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Prévia do material em texto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Arnold, Clinton E.
Poderes das trevas: principados e potestades nas cartas de Paulo / Clinton E. Arnold; tradução de
Susana Klassen. — São Paulo: Vida Nova, 2024.
352 p.
ISBN 978-65-5967-216-5
e- ISBN 978-65-5967-217-2
Título original: Powers of darkness: principalities and powers in Paul’s letters
1. Ocultismo - Bíblia. N.T. Epístolas de Paulo 2. Poder (Teologia cristã) 3. Bíblia. N.T. Evangelhos -
Crítica, interpretação, etc. I. Título II. Klassen, Susana
23-4647
CDD 235.409015
Índice para catálogo sistemático:
1. Ocultismo - Epístolas de Paulo
©1992, de Clinton E. Arnold
Título do original: Powers of darkness: principalities and powers in Paul’s letters,
edição publicada por INTERVARSITY PRESS (Downers Grove, Illinois, EUA).
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA
Rua Antônio Carlos Tacconi, 63, São Paulo, SP, 04810-020
vidanova.com.br | vidanova@vidanova.com.br
1.a edição: 2024
Proibida a reprodução por quaisquer meios,
salvo em citações breves, com indicação da fonte.
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram traduzidas diretamente da New
International Version. As citações com indicação in loco foram traduzidas diretamente da New
American Standard Bible (NASB), da New English Bible (NEB), da Revised Standard Version
(RSV), da Good News Bible (GNB) e extraídas da Almeida Revista e Atualizada (ARA).
DIREÇÃO EXECUTIVA
Kenneth Lee Davis
COORDENAÇÃO EDITORAL
Ubevaldo G. Sampaio
EDIÇÃO DE TEXTO
Fernando Mauro S. Pires
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Rosa M. Ferreira
REVISÃO DE PROVAS
Pedro Guimarães Marchi
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Sérgio Siqueira Moura
DIAGRAMAÇÃO
Sandra Reis Oliveira
CAPA
Rebeca Andrade
IMAGEM DA CAPA
Satanás é derrotado, de Gustave Doré
(Wikimedia Commons)
CONVERSÃO PAEA EBOOK
Cumbuca Studio
Para Jeffrey e Dustin,
com a oração
para que o Senhor os fortaleça
com seu poder
para resistirem ao Maligno
e falarem a outros do amor divino.
Sumário
Lista de reduções gráficas
Prefácio
Introdução
PARTE 1:
A crença nos poderes no primeiro século
1. Magia e adivinhação
2. Religiões greco-romanas e orientais
3. Astrologia
4. Judaísmo
5. O ensino de Jesus
PARTE 2:
O ensino de Paulo sobre os poderes
6. O que são os poderes?
7. A derrota dos poderes na cruz
8. Um novo reino e uma nova identidade para os crentes
9. A influência dos poderes sobre os crentes
10. Cristo e nenhum outro
11. Guerra espiritual
12. A vitória final de Cristo sobre os poderes
PARTE 3:
A interpretação dos poderes para hoje
13. Realidade ou mito?
14. Os poderes e os indivíduos
15. Os poderes e a sociedade
Conclusão: A luta contra os poderes
Bibliografia selecionada
Índice remissivo
Índice de passagens bíblicas
Lista de reduções gráficas
BAGD W. Bauer, W. F. Arndt, F. W. Gingrich. A Greek-English lexicon
of the New Testament and other early Christian literature, 2. ed.
rev., edição de Frederick Danker (Chicago: University of Chicago
Press, 1979).
OTP The Old Testament Pseudepigrapha, edição de James H.
Charlesworth (New York: Doubleday, 1983, 1985), 2 vols.
PMG [Papiros Mágicos Gregos], Papyri Graecae Magicae: Die
Griechischen Zauberpapyri, edição de Karl Preisendanz, 2. ed.
rev. por A. Heinrichs (Stuttgart: Teubner, 1973-1974), 2 vols.
Tradução para o inglês disponível agora em The Greek Magical
Papyri in translation, edição de Hans Dieter Betz (Chicago:
University of Chicago Press, 1986).
P. Oxy. The Oxyrhynchus Papyri.
Todas as citações de documentos pseudepigráficos do Antigo
Testamento sem indicação foram extraídas de James H. Charles-worth,
ed., The Old Testament Pseudepigrapha (New York: Doubleday, 1983,
1985), 2 vols.
Todas as citações dos Manuscritos do Mar Morto foram extraídas de
Geza Vermes, The Dead Sea Scrolls in English, 2. ed. (New York:
Viking Penguin, 1975).
Todas as citações dos Papiros Mágicos Gregos (PMG) sem indicação
foram extraídas de Hans Dieter Betz, ed., The Greek Magical Papyri in
translation (Chicago: University of Chicago Press, 1986).
N
Prefácio
ão gosto de pensar no mal. Ele me entristece e me assusta.
Preferia ignorá-lo e falar de algo agradável.
Creio que muitos cristãos pensam da mesma forma,
especialmente quando se trata de falar da ideia de espíritos
malignos e de Satanás. A revista Christianity Today dedicou sua edição
de 20 de agosto de 1990 a esse tema (contribuí com um dos artigos). O
editor encarregou o artista Michael Annino de criar uma imagem
apropriada do Diabo para a capa, uma imagem que removesse seu
disfarce de “anjo de luz”. Annino fez um bom trabalho; talvez bom
demais. Muitos leitores escreveram cartas para o editor com queixas
veementes sobre a figura horrível. O editor da revista estava certo
quando observou que “esse não é um assunto atraente”!
No fim das contas, não podemos ignorar esse tema. O mal se impõe
sobre nós e sobre aqueles que amamos. E, se desejamos receber auxílio
da Bíblia para lidar com o problema do mal, precisamos estar dispostos
a levar a sério o que a Bíblia leva a sério: o envolvimento intenso na
vida de uma figura chamada Satanás e de seus poderes das trevas. Por
tempo demais, a igreja ocidental não deu atenção séria nem suficiente a
esse tema. Ouço isso repetidamente de meus alunos asiáticos e
africanos. Eles reconhecem uma grande dívida para com a igreja
ocidental pelo rico ensino bíblico que lhes foi transmitido, mas não
entendem por que tão pouco foi oferecido sobre esse assunto. Para eles,
o desenvolvimento de uma perspectiva cristã apropriada sobre espíritos
é uma preocupação fundamental.
A Bíblia tem muito a dizer sobre esse assunto, especialmente nas
cartas do apóstolo Paulo. Este livro foi escrito para aqueles que desejam
percorrer a extensão do ensino de Paulo sobre a esfera invisível do mal.
Paulo tem mais a dizer sobre esse tema do que muitos se dão conta. Em
anos recentes, apesar da enxurrada de livros populares sobre “guerra
espiritual”, pouca coisa foi escrita de uma perspectiva bíblico-teológica.
Minha esperança é que a presente obra seja um ponto de partida útil.
O crédito inicial pela publicação deste livro é devido a Andy Le Peau,
diretor editorial da InterVarsity Press, por me convencer de que eu
deveria trabalhar neste projeto agora, e não depois. Também desejo
expressar minha profunda gratidão ao Dr. W. Bingham Hunter, diretor
da Talbot School of Theology, que me incentivou a realizar este
trabalho e fez tudo o que estava ao seu alcance para me apoiar ao longo
do caminho.
Em meados de 1990, compartilhei parte deste material com alguns
grupos de cristãos romenos na Transilvânia. Embora eles tenham
expressado muita gratidão por aquilo que aprenderam, senti que eu fui
o maior beneficiado. Eles foram de grande ajuda para esclarecer minhas
ideias na terceira parte, especialmente na discussão sobre “Os poderes e
a sociedade”.
Devo a muitas outras pessoas reconhecimento público de minha
gratidão por suas contribuições para este projeto. Acima de tudo, desejo
agradecer a minha esposa, Barbara, não apenas por suas sugestões
proveitosas para aprimorar o manuscrito, mas também por sua parceria
fiel no trabalho do ministério. Dr. Michael J. Wilkins me ofereceu
incentivo constante ao longo do processo. Durante o verão de 1989,
como diretor de meu departamento, ele me ajudou a criar espaço na
agenda para que eu pudesse continuar a trabalhar no manuscrito. A
Comissão de Pesquisa da Biola University também apoiou o projeto por
meio de uma bolsa. Tim Peck, meu professor assistente, fez uma leitura
criteriosa de parte extensa do manuscrito que resultou em vários
melhoramentos. Resta-me agradecer ao Dr. Joel Green, editor do
periódico Catalyst, por me dar permissão para usar longos trechos de
meu artigo “‘Principalities and powers’ in recent interpretation”
[“Principados e poderes” na interpretação recente].
Outras três pessoas foram de grande importância para este projeto:
Dr. Robert Saucy, pelas muitasdiscussões produtivas sobre esse assunto
e questões referentes ao reino de Deus; Dr. Robert Yarbrough (Wheaton
College), que lecionou junto comigo na Romênia, por ler o manuscrito e
oferecer interação crítica e incentivo; e Dr. I. Howard Marshall
(University of Aberdeen), por sugerir que eu escrevesse em nível popular
um estudo sobre esse tema.
E
Introdução
m 1992, Salem, Massachusetts, recordou o tricentésimo
aniversário dos infames julgamentos de bruxas na cidade. Mais
de quatrocentas pessoas foram acusadas de bruxaria na
Inquisição. Dessas, 150 foram presas, quatorze mulheres e cinco
homens foram enforcados e um suposto bruxo foi esmagado debaixo de
várias toneladas de pedras.
Hoje, quando turistas visitam a igreja de pedra construída em 1845 e
transformada no Museu das Bruxas de Salem, o narrador do museu os
recebe com as seguintes palavras: “Bem-vindos ao Museu das Bruxas.
Vocês acreditam em bruxas? Milhões de nossos antepassados
acreditavam”.
Hoje em dia, muitos consideram absurdo que nossos ancestrais
cressem nessas ideias. Como era possível alguém acreditar que “bruxas”
tivessem verdadeiros poderes sobrenaturais, que feitiços lançados sobre
outros funcionassem e que espíritos malignos causassem terror de toda
espécie na vida das pessoas? Em sua maior parte, essas crenças se
tornaram obsoletas com o início da era científica e com a expansão de
oportunidades de educação para todos.
Agora, três séculos depois dos julgamentos das bruxas, não paira no
horizonte nenhuma ameaça de uma inquisição semelhante, e espero que
isso nunca ocorra. No entanto, há um crescimento acentuado no
interesse por feitiçaria e ocultismo em todo o Ocidente. Observe, por
exemplo, o seguinte anúncio publicado em um tabloide recente:
Faço trabalho de magia. Lanço feitiço para fazer uma pessoa amar
outra, para uma pessoa mudar de ideia sobre um relacionamento ou
para unir duas pessoas. Posso realizar esses trabalhos porque tenho
os poderes combinados de minha mãe, que era feiticeira, e de meu
pai, um dos mais poderosos bruxos, que transmitiu seus segredos
para mim pouco antes de ir para outro mundo. Meus poderes
mágicos vão além de sua imaginação. Posso lançar feitiços em seu
favor para relacionamentos, situação financeira, acontecimentos
futuros ou qualquer outra coisa que seja importante para você.
Tenho o poder e uso o poder.1
Esse texto é típico de vários anúncios ocultistas que aparecem com
frequência em tabloides em todos os Estados Unidos.
O interesse crescente em ocultismo não é uma moda local, mas uma
tendência da sociedade ocidental. A fascinação cada vez maior pelas
coisas ocultas na década de 1960 se transformou naquilo que Mircea
Eliade, conhecido estudioso de história das religiões, chamou “explosão
de ocultismo” na década de 1970.2 Ele observa: “Como historiador das
religiões, é impossível não me impressionar com a popularidade
espantosa da bruxaria na cultura ocidental moderna e em suas
subculturas [...] O interesse contemporâneo em bruxaria é apenas parte
de uma tendência maior, a saber, a moda de ocultismo e esoterismo que
vai desde astrologia e movimentos pseudoespiritualistas até hermetismo,
alquimia, zen, ioga, tantrismo e outras gnoses e técnicas orientais”.3 Em
seguida, veio o movimento da Nova Era, sem dúvida, uma “explosão”
em si mesma durante a década de 1980 e que prosseguiu com vigor na
década de 1990.4 Esse movimento recebeu forte ímpeto da divulgação
feita por várias celebridades da indústria do entretenimento que
popularizaram seus ensinamentos. O vocabulário religioso do Ocidente
se expandiu com uma rajada de neologismos como “canalização”
(entrar em contato com uma entidade espiritual), “espírito guia”
(entidade espiritual que fornece informações), “consciência cósmica”
(percepção de que o Universo todo é “único”) e “voo astral” (viagem da
alma em um período de meditação ou durante a noite).
É difícil dimensionar esse “movimento” crescente, uma vez que ele é
organizado de modo informal. Sua popularidade atual pode ser vista
mais claramente quando examinamos as prateleiras de qualquer
livraria. Dá-se espaço cada vez maior a, literalmente, milhares de livros
sobre Nova Era. Empresas e corporações organizam cada vez mais
eventos sobre “potencial humano” com base em princípios da Nova
Era.5 O conceito da Nova Era de canalização tem se tornado cada vez
mais difundido, especialmente no sul da Califórnia. Uma enquete
realizada pelo jornal Los Angeles Times mostrou que as mulheres, na
região oeste de Los Angeles, consultam mais canalizadores do que
psicólogos ou conselheiros.6 Em uma matéria de capa recente com o
título “New Age Harmonies” [Harmonias da Nova Era], a revista
Time resumiu a aceitação e a popularidade surpreendentemente rápidas
do movimento em vários setores da sociedade ocidental.7
O movimento da Nova Era é caracterizado por uma cosmovisão
monista que tem muitos elementos em comum com o hinduísmo
clássico. O monismo é a crença de que o Universo é um todo unificado
e vivo. Deus permeia o Universo inteiro e, em certo sentido, cada pessoa
faz parte de Deus. Portanto, Deus e a humanidade são um. De acordo
com essa perspectiva, precisamos de uma mudança de consciência a fim
de aguçar nosso nível de percepção para nossa unidade essencial com o
divino. O movimento da Nova Era também tem forte crença na esfera
dos espíritos e, consequentemente, pratica formas de adivinhação e
magia (sob o eufemismo “canalização”). Por isso, alguns analistas
evangélicos descreveram o cerne da religião da Nova Era como
ocultismo.8
Tendo em vista o crescimento do ocultismo, expresso também na
forma do movimento da Nova Era, precisamos perguntar: Será que a
igreja está atenta e preparada para enfrentar esse novo desafio? A igreja
está preparada para tratar de modo eficaz dos problemas que virão à
tona ao ministrar àqueles que abriram a vida para a influência direta e
imediata do reino de Satanás?
Há alguns sinais animadores. Muitos seminários evangélicos e
faculdades cristãs oferecem cursos sobre guerra espiritual (ou algo
equivalente) e, de modo quase invariável, esses cursos são os mais
procurados pelos alunos.9 Também foram publicados vários livros e
artigos que discutam questões como guerra espiritual, possessão
demoníaca, aconselhamento de endemoniados e o movimento da Nova
Era. Infelizmente, faltam à comunidade cristã materiais que tratem da
perspectiva bíblica de demônios, principados e poderes e da natureza do
conflito da igreja com os poderes do mal. Espero que o presente livro
possa ser proveitoso como primeiro passo para desenvolver uma
perspectiva bíblica acerca dos poderes das trevas.
Mas será que esse tema é relevante para todos? Por certo, nem todos
na igreja têm contato com satanistas ou bruxos professos, defensores da
Nova Era ou pessoas profundamente envolvidas com ocultismo.
Ademais, esse é um tema um tanto assustador. Por que dedicar tempo a
explorar as várias dimensões do mal, especialmente demônios e espíritos
malignos? Não seria melhor evitar esse tema e usar nosso tempo para
meditar sobre os aspectos positivos de nossa vida cristã?
