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Todos os direitos desta edição reservados a Pontes Editores Ltda. Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia sem a autorização escrita da Editora. Os infratores estão sujeitos às penas da lei. A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação. Comitê Científico-Editorial Todos os textos que compõem os capítulos deste volume passaram por três rodadas de parecer realizadas por comitê interno e externo e supervisionada pelos organizadores da obra. Profa. Dra. Andréa Antonieta Cotrim Silva (Unip) Prof. Dr. Bruno Albanese Profa. Dra. Débora Hissa (UECE) Prof. Dr. Eduardo de Moura Almeida (USP) Profa. Dra. Fabiana Poças Biondo Araújo (UFMS) Profa. Dra. Rosineide de Melo Profa. Dra. Nara Hiroko Takaki (UFMS) Profa. Dra. Sandra Regina Buttros Gattolin de Paula (UFSCAR) Profa. Dra. Souzana Mizan (Unifesp) P654m Pinheiro, Petrilson; Azzari, Eliane Fernandes (orgs.). Multiletramentos em teoria e prática: desafios para a escola de hoje - Volume 2 Organizadores: Petrilson Pinheiro e Eliane Fernandes Azzari; Prefácio de Walkyria Monte Mor. 1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2023; figs.; tabs.; quadros. E-book: 7 Mb; PDF. Inclui bibliografia. ISBN 978-65-5637-795-7. 1. Análise do Discurso. 2. Linguística. 3. Prática Pedagógica. I. Título. II. Assunto. III. Organizadores. Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846 Índices para catálogo sistemático: 1. Métodos de ensino instrução e estudo – Pedagogia. 371.3 2. Análise do discurso. 401.41 3. Linguística. 410 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP) Copyright © 2023 - Dos organizadores representantes dos colaboradores Coordenação Editorial: Pontes Editores Editoração: Eckel Wayne Capa: Isadora Chaffin Pinheiro Revisão: Giovanna Benedetto Flores Conselho Editorial: Angela B. Kleiman (Unicamp – Campinas) Clarissa Menezes Jordão (UFPR – Curitiba) Edleise Mendes (UFBA – Salvador) Eliana Merlin Deganutti de Barros (UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná) Eni Puccinelli Orlandi (Unicamp – Campinas) Glaís Sales Cordeiro (Université de Genève - Suisse) José Carlos Paes de Almeida Filho (UnB – Brasília) Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB – Brasília) Rogério Tilio (UFRJ – Rio de Janeiro) Suzete Silva (UEL – Londrina) Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (UFMG – Belo Horizonte) PONTES EDITORES Rua Dr. Miguel Penteado, 1038 - Jd. Chapadão Campinas - SP - 13070-118 Fone 19 3252.6011 ponteseditores@ponteseditores.com.br www.ponteseditores.com.br SUMÁRIO PREFÁCIO ...................................................................................................... 9 Walkyria Monte Mor INTRODUÇÃO................................................................................................ 18 Petrilson Pinheiro Eliane Fernandes Azzari A PEDAGOGIA DOS MULTILETRAMENTOS: INTERSECÇÕES ENTRE ABORDAGENS DIDÁTICAS, PROCESSOS DE CONHECIMENTO E DESIGN EM MATERIAIS DIDÁTICOS .......................................................................... 29 Gabriela Martins Mafra Eliana Merlin Deganutti de Barros PRÁTICAS DE LETRAMENTOS EM DEEP FAKE E SHALLOW FAKE: CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA .......................... 63 Diego Satyro Gabriela Martins Mafra PODCAST EM SALA DE AULA: É POSSÍVEL PENSAR EM PRÁTICAS TRANSFORMADORAS? ................................................................................. 91 Izabella Baptista Paladine Robson Rodrigues Navas HOGWARTS GAMES, UM JOGO AMADOR NO WHATSAPP, SOB O VIÉS DOS MULTILETRAMENTOS: POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES PARA A CULTURA ESCOLAR ...................................................................................................... 114 Eliane Fernandes Azzari Bruna Eduarda Ignácio A INOVAÇÃO NAS PRÁTICAS DE MULTILETRAMENTOS DAS AULAS REMOTAS: RELATOS DE QUEM ALFABETIZA NA PANDEMIA ....................................... 133 Jessika Gama Ribeiro Lara Nantes Antonio Filomeno Mantovani Paula Regina Mazulquim O PIPOCAR DA MEMÓRIA DOCENTE PARA O SABOREAR COLETIVO DOS MULTILETRAMENTOS DO INSTAGRAM @me_ajuda_a_olhar ....................... 159 Jessika Gama Ribeiro Lara Nantes Antonio Filomeno Mantovani Patrícia Pinho Andrade IDENTIDADES DOCENTES EM ANÁLISE: ÉTICA DO CUIDADO, MULTILETRAMENTOS E A INVASÃO DO FUTURO ....................................... 185 Rafaela Bolsarin Gabriela Claudino Grande Roziane Keila Grando MULTILETRAMENTOS E PRÁTICAS DECOLONIAIS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR DURANTE O ENSINO REMOTO ................................................... 217 Joyce Vieira Fettermann MULTILETRAMENTOS COMO FORMAS DE (RES)SIGNIFICAR O CORPO E AS DIVERSIDADES: REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA, DECOLONIALIDADE E ANTIRRACISMO ....................................................... 239 Carlos José Lírio Eliane Fernandes Azzari SOBRE OS AUTORES ..................................................................................... 257 7 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 AGRADECIMENTOS Este livro é resultado de parcerias e colaborações que foram essenciais para a sua concretização. Assim, queremos registrar nossos agradecimentos às autoras e aos autores, parceiros do GP Multi, que se empenharam no extenso processo de (re)escrita de cada capítulo. Precisamos também deixar nossa gratidão às parceiras e aos parceiros que contribuíram gentil e brilhantemente como pareceristas ad-hoc: Profa. Dra. Andréa Antonieta Cotrim Silva, Prof. Dr. Bruno Albanese, Profa. Dra. Débora Hissa, Prof. Dr. Eduardo de Moura Almei- da, Profa. Dra. Fabiana Biondo, Profa. Dra. Rosineide de Melo, Profa. Dra. Nara Hiroko Takaki, Profa. Dra. Sandra Regina Buttros Gattolin de Paula e Profa. Dra. Souzana Mizan. Seus pareceres minuciosos e atentos foram essenciais para assegurar a qualidade deste trabalho. Cabe-nos fazer um registro especial ao colega Prof. Me. Rodrigo Geraldo Mendes, que realizou, com muita dedicação, a tradução da Introdução deste volume para a Libras. Somos especialmente gratos à querida parceira Profa. Dra. Walkyria Monte Mor, que escreveu de forma brilhante, perspicaz e, como sempre, original, o Prefácio deste volume. Mais do que uma parceria acadêmica, nossa amizade, materializada em diversas colaborações, é um bem inestimável que certamente não cabe no Currículo Lattes. 8 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Agradecemos ao Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da Unicamp, que viabilizou o uso de recursos financeiros provenientes da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para esta publicação. Finalmente, agradecemos muitíssimo à Isadora Chaffin Pinhei- ro, de apenas onze anos de idade, que fez a belíssima e tão original capa do livro. Isa, sua imaginação nos contagia! 9 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 PREFÁCIO Walkyria Monte Mor Desconstrução-Reconstrução da Educação Linguística na Sociedade Digital. Conversas com amigos imaginários O que diria Derrida se ainda estivesse por aqui e, depois de tantas décadas, visse o exercício de desconstruir-reconstruir, embora timidamente, presente na educação? E bem sei que esse indício não se limita ao contexto brasileiro. O que diria Freire se ainda estivesse por aqui e, depois de ter suas ideias debatidas por tanto tempo e, por vezes, também combatidas, visse a escola buscando trabalhar com outras re- lações de poder, exercitando o quem ensina também aprende; quem aprende também ensina (FREIRE, 1987)? Não quero expressar excessivo otimismo, mas sim uma centelha de otimismo, em acreditar que ambos estariam... pelo menos, pensativos... sobre o que estariam a vivenciar nesses últimos anos. E que estariam avidamente discutindo essas “novas-antigas” questões. E se, por acaso, eu encontrasse com eles duranteum congresso, enquanto estivessem descansando numa ampla varanda de hotel, batendo-papo, tomando um suco (seria suco, né?) e admirando a 10 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 vista do mar? Lógico que teriam conseguido estar ali sozinhos, sem que outros congressistas os tivessem visto. Só eu os teria visto ali (que sorte!). Não perderia a oportunidade de conversar com eles desta vez (em tempos passados, perdi algumas chances). Com tantas ideias diferentes, inovadoras, fervilhando em várias escolas (porém, ainda em uma minoria delas! Uhm... será que posso mesmo entender isso como um indicativo de mudança, de “inovação”?), eu teria que dividir os temas entre eles, ou as conversas poderiam durar mais dias do que o próprio congresso. Seus voos estariam agendados e certamente não poderiam dispor de tantas horas – dias? – nessas trocas de ideias. Na conversa com Derrida, acho que estaríamos conversando sobre a relação estrutura-signo-jogo no que chamo de ‘sociedade da escrita’ (MONTE MOR, 2017). Por conta das leituras nas áreas de filosofia, educação, linguagem, letramentos, educação crítica, linguagem digital, letramentos digitais e ter estado a refletir sobre a sociedade em que vivemos, de uns tempos para cá, vim a enten- der que o que nos tem moldado como cidadãos é a escolarização, em seus vários níveis, e a falta dela. Aprender a ler e a escrever –, principalmente em um modelo de escolarização que privilegia a normatização, a homogeneidade, a padronização, a convergência de pensamento e a universalização pode ser entendido como um processo libertador e, ao mesmo tempo, cerceador. Mesmo quem não aprende a ler e escrever – ou aprende só um pouco – se vê mol- dado – ou impelido a se moldar – pelos valores epistemológicos que dominam na sociedade da escrita. Derrida (1974, 1978) tinha razão sobre a estrutura, a estruturalidade da estrutura e sobre o centro. Quero dizer, o aprendizado do ler e do escrever, da forma em que este se disseminou no ocidente, implícita ou subliminarmente, está investido de uma disciplina pela “unidade/uniformidade” em detri- mento das pluralidades e das várias diversidades, como a linguística, a cultural, a identitária. Vejo aí o que Derrida (1974, p. 234) manifes- 11 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 tava como “desejo de centro na constituição da estrutura”, ou seja, de que a estrutura seja reduzida pelo centro, onde está presente a escritura, visando orientar, equilibrar, organizar, dar coerência ao sistema que se forma por todas as instituições, a escolar-acadêmica entre elas. Em nosso longo caminho escolar-acadêmico-social, em que convivemos com o jogo do cotidiano e da vida – um centro-não- -centro –, há uma estrutura epistêmica que nos impele e empurra para o centro fixo, no sentido em que ele nos foi apresentado, como origem fixa, estabilidade, sentido esse em que se omitiu que esse centro é também um não-centro, que o jogo está nele. ... o jogo começa a ser alguma coisa e sua presença mesma dá ensejo a alguma confiscação dialética. Ele ganha sentido e trabalha a serviço do sério, da verdade, da ontologia. [...] Assim que chega ao ser e à linguagem, o jogo se desfaz como tal. Da mesma forma que a escri- tura deve se desfazer como tal diante da verdade etc. É que não há como tal da escritura e do jogo. Não tendo essência, introduzindo a diferença como condição da presença da essência, abrindo a possibilidade do duplo, da cópia, da imitação, do simulacro, o jogo e a grafia vão, sem cessar, desaparecendo. Eles não podem, pela afirmação clássica, ser afirmados sem ser negados (DERRIDA, 1997, p. 111-112, grifos do autor). Entendo aqui que a ideia derridiana não está no desvalor da escritura, mas naquele entendimento do autor de que remédio pode ser veneno, veneno pode ser remédio (DERRIDA, 1999). Trata-se de um aprendizado “libertador” que, ao mesmo tempo, tem o potencial de ser “enquadrador” às normas vigentes, moldador de identidades, definidor de terrenos, de tipologias de culturas e do que vale mais ou vale menos, ou que deveria ser negado ou rejeitado. E de como a estrutura se consolidou como escolarização: 12 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 A propagação da escritura, o ensino das suas regras, a produção dos seus instrumentos como objetos, Rous- seau os pensa como uma empresa política de escra- vização. É o que também se lerá nos Tristes Trópicos [Lévi-Strauss]. É do interesse de certos governos que a língua se ensurdeça, que não se possa falar diretamente ao povo soberano (DERRIDA, 1999, p. 369). E ainda, A escritura universal da ciência seria, pois, a aliena- ção absoluta. A autonomia do representante torna-se absurda: atingiu seu limite e rompeu com todo repre- sentado, com toda origem viva, com todo presente vivo. [...] Há suplemento na fonte (DERRIDA, 1999, p. 371, grifos do autor). Mas, o que diria Derrida se visse que o jogo está literalmente na escola (mesmo que não em todas) ou que muitas escolas já exer- citam/buscam exercitar ser o centro-não-centro? E que, em várias situações, são professores e alunos que desconstroem a estrutura ao desviarem-se de convenções para construir aplicativos e gravar podcasts, por exemplo? Que nas atividades criadas nessa ecologia de saberes, o poder do conhecimento já não é mais apenas do professor, como na antiga estrutura fixa do aprender a ler e escrever. E que a escritura-como-centro pouco a pouco cede (?) ou perde (?) espaço para outras formas de escrituras, reconstruídas por lógicas outras, vindas de linguagens digitais em que há quebra de linearidade e em que as diversidades linguísticas, culturais e identitárias são inevitavelmente visíveis. E que a verdade, como centro-sem-jogo, desfaz-se de suas sete saias, ao serem refeitas como fake news, em categorias deep/shallow fake. Seria aqui o ponto em que a clássica escritura se desfaz como tal? Seria mesmo possível concluir que não há como tal nessa versão de escritura e jogo? 13 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Ou será que Derrida me pediria para pôr os pés no chão, afinal uma instituição que edificou sua credibilidade e se solidificou ao longo dos séculos não se altera por lógicas outras que não aquelas que as sustenta? Que o digital é o novo centro-sem-jogo? Ou que ainda é cedo para saber... por enquanto, é só um o jogo jogando com o centro? Se, na conversa sobre esse assunto, Freire priorizasse seu pensamento de algumas décadas em que a tecnologia digital ainda não estava tão presente na sociedade (o que será que ele reveria diante disso? Reveria ou não o que realizou em seus projetos de educação?), será que se mostraria cético à possibilidade de que todos os jovens de famílias “vulneráveis” viessem a ter as mesmas opor- tunidades de acesso à tecnologia, como o têm os de famílias tidas como “privilegiadas”? Talvez se mostrasse muito preocupado com o uso da tecnologia na escola, no que concerne a relação da tríade crítica-criação-conscientização com a natureza reprodutivista da educação bancária priorizada pelo sistema modernista que criticava, fato que pode se reiterar na educação da sociedade digital em que ter o que chamava de “consciência” crítica do meio e do mundo em que se vive era fundamental para ele. A [importância da] conscientização, como atitude crí- tica dos homens na história, não terminará jamais. Se os homens, como seres que atuam, continuam aderindo a um mundo “feito”, ver-se-ão submersos numa nova obscuridade (FREIRE, 2001, p. 27). Na visão do filósofo, conscientização significava um processo que necessariamente implicava perceber que a realidade não esta- va dada e que pode ser transformada, implicava “percepção de si mesmo no mundo/na sociedade” e “compromisso histórico!”, como ele afirmava: 14 MultiletraMentos eM teoria eprática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 A conscientização só é possível porque a consciência do ser humano, embora condicionada, pode reconhecer que é condicionada (FREIRE, 1987, p. 54). ...a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência história: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece... A conscientização não está baseada em, de um lado, a consciência, de outro, o mundo; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário, está baseada na relação consciência-mundo (FREIRE, 2001, p. 26-27). Provavelmente, ele defenderia uma revisita ao papel dos pro- fessores no que se refere ao acesso e à construção do conhecimento, sem perder de vista a função política do educador e da educação. “A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política”, dizia o filósofo (FREIRE, 1996, p. 56). E a escolarização, que foi construída tendo por base uma tec- nologia, a escrita, agora se integra com uma tecnologia digital que pode – ou não? – contribuir para a democratização do conhecimento, para a desconstrução da visão de linguagem, cultura e identidade homogêneas, a favor da reconstrução de perspectivas de liberdade, emancipação, agência, como ensejava Freire? Pois, eu poderia contar a ele o que professores e alunos têm feito quando assumem a parceria da linguagem digital e seus inumeráveis recursos. Acho incrível observar o quanto o conhecimento da tec- nologia veio a deslocar certezas e centralidades, desequilibrando o convencional. Uma questão que muito me chama a atenção é a per- cepção das pessoas sobre a colonialidade presente no aprendizado da 15 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 linguagem escrita (do ler e do escrever). Só que essa colonialidade pode ocorrer também na interação com a linguagem digital, fato cuja “conscientização” ainda pode ser mais ampliada. Sobre os be- nefícios, a tecnologia digital propiciou o deslocamento do conceito de ler e escrever, incentivando a autoria, a criação e a construção de sentidos. Narrativas multimodais, multilíngues e translíngues passam a ter vida e ser apreciadas; fazer filmagens não mais se limita aos especialistas; os que são vistos como leigos no assunto – professores e alunos – se permitem experimentar máquinas e apli- cativos por meio de um celular e se tornam produtores de conteúdo para suas próprias experiências acadêmicas e não-acadêmicas. No universo virtual, imagens e obras de arte podem ser remixadas e ressignificadas. Identidades virtuais podem ser geradas, com corpo, face, movimentos e até “personalidade”. Não mais dominam apenas as narrativas das autoridades e vencedores; narrativas são criadas, recriadas, postadas, alteradas, permitindo, ao mesmo tempo, res- gatar identidades, culturas e ancestralidades e ter vida própria... podendo, inclusive, sair do controle de seus criadores... seria essa uma forma de criação franksteiniana, tida como do bem ou do mal? Uhm... queria evitar ser binária nessa reflexão... mas escapou... mesmo quando se quer ter controle sobre o binarismo, ele é forte e está bem ativo por aí. Bem, já sei que Freire ia logo me questionar se essa mudança em que, tudo indica, o professor tanto ensina quanto aprende e que o aluno tanto aprende quanto ensina realmente pode vir a consoli- dar relações menos verticalmente hierárquicas e mais humanas na educação... também me indagaria se o mundo digital contribuiria para a redução das opressões, inequidades e preconceitos sociais, ampliando a percepção crítico-social e agência das pessoas. Se essa mudança percebida, na “realidade”, não teria apenas ocorrido na percepção sobre quem são os colonizadores, os opressores – poderes e controladores outros da sociedade digital –, quando as desigual- 16 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 dades ainda persistem... Aposto que Derrida ia logo apoiá-lo nessas indagações, mencionando as Big Techs... O que responder? Olho para a varanda em que Freire e Derrida estavam batendo- -papo. Copos vazios, almofadas fora de lugar... Aaahhhh... eles se foram. Bem, não vou precisar responder a eles, caro leitor. Mas as respostas estão aqui nos textos, nesta edição do livro “(Multi) letramentos na escola por meio da hipermídia”, organizado pelos colegas Eliane Fernandes Azzari e Petrilson Pinheiro. Os capítulos refletem, com muita criatividade e brilho, o que poderia ser res- pondido aos amigos imaginários, indo muito além nas reflexões sobre desconstrução-reconstrução de uma educação linguística na sociedade digital. Boa leitura! Walkyria Monte Mor Professora Associada Sênior DLM-FFLCH Universidade de São Paulo Referências DERRIDA, J. A Escrita e a Diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. DERRIDA, J. A Farmácia de Platão. São Paulo: Editora Iluminuras, 1997. DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999. DERRIDA, J. Of Grammatology. Baltimore: John Hopkins University Press, 1974. DERRIDA, J. Writing and Difference. UK: The Gresham Press, 1978. 17 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 FREIRE, P. Conscientização: Teoria e prática da libertação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Centauro Editora, 2001. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 28.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. MONTE MOR, W. Sociedade da Escrita e Sociedade Digital: Línguas e Linguagens em Revisão. In: TAKAKI, N.; MONTE MOR, W. (orgs.). Construções de Sentido e Letramento Digital Crítico na Área de Línguas/Linguagens. Campinas: Pontes Editores, 2017, p 267-286. 18 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 INTRODUÇÃO Petrilson Pinheiro IEL/Unicamp Eliane Fernandes Azzari PPG Limiar/PUC-Campinas Tradução para a Libras da Introdução do livro1 Em 2017, foi publicado pela Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) o livro intitulado Multiletramentos em teoria e prática: Desafios para a escola de hoje. A obra foi a materia- lização de um projeto conjunto de vários participantes do Grupo de Pesquisa do CNPQ “(Multi)letramentos na escola por meio da hipermídia” (GpMulti), coordenado pelo professor Petrilson Pinhei- ro, que envolve colegas professores-pesquisadores de diferentes instituições públicas brasileiras de Ensino Superior e alunos de pós- -graduação (mestrado e doutorado) do Programa de Pós-Graduação 1 A tradução para a Libras da introdução deste livro foi feita por Rodrigo Geraldo Mendes, que é surdo e aluno de Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da Unicamp, a quem muito agradecemos. A tradução para a Libras, ainda que apenas da Introdução do livro, sinaliza não apenas o caráter multimodal da obra, como também sua diversidade linguístico-cultural, que são os dois eixos estruturantes da perspectiva dos multiletramentos. 19 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 em Linguística Aplicada da Unicamp2. Seis anos depois, chegamos ao presente livro. No período entre a obra anterior e a atual, muitas coisas aconteceram, mas, certamente, nenhuma dessas ocorrências foi tão relevante e marcante quanto a pandemia por SARS-CoV-19. Não bastassem os números assombrosos de mortes decorrentes de seu rastro, a pandemia3 também foi responsável por um cenário desastroso para a educação, sobretudo para a Educação Básica pública. Entre os anos de 2020 e 2021, as atividades de ensino básico e superior foram realizadas de forma remota – devido ao distan- ciamento social e ao confinamento das pessoas em seus lares –, o que causou, maximizou e/ou evidenciou uma série de problemas.Nesse período, o uso de tecnologias digitais da informação e da comunicação (TDIC), que já vinha tendo um impacto crescente na educação, alcançou, em nível mundial, proporções inimagináveis – consequência do fato de que milhões de professores e alunos tiveram que migrar para o ensino remoto emergencial. Além da falta de socialização proveniente do distanciamento físico, a adaptação das atividades de ensino para o contexto pan- dêmico foi muito árdua para os estudantes, mormente os de escola pública, cujas dificuldades de acesso a plataformas específicas de ensino remoto estão também relacionadas à falta de equipamentos adequados e de acesso à internet (com uma velocidade razoável), em seus lares – o que muitas vezes os impedia de estudar e pesqui- sar. Destacaram-se ainda outros fatores bastante complicadores, como, por exemplo, a falta de um espaço adequado para estudar, dificuldades familiares e financeiras, problemas de saúde física e 2 Para mais informações sobre o Grupo de pesquisa do CNPQ “Multiletramentos na escola por meio da hipermídia”, acessar a página da internet do Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil do CNPQ. Disponível em: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/2011290069976341. 3 Até o dia 1 de fevereiro de 2023, a pandemia de Covid-19 ocasionou mais de 6.700.000 óbitos em todo o mundo. No Brasil, o número de vidas perdidas já chegou a quase 700.000. http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/2011290069976341 20 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 psicológica etc. Ademais, a adaptação repentina e paliativa ao ensino remoto, que ocorreu sem o devido preparo, fez com que muitas das ativi- dades usadas por professores e estudantes (que tiveram acesso aos recursos digitais), por vezes se tornassem maçantes e difíceis de serem realizadas. Os professores, por sua vez, experienciaram o esgotamento físico e mental, bem como situações de controle exagerado por parte das famílias de estudantes e de instituições de ensino em que trabalham, como apontam os estudos de Azzari et al. (2021) e de Pinheiro (2020). A situação educacional extraordinariamente adversa causada pela pandemia de Covid-19, por sua vez, acabou criando uma forte tensão entre diferentes setores da sociedade (alunos e suas famílias, professores, gestores, intelectuais, políticos, a mídia jornalística etc.). Isso fez reacender, de forma bastante intensa, (velhas) crenças e valores (e, não raro, preconceitos) relativos ao emprego de TDIC na educação: por um lado, os defensores veementes da incorpora- ção dessas tecnologias pela escola; por outro lado, aqueles que as rejeitam, pois consideram que questões de ordem social, histórica, cultural e econômica se tornam óbices para pensar qualquer tipo de transformação proveniente ou resultante do uso dessas tecnologias. Para tentar superar essas posições antitéticas, que endeusam ou demonizam as tecnologias, é preciso entender que as práticas de letramentos – das práticas mais simples às mais avançadas, que podem envolver o emprego de tecnologias bastante complexas – não ocorrem em um vácuo social. A relação entre o uso das diferentes linguagens e o mundo social se constitui dialeticamente, pois este molda aquelas, ao mesmo tempo em que é por elas moldado. Assim, pensar a “pedagogia dos multiletramentos”, termo cunhado há qua- se três décadas pelo New London Group4, ou Grupo de Nova Londres 4 O termo “pedagogia dos multiletramentos” surgiu, pela primeira fez, em um manifesto publicado em 1996, chamado A pedagogy of multiliteracies: designing social futures, de autoria de um 21 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 (GNL) é sempre um exercício epistemológico que precisa estar ba- lizado por práticas de letramentos situadas socio-historicamente, constituindo-se em um feixe complexo de relações e possibilidades de construir significados. Com efeito, a influência da pedagogia dos multiletramentos no Brasil tem sido crescente nos últimos anos, com uma quantidade bastante expressiva de publicações acadêmicas que fazem referência ao termo5. Destacamos aqui o livro Letramentos, publicado em 2020 pela Editora Unicamp, dos autores Mary Kalantzis e Bill Cope – os dois membros do New London Group que deram continuidade aos estudos sobre os multiletramentos –, em coautoria com Petrilson Pinheiro, um dos organizadores da presente obra. Ao entrelaçar pressupostos curriculares e recortes de contextos de ensino e aprendizagem no Brasil por meio de muitas imagens e textos escri- tos concernentes a relatos de experiências de letramentos, o livro Letramentos procura, de alguma forma, ressignificar a pedagogia dos multiletramentos com base em algumas questões educacionais relevantes da realidade brasileira. Além de publicações acadêmicas, é preciso salientar também a presença da pedagogia dos multiletramentos em documentos ofi- ciais mais recentes voltados à Educação Básica, com destaque para a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Fundamental e Médio de Língua Portuguesa, homologadas, respectivamente, em 2017 e 20186, balizando algumas de suas competências e habilidades grupo de pesquisadores que se intitularam The New London Group. Os membros desse grupo eram, em ordem cronológica: Allan Luke, William Cope, Carmen Luke, Courtney Cazden, Charles Eliot, Gunther Kress, Jim Gee, Martin Nakata, Mary Kalantzis, Norman Fairclough, Sarah Michaels. 5 Ao realizarmos uma busca sobre o termo “Pedagogia dos multiletramentos” no Google Scholar, no dia 31 de janeiro de 2023, selecionando apenas o período de 2017 a 2022, obtivemos 2.670 resultados, o que mostra o volume bastante expressivo de publicações que fazem menção ao termo, em um curto período. 6 A esse respeito, Hissa e Souza (2020) analisam o diálogo existente entre o texto da BNCC de Língua Portuguesa do Ensino Médio e a pedagogia dos multiletramentos proposta pelo New 22 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 a partir de alguns dos preceitos da perspectiva dos “multiletramen- tos”. De fato, isso é algo bastante relevante, pois mostra o quanto o trabalho seminal da pedagogia dos multiletramentos vem cres- centemente influenciando, direta ou indiretamente, o processo de ensino e aprendizagem de línguas no Brasil. Contudo, para além das práticas de letramentos escolares e dos currículos e documentos oficiais que as orientam, é preciso também pensar a perspectiva dos multiletramentos em práticas de letramentos não-escolares que, de alguma forma, podem estabele- cer interfaces com práticas escolares. Por isso, diferentemente da primeira obra do GpMulti, mencionada logo no início desta introdu- ção, cuja relação entre teoria e prática dos multiletramentos estava focada exclusivamente na escola, no presente livro, procuramos também trazer discussões e práticas que buscam ampliar o escopo da perspectiva dos multiletramentos, com o intuito de promover interconexões com práticas de letramentos que vão além da escola, mas que podem ser, de alguma forma, reapropriadas e ressignifica- das por seus atores no contexto escolar. Dessa forma, este livro reúne textos que abordam aspectos teórico-práticos que, destinados a contemplar diferentes questões relacionadas ao ensinar e ao aprender no campo das línguas/lingua- gens, incorporam a perspectiva dos multiletramentos em suas dis- cussões colocando-a par-a-par com orientações outras, tais como: a perspectiva dos letramentos críticos; os estudos decoloniais; a educação antirracista; questões teórico-pedagógicas relacionadas à alfabetização; reflexões acerca da formação docente (inicial e con- tinuada); discussões sobre a cultura participativa e o envolvimento de fãs no desenvolvimento de jogos em redes sociais ancoradas em mídias digitais e a análise e o uso de materiais didáticos impressos e de recursos digitais, entre outros. Trata-se, assim, de um compi- lado de trabalhos que,desenvolvidos por parceiros/integrantes do London Group. 23 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 GpMulti, representam o amplo espectro das pesquisas realizadas pelo/no grupo. Cabe também ressaltar que os textos que compõem este volume passaram por (ao menos) três rodadas de pareceres, desenvolvidas a partir de um carrossel que contou com pareceres internos, além de outros emitidos por pareceristas externos, colegas de área que compõem a comissão editorial desta publicação. Outra menção que merece destaque é que, para além de sim- plesmente reunir artigos escritos em torno das temáticas trabalha- das no âmbito do GpMulti, este volume tem por peculiaridade nossa proposta que (através do carrossel de leitura entre os/as outora(e) s) estimulou o diálogo entre os diferentes capítulos. Assim, nosso objetivo, enquanto organizadores deste livro, foi o de apresentar um trabalho coeso no sentido de que os textos aqui apresentados “conversassem” entre si, de forma a propiciar uma leitura consisten- temente progressiva, integrada e coesa em torno dos temas, teorias e objetivos focalizados ao longo do trabalho, visto como um todo. Destarte, propomos que a leitura seja iniciada pelo capítulo de Mafra e Barros “A pedagogia dos multiletramentos: intersecções entre abordagens didáticas, processos de conhecimento e design em materiais didáticos”. As autoras partem da discussão acerca do eixo “como” da Pedagogia dos Multiletramentos (NLG, 1996; GNL, 2021) para criar categorias de análise que permitam realizar, por intermédio de pesquisa documental, a leitura orientada de materiais didáticos. Entre os resultados apresentados, as autoras argumentam que há evidência de uma “desconexão da variedade de processos de conhecimento com um projeto engajado ao objeto de ensino do material, ou seja, com “o que” se tem a ensinar”. Além disso, o papel dos “designs disponíveis” no desenvolvimento do que Mafra e Barros (2023) destacam como “[...]ações situadas e críticas nos materiais didáticos” (MAFRA, BARROS, nesta coletânea). 24 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 A seguir, sugerimos a leitura do capítulo intitulado “Práticas de letramentos em deep fake e shallow fake: contribuições para o ensino de língua materna”, de Satyro e Mafra. Trata-se de um ensaio que explora conceitos e categorias analíticas centrais aos estudos dos le- tramentos: a prática de letramento, na perspectiva dos Novos Estudos do Letramento (STREET, 2010, 2012), e as práticas de letramentos, conforme sugerem pesquisadores dos multiletramentos e dos novos letramentos (MOITA LOPES, 2012; MONTE MÓR, 2015; PINHEIRO, 2016, 2021 apud SATYRO; MAFRA, 2023 nesta coletânea). O capítulo seguinte, “Podcast em sala de aula: é possível pensar em práticas transformadoras?”, de Paladine e Navas, apoia-se na pedagogia dos multiletramentos e nas discussões de Paulo Freire para analisar uma sequência didática (SD), em que se propõe a produção de podcasts. Apoiando-se em categorias de análise ad- vindas das discussões de Kalantizis, Cope e Pinheiro (2020), os autores concluem que é possível pensar tanto a análise quanto a produção de episódios (podcasts), subsidiando o trabalho docente na educação básica. O quarto capítulo, “Hogwarts games, um jogo amador no What- sApp, sob o viés dos multiletramentos: possíveis contribuições para a cultura escolar”, de Azzari e Ignácio, percorre um caminho contrário aos demais. A proposta parte da apresentação e da análise de uma prática (multi)letrada que circula fora dos ambientes escolares, entre comunidades de jovens apreciadores da narrativa inglesa de Harry Potter, que se aproximam por intermédio de redes sociais criadas em mídias digitais on-line para criar, engajar e desenvolver um jogo colaborativo e multimodal. As autoras sugerem que, diante da ideia de autoria multimidiática (LEMKE, 2010, apud AZZARI; IGNÁCIO, nesta coletânea), é possível pensar a prática (do jogo) analisada como caminho para (re)significar práticas escolarizadas, de modo a torná-las mais relevantes, colaborativas e engajadoras para os/as estudantes. 25 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Ribeiro, Mantovani e Andrade, autoras de “O pipocar da me- mória docente para o saborear coletivo dos multiletramentos do Instagram @me_ajuda_a_olhar”, trazem à análise uma postagem do que consideram como o gênero textual “pipoca pedagógica”, coletada de um perfil no Instagram. As pesquisadoras colocam em diálogo a pedagogia dos multiletramentos e as discussões sobre memória de Candau (2016) e de identidade narrativa de Arfuch (2010), para repensar as “pipocas pedagógicas” como re-design de práticas multiletradas docentes da qual emergem afetividades e aspectos lúdicos. Na sequência, indicamos a leitura do capítulo seguinte, nomeado por “Identidades docentes em análise: ética do cui- dado, multiletramentos e a invasão do futuro”, escrito por Bolsarin, Grande e Grando. O trabalho trata de questões éticas e identitárias na formação docente a partir da análise de pro- duções textuais, tendo como contexto o curso de Licenciatura em Letras em uma universidade pública no Mato Grosso do Sul. A proposta, de cunho qualitativo, inter-relaciona o conceito de ética do cuidado com noções de identidade ao interpretar os textos de graduando(a)s de Letras que dissertaram, entre outras coisas, sobre suas próprias representações acerca dos multiletramentos, enquanto futuros docentes de línguas. O quinto capítulo discute questões relativas à inserção de tec- nologias digitais na Educação Básica a partir da análise de excertos de relatos docentes. As autoras focalizam o importante tema com base em experiências de alfabetização realizadas durante o período de isolamento social. Os dois últimos capítulos que completam este volume apro- ximam-se em relação às abordagens escolhidas pelos autores, que promoveram um diálogo entre perspectivas decoloniais e os mul- tiletramentos. 26 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 O oitavo capítulo, “Multiletramentos e práticas decoloniais na Educação Superior durante o ensino remoto”, de autoria de Fettermann, apresenta uma discussão acerca dos padrões sociais e culturais que permeiam práticas multiletradas. Para tanto, a autora investiga práticas pedagógicas que, a seu ver, são decoloniais, que foram desenvolvidas em contexto de Educação Superior, durante o período da pandemia. A análise está apoiada na metodologia de Análise de Conteúdo Qualitativa e organizada em categorias elencadas pela pesquisadora a partir da leitura que faz dos dados investigados. Em seus resultados, a autora aponta que há um tra- balho premente a ser feito, no âmbito do Ensino Superior, no que tange às diversidades linguísticas e culturais, a fim de que se possa desconstruir perspectivas coloniais em relação à raça e gênero (entre outras aspectos interseccionais), que implicam a segregação nesses contextos educacionais. Finalmente, o texto “Multiletramentos como formas de (res) significar o corpo e as diversidades: reflexões sobre educação linguística, decolonialidade e antirracismo”, escrito por Lírio e Azzari, encerra a coletânea com um ensaio que lança luz ao que- sito “diversidade”, aspecto fundante dos “multi”, na pedagogia dos multiletramentos. Partindo do entrelaçamento entre abordagens decoloniais e de discussões acerca da diversidade e da pluralida- de culturais originalmente desenvolvidas nos trabalhos do GNL, os autores apontam a necessidade de (re)pensar uma educação linguística que se faça atuante no sentido de enfrentar, episte- mologicamente, visões socialmente excludentes e opressoras, decorrentes da escravização de africanos e de seus descentes, em nosso país. Destacando o papel de pedagogias que favoreçam pro- cessos e/ou o exercício de subjetificação, como proposto porBiesta (2010), Lírio e Azzari defendem epistemologias que ultrapassem a noção de educação como forma de “inserção” dos estudantes em cenários já existentes, destacando sua importância para que os/as 27 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 discentes tenham acesso a (e possam reconhecer) formas outras de ser e estar no mundo. Assim, esperamos que este volume, escrito e organizado por múltiplas mãos, possa fomentar discussões e reflexões outras, de- corrente de suas diferentes proposições. Ademais, desejamos que os textos aqui elencados reiterem nossa percepção de que, para além de apenas tratar da multimodalidade e das tecnologias digitais nas línguas/linguagens, as ideias deflagradas pelos pesquisadores do GNL ainda se fazem oportunas e pertinentes no que diz respeito à formação inicial e continuada de docentes e discentes, ao caráter plural dos letramentos e à diversidade cultural e seus (im)possíveis entrelaces com outras teorias e discussões no campo da educação linguística. Referências ARFUCH, L. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: UERJ, 2010. AZZARI, E. F. et al. Tecnologias digitais, escola pública e letramentos: pesquisa em tempos pandêmicos. In: Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nas escolas brasileiras: TIC Educação 2020. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2021, p. 287-295. BIESTA, G. Good education in an age of measurement. Ethics, politics and measurement. London: Paradigm Publishers, 2010. CANDAU, J. Memória e identidade: do indivíduo às retóricas holistas. In: CANDAU, J (org.). Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2016, p. 21-57 HISSA, D. L. A; SOUSA, N. O. A Pedagogia dos Multiletramentos e a BNCC de Língua Portuguesa: diálogos entre textos. Revista (Con)Textos Linguísticos, Vitória, v. 14, n. 29, 2020, p. 565-583. GRUPO NOVA LONDRES. Uma Pedagogia dos Multiletramentos: Projetando Futuro Sociais. Revista Linguagem em Foco, Fortaleza, v. 13, n. 2, 2021, p. 101–145. KALANTZIS, M.; COPE, B.; PINHEIRO, P. Letramentos. 1.ed. Campinas: Editora Unicamp, 2020. 28 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 MOITA LOPES, L. P. O novo ethos dos letramentos digitais: modos de construir sentido, revolução das relações e performances identitárias fluidas. In: SIGNORINI, Inês; FIAD, Raquel Salek. (orgs.). Ensino de língua: das reformas, das inquietações e dos desafios. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2012, p. 204-228. MONTE MÓR, W. Crítica e letramentos críticos: reflexões preliminares. In: ROCHA, C. H.; MACIEL, R. F. (orgs.). Língua estrangeira e formação cidadã: por entre discursos e práticas. Campinas: Pontes Editores, 2015. p. 31-50. PINHEIRO, P. Letramentos a distância na (e na pós) pandemia. Revista Linguagem em Foco, Fortaleza, v. 12, n. 2, 2020, p. 355–369. PINHEIRO, P. (org.). Multiletramentos em teoria e prática: Desafios para a escola de hoje. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2017. STREET, B. V. Os novos estudos sobre o letramento: histórico e perspectivas. In: MARINHO, M.; CARVALHO, G. T. (orgs.). Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 33-53. STREET, B. V. Eventos de letramento e práticas de letramento: teoria e prática dos novos estudos de letramento. In: MAGALHÃES, I. (org.). Discursos e práticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Tradução de Izabel Magalhães. Campinas: Mercado de Letras, 2012, p. 69-92. 29 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 A PEDAGOGIA DOS MULTILETRAMENTOS: INTERSECÇÕES ENTRE ABORDAGENS DIDÁTICAS, PROCESSOS DE CONHECIMENTO E DESIGN EM MATERIAIS DIDÁTICOS Gabriela Martins Mafra Universidade Estadual de Campinas Eliana Merlin Deganutti de Barros Universidade Estadual do Norte do Paraná “Além de um ato de conhecimento, a educação é tam- bém um ato político. É por isso que não há pedagogia neutra.” (FREIRE; SHOR, 1986). Introdução Como em educação nada é neutro, cabe fazer escolhas cons- cientes dos objetos de conhecimento, dos instrumentos didáticos, físicos e simbólicos, das abordagens pedagógicas para construir um projeto de ensino robusto, que busque contemplar o funcionamento da sociedade, cada vez mais digital, a qual vem sendo denominada como Sociedade do Conhecimento1 (PROULX, 2010). Diante de tal perspectiva, os alunos assumem o papel de designer, não só conso- 1 Segundo Bruch (2005) e Proulx (2010), a sociedade do conhecimento produz e difunde Tecno- logias Digitais da Informação e Comunicação (TDICs), o que promove mudanças econômicas, sociais, culturais, políticas em prol de uma perspectiva pluralista e de desenvolvimento. 