p><p>filmes em videoteipe), e são esses significados que orientam o</p><p>uso (ou a recusa) desses meios como subsídios didáticos na</p><p>educação escolar.</p><p>O conjunto desses capítulos representa uma expressão</p><p>parcial das pesquisas que vêm sendo realizadas pelo Núcleo</p><p>Mover - Educação Intercultural e Movimentos Sociais (Fleuri,</p><p>2002) - e traz contribuições para o debate sobre educação</p><p>intercultural, mídia e mediações. Assume perspectivas políticas</p><p>e epistemológicas comprometidas com as lutas das classes</p><p>populares, na mesma direção dos estudos de Marisa Costa</p><p>(2000), Vera Candau (2002), e Ana Canen e Antonio Flávio</p><p>Moreira (2001), entre outros. Entretanto, o estudo de Gilberto</p><p>Apresentação 15</p><p>Silva amplia o conhecimento dos autores de referência para a</p><p>compreensão da educação multicultural e intercultural,</p><p>colocando em luz, além de</p><p>sala, foi para um canto. Toda a casa ganhou brilho,</p><p>através de lustres que ela mesma fez recortando garrafas de</p><p>refrigerante.</p><p>3 O Projeto de Educação Popular Entrelaços do Saber foi criado em 1987 por</p><p>um grupo de professor@s da Universidade do Estado de Santa Catarina</p><p>(Udesc), assessor@s ligad@s a organizações não-governamentais e lideranças</p><p>comunitárias da Grande Florianópolis. Desde 1998, as atividades desse projeto</p><p>têm se concentrado na Comunidade Nova Esperança.</p><p>90 Educação ¡ntercullural</p><p>Não que suas condições materiais de existência tenham</p><p>sofrido grande transformação: ela continua às vezes tendo</p><p>que fazer um foguinho no quintal para cozinhar, porque não</p><p>sobra dinheiro para comprar gás; o ex-marido, aquele mesmo</p><p>que a espancou tantas vezes, continua abrigado num cubículo</p><p>nos fundos da casa, recolhido por ela e pelos filhos por estar</p><p>com câncer, em fase terminal, e, literalmente, não ter onde cair</p><p>jnorto. Mas o sonho voltou novamente a ter lugar em seu</p><p>cotidiano sofrido.</p><p>Temos observado situações semelhantes em inúmeros</p><p>outros moradores da comunidade, participantes das oficinas</p><p>de artes ou de capacitação profissional: o crescimento da auto­</p><p>estima, a partir da descoberta de que são capazes, da experiência</p><p>de serem ouvidos, de ter sua opinião considerada, de ver suas</p><p>peças de artesanato valorizadas em feiras e exposições, de</p><p>contatos e intercâmbio com pessoas e grupos diferentes. O mesmo</p><p>tem ocorrido nas oficinas de iniciação à informática: suas</p><p>dificuldades de leitura e ortografia, discutidas em conjunto no</p><p>grupo não como erros, mas como diferenças, têm possibilitado</p><p>o crescimento de todo o grupo. E isso não apenas para as</p><p>pessoas da comunidade, mas também para as da universidade:</p><p>a monitora discute regularmente suas próprias dificuldades nas</p><p>aulas de Dificuldades de Aprendizagem, em sua turma da</p><p>terceira fase de Pedagogia, possibilitando a apropriação</p><p>das experiências a tod@s @s colegas.</p><p>Essa mudança de perspectiva - olhar as pessoas das</p><p>comunidades de periferia não a partir de suas carências, mas</p><p>da intensidade de seus sonhos, projetos e desejos - foi um dos</p><p>mobilizadores da busca de outros referenciais para a pesquisa</p><p>e para a formação de educador@s, que levasse em conta a</p><p>multiplicidade de culturas, que caracteriza o público das escolas</p><p>onde estamos atuando.</p><p>Educação intercultural e complexidade... 91</p><p>Diversidade, diferença e educação intercultural</p><p>Falar das diferenças culturais entre a universidade e as</p><p>comunidades - ou alun@s de escolas de periferia - é repetir o</p><p>óbvio. À medida, entretanto, que aprofundamos nosso contato</p><p>com essas comunidades, no Projeto Entrelaços do Saber, fomos</p><p>nos dando conta da pluralidade de culturas presentes não</p><p>apenas entre essas comunidades e a universidade, mas também</p><p>entre @s própri@s morador@s das comunidades. Tentando</p><p>construir um caminho para a formação de educador@s a partir</p><p>dessas observações e desse entendimento, deparamo-nos com</p><p>uma proposta de educação intercultural que, a partir de então,</p><p>vimos tentando implementar e reconstruir.</p><p>O debate sobre as questões educativas das relações</p><p>interculturáis é bastante recente e ainda muito restrito entre</p><p>nós, como podemos verificar em outros capítulos deste mesmo</p><p>livro. Desenvolveu-se inicialmente na Europa, logo após a</p><p>Segunda Guerra Mundial, tentando dar conta da reflexão e da</p><p>intervenção sobre o problema emergen ciai da inserção dos</p><p>imigrantes. Talvez por essa origem - e pelas propostas oficiais</p><p>daí brotadas - a interculturalidade suscite tantas reservas e</p><p>mesmo preconceitos na universidade.</p><p>Uma das primeiras formulações da concepção de educação</p><p>intercultural, de fato, encontra-se ligada à Declaração sobre raça</p><p>e sobre preconceitos raciais, documento da Unesco, datado de 1978,</p><p>que propõe uma educação para a paz e prevenção do racismo, Esse</p><p>documento entende a educação intercultural como a condição</p><p>estrutural da educação para sociedades multiculturais. A partir daí,</p><p>têm surgido iniciativas, tanto governamentais quanto de redes</p><p>oriundas da sociedade civil, com os mais diversos direcionamentos</p><p>político-ideológicos. De modo geral, na América do Norte</p><p>92 Educação intercultural</p><p>enfatiza-se convivência entre múltiplas culturas. Na Europa,</p><p>o debate tem se constituído a partir da inserção dos imigrantes</p><p>estrangeiros. Na América Latina, tem predominado a</p><p>formulação de propostas de educação bilingüe, para valorizar</p><p>a relação entre populações indígenas e nacionais. Muitas</p><p>dessas propostas são desenvolvidas como uma nova forma</p><p>de integração de populações culturalmente distintas a uma</p><p>suposta nacionalidade, entendida como cultura, homogênea e</p><p>normalizadora das diferenças.</p><p>Falar sobre essas diversas propostas ultrapassa os</p><p>objetivos deste capítulo. Queremos aqui nos concentrar na</p><p>experiência concreta de educação intercultural que vimos</p><p>desenvolvendo e nos sentidos específicos que vêm sendo</p><p>construídos a partir dela. Nossas reflexões começaram a se</p><p>desenvolver a partir da contribuição de autores como Peter</p><p>McLaren e Homi Bhabha, entre outros, que levantam a</p><p>questão da necessária distinção entre diversidade cultural e</p><p>diferença cultural. De acordo com Bhabha, a diversidade cultural</p><p>refere-se ao reconhecimento da pluralidade de culturas</p><p>presente em sociedades complexas. Ou seja, admite e ressalta</p><p>a multiplicidade de práticas, valores, costumes, significados.</p><p>Esses significados plurais, entretanto, por vezes têm sido</p><p>entendidos, em sua diversidade, como pré-dados, desde sempre</p><p>existentes, concebidos, assim, como naturais, inerentes, essenciais,</p><p>intocados pelas inter-relações. Tal concepção de diversidade</p><p>cultural apresenta uma tendência à íolclorização dos costumes</p><p>e tradições, considerando a miscigenação, o sincretismo, como</p><p>uma fatalidade a ser, tanto quanto possível, evitada ou ao menos</p><p>postergada.</p><p>Já o conceito de diferença cultural, ainda de acordo com</p><p>Bhabha, captura o processo mesmo de constituição e</p><p>Educação intercultural e complexidade... 93</p><p>hierarquização desses significados múltiplos. As diferenças</p><p>culturais, nesse sentido, não são entendidas como dados ou</p><p>evidências, que se manifestam naturalmente como antagonismos,</p><p>mas como construções histórico-culturais, que decorrem de</p><p>relações de poder, nas quais os diferentes grupos sociais,</p><p>particularmente os subalternos, podem redescobrir e</p><p>reconstruir o valor positivo de suas culturas e experiências</p><p>específicas - ressignificando-as. Tais processos põem em xeque</p><p>a pretensa neutralidade e universalidade das normas, tornando</p><p>cada vez mais difícil utilizá-las para legitimar os jogos de</p><p>sujeição e dominação.</p><p>Essa distinção mostrou-se fecunda para entendermos</p><p>nossas relações com as pessoas das comunidades de periferia.</p><p>Ao entendermos as diferenças culturais não como dados, mas</p><p>como relações de força permanentemente reinstituídas, cria-</p><p>se o espaço, o entrelugar, em que preconceitos e estereótipos</p><p>podem ser desfeitos ou ressignificados.</p><p>Nesse caso, a miscigenação, ou hibridismo, passa a ser</p><p>entendida como processo inerente às interações e ao jogo de</p><p>forças. As tradições e os valores são recriados, reconstruídos</p><p>de modo dinâmico e flexível, tal como um organismo vivo.</p><p>É esse o espaço liminar, fronteiriço, polifónico da intercultura.</p><p>Entendemos intercultura como os espaços e processos de</p><p>encontro-confronto dialógicò entre as várias culturas, que</p><p>podem produzir transformações e desconstruir hierarquias.</p><p>É esse o entrelugar no qual todas as vozes podem emergir,</p><p>manifestar-se, in-fluir - se assim podemos caracterizar a</p><p>inclusão dos diversos fluxos, das inúmeras teias de significados.</p><p>Nesse sentido, a cultura hegemônica não domina inexorável e</p><p>unilateralmente as demais, uma vez que, na trama complexa e</p><p>94 Educação intercultural</p><p>tensa com as outras culturas, não permanece imune às</p><p>influências e às mudanças de significados.</p><p>Falar em diferenças culturais, portanto, remete a assumir</p><p>uma postura de compromisso com a produção de espaços de</p><p>exercício de uma cidadania plural. Tal perspectiva, em vez de</p><p>tentar enquadrar todos os indivíduos num único estado de direito</p><p>universal, quer possibilitar a criação de um campo de forças</p><p>em que cada conjunto de significados pode eclodir e interagir.</p><p>Isso não significa cair em formas extremas de relativismo</p><p>cultural, em que o vale-tudo pode deixar espaço aberto para</p><p>que as regras do mercado se estabeleçam como critério</p><p>absoluto de valor e verdade. O que pretendemos é não reproduzir</p><p>preconceitos e estereótipos vinculados a rótulos, mas reinventar</p><p>possibilidades de deixar emergir e interagir vozes e significados</p><p>seguidamente reprimidos e excluídos.</p><p>Esse' entendimento parece-nos fundamental para</p><p>pensarmos referenciais para a formação de educador@s a</p><p>partir dos desafios e complexidades que emergiram da</p><p>democratização do acesso à escola. Nesse sentido, a proposta de</p><p>educação intercultural que vimos experienciando e recriando</p><p>busca a produção dialógica de uma cidadania plural. Isso</p><p>significa trabalhar para que sejam considerados cidadãos</p><p>outros além daqueles que se enquadram nos cânones da cultura</p><p>hegemônica. A relação entre culturas diferentes, entendidas</p><p>como contextos complexos, produz encontros/confrontos</p><p>entre conjuntos de teias de significados que nem sempre dispõem</p><p>de códigos comuns para se entenderem. A interação entre esses</p><p>múltiplos sentidos pode possibilitar a instituição de modos</p><p>híbridos, polifónicos ou dialógicos de produzir subjetividades,</p><p>como também de entender a realidade e a ação sobre ela.</p><p>Educação ¡ntercultural e complexidade... 95</p><p>Hibridismo, polifonia e diálogo</p><p>Cabe aqui uma reflexão e explicação sobre o que estamos</p><p>entendendo por híbridos, polifónicos e dialógicos, já que essas</p><p>imagens-conceito se tornaram para nós tão significativas.</p><p>O hibridismo cultural é um dos conceitos-chave para Homi</p><p>Bhabha, pesquisador e professor indiano, autor de O local da</p><p>cultura (1998). Para ele, o contexto cultural híbrido não é o</p><p>espaço da síntese, mas da ambivalência. Ou seja, quando pessoas</p><p>ou grupos de diferentes culturas se relacionam, o que acontece</p><p>de mais importante não é a simples mistura, mas sobretudo a</p><p>pluralidade dos significados, que possibilita a emergência de</p><p>uma multiplicidade de sentidos em interação.</p><p>As diferenças culturais não se diluem imediatamente num</p><p>'</p><p>da</p><p>ignorância ou das trevas. A perspectiva da intercultura, assim</p><p>entendida, não se identifica com posturas salvacionistas ou</p><p>missionárias, lançando para um outro patamar epistemológico</p><p>as ações e as pesquisas em torno do popular.</p><p>Esse entendimento de intercultura pode constituir-se</p><p>numa forma de dissolução de relações colonialistas, que se</p><p>mantêm na escola e na sociedade, possibilitando a dissolução</p><p>de subalternizações e exclusões.</p><p>O pensamento complexo como necessidade paradigmática</p><p>Para tornar possível esse pensar, sentir, agir plural, que</p><p>incorpora e articula, ao invés de excluir, é necessária, como</p><p>vínhamos afirmando, uma mudança paradigmática. Ou seja,</p><p>é preciso flexibilizar a propria estruturação, a própria modulação</p><p>dos sistemas de idéias e sentimentos, das teias de significados,</p><p>da visão de mundo e atitude diante do mundo. Os esquemas</p><p>mentais e as estruturas de personalidade rígidas, dualistas,</p><p>dogmáticas não dão conta de pensar e agir em contextos</p><p>complexos.</p><p>Educação intercultural e complexidade... 99</p><p>O que ainda informa nossos sistemas de idéias são os</p><p>modelos de um universo concebido como sistema fechado,</p><p>pronto, com leis que garantem sua estabilidade, seu equilíbrio.</p><p>É, por exemplo, um modelo bíblico - judaico-cristão - de um</p><p>mundo criado perfeito, onde qualquer desordem é fruto da</p><p>desobediência humana. Ou um modelo mecanicista, apoiado</p><p>na física clássica, para o qual tudo funciona como um relógio.</p><p>Se há alguma falha, é porque alguma engrenagem não anda</p><p>bem e tem que ser consertada ou substituída. A inteligência</p><p>parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva,</p><p>reducionista quebra a complexidade do mundo em fragmentos,</p><p>fraciona os problemas, separa aquilo que está unido,</p><p>unidimensiona o multidimensional.</p><p>Para pensar e agir na perspectiva da complexidade, no</p><p>entanto, não basta simplesmente assumir uma visão sistêmica.</p><p>Se esta se fechar em si mesma, como um sistema auto-</p><p>explicativo e autogerido, com regras e respostas prontas, não</p><p>haverá a possibilidade de mudança significativa em termos</p><p>paradigmáticos, ou seja, de referências gerais para entender a</p><p>realidade e nela interagir.</p><p>O pensamento complexo se constitui e se apresenta como</p><p>um sistema aberto, em permanente processo de interação e</p><p>reinvenção. Concebe o universo como sistema aberto, em</p><p>expansão, em que o equilíbrio é precário, em que a instabilidade</p><p>e a multiplicidade de probabilidades é que são a norma. Vários</p><p>autores6 vêm trabalhando nessa direção, buscando apresentar</p><p>metáforas que nos ajudem a incorporar referenciais que abram</p><p>6 Na época contemporânea, o pensamento complexo tem sido elaborado nos</p><p>interstícios entre as várias disciplinas. A obra de Pessis-Pasternak (1993) e a</p><p>obra organizada por Nascimento e Pena-Vega (1999) dão uma idéia dessa</p><p>discussão e d@s autor@s nela envolvid@s.</p><p>100 Educação intercultural</p><p>outros horizontes, outras possibilidades de leitura e recriação</p><p>da realidade, complexa, que somos e em que nos movemos.</p><p>Não é difícil, particularmente neste início de milênio,</p><p>admitir e entender que a realidade é complexa. Ao falar em</p><p>complexidade, porém, a imagem ou o conceito que nos vem,</p><p>quase que de imediato, é o de algo complicado. Pensar em</p><p>complicação, entretanto, não remete necessariamente à idéia</p><p>da complexidade como a estamos entendendo. Fazendo uma</p><p>analogia - tendo presente a limitação inerente a qualquer</p><p>comparação -, diríamos que a complicação se assemelha mais a</p><p>um nó que une, sim, mas embaraçando as linhas, enquanto a</p><p>complexidade é da ordem da trama, que une os fios entrelaçando-</p><p>os, formando um tecido. O próprio Edgar Morin sugere essa</p><p>analogia, ao lembrar a etimologia da palavra complexus, que</p><p>significa "aquilo que é 'tecido' junto".</p><p>Pensar na perspectiva da complexidade, então, é como</p><p>pensar num tecido em que os fios paralelos não são apenas</p><p>amarrados, confundindo-se, mas unidos transversalmente por</p><p>uma trama que os religa. A partir desse paradigma de pensamento</p><p>e ação, entender a realidade não significa decompô-la em elementos</p><p>simples, isolando-os uns dos outros, mas buscar percebê-la em</p><p>suas múltiplas composições e interações, em suas diferentes</p><p>redes de significados. O pensamento complexo não se reduz à</p><p>ciência, à filosofia, à arte ou a qualquer campo específico do</p><p>saber, mas permite sua comunicação, como se fosse uma naveta</p><p>que trabalha para unir os fios.</p><p>Nessa perspectiva, toda interpretação de fatos históricos,</p><p>sociais, políticos ou econômicos que pretenda minimamente</p><p>dar conta da complexidade do real só pode ser polifónica, plural,</p><p>dialógica. Ou seja, em vez de se buscar entender a realidade a</p><p>Educação intercultural e complexidade... 101</p><p>partir de uma doutrina (um sistema explicativo coerente que</p><p>se constitui como o único verdadeiro), procura-se explicitar</p><p>múltiplas possibilidades de significação constituídas a partir</p><p>das várias perspectivas culturais em interação.</p><p>Mais do que um mosaico, em que os fragmentos que</p><p>formam o todo estão situados num único plano, poderiamos</p><p>pensar num caleidoscópio, em que múltiplos planos (múltiplos</p><p>contextos) se entrelaçam e interagem, formando muitos</p><p>mosaicos, que ao mesmo tempo se distinguem, se refazem, se</p><p>relacionam. A ambição da complexidade, afirma Morin (1998,</p><p>p. 176), é dar conta das articulações despedaçadas pelos cortes</p><p>entre as disciplinas, entre as categorias cognitivas e entre os</p><p>tipos de conhecimento; entre a subjetividade humana (a filosofía,</p><p>a poesia^a arte) e a objetividade científica; entre os processos</p><p>de conhecimento e os produtos do conhecimento. A perspectiva</p><p>da complexidade não se propõe esgotar todas as informações</p><p>sobre um fenômeno estudado, mas respeitar e se abrir para suas</p><p>diversas dimensões - inclusive para aquelas que ainda não se</p><p>percebem ou não se admitem.</p><p>Para Morin, três metáforas podem se constituir em formas</p><p>não-lineares e não-compartimentadas - multidimensionais,</p><p>portanto complexas - de entender as relações ou de enxergar</p><p>o real, aproximando-nos um pouco mais do que significa o</p><p>paradigma da complexidade. São elas: a hologramática, a</p><p>recursividade e a dialógica.</p><p>A hologramática é definida a partir da noção de holograma.</p><p>Em fotografia, holograma é a imagem física cujas qualidades se</p><p>devem ao fato de cada um dos seus pontos incluir toda a</p><p>informação do conjunto. Nesse sentido, podemos dizer que</p><p>não só a parte é constitutiva do todo, mas também o todo é</p><p>102 Educação ¡ntercultural</p><p>constitutivo das partes, porque as conexões entre as partes, suas</p><p>interações (mútuas relações) e inter-retroações (interferências</p><p>mútuas) é que se tornam constitutivas do todo: o todo só existe</p><p>a partir das e nas conexões entre as partes. E é também nessa</p><p>interação que cada uma das partes continuamente se reconstitui</p><p>e recria seus sentidos e seus contextos.</p><p>Ultrapassando o imaginário sistêmico das ciências físicas,</p><p>esse princípio pode nos remeter a uma visão orgânica,</p><p>interativa e dialógica do ser vivo e da sociedade.</p><p>Cada célula tem a totalidade do patrimônio genético de um</p><p>organismo policelular; a sociedade, como um todo, está</p><p>presente em cada indivíduo, na sua linguagem, em seu saber,</p><p>em suas obrigações e em suas normas. Dessa forma, assim como</p><p>cada ponto singular de um holograma contém a totalidade da</p><p>informação do que representa, cada célula singular, cada</p><p>indivíduo singular contém de maneira hologrâmica o todo do</p><p>qual faz parte e que ao mesmo tempo faz parte dele (Morin,</p><p>2001, p. 38).</p><p>Particularmente na educação, essa perspectiva nos</p><p>convida a olhar não apenas os aspectos intelectuais da</p><p>construção do conhecimento, mas seus componentes</p><p>emocionais, corpóreos, sociais, culturais etc., bem como os</p><p>jogos de forças e interesses presentes em cada um dos parceiros</p><p>em interação, em cada contexto e situação educativa específica.</p><p>A hologramática remete-nos, ainda, à verificação da</p><p>possibilidade da emergência, em situações de interação, de</p><p>características que não estão presentes isoladamente em</p><p>nenhum dos participantes</p><p>de um grupo e que estão, ao mesmo</p><p>tempo, latentes em todos eles, precisando apenas de um espaço,</p><p>uma oportunidade, para que se manifestem.</p><p>Já a organização recursiva e retroativa é o entendimento de</p><p>que os efeitos e produtos são necessários à própria causação</p><p>Educação intercultural e complexidade... 103</p><p>de um fenômeno e à sua própria produção, ou seja, o efeito</p><p>retroage sobre o fenômeno que o causou, modificando-o.</p><p>Cada pessoa é, ao mesmo tempo, causa e efeito de suas relações</p><p>sociais, das interações que estabelece. Nesse sentido, aprender</p><p>e ensinar não se constituem como processos separados,</p><p>assumidos como papéis específicos de educand@s e</p><p>educador@s. Aprender e ensinar são processos interativos,</p><p>nos quais quem tenta aprender também ensina e quem tenta</p><p>ensinar também aprende.