Creio que esse tema é importante para todos os cristãos porque nos
toca de maneira profunda, quer tenhamos algum envolvimento com
ocultismo, quer não. A Bíblia ensina não apenas que espíritos malignos
existem, mas também que são ativamente hostis a todos os cristãos;
suas instigações perversas afetam negativamente nossa vida diária e a
vida das pessoas ao nosso redor. Logo, a Bíblia nos oferece informações
essenciais, cujo propósito é dar aos cristãos uma perspectiva apropriada
dessas forças malignas e de como lidar com sua atividade contra nós.
Meu interesse pessoal nesse tema surgiu durante meus estudos do
doutorado. Abrigado em meu escritório no alto de uma torre do século
16 da King’s College, na University of Aberdeen (Escócia), eu passava
horas diante do computador, pesquisando e escrevendo sobre o conceito
bíblico de poder. Logo no começo da pesquisa, percebi que era
praticamente impossível estudar o poder de Deus semestudar o âmbito
oposto de poder, o reino de Satanás. O resultado foi uma dissertação
com o título “O poder de Deus e os poderes do mal em Efésios”, um
estudo desse tema em uma das cartas do Novo Testamento.
Não apenas na Carta de Paulo aos Efésios, mas em todo o Novo
Testamento, Cristo é retratado em uma luta contra os poderes das
trevas. Jesus, em seu ministério na terra, confrontou as forças
demoníacas; desferiu, na cruz, um golpe decisivo contra o reino do mal;
continua a guerrear contra as hostes de Satanás por meio da igreja; e,
por fim, derrotará Satanás e seus exércitos de uma vez por todas depois
de sua segunda vinda. O conflito de Cristo com os poderes do mal vem
a lume como tópico importante na teologia do Novo Testamento. É
surpreendente que esse tema tenha sido terrivelmente negligenciado no
estudo exegético e teológico do Novo Testamento. Qual foi a causa
dessa negligência? Não sei ao certo. Talvez ela se deva, em parte, à
cosmovisão ocidental pós-iluminista que interpretou as referências do
Novo Testamento a espíritos malignos como um mito primitivo
obsoleto.
A forte influência exercida por nossa cosmovisão ocidental comum é
um motivo adicional para este livro. Em contraste com pessoas na
África, Coreia, China e outras partes do mundo não ocidental, nós
aprendemos desde cedo a não crer na esfera de espíritos, demônios e
anjos. Se perguntarmos para ocidentais: “Você crê em espíritos
malignos?”, a maioria dará uma resposta negativa. Isso também se
aplica a muitos cristãos do Ocidente, embora sejamos um tanto
ambíguos a esse respeito. Muitos cristãos declaram que creem em
demônios porque são mencionados na Bíblia (e, talvez, porque alguns
missionários voltaram para seus países de origem com relatos sobre
interações com espíritos malignos). Na verdade, contudo, é possível que
a esfera dos espíritos seja tão distante da cosmovisão de determinado
cristão quanto é de seu colega não cristão. É difícil quebrar a influência
tão absolutamente difundida da cultura de um indivíduo. Se o âmbito
de espíritos e anjos é parte importante da cosmovisão bíblica, também
deve ser parte importante de uma cosmovisão cristã em nossos dias.
Nas páginas a seguir, espero mostrar exatamente que papel os
poderes espirituais malignos desempenham na cosmovisão de um dos
pensadores mais brilhantes e inspirados do cristianismo, o apóstolo
Paulo. Suas cartas, que constituem cerca de um quarto do Novo
Testamento, são uma fonte importante para a formação de uma
cosmovisão cristã em nossos dias.
1 Esse anúncio foi publicado no National Examiner (8 dez. 1987).
2 Mircea Eliade, em uma monografia apresentada no 21o Freud Memorial Lecture, evento
realizado na Filadélfia em 24 de maio de 1974, e publicada sob o título “The occult in the
modem world”, in: Occultism, witchcraft, and cultural fashions: essays in comparative religions
(Chicago: University of Chicago Press, 1976), p. 58-63 [publicado em português por Interlivro
sob o título Ocultismo, bruxaria e correntes culturais: ensaios em religiões comparadas].
3 Eliade, “Some observations on European witchcraft”, in: Occultism, witchcraft, and
cultural fashions, p. 69.
4 Para avaliações proveitosas do movimento de uma perspectiva evangélica, veja Douglas R.
Groothuis, Unmasking the New Age (Downers Grove: InterVarsity, 1986), e seu segundo
volume Confronting the New Age (Downers Grove: InterVarsity, 1988). Veja também Russell
Chandler, Understanding the New Age (Dallas: Word, 1988) [publicado em português por
Bompastor sob o título Compreendendo a Nova Era] e Elliot Miller, A crash course on the New
Age movement (Grand Rapids: Baker, 1989).
5 Veja Groothuis, Confronting, “New Age Business”, cap. 8.
6 Cathleen Decker, “The L.A. Woman”, Los Angeles Times Magazine (21 fev. 1988), p. 13.
7 Otto Friedrich, “New Age Harmonies”, Time (matéria de capa, 7 dez. 1987), p. 62-72.
8 Veja esp. Miller, Crash course, p. 31-2. Ele oferece uma análise bastante proveitosa do
conceito de canalização no movimento da Nova Era (veja caps. 8 e 9).
9 Para um resumo do conteúdo de várias aulas sobre “guerra espiritual” oferecidas em
faculdades e seminários evangélicos, veja F. Douglas Pennoyer, “Trends and topics in teaching
power evangelism”, in: C. Peter Wagner; F. Douglas Pennoyer, orgs., Wrestling with dark
angels (Ventura: Regal, 1990), p. 339-57.
P
PARTE 1
A CRENÇA NOS PODERES NO
PRIMEIRO SÉCULO
aulo pregou o evangelho e plantou igrejas entre pessoas que
acreditavam na existência de espíritos malignos. Esse fato teve
impacto sobre sua forma de anunciar as boas-novas e sobre o
que ele ensinou a esses novos cristãos em suas cartas.
A crença em espíritos atravessava todas as fronteiras religiosas,
étnicas e geográficas. Judeus, gregos, romanos, asiáticos e egípcios
acreditavam em espíritos que habitavam nos céus, no mundo dos
mortos e na terra. Muitos desses espíritos eram considerados bons ou
tidos por deuses, dignos de adoração e de confiança. Outros faziam as
pessoas estremecer de medo, pois eram considerados perversos e
prejudiciais. Havia consenso, porém, a respeito de uma coisa: a esfera
sobrenatural exerce controle sobre a vida diária e sobre o destino
eterno.
Nosso objetivo nesta seção é mostrar a cosmovisão do povo comum,
de pessoas como aquelas que estavam se tornando cristãs e às quais
Paulo ministrou. Em que, de modo específico, uma pessoa comum
acreditava acerca de deuses, espíritos, demônios e afins? Essa tarefa não
é simples. A maior parte da literatura grega e romana que chegou até
nós vem da elite instruída e, com a mais refinada habilidade retórica,
apresenta conceitos filosóficos de existência muitas vezes distantes
daquilo em que as pessoas comuns acreditavam. Felizmente, alguns
textos nos dão um vislumbre das crenças populares. Estudiosos
reconhecem, cada vez mais, o valor de papiros, inscrições e evidências
arqueológicas para compor um retrato das crenças populares.
Começaremos com a investigação de um aspecto da vida no primeiro
século que, no parecer de muitos estudiosos, nos dá o maior
esclarecimento possível das crenças do povo comum a respeito do reino
dos espíritos: a magia.
U
1
Magia e adivinhação
ma das janelas que nos permite ver com mais clareza em que
pessoas comuns acreditavam no tocante a poderes sobrenaturais
na era do Novo Testamento é o âmbito da magia e da
adivinhação. Crenças e práticas mágicas faziam parte de todas
as tradições religiosas (e chegaram até a ter participação no
cristianismo!).
Na cultura ocidental, viemos a considerar “mágica” um conjunto de
truques inofensivos realizados para nosso entretenimento. Quando
falamos de magia no Novo Testamento, porém, temos de entender que
não era a arte de ilusão. A magia representava um método de
manipulação de espíritos bons e espíritos malignos para que dessem
assistência ou causassem o mal. Fórmulas mágicas eram usadas para
atrair amantes ou para vencer uma corrida de bigas. Magia negra, ou
feitiçaria, consistia na invocação de espíritos para realizar atos
malévolos de toda espécie. Era possível lançar maldições, derrotar
concorrentes e refrear inimigos.
Essas práticas eram amplamente difundidas e refletiam a perspectiva
comum ou “crença popular” da época. A magia não era separada das
religiões organizadas. Era parte importante das religiões oficiais,
embora, em muitos casos, não fosse uma parte sancionada. Por
exemplo, no culto a Ártemis não havia um mago oficial. Ainda assim,
essa deusa era invocada por meio de fórmulas mágicas, a ornamentação
de sua estátua cultual era interpretada de modo mágico e palavras
mágicas eram inscritas em sua imagem. Muitos que adoravam Ártemis
também praticavam magia.
Em anos recentes, estudiosos descobriram muita coisa a respeito da
magia helenística. Centenas de textos em papiros foram encontrados ao
longo do último século, além de inúmeros amuletos mágicos, maldições
gravadas em placas de chumbo (defixiones) e diversas outras fontes de
conteúdo mágico. Arthur Darby Nock, conhecido estudioso clássico,
ressaltou fortemente o valordessas fontes para nos ajudar a entender
melhor a crença popular daquele período. Nock aconselhou seus
colegas dos meios acadêmicos: “Podemos e devemos lançar mão de
papiros mágicos em nossa tentativa de reconstruir a atitude religiosa das
massas no mundo romano”.1
Embora praticamente todos os papiros mágicos descobertos tenham
sido encontrados no Egito, isso não significa que as pessoas praticavam
magia apenas no Egito. O clima e as condições do Egito eram bastante
apropriados para a preservação de conteúdos em papiro. Aliás, os
fragmentos de papiro do Novo Testamento em grego que chegaram até
nós foram encontrados no Egito. Ainda que esse país fosse conhecido na
Antiguidade como centro de atividades mágicas prolíficas, não faltam
evidências de que a magia era praticada em todo o mundo
mediterrâneo.
Existem muitos relatos na literatura do primeiro século sobre práticas
mágicas. Até mesmo em nosso Novo Testamento, Lucas fala de
atividades de magia na Palestina, em Chipre, na Ásia e no norte da
Grécia, sobre as quais trataremos adiante. Além disso, os milhares de
amuletos mágicos, gemas e defixiones (placas de chumbo com
maldições) descobertos por arqueólogos foram encontrados em todas as
terras do Mediterrâneo. Embora a maioria dos textos em papiro seja
datada do século 2 d.C., os textos registrados em materiais mais
duráveis (pedra, metal etc.) são datados de todo o período helenístico
(que se iniciou em 330 a.C.). Todos esses textos são, basicamente, de
caráter semelhante e abrangem parte considerável do mesmo
vocabulário. Também se fundamentam nos mesmos pressupostos a
respeito do mundo espiritual: pessoas e situações podem ser
influenciadas pela invocação de poderosos seres espirituais
sobrenaturais.
A natureza sobrenatural da magia pode ser percebida claramente
quando observamos o conteúdo de algumas fórmulas mágicas.
Examinaremos mais minuciosamente três fórmulas mágicas que nos
oferecem uma boa visão geral da natureza da magia e de sua ligação
estreita com o reino dos espíritos e demônios, principados e poderes.
Uma fórmula mágica típica era constituída de três partes:
1. instruções para um rito mágico;
2. uma lista dos nomes apropriados a serem invocados;
3. uma declaração da ordem.
Talismã protetor
O primeiro texto que examinaremos é uma fórmula curta para um
talismã protetor (ou amuleto) ser usado como colar. O propósito desse
amuleto era proteger quem o usasse de espíritos nocivos ou malignos.2
Embora não haja necessidade de realizar nenhum rito mágico com
esse amuleto, há instruções específicas sobre como ele deve ser
confeccionado: “Em madeira de tília escreva em escarlate este nome [...]
Coloque-o em um invólucro roxo, pendure-o no pescoço e use-o”.
A segunda parte da fórmula fornece uma série de nomes mágicos que
devem ser escritos no talismã: “epokopt kopto bai baitokarakopto
karakopto chilokopto bai” (em alguns textos que cito adiante, esses
nomes mágicos serão resumidos pela designação “nomes mágicos”).
Embora essas palavras sejam transliteradas do grego e ininteligíveis para
nós, não eram mais inteligíveis para a maioria dos leitores gregos. São
palavras mágicas, provavelmente nomes dos espíritos que deviam tornar
eficaz esse amuleto mágico. Com frequência, nomes mágicos eram
invocados junto com nomes de deusas e deuses conhecidos, como
Hécate, Ártemis, Selene, Cora, Cronos, Afrodite e outros. Todos os
textos mágicos mostram uma quantidade incrível de sincretismo, isto é,
a mistura de vários elementos de diferentes crenças e práticas religiosas.
Qualquer nome considerado carregado de poder sobrenatural podia ser
invocado. Por isso, no mesmo texto são invocadas divindades gregas,
egípcias, persas, frígias e romanas.
A terceira parte do texto traz a ordem que os agentes espirituais estão
sendo convocados a cumprir: “Guarda-me de todo o daimōn do ar, da
terra e de debaixo da terra, e de todo anjo, espectro e aparição
fantasmagórica e encantamento”. Esse exemplo representativo é o que
chamo de magia apotropaica, isto é, magia para “repelir” demônios e
espíritos nocivos.
Nos papiros mágicos, a palavra grega daimōn não se referia,
necessariamente, a um espírito maligno ou nocivo. Embora nessa
fórmula mágica o termo seja usado de maneira clara para espíritos que
podiam infligir dano, o termo em si não tem conotações morais. Na era
clássica antes do período do Novo Testamento, a palavra daimōn era
usada para deuses (como Apolo, Dionísio e Hermes) e para seres
sobrenaturais considerados, em certa medida, inferiores aos deuses. Esse
conceito passou a ser empregado cada vez mais para se referir a
intermediários sobrenaturais (entre os deuses e a humanidade) e para os
espíritos da natureza. Para muitos, os daimones (forma plural) que
enchiam o ar eram as almas desencarnadas dos mortos, especialmente
dos heróis. Influências do Oriente, especialmente do pensamento persa e
judaico, levaram o termo grego daimōn a adquirir uma conotação cada
vez mais maligna em seu uso comum. Tanto daimōn quanto o termo
relacionado daimonion são usados sempre para se referir a um espírito
maligno no Novo Testamento.3 Ao longo deste livro, a palavra
demônio será usada em referência a espíritos malignos e daimōn será
usado com seu sentido neutro.
Esse texto mágico ilustra a apreensão e o medo do reino dos espíritos
sentidos pelo povo em geral. A fórmula mágica também ilustra o fato de
as pessoas acreditarem que poderes malignos ocupavam toda a criação,
o que incluía o ar, a terra e o mundo dos mortos. A magia fornecia um
meio para lidar com o medo dessa realidade.
Diversos relatos poderiam ser apresentados para retratar o medo
intenso que as pessoas tinham de demônios nos tempos antigos.
Acreditava-se que esses seres malignos pudessem até fazer ameaças de
morte. Um escritor antigo fornece o relato de um homem sábio, ou
xamã, dotado de conhecimento das artes mágicas e que demonstrava
certo controle sobre essas forças hostis. Apolônio de Tiana se tornou
um conhecido operador de milagres em todo o mundo mediterrâneo.
Viveu no tempo de Paulo, e Flávio Filóstrato registrou sua vida cerca de
um século depois. Essa obra é de grande importância para que
compreendamos melhor a crença popular da época.