30 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 mem textos nas mídias analógicas e digitais, mas também agem/ produzem criticamente sobre elas. Esse designer é fruto dos processos de globalização e de uma mentalidade 2.02 (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007), na qual as barreiras de autoria são flexibilizadas e construímos constantes diálogos com os mais diversos modos de significação. Sendo assim, ter uma pedagogia que organiza o por quê, o quê e como ensinar, do modo que a Pedagogia dos Multiletra- mentos construiu, traz um panorama em relação ao que pode ser alcançado, ou seja, aos objetivos de aprendizagem, bem como dialoga de forma ímpar com a realidade histórico-social, para a construção de indivíduos que serão “solucionadores de problemas, capazes de aplicar modos de pensar divergentes; que serão mais perspicazes em um contexto complexo e muito mais suscetível a constantes mudanças; que assumirão riscos de forma inovadora [colaborativa] e criativa (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 24). A Pedagogia dos Multiletramentos despontou no cenário internacional em 1996, no manifesto denominado A pedagogy of multiliteracies: designing social futures (“Uma pedagogia dos multi- letramentos — desenhando futuros sociais”), de um grupo de pesqui- sadores americanos e australianos denominados The New London Group (NLG) interessados em linguagem e educação linguística, os quais se reuniram na cidade de Nova Londres, estado americano de Connecticut (ROJO; MOURA, 2019). Após 25 anos de uma proposta de estudo em torno do con- ceito de letramento, ainda vivenciamos tempos de mudanças 2 Lankshear e Knobel (2007) fazem uma comparação entre a mentalidade 1.0 e a mentalidade 2.0 em analogia à Web 1.0 e 2.0. Na primeira geração da internet, a informação era unidirecional, de um para muitos. Com o surgimento de sites como Facebook, Armazon, Instagram, Youtube, a web tornou-se muito mais interativa. Na Web 2.0 são os usuários que fomentam o conteúdo em postagens e publicações em redes sociais como: Google+, Wikipédia, Twiter etc. 31 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 linguísticas, educacionais, sociais, territoriais, tecnológicas, que levam, segundo o New London Group (NLG, 1996; GNL, 2021) a dois multi, do multiculturalimo e da multimodalidade, os quais são denominados como interculturalidade e modos de significação. O conceito de multiculturalismo decorre da urgência de reconhecimento recíproco entre as culturas para o enriquecimento mútuo. Já a multimodalidade alerta para a singularidade de cada modo particular de significação, e não apenas para o advento da multiplicidade e sinestesia3 da lin- guagem diante da escrita. Além de reconhecer esses dois fenômenos, ainda precisamos problematizar sua inserção no contexto de ensino. No âmbito dessa problematização, Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 52) defendem que a educação “pode ter como objetivo mais ambicioso o de contribuir para combater as desigualdades” e, para tanto, é necessário encarar a escola e, consequentemente, o processo de ensino e aprendizagempor um viés múltiplo, tanto no que refere às linguagens como às culturas abordadas nesse contexto. Entretanto, há de se lutar pela quebra de hegemonia da escrita e das culturas dominantes, ditas “eruditas”. Conectado a esse propósito, a Pedagogia dos Multiletramen- tos busca articular-se às dimensões do trabalho, da cidadania e do mundo da vida, a fim de contemplar a autoexpressão, a participação na comunidade e outras “linguagens necessárias para a construção de sentido” (NLG, 1996). Para dar conta dessa perspectiva dos multi, a Pedagogia pro- põe o conceito de design, por sua ambiguidade como processo de construção e padrão de significados. Trabalhar por design significa levar em conta os recursos disponíveis para a expressão, ou seja, os designs disponíveis; construir sentidos, a partir dos modos de 3 Sinestesia é a “alternância entre modos de significar” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p.183). 32 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 significação (escritos, orais, imagéticos, gestuais, táteis, sonoros, espaciais) e transformar, de alguma forma, os sentidos, sempre em (re)construção, em (re)designed. E como ensinar por design? Quais movimentos pedagógicos4 podem ser desenvolvidos em prol dos letramentos? É, pois, esses questionamentos que nos motivam a buscar os processos de or- ganização do conhecimento, que funcionam, na Pedagogia, tanto no que se refere ao que e ao como ensinar (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020). No que refere ao como ensinar, partimos do pressuposto de que os processos de conhecimentos estão vinculados a determinadas abordagens pedagógicas (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 76) e da premissa de que tais processos e abordagens implicam certos designs. Nesse sentido, objetivamos investigar tais fenôme- nos e sua correlação em um capítulo de livro didático destinado ao ensino da produção textual. Embora a pesquisa se volte para um único objeto, entendemos que ela pode ser estendida para outros contextos, uma vez que as unidades didáticas destinadas ao ensino da produção de textos mantêm certa regularidade na organização dos saberes didáticos (cf. ALVES, 2022). Para tanto, elencamos como corpus de pesquisa um capítulo da coleção didática Se liga na língua: leitura, produção de texto e linguagem5, de Ormundo e Siniscalchi (2018), destinada aos anos finais do Ensino Fundamental, aprovada pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), de 2020. Selecionamos a segunda coleção com maior valor de aquisição nacional, aprovada pelo PNLD de 2020 (ROCHA, 2020), visto que, nos pressupostos teóricos-metodológicos, prescreve ações pedagógicas pautadas na 4 Os termos “movimentos pedagógicos”, “processos de conhecimento” e “gestos didáticos”, nos moldes de Rojo (2012, p. 30), são entendidos como sinônimos. 5 Disponível em: https://en.calameo.com/read/00289932709452ecc5847?authid=rSsq6DETA5 MR . Acesso em: 30 nov. 2022. https://en.calameo.com/read/00289932709452ecc5847?authid=rSsq6DETA5MR https://en.calameo.com/read/00289932709452ecc5847?authid=rSsq6DETA5MR 33 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 construção do conhecimento de forma crítica – foco da perspectiva teórico-metodológica que pauta este trabalho. Com a definição do cenário de pesquisa, alguns questiona- mentos direcionam nosso olhar analítico: qual abordagem pe- dagógica sobressai nesse(s) material(ais)?; Quais as implicações da incidência de uma determinada abordagem?; De que modo podemos perceber indícios de criticidade nas propostas de ativi- dades?; Os modos de significação estão restritos ou se diversificam no processo pedagógico? Em busca de contemplar tais questões, a investigação ancora-se nos estudos dos letramentos (FREIRE, 1981; NLG, 1996; ROJO, 2012; PINHEIRO, 2020; RIBEIRO, 2020), com foco na noção de processos de conhecimento, abordagens pedagógicas e pedagogia do design (KALANTIZIS; COPE, 2012; KALANTIZIS; COPE, PINHEIRO, 2020). Com esse intuito, convidamos você, caro designer de significados, das mais diversas formas de represen- tação textual multi/hipermidiáticas, a percorrer este caminho de reflexão em relação à intersecção do que e como da Pedagogia dos Multiletramentos. Abordagens pedagógicas e processos de conhecimentos No livro Literacies, Kalantzis e Cope (2012) expandem as pro- posições elaboradas no Manifesto A pedagogy of multiliteracies: designing social futu- res (“Uma pedagogia dos multiletramentos — desenhando futuros sociais”), do NLG 1996, GNL, 2021) em favor de uma Pedagogia dos Multiletramentos, assim como “[...]problematizam o fato de que os aprendizes que frequentam os ambientes escolares de hoje são outros” (PINHEIRO, 2020, p. 16). São outros, pois suas experiências sociais estão condicionadas à lógica da hipermoder- 34 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 nidade6 e, consequentemente, perpassadas por novas formas de aprender, de se relacionar com o mundo (cada vez mais global), de se informar, de se expressar (multissemioticamente), de ser e de existir. Para dar conta dessa multiplicidade de letramentos, Rojo (2012) traz para o contexto brasileiro, quatro princípios para a formação dos usuários dos textos e culturas letradas, a partir de Westby (2010, p. 68): usuário funcional (functional user); criador de sentidos (meaning maker); analista crítico (critical analyzer); transformador (transformer) – esquematizados no quadro a seguir: Figura 1 - Princípios da Pedagogia dos Multiletramentos Fonte: Westby (2010 apud ROJO, 2012, p. 29, tradução da autora). 6 Compartilhamos da concepção de que não podemos falar em pós-modernidade, mas em uma radicalização da modernidade, uma vez que não ultrapassamos seus princípios como: “raciona- lidade técnica ou desenvolvimento tecnológico-científico, economia de mercado, valorização da democracia e extensão da lógica individualista” (ROJO; BARBOSA, 2015, p. 117). 35 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 A proposta da Pedagogia dos Multiletramentos visa, assim, formar usuários funcionais que tenham tanto competência técnica como competência experencial em relação às práticas letradas. Mas para quê? Para que exerçam, como criadores de sentidos, uma atuação crítica na sociedade. Para que isso seja possível, é necessário que eles sejam analistas críticos, capazes de transformar [...] os discursos e significações, seja na recepção ou na produção” (ROJO; MOURA, 2012, p. 29, grifos nossos). Em Letramentos, Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) expandem essa proposta e discutem em que perspectiva o ensino pode ser conduzido na hipermodernidade. Para tanto, retomam algumas abordagens tradicionais da pedagogia dos letramentos, a saber, didática, autêntica, funcional e crítica; discutindo-as a partir de diferentes processos de conhecimento, os quais se constituem “[...] como tipos fundamentais de pensamento em ação ou ‘coisas que se podem fazer para conhecer’” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 74). Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 74) sistematizam quatro processos de conhecimento, subdividindo cada um deles em dois subprocessos, sendo eles: 1) experienciando (o conhecido / o novo); conceitualizando (por nomeação / por teoria); analisando (funcionalmente / criticamente); aplicando (apropriadamente / criativamente). Os autores criam um quadro em que articulam cada subprocesso a dinâmicas de sala de aula, o qual reproduzi- mos a seguir: 36 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Quadro 1 – Os processos de conhecimento e sua relação com o ensino Experienciando O conhecido: estudantes trazem para a situação de aprendizagem perspectivas, objetos, ideias, formas de comunicação e informação que lhes são familiares e refletem sobre suas próprias experiências e interesses. O novo: estudantes estão imersos em novassituações ou informações, observando ou participando de algo novo ou desconhecido. Conceitualizando Por nomeação: estudantes agrupam informações em categorias, aplicam os termos de classificações e defendem esses termos. Com teoria: estudantes fazem generalizações conec- tando conceitos e desenvolvendo teorias. Analisando Funcionalmente: os estudantes analisam conexões lógicas, relações de causa e efeito, estrutura e função. Criticamente: estudantes avaliam as perspectivas, os interesses e os motivos próprios e de outras pessoas. Aplicando Apropriadamente: estudantes testam seus conhe- cimentos em situações reais ou simuladas para ver se funcionam de uma maneira previsível em um contexto convencional, Criativamente: estudantes fazem uma intervenção inovadora e criativa no mundo, expressando distin- tamente suas próprias vozes ou transferindo seus conhecimentos para um contexto diferente. Fonte: Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 74-75). Esses processos, segundo Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020), foram pensados, originalmente, pelo NLG (1996; GNL, 2021), como prática situada (experienciando), instrução explícita (conceitualizan- do), enquadramento crítico (analisando) e prática transformadora (aplicando). De acordo com os autores, a reformulação foi feita, a fim de tornar essas concepções mais reconhecíveis, no que se re- fere ao “[...] planejamento, à documentação e ao rastreamento da aprendizagem” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 75). Entendemos que os processos de conhecimento supracitados não podem ser tomados de uma forma “engessada” ou “compar- timentada”, como se o processo de ensino se reduzisse a um ou 37 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 outro processo. Pelo contrário, compreendemos que esses processos podem se articular de maneira não hierárquica e não linear na cons- trução de projetos, sequências ou atividades de ensino. É o objeto de ensino, associado ao contexto da ação didática, aos interesses dos estudantes e aos objetivos de aprendizagem que deve direcionar a mobilização dos processos de conhecimento. Nesse sentido, a associação feita por Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) entre as abordagens pedagógicas clássicas e os processos de conhecimentos deve ser vista, na nossa concepção, somente enquanto “ênfases”. Ou seja, é possível vincular certos processos de conhecimento a uma determinada abordagem se considerarmos a ênfase de tais processos na construção das atividades didáticas dessa perspectiva. Entretanto, isso não impede que essa mesma abordagem recorra a processos que normalmente são associados a outras abordagens didáticas. Nesse sentido, entendemos o Quadro 2, que descreve a associação feita por Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) entre as abordagens pedagógicas e os processos de conhe- cimento, como um parâmetro para classificarmos, teoricamente, uma dessas perspectivas. 38 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Quadro 2 – Associação entre as abordagens pedagógicas e os processos de conhecimento Abordagens Principais representantes Principais ênfases dos “processos de conhecimentos” Didática Petrus Ramus • Experienciar o novo: ler textos literários de “alto valor cultural”. • Conceitualizar por nomeação: aprender temos gramaticais e conceitos literários. • Conceitualizar com teoria: aprender regras ortográficas e gramaticais e as escolas literárias. Autêntica John Dewey e Maria Montessori • Experienciar o conhecido: explorar os interesses próprios. Funcional Michael Halliday • Analisar funcionalmente: analisar como diferentes tipos de textos servem a pro- pósitos sociais distintos. • Aplicar apropriadamente: dominar gê- neros textuais socialmente reconhecidos. Crítica Paulo Freire e Michael Aple • Experienciar o conhecido: desenvolver voz e identidade pessoais. • Analisar criticamente: trabalhar agen- das sociais e vieses de textos. • Aplicar criativamente: construir textos, incluindo textos das novas mídias digi- tais, que expressem as identidades, os in- teresses e as perspectivas dos aprendizes. Fonte: Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p.84). O Quadro 2, além de fazer a associação entre as abordagens pedagógicas e os processos de conhecimento e trazer os principais representantes de cada uma dessas concepções, também traz exem- plos da aplicação de cada processo em atividades de letramento escolar, o que auxilia no entendimento do escopo de cada uma das abordagens. Dentre elas, a crítica é a que mais se aproxima dos ideais da Pedagogia dos Multiletramentos, uma vez que parte do 39 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 princípio de que “[...]os letramentos estão no plural, reconhecendo as múltiplas vozes que os aprendizes trazem para a sala de aula, os diversos locais da cultura popular, as novas mídias e as diferentes perspectivas que existem em textos do mundo real” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 139). Evidentemente, como ressaltamos, o que os autores preten- dem é mostrar os processos que melhor representam cada uma das abordagens, mas não as restringir a certos “modos de didatizar os saberes”. Assim como Lima e Barros (2017, p. 805), entendemos que “[...] a divisão em paradigmas educacionais não pode ser vista com rigidez”, uma vez que é impossível enquadrar a educação em períodos fechados, de maneira tão categórica. Por outro lado, esses paradigmas nos ajudam a entender melhor o processo de ensino nas escolas e intervir sobre eles, a fim de aperfeiçoá-los, torná-los mais apropriados a uma determinada época e contexto pedagógico. A fim de sintetizar a perspectiva didática dos quatro proces- sos de conhecimento que utilizamos como categoria de análise, aqui, elaboramos um quadro sinóptico, a partir das proposições de Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020), enfatizando os letramentos no processo de ensino. 40 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Quadro 3 – Os processos de conhecimento na perspectiva da aprendizagem dos letramentos Experienciando o conhecido Experienciando o novo Prevê atividades que conectem o aluno a suas práticas de letramento cotidia- nas; que o façam refletir sobre elas. Há uma ênfase nos conhecimentos prévios dos estudantes, na sua origem cultural e interesses, assim como nos processos identitários. Envolve atividades que mobilizam novos textos, modalidades textuais ou gêneros. O foco são as práticas de letramento que não fazem parte das experiências cotidianas dos alunos, a fim de se explorar novos significados. Conceitualizando por nomeação Conceitualizando por teoria Foca em atividades metalinguísticas, as quais podem tanto estar relacionadas a conceitos gramaticais tradicionais (sujeito, predicado), como discursivos (modalização), midiáticos (hiperlink) etc. Centra-se em atividades que buscam a generalização dos conceitos. Esses podem ser transmitidos pelos pro- fessores ou construídos pelos alunos, com a mediação do docente. Analisando funcionalmente Analisando criticamente Caracteriza-se por atividades cujo objetivo é fazer com que os alunos aprendam a funcionalidade dos textos, de qualquer modalidade, a identificar seus componentes e saber mobilizá-los, a contextualizá-los, seja na recepção ou produção. A ênfase está em atividades voltadas ao desenvolvimento de capacida- des de reflexão metacognitiva no processo de letramento escolar. A autorreflexão busca uma compreen- são mais crítica sobre as práticas de letramento (exemplo: identificação de fake news). Aplicando adequadamente Aplicando criativamente Centra-se em atividades práticas de leitura e produção de textos, com o ob- jetivo de adequá-los aos seus modelos de referência social. Há uma ênfase em processos de simulação comunicativa. Focado em atividades de transfor- mação, deslocamento, ruptura dos modelos de textos ou das práticas de letramento.A centralidade está no desenvolvimento autoral dos estudantes. Fonte: as autoras, a partir de Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020). O Quadro 3 elucida, em parte, as possibilidades didáticas de cada um dos quatro processos de conhecimento, porém, esses não se restringem a elas. A intenção foi buscar uma síntese que servisse como parâmetro para as nossas análises. 41 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Às abordagens do conhecimento e aos processos de conheci- mento (how/como) associamos ao “o que” (what) do NLG (1996; GNL, 2021) na Figura 1, com base na inter-relação de três componentes: “Available Designs (Designs – disponíveis), o designing e o (re)designed” (NLG, 1996; GNL, 2021). Figura 2 – Processos do conhecimento e pedagogia do design Fonte: as autoras. De forma geral, avaliable designs (designs disponíveis) são recursos disponíveis para representação e comunicação, sejam os vários sistemas semióticos como os de filme, fotografia ou gestual, seja a ordem do discurso (RIBEIRO, 2020; NLG, 1996, GNL, 2021). Já o designing é o trabalho de construção de sentido a partir des- ses recursos disponíveis, a fim de construir significação por meio de modos (oral, escrito, visual, espacial, tátil, gestual e auditivo) e de signos (cor, música, expressões faciais, fonemas, grafemas, 42 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 territorialidade), por fim o (re)designed, “[...] realiza-se por meio do que pode ser organizado pelo sujeito e reconfigurado para o seu mundo, abarcando, por assim dizer, a própria ação durante o processo de construção de significados” (PINHEIRO, 2016, p. 526), ou seja, corresponde à transformação dos significados disponíveis (designs disponíveis). Alguns conceitos como o de design e o de agência foram se tornando cada vez menos dissociados como podemos observar: A ideia de Design como coração dos processos de co- nhecimento simplesmente garante um escopo mais amplo para a agência participativa no processo de ensino e abre o currículo para a diversidade. Quanto mais cedo levarmos a agência em conta, mais multifa- cetadas (multifarious) essas manifestações se tornam, assim como mais complexas se tornam as matrizes e interseções. E para encarar todas essas agências, uma sala de aula! (KALANTZIS; COPE, 2010, p. 48). Nesta perspectiva, o estudante é um designer, “um construtor- -colaborador das criações conjugadas na era das linguagens líqui- das” (ROJO, 2013, p. 8), ou como Freire (1981) denomina um leitor/ produtor capaz de transformar aquilo que lê e o mundo ao seu re- dor, a partir dos condicionamentos ideológicos dos discursos. Isso posto, a Pedagogia dos Multiletramentos “implica a imersão em letramentos críticos que requerem análise, critérios, conceitos, uma metalinguagem, para chegar a propostas de produção transformada, redesenhada, que implicam agência por parte do alunado” (ROJO; MOURA, 2012, p. 8-9). Para concluir, ressaltamos a importância da tomada de consci- ência desses processos de conhecimento, no agir pedagógico. Essa autoconsciência, na nossa concepção, pode fazer com que os forma- 43 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 dores tomem decisões mais assertivas no processo de letramento escolar de seus alunos, levando-os não apenas ao domínio funcional das práticas letradas, mas a se tornarem sujeitos críticos e (trans) formadores, como assim propõe a Pedagogia dos Multiletramentos. Figura 3 – Processos de conhecimento na Pedagogia dos Multiletramentos: tradições da prática educativa Fonte: Inspirado em Lim, Cope e Kalantzis (2022, p. 7). Na representação, buscamos indicar uma articulação entre os quatro estágios do processo para melhor representar a proposta dos autores, que não o concebem “como uma sequência, já que não existe uma ordem predeterminada a ser seguida” (KALANT- ZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 75). Assim, os professores podem mobilizar os movimentos estratégicos de design entre um processo de conhecimento e outro, sem uma ordem necessária” (LIM, COPE; KALANTZIS, 2022)7. Segundo os autores, 7 Texto original: “The knowledge processes suggest that teachers design strategic moves between one knowledge process and another, though in no necessary order”. 44 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 [...] é possível, por exemplo, começar com conceitos, tentar aplicá-los e conectá-los à experiência pessoal. Do mesmo modo, não se exige, necessariamente, a mesma divisão entre os elementos, pois alguns assuntos ou situações de aprendizagem podem demandar muito trabalho conceitual, enquanto outros, mais trabalho ex- periencial (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 75). Os verbos no gerúndio, para esquematizar os Processos de Conhecimento, dão um teor processual e não acabado. Nesse sen- tido, a concepção pedagógica que sistematiza, cognitivamente, a Pedagogia dos Multiletramentos, parece estar mais atualizada à dinâmica multifacetada e complexa da aprendizagem escolar, so- bretudo, neste mundo globalizado8. Material didático investigado No movimento de didatizar os conteúdos tidos como es- senciais pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018) para o Ensino Fundamental II, no planejamento didático, entra em palco o Programa Nacional do Livro e do Material Di- dático (PNLD). Esse é destinado a avaliar e a disponibilizar obras didáticas, pedagógicas e literárias, entre outros materiais de apoio à prática educativa, de forma sistemática, regular e gratuita às escolas públicas de Educação Básica das redes federal, estaduais, municipais e distrital, e também às instituições de educação infan- til comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o Poder Público9 . 8 Conferir em Lim, Cope e Kalantzis (2022) a problematização em relação à metalinguagem empregada na atual nomenclatura dos processos de conhecimento, no tange as raízes cogniti- vistas, a Teoria de Bloom (1956), e as implicações de aspectos sociomateriais. 9 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=12391:pnld. Acesso em: 29 nov. 2022. about:blank 45 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Dentre as coleções didáticas aprovadas pelo PNLD, selecio- namos, como corpus de análise, a segunda com maior valor de aquisição de exemplares (ROCHA, 2020) do componente Língua Portuguesa, intitulada Se liga na língua: leitura, produção de texto e linguagem, de Ormundo e Siniscalchi (2018), especificamente, o 7º capítulo referente ao 6º ano. Tal seleção é dada tanto pela sua notoriedade quanto pelo seu teor representativo, no que se refere à possibilidade de correlação entre as abordagens pedagógicas, os processos de conhecimentos e a pedagogia do design. O capítulo 7 “Comentário de leitor: o direito de opinar” é subdividido em leituras, produções, seções especiais e boxes, como sistematizamos a seguir: Figura 4 – Macro-organização do capítulo Fonte: as autoras. 46 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 As subdivisões do capítulo didático são comentadas e analisa- das na seção seguinte. Cabe pontuar que, ao tomarmos como corpus fontes de documentação (GIL, 2008) do tipo registros institucionais escritos – aqueles fornecidos por instituições governamentais, como projeto de lei, relatórios de órgãos governamentais, entre outros –, neste caso, um capítulo de um livro aprovado pelo PNLD 2020, compreendemos que esta pesquisa delineia-se como de abordagem qualitativa-interpretativista no campo da Linguística Aplicada. Gênero Comentário de leitor: uma análise por meio da pedagogia dos multiletramentos Neste estudo partimos do pressuposto de que os processos de conhecimentos estão vinculados a determinadas abordagens pedagógicas (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 76) e da premissade que tais processos e abordagens implicam certos de- signs. Nesse sentido, objetivamos investigar tais fenômenos e sua correlação em um capítulo de livro didático destinado ao ensino da produção textual do gênero comentário de leitor, presente no sétimo capítulo do livro Se liga na língua: leitura, produção de texto e linguagem. De acordo com as orientações específicas do Manual do Professor, o sétimo capítulo é voltado para o Campo Jornalístico- -Midiático e dialoga com as “[...]habilidades relativas ao debate respeitoso e ao combate ao discurso de ódio” (ORMUNDO; SI- NISCALCHI, 2018, p. XLI). Tendo em vista a temática principal do capítulo, a crise dos refugiados na Europa, o texto do Manual do Professor propõe uma atividade conjunta com os docentes de Geografia ou de História em relação aos fluxos imigrantes. Para dar um panorama do capítulo 7, bem como das categorias que adotamos para a análise, apresentamos, a seguir, o Quadro 4 que 47 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 busca sintetizar a análise abordada a seguir. As categorias foram discutidas previamente e tomam como base a pedagogia dos letra- mentos críticos (KALANTIZIS; COPE, 2012; KALANTIZIS; COPE, PINHEIRO, 2020). Quadro 4 – Panorama de análise do Capítulo 7: em prol de qual projeto de ensino? Tópicos do capítulo Sequência de atividades do livro Objeto Processos do conheci- mento Pedagogia design Abordagem pedagógica Modo Abertura de capítulo Resposta a questionamento oral Fato Expe- rienciar o conhecido Designs disponíveis Autêntica Oral Abertura de capítulo Leitura da ilustração Sensibilizar a opinião pública Experien- ciar o novo Designs disponíveis Didática Imagé- tico Leitura 1 Leitura de comentários de leitor sobre a temática da ilustração Construção do sentido global do texto com as opiniões veiculadas Experien- ciar o novo Designs disponíveis Didática Escrito Desven- dando o texto Resposta escrita a atividades de sentido global (Leitura 1) Compreensão geral Analisar funcional- mente O designing Funcional Escrito Como fun- ciona um gênero Resposta escrita a atividades sobre as carac- terísticas do gênero (Leitura 1) Gênero comentário de leitor (contex- to de produção e circulação, estrutura com- posicional) Analisar funcional- mente Analisar critica- mente O designing Funcional/ crítica Escrito Leitura 2 Leitura de comentários de leitor sobre as vaias recebidas por um atleta francês Construção do sentido global do texto com as opiniões veiculadas Experien- ciar o novo Designs disponíveis Didática Escrito Refletindo sobre o texto Resposta escrita a atividades sobre elementos do gênero comentário Gênero comentário de leitor (contex- to de produção e circulação, estrutura com- posicional) Analisar funcional- mente O designing Funcional Escrito Se eu qui- ser saber mais Atividades de discussão oral que visa avaliar a construção de argumentos Argumentação Analisar funcional- mente O designing Funcional Escrito Meu comentário do leitor Produção escrita de dois comen- tários de leitor sobre trabalho em grupo Textualização (planejamen- to, revisão, reescrita e avaliação de textos). Aplicar funcional- mente O desingned Funcional Escrito 48 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Textos em conversa Leitura de artigo de opinião Compreensão geral Analisar funcional- mente Analisar critica- mente O designing Funcional/ crítica Escrito Transfor- mando o comentário de leitor em pedido público de desculpas Produção escrita de uma carta com base na Leitura 2 Textualização (planejamento, revisão, (re) design e avaliação de textos). Aplicar critica- mente O (re) desingned Crítica Escrito Mais da língua Atividades escritas, a nível textual, de interpretação global e grama- tical Morfossintaxe (frase, oração e período) Conceituar por nome- ação O designing Didática Escrito Isso eu já vi Atividades escritas, a nível textual, de interpretação global Acentuação (palavras paroxítonas) Conceituar por nome- ação O designing Didática Escrito Entre saberes Gravação de um podcast simulando um debate Produção oral (elaboração e edição). Aplicar criativa- mente O (re) desingned Crítica Oral, sonoro e escrito. Produção extra Roda de con- versa a partir de um artigo de opinião Produção de comentário oral Aplicar funcional- mente O designing Funcional Oral e escrito. Fonte: as autoras. A abertura do capítulo é construída a partir de questionamentos fechados como: você já teve vontade de comentar um assunto que leu em uma notícia? Já se impressionou com um texto opinativo e quis elogiar o autor? (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018, p. 206). Essas indagações tomam como objeto de conhecimento um fato, e como processo o experienciar o conhecido, visto que a atividade ex- plora o ato de falar sobre si, sobre uma vivência pessoal. Após essa aproximação inicial, na modalidade de teor oral, indica-se a leitura de uma ilustração (Anexo 1), criada em 2015, em homenagem ao menino refugiado que morreu afogado na Turquia. O movimento epistêmico relacionado à leitura da ilustração é o de experienciar o novo, uma vez que a temática abordada, muitas vezes, não é de interesse da faixa etária do 6º ano, para a qual o capítulo é des- 49 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 tinado, ademais, outro indício afirmativo sobre esse movimento epistêmico é o fato de a ilustração ser um (re)design de fotografias, o que constitui um conjunto de possibilidades significativas, como é indicado no Manual do Professor “Pergunte aos alunos como eles interpretam a ilustração presente nesta página” (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018, p.207). Em seguida, apresentam-se alguns exemplares do gênero “co- mentários de leitor” (Leitura 1), que fazem referência ao assunto abordado na ilustração exposta anteriormente. Tais opiniões são veiculadas em um jornal impresso de grande circulação, o jornal Folha de São Paulo. Essa atividade de leitura explora o experenciar o novo, partindo do pressuposto do desconhecimento do gênero, já que as experiências são subjetivas e situadas. Sumarizando a análise até este ponto, podemos dizer que o aluno teria a seu dispor uma gama de designs disponíveis, dentre eles: questionamentos orais, ilustração e comentários de leitor, envolvendo assim a modalidade oral, visual e escrita. O tópico seguinte, “desvendando o texto”, implica maior envol- vimento do aluno, não só na apreciação de objetos, como foi feito até o momento, mas na interpretação textual em prol do sentido global da Leitura 1, envolvendo, desse modo, um analisar funcio- nalmente. Defendemos, porém, que esse analisar não se caracteriza como crítico, uma vez que não há uma problematização a respeito do texto. A tendência é apenas a decodificação dos sentidos do texto. A exceção é a questão 4 que, ao final, convida o leitor a uma opinião: “o que você acha que o leitor quis dizer com isso” (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018, p.207), como podemos avaliar na Figura 5. 50 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Figura 5 – Analisar funcionalmente: decodificação textual Fonte: Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 207). De modo similar, o tópico “Como funciona um gênero” planifica atividades sobre as características do gênero “comentário de leitor”. Assim, auxilia a compreender como esse artefato/instrumento fun- ciona no mundo, conseguinte, propicia um analisar funcionalmente. A seguir trazemos a Figura 6 para dialogar sobre esse processo de conhecimento desenvolvido na seção. Figura 6 – Analisar funcionalmente: reconhecimento de palavras Fonte: Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 207). 51 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hojeVoluMe 2 À exceção do item c, as outras questões apresentam certa des- contextualização em relação ao texto e focalizam a decodificação e o reconhecimento de palavras, desse modo, não contribui de forma efetiva para compreensão metacognitiva do gênero, objetivo desta seção. A última questão faz referência ao painel do leitor e convida os alunos a opinarem, como podemos observar no trecho a seguir: “Os artigos publicados com assinaturas não traduzem a opinião do jornal. Você acha que esse alerta também vale para comentários de leitor? Por quê?” (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018, p. 208). Isto sugere uma abertura para um analisar criticamente. Na sequência, a Leitura 2 é exposta de forma a representar uma página da internet, em virtude de tratar-se de um jornal on-line. A Leitura em questão possibilita experienciar o novo em relação à temática dos comentários de leitor: vaias recebidas por um atleta francês nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Para discutir essa Leitura são expostos dois tópicos “Refletindo sobre o texto”, con- tendo atividades referentes ao contexto de produção e circulação, estrutura composicional e elementos estilísticos, e “Se eu quiser saber mais” com atividades de discussão oral que visam avaliar a construção de argumentos em “comentário de leitor”, no que se refere a uma nova temática: livro impresso e digitais. Tais atividades visam, majoritariamente, a uma análise funcional, pois colocam em ação significados que se prendem à textualidade. Verificamos que o capítulo opta por organizar o trabalho com a construção de sentidos, designing, a partir desses recursos disponíveis, todavia com predo- minância de movimentos de análise funcional e não crítica. Além disso, detectamos a prevalência do modo escrito nessas aplicações. A atividade que se sucede é de produção, denominada “Meu comentário de leitor”, a qual traz como instrução a escrita de dois comentários de leitor sobre trabalho em grupo, 1ª etapa, posicionar- -se frente a uma questão polêmica relacionada ao tema, e 2ª etapa, resposta a um comentário já escrito por um colega. Tal proposta 52 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 caracteriza-se como um aplicar adequadamente, pelo teor de ação envolvida na atividade e por não buscar diretamente uma ruptura do modelo de comentário do leitor, nem propor uma condição de produção atrelada a uma prática situada fora do contexto escolar. Essa atividade exige que o aluno demonstre sua compreensão para construir a textualidade (planejamento, escrita, revisão, reescrita e avaliação) do comentário de leitor, dentre as características rela- tivamente estáveis do gênero. Assim, com esta proposta, almeja-se um “[...] agir sobre o conhecimento de maneira esperada, previsível ou típica, com base no que foi ensinado” (KALANTIZIS; COPE, PI- NHEIRO, 2020, p. 76). Argumentamos que, com esta produção, o aluno estará em um processo de designing, utilizando “[...] um conteúdo conhecido para desenvolver, transformar e apropriar-se dele convenientemente, na medida em que o transpõe para propostas que considera úteis” (GOMES; PINHEIRO, 2015, p. 114). Sustentamos, contudo, que esta proposta não envolve um (re)designing, pois não estende sua ação para práticas transformadoras, tendo o aluno com agente. O tópico seguinte volta a trazer a prática de experienciar, nes- te caso, um novo texto, pois, em “Textos em conversa”, os alunos têm a oportunidade de ler um artigo de opinião sobre o porquê um jornalista deixou de receber comentários de leitor no seu blog. Há também atividades escritas sobre o texto, as quais possibilitam, sobretudo, analisar funcionalmente a textualidade, e uma ação mais ampla, que traz, de modo tímido, o agenciamento por parte do alu- no, ou seja, analisar criticamente. Nesta, pede-se: “Considerando o que você estudou neste capítulo e o artigo de Leonardo Sakamoto, redija três regras que poderiam ser colocadas como alerta na área de comentários de um blog” (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018, p. 217). A criticidade resulta dos processos implícitos para realização da atividade, como, por exemplo, a reflexão e/ou discussão acerca do que é ética, processo que pode resultar em um designing crítico. 53 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Em seguida, na seção “Transformando o comentário de leitor em pedido público de desculpas”, solicita-se a elaboração de uma carta com base na Leitura 2, compreendemos que o processo de conhecimento envolvido neste processo seja de analisar criativa- mente, pois, para a produção do gênero “carta”, será necessária a transferência de conhecimentos. Desse modo, o desafio é o teor desta carta direcionada à comunidade, nos moldes de uma carta aberta. Coloca-se em xeque alicerces construídos no capítulo, para a articulação dos argumentos em defesa da opinião. Assim, criativa- mente, os alunos devem tomar algo de seu contexto familiar e fazer com que funcione em outro lugar (KALANTIZIS; COPE, PINHEIRO, 2020). Este lugar pode não ser físico, como neste caso, mas semiótico (KRISTEVA, 1978; SANTAELLA, 2019). Em razão dessa transferência de conhecimentos, podemos considerar uma transformação dos sentidos, um (re)designing, que não está relacionado ao gênero “comentário de leitor”, mas à defesa de opinião. Novamente, volta-se a uma seção de construção de sentidos, de designing, neste caso, a partir do movimento de conceituar por nomeação. Na seção “Mais da língua”, apresenta-se um contexto prévio para trabalhar questões de decodificação e elementos da morfossintaxe (frase, oração e período), como podemos observar a seguir: 54 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Figura 7 – Conceituar por nomeação: morfossintaxe Fonte: Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 219). A contextualização construída no início não se mantém, logo a seguir é apresentado um outro gênero, tirinha, com atividades de decodificação como pretexto para trabalhar questões grama- ticais, como em: “Em qual dos quadrinhos a fala não apresenta 55 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 verbo?” (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018, p. 217). Isso se sucede nas próximas 10 (dez) páginas com outros gêneros discursivos: tirinha, reportagem, fábula e anúncio publicitário, estendendo-se ao tópico “Isso eu já vi”, o qual toma como objeto de conhecimento o trabalho com acentuação, por meio de um anúncio sobre o Dia Mundial da Água, sem conexão com o projeto do capítulo, no que concerne ao item trabalhado, podemos citar a seguinte solicitação: “explique as regras que justificam os acentos gráficos de água e potável” (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018, p. 217), a qual envolve conceitualizar com teoria. Neste movimento, chegamos à última seção, “Entre saberes”, que envolve a gravação de um podcast simulando um debate, no qual os alunos devem se revezar para mostrar as vantagens do livro impresso e do livro digital. Essa temática já tinha sido brevemente abordada na seção “Se eu quiser saber mais”, por meio de um co- mentário de leitor, e nas Leituras 1 e 2, a partir de questões, tais como: “Em sua opinião, qual é a vantagem de poder fazer comentá- rios on-line” (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018, p. 210). A temática também é expandida na seção por meio de uma reportagem de divulgação científica, todavia, para encaminhar a produção, falta um contexto de recepção para os podcasts, que motive os alunos a produzi-los de forma significativa. Tal falta de contextualização é perceptível no comando/enunciado da atividade, como podemos observar na Figura 8: 56 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Figura 8 – Aplicar criativamente: produção de podcast Fonte: Ormundo e Siniscalchi (2018, p. 219). Observamos que há parâmetros de condições de produção, como, por exemplo, quem serão os interlocutores, “você e seu cole- ga” (ORMUNDO;SINISCALCHI, 2018, p. 233), e também elementos da construção composicional, “iniciem o podcast cumprimentando o leitor e informando o tema” (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018, p. 233). Além disso, diferente de outros momentos de produção, o aluno, neste, parece ter mais autonomia para explorar tecnologias e recursos digitais “vocês podem utilizar um smartphone ou outros recursos disponíveis na escola” (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018, p. 233) e também maior envolvimento com as modalidades de sig- nificação, que não se restringem à escrita. Utilizando-se, assim, da oralidade e dos significados sonoros, como podemos observar em: “Para tornar o podcast mais interessante, vocês podem incluir efeitos sonoros, trechos de músicas, trechos de fala de personagens bem conhecidos etc.” (ORMUNDO; SINISCALCHI, 2018, p. 233). Essa prática de produção envolve um aplicar criativamente, como se pode notar pelo grau de agenciamento por parte dos alunos para construírem o podcast, além de uma transformação 57 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 criativa, (re)designing, materializada na transferência dos co- nhecimentos da modalidade escrita para oral, o que certamente envolverá certas reconfigurações, uma vez que os modos são in- comensuráveis. Como já apontamos, não há menção à expansão para a vida pública, favorecendo que essa criatividade ocorra em outro contexto. Por fim, no Manual do Professor, é disponibilizada uma pro- posta de produção extra, neste caso, com base em um artigo de opinião, a produção não prevê o comentário de leitor, mas uma roda de conversa (comentários orais) em relação ao artigo. Tal pro- posição, designing, a nosso ver, pode ser interpretada como aplicar adequadamente, uma vez que os alunos já produziram comentários e analisaram argumentos em defesa da opinião. Em suma, em relação aos processos de conhecimento, verifi- camos uma incidência grande de analisar funcionalmente, no pro- cesso de designing, o qual pode estar relacionada a uma pedagogia funcional voltada a práticas de leitura e escrita, a qual fornece “[...] subsídios aos alunos para que descubram como os textos são organizados no sentido de alcançar diferentes propósitos e para aprender como usar esses textos em contextos da vida real a fim de lidar com significados socialmente poderosos” (KALANTIZIS; COPE, PINHEIRO, 2020, p. 121). Considerações finais Nosso objetivo com este trabalho foi investigar quais processos de conhecimentos, pedagogias e design estão articulados a um capí- tulo de livro didático aprovado pelo PNLD, parece substancialmente pouco analisar um capítulo, todavia as coleções tendem a seguir estruturas pré-estabelecidas de seções, subseções, boxes, diferindo em gênero e temática, como mostra Alves (2022). Isso demonstra a 58 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 necessidade de trabalhos mais robustos e ao mesmo tempo evidencia a recorrência da abordagem funcional. Constatamos que a problemática neste material analisado não se dá pela falta de movimento (variação) nos processos de conheci- mento, mas pela ausência de um projeto didático mais comprome- tido com o objeto do capítulo, ou seja, com o que se tem a ensinar e a aprender sobre o gênero “Comentário de Leitor” e, portanto, sobre as demandas da esfera jornalística-midiática em torno desse gênero. Uma das possibilidades seria uma análise ampla acerca dos campos de atuação (BARBOSA; ROJO, 2019) da BNCC (BRASIL, 2018) e das demandas sociais quanto aos possíveis objetos de ensino e contextos escolares de utilização do material. Assim, entendemos que uma das possibilidades seria abrir para ações mais situadas e críticas, e não apenas que visassem contemplar uma lista de habilidades e/ou conhecimentos a serem ensinados. Tal demanda é contemplada parcialmente pela proposta de protó- tipos de ensino (cf. ROJO, 2013, 2017a, 2017b), uma arquitetônica parcialmente vazada e dialógica que sustenta uma proposta didática com abertura para “[...] possíveis alterações por parte do docente, de forma a adequá-lo a suas turmas, seus objetivos didáticos, sua cultura” (ROJO, 2017b, p. 214). Referências ALVES, A. M. Multiletramentos e Base Nacional Comum Curricular (BNCC): análise de unidades didáticas de linguagem e suas tecnologias. 