</p><p>A dialógica, já mencionada anteriormente, refere-se à</p><p>compreensão de que não é possível entender a realidade a</p><p>partir de uma única verdade, afirmada como dogma, como</p><p>doutrina. O mundo pode ser conhecido a partir de diferentes</p><p>lógicas, constituídas a partir das várias perspectivas que estão</p><p>em confronto ou interação. Dessa forma, pensar a partir da</p><p>complexidade significa abandonar tipos lineares e rígidos de</p><p>explicação, para desenvolver modos multirreferenciais e</p><p>fluidos de entendimento e de intervenção. Ou seja, sem</p><p>desconsiderar o rigor e a coerência de cada processo explicativo,</p><p>busca-se compreender os sentidos de cada elemento (partes)</p><p>a partir das suas conexões com os outros elementos que</p><p>constituem o conjunto (todo); ao mesmo tempo, a compreensão</p><p>do todo é elaborada mediante a identificação de seus</p><p>elementos constitutivos, assim como das suas interconexões.</p><p>Mas é justamente quando consideramos o mesmo fenômeno</p><p>a partir de diferentes contextos e processos explicativos</p><p>(lógicas), que surge a possibilidade de novas interpretações e</p><p>de novos significados. Daí o sentido da dialógica; "Significa</p><p>que duas lógicas, duas 'naturezas', dois princípios são coligados</p><p>em uma unidade sem que com isto a dualidade se dissolva na</p><p>unidade" (Morin, 1985, p. 57).</p><p>I</p><p>104 Educação intercultural</p><p>A complexidade, no entanto, para não perder a</p><p>possibilidade de fecundar nosso entendimento e nossas</p><p>análises, não pode ser entendida como um método, fechado,</p><p>rígido, mas sim como um lembrete: uma perspectiva que nos</p><p>leva a pensar os conceitos sem nunca dá-los por concluídos.</p><p>Incita-nos a quebrar as esferas fechadas para restabelecer as</p><p>articulações entre o que foi separado, tentar compreender sua</p><p>multidimensionalidade, juntar as idéias, os fatos, as pessoas,</p><p>mesmo @s que aparentemente se excluem, se contradizem,</p><p>continuamente criticando-se a si mesma.</p><p>Essa maneira de entender e de ser se opõe aos sectarismos</p><p>e às intolerancias. Isso não significa - não é demais repetir -</p><p>assumir um relativismo absoluto, que não crê em nada e não</p><p>luta por nada. Significa, sim, ter princípios e valores claros: entre</p><p>eles o respeito, a solidariedade, o pensar e fazer com e,</p><p>principalmente, a vida como valor maior. A reivindicação</p><p>primeira do pensamento complexo, da não-separação entre</p><p>quem investiga e seu objeto de investigação, exige que @</p><p>cientist@, @ filósof@, @ artist@, @ educador@ voltem a</p><p>assumir sua responsabilidade ética. Toda definição de</p><p>princípios ou valores é sempre a escolha de uma possibilidade</p><p>entre muitas outras. As determinações e os condicionamentos</p><p>a que somos submetidos não são absolutos. Mesmo as marcas</p><p>culturais e as influências dos contextos em que vivemos</p><p>formam nossas opiniões, mas de modo sempre interativo e</p><p>dinâmico.</p><p>O pensamento complexo - como escolha que se refaz</p><p>continuamente - é um pensamento que pratica o abraço e se</p><p>prolonga na ética da solidariedade. Solidariedade que não se afirma</p><p>em discursos ou palavras de ordem, mas é construída no dia-</p><p>a-dia, nas ações e situações concretas em que nos encontramos.</p><p>Educação intercultural e complexidade... 105</p><p>A desconfiança ou a confiança, propostas pelo pensamento</p><p>complexo, significam não se submeter automaticamente a</p><p>qualquer idéia ou grupo, nem recusar qualquer coisa sem</p><p>refletir sobre ela (o que é comum em nossos posicionamentos</p><p>políticos: se a opinião vem de alguém confiável, aceito sem questionar;</p><p>se vem áe alguém de quem desconfio, também, sem titubear, rejeito).</p><p>Há sempre uma aposta, um risco, uma incerteza em tudo o</p><p>que pensamos e cremos. Nada é adquirido definitivamente,</p><p>nem no campo educacional, nem no campo político, nem no</p><p>campo teórico. No entanto, essa convicção, em vez de nos lançar</p><p>no dësespero, ou no relativismo, nos descortina um mundo de</p><p>potencialidades, no qual todas as ousadias são permitidas, todas</p><p>as possibilidades estão em aberto. A responsabilidade passa a</p><p>ser muito maior.</p><p>O desenvolvimento da aptidão para contextualizar e</p><p>perceber interações e conexões tende a produzir a emergência</p><p>de um pensamento ecologizante, no sentido em que se aprende</p><p>a situar todo acontecimento, informação ou conhecimento em</p><p>relação de inseparabilidade em seu meio ambiente - cultural,</p><p>social, econômico, político e, é claro, natural. Não só leva a</p><p>situar um acontecimento em seu contexto, mas também incita</p><p>a perceber como tanto o acontecimento quanto o contexto se</p><p>modificam mutuamente ou se explicam de outras maneiras.</p><p>Um tal pensamento torna-se um pensamento complexo, pois</p><p>não basta inscrever todas as coisas ou acontecimentos em um</p><p>quadro ou uma perspectiva. Trata-se de procurar sempre as relações</p><p>e inter-retroações entre cada fenômeno e seu contexto, as</p><p>relações de reciprocidade entre o todo e as partes: como uma</p><p>modificação local repercute sobre o todo e como uma mudança</p><p>do todo repercute sobre as partes. As macro- e microperspecüvas</p><p>não se excluem: são complementares, se inter-relacionam,</p><p>106 Educação intercultural</p><p>retroagem, do mesmo modo que o individual e o coletivo,</p><p>o local e o global.</p><p>Desafios para a educação escolar</p><p>e para a formação de educador@s</p><p>Que implicações têm essas idéias-experiência para os</p><p>processos de formação de educador@s e para nossa atuação</p><p>cotidiana em sala de aula, particularmente em escolas públicas</p><p>de periferia?</p><p>É essa a questão a partir da qual somos permanentemente</p><p>incitad@s a reler e reinscrever motivações e significados de</p><p>nossas ações e relações, de cada gesto, ato ou atitude cotidiana.</p><p>Assim, na escola, como vem acontecendo na comunidade Nova</p><p>Esperança, as questões advindas da realidade social, da</p><p>comunidade do entorno, podem voltar a ser colocadas e ter</p><p>espaço na construção curricular.</p><p>Tendo presente que o currículo é construção social, é</p><p>trajetória, é processo, dele não podem ficar ausentes as</p><p>considerações que vimos desenvolvendo. Cada vez fica mais</p><p>evidente a necessidade do reconhecimento do caráter plural</p><p>da educação escolar. Cada grupo que a pensa e atua, em cada</p><p>região, em cada unidade escolar, o faz a partir de seus</p><p>significados.</p><p>Sendo assim, como afirma Dayrell,</p><p>não podemos considerá-la [a educação escolar] como um dado</p><p>universal, com um sentido único, principalmente quando este</p><p>é definido previamente pelo sistema ou pelos professores. Dizer</p><p>que a escola é polissêmica implica levar em conta que seu</p><p>espaço, seus tempos, suas relações podem estar sendo</p><p>significados de forma diferenciada, tanto pelos alunos quanto</p><p>pelos professores, dependendo da cultura e projeto dos</p><p>diferentes grupos sociais nela existentes (1996, p. 144).</p><p>Educação intercultural e complexidade... 107</p><p>Esse jeito de entender as coisas pode nos parecer um</p><p>bocado estranho, já que, como vimos, estamos acostumad@s a</p><p>pensar ñas coisas separando-as, isolando-as, fragmentando-as.</p><p>O desafio que a realidade - complexa - hoje nos coloca é</p><p>aprender a articular, conectar, interagir.</p><p>Além disso, a cidadania deste mundo plural e injusto em</p><p>que vivemos tem que ser construida no dia-a-dia, sendo</p><p>características fundamentais do cidadão neste novo século:</p><p>a abertura para o diferente, a coragem de ousar e, em todos os</p><p>momentos, a ética que priorize a vida.</p><p>Para</p><p>construir na prática a possibilidade de uma sociedade</p><p>mais solidária, mais justa, mais humana, é prioritária e</p><p>imprescindível a mudança do jeito autoritário, destrutivo,</p><p>utilitarista que se tornou tão comum atualmente. Desse modo,</p><p>construir, na prática social, a partir das relações cotidianas, um</p><p>novo jeito de conceber e viver a cidadania é o nosso grande</p><p>desafio.</p><p>\</p><p>Mídia e educação: contribuições dos estudos</p><p>da mídia e comunicação para uma pedagogia</p><p>dos meios na escola</p><p>Maria Isabel Orofino</p><p>Educação escolar e cultura da mídia</p><p>A experiência cultural das crianças e adolescentes de hoje</p><p>- estejam eles e elas dentro ou fora do espaço escolar - é</p><p>permeada por uma vasta oferta de produtos simbólicos que se</p><p>originam de diferentes meios de comunicação: televisão,</p><p>revistas, gibis, rádio, CDs e internet, entre outros. Cada vez</p><p>mais a cultura da escola convive e compete com a cultura da</p><p>mídia. Nesse sentido, ao tratarmos de problemas relacionados</p><p>à educação escolar é à complexidade de relações que envolvem</p><p>a articulação entre diferentes identidades sociais bem como</p><p>as relações interculturais, é preciso levar em conta também a</p><p>presença dos meios de comunicação social no cotidiano dos</p><p>estudantes. Trabalhar com a educação envolve tamb��m o</p><p>desenvolvimento de um olhar atento aos modos como as</p><p>mídias mobilizam as audiências e aos usos que diferentes</p><p>grupos sociais fazem das tecnologias de informação e</p><p>comunicação.</p><p>Vou tomar como ponto de partida um exemplo retirado</p><p>de um livro sobre mídia e cultura, em que o autor Roger</p><p>Silverstone descreve a presença da TV na vida cotidiana a partir</p><p>da seguinte ilustração:</p><p>Uma garotinha, que não tem mais que 5 ou 6 anos, chega em</p><p>casa da escola, em uma tarde de verão. Ela entra correndo na</p><p>sala de estar de sua casa na periferia, joga a lancheira vazia no</p><p>no Educação intercultural</p><p>sofá, liga a televisão e coloca-se em frente ao aparelho, ajoelhada</p><p>no chão. Depois de alguns minutos, o quintal lhe acena, e para</p><p>lá ela corre. Para o balanço. A televisão, lá dentro, continua</p><p>ligada. A mãe, de sua observação panóptica na cozinha, ao</p><p>perceber que a garotinha já não mais assiste à TV, desliga o</p><p>aparelho. A menina reage imediatamente e, assim que a mãe</p><p>deixa a sala de estar, volta correndo, liga a TV e retorna para seu</p><p>balanço, onde o áudio do ap arelho sequer alcança (Silverstone,</p><p>2000, p. 89).</p><p>Essa cena, que se passa em uma casa de subúrbio na</p><p>Inglaterra, fala de uma realidade bastante comum nos dias de</p><p>hoje. Uma cena cotidiana, vivida por milhões de crianças em</p><p>todo o mundo: chegar da escola e escolher entre brincar e ver</p><p>TV. "Mesmo com o advento do computador e da internet, a</p><p>televisão continua a ser o meio de comunicação mais usado</p><p>pelas crianças brasileiras" (Girardello e Orofino, 2001).1</p><p>Guardadas as devidas diferenças entre cenários e contextos</p><p>socioistóricos (no Brasil, por exemplo, algumas crianças não</p><p>têm quintal, não têm TV, não têm escola...), o fato é que a</p><p>presença crescente das mídias na vida cotidiana é cada vez</p><p>mais um fenômeno cultural inquietante, para o qual estamos</p><p>ainda ensaiando nossas posturas de diálogo, negociação e</p><p>resposta. E a TV continua a desempenhar um papel</p><p>fundamental nesse processo.</p><p>A televisão é, na verdade, um grande fórum de debate</p><p>social e, ao mesmo tempo, uma desconhecida de todos nós.</p><p>Seus profissionais, e os usos que fazem de sua incrível</p><p>parafernália tecnológica, constroem diferentes retratos de</p><p>nossa realidade social, com requintes de maquiagem técnica.</p><p>1 Nessa pesquisa, que realizamos em Florianópolis, foi possível verificar a</p><p>desigualdade de acesso às tecnologias de informática, o que marca hoje uma</p><p>disparidade no consumo cultural das crianças. Diz-se que apenas 7% da</p><p>população brasileira tem acesso à internet e que apenas 3% da população</p><p>latino-americana faz uso desse meio de comunicação.</p><p>Mídia e educação... 111</p><p>Muitas dessas maquiagens são interessantes. Outras são</p><p>demasiadas, excessivas e também ideológicas.</p><p>Este capítulo advoga que a escola, na condição de</p><p>instituição social, pode e deve desempenhar um papel</p><p>estratégico como espaço de crítica ao consumo social das</p><p>mídias. Quanto mais presente e consistente for a crítica que a</p><p>escola endereçar às mídias, tanto mais forte será a resposta</p><p>social à sua produção. Através de uma pedagogia dos meios</p><p>(recepção e produção crítica), a escola pode trazer contribuições</p><p>para a construção de valores e consciências abertas e oferecer</p><p>respostas que contribuam para o desenvolvimento do</p><p>consumo cultural reflexivo, questionador e educativo, tão</p><p>importante para a construção de uma sociedade cidadã. Mas é</p><p>importante destacar que a recepção ou leitura crítica precisa</p><p>vir acompanhada de iniciativas de produção de mensagens</p><p>realizadas na própria escola, pelo uso do vídeo, de jornais-</p><p>laboratório, de programas de rádio ou pela criação de sites na</p><p>internet. Assim, torna-se possível ampliar uma reflexividade</p><p>social à medida que damos voz às crianças e adolescentes.</p><p>A importância dos estudos sobre infância e consumo cultural</p><p>Nos últimos dez anos, com o acelerado desenvolvimento</p><p>dos sistemas digitais, nossa relação com as tecnologias de</p><p>comunicação e informação parece, cada vez mais, a de estarmos</p><p>diante de um gigantesco balcão de ofertas em que há uma</p><p>infinidade de produtos que têm por trás grandes negócios,</p><p>corporações transnacionais produzindo incessantemente uma</p><p>gigantesca quantidade de brinquedos, jogos, equipamentos</p><p>eletrônicos de todos os tipos, formatos e tamanhos. Como</p><p>destaca Naomi Klein (2001, p. XVII):</p><p>112 Educação ¡ntercultural</p><p>A IBM celebra o fato de que sua tecnologia cobre o globo, e</p><p>certamente o faz, mas com freqüência esta presença</p><p>internacional assume a forma do uso de mão-de-obra barata no</p><p>Terceiro Mundo na produção dos chips e fontes para mover as</p><p>nossas máquinas. Na periferia de Manila, por exemplo,</p><p>encontrei uma garota de 17 anos que monta drives de CD-ROM</p><p>para a IBM. Eu disse a ela que estava impressionada com o fato</p><p>de que uma pessoa tão jovem estivesse desempenhando um</p><p>tipo de trabalho assim hi-tech. "Nós montamos computadores",</p><p>ela me disse. "Mas não sabemos como operá-los." Esta é uma</p><p>aldeia global em que algumas multinacionais, longe de nivelar</p><p>os espaços comunitários com trabalho e tecnologia para todos,</p><p>estão em um processo que mina os países mais pobres para</p><p>atingir seus lucros inimagináveis.</p><p>Esse mesmo modelo de produção, do qual os sistemas</p><p>digitais fazem parte, tem criado um violento mercado de oferta</p><p>e competitividade. Esse mercado, na medida em que difunde</p><p>uma ideologia de integração, produz uma profunda exclusão</p><p>social de acesso aos bens culturais.</p><p>Se por um lado a oferta é muita, por outro as condições de</p><p>consumo são bastante diferenciadas. E a questão do acesso a</p><p>esses equipamentos, sobretudo ao computador, tem se tornado</p><p>um dos grandes indicadores dessa segmentação social, desse</p><p>abismo que separa tanto quanto une. Daí a necessidade de</p><p>estudar o contexto em que o consumo cultural se processa. Nesse</p><p>movimento metodológico (que problematiza os contextos e</p><p>as comunidades de apropriação e produção de sentido), o</p><p>quadro de análise e reflexão torna-se menos determinista e</p><p>muito mais multifacetado e complexo.</p><p>Quando se fala de contextos de recepção e consumo, trata-se</p><p>de pensar, mais do que em meios, em mediações (Martín-</p><p>Barbero, 1997). Isso quer dizer que precisamos trabalhar os</p><p>conteúdos das mídias em relação aos diferentes cenários</p><p>socioistóricos a que essas mensagens chegam. Afinal, cada</p><p>contexto de apropriação é notadamente diferenciado.</p><p>Mídia e educação... 113</p><p>A escola, ao contrário da mídia que se dirige em grande</p><p>parte a um público global, atua em nivel local e por isso mesmo</p><p>pode intervir de modo substantivo em processos de consumo</p><p>crítico e de ressignificação das mensagens difundidas pelos</p><p>meios de comunicação.</p><p>O que os estudos de comunicação e da mídia têm buscado</p><p>demonstrar nos últimos anos, sobretudo com o desenvolvimento</p><p>dos estudos culturais, é que o consumo das mídias se faz no</p><p>cotidiano e que, portanto, essas experiências precisam ser</p><p>pensadas a partir da diversidade de cenários e contextos</p><p>socioistóricos nos quais as mídias estão inseridas. E esse debate</p><p>pode trazer muitas contribuições para a construção de novas</p><p>abordagens de ação cultural a partir do espaço escolar,</p><p>sobretudo a partir do conceito de mediação escolar. É deste que</p><p>vamos tratar a seguir.</p><p>A teoria latino-americana das mediações:</p><p>sua originalidade e suas contribuições</p><p>O conceito de mediação conforme sugerido pela teoria</p><p>latino-americana, em síntese, refere-se à circulação de significados</p><p>no cenário social e aos diferentes modos de apropriação e consumo</p><p>desses sentidos. Mas antes de falar do conceito propriamente, eu</p><p>gostaria de destacar algumas questões sobre a comunicação social</p><p>enquanto campo do conhecimento científico, um campo muito</p><p>novo e que caracteriza uma ciência em formação. Destaco</p><p>também o fato de que a história da comunicação enquanto</p><p>ciência é a história das outras disciplinas que não ela própria,</p><p>mas sim um somatório de experiências construídas em outros</p><p>campos, quais sejam: (1) estudos em psicologia (sejabehaviorista,</p><p>cognitiva, psicanálise ou social); (2) a sociologia macroestrutural</p><p>e a economia política; a sociologia compreensiva voltada para</p><p>114 Educação ¡ntercultural</p><p>aspectos interadonistas; (3) a crítica literária e as teorias da</p><p>estética; os estudos da arte; a semiologia; a retórica; (4) a</p><p>antropologia e os estudos etnográficos, a teoria da cultura.</p><p>Isso nos coloca, enquanto pesquisadores da comunicação social,</p><p>diante de uma situação de grande dificuldade em delimitar os</p><p>problemas, de compreender essa multiplicidade de enfoques</p><p>teórico-metodológicos, de fazer as escolhas metódicas e</p><p>técnicas que melhor atendam às perguntas a que a pesquisa</p><p>busca responder. Isso também nos deixou uma herança</p><p>absolutamente fragmentária do processo de comunicação,</p><p>visto que grande parte da história desses estudos sobre a mídia</p><p>privilegia um ou outro aspecto de um problema processual</p><p>maior. Os enfoques tendem ao modelo tripartite, que divide o</p><p>processo de comunicação em ora a produção, ora a análise do</p><p>texto, ora o estudo de recepção e consumo.</p><p>Nesse sentido, as novas teorias latino-americanas que</p><p>trabalham a relação enfie comunicação e cultura têm sido muito</p><p>criativas na medida em que buscam também superar essas</p><p>dificuldades relativas à herança multidisciplinar e fragmentária</p><p>dos estudos da mídia. Elas nos oferecem uma abordagem que</p><p>enfoca a complexidade dos processos de comunicação social a</p><p>partir do conceito de mediação.2 Jesús Martín-Barbero, cujo</p><p>2 É um conceito que ocupa um espaço cada vez maior e mais freqüente nas</p><p>teorias sobre mídia e sociedade. É cada vez mais comum, hoje em dia, nos</p><p>depararmos com esse conceito. Isso tem gerado uma certa confusão em</p><p>torno do seu uso e uma conseqüente perda da sua dimensão crítica. Como</p><p>os processos de mediação tecnológica, realizados pelos meios de comunicação,</p><p>são um fenômeno socioistórico tão singular e novo, muitas vezes o uso que</p><p>se faz do conceito de mediação se restringe à abstrata ação, desumanizada e</p><p>neutra das tecnologias da mídia. Isso é um equívoco. Mediação, enquanto</p><p>conceito, antecede a própria presença das mídias eletrônicas em nossas</p><p>sociedades e trata da ação e da intervenção humanas em processos de produção</p><p>e circulação de formas simbólicas. O conceito de mediação é muito antigo.</p><p>Possui uma trajetória longa no âmbito da filosofia que vem de Aristóteles.</p><p>Mas é em Hegel que se localiza a primeira exploração para uma relação</p><p>Mídia e educação... TIS</p><p>trabalho ganhou visibilidade no Brasil com o livro Dos meios</p><p>às mediações, e Guillermo Orozco, que, inspirado no trabalho</p><p>de Martín-Barbero, desenvolveu o enfoque integral da audiência,</p><p>são os principais autores dessa corrente. Na seqüênda, vou</p><p>apresentar, ainda que brevemente, algumas considerações</p><p>sobre a proposta desses autores, como um modo de dar</p><p>visibilidade à rica produção intelectual no campo da</p><p>comunicação e da cultura que tem emergido na América</p><p>Latina nos últimos anos.</p><p>! Jesús Martín-Barbero é um revolucionário. E um pensador</p><p>que tomou a desordem cultural latino-americana não como</p><p>tema de pesquisa, mas sim como enzima da nossa condição</p><p>social. Como dado da nossa característica cultural mesma, da</p><p>nossa essência e a partir dessa desordem cultural, assumiu a</p><p>desordem enquanto método. Muitas vezes as críticas decorrem</p><p>de uma dificuldade de compreendê-lo. Impossível expor aqui,</p><p>neste capítulo, a complexidade de sua argumentação. Vou</p><p>sintetizá-la em três aspectos:</p><p>1) enquanto paradigma;</p><p>2) em sua análise da cultura;</p><p>3) o desenho teórico-metodológico de sua proposta.