Em certa ocasião, Apolônio de Tiana encontrou uma mulher cujo
filho de 16 anos estava possuído por um demônio havia dois anos. A
mulher sabia dessa possessão por causa do comportamento alterado do
filho e porque o demônio supostamente se revelava a ela por meio da
voz do filho. O demônio dizia que era o fantasma de uma pessoa morta
que odiava mulheres e que estava apaixonado pelo menino. A mãe,
compreensivelmente angustiada em razão do estado de tormento de seu
filho, explicou todos os sintomas para Apolônio. Entre outras coisas,
ela observou que “o rapaz nem sequer tem voz própria, mas fala em
tom grave e profundo, como fazem homens adultos e, quando ele olha
para mim, os olhos não parecem ser dele”. A mãe relatou a Apolônio
que sempre que tentava trazer o filho até ele, o demônio ameaçava
lançar o jovem em uma fenda na rocha ou atirá-lo de um precipício e
matá-lo. Apolônio atendeu à mulher sem hesitar: forneceu-lhe algo
semelhante a um amuleto ou a uma fórmula mágica que impediria o
demônio de matar o rapaz.4
Uma poção do amor
O segundo texto fornece uma ilustração vívida de como a magia
envolvia a assistência direta de seres sobrenaturais para atender a
determinado pedido. Essa fórmula, registrada em um rolo de papiro
descoberto no Egito, revela como o apaixonado Teodoro procurou
conquistar o afeto de uma mulher chamada Matrona.5 O propósito da
fórmula é declarado de modo simples: “Que Matrona ame Teodoro por
toda a extensão de sua vida”. Esse tipo de “poção do amor” costuma
ser chamado de afrodisíaco.
Praticamente não há rito mágico a ser realizado por Teodoro, mas o
texto pressupõe que ele tenha obtido um pouco de cabelo de Matrona.
A fórmula é bastante extensa, porém, na invocação de auxílio dos
deuses e espíritos do mundo dos mortos. Ela prossegue:
Confio a vós este amuleto, deuses do mundo dosmortos, a Plutão
uessemigadon ortho baubo, a Cora, Perséfone, Eresquigal e Adônis
era [...] puonrth e, do mundo dos mortos, Hérmias Tote
phokentazepseu e ao poderoso Anúbis cherichtha kanchene [...] th,
guardião das chaves das portas do Hades, e aos deuses do mundo dos
mortos e aos falecidos precocemente, rapazes e moças.
A expressão final “falecidos precocemente, rapazes e moças” nos
permite compreender um pouco melhor como os antigos geralmente
interpretavam um segmento do âmbito dos espíritos. Muitos no mundo
greco-romano acreditavam que heróis ou pessoas que haviam morrido
precocemente se tornavam espíritos desencarnados depois da morte.
Costumavam adquirir uma disposição um tanto perversa e podiam fazer
mal a alguém caso isso lhes fosse ordenado por meio de uma maldição.
Em seguida, o texto invoca duas deusas (Hécate e Ártemis) e usa
muitos outros nomes mágicos. Também fica bastante claro que o
conjurador esperava que esses seres sobrenaturais realizassem seu
propósito declarado de tornar Matrona a amante dedicada de Teodoro.
A fórmula é inequívoca:
Suplico a todos os espíritos (grego = demonas) deste lugar que
venham auxiliar este espírito. Levantem-se para mim do repouso que
os detém e saiam para todos os distritos e todas as regiões, e todas as
casas, e todas as lojas, impelindo a enfeitiçada Matrona [...] para que
ela não tenha relações vaginais, anais ou orais com nenhuma outra
pessoa, para que não seja capaz de ficar com nenhum homem senão
com Teodoro [...] e para que jamais permitam que Matrona [...]
suporte, tenha saúde ou encontre sono noite e dia sem Teodoro.
Nesse caso específico, o conjurador não sabe ao certo qual “demônio”
será compelido a realizar essa tarefa. O feitiço prossegue: “Não se
esquive de me ouvir, espírito (grego = demon), quem quer que você seja,
e levante-se para mim, pois eu lhe conjuro pela senhora Hécate Ártemis
demon damno damnolukake damnippae damnomenia damnobathira
damnobathiri damnomenia dameamone, aquela que engole a cauda e
que perambula pela noite”. Aqui, temos a impressão de que o
conjurador ameaça um “demônio” ao mencionar a deusa do mundo
dos mortos, Hécate Ártemis, e certos nomes mágicos. Hécate Ártemis
providenciará para que o pedido seja realizado, pois se acredita que
atenda a esses nomes e epítetos mágicos atribuídos a ela. Outros textos
mágicos chegam a dar exemplos de hinos a ser cantados para as
divindades a fim de torná-las mais receptivas aos pedidos do suplicante.
No presente texto, a implicação para o “demônio” é clara: não tem
escolha senão atender ao pedido de Teodoro. O “demônio” é, portanto,
manipulado pelo conjurador.
Um feitiço para infligir sofrimento
O último exemplo é um texto um tanto horrendo de magia negra que
traz um rito complexo. É uma fórmula para infligir grande sofrimento a
um inimigo.6 O rito deve ser realizado da seguinte forma:
Tome uma lamela (placa fina de metal) de chumbo e grave com um
estilo de bronze os seguintes nomes e as seguintes figuras (retratadas
no texto do papiro) e, depois de cobrir a lamela com sangue de um
morcego, enrole-a da maneira habitual. Abra um sapo e coloque-a no
estômago dele. Depois de costurar o sapo com fio de Anúbis e com
uma agulha de bronze, pendure-o em um junco de sua propriedade
usando para isso os pelos da ponta do rabo de um boi preto, na parte
leste da propriedade, próximo ao nascer do sol.
Em seguida, vem uma invocação de seres sobrenaturais e a declaração
da ordem diabólica aos poderes:
Anjos supremos, assim como este sapo pinga sangue e seca, que o
mesmo aconteça ao corpo de [espaço para inserir o nome da vítima],
parido por [espaço para inserir o nome da mãe da vítima], pois eu
vos conjuro, a vós que comandais o fogo maskelli maskello.
É importante entender que o conjurador não está invocando os “anjos”
bons que cercam Yahweh, o Deus do cristianismo ou do judaísmo. Na
era helenística, os pagãos usavam o termo “anjo” (angelos) para se
referir a seres e mensageiros sobrenaturais. Aqui, tem-se em mira um
assistente ou servo sobrenatural.
Diversas partes desse rito mágico parecem um tanto estranhas e sem
sentido para nós. Aliás, para a pessoa que realizava o rito, talvez fosse
impossível fornecer uma explicação racional dos detalhes, mas
acreditava-se que o rito funcionasse! Havia, contudo, uma base
relativamente racional para certos aspectos do rito mágico. A magia era
baseada em parte em um sistema de correspondências. Acreditava-se
que animais, plantas, ervas, pedras preciosas e metais fossem associados
a vários deuses e demônios ou os simbolizassem; portanto, esses
elementos podiam ser usados para atrair ou repelir a presença e a
influência desses seres sobrenaturais. Ademais, o uso de símbolos
escritos funcionava de modo bastante parecido. As sete vogais do
alfabeto grego, por exemplo, eram usadas em textos mágicos para
representar as sete divindades planetárias.
Esses três textos mágicos nos dão um vislumbre não apenas da
natureza da magia, mas também de alguns pressupostos fundamentais
por trás dela: deuses, espíritos, anjos e demônios existem; estão
envolvidos na vida diária; e, mais importante de tudo, podem ser
manipulados.
Inúmeras palavras, nomes e títulos são usados nos textos mágicos
para se referir a uma ampla variedade de seres espirituais. Ao que
parece, durante todo o período do Novo Testamento, as pessoas
usavam um amplo vocabulário para falar da esfera espiritual. Embora
boa parte do vocabulário de Paulo para os principados e poderes ocorra
também nos papiros mágicos, é provável que ele tenha lançado mão
mais especificamente do extenso repositório de termos da demonologia
e da angelologia do judaísmo do primeiro século (veja o cap. 4).
Leitores pagãos devem ter entendido claramente a que Paulo estava se
referindo quando falou de principados e poderes, pois esses leitores
usavam muitos dos mesmos termos e conceitos do judaísmo.
Usos da magia
A magia é descrita, com frequência, como branca ou negra (boa ou má).
O professor David Aune propõe quatro formas de descrever o propósito
da magia no mundo greco-romano: (1) magia protetora ou apotropaica
(especialmente contra doenças temidas), (2) magia agressiva ou
malévola, (3) magia do amor e magia voltada para a aquisição de poder
sobre outros, e (4) adivinhação ou revelação mágica.7 Vimos exemplos
dos três primeiros usos na seção anterior, e trataremos do quarto uso
em mais detalhes adiante.
Amuletos e talismãs costumavam ser usados para magia protetora.
Acreditava-se que a ação nociva de espíritos malevolentes pudesse ser
repelida com um amuleto eficaz.
Como o uso do pé de coelho hoje em dia, amuletos também eram
usados para atrair boa sorte. Dois autores antigos apresentam o relato
cômico de um lutador efésio que viajou para Olímpia, na Grécia, a fim
de competir nos jogos olímpicos. O lutador prendeu ao tornozelo um
amuleto gravado com as letras efésias. Havia seis nomes mágicos,
provavelmente em referência a seis poderosos seres sobrenaturais. O
lutador efésio derrotou seus adversários prontamente e avançou no
evento até que o árbitro descobriu o amuleto em seu tornozelo! Depois
disso, o lutador perdeu três lutas consecutivas.8
Por vezes, amuletos eram feitos de pedras preciosas (supostamente
dotadas de propriedades mágicas especiais). Com mais frequência, eram
usados materiais baratos e facilmente acessíveis, como papiros, pedaços
de cerâmica (óstracos), tiras de latão, linho e conchas. Em algumas
ocasiões, as instruções mágicas para construir um amuleto exigiam um
tipo específico de material, como pergaminho de hiena. Amuletos
geralmente eram usados em alguma parte do corpo, por exemplo, como
anel ou colar. Milhares de amuletos mágicos foram encontrados em
todo o mundo mediterrâneo.
A magia negra (magia agressiva e malevolente) costumava ser
realizada por meio do uso de lâminas de chumbo. Mais de 1.100 dessas
“placas de maldição de chumbo”, ou defixiones, foram descobertas em
todo o mundo mediterrâneo. Junto com os papiros mágicos e os
amuletos, essas fontes constituem o testemunhomais importante para
entender a natureza da magia no mundo greco-romano.
Uma placa de maldição de chumbo consistia, tipicamente, em uma
fórmula mágica com uma maldição escrita em uma lâmina de chumbo.
Em geral, a lâmina era enrolada e transpassada por um prego a fim de
simbolizar sua “fixação” em uma vítima. A placa era depositada em um
lugar em que supostamente havia contato com o mundo dos mortos,
como em uma sepultura, um monumento funerário ou um poço. Esse
procedimento efetuava a maldição, que seria aplicada à vítima por
meios sobrenaturais. Uma das placas de maldição encontradas em
Roma é voltada contra um competidor em uma corrida de bigas:9
Conjuro-vos, seres santos e nomes santos; participai no auxílio a este
feitiço e prendei, enfeitiçai, frustrai, feri, derrubai, conspirai contra,
destruí, matai, quebrai Euquério, o condutor de bigas, e todos os seus
cavalos, amanhã no circo em Roma. Que ele não se saia bem na
largada; que ele não seja veloz na competição; que ele não ultrapasse
ninguém; que ele não faça bem as curvas; que ele não conquiste
nenhum prêmio [...] que ele seja quebrado; que ele seja arrastado por
vosso poder nas corridas da manhã e da tarde. Agora! Agora!
Rápido! Rápido!
Espíritos guias
Para algumas pessoas, a magia era atraente em razão do poder que lhes
proporcionava por meio da aquisição de um espírito guia ou daimōn
assistente. Nesse tipo de magia, uma fórmula especial era usada para
requerer os serviços de um deus (ou daimōn). Um texto mágico
prescreve um ritual em que “um daimōn vem como assistente que te
revelará todas as coisas claramente e será teu companheiro e comerá e
dormirá contigo”.10 O espírito auxiliador podia permanecer com a
pessoa por um longo tempo. Uma fórmula ordena que o espírito “seja
inseparável de mim deste dia em diante por todo o tempo de minha
vida”.
Esse espírito assistente poderoso ajudava a pessoa de diversas
maneiras, como mostra o texto a seguir:
Sabe-se que ele é um deus; é um espírito do ar que tu viste. Se lhe dás
uma ordem, ele realiza a tarefa de imediato: ele envia sonhos, traz
mulheres, homens, sem uso de materiais mágicos, mata, destrói,
incita os ventos da terra, carrega ouro, prata, bronze e os entrega a ti
sempre que há necessidade. E ele liberta das cadeias uma pessoa
acorrentada em uma prisão, abre as portas, produz invisibilidade
para que ninguém te veja, é aquele que traz fogo, ele traz água, vinho,
pão [...] Sem demora, traz daimons [para um banquete] e, para ti, ele
adornará esses servos com cintos. Essas coisas ele faz com rapidez. E,
assim que tu ordenas que ele realize um serviço, ele o faz, e tu verás
que ele se destaca em outras coisas: detém navios e os libera, detém
muitíssimos daimons perversos.11
Em seguida, o texto cita muitos outros serviços que o espírito realiza e
termina com esta declaração que serve de resumo e com a imposição de
segredo:
Ele te servirá de modo adequado para o que tiveres em mente, ó
bendito iniciado na magia sagrada, e realizará essas coisas para ti esse
assistente extremamente poderoso, que também é o único senhor do
ar. E os deuses concordarão com tudo, pois sem ele nada acontece.
Não compartilhes esse mistério com ninguém, mas oculta-o, por
Hélio, já que foste considerado digno pelo senhor deus.
Em terminologia moderna, sem dúvida um iniciado nesse tipo de magia
era “possuído” pelo espírito. Contudo, a pessoa que usava essa espécie
de magia acreditava estar recebendo um espírito bom e útil, e não um
espírito maligno. Aliás, a fórmula declara que esse espírito expulsará
daimones. Aqueles que praticavam magia acreditavam, portanto, que
tinham de ser extremamente cautelosos e discernentes para identificar
espíritos malignos e espíritos bons.
Adivinhação
No período greco-romano, havia vários métodos de adivinhar o futuro.
Alguns envolviam lâmpadas, taças e pires. Em outros métodos,
examinava-se o fígado ou observavam-se ocorrências estranhas na
natureza (agouros), como o nascimento de uma criança deformada ou o
comportamento atípico de animais. A arte da astrologia também tinha
grande participação na adivinhação.
Um aspecto da adivinhação, a magia reveladora, tem muitas
semelhanças com a prática de canalização do movimento da Nova Era
em nossos dias.12 Nessa forma de magia, solicitava-se a aparição de um
assistente divino para fornecer informações a respeito do futuro ou de
praticamente qualquer outra coisa. Com o uso de fórmulas apropriadas,
o ser sobrenatural podia ser obrigado a divulgar toda espécie de
informação secreta.
Um desses feitiços incluía um deus “com rosto de serpente”: “Invoca
o grande nome em tempo de forte angústia, em crises graves e
prementes. Do contrário, culparás a ti mesmo [...] Invoco-vos [31
nomes mágicos] [...] Entra, senhor, e revela. O deus com rosto de
serpente virá e te responderá. Quando tu o dispensares, farás uma
oferta da pele de uma serpente”.13 Aqui, supostamente, o suplicante
podia obter sabedoria e perspectiva a fim de adquirir controle sobre a
situação de crise.
Mais de um espírito podia ser convocado simultaneamente. O texto a
seguir parece ter por objetivo invocar vários espíritos malignos
poderosos. A fórmula diz:
Invoco-vos, habitantes do Caos e Érebo [o mundo dos mortos], das
profundezas, da terra, vigias do céu, das trevas, mestres das coisas
que não são vistas, guardiões dos segredos, líderes daqueles que se
encontram abaixo da terra, administradores de coisas que são
infinitas, aqueles que exercem o poder sobre a terra, servos do
abismo, lutadores que causam estremecimentos, ministros terríveis,
habitantes do escuro Érebo, vigias coercivos, governantes dos
penhascos, entristecedores do coração, daimons hostis, aqueles que
têm coração de ferro [sete nomes mágicos são fornecidos].14
Esses poderes também eram convocados para “dar revelação a respeito
da questão sobre a qual pondero”. A pessoa usava essas fórmulas não
apenas para satisfazer uma curiosidade intensa acerca do que o futuro
reservava, mas também para obter certa medida de controle sobre esse
futuro. Na magia, o destino não é algo inalterável. Aliás, o propósito da
magia é alterar o desdobramento do destino.