2022. 180f. 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Em concordância com alguns linguistas aplicados brasileiros, como Rojo (2008), Moita Lopes (2012), Monte Mór (2015) e Pinheiro (2016, 2021), compreendemos que o conceito de práticas de letra- mentos é útil a pesquisas interessadas em investigar as práticas sociais da cultura digital, evocadas, aliás, pela Base Nacional Co- mum Curricular (BRASIL, 2018). Esse conceito é especialmente útil, defendemos, para se compreender o fenômeno da pós-verdade, o qual implica a prevalência das crenças e das ideologias em relação à veracidade dos fatos, o que tem acarretado, recentemente, o forta- 64 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 lecimento de certas bolhas ou nichos de natureza antidemocrática (ou favorecedoras desses grupos) nas redes digitais. Como efeito da pós-verdade, surgem ainda práticas de letra- mentos na forma de fake news, deep fake e shallow fake. Neste texto, aprofundamo-nos nas deep fake e shallow fake, as “irmãs siamesas” das infames fake news. Elas são peças em áudio e vídeo que podem ser, conforme detalharemos, criadas a partir de mera edição ou de técnicas de deep learning, isto é, por meio de Inteligência Artificial (IA), capaz de alterar o rosto, a voz e o conteúdo verbal dito por alguma pessoa e anteriormente gravada. Adicionalmente, em conjunção com as fake news, as deep fake e as shallow fake fazem parte de um certo tipo de arsenal da propa- ganda política. Trumpistas e bolsonaristas têm participado dessas práticas de letramentos a favor da construção de um regime de verdade. Como ilustração desse argumento, apresentamos, ainda, uma seção sobre o caso recente de uma shallow fake, divulgada em agosto de 2022, sobre uma suposta preferência do povo brasileiro pela candidatura de Jair Bolsonaro (Partido Liberal) à Presidência da República, no primeiro pleito. Por fim, indicamos a necessidade do investimento por parte das instituições de ensino e dos professores de língua materna na construção de unidades curriculares (sequências didáticas, protó- tipos de aprendizagem, projetos pedagógicos etc.) que levem os es- tudantes dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio a refletirem criticamente sobre as práticas de letramentos em deep fake e shallow fake. Essa reflexão, a nosso ver, precisa superar o foco nas habilidades, conforme a BNCC dispõe, bem como nos procedi- mentos tecnológicos, como a edição de vídeos. É preciso haver um olhar sobre as questões éticas, pois são elas que podem motivar o enfrentamento da pós-verdade, um vírus contra a democracia e a dignidade humana. 65 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Prática de letramento e práticas de letramentos: dois con- ceitos e duas epistemologias Ao entender que as escolhas nunca são neutras, nem sem consequências, objetivamos aqui fazer uma (re)leitura atenta do uso dos aportes teórico-práticos prática de letramento e práticas de letramentos. Historicamente, o primeiro termo surge da vertente sociocultural dos Estudos de Letramento ou New Literacy Studies (NLS), a qual teve como base os estudos de antropólogos como Heath (1982) e Street (1984, 2003)1. No Brasil, essa vertente ganhou força, a partir dos anos 1990, quando algumas obras passaram a discutir o letramento numa perspectiva sociocultural e não psicolinguística ou cognitivista. Uma dessas obras é a organizada por Kleiman (1995), Os significa- dos do letramento, que assim define esse termo-chave: “conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos” (KLEIMAN, 1995, p. 19). Letramento, enquanto um conjunto de práticas sociais, impli- ca um agir contextualizado, vivenciável, que exige interação. Esse conceito de prática social ajuda-nos a pensar em nossa organização socio-histórica, na qual estamos sempre em um contexto situado, em contato com pessoas e objetos. Portanto, 1 No Brasil, a expressão “Estudos de Letramento” é uma opção cunhada sobretudo pelos textos da pesquisadora Angela B. Kleiman. Essa tradução é considerada mais adequada ao contexto brasileiro do que a expressãoinglesa New Literacy Studies, uma vez que, fora do Brasil, havia uma tradição evolucionista a ser rompida. Por isso, no Reino Unido, a necessidade de “‘novos estudos’, em contraponto aos antigos estudos sobre literacy, ressignificando essa palavra com a finalidade de impactar tanto as abordagens teórico-metodológicas sobre o uso da escrita, quanto as políticas de alfabetização” (VIANNA et al., 2016, p. 28-29). 66 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 [...] a maneira como professores e mediadores intera- gem com seus alunos já é uma prática social que afeta a natureza do letramento e as ideias sobre letramen- to adotadas pelos participantes, especialmente, os novos aprendizes e sua posição nas relações de poder (STREET, 2003, p.78)2. Street (1984, p. 1) emprega a expressão “práticas de letramento” como meio de focalizar “práticas sociais e concepções de leitura e escrita” (STREET, 1984, p. 1). Ressalta-se que as práticas de leitura e escrita envolvem os aspectos orais, haja vista os fenômenos como a prosódia, os gestos, a entonação e o movimento dos olhos (STREET, [1994] 2007). Nesse sentido, haveria uma correspondência entre práticas sociais, que desenvolvem atividades de leitura e escrita, e práti- cas de letramento (cf. BAYNHAM; PRINSLOO, 2009; ZANOTTO; SUGAYAMA, 2016). Em conjunção com a prática de letramento, o antropólogo e linguista inglês propõe outra categoria de análise: o evento de letramento. Para o autor: [...] ‘eventos de letramento’ é um conceito útil [...] porque permite que os pesquisadores e também os profissionais se concentrem em uma situação particular em que as coisas estão acontecendo e você pode vê-las acontecen- do. Este é o evento clássico de letramento em que somos capazes de observar um evento que envolve leitura e/ou escrita e começamos a traçar suas características: aqui, podemos observar um tipo de evento, um evento de letramento acadêmico e, ali, outro, que é bem diferente, 2 Texto original: “The ways in which teachers or facilitators and their students interact is al- ready a social practice that affects the nature of the literacy being learned and the ideas about literacy held by the participants, especially the new learners and their position in relations of power”. Esta e outras traduções são de nossa autoria. 67 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 como verificar horários e pegar o ônibus, folhear uma revista, sentar na barbearia, ler sinais quando negocia- mos o caminho (STREET, 2000, p. 21)3. Sendo assim, o evento de letramento busca descrever uma situação de interação mediada pelo texto escrito, enquanto as prá- ticas de letramento buscam estabelecer as relações desses eventos com algo mais amplo, numa “dimensão cultural e social” (MARI- NHO, 2010, p. 78). A seguir, apresentamos uma figura que ilustra a inter-relação entre práticas e eventos de letramento. Figura 1 – Imbricamento entre práticas e eventos de letramento Fonte: Elaborado por Mafra, nov. 2022 3 Texto original: “Literacy events’ is a helpful concept, I think, because it enables researchers, and also practitioners, to focus on a particular situation where things are happening and you can see them happening. This is the classic literacy event in which we are able to observe an event that involves reading and/or writing and begin to draw out its characteristics: here, we might observe one kind of event, an academic literacy event, and there, another, which is quite different, such as checking timetables and catching the bus, browsing through a magazine, sitting in the barber’s shop, reading signs when negotiating the road”. 68 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 A Figura 1 ilustra como as práticas de letramento orbitam os e dão sustentação aos eventos de letramento. Nessa lógica, os eventos estão alicerçados pelas práticas, formadas por identidades, cren- ças, valores, atitudes, construções sociais, discursos, entre outros elementos socioculturais (cf. STREET, 2012; VIANNA et al., 2016). O conceito de práticas de letramento refere-se a aspectos que nos permitem perceber rotinas em eventos de letramento e situá-los em conjuntos, de forma a conferir-lhes um padrão. Essa padroni- zação carrega significados socioculturais para os participantes ou agentes de letramento (STREET, [2007] 2010). No entanto, por mais que haja padrões nas práticas de letramento, não existem configura- ções universais do letramento, pois cada cultura, cada grupo social produz suas próprias manifestações de linguagem. Desta forma, em cada cultura, os eventos e as práticas de letramento são diferentes. Em diálogo com essas definições, Barton, Hamilton e Ivanic (2000) evidenciam que [...] em muitos eventos de letramento há uma mistura de linguagem escrita e falada. Muitos estudos das práticas de letramento têm como ponto de partida o letramento impresso e os textos escritos, mas é claro que, nos eventos de letramento, as pessoas usam a linguagem escrita de maneira integrada, como parte de um conjunto de sistemas semióticos; esses sistemas semióticos incluem sistemas matemáticos, notação musical, mapas e outras imagens não baseadas em texto (BARTON; HAMILTON; IVANIC, 2000, p. 9)4. 4 Texto original: “In many literacy events there is a mixture of written and spoken language. Many studies of literacy practices have print literacy and written texts as their starting point but it is clear that in literacy events people use written language in an integrated way as part of a range of semiotic systems; these semiotic systems include mathematical systems, musical notation, maps and other non-text based images”. 69 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Barton, Hamilton e Ivanic (2000) destacam dois pontos im- portantes em relação aos eventos e às práticas de letramento: o primeiro refere-se à hibridização entre linguagem escrita e falada; e o segundo, aos sistemas semióticos em conjunção. Com a “mistura de linguagem escrita e falada” e a inclusão de outras semioses, na perspectiva dos autores do Grupo de Nova Londres, Barton, Hamil- ton e Ivanic (2000) evocam uma ideia que passou a ser chamada, mais tarde, de sinestesia (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020). Para esses pesquisadores, a sinestesia corresponde à alternância de modos de significar, de maneira agentiva, pelos designers de linguagem, numa expansão da noção de multimodalidade, herdada pela semiótica social. Quanto aos sistemas semióticos, interessa- -nos discutir que a escrita é apenas um dos modos de significação e o texto escrito, consequentemente, é uma das formas de comuni- cação (cf. GRUPO DE NOVA LONDRES, 1996; KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020), que deve configurar uma pedagogia do letramento Esse foco na multimodalidade, articulada ao multiculturalismo ou à diversidade cultural, explica a preferência de Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) pelo uso do termo letramentos, no plural, tal como discutem Lírio e Azzari (2023). Semelhantemente, em texto anterior, Pinheiro (2016, p. 529) emprega o segmento “práticas de letramen- tos”, o que já indicia uma mudança, a nosso ver, epistemológica. Pinheiro (2016) questiona o texto como resultado e intenção das práticas de letramentos, por meio do uso dos recursos disponíveis e de seu replanejamento e reconstrução (design/redesigned), algo ilustrado por Mafra e Barros (2023). Assim, a concepção de texto como cristalização das práticas poderia domesticar (ou escolarizar) aspectos contingenciais inerentes às próprias práticas. Em outras palavras, em termos de letramentos escolares e de pesquisas sobre o letramento da escola, a abordagem do texto como um artefato de campo, tão afeita à investigação de cunho etnográfico dos pesqui- sadores ligados ao Novos Estudos do Letramento, parece sacralizar 70 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafiospara a escola de hoje VoluMe 2 a peça semiótica, colocando em segundo plano os aspectos socio- culturais. A leitura de Pinheiro (2016) também nos despertou o inte- resse por mapear, nos estudos em Linguística Aplicada de estu- diosos brasileiros, o uso do segmento práticas de letramentos, para compreendê-lo com mais profundidade, partindo de uma hipótese interpretativa: em analogia às diferenças entre letramento e letra- mentos, as práticas de letramentos não dependeriam do uso estrito da escrita alfabética. Para esse mapeamento na literatura, citamos os trabalhos de Rojo (2008), Moita Lopes (2012), Monte Mór (2015) e Pinheiro (2021). Rojo (2008, p. 584) usa “práticas de letramentos” para referir-se ao processo simultâneo de mudança de ethos e de práticas letradas, em decorrência do uso de TDICs (Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação). Um exemplo de mudança de ethos, segundo a autora, é a diminuição das distâncias espaciais, tanto em termos geográficos, como em termos culturais e informacionais, por efeito da mídia digital. Moita Lopes (2012, p. 207), ao discutir os chamados novos le- tramentos ou letramentos digitais, afirma que nas “[...] práticas de letramentos [,] os usuários se envolvem simultaneamente em ações discursivas diferentes em tarefas múltiplas, todas elas convergin- do na tela do computador”. A hipermídia, para o autor, capitaneia letramentos, que estão associados, na mesma linha de Rojo (2008), a um novo ethos, isto é, a uma nova postura no processo de comu- nicação pela internet. Monte Mór (2015, p. 11) usa “práticas de letramentos” para tratar dos letramentos escolares, numa perspectiva interdisciplinar que incorpora insumos dos multiletramentos, novos letramentos e letramentos críticos. Nesse caso, o foco não incide na mudança de ethos apenas, nem nas chamadas epistemologias digitais, mas 71 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 na mobilização de várias correntes para se pensar propostas peda- gógicas que não renunciem o que a autora chama de “habilidade crítica” (MONTE MÓR, 2015, p. 11). Para Pinheiro (2021, p. 180), o termo “práticas de letramentos” está associado às práticas sociais das mídias e redes digitais. O autor usa esse segmento para referir-se à circulação viral de mensagens por WhatsApp, Facebook e Twitter que estiveram na paisagem semi- ótica de dois eventos históricos recentes: o protesto de caminho- neiros brasileiros contra o preço da gasolina e a Primavera Árabe. Tal proposição possibilita-nos questionar “que recursos podem ser mobilizados nas práticas de letramentos para a construção e disseminação de significados” (PINHEIRO, 2021, p. 180). Segundo Pinheiro (2021), na tradição dos estudos dos multiletramentos e dos novos letramentos, as práticas de letramentos não estão centradas nos usos da escrita, porque, considerando a materialidade da hi- permídia, já se pressupõem a sinestesia e o caráter caleidoscópico dos hipertextos (cf. LEVY, 2011). Compreendemos que nossa hipótese interpretativa é coerente com os projetos de dizer de Rojo (2008), Moita Lopes (2012), Monte Mór (2015) e Pinheiro (2016, 2021). Existe, na opção pelo segmento práticas de letramentos, outra proposta conceitual: são práticas sociais hipermidiáticas. Não se coloca luz, assim, nos usos estritos da escrita e da leitura de textos predominantemente alfabéticos, mas em peças semióticas de diferentes linguagens. Adicionalmente, porque se trata de práticas ancoradas em mídias e redes digitais, não existiria, assim, o texto, mas texto, conforme propõe Levy (2011). O texto em tela de dispositivos eletrônicos apresenta, muitas vezes, uma trajetória discursiva que atravessa contextos, culturas e cenas enunciativas, o que o distingue dos textos manuscritos ou impressos, oralmente citados, escritos ou lidos em práticas de letramento, na linha dos Novos Estudos do Letramento. 72 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Epistemologicamente, o conhecimento produzido pela cate- goria analítica prática de letramento é dependente da descrição do evento de letramento. Parte-se do evento, para se conceituar a prática. Esse tipo de conhecimento tem uma ênfase na experiência vivida por sujeitos encarnados, situados historicamente de forma quase cirúrgica. Por exemplo: em uma sala de aula, de um 2°ano, classe média5, do município de Santa Amélia, norte do estado do Paraná, localizada no centro, pertencente à rede municipal, deno- minada de Escola Municipal Prefeito Francisco da Silva Leal - En- sino Fundamental I, ao mesmo tempo em que são desenvolvidos letramentos escolares em eventos que envolvem leitura, escrita, oralidade há uma disputa de formação ideológica de influência dos saberes locais, mesmo que em interface com os saberes globais, em circulação pela internet. Já o conhecimento produzido pela categoria analítica práticas de letramentos tem uma base menos antropológica e mais semiótica. Serve, entendemos, a análises voltadas ao processo de construção de significados, tanto na representação, quanto na comunicação de enunciados que escapam a uma visão de texto como artefato coletável. Parece-nos possível afirmar, ainda, que, no lugar do texto da tradição linguística, nessa perspectiva, o hipertexto digital é o objeto cotejado pelo pesquisador ou pela pesquisadora. Por fim, apresentamos um quadro-síntese com os constructos teóricos discutidos, os quais vêm contribuindo com os estudos em Linguística Aplicada: 5 Definições de classes sociais. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/ classes-d-e-e-continuarao-a-ser-mais-da-metade-da-populacao-ate-2024-projeta-consultoria/. 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Práticas de letramentos Ferramenta teórica que investiga, fundamental- mente, os recursos mobilizados na construção de significados, considerando redes textuais (e não somente um texto ou um enunciado), em uma perspectiva integradora de signos, modos, mídias e discursos. Fonte: Elaborado por Satyro, nov. 2022. Contemporaneamente, frente a fenômenos da pós-verdade, como fake news, deep fake e shallow fake, propomos o uso do conceito e da categoria analítica práticas de letramentos para pesquisas em Linguística Aplicada interessadas em aspectos semióticos, discur- sivos e educacionais. Usamos o termo práticas, aliás, como uma recusa por outros termos e conceitos densamente investigados por estudiosos da linguagem, como texto e gênero. Nosso posicionamen- to é em favor de uma perspectiva menos voltada para o exame de uma peça semiótica, e mais direcionada aos usos sociais de peças semióticas em mídias e redes digitais. Neste texto, privilegiamos a discussão sobre deep fake e shallow fake, práticas de letramentos aparentadas com as fake news, que já têm servido a projetos de ameaça à democracia. Como se trata de um problema ético, que exige formação crítica e cidadã, abordamos tais práticas como possíveis objetos de ensino nas aulas de língua materna. Para sustentar essa defesa, prosseguimos com alguns esclarecimentos sobre a natureza das deep fake e das shallow fake. 74 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafiospara a escola de hoje VoluMe 2 Deep fake, shallow fake e pós-verdade A criação de imagens bi e tridimensionais por meio de Inte- ligência Artificial (IA) tem resultado em algumas externalidades positivas na cultura. Dois exemplos recentes são o projeto em andamento de recriação da voz do ator estadunidense James Earl Jones, nascido em 1931, dublador do sinistro vilão Darth Vader, na franquia Star Wars, e a recriação de voz para a narração em voice- -over6 de outro artista estadunidense, o pintor, fotógrafo e cineasta Andy Warhol (1928-1987). Vejamos alguns detalhamentos dessas criações sintéticas. O primeiro caso, segundo notícia do portal Splash (2022), parece mirar na garantia de uma marca registrada da franquia, ao considerar seu projeto de expansão transmídia e a idade do ator e dublador, hoje, com 91 anos. O segundo caso, por sua vez, foi mais audacioso: o diretor do documentário Diários de Andy Warhol (2022), lançado pela plataforma de streaming Netflix, quis conferir personalidade aos relatos do próprio artista que, em vida, teria sido gravado em áudio uma única vez, durante um período escasso de quatro minu- tos. O projeto de recriação da voz de Andy Warhol foi aprovado pela instituição que leva seu nome, mas não deixou de causar polêmica, conforme relatou o cineasta Andrew Rossi à reportagem do portal Wire (2022). Afinal, a técnica de IA utilizada é a mesma por trás das quase sempre nocivas deep fake. O problema ético em torno das deep fake reside em sua mate- rialidade nas redes sociais digitais, em conjunção com as fake news. É por essa razão que Santaella (2021) se refere a essas peças semi- óticas como irmãs siamesas. Elas parecem funcionar num mesmo ecossistema midiático que atende a uma agenda sobretudo política, na era da pós-verdade. O termo pós-verdade, por sua vez, refere-se 6 A narração voice-over é um recurso do design audiovisual, usado como uma espécie de camada extra, em áudio, àquilo que se mostra, em vídeo, para o espectador. 75 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 a uma sobreposição das crenças e das ideologias em detrimento de acontecimentos auditáveis, como devem ser os fatos jornalísticos e científicos (cf. LEMOS, 2021; SANTAELLA, 2021). Assim, as deep fake são desenvolvimentos de IA que funcionam como “[...] uma extensão, em peças de áudio e vídeo, das fake news, estas quase sempre verbais” (SANTAELLA, 2021, p. 17). Enquanto as semioses parecem diferenciar as fake news das deep fake, as di- ferenças entre deep fake e shallow fake são mais sutis. Em primeiro lugar, a reflexão teórica parece concentrar-se nas deep fake, legando às shallow fake um espaço de teorização periférica. Em segundo lugar, as shallow fake são justamente mais superficiais, ou rasas, como sugere o adjetivo em língua inglesa, porque não dependem necessariamente de desenvolvimentos de IA tão refinados. Peças de shallow fake podem ser criadas, por exemplo, por meio de progra- mas de edição de vídeo e manipulação de imagem e áudio, a partir de um banco de dados, sem a necessária criação de conteúdo novo em imagens tridimensionais. Adiante, analisaremos um exemplar desse tipo. Segundo Sam Gregory, programador da Witness, uma organiza- ção focada em direitos humanos, em entrevista para o MIT Technolo- gy Review (JOHNSON, 2019), as shallow fake podem funcionar como um vídeo renomeado e reenviado para uma rede social, alterando o contexto original do ocorrido, para cumprir com algum propósito político perverso, como sugerir que determinado protesto esteja ocorrendo em algum lugar do mundo, no instante da postagem, quando ele já ocorreu, em outra parte do planeta. As shallow fake são, nas palavras do próprio Sam Gregory, “[...] dezenas de milhares de vídeos que circulam com intenção maliciosa em todo o mundo agora” (JOHNSON, 2019). Certamente, a exigência de certa expertise exigida pelas deep fake para a manipulação de vídeos e áudios torna a circulação das shallow fake mais frequente e não menos perniciosa. 76 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Outrossim, as deep fake e as shallow fake são, para Maher (2022), estudioso da Comunicação e do Audiovisual, um sintoma de uma era pós-fatos, em que a cidadania é constantemente ameaçada e toda verdade é relativizada. Um exemplo desse ataque à cidadania e aos direitos humanos é o caso da jornalista indiana Rana Ayyuab (2018)7. Diante dessas questões de ordem tecnológica, ética e social, ainda nos parece preciso refletir sobre outros dois elementos das deep fake e shallow fake, em conjunção com as fake news e a pós-verdade: a questão semiótica e a discursiva. Para Santaella e Nӧth (1998), estudiosos da semiótica da imagem, existe uma espécie de natureza documental em gêneros pictoriais relacionados à linguagem fotográ- fica. Eis o motivo porque um “[...] jornal diário que publica uma foto em sua seção de notícias assevera a realidade da cena em questão” (SANTAELLA; NӦTH, 1998, p. 207). Imagens podem causar um efeito de verdade que, muitas vezes, é reforçado quando há a ancoragem de texto verbal escrito ou falado, como ocorre na maior parte da comu- nicação multimídia e hipermídia. Esse efeito é ainda exponenciado quando se trata não mais da linguagem estática, como a da fotografia, mas da linguagem do vídeo, que dá forma e conteúdo às deep fake (e, acrescentamos, às shallow fake), conforme Santaella (2021) atesta: Enquanto os signos fotográficos, por serem estáticos, já demonstram o hiato espaço-temporal entre o registro e a realidade que flui e se transforma para além desse registro, no caso dos vídeos, cria-se, a par do indu- bitável do que os olhos veem, o pacto narrativo que impede a suspensão da crença (SANTAELLA, 2021, p. 24, grifos nossos). 7 Até 2018, Ayyuab dedicava-se a expor a blindagem político-partidária de abusadores de mu- lheres em seu país. Os ataques cibernéticos não eram novidade para ela, a situação de Ayyuab escalou para o adoecimento físico e mental, quando, em um café, em Nova Delhi, recebeu de um amigo, por WhatsApp, um vídeo em que ela apareceria supostamente num ato sexual O vídeo em questão mostrava uma mulher mais jovem, profissional da indústria pornográfica, com o rosto alterado por algum programa de deep learning. 77 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Os estudos de Santaella e Nӧth (1998) e de Santaella (2021) parecem indicar que a suspensão da dúvida é um problema de ordem semiótica. Enquanto os enunciados ostensivamente verbais são mais suscetíveis a questionamentos, as imagens diminuem o nível de suspeita e, em termos comparativos, os vídeos são mais poderosos para cumprir esse fim. Ainda no campo dos estudos sobre a inter- face entre linguagem e comunicação, residem os jogos de verdade que são instaurados em qualquer discurso, independentemente da semiose escolhida. Investigam esses jogos e regimes alguns analistas de discurso, como Sargentini e Carvalho (2021). Fundamentados na análise de discurso foucaultiana, Sargen- tini e Carvalho (2021) compreendem que a verdade é fruto de um desejo de verdade. Mais do que um fato auditável (cf. LEMOS, 2021), a verdade seria, nessa chave discursiva, uma construção que atende a um regime de verdade instaurado por quadros políticos, sociais e culturais. Ela serve a um conjunto de crenças e ideologias, e cumpre o papel de manter, no topo das estruturas sociais, determinados ato- res. Nas palavras desses analistas, “[...] admitir que a verdade venha se estabelecer por uma vontade de verdade é recusar a existência de uma relação binária que opõe verdadeiro ao falso” (SARGENTINI; CARVALHO, 2021, p. 75). Embora Sargentini e Carvalho (2021) analisem fake news trum- pistas e bolsonaristas, estendemos sua teorização, por analogia, aos jogos de verdade estabelecidos por deep fake e shallow fake. Essas práticas sociais criam discursos verdadeirospara os sujeitos que se restringem em bolhas ou nichos nas redes digitais e, como tais, podem minar as instituições democráticas, os direitos humanos e a dignidade humana. De acordo com Santaella (2021), algumas formas de mitigar os nocivos efeitos de verdade das deep fake e shallow fake são ações jurídicas, que operem no nível da circulação de informações 78 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 com contextos fabricados ou alterados nas redes sociais, e ações educacionais. Estas são, aliás, discutidas de forma um pouco mais pormenorizada, na próxima seção. Deep fake e shallow fake nas aulas de língua materna A Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) do Ensino Fundamental não aborda as deep fake e shallow fake, mas menciona suas irmãs siamesas, as fake news, num contexto de pós-verdade. Em decorrência dessa similitude, consideramos pertinente discutir como se dá essa abordagem, em termos curriculares. Assevera o documento oficial em questão: A viralização de conteúdos/publicações fomenta fenômenos como o da pós-verdade, em que as opiniões importam mais do que os fatos em si. Nesse contexto, torna-se menos importante checar/ verificar se algo aconteceu do que simplesmente acreditar que aconteceu (já que isso vai ao encontro da própria opinião ou perspectiva) (BRASIL, 2018, p. 66, grifos nossos). [Nos anos finais do ensino fundamental] A questão da confiabilidade da informação, da proliferação de fake news, da manipulação de fatos e opiniões tem destaque e muitas das habilidades se relacionam com a comparação e análise de notícias em diferentes fontes e mídias, com análise de sites e serviços checadores de notícias e com o exercício da curadoria, estando pre- visto o uso de ferramentas digitais de curadoria. Além das habilidades de leitura e produção de textos já consagradas para o impresso são contempladas habilidades para o trato com o hipertexto e tam- 79 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 bém com ferramentas de edição de textos, áudio e vídeo e produções que podem prever postagem de novos conteúdos locais que possam ser significativos para a escola ou comunidade ou apreciações e réplicas a publicações feitas por outros. Trata-se de promover uma formação que faça frente a fenômenos como o da pós-verdade, o efeito bolha e proliferação de discursos de ódio, que possa promover uma sensibi- lidade para com os fatos que afetam drasticamente a vida de pessoas e prever um trato ético com o debate de ideias (BRASIL, 2018, p. 134-135, grifos nossos). Como podemos observar, a BNCC impulsiona práticas de lin- guagem, principalmente nos anos finais do Ensino Fundamental, problematizadoras das fake news, sem reduzi-las a meras mentiras ou erros jornalísticos, já que enquadra essa questão no contexto das redes digitais, como campo de circulação das práticas. O docu- mento não defende uma suposta neutralidade pedagógica, mas é explícito em sua tomada ética e advoga por uma pedagogia que se oponha aos fenômenos ligados à pós-verdade, como a proliferação de discursos de ódio on-line. Na esfera política, esse discurso engendrado pela BNCC nos parece adequado à formação de crianças e adolescentes críticos e potencialmente preparados para argumentar em prol das institui- ções democráticas. Na esfera pedagógica, contudo, a nosso ver, há um problema estrutural, típico da passagem de qualquer referencial curricular para a sala de aula: a formação de professores. Noções como a de pós-verdade, fake news, deep fake e shallow fake são recentes e não surgiram no discurso pedagógico. A tradu- ção intercultural desses termos para a escola precisa ser objeto de reflexão da formação pré-serviço e em serviço. Precisa, ainda, de suportes teóricos interdisciplinares, gestados em campos como o 80 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 da Comunicação e o dos Estudos Semióticos. Aliás, a semiótica foi incorporada diretamente pelos redatores da versão final da BNCC, que deixaram de usar apenas o segmento análise linguística, para empregar análise linguística/semiótica. Nesse sentido, para além de uma ênfase terminológica, o trato de deep fake e de shallow fake, em particular, exige, sem dúvida, alguns aportes da semiótica da imagem e do vídeo. Entendemos que algumas habilidades fundamentais, como o reconhecimento de cortes abruptos em materiais de áudio e/ou vídeo manipulados, ou de inadequações resultantes da alteração da ima- gem física de pessoas filmadas, precisam ser objeto de capacitação de professores de Língua Portuguesa, antes de serem traduzidas em unidades curriculares (materiais didáticos, sequências didáticas ou protótipos de aprendizagem). Recentemente, interessados nos fenômenos da pós-verdade e, talvez, influenciados pela impulsão conferida pela BNCC, pesqui- sadores da Linguística Aplicada propuseram experiências didáticas com a leitura de fake news, em aulas de Língua Portuguesa. Silva e Tinoco (2019) sugerem o uso de projetos de letramento, assim como Cruz e Silva (2021) relatam o trabalho em três oficinas simultâneas, com estudantes do Ensino Médio, sobre a identificação de fake news. Mais uma vez, por analogia temática, tomamos esses casos como parâmetro para pensar um trato possível de deep fake e shallow fake, no contexto escolar. Em síntese, os dois trabalhos citados fazem uma escolha seme- lhante: explorar com os estudantes alguns modos de ler e identificar a veracidade de uma postagem em rede social digital. Subjacente a essas propostas, está o plano de formar habilidades leitoras, como a checagem de informações - o fact-checking -, a observação de erros ortográficos e o uso de linguagem sensacionalista. Em nosso entendimento, essas propostas parecem ainda enfocar o texto no 81 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 interior da prática de letramento, no sentido conferido pela tradição dos Novos Estudos do Letramento. Cruz e Silva (2021), por exemplo, classificam as fake news como textos e não como práticas sociais. Existe, assim, nas duas propostas, a de projeto de letramento e a de oficinas de leitura, um olhar para um corpus selecionado pelos professores e seu escrutínio em termos de linguagem escrita. Uma possibilidade seria enquadrar as deep fake e shallow fake como práticas de letramentos - e não textos em si -, propiciando outras abordagens pedagógicas. Desse ângulo, não se exclui a peça semiótica, mas ela passa a ser situada em transcontextos ou em contextos transversais, já que, ao circular em redes digitais, sua trajetória na web é quase sempre não detectável. A análise de uma postagem em captura de tela é uma forma possível de se analisar a peça, mas pode encapsulá-la, à medida que a aproxima forço- samente de uma noção de objeto estático, quando sua natureza é sempre efêmera, dinâmica e viral. Por isso, é preciso, tomando a noção de prática de letramentos como categoria analítica, explorar sobretudo a situacionalidade, a historicidade, a criticidade e a ética (cf. PINHEIRO, 2021), materializadas em linguagem. Esses pontos serão objeto de estudo na próxima seção, em que discutimos o caso de uma shallow fake brasileira, veiculada nas redes sociais, equivo- cadamente, como uma deep fake político-partidária. Uma shallow fake a serviço da reeleição de Jair Bolsonaro Segundo uma reportagem do portal UOL News (2022), durante a campanha que visava a reeleição à Presidência da República do candidato Jair Bolsonaro (Partido Liberal), um vídeo circulou nas redes digitais, no qual se vê a jornalista Renata Vasconcellos, âncora do Jornal Nacional (TV Globo), noticiando o resultado de uma pes- quisa do IPEC (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) sobre a intenção de voto dos eleitores brasileiros. A peça semió- 82 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola dehoje VoluMe 2 tica mostrava a liderança do candidato em questão, com 44% dos números de intenção de voto, em oposição aos 32% conquistados pelo suposto favorito: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Contudo, tratava-se de uma notícia falsa, que inundou redes como WhatsApp e Twitter, e que passou a ser veiculada como um caso de deep fake. O trabalho jornalístico do UOL News (2022) contribuiu para trazer a público a veracidade dos fatos, ao desmentir o conteúdo do vídeo viralizado. Bolsonaristas digitais manipularam o trabalho de arte gráfica da TV Globo e trocaram as fotos dos candidatos: em agosto de 2022, Luiz Inácio Lula da Silva tinha 44% dos prováveis votos, contra 32% do candidato da ultradireita, conforme o IPEC. Entretanto, a mesma webreportagem cometeu um erro conceitual: considerou o vídeo um exemplar de deep fake, já que, alegou-se, o áudio de Renata Vasconcellos havia sido alterado. Como afirma a jornalista Amanda Andrade (2022) do Portal Terra, essa peça semi- ótica é, na verdade, um exemplar de shallow fake, pois o áudio de Renata Vasconcellos foi editado e não alterado por IA. Retomando o argumento de Sam Gregory (cf. JOHNSON, 2019), o fato de esse vídeo ser uma shallow fake não o torna menos per- nicioso. Comparativamente, essa característica técnica indicia que o produtor desse conteúdo apenas não precisou se valer de deep learning para arquitetar a peça. O que mais impressiona, em nossa compreensão, é a facilidade em se produzir uma shallow fake. Conteúdos em vídeo do Jornal Nacional são facilmente localizados no YouTube, assim como a oferta de softwares de edição de imagem, análogos ao Adobe Photoshop. Em outras palavras, o design de uma shallow fake não demanda muitas habilidades técnicas complexas. Talvez, alguns adolescentes dos anos finais do Ensino Fundamen- tal e do Ensino Médio conheçam os procedimentos por trás dessa shallow fake e precisem apenas de um celular e conexão à internet. 83 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 A Figura 2 mostra uma captura de tela da reportagem em ví- deo do UOL News (2022), em que se vê uma postagem, no Twitter, da shallow fake em questão. Essa indexação na rede digital ilustra, em certa medida, nosso argumento a favor de uma perspectiva das práticas de letramentos, já que não se observa o texto em si - como o vídeo de teor bolsonarista - mas hipertextos em conjunção. Adi- cionalmente, há questões semióticas e discursivas que estão na base dos processos de construção sinestésica de significados (cf. KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020) que podem ser cotejados a partir da imagem. Figura 2 - Captura de tela do Twitter8 Fonte: UOL News, ago. 2022 Tomando o tuíte como um dos componentes das práticas de letramentos em torno dessa shallow fake, percebemos o tom de deboche do produtor (ou da produtora) desse conteúdo. Esse tom, 8 Por questões éticas, omitimos o nome da autora do tuíte. 84 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 aliás, aparece ainda no texto verbal digitado pela usuária do Twitter, que recorre à crítica pessoal à jornalista da TV Globo e a emojis de ‘gargalhada’. No vídeo, há a faixa, nas cores da bandeira do Brasil, com o mote forjado por Jair Bolsonaro e por seus apoiadores, ainda na época de sua eleição, em 2018: “DEUS, PÁTRIA E FAMÍLIA”. Contextualizada a shallow fake, em linhas gerais, procedemos com outros pontos de análise propostos por Pinheiro (2021, p. 181), ao discutir as novas práticas de letramentos na era da pós-verdade. Para esse linguista aplicado, que examina esses fenômenos co- municacionais, com especial interesse nos letramentos escolares, é preciso situar essas práticas letradas mobilizando os seguintes critérios: “situacionalidade e historicidade” e “criticidade e ética”. Historicamente, o governo de Jair Bolsonaro (2018-2022) ope- rou a máquina de propaganda por meio das redes digitais, divul- gando ideias ultradireitistas, que, segundo Lynch (2020), cientista político, agrupam conservadores religiosos, militares, liberais de mercado e liberais da “‘revolução judiciarista’ (os ‘lavajatistas’)” (LYNCH, 2020, p. 27). Esses grupos partilham de um mesmo desejo de verdade: o antipetismo. Na visão dos bolsonaristas, o Partido dos Trabalhadores teria arruinado o país com a corrupção e suas pautas identitárias. Como o desejo de verdade subjuga os fatos, porque resulta de um sentimento de aderência a certo regime de verdade, é preciso destruir tudo que remeta às ações dos governos petistas anteriores. Saem de cena os discursos do estatismo e do culturalis- mo; entram os discursos religiosos e neointegracionalistas. De um viés crítico e ético, o bolsonarismo instalou uma espécie de guerra cultural, “[...] como meio de desmoralizar o prestígio das elites políticas e culturais, promovendo a confusão, a dissonância cognitiva e a inversão informacional” (LYNCH, 2020, p. 29, grifos nossos). A estratégia de inversão, aliás, é exatamente o que se vê na shallow fake viralizada em agosto de 2022. Os dados levantados pela 85 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 pesquisa do IPEC foram simplesmente invertidos, de Luiz Inácio Lula da Silva para Jair Bolsonaro. A inversão foi suportada, ainda, por um projeto de desmoralização da Rede Globo, que vem sendo atacada pelos ultradireitistas, que criaram um dilúvio de hashtags, como o segmento #GloboLixo. O ataque, nesse caso, é direcionado a alguns veículos de mídia tradicionais que passaram a noticiar os escândalos da gestão bolsonarista. Esse ataque vem acoplado a outra investida: o bombardeio às instituições democráticas por meio de fake news e de suas irmãs siamesas, as deep fake e as shallow fake. As práticas de letramentos associadas a esses fenômenos da pós-verdade precisam encontrar um fórum de discussão nas escolas de Ensino Fundamental e Médio. Alicerçados pela BNCC, defende- mos a criação de unidades curriculares que não apenas ensinem os adolescentes a identificarem uma deep/shallow fake, mas que os levem a refletir criticamente sobre a ética na vida on-line e off-line. Um exemplo disso é o tuíte que analisamos acima. Seria prudente, considerando os critérios propostos por Pinheiro (2021), discutir com os estudantes os efeitos nocivos de um retuíte daquela mesma postagem. Ou seja: é necessário debater o problema da circulação em massa de mentiras por meio das mídias e redes digitais. Para além do enfrentamento do status quo, cabe a conscientização do problema contemporâneo de uma crise de atitude crítica em direção ao cuidado de si, de fundo ética. Nesses tempos em que as subjetividades são produ- zidas em massa, em que o sujeito reflexivo é tão raro que se sente inadequado, ainda é possível falar em ética? Que ética é ainda possível, ou seja, que reflexão sobre os hábitos, os atos, os gestos podem nos ajudar a viver melhor? Podemos recuperar o sentido da ciência da ética para além das grandes teorias e chegar a uma prática útil desse saber, no sentido de um saber prático, 86 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 que nos ajuda a agir melhor em nossas vidas e construir uma sociedade melhor?” (TIBURI, 2019, p.103). Entendemos que o enfrentamento tanto à produção quanto à reprodução de pós-verdade exige saberes didáticos ligados a práticas de compartilhamento de ideias, a rodas de conversa, a discussões sobre as identidades que são performadas nas redes sociais, aos impactos cotidianos da circulação de notícias, fake news, deep fake e shallow fake pelas plataformas midiáticas. Considerações finais Prática de letramento e práticas de letramentos são conceitos e categorias análogas, mas não idênticas. Sem dúvida, o segundo conceito deriva do primeiro, mas eles se diferenciam, à medida que os sistemas semióticos se expandem de um foco na escrita para uma visão maismultimodal e sinestésica. Essa derivação conceitual e metodológica vem impregnada de uma mudança epistemológica. De um ângulo conceitual, as práticas de letramentos estão diretamente associadas à hipermídia e à produção/compreensão/ circulação de peças semióticas em mídias e redes digitais; de um ângulo analítico, essa categoria serve a estudos voltados à cons- trução de significados em hipertextos, cujos contextos mudam exponencialmente, de uma tela a outra, de uma plataforma a outra, de um usuário a outro. Além disso, a prática de letramento, pensada na tradição dos Novos Estudos do Letramento, facilita a construção de um conhecimento mais direcionado a experiências localmente vivi- das, enquanto as práticas de letramentos, teorizadas a partir dos multiletramentos e dos novos letramentos, levam à elaboração de um conhecimento ostensivamente semiótico e gestado na cultura 87 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 digital. Logo, não são termos excludentes, mas alternativos, que podem ser operados de acordo com a intenção do pesquisador. Feito esse contraste terminológico, parece-nos adequado empregar o conceito de práticas de letramentos para interpretar o fenômeno da pós-verdade. No bojo desse fenômeno, práticas como as deep fake e shallow fake podem ser consideradas, materializadas em peças em áudio e/ou vídeo que propagam conteúdos falaciosos em redes digitais. Essas práticas de letramentos precisam ser de co- nhecimento público para promover a conscientização, em relação ao combate à pós-verdade, que corrói a democracia e suas instituições, e a ação didática por parte das instituições escolares. Adicionalmente, tais práticas funcionam ainda como disposi- tivos de humilhação e desmoralização de algumas pessoas, como ilustramos com o caso da jornalista Rana Ayyuab (2018). Tais ata- ques provam que não é possível, nem desejável, separar a discussão técnica e política dos problemas éticos colocados por essas práticas. Referências ANDRADE, Amanda. Deepfake: como montagens podem manipular emoções dos eleitores neste ano. Portal Terra, [S.l.], 26 ago. 2022. Disponível em:https://www. terra.com.br/byte/deepfake-como-montagens-podem-manipular-emocoes-dos- eleitores-neste-ano,0d94166709fdbed9f71731c16521c19czf0nwk3z.html . Acesso em: 19 nov. 2022. AYYUAB, Rana. I Was The Victim Of A Deepfake Porn Plot Intended To Silence Me. 