</p><p>Enquanto (1) paradigma, Martín-Barbero busca uma</p><p>ruptura com as estruturas de pensamento dominantes no</p><p>dialética entre individuo e sociedade, entre ação e reflexividade. Já foi</p><p>amplamente explorado no campo das teorias da arte, sobretudo na teoria</p><p>marxista, e também no próprio campo da educação, a partir dos escritos de</p><p>Gramsci. Mas, seguramente, há uma confusão existente nas teorias</p><p>contemporâneas de comunicação e mídia, pois, ao problematizarem os</p><p>diferentes processos de mediação que os meios desempenham, falham em</p><p>recorrer à dimensão crítica do conceito. Por isso é necessário nos voltarmos a</p><p>um resgate da dimensão dialética e crítica e localizar a ação humana nesses</p><p>processos. Nesse sentido - o da relação entre mídia e mediações - a obra dos</p><p>autores latino-americanos é sem dúvida uma grande contribuição.</p><p>116 Educação ¡ntercultural</p><p>campo da comunicação e da cultura, sobretudo a hegemonia</p><p>funcionalista nos modos de pensar a comunicação, inclusive</p><p>pelas teorias mais progressistas. Seja pelo moralismo de direita</p><p>(que atribui aos meios uma decadência moral e de valores),</p><p>seja pela crítica das esquerdas que compreende: (a) a ação dos</p><p>meios como reflexo das ideologias e, portanto, como</p><p>desorientação, alienação (dominadores/dominados); (b) os</p><p>modos de resistência como chave mágica para libertação,</p><p>porém reforçando uma oposição binária - meios (dominadores)</p><p>versus cidadãos(ãs) (consumidores ativos). Segundo Martín-</p><p>Barbero, as relações entre comunicação e cultura são muito</p><p>mais multifacetadas, e uma ruptura epistemológica reside na</p><p>necessidade de problematizar a relação entre meios e sociedade</p><p>a partir de noções como trama ou teia de complexidades. Para</p><p>tanto, seria necessário superar determinados esquemas</p><p>mentais que reproduzem relações de causa e efeito, linearidade</p><p>ou oposições excludentes. Daí a necessidade de um mapa</p><p>noturno (visto que os mapas disponíveis ainda não dão conta</p><p>de uma representação integral do processo). Nas palavras do</p><p>próprio autor:</p><p>Mapa noturno: um mapa para indagar a dominação, a</p><p>produção e o trabalho, mas a partir de um outro lado: o das</p><p>brechas, o do consumo e do prazer. Um mapa não para a fuga,</p><p>mas sim para o reconhecimento da situação a partir das</p><p>mediações e dos sujeitos. Para mudar o lugar de onde se fazem</p><p>as perguntas, para assumir as margens não como tema, mas</p><p>como enzima, Porque os tempos não estão para sínteses e são</p><p>muitas as zonas na realidade cotidiana que ainda estão por ser</p><p>exploradas, em cuja exploração não podemos avançar se não</p><p>tentarmos, sem mapas, a menos que seja um mapa noturno (ap.</p><p>Canclini et al., 1998).</p><p>Em síntese, sua abordagem solicita, além de um</p><p>deslocamento do lugar das perguntas, também o pensamento</p><p>Mídia e educação... 117</p><p>complexo ao problema da comunicação social, à necessidade</p><p>de sabermos sobrepor não apenas as diferentes matrizes</p><p>disciplinares das ciências sociais e humanas, mas também as</p><p>diferentes dimensões que, entrelaçadas, constituem o processo</p><p>da comunicação social, como o nível histórico, social, estético</p><p>e subjetivo. É preciso explorar as ambigüidades. Assistir televisão</p><p>- como destaca Orozco -éum processo que se estende para além do</p><p>ponto de contato entre os indivíduos e a</p><p>tela. Não se trata de um</p><p>processo linear do tipo estímulo-resposta ou causa-efeito, mas</p><p>de uma conjugação de fatores subjetivos, sociais, culturais e</p><p>históricos.</p><p>Trata-se também de entender as audiências como</p><p>coadjuvantes em um processo de criatividade social, de modo</p><p>que se levem em conta suas demandas, lutas, heranças, memórias</p><p>e imaginário que de um ou outro modo também interpelam e</p><p>pautam as produções da indústria cultural. Trata-se de entender</p><p>os modos pelos quais se processa uma "produção social do</p><p>significado" a partir de uma "análise integral do consumo",</p><p>entendido como "o conjunto dos processos sociais de apropriação</p><p>dos produtos" (Martín-Barbero, 1997, p. 290). Afinal, produção e</p><p>consumo são interfaces de um mesmo problema.</p><p>Enquanto (2) análise da cultura, Jesús Martín-Barbero</p><p>preocupa-se fundamentalmente com a questão da cultura</p><p>popular, mas não em um sentido purista e preservacionista que</p><p>entende o popular como o folclore ou como aquela parcela da</p><p>cultura que não é o erudito e, portanto, o exótico. Para Martín-</p><p>Barbero, no campo da cultura, o erudito, o massivo e o popular</p><p>não podem mais ser compreendidos separadamente, visto que</p><p>nas sociedades contemporâneas a própria mídia se constitui</p><p>em um elemento de cultura, que ao transformar os modos</p><p>anteriores consiste ela própria em uma nova forma cultural.</p><p>O que é importante para nós, educadores, é compreender como essas</p><p>118 Educação intercultural</p><p>novas formas culturais sustentam velhos conteúdos que reproduzem</p><p>as ideologias de dominação e os preconceitos de classe, gênero, orientação</p><p>sexual, étnicos, geracionais, entre outros.</p><p>Outra noção importante nessa argumentação é a de</p><p>mestiçagem cultural, que para Martín-Barbero é o que nos</p><p>constitui - na condição de latino-americanos - como cultura.</p><p>Mas essa mestiçagem não se restringe, segundo ele, somente</p><p>às etnias, e sim ao que dá forma à vigência cultural das</p><p>diferentes identidades que se hibridizam: o indígena no rural;</p><p>o rural no urbano; o folclore no popular; o popular no massivo;</p><p>o erudito no popular; o popular no erudito, e assim por diante.</p><p>Na América Latina, esse hibridismo não é um tema, mas sim a</p><p>essência mesma, enzima, fato social, razão de ser tecida de</p><p>temporalidades e espaços, memórias e imaginários. Portanto,</p><p>não há mais como imaginar a pureza do indígena, a inocência</p><p>do popular; a perversidade do massivo, a canonização do culto</p><p>ou erudito. Tudo se mescla e se funde. Tudo se torna híbrido.</p><p>A indústria cultural ao produzir a telenovela, por exemplo,</p><p>solicita uma memória social e coletiva, herança do folhetim,</p><p>herança do melodrama em que as populações se reconhecem</p><p>ou não, dialogam, apropriam-se ou recusam. Portanto, não há</p><p>uma lógica fixa dominador/dominado, mas um jogo de tensão</p><p>permanente, uma negociação em torno dos gostos populares,</p><p>prazeres e usos. Segundo o autor, isso é complexo, pois</p><p>nem toda a assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo</p><p>de submissão, assim como a mera recusa não é de resistência,</p><p>e que nem tudo o que vem de cima são os valores da classe</p><p>dominante, pois há coisas que vindo de lá respondem a outras</p><p>lógicas que não são as da dominação (Martín-Barbero, 1997,</p><p>p. 111).</p><p>Nessa redefinição, é possível também captar como o</p><p>político se revela a partir do cultural, na medida em que a cultura</p><p>Mídia e educação... 119</p><p>passa a assinalar a percepção inédita do conflito social na</p><p>formação de novos sujeitos sociais e identidades culturais:</p><p>regionais, religiosos, sexuais, geracionais, em suas novas</p><p>formas de rebeldia e resistências.</p><p>Como (3) desenho teórico-metodológico para a</p><p>compreensão dessa produção social do sentido, sua proposta é a</p><p>de que, na medida em que a comunicação é localizada como</p><p>um problema de cultura, rompe-se com a instrumentalidade</p><p>tecnicista de pensar apenas nos meios; rompe-se com o</p><p>pessimismo apocalíptico que vê na mídia apenas a degradação</p><p>e homogeneização do cultural e configura-se um novo</p><p>problema: aquele de buscar captar as articulações, os nexos</p><p>entre o multifacetado cenário das negociações que ocorrem</p><p>no espaço da recepção (consumo cultural) com suas demandas,</p><p>memórias e estruturas de sentimentos e as lógicas de ativação</p><p>dessas competências culturais por parte da indústria cultural,</p><p>suas estruturas de produção e dispositivos de enunciação e de</p><p>constituição de seus mercados. Portanto, para Jesús Martín-</p><p>Barbero, o estudo da comunicação social é muito maior do</p><p>que apenas estudo dos meios. É um problema de mediações.</p><p>Esses nexos, entre essas diferentes dimensões de um mesmo</p><p>processo, são identificados pelo autor em um estudo sobre o</p><p>consumo cultural, em que a telenovela, por exemplo, em vez</p><p>de ser compreendida como mero produto de alienação, foi</p><p>identificada como modo de endereçamento às camadas</p><p>populares em que se: (a) ativa uma competência cultural</p><p>construída a partir de modos de narrar, neste caso o melodrama</p><p>enquanto gênero residual; (b) reconstroem dinâmicas familiares</p><p>da cotidianidade, a partir de novas interações, situações e rituais;</p><p>(c) a temporalidade social, a distinção entre tempo do trabalho e</p><p>tempo do ócio; sendo o primeiro o tempo seriado e o segundo</p><p>o tempo fragmentado. Na TV, o tempo fragmentado é a</p><p>120 Educação intercultural</p><p>representação do tempo do cotidiano, e não do trabalho na</p><p>fábrica. A ficção seriada faz agora uma mediação entre o tempo</p><p>do capital e o tempo da cotidianidade.</p><p>Operações metodológicas</p><p>Como pudemos visualizar) a proposta de Jesús Martín-</p><p>Barbero subverte o problema da comunicação social. Muda o</p><p>lugar das perguntas e, ao fazê-lo, nos confunde. O fato de se</p><p>destacar que trabalhar as mediações significa desvelar os</p><p>mistérios de um conceito plural, ilocalizado e fugidio é</p><p>importante, porém fica no ar a pergunta: como torná-lo viável</p><p>sob o ponto de vista da prática da pesquisa ou mesmo da</p><p>intervenção no espaço escolar? Nesse sentido, o trabalho de</p><p>Guillermo Orozco traz uma grande contribuição para</p><p>localizarmos as mediações na esfera da pesquisa empírica.</p><p>Parece que o mapa se torna mais claro (mesmo que noturno)</p><p>nas mãos desse autor.</p><p>Na tentativa de operacionalizar o conceito de mediação</p><p>para a pesquisa empírica de recepção televisiva, Guillermo</p><p>Orozco3 propõe que este seja entendido como um processo</p><p>3 Mesmo que nessa década já houvesse um número significativo de outros</p><p>autores latino-americanos em circulação entre os debates acadêmicos</p><p>nacionais (Jorge González, Jesús Galindo e Valerio Fuenzallida, por exemplo),</p><p>nenhum outro autor encontrou tamanha ressonância em nosso país como</p><p>Orozco e sua proposta das mediações múltiplas. No âmbito dos estudos</p><p>qualitativos de audiências, um número significativo de dissertações de</p><p>mestrado e teses de doutorado tomou como referencial a sua proposta. Isso</p><p>se deve ao fato de que Orozco não apenas trabalha conceituai e teoricamente</p><p>a problemática das mediações, mas acima de tudo propõe uma abordagem</p><p>metodológica que foi aplicada em diferentes projetos de pesquisa empírica</p><p>sob a sua coordenação, sobretudo com o público infantil e familiar. Esse</p><p>autor trouxe também uma importante contribuição para trabalhos que</p><p>buscam uma conexão entre mídia e ações culturais críticas no espaço escolar,</p><p>identificando - uma vez mais - através da pesquisa empírica as diferentes</p><p>formas com que a instituição escolar habitualmente aborda e medeia os</p><p>discursos midiáticos. E interessante notar que Orozco, a partir do</p><p>Mídia e educação... 121</p><p>estruturante que configura e reconfigura tanto a interação</p><p>das audiências com os meios quanto a criação - por parte das</p><p>audiências - do sentido dessa interação (Orozco, 1993a).</p><p>Portanto, ele explica que a mediação se manifesta em forma</p><p>de ações e de discursos que se originam em várias fontes: a classe</p><p>social, o gênero, a subjetividade, a orientação sexual, a idade,</p><p>a etnicidade, os próprios meios de comunicação, as instituições</p><p>sociais e situações contextuáis etc.</p><p>Visto que todas essas dimensões estão em jogo e</p><p>entrelaçadas no</p><p>complexo cenário da recepção, Orozco propõe</p><p>um quadro teórico denominado múltiplas mediações. Ele oferece</p><p>uma tipologia que classifica essas diferentes mediações em</p><p>quatro grupos, e destaca que a cultura impregna todas elas.</p><p>Essas múltiplas mediações são:</p><p>1) a individual;</p><p>2) a situacional;</p><p>3) a institucional;</p><p>4) a (video)tecnológica.</p><p>A mediação individual leva em conta as dimensões</p><p>cognoscitivas e subjetivas dos atores sociais (articuladas às</p><p>categorias de gênero, orientação sexual, idade, etnicidade e</p><p>classe social). A mediação situacional considera os diferentes</p><p>cenários em que ocorre a interação entre a TV e as audiências:</p><p>lar, botequim, quarto, sala de estar, escola, igreja etc. A mediação</p><p>seu universo conceituai, revela-se uma renovação do referencial teórico de</p><p>Martín-Barbero, visto que este último explora o conceito de mediação a</p><p>partir dos clássicos da sociologia da cultura, em especial sua discussão dentro</p><p>do marxismo em diálogo com Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin e Raymond</p><p>Williams, ao passo que Orozco toma como referencia os estudos críticos de</p><p>audiencia internacionais mais recentes: a própria obra de Martín-Barbero</p><p>em diálogo com Klaus Jensen, James Lull, David Morley, David Buckingham,</p><p>John Fiske e em textos mais recentes com a teoria da estruturação de Anthony</p><p>Giddens.</p><p>122 Educação intercultural</p><p>institucional fala dos sistemas e estruturas sociais em jogo e</p><p>destaca o papel desempenhado pela família, pela escola, pela</p><p>cultura de bairro e pelas demais instituições sociais que</p><p>medeiam os sujeitos sociais de diferentes maneiras.</p><p>Por fim, a mediação tecnológica, cuja análise, interligada às</p><p>outras dimensões do processo, deve captar que os meios de</p><p>comunicação, enquanto instituições sociais, não reproduzem</p><p>simplesmente outras mediações. Para Orozco (1993a), a televisão,</p><p>por exemplo, produz sua própria mediação e utiliza recursos</p><p>próprios e muito particulares para representar a realidade</p><p>social. Isso ocorre a partir dos conflitos internos à própria</p><p>produção na indústria cultural, no sentido de que nem todas</p><p>as pessoas que atuam nessas instituições agem de modo</p><p>cooptado às relações de dominação. Portanto, a textualidade</p><p>televisiva é, em si mesma, uma ciranda de tensões, de textos</p><p>que se contradizem, de representações que possuem abertura</p><p>narrativa e que, portanto, podem ser apropriadas de modos</p><p>bastante diferenciados.</p><p>Ampliando a ciranda de sentidos ou intensificando a luta</p><p>pelo significado a partir da escola</p><p>Para concluir, gostaria de resgatar algumas questões que</p><p>foram expostas ao longo deste capítulo, as quais podem indicar</p><p>pontos para reflexão entre os educadores e também ajudar a</p><p>visualizar de que modo nossas práticas de mediações escolares</p><p>podem ser mais efetivas e criativas em relação às crianças e ao</p><p>uso pedagógico dos meios de comunicação.</p><p>1) Ainda acredito na nossa possibilidade de provocar cada</p><p>vez mais uma crise das ideologias a partir de nossa intervenção</p><p>em processos que acelerem e intensifiquem a reflexividade social.</p><p>Mídia e educação...</p><p>Nesse sentido, a escola pode desempenhar um papel</p><p>estratégico como espaço cultural crítico em que sejam</p><p>mediados (consumo e produção críticos) os conteúdos veiculados</p><p>pela mídia. Isso porque:</p><p>2) Vivemos sob uma permanente pressão de vendas em</p><p>uma terra, aparentemente de ninguém, mas comandada por</p><p>essa entidade supostamente abstrata, definida como mercado.</p><p>3) Se por um lado a oferta é muita, por outro as condições</p><p>de consumo são bastante diferenciadas, e a questão do acesso a</p><p>esses equipamentos, sobretudo ao computador, tem se tornado</p><p>um dos grandes indicadores dessa segmentação social, desse</p><p>abismo que separa tanto quanto une. Daí a importância de</p><p>trabalhar o consumo cultural entre as crianças,</p><p>4) Nesse sentido, as novas teorias latino-americanas que</p><p>trabalham a relação entre comunicação e cultura têm sido</p><p>muito criativas na medida em que buscam também superar</p><p>essas dificuldades relativas à herança multidisciplinar e</p><p>fragmentária dos estudos da mídia. Elas nos oferecem uma</p><p>abordagem que enfoca a complexidade dos processos de</p><p>comunicação social a partir do conceito de mediação.</p><p>Em síntese, o que meu argumento buscou demonstrar até</p><p>aqui é que a pesquisa sobre a relação entre meios de comunicação,</p><p>crianças e escola precisa necessariamente promover uma</p><p>virada, um deslocamento, uma renovação dos quadros teóricos</p><p>que conhecemos. Se a pesquisa de comunicação atravessa este</p><p>momento de questionamentos e redirecionamento do foco,</p><p>de mudança do lugar das perguntas, então o mesmo também</p><p>precisa acontecer com a pesquisa sobre mídias, crianças e</p><p>escola. Precisamos levar em conta o fato de que os sentidos</p><p>produzidos pelas crianças são construídos socialmente e que</p><p>esse movimento (do consumo cultural) é um processo complexo</p><p>I.11</p><p>124</p><p>I</p><p>Educação intercultural</p><p>■ ■(.</p><p>e multifacetado, em que diferentes instancias sociais</p><p>competem entre si; as subjetividades, a família, a cultura de</p><p>bairro, a religião, a escola. As mídias não são entidades cujo</p><p>poder é absoluto, mas tal poder é constantemente negociado</p><p>a partir dos cenários de apropriação.</p><p>Visto que o cenário do consumo das mídias tem mudado</p><p>substantivamente para as práticas mediadas pelo computador,</p><p>agora de modo mais individualizado do que coletivo (como o</p><p>modo de recepção do rádio e da TV, por exemplo), nossas</p><p>pesquisas também precisam repensar os contextos e modos</p><p>de apropriação dessas novas tecnologias. A questão do</p><p>computador precisa da nossa intervenção como mediadores</p><p>em dois sentidos, no mínimo: primeiro, pelo fato de que há</p><p>muitas crianças excluídas do acesso a essa nova tecnologia;</p><p>segundo, aquelas que têm acesso estão também expostas a</p><p>uma gama enorme de informações que precisam de uma</p><p>contínua negociação, problematização, diálogo e debate. A</p><p>worldwide web-(www) é hoje um oceano, muito mais vasto do</p><p>que poderiamos imaginar, de referências não apenas educativas,</p><p>mas também anti-humanistas e antiéticas.</p><p>O desafio é grande e solicita, na minha compreensão, nossa</p><p>capacidade de luta para que crianças e adolescentes tenham</p><p>acesso igualitário a essas novas mídias. Não apenas aos meios,</p><p>mas sim (e fundamentalmente) acompanhadas de mediações,</p><p>ou seja, de um consumo reflexivo, pautado pelo diálogo, pela</p><p>produção de novas narrativas de autoria dos estudantes,</p><p>acompanhadas de um debate social franco, cada vez mais</p><p>aberto, saudável e democrático.</p><p>Mídia e mediações culturais na escola</p><p>Maurício José Siewerdt</p><p>Reinaldo Matias Fleuri</p><p>Hoje em dia é muito comum a utilização de meios</p><p>audiovisuais como recurso didático nas escolas.</p><p>Freqüentemente a atenção dos educadores está voltada para</p><p>0 caráter técnico ou instrutivo das inovações que o uso de</p><p>novas tecnologias traz para o espaço educativo escolar. Mas</p><p>pouco se atenta para as dinâmicas subjetivas e culturais pelas</p><p>quais as pessoas - estudantes e professores - configuram</p><p>significados ao uso desses meios. É para essa questão que</p><p>voltaremos a atenção neste capítulo.</p><p>Quando propusemos fazer uma pesquisa sobre a utilização</p><p>de recursos da linguagem audiovisual (televisão e vídeo),</p><p>tínhamos a pretensão de levar a alfabetização em linguagem</p><p>audiovisual aos professores de três escolas vinculadas ao</p><p>Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no</p><p>município de Fraiburgo, Santa Catarina.1</p><p>1 A pesquisa apresentada em dissertação de mestrado (Siewerdt, 2000) teve</p><p>como finalidade procurar entender que mediações são recorrentes para esses</p><p>professores, diante da necessidade de seleção crítica dos recursos da linguagem</p><p>audiovisual (televisão e vídeo), para a sua utilização escolar. Para tanto,</p><p>procurou-se localizar, na formação cultural desses professores e por meio de</p><p>suas histórias de vida e de suas posturas diante das mídias, o lugar onde se</p><p>materializam as mediações. Como resultado desse trabalho, foi observado</p><p>que a educação popular pode encontrar uma significativa parceria</p><p>investigativa com a moderna tradição latino-americana</p><p>dos estudos de</p><p>recepção. Restringiremos a discussão neste capítulo a algumas reflexões</p><p>de cunho teórico que emergiram ao longo do período de elaboração do</p><p>projeto e da dissertação. Daí as possíveis lacunas relativas às falas tomadas de</p><p>empréstimo dos entrevistados e que se encontram somente presentes no</p><p>trabalho que deu origem a este capítulo. Obviamente, algumas poucas</p><p>aparecerão com o sentido de dar sustentação pragmática quanto ao</p><p>encadeamento lógico-teórico aqui desenvolvido.