A magia reveladora proporcionava entendimento não apenas dos
acontecimentos do futuro, mas de qualquer coisa que a alguém
desejasse saber. Era uma forma de obter poder, influência e controle.
Simão, o mago: Atos 8
Em Atos dos Apóstolos, Lucas registra quatro ocorrências distintas que
envolvem o uso de magia. Em três dessas ocorrências, Lucas associa a
magia diretamente à ação de Satanás ou de seus demônios.
Em Samaria, um mago cujo nome era Simão havia atraído grande
atenção para si em virtude dos feitos extraordinários que tinha
realizado com sua magia. O povo de Samaria ficou tão admirado que
lhe deu o apelido de “o Grande Poder” (8.10).
No entanto, a pregação do evangelho por Filipe se mostrou mais
atraente, e muitos samaritanos entregaram a vida a Jesus Cristo, entre
eles, depois de algum tempo, o próprio Simão. Lucas retrata o
ministério de Filipe de forma semelhante ao que alguns missiólogos
chamariam hoje de “conflito de poder”. Embora Lucas não descreva o
episódio como um confronto decisivo entre Filipe e Simão, ele deixa
claro que a demonstração por Filipe de poder divino foi o que cativou o
interesse do público: “Quando as multidões ouviram Filipe e viram os
sinais miraculosos que ele realizava, todos deram grande atenção ao que
ele dizia” (8.6). Os sinais miraculosos de Filipe eclipsaram inteiramente
os sinais de Simão. Filipe expulsou espíritos malignos de várias pessoas
e curou muitos paralíticos e aleijados.
Lucas simplesmente relata a conversão de Simão, sem entrar em
detalhes, e não diz se espíritos malignos também foram expulsos dele.
Infelizmente, Simão permitiu que seu apego a poderes sobrenaturais
tivesse precedência sobre sua devoção ao Senhor Jesus e procurou
comprar a capacidade de conferir a outros o Espírito Santo. Ao detectar
as motivações pervertidas de Simão, Pedro o repreendeu com
veemência, instruiu-o a se arrepender desua perversidade e observou
que ele estava “cheio de amargura e preso pelo pecado” (8.23).
Algumas tradições posteriores da igreja afirmam que Simão
continuou em sua busca por poder divino e se tornou o originador do
que veio a ser conhecido como gnosticismo. O livro apócrifo do
segundo século Atos de Pedro narra de forma vívida que Simão saiu
perdendo em um “conflito de poder” com o apóstolo Pedro em Roma.
Depois que Simão fez muitos se desviarem com seus ensinamentos
heréticos, é dito que ele voou pelos ares sobre Roma, desafiando Pedro.
Então, Pedro orou ao Senhor, e Simão foi derrubado e, na queda,
quebrou a perna em três pontos.15
Um mago e falso profeta judeu: Atos 13
Lucas nos surpreende ao apresentar um mago judeu chamado Bar-Jesus
(filho de Jesus), ou Elimas (13.4-12). Na verdade, veremos adiante (cap.
4) que havia um amplo envolvimento dos judeus com magia, bruxaria e
feitiçaria. O apóstolo Paulo deparou com esse mago na ilha de Chipre,
no início de sua primeira empreitada missionária. É interessante
observar que esse feiticeiro era ligado formalmente a uma figura política
importante na ilha, o procônsul Sérgio Paulo.
Lucas não fornece detalhes a respeito da influência de Elimas sobre
Sérgio Paulo. Uma vez que autoridades políticas costumavam consultar
astrólogos e adivinhadores em busca de direção, é razoável especular
que a influência de Elimas se estendia ao governo do procônsul e às
estruturas políticas e econômicas pelas quais ele era responsável. Mais
importante para Paulo, contudo, era a oposição categórica do mago à
comunicação eficaz do evangelho a Sérgio Paulo e, talvez, até mesmo à
região que ele governava.
Lucas apresenta esse feiticeiro como a principal oposição à missão de
Paulo. O apóstolo percebeu que esse homem estava sob o controle de
Satanás e relevou para ele, de modo incisivo, seu verdadeiro caráter:
“Cheio do Espírito Santo, [ele] olhou firmemente para Elimas e disse:
‘Você é filho do Diabo e inimigo de tudo o que é justo! Está cheio de
toda espécie de engano e maldade. Quando vai parar de perverter os
retos caminhos do Senhor?’” (13.9-10). Em seguida, Paulo tomou
providências enérgicas contra o mago. Anunciou que a mão do Senhor
Jesus seria contra ele e o cegaria. No mesmo instante, Elimas perdeu a
visão. Mais uma vez, o “conflito de poder” se mostrou eficaz para o
sucesso do evangelho; o procônsul creu no Senhor Jesus Cristo.
O espírito de adivinhação: Atos 16
Enquanto Paulo estava em Filipos, uma jovem escrava, que tinha um
“espírito de adivinhação”, perturbou o apóstolo grandemente ao segui-
lo e a seus companheiros todos os dias, gritando: “Estes homens são
servos do Deus Altíssimo e lhes anunciam o caminho da salvação”. De
acordo com Lucas, esse espírito de adivinhação era, literalmente, um
“espírito de Píton” (grego = pythōn). Por meio desse espírito, a moça
conseguia predizer o futuro. Alguns indivíduos ávidos por lucro, que
depois criaram sérios problemas para Paulo (16.16-21), exploravam a
moça e sua habilidade sobrenatural.
O espírito de Píton era associado ao oráculo em Delfos, na Grécia
(cerca de 130 quilômetros a noroeste de Atenas), em que a profetisa era
chamada de pitonisa. Na mitologia clássica, Píton era uma serpente que
guardava o oráculo délfico e que foi morta pelo deus Apolo. Na
Antiguidade, pessoas de todo o Oriente Próximo vinham consultar o
oráculo em Delfos em busca de conselhos. Acreditava-se que aquele
fosse o centro da terra. De uma abertura no chão do local saía gás que a
profetisa délfica inalava a fim de receber conhecimento profético. Em
seguida, ela transmitia as informações à pessoa em forma de versos. O
viajante agradecido então partia, deixando ali oferendas votivas e
presentes caros.
Muitos também acreditavam que a pitonisa tivesse um deus que vivia
em seu ventre. Essa crença fez com que fosse chamada “aquela que fala
a partir do ventre”, pois ela se pronunciava com uma segunda voz grave
enquanto fazia suas predições. Aliás, alguns textos antigos atribuem
essa segunda voz a um daimōn.
Uma vez que Paulo acreditava claramente que um demônio
controlava a moça, ordenou ao espírito dentro dela: “Em nome de Jesus
Cristo ordeno que saia dela!”. Sem discussão e sem hesitação, o espírito
se foi. Lucas volta a atenção, em seguida, para a reação irada dos
proprietários da moça, e esse breve relato é tudo o que sabemos a
respeito dela nas Escrituras.
A queima de livros de magia em Éfeso: Atos 19
Lucas também apresenta o relato extraordinário de uma situação
associada à magia durante o ministério de Paulo em Éfeso (At 19.13-
20). Essa narrativa reforça a impressão de que Éfeso era um centro de
práticas mágicas durante o primeiro século. Lucas fala de alguns
exorcistas judeus itinerantes que tentaram usar o nome de Jesus como
parte do exorcismo de um homem perturbado por um espírito maligno.
Os exorcistas fracassaram cabalmente, foram fisicamente agredidos pelo
homem que o espírito controlava e “fugiram da casa nus e feridos”. Por
consequência, muitos ajuntaram seus livros com fórmulas mágicas e
feitiços e os queimaram. De acordo com os cálculos de Lucas, o valor
total dos livros era de cinquenta mil salários diários.
Esse relato é de grande importância para entendermos a situação
social e religiosa das igrejas cristãs primitivas. Aqui, Lucas dá a nítida
impressão de que aqueles que queimaram seus textos de magia já eram
cristãos. Ele observa: “Muitos dos que creram vinham e confessavam
abertamente suas más obras. Muitos que tinham praticado feitiçaria
reuniram seus livros e os queimaram publicamente” (19.18-19a). Essa
passagem ressalta a tentação que os primeiros crentes enfrentavam de
voltar a suas antigas práticas, especialmente à magia.
Resumo
Lucas deseja mostrar que o evangelho do Senhor Jesus e o poder de
Deus são, verdadeiramente, maiores do que qualquer oposição. Lucas
também associa claramente práticas de magia e adivinhação à obra de
Satanás e de seus poderes.16 Em todos esses exemplos, a obra do Diabo
por meio dessas pessoas dificultou o progresso do evangelho. O poder
de Deus operando por intermédio de seus mensageiros teve de
confrontar e vencer a oposição satânica.
Cada uma dessas narrativas em Atos também levanta questões
relevantes para entendermos melhor o que o apóstolo Paulo tem a dizer
acerca de principados e poderes. Ajuda-nos a esclarecer as necessidades
percebidas dos leitores aos quais Paulo se dirigiu em suas cartas.
Naturalmente, eles estavam cheios de questionamentos ao tentarem
entender o cristianismo à luz do ambiente religioso e mágico em que
viviam. É provável que fizessem perguntas como: De que maneira
convertidos vindos do ocultismo e do espiritismo devem viver à luz de
sua fé recém-descoberta no Senhor Jesus? Em que devem crer no tocante
aos poderes que, outrora, eles imaginavam que os servissem e aos
poderes que temiam? Alguns desses poderes ainda deviam ser
considerados bons e outros, maus? Que lugar Cristo ocupa em relação a
esses seres espirituais e poderes sobrenaturais? É possível ser dedicado a
Cristo e usar um amuleto para proteção? Como a igreja deve interagir
com não cristãos envolvidos com espiritismo?
Ter conhecimento das perguntas que, sem dúvida, estavam na mente
dos recém-convertidos no primeiro século contribuirá para que o Novo
Testamento ganhe vida quando considerarmos aquilo que Paulo diz
sobre principados e poderes.
1 Arthur Darby Nock, “Studies in the Graeco-Roman beliefs of the Empire”, in: Z. Stewart,
org., Arthur Darby Nock: essays on religion in the ancient world (Oxford: Clarendon, 1972),
vol. 1, p. 34. O artigo foi publicado inicialmente em 1928. Hans Dieter Betz, da University of
Chicago, concorda: “As crenças e práticas religiosas da maioria das pessoas eram idênticas a
alguma forma de magia, e a distinção nítida que fazemos hoje entre formas aprovadas e
reprovadas de religião (ao chamar as primeiras de ‘religião’ e ‘igreja’ e as últimas de ‘magia’ e
‘seita’) não existia na Antiguidade, exceto entre alguns intelectuais” (Hans Dieter Betz, org., The
GreekMagical Papyri in translation [Chicago: University of Chicago Press, 1986], vol. 1: Text,
p. xli).
2 PMG 4.2695-2704.
3 Para uma discussão detalhada da história e do uso do termo daimōn, veja Frederick E.
Brenk, “In the light of the moon: demonology in the Early Imperial Period”, Aufstieg und
Neidergang der römischen Welt II.16.3 (Berlin: Walter de Gruyter, 1987), p. 2068-145.
4 Philostratus [Filóstrato], Life of Apollonius of Tyana 3.38-39. Veja o texto e a discussão em
Georg Luck, Arcana Mundi: magic and the occult in the Greek and Roman worlds (Baltimore:
Johns Hopkins University Press), p. 155-6.
5 O texto foi publicado com notas críticas por Dierk Wortmann, “Neue Magische Texte”,
Bonner Jahrbiicher 168 (1968): 60-80. A tradução do texto para o inglês depende aqui de D. R.
Jordan, “A love charm with verses”, Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 72 (1988):
245-9.
6 PMG 36.231-55.
7 David Aune, “Magic; magician”, in: International Standard Bible Encyclopedia (Grand
Rapids: Eerdmans, 1986), vol. 3, p. 218.
8 Para os textos e uma discussão, veja Chester C. McCown, “The Ephesia Grammata in
popular belief”, Transactions of the American Philological Association 54 (1923): 128-40.
9 Tradução para o inglês de A. F. Segal, “Hellenistic magic: some questions of definition”, in:
R. van den Broek; M. J. Vermaseren, orgs., Studies in gnosticism and hellenistic religions
(Leiden: Brill, 1981), p. 358.
10 PMG 1.1-2.
11 PMG 1.96-116.
12 Para a avaliação por um evangélico da prática contemporânea de canalização, veja Elliot
Miller, A crash course on the New Age movement (Grand Rapids: Baker, 1989), caps. 8 e 9.
13 PMG 12.153-60.
14 PMG 7.348-58.
15 Atos de Pedro foi traduzido para o inglês; veja Edgar Hennecke, New Testament
Apocrypha, organização de W. Schneemelcher (Philadelphia: Westminster, 1964), vol. 2, p.
259-322.
16 Veja Susan R. Garrett, The demise of the Devil: magic and the demonic in Luke’s writings
(Minneapolis: Fortress, 1989). Garrett, em seu excelente estudo do tema da magia e de
demônios em Lucas-Atos, mostra claramente o interesse de Lucas em proclamar o triunfo de
Cristo sobre Satanás, a força por trás de toda magia.
H
2
Religiões greco-romanas e
orientais
oje em dia, quando turistas caminham em meio às ruínas da
antiga acrópole de Atenas, um sentimento de grande admiração
toma conta dos sentidos diante da grandiosidade e beleza do
Partenon e dos edifícios ao redor, como o templo de Atena
Nice, o teatro de Dionísio, o Olimpeu e as muitas outras construções
magníficas. Quase dois milênios atrás, quando Paulo caminhou pelas
ruas de Atenas pela primeira vez, certamente também se encantou com
a beleza desse centro da civilização grega. No entanto, Lucas revela que
Paulo ficou profundamente angustiado. Por quê? Porque “a cidade
estava cheia de ídolos” (At 17.16).
Sem dúvida, Atenas não era a única cidade “cheia de ídolos”. Todas
as cidades, entre elas Tarso, a cidade da infância de Paulo, tinham
templos e altares dedicados a uma porção de divindades. Embora Paulo
tenha escrito cartas para pessoas na Ásia, Grécia e Itália, muitos dos
mesmos deuses eram adorados em todos esses lugares. E, ainda mais
relevante, as experiências religiosas pré-cristãs dos convertidos do
paganismo eram bastante parecidas em vários aspectos fundamentais.
Os pagãos acreditavam que seus deuses estavam vivos e que podiam
ajudá-los de formas práticas em suas necessidades terrenas e, em muitos
casos, conduzi-los a uma vida bem-aventurada depois da morte. Os
primeiros cristãos, incluindo Paulo, também consideravam que esses
deuses estivessem vivos, mas em um sentido diferente. Eles acreditavam
que demônios, os poderes de Satanás, inspiravam e perpetuavam os
deuses pagãos. Esses ídolos angustiaram Paulo grandemente porque
representavam oposição sobrenaturalmente inspirada ao evangelho que
ele viera proclamar.
Sincretismo
Mais de três séculos antes do tempo de Cristo, um grego chamado
Alexandre, o Grande, conquistou uma série de vitórias militares sem
precedentes e expandiu seu domínio para o leste, abarcando a Ásia
Menor, Síria, Palestina, Egito, norte da África, Oriente Médio e
algumas regiões da Índia. Deu início, com efeito, a uma comunidade
mundial que alteraria para sempre o curso da história. Aliás,
historiadores costumam se referir aos três séculos depois de seu reinado
como período helenístico.
Não apenas o grego se tornou a língua universal, mas também a
cultura grega se propagou por esses países. No entanto, essa influência
era uma via de duas mãos, especialmente no tocante à religião. Deuses e
deusas adorados no Oriente foram transplantados para terras gregas e
romanas. Os conceitos espirituais e religiosos do Oriente se mostraram
bastante atraentes para o Ocidente.1 No tempo do Novo Testamento,
uma mistura incrível de divindades era venerada nas cidades do mundo
mediterrâneo.