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Izabella Baptista Paladine Universidade Estadual de Campinas Robson Rodrigues Navas Universidade Estadual de Campinas Introdução Em consonância com a Base Nacional Comum Curricular de Língua Portuguesa (BRASIL, 2018), os livros didáticos têm apresen- tado novas propostas de produção de diferentes gêneros discursivos para a sala de aula, como os podcasts. Embora essas orientações se- jam inovadoras e acompanhem as mudanças recentes na sociedade, em especial no que tange às novas linguagens e ao desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação, colocam uma série de desafios aos professores, como a falta de informação sobre o gê- nero, a dificuldade em utilizar-se dos recursos digitais na produção do podcast, a possível falta de categorias analíticas para estudo de significados multimodais, entre outras questões. Nesse sentido, é preciso ainda estar atento para que práticas tradicionais e conteudistas- grafocêntricas, que consideram a língua um sistema único e homogêneo e que colocam o aluno como sujeito 93 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 passivo no processo de ensino-aprendizagem -, típicas do ensino de línguas, não sejam reproduzidas em novas roupagens. Afinal, acredi- tamos que o objetivo da incorporação dessas novas tecnologias deve estar alinhado à compreensão da reflexão sobre seu funcionamento, bem como a maneiras de contribuir para que os alunos se tornem autores de seus textos, integrando seus conhecimentos prévios e também participando de práticas que atuem criativamente e de maneira transformadora em seus contextos. Há de se considerar ainda os motivos da escolha do podcast para as análises seguintes: pensamos que esses textos multimodais abrangem habilidades importantes a serem desenvolvidas em sala de aula. Por meio de estudos e produções desse gênero, é possível que os estudantes participem do processo de aprendizagem ati- vamente, emitindo opiniões sobre determinados assuntos, além de possibilitar o exercício de adequação do uso da língua(gem) de acordo com as situações comunicativas. Ainda mais, esse trabalho permite que possamos explorar textos que circulam a sociedade e o entorno da realidade dos alunos, além de proporcionar, como já dito, a inclusão das novas tecnologias nas salas de aula, sem precisar de grandes e caros recursos. Assim, fizemos uma breve revisão bibliográfica sobre o uso do podcast dentro da sala de aula de Língua Portuguesa, destacando as potencialidades e os desafios da inclusão dessa ferramenta. Busca- mos associar essa revisão às discussões propostas pela Pedagogia dos Multiletramentos (GNL, [1996] 2021), refletindo sobre como o podcast pode ser utilizado para reforçar o ensino das múltiplas linguagens e culturas. Em seguida, descrevemos e analisamos uma sequência didática relacionada à produção de um podcast presente num material de Língua Portuguesa, mais especificamente, o denominado “Som e letra”, disponibilizado para alunos do sexto ano do Ensino Funda- 94 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 mental, em estabelecimentos particulares de ensino que adotam o material analisado. A partir dessa análise, pretende-se elencar maneiras de trabalhar o podcast como proposta de produção em sala de aula, reforçando suas características e como pode estar alinhado à Pedagogia dos Multiletramentos. Buscamos, assim, refletir sobre as possibilidades de uso do podcast para o ensino de línguas, a título de ilustração de como esse gênero pode ser adaptado aos diferentes contextos escolares. Podcast e multiletramentos O podcast é definido tecnicamente como um arquivo de áudio disponibilizado na internet, que pode ser acessado pelos ouvintes sob demanda, ou seja, quando e onde quiserem. Este arquivo pode conter músicas ou, como mais recentemente tem ocorrido, disponi- bilizar programas sobre tópicos diversos, como cultura pop e notí- cias. O podcast surgiu como tecnologia em 2004 e esteve associado ao formato RSS, um recurso que permite o acesso a uma lista de endereços de arquivos na internet, evitando, assim, a necessidade de transmissão de dados e arquivos que tornavam a conexão lenta e ocupavam mais espaço do servidor (FOSCHINI; TADDEI, 2018). Atualmente, os podcasts são encontrados e distribuídos de formas variadas, e estão presentes em plataformas e aplicativos de streaming. Os episódios são comumente associados aos programas de rádio, por utilizarem-se de recursos como música de fundo, linguagem sonora, aberturas e vinhetas. Contudo, diferenciam-se destes por oferecer aos usuários a liberdade de escolher o conteúdo a ser ouvido e o momento mais oportuno para a transmissão. Com as mudanças nas leis nacionais em relação aos conteúdos a serem ensinados em sala de aula, e a difusão de uma Base Nacio- nal Comum Curricular no Brasil, novas aprendizagens tornam-se 95 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 essenciais para atender a educação na sociedade contemporânea, conforme apontado pelo New London Group (GNL, [1996] 2021) na Pedagogia dos Multiletramentos. A presença das novas tecnologias da informação e comunicação em sala de aula alteram também a dinâmica das aulas, colocando em foco novos gêneros digitais como newsletters, podcasts, etc. Para exemplificar essa tendência, na BNCC, o podcast aparece como parte do ensino de Língua Portuguesa em diversos momentos, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio. Pensando as práticas de linguagem contemporâneas, sugere-se que a ferramenta possa ser utilizada nos eixos da oralidade, bem como parte da refle- xão sobre condições de produção dos textos orais, compreensão e produção de textos orais, e reconhecimento de recursos linguísticos e multissemióticos (BRASIL, 2018). O trabalho com o podcast pode ser perpassado também por todos os campos de atuação, conforme aponta a tabela abaixo. 96 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Tabela 1 - Habilidades da BNCC relacionadas ao podcast Campo de atuação social Habilidade Todos os campos de atuação social (EM13LP17) Elaborar roteiros para a produção de vídeos variados (vlog, videoclipe, videominuto, documentário etc.), apresentações teatrais, narra- tivas multimídia e transmídia, podcasts, playlists comentadas etc., para ampliar as possibilidades de produção de sentidos e engajar-se em práticas autorais e coletivas. Campo das práticas de estudo e pesquisa (EM13LP34) Produzir textos para a divulgação do conhecimento e de resultados de levantamentos e pesquisas – texto monográfico, ensaio, artigo de divulgação científica, verbete de enciclopédia (cola- borativa ou não), infográfico (estático ou animado), relato de experimento, relatório, relatório multimi- diático de campo, reportagem científica, podcast ou vlog científico, apresentações orais, seminários, comunicações em mesas redondas, mapas dinâmi- cos etc. –, considerando o contexto de produção e utilizando os conhecimentos sobre os gêneros de divulgação científica, de forma a engajar-se em pro- cessos significativos de socialização e divulgação do conhecimento. Campo jornalístico midiático (EM13LP45) Analisar, discutir, produzir e socializar, tendo em vista temas e acontecimentos de interesse local ou global, notícias, fotos denúncias, fotorrepor- tagens, reportagens multimidiáticas, documentários, infográficos, podcasts noticiosos, artigos de opinião, críticas da mídia, vlogs de opinião, textos de apresen- tação e apreciação de produções culturais (resenhas, ensaios etc.) e outros gêneros próprios das formas de expressão das culturas juvenis (vlogs e podcasts cul- turais, gameplay etc.), em várias mídias, vivenciando de forma significativa o papel de repórter, analista, crítico, editorialista ou articulista, leitor, vlogueiro e booktuber, entre outros. Campo artístico literário (EM13LP53) Produzir apresentações e comentários apreciativos e críticos sobre livros, filmes, discos, canções, espetáculos de teatro e dança, exposições etc. (resenhas, vlogs e podcasts literários e artísticos, playlists comentadas, fanzines, e-zines etc.). Fonte: Elaboração própria a partir de Brasil (2018). 97 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Neste contexto, a Pedagogia dos Multiletramentos, embasa- mento teórico principal que subsidia as análises e reflexões deste capítulo, torna-se fundamental para a discussão sobre o ensino de línguas quando consideramos as transformações advindas da ascensão e do desenvolvimento da internet, que propiciaram novas formas de comunicação. Novas práticas sociais de leitura e escrita surgiram (cf. Satyro e Mafra, nesta obra), ressaltando que um único letramento não poderia ser capaz de abranger tantos textos, dis- cursos e gêneros multissemióticos que circulamdiariamente pela sociedade. Conforme já apontado no capítulo 1, o impacto crescente das tecnologias da informação e da comunicação nas sociedades evi- dencia que o papel preponderante da escrita e das práticas grafo- cêntricas deve ser questionado, dando espaço a outras maneiras de construir significados, inclusive em sala de aula. A linguagem escrita não é mais suficiente para explicar e compreender os fenômenos sociais e gêneros multimodais compostos de áudios, imagens e ges- tos, pois os sons também constroem sentidos e, por isso, precisam ser também considerados, no âmbito dos objetos de ensino, para a formação de cidadãos letrados que participam ativamente da socie- dade. Deste modo, os meios tecnológicos, por onde muitos desses textos circulam e ganham interlocutores, devem estar presentes nas salas de aula: não apenas por facilitar muitos trabalhos pedagógi- cos, mas também para atender a demanda das novas maneiras de pensar e agir que essas ferramentas oportunizam, em um novo ethos constituído dessas novas mídias e tecnologias (CARDOSO, 2021). Os autores do Manifesto da Pedagogia dos Multiletramentos consideram a importância das múltiplas linguagens na construção de sentidos - visual, linguística, sonora, gestual, espacial -, uma vez que, cada vez mais os significados são construídos multimodalmen- te. As mudanças sociais contemporâneas influenciam diretamente no que deve ser ensinado em sala de aula, pois modificam as lin- 98 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 guagens da vida e alteram significativamente o modo de construção de significado em sociedade (GNL, [1996] 2021). Dessa forma, tanto a Pedagogia dos Multiletramento quanto especialmente a sua prática em ambientes de aprendizagem nos mostram ser imprescindível considerarmos que os textos contem- porâneos se constroem por múltiplas linguagens e estão inseridos em sociedades culturalmente diversas, conforme apontado no capítulo 1. Por isso, o conceito do NLG engloba também questões de multiculturalidade em um mundo globalizado, uma vez que encontramos, à nossa volta, “[...] produções culturais letradas em efetiva circulação social” (CORRÊA; DIAS, 2016, p. 249), negociadas para a construção de sentido de cada designer imerso na interação. Assim, considerando as demandas da sociedade contemporâ- nea para a formação de estudantes e cidadãos multiletrados, bem como a inclusão dos podcasts nos documentos oficiais e em diver- sos âmbitos educacionais como gênero a ser trabalhado, podemos pensar sua utilização em sala de aula, alinhada à Pedagogia dos Multiletramentos para o ensino de línguas. Num primeiro momento, o podcast surge como uma possibi- lidade de o professor produzir conteúdos que poderiam auxiliar os estudantes para além do ambiente escolar e do horário de aula. Conforme apontam Moura e Carvalho (2006), o podcast produzido pelo professor permite que os estudantes escutem o conteúdo da aula onde e quantas vezes quiserem, respeitando os diferentes tempos de aprendizagem dos aprendizes. Por outro lado, há inúmeros benefícios que podem advir de se pensar o trabalho com o podcast do ponto de vista dos alunos, colocando-os numa posição de produtores. Neste sentido, confor- me aponta Freire (2013), é preciso refletir sobre o funcionamento da ferramenta em contextos brasileiros. O podcast, em nosso país, surgiu atrelado, em certa medida, à exposição de temas que ge- 99 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 ralmente eram ignorados pela mídia tradicional, uma vez que a estrutura de produção dos podcasts não demandava altos custos nem equipes volumosas. Embora muitas produções contem com grandes patrocinadores e milhões de inscritos nas redes, o podcast ainda pode estar, em grande medida, associada à ampliação de “vozes costumeiramente ignoradas” (FREIRE, 2013, p. 104), uma vez que a produção e a distribuição são facilmente acessíveis, mesmo àqueles que não possuem grandes recursos técnicos. Para o trabalho na escola, essa característica torna-se funda- mental. Os alunos podem ouvir podcasts de temáticas transversais e encorajar-se a compartilhar opiniões que sejam divergentes. Como produtores, trabalhar com o podcast pode ser uma maneira de ceder o direito à fala para os alunos, donos de valores e posicionamentos diversos (FREIRE, 2013). Alinhada a uma pedagogia dos multiletra- mentos, em especial no que tange à multiculturalidade, esse gênero pode oferecer aos estudantes o contato e o despertar para temas, valores e opiniões que normalmente são suprimidos na sala de aula (FREIRE, 2013), potencializando a fala e a escuta de vozes distintas, o que reforça o caráter multicultural das práticas educativas. Neste sentido, é importante reforçar que o trabalho com o gênero podcast em sala de aula deve ir além da mera reprodução dos conteúdos aprendidos. Os alunos podem, por exemplo, escolher as temáticas que gostariam de tratar, buscar as informações em livros e sites de busca de seu interesse, organizar o roteiro do que vai ser apresentado em áudio, discutir os efeitos sonoros a serem inseridos no programa, para dar o tom de humor ou seriedade pre- tendido, além de outras funções que apresentam oportunidades e potencialidades no desenvolvimento dos alunos. Por meio desses movimentos, e pensando para além da reprodução de um conteúdo dado em sala, é possível fortalecer movimentos de aprendizagem em que os alunos sejam vislumbrados como protagonistas de seus processos. 100 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Delegar aos estudantes a produção de um podcast pode colocá- -los ainda em posição de detentores de conhecimento, valorizando o fato de que suas visões importam e devem ser compartilhadas com o mundo (BAKKE, 2022). A relação dos estudantes com a produção do podcast também é vista positivamente por Cruz (2009), que afir- ma que a ferramenta pode estimular os estudantes a se sentirem motivados com a aprendizagem, uma vez que eles se preocupam e se engajam mais ao ter ciência de que o resultado de sua produção será publicado e ouvido pelos colegas. É importante ressaltar ainda que o trabalho com o podcast pode e deve estar alinhado às culturas de referência dos alunos, que, muitas vezes, acompanham e ouvem programas relacionados a elas, fora do ambiente escolar. Igualmente fundamental é compreender as múltiplas vozes dos aprendizes em sala, colocando os estudantes como produtores, agentes, participantes e cidadãos deste processo de construção de significados, e não meros espectadores passivos (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020). Outro ponto interessante acerca do podcast relaciona-se a pensar o gênero como um trabalho com a oralidade (FREIRE, 2013), atendendo e valorizando a produção de significados multimodais, como assinala o GNL ([1996] 2021). Reconhecendo-se a necessidade de atuar frente ao privilégio que a escrita detém no ensino, o podcast pode operar nesse sentido, incorporando reflexões sobre a fala na criação de significados. Reforçar a oralidade é ainda uma maneira de reconhecer culturas e grupos historicamente negligenciados (BAKKE, 2022). No que tange à multimodalidade, pensada segundo a perspec- tiva dos multiletramentos, o podcast certamente pode conduzir a práticas em sala de aula que despertem nos alunos o olhar para essa questão, ampliando a gama de recursos semióticos por eles utilizados. O gênero por si só é uma maneira de ressaltar outras 101 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 formas de significação para além do escrito, oferecendo a oportu- nidade de discussão crítica sobre as diversas formas de construção de significados orais e sonoros. Dias e Ferreira (2012) defendem o trabalho com podcasts em sala de aula como estratégia para valorizar as experiências de es- crita e leitura de textos multimodais. Segundo essas autoras, essegênero possibilita o acesso e a democratização tanto de “[...] práticas e eventos de letramentos que têm lugar na escola como o universo e a natureza dos textos que nela circulam” (ROJO, 2009, p. 108 apud DIAS; FERREIRA, 2012, p. 2). A partir dessas reflexões, buscamos relacionar a utilização do podcast no ensino de línguas com a perspectiva dos multiletramen- tos. Em seguida, trazemos um exemplo com base em um material didático, ressaltando as potencialidades do exercício proposto e o que não foi efetivamente contemplado, mas poderia ser abordado, a fim de expandir as possibilidades de trabalho com o gênero. Uma proposta de produção de podcasts A unidade didática a ser analisada faz parte do livro denomi- nado SAE Digital, e compõe o sistema de ensino de mesmo nome, sediado na cidade de Curitiba, capital do estado do Paraná. O con- tato com esse material deu-se, num primeiro momento, a partir de sua utilização em sala de aula. Ademais, trata-se de uma empresa presente no mercado editorial que, apesar de não compor o PNLD, atende mais de 800 escolas e 230 mil alunos em todos os estados brasileiros, de acordo com os dados presentes em seu portal oficial. Nas palavras da própria editora, seu trabalho está relacionado ao saber, ao agir e ao evoluir, três palavras cujas letras iniciais (SAE) compõem o nome do conjunto de materiais didáticos. Esses livros atendem alunos e professores da Educação Infantil ao Ensino Médio. 102 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Nos canais on-line oficiais do SAE Digital, é possível encontrar informações acerca do uso da tecnologia nos materiais didáticos ofe- recidos: “Aliar a tecnologia à prática pedagógica é uma ambição das melhores e mais modernas instituições de ensino. (...) As tecnologias educacionais do SAE Digital são totalmente integradas ao material impresso”. A preocupação com os recursos tecnológicos, alinhada às propostas da Base Nacional Comum Curricular, configura a in- clusão de gêneros próprios dos meios digitais, como vlogs, posts e o próprio podcast, nas unidades didáticas presentes nos materiais. A unidade didática analisada neste capítulo foi retirada do material de Língua Portuguesa para os alunos do sexto ano, que deve ser abordado durante as primeiras aulas do segundo bimestre. Estas unidades costumam se organizar sempre da mesma maneira, apresentando um texto, desenvolvendo o conteúdo pretendido e, por fim, apresentando uma proposta de produção textual. A sequência de atividades escolhida para a análise, presente no capítulo 3 do material, é denominada “Som e letra”, e funciona de maneira semelhante à descrita anteriormente. O objetivo do capítulo é analisar o gênero canção ou letra de música e as relações entre letras e fonemas, e, como produção de texto final, elaborar um podcast. Embora sugira a produção do podcast - como veremos mais detalhadamente a seguir - o capítulo se inicia primeiramente com atividades de leitura de canções de diferentes gêneros musicais, para, em seguida, propor interações orais entre os alunos acerca dos diversos estilos de música escutados no Brasil. Por fim, como exercício final, objetiva a produção do podcast. A primeira sequência de atividades propõe uma breve discussão sobre os sons dos instrumentos, como guitarra e bateria. Em seguida, apresenta alguns trechos de canções, e sugere exercícios para que os estudantes possam identificar semelhanças e diferenças nos textos. Trata-se de canções de um gênero popular brasileiro, o sertanejo. Na 103 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 unidade, também há uma breve explicação acerca do gênero textual letra de música. Após essa discussão, encontram-se as perguntas de interpretação das canções apresentadas e três imagens relacionadas a outros gêneros musicais. Por fim, encontra-se uma seção que pede que os estudantes ouçam e criem uma letra de música. Em seguida, inicia-se uma seção denominada “Estudo linguís- tico”. Nela, encontra-se uma apresentação do alfabeto brasileiro, das palavras e dos fonemas. Após a leitura, apresentam-se vinte exercícios relativos a esse conteúdo, sendo alguns deles vinculados a textos e outros apenas de ordem gramatical. A proposta de produção do podcast inicia-se em seguida, após o estudo gramatical de representações de letras e fonemas, e é pro- posto nas duas últimas páginas da unidade. A seção é denominada “Para saber mais”, e é composta por um quadro com uma descrição conceitual e histórica do podcast: “A cada ano há novas tecnologias surgindo, bem como novas formas de comunicar e trabalhar com informações. Uma dessas novas formas é o podcast” (SAE DIGITAL, 2022, p. 18). O texto contextualiza o podcasting no Brasil, a impor- tância de empresas como a Apple na popularização dos programas e na variedade de assuntos e formatos, abordando inclusive os videocasts, aqueles realizados em vídeos. Algumas das informações descritas nessa seção, como, por exemplo, a necessidade de roteiro, pesquisa e interlocução, serão necessárias para a produção final do aluno, proposta na parte seguinte do material. A última seção da unidade chama-se “Produção de texto” e sugere efetivamente a produção do podcast. Trata-se de uma página com um quadro que contém a instrução acerca de como elaborar, de fato, o programa. Nas instruções, pede-se que os alunos se or- ganizem em duplas ou trios e teçam comentários sobre gêneros musicais - assunto trabalhado durante a maior parte da unidade didática. Em seguida, sugerem-se algumas etapas, a fim de orien- 104 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 tar alunos e docentes para a elaboração e gravação do podcast. As diretrizes são breves, mas detalham o passo a passo da preparação e guiam os alunos para: a) definição do gênero musical; b) pesquisa acerca do tema; c) preparação do roteiro contendo apresentação dos integrantes, do tema, das informações exploradas anteriormente, a opinião dos participantes e a finalização; d) gravação (indica-se a realização por meio de aparelho celular), com sugestão de dois minutos de duração e) compartilhamento do áudio com a turma. Além de todas as orientações descritas, o material ainda apresenta um QR Code, disponível aos alunos e professores, que os encaminha para um arquivo com critérios de correção do programa produzido pelos estudantes. A grade é dividida em dois grandes tó- picos, 1) adequação à proposta e 2) conteúdo, com itens que podem ser avaliados de 0 a 2 pontos, englobando a postura dos integrantes durante a gravação do conteúdo apresentado no podcast e retoman- do os guias fornecidos no material didático impresso a respeito da produção do conteúdo. A unidade do livro analisada, embora tenha como foco inicial a discussão do gênero letra de música, apresenta como proposta de produção final a elaboração de um podcast de comentários sobre gêneros musicais, no formato de áudio. Neste sentido, é importante ressaltar que o trabalho com o podcast é acionado para abordar um conteúdo específico, que foi discutido ao longo da unidade didática. Buscamos analisar a proposta de produção com base nos mo- vimentos pedagógicos propostos pela Pedagogia dos Multiletra- mentos (GNL,[1996] 2021): a prática situada, a instrução aberta, o enquadramento crítico e a prática transformada, descritos, a grosso modo, na tabela a seguir: 105 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Tabela 2 - Movimentos pedagógicos Prática situada Aproximação do aluno das práticas sociais trabalhadas, valorizando a experiência. Instrução explícita Compreensão de conceitos e uso de meta- linguagens necessárias para os estudos das práticas sociais experienciadas. Enquadramento crítico Interpretar os contextos social e cultural de Designs de sentido específicos. Prática transformadora Ressignificação do que está sendo aprendidoe aplicação desse trabalho em outros contextos sociais. Fonte: Santos e Tiburtino (2018) Vale lembrar que esses movimentos pedagógicos não precisam ser realizados nesta ou em outra ordem, já que eles podem se cruzar ou complementar em diferentes momentos do trabalho docente. Podemos vislumbrar uma possível ocorrência da prática situada no primeiro momento do capítulo, de maneira breve, ao questionar os alunos sobre os instrumentos que eles tocam ou gostariam de tocar, além de propor discussões sobre gêneros mu- sicais no Brasil. Neste sentido, o movimento favorece que alunos possam adquirir repertório acerca do conteúdo do podcast final, além de permitir que eles conheçam o gênero de texto multimodal que precisarão produzir. Entretanto, falta ao material dedicar um espaço à escuta de diferentes podcasts, seja em sala de aula ou como tarefas propostas para casa. O questionamento acerca dos hábitos dos alunos em relação a podcast também fica a cargo do professor, e não há no material sugestões acerca disso. O trabalho com a interpretação de programas de podcast favorece também a construção de sentidos sobre temas que podem ser da escolha dos alunos (aliado à multiculturalidade), além de permitir uma visão crítica de diferentes áudios acerca do que pode ser adequado ou não a diferentes contextos sociais de uso. 106 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 No segundo movimento, conhecido como instrução explícita, espera-se intervenções a fim de garantir a aprendizagem, com a finalidade de desenvolver uma conceituação do tópico. Neste mo- mento, a metalinguagem é fundamental, consistindo numa análise sistemática do tópico escolhido. Ao longo da unidade analisada, contudo, a metalinguagem e a análise sistemática do conteúdo estão relacionadas ao alfabeto, palavras e fonemas. Assim, podemos dizer que esse movimento não se relaciona diretamente à proposta final de produção do podcast. Por sua vez, no que tange diretamente a esta proposta de produção, nas seções “Para saber mais” e “Produção de Texto” da unidade “Som e letra”, encontramos uma definição de podcast, bem como um texto informativo e orientações com o passo a passo da produção. Especificamente nessa parte, o guia busca instruir o aluno para construção do programa a ser preparado. O terceiro movimento, enquadramento crítico, não se manifes- ta explicitamente na unidade. Os alunos precisam expressar opini- ões acerca dos gêneros musicais escolhidos, mas elas se limitam ao gosto pessoal, aparentemente mais relacionada a uma perspectiva de aproximação com as vivências deles do que como uma construção crítica. Neste sentido, opiniões poderiam se limitar apenas a “gosto” e “não gosto”, não expandindo necessariamente o repertório dos alunos para falar de seus gostos pessoais ou avaliar esteticamente gêneros musicais. Assim, tampouco parece ser o suficiente para proporcionar que os estudantes critiquem construtivamente e ex- pliquem localizações culturais dos conceitos aprendidos, conforme sugere o Manifesto do GNL ([1996] 2021). A prática transformadora pode ser diretamente relacionada ao motivo da aparição do podcast nesta unidade temática. O trabalho com os programas, assim, seria uma maneira de proporcionar aos alunos uma forma de ressignificar o conteúdo aprendido acerca dos gêneros musicais, a partir da reprodução de procedimentos para transformar planos em prática e empregar o conhecimento 107 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 desenvolvido. Nesse sentido, o podcast seria uma forma de os alunos comentarem sobre gêneros musicais e letras de músicas. Contudo, a produção, em sala de aula, de um podcast não implica, necessaria- mente, que o conteúdo aprendido será aplicado em outros contex- tos sociais. Na verdade, embora se expresse na unidade didática a instrução para que haja compartilhamento dos podcasts produzidos com a turma, essa mobilização não coincide com a função social do podcast de informar ou falar para um público mais amplo. Podemos mencionar outros desafios relacionados à realização dessas atividades. Pinto (2009) ressalta que [a]pesar de os textos multimodais, atualmente, estarem presentes em todo lugar, sejam em outdoors, na TV, na internet, nos jornais e não raro, em livros didáticos, o trabalho pedagógico com estes textos, no ambiente escolar ainda é incipiente, uma vez que as estratégias de leitura contemplam o conceito tradicional de texto linear e a imagem figura apenas como suporte ilus- trativo do texto escrito sendo aceita de forma natural, como a representação simples da realidade sem inter- pretações e/ou questionamentos (PINTO, 2009, p. 255). O trabalho com esses textos multimodais pode se configurar como uma adversidade ao professor, que pode não encontrar sub- sídios para análise de um conteúdo não escrito. Por isso, o manual ofertado ao professor precisa oferecer materiais teóricos que con- tribuam para o trabalho com o podcast, tanto no que diz respeito à análise, quanto no que concerne à produção dos programas. Neste sentido, pensando os estudos dos letramentos, e as cinco categorias de análise do design, apresentadas em Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020), estas podem se constituir como um guia para a análise e confecção das peças. 108 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Tabela 3 - categorias de análise do design Referência A que os significados se referem? Diálogo Como os significados conectam as pessoas que estão inte- ragindo? Estrutura Como os significados em geral se mantém juntos? Situação Em que contexto os significados estão localizados? Intenção A que propósitos e interesses esses significados estão desti- nados a servir? Fonte: Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) Aqui, optamos por tratar o podcast como uma proposta de pro- dução textual, assim como o fez a unidade didática trabalhada em questão. Por isso, podemos relacionar o podcast com uma maneira de se construir significados orais e sonoros. Ao adotar as categorias de análise do design, buscamos descrever os significados a fim de pensar sobre eles. Conforme apontado na tabela 2, ao pensar a referência, Kalant- zis, Cope e Pinheiro (2020) ressaltam a reflexão a partir das carac- terísticas distintivas da fala e dos sons (ritmo, entonação, pausa e tom), bem como as referências em relação ao tempo, ao lugar e às coisas. Na produção desses significados, é importante atentar-se ao andamento e ao ritmo, que imprimem certos e diferentes signi- ficados. Os áudios a serem utilizados durante a gravação também são essenciais, caso se pense em incluir sons não necessariamente relacionados à fala, como uma buzina ou o som de pássaros que, por sua vez, também estão presentes por certa intenção. Neste sentido, pensar a referência na construção do significado é fundamental. Apresentar o som de uma buzina, por exemplo, seguidamente a uma fala séria, o conjunto pode soar como um alerta, enquanto que a buzina, seguida de uma brincadeira, poderia criar um efeito de humor. 109 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 O diálogo, por sua vez, configura as conexões estabelecidas entre os participantes que interagem. Neste sentido, pode-se atentar às interações existentes entre os apresentadores do podcast, bem como a troca de turnos entre eles, interrupções e hesitações. Em entrevistas, por exemplo, é comum que um dos interlocutores faça perguntas, estabelecendo uma relação entres os falantes, que pode ou não se dar de uma maneira hierárquica. A proposta da unidade didática sugere apenas que os alunos entrevistem ou leiam trechos sobre os comentários do gênero musical. Além disso, há ainda a re- lação entre os apresentadores do podcast e o ouvinte, que, embora não se estabeleça de maneira síncrona, deve influenciar nas decisões de produção do episódio. A conexão com o ouvinte, assim,pode se dar a partir de perguntas retóricas, ou da repetição de informações ao longo da fala, ou mesmo a partir de uma interlocução direta. Em seguida, podemos refletir sobre a estrutura, compreendendo a coesão entre os significados, ou seja, a maneira pela qual eles se organizam conjuntamente. A pausa e a altura da voz, por exemplo, podem contribuir para criar um cenário informativo em um podcast. Ao descrever situações, é importante que a voz seja clara e pausa- da, sem despejar necessariamente diversas informações ao mesmo tempo. Neste sentido, podemos ainda pensar sobre a completude ou incompletude da peça sonora como um todo, refletindo sobre a abertura e o término do episódio, a música de fundo, composição de vinhetas e outros sons que se combinam para criar uma sequ- ência. No caso sugerido na unidade didática, a título de ilustração, os estudantes são convidados a comentar um gênero musical. Para isso, incluir trechos ou músicas desse gênero poderia ser essencial na produção do podcast. Pensando em termos da situação, devemos verificar inicial- mente como os significados orais e sonoros são enquadrados pelo contexto do podcast. As possibilidades são diversas e podem ser desde um diálogo entre duas pessoas, uma exposição oral única de 110 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 uma pessoa ou uma discussão entre um grupo de pessoas. Neste sentido, é importante destacar, ademais, que os podcasts são geral- mente produzidos a partir das gravações de áudio, e, portanto, são gravados e transmitidos em outro local. O roteiro ou a sua ausência podem afetar diretamente a situação desses significados. Espera- -se que as falas sejam espontâneas ou lidas, mas que funcionem de maneira harmônica com a proposta. A unidade didática sugere aos alunos que criem um roteiro antes da gravação. Esta pode ser ainda uma oportunidade de reflexão sobre a oralidade e as opções de pa- lavras e expressões escolhidas para falar sobre a temática. Por fim, é possível refletir ainda sobre o contexto de gravação do episódio, e acerca de como certas interferências poderiam influenciar, como, por exemplo, no caso da gravação do episódio ocorrer na escola, onde seria interessante reservar um ambiente silencioso e sem ruídos. A intencionalidade, por sua vez, relaciona-se aos propósitos e interesses vinculados aos significados criados. Num podcast de notícias, por exemplo, pode ser que a fala pausada e uma atenção maior ao roteiro sejam essenciais para imprimir um tom mais sério, a fim de convencer o ouvinte da integridade da informação. Contu- do, em podcasts de entrevista, é comum a presença de risadas, bem como expressões características do dia a dia, que imprimem um tom informal e leve aos ouvintes. No exemplo do programa a ser produzido na unidade didática, a intenção poderia estar relacionada ao interesse dos estudantes em convencer ou mostrar aos ouvintes um determinado gênero musical, o que determinaria as escolhas em relação aos significados criados. A partir dessa breve exposição, espera-se oferecer aos docentes algumas possibilidades de reflexão acerca de como o podcast pode ser trabalhado em sala de aula. Há ainda outros desafios com que o docente pode se deparar, como, por exemplo, a falta de ferramentas para produção, gravação e edição do áudio do programa produzido pelos alunos. Neste sentido, podemos pensar que os podcasts em si 111 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 mobilizam uma série de recursos técnicos que não costumam ser discutidos em sala, como a gravação, edição e manipulação de áudio. Logo, não seria condizente esperar que os estudantes realizassem uma superprodução sonora. Celulares costumam ser suficientes para a gravação, e, caso haja o interesse em se trabalhar com as edições sonoras, alguns softwares de uso relativamente simples podem ser acionados, tanto para celulares quanto computadores. Em meio aos desafios, o professor não deve abandonar o tra- balho com os podcasts que, além de estarem presentes na BNCC, também contribuem para a formação de cidadãos que participam ativamente da sociedade e podem colaborar nos contextos sociais em que estão inseridos. O ponto essencial para a reflexão acerca da inclusão desse novo gênero em sala não pode estar desconectado de sua intencionalidade pedagógica. Por isso, devemos nos perguntar, qual a finalidade do uso da ferramenta em sala? O que esperamos dos alunos ao solicitar o podcast? Cumprir um cronograma e aten- der aos requisitos do trabalho com as novas tecnologias digitais da informação e comunicação ou oferecer aos alunos possibilidades de reflexão com base em suas culturas, ressaltando a importância de suas vozes e protagonismo em sala de aula? Acreditamos nesta segunda potencialidade e, alinhados com a pedagogia dos multi- letramentos, os professores podem utilizar o podcast como uma maneira de pensar práticas que sejam transformadoras. Considerações finais Os podcasts ganharam espaço entre os diversos ouvintes e na própria sala de aula ao longo dos anos. Buscamos, neste capítulo, evidenciar a definição teórica da ferramenta e maneiras pelas quais ela pode ser mobilizada no ensino de línguas, em especial, alinhando-se à multiplicidade de linguagens e às múltiplas culturas. No primeiro caso, é importante refletir sobre como os significados 112 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 sonoros e orais são construídos, colocando os alunos numa posição de produtores de significados. Além disso, esse gênero pode oferecer aos estudantes o contato com e o despertar para temas, valores e opiniões que normalmente são suprimidos da sala de aula (FREIRE, 2013), potencializando a fala e a escuta de vozes distintas, o que reforça o caráter multicultural das práticas educativas. É de extrema relevância ainda que os podcasts produzidos sejam pensados para o compartilhamento, a fim de se evitar que o trabalho seja apenas feito de maneira controlada, dentro da sala de aula. Os podcasts oferecem a oportunidade de aproximar os alunos de seus colegas de outros anos, da administração da escola e da comunida- de, criando um canal de comunicação real entre os agentes, e essa potencialidade não deve ser desconsiderada. No exemplo de material didático escolhido para a análise neste capítulo, vimos que esse poder do podcast não é favorecido. O material, utilizado em redes particulares de ensino, ao ser obser- vado pelas lentes da Pedagogia dos Multiletramentos, apresenta uma proposta de produção do podcast que proporciona uma breve oportunidade de contato dos estudantes com seus interesses, mais especificamente, seus interesses sobre gêneros musicais. Contudo, essa possibilidade é ainda limitada frente aos movimentos que po- dem ser trabalhados em sala de aula, pensando-se numa perspectiva dos multiletramentos. Por isso, buscamos mostrar iniciativas sobre como o podcast poderia ser mobilizado com base nos movimentos pedagógicos, além de estratégias de se pensar a produção textual tendo em vista os significados sonoros e orais presentes em um podcast. 113 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Referências BAKKE, A. 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Revista Con(Textos) Linguísticos, Vitória, v. 12, n. 23, p. 163-182, 2018. 115 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 HOGWARTS GAMES, UM JOGO AMADOR NO WHATSAPP, SOB O VIÉS DOS MULTILETRAMENTOS: POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES PARA A CULTURA ESCOLAR1 Eliane Fernandes Azzari - PUC-Campinas Bruna Eduarda Ignácio - UNIFESP Cibercultura e eventos de letramentos em práticas do universo digital Não é de hoje que se fala sobre as diversas possibilidades trazidas pelas inovações tecnológicas, que propiciam a interação e a atuação ativa dos usuários das plataformas digitais. De caráter social, esses ambientes, que agrupam indivíduos que se identificam por interesses compartilhados, estabelecem a criação de redes. Buscando apoio nas proposições de Recuero (2019), optamos por adotar os conceitos de “redes sociais” e “mídias digitais” como aspectos distintos, por entender que “redes sociais” diz respeito às conexões estabelecidas entre grupos/pessoas que, recorrendo aos tempos-espaços digitais, ocupam aplicativos e sites (as mídias). Assim, entendemos que diferentes usuários estabelecem redes sociais em/por mídias digitais. Contextualizando suas práticas na cibercultura, integrantes dessas redes se (re)apropriam de tecnolo- 1 Agradecemos ao CNPQ e à FAPESP pelo financiamento da pesquisa. 116 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 gias digitais não apenas para o consumo de conteúdos disponíveis, mas também para o desenvolvimento de novas funcionalidades (LEMOS, 2008, p. 48-49), re-imaginando usos e aplicações possíveis. Esse é um processo que envolve letramentos diversos, dentre eles os digitais, como já sugeriam os estudos do Grupo de Nova Londres (GNL), em seu manifesto sobre a Pedagogia dos Multiletramentos (2021) – texto que já está amplamente referenciado nos demais capítulos deste livro. Dentre as diversas manifestações socioculturais decorrentes das práticas centradas no ciberespaço, interessa-nos aqui destacar produções resultantes do engajamento de sujeitos contemporâneos envolvidos na cultura participativa. Nesse contexto, participan- tes, ainda que “não-especialistas”, encontram possibilidades para criar, desenvolver e compartilhar suas produções – fruto de sua aproximação em redes sociais marcadas por interesses e aprecia- ções compartilhados (JENKINS, 2006, p. 3). No âmbito da cultura participativa, inúmeras práticas letradas (re)configuram as mídias e sua linguagem. Encontrando subsídios nos estudos do Círculo de Bakhtin, en- tendemos a linguagem como prática social, pois “[...] é na relação entre linguagem e mundo que se dá a constituição de sentidos” (VO- LÓCHINOV, 2018, p. 31). Assim, ao estudar práticas de letramentos que se desenvolvem a partir do envolvimento dos sujeitos na cultura participativa, com apoio nos recursos e ambientes digitais, observa- mos que tais práticas se valem da integração de diferentes meios e modos para a produção de sentidos. Portanto, trata-se da emergência de uma cultura que opera de maneira ampliada, “[...] por diversos meios de comunicação e, também, por diversificadas – e algumas novas – formas de interatividade” (MONTE MÓR, 2017, p. 274). Dentre esses aspectos, há o emprego do hipertexto e da multi- modalidade como recursos ampliados em práticas de letramentos 117 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 situadas em ambientes digitais. Como esclarece Lemke (2010, p. 471-472), hipertextos agregam conjuntos de informações outras a que se tem acesso através de hiperlinks que mobilizam usuários para diferentes ambientes, dispostos no ciberespaço, rompendo com a linearidade e acionando múltiplas possibilidades de leitura. Tais recursos têm sido largamente explorados em práticas socioculturais oriundas de comunidades de fãs, caracterizadas como espaços que congregam sujeitos que, aproximados por seus interesses comparti- lhados, comentam, discutem e produzem conteúdos acerca de suas apreciações (BLACK, 2005). Imersos na cultura participativa e empenhados em práticas multiletradas, em interfaces com as tecnologias digitais, as comu- nidades de fãs fomentam culturas de aprendizagem outras, que envolvem os sujeitos em novas dimensões, nas quais a construção de sentidos advém de seu envolvimento na discussão das temáti- cas de seus interesses, no convívio com outros membros de suas comunidades. Os designs e os recursos disponíveis nos ambientes digitais são então mobilizados em redesigns (KALANTZIS; COPE; PINHEI- RO, 2020), criados por integrantes das comunidades de fãs. Esses conceitos foram ampla e detalhadamente explicitados por Mafra e Barros, no capítulo 1 deste livro. Dando asas à imaginação, esses novos designs configuram-se, por exemplo, na produção de bricola- gens e, também, na criação de jogos colaborativos – como é o caso dos Massively Multiplayer Online Role Playing Games (MMORPGs), desenvolvidos por “produsuários” amadores. Nessa modalidade, (que também existe sem a mediação de mídias digitais), os jogadores desenvolvem narrativas de faz-de-conta, simulando contextos e situações com personagens das histórias apreciadas. A virada na difusão de MMORPGs advindos da cultura par- ticipativa surge exatamente a partir da expansão de redes sociais 118 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 que, apoiadas em mídias digitais e na ubiquidade2 das interações via internet, agregam inúmeros sujeitos engajados na criação e na manutenção de fóruns e sites de comunidades de fãs. A propagação de redes sociais em mídias digitais tais como Facebook e WhatsApp tornou a criação e a participação em RPGs on-line mais intensa, uma vez que a possibilidade de criação de grupos favoreceu a socialização entre indivíduos de uma mesma comunidade de fãs. A utilização de recursos de postagens, edição e interação entreos usuários dessas mídias permitiu que esses jogos assumissem formas outras, tais como os jogos de questionários (quizzes), e aqueles que envolvem a criação de cenas. A passagem do tempo e a evolução no desenvolvimento das mídias digitais permitiu a criação de plataformas como o PbF (Play by fórum) e o Taulukko3, que simulam o antigo jogo de tabuleiro no ciberespaço. Taulukko, por exemplo, é uma plataforma que oferece chat, rolagem de dados e suporte para a “ficha de personagens”, para a realização das partidas. Diante do exposto, notamos que redes sociais firmadas via Facebook têm atraído uma legião de usuários que se reúnem em comunidades de fãs. Nesses espaços, participantes passaram a di- vulgar hiperlinks que redirecionam os fãs para outras redes sociais, apoiadas em mídias tais quais o WhatsApp, realocando-os em grupos destinados à criação de jogos amadores colaborativos. Assim, utilizando-se majoritariamente da linguagem verbal, esses fãs têm desenvolvido jogos que passaram a ser conhecidos como “RPGs de WhatsApp”, plataforma digital usada como base para o desenvolvimento e para a aplicação de partidas. Nesse contexto, os jogadores trabalham em colaboração para simular narrativas já 2 Neste contexto, levantamos o questionamento acerca da ubiquidade tecnológica, uma vez que nem toda interação acontece de forma simultânea, devido à rotina de cada usuário e questões relacionadas à dificuldade de acesso e disponibilidade de aparelhos eletrônicos. Fatores que são comuns na sociedade brasileira. 