</p><p>126 Educação ¡ntercultural</p><p>A princípio, acreditávamos que, para capacitar os</p><p>professores, bastaria conduzi-los em uma incursão pelos guetos</p><p>simbólicos daqueles que operam com a linguagem audiovisual.</p><p>Isto é, bastaria familiarizá-los com os planos, cortes, seqüências e</p><p>mais um pouco da história do cinema e da televisão, e, assim,</p><p>estariam preparados para compreender o universo do fazer.</p><p>Agindo dessa forma, acreditávamos estar forjando hábeis</p><p>leitores desse tipo de linguagem. Ou seja, pretendíamos</p><p>implementar um programa de alfabetização para as imagens em</p><p>movimento e, posteriormente, averiguar, mediante um</p><p>questionário, o quanto os professores haviam apreendido. Mas</p><p>veremos, a seguir, que não foi isso o que acabou acontecendo.</p><p>Mediações culturais na prática docente</p><p>Logo em nossa primeira viagem ao Assentamento Vitória</p><p>da Conquista, em outubro de 1998, ao falarmos de nosso</p><p>projeto de pesquisa e pedirmos autorização aos professores</p><p>para entrevistá-los, dois episódios alterariam profundamente</p><p>o percurso dessa caminhada. Um primeiro fato nos chamou a</p><p>atenção: ao apresentarmos o objeto de nossa investigação, os</p><p>professores prontamente concordaram com a sua realização.</p><p>Bastaria marcarmos as datas, e os trabalhos com uma oficina</p><p>de vídeo seriam iniciados. Eles estavam muito empolgados</p><p>com essa idéia. Entretanto, à medida que conversávamos, qual</p><p>não foi a nossa surpresa quando os professores passaram a</p><p>falar de maneira crítica e perspicaz acerca dos meios e</p><p>instituições que produzem os audiovisuais.</p><p>Ao retornarmos a Florianópolis, duas questões nos</p><p>inquietavam: como estaríamos levando aos professores um</p><p>conjunto de informações sem anteriormente sondar quais</p><p>seriam seus pontos de vista e seus posicionamentos sobre o</p><p>Mídia e mediações culturais na escola 127</p><p>problema da utilização dos recursos audiovisuais no interior</p><p>do espaço escolar? Ou, ainda, se já em nossas primeiras</p><p>conversas eles demonstravam propriedade crítica a respeito</p><p>da interferência das mídias em sua comunidade, perguntávamo-</p><p>nos: afinal, como teriam se formado nos professores esse olhar</p><p>e essas posturas frente aos produtos audiovisuais?</p><p>Foi a partir daí que uma incursão pelo curso de jornalismo</p><p>da Universidade Federal de Santa Catarina, mais precisamente</p><p>por um tema que vem sendo estudado pela professora Aglair</p><p>Bernardo, os estudos de recepção, trouxe à luz possibilidades</p><p>teóricas e metodológicas de investigação que desconhecíamos.</p><p>Essas novas abordagens no campo da comunicação social</p><p>fazem parte de uma tradição dos estudos de recepção que, dos</p><p>anos 1980 para cá, na América Latina, tem servido como</p><p>paradigma teórico-metodológico para a investigação das</p><p>relações entre produtores e consumidores dos meios de</p><p>comunicação. Os pressupostos teóricos que embasam essa</p><p>vertente partem da concepção do processo comunicativo como</p><p>um espaço de negociações pela hegemonia cultural. Isto é,</p><p>os produtos veiculados pelas mídias seriam resultado de um</p><p>jogo de forças entre produtores e consumidores, em que</p><p>teríamos nos produtos a expressão de um espaço de</p><p>negociações midiatizado pela cultura de ambos.</p><p>Do ponto de vista da educação popular, como linha de</p><p>investigação, percebemos a existência de uma lacuna teórica</p><p>que possibilitasse olhar as relações entre os sujeitos e as</p><p>mídias. Nessa linha de investigação, pudemos nos dar conta</p><p>de como as teorias da dependência e da indústria cultural de</p><p>massa continuam sendo referendadas como fortes paradigmas</p><p>de análise da relação do popular com os meios de comunicação.</p><p>128 Educação intercultural</p><p>Por outro lado, também vimos como os pressupostos</p><p>teóricos da moderna tradição latino-americana dos estudos</p><p>de recepção, que podemos encontrar em Martín-Barbero</p><p>(1987), Cordelian, Gaitan e Orozco (1996), Souza (1995), Fígaro</p><p>(1998), Lopes (1993), Araújo e Jordão (1995) e Borelli (1995),</p><p>foram adotados como referencial teórico para a realização</p><p>dessa pesquisa. Por sua vez, tais pressupostos se aproximam</p><p>bastante da concepção que baliza as relações entre sujeito e</p><p>sociedade que encontramos na vertente freiriana da educação</p><p>popular. Isso se dá, segundo o esforço por nós realizado no</p><p>sentido de aproximação desses dois modelos, essencialmente</p><p>pelo fato de que ambas as vertentes de pesquisa têm procurado</p><p>compreender o popular a partir da investigação dos sentidos</p><p>atribuídos às coisas do mundo pelo popular como lógicas</p><p>diferenciadas, e que muitas vezes são incompreendidas pelos</p><p>segmentos eruditos de produção do saber.2</p><p>Acreditamos que essas lógicas produzidas pelo popular,</p><p>no caso os professores das escolas pesquisadas, podem ser</p><p>encontradas nas mediações que, constituídas pelas próprias</p><p>consciências dos sujeitos - interpelados pela cultura e pela</p><p>ideologia - acabam se materializando num espaço de</p><p>negociações pela hegemonia cultural entre produtores e</p><p>consumidores dos produtos audiovisuais. E, com efeito, são</p><p>essas mediações que nos permitem localizar e interpretar os</p><p>sentidos e os significados que os sujeitos atribuem-à relação</p><p>que estabelecem com esses meios. Nesse sentido, conforme</p><p>Robert White (1998a, p. 55),</p><p>2 A oposição entre popular e erudito aqui se encontra no sentido de explicitar a</p><p>contraposição entre os sujeitos que se apropriam, ou não, das diversas</p><p>linguagens-padrão utilizadas pela humanidade. Nesse sentido, os termos</p><p>somente aparecem como referência à compreensão e à apropriação da</p><p>linguagem audiovisual.</p><p>Mídia e mediações culturais na escola 129</p><p>as mediações constituem um tipo de "espaço", no qual diversas</p><p>construções de significado podem acontecer, dependendo da</p><p>lógica cultural do receptor e da possibilidade de negociação</p><p>que se estabelece para a construção do significado.</p><p>No entanto, para chegarmos às mediações, a nossa</p><p>primeira tarefa seria investigar os professores quanto aos usos</p><p>e significados da televisão e do vídeo no seu cotidiano escolar,</p><p>isto é, a importância dos sentidos que os professores atribuem</p><p>à discussão sobre a relação entre televisão e escola.</p><p>Foi a partir daí, então, que, concretamente, a pesquisa daria</p><p>uma guinada de 180° na sua forma metodológica na</p><p>abordagem do objeto que pretendíamos investigar na sua</p><p>relação com os professores.</p><p>Para tanto, foi decidido que um grupo de oito professores</p><p>das três escolas seriam selecionados aleatoriamente, de</p><p>maneira que fossem entrevistados e observados em seus</p><p>cotidianos. O eixo das entrevistas e das observações seria a</p><p>contemplação e o registro das manifestações desses</p><p>professores quando nas suas construções simbólicas e de</p><p>sentidos nas suas relações com o fenômeno audiovisual ao</p><p>longo de suas vidas e no cotidiano escolar.</p><p>Ao pretendermos avaliar a relação simbólica que esses</p><p>professores estabelecem com as mídias, percebemos que essa</p><p>investigação deveria transcender o espaço escolar, indo além,</p><p>na direção de investigá-los em suas histórias de vida. Ao</p><p>procedermos assim, mergulhamos com eles num exercício de</p><p>esforço de rememoração de suas próprias vidas, rumo ao</p><p>entendimento da formação da cultura e da identidade em cada</p><p>um deles como mediações fundamentais para a compreensão</p><p>de suas relações com as mídias. Sobretudo, porque defendemos</p><p>essa idéia, tais mediações aparecem aqui como elemento de</p><p>130 Educação intercultural</p><p>materialização das culturas constitutivas desses sujeitos-</p><p>professores. Isto é, ao descrevermos como e quando o cinema</p><p>e a televisão entram nas vidas dos professores e com quais</p><p>significados, conseguimos também materializar que</p><p>elementos teriam contribuído para que, ao longo de suas vidas,</p><p>começassem a olhar esses produtos da indústria cultural de</p><p>maneira crítica.</p><p>Vimos, também, até que ponto o Movimento dos</p><p>Trabalhadores Rurais Sem Terra teria colaborado como</p><p>mediação alterando as posturas dos professores à medida que</p><p>conviviam nesse cotidiano. Também pudemos incursionar com</p><p>os professores em seus cotidianos e buscar, em seus momentos</p><p>de privacidade, o tempo que dedicam rotineiramente ao</p><p>contato com a televisão e o vídeo, bem como os programas e</p><p>filmes de suas preferências quando se encontram fora da</p><p>escola. Finalmente, entendendo que o espaço da entrevista</p><p>acabou consistindo em um espaço de diálogo, de troca de</p><p>saberes, resultou daí uma rede de novas mediações.</p><p>Os estudos de recepção:</p><p>potencialidades investigativas para a educação popular</p><p>Ainda hoje, o paradigma que impera na investigação das</p><p>audiências, em muitas pesquisas de opinião pública, opera com</p><p>a idéia dos impactos e dos efeitos. Sobre isso, Inesita Araújo e</p><p>Eduardo Jordão (1995, p. 177) consideram que</p><p>"impacto" traz subjacente a idéia de um emissor-atirador que</p><p>emite-dispara uma mensagem-projétil em direção a um</p><p>público-alvo que está lá, homogêneo, estático como um muro</p><p>e que vai continuar lá, imóvel, permitindo que se verifique se</p><p>o alvo foi atingido e a profundidade do rombo. (...) Mas a</p><p>maioria dos estudos que avaliam impacto ignora a dinâmica e</p><p>Mídia e mediações culturais na escola 131</p><p>as pluralidades sociais, despreza a cultura e a história dos</p><p>receptores, não leva em conta a existência de outros atores,</p><p>outras fontes de informação, outros discursos em cena (...).</p><p>O que podemos depreender daqui é que existe um esforço</p><p>por parte dos pesquisadores dos estudos de recepção em</p><p>materializar as invisibilidades que se encontram acobertadas</p><p>pela multiplicidade das subjetividades, provenientes das</p><p>culturas constitutivas dos sujeitos sociais. Ou seja, à medida</p><p>que empreendem uma busca pelos sujeitos receptores, a partir</p><p>do empréstimo das falas desses mesmos sujeitos, acabam</p><p>enveredando para o interior do popular não mais impactado,</p><p>mas dissolvido em multiplicidades perceptivas.</p><p>As falas dos sujeitos sociais demandam uma sondagem</p><p>criteriosa sobre seus posicionamentos e posturas frente aos</p><p>fenômenos que se apresentam diante de seus olhares e ouvires.</p><p>Acreditamos que nem sempre tais posturas sejam de sujeição</p><p>e prostração. Existe um imperativo quanto à necessidade de</p><p>sondar essa possível multiplicidade de olhares e de ouvires.</p><p>Diante do quadro apontado até o momento, parece</p><p>sensato afirmar a necessidade de a educação popular buscar</p><p>outras referências, outros braços teóricos que possam vir a</p><p>contribuir para o aprofundamento das pesquisas e dos debates</p><p>.em seu inferior.</p><p>Os novos tempos engendraram um avanço na direção de</p><p>formas híbridas de pensamento acerca dos fenômenos. As</p><p>disciplinas não se bastam mais em seus campos específicos</p><p>de reflexão, dada a complexidade que os objetos demandam.</p><p>Nesse sentido foi que defendemos a idéia da abertura</p><p>de uma interface entre a educação popular e as teorias da</p><p>comunicação, particularmente os estudos de recepção, nos</p><p>quais, dos anos 1980 para cá, os pesquisadores da comunicação</p><p>132 Educação ¡ntercultural</p><p>vêm defendendo novas posturas diante da complexidade em</p><p>que consiste atualmente a tarefa de compreendermos os</p><p>espaços de negociação permanente entre os sujeitos que</p><p>emitem as mensagens e os sujeitos que as ■percebem.</p><p>Ao empreendermos a tarefa de dialogarmos com alguns</p><p>dos autores dos estudos de recepção por meio de seus</p><p>trabalhos científicos, pudemos nos dar conta de como esses</p><p>estudos podem contribuir como uma pedagogia para os meios.</p><p>Notadamente, pudemos perceber como Paulo Freire tem</p><p>influenciado fortemente Guillermo Orozco, da Universidade</p><p>de Guadalajara, México, pesquisador latino-americano dos</p><p>processos de recepção dos meios de comunicação e da inter-</p><p>relação comunicação/educação. Afirma Orozco (ap. Fígaro,</p><p>1998, p. 78):</p><p>Um dos autores que mais me inspiraram e motivaram foi Paulo</p><p>Freire. Estudei toda a sua obra quando estava na universidade.</p><p>Como educqdor, tive de fazer um pouco o tipo de educação</p><p>inspirado na metodologia de Paulo Freire que, afinal, (...) é</p><p>uma proposta de intervenção pedagógica. Isso me possibilitou</p><p>a condição de efetivar um trabalho altamente consciente</p><p>durante esses anos (...) e esse era muito do significado que Paulo</p><p>Freire passava: poder transformar.</p><p>Desconfiávamos, desde o princípio, de que essa questão</p><p>seria peça-chave para nossa intervenção pedagógica no</p><p>sentido freiriano da problematização do tema em questão. Sobre</p><p>isso, também Orozco (ap. Fígaro, 1998, p. 78) se posiciona:</p><p>Se o objetivo for modificar e ao mesmo tempo influir no processo</p><p>educativo das pessoas, a pesquisa de recepção é uma porta de</p><p>entrada. Uma vez conhecidos os receptores e suas interações,</p><p>poder problematizá-las no sentido de Paulo Freire, tratar de</p><p>melhorar essa interação para benefício dos próprios sujeitos.</p><p>E por aqui creio que encontrei esta maneira de vincular o</p><p>educativo com o comunicativo: pesquisar para intervir e</p><p>propor estratégias que transformem e modifiquem as interações</p><p>dos sujeitos com os meios.</p><p>Mídia e mediações culturais na escola 133</p><p>Foram esses os argumentos de Orozco que então viriam a</p><p>justificar ainda com maior vigor o caminho que percorríamos.</p><p>Ao procurarmos investigar os professores como receptores,</p><p>estaríamos dando forma ao que nos propúnhamos desde o</p><p>início da pesquisa: efetuar uma proposta pedagógica para os</p><p>meios de comunicação, particularmente os que fazem uso das</p><p>imagens em movimento. Isto é, ao levantarmos os depoimentos</p><p>dos professores a fim de que eles pudessem compreender como</p><p>as suas distintas experiências culturais os marcam</p><p>diferentemente quanto à percepção dos produtos audiovisuais,</p><p>estaríamos também levando a cabo a materialização de uma</p><p>interface entre os estudos de recepção e a educação popular.</p><p>Contudo, os estudos de recepção atualmente são</p><p>reconhecidamente uma área de estudos de grande densidade.</p><p>São muitas as reflexões que vêm sendo realizadas por seus</p><p>pensadores tanto do ponto de vista dos temas e suas</p><p>problematizações quanto do ponto de vista metodológico e</p><p>epistemológico.</p><p>Nesse sentido, também serviram de paradigma</p><p>investigativo para essa pesquisa, do ponto de vista da</p><p>problematização do tema que contempla as relações dos</p><p>sujeitos e as mídias, os estudos desenvolvidos por Mauro</p><p>Wilton de Souza (1995, p. 13-38), que tem empreendido uma</p><p>busca pelo sujeito nos estudos de recepção. Esse estudo de</p><p>Mauro Wilton contribuiu fundamentalmente para que</p><p>mudasse a nossa compreensão do sujeito e suas inter-relações</p><p>com a comunicação.</p><p>Finalmente, e isto veremos a seguir, como o filósofo Jesús</p><p>Martín-Barbero, assessor do Instituto de Estudos sobre</p><p>Culturas e Comunicação da Universidade Nacional da</p><p>134 Educação ¡ntercultural</p><p>Colômbia, contribuiu sobremaneira para a mudança do</p><p>enfoque sobre o objeto e os sujeitos de nosso estudo. A sua</p><p>obra De los medios a las mediaciones (1987) representou um marco</p><p>de mudança de percurso em nossa caminhada. Essa obra viria</p><p>a influir diretamente no modo de enfocar as relações entre os</p><p>professores entrevistados e observados e as formas como estes</p><p>significam os meios.</p><p>%</p><p>Indicativos da necessidade de mudança de paradigma</p><p>São muitos os problemas encontrados hoje no interior de</p><p>uma escola rural. Porém, talvez um dos mais contundentes, que</p><p>encontramos nas falas de alguns professores, sejam dúvidas</p><p>acerca do tratamento que deve ser dado frente à penetração</p><p>maciça da televisão no interior do assentamento. Esses</p><p>depoimentos foram tomados ao longo de nossas primeiras visitas</p><p>à escola em vários momentos distintos: durante as conversas</p><p>nos intervalos das atividades de um projeto de formação de</p><p>professores com o qual colaboramos e participamos;3 colhendo</p><p>feijão com a comunidade escolar; nas noites que, excitados</p><p>autores norte-americanos e</p><p>europeus, principalmente autores latino-americanos. Já o</p><p>capítulo de Nadir Azibeiro, assim como o de Maria Izabel</p><p>Souza, em co-autoria comigo, dá grande ênfase à perspectiva</p><p>epistemológica da complexidade para analisar experiencias e</p><p>propostas de educação intercultural no campo da educação</p><p>popular, para além da dimensão curricular e escolar. Nessa</p><p>direção, buscando compreender os processos educativos das</p><p>práticas estritamente didáticas e curriculares, Maria Isabel</p><p>Orofino, assim como Maurício Siewerdt, com a minha colabo­</p><p>ração, esboça estudos sobre a interferência das mídias e sobre</p><p>o significado das mediações no cotidiano da escola.</p><p>Com esta modesta contribuição, esperamos compartilhar</p><p>contigo, leitora e leitor, as lutas e esperanças que nos animam</p><p>a assumir os enormes desafios que a sociedade e a educação</p><p>brasileiras vêm enfrentando ao estreitar as conexões e</p><p>aprofundar os conflitos emergentes no mundo atual.</p><p>i - i •</p><p>!,: ■ !;</p><p>Multiculturalisme» e educação intercultural:</p><p>vertentes históricas e repercussões atuais na</p><p>educação*</p><p>Gilberto Ferreira da Silva</p><p>A discussão realizada nos meios acadêmicos sobre essa</p><p>exigência trazida pela sociedade plural para o campo educativo</p><p>impõe a necessidade de esclarecermos as concepções que</p><p>foram elaboradas sobre educação multicultural. O termo</p><p>multiculturalismo, originário das lutas contra o racismo</p><p>empreendidas pelos negros norte-americanos até há bem</p><p>pouco tempo, parecia ser algo específico das preocupações da</p><p>América do Norte (San Román, 1998). Atualmente, em vista da</p><p>intensificação da imigração, este tema se converteu numa</p><p>preocupação dos países europeus, estendendo-se também para</p><p>os países menos desenvolvidos, como é o caso das nações</p><p>latino-americanas. Com conotações diferenciadas, a discussão</p><p>vem ganhando novos acréscimos teóricos, seja por parte das</p><p>especificidades nacionais e regionais, seja pelos novos</p><p>contextos socioculturais que se configuram de forma híbrida</p><p>já não mais somente no mundo ocidental, mas também no</p><p>oriental. A partir do debate travado pelos pesquisadores no</p><p>âmbito da educação, pretendo traçar alguns dos enfoques que</p><p>mais têm feito parte das preocupações nas discussões e no</p><p>interesse na pesquisa nesta área, apresentando, finalmente,</p><p>alguns aspectos sob a perspectiva da educação intercultural.</p><p>* Este capítulo é resultado da tese de doutorado (Silva, 2001) defendida em</p><p>2001 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal</p><p>do Rio Grande do Sul (UFRGS).</p><p>18 Educação ¡ntercultural</p><p>Multiculturalisme: coesão social e democracia1</p><p>Resgatar a trajetória do termo multiculturalismo nos remete</p><p>a pensadores clássicos como Tocqueville (1805-1859), que</p><p>lançou as bases para a compreensão do pluralismo cultural e</p><p>político presente na formação da sociedade norte-americana.</p><p>Influência que marca a constituição das instituições sociais e</p><p>políticas estado-unidenses, imprimindo características na</p><p>formulação das leis e expressando a garantia da pluralidade no</p><p>conjunto da sociedade.</p><p>A obra de Alexis de Tocqueville A democracia na América</p><p>(1832) oferece um panorama da configuração social norte-</p><p>americana a partir da diversidade característica dos imigrantes</p><p>que povoaram o território norte-americano e, ao mesmo</p><p>tempo, destaca a importância da língua comum que utilizavam</p><p>esses primeiros imigrantes (brancos) em terras norte-</p><p>americanas (Tocqueville, 1984, p. 48). Na complexificação desse</p><p>mosaico representado pela imigração branca, acrescentam-se</p><p>as populações negras escravizadas e as populações indígenas.</p><p>Quando me refiro a essas populações, não as compreendo</p><p>como um bloco homogêneo, mas, pelo contrário, como uma</p><p>representação de vários matizes culturais, lingüísticos, étnicos</p><p>etc. Se observarmos o caso das populações africanas, podemos</p><p>distinguir diversos grupos étnicos com diferentes línguas,</p><p>hábitos, costumes e tradições culturais. Tocqueville (1984,</p><p>p. 317) descreve:</p><p>Entre estes homens tão diversos, o primeiro que atrai os olhares,</p><p>o primeiro nâ ilustração, em poder, em ventura, é o homem</p><p>branco, o europeu, o homem por excelência; por debaixo dele</p><p>aparecem o negro e o índio. 1</p><p>1 A discussão realizada aqui foi ampliada a partir de uma primeira versão</p><p>publicada com o título "Do Estado-Nação à sodedade-rede: o reconhecimento</p><p>da multiculturalidade na educação" (Silva, 1999).</p><p>Multiculturalisme) e educação intercultural... 