Corinto é um bom exemplo.2 Há indícios literários e arqueológicos
de culto a várias divindades gregas tradicionais (Apolo, Atena, Afrodite,
Dionísio, Asclépio, Deméter, Cora, Poseidon e Zeus) datados da época
do ministério de Paulo nessa cidade. Além disso, há indícios de que duas
divindades egípcias, Ísis e Serápis, haviam se tornado extremamente
populares entre os coríntios. A deusa da Ásia Menor conhecida como
Grande Mãe era venerada em um santuário dedicado a ela em Corinto.
Havia até um grupo de judeus que construiu uma sinagoga na cidade no
tempo de Paulo. Em Corinto, os deuses romanos também eram
adorados à medida que se identificavam com muitos dos deuses gregos.
Eram conhecidos por seus nomes romanos ou gregos, como o deus
romano Júpiter e o deus grego Zeus.
Durante o ministério de Paulo, o sincretismo passava por um
crescimento nunca visto. Gregos helenísticos não eram obrigados a
dedicar lealdade exclusiva a seus deuses ancestrais. Agora também
podiam adorar deuses persas, sírios, egípcios ou asiáticos. Também não
se sentiam na obrigação de adorar apenas um deus. Na verdade, era o
contrário. Inúmeros deuses podiam ser adorados, embora devamos
observar que havia uma tendência crescente de crer em um deus
supremo e considerar os demais como deuses menos poderosos, ou
daimones.
O surgimento do interesse espiritual pessoal
Embora ainda se prestasse culto aos deuses gregos e romanos
tradicionais, nesse período eles eram vistos de modo diferente do que na
era clássica. A maioria dos estudiosos concorda que os antigos cultos
passaram por transformações fundamentais durante a era helenística.
Essa mudança se deveu, em parte, à propagação desses cultos por todo
o mundo helenístico. Os deuses antigos eram, com frequência,
reinterpretados em seus novos cenários, o que, por fim, influenciava em
como eram entendidos em seus lugares de origem. Um deus grego
tradicional era, muitas vezes, assimilado a uma divindade local. Quando
os primeiros gregos se estabeleceram em Éfeso, por exemplo, ao que
parece mudaram o nome de uma deusa local da fertilidade e a
chamaram de Ártemis (ou Diana, seu nome romano). Embora essas
duas divindades tivessem em comum o fato de serem deusas do parto,
da vida selvagem e da caça, suas imagens cultuais não têm praticamente
nenhuma semelhança. A Ártemis grega geralmente era retratada como
uma bela figura feminina com vestes esvoaçantes, enquanto a Ártemis
efésia era retratada com vestimentas ricamente ornamentadas, mas em
postura ereta rígida.3
A mitologia de Homero ainda provia uma estrutura básica para
entender a natureza de algumas das divindades gregas tradicionais, mas
havia uma percepção crescente de que essas divindades eram menos
distantes e estavam mais interessadas nas dificuldades das pessoas
comuns. Jonathan Z. Smith explica a mudança de percepção da seguinte
forma:
Em lugar de um deus que habitava em seu templo, as tradições
diaspóricas desenvolveram técnicas complicadas para alcançar visões,
epifanias (manifestações de um deus) ou jornadas celestiais até um
deus transcendente. Esse quadro levou a uma mudança de interesse
em uma religião de prosperidade nacional parauma religião de
salvação individual, de um foco sobre determinado grupo étnico para
a preocupação com cada ser humano.4
Estudiosos costumam descrever o período helenístico em associação ao
surgimento da “religião pessoal”. Há muitos relatos e testemunhos da
importância dos deuses para indivíduos em suas respectivas
circunstâncias. Em contrapartida, esse período também foi
caracterizado por uma era de “ansiedade”, pois as pessoas pareciam
mais desejosas de ter comunhão pessoal com uma divindade, de garantir
a vida após a morte e de impedir a influência do destino e de espíritos
malevolentes.
Durante o período helenístico, relacionamento e união com uma
divindade ocorriam, mais comumente, por meio de um ato ritual
descrito por autores antigos como iniciação no mistério da divindade.
Embora nem todos os deuses e deusas tivessem mistérios, a
popularidade desses ritos cresceu durante a era helenística e continuou a
se expandir no período romano. É provável que vários cultos
praticassem esses ritos de iniciação de mistério em todas as cidades em
que Paulo pregou e plantou igrejas.
Na realidade, o que sabemos sobre a forma e o conteúdo desses
mistérios é um tanto incompleto. Iniciados nos mistérios tinham de
jurar segredo, e as penas em caso de quebra desse juramento eram
rigorosas. Não havia uma liturgia escrita. Os mistérios eram realizados
com ênfase em símbolos visuais e encenações rituais. Os sacerdotes e as
sacerdotisas talvez até conduzissem os iniciados para que descessem ao
mundo dos mortos ou subissem ao céu por meio de visões. Dois
exemplos de conhecidas religiões de mistério oferecem um retrato mais
nítido do significado desses ritos.
O mistério clássico: o rapto de Cora por Hades
Pouco mais de vinte quilômetros a oeste de Atenas, na estrada para
Corinto, ficava a cidade de Elêusis, em uma fértil região rural. Durante
séculos antes do tempo de Cristo, ritos de mistério eram realizados
anualmente na cidade para celebrar o reencontro de uma deusa-mãe
com sua filha, raptada por três meses por Hades, deus do mundo dos
mortos. De acordo com o mito que norteava esses ritos, Deméter, a mãe
aflita, caminhou sem rumo por vários dias e chegou ao fim da busca por
sua filha, Cora (também conhecida como Perséfone), na cidade de
Elêusis. Enquanto Deméter estava em Elêusis, Zeus, o deus supremo,
finalmente interveio e prometeu reunir Cora com sua mãe oito meses
por ano. Contudo, Zeus também consentiu que Hades (deus romano
Plutão) tomasse Cora para ser sua esposa. Esse acordo foi firmado entre
a mãe e o futuro marido da filha.5
Em Elêusis, os ritos de mistério eram realizados todos os anos e
abrangiam a encenação de várias partes desse drama mítico. Os
“Mistérios Menores”, em honra a Cora, se desenrolavam no início da
primavera; os “Mistérios Maiores”, em honra a Deméter, eram
realizados no início do outono. Os ritos de mistério simbolizavam uma
vida feliz depois da morte, em outro mundo, mas também eram
intimamente ligados ao cultivo de uma boa safra de cereais na região a
cada ano. Os dois temas a seguir eram de grande importância nesse
aspecto.
Primeiro, quando outra divindade informou Deméter (também
conhecida como “donzela dos cereais”) do rapto de sua filha, Deméter
fez vir uma praga terrível sobre a terra, que obrigou Zeus a intervir.
Essa praga, provocada por desarmonia cósmica divina, devastou a
produção agrícola. Parte dos “Mistérios Maiores” celebra a harmonia
cósmica que ocorreu, por fim, entre os céus (Zeus), a terra (Deméter) e
o mundo dos mortos (Hades). Essa harmonia era essencial para garantir
estabilidade agrícola contínua.
Segundo, de acordo com a interpretação local, a jornada anual de ida
e volta de Cora ao mundo dos mortos estava relacionada aos grãos
usados como semente na agricultura local. Assim como Cora passava
quatro meses do ano com Hades e outros oito meses com Deméter, os
grãos usados como sementes em Elêusis eram preservados em silos
subterrâneos durante quatro meses e depois semeados, cultivados e
colhidos no restante do ano. Acreditava-se que as atividades desses
deuses estavam entrelaçadas intimamente com a economia agrícola
local. Logo, era importante agradar os deuses por meio da realização
anual desses ritos de mistério.
É difícil saber exatamente qual era o significado espiritual mais
profundo atribuído aos ritos de mistério em Elêusis no tempo de Paulo.
Esses ritos eram interpretados de maneiras variadas, de acordo com as
necessidades religiosas de cada época. Embora Hades não fosse um
símbolo do mal para os gregos, era representado, com frequência, como
um deus “austero, sem clemência [e] castigador severo dos
malfeitores”.6 É possível que os ritos de mistério simbolizassem
proteção de influências prejudiciais de Hades. O desejo de proteção é,
provavelmente, o motivo pelo qual a encenação dramática da descida
ao mundo dos mortos é importante em relação ao Plutônio, uma
abertura para o mundo dos mortos junto ao templo em Elêusis.
Também é provável que, no auge da iniciação de mistério, os novos
devotos fossem os deslumbrados recebedores de uma epifania da deusa
Deméter, que lhes concedia felicidade e a esperança de uma vida
agradável no mundo dos mortos. Paulo e todos os seus leitores na
Grécia certamente conheciam bem essa famosa religião de mistério.
Taurobólio: iniciação de Cibele
Do outro lado do mar Egeu, na Ásia Menor, onde várias igrejas cristãs
estavam se formando, um culto oriental bastante difundido observava
mistérios anuais em homenagem à deusa-mãe Cibele (pronunciava-se
ku-bé-le). Essa divindade feminina da Ásia, também conhecida como
“Grande Mãe” e “Mãe dos Deuses” passou a ser adorada na Grécia e
até mesmo em Roma antes de ter início o período do Novo Testamento.
A parte mais conhecida de seu rito de mistério era um acontecimento
chamado taurobólio. Nesse rito, o iniciante descia a um fosso
subterrâneo parcialmente coberto com treliças de madeira. Sobre as
treliças, os sacerdotes de Cibele abatiam um touro jovem e deixavam o
sangue escorrer pelas aberturas na madeira, ensopando o iniciante no
fosso abaixo. O escritor latino cristão Prudêncio descreve o rito de
forma vívida:
Por um milhar de fendas na madeira, o orvalho sangrento escorre até
o fosso. O neófito [iniciante] recebe as gotas que caem sobre sua
cabeça, suas roupas e seu corpo. Inclina-se para trás a fim de que suas
faces, seus ouvidos, seus lábios e suas narinas sejam molhados;
derrama o líquido sobre seus olhos, e não poupa nem mesmo seu
palato, pois umedece a língua com sangue e bebe-o avidamente.7
Para os devotos de Cibele, esse rito repulsivo era cheio de profundo
significado espiritual. Acreditava-se que o “batismo” sangrento
purificava os iniciantes de suas faltas. Franz Cumont argumenta que
havia até mesmo um conceito materialista de transferência de força para
o iniciante. Observa: “Ao umedecer o corpo com o sangue do novilho
abatido, o neófito acreditava que estava transferindo para seus
membros a força do animal formidável”.8 Como em outros mistérios, é
provável que a iniciação também representasse algum tipo de união
mística com a divindade.
O neófito podia, agora, viver com maior segurança e paz. O
taurobólio satisfazia um anseio espiritual e aproximava a pessoa da
divindade. O novo acesso ao poder cósmico da divindade, simbolizado
pelo sangue do touro, provia benefícios, como a capacidade de lidar
com influências hostis malévolas e a certeza da imortalidade.
Asclépio: deus da cura
A melhor maneira de entender outras religiões do tempo do Novo
Testamento é examinar algumas delas de perto. Escolhi três divindades
que, no tempo de Paulo, eram populares por diferentes motivos. Sem
dúvida, muitos dos convertidos de Paulo em Éfeso, Filipos, Tessalônica,
Corinto e outros lugares haviam sido devotos desses deuses antes de
abraçar o evangelho. Os retratos dessas três divindades nos ajudam a
entender os antecedentes pré-cristãos de um grande segmento do
público leitor de Paulo.
O deus Asclépio, louvado com frequência como um “salvador”, era
uma das divindades maisbenquistas pelo povo na era do Novo
Testamento.9 Asclépio era honrado em todo o mundo mediterrâneo por
seu poder de curar os enfermos e aflitos. Seu símbolo era uma vara em
torno da qual estava enrolada uma serpente, semelhante ao símbolo dos
médicos de hoje. Asclépio era visto como um deus benevolente, que se
preocupava com as necessidades das pessoas. Acreditava-se que ele se
identificava com os sentimentos dos aflitos porque era um deus-homem.
Aliás, no parecer de muitos, Asclépio era metade humano e metade
divino. Em razão dessas e de outras semelhanças com Cristo, o culto a
Asclépio se configurou como um forte oponente do cristianismo.
Pérgamo e Epidauro eram dois importantes centros do culto a
Asclépio e ficavam próximos de Éfeso e Corinto, centros estratégicos
das atividades missionárias de Paulo. Embora Paulo não mencione
Asclépio (e nenhuma outra divindade pagã) em suas cartas, sem dúvida
o apóstolo tinha um número considerável de convertidos que haviam
tido algum contato com o culto a Asclépio.
De todas as partes do mundo helenístico, enfermos e aflitos iam aos
centros de Asclépio em busca de cura para seus males. Relatava-se que
muitos eram agraciados com a intervenção divina curativa de Asclépio
durante o rito de “incubação”, que consistia em dormir nos recintos do
templo a fim de receber uma epifania em forma de visão do deus.
Quando Asclépio se manifestava para a pessoa enferma, transmitia seus
poderes curativos, e a saúde da pessoa era restaurada. Essa
manifestação e a aparente cura constituíam a essência da iniciação no
mistério divino de Asclépio. Antes de dormir no templo, o indivíduo
enfermo tinha de realizar certos ritos de purificação e oferecer
sacrifícios a Asclépio. Depois de experimentar o poder curativo desse
deus, era importante oferecer ações de graças apropriadas e aceitáveis.
Com frequência, o rito assumia a forma de oferta de gratidão, que o
neófito costumava consumir enquanto o deus estava em seu templo. Um
autor observou: “No culto a Asclépio, o conceito antigo de sacrifício
como comunhão entre deus e homem era preservado tenazmente”.10
Essa descrição ilustra uma característica distintiva do período do Novo
Testamento, em que o conceito de um relacionamento pessoal e
próximo com a divindade era comum.
As pessoas curadas também eram incentivadas a anunciar a outros o
que Asclépio havia feito por elas. Consequentemente, temos vários
relatos de pessoas que louvam esse deus por tê-las curado de suas
enfermidades. Um texto em papiro parece ser a introdução de um
documento bem mais longo em que um homem louva Asclépio por ter
sido curado de uma terrível enfermidade interior durante o rito de
incubação. Imediatamente antes de o texto ser interrompido, o autor
declara sua intenção: “Pretendo agora relatar essas manifestações
miraculosas, a grandeza de seu poder, as dádivas de seus benefícios.
Esta é a história...”.11
Muitos cristãos primitivos não contestavam as evidências de
acontecimentos sobrenaturais associados ao culto a Asclépio. Antes,
atribuíam a fonte dos poderes de cura a Satanás e seus demônios e
ressaltavam seus sérios perigos. Entre os pais da igreja, Eusébio
considerava Asclépio um espírito maligno “que não cura almas, mas,
sim, as destrói”, enquanto Lactâncio chamou Asclépio de
“arquidemônio”.12
Hécate: deusa da bruxaria e da feitiçaria
A deusa Hécate (cujo nome também é grafado Hekate) tem grande
relevância em nossa investigação dos poderes das trevas. Mais que
qualquer outra divindade helenística, ela era popularmente conhecida
por sua ligação próxima com espíritos malignos, aparições estranhas e
coisas perigosas. Muito antes do período do Novo Testamento, era
considerada de modo geral a senhora dos espíritos malignos (ou
demônios).13 Alois Kehl observa: “Na crença comum da civilização
greco-romana, Hécate ocupava um lugar acima de todos como
governante das trevas, do terror, dos mortos, dos demônios e da
magia”.14 Como se acreditava que ela governava os demônios, era
invocada com frequência em feitiçaria e magia; e porque controlava os
espíritos malignos, ela conferia à magia seu poder eficaz.15 Como deusa
que enviava os demônios para que realizassem os desejos do mago, seu
nome aparece repetidamente em todos os textos mágicos.