3 Disponível em: https://vol2.taulukko.com.br. Acesso em 30 nov. 2022. https://vol2.taulukko.com.br 119 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 existentes, das quais se apropriam, ou para criar novas histórias a partir dessas narrativas. Nesse processo criativo, os jogadores mobilizam múltiplos letramentos, compartilham diferentes tipos de conhecimento (referente às histórias, aos recursos de estilo e de meios para a escrita de narrativas, aos usos das mídias digitais etc.), de modo que transformam esses ambientes em espaços informais de aprendizagem (GEE, 2004). Hogwarts Games: espaços de socialização e de aprendiza- gem informal a partir da mimetização de práticas escolares Nossa discussão está pautada num recorte de dados extensa- mente descritos e analisados em pesquisa desenvolvida por Ignácio (2022), que investigou um jogo construído nos moldes descritos anteriormente. Hogwarts Games é um tipo de RPG de WhatsApp, desenvolvido de modo amador – e com base no trabalho colaborativo – por fãs das histórias de Harry Potter, ficção-fantasia escrita por J. K. Ro- wling. Trata-se de uma saga que narra as aventuras de um menino órfão que se descobre “bruxo” aos 11 anos de idade e que, por isso, é enviado à “Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts”. A narrativa, apresentada em sete livros, aborda aventuras vividas por Potter ao lado dos seus melhores amigos, ao longo de sua trajetória escolar. Os estudantes que frequentam Hogwarts (e que nela habitam) são agrupados na escola com base em critérios pré-determinados pelos fundadores da instituição, que apontam marcas da personalidade dos alunos. Assim, quando um jovem ingressa nessa escola, verifica- -se logo de início seu “pertencimento” a uma das seguintes casas ou “comunais”: Grifinória, Lufa-Lufa, Sonserina e Corvinal. Neste texto, com o intuito de apresentarmos nossa discussão, vamos nos restringir apenas a alguns detalhes dessa narrativa 120 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 literária que se fazem importante para o entendimento do funcio- namento de Hogwarts Games. Geralmente, a trajetória de um fã de Harry Potter, para se tornar um jogador de Hogwarts Games, segue o seguinte percurso: aprecia- dores da saga procuram ingressar em grupos/páginas/comunidades públicos e/ou privados, em que se formam redes sociais na platafor- ma Facebook, por exemplo. Nesses espaços, pessoas interessadas em organizar o RPG Hogwarts Games convidam outros participantes e compartilham links que redirecionam os interessados para grupos criados na mídia WhatsApp. A partir de um grande grupo geral, são então criados outros grupos e subgrupos que irão organizar a distribuição dos jogadores, os procedimentos e, também, acolher as partidas. Apropriando-se de elementos constitutivos da obra de fantasia inglesa, Hogwarts Games mimetiza aspectos fundantes do enredo da ficção. Por exemplo, nesse RPG de WhatsApp, há dois “torneios”, nomeados por Priori Incantatem e Meteolonjix, nos quais são dis- postas 25 atividades diferenciadas. Em cada atividade realizada, os jogadores acumulam pontos para as suas “Casas”, de modo que aquela que obtiver mais pontos durante o torneio ganhará a “Taça das Casas” – representado por um emoji que é adicionado ao título do grupo no WhatsApp. O fluxograma representado em imagem na Fig.1 resume o pro- cesso de entrada dos participantes em Hogwarts Game, após terem acessado o link disponibilizado pelos organizadores (proponentes) do jogo, nas redes sociais em outras mídias digitais. 121 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Figura 1 – Fluxograma do processo de admissão em Hogwarts Games Fonte: Captura de imagem de Ignácio (2022) Dentre as etapas do processo de admissão e inserção dos participantes no jogo, enfatizamos o “Envio do pdf com as regras e atividades”. Como é esperado de um jogo, Hogwarts Games está organizado em torno de regras criadas pelos organizadores/admi- nistradores de forma colaborativa. Neste caso, por se tratar de um agrupamento de participantes em redes sociais, as regras tratam 122 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 tanto dos modos e parâmetros esperados para a socialização entre os participantes, quanto das ações referentes ao jogo, propriamente. Chama a nossa atenção o fato de que, apesar de se tratar de um evento situado no âmbito das tecnologias digitais em ambiente síncrono, o que poderia favorecer o uso da multimodalidade, ini- cialmente, as regras são elaboradas em formato de mensagem de texto exclusivamente verbal. A nosso ver, isso aponta o privilégio da escrita condicionada pela mente tipográfica (MONTE MÓR, 2017, p. 271-272). No decorrer do jogo, à medida que se faz necessário, outras regras e atividades vão sendo compiladas pelos administradores em um arquivo de formato PDF compartilhado com as equipes. Essa prática, que remete à valorização do texto verbal, típico da sociedade da escrita, demonstra também a mimetização de práticas escolarizadas. Dentre as regras, há a exigência de atentar- -se à escrita de respostas iniciadas com letra maiúscula; ao uso de aspas em citações diretas e, espantosamente, a requisição para que os jogadores formatem determinadas “respostas” às atividades dos torneios conforme as instruções de estilo da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) – uma exigência em partidas que envolvem produções textuais como tarefa para a pontuação (por exemplo, em atividades destinadas a testar os conhecimentos dos participantes acerca do enredo da saga de Potter). Dentre essas regras, denominadas “Lei do Ministério da Magia”, destacamos a de número 9, que constitui o jogo: 9° Lei - As respostas devem seguir grafia, coesão e coerência, gramática e pontuação da ordem vigente. Nas respostas, não são aceitas abreviações de nenhum tipo. Note-se que, embora o desenvolvimento do jogo se dê em um ambiente digital, são ali replicadas regras já instituídas em 123 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 fazeres escolares, tais como a exigência do uso da norma padrão vigente da Língua Portuguesa. Desse modo, assim como acontece na educação formal, em que os alunos são penalizados se come- terem “erros” em tarefas escritas, as equipes (“Casas”) perdem pontos caso as regrasgramaticais e de estilo não sejam seguidas na escrita das atividades. O apego às práticas escolarizadas expõe um embate entre a “normatização” e a liberdade na elaboração de regras para o jogo, já que se trata de uma atividade lúdica, situada na esfera do entretenimento. Ancorada em uma plataforma digital destinada à comunicação interpessoal, esperar-se-ia que, em tal atividade, preponderassem características tais como a informalidade nas práticas linguageiras e a descontração, contextos em que o uso de gírias, abreviações e coloquialidade são mais usuais. Portanto, é possível observar que, conquanto se trate de uma prática social que redesenha os usos de uma mídia digital (What- sApp) destinada primeiramente às interações comunicativas – res- significando seus usos para torná-la plataforma de um jogo amador colaborativo –, a elaboração de Hogwarts Games está aprisionada aos fazeres escolares que privilegiam eventos de letramentos gra- focêntricos e lineares. Podemos inferir que tal aprisionamento seja resultante do fato de que a própria narrativa do texto de partida que dá vida à Hogwarts Games (i.e., as histórias de Harry Potter) já esteja atrelada à escola e a seus funcionamentos. Porém, isso não minimiza nosso espanto diante do fato de que se trata de um jogo em que, por livre e espon- tânea vontade, os participantes se voluntariam a encarar tarefas em que há bastante escrita formal, ao ponto de serem submetidos à “tirania” de um conjunto de normas como a ABNT. Soma-se a isso o fato de que, em termos de desenho de interface, WhatsApp é uma mídia digital que não favorece os usuários para a escrita de textos 124 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 longos e formais – até mesmo porque é possível imaginar que esse não era um dos usos previstos por seus desenvolvedores. Além disso, como aponta a pesquisa desenvolvida por Ignácio (2022), o perfil dos participantes do jogo é majoritariamente cons- tituído por jovens e adolescentes, reconhecidamente um público que tende a clamar pela liberdade de regras e normas tanto nas interações discursivas do cotidiano quanto nas práticas escolares. Caminhando na contramão dessa percepção, o conjunto de regras que regulamentam Hogwarts Games resulta de acordos entre os próprios jogadores, que o definem em reuniões semestrais, fazen- do reajustes de acordo com os acontecimentos do jogo e com as necessidades do grupo. Nesse sentido, recorrendo ao que sugerem Alves e Rojo (2020, p. 160), percebemos que a legitimação e a aceitação das normas estão conectadas ao fato de que elas foram construídas à maneira colaborativa pelos sujeitos participantes dessa prática social, o que lhes permite reconhecerem a si mesmos em tais regras. Outro aspecto que merece nossa atenção em Hogwarts Games é a atividade intitulada “Correio-Coruja”, também conhecida apenas como “Coruja” ou “Tarefa”. Cabe frisar que o nome da atividade diz respeito ao sistema de envio e recebimento de cartas e pacotes do “mundo bruxo”, o que está relacionado à narrativa do texto de partida (ficção de Rowling) e às práticas realizadas nessa atividade no jogo. Resumidamente, trata-se de uma produção textual colabo- rativa, em que os jogadores de cada “Casa” devem produzir um texto que cumpra todos os requisitos solicitados pelos administradores/ aplicadores, que englobam a contextualização de uma história e até mesmo uma quantidade mínima de palavras, já que o objetivo da atividade é a criação de uma narrativa. Nessa atividade de Hogwarts Games, os jogadores têm liberdade criativa para a construção de cenas, cenários, situações e eventos, que podem incluir disciplinas 125 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 escolares, modalidades esportivas ou outros, a partir do que lhes é solicitado e enviado pelos administradores do jogo, como contexto de produção. Nessa atividade, a pontuação máxima a ser atingida é 100 pontos. Entretanto, para a atribuição da pontuação há critérios de avaliação, tais quais: criatividade e desenvolvimento, que equivalem a 30 pontos; cumprimento dos requisitos, que equivale a 40 pontos; ortografia, equivalente a 10 pontos e coesão e coerência, equivalente a 20 pontos. Neste caso, diante dos diversos recursos disponibilizados pelas tecnologias digitais, há a possibilidade de os participantes in- tegrarem as diversas linguagens, não se restringindo apenas ao texto verbal, podendo criar histórias ricas na multimodalidade, como Monte Mór (2017, p.276) sugere que deva acontecer nas práticas do digital. Então, no “Coruja”, os jogadores trocam o envio das produções textuais em forma de mensagem, pela compilação de imagens, links e textos verbais em arquivos de formato PDF. Também nessa modalidade, os administradores do jogo preferem a elaboração da atividade de acordo com a formatação ABNT. Diante desse cenário, os próprios jogadores já sabem que, ao “brincar” de ‘Correio-coruja’, ainda que decidam recorrer à multi- modalidade, ao preparem um texto verbal, a retomada da ABNT é necessária, como se vê na captura de tela com imagem da conversa entre jogadores, representada na Figura 2. Figura 2 – Captura de tela de mensagem avulsa enviada por participante do jogo. Fonte: arquivo de imagem do banco de dados de Ignácio (2022) 126 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Ao dizer “Hoje tem coruja tbm” e “E vamos de ler ABNT”, o/a jogador/a entende que é necessário reler o documento da ABNT, compartilhado pelos próprios membros da comunidade, no intuito de ajudá-los na realização da atividade. Embora nem sempre todas as normas sejam seguidas (o que ocasiona a perda de pontos), há uma tentativa dos jogadores em formatar os textos seguindo o documento normativo. Um exemplo pode ser visto na imagem que ilustra a Figura 3. Figura 3 – Captura de tela do pdf enviado como atividade dos jogadores da ‘Casa’ Grifinória Fonte: arquivo de imagem do banco de dados de Ignácio (2022). 127 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Na partida referenciada pela imagem da Fig. 3, em específico, os jogadores deveriam criar um “centro comercial bruxo”, mimetizando o elemento presente na história de Harry Potter (o “Beco Diagonal”). Dessa forma, era preciso: descrever a localização, a criação do centro e algumas lojas existentes, indicando suas principais características. Podemos notar que a atividade entregue pelos jogadores, mem- bros da “Casa Grifinória”, utiliza algumas das normas de formatação apresentadas na ABNT, tais como a fonte, o tamanho e o espaça- mento entre linhas. Além disso, foi utilizado o recurso de notas de rodapé, a fim de explicar conceitos que poderiam ser desconhecidos pelos interlocutores. Ademais, a narrativa integra texto verbal e imagético, visando enriquecer com detalhes visuais a constituição de sentidos acerca do “centro comercial” que foi criado. Aprendizagem em ambientes informais e a pedagogia dos multiletramentos Como é possível notar, a partir da mobilização de affordances4 (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020) ou propiciamentos, dispo- nibilizadas em/por mídias digitais tais quais o WhatsApp, usuários amadores imersos na cultura participativa encontram meios e modos para diversificar expressões culturais e, nesse processo, ge- ram espaços em que se fomenta o desenvolvimento de habilidades antes não exploradas (JENKINS, 2006, p. 2). A esse respeito, Monte Mór (2017, p. 278) destaca que, na “sociedade digital” ampliam-se as possibilidades para a criação de remixes, bricolagens e edições. Além disso, o engajamento em práticas situadas no ciberespaço também pode propiciar o desenvolvimento de formas outras de 4 As affordances são propiciamentos peculiares dos espaços digitais que possibilitam novas abordagens para o trabalho educacional, sendo elas: aprendizagem ubíqua; aprendizagem ativa; sentidosmultimodais; feedback recursivo; inteligência colaborativa; metacognição e aprendizagem diferenciada (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020). 128 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 processamento de dados e de informações que estimulam processos contínuos de aprendizagem que mobilizam letramentos. De acordo com Lemke (2010, p. 456), letramentos são “[...] um conjunto de práticas sociais interdependentes que interligam pessoas, objetos midiáticos e estratégias de construção de signifi- cado”. Assim, os sentidos produzidos em eventos de letramentos tanto atuam na manutenção de saberes já estabelecidos quanto podem se tornar instâncias transformativas na sociedade. Trata-se de competências culturais que, para a (re)construção de sentidos acionam múltiplas linguagens (verbal, imagética, sonora, audiovi- sual, corporal etc.). Doutra parte, Gee (2008, p. 196) assegura que o processo de ensino-aprendizagem se torna mais fácil quando “[...] os alunos estão adquirindo-os como parte de seus próprios objetivos e ob- jetivos baseados em atividades - quando fazem parte do ‘jogo’, o aluno deseja jogar”. Defendemos essa ideia, uma vez que é notável o engajamento das crianças e adolescentes nessas práticas culturais populares, que integram habilidades cognitivas e emocionais. As marcas de escolarização que permeiam as atividades no jogo Hogwarts Games e os recursos mobilizados pelos participantes denotam a mobilização de letramentos calcados na colaboração, na interação e na socialização, que são acolhidas e fomentadas a partir da criação de redes sociais em mídias digitais, que se configuram como espaços de afinidades (GEE, 2004). E, como foi possível notar, participar de Hogwarts Games implica envolver-se na construção de conhecimentos em espaços informais de aprendizagem. Entretanto, ao vermos o engajamento dos sujeitos nessas práti- cas em contrapartida ao que se é notado nas escolas, questionamo- -nos acerca da motivação para essas produções textuais. Nesse sentido, tornou-se nítido que o trabalho com temáticas de interesse e conteúdos que se relacionam com os gostos dos participantes é a 129 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 força motriz da agência e da participação ativa nessas atividades, re- afirmando o que Monte Mór (2017, p. 9) esclarece acerca dos desejos das juventudes em verem seus interesses conectados com a escola. Assim, em seu conjunto, o RPG de WhatsApp Hogwarts Games se consagra tanto como produto quanto produtor de uma cultura de aprendizagem outra, que demonstra a necessidade de atualização das práticas desenvolvidas na escola, a fim de se criar conexões com os anseios dos alunos, de modo que se possa proporcionar uma aprendizagem significativa através da compreensão situada dos sujeitos, como já ocorre em práticas socioculturais populares. Desse modo, ao focalizarmos o ciberespaço a partir de seus aspectos sociais e das oportunidades de participação que ali podem surgir, asseguramos que os jogos digitais calcados em recursos de imersão nas narrativas podem fomentar abordagens para que, no ambiente escolar, a educação linguística possa ser pensada a par- tir de um viés situado e genuinamente mais significativo para os estudantes. Se os jovens se dispõem a ler e a escrever tanto e com tanta regra e disciplina formalista aplicadas por vontade própria fora da escola, o que será que a docência tem a aprender com essas práticas não-escolarizadas a fim de que se possa mobilizar tamanho interesse também dentro do contexto educacional formal? Considerações finais De nosso ponto de vista, precisamos reconhecer que o conhe- cimento colaborativo que é produzido em ambientes informais, tais como o dos jogos digitais, é indicativo suficiente da necessidade de (re)visão das já consolidadas formas de ensinar e de aprender línguas/linguagem na escola. 130 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Estudantes são sujeitos sociais, ativos e participativos, que tanto afetam quanto são afetados pelas tecnologias que são mobi- lizadas nos diferentes eventos de letramentos em que se engajam, diariamente. Neste trabalho, entendemos que as práticas que observamos em Hogwarts Games tanto reproduzem fazeres típicos da educação escolar quanto podem auxiliar a (re)pensar esses fazeres. Para tan- to, é preciso empregar esforços na adoção de uma perspectiva dos letramentos que, reconhecendo o caráter participativo e o esforço colaborativo empenhados em espaços de imersão e simulação, valorize o fato de que a produção do conhecimento acontece de forma situada e verdadeiramente significativa para aqueles que ali se encontram. As discussões travadas ao longo dos capítulos apresentados nesta coletânea reforçam diferentes aspectos (re)correntes nas pro- postas pautadas na pedagogia dos multiletramentos. Da diversidade e do papel social da educação linguística criticamente orientada para ações antirracistas ao conhecimento gerado no emprego de ações educativas inspiradas em eventos de letramentos advindos da cultura participativa, são muitas as implicações e inferências decorrentes dessa visada educativa. Mas, é preciso revisitar as considerações iniciais que motivaram noções como “new learning”, “design e redesign”. É preciso retomar as origens dessas discussões, os diferentes plurais nos “multi” e recapitular as propostas e seus propósitos, a fim de atualizar os sentidos que, a partir delas, produzimos. 131 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Referências ALVES, M. P. C.; ROJO, R. H. R. Comunidades de leitores: cultura juvenil e os atos de descolecionar. Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 145-162, 2020. BLACK, R. W. Access and affiliation: the literacy and composition practices of English Language learners in an online fanfiction community. Journal of Adolescent & Adult Literacy, [S. l.], v. 49, n. 2, p. 118-128, 2005. GEE, J. P. Learning theory, video games, and popular culture. The International Handbook of Children, Media and Culture, [S. l.], p. 196-218, 2008. GEE, J. P. Situated Language and Learning: A Critique of Traditional Schooling. New York: Routledge, 2004. GRUPO NOVA LONDRES. 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Desde março de 2020, o mundo enfrenta a pandemia causada pelo novo coronavírus e, para conter a disseminação desse vírus tão letal, o governo determinou medidas como isolamento social, uso obrigatório de máscaras em estabelecimentos públicos e higieni- zação constante das mãos com álcool em gel na ausência de água e sabão. Além disso, estabelecimentos de serviços considerados 134 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 não essenciais também foram fechados ou mantidos abertos, mas com horários reduzidos. Após 3 anos de pandemia, somente aqui no Brasil, o coronavírus já vitimou mais de 695.314 mil pessoas1, haja vista que tivemos atrasos na compra de vacinas2 e, inclusive, uma CPI instaurada para investigar casos de corrupção no tocante aos imunizantes3. No caso específico das instituições de ensino, essas foram fe- chadas em 2020 e, durante quase todo o ano letivo, as aulas se deram de maneira remota. Já em 2021, mesmo em meio ao pior momento de enfrentamento da crise sanitária no país, as aulas presenciais foram retomadas em algumas escolas e ainda tramita no Senado o Projeto de Lei 5595/20, que veda a suspensão das atividades educacionais em formato presencial nas escolas e instituições de Ensino Superior públicas e privadas, tornando-as, assim, um serviço essencial. Tendo em vista tal cenário, as aulas ocorreram de maneira rotativa: ora os estudantes iam presencialmente para a escola, ora tinham aulas remotas em plataformas como o Google Classroom e Google Meet. Ribeiro (2020) afirma que, desde o fechamento repentino e necessário das escolas, foram notáveis uma série de reflexos e, principalmente, uma tensão inédita entre famílias, professores/as e gestores/as, pois, em nossa sociedade, a escola e o ensino presencial são fundamentais, inclusive quanto à sociabilidade e à rotina das famílias. A autora ainda argumenta que, diante desse cenário, os profissionais da educação com experiências diferentes e desiguais no tocante às tecnologias digitais viram-se obrigados a transformar suas aulas presenciais em aulas remotas, ministrando-as por meio de vídeos gravados, lives ou outros recursos. 1 Esse era o cenário no momento em que esta pesquisa foi realizada. Fonte: Ministério da Saúde. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em:14 jan. de 2023. 2 “3 erros que levaram à falta de vacinas contra Covid-19 no Brasil”. Disponível em: <https:// www.bbc.com/portuguese/brasil-56160026> Acesso em: 1 jul. 2021. 3 “CPI da Covid: as principais revelações e os destaques dos depoimentos até agora”. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57208771> Acesso em: 1 jul. 2021. https://covid.saude.gov.br/ https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56160026 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56160026 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57208771 135 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Nesse contexto, as tecnologias digitais, para alguns, passaram a ser vistas como uma possibilidade de dar continuidade aos estu- dos, ainda que de maneira improvisada e com pressões de todos os lados. Para outros, no entanto, as tecnologias se tornaram verda- deiras vilãs, pois ampliaram as desigualdades já existentes entre estudantes e professores mais/menos preparados para lidar com os recursos midiáticos. Frente a tal situação, coloca-se aqui a seguinte questão: de que forma professoras e professores do ensino básico que lecionam nos ciclos de alfabetização transformaram suas propostas de ensino em inovadoras para dar continuidade à aprendizagem das crianças? Assim, com base nos conceitos de inovação postulado por Bruce (1993), no letramento e na inovação no ensino focados na forma- ção de professores/as (SIGNORINI, 2007), e sob a perspectiva dos multiletramentos (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020), objetiva- -se analisar e discutir três relatos de experiência de professoras alfabetizadoras que, no contexto da pandemia, tiveram que criar contextos de inovação em relação aos seus modos de ensinar as crianças nos meios digitais. Para melhor compreensão deste capítulo, ele foi organizado em três partes: fundamentação teórica com a perspectiva do letramento e da inovação no ensino de língua (SIGNORINI, 2007) associada aos multiletramentos (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020), que consideram grandes mudanças como essenciais para a transforma- ção da profissão docente, pois novos aprendizes “exigem” novos professores, que sejam capazes de propiciar uma aprendizagem na qual os estudantes sejam agentes de transformação do próprio conhecimento; a discussão e a análise dos relatos com base nos ca- minhos da mudança (BRUCE, 1993; SIGNORINI, 2007; KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020); e, por fim, as considerações finais. 136 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Inovação, mudança e multiletramentos: discutindo os conceitos No contexto da pandemia, muitos professores tiveram que adequar suas aulas para o ensino remoto; muitos profissionais, inclusive, sem formação para os ambientes digitais e sem equipa- mentos, tiveram que fazer uso de recursos próprios para ministrar suas aulas. Diante disso, os docentes precisaram criar contextos em que suas práticas de ensino pudessem ser inovadoras, partindo de vari- áveis situacionais que constituem o letramento escolar. Conforme Paladine e Navas (cf. capítulo 3 desta obra), ainda que as orientações da Base Nacional Comum Curricular tragam propostas inovadoras e que acompanhem as mudanças recentes na sociedade, em especial no que diz respeito às novas linguagens e ao desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação, há uma série de desa- fios para os professores utilizarem os recursos digitais, envolvendo o letramento desses profissionais. Segundo Signorini (2007, p. 1-2), o conceito de letramento escolar é compreendido como um “[...]conjunto de práticas socio- técnicas relacionadas ao uso de materiais escritos desenvolvidos no âmbito institucional e interligadas a outros conjuntos de práticas institucionais, como as de planejamento, avaliação e gerenciamento administrativo”. A autora argumenta que as práticas de letramento escolar vão além do ensino da leitura e da escrita, já que, no tocante ao trabalho do professor, há uma série de outras práticas institu- cionais que envolvem o letramento do educador. Durante o período pandêmico, as aulas remotas trouxeram inovação às práticas de ensino, com impactos positivos do ponto de vista dos usos da tecnologia, mas também negativos, haja vista que criaram (e até mesmo ampliaram) abismos na aprendizagem 137 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 dos mais pobres e mudanças na ordem institucional. Essa ordem institucional [...] é algo construído, poroso e complexo, pois é feita de estabilidades e instabilidades, não é uma realidade dada,ou seja, pronta e acabada; não é uma ordem in- tegrativa ou funcional, e nem consensual, uma vez que resulta também de desalinhamentos e conflitos pró- prios da atividade coletiva de co-ordenação em função de redes de interesses e estruturas de poder e controle que informam as práticas institucionais, isto é, que as constituem e moldam [...] (SIGNORINI, 2007, p. 179). Nessa perspectiva, do ponto de vista da inovação, o contexto da pandemia privilegiou os processos de contextualização do elemento inovador nas práticas institucionais, partindo de novos esquemas tácitos de percepção para (re)construir os objetos de conhecimento. Tais práticas são complexas, tanto do ponto de vista da diversidade linguística, cultural e social quanto do ponto de vista dos modos de construção dos significados. É nesse momento que cabe, então, a ampliação para o termo “multiletramentos” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020), em que, segundo o The New London Group, dois pontos principais entram em jogo: de um lado, as diversas e cada vez mais complexas maneiras de construir significados em razão dos mais variados modos de comu- nicação – o que foi denominado “multimodalidade” –; de outro, os exponenciais desenvolvimentos da diversidade linguística, cultural e social no mundo – o que foi denominado de “multiculturalidade”. Sob tais perspectivas, o NLG (1996) defende, mais especifi- camente, que o ensino seja voltado para as diferenças multicul- turais, dando visibilidade às dimensões profissional, à pessoal e à de participação cívica. Assim, os propósitos dos multiletramentos 138 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO 2020) se fazem presentes, pois, ao considerarmos as mudanças sociais e econômicas oriundas da pandemia, mais do que nunca, a escola precisa preparar seus alunos para: i) o mundo do trabalho que exige, atualmente, uma econo- mia do conhecimento; ii) o mundo da cidadania, que possibilita a inserção dos alunos em diferentes práticas de letramentos; e, iii) vida comunitária, de forma que os sujeitos, em relação às mídias digitais, sejam agentes de transformação. No caso deste trabalho, a dimensão profissional não está focada apenas na alfabetização das crianças, mas também na aprendizagem das professoras que remodelaram suas práticas no que diz respeito ao ensino da leitura e da escrita, remotamente: A escrita já foi a principal maneira de construir signi- ficados em diferentes épocas e lugares. Cada vez mais, os modos grafocêntricos de significado podem ser complementados ou substituídos por outras formas de cruzar o tempo e a distância, como gravações e transmissões orais, visuais, auditivas, gestuais e outros padrões de significado. Isso quer dizer que uma peda- gogia voltada ao ensino da leitura e da escrita precisa ir além da comunicação alfabética, incorporando, as- sim, a essas habilidades tradicionais as comunicações multimodais, particularmente aquelas típicas das novas mídias digitais (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 20). Retomando o conceito de ordem institucional, como explica Signorini (2007) e as duas significações do termo “multiletramen- tos” - no que diz respeito à multiplicidade linguística e cultural e à multimodalidade -, há um rompimento dessas diante de um cenário tão limítrofe como o que foi causado pela Covid-19. Logo, na escola, que representa uma forma dinâmica de organização institucional, 139 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 a questão da inovação necessariamente passa pela aprendizagem e pela produção do conhecimento com vistas à mudança, a qual rede- fine os saberes práticos dos sujeitos envolvidos nesse novo contexto. Bruce (1993, p. 9-32) explica que, quando os educadores tentam implementar uma inovação, normalmente se enfrenta o complexo desafio de combinar novas ideias com crenças e práticas bem es- tabelecidas. Como resultado, percebem-se as especificidades das velhas e das novas maneiras de se fazer as coisas. É por esse motivo que se faz necessário atentar para o que, Paladine e Navas (cf. ca- pítulo 3 desta coletânea), explicam sobre as práticas tradicionais e conteudistas em novas roupagens: [...] o objetivo da incorporação dessas novas tecnologias deve estar alinhado à compreensão e reflexão sobre seu funcionamento, bem como as maneiras de contribuir para que os alunos [neste caso, professores] se tornem autores de seus textos, integrando seus conhecimentos prévios e também participando de práticas que atuem criativamente e de maneira transformadora em seus contextos” (PALADINE e NAVAS, cap. 3, p. 93). O acesso a novas informações, procedimentos ou ferramentas por si só raramente levam à inovação e, a exemplo disso, usa-se o aplicativo Powerpoint em sala de aula para expor textos e, muitas vezes, é solicitado aos estudantes fazerem cópias dos slides. Nesse sentido, Bruce (1993) afirma que a tecnologia pode ter significados diferentes em ambientes diferentes. Segundo Lankshear e Knobel (2007), que já discorriam sobre o “novo ethos”4, novas tecnologias nem sempre resultaram em novas práticas sociais, pois podem ser 4 O “new ethos stuff”, segundo Lankshear e Knobel (2007), é concebido como uma nova forma de conviver com os discursos hodiernos, os quais se afastam da necessidade de conhecimentos altamente especializados e se aproximam de uma maior interação, colaboração e assincronia dos discursos em desvantagem ao interesse de uma autoria única. 140 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 apenas novos aparatos, meios/modos de fazer mais do mesmo. Logo, emerge a necessidade do uso estar aliado à consciência crítica e afastado da transmissão de conhecimento por mera “osmose”, isto é, pela recepção passiva desses saberes presentes nas relações interpessoais e sociais. Se, de fato, a tecnologia sofre mudanças conforme o contexto e também o altera, a escola é a agência de letramento por excelência e é nela que devem ser criados espaços para experimentar dife- rentes formas de participação de práticas sociais. Na perspectiva dos “multiletramentos” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020), nenhuma grande mudança pode ser alcançada sem que haja uma transformação da profissão docente. Nesse viés, “novos professores” também são novos aprendizes, pois é preciso que sejam designers de ambientes de aprendizagem. Mudanças significativas e duradouras requerem o apoio de todos os setores da comunidade. Nesse sentido, os professores precisam se tornar um novo tipo de pro- fissional, que interaja com membros da comunidade no intuito não apenas de explicar as necessidades de mudanças que estão ocorrendo na aprendizagem, mas, sobretudo, de engajar a própria comunidade na pro- dução de resultados. Por sua vez, estudantes precisam aprender a aprender de novas maneiras. E pais precisam participar e apoiar novos tipos de ambientes e meios de ensino e aprendizagem, que serão muito diferentes dos que experienciaram em sua infância. Isso parece marcar a transição da ‘alfabetização’, no sentido tradi- cional, para os letramentos, em pleno século XXI, que vem exigindo mudanças contínuas de nossos processos de aprendizagem e de nossos sistemas educacionais (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 29). 141 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Nesse sentido, o contexto da Covid-19 nos trouxe novas formas de pensar e exigiu de nós novas aprendizagens – a esse novo jeito de conceber o conhecimento, Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) denominaram de novos fundamentos básicos. Tais fundamentos, por sua vez, opõem-se aos fundamentos básicos tradicionais, cujos princípios envolvem pessoas que aprendem regras e obedecem a elas de maneira passiva e não questionadora. Os novos fundamen- tos básicos, em contrapartida, possibilitam novas formas de pensar voltadas para a contemporaneidade de maneira fluidae colaborativa. Assim, com a perspicácia para a solução de problemas, os sujeitos são capazes de conviver em um mundo complexo e suscetível a mudanças de forma inovadora e criativa. Ao considerarmos os novos fundamentos como essenciais para o efetivo desenvolvimento dos três propósitos dos “multiletra- mentos”, - aprendizagem para o mundo do trabalho, da cidadania e da participação cívica -, Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 280) sintetizam o perfil dos “novos professores”: i) engajam os alunos como ativos construtores do conhecimento; ii) projetam ambientes de aprendizado em vez de apenas regur- gitar e entregar o conteúdo; iii) fornecem aos alunos oportunidades de usar novas mídias; iv) usam novas mídias para um design de aprendizagem e facilitam o acesso do estudante à aprendizagem a qualquer momento e de qualquer lugar; v) são capazes de atribuir mais autonomia para os alunos para que eles sejam mais responsáveis por sua própria aprendizagem; vi) oferecem diferentes possibilidades de aprendizagem para os alunos; 142 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 vii) colaboram com outros professores, compartilhando designs de aprendizagem; viii) avaliam continuamente a aprendizagem dos alunos e usam essa informação para criar novas experiências de aprendizagem. Sob essa perspectiva, é possível relacionar Bruce (1997, p. 290-292), que aponta seis posturas comumente adotadas pelos educadores em relação às tecnologias: o primeiro comportamento seria a neutralidade, em que o/a profissional não adota nenhuma conduta específica diante das tecnologias, mas acredita que os letramentos envolvem sentimentos e ideias e a tecnologia tem relação com “coisas”. A segunda postura seria a de oposição, com educadores que resistem à tecnologia, pois ela serve somente para vigilância, arregimentação e estratificação social. Em terceiro, Bruce (1997) apresenta a postura utilitarista, como aquele pro- fessor que defende a tecnologia e mostra que esta fornece novas ferramentas para o ensino e a aprendizagem. Em seguida, o autor elucida sobre a postura cética, sendo essa o lado “pessimista” do utilitarista, que não vê grandes perigos com as tecnologias, mas que só a utiliza quando lhe é necessário e conveniente. A quinta postura é a transformacional, quando o educador acredita que as novas tecnologias mudarão radicalmente as práticas de letramen- to. Por último, na postura estética, as tecnologias podem propor- cionar ricas experiências de criatividade em recursos midiáticos, já que pode valer da associação complexa de multimodos de se comunicar, envolvendo, por exemplo, texto verbais e não verbais na transmissão de uma mensagem. Nesse sentido, ainda é importante destacar que Bruce (1993, p. 9-32) faz um levantamento de resultados de várias pesquisas rela- cionadas ao tema letramento nos contextos educacionais e aponta cinco caminhos para a mudança do modus operandi: 143 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 1. A mudança consoante: é o tipo de mudança em que a inovação está em consonância com os valores do sistema social, facilitando ou perpetuando as práticas sociais existentes. 2. A mudança dissonante: quando há uma mudança nos valores e nos comportamentos. 3. Resistência à mudança: como o próprio nome diz, quando há uma rejeição à inovação. 4. Cascatas de mudanças: são mudanças que geram novas mudan- ças quando a inovação tem efeitos secundários. 5. Redesenho da inovação: quando as inovações influenciam as práticas sociais. Considerando que as práticas de letramentos são, para Signo- rini (2007), práticas sociotécnicas em que se verificam complexos amálgamas de tecnologia e outras práticas socioculturais e que estas estão em constante processo de transformação, a autora aprofunda os conceitos de Bruce (1993), estabelecendo relações entre práticas sociais, organização institucional da escola e inovação no ensino de língua5. No quadro abaixo, apresenta-se o resumo dos processos de mudança conforme Signorini (2007): 5 Embora Signorini (2007) trate das especificidades do ensino de língua materna, a análise deste capítulo se baseia nas percepções de três professoras no tocante à alfabetização. 144 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Quadro 1: Os processos de transformação no ensino da linguagem A inovação no ensino da língua pode ser.... Experimental por natureza A inovação precisa ser sempre re- criada nas/pelas práticas e contextos sociais em que foi inserida. Carregada de demandas e desafios Mesmo que a inovação seja necessá- ria, ela mobiliza desafios e demandas que, se não forem atendidos, podem inviabilizar as mudanças. Uma provocação nas mudanças de valores É necessário que haja um grau de congruência entre os novos valores e os já existentes; quando isso não acontece, pode ocorrer: i) rejeição da inovação, mudanças radicais nos modos de inserção, re-criação da ino- vação e mudança de valores (tanto de quem cria a inovação quanto de quem usufrui da inovação). Resistência Quando a inovação ameaça as formas sociais já consolidadas. Resistência à mudança no campo da educação Os padrões de instrução estão organi- zados de tal forma que há rejeição ou adequação à inovação; especificamen- te na educação, a inovação é criada por professores e alunos. Feita por atores sociais Esses nunca são receptores de novas ideias ou abordagens; atribuem sen- tido à inovação em função de seus interesses. Feita através de práticas de letramento Professores e alunos agem sobre a inovação para adequá-la a seus ob- jetivos. Em efeito cascata Em primeira ordem, a inovação afeta práticas já existentes; em segunda ordem, provoca mudanças nos mo- dos de raciocinar dos envolvidos; em terceira ordem, provoca mudanças de maior alcance. Quadro elaborado pelas autoras com base em Signorini (2007). 145 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Conforme descrito acima, o processo de mudança diante da inovação parte sempre um contexto limítrofe, o que Freire (2011) conceitua como inédito-viável: [...] Os temas se apresentam encobertos pelas ‘situa- ções limite’, que se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa senão adap- tar-se. Desta forma, os homens não chegam a trans- cender as ‘situações-limite’ e a descobrir ou a divisar, mais além delas em relação com elas, o inédito-viável [...]