19</p><p>Um forte sentimento que protagonizou a instalação da</p><p>sociedade democrática, aliado às práticas sociais diferencialistas</p><p>que imperaram na legislação norte-americana, não impediu a</p><p>constituição de uma nação que segregou e exterminou o</p><p>diferente, o não-anglo-saxão cristão. O historiador e antropólogo</p><p>Emmanuel Todd (1996, p. 57) observa que, entre 1860 e 1890,</p><p>250 mil índios foram exterminados em terras norte-americanas,</p><p>enquanto os negros foram segregados em guetos. Outro</p><p>elemento recordado pelo historiador remonta à legislação</p><p>norte-americana que até 1966 proibiu o casamento inter­</p><p>racial.2</p><p>No início do século XX, o filósofo da educação John</p><p>Dewey, com a obra Democracy and education (1916), estabelece</p><p>a relação entre o pluralismo na formação da sociedade norte-</p><p>americana e a educação, atribuindo à escola o papel de</p><p>equilibrar as forças presentes na sociedade a fim de garantir</p><p>interesses e projetos comuns aos cidadãos, assim como a</p><p>participação democrática.</p><p>Por outro lado, Malgesini e Giménez (1997, p. 257) atribuem</p><p>a Furnivall, por volta do ano de 1944, a criação do termo</p><p>sociedade plural. Furnivall apresentou pela primeira vez esse</p><p>conceito para caracterizar as sociedades das índias Orientais</p><p>Fíolandesas, defendendo a idéia de que as sociedades plurais</p><p>eram criações da colonização ocidental, que reuniu diferentes</p><p>grupos étnicos nos Estados coloniais. Esse autor acreditava</p><p>que, por ser uma criação dos ocidentais, as sociedades plurais</p><p>se desmoronariam quando acabasse a colonização, justamente</p><p>pelo processo forjado para estabelecer laços políticos e</p><p>econômicos, não havendo no seio dessas sociedades laços</p><p>unificadores de caráter cultural e social.</p><p>2 A lei só foi considerada inconstitucional e abolida em 1967.</p><p>20 Educação intercultural</p><p>O multiculturalismo, originalmente como foi concebido</p><p>nos Estados Unidos da América, preconizava que as diversas</p><p>culturas existentes no interior do territorio norte-americano</p><p>seriam assimiladas pela cultura dominante.3 Pautadas nessa</p><p>compreensão, foram implantadas diversas políticas para levar</p><p>a cabo essa visão assirnilacionista, entre elas a chamada educação</p><p>compensatória, traduzida em programas de reforço escolar para</p><p>crianças, filhos de imigrantes, que não dominavam ou não</p><p>tinham o conhecimento satisfatório da língua e da cultura</p><p>tradicional americana.</p><p>Outra prática, constituída pelas ações afirmativas, pretendia</p><p>igualar principalmente populações negras no mercado de</p><p>trabalho e na educação com os índices de empregados e alunos</p><p>brancos. O ano de 1965 pode ser considerado um marco na</p><p>implantação de políticas que visavam à justiça social e à</p><p>igualdade para os negros. Além da educação e do trabalho,</p><p>uma série de outras medidas foi tomada para combater a</p><p>pobreza, que acabou diminuindo também, e a discriminação</p><p>racial sofrida pelos negros. Um exemplo é o lançamento de</p><p>programas de saúde (medicare) para idosos e assistência aos</p><p>pobres, a proibição da lei que discriminava os negros na</p><p>aquisição de moradia e a aprovação da legislação sobre os</p><p>direitos civis.</p><p>Tal política não só beneficiou as populações negras, mas</p><p>também outros segmentos da sociedade que estavam à</p><p>margem do sistema educacional e econômico. O sociólogo</p><p>norte-americano Nathan Glazer (1981) afirma que nessa</p><p>política havia dois objetivos claros a serem atingidos: a</p><p>complementação da estrutura do bem-estar social e a eliminação</p><p>3 A cultura norte-americana dominante tem sido caracterizada como WASP,</p><p>ou seja, White, Anglo-Saxan and Protestant (Branca, Anglo-Saxã e Protestante).</p><p>pela</p><p>companhia benfazeja da cuia de chimarrão, nos estendíamos</p><p>em conversas sem fim; e nos momentos das refeições e letargias</p><p>subseqüentes àqueles desfrutes gastronômicos que nossa</p><p>memória-paladar não esquece.</p><p>Naqueles momentos, foram muitas e instigantes as</p><p>observações feitas pelos professores: a professora Nena nos</p><p>3 Esse projeto, coordenado pela professora Maria Isabel Batista Serrão, do</p><p>Departamento de Metodologia de Ensino do CED (UFSC), ainda se</p><p>encontrava em funcionamento em 2000. Seu objetivo principal é a formação</p><p>do professor leitor e escritor - este é o nome do projeto - com vistas a tornar</p><p>mais presente nos professores a necessidade do trabalho com os registros de</p><p>suas atividades. Nossa colaboração se limitou a uma exposição sobre a</p><p>linguagem audiovisual e ampla participação nos debates subseqüentes aos</p><p>estudos propostos pela professora Maria Isabel.</p><p>Mídia e mediações culturais na escola 135</p><p>dizia: "Não sabemos o que fazer. Tentamos passar um pouco</p><p>de crítica para nossos alunos, mas eles passam a tarde vendo a</p><p>Angélica; os pais, o jornal; e as mães, as novelas". A mesma</p><p>professora, referindo-se ao poder das imagens, sentenciava</p><p>que "a televisão é muito perigosa. É tudo muito cinematográfico".</p><p>Nena também nos alertava para o fato de que "a televisão é</p><p>uma coisa montada", ou ainda o professor Adílio observava</p><p>que "há uma psicologia de convencimento por detrás da</p><p>televisão". Também Adílio, mencionando o Movimento dos</p><p>Trabalhadores Rurais Sem Terra e as mídias, afirmava que</p><p>"a mídia esconde nossos líderes".</p><p>De posse desses primeiros depoimentos, entendemos,</p><p>então, que os professores estavam nos convidando a vê-los</p><p>como sujeitos que, por estarem já em contato com as mídias</p><p>ao longo de suas vidas, vinham tratando de problematizá-las</p><p>no interior do lugar cultural em que trabalham, a despeito da</p><p>força aglutinadora do MST que os integra ideologicamente.</p><p>Ou seja, ao mesmo tempo que a comunidade de assentados</p><p>identifica-se com propostas de mudança da ordem vigente</p><p>mediante os símbolos que congregam os integrantes do MST,</p><p>por outro lado também encontra identidade na programação</p><p>sensacionalista e bestializante veiculada pela televisão</p><p>brasileira.</p><p>Todavia, por mais que esses professores, sujeitos que,</p><p>em maior ou menor grau, participam do MST, se encontrem em</p><p>sintonia identitária quanto à especificidade das lutas que os</p><p>movem (a luta pela reforma agrária, a luta por uma política</p><p>agrária, a luta por uma sociedade igualitária, a luta pela</p><p>preservação dos valores culturais regionais etc.), é importante</p><p>levar em consideração que eles são corpos distintos, marcados</p><p>por diferentes trajetórias históricas, culturais, psicológicas e</p><p>136 Educação ¡ntercultural</p><p>sociais ao longo de suas vidas. Portanto, à medida que se</p><p>encontram em confronto com os fenômenos que lhes</p><p>aparecem como problemáticos, acabam significando esses</p><p>mesmos fenômenos mediados por suas próprias histórias de</p><p>vida, dos rastros e marcas que a vida deixa como legado</p><p>indelével de um percurso singular.</p><p>' As entrevistas que realizamos com os professores</p><p>indicaram-nos que os diferentes significados que cada um</p><p>atribui à própria relação com o cinema e a televisão são</p><p>construídos a partir de suas histórias e dos contextos</p><p>socioculturais em que vive(ra)m. Como indicação do modo</p><p>pelo qual essas diferentes mediações culturais vivenciadas são</p><p>determinantes das disposições e motivações que orientam as</p><p>próprias opções atuais, trazemos os depoimentos do professor</p><p>Heitor e da professora Anita.</p><p>O professor Heitor pôde conviver, em sua infância e</p><p>adolescência, com a multiplicidade de ofertas culturais que</p><p>uma cidade como Sorocaba, no Estado de São Paulo,</p><p>proporciona a seus habitantes. E a respeito disso que Heitor</p><p>nos fala:</p><p>Lá em Sorocaba eram cinemas bem grandes, enormes. Tem o</p><p>Cine Ouro, tem o Cine Líder, tem o Cine São Bento (...) nd São</p><p>José, por exemplo, passavam filmes mais comerciais, mais</p><p>lançamento. No São Bento eram só filmes de faroeste e</p><p>pornográficos. No São José, de vez em quando, passava um</p><p>filme pornográfico. Filme pornográfico eu quis assistir antes</p><p>dos 18 anos. Eu fui assistir um filme pornográfico no Cine</p><p>Ouro que era bem em frente da escola em que eu estudava,</p><p>onde estudei oito anos. Eu devia ter uns 15 anos, por aí. Só sei</p><p>que a partir de então comecei a gostar de cinema europeu.</p><p>Comecei a notar a diferença de linguagem.</p><p>O que gostaríamos de destacar nesse depoimento é a</p><p>percepção do professor quanto a outra forma de narrativa</p><p>Mfdia e mediações culturais na escola 137</p><p>fílmica que não a clássica hollywoodiana. Essa percepção, de</p><p>acordo com o próprio Heitor, curiosamente se deu por</p><p>intermédio de um filme europeu de gênero pornográfico. Aqui</p><p>aparecem as mediações que foram se construindo em Heitor,</p><p>mudança de olhar que, naquele momento, permitiu a</p><p>emergência de uma descontinuidade, produzindo, assim, uma</p><p>nova síntese cultural.</p><p>Ainda tentando captar nas falas de Heitor fragmentos de</p><p>sua construção mediativa frente ao cinema, em dado momento</p><p>da entrevista ele nos falou de um importante fator que teria</p><p>contribuído, em sua adolescência, para entender o cinema</p><p>como algo marcante em sua experiência de sujeito:</p><p>Eu freqüentava muito a Biblioteca Municipal, e havia uma</p><p>revista chamada Cineminha, um tabloide grande que sempre</p><p>tinha uma foto de um artista importante na última capa, dava</p><p>a ficha do filme, tinha comentário sobre o filme, tinha filmes</p><p>antigos, novos, lançamentos. (...) A possibilidade de conhecer</p><p>o mundo acarreta fazer ligações entre o que se lê, quem é o</p><p>diretor, qual é a linha que o diretor trabalha. Por exemplo, do</p><p>Wim Wenders, um filme marcante para mim quando assisti,</p><p>em 1987, foi Paris-Texas, bem poético, um filme bem paciente,</p><p>bem denso: sabe aquela dinâmica do Wim Wenders? E as</p><p>pessoas que gostam de filme comercial geralmente detestam</p><p>esse, porque a narrativa é completamente outra. (...) A revista</p><p>também dirigia o jeito de olhar para o cinema e para o filme.</p><p>E daí, com essa leitura anterior, possibilitava, por exemplo, a</p><p>descoberta de outras coisas no filme. Eu me percebia fazendo</p><p>isso, o que me deixava mais encantado ainda, porque, na</p><p>verdade, era um processo de conhecer e obter informações,</p><p>mas também de trabalhá-las.</p><p>Essa fala corrobora a idéia de que os sujeitos-professores</p><p>daquelas escolas, por virem das mais diversas regiões do país e</p><p>estarem, assim como nós, em contato com esses-meios-como</p><p>fenômenos também de seu tempo, deveríam estar, de alguma</p><p>maneira, procurando formas e instrumentos para compreendê-los.</p><p>138 Educação ¡ntercultural</p><p>E aqui nos aparece Heitor relatando alguns episódios de sua</p><p>vida que contribuem substancialmente para que esse argumento</p><p>se sustente.</p><p>Já a professora Anita nos relata outros significados que o</p><p>cinema teria tido para ela:</p><p>Uma vez fui; estava no primeiro ano do segundo grau em</p><p>Caçador, só que não lembro mais o nome do filme; fiquei com</p><p>trauma. Era relacionamento sexual e drogas, só que mostrou</p><p>assim aquele lado negativo das drogas e relações de pessoas.</p><p>Então eu saí com trauma daquilo lá e fiquei com aquelas</p><p>imagens um tempo. Não serviu, não gostei, detestei. E foi assim:</p><p>os professores é que indicaram para a gente ir assistir, e depois</p><p>foi feito um debate sobre a relação entre drogas e sexo. Mas a</p><p>maneira que foi apresentado foi uma coisa muito forte, muito</p><p>suja, não gostei.</p><p>É importante considerar o fato de que Anita, na época em</p><p>que o filme a chocou tanto, encontrava-se como interna</p><p>morando junto com as irmãs no Seminário em Caçador. E, é</p><p>importante acrescentar; ela continua envolvida com um grupo</p><p>de reflexões, que congrega famílias de assentados, de que</p><p>participa como coordenadora. Segundo ela mesma, os temas</p><p>que são contemplados no interior dos debates promovidos</p><p>pelo grupo tratam de "questões mais religiosas, e agora sobre</p><p>a Campanha da Fraternidade".</p><p>A fala de Anita, quando menciona sua experiência com o</p><p>cinema, especialmente aquele filme que</p><p>tanto a marcou, é dita</p><p>a partir de um lugar cultural que, se visto de fora, na relação</p><p>entre o cinema e a cultura religiosa de Anita, permite-nos supor</p><p>que o que medeia fortemente o olhar da professora é dado por</p><p>sua cultura religiosa, sua visão mítica de mundo. E é a partir</p><p>daí que encontramos alguns elementos que contribuem para</p><p>a sua resistência: o sujeito Anita é interpelado a olhar o mundo</p><p>através das relações sociais que estabeleceu - e que estabelece -</p><p>Mídia e mediações culturais na escola 139</p><p>em sua vida, e que são marcadamente influenciadas pela</p><p>religiosidade; é justamente aí que se dá a resistência. Nesse</p><p>i olhar cultural em questão, o que aparece, à primeira vista, é</p><p>o filme ser submetido ao crivo da crítica já a partir do próprio</p><p>enredo. O belo aqui tem critérios, e, parece correto supor,</p><p>toda técnica da arte sucumbe diante do fato de que, nesse</p><p>caso, a compreensão estética não contempla o entrelaçamento</p><p>dos corpos nus dos atores como possibilidade de construção</p><p>do belo.</p><p>Os significados diferentes que o cinema e a mídia</p><p>assumem para Heitor e Anita são constituídos a partir de suas</p><p>experiências com as mídias e pelas relações sociais que</p><p>. estabeleceram ao longo de suas vidas. Essas experiências, que</p><p>aqui denominamos mediação fundamental, compreendemos</p><p>como o eixo condutor que dá o tom de elaboração e construção</p><p>do discurso estético que, como vimos, emergiram nas distintas</p><p>narrativas descritas pelos professores. Essa constatação nos</p><p>aponta uma questão de fundo: como o estudo de compreensão</p><p>do popular, a partir da categoria mediação, pode contribuir para</p><p>o entendimento das culturas populares diante do fenômeno</p><p>televisivo.</p><p>Mediações como espaço de negociações pela hegemonia</p><p>Entre os pressupostos da moderna tradição latino-</p><p>americana dos estudos de recepção, foram especialmente as</p><p>reflexões de Jesús Martín-Barbero que acabaram por servir</p><p>como aporte teórico deste capítulo.</p><p>Diante dos primeiros indicadores obtidos em nosso</p><p>primeiro contato com os professores, nossa necessidade de</p><p>mudança de enfoque foi encontrar guarida, sobretudo, nos</p><p>140 Educação intercultural</p><p>estudos empreendidos por Martín-Barbero. Logo no início de</p><p>sua obra De ¡os medios a Ias mediaciones (1987, p. 11), o autor</p><p>argumenta ser necessário</p><p>mudar o lugar das perguntas (dos meios às mediações), para</p><p>tornar investigáveis os processos de constituição da massa por</p><p>fora da chantagem culturalista que os converte inevitavelmente</p><p>em processos de degradação cultural. E, para isso, investigá-</p><p>los desde as mediações e os sujeitos, isto é, desde a articulação</p><p>entre práticas de comunicação e movimentos sociais.</p><p>À medida que tínhamos como demanda contemplar as</p><p>mediações entre os sujeitos professores integrados em um</p><p>reconhecido movimento social, o MST, e suas práticas com a</p><p>comunicação, foi que esse estudo de Martín-Barbero nos</p><p>apareceu como uma referência para buscar compreender as</p><p>mediações entre a consciência dos professores e a oferta dos</p><p>produtos audiovisuais disponíveis (televisão, vídeos e</p><p>cinema). Entretanto, logo pudemos perceber que, para</p><p>conseguirmos a materialização das mediações que</p><p>procurávamos, Martín-Barbero (1987, p. 226) nos incitava a</p><p>tomar a cultura como ponto de partida, afirmando que</p><p>algo radicalmente distinto se produz quando o cultural indica</p><p>a percepção de dimensões inéditas do conflito social, a formação</p><p>de novos sujei tos - regionais, religiosos, sexuais, geracionais -</p><p>e formas novas de rebeldia e resistência. Reconceitualização</p><p>da cultura que nos enfrenta a existência dessa outra experiência</p><p>cultural que é popular, em sua existência múltipla e ativa não</p><p>somente em sua memória do passado, mas em sua conflitividade</p><p>e criatividade atual. Pensar os processos de comunicação, a</p><p>partir da cultura, significa deixar de pensá-los a partir das</p><p>disciplinas e dos meios. Significa romper com a segurança que</p><p>proporcionava a redução da problemática da comunicação à</p><p>das tecnologias.</p><p>Um dos referenciais teóricos com o qual Martín-Barbero</p><p>constrói seu conceito de cultura pode ser encontrado nas</p><p>Mídia e mediações culturais na escola 141</p><p>investigações sobre as quais Canclini tem se debruçado em</p><p>suas pesquisas acerca das culturas populares no capitalismo.</p><p>E o conceito de cultura, para Canclini (1983, p. 29), requer</p><p>restringir o uso do termo cultura para a produção de fenômenos</p><p>que contribuem, mediante a representação ou reelaboração</p><p>simbólica das estruturas materiais, para a compreensão,</p><p>reprodução ou transformação do sistema social, ou seja, a</p><p>cultura diz respeito a todas as práticas e instituições dedicadas</p><p>à administração, renovação e reestruturação do sentido.</p><p>É nesse palco, no qual ocorrem as lutas pela cultura, quanto</p><p>à administração, renovação e reestruturação do sentido, que Barbero</p><p>se refere à concepção de hegemonia para explicar a formação</p><p>de mediações. Conforme White (1998a, p. 55),</p><p>a hegemonia, para Martín-Barbero, não está assegurada de uma</p><p>vez por todas por uma única classe dominante, mas é um campo</p><p>de batalha entre muitos atores e palco de novas alianças. O poder</p><p>não é primordialmente exercido pela força, mas por manobras</p><p>para definir símbolos culturais da sociedade.</p><p>Diante disso, o funcionamento da sociedade seria uma espécie</p><p>de campo de lutas, em que não encontraríamos efetivamente</p><p>nenhuma forma de hegemonia pura, mas sim, utilizando uma</p><p>metáfora de Martín-Barbero (1987, p. 204), de mestiçagens. Mas, ao</p><p>tratar das culturas como formas híbridas da produção de sentidos,,</p><p>esse autor se pergunta: "Como pensar a identidade enquanto</p><p>continua imperando uma razão dualista, apegada a uma lógica da</p><p>diferença que trabalha levantando barreiras, que é a lógica</p><p>da exclusão e da aparência?" (1987, p. 205).</p><p>Para Martín-Barbero, as mediações aparecem como</p><p>elementos de ligação entre o poder hegemônico da indústria</p><p>cultural e os sentidos que lhes são atribuídos pelas audiências</p><p>organizadas em movimentos sociais. E, nesse sentido, ele</p><p>propõe:</p><p>142 Educação inlercultural</p><p>Em lugar de fazer partir a investigação da análise das lógicas</p><p>da produção e da recepção, para buscar depois suas relações</p><p>de imbricação ou enfrentamento, propomos partir das</p><p>mediações, isto é, dos lugares de onde provêm as constrições</p><p>que delimitam e configuram a materialidade social e a</p><p>expressividade cultural da televisão. Como hipótese, que</p><p>recolhe e dá forma a uma série de buscas convergentes (...),</p><p>propõem-se três lugares de mediação: a cotidianidade familiar,</p><p>a temporalidade social e a competência cultural (1987, p. 233).</p><p>De acordo com Martín-Barbero (1987, p. 233-234), a</p><p>cotidianidade familiar aparece como importante mediação</p><p>entre a produção e o consumo da televisão. Para o autor,</p><p>se a televisão na América Latina tem a família como unidade</p><p>básica de audiência, é porque ela representa para a maioria a</p><p>situação primordial de reconhecimento. E não se pode entender</p><p>o modo específico em que a televisão interpela a família sem</p><p>interrogar a cotidianidade familiar enquanto lugar social de</p><p>uma interpelação fundamental para os setores populares.</p><p>O que o autor argumenta aqui é que ao mesmo tempo</p><p>que a família aparece como mediação para o desenvolvimento</p><p>das programações produzidas pelas emissoras de televisão, e</p><p>também outras mídias de massa, ela aparece interpelada a ser</p><p>mediação de si mesma em um espaço de negociações em que</p><p>a televisão também é interpelada a mediar a convivência no</p><p>cotidiano familiar. Assim, pareceu-nos de grande relevância</p><p>pedir permissão aos professores para que nos deixassem</p><p>adentrar suas vidas privadas, formulando questões que</p><p>indagassem acerca de seus cotidianos domésticos relacionados</p><p>ao uso da televisão e do videocassete. Isso se deu em função</p><p>de acreditarmos poder encontrar aí importantes sentidos que</p><p>eles atribuiríam à televisão como um elemento interferente nas</p><p>relações familiares.</p><p>Por sua vez, é sobre a temporalidade social que se assenta</p><p>a matriz cultural do tempo. Isto é, todas</p><p>as culturas possuem</p><p>Mídia e mediações culturais na escola 143</p><p>formas distintas de se relacionar com o tempo, ou melhor, o</p><p>tempo de que se dispõe, à parte do que é controlado</p><p>sistematicamente pelas instituições públicas ou privadas, é</p><p>significado e utilizado de inúmeras maneiras pelas mais</p><p>diversas culturas. Com relação a isso, Martín-Barbero (1987,</p><p>p. 236) nos convida a refletir que</p><p>enquanto em nossa sociedade o tempo produtivo, o valorizado</p><p>pelo capital, é o tempo que "corre" e que se mede, o outro, de</p><p>que está feita a cotidianidade, é um tempo repetitivo, que</p><p>começa e acaba para recomeçar, um tempo feito não de unidades</p><p>contáveis, mas de fragmentos.