Era considerada por muitos uma deusa do mundo dos mortos; em
outras palavras, exercia controle sobre o lugar dos mortos ou das almas
desencarnadas. Seu poder sobre os diversos espíritos do mundo dos
mortos era representado por seu título, “portadora da chave”,
indicando que ela guardava as chaves da fortaleza de Hades.16 Já que
controlava a passagem para o mundo dos mortos, podia dar às pessoas
a capacidade de se comunicar com os mortos. Como guardiã de Hades,
também controlava as aparições ou almas que subiam para cumprir as
ordens do mago.17
Seu poder não se limitava apenas ao mundo dos mortos. Como era o
caso de muitas outras divindades da época, ela era vista como uma
deusa com poderes cósmicos. Seu governo abrangia o céu, a terra e o
mar. Alguns textos indicam sua ligação com o elemento lunar, em que
ela passa a ser associada a Selene, a deusa da lua. Alguns autores
antigos chegam a enfatizar seu papel como alma cósmica.18
As pessoas prestavam culto a Hécate e lhe apresentavam oferendas
para serem protegidas do mal. Ela era chamada “deusa das
encruzilhadas”. Na superstição popular, a interseção de dois caminhos
era considerada assombrada. Era comum colocar uma estátua de
Hécate em encruzilhadas. Sua função de impedir influências malignas
reflete seu título popular, “protetora da porta”.
Embora Hécate fosse adorada em todo o Império Romano, recebia
veneração especialmente na Ásia Menor, seu suposto lugar de origem.
O principal centro de culto era Lacena, não muito distante de Éfeso.
Hécate é ligada de modo próximo à Ártemis efésia, tanto que a
diferença entre as duas deusas se tornou indistinta em vários aspectos.
Durante as viagens do apóstolo Paulo por todo o império, é provável
que ele tenha visto a imagem de Hécate inúmeras vezes em estradas
romanas. Para seus convertidos, devia ser difícil abrir mão
completamente do culto a essa deusa, uma vez que ela era vista como a
principal fonte de proteção contra espíritos malignos na vida diária. Sua
promessa de proteção contra o mundo dos mortos também representava
um desafio importante à promessa do evangelho cristão de vida depois
da morte.
Dionísio: deus do prazer sensual
Na sociedade ocidental contemporânea, Dionísio pode ser considerado
o “festeiro” máximo.19 A maioria dos estudiosos faz referência à
observância de seus mistérios em um período de três a cinco dias como
“ritos extáticos”, uma celebração ruidosa, frenética e regada a bebidas
alcoólicas. Um observador antigo resumiu essa farra da seguinte forma:
“Não considerar nada errado [...] era a mais elevada forma de devoção
religiosa entre eles”.20 Em outro sentido, havia um lado espiritual sério
nos ritos de mistério de Dionísio; o mistério de Dionísio oferecia a
promessa de uma vida bem-aventurada no outro mundo depois da
morte.
Os mistérios de Dionísio (também chamados Bacanálias) eram
extremamente populares na época em que o cristianismo começou a se
propagar. Celebrados em toda a Grécia, Ásia Menor, Egito e até mesmo
na Itália, eram amplamente difundidos. Essas festanças eram
especialmente atraentes para as classes mais baixas, mas membros de
classes sociais mais elevadas também tinham gosto por elas. A
celebração dos mistérios de Dionísio (ou Baco, seu nome romano) dava
aos participantes a oportunidade de transcender a insipidez e a
monotonia da vida diária.
Em 186 a.C., o governo romano condenou essa religião de “vale
tudo”, mas nem por isso ela perdeu popularidade. Aliás, antes do tempo
de Cristo, alguns romanos da alta sociedade tinham predileção por esse
culto. O historiador romano Lívio, que escreveu perto da época do
nascimento de Cristo, oferece uma descrição extraordinária da natureza
das Bacanálias:
Havia iniciações transmitidas, a princípio, apenas a uns poucos; no
entanto, logocomeçaram a ser amplamente difundidas entre homens
e mulheres. Os prazeres de beber e banquetear foram acrescentados
aos ritos religiosos para atrair um número maior de seguidores.
Quando o vinho havia inflamado os sentimentos, e a noite e a
mistura dos sexos e das diferentes idades haviam extinguido todo
poder de juízo moral, corrupção de toda espécie começava a ser
praticada, uma vez que cada um tinha à sua disposição a
oportunidade de satisfazer o desejo específico ao qual era
naturalmente propenso. A corrupção não se limitava a um tipo de
mal, à violação promíscua de homens livres e de mulheres; o culto
também provia falsas testemunhas, documentos e testamentos
forjados, evidências por meio de perjúrio, bem como venenos e
assassinatos por encomenda entre os devotos e, por vezes, garantia de
que os corpos nem sequer fossem encontrados para ser sepultados.
Muitos dos abusos eram cometidos por astúcia, e um número ainda
maior, por violência; e a violência era ocultada, pois nenhum clamor
por socorro podia ser ouvido em meio aos gritos agudos, ao ruído
dos tambores e ao estrépito de címbalos na cena de devassidão e
carnificina.21
Do testemunho oficial do procônsul romano, que levou à condenação
do culto em 186 a.C., temos esta descrição reveladora:
Desde o tempo em que os ritos eram realizados promiscuamente, com
uma mistura de homens e mulheres, e quando a permissão dada pela
escuridão fora acrescentada, eram experimentadas todas as espécies
de crime, todos os tipos de imoralidade. Eram praticadas mais
obscenidades entre homens do que entre homens e mulheres.
Qualquer um que não se submetesse a esses abusos ou relutasse em
cometer um delito era abatido como vítima sacrificial. Para essas
pessoas, considerar que nada era proibido constituía o ápice da
realização religiosa. Homens, aparentemente ensandecidos,
balbuciavam profecias em meio a convulsões frenéticas do corpo:
matronas, vestidas como bacantes, de cabelos desgrenhados e
carregando tochas, corriam até o Tibre.22
A bebedeira caracterizava a farra dos devotos bacânticos (aqueles que
celebravam os mistérios de Dionísio). Durante o período romano, o
vinho era um símbolo central de Dionísio, que frequentemente era
representado com cachos de uvas e conhecido como deus do vinho e da
embriaguez. Sem dúvida, esse fato contribuía significativamente para o
frenesi desvairado e descontrolado das celebrações.
O sexo e os prazeres sexuais também desempenhavam um papel
fundamental nas Bacanálias. Outro símbolo importante do culto era um
cesto de vime cheio de frutas do qual se elevava um falo. Uma
representação do falo era levada à frente em todas as procissões
daqueles que celebravam os ritos de Dionísio. O ponto culminante da
iniciação do mistério talvez fosse a revelação do falo. Provavelmente
constituía um símbolo de poder vivificador e, como tal, é possível que
garantisse a esperança de uma vida prazerosa e bem-aventurada depois
da morte.23 Também é possível que o falo simplesmente simbolizasse o
mistério e o prazer da sexualidade.24
Depois da celebração dos mistérios, geralmente havia banquetes,
danças e farras. Alguns documentos antigos de diferentes lugares
relatam o sacrifício de animais vivos que ocorria enquanto os devotos
bacânticos se alimentavam com avidez de partes cruas e cheias de
sangue do animal. Os relatos de Lívio citados anteriormente dão a
impressão de que ocorriam assassinatos e possíveis sacrifícios humanos.
Durante o período romano, a preocupação cada vez maior das
pessoas com a vida depois da morte tornou atraente o culto a Dionísio.
A iniciação no mistério de Dionísio podia ajudar a pessoa a evitar os
temidos demônios castigadores (poinai) depois da morte. Essas
entidades castigadoras eram retratadas, com frequência, como
demônios alados feios, do sexo feminino, que causavam calafrios de
horror. Os iniciados não esperavam ressurreição depois da morte, mas,
sim, uma vida bem-aventurada em outro mundo cheio de prazeres
sensuais contínuos (experimentados de antemão nas celebrações de
mistério).
Poderíamos retratar aqui dezenas de outros deuses e deusas. Durante
o período do Novo Testamento, Ísis, Mitras e outros eram
extremamente importantes. Meu propósito, contudo, não é fornecer um
panorama detalhado das religiões helenísticas, mas apenas dar um
vislumbre das práticas e crenças que cercavam três divindades que
concorriam por adeptos com o Senhor Jesus Cristo. Os pais da igreja
tinham firme convicção de que o próprio Satanás vitalizava esses deuses
e deusas com seus poderes das trevas. A interpretação demoníaca
conferida a essas religiões pelos pais da igreja teve origem, em parte, no
apóstolo Paulo.
Deuses e deusas em Atos
Embora as epístolas paulinas tenham poucas informações explícitas
sobre o contato de Paulo com a adoração a deuses pagãos, Lucas
registra alguns casos específicos em Atos.25 A primeira interação que
Lucas escolhe registrar ocorre no sul da Galácia, na cidade de Listra (At
14.8-20). Depois de Paulo curar um paralítico, a multidão concluiu que
Paulo e Barnabé eram a encarnação de Hermes e Zeus. É interessante
que Barnabé fosse equiparado a Zeus, o deus supremo, enquanto Paulo
foi associado a Hermes, considerado mensageiro dos deuses superiores,
especialmente de Zeus. O papel de destaque de Paulo na situação
provavelmente lhe rendeu essa identificação como arauto de Zeus.
Paulo e Barnabé, ao não receberem da multidão a reação que
esperavam, repudiaram de imediato sua associação com essas
divindades pagãs. Em vez de condenar os deuses e dizer que eram
demônios, afirmaram que essas divindades eram “coisas vãs”, uma
forma judaica comum de se referir a deuses pagãos. Paulo chamou a
atenção para “o Deus vivo”, o criador que exercia sua bondosa
providência para o bem-estar deles.
Em Atenas, Paulo encontrou um ponto de contato para a
comunicação eficaz com seu público na inscrição de um altar que dizia:
“A um deus desconhecido” (At 17.16-34). Ao chamar a atenção para
essa inscrição, ele reconheceu o forte interesse espiritual deles, mas
redirecionou seu foco para o Deus que ele considerava supremo: o Deus
criador, providencialmente soberano, que não consiste em uma imagem
de escultura projetada por seres humanos; o Deus que julga o mundo e
que ressuscitou o Senhor Jesus Cristo dos mortos. Nesse contexto
evangelístico, Paulo não considerou apropriado associar os deuses
atenienses a Satanás e seus demônios, talvez, em parte, porque essa
condenação pressupusesse conhecimento da demonologia judaica que
esses atenienses não teriam compreendido. Ademais, talvez Paulo não
considerasse prudente do ponto de vista evangelístico condenar esses
deuses e afirmar que eram falsificações demoníacas. Sabemos, porém,
com base em sua correspondência com igrejas estabelecidas
(especialmente a de Corinto), que ele ensinou os cristãos posteriormente
que havia uma ligação entre religião pagã e coisas demoníacas.
Um dos conflitos mais dramáticos de Paulo com os adoradores de
uma divindade pagã ocorreu em Éfeso, a mais importante cidade
portuária no oeste da Ásia Menor (At 19.23-41). Nesse episódio, Paulo
atraiu sobre si a ira de uma grande multidão incitada por membros de
uma associação de artífices que confeccionavam nichos da divindade
protetora da cidade: Ártemis de Éfeso. Em razão do grande número de
conversões ao cristianismo, esses artífices viram Paulo como séria
ameaça não apenas para os negócios deles, mas também para o culto à
deusa que eles reverenciavam. Os artífices conseguiram instigar uma
multidão irada que se reuniu no belo teatro de Éfeso, o que produziu
louvores a Ártemis pronunciados aos gritos por duas horas. Todos
clamavam em uníssono: “Grande é a Ártemis dos efésios!”. Apesar da
fúria da multidão, Paulo quis se dirigir aos presentes, mas alguns irmãos
cristãos insistentes o impediram de fazê-lo. O perigo para o apóstolo era
tanto naquele momento que ele deixou a cidade de imediato a fim de
dar continuidade a seu ministério em outro lugar. É expressivo que,
quando Lucas descreve o ministério de quasetrês anos exercido por
Paulo em Éfeso, ele escolhe escrever principalmente sobre o conflito de
Paulo com os seguidores dessa divindade pagã. Como observamos no
primeiro capítulo, também é importante lembrar os vínculos que essa
deusa tinha com práticas de magia (manipulação de espíritos).
Lucas registra mais um incidente com deuses pagãos. Nesse caso, as
pessoas voltam a confundir Paulo com um deus. A situação ocorreu na
ilha de Malta, depois de o apóstolo ser mordido por uma cobra
venenosa e não adoecer nem morrer (At 28.1-6). Quando Paulo foi
mordido, porém, o povo supôs de imediato que a deusa Dice (Justiça) o
estivesse castigando por homicídio. Em seguida, Lucas observa: “[as
pessoas] mudaram de ideia e passaram a dizer que ele era um deus” (At
28.6), depois de ver que o veneno não teve nenhum efeito sobre Paulo.
O relato de Lucas é tão sucinto nesse ponto que ele não diz como Paulo
reagiu às asserções do povo. Podemos supor que foi de modo
semelhante a sua reação em Listra, em que ele negou a adulação
equivocadamente direcionada a ele e apontou para o único Deus
verdadeiro.
Por fim, Lucas menciona por nome outros dois deuses pagãos, Castor
e Pólux, também conhecidos como “Deuses Gêmeos” (At 28.11). Eram
os acrostólios de um navio de carga alexandrino (do Egito) em que
Paulo embarcou. Não é fornecido nenhum indício da reação de Paulo,
mas Lucas se mostra interessado em mencionar esse fato. Esses deuses
eram populares entre navegadores do mundo antigo, talvez porque sua
constelação, Gêmeos, fosse considerada um sinal de boa fortuna em
meio a uma tempestade.26 Essa referência é mais uma lembrança do
grande número de divindades no mundo do Novo Testamento e de seu
envolvimento com a vida diária das pessoas daquela época.
O livro de Atos trata principalmente da expansão geográfica do
evangelho a partir da Palestina, passando pelas terras mediterrâneas, até
Roma. Lucas tem como objetivo registrar a oposição feita pelos cultos
pagãos à propagação do evangelho, mas o faz apenas de forma
superficial. Não entra em descrições pormenorizadas de nenhum dos
cultos pagãos. Também não parece interessado em descrever a
dificuldade que os convertidos pagãos enfrentavam de conciliar sua
nova lealdade ao Cristo ressurreto com suas práticas religiosas
anteriores. Paulo foi mais reflexivo sobre essa questão em virtude de sua
preocupação em fortalecer as congregações com ensino correto
extremamente relevante para aqueles que, em outros tempos, haviam
adorado esses vários deuses e deusas. É evidente que, no parecer do
apóstolo, essas divindades e os respectivos sistemas de adoração cultual
estavam intimamente associados a demônios.
1 Quanto à influência das religiões orientais, veja Franz Cumont, The Oriental religions in
Roman paganism (New York: Dover, 1956). Alguns, como o proeminente historiador Martin P.
Nilsson, acreditam, no entanto, que Cumont exagerou em sua argumentação.
2 Para um bom panorama conciso da vida religiosa em Corinto na época de Paulo, veja
Victor P. Furnish, II Corinthians, Anchor Bible 32A (New York: Doubleday, 1984), p. 14-22.
3 Para várias fotos de imagens ainda existentes dessas e de outras divindades helenísticas, veja
Lexicon iconographicum mythologiae classicae (Zürich/München: Artemis, 1984).
4 Jonathan Z. Smith, “Hellenistic religion”, in: Encyclopaedia Brittanica (Chicago:
Encyclopaedia Brittanica, 1979), vol. 8, p. 749.
5 O mito completo é relatado no Hino Homérico a Deméter, do século 7 a.C. Para uma
apresentação mais clara e completa do mito e para sua interpretação, veja Luther H. Martin,
Hellenistic religions (Oxford: Oxford University Press, 1987), p. 62-72.
6 Herbert J. Rose, “Hades”, in: Oxford Classical Dictionary, 2. ed. (Oxford: Oxford
University Press, 1970), p. 484.
7 Conforme citado em Franz Cumont, The Oriental religions in Roman paganism (New
York: Dover, 1956), p. 66.
8 Cumont, Oriental religions, p. 67.
9 Para um panorama detalhado do culto a Asclépio, veja Emma J. Edelstein; Ludwig
Edelstein, Asclepius: a collection and interpretation of the testimonies (New York: Arno, 1975),
2 vols.