. No momento em que estes as percebem não mais como uma ‘fronteira entre o ser e o nada, mas como uma fronteira entre o ser e o mais ser’, se fazem cada vez mais críticos na sua ação, ligada àquela percepção. Percepção em que está implícito o inédito-viável como algo definido, a cuja concretização se dirigirá sua ação (FREIRE, 2011, p. 130). A pandemia causada pelo novo coronavírus fez das aulas re- motas uma situação-limite, implicando na existência de que quem resiste à mudança a nega ou a freia. Trata-se de uma situação-limite ameaçadora, na qual muitos educadores se viram desconcertados sem saber o que fazer perante as tecnologias. Freire (2011) explica que é imprescindível a superação das situações-limite por meio do inédito viável, ainda mais num contexto em que os homens se acham coisificados. Para Bruce (1997), muitos temem que a tecnificação da socieda- de progrida de tal forma a destruir o que nos resta de humanidade. No cenário pandêmico e de isolamento social, foram as tecnologias que aproximaram o tecnológico do social; no entanto, elas também foram responsáveis pela divisão, já que a ausência de recursos (in- ternet e equipamentos) e de formação docente/discente também 146 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 ficou muito distinta nesse período. Entre diversos tempos sombrios e embora nem todos tenham conseguido se aproximar,foi por meio da introdução de novas tecnologias funcionando como aparatos que novas práticas sociais foram propiciadas. Como é possível notar, enormes mudanças nas maneiras como as pessoas estavam construindo e participando dos significados requerem, portanto, que possamos interagir efetivamente usando múltiplas linguagens e diferentes formas de comunicação, cruzan- do fronteiras nacionais, culturais e comunitárias. Nesse sentido, a situação limítrofe de ensino-aprendizagem causada pela pandemia propiciou a criação de inéditos-viáveis para que as professoras pudessem continuar seus trabalhos com a alfabetização, ainda que remotamente. De acordo com Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020), o processo de alfabetização, atualmente, precisa ser complementado por uma aprendizagem sobre o design multimodal de textos, pois se faz necessário considerar que: [...] As capacidades a serem trabalhadas em processos de letramento devem envolver não apenas o conheci- mento de convenções formais por meio de uma varie- dade de modos, mas também a comunicação eficiente em diversos ambientes e usos de ferramentas de design de textos que são multimodais, em vez de depender apenas da modalidade escrita (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 20). Assim, uma efetiva cidadania e um trabalho produtivo exi- gem pessoas capazes de circular pelos letramentos nos âmbitos do trabalho, da vida pública e da vida comunitária; nesse caso, professores dispostos a navegar por novas pedagogias, em diferen- tes configurações, com flexibilidade e com olhares para variadas perspectivas, reconhecendo as múltiplas formas de comunicação 147 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 e construção de sentidos, incluindo os modos visual, sonoro, es- pacial, escrito e gestual. Inovação nas práticas de letramentos: a perspectiva das professoras Considerando que o objetivo deste capítulo seja analisar três recortes de relatos de experiência de professoras alfabetizadoras que, no contexto da pandemia, tiveram que inovar seus modos de ensinar as crianças nos meios digitais, pretende-se discutir, sob a perspectiva de Bruce (1983), Signorini (2007) e de Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020), os processos de mudança e inovação por meio da linguagem. As professoras, à época, lecionavam para turmas de 1º ano do Ensino Fundamental I, em uma escola da rede municipal, situada no bairro de Cangaíba, região leste e periférica da cidade de São Paulo. Essas docentes foram convidadas a participar da pesquisa por possuírem bastante experiência como alfabetizadoras e por trazerem relatos de experiências durante os encontros formativos da unidade escolar6, explicando como atuavam diante dos desafios do ensino remoto. Os dados foram produzidos por meio de uma entrevista semiestruturada7, na qual as professoras alfabetizadoras tiveram que responder às seguintes questões: 1. O que você fez de inovador para o ensino durante a pandemia? 2. Comente o que pode ter inviabilizado/dificultado seu trabalho durante a pandemia. 6 Cabe ressaltar que uma das autoras deste capítulo é coordenadora pedagógica na unidade escolar em questão e, por isso, teve acesso aos encontros formativos. 7 As professoras participantes da pesquisa assinaram um termo de consentimento livre e escla- recido para que seus relatos pudessem ser publicados neste capítulo. 148 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 3. Qual foi a maior mudança que você percebeu em seu jeito de lecionar? 4. Você teve dificuldades em relação às mudanças no ensino remoto durante a pandemia? Como foi esse processo? Para dar curso à análise, segue o primeiro relato, no qual a pro- fessora comenta sobre o que fez de inovador em suas aulas remotas: Excerto 1 - Professora Michele: “Tudo o que conhecíamos como prática, ficou “ineficiente” no contexto remoto de ensino. Mas muitos foram os anseios pra alcançar o aluno e, apesar de não obter o “ideal”, sempre observei a importância de ‘se valorizar o melhor que pode se fazer com os instrumentos que se tem’. Então, utilizei aplicativos de mensagens (Whatsapp/e-mails/) e chamadas de vídeo (Whatsapp/ Google Meet) e usei materiais impressos e visuais (como vídeos, apostilas e materiais de apoio. Nesse aspecto, a escola/coordenadores/secretários deram suporte na comunicação e envio dos materiais produzidos e selecionados pra atender a individualidade do aluno em sua aprendizagem global e, consequentemente, alcançar a alfabetização”.8 A Professora Michele, ao comentar que “tudo o que conhecia como prática ficou ineficiente”, transmite a ideia de que o ensino remoto na pandemia trouxe mudanças significativas no seu fazer pedagógico. Nota-se uma mudança consoante (BRUCE, 1983), na qual a inovação está em consonância com as mudanças do sistema social, modificando as práticas já existentes. No âmbito do letramento escolar e, especificamente o letra- mento docente, o conjunto de práticas sociotécnicas (SIGNORINI, 8 Vale ressaltar que os trechos em itálico nos relatos são grifos nossos, de forma a realçar aquilo que julgamos como possíveis marcas de inovação no ensino. 149 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 2007) que se relacionam ao uso de materiais escritos desenvolvidos institucionalmente e interligados às práticas da escola também foram modificadas à medida que a professora reorganizou seu planejamento e desenvolveu materiais que atendessem às espe- cificidades da criança em processo de alfabetização ao mencionar que propôs tais atividades. Com os alunos cada vez mais inseridos em práticas sociais di- ferentes devido também às inovações tecnológicas na sala de aula, Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) apontam para a necessidade de mover a concepção de letramento – no singular – para letramentos – no plural. Nesse sentido, foi preciso reconhecer não apenas as mais variadas maneiras de comunicar, mas também as formas com que eles vêm construindo significados, seja por meio do comportamento, da audição, da visão, do espaço ou, ainda, dos gestos. É nesse momento, então, que os “multiletramentos” devem ser compreendidos nas duas subdivisões. A primeira, caracteriza- da como multiculturalidade, é percebida aqui a partir do trecho “[...] escola/coordenadores/secretários deram suporte na comunicação e envio dos materiais produzidos e selecionados pra atender a individualidade do aluno em sua aprendizagem global e, consequentemente, alcançar a alfabetização”, pois a professora concebe a diversidade cultural que compõe a sala de aula: são variadas as experiências de vida, os gostos, as identidades etc., tornando ainda mais significativa a necessidade de pensar em ma- teriais e práticas docentes capazes de atender os diferentes campos pragmáticos da vida profissional, privada ou cívica. Quanto à multimodalidade, o segundo “múlti” dos “multile- tramentos”, ela pode ser vista em “então, utilizei aplicativos de mensagens (Whatsapp/e-mails/) e chamadas de vídeo (Whatsapp/ Google Meet) e usei materiais impressos e visuais (como vídeos, apostilas e materiais de apoio”, pois integra os variados modos 150 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 de construção de significados, como o visual, o auditivo e o espacial, característicos da mídia de massa. Somado a isso, é válido salientar a importância de aprender a comunicação eficaz em diferentes ambien- tes e usos das diferentes ferramentas de design de textos multimodais, já que os esses não se restringem mais somente à forma escrita. Outro ponto a ser destacado é que, ao utilizar aplicativos de mensagens e de vídeo, Michele apresenta uma postura utilitarista diante do uso das tecnologias que, segundo Bruce (1997), é o perfil que usa os recursos tecnológicos de maneira a transformá-los em novas ferramentas. Além disso, em conformidade com Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020), adocente, em consonância aos novos fun- damentos e novas formas do pensar pedagógico, fornece às crianças oportunidades para utilizarem novas mídias, facilitando o acesso à aprendizagem a qualquer momento e de qualquer lugar. Conforme aponta Signorini (2007, p. 218), toda inovação é “experimental por natureza”, e a professora, ao mencionar que “va- loriza o melhor que pode-se fazer com os instrumentos que se tem”, traz uma perspectiva de mudança de acordo com os recursos que já tem disponíveis. Dessa forma, ela ainda inova no tocante ao ensino da língua ao fazê-la através de práticas de letramento, agindo sobre a mudança e adequando-a a seus objetivos. Em outro momento, as professoras entrevistadas relatam suas dificuldades em relação às aulas remotas, como é possível ler no seguinte excerto: Excerto 2 - Professora Michele “Inicialmente, o desafio foi organizar meus conhecimentos, habilida- des e... adaptar todos pra uma comunicação tecnológica e eficiente, sabe? Que atendesse os alunos e famílias de forma acolhedora, compreensiva e efetiva pra aprendizagem. Com o passar do tempo, o desafio foi inserir essas famílias nessa comunicação onde a tecnolo- 151 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 gia era o instrumento para trocar informações e estabelecer vínculos com o aluno e muitos não tinham acesso e não sabiam utilizar [...]”. Ao se deparar com desafios e demandas específicas do trabalho remoto, Michele altera os modos como organiza seus saberes profis- sionais a fim de torná-los mais eficientes. A esse tipo de mudança, Bruce (1993, p. 12) denomina de dissonante, pois provoca mudanças no comportamento da professora quando esta precisa inserir novos comportamentos para lecionar. Signorini (2007) afirma que tais desafios geram novas deman- das e, se elas não forem atendidas, podem inviabilizar a inovação, daí a necessidade de pensar nos “professores do futuro”. A respei- to disso, Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 27) discutem que, se queremos novos aprendizes, precisamos, também, de “novos professores”. A partir dessa concepção e considerando o trecho “Inicialmente, o desafio foi organizar meus conhecimentos, ha- bilidades e... adaptar todos pra uma comunicação tecnológica e eficiente, sabe?”, verifica-se a preocupação da docente em projetar ambientes de aprendizagem diante das dificuldades existentes no período pandêmico. Somado a isso, no fragmento “Com o passar do tempo, o desafio foi inserir essas famílias nessa comunicação onde a tecnologia era o instrumento para trocar informações e estabelecer vínculos com o aluno e muitos não tinham acesso e não sabiam utilizar [...]”, também é possível encontrar outra ca- racterística desses “professores do amanhã” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020), pois há tentativa de não apenas promover o uso de novas mídias para pesquisar informação em diversas fontes, mas também de avaliar continuamente se os alunos estão aprendendo e se estão progredindo, sempre levando em consideração a existência de diferentes aprendizes e suas individualidades. Dando continuidade ao mesmo excerto, professora Michele ainda acrescenta: 152 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Excerto 3 - Professora Michele “[...] O obstáculo foi o número alto de falta de interação dos alunos e responsáveis, por diversos motivos, que em sua maioria represen- tavam a fragilidade social e formativa dos familiares como justifi- cativas reais, como: ‘Professora, não sei ler, não consigo ensinar’. ‘Professora, meu filho não quer fazer a lição’. ‘Professora, trabalho o dia inteiro e não tenho tempo para ensinar meu filho’. ‘Professora, meu celular não aguenta os envios/ ou não tenho internet’. Para esses alunos, mantive o contato para assisti-los, ao menos, na acolhida e no vínculo entre escola e família”. Nota-se, aqui, que a professora, ao lidar com o desafio da falta de interação entre ela e seus alunos, reconhece o motivo da problemática. Além disso, ela ainda justifica tamanho desafio por meio da reprodução de falas recorrentes das famílias. Os discursos dos pais representam uma resistência, ou seja, a inovação ameaça as formas sociais já consolidadas e afetam os padrões de instrução das famílias (SIGNORINI, 2007). Bruce (1993) alerta que, na resistência à mudança, em muitas situações, o uso das tecnologias pouco modifica as desigualdades subjacentes que, no caso da pandemia, foram intensificadas. Nesse cenário, há uma mudança radical no modo como as famílias pre- cisam lidar com a educação formal das crianças e, por não terem conhecimentos científicos das questões pedagógicas e de uso das tecnologias, ou por demandas laborais, acabam por adotar uma pos- tura de oposição à inovação. Na perspectiva do mesmo autor, quem se opõe à inovação resiste a ela e não atribui sentido à mudança em função do não interesse que apresenta. Contudo, apesar da resistência apresentada por algumas famí- lias inerente às dificuldades de acesso às atividades propostas em decorrência do isolamento social, a professora, dentro do que foi 153 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 inédito e viável (FREIRE, 2011), revela sua perspicácia para convi- ver com a complexidade das relações sociais e de classe de forma inovadora e criativa. Ainda sobre a problemática dos desafios e demandas na ino- vação, a professora Luciana traz o seguinte relato: Excerto 4 - Professora Luciana “Meu ninho de amor, o meu quarto, virou um escritório. A única coisa que meu marido não consegue encontrar sou eu, porque de resto tem de tudo: ring light, tem... é... lousa, mesa de trabalho, caderno, canetão (risos). Tudo que você possa imaginar, livro... Tudo que você possa imaginar tem aqui no meu quarto”. A Professora Luciana, ao relatar um desafio de ordem pessoal, haja vista que as aulas remotas afetam as demandas de seu lar, apresenta não exatamente uma rejeição da inovação, mas uma mu- dança radical nos modos de inserção dessa inovação, pois interfere significativamente não só em sua rotina, mas também na de seu marido. Sob essa perspectiva, Bruce (1993) afirma que a tecnologia deve ser adaptada para atender às novas necessidades sociais; no entanto, essa inovação apontada por Luciana catalisou mudanças em suas relações familiares. Ainda, no trecho “meu ninho de amor”, é possível perceber a relação de unificação espacial entre a casa da professora e a sua sala de aula, que, no período pandêmico, era on-line. Nessa significativa mudança, os professores estão inseridos em contextos de apren- dizagem multifacetados, em que nem todos os envolvidos – nesse caso, professores, alunos e, por vezes, pais/responsáveis – precisam estar no mesmo lugar e ao mesmo tempo para aprenderem (KA- LANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 7), podendo trabalhar com assuntos diferentes entre si em processos/relações colaborativas. 154 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Por consequência, isso possibilita maior autonomia aos estudantes, já que eles assumem responsabilidades por sua aprendizagem e constroem significados ativamente. Em outra situação, é válido ressaltar que Luciana explica que, em determinado momento de suas aulas de alfabetização, precisou fazer a sondagem para verificar as hipóteses de leitura e de escrita das crianças, uma forma de avaliar o progresso delas. No entanto, no contexto remoto, isso se deu de maneira diversa: Excerto 5 - Professora Luciana Nós montamos um vídeo ensinando às mães o passo a passo de como realizar a sondagem com as crianças. E aí nós pedimos pra elas grava- rem, entendeu, o desenvolvimento da atividade, né? Elas viam o vídeo, como tinha que fazer, que era somente um ditadinho com as quatro, cinco palavrinhas do campo semântico que nós escolhemos, mais a frase. Daí, depois, cada vez que a criança escrevesse, elas teriam que perguntaré... Que que você escreveu aí? E depois solicitar: agora leia com o dedinho, do jeito que você escreveu! Algumas mães, é... a maioria, acabou intervindo, ajudando, falando letras. Aí, com essas crianças, o que eu fazia, eu marcava um horário e eu ligava por vídeo chamada e eu aplicava a mesma atividade, só que eu falava assim: ‘mamãe, eu estou aqui realizando a atividade com ele e você só vai gravar, entendeu? Aí eu consegui perceber a evolução da criança porque era ao vivo, era como se estivéssemos na sala de aula, a diferença era que eu não tava do lado dele, ele tava do outro lado do celular, né? A professora, nessa situação, apresenta uma postura utilitarista da tecnologia (BRUCE, 1997), ao utilizá-la como algo necessário para seu fazer docente no contexto da pandemia. Além disso, ao ensinar as mães das crianças quanto à abordagem que elas deveriam ter ao fazerem a sondagem, a professora inova as práticas de letramento ao adequá-las às suas necessidades (SIGNORINI, 2007). 155 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Considerando que a inovação é feita por atores sociais agentes da mudança, Signorini (2007) ressalta que a estratégia metodo- lógica que contempla a multiplicidade de abordagens tem como referência os atores humanos e não os humanos que constituem a agentividade da prática situada. Há, assim, um efeito cascata nessa situação (BRUCE, 1993; SIGNORINI, 2007). Em primeira ordem, há uma mudança em práticas já existentes, neste caso, nos novos modos como a professora interveio na sondagem, pois ela depen- dia da forma como as mães a fizeram. Em segunda ordem, há uma mudança nos modos de raciocinar dos envolvidos, pois as mães das crianças tiveram que aprender como sondar as hipóteses de leitura e escrita de seus filhos/as. Além disso, quando se consideram os trechos “nós montamos um vídeo ensinando às mães o passo a passo de como realizar a sondagem com as crianças.” e “aí eu consegui perceber a evolução da criança porque era ao vivo, era como se estivéssemos na sala de aula”, também é possível perceber características do que foi con- cebido por Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 27) de “professores do amanhã”, justamente por não apenas avaliarem o progresso dos alunos, mas por utilizarem as novas mídias “para um design de aprendizagem e facilitar[em] o acesso do estudante à aprendizagem a qualquer momento e de qualquer lugar” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 7). Por fim, é importante destacar que esse evento de letramento representa um redesenho da inovação (BRUCE, 1993), pois essa influencia as práticas sociais que são consonantes com os novos valores existentes, principalmente em relação à hipermídia presente no universo digital, à multimídia e à mídia de massa. 156 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Considerações finais No contexto de aulas remotas trazido pela pandemia da Co- vid-19, podemos começar a enxergar as tecnologias como parte de um sistema maior de relações; ainda que desiguais, é difícil separar o tecnológico do social. As tecnologias foram adaptadas para atender às novas de- mandas sociais e práticas de letramento nos processos de ensino e aprendizagem da língua escrita, alterando, inclusive as relações sociais: se antes ensinar a ler e escrever era uma responsabilidade da instituição “escola”, agora os processos de didatização de saberes acadêmico-científicos com vistas à inovação devem considerar o caráter situado das práticas de letramento com as famílias e em casa. Nota-se, portanto, que, nos relatos das professoras, ainda há uma postura utilitarista em relação ao uso das tecnologias na apren- dizagem, pois elas tiveram, em muitos momentos, que recriar os valores de mudança em seus padrões de instrução já consolidados. Percebe-se, ainda, que, apesar dos “inesperados” causados pela pandemia, as docentes não rejeitam a inovação, mas, por meio de novas práticas de letramento digital, tentam se adequar a seus obje- tivos de ensino, a caminho, quem sabe, de uma reflexividade que as leve a uma postura transformacional. É por isso que a relação com os multiletramentos, segundo Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020), torna-se tão fundamental, justamente por possibilitarem novas par- ticipações sociais propiciadas por diversas vivências e experiências econômicas, sociais e culturais. Assim, nessas enormes mudanças, os alunos tendem a deixar de ser meros consumidores passivos de informação e se tornam produtores ativos de conhecimentos. Diante desse cenário, outro ponto a ser destacado é a necessida- de de superar o temor em relação à tecnificação da sociedade, pois a máquina nos permite construir novas relações sociais. Assim, o que 157 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 pode destruir o que nos resta de humanidade não é a tecnologia ou as novas práticas de letramento no meio digital, mas a indiferença e a forma necropolítica de governar. A pandemia se apresenta como uma situação-limite esmaga- dora, mas não foi o impeditivo para que as professoras pudessem se adaptar e criar inéditos-viáveis (Freire, 2011). Nesse sentido, elas caminham numa direção de construir laços coletivos com as famí- lias e crianças, como relata a professora Michele, que, ao perceber as dificuldades dos pais em relação à tecnologia, tenta, ao menos, manter o vínculo e dar acolhimento aos alunos. Ressalta-se, por fim, que a inovação é algo construído de manei- ra porosa e complexa, permeada por instabilidades numa realidade que não é dada, pronta e acabada, mas moldada conforme os con- flitos próprios da atividade docente. Nesse sentido, a banalização com que os profissionais da educação e seus estudantes são tratados dentro de uma perspectiva neoliberal e necropolítica criando a ideia de que, no senso de inovação do ensino da língua escrita, profes- soras que precisam ser “mulheres-maravilha”, fazendo milagres com os recursos próprios, desenvolvendo alternativas de trabalho, novos padrões de comportamento e estratégias para sobreviver à instituição organizacional e à Covid-19. Referências BRASIL. Projeto de Lei 5595 de 18 de dezembro de 2020. Dispõe sobre o reconhecimento da Educação Básica e de Ensino Superior, em formato presencial, como serviços e atividades essenciais. Disponível em https://www.camara.leg.br/ proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2267745. Acesso em: 28 mai. 2023. BRUCE, B. C. Innovation and social change. In: BRUCE, B. C.; PEYTON, J. K.; BATSON, T.W. (eds.), Network-based classrooms: Promises and realities. New York: Cambridge University Press, 1993, p. 9–32. 158 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 BRUCE, B. C. Literacy technologies: What stance should we take? Journal of Literacy Research, [S.l.], v. 29, n. 2, p. 289-309, 1997. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. THE NEW LONDON GROUP. (1996). Uma Pedagogia dos Multiletramentos: Projetando Futuros Sociais. Tradução de Deise Nancy de Morais et al. Revista Linguagem em Foco, Fortaleza, v. 13, n. 2, 2021. p. 101-145. KALANTZIS, M.; COPE, B.; PINHEIRO, P. Letramentos. 1.ed. Campinas: Editora Unicamp, 2020. LANKSHEAR, C.; KNOBEL, M. Sampling the new in new literacies. In: LANKSHEAR, C.; KNOBEL, M. (eds.), A new literacies sampler. New York, Peter Lang, 2007. p. 1-24. RIBEIRO, A. E. Que futuros redesenhamos? Uma releitura do manifesto da Pedagogia dos Multiletramentos e seus ecos no Brasil para o século XXI. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 9, p. 1-19, 2020. SIGNORINI, I. Letramento e inovação no ensino e na formação do professor de Língua Portuguesa. In: SIGNORINI, I. (org.) Significados da inovação no ensino de Língua Portuguesa e na formação de professores. Campinas: Mercado de Letras, 2007, p. 211-228. 159 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escolade hoje VoluMe 2 O PIPOCAR DA MEMÓRIA DOCENTE PARA O SABOREAR COLETIVO DOS MULTILETRAMENTOS DO INSTAGRAM @me_ajuda_a_olhar Jessika Gama Ribeiro Universidade Estadual de Campinas Lara Nantes Antonio Filomeno Mantovani Universidade Estadual de Campinas Patrícia Pinho Andrade Universidade Estadual de Campinas “La voz, la escritura, la mirada, el recuerdo súbito o la introspección, lo que emerge de pronto para ser olvidado, lo que queda latente para un no decir… en ese devenir incierto se despliegan las narrativas de la memoria, que como la biografía, evocan - y -requieren - la figura sensible de la delicadeza”. (ARFUCH, 2018, p.789 Kindle*) Introdução: Pipocando os porquês das narrativas no co- tidiano escolar Um espaço escolar é uma atmosfera em ebulição, na alta tem- peratura dos dilemas da sociedade. Em sua sempre efervescente atmosfera, os profissionais da educação vivenciam e experimen- 160 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 tam uma série de práticas situadas de aprendizagem, que são um convite a um enquadramento crítico dentro da perspectiva dos multiletramentos, para uma pedagogia investigativa de novas formas de se relacionar com os fenômenos de linguagem nesse espaço, que nos convida a narrar os nossos dilemas e estórias. O profissional da educação sempre tem uma história para contar, uma situação vivida entre os alunos, uma experiência de ensino significativa ou algo pertinente que acabou de acontecer; conta-se essa narrativa para um colega, um gestor pedagógico ou um par mais experiente. Liliam Ricarte de Oliveira, professora de Educação Infantil da rede municipal de Campinas, foi além. Em 2004, criou um blog1 e em 2012 sentiu a necessidade de retomar as suas publicações, com o intuito de registrar as narrativas das suas experiências do cotidiano que, segundo ela mesma, tocavam e transformavam o seu caminhar como professora. Do blog às re- des sociais mais recentes, em 2021, pós-pandemia da Covid-19, a referida professora passou a postar suas reflexões docentes na rede social Instagram. Essa experiência do narrar, esse chamamento para o diálogo com o outro é o que os autores Prado et al. (2017) chamam de pipo- ca pedagógica. Eles explicam que pipoca pedagógica é um gênero textual novo, que envolve uma narrativa, [...] um ocorrido há pouco que lhe dá vontade de contar para a colega que você encontra no pátio da escola, na hora do recreio. A pipoca é o escrito desse fato que você desejou contar. Portanto, é curta, pequena, uma simples e ordinária e comum conversa sobre algo que lhe surpreendeu, espantou, intrigou... Curta quanto? Não medimos a extensão das pipocas por laudas ou 1 Disponível em: < https://meajudaaolhar.wordpress.com/a-professora-e-a-escrita/> Acesso em: 9 jan. 2023. https://meajudaaolhar.wordpress.com/a-professora-e-a-escrita/ https://meajudaaolhar.wordpress.com/a-professora-e-a-escrita/ 161 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 “caracteres com ou sem espaço”, como num artigo científico, mas é curta bastante para nos dar a sensação de que é... pequena (PRADO et al., 2017, p. 11-12). Nesse sentido, ao narrar o acontecido, esses profissionais pas- sam a expressar o vivido no gênero textual pipoca pedagógica, cujas características abrangem conteúdos não ficcionais, abordagens que envolvem a escola, de um modo geral, que são provocadas pelo outro em interação com esse narrador em seu cotidiano e estão sempre abertas a diferentes interpretações e reflexões. Partindo desse pressuposto, a vivência nesse cotidiano de “tempos interessantes2” possibilita confrontar o habitus docente e vislumbrar as diferentes formas de aprender mais sobre nós mesmos, nossos alunos, o tra- balho escolar e as relações cotidianas. Ainda segundo Prado et al. (2017), as pipocas pedagógicas são narrativas que [...] contam por escrito um acontecimento pontual, mas que é prenhe de sentidos, de memórias e de ou- tras narrativas, que ampliam o contexto dialógico de pertencimento e expõem tradições, características, tendências educativas de espaços, tempos, planos e políticas diversos, criando condições para continuar a “dizer” para além do contexto originário (PRADO et al., 2017, p. 15). Para os autores Ferreira, Cunha e Prado (2021, p.179), a busca por “uma prática discursiva do indivíduo singular não indiferente ao outro, na arquitetônica ontológica eu-para-mim, eu-para-o-outro, o outro-para-mim”, dentro de uma influência bakhtiniana, tem, 2 A expressão remete ao provérbio chinês “mais vale ser um cão em tempos de paz do que um homem em tempos de caos”. Nesse sentido, “tempos interessantes” representam os períodos de inquietação, guerras e lutas. A escola, por si só, é um vasto território de tempos assim. 162 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 pela prática da narrativa pedagógica, uma prática emancipatória e dialógica. Parte do reconhecimento da professora como pesquisa- dora da sua realidade, pois “[...] é aquela que interroga a sua prática, investiga, documenta o seu trabalho, analisa, faz leituras, dialoga e constrói uma forma de compreensão e interpretação da realidade” (FERREIRA; CUNHA; PRADO, 2021, p.170). Através da análise de diversos registros escritos do cotidiano escolar, como: crônicas, diá- rios de aula, depoimentos orais e transcritos, memórias de formação etc., um gênero discursivo, do tipo secundário, derivado do gênero discursivo primário oral, vai se constituindo uma ponte entre uma prática instituída sociologicamente e uma prática discursiva que possibilita a compreensão mútua em uma comunidade narradora – a comunidade de professoras. Assim, o objetivo deste capítulo é analisar uma postagem do gênero textual pipoca pedagógica disponível no Instagram @me_ajuda_a_olhar3 sob a perspectiva dos multiletramentos (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020), do conceito de memória proposto por Candau (2016); e da linguagem, sujeito, espaço bio- gráfico e identidades narrativas, conforme Arfuch (2010; 2018). Rubem Alves, em sua célebre crônica à pipoca, utiliza da metáfora culinária para associar a transformação do eu na ebulição dos en- contros e no calor dos dilemas: (...) conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas ideias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordi- nário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, 3 A postagem a ser analisada intitula-se “O eu, o outro e o nós”, foi escrita pela professora em outubro de 2020 e publicada no Instagram em 1 set. 2021. 163 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela (ALVES, 1999, p. 59-64). Esses estouros movimentam o pensamento docente nos diver- sos ritmos da escola, atribuindo um significado incomensurável, que se dá pelo impacto lúdico de tais práticas. Nesse sentido, Luckesi (2022), explica que os atores escolares, passam a experienciar um contato profundo consigo mesmos, estabelecendo uma experiên- cia plena que contempla, para além da construção de saberes, um equilíbrio entre o sentir, o pensar e o agir. Isso se dá pela ludicidade presente nas narrativas feitas pelo professor, já que o cotidiano escolar, mais do que um espaço de preparo para um conteúdo, é um espaço dinâmico de tomada de consciência do seu aprender, no desenvolvimento da identidade desses sujeitos. Esse desejo sig- nificativo de narrar o ocorrido acontece naturalmente de maneira oral pelos corredores da escola ou na sala dos professores, tecendo a identidade desses profissionais, que passam a contemplar suasmemórias em seu próprio processo de subjetividade profissional, em estágios de novas consciências em torno do seu eu docente. Portanto, narrar por escrito provoca em quem narrou uma relação outra com o acontecido ao entrar em contato com uma materiali- dade coletiva, “[...] a narrativa escrita por professoras se configura como uma leitura propositiva da realidade, que se funda na cul- tura e na memória, ao mesmo tempo em que busca diálogo com um futuro possível”(FERREIRA; CUNHA; PRADO, 2021, p. 182). Permeada por processos de diversificação, de acordo com Georgaka- poulou (2015), a pesquisa sobre pequenas narrativas vai também na direção de um contramovimento aos modelos dominantes de estudos narrativos, pois, se antes limitavam a narrativa a uma forma textual restritiva ou priorizavam um tipo específico de narrativa (relatos longos, ininterruptos, conduzidos por contadores de eventos 164 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 passados), agora, os estudos culturais e da linguagem reconhecem o pluralismo, a heterogeneidade e a coexistência produtiva desses textos menores. Ainda segundo Georgakapoulou (2015), a pesquisa de peque- nas histórias foi concebida como um movimento organizado para colocar aquilo que não é considerado canônico como corpus para a análise acadêmica, haja vista que, dentro da Sociolinguística, prio- rizam-se as identidades em interação. Nesse sentido, as pequenas narrativas possuem caráter biográfico, pois enfatizam experiências afetivas e subjetivas com que as pessoas dão sentido a si mesmas e às práticas de linguagem. Tendo em vista que as pequenas narrativas trazem questões de afetividade, subjetividade e linguagem, Georgakapoulou (2015) explica que tais histórias apresentam quatro características espe- cíficas: i) representação de desdobramentos de eventos não ou multili- neares sequenciados (ou não); ii) ênfase na criação do mundo, na narração de eventos ordinários e cotidianos; iii) possibilidades de desvinculação e recontextualização de uma história em um ambiente específico; iv) co-construção do ponto de vista de uma história, eventos e personagens entre o narrador e o público. Nessa ótica, os lugares de produção de conhecimento não são mais os locais superprotegidos e legitimados. As identidades não seriam mais resultados de singularidades, como gênero, raça, classe social etc.; elas são desenvolvidas nas complexas fronteiras 165 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 dos mais diversos contextos históricos e sociais, o que foi denomi- nado por Bhabha (1998) de “entre-lugares”. Sob a perspectiva do autor, o “entre-lugar” é, então, concebido como um pensamento considerado liminar e construído nas bordas, nas fronteiras e que abarca duas instâncias da experiência humana. Em uma relação interpretativa e analógica com nosso estudo, entre os corredores da escola e as corridas pela cidadania global, há um entre-lugar de encontro de narrativas efervescentes, no qual o docente enxerga os sujeitos em suas complexidades e não somente em seus propó- sitos sociais. A linguagem concisa das pipocas pedagógicas se dá em virtude da relação com o acontecimento situado e vinculado ao seu horizonte, nas quais as narradoras estão envolvidas com a situação. “Na pipoca, é o outro que mobiliza a escrita e os acon- tecimentos narrados geralmente são momentos em que está em destaque, uma vez que há a percepção ou compreensão de algo que só foi possível por causa dele” (FERREIRA; CUNHA; PRADO, 2021, p. 175). O currículo escolar, herança de um projeto de modernidade, é problematizado pelo docente que passa a não contemplar somente modelos (metanarrativas) mais gerais, os quais têm a função de organizar o mundo, pois se nota que eles não se situam em campos fechados, mas se alteram, fragmentando várias outras possibilida- des de atribuir significados às nossas práticas de conhecimento. A partir desse momento, então, o mundo emergente não será mais um objeto de representação, mas ele também poderá transformar historicamente o plano cultural (BHABHA, 1998), a partir dos dile- mas situados de seus pequenos e potentes sujeitos de aprendizagem e atores escolares. Sob essa ótica, infere-se que a diversidade cultural não pode ser domada/quantificada, pois ela é caótica, faz fluir e não se fixa em lugares, permitindo a alternância de posição política a partir da mudança de perspectivas. Em uma perspectiva crítica e transfor- 166 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 madora, é preciso questionar as hierarquias classificatórias e borrar esses limites, categorias, formulações e pensar em formas mais hí- bridas do saber. Nessa concepção, os lugares de produção de conhe- cimento não seriam mais os locais superprotegidos e legitimados, mas entre-lugares. Assim, a professora Liliam Ricarte de Oliveira, durante a pandemia, precisou, na situacionalidade das práticas de letramentos, encontrar um entre-lugar entre o currículo formal e portador de gêneros canonizados para converter sua experiência com o tema gerador dos gêneros híbridos, tanto na composição narrativa quanto no compartilhamento midiático, proporcionando, para além de relações interpretativas de determinado saber, relações identitárias e culturais. Arfuch (2010) argumenta que devemos considerar o espaço biográfico como um horizonte de inteligibilidade e não como uma mera soma de gêneros textuais, pois é nesse espaço que se consti- tuem possibilidades de leituras transversais, simbólicas, culturais e políticas das narrativas do eu e de seus inúmeros desdobramentos na contemporaneidade. O espaço biográfico não permite apenas o acesso a uma cultura, mas a produção de culturas a partir da experiência com os seus múltiplos elementos disponíveis para criação de significados e memórias. Considerando tal produção de culturas, inclusive a cultura midiática, a pesquisa contemplada por Paladine e Navas (no capítulo 3 desta coletânea), investiga uma sequência didática intitulada “Som e Letra”, na qual analisam uma sequência didática que tem como objetivo explorar múltiplas modalidades de linguagem a partir da produção do gênero podcast, envolvendo não somente sons, instrumentos e estilos musicais, mas também os ritmos das culturas juvenis. Nesse sentido, ana- lisam, na perspectiva multiletrada, como o material didático, mediado e ressignificado pelo docente, pode levar os estudantes a perceberem no próprio tom de voz, tema de narração e composição de um podcast uma micronarrativa situada de transformação. Tais 167 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 experiências subjetivas referem-se à construção da identidade e do caráter biográfico dessas pequenas narrativas. Ainda para a mesma autora, as abordagens culturais se incli- nam para a escuta da voz e do testemunho dos sujeitos, delineiam um território que, embora valorize a trajetória individual, está em busca dos acentos coletivos. A ideia de “biográfico”, portanto, em primeira instância, remete ao universo de gêneros discursivos con- sagrados que tentam apreender a qualidade evanescente da vida. Contudo, as autobiografias, as confissões, as entrevistas, os diários íntimos deixam impressões e rastros, dando ênfase na singularidade e no transcendental. Assim, retomando a epígrafe que abre este capítulo, a voz, a escrita, o olhar e a lembrança são materializados nas pipocas pe- dagógicas escritas pela professora Liliam, expressando, de fato, sua sensibilidade, sua delicadeza e os dilemas do cotidiano da escola. Ao serem postadas em sua rede social, elas promovem, além de nu- trição estética para quem acompanha os posts, novas significações para a área docente. Estourando novos modos de construção de significados pedagógicos O espaço escolar, há muito condicionado a comunicar as narra- tivas da sociedade paraorganizar seus rituais e modos de vida diante de um novo dilema histórico – neste caso, o cerceamento da quaren- tena –, teve, nos designs criados por Liliam em seus contextos, uma possibilidade de compartilhar e representar suas narrativas locais e possibilitar novos olhares coletivos em torno do espaço escolar. Os multiletramentos envolvem, para além de uma ressignificação das narrativas culturais, a produção de designs permeados de novos sentidos e memórias, “significados experienciados, que se juntam 168 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 em padrões que fazem sentido em nossa realidade cotidiana.” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 167). Em outras palavras, trata-se de uma escrita que passa a ser repleta de vozes diversas e multiculturais do contexto educacional. Outro ponto a ser ressaltado é a constante transformação da profissão docente, professores se tornam designers de ambientes de aprendizagem que engajam não só alunos como ativos construtores de significados, mas também interagem com outros professores ao compartilharem esses designs. De acordo com os autores, esta é a dimensão que nos convida a uma perspectiva multicultural, a analisar, para além de múltiplas modalidades de produção de significados, a investigação dos ambientes comunitários em suas organizações quanto aos papéis sociais, relações interpessoais, identidades e assuntos. No trânsito e fluxo dessas produções e de diversas práticas de letramentos, na prática situada contemplada pelos Multiletra- mentos, o design envolve uma dupla dimensão entre o que iremos comunicar nesses espaços e o modo como articulamos contextos para uma produção interacional, repleta de significados sociais. Assim, esses ambientes ganham um foco exponencial para análises críticas em torno das identidades sociais inseridas numa situa- cionalidade dos fenômenos de linguagem, já que eles envolvem a multissemiose dos gêneros textuais presentes na atualidade e as múltiplas culturas em contato. Nesse sentido, os Multiletramentos se fazem pertinentes no que diz respeito à construção de significados, pois, ainda de acordo com Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) o termo em questão se refere a dois aspectos principais: i) à diversidade social e sua variabilidade de convenções de significado em diferentes situa- ções culturais e sociais; e ii) à multimodalidade, como resultado dos novos meios de informação e comunicação, já que a constru- 169 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 ção do conhecimento se dá por meio da integração de diferentes modos (visual, sonoro, escrito, espacial, tátil, gestual e oral). Toda construção de significado é um processo de representação, cujos pensamentos são narrativas internalizadas e, no ato de comu- nicação, são externalizadas por meio de expressões de significado para serem interpretadas por outrem. Nesse sentido, as pipocas pedagógicas permitem aos interactantes, para além de um estourar de possibilidades de interpretação, saborear as múltiplas linguagens que se hibridizam em gêneros carregados de uma singularidade única à realidade cultural dos atores escolares, uma dimensão que, de acordo com Luckesi (2022), só pode ser assimilada, estudada e compreendida pela vivência mútua da cultura, com todos os seus valores vivenciados por aqueles que compõem o hábito da rotina imersa e experienciada na multiculturalidade. Assim, para interpretar as possibilidades de significados pre- sentes nas pipocas pedagógicas a serem analisadas, vamos nos deter nos modos de significação escritos , visuais, espaciais e gestuais que, a nosso ver, emergem nas postagens da professora, já que trazem, no narrar dela expressões, movimentações e comportamentos das práticas escolares ressignificadas naquele contexto, considerando que as pipocas selecionadas foram escritas durante a quarentena. Para tanto, segue o quadro abaixo com as definições dos respectivos modos de significação e de que forma isso será analisado nas duas postagens selecionadas: 170 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Quadro 1: Modos de significação escritos, visuais, espaciais e gestuais Significados escritos traços da língua que podem ser interpretados por meio de classes de palavras ou da sintaxe gramatical (usos de pronomes, modos e tempos verbais, adjeti- vos, expressões com duplicidade de sentidos, fontes e tamanho das letras). Significados visuais composição das imagens estáticas ou em movimento por meio de imagens perceptuais (fotos, enquadra- mento de paisagens, céu, árvores, ângulos de observa- ção) e imagens mentais (aquilo que imaginamos por meio das descrições feitas pela professora). Significados espaciais posicionamento físico do enunciador em relação ao outro, criação/exploração dos espaços e das formas de se movimentar, por meio de expressões que descre- vem o espaço tanto em que da narrativa não ficcional aconteceu quanto o local de publicação, neste caso, o Instagram. Significados gestuais percepção por meio de movimentos do corpo, ex- pressões e comportamentos revelados pela escrita da professora e que criam, no leitor, as imagens mentais do ocorrido, por meio de descrição de ações e adjetivações em relação aos personagens reais que compõem a narrativa. Fonte: Elaborado pelas autoras, com base em Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020). Entendemos que os modos de significação acima mencionados se sobrepõem nas duas pipocas pedagógicas narradas pela profes- sora, pois em suas postagens (que serão analisadas adiante), ela explora diferentes fontes, tamanhos e cores, associa essa narrativa a imagens estáticas, descreve o espaço virtual e físico como contexto de produção escrita, bem como sinaliza a movimentação gestual dos sujeitos envolvidos na situação de interação vivida por Liliam. Nesse sentido, sua prática docente passa a se fundar na narrativa da experiência, pois é fruto de uma atuação consciente, preocupada e atenta ao seu cotidiano, que parte da subjetividade da professora e se materializa como a vida que se vive, constituindo-se em memória coletiva ao ser postada na rede social. 171 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Pipocas pedagógicas na internet: do individual ao Instagram como memória coletiva Os múltiplos significados suscitados pela linguagem surgem do cruzamento não somente entre as informações que relembramos, mas das sensações que experimentamos nos fenômenos corporais, ou seja, da nossa relação com nós mesmos, com um outro e com o mundo. Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 273) alertam que na perspectiva dos Multiletramentos, “os espaços moldam os fluxos, que são as maneiras pelas quais nos movemos através dos espaços, cujos significados são baseados em suas funções, projetadas por pessoas”. Assim, mais do que uma relação de lembrança, os sig- nificados táteis produzidos pelos sujeitos propiciam significados primários, essenciais para nossos sistemas de significado, pois se conectam ao mundo íntimo dos nossos sentimentos. O nosso eu está sempre em relação dinâmica com o outro em es- paços de encontros e interações sociais. Essas relações suscitam o des- pertar de nossas protomemórias como abordado por Candau (2016), já que todo indivíduo é dotado de memória, faculdade essa que decor- re de uma organização neurobiológica complexa. Contudo, Candau (2016) se propõe a conceituar como a memória se manifesta, consi- derando a variabilidade dos indivíduos, dos grupos e das sociedades. A primeira memória conceituada pelo autor é a protomemória, ou memória de baixo nível, que constitui os saberes e as ex- periências mais resistentes e compartilhadas pelos membros de uma sociedade. É uma memória procedural, que envolve a repetição e o hábito e é incorporada às múltiplas aprendiza- gens desde a infância. Ainda, ancora-se em práticas e códigos implícitos,costumes introjetados e é, por fim, uma memória imperceptível que ocorre sem que se tenha consciência dela. A segunda memória conceituada pelo autor é a memória de alto nível, essencialmente uma memória de recordação, de re- 172 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 conhecimento, de lembranças autobiográficas, uma espécie de memória enciclopédica. Ele também aponta a metamemória como a representação que cada indivíduo faz de sua própria memória, o conhecimento que tem dela e o que diz sobre ela. Os três níveis de memória conceituados por Candau (2018) referem-se a um plano individual. No entanto, no momen- to em que avançamos para o nível de grupos ou sociedades, a memória deixa de ser uma faculdade individual e passa a ser coletiva, pois é a representação de uma memória suposta- mente comum a todos os membros de um determinado grupo. A taxonomia proposta pelo autor em questão, portanto, faz-se im- portante para a análise das pipocas pedagógicas no que diz respeito à rememoração consciente (ou não) de uma realidade vivida pelo pro- fessor. Nesse sentido, ao olharmos para essas pequenas narrativas, é requerido que se tenha uma escuta atenta para o narrador, uma dispo- sição para o outro, uma abertura afetiva e uma curiosidade analítica. Segundo Arfuch (2018), as narrativas que envolvem a memória partem de uma abordagem analítica em torno da linguagem, do sujeito, do espaço biográfico e das identidades narrativas. Para isso, retomando Bhabha (2001), tanto a ação quanto a própria sentença e os elementos devem ser lidos como texto social, logo, as posições têm que fluir, alternarem-se e, para ter enunciação, precisa não ter apenas fala, mas também um lugar de escuta, sendo ambos lugares não fixados “entre-lugares”. Por consequência, a linguagem, enquanto sistema, é a cons- trutora do mundo e da subjetividade, habita o discurso e a corporeidade; é palavra, mas também é gesto, ação e forma de vida. A concepção de sujeito, por sua vez, é, pois, constitutiva- mente incompleta, modelada pela linguagem, cuja dimensão é dialógica, aberta e construída pelo outro da interlocução. O espaço narrativo, já para Arfuch (2018), não é apenas o con- junto de gêneros consagrados, mas sua expansão contempo- 173 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 rânea em formas híbridas, em estilos e em suportes em que a experiência subjetiva é narrada sob diferentes estilos e registros. Por último, o “como” se conta uma história, como se articula a temporalidade na narrativa, como se desenvolve a trama tem- poral da memória e como as vozes e as personagens são enfa- tizadas revelam uma identidade narrativa pessoal e coletiva, ou seja, a heterogeneidade e incompletude de cada indivíduo. Dessa maneira, é inerente às pipocas pedagógicas o caráter narrativo da experiência e da memória que permitem o vaivém entre o tempo da narração, o tempo da vida e o da própria experiência. @me_ajuda_a_olhar? Uma análise das pipocas pedagógicas Os corpus de análise são duas pipocas pedagógicas postadas no Instagram @me_ajuda_a_olhar, em que uma professora de Edu- cação Infantil da rede municipal de Campinas, professora Liliam Ricarte de Oliveira, posta fotos e textos de seu cotidiano escolar. Justificamos a escolha dessas duas narrativas porque elas trazem desdobramentos de eventos multilineares, eventos do cotidiano que ocorrem em um ambiente específico e que possuem a co-construção de um ponto de vista da história (GEORGAKAPOULOU, 2015). Além disso, sob a perspectiva da linguagem, nossa seleção de pipocas pedagógicas se dá pelo discurso que está além das palavras, pois, segundo Arfuch (2018), o discurso também passa pelo corpo, pelos gestos e ações transversadas de experiências sociais e complexas, já que as narrativas em questão foram escritas em um contexto de trauma como a pandemia. 174 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Figura 1: Postagem sobre o cotidiano escolar pandêmico feita pela professora Liliam de Oliveira. Fonte: Instagram.4 Geralmente, as postagens incluem fotos das crianças em in- teração com alguma proposta pedagógica ou pipocas pedagógicas escritas pela professora. Nesse caso, o primeiro texto escolhido intitula-se “Eu, o outro e eu mesmo” e foi publicado na referida rede social no dia 13 de outubro de 20205 ainda no período mais crítico causado pela Covid-19. A começar pelo título, “Eu, o outro e eu mesmo”, questionamo- -nos quem seriam esses sujeitos/personagens participantes da pipo- ca pedagógica. O pronome “eu” refere-se a diferentes “eus” – nesse caso, à professora e à criança que se observa pela tela. O pronome indefinido “outro”, ainda que seja categorizado como indefinido, ao ser precedido do determinante “o”, especifica que esse “outro” é a 4 Disponível em: https://www.instagram.com/p/CTR_PICMefk/?hl=pt-br. Acesso em: 9 jan. 2023. 5 Pipoca pedagógica. Disponível em: <ht tps: / /www.instagram.com/p/CTR_ PICMefk/?igshid=YmMyMTA2M2Y=> Acesso em: 15 jul. 2022. 175 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 própria criança na tela, mas também denota a ideia de incompletude do sujeito, haja vista que o movimento cíclico construído no título por meio da enumeração dos termos se encerra em “e eu mesmo”, criando um efeito rotacional. De acordo com Arfuch (2018), a concepção de sujeito e de incompletude trazem um protagonismo simultâneo em relação à linguagem, pois aquele que habita as palavras do discurso enuncia para e por um outro. A confluência desses “eus” carrega a intersub- jetividade entre professora e alunos e a escuta atenta dela. Ao final da pipoca pedagógica, a criança, depois de ser questio- nada pela professora sobre o movimento que fazia na tela, respon- de: “Eu tô vendo eu mesmo na tela”, o que demonstra, mais uma vez, um protagonismo simultâneo, pois a relação dialógica é dela consigo mesma, seus gestos são a materialização da linguagem e da enunciação. Em relação aos sujeitos participantes da narrativa, com uma simples leitura, notamos que são as crianças e a professora. Por meio de algumas marcas linguísticas, também constatamos a identidade narrativa de quem é o contador dessa história. Nesse caso, o uso da primeira pessoa como “observo essa criança”, “imaginei que tinha aberto outra aba” e “fico curiosa” revelam ser a professora-narradora e alguém que se identifica com o gênero mulher, somado ao fato de que ela é, ao mesmo tempo, personagem e narrador. A partir disso, Arfuch (2018) salienta que a identidade narra- tiva abrange tanto a identidade pessoal quanto a coletiva, e esses dois polos - si mesmo e o si mesmo na relação com outro - oscilam sempre, o que comprova as inúmeras facetas da heterogeneidade de cada ser. Ainda com base nesse autor, além das múltiplas vozes que situam “um quem” na contação, a identidade narrativa marca a experiência do indivíduo em um antes e um depois, pois é a tem- 176 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 poralidade, por meio da inteligência narrativa, que cria um relato num “terceiro tempo”. O tempo em que lemos a narrativa é um, o tempo em que foi escrito é outro. Nos trechos: “Encontro pelo meet da última semana” e “Entre elas, uma que, por participar sema- nalmente, usa o aplicativo sem grandes dificuldades”, é possível perceber que os marcadores temporais também trazem sentido para o leitor e contextualizam a situação de ensino. No excerto “Em um determinado momento, observo essa criança inquieta em sua cadeira”, a expressão em destaque, além de reforçar a linearidade dos acontecimentos, demarca-se o clímax da narrativa na estrutura canônica, já que o leitor atento terá uma quebra de expectativa. No que diz respeito à memória, os marcadores temporais “úl- tima semana”, e “semanalmente”, além de algumas adjetivações como“poucas crianças”, “chegam animadas” ainda remetem à ideia de recordação. Nesse sentido, Candau (2016) explica que a memória de alto nível é uma invocação involuntária de lembranças, já a metamemória é a representação que cada indivíduo faz de sua memória. Assim, as expressões linguísticas que marcam a tempora- lidade e as características dos sujeitos, de certa forma, representam a memória de alto nível; contudo, ao mesmo tempo em que a pipoca pedagógica se materializa enquanto gênero, ela se insere no nível da metamemória, pois essa é a representação que a narradora fez de suas recordações. A professora, ao mencionar “encontro pelo meet da última semana” e ao descrever o lugar em que a criança acompanhava a aula como no trecho “(...) observo essa criança inquieta em sua cadeira”, molda os significados espaciais em que ambas habitam, nesse caso, um espaço virtual, o Meet. Pensando nesse contexto, Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) explicam que os espaços moldam fluxos; assim, também percebemos essa sintaxe de movimento por 177 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 meio da sequência descrita pela professora ao observar a inquie- tação de seu aluno: “Em um determinado momento, observo essa criança inquieta em sua cadeira. Se mexe, faz caretas, dá risada”. Tal sequência de movimentos confere, ainda, um esculpir da aparência do corpo do aluno que, ao ser comunicado pela pro- fessora, constrói significados para ela, já que Liliam interpreta que a criança, possivelmente, não está atenta à aula e poderia estar em outra aba da internet. Além disso, as expressões “inquieta”, “se mexe”, “faz caretas” e “dá risadas”, também remetem à memória de baixo nível, pois, segundo Candau (2016), os esquemas e as cadeias operatórias inscritas na linguagem gestual contrariam o ethos; no entanto, tal situação revela uma ruptura com o hábito construído ao se utilizar o Meet, já que só, naquela interação consigo mesma, representada na tela por seu corpo “outro”, é que a criança passa a construir uma nova memória. Nesse sentido, mas agora sob a perspectiva dos mul- tiletramentos (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020), a narrativa internalizada pela professora e retomada por sua memória, cria uma representação ao construir significados para si mesma e, ao comunicá-la por meio da postagem, essa mesma narrativa é exter- nalizada para que outros possam construir diferentes significados. Já no excerto “Algumas poucas crianças chegam animadas. Entre elas, uma que, por participar semanalmente, usa o aplicativo sem grandes dificuldades”, a expressão em destaque também apresenta relação com a memória, pois a partir do momento em que os sujeitos são capazes de utilizar a plataforma Meet sem grandes dificuldades, por meio de certo automatismo em consequência da construção de um hábito, nota-se uma experiência incorporada, que é o que Candau (2018) chama de protomemória ou memória de baixo nível. Por último, o fato de a professora escrever e publicar sua pipoca pedagógica em um Instagram com essa finalidade faz com que ela também passe a construir uma memória coletiva, haja vista que 178 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 há outros “outros” que a seguem e leem o que ela escreve, com- partilham seus textos, refletem sobre as práticas pedagógicas da professora ou se inspiram em seu trabalho. Por sua vez, o próximo corpus a ser analisado é uma outra pos- tagem de Liliam na mesma página. Nela, intitulada “minha casa”, a professora traz seu primeiro contato presencial com uma aluna que, com frequência, assistia às suas aulas virtuais durante a pandemia. Ao caminharem pela escola, espaço em que elas se encontraram, a professora expressa sentimentos de calmaria enquanto conversa- vam pelo lugar. A última fala da aluna retratada no post (i.e. “Foi o melhor dia da minha vida conhecer a sua casa” (grifo nosso) revela-se, no entanto, inusitada, já que ela atribui a noção de casa à professora, como se o espaço fosse o lar, o abrigo de Liliam. Figura 2: Postagem sobre o retorno ao espaço escolar pós-pandemia, feita pela professora Liliam de Oliveira. Fonte: Instagram6 6 Disponível em: https://www.instagram.com/p/CTCPNgGrtpa/?hl=pt-br. Acesso em: 9 jan. 2023. https://www.instagram.com/p/CTCPNgGrtpa/?hl=pt-br 179 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Em certo sentido, propõe-se aqui a reflexão de “casa” sob a perspectiva de outro viés de espacialidade: a casa descrita como um espaço de pertencimento (não em sua totalidade, mas parcialmente) pois, da mesma maneira que pode ser vista como uma moradia, pode representar um certo grupo de pessoas, uma comunidade. Além disso, em um sentido mais geográfico de casa, verifica-se também a ampliação desse espaço, já que, no campo virtual, a ubiquidade7 tende a ser uma característica frequente, desconstruindo seu caráter fixo/concreto. Dessa maneira, a professora ao dar ênfase no título do es- paço a “MINHA CASA” em caixa alta na diagramação, carrega, na interpretação da aluna, a sua relação com o espaço - ou seja, um possível não reconhecimento da dimensão pública. Assim, apesar de o espaço ser público, a posse é atribuída pela aluna à docente, não atribuindo um “nosso” à sua relação do sujeito com esse espaço. Muitas protomemórias (CANDAU, 2016) fazem parte do universo social, como é o caso da ida à escola, presente no imaginário social de indivíduos que dificilmente se questionam sobre a necessidade ou existência dela, mas que apenas possuem como pressuposto o fato de que é necessário frequentá-la. Já na expressão “só a conhecia virtualmente”, reside a limi- tação do contato entre aluna e professora. Há, de certa forma, uma ênfase no advérbio “só”, que exclui as possibilidades de contatos sensoriais. Soma-se a isso o uso do advérbio “virtualmente” para demarcar um não espaço físico e, portanto, não permeado de sen- sações, apesar de repletos de sentimentos no diálogo do design. Na declaração da docente, o adjetivo “velha”, atribuído a uma jovem criança, demarca dois níveis de memória. A primeira refere- -se à memória procedural que, segundo Candau (2016), remete ao hábito, constituído diariamente entre a professora e a aluna; 7 i.e. o acesso aos meios digitais a qualquer hora e em qualquer lugar, desde que se tenham recursos e letramentos para isso. 180 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 já a segunda memória é a de alto nível, pois Liliam materializa as características da criança em sua pipoca pedagógica por meio dos adjetivos “participativa”, “alegre”, “conversadeira” e “calma”. Nesse sentido, os corpos que habitam esses espaços também merecem ser destacados, pois desenvolvem relações identitárias não somente com esses ambientes, mas também com outros corpos com os quais entram em contato. Na prática, isso fica evidenciado pelo uso da expressão “circulando pela escola, brincando e co- nhecendo cada espaço”. Somado a isso, observa-se também o uso do gerúndio nos verbos “circulando”, “brincando”, “conhecendo”, o que possibilitou a interpretação de uma ideia mais dinâmica dessas ações e carregada de experienciação. Além disso, também é importante salientar a dualidade espa- cial em que essa noção de lar está presente, sendo ora um local de proteção, ora um terreno de relações sociais. É nessa compreensão de “casa” como um lugar de significados instáveis que o conceito de protomemória proposto por Candau (2016) pode ser inserido. A representação que a criança faz da casa é o próprio senso prático que logo age no corpo, sendo caracterizada como inconsciente e imperceptível. Em outras palavras, é vista como os espaços organi- zadores de ações e características de um grupo que repassa a outras gerações suas práticas quase que de forma inconsciente, visto que elas estão tão enraizadas nos sujeitos que essesnão pensam sobre o porquê dessa prática, apenas a fazem. Sob o olhar dos multiletramentos (KALANTZIS; COPE; PI- NHEIRO, 2020), por sua vez, nota-se no trecho “enquanto ela calçava os seus sapatos” que esse inconsciente imperceptível perpassa, novamente, a fronteira entre público e privado, já que, ao narrar esse movimento corporal da aluna, percebemos um com- portamento típico de quem é convidado e de quem está à vontade diante de seu anfitrião. 181 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 É válido destacar, ainda, a estrutura do post, que se apoia em uma imagem de um céu com copas de árvores ao redor, como um recorte visual de uma janela ao mirar o céu, o que nos remete à intenção de apreço ao espaço perdido em contextos adversos e um espaço que é chave às dinâmicas de aprendizagem da Educa- ção Infantil. Novamente, um entre-lugar não apenas passível de representar o privado da janela de um cômodo residencial, mas também de comunicar os espaços de encontros em parquinhos e jardins escolares. Logo, é uma fronteira que se conecta a casa, mas que a escola ainda a ser conhecida e a natureza a ser experienciada. Assim, a situação remete não apenas ao espaço, mas aos fluxos e as interações para tal. Considerações finais: saboreando as possibilidades A escrita da narrativa do cotidiano traz um olhar para o mo- mento da vida que, de alguma forma, nos inspira; traz reflexões que nos impactam sobre um viver que achamos importante destacar. As pipocas pedagógicas, em especial, no cotidiano do trabalho escolar, promovem a reflexão sobre a práxis, a análise crítica do próprio trabalho, a escuta atenta do outro e para o outro, além de propiciar novos olhares para os significados contextuais e modais dos Multiletramentos, conforme a abordagem de Kalantzis, Cope e Pìnheiro (2020). Georgakapoulou (2015) afirma que as pequenas nar- rativas assumem uma estrutura crítica para a análise de narrativas e construção de identidades, possibilitando a criação de mundos, a recontextualização de uma história e novos ponto de vista por meio das múltiplas vozes que interagem com esses textos. Nesse sentido, a pipoca pedagógica, enquanto corpus de análise, propicia, por meio de um olhar atento, a percepção dos diferentes entre-lugares nessa compreensão dinâmica do espa- ço, como sinalizado por Bhabha (1998), fluxos que influenciam 182 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 nas interações que constituem os “eus” emergentes, sinalizando uma identidade narrativa. No caso da pipoca, instrumento de análise deste trabalho, evidencia-se a concepção pedagógica da professora por meio de sua escrita, de suas escolhas lexicais e da forma como suas múltiplas vozes, gestos e comportamentos interagem no contexto de produção e, posteriormente, com seus possíveis leitores. A percepção dos ambientes comunitários, o desenvolvimento de papéis sociais, suas relações e identidades são, pois, os campos contextuais que passam a atribuir novos significados aos elementos de designs presentes nas pipocas. A professora só narra suas pipocas pedagógicas porque recorre aos diferentes níveis de memória: o resgate de lembranças; e eviden- ciamos isso por meio de marcadores temporais e adjetivações, per- cebendo o recurso instintivo da memória de alto nível (CANDAU, 2016). Assim, no momento em que a professora materializa suas narrativas através da escrita, há uma representação de sua própria memória, o que Candau (2016) reconhece como metamemória. Cabe ressaltar, ainda, que a rotina pedagógica da professora, seus hábitos e seus saberes incorporados remetem à memória de baixo nível como um movimento cíclico recorrente nos diferentes níveis de memória. Por se tratar de uma pipoca pedagógica publica- da na rede social Instagram, ao compartilhar com outros públicos, essa memória ultrapassa o nível individual e passa a ser coletiva, já que há uma ampliação de pessoas que podem se envolver com esse conhecimento; contudo, o impacto de engajamento se dá pela ludicidade que remete a uma inteireza de memórias e lembranças daqueles que coadunam da rotina escolar, como contemplado por Luckesi (2022). Uma ludicidade que não se acessa por informação somente, mas pelo compartilhamento de sentimentos. O poder metafórico contemplado por Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) notavelmente incorpora, nessa perspectiva, os significados táteis aos espaciais. 183 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Usualmente, conforme discutido, a nossa sociedade organiza os nossos projetos escolares em função de uma lógica de consumo de designs valorizados, narrativas herdadas a serem processadas logica- mente. Assim, os gêneros textuais oriundos das narrativas comuns se tornam uma prática não valorizada e restrita, muitas vezes, ao campo da oralidade e da discursividade. A educadora provocou, com suas postagens, um (re)design de narrativas pontuais, atribuindo uma materialidade digital multiletrada repleta de afetividades e, portanto, de ludicidades. Ela possibilitou, assim, um espaço virtual para sensibilizar coletivamente o valor desse espaço escolar e seus fenômenos de linguagem. Como vimos, refletia Rubem Alves (1999) que aqueles presos à tradição nunca explodem em pipocas, permanecendo milhos rígi- dos por toda a vida. Em períodos epidêmicos, mais especificamente os milhos do tempo comum, que é o encontro distante entre essa docente e suas curiosas crianças, isso oportunizou o estourar das pipocas em novos enquadres e em possibilidades de construção de novos sentidos e de significados em novos designs. Assim, a educa- dora passa a construir suas narrativas para além de um relato escrito em determinado conteúdo ou tema, contemplando os múltiplos elementos de designs espaciais, gestuais, escritos e visuais. Somado a isso, desenvolve-se uma aprendizagem mais sig- nificativa em tempos de tantas dores, propiciando processos de conhecimento, tornando esse (re)design uma narrativa para além de multimodal e multicultural, com a participação ativa dos sujeitos como principais elementos do ato de comunicação. Em períodos de cerceamento por traumas históricos, o seu olhar na tela, o olhar ao outro e o olhar às memórias permitem, por sua vez, o desenvol- vimento de significados, remetendo-nos ao sabor da infância que constrói sua ebulição no calor das múltiplas linguagens. 184 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Referências ALVES, R. A pipoca. In: ALVES, R. (org.). O amor que acende a lua. Campinas: Papirus, 1999. p. 59-64. ARFUCH, L. Narrativas de la memoria: la voz, la escritura, la mirada. In: ARFUCH, L.(org.). La vida narrada: Memoria, subjetividade y politica. Villa María: Eduvim, 2018, p. 57-78. ARFUCH, L. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: UERJ, 2010. BHABHA, H. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. CANDAU, J. Memória e identidade: do indivíduo às retóricas holistas. In: CANDAU, J (org.). Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2016, p. 21-57 FERREIRA, L. 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São Carlos: Pedro & João Editores, 2017. http://portal.unemat.br/media/files/ludicidade_e_atividades_ludicas(1).pdf http://portal.unemat.br/media/files/ludicidade_e_atividades_ludicas(1).pdf 185 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 IDENTIDADES DOCENTES EM ANÁLISE: ÉTICA DO CUIDADO, MULTILETRAMENTOS E A INVASÃO DO FUTURO Rafaela Bolsarin Universidade de São Paulo Gabriela Claudino Grande Universidade Estadual de Campinas; Universidade Federal do Mato Grosso do Sul; King’s College London Roziane Keila Grando Universidade Estadual do Centro-Oeste; Universidade Estadual de Campinas Introdução “ [...] Toda a ação, disse John Dewey, ‘é uma invasão do futuro, do desconhecido. Conflito e incerteza são verdades absolutas’ (1922, p. 12).” (MCDERMOTT; TYLBOR, 1983, p. 282, tradução nossa) Ao mencionarmos McDermott e Tylbor (1983) em nossa epí- grafe, buscamos abordar a formação de professores enquanto ação, uma ação que é permeada por caminhos desconhecidos, conflitos e incertezas que são traçados a partir da relação entre o futuro (discursivamente expressado nesta pesquisa) e a performatividade 186 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 desses alunos-professores. Por meio do discurso, os participantes descrevem como percebem suas próprias identidades e práticas pedagógicas futuras que são (re)transformadas não apenas pela formação que recebem no presente, mas também pelos professo- res que tiveram ao longo de suas histórias, unindo assim, passado, presente e futuro, para criação de suas identidades de professores. A questão das identidades do professor de línguas tem ganhado destaque na literatura recente, sendo tomada de forma situada para debates que são tecidos acerca da formação de docentes. Tornar-se professor no Brasil de hoje, em um contexto de tantas adversidades, tem sido um processo desafiador, tanto para futuros professores quanto para formadores desses profissionais. Isto se deve não apenas às relações sociais, e principalmente comunicativas, que têm ficado cada dia mais violentas e polarizadas, mas também a uma espécie de rejeição à diversidade, essencial para a inclusão em direção a uma educação ética e responsável, que tem sido tomada como contrária aos ideais conservadores que ocupam o poder em nosso país no momento (em 2022). A inclusão, aliás, tem sido um dos maiores desafios para a educação contemporânea, tendo em vista que o acesso à escola por grupos historicamente excluídos da Educação Básica (como povos indígenas, pessoas negras, surdas, com deficiência, transgêneras ou com orientação sexual não normativa, pobres, dentre outros) tem conseguido se consolidar graças ao ideal de democracia e a políticas de universalização do ensino. No entanto, muitas vezes, as identidades desses grupos ficam à margem ou ainda, nas bordas, em contextos educacionais, fazendo com que esse acesso não seja acompanhado de um novo modelo pedagógico capaz de abarcar a diversidade (ARAÚJO, 2011; SILVA, 2014). Essa diversidade, especialmente atrelada às identidades, en- globa diferenças econômicas e sociais, culminando também em 187 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 diferentes culturas, religiões, ideologias, linguagens e línguas, além de uma multiplicidade de características físicas e psíquicas. Infeliz- mente, e conforme temos acompanhado projetos de leis propostos recentemente1, essa diversidade não tem encontrado espaço e voz, particularmente em uma sociedade neoliberal na qual o capital de uma porcentagem ínfima da população tem mais agência do que a maioria esmagadora das populações, relegadas a decisões políticas e econômicas que as têm desfavorecido. Como temos presenciado, a direita conservadora do Brasil não apenas deixa de contemplar as vozes dessa diversidade das popula- ções, mas ressalta o patriarcado, o racismo, a homofobia, transfo- bia, misoginia, dentre tantos outros retrocessos sociais. O que tem ocorrido, portanto, é a sustentação de narrativas, materializadas pelas linguagens (especialmente as midiáticas), que contam com a manipulação de massas via redes sociais, bem como uma educação que enaltece as ações de disciplina e obediência, em detrimento do pensamento crítico e perspectivas freireanas de “ser” no mundo. Essa divisão crescente, no Brasil e também no mundo, associada às iniquidades exacerbadas pela pandemia de Covid-19 (como no acesso à educação remota on-line ou na distribuição de vacinas), propiciaram a elaboração de um novo relatório pela Unesco (Orga- nização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Nesse relatório é proposto um novo contrato social para a educação, tendo por base dois princípios fundamentais: i) “assegurar o direito à educação de qualidade ao longo da vida” e ii) “fortalecer a educação como um esforço público e um bem comum” (UNESCO, 2022, p. xii). O primeiro princípio tem por objetivo efetivar esse acesso à educação, garantindo também a permanência na escola e o direito à 1 A lista de projetos é extensa, no entanto, e para fins das discussões aqui tecidas, podemos citar como exemplo o projeto “escola sem partido”, que alega doutrinação das escolas que se apoiam no pensamento de acadêmicos reconhecidos mundialmente, como Paulo Freire. Disponível em: http://www.escolasempartido.org/. Acesso 14 nov. 2022. http://www.escolasempartido.org/ 188 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 escolarização em todas as idades e áreas da vida. Trata-se, portanto, de um princípio baseado no compromisso com os direitos humanos em uma perspectiva educacional mais ampla, que inclui o direito “[à] informação, à cultura e à ciência; ele requer um profun- do compromisso com a construção de capacidades humanas” (UNESCO, 2022, p. 10). O segundo princípio, por sua vez, implica uma governança com a colaboração entre diversos atores em prol de um bem comum. Assim, a educação deve ser vista como uma atividade compartilhada que coloca as pessoas (e as suas diversidades) em contato, oportu- nizando a construção coletiva de conhecimento para a humanidade. Com a diversidade como princípio, “[...] a educação afirma a dignida- de e a capacidade de indivíduos e comunidades, constrói propósitos compartilhados, desenvolve capacidades de ação coletiva e fortalece nossa humanidade comum” (UNESCO, 2022, p. 11). Nessa perspec- tiva e, diante da heterogeneidade trazida pelo acesso à educação, a diversidade não aparece como uma dificuldade a ser superada, mas sim como uma potencialidade para o aprendizado e a construção de saberes em direção à valorização e inclusão das “identidade[s] dos estudantes – cultural, espiritual, social e linguístico” que devem ser reconhecidas e afirmadas (UNESCO, 2022, p. 25). Como sinaliza Fettermann no capítulo seguinte desta coletânea, defende-se aqui a construção de uma educação não hegemônica, já que essa está baseada na legitimidade única referindo-se ao conhecimento social, pedagógico e, por consequência, político, do saber colonizador. Para isso, os estudos decoloniais, como apontados por Lírio e Azzari no último capítulo desta coletânea, surgem como uma perspectiva epistêmica para abordar as diversidades, bem como as identidades emergentes das interações entre sujeitos ligadas a interesses desses e também permeadas por ideologias. A visão da diversidade colocada pela Unesco (2022) faz relação direta com o manifesto elaborado por professores pesquisadores 189 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 de diversos países, no ano de 1996, conhecido aqui no Brasil como Manifesto dos Multiletramentos (CAZDEN et al, 1996). O Grupo de Nova Londres, como ficou conhecido, destaca que [...] se fosse possíveldefinir, de forma geral, a missão da educação, poder-se-ia dizer que seu propósito fundamental é o de garantir que todos os alunos se beneficiem da aprendizagem de forma a parti- ciparem plenamente da vida pública, comunitária e econômica (GNL, 2021, p. 102, grifo nosso). Ao encararmos a educação como um bem comum, como propõe a Unesco (2022), defendendo o compromisso coletivo pela construção e defesa de uma educação de qualidade, estaremos em harmonia com os pressupostos de Freire (1981, p. 79), ao pensar o ensino como uma prática coletiva e colaborativa, já que “[...] ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediati- zados pelo mundo”. Para isso, o papel do professor e da prática docente deve (ou deveria) estar alicerçado à pedagogia dos letramentos2. O ma- nifesto, e também nosso trabalho, ressalta ainda que “como as pessoas são simultaneamente membros de múltiplos mundos da vida, suas identidades têm múltiplas camadas, que se relacionam de maneira complexa umas com as outras [...] [sendo] membros de comunidades múltiplas e sobrepostas” (GNL, 2021, p. 116, grifo nosso). A pedagogia dos multiletramentos, como mostram Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 24), discute a necessidade, cada vez maior, de promover letramentos diversos alicerçada ao compromisso de “[...] formar indivíduos que possam navegar pela mudança e pela diversidade” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 24) de forma ética e responsável. 2 Trata-se de uma abordagem de ensino cuja centralidade está no aluno, procurando dar espaço para a sua autoexpressão. Com isso, envolve também processos de conhecimento dos multi- letramentos entendidos como experienciais (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020). 190 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Por isso, ao tratar o “o quê” dos multiletramentos, Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) e o GNL (2021) compreendem os letramentos como designs3 de significado. Isso porque, o paradigma multi dos multiletramentos envolve a diversidade cultural (multicultural) e a diversidade de modalidades - linguística e tecnológica (multimodal) - sendo ambos efeitos da globalização que interferem diretamente no mundo do trabalho (social também) e, consequentemente, no mundo da escola. Tendo como ponte o termo “design”, ele é as- sociado à dimensão profissional (do mundo do trabalho) para as outras dimensões da vida social (pessoal e de participação cívica) (PINHEIRO, 2016; 2017). Assim, o termo design é associado a três outros componentes básicos da pedagogia, a saber: available designs, designing e redesigned (para mais informações, reveja o primeiro capítulo desta coletânea). Os available designs são os designs disponíveis, isto é, padrões de significado disponíveis para os sujeitos sociais que os trazem de suas heranças culturais e ambientais, traduzem-se por meio de convenções de linguagem, imagens, sons, gestos, toques e espaços pelos quais vemos e sentimos, aprendemos a usar esses designs para nós mesmos e para a interação social (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020). O designing está relacionado aos atos de design que nos enga- jamos e, assim, criamos novos designs. Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) alertam para o fato de que o construtor de significado não replica ou copia os designs encontrados, porque ao envolver-se no 3 Design aqui é entendido como o proposto pelo GNL (2021), ao emprestar o conceito do mundo do trabalho “o design” enquanto dimensão profissional que se forma por meio de um processo de construção de sentidos, porque o sujeito que atua pela linguagem, o designer, tem capacidade de desenvolver e transformar um conteúdo conhecido para dele se apropriar convenientemente (PINHEIRO, 2016). Seguindo o mesmo autor (2017), entendemos também que o termo design comporta uma ambivalência que justifica a manutenção do termo em Língua Inglesa, englobando “primeiramente um sentido mais restrito, isto é, uma instanciação de convenções e recursos construídos e reificados socioculturalmente, como também apresenta um sentido mais amplo, que se constitui por meio de um processo de retrabalho, que leva à sua própria ressignificação/transformação” (PINHEIRO, 2017, p. 12). 191 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 processo de design está também atuando com a sua subjetividade, isto é, uma expressão de sua voz que está alicerçada a uma combi- nação (única) de recursos disponíveis em seus contextos e culturas para a construção de significados. Com isso, aos nossos participantes da pesquisa serem questionados sobre suas interpretações acerca da docência e de ser docente, eles estão em processo de designing. O redesigned está relacionado ao processo de transformação, isto porque “o resultado do seu designing pode contribuir para que outra(s) pessoa(s) (re)pense(m) as coisas e as veja(m) de uma nova maneira, o que pode ocorrer imediatamente ou em algum momento posterior, se e quando alguém tiver acesso ao design” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 175). Ao passo que algo é ouvido, fotogra- fado, escrito, filmado é devolvido ao mundo por meio da linguagem e, essa devolução causa uma transformação no mundo e, no próprio designer de significados (o sujeito). Por isso, entendemos, neste trabalho, com base na pedagogia dos multiletramentos, que as formas de significado são “processos dinâmicos de transformação” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 177) e, portanto, não são processos de reprodução, mas sim de representação4. Posicionando a educação como um direito humano ao longo de toda a vida e um bem comum que deve abarcar a diversidade, inclu- sive de letramentos, buscamos investigar como esses pressupostos perpassam (ou não) a construção de identidades autonarradas de futuros professores de línguas, incorporando princípios éticos e multiletrados para suas futuras práticas profissionais5. 4 A representação no processo de construção de significado mostra não só como os construtores de significado “eem as coisas como são; eles também, até certo ponto, veem as coisas por meio dos olhos de sua mente, isto é, das maneiras que lhes convêm, que se encaixam em seus preconceitos (ideias preestabelecidas). [. ..] estão sempre (re)construindo seus mundos, vendo-os de novas maneiras, pensando novos pensamentos, visualizando coisas por novas perspectivas e imaginando coisas possíveis [...]” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 169). 5 Optamos nesta pesquisa por não explorar a noção de crítica em relação aos multiletramentos. Para isso, sugerimos a leitura do capítulo 9 de Lírio e Azzari. 192 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Profissão professor: identidades, letramentos e ética O construto teórico em relação às identidades sociais tem sido uma das principais questões em algumas disciplinas das humani- dades, como na Sociologia, Linguística Aplicada, e Psicologia. Tal protagonismo, em parte, reflete uma crise da identidade, que é vista de forma ambígua, como vital e problemática para a modernidade (BENDLE, 2002). Embora pareça contraditória, essa crise se deve precisamente ao reconhecimento de que é fundamental valorizar construções teóricas que contemplem as identidades sociais na busca do bem-estar pessoal e na ética de cidadãos, ao mesmo tem- po em que reconhece seu caráter fluido, múltiplo e fragmentado. No que diz respeito ao ensino de línguas adicionais e identidades, ancoramos-nos em uma abordagem social e concepções teóricas a partir do trabalho de Bonny Norton Pierce (1995). Norton elabora uma teoria abrangente de identidade social, que integra os alunos de idiomas a seus contextos de aprendizagem. Tais construções de identidades, enquanto construto teórico-relacional (SILVA; HALL; WOODWARD, 2014), têm sido marcadas pela diferença. Em relação à educação linguística, ética e identidade, David Block (2009) pondera o papel desta últimacomo recurso para o estabelecimento de subjetividades, nas quais atores sociais se “po- sicionam” dentro de narrativas mais coerentes para o seu “eu”. O mesmo autor também aponta como as distinções nos conceitos de subjetividade/identidade são importantes para discernir processos que se estabelecem socialmente desde o nascimento até processos de construção em curso e emergentes. Ainda que tais diferenças extrapolem o escopo deste trabalho, é importante lembrar que há uma interdependência entre os dois termos: enquanto a identidade se dá nas formações discursivas e nas performances de cada indiví- duo, ela se materializa por meio de interlocuções com outros e das diferenças que são percebidos na construção de uma subjetividade 193 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 compartilhada. Em suma, e de forma mais pragmática, a noção de identidade que será aplicada neste capítulo está diretamente ligada à forma como os sujeitos fazem e respondem a perguntas como: “Quem pensamos que estamos nos tornando?” e como os outros nos veem; “Quem os outros pensam que somos?” e suas conexões com nossas práticas e comunicação na vida. Na busca por essas respostas, a ética se torna essencial na me- dida em que nossa presença no mundo está interrelacionada com o outro. Ou seja, em nosso processo de vir a ser, como consideramos o outro e a sociedade naquilo que buscamos nos tornar? Como essa pessoa que quero ser contribuirá (ou não) com algo ou com alguém? Assim, buscar um impacto para além de si em seus projetos de vida deve ser uma meta para a construção de uma sociedade mais justa para todos, entendendo o projeto de vida como “[...] uma intenção estável e generalizada de alcançar algo que é ao mesmo tempo significativo para o eu e gera consequências no mundo além do eu” (DAMON, 2009, p. 53, grifo do autor). Dessa forma, avaliamos que, especialmente para um professor, a construção de seus projetos de vida (o que ele deseja alcançar) e de sua identidade (quem ele é ou está se tornando, e quem deseja se tornar) deve passar por uma discussão ética. Como mostram pesquisas empíricas, “[...] conforme os indivíduos desenvolvem uma visão mais apurada de quem eles esperam se tornar, também ficam mais suscetíveis a desenvolverem uma visão mais apurada do que eles pretendem realizar”6 (BRONK, 2014, p. 73, tradução nossa). Diante disso, cabe a questão: como as formações iniciais propiciam (ou não) aos futuros professores a reflexão sobre sua relação com o outro (em especial, seus alunos e o impacto social de seu trabalho) em suas identidades e em seus projetos envolvendo a docência? 6 No original: “as individuals develop a clearer sense of who they hope to become, they are also likely to develop a clearer sense of what they hope to accomplish”. 