</p><p>O tempo do ócio, ou seja, aquele não controlado pelo capital,</p><p>aparece nos indivíduos como fluido, desprovido de singularidade.</p><p>Em outras palavras, não é possível precisar o que uma</p><p>determinada comunidade está fazendo paralelamente com o</p><p>tempo de que dispõe. Ele não é possível de ser equacionado</p><p>porque, justamente, se encontra fragmentado entre o que se</p><p>começa e recomeça sem a precisão do apito da fábrica e a</p><p>pressão do gerente de produção.</p><p>Logo, a pergunta sobre o que fazem os professores com o</p><p>tempo extra-escolar no contato com as mídias nos pareceu</p><p>muito profícua. Isso ocorreu porque acreditamos que também</p><p>seus cotidianos domésticos acabam por enveredar para o</p><p>interior do espaço escolar como mediação articuladora das</p><p>práticas de abordagem das mídias.</p><p>Finalmente, é na competência cultural, para Martín-</p><p>Barbero (1987, p. 238-239), que se encontra a</p><p>diferenciação entre uma cultura gramaticalizada - aquela que</p><p>remete a intelecção e fruição de uma obra às regras explícitas</p><p>da gramática de sua produção - e uma cultura textualizada:</p><p>onde o sentido e o prazer de um texto remetem sempre a outro</p><p>texto, e não a uma gramática, como acontece no folcloré, na</p><p>144 Educação intercultural</p><p>cultura popular, na cultura de massa. Da mesma maneira que a</p><p>maioria das pessoas vai ao cinema assistir a um filme policial,</p><p>de ficção científica ou de aventura, a dinâmica cultural da</p><p>televisão atua por seus gêneros. A partir destes, ativa a</p><p>competência cultural e, a seu modo, dá conta das diferenças</p><p>que a atravessam, Os gêneros, que articulam narrativamente</p><p>as serialidades, constituem uma mediação fundamental entre as</p><p>lógicas de» sistema produtivo e do sistema de consumo, entre</p><p>a do formato e a dos modos de 1er, dos usos.</p><p>Durante o processo de nossas investigações, a recorrência</p><p>aos gêneros pelos professores prolifera nos depoimentos.</p><p>Martín-Barbero, ao recorrer aos gêneros para averiguar a</p><p>competência cultural à qual se refere, pleiteia que estes estejam</p><p>como que num entremeio dos espaços de negociação entre as</p><p>mídias e os consumidores, isto é, esses espaços seriam um</p><p>subproduto entre as demandas por formatos com os quais o</p><p>popular se projeta e se identifica e, por outro lado, os</p><p>produtores refreando seus potenciais criativos nos limites da</p><p>compreensão gramatical pelo popular. Do nosso ponto de</p><p>vista, pensávamos poder encontrar aí possíveis mediações,</p><p>negociações, entre os professores e o poder de sedução</p><p>articulado em torno das produções dessa natureza. Desse</p><p>modo, ao se dirigirem para o espaço escolar, esses professores</p><p>carregam consigo elementos desse convívio cotidiano que</p><p>estabelecem com as mídias. Isso se torna possível, segundo</p><p>Silvia Borelli (1995, p. 71), porque</p><p>numa perspectiva mais geral, os gêneros ficcionais - matrizes</p><p>culturais universais, recicladas e transformadas na cultura de</p><p>massa - aparecem como elementos de constituição do</p><p>imaginário contemporâneo e de construção da mitologia</p><p>moderna: reposição arquetípica, aclimatação do padrão</p><p>originário a uma nova ordem, e instrumentos de mediação das</p><p>projeções e identificações com o público receptor.</p><p>Mídia e mediações culturais na escola 145</p><p>Ao tomarmos como aporte teórico essas reflexões de</p><p>Martín-Barbero, pudemos constatar que qualquer tentativa</p><p>precipitada de compreensão homogênea de um lugar cultural</p><p>acaba implicando sério prejuízo investigativo. Dada a</p><p>complexidade dos novos pontos de vista em que se coloca a</p><p>ciência contemporânea para olhar a sociedade, cumpre aos</p><p>pesquisadores ampliar suas buscas rumo ao que liga as coisas</p><p>umas às outras neste complexo sistema representado por</p><p>homens e mulheres.</p><p>Considerações finais</p><p>Ao longo de nosso trabalho de investigação, partindo do</p><p>ponto de vista da educação popular como campo de</p><p>investigação científica e área de atuação pedagógica, para</p><p>compreender o ponto de vista dos sujeitos sociais diante das</p><p>mídias, demo-nos conta de que essa linha de pesquisa pode</p><p>encontrar uma significativa parceria na realização de uma</p><p>interface com a moderna tradição latino-americana dos</p><p>estudos de recepção. Por encontrar em ambas uma profunda</p><p>sintonia no que diz respeito ao olhar o popular a partir do</p><p>popular, é que essa aproximação se torna profícua e necessária.</p><p>Devemos considerar a larga experiência reflexiva que os</p><p>pesquisadores dos estudos de recepção possuem na</p><p>compreensão da especificidade do que se passa no popular</p><p>diante das mídias e das mídias diante do popular. Assim, tal</p><p>linha de investigação aparece como possibilidade de</p><p>preenchimento de uma lacuna no sentido de contribuir para a</p><p>educação popular em seu próprio campo de ação.</p><p>Ao transplantarmos o tema das mediações entre os</p><p>sujeitos e as mídias para o interior do espaço escolar,</p><p>acreditamos, sobremaneira, que professores e alunos, em uma</p><p>146 Educação ¡ntercultural</p><p>perspectiva intercultural, possam estar encontrando ai</p><p>elementos significativos de compreensão do outro, do outro</p><p>semelhante e também do outro diferente na atribuição de</p><p>sentidos.</p><p>Isso é relevante, sobretudo, porque a sociedade</p><p>contemporânea, em sua pluralidade cultural, comporta</p><p>diversas tramas de uma enorme rede constituída pelos</p><p>diversos movimentos sociais organizados. Cada um desses</p><p>grupos possui, muitas vezes, posturas distintas frente aos</p><p>fenômenos e aos problemas com os quais se deparam em seus</p><p>cotidianos. Tais posturas emergem dos indivíduos em</p><p>pluralidades de pensares, mas que, por força do organismo do</p><p>qual fazem parte, surgem como uma massa homogênea. Isto</p><p>é, os estatutos, o discurso normativo do funcionamento</p><p>coletivo do movimento, acobertam muitas invisibilidades que</p><p>acabam por ocultar importantes demandas que não aparecem,</p><p>se vistas de fora, porque são encontradas somente nos sujeitos.</p><p>Pudemos também nos dar conta dos sentidos e dos modos</p><p>como os professores significam as mídias. Em um exercício de</p><p>ativação da memória (memória social), legado de marcas e</p><p>rastros de si mesmos, no depoimento de suas histórias de vida,</p><p>pudemos encontrar as mediações. Estas, produto da experiência</p><p>cultural e política desses professores, acabam se manifestando</p><p>como um engajamento profundo em um projeto de ruptura</p><p>com o discurso hegemônico na forma de resistência e</p><p>descontinuidade em relação à ordem vigente.</p><p>Por outro lado, porém, pudemos perceber que a vida sorriu</p><p>de maneira distinta a cada um deles. Enquanto alguns muito</p><p>pouco contato tiveram com experiências (mediações) que</p><p>permitissem uma maior aproximação com a linguagem e os</p><p>guetos que produzem esses textos, para outros, por sua vez,</p><p>e por várias circunstâncias, a vida permitiu que experimentassem</p><p>Mídia e mediações culturais na escola 147</p><p>com maior intensidade o exercício de e do olhar as imagens em</p><p>movimento.</p><p>Não obstante essa diferenciação, emerge, aproximándo­</p><p>os, uma cultura em construção e profundamente marcada pelo</p><p>político. Poderiamos ousar dizer que esses professores</p><p>partilham de um discurso de resistência e transformação da</p><p>sociedade, o que acaba aproximando-os no sentido de</p><p>formação de uma cultura que é forjada a cada dia. E sendo</p><p>assim, de conflito em conflito, decorrência geoistórica e</p><p>cultural dos vários lugares de que cada um deles provém, esses</p><p>mesmos conflitos ora vão se amainando, ora se agravando,</p><p>em um espaço intercultural que lhes acaba permitindo</p><p>trocas</p><p>de saberes que colaboram no sentido de formação de uma</p><p>nova identidade cultural.</p><p>No entanto, é importante frisar, a existência de tais</p><p>conflitos não seria perceptível, não fosse o mergulho com os</p><p>professores no seu dia-a-dia. Participando de suas angústias,</p><p>de suas certezas e incertezas, partilhando os sonhos de</p><p>construção de um mundo mais justo e igualitário, conseguimos</p><p>materializar os sentidos que esses sujeitos atribuem às suas</p><p>percepções e maneiras de compreender o mundo. Temos</p><p>observado que isso somente é possível à medida que</p><p>rompemos com a idéia da unilateralidade do processo</p><p>comunicativo.</p><p>As pesquisas via de regra levam em consideração como.</p><p>variável fundamental os impactos, enquanto os efeitos correm</p><p>o sério risco de perder a heterogeneidade das invisibilidade^</p><p>que estão coladas aos indivíduos. Daí a necessidade de vivendar</p><p>o conflito no interior dos movimentos sociais. É principalmente</p><p>no dissenso que se materializam os sentidos e os significados</p><p>que os sujeitos atribuem às coisas do mundo, e isso pudemos</p><p>experimentar um pouco a cada dia em que lá estivemos.</p><p>148 Educação intercultural</p><p>Comprovamos, em nossa vivência e convivência nas lutas</p><p>do MST, que a consciência crítica não depende exclusivamente</p><p>de um vasto conhecimento filosófico no sentido de uma paidéia,</p><p>de uma uniformização do saber historicamente acumulado</p><p>pela humanidade, mas que isso depende de uma relação</p><p>cotidiana com a transformação do contexto como necessidade</p><p>vital de sobrevivência dos sonhos e, por conseguinte, da</p><p>esperança. Portanto, o universo acadêmico em seus estatutos</p><p>muito voltados para a reflexão teórica e pouco preocupados</p><p>com a ação transformadora concreta da sociedade, uma</p><p>aproximação com as práticas populares dos movimentos</p><p>sociais, especialmente o MST, pode colaborar no próprio</p><p>redimensionamento de seus caminhos paradigmáticos. Num</p><p>exercício de troca, os acadêmicos podem também contribuir</p><p>para o exercício da sistematização reflexiva no interior dos</p><p>movimentos sociais. Sobre isso, Freire argumenta que "assim</p><p>como não é possível identificar teoria com verbalismo,</p><p>tampouco o é identificar prática com ativismo. Ao verbalismo</p><p>falta a ação; ao ativismo, a reflexão crítica sobre a ação" (1976,</p><p>p.17) .</p><p>Essa possibilidade de reflexão crítica sobre a ação - que</p><p>Orozco vem procurando desenvolver em uma aproximação</p><p>com Paulo Freire, como vimos - deixa aqui as portas abertas</p><p>para a existência de um segundo momento neste capítulo que</p><p>por ora acreditamos ter cumprido modestamente seu objetivo:</p><p>o levantamento das posturas dos professores, que, mediados</p><p>por suas culturas, constroem a cada dia uma nova cultura</p><p>profundamente marcada pelo político e que pode ser</p><p>problematizada a partir das diferenças de sentidos cuja</p><p>pluralidade de experiências, localizada nos professores,</p><p>estimule a transformação do contexto em que se inserem.</p><p>Mídia e mediações culturais na escola 149</p><p>Desse modo, à medida que pudemos colaborar nesse tipo</p><p>de discussão, tanto no interior da escola pesquisada quanto</p><p>na academia, acerca do fenômeno dos meios de comunicação</p><p>de massa, particularmente do uso crítico dos recursos</p><p>audiovisuais no espaço escolar, esperamos ter contribuído de</p><p>maneira significativa para que a sociedade, em seus espaços</p><p>de negociações, agilize a construção de uma cidadania</p><p>fortemente ressignificada socialmente, capaz de fazer valer</p><p>seus interesses também no campo das comunicações.</p><p>Referências bibliográficas</p><p>Adams, E W. 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Disponível</p><p>em: .</p><p>http://www.oei.org.co/oeivirt/riel3.html</p><p>A DP&A editora está na rede mundial de computadores.</p><p>Em nosso site você poderá ter acesso a várias informações</p><p>sobre a editora, os últimos lançamentos, nosso catálogo,</p><p>nossos distribuidores e eventos. Nele você poderá obter</p><p>informações de como comprar direto, sem sair de casa, além</p><p>de poder se cadastrar para obter informações periódicas de</p><p>lançamentos e eventos.</p><p>Home page: www.dpa.com.br</p><p>MU</p><p>DP&A</p><p>«dStoira</p><p>4</p><p>http://www.dpa.com.br</p><p>Multiculturalisme» e educação ¡ntercultural... 21</p><p>da discriminação política e econômica contra os negros que,</p><p>na avaliação do sociólogo norte-americano, foram</p><p>consideravelmente alcançadas.</p><p>Algumas cifras retiradas do documento O status social e</p><p>econômico dos negros nos Estados Unidos, elaborado pelo governo</p><p>norte-americano, e apresentadas pelo mesmo autor em outro</p><p>trabalho (1972, p. 88) demonstram como essas medidas</p><p>contribuíram para a elevação das camadas pobres e negras,</p><p>revelando um crescimento na renda média de 54% em 1964</p><p>para 60% em 1969, se compararmos com a relação média dos</p><p>brancos. Mesmo considerando esses dados, Nathan Glazer</p><p>(1981, p. 14) questiona até que ponto, de fato, os negros foram</p><p>incorporados em condições de igualdade à sociedade</p><p>americana, uma vez que as pesquisas demonstram que, embora</p><p>uma significativa parcela da população tenha ascendido para</p><p>o ensino superior se comparada com a situação anterior, grande</p><p>parte dessa população ainda se encontrava vivendo em</p><p>péssimas condições sociais e materiais.</p><p>Medidas semelhantes foram aplicadas também em alguns</p><p>países da Europa, como a Grã-Bretanha e a Holanda, nessas</p><p>mesmas décadas. Antonio Guerrero Serón avalia essas práticas</p><p>da seguinte maneira:</p><p>O que está oculto no fundo é a compreensão de que as culturas</p><p>estrangeiras são inferiores e a presunção racista de que as</p><p>crianças possuem uma série de dificuldades para a</p><p>aprendizagem que terminará por contribuir na redução do</p><p>rendimento escolar (1998, p. 144).</p><p>No caso dos Estados Unidos, as diferentes concepções</p><p>que nortearam o debate sobre o multiculturalismo/pluralismo</p><p>cultural, segundo Mary A. Hepburn (1992), podem ser</p><p>agrupadas em quatro grandes enfoques teóricos. A autora</p><p>propõe uma distinção entre pluralismo cultural e multiculturalismo.</p><p>preferindo reservar este último termo para a compreensão da</p><p>22 Educação intercultural</p><p>formação das sociedades multiculturais, e o primeiro às teorias</p><p>assimilacionistas. Quanto às teorias assimilacionistas, a autora</p><p>distingue dois enfoques: assimilação 1 e assimilação 2.</p><p>Na concepção do assimilacionismo 1, os grupos</p><p>pertencentes a culturas externas são acolhidos pela cultura</p><p>dominante, ou melhor, defende-se a idéia de que esses grupos</p><p>de culturas externas serão capazes de se organizar para, com o</p><p>grupo pertencente à cultura dominante, estabelecer um debate</p><p>e chegar a um ponto comum. Dessa forma, torna-se parte da</p><p>cultura dominante, sendo absorvida/assimilada por ela, ou,</p><p>nas palavras de Hepbum (1992, p. 85),</p><p>surge um consenso público, graças à polêmica e ao debate, de</p><p>modo que se descobre e expressa uma vontade comum. Os</p><p>subgrupos chegam assim a ser parte do todo, ou seja, da cultura</p><p>dominante.</p><p>A expressão que se popularizou para designar esse</p><p>processo de assimilação é melting pot,* ou, como descreve Lima</p><p>(1997, p. 263),</p><p>cadinho onde várias culturas se fundem para formar uma só,</p><p>perdendo características próprias em favor de uma nova unidade</p><p>- no caso, a americana, predominantemente anglo-saxã.</p><p>Cabe lembrar que para o caso dos afro-americanos esse</p><p>modelo não vigorou. As práticas segregacionistas contra os negros</p><p>americanos perduraram até aproximadamente a década de 1960,</p><p>quando surgiram as lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos. 4</p><p>4 A duradoura imagem dos Estados Unidos como um "cadinho" foi estampada</p><p>na consciência nacional em 1908 pelo sionista inglês Israel Zangwill, quando</p><p>seu melodrama The melting pot (O cadinho) estreou em Washington e Nova</p><p>York. A peça apresenta dois imigrantes russos, um judeu e o outro cristão,</p><p>que encontraram amor e felicidade na América - "crisol de Deus", o grande</p><p>cadinho onde todas as raças da Europa se misturam e reformam-se (Adams,</p><p>1984, p. 6).</p><p>Multiculturalismo e educação intercultural... 23</p><p>Na educação, essa concepção teórica deixa claras suas</p><p>influências, predominando por mais de duas décadas e chegando</p><p>até meados da década de 1990. John Dewey e Herbert Spencer</p><p>são alguns dos educadores que vão chamar a atenção da</p><p>sociedade americana para os perigos que representavam essas</p><p>idéias para a democracia. Esses autores apontam um papel</p><p>fundamental para a escola enquanto um instrumento de</p><p>unificação da cultura da nação, não como assimilação, mas</p><p>como fusão. No entanto, essas idéias não ultrapassaram o</p><p>caráter assimilacionista e integracionista.</p><p>Esse ponto de vista é também assumido pelo Estado norte-</p><p>americano. Hepburn (1992, p. 86) oferece um dado importante:</p><p>em 1890 havia somente 2.566 escolas secundárias públicas (high</p><p>schools); em 1920 havia 14.326 (Bureau of Education, 1901; 1922).</p><p>A educação assume o papel de unificadora da cultura nacional</p><p>como forma de garantir a coesão social e a democracia. Escola</p><p>para todos, a partir de um programa de ideais assimilacionistas,</p><p>nos quais deviam estar inseridos não só elementos históricos</p><p>e sociais da Europa e do mundo, mas principalmente história e</p><p>problemas econômicos dos Estados Unidos, é o que se</p><p>pretendia para forjar um novo cidadão com capacidade crítica,</p><p>com uma atitude reflexiva para entender o presente e com</p><p>condições de preparar-se para o futuro.</p><p>Como reação a essa concepção assimilacionista na forma</p><p>de fusão, surge a outra proposta, liderada por conservadores e</p><p>também denominada assimilacionista, porém de modelo anglo-</p><p>saxão, o assimilacionismo 2. Esse pressuposto teórico pregava a</p><p>absorção das culturas dos imigrantes, porém não considerava</p><p>haver qualquer contribuição das culturas externas para o</p><p>enriquecimento da cultura dominante norte-americana. O</p><p>imigrante deveria aceitar e se conformar com os novos valores,</p><p>24 Educação ¡ntercultural</p><p>cultura, tradição e costumes norte-americanos (anglo-</p><p>conformity). Uma das causas dessa reação foi o fato de estar se</p><p>intensificando a imigração não-européia ocidental oriunda do</p><p>Japão, China, Europa meridional e oriental.</p><p>Na educação, esse modelo centrava sua atenção e prática</p><p>no ensino dos fatos históricos, na imposição de valores</p><p>nacionalistas, distanciando-se dos problemas reais e da busca</p><p>de soluções. Diferentemente da primeira concepção</p><p>assimilacionista defendida por Dewey, os defensores desse</p><p>modelo acreditavam que, à medida que os imigrantes fossem</p><p>se conformando e assumindo a cultura anglo-saxã, os conflitos</p><p>raciais e culturais se extinguiriam.</p><p>Mary Hepburn (1992, p. 87) cita uma pesquisa realizada</p><p>em finais da década de 1930, em que as atitudes dos alunos do</p><p>Estado de Nova York são ilustrativas do tipo de educação dos</p><p>jovens pautada nesse modelo:</p><p>No ensino não se levavam em conta as diferenças individuais</p><p>e de grupo, e entre os estudantes se observava o predomínio de</p><p>atitudes intolerantes com relação às nações estrangeiras, à</p><p>política e à raça.</p><p>A partir dos anos 1950, inicia-se um processo de luta pela</p><p>garantia dos direitos civis, em que as organizações negras</p><p>americanas têm um papel fundamental. Há um forte</p><p>questionamento das teorias assimilacionistas, um retorno às</p><p>tradições culturais e à luta pela preservação da língua de</p><p>origem por parte dos grupos minoritários. As idéias do</p><p>assimilacionismo passam a ser rejeitadas por pressuporem</p><p>menosprezo e desvalorização do patrimônio cultural das</p><p>populações minoritárias. No campo social, há uma certa</p><p>predisposição da população branca, de uma forma geral, para</p><p>sensibilizar-se pelos problemas das minorias. Nesse cenário,</p><p>é proposto um novo modelo chamado de pluralismo</p><p>Multiculturalismo e educação ¡ntercultural... 25</p><p>multicultural, o qual, segundo Hepburn (1992, p. 88), pode ser</p><p>visto sob a idéia de que</p><p>concebe a coexistência de várias culturas de forma paralela à</p><p>cultura ocidental dominante. (...) Procura-se desse modo</p><p>estabelecer um "mosaico" de grupos raciais e étnicos que</p><p>formem parte de um todo unificante. Espera-se que a</p><p>diversidade prospere, ao mesmo tempo que a cooperação e a</p><p>adesão aos valores democráticos contribuam à harmonia</p><p>político-social.</p><p>Origina-se um processo de reforma educacional nos</p><p>Estados Unidos, buscando a inserção</p><p>de uma perspectiva</p><p>multidisciplinar que possibilitasse, pelos estudos cívicos, uma</p><p>aproximação com os problemas da nação. No entanto, subsistia</p><p>um desequilíbrio entre essas propostas de reforma educacional</p><p>e as reformas sociais, 0 que acabou impelindo j ovens descontentes</p><p>com a realidade a realizar numerosas manifestações,</p><p>reivindicando melhores condições sociais e educacionais.