10 Edelstein; Edelstein, op. cit., vol. 2, p. 189.
11 P. Oxy. 11.1381.1-247.
12 Conforme citado em Edelstein; Edelstein, op. cit., vol. 2, p. 132.
13 Veja Sarah I. Johnston, Hekate Soteira: a study of Hekate’s roles in the Chaldean Oracles
and related literature, American Classical Studies 21 (Atlanta: Scholars, 1990), cap. 3: “The
Mistress of the Moon” e cap. 9: “The Chaldean Daemon-dogs”.
14 Alois Kehl, “Hekate”, in: Reallexikon für Antike und Christentum (Stuttgart: Anton
Hiersemann, 1988), vol. 14, p. 315 (tradução do autor).
15 Kehl, “Hekate”, p. 320.
16 Theodor Kraus, Hekate: Studien zu Wesen und Bild der Göttin in Kleinasien und
Griechenland, Heidelberger Kunstgeschichtliche Abhandlungen 5 (Heidelberg: Carl Winter,
1960), p. 50-1.
17 Veja Johnston, Hekate Soteira, p. 146.
18 Johnston enfatiza esse tema em Hekate Soteira.
19 Para o mais abrangente estudo do culto a Dionísio, veja Martin P. Nilsson, The dionysiac
mysteries of the Hellenistic and Roman age (Lund: C. W. K Gleerup, 1957).
20 Livy [Lívio], History of Rome 39.13, conforme citado em Martin, Hellenistic religions, p.
97.
21 Livy [Lívio], History of Rome 39.8, conforme citado in: Marvin W. Meyer, org., The
ancient mysteries: a sourcebook. Sacred texts of the mystery religions of the ancient
Mediterranean world (San Francisco: Harper & Row, 1987), p. 82. Veja também Nilsson,
Dionysiac mysteries, p. 15-6.
22 Ibidem 39.13, conforme citado em Meyer, op. cit., p. 86. Veja também Martin, Hellenistic
religions, p. 97.
23 Nilsson, Dionysiac mysteries, p. 45, 95-6.
24 Em uma monografia apresentada para o Greco-Roman Religions Group no encontro anual
da Society of Biblical Literature em 1988, em Chicago, Illinois, sob o título “Dionysos at
Pompeii: The Villa of the Mysteries”, o professor Marvin Meyer propôs de modo convincente
que frisos de parede em excelente estado de conservação na Vila dos Mistérios, em Pompeia,
devem ser interpretados como uma celebração do mistério da sexualidade.
25 Para um panorama proveitoso de cada uma dessas ocorrências, veja Robert M. Grant,
Gods and the One God, Library of Early Christianity (Philadelphia: Westminster, 1986), cap. 1:
“Gods in the Book of Acts”.
26 F. F. Bruce, The Book of Acts, New International Commentary on the New Testament
(Grand Rapids: Eerdmans, 1954), p. 525-6.
O
3
Astrologia
s jornais de hoje publicam horóscopos diariamente. Embora
muitos os leiam mais como forma de entretenimento do que
como base para decisões, as motivações estão mudando. A
cultura ocidental tem mostrado fascinação cada vez maior
pelas estrelas e por como sua influência é sentida em situações diárias.
No primeiro século, praticamente ninguém era cético a respeito dos
princípios da astrologia. Desde as classes sociais mais altas (que
incluíam os césares) até as classes mais baixas, todos acreditavam que
os movimentos e as posições dos corpos celestes correspondiam
diretamente ao curso de acontecimentos na terra.
A crença e a prática astrológicas variavam desde uma abordagem
próxima à científica até uma perspectiva “animista” das estrelas, isto é,
de que os corpos celestes representam ou são espíritos, deuses e poderes
sobrenaturais. No mundo greco-romano, a maioria das pessoas comuns
acreditava na perspectiva animista.1 É importante ter conhecimento
desse fato para entender os antecedentes dos leitores de Paulo. As
palavras usadas por Paulo para principados e poderes e aquilo que o
apóstolo tinha a dizer a esse respeito eram especialmente relevantes para
pessoas que acreditavam que os luminares nos céus eram deuses e
espíritos.
Concordância cósmica: um sistema de
correspondências
A astrologia era uma profissão aceita na Antiguidade. Astrólogos
eruditos eram chamados “matemáticos” (mathematikoi) pelos gregos.
Esses profissionais usavam suas aptidões para traçar as posições diárias
do sol, da lua, dos planetas e das estrelas. Registravam os dados em
tabelas complexas(ephemerides) que representavam as posições
relativas dos corpos celestes. Com base nessas informações, podiam
extrapolar a posição relativa das estrelas para determinado ponto no
tempo. As pessoas acreditavam que um astrólogo habilidoso seria capaz
de usar esses mapas para predizer acontecimentos futuros na terra com
a mesma exatidão com que era possível prever o próximo eclipse.
A astrologia se distinguia da astronomia pela suposição de que há
uma relação indissociável entre os movimentos nos céus e o desenrolar
da vida na terra. A astrologia se baseava em uma cosmovisão que
considerava o Universo um todo integrado: aquilo que afeta uma parte
afeta a outra. Essa “concordância cósmica” permitia que o astrólogo
fornecesse a quem o consultava considerações razoavelmente detalhadas
sobre aquilo que essa pessoa podia esperar no futuro. O astrólogo era
essencial porque interpretava fenômenos estelares e os relacionava a
preocupações e situações das pessoas.
Por ironia, os diversos sistemas antigos (e modernos!) de astrologia se
baseavam em dois pressupostos equivocados acerca do Universo.
Primeiro, a astrologia partia da pressuposição de que a Terra era o
centro do Universo e de que todos os corpos celestes orbitavam em
torno desse planeta imóvel suspenso no espaço (Universo geocêntrico).
Segundo, os antigos baseavam sua divisão dos céus em um
entendimento esférico equivocado do Universo, em que os planetas e as
estrelas pareciam todos se mover em um só plano. Essa crença lhes
possibilitou dividir os céus em casas de trinta graus, o que se tornou a
base para o zodíaco. Cada uma das casas do zodíaco era subdividida em
três decanatos, em um total de 36, cada um abrangendo dez graus. Na
crença popular, o zodíaco e os decanatos eram deificados e, portanto,
considerados bastante poderosos sobre as questões da vida.
O zodíaco, bem como todas as crenças astrológicas fundamentais, é
extremamente antigo e remonta a séculos antes do tempo de Cristo. Na
antiga Babilônia, a astrologia se desenvolveu consideravelmente e
desempenhou um papel importante em todas as civilizações e gerações
posteriores. Em suas raízes caldeias (babilônicas sacerdotais), a
astrologia era intimamente associada a crenças religiosas. Aliás, as
figuras do zodíaco eram ligadas a divindades babilônicas. Na época do
Novo Testamento, a astrologia ocupava lugar essencial e inquestionável
na cosmovisão das pessoas em todo o Império Romano.
A imposição inexorável do destino
Entre muitos dos eruditos do tempo de Paulo, a perspectiva filosófica e
religiosa estoica era amplamente aceita. Depois que Zenão fundou o
estoicismo em Atenas no início do terceiro século a.C., o grande filósofo
romano Sêneca o expôs minuciosamente no tempo de Paulo. Os
estoicos acreditavam que um só princípio divino permeava a totalidade
da vida. Com frequência, esse princípio divino era identificado com
Zeus, o espírito único e divinamente poderoso que governava os
relacionamentos mútuos de toda a vida de uma forma que produzia
concordância cósmica, na qual uma parte influi na outra. Para os
estoicos, o movimento das estrelas influenciava diretamente o destino
das pessoas na terra.
O autor estoico Manílio, também contemporâneo de Paulo,
acreditava firmemente em destino astrológico. Em seus escritos, Manílio
elogia os egípcios por transmitirem o que haviam aprendido sobre a
interpretação dos movimentos das estrelas. Ele observa:
Eles [os sacerdotes egípcios] foram os primeiros a perceber, por meio
de sua aptidão, como o destino depende dos planetas. No decorrer de
muitos séculos, atribuíram com cuidado persistente a cada período os
acontecimentos ligados a ele: o dia em que alguém nasce, o tipo de
vida que terá, a influência de cada hora sobre as leis do destino e as
enormes diferenças resultantes de pequenos movimentos [...] A partir
de longa observação, descobriu-se que as estrelas controlam o mundo
todo por meio de leis misteriosas, que o mundo propriamente dito se
move por um princípio eterno e que nós podemos, por meio de sinais
confiáveis, reconhecer os altos e baixos do destino.2
Embora os estoicos tivessem convicção de que alguns detalhes do
destino poderiam ser conhecidos de antemão, aqueles que adotavam
esse modo de pensar tinham igual convicção de que o destino era
inalterável. É necessário que ele siga seu curso. Cada pessoa deve,
portanto, aceitar os acontecimentos e considerar que fazem parte do
funcionamento misterioso do destino. Manílio recomenda: “Libertem
sua mente, homens mortais, deixam de lado seus cuidados e livrem sua
vida dessa preocupação exagerada. O destino governa o mundo; tudo
está sujeito a determinadas leis; eternidades são seladas por
acontecimentos predeterminados [...] ninguém pode conter a Fortuna ao
orar contra a vontade dela, nem escapar dela se ela se aproximar. Todos
devem suportar a sina que lhes foi determinada”.3
Alguns astrólogos assumiam um papel duplo ao tratar de pessoas,
algo como astrólogo-psicoterapeuta. O astrólogo estoico Vétio
Valente, ciente de que a maioria das pessoas não estava disposta a
aceitar seu destino ou era incapaz de fazê-lo, sentia-se responsável
por dizer a verdade a seus clientes e ajudá-los a enfrentar esse
destino.4
A busca por alterar o destino
Na crença popular do tempo de Paulo, a astrologia era mais próxima da
religião do que da ciência, embora as pessoas daquela época não
fizessem essa distinção. A astrologia era mais próxima da religião no
sentido que as pessoas acreditarem que corpos celestes eram divindades
ou espíritos desencarnados. Os planetas conhecidos tinham o nome de
divindades. Aliás, ainda chamamos os planetas por seus nomes
romanos: Vênus (Afrodite, em grego), Marte (Ares), Mercúrio
(Hermes), e assim por diante. Também se imaginava que os espíritos de
heróis falecidos na terra continuavam a existir em forma etérea,
ocupando os céus e constituindo o que hoje conhecemos como Via
Láctea. Uma vez que os planetas e as estrelas eram considerados
divindades, as pessoas podiam orar a eles, invocá-los, apaziguá-los e até
mesmo manipulá-los. Em contraste com os estoicos, que se
conformavam com os decretos do destino, o povo em geral acreditava
na possibilidade de alterar o destino. Franz Cumont apresenta uma
declaração detalhada dessa crença comum:
[As massas] consideravam a astrologia de uma perspectiva muito
mais religiosa do que lógica. Os planetas e as constelações não eram
apenas forças cósmicas, cuja ação favorável ou infausta se
enfraquecia ou se fortalecia de acordo com as voltas em um curso
estabelecido por toda a eternidade; eram divindades que viam e
ouviam, ficavam alegres ou tristes, tinham voz e sexo, eram prolíficas
ou estéreis, dóceis ou selvagens, obsequiosas ou arrogantes. Sua ira
podia, portanto, ser aplacada, e seu favor podia ser obtido por meio
de ritos e oferendas; nem mesmo as estrelas hostis eram implacáveis,
e podiam ser persuadidas por meio de sacrifícios e súplicas.5
A astrologia, então, se associara profundamente a outras formas de
devoção popular aos deuses: os cultos de mistério e a magia. A presença
de imagens do zodíaco em muitas estátuas e monumentos de adoração
pagã confirma essa associação com as religiões de mistério. Uma bela
estátua cultual de mármore da Ártemis efésia datada do século 2 d.C.,
por exemplo, retrata a deusa usando os signos do zodíaco em forma de
colar. É provável que essa representação artística fosse um método
usado para mostrar que Ártemis tinha poder e autoridade sobre esses
signos astrais. Consequentemente, a deusa Ártemis podia exercer, de
forma benevolente, seu controle sobre essas forças para favorecer seus
devotos.
A magia podia ser usada com grande sucesso ao se manipular e
invocar a ajuda dos espíritos astrais. Logo, a magia não era apenas um
mecanismo para alterar o destino, mas também um meio de acessar o
poder dos espíritos astrais de cumprir as diversas exigências do
conjurador. Alguns papiros são repletos de exemplos desse tipo de
magia.6 Um texto fundamenta a eficácia de todas as conjurações na
posição dalua nas várias casas do zodíaco:
Órbita da lua: lua em Virgem: qualquer coisa se torna alcançável. Em
Libra: necromancia. Em Escorpião: qualquer coisa que inflija o mal.
Em Sagitário: uma invocação ou encantamentos para o sol e a lua.
Em Capricórnio: diga o que desejar para obter os melhores
resultados. Em Aquário: para um talismã do amor. Em Peixes: para
presciência. Em Áries: adivinhação por meio do fogo ou talismã do
amor. Em Touro: encantamento para uma lamparina. Em Gêmeos:
feitiço para conquistar favor. Em Câncer: filactérios. Em Leão: anéis
ou feitiços para impedir ações.7
Por vezes, uma fórmula mágica prescrevia uma oferenda apresentada
diretamente a uma estrela, como, por exemplo, à “estrela de Afrodite”
(Vênus).8 Um sinal do céu podia indicar a conclusão de uma tarefa por
uma divindade conjurada. Um feitiço do amor realizado pela deusa
Citera (talvez Vênus/Afrodite), por exemplo, instrui o suplicante a
observar a estrela da deusa: “Se vires a estrela brilhando continuamente,
é sinal de que ela [a vítima] está apaixonada, e se a luz se estender como
a chama de uma lamparina, ela já chegou”.9
Certos agrupamentos de estrelas, ou constelações, costumavam ser
identificados com uma figura com a qual supostamente se pareciam.
Essa associação explica a origem do zodíaco com seus doze signos e
respectivos símbolos, como o caranguejo, o leão, as balanças e o
arqueiro. Na crença popular, eram identificados como deuses e também
podiam ser invocados para propósitos mágicos. Uma constelação que
não fazia parte do zodíaco, mas que ainda assim era bastante conhecida
na crença popular, era a constelação do urso (Arktos). O urso era
conjurado com frequência nos papiros mágicos. A seguinte fórmula
mágica ilustra um encantamento em que o urso podia ser invocado para
realizar qualquer coisa que a pessoa pedisse:
Urso, Urso, tu que governas o céu, as estrelas e todo o mundo; que
fazes o eixo girar e controlas todo o sistema cósmico por força e
coerção; apelo a ti, implorando e suplicando para que faças isto
[espaço para o pedido], pois te invoco por teus santos nomes em que
tua divindade se regozija, nomes que não és capaz de ignorar.10
No período do Novo Testamento, algumas pessoas se conformavam
com o desdobramento do destino; outras tentavam alterar o destino por
meio da prática de magia ou da adoração de uma divindade cósmica.
Seja ao se renderem ao destino, seja ao procurarem mudá-lo, elas criam
plenamente nos princípios da astrologia.
A preocupação com o destino e com a influência das estrelas
provavelmente foi uma questão que continuou a gerar dificuldades para
os convertidos de Paulo. Em Efésios 1, porém, o testemunho eloquente e
artístico apresentado por Paulo da atividade de Deus de eleger e
predestinar deve ter oferecido consolo tranquilizador para os novos
cristãos na costa oeste da Ásia Menor.
Os espíritos elementares deste mundo
Um aspecto curioso do vocabulário de Paulo para os principados e os
poderes é que tanto pagãos quanto judeus usavam as mesmas
expressões para os espíritos astrais. O próprio conceito “poderes”
(dynameis) também ocorre em contextos astrológicos para se referir a
espíritos estelares. A expressão “dominadores deste mundo”
(kosmokratores) em Efésios 6.12 também é usada para divindades
astrais.11
Paulo usou mais uma expressão para espíritos malignos associados às
estrelas: stoicheia. Esse termo aparece quatro vezes em duas cartas de
Paulo, ambas enviadas para igrejas na Ásia Menor (Cl 2.8,20; Gl 4.3,9).
Estudiosos se mostram divididos em sua tentativa de identificar se Paulo
usa essa palavra para se referir a seres espirituais. A controvérsia fica
evidente nas variações de traduções:
Como seres pessoais
RSV/NEB: “os espíritos elementares do universo”
TEV: “os espíritos governantes do universo”
Como entidades não pessoais
NIV: “os princípios básicos deste mundo”
NASB: “os princípios elementares do mundo”
Nessas duas cartas, a interpretação de stoicheia é difícil, pois o termo
tem uma gama de significados e, no parecer de estudiosos, mais de um
desses significados pode se encaixar em cada um dos contextos. Aqueles
que adotam a interpretação não angelical de stoicheia destacam seu
significado mais básico, “elementos”, como as letras do alfabeto (que
constituem o fundamento da linguagem), ou os “elementos” básicos do
Universo, como terra, ar, fogo e água. Eles afirmam que a expressão
pode ser interpretada como princípios básicos comuns a todas as
religiões, ou como o conceito paulino de “lei” e “carne”, ou mesmo
como os elementos físicos em si.
A interpretação de stoicheia como entidades espirituais pessoais é a
proposta mais convincente. Consequentemente, foi com essa
interpretação que a maioria dos comentaristas concordou na história da
interpretação das passagens.12 Essa ideia se fundamenta, em parte, no
uso amplamente difundido de stoicheia para espíritos astrais nos séculos
2 e 3 d.C. (e provavelmente antes). Em papiros mágicos gregos, por
exemplo, o conceito era associado ao zodíaco: “Conjuro-te pelos doze
stoicheia do céu e pelos 24 stoicheia do mundo para que me conduzas a
Héracles”.13
É importante perceber que não eram apenas os pagãos que usavam
essa palavra para se referir a espíritos; os judeus também a empregavam
com esse sentido. O texto judaico Testamento de Salomão, escrito
durante o período imperial romano, traz cinco referências a stoicheia
como seres espirituais. Na passagem a seguir, os stoicheia são ligados
aos kosmokratores (cf. Ef 6.12):
Ordenei a outro demônio que aparecesse diante de mim. Vieram sete
espíritos amarrados juntos pelas mãos e pelos pés, belos de forma e
graciosos. Quando eu, Salomão, os vi, fiquei admirado e lhes
perguntei: “Quem sois?”. Eles responderam: “Somos os corpos
celestes [stoicheia], dominadores deste mundo [kosmokratores] de
trevas”. O primeiro disse: “Sou Engano”. O segundo disse: “Sou
Contenda”. O terceiro disse: “Sou Destino”. O quarto disse: “Sou
Angústia”. O quinto disse: “Sou Erro”. O sexto disse: “Sou Poder”.
O sétimo disse: “Sou O Pior. Nossas estrelas no céu parecem
pequenas, mas temos nomes de deuses. Mudamos juntos de posição e
vivemos juntos, por vezes em Lida, por vezes em Olimpo, por vezes
no grande monte” (Testamento de Salomão 8.1-4).14
Esses termos refletem, ainda, a ampla variedade de vocabulário em
referência a seres espirituais que judeus e gentios tinham em comum.
Paulo lançou mão desse reservatório de terminologia que seus leitores
conheciam bem. Não mostrou nenhum interesse, porém, em apresentar
suas próprias crenças a respeito das hostes estelares. Antes, reuniu
espíritos de toda espécie em um só grupo, declarou a superioridade de
Cristo e incentivou os cristãos a estar preparados para as intenções
hostis e os ataques deles, ao lembrar seus leitores da capacidade desses
espíritos, em outros tempos, de escravizar.
1 Para uma discussão sobre a deificação dos luminares, veja Franz Cumont, Astrology and
religion among the Greeks and Romans (New York: Dover, 1960), p. 64-76.
2 Manilius [Manílio] 1.25-112, conforme citado em Georg Luck, Arcana Mundi (Baltimore:
Johns Hopkins University Press, 1985), p. 325.
3 Manilius 4.1-118, conforme citado em Luck, op. cit., p. 340.
4 Luck, op. cit., p. 349.
5 Franz Cumont, Oriental religions in Roman paganism (New York: Dover, 1956), p. 181.
6 Um livro inteiro foi dedicado ao tema da magia e astrologia: Hans Georg Gundel, Weltbild
und Astrologie in den griechischen Zauberpapyri, Münchener Beiträge zur Papyrusforschung
und Antiken Rechtsgeschichte 53 (Munchen: Beck, 1968).
7 PMG 7.284-99.
8 PMG 4.2891ss.
9 PMG 4.2940.
10 PMG 7.686-93.
11 Quanto aos antecedentes dessas expressões e a seu uso, veja Clinton E. Arnold, Ephesians:
power and magic. The concept of power in Ephesians in light of its historical setting, Society for
New Testament Studies Monograph 63 (Cambridge: Cambridge University Press, 1989), p. 52-
6, 65-8.
12 Tratarei de modo bem mais detalhado desse conceito em minha monografia a ser
publicada sobre os antecedentes de Colossenses.Talvez o maior obstáculo para uma aceitação
mais ampla seja o fato de que alguns estudiosos consideram essa interpretação de stoicheia
contextualmente inapropriada em Gálatas. Por ora, basta observar que: (1) os stoicheia em Gl
4.3 aparecem em paralelo com “guardiões e tutores” em 4.2, indicando uma interpretação
pessoal de stoicheia. (2) A referência seguinte a stoicheia (Gl 4.9) é prefaciada pelo comentário
de que os leitores haviam sido escravos de “seres que, por natureza, não são deuses”. Essa
parece ser uma ideia semelhante à que Paulo expressou a respeito da religião pagã, em 1Co 8.5,
de que há muitas entidades “chamadas deuses” no céu e na terra às quais são oferecidos
alimentos. (3) Portanto, os stoicheia não são equivalentes à Lei, mas devem ser considerados
espíritos malignos que exploraram a Lei e levaram pessoas a se desviar, em vez de seguir a
função estabelecida por Deus para ela.
13 PMG 39.18-21.
14 Alguns estudiosos questionam o uso do Testamento de Salomão para esclarecer o Novo
Testamento com base em sua data incerta (possivelmente posterior ao Novo Testamento) e na
possibilidade de interpolações cristãs no texto do Testamento. A maioria dos estudiosos,
contudo, considera provável que a demonologia do Testamento reflita crenças judaicas
amplamente difundidas tanto antes quanto durante o período do Novo Testamento. Ademais, é
de se duvidar que esse uso dos termos kosmokratores e stoicheia tenha se originado em Paulo.
O
4
Judaísmo
apóstolo Paulo era judeu. Sua linhagem estava enraizada na
tribo de Benjamim; foi circuncidado como judeu, instruído por
rabinos e se tornou fariseu zeloso, um “hebreu dos hebreus”.
Depois do encontro de Paulo com o Cristo ressurreto, cristãos
judeus cuidaram dele. Apesar de Paulo ter recebido a comissão para ser
apóstolo aos gentios, ainda assim proclamou Cristo aos judeus por toda
a Ásia e Grécia, seguindo seu princípio norteador: “Primeiro aos judeus
e também aos gregos”. Plantou várias igrejas, todas com forte, se não
predominante, contingente de judeus.
Devemos aprender, portanto, a avaliar com precisão aquilo em que o
judaísmo do primeiro século acreditava no tocante a espíritos malignos,
se desejamos entender em que Paulo acreditava a respeito dos poderes
das trevas e se desejamos entender como ele aplicou sua teologia dos
poderes às primeiras congregações cristãs. Até que ponto a crença na
influência de espíritos malignos faz parte da cosmovisão dos judeus do
tempo de Paulo? Uma resposta a essa pergunta nos ajudará a traçar
uma imagem mais nítida dos conceitos desse apóstolo no que se refere à
continuidade e ao contraste com sua educação religiosa e com as
crenças dos judeus para os quais ele escreve. Uma vez que, para o
apóstolo, o Antigo Testamento era investido de autoridade e era a fonte
que norteava sua teologia, é melhor tomá-lo como ponto de partida.
É comum imaginar que não exista praticamente nenhuma
demonologia no Antigo Testamento e que só encontremos ensino
substancial sobre esse tema ao nos voltarmos para o Novo Testamento.
Embora a questão de demônios apareça de modo mais pronunciado no
Novo Testamento, a demonologia não está ausente do Antigo
Testamento. Os autores veterotestamentários pressupõem a existência
de um representante central do mal e de uma infinidade de espíritos
malignos. Esses autores não dedicam tempo a refletir sobre a natureza
desse reino. De tempos em tempos, Satanás, demônios ou espíritos
malignos aparecem de forma repentina no texto como adversários
hostis do povo de Deus, e os autores fornecem poucas descrições de sua
identidade ou de sua forma de operar. Ao que parece, os autores do
Antigo Testamento não sentiam grande necessidade de explicar o que
eram esses seres; antes, autores e leitores pareciam ter uma consciência
comum das características distintivas desse reino.
Demônios e falsos deuses
As nações ao redor de Israel adoravam diversos deuses e deusas. Em
todos os séculos e em todas as regiões geográficas, incluindo a Palestina,
os judeus viveram em um ambiente politeísta. Entre as centenas de
divindades às quais foram expostos, havia os deuses assírios Anu e
Ishtar; as divindades cananeias El, Baal, Dagom, Anate e Astarote; as
divindades egípcias Ra, Aton, Amon, Tote, Ísis e Osíris. Posteriormente
em sua história, também tiveram contato com vários deuses persas,
gregos e romanos.
Autores bíblicos não atribuíam nenhuma existência real e
independente a essas divindades. Antes, chamavam-nas de ídolos, uma
forma de se referir às imagens desses deuses e deusas como o foco da
adoração. O termo ídolo, que significa cópia ou imagem, enfatizava o
caráter irreal de todos os deuses pagãos e era, claramente, uma
designação depreciativa usada para as religiões não judaicas. Os judeus
afirmavam que adoravam o único Deus verdadeiro e real. Todos os
demais eram falsificações.
No entanto, esses ídolos não eram simples estátuas inofensivas de
pedra em relação às quais era possível permanecer indiferente. Os cultos
pagãos e a adoração a ídolos tinham uma dimensão espiritual real.
Autores bíblicos completam o quadro da atitude de Yahweh em relação
a esses falsos deuses ao retratar os cultos pagãos como obra de
demônios. Em Deuteronômio 32.16-17, o fato de Israel ter abandonado
Deus para adorar ídolos no deserto é descrito de forma explícita:
Eles o deixaram com ciúmes por causa dos deuses estrangeiros, e
provocaram sua ira com seus ídolos abomináveis. Sacrificaram a
demônios, que não são Deus, a deuses que não haviam conhecido, a
deuses que surgiram recentemente, a deuses que seus pais não
temeram (TA).
Salmos expressa a mesma ideia. Um salmo descreve a entrada de Israel
em Canaã, lamentando que o povo de Deus tenha adotado muitos dos
costumes da região e prestado culto aos ídolos locais. Também
“sacrificaram seus filhos e suas filhas a demônios”, que o salmista
dispõe em paralelo com a declaração de que “sacrificaram aos ídolos de
Canaã” (Sl 106.37-38). Em Salmos 96.5, em que o texto hebraico traz:
“Pois todos os deuses das nações são ídolos”, o texto da Septuaginta
(tradução em grego) usa: “Pois todos os deuses das nações são
demônios”. A Septuaginta reflete a convicção judaica de que as religiões
pagãs tinham relação próxima com a esfera demoníaca. Essa crença
também se tornou a convicção do apóstolo Paulo (1Co 10.19-21).
A bruxa da noite e outros espíritos malignos
O Antigo Testamento também atribui nomes a alguns espíritos
malignos. Lilite (traduzido por “bruxa da noite” pela RSV) é um
demônio que habitará Edom depois que essa terra sofrer o desolador
julgamento divino (Is 34.14).1 Embora essa seja a única ocasião em que
Lilite é mencionada no Antigo Testamento, ela era um espírito bastante
conhecido na Mesopotâmia. Também ocupava lugar de destaque em
textos judaicos não canônicos posteriores, como, por exemplo, em um
targum judaico que registra a seguinte oração: “Que o Senhor te
abençoe em todos os teus feitos e te proteja do demônio da noite [Lilite]
e de qualquer coisa que te assuste e dos demônios do anoitecer e da
manhã, dos espíritos malignos e dos fantasmas”.2 Lilite também
aparece em algumas taças de encantamento aramaicas. Uma taça
registra: “Presa está a encantadora Lilite, que assombra a casa de
Zakoy”.3
Em Isaías 34.14, o lugar assombrado e assustador de desolação é
descrito como uma região habitada por animais selvagens e outros
espíritos demoníacos. Essa passagem afirma que Edom se tornará covil
de chacais e moradia de hienas. Em seguida, diz que “demônios”
(daimonia), “fantasmas” e “espíritos de bodes”, bem como Lilite,
assombrarão esse lugar.4
De modo semelhante, a profecia de Isaías sobre a desolação da
Babilônia prediz que ela se tornará um lugar frequentado por “espíritos
de bodes” e outros tipos de demônios (Is 13.21). Como em Isaías 34.14,
o Antigo Testamento grego usa a palavra daimonia (“demônios”) para
traduzir alguns termos hebraicos referentes a animais selvagens. Ao
longo de toda Antiguidade, há uma forte ligação entre animais
selvagens e espíritos malignos.O “demônio de bode” assumia, segundo
o que se acreditava, a forma de um bode peludo.5
Ne lei levítica do Antigo Testamento, os demônios associados a bodes
também aparecem. Israel era proibido de oferecer sacrifícios a ídolos em
forma de bode. A lei diz: “Não oferecerão mais sacrifícios aos ídolos em
forma de bode, com os quais se prostituem” (Lv 17.7a). Jeroboão
transgrediu esse estatuto quando estabeleceu “lugares altos” e “nomeou
seus próprios sacerdotes para os lugares altos e para os ídolos em forma
de bodes e de bezerros” (2Cr 11.15). Em ambos os casos, é reafirmado
o envolvimento de demônios com cultos pagãos.
Bruxas, médiuns e espíritas
Práticas de ocultismo eram comuns entre os vizinhos de Israel e se
mostraram uma grande tentação para o povo de Deus.6
Consequentemente, encontramos inúmeras ordens e admoestações ao
longo de todo o Antigo Testamento que advertem Israel para que se
mantenha afastado de todas as formas de prática de magia. A Torá diz
especificamente: “Não pratiquem adivinhação nem feitiçaria” (Lv
19.26). E, também na Torá, é fornecida a lista mais abrangente de
proibições relacionadas ao ocultismo:
Não haja entre vocês ninguém que sacrifique seu filho ou sua filha no
fogo; que pratique adivinhação ou feitiçaria, interprete presságios, ou
pratique bruxaria, ou faça encantamentos; que seja médium ou
espírita, ou que consulte os mortos. Quem faz essas coisas é
detestável ao SENHOR e, por causa dessas práticas detestáveis, o
SENHOR, seu Deus, expulsará aquelas nações de diante de vocês (Dt
18.10-12).
Ao longo de todo o Antigo Testamento, práticas de ocultismo dessa
espécie são arroladas com frequência, quer em uma lista de proibições,
quer em uma narrativa histórica em que os pecados de uma figura
importante são mencionados.
O cronista considerou Manassés, um dos reis de Judá, culpado de
desobedecer às proibições da Torá acerca de ocultismo. O rei adorou
deuses cananeus, praticou astrologia ou uma forma de religião astral
(“inclinou-se diante de todos os exércitos estelares e lhes prestou
culto”), “sacrificou seus filhos no fogo no vale de Ben-Hinom, praticou
feitiçaria, adivinhação e bruxaria e consultou médiuns e espíritas” (2Cr
33.1-6). O cronista conclui: “Fez muita maldade aos olhos do SENHOR,
provocando-o à ira”.
De modo semelhante, Oseias, o último rei do Reino do Norte, fez
Israel se afastar de Deus, adorar deuses estrangeiros e praticar
ocultismo, o que incluía astrologia. O texto diz que eles erigiram pedras
sagradas e postes de Aserá, adoraram ídolos, imitaram as nações ao