194 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Quando investigamos identidades, multiletramentos e ética no âmbito educacional e institucional, particularmente na formação de professores de línguas, é preciso considerar a forma relacional como as identidades são constituídas em diferentes tempos e es- paços, sendo as diversas esferas da vida, como acadêmica, pessoal e profissional, profundamente impactadas pela ética. Essa é uma das razões pelas quais inter-relacionamos as Identidades de Professores de Línguas (IPL), como identidades situadas ou como suas outras identidades transportáveis (ZIMMERMAN, 1998), para a compre- ensão mais abrangente de como a hibridização de tais identidades perpassam as práticas (presentes ou futuras) dos professores em pré-serviço aqui em foco. Segundo Bhabha (2013), a constituição de identidades (no plural e na contemporaneidade) se dá na intersecção entre tempo e espaço, passado e presente, ou ainda através da invasão do futuro (conforme abertura deste capítulo) e de quem eles serão, na relação consigo mesmo e com os outros, entre outros atravessamentos que vão além das narrativas originais de subjetividade - relacionadas à raça, gênero, geração, localização e sexualidade - para abrir es- paço a processos de “entre-lugares” (singulares ou coletivos) para “novas” identidades. Em suma, essas formas de estar no mundo estão inseridas em nossas sociedades e, portanto, em mudanças em nossos modos de viver e comunicar, bem como para a educação linguística e práticas multiletradas inclusivas de professores que, mais comumente do que gostaríamos, precisam se posicionar de forma contrária a instituições e governos, na tentativa de manter uma coerência ética de inclusão da diversidade. Nesse cenário de uma inclusão não legitimada ou materializada e uma crise identitária, a ética tem papel fundamental no diálogo para a construção de uma identidade docente que considere a pre- sença do outro - dos alunos, dos colegas, da gestão, das famílias e da comunidade e da diferença. Essa abordagem da moralidade que 195 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 prioriza o cuidado para com o outro tem por base a ética do cuida- do, proposta por Carol Gilligan (1982) para definir uma perspectiva centrada nos relacionamentos. Nesse bojo, a ética do cuidado tem ganhado destaque justamen- te por ir ao encontro da contemporaneidade de uma sociedade que urge pela concretização da inclusão. Ao propor um novo contrato social para a educação que se materialize em sua plenitude até 2050, a Unesco (2022) prevê a ética do cuidado como um princípio para a reimaginação de nosso futuro: [....] uma ética do cuidado permite que nos entenda- mos como pessoas interconectadas, ao mesmo tempo capazes e vulneráveis. Obriga-nos a refletir sobre como afetamos e somos afetados pelos outros e pelo mundo. [...] Cuidar de, cuidar para, fornecer cuidados e receber cuidados são atitudes que devem ser incluídos nos currículos que nos permitem reimaginar nossos futuros interdependentes juntos (UNESCO, 2022, p. 65). Para a Unesco (2022), a educação enquanto sistema valorizou o sucesso individual em detrimento de uma prosperidade coletiva, gerando competição e, consequentemente, individualismo. Assim, para criarmos um futuro sustentável para todos, a entidade defende a ética do cuidado como um valor, tendo por base a consciência de nossa interdependência e, como consequência, o ideal de solida- riedade. No recorte deste capítulo, adotamos a ética do cuidado na perspectiva de Verducci (2008) que, com base na obra da filósofa Nel Noddings (1984), estabelece três características para essa ética: atenção receptiva (com as pessoas abertas para escutar e vivenciar relações mais heterárquicas), integração motivacional (que prevê a integração do servir a si com o servir ao outro na medida em que 196 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 as experiências pessoais do sujeito o motiva a agir em benefício do outro) e preocupação com relacionamentos (segundo a qual as pessoas buscam construir, restaurar, manter e nutrir relações uns com os outros). Com base nesses três eixos teóricos - multiletramentos, identi- dades e ética do cuidado - entendemos que, se adotarmos a missão da educação como um direito para garantir a participação plena dos indivíduos em todas as esferas da vida, conforme preveem os multi- letramentos (GNL, 2021, p. 102), é necessário que a formação inicial de professores englobe a discussão sobre as identidades e a ética. Isso porque, para propiciar uma aprendizagem para os estudantes que beneficie suas atuações enquanto membros de múltiplas comu- nidades, acreditamos que é preciso que as identidades do professor sejam pautadas por princípios éticos que incluam o cuidado com seus alunos e tenham a diversidade (social, linguística, cultural, modal etc.) como um valor. Tomemos como exemplo um professor que tenha identidades transportáveis religiosa e político-partidária como centrais em suas vidas. Se este professor não entenderque sua identidade situada como docente precisa considerar a diversidade de seus alunos como um direito, é possível que o docente encare a sala de aula como um local de doutrinação dos alunos e padronização de valores. Nesse sentido, a discussão sobre diversidade produtiva, pluralismo cívico e as multicamadas dos mundos da vida da comunidade (GNL, 2021) pode ser um caminho profícuo para construção de identidades do- centes que acolham a heterogeneidade dos estudantes que acessam a educação formal hoje e que nutram relações de cuidado, de escuta e menos hierárquicas com todos os alunos como um princípio ético. Para tanto, convém discutir os processos de conhecimento pressupostos por Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020), propostos para refinar e ampliar as tradições pedagógicas acerca da prática docente, 197 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 a partir da classificação feita em quatro orientações: a) experien- ciando (o conhecido e o novo), b) conceitualizando (por meio de nomeação e por teoria), c) analisando (funcional e criticamente) e, d) aplicando (apropriadamente e criativamente)7. “Experienciando o conhecido” envolve os conhecimentos que o estudante já tem (fora da sala de aula, ou seja, são situações que lhes são familiares e refletem experiências e interesses). Ao passo que “experienciar o novo”, como o nome diz, demonstra que o estudante está imerso em novas situações, participando de algo que lhe seja novo ou desconhecido (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020). No processo de conhecimento “conceitualizando por nomea- ção” os estudantes envolvem-se em processos de aprendizagem em que se faz classificação, agrupamento de determinadas informações em categorias. Ao “conceitualizar com a teoria”, por sua vez, os es- tudantes conectam conceitos e desenvolvem teorias (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020). “Analisando funcionalmente” os estudantes fazem conexões lógicas, relações de causa e efeito; ao passo que “analisando cri- ticamente” o estudante avalia e analisa perspectivas e interesses não só de si mesmos, mas também de outras pessoas (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020). Por fim, na etapa “aplicando apropriadamente”, os estudantes simulam ou testam seus conhecimentos em situações reais de forma previsível, ao passo que “aplicando criativamente”, os estudantes se posicionam com suas próprias vozes, relacionam conhecimentos de 7 Importa mencionar que os processos de conhecimento foram originalmente formulados pelo NLG (CAZDEN et al, 1996) para a estrutura dos multiletramentos como: prática situada, ins- trução explícita, enquadramento crítico e prática transformada. No texto de 2009 de Kalantzis e Cope os autores reformularam essas concepções e as traduziram em processos de conheci- mento relativos ao planejamento, documentação e rastreamento da aprendizagem. Com isso, o processo de experienciar envolve a prática situada, o de conceitualizar a instrução explícita, o de analisar o enquadramento crítico e, o de aplicar a prática transformada. 198 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 outros contextos para o contexto em análise, de modo que sejam fei- tas intervenções no mundo (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020). Em destaque, os autores mencionam, assim como os movimen- tos propostos inicialmente pelo GNL (CAZDEN et al, 1996) que tais processos não são estanques e nem devem ser entendidos como uma sequência, isto é, não há uma ordem determinada a ser seguida. O contexto, a situação e os objetivos de aprendizagem focados pelo professor é que irão determinar tais escolhas. Nesses processos de conhecimento que envolvem o experien- ciar, conceitualizar, analisar e aplicar, a atuação do professor é essencial em sua mediação para que as diversidades e as múltiplas camadas dos mundos que os alunos acessam estejam presentes, propiciando a sua discussão e valorização. Em outras palavras, para oportunizar uma vivência ativa do aluno na construção de sua aprendizagem e que dialogue com as suas identidades (enquanto aluna(o), cidadã(ão), jovem, morador(a) de um determinado local, integrante de determinados grupos), é preciso que o professor bus- que uma identidade docente multiletrada e ética, que incorpore por meio de relações éticas a multiculturalidade e a multimodalidade. Antes, no entanto, que possamos discutir a construção de identidades, a ética do cuidado e os multiletramentos de professo- res de Língua Inglesa em formação no centro-oeste brasileiro aqui focalizados, cabe-nos posicionar a pesquisa por meio de uma con- textualização espaço-temporal e metodológica na seção seguinte. Posicionando a pesquisa e o contexto: docentes discentes na UFMS O contexto desta pesquisa é o universitário, especificamente em uma instituição federal de ensino superior pública, locali- zada em Campo Grande, no Centro-Oeste brasileiro, que conta 199 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 com 11 campi espalhados no estado de Mato Grosso do Sul, e com um total de 12 cursos de licenciatura em Letras. O curso de graduação em Letras – Português e Inglês, aqui focalizado, é composto por 8 semestres letivos (ou 4 anos) para o prazo regular de integralização. Dentre os 29 discentes participantes (futuros docentes) dos semestres 4 e 8 do curso de Letras, a maioria era mulheres (82%), brancos (62%), e que estudavam na UFMS sem ocupação formal fora da Universidade (62%). Interessa destacar: mesmo para os que trabalhavam na época, a ocupação estava diretamente ligada à sua área de formação, ou seja, já atuavam como professores de idiomas (37%), mesmo não tendo concluído sua formação. A ementa da disciplina na qual os dados foram gerados8, “Ensi- no de Língua Inglesa - planejamento e perspectivas contempo- râneas”, tem o objetivo de propor que a “diversidade cultural e de linguagem, assim como a diversidade étnica, questões de gênero”, dentre outros temas transversais presentes na Educação Básica contemporânea, bem como os (novos) (multi)letramentos, sejam tomados como base para reflexão crítica considerando a profissão docente e a identidade de professores. A disciplina tem carga horária de 68 horas semestrais, alocada no quarto semestre e tida como uma disciplina de prática de ensino de Língua Inglesa. Essa disciplina foi ofertada para duas turmas distintas, ofe- recidas no segundo semestre de 2020, total e emergencialmente de forma remota, devido a pandemia em razão da Covid-19. Ainda que os diferentes contextos, ou seja, turmas diferentes e mesma disciplina, tenham produzido diferentes aulas, o planejamento e a preparação do curso, a priori, foram basicamente os mesmos. Ao 8 Os dados utilizados no presente capítulo fazem parte do corpus da tese de doutorado da autora Gabriela Grande, com projeto aprovado pelo Comitê de Ética em 2019 - CAAE: 15528819.4.0000.0021, desenvolvida na linha de pesquisa Linguagem e Educação do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Esta investigação se encontra em desenvolvimento e tem o apoio da CAPES e da UFMS. 200 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 focalizar as práticas de ensino de Língua Inglesa e suas relações com a diversidade; a escola contemporânea; a reflexão crítica diante de novas tecnologias e perspectivas educacionais dos (novos) (multi) letramentos, a ementa ao mesmo tempo guia e proporciona abertura ao professor para trabalhar com uma série de temas transversais e conteúdos relacionados à formação docente crítica. Para as discussões que fazemos nas seções a seguir, analisa- mos produções textuais de uma proposta que pedia aos alunos que refletissem sobre a percepção que eles têm sobre si mesmos e suas identidades enquanto professores de línguas. Em nosso corpus, fazem parte da análise os textos de 18 discentes participantes, con- siderando apenas os materiais redigidos em língua Portuguesa. As próximasseções apresentarão a análise dessas produções textuais, que são centradas em três eixos norteadores interrelacionados: a identidade, a ética do cuidado e os (multi)letramentos. Identidade do professor de língua em formação: caminhos em discussão Buscando investigar a identidade docente de estudantes de licenciatura a fim de (re)pensar possibilidades para a formação de professores, analisamos as produções textuais de 18 alunos, verificando as principais marcas linguísticas e pistas contextuais de como eles enxergam a si mesmos enquanto futuros professores. Para fins de análise, a identidade será entendida como um elemento de contexto. Para Zimmerman (1998), há uma distinção produtiva entre identidades que será adotada em nossas análises como forma de refletir sobre a construção identitária abordando dimensões ordenadas, repetitivas e reprodutíveis das atividades institucionais por meio da interação. A saber (1) Identidades situ- adas (institucionais); e (2) Identidades transportáveis. 201 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 As identidades situadas dizem respeito ao reconhecimento que os participantes têm em relação às expectativas institucio- nais que ocorrem em um ambiente acadêmico e os papéis que são performados em determinados contextos. Por sua vez, as identidades transportáveis são aquelas que carregamos em contextos distintos, mas que, inevitavelmente, influenciarão qualquer tipo de atividade, tal qual a produção multiletrada de um texto escrito avaliativo, dentro de uma disciplina de gradu- ação. Tratam-se, portanto, de identidades que estão intrinseca- mente atreladas à forma como esse futuro professor se vê diante do mundo, dentro e fora de sala de aula, desempenhando uma identidade situada ou não. Para entender esse processo de representação identitária situ- ada ou transportada, optamos também por incluir a ética (por meio da ética do cuidado), pois é ela quem permite que nos entendamos como pessoas interconectadas, o que afeta a(s) identidade(s), quer seja situada ou transportada desses futuros professores. E à medida que relacionarmos as identidades à ética e suas características - atenção receptiva, integração motivacional e a preocupação com os relacionamentos-, poderemos ter uma percepção acerca das identidades em construção desses futuros docentes e sua ética do cuidado. Os trabalhos que analisamos neste capítulo descre- vem como os discentes se imaginam desempenhando práticas multiletras em suas futuras salas de aula, perpassadas pela ética. Essa descrição é feita com base na escrita dos trabalhos aqui fo- calizados através não apenas das representações identitárias que estes discentes têm sobre si mesmos e suas identidades situadas docentes, mas também por meio do que pretendem fazer (ou já fazem) enquanto professores em suas práticas multiletradas, conforme pretendemos mostrar. 202 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Identidades, a ética do cuidado e os multiletramentos em foco: uma invasão do futuro Ao conduzirmos nossa análise dos 18 textos analisados dos alunos do curso de Letras, verificamos que apenas dois deles não fazem menção a qualquer princípio ético, de cuidado com o outro ou à responsabilidade social. Desses 16 estudantes que incorporam princípios éticos em suas identidades e seus olhares sobre si e suas práticas docentes, apenas dois não trazem a figura de seus alunos (atuais ou futuros) em suas identidades de professor: a discente Galadriel9, porque seu olhar é voltado para a sociedade como um todo e, embora seja repleto de responsabilidade e desejo de trans- formação social, não há menção direta aos (futuros) discentes; e a aluna Katniss, porque ainda não se situa, em seu discurso, enquanto professora, ainda que haja um vislumbramento de que sua identi- dade docente possa ser incorporada em algum momento no futuro. Sendo assim, Katniss apenas permite-se situar como discente, sen- do, portanto, incongruente que haja qualquer menção à dimensão dos seus alunos, ainda que futuros. Galadriel é um exemplo simbólico da relação entre ética e identidade na construção de sua identidade docente. Isso porque, ao assumir uma identidade transportável de cidadã brasileira preo- cupada com a transformação sociopolítica do Brasil, tal identidade exerce influência em como ela concebe sua docência, o que pode ser observado no trecho abaixo, de sua produção textual: [...] exercer meu papel como professora será utilizar o poder da palavra e da linguagem para salientar refle- xões que são extremamentes urgentes no nosso país, é necessário resistir nesse contexto e trazer reflexões 9 Utilizaremos pseudônimos sempre que nos referirmos aos alunos para manter o anonimato dos participantes. 203 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 para que as pessoas construam interesse dentro de espaços sociais e políticos, transformando toda a his- tória futura do Brasil, que ainda é nosso (GALADRIEL). Assim, a futura professora incorpora o princípio ético da res- ponsabilidade social na sua identidade docente, fundindo, portanto, suas identidades docente (situada) e cidadã brasileira (transportá- vel), assumindo para si papel ativo na transformação da sociedade através do contexto educacional. Em seu olhar, ela espera que “a educação possa nos salvar de tempos sombrios” e, como professora, espera contribuir para esse objetivo. Nessa contribuição, Galadriel destaca o lugar da licenciatura em sua formação, classificando a universidade como um “espaço multicultural” e “diverso” que teve relevante papel em sua trans- formação e aproximação de “um mundo crítico e real”, onde há o reconhecimento de que a “linguagem é poderosa”. Dessa forma, percebemos que a estudante entende o espaço universitário em que faz sua graduação como lugar em que sua identidade de professora também é construída e mobilizada por meio de letramentos ins- titucionais e não-institucionais. Isso porque, ao citar o “poder da palavra”, ela está se referindo à modalidade verbal, mas ao fazer a escolha do termo “linguagem” está se referindo à multimodalidade (copresença de mais de um modo de linguagem na construção de significados). Por fim, ao escolher dizer que as pessoas constroem o país que “ainda é nosso”, defende seu olhar plural quanto às iden- tidades e um sentimento de pertencimento a uma subjetividade coletivizada através do pronome possessivo no plural, “nosso”. Desta forma, Galadriel se posiciona como uma professora multiletrada na medida em que considera a multiplicidade de mo- dos de significação, de culturas, de comunidades e de identidades. Ao posicionar-se, a discente incorpora na representação de sua identidade situada docente princípios dos multiletramentos. Du- 204 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 rante a confecção de um artefato multimodal sobre sua identidade docente, para a disciplina e como complemento ao texto escrito aqui em foco, a discente, através dos discursos que são produzidos (multimodais - na forma escrita, oral, na produção de colagem de imagens), imagina suas práticas docentes com base nas representa- ções de identidades que são redesenhadas ao longo de seu caminho acadêmico e durante sua formação, numa espécie de redesign de si mesma e de suas identidades que são percebidas por meio de suas produções, como podemos notar no trecho a seguir: Galadriel conheceu três professoras [..] começaram a trazer a língua inglesa de uma forma diferente da que ela costumava aprender antigamente [..] Galadriel teve contato com inúmeras obras que foram moldando exatamente a professora que ela se tornaria futura- mente. [...] Foi exatamente o tipo de professora que ela teve que ela queria se tornar [...] Eu comecei a ver o mundo dentro da faculdade10 (Fala de Galadriel du- rante apresentação do trabalho em sala de aula - aulavideo-gravada em 2 dez. 2020). Em comum com Galadriel, a aluna Katniss também não traz o aluno em sua produção textual. Porém, diferente de Galadriel, que mira sua atuação em um contexto mais amplo que engloba a sociedade como um todo, Katniss parece não conseguir olhar para o aluno porque ela não apresenta sua identidade situada como professora em sua produção textual. Assim, seu texto é focado em sua identidade situada de aluna e em sua relação de aprendizado da Língua Inglesa e de interação com seus professores e colegas. Ao final do texto, ela sinaliza de forma mais direta a relação com a docência, mas projeta essa identidade como incerta para o futuro: 10 A discente usa a terceira pessoa para descrever sua identidade docente, sendo esse dado ob- tido através da gravação da aula síncrona on-line, na qual Galadriel apresentou seu artefato multimodal como parte integrante da disciplina em discussão. 205 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 [...] hoje, no último semestre do curso, surgem muitas dúvidas com relação ao futuro, minha profissão, se vou conseguir exercer e colocar em prática tudo o que aprendi, mas posso dizer que aprendi muito e pude mudar muitos pensamentos que tinha a respeito da prática docente (KATNISS). Apesar de não se posicionar em seu relato como professora de línguas, essa discente ilustra com riqueza o papel da universidade na formação de professores. Isso porque Katniss apresenta com detalhes a influência da licenciatura na sua relação com a Língua Inglesa e sinaliza que pretende atuar colocando em prática o que aprendeu. Nesse processo, a aluna destaca experiências dialógi- cas, interativas e multimodais como de trabalhos em grupo, com literatura, filmes, músicas e novas tecnologias, indicando que tais vivências a impactaram como aluna e permitiram que ela ressigni- ficasse o aprendizado. Ela menciona: [...] as aulas na universidade me ajudaram muito a en- tender melhor a língua, tanto aulas mais gramaticais quanto aulas mais dinâmicas, com vídeos, discussões, apresentações e outros (KATNISS). Ao reconhecer a importância de práticas multimodais na sua compreensão da Língua Inglesa, Katniss mobiliza o trabalho com modos de construção de significado que extrapolam o grafocentris- mo institucional em sua identidade situada de aluna. Com isso, foi oportunizada à aluna a incorporação de novos modos na aprendiza- gem da língua, o que pode gerar um espelhamento futuro para suas práticas docentes. Em outras palavras, o acesso às novas possibili- dades foi significado pela aluna de forma positiva ao reconhecer que 206 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 elas lhe ajudaram muito, o que abre caminho para que ela utilize a pedagogia dos multiletramentos em sua futura prática docente. Como explicam Cope e Kalantzis (2015), a noção de multile- tramentos procura abordar a variabilidade de construção de sig- nificados em diferentes contextos socioculturais ou em domínios específicos. Isso significa que para letrar já não é mais suficiente dar foco às regras da língua padrão; ao contrário, hoje, a construção de significados na comunicação e representação requer discentes que aprendam a negociar diferenças e padrões de significados de um contexto para outro, de uma modalidade para outra. Essas dife- renças envolvem, consequentemente, inúmeros fatores, incluindo as relações de gênero, experiências de vida, domínio social, e que “todo domínio muda e é atravessado para um certo grau” (COPE; KALANTZIS, 2015, p. 4). Isso fica ratificado em Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020, p. 88), ao dizerem que “o ensino de gramática só faz sentido quando é contextualizado”, quando o objeto de apren- dizagem é “parte do ensino consciente, para discutir determinado conteúdo do currículo, em uma situação de aprendizagem especí- fica” (KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2020, p. 88). Há uma representação imaginária de Katniss em relação ao que ela esperava ser a figura de um professor universitário e os papéis que desempenharia nessas instituições de ensino superior. É inte- ressante notar essa expectativa quando a discente relata pensar que seus professores seriam “indiferentes para com os alunos, apenas passando o conteúdo, não se importando se o aluno está aprendendo realmente”. No entanto, quando passa a pertencer ao contexto uni- versitário em sua identidade situada de aluna, Katniss mostra que encontrou professores “atenciosos, preocupados com a formação e aprendizado, para que os alunos sejam bons profissionais”. Com isso, a aluna reflete que esse aprendizado multiletrado, isto é, a aprendizagem pelo design (COPE; KALANTZIS, 2015) rea- 207 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 lizada pelos seus professores e, essas relações de cuidado, por parte desses formadores, foram essenciais para a mudança de visão em relação à docência, o que nos permite refletir que a ressignificação de sua identidade situada como aluna poderá ter um impacto po- sitivo na construção de sua identidade situada como professora. Em certa medida, é possível inferir que Katniss pretende, caso se torne docente, incorporar a ética do cuidado demonstrada por seus professores de graduação. Nesse sentido, a formação desses futuros profissionais está permeada pela pedagogia dos multiletramentos, isto é, pela aprendizagem pelo design, porque o foco dessa formação não está na cognição ou no pensamento, mas sim, nas ações para construção do conhecimento, do processo de conhecimento, porque externaliza-se nessa perspectiva, o conhecimento em ação, e ação não é puramente matéria do conhecimento. Retomando as produções textuais dos demais discentes aqui fo- calizados, observamos que dos 16 que incorporam princípios éticos em suas identidades, 14 englobam ainda a presença de seus futuros alunos. Isso ocorre por meio do desejo de impactá-los e ajudá-los por meio do trabalho docente e de construir relações democráticas e de cuidado com eles. Assim, a ética do cuidado se faz presente em suas identidades por meio das três características de Verducci (2008). Com a aten- ção receptiva, 10 discentes relatam desejos e projetos envolvendo a escuta e a abertura para relações mais heterárquicas, com maior autonomia aos alunos e diálogo, como defende a participante Capi- tu: “Para finalizar e resumir, eu me vejo como uma professora que valoriza o diálogo, as discussões, trabalhos em dupla e em grupo”, pretendendo ainda trabalhar com “translinguagem e afetividade para criar um ambiente acolhedor de modo a incentivar os estu- dantes a se engajarem nos estudos da língua”. O verbo acima, no presente, em “me vejo”, mostra como Capítu já incorpora a identi- dade situada de professora ao mesmo tempo que se alinha aos ideais 208 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 preconizados pelos multiletramentos, já que inclui a afetividade e a translinguagem como essenciais em contextos educacionais. Oito discentes relataram ainda uma integração motivacional em suas identidades e projetos de vida ao relatarem que experiências pessoais de seus passados educacionais, geralmente negativas, é o que os motiva a serem bons professores. O participante Luke relata: [...] minhas experiências foram bem tristes, pois, além desses métodos ‘arcaicos’, as professoras eram muito autoritárias, fazendo com que não houvesse interação e muita pressão (LUKE). Ao mostrar o que o mundo da vida não estava no mundo da escola, como assevera o GNL (2021), o aluno avalia que escolheu ser um professor de línguas para provar que pode superar seus traumas e medos e conseguir dar aula de forma muito diferente da que teve. Por fim, Luke escreve, ainda: “Finalizo dizendo que espero que minha prática docente e minha identidade como professor seja muito dife- rente do que eu tive. [...] Quero ser um professor que eu não tive!”.Essas experiências relatadas pelo futuro docente mostram como a formação escolar do aluno exibe, epistemologicamente falando, uma vivência de que aprender é um processo de tornar-se conhecedor. De que aprender faz parte da vida diária (COPE; KALANTZIS, 2015; KALANTZIS; COPE; PINHEIRO, 2021). Dentre os dados aqui estudados, notamos que 9 discentes incor- poram ainda a preocupação em construir, nutrir e manter relações de cuidado com seus alunos, destacando desejos de uma aborda- gem afetiva que promova um ambiente escolar confortável, com boas relações entre professores e alunos. Em nossa interpretação, a pedagogia dos multiletramentos emerge como uma possibilidade nessa abordagem ao oportunizar que os alunos experienciem o novo, isto é, tenham novas experiências com a língua, para depois aplicar 209 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 apropriadamente, ou seja, simulem ou testem seus conhecimentos acerca da língua-alvo em situações reais de forma previsível (COPE; KALANTZIS, 2015) para que seus (futuros) alunos possam “aprender o idioma sem medo de cometer erro” (CAPITOLINA). Com isso, as relações de cuidado dialogam com os multiletramentos na medida em que preveem um olhar e uma escuta sensível para cada aluno, possibilitando a construção de um ambiente seguro, que enxergue e valide todas as diversidades. Essa abordagem, embora ganhe amplitude por meio de diferentes modos de construção, pode ser utilizada até mesmo em aulas cujo foco esteja no trabalho com uma perspectiva normativa do ensino de gramática. Como ilustra o relato de Capitolina, a perspectiva do cuidado e da diversidade antecede os conteúdos ao se configurarem como um valor para a aprendizagem da língua: [...] é papel do professor tornar a sala em um espaço interativo e inclusivo para que os alunos possam aprender o idioma sem medo de cometerem erros ou de serem julgados pelos colegas, dentre tudo acredito que a relação aluno e sala de aula/professor seja pri- mordial quando se pensa da identidade do professor (CAPITOLINA). No entanto, e para fins de análise identitária de Capitolina, é possível perceber, linguisticamente, que ainda há um distancia- mento entre seu eu e o papel de professor. Ela atribui ao “outro” o papel de tornar a sala um espaço interativo e inclusivo, ainda que reconheça que a relação professor e aluno seja essencial para o que ela considera um aprendizado de língua bom. Adicionalmente aos papéis e identidades sobre as quais esses discentes discorrem pensando em seus futuros, também foi possível perceber a influência do passado, particularmente ao refletirem 210 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 sobre suas identidades transportáveis, para um fazer docente que possa, de forma ambivalente, ir ao encontro dos ideais de inclusão e ética. Dorian, conforme abaixo, exemplifica essa ambivalência. Por um lado ele reconhece como sua identidade cristã o influencia até hoje, ao mesmo tempo que clama por pensar uma educação que não seja “regrada, impositiva e por vezes até intolerante”: Isso se dá por conta da educação cristã que meus pais me deram. Era uma educação (que apesar de amo- rosa) regrada, impositiva e por vezes até intolerante (DORIAN). Embora seu passado o construísse, são seus projetos futuros e a ética docente que o fazem vislumbrar a invasão de um futuro professor que é ético e comprometido com a educação linguística inclusiva e diversa, porque ele se vê docente como: [...] aquele que quer dar ferramentas para que seus estudantes possam lidar crítica e eticamente com os discursos que os cercam (TATAKI, 2019). Aquele que quer pensar a realidade do mundo e seus problemas sociais e relações de poder de forma não convencional (MATTOS, 2017) por meio das práticas da linguagem. Aquele que é pesquisador, que busca formação e que está sempre atualizado (na medida do possível) (DO- RIAN). Apesar de Dorian utilizar o pronome demonstrativo “aquele”, fazendo-nos perceber que há um distanciamento em seu texto entre quem ele é (ou era quando escreveu seu trabalho) e quem ele pre- tende ser, é possível inferir que sua preocupação com os problemas 211 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 sociais, o papel da linguagem e, finalmente, do seu próprio papel de professor em um futuro próximo, poderá unir suas identidades na composição de suas práticas letradas de sala de aula. A forma híbrida e fluída com que as identidades, situadas e transportáveis, principalmente, encontram-se em eterna re(des) construção, fica latente nos excertos de Galadriel e Dorian seguintes: [...] principalmente as mulheres que ali se fizeram resistentes e presentes assiduamente, dentre tantas coisas que um dia eu já acreditei, dentro do espaço tradicional que cresci, foram anos e anos para descons- truir e reconstruir ideologias, crenças e perspectivas (GALADRIEL, grifo nosso). Em outras palavras, um professor que assume sua identidade híbrida e flexível ao espaço-tempo-cultural (QUEVEDO-CAMARGO; RAMOS, 2008 apud, BLOCK, 2007) que habita e que não se contente só com que já é e conquistou, mas que quer ir além de como está (DORIAN). Diante dessa hibridização e fluidez, pela qual perpassam prin- cípios éticos e dos multiletramentos como apontamos nos exemplos anteriores, a formação inicial tem papel essencial na construção identitária docente. Nos trechos que trouxemos de Dorian, isso fica ainda mais evidente com as referências que ele traz no próprio texto, citando autores que ele estudou para embasar características éticas, multiletradas e identitárias que ele vislumbra incorporar enquanto docente. A seguir, traremos algumas reflexões finais a respeito das discussões realizadas até aqui. 212 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Discussões finais No processo de formação de professores, o aluno que consegue ter acesso à universidade vivencia diversas experiências ao longo dos anos na academia e se forma como docente. Nessa jornada, é preciso que esse aluno construa novas identidades, especialmente sua identidade docente; em outras palavras, é preciso que esse aluno se torne ambos: aluno e professor. Conceitualmente, essa construção identitária situada como professor dialoga com as demais identidades do indivíduo, trans- portáveis e situadas, incorporando nela diversos elementos: do pre- sente, do passado e, em certa medida, do seu futuro. Como mostram os relatos dos licenciandos, esse processo é singular para cada um, o que implica uma formação que oportunize a cada aluno a reflexão de suas identidades. Retomando os exemplos de Capitu e Katniss, vemos que, enquanto Capitu já traz elementos de como se enxerga como professora, atribuindo significados a uma identidade situada docente, Katniss se coloca apenas em sua posição e identidade si- tuada de aluna, ou ainda, em uma posição de “não-professora” até o momento da redação de seu trabalho. Independentemente da temporalidade da construção de cada um, interessou-nos compreender como, nesse processo, os alunos incorporam elementos éticos e multiletrados nessas identidades, a fim de vislumbrar como suas identidades docentes dialogam com as necessidades contemporâneas - não só educacionais, mas sociais, de forma mais ampla. Galadriel, por exemplo, elenca o importante papel da licen- ciatura em sua formação, significando o espaço universitário como “multicultural” e “diverso”, o que nos faz questionar: quantas pes- soas, antes de adentrarem o mundo universitário, não conhecem ou nunca se colocaram no lugar do outro? Assim, percebemos o 213 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 papel da universidade, bem como dos formadores de professores, como parte integral de um processo mais subjetivo e atrelado a suas identidades transportáveis (como, por exemplo, de cristão- Dorian; cidadã brasileira ou mulher - Galadriel), no sentido de oportunizar que seus alunos em formação possam aprender a se colocar no lugar do outro empaticamente na tentativa de compreender o mundo por outras lentes além daquelas relacionadas às suas identidades situadas ou transportáveis. Ao adotar essa posição ética e inclusiva em práticas multile- tradas docentes, os professores em pré-serviço estarão, inevitavel- mente, posicionando-se de forma contrária aos ideais de uma direita conservadora que entende a inclusão e a diversidade como um risco aos ideais heteronormativos e patriarcais, em nome de um ideal de família único e não diverso, o que pouco condiz com a realidade brasileira11. Neste sentido, quando Dorian e Galadriel unem iden- tidades tidas como minoritárias e até mesmo contraditórias, como no caso de Dorian - cristão e homossexual, e no caso da segunda discente - de mulher e cidadã brasileira que se responsabiliza por uma educação ética e inclusiva - é possível depreender a intenção que estes discentes têm para exercerem ações docentes que possam abarcar a diferença por meio da diversidade. Retomando os pressupostos para um novo contrato social para a educação (UNESCO, 2022), entendemos que a escola conti- nuará sendo essencial no futuro, mas é preciso que essa escola se transforme para que o mundo se transforme também. Ao apontar a educação como o principal caminho para enfrentar desigualdades e valorizar a diversidade, a Unesco defende também uma formação de professores diferenciada, que passa por princípios de cooperação, colaboração e solidariedade, vinculados a uma ética do cuidado e a 11 Mais de 40% das famílias brasileiras são chefiadas somente por mulheres, conforme dados do IPEA. Para mais detalhes, acesse: https://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_chefia_familia. html. Acesso 29 nov. 2022. https://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_chefia_familia.html https://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_chefia_familia.html 214 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 uma aprendizagem ativa e multi - disciplinar, cultural, tecnológica, modal e letrada: [...] com um compromisso consistente em relação aos direitos humanos e ao bem comum, seremos capazes de sustentar e de nos beneficiar da rica tapeçaria de diferentes formas de saber e estar no mundo que as cul- turas e as sociedades humanas trazem para a educação formal e informal, assim como para o conhecimento que somos capazes de compartilhar e reunir juntos (UNESCO, 2022, p. vii). Nesse sentido, as produções textuais dos estudantes mostraram que tais princípios se fazem presentes em suas identidades, com vários deles referenciando elementos éticos e dos multiletramen- tos às práticas que vivenciaram na universidade e que pretendem reproduzir como futuros professores também. Assim, ao elencarem os professores da universidade como pessoas de referência para seus projetos de vida e a licenciatura como responsável por oportunizar vivências éticas, multimodais e multiculturais às quais eles atribuí- ram significados afetivos, esses estudantes sinalizam a importância da formação inicial para esse processo de construir, desenvolver e nutrir identidades articuladas a invasão de um futuro no qual possa se estabelecer um novo contrato social para a educação. Referências ARAÚJO, U. A quarta revolução educacional: a mudança de tempos, espaços e relações na escola a partir do uso de tecnologias e da inclusão social. 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Para compreendê-lo esse pensamento,é preciso entender melhor a decolonialidade, que vem sendo cada vez mais discutida nos dias atuais. Uma definição relevante para este trabalho é a de que ela se apresenta como “[...] luta e resistência contra os padrões de poder” (OLIVEIRA; LUCINI, 2021, p. 11) há mais de 500 anos, sejam eles históricos, políticos ou culturais, desencadeando um processo de não-aceitação da domi- nação dos povos que, de modo agressivo, foram subjugados a um lugar subalterno ou colonizado. 218 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Nesse sentido, o pensamento decolonial se torna essencial para trazer essas discussões aos ambientes acadêmico-científico- -culturais interdisciplinares, incentivando aprendizes a refletirem sobre maneiras possíveis de “[...] agir e pensar para romper com as barreiras da colonialidade, que é um processo amplo e profun- do, presente na atualidade ditando formas de pensar, ser e agir e, também, se reconfigurando para manter sua dominação” (OLIVEI- RA; LUCINI, 2021, p. 11). A partir dessa perspectiva, sugerimos que as práticas decolo- niais propostas na sala de aula toquem em pontos como a criticidade ao racismo e à discriminação em suas diversas formas, à justiça social, às culturas e línguas colocadas em lugares desfavorecidos ou desvalorizadas em relação a outras etc., desenvolvendo multi- letramentos que servirão para suas vidas em diferentes momentos. Assim, investigando se tais práticas acontecem, tanto com turmas de graduação como de pós-graduação, buscamos registro delas para compreender de que tipos são e em que contexto são realizadas. Para tanto, construímos este capítulo da seguinte forma: na primeira seção, partimos dos ‘multis’ dos multiletramentos, que com as constantes mudanças promovidas pelas condições comer- ciais, tecnológicas e culturais nos dias atuais desencadeiam a ne- cessidade de professores de idiomas ensinarem mais do que apenas aspectos relacionados à forma linguística (como a gramática), indo ao encontro do uso das línguas em situações reais da vida e de seus mundos; na segunda, descrevemos a decolonialidade a partir da visão de mais autores, ligando-a aos multiletramentos para mostrar como estes podem se relacionar a ela e ajudar na fundamentação das práticas decoloniais em sala de aula; então, construímos um percurso metodológico para a pesquisa, explicando o trajeto percor- rido; em seguida, exploramos os resultados encontrados; e enfim, fazemos as considerações finais. 219 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Os ‘multis’ dos multiletramentos Quando o Grupo de Nova Londres começou a se reunir para repensar a educação no final do século XX, seus pesquisadores discutiam até que ponto dois elementos essenciais estavam im- pactando as maneiras de aprender (já) na sociedade daquela época: 1) a multiplicidade de linguagens; e 2) as crescentes diversidades linguísticas e culturais. Eles argumentavam que tais mudanças seriam responsáveis por uma “[...] visão mais ampla de letramento do que a retratada por abordagens tradicionais, baseadas no ensi- no de língua” (KALANTZIS; COPE, 2023, tradução livre), que não obtinham tanto sucesso em ajudar as pessoas a aprender a ler e a escrever no passado. A partir de então, surgiu o termo multiletra- mentos e foi criado o manifesto dessa pedagogia (GRUPO NOVA LONDRES, [1996] 2021). Os ‘multis’ acima mencionados – múltiplos modos da lingua- gem (escrita, áudio, audiovisual, gestos, etc.) e múltiplas culturas, por meio dos diversos usos das tecnologias, contribuem para o que Cope e Kalantzis (2015) chamam de ‘new basics’, ou seja, um novo jeito de olhar para a educação, com foco nas constantes mudanças promovidas pelas condições comerciais, tecnológicas e culturais características da nova economia, em oposição ao ‘back to basics’, que tem seu foco na alfabetização e na numeracia. Devido a esses fatores, os autores chamam a atenção para o fato de que estudantes hoje devem: aprender a ser constantemente mais autônomos, autodirigidos, flexíveis e colaboradores entre si; desenvolver um conhecimento mais amplo; e se tornar capazes de trabalhar produtivamente com as diversidades linguística e cultu- ral, indo ao encontro das necessidades atuais no trabalho, na vida privada e na vida pública. 220 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Figura 1: O contexto social dos multiletramentos Fonte: Recuperado e adaptado de CGScholar (2023)1. Como podemos observar na Figura 1, existem momentos em que as três áreas (profissional, vida privada e pública) se tocam, abrindo espaços para as diversidades nos mundos da vida, que po- dem ser potencializados por meio das transformações digitais, por exemplo, com os acessos às interfaces ubíquas, as relações sociais que formamos na era digital - (re)afirmando nossas identidades, além da participação e cidadania digital. Tudo isso traz oportu- nidades de voltar nossos olhares também para a decolonialidade, entendendo que os multiletramentos podem incorporá-la e pos- sibilitam discussões que vão além da aprendizagem de línguas. Assim, vamos abordar com mais afinco nos próximos tópicos questões relacionadas a tais temas. 1 Disponível em: https://cgscholar.com/community/community_profiles/new-learning/commu- nity_updates/158166. Acesso em: 30 nov. 2022 (Sujeito a cadastro gratuito na plataforma). https://cgscholar.com/community/community_profiles/new-learning/community_updates/158166 https://cgscholar.com/community/community_profiles/new-learning/community_updates/158166 221 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 Decolonialidade e multiletramentos Como descrevem Mignolo e Walsh (2018), A decolonialidade necessariamente segue, deriva e res- ponde à colonialidade e ao processo e condição colonial em curso. É uma forma de luta e sobrevivência, uma resposta e prática epistêmica e baseada na existência – especialmente por sujeitos colonizados e racializados – contra a matriz colonial do poder em todas as suas dimensões e pelas possibilidades de um outro saber (MIGNOLO; WALSH, 2018, p. 17, tradução livre). Assim, Mignolo (2003, p. 92) explica que ela (a decoloniali- dade) pode ser compreendida como “[...] a abertura e liberdade de pensamento e modos de vida, [...] o desprendimento do encanto da retórica da modernidade, de seu imaginário imperial articulado na retórica da democracia”. Ao fazermos esse movimento, deixamos de assumir a lógica hegemônica como a que orienta nossas práticas educacionais, fazendo, como argumentam Walsh, Oliveira e Candau (2018, p. 10), ao preferirem “[...] a construção de uma educação outra, não mais baseada na legitimidade da razão moderna como único referente do conhecimento social, político e pedagógico”. Como Lírio e Azzari alertam no capítulo 9, p. 243, desta coletânea, tudo isso gera a necessidade de descolonizar o conhecimento, respeitando e nos comprometendo com as “[...] cosmologias não ocidentais trazidas por pensadores críticos oriundos do Sul Global” (GROSFOGUEL, 2009). Menezes De Souza (2019) salienta que uma das críticas feitas pela decolonialidade é em relação à universalidade e à modernidade, que se iniciaram a partir do contato entre a Europa e a América, quando os ibéricos chegaram ao território dos ameríndios e, a partir 222 MultiletraMentos eM teoria e prática: desafios para a escola de hoje VoluMe 2 de então, começaram a colonização. Nesse momento, surge a ideia de superioridade sobre os povos, com a negação da presença de aspectos essenciais, como os seus corpos de diferentes raças – os quais, embora vistos, foram negados, ou corpos “étnicos-raciais/se- xuais subalternizados” (MENEZES DE SOUZA, 2009), como também citam Lírio e Azzari no capítulo 9 desta coletânea. Nesse sentido, concordamos com Menezes De Souza (2019) ao apontarmos para a urgência de não separarmos a imagem