</p><p>Manifestações que se produziram tanto no interior das escolas</p><p>americanas quanto em outros espaços da sociedade civil.</p><p>Posteriormente, nos anos 1980 e 1990, outras iniciativas)</p><p>nesse campo trataram de propor mudanças no conteúdo dos !</p><p>currículos de história e estudos sociais com o objetivo de abrir</p><p>espaço para as minorias e superar uma abordagem |</p><p>estereotipada de suas culturas. No âmbito das universidades ¡</p><p>americanas, vários cursos e programas de estudos ■</p><p>multiculturais foram implementados com a criação de</p><p>especialidades como estudos afro-americanos, estudos de mulheres,</p><p>estudos de gays, estudos de lésbicas. Foram introduzidos, além</p><p>disso, autores e obras não-ocidentais nos currículos de</p><p>literatura. O multiculturalismo torna-se, assim, segundo Lima</p><p>(1997, p. 264), "o novo princípio ideológico, substituindo o</p><p>melting pot, que pretendia apagar as diferenças".</p><p>26 Educação intercultural</p><p>Lima lembra ainda que nos últimos anos certas posturas</p><p>extremistas ligadas ao multiculturalismo, especialmente no</p><p>meio universitário, têm sido alvo de críticas junto à sociedade</p><p>norte-americana. Muitos desses críticos propõem que se</p><p>diferencie entre um multiculturalismo de cunho pluralista e</p><p>outro de cunho particularista.</p><p>Pelo multiculturalismo pluralista é permitido aos grupos</p><p>optar, independentemente do Estado, por manter suas</p><p>especificidades culturais no interior de uma sociedade ou</p><p>incorporar-se a ela. Essa tendência admite a possibilidade de</p><p>existência de uma cultura comum que pode ser, inclusive,</p><p>enriquecedora, e que a auto-estima dos não-anglo-saxões, no</p><p>caso dos Estados Unidos, deve ser incentivada em todos os</p><p>níveis da sociedade. Em outras palavras, a idéia dos pluralistas</p><p>pode assim ser resumida: "A cultura americana nos pertence a</p><p>todos nós; os Estados Unidos somos nós, e os refazemos a</p><p>cada geração" (Ravitch, 1992, p. 42).</p><p>Já o multiculturalismo particularista enfatiza o incentivo a</p><p>um novo tipo de etnocentrismo, similar ao que se buscou</p><p>combater inicialmente, ou como identifica Diane Ravitch:</p><p>A versão particularista do multiculturalismo ensina aos jovens</p><p>que sua identidade é determinada pelos "genes culturais"; que</p><p>alguma coisa no sangue, na memória racial ou no DNA cultural</p><p>deles é que define quem eles são e o que podem alcançar; que</p><p>a cultura na qual vivem não é a cultura deles, ainda que nela</p><p>tenham nascido; que a cultura americana é "eurocêntrica" e,</p><p>portanto, hostil a todo aquele cujos ancestrais não sejam</p><p>europeus (1992, p. 42).</p><p>A partir dessas críticas, a postura sintetizada por Lima a</p><p>respeito do multiculturalismo leva a considerar que é preciso</p><p>ter cautela na reflexão e na elaboração que se deseja realizar</p><p>na construção de uma pesquisa que trabalhe com a concepção</p><p>multiculturalista.</p><p>Multiculturalisme) e educação intercultural... 27</p><p>Discurso prático e teórico dos educadores sobre o</p><p>muiticulturalismo</p><p>O debate sobre o muiticulturalismo assume, ao longo das</p><p>últimas cinco décadas, várias faces e concepções através de</p><p>processos, geralmente, demandados por lutas empreendidas</p><p>por movimentos sociais ou grupos minoritários no interior</p><p>das sociedades. Algumas dessas faces apresentam medidas</p><p>implantadas no sistema educativo; é por esse recorte que</p><p>apresento a continuidade da reflexão.</p><p>Na Europa e nos Estados Unidos, o pesquisador Ramón</p><p>Flecha (1996, p. 42) localiza os diferentes termos que têm sido</p><p>recorrentes na literatura sobre muiticulturalismo e educação,</p><p>propondo, a título de esclarecimento, uma distinção entre eles.</p><p>Muiticulturalismo é visto como o reconhecimento de que</p><p>em um mesmo território existem diferentes culturas.</p><p>Interculturalismo é uma maneira de intervenção diante dessa</p><p>realidade, que tende a colocar a ênfase na relação entre culturas.</p><p>Pluriculturalismo é outra maneira de intervenção que dá ênfase</p><p>à manutenção da identidade de cada cultura.</p><p>A educadora Marina Lovelace (1995, p. 12) prefere</p><p>abandonar a polêmica terminológica em torno das categorias</p><p>multiculturalismo/pluriculturalismo/interculturalismo para</p><p>esclarecer que sob tais terminologias deve-se conceber "o processo</p><p>de aculturação que se deve propiciar ante o encontro de grupos</p><p>humanos de culturas e línguas diversas para estabelecer</p><p>comunidades interculturais". Mesmo optando por não levar</p><p>adiante a polêmica dos termos, a autora acaba por identificar-</p><p>se com a perspectiva aportada por Flecha na distinção dos</p><p>dois termos principais: muiticulturalismo e interculturalismo.</p><p>Lovelace propõe, ainda, uma leitura do muiticulturalismo</p><p>na perspectiva do atual contexto da sociedade global. Para a</p><p>28 Educação intercultural</p><p>autora, independentemente da presença de culturas diversas</p><p>ou minoritárias no espaço da escola, a educação multicultural</p><p>se torna necessária</p><p>para afrontar a complexidade dos desenvolvimentos das</p><p>sociedades contemporâneas, estabelecendo um adequado</p><p>equilíbrio entre a atenção às diversidades culturais e os</p><p>conteúdos básicos que articulam as ditas sociedades (1995, p. 12).</p><p>Dolores Juliano (1993, p. 42), baseada no levantamento</p><p>feito por Davies, observa que as preocupações da pesquisa</p><p>educacional na Comunidade Européia centram-se na idéia do</p><p>déficit cultural, ou ainda, especificamente, nos déficits</p><p>lingüísticos das sociedades receptoras, em que as práticas</p><p>escolares buscam superar esses problemas trabalhando na</p><p>perspectiva de uma educação compensatória. Se comparadas</p><p>com as práticas educativas nos Estados Unidos, as iniciativas</p><p>no contexto escolar desenvolvem-se na perspectiva da</p><p>inserção das minorias por meio da distribuição dos alunos,</p><p>pertencentes a esses grupos, em diferentes escolas regionais,</p><p>apostando que a distribuição demográfica pode contribuir</p><p>para uma minimização dos efeitos discriminatórios a que estão</p><p>sujeitos os estudantes dos grupos minoritários (nesse sentido,</p><p>especificamente, os filhos de imigrantes).</p><p>A polêmica travada por docentes da Generalitat de Cataluña</p><p>(Espanha) ilustra essa tendência, resultando ná aprovação de</p><p>uma lei que obriga todos os centros educativos mantidos com</p><p>recursos públicos a reservar duas vagas em cada sala de aula</p><p>para alunos considerados com necessidades especiais. Segundo</p><p>a Lopeg/1995 (Lei Orgânica de Participação, Avaliação e o</p><p>Governo dos Centros Docentes), os alunos com necessidades</p><p>especiais são todos aqueles que necessitam, em um período</p><p>de sua escolarização ou ao longo de toda ela, de determinados</p><p>apoios educativos específicos por padecerem de incapacidades</p><p>Multiculturalismo e educação intercultural... 29</p><p>físicas, psíquicas ou sensoriais, ou ainda por se encontrarem em</p><p>condições sociais e culturais desfavorecidas, ou seja, em última</p><p>instância, os filhos de imigrantes estrangeiros, de etnia cigana e</p><p>alunos de nacionalidade espanhola de comunidades</p><p>consideradas marginalizadas socialmente (Martí Font, 1998,</p><p>p. 30).5 Em contrapartida a essas duas atuações, a autora propõe</p><p>que a prática educativa leve em conta a diversidade cultural,</p><p>incluindo-a em atividades escolares específicas e abrindo os</p><p>programas às contribuições de outras culturas nos campos</p><p>artísticos, científicos e organizativos; e/ou procurar</p><p>desenvolver escalas de valores abertas em que se aprecie a</p><p>diferença como um elemento positivo para cada uma das</p><p>culturas em contato (Juliano, 1993, p. 43).</p><p>Outras experiências de caráter positivo, junto a alunos</p><p>pertencentes a grupos minoritários, tomamos da análise</p><p>desenvolvida por Kenneth Zeichner. O autor, baseado nos</p><p>estudos de Kalantzis, Cope, e Noble e Poynting, observa</p><p>muitas semelhanças nas experiências realizadas em escolas</p><p>americanas e australianas. Inovações</p><p>como a inclusão da</p><p>diversidade cultural e lingüística no programa curricular, o</p><p>incentivo à participação da comunidade/família na orientação</p><p>e organização da escola e a avaliação desenvolvida a partir do</p><p>rendimento individual proporcionaram resultados positivos</p><p>que aumentaram o background cognitivo dos alunos.</p><p>Zeichner (1993, p. 93) sugere, a partir dos estudos que</p><p>consideram a diversidade cultural escolar, alguns elementos</p><p>5 Uma reação a essa lei, por parte de pais, foi registrada na cidade de Girona.</p><p>Os pais, querendo garantir uma educação de qualidade para seus filhos,</p><p>retiraram da escola pública em que havia presença de alunos filhos de</p><p>imigrantes e gitanos (ciganos), buscando uma outra escola pública próxima</p><p>ou até matriculando seus filhos em escolas privadas. Para esses pais, a forma</p><p>de garantir uma educação qualificada para seus filhos implica mantê-los distante</p><p>dos descapacitados social e culturalmente.</p><p>30 Educação intercultural</p><p>para uma ação eficaz junto a alunos diferentes culturalmente</p><p>e pertencentes a grupos minoritários.</p><p>Sintetizadas a partir de três vertentes principais</p><p>(professor, aluno e comunidade), as contribuições de Zeichner</p><p>nos levam a destacar alguns desses aspectos. No que se refere</p><p>ao professor, uma questão que fica clara é o fato de que o</p><p>posicionamento pessoal do educador e o compromisso</p><p>sociopolítico andam juntos para uma elaboração curricular e</p><p>a construção de uma comunidade escolar aberta para a</p><p>perspectiva multicultural. A própria auto-identificação do</p><p>professor enquanto pertencente a uma cultura distinta é</p><p>importante para, a partir daí, poder estabelecer os vínculos</p><p>com o aluno; da mesma forma, a crença de que todos os alunos</p><p>têm po tencial cognitivo e podem vir a desenvolvê-lo rompe</p><p>com a lógica da exclusão a priori.</p><p>O aluno que tem as suas tradições culturais próprias</p><p>reconhecidas e valorizadas no âmbito do processo de ensino</p><p>encontra possibilidades de inserção mais ágil no cotidiano</p><p>escolar. Nesse sentido, a elaboração de um programa curricular</p><p>que valoriza as contribuições de várias culturas de forma</p><p>explícita dinamiza e potencializa o conhecimento numa</p><p>perspectiva multicultural e intercultural.</p><p>Por último, a inserção e escuta dos anseios da comunidade</p><p>por meio dos pais desses alunos possibilita o redirecionamento</p><p>da própria prática pedagógica dos docentes, que devem estar</p><p>sempre se reformulando e se refazendo na sua ação pedagógica.</p><p>Pesquisa desenvolvida pelo educador Gajendra Verma</p><p>(1995, p. 75) em nove escolas britânicas, na primeira metade</p><p>dos anos 1990, buscou localizar as diferentes formas de</p><p>comportamentos expressos por professores e alunos em</p><p>Multiculturalisme) e educação intercultural... 31</p><p>escolas constituídas por alunos de grupos étnicos distintos.</p><p>Entre suas constatações, através de entrevistas realizadas com</p><p>alunos (brancos e negros), destacam-se os comportamentos</p><p>discriminatórios de professores em relação a alunos de grupos</p><p>étnicos minoritários. Tal observação é reafirmada pelas</p><p>entrevistas realizadas com os professores que deixaram, em</p><p>seus discursos, transparecer esse tipo de tratamento diferencial,</p><p>uma conclusão encontrada também pela maioria das pesquisas</p><p>desenvolvidas por educadores brasileiros sobre educação e</p><p>etnia ao longo dos anos 1980 e 1990. Para além do</p><p>comportamento dos professores, o pesquisador destaca a</p><p>importância da implementação de políticas públicas que visem</p><p>a atingir o sistema educacional em todos os seus níveis,</p><p>englobando desde as equipes diretivas e estudantes até a</p><p>comunidade de uma forma geral. Sem esses elementos,</p><p>qualquer proposta política educacional de intervenção em</p><p>contextos educativos multiculturais perde sua potencialidade</p><p>de transformação.</p><p>No contexto francês, como no restante da Europa, esse</p><p>quadro não difere substancialmente. Experiências realizadas</p><p>por grupos localizados de educadores têm apontado alguns</p><p>caminhos, seja pela valorização da língua materna dos filhos</p><p>de imigrantes, que geralmente apresentam baixo rendimento</p><p>escolar, seja pela elaboração de processos formativos de</p><p>professores, na perspectiva do reconhecimento d a interculturalidade</p><p>como elemento agregador dos conteúdos tradicionais</p><p>curriculares.</p><p>José Antonio Jordán (1994), a partir de um balanço de</p><p>pesquisas realizadas em países da Europa (principalmente na</p><p>Holanda, Grã-Bretanha, França e Alemanha), nos Estados</p><p>Unidos e na Austrália, assume a perspectiva proposta por</p><p>Lovelace, relacionando alguns aspectos referentes ao conceito</p><p>32 Educação intercultural</p><p>de educação multicultural e à possibilidade de sua aplicação</p><p>prática entre os educadores. O autor detecta um</p><p>distanciamento entre o que os professores manifestam sobre</p><p>o tema do multiculturalismo em questionários formais</p><p>(identificado por Jordán como plano da consciencia) e o que</p><p>pensam e comentam de maneira informal (identificado como</p><p>nivel inconsciente e profundo). Outra conclusão, extraída das</p><p>pesquisas, diz respeito ao fator etário: os professores mais</p><p>jovens (até 40 anos) manifestam atitudes positivas e abertas</p><p>na prática pedagógica com alunos de grupos minoritários, ao</p><p>contrário de professores de faixa etária superior aos 40 anos,</p><p>que expressam uma certa insensibilidade diante das diferenças.</p><p>A variável idade não é, contudo, relevante em outro</p><p>contexto de investigação semelhante analisado por Jordán.</p><p>Jovens alunos do curso de formação de professores da</p><p>Universidade de Murcia, na Espanha, explicitaram</p><p>predisposições negativas ou indiferentes em relação a aspectos</p><p>como promoção e defesa das minorias étnicas e suas</p><p>respectivas identidades culturais.</p><p>Jordán (1994) destaca, ainda, o paradoxo que cerca as</p><p>percepções de alunos de grupos étnicos minoritários em suas</p><p>relações com os professores. Embora os professores formulem</p><p>visões positivas sobre seus alunos ao responder aos</p><p>questionários de pesquisas realizadas, a sensibilidade dos</p><p>estudantes em torno de um tratamento que nega a diferença</p><p>contradiz essas visões. Jordán (1994, p. 43) cita, assim, dois</p><p>exemplos de atitudes reveladoras desse paradoxo:</p><p>a) ainda que inconscientemente, os professores tentam negar</p><p>a diferença através da ilusão do tratamento igualitário-,</p><p>b) pelo contrário, vêem nas diferenças somente aspectos</p><p>dçficitários e problemáticos, em distintos planos de sua</p><p>relação escolar.</p><p>Multiculturalisme) e educação intercultural... 33</p><p>Por outro lado, García Martínez e Sáez Carreras (1998)</p><p>relacionam os paradigmas ou modelos teóricos das ciências com</p><p>as formas de compreensão sobre educação e interculturalidade.6</p><p>Os autores desenvolvem três modelos interculturais, ou seja,</p><p>reelaboram os modelos/paradigmas explicativos da ciência,</p><p>aproximando-os do campo da interculturalidade e ressaltando</p><p>que esses modelos devem ser vistos mais na perspectiva de</p><p>esquemas ou modos de pensar que possam orientar as</p><p>investigações no campo da educação intercultural do que</p><p>necessariamente na de uma teoria para ser aplicada.</p><p>Modelo tecnológico = positivista = educação compensatória</p><p>Neste modelo, a interculturalidade é vista como uma</p><p>forma de compensar os déficits das culturas não-majoritárias.</p><p>Esses déficits podem referir-se às distintas formas de leitura e</p><p>escrita, sobretudo na língua majoritária, como podem ser</p><p>criados (considerados inferiores). Essa concepção está</p><p>diretamente vinculada à educação compensatória. A partir</p><p>dessa óptica restaria às culturas minoritárias, segundo Garcia</p><p>Martínez e Sáez Carreras (1998, p. 129), um intensivo processo</p><p>de aculturação, a tal ponto que viessem a perder seus referentes</p><p>culturais.</p><p>A formação de guetos e outras formas de segregação</p><p>aparece como conseqüência lógica desse tipo de postura,</p><p>muitas vezes adotada como política. Os autores destacam que</p><p>a assimilação cultural não é um conceito que se limita somente</p><p>ao aspecto cultural, mas envolve outras dimensões práticas</p><p>6 Os autores preferem utilizar o termo interculturalidade ao termo</p><p>multiculturalidade, compreendendo interculturalidade</p><p>como o diálogo</p><p>possível entre as diversas culturas que convivem numa mesma sociedade.</p><p>34 Educação intercultural</p><p>do cotidiano como, por exemplo, a família e as relações</p><p>conjugais e sociais. Reduzir, portanto, a problemática da</p><p>interculturalidade ao campo único da cultura simplifica o que</p><p>é complexo, reduzindo a realidade a um esquema formal de</p><p>atuação social.7</p><p>No campo da educação, essa concepção tecnológica serve</p><p>para aumentar o volume dos textos, sem atingir efetivamente os</p><p>objetivos de democracia, igualdade, respeito, cidadania que</p><p>uma proposta verdadeiramente comprometida com a</p><p>realidade multicultural de nossas sociedades poderia realizar.</p><p>Os autores sugerem ultrapassar o detenninismo tecnológico</p><p>e positivista, recorrendo a um pluralismo metodológico que vá</p><p>adiante dos cursos impostos ao conhecimento social pelo</p><p>darwinismo metodológico e pelo determinismo tecnológico</p><p>(García Martínez e Sáez Carreras, 1998, p. 132).</p><p>Modelo hermenêutico ou interpretativo</p><p>Este modelo avança um pouco mais na discussão sobre</p><p>educação multicultural. Poder-se-ia dizer que ultrapassa a</p><p>primeira noção de caráter mais tecnológico, pois nessa</p><p>percepção a educação intercultural</p><p>deve nuclear seu projeto sobre a melhoria do conhecimento</p><p>de si mesmo que todos os alunos devem proporcionar para</p><p>estimular o desenvolvimento da cooperação intercultural e</p><p>reduzir os preconceitos e discriminações. A perspectiva moral</p><p>aparece neste modelo orientada a melhorar as habilidades dos</p><p>sujeitos para atingir uma melhor autocompreensão e estimular</p><p>a cooperação intergrupal (id., ib., p. 133).</p><p>7 Representando, nesse caso, a visão eurocêntrica e etnocêntrica, servindo</p><p>unicamente para reforçar o status quo do predomínio de uma cultura (européia</p><p>e branca) sobre outras (ditas) minoritárias.</p><p>Multiculturalismo e educação intercultural... 35</p><p>!</p><p>Segundo García Martínez e Sáez Carreras, essa percepção</p><p>propõe uma reforma na estrutura social e educativa, não</p><p>chegando a uma transformação de forma mais profunda nas</p><p>estruturas da sociedade. No entanto, não deixa de oferecer</p><p>suas contribuições. Uma delas seria que os professores</p><p>conscientes da realidade social multicultural podem estimular</p><p>seus alunos na reflexão sobre suas atitudes e práticas</p><p>discriminatórias, produzindo, dessa forma, algumas mudanças</p><p>moderadas nas relações interpessoais. Outro dado interessante</p><p>que marca essa postura diz respeito à pretensão de instaurar</p><p>um processo gradual de reconhecimento da diversidade</p><p>cultural. Porém, os autores chamam a atenção para o fato de</p><p>não haver um questionamento sobre os limites da cultura</p><p>majoritária dominante. Se todas as culturas são reconhecidas</p><p>nas suas diferenças, faz-se necessário distinguir criticamente</p><p>o papel atribuído à cultura majoritária.</p><p>De outra forma, o modelo hermenêutico ou interpretativo</p><p>pretende "mudar a consciência dos indivíduos diante da realidade</p><p>social, porém sem estender às vias que conduzem à transformação</p><p>das condições reais da vida social que produzem a dita</p><p>consciência" (García Martínez e Sáez Carreras, 1998, p. 135).</p><p>Modelo crítico ou sociopolítico</p><p>Este modelo salienta a preocupação tanto de professores</p><p>como de alunos em modificar as situações sociais e culturais,</p><p>assim como aspectos ideológicos que provocam a discriminação</p><p>racial. Essa perspectiva aceita os conflitos que surgem das inter-</p><p>relações humanas como elemento motivador e provocador.</p><p>Cria um dinamismo para que as transformações de caráter mais</p><p>profundo na sociedade sejam implementadas.</p><p>36 Educação intercultural</p><p>Nessa concepção se estabelece o reconhecimento das</p><p>diferenças na igualdade sem mascarar os conflitos que surgem</p><p>do contato entre culturas, porém apontando o diálogo como</p><p>possibilidade de convivência entre as culturas. Outro elemento</p><p>é o fato de não se considerar uma cultura superior a outra, mas</p><p>sim diferentes entre si. O dado interdisciplinar no tratamento</p><p>do currículo escolar é outro aspecto levado em consideração.</p><p>A interdisciplinaridade permite "compreender as situações</p><p>e ofertar ps instrumentos precisos para abordá-las, o que é</p><p>incompatível com qualquer proposta reducionista e</p><p>exclusivista" (García Martínez e Sáez Carreras, 1998, p. 137).</p><p>Para os autores, o modelo que poderia dar uma resposta</p><p>mais eficaz e equilibrada à realidade multicultural no campo</p><p>educativo e social seria o modelo crítico ou sociopolítico. Urna</p><p>das razões está no fato de esse modelo "potencializar a</p><p>democracia e a igualdade de oportunidades para todos os</p><p>membros da sociedade" (id., ib., p. 151), assim como valorizar</p><p>as diferenças culturais como um elemento enriquecedor de</p><p>trocas interculturais no espaço da escola e na sociedade.</p><p>A partir da perspectiva norte-americana, o educador</p><p>canadense Peter McLaren (1997) vem defendendo a proposição</p><p>de um multiculturalismo crítico que consiga diferenciar-se de</p><p>outros enfoques de tendência humanista liberal, conservadora</p><p>e empresarial. Conforme afirmação do próprio educador, essas</p><p>distinções são um recurso quase didático para a exposição da</p><p>problemática, considerando que as diferenças entre essas</p><p>diversas concepções são extremamente mescladas se inseridas</p><p>em um contexto analítico social amplo. De uma forma rápida,</p><p>tentando não cair na caricatura, vamos expor algumas das</p><p>características dessas distinções.</p><p>O multiculturalismo conservador vê os negros aos pés da</p><p>escada da civilização; as outras etnias, que não a branca,</p><p>«f !</p><p>Multiculturalismo e educação ¡ntercultural... 37</p><p>possuem bagagem cultural inferior. Também pretende construir</p><p>uma cultura comum, a idéia de diversidade sendo vista sob o</p><p>ponto de vista de que os grupos étnicos são reduzidos a</p><p>acréscimos à cultura dominante e ao inglês como única língua</p><p>nacional.</p><p>O multiculturalismo humanista liberal defende a</p><p>existência de uma igualdade entre todas as pessoas, que é</p><p>conquistada por meio de oportunidades sociais e educacionais,</p><p>permitindo a todos competir igualmente em uma sociedade</p><p>capitalista.</p><p>Já o multiculturalismo liberal de esquerda enfatiza a</p><p>diferença cultural e a igualdade entre as raças, o que acaba por</p><p>ignorar a situação histórica e cultural das diferenças.</p><p>Na concepção do educador, o multiculturalismo crítico e</p><p>de resistência deve trabalhar na perspectiva de construção da</p><p>democracia, estabelecida como meta, inserida em uma política</p><p>crítica e de compromisso com a justiça social. Questões</p><p>específicas relativas a raça, gênero e classe são vistas como</p><p>produto ou resultado das lutas sociais mais amplas e,</p><p>finalmente, a diferença é compreendida como produto da</p><p>história.</p><p>Diferenciando-se da releitura dos modelos/paradigmas</p><p>propostos por García Martínez e Sáez Carreras na</p><p>compreensão da educação multicultural, García Castaño,</p><p>Pulido Moyano e Montes del Castillo (1997), pesquisadores</p><p>de interculturalidade da Universidade de Granada (a partir de</p><p>uma revisão de bibliografia, principalmente de origem norte-</p><p>americana), apresentam seis modelos de educação multicultural.</p><p>Para o grupo de pesquisadores, esses modelos conseguem</p><p>30 Educação intercultural</p><p>aglutinar boa parte das produções e tendencias teórico-</p><p>práticas do debate sobre multiculturalidade e educação.8</p><p>Fundamentado na teoría do déficit cultural, o modelo</p><p>assimilacionista pretende igualar as condições educativas para</p><p>alunos culturalmente distintos pertencentes a grupos</p><p>minoritários. Preocupado com a valorização das diferenças</p><p>culturais, esse enfoque busca proporcionar aos alunos o</p><p>conhecimento sobre a diversidade das culturas, entendendo</p><p>que o aluno deve aprender a viver harmoniosamente em uma</p><p>sociedade multiétnica.9</p><p>O pluralismo cultural defende que a escola deveria preservar</p><p>a diversidade cultural, rechaçando as teorias assimilacionislas</p><p>e as práticas de aculturação. Da mesma forma, o enfoque da</p><p>educação bicultural propõe descartar as visões assimilacionislas,</p><p>preservando a cultura nativa à qual o aluno pertence e</p><p>possibilitando que a cultura majoritária seja adquirida</p><p>como</p><p>uma segunda opção. Esse enfoque prega a igualdade nas</p><p>oportunidades oferecidas pelo Estado tanto para os jovens da</p><p>sociedade acolhedora como para os jovens do grupo minoritário.</p><p>A educação, vista como processo de transformação social,</p><p>preocupa-se com o desenvolvimento da consciência crítica dos</p><p>8 A classificação oferecida pelos pesquisadores da educação multicultural,</p><p>ainda que se utilizando das mesmas fontes de pesquisa, apresentam</p><p>variações nos modelos. Margarita Bartolomé Pina, por exemplo, propõe a</p><p>distinção de doze modelos (assimilacionista, compensatório, segregadonista,</p><p>curriculum multicultural, pluralismo cultural, orientação multicultural,</p><p>intercultural, educação não-racista, holístico de Banks, anti-racista, radical</p><p>e projeto educativo global). Para conhecer essa classificação, a autora oferece</p><p>um panorama no trabalho Diagnóstico a la escuela multicultural (Barcelona:</p><p>Cedecs, 1997).</p><p>9 O termo multiétnica designa a diversidade de expressões culturais ancoradas</p><p>em uma tradição comum; o termo etnia, até recentemente, era definido</p><p>também por essas vinculações culturais comuns.</p><p>Multiculluralismo e educação ¡nterculturai... 39</p><p>alunos, pais e comunidade em geral, para que sejam capazes</p><p>de realizar uma leitura crítica da estrutura social em que estão</p><p>inseridos. E, por último, coloca-se a educação anti-racista, que</p><p>pode assim ser resumida:</p><p>uma ideologia radical apoiada em uma análise de classes de</p><p>inspiração marxista, posta a serviço de uma transformação social</p><p>baseada na liberdade, na libertação dos grupos oprimidos e na</p><p>eliminação das discriminações institucionais, concebendo a</p><p>escola como uma agência para a promoção da ação política</p><p>(García Castaño, Pulido Moyano e Montes del Castillo, 1997).</p><p>Desses diversos enfoques, o grupo de pesquisadores</p><p>propõe a definição de educação multicultural como o processo</p><p>pelo qual uma pessoa desenvolve competências em múltiplos sistemas</p><p>de esquemas de percepção, pensamento e ação, ou seja, em múltiplas</p><p>culturas. Chamam a atenção para uma educação multicultural</p><p>que não se volte exclusivamente para o grupo de jovens, filhos,</p><p>de imigrantes ou pertencentes a grupos minoritários, para os .</p><p>quais geralmente os programas de educação têm voltado suas</p><p>preocupações, mas uma educação que leve em consideração o</p><p>conjunto da sociedade e as relações que se estabelecem entre</p><p>escola, sociedade e Estado. O desafio para a educação estaria</p><p>na ruptura da prática histórica escolar de reprodução e</p><p>transmissão da pretensa cultura dominante (homogênea).10</p><p>América Latina desde um enfoque intercultural da educação</p><p>América Latina, América Ibérica, América Espanhola,</p><p>América índia são alguns dos tantos termos cunhados para</p><p>designar o conjunto de diferenças que compõe o cenário de</p><p>10 Essa cultura homogênea apregoada historicamente pela prática escolar, desde</p><p>a idealização dos Estados-Nações, é algo que não existiu. Podemos afirmar</p><p>que foram empregadas várias tentativas de supressão das diferentes etnias e</p><p>manifestações culturais presentes no interior dos Estados-Nações na tentativa</p><p>de unificá-los.</p><p>i</p><p>povos e culturas latino-americanas. Do México à Terra do Fogo,</p><p>a diversidade é um traço latente nas cidades de todos os países</p><p>latinos. Uma diversidade historicamente relegada e deixada à</p><p>margem das propostas políticas e práticas educativas que, a</p><p>exemplo do que ocorreu na Europa, pautaram-se pelo ideal</p><p>homogeneizador do Estado-Nação. Práticas uniformizadoras</p><p>foram encontrando, na negação da diversidade, a possibilidade</p><p>de construção de uma sociedade coesa e unicultural.</p><p>A despeito das singularidades características de cada país</p><p>latino no que se refere à educação, é possível identificar</p><p>diretrizes comuns orientadoras das ações educativas. A análise</p><p>do pesquisador Luis Enrique López (1996, p. 29) sobre o que</p><p>significou para muitos indígenas a implantação do sistema</p><p>formal de educação no contexto boliviano serve como síntese</p><p>desse ideal homogeneizador.</p><p>As crianças e os adultos se viram diante de uma instituição</p><p>que se aproximava deles para educá-los, mas que utilizava</p><p>mecanismos e instrumentos que negavam sua própria</p><p>existência e a de seus conhecimentos e saberes que eles haviam</p><p>aprendido dos adultos através do tempo.</p><p>A pesquisadora Ileana Soto (1996, p. 140), referindo-se ao</p><p>sistema equatoriano de educação, reafirma essa concepção:</p><p>"Os sistemas educativos se encarregaram de cumprir com os</p><p>objetivos de defesa e manutenção do 'projeto nacional', sobre</p><p>a base de um inexistente Estado homogêneo". Destaca, ainda,</p><p>o tratamento .superficial e alheio dado às manifestações</p><p>culturais próprias da população por meio dos textos escolares</p><p>e das celebrações cívicas.</p><p>Da realidade guatemalteca podemos extrair outro</p><p>exemplo. Segundo Rosalba Piazza, as oligarquias brancas, ao</p><p>mesmo tempo que buscaram garantir a mão-de-obra indígena</p><p>40 1 Educação intercultural</p><p>Multiculturalismo e educação ¡ntercultural... 41</p><p>nos cafezais, pregavam o desaparecimento dessas comunidades</p><p>como única forma de sair do obscurantismo e ão atraso e assegurar</p><p>o desenvolvimento econômico. O argumento das oligarquias</p><p>que sustenta tal visão é retomado pela autora:</p><p>Politicamente são localistas e jamais se integrarão na auspiciada</p><p>Nação; culturalmente são extravagantes, posto que não</p><p>assumiram como próprios os modelos e valores ocidentais;</p><p>economicamente são inúteis, porque tendem a auto-suficiência.11</p><p>Como resultado dessas práticas homogeneizantes, vários</p><p>estudos constatam, a partir da década de 1960, o baixo</p><p>rendimento escolar entre crianças com língua materna distinta</p><p>da empregada no sistema escolar oficial. A implementação de</p><p>propostas educativas institucionais, pautadas por um caráter</p><p>compensatório, não logrou resolver os altos índices de</p><p>repetência e evasão escolar registrados, conduzindo a uma</p><p>reavaliação sobre o papel das diferenças culturais no processo</p><p>ensino-aprendizagem (Valiente Catter, 1996, p. 297).</p><p>O termo educação bicultural foi utilizado, inicialmente, para</p><p>designar as ações institucionais que levavam em consideração</p><p>a diferença cultural dos alunos. Os projetos implementados</p><p>nessa perspectiva buscavam distinguir as situações culturais</p><p>envolvendo as culturas indígenas e ocidental-européias. A</p><p>transição para a noção de interculturalidade nos anos 1980 ganha</p><p>novas proporções de caráter propositivo e político-</p><p>pedagógico, "convertendo-se em uma categoria central nas</p><p>propostas de educação bilingüe" (id., ib., p. 298).</p><p>A noção de interculturalidade, além de expressar a coesão</p><p>étnica de um grupo social, proporcionando condições para o</p><p>fortalecimento da identidade cultural, vai também estimular 11</p><p>11 Piazza, Rosalba. Movimiento maya y proceso de paz en Guatemala. Cuadernos,</p><p>SODePAZ. Disponível em: .</p><p>http://www.sodepaz.org</p><p>42 Educação ¡ntercultural</p><p>a aquisição do conhecimento cultural de outros povos. Isso</p><p>significa que não houve somente uma transição de termos</p><p>conceituais, mas uma mudança no tratamento da</p><p>pluriculturalidade no espaço da escola. Das preocupações</p><p>marcadamente lingüísticas, características da educação</p><p>bicultural e bilingüe, a interculturalidade considera o contexto</p><p>sociocultural dos alunos.</p><p>Mesmo assim, revisando alguns trabalhos acadêmicos e</p><p>textos legais produzidos por órgãos governamentais,</p><p>encontramos uma série de termos para identificar as iniciativas</p><p>dos educadores: etnoeducação (Colômbia), educação bilingüe</p><p>(Bolívia), educação bilingüe bicultural e educação intercultural</p><p>bilingüe (Guatemala). Centraremos nossa atenção na</p><p>articulação de alguns elementos que possibilitem configurar</p><p>um quadro das preocupações educativas levadas a cabo em</p><p>diferentes países da América Latina.12</p><p>Mesmo com a implementação de diversas propostas</p><p>pedagógicas, o quadro educativo intercultural na Guatemala,</p><p>na visão de Zimmermann (1997), é deficitário: "Necessitam-</p><p>se livros de texto para todas as matérias em línguas indígenas</p><p>organizados segundo os critérios da EIB". O autor</p><p>chama a</p><p>atenção para o fato de que é preciso formar professores capazes</p><p>de atuar com êxito no ensino das línguas indígenas, bem como</p><p>investir na pesquisa acadêmica sobre os costumes, a cultura, a</p><p>cosmovisão etc. dos povos indígenas, servindo como aportes</p><p>12 Nesse sentido, imagino poder encontrar elementos semelhantes entre as</p><p>diferentes iniciativas latinas e a realidade educativa brasileira. Essa preocupação</p><p>amplia minha intenção quando apresento alguns aspectos do debate sobre</p><p>o multiculturalismo nos EUA e na Europa. Guardadas as devidas diferenças</p><p>entre essas realidades educacionais e culturais, as experiências implementadas,</p><p>tanto de um lado quanto do outro, podem servir como elementos geradores</p><p>na reflexão sobre a construção de um projeto educativo capaz de processar</p><p>as diferenças e trabalhar com a pluralidade cultural como recurso pedagógico.</p><p>Multiculturalisme) e educação ¡ntercultural... 43</p><p>para a continuidade do processo de implementação de projetos</p><p>de educação intercultural. Por outro lado, as taxas de</p><p>analfabetismo adulto no país, segundo dados de 1995, são de</p><p>44,4% no meio urbano e de 70% em áreas rurais.13</p><p>Klaus Zimmermann (1997) propõe centrar a atenção em</p><p>duas frentes de trabalho para avançar na educação intercultural</p><p>na Guatemala. A primeira se traduz pela busca por uma</p><p>definição do que é a educação intercultural bilingüe (EIB),</p><p>especificando os objetivos gerais da educação de alunos</p><p>indígenas. Para o autor, além dessa definição, é necessário</p><p>trabalhar com a organização de um currículo que contemple,</p><p>no seu programa, as diferentes manifestações culturais, quer</p><p>integrando-as, quer confrontando-as. A segunda frente diz</p><p>respeito à necessidade de proporcionar recursos materiais e</p><p>humanos adequados para a concretização de projetos</p><p>educativos intereulturáis (id., ib.).</p><p>No contexto chileno, a aprovação da Lei 19.253, do ano de</p><p>1993, também conhecida como Lei Indígena, possibilitou "um</p><p>marco adequado" para a criação de uma "proposta formadora</p><p>de docentes", segundo avaliação de Georgina Miranda Vega</p><p>(1996). O resultado foi a implementação da Carrera de Pedagogia</p><p>de Educación General Básica Intercultural Bilíngue na Universidade</p><p>de Arturo Prat (Iquique). Esse curso pretende capacitar futuros</p><p>educadores para o ensino em contextos pluriculturais e multiétnicos,</p><p>contribuir para o desenvolvimento de potencialidades e para o</p><p>fortalecimento das identidades culturais e étnicas, e possibilitar</p><p>a participação social no mundo contemporâneo.</p><p>Já na realidade colombiana, uma proposta que merece</p><p>alusão é o Programa de Etnoeducação, que tem como princípio</p><p>básico a interculturalidade. Esse programa é desenvolvido pelo</p><p>13 Guatemala en Datos. Disponível em: .</p><p>http://www.sodepaz.org/31art4.htm</p><p>44 Educação intercultural</p><p>Ministério de Educação Nacional da Colômbia e está</p><p>estruturado no sistema em nível nacional, regional e local. Luis</p><p>Alberto Artunduaga Maries (1997), coordenador do Grupo</p><p>de Formação da Comunidade Educativa do Ministério de</p><p>Educação, define a proposta etnoeducativa como sendo</p><p>um processo imerso na cültura, construído desde uma</p><p>perspectiva étnico-cultural ou cosmovisão, cuja fundamentação</p><p>se consolida na Visão de homem e de sociedade que cada povo</p><p>deseja construir a partir de seu próprio projeto étnico de vida,</p><p>partindo de um delineamento de resposta a suas necessidades,</p><p>interesses e aspirações.</p><p>Os processos etnoeducativos devem aprofundar suas</p><p>raízes na cultura de cada povo, de acordo com os padrões e</p><p>mecanismos de socialização de cada um em particular,</p><p>propiciando uma articulação por meio de uma relação harmônica</p><p>entre o próprio e o alheio na dimensão da interculturalidade.</p><p>Cabe destacar que, nestas duas últimas décadas, diversos</p><p>governos latino-americanos vêm aprovando leis que</p><p>possibilitam a elaboração de novos marcos conceituais e</p><p>operacionais educativos na perspectiva da interculturalidade.</p><p>Por outro lado, constata-se que, em grande medida, os projetos</p><p>de educação têm acentuado os aspectos lingüísticos.14 No</p><p>Brasil, recentemente a Fundação Nacional do índio (Funai)</p><p>estabeleceu diversos projetos interinstitucionais, visando à</p><p>formação em nível superior de professores bilingües e de</p><p>origem indígena.</p><p>Concomitantemente a essas ações, observa-se uma ênfase</p><p>na elaboração de projetos curriculares capazes de garantir uma</p><p>maior aprendizagem das crianças e proporcionar uma educação</p><p>enraizada na realidade ecossociocultural.</p><p>14 Ensino de uma segunda língua ou a valorização e utilização de línguas</p><p>maternas indígenas na prática docente.</p><p>Multiculturalismo e educação intercultural... 45</p><p>Na opinião de Luis Enrique López (1996), essas propostas,</p><p>mesmo que limitadas, têm se constituído como "experiências</p><p>educativas mais democráticas (...) e respeitosas com algumas das</p><p>manifestações culturais das crianças indígenas", assegurando um</p><p>processo lento de auto-recuperação social e cultural, bem como</p><p>de reconstrução da auto-estima e de uma auto-imagem positiva.</p><p>Esse mesmo autor enfatiza os resultados obtidos com o</p><p>desenvolvimento de programas de EIB em alguns países da</p><p>América Latina. No México, observou-se um melhor domínio</p><p>de leitura e escrita. Na Guatemala, as crianças indígenas</p><p>desenvolviam-se com maior rapidez na utilização de uma</p><p>segunda língua, no caso o castelhano, levando-se em</p><p>consideração que a maior parte do ensino era ministrada na</p><p>língua materna das crianças. Da mesma forma, os resultados</p><p>encontrados na Bolívia apontam para melhoras na</p><p>possibilidade de aprender utilizando-se da proposta</p><p>intercultural e bilingüe de educação.</p><p>Da multiculturalidade para a construção do conceito de</p><p>uma educação intercultural</p><p>A observação que se pode fazer em relação aos conceitos</p><p>trabalhados no âmbito do debate acadêmico sobre educação e</p><p>multiculturalidade pode ser localizada em duas direções.</p><p>A primeira e mais conhecida trata das questões dentro de um</p><p>corpo teórico denominado educação multicultural; a segunda,</p><p>educação intercultural.</p><p>O contato com a produção de pesquisadores que buscaram</p><p>construir uma conceitualização leva a u ni conjunto de características</p><p>diversas enquanto definição teórica e, conseqüentemente,</p><p>formas de orientação para a implementação de políticas e</p><p>práticas no sistema escolar.</p><p>46 Educação intercultural</p><p>Uma primeira constatação é a utilização indistinta, na</p><p>grande maioria dos estudos, dos termos educação multicultural</p><p>e educação intercultural. Por outro lado, no interior da educação</p><p>multicultural encontram-se representações de concepções do</p><p>multiculturalismo mais geral. O discurso que envolve a</p><p>compreensão de educação multicultural pode ser localizado</p><p>pelo viés histórico de origem anglo-saxã. Essa apropriação</p><p>não se limita exclusivamente a esse aspecto, mas apresenta</p><p>concepções que organizo a partir das seguintes características.15</p><p>1) integração de elementos culturais de grupos étnicos</p><p>distintos da sociedade no programa curricular, tais como</p><p>datas comemorativas, celebrações, mitos, heróis etc.;</p><p>2) centralidade das preocupações a partir das diferenças</p><p>culturais visíveis de grupos minoritários na sociedade, tais</p><p>como negros, índios, ciganos, imigrantes etc.;</p><p>3) movimento de preservação da cultura histórica de um</p><p>determinado grupo minoritário étnico;</p><p>4) centralidade no debate sobre os fenômenos multiculturais</p><p>das sociedades contemporâneas e o próprio contexto</p><p>cultural das instituições escolares.</p><p>Específicamente no campo epistemológico, a educação</p><p>multicultural acabou se constituindo por um arcabouço</p><p>acadêmico intelectual que, segundo avaliação de Semprini</p><p>(1999, p. 90), "forjou de si mesmo uma imagem pública de</p><p>atividade intelectual, secreta, pessimista, esquerdista e</p><p>vagamente antipatriótica".</p><p>15 Esclareço que não pretendo dar conta de todo o debate sobre as diferentes</p><p>correntes teóricas que se organizam no interior dessa única concepção, mas,</p><p>com certa tranqüilidade, posso trabalhar com um conjunto significativo de</p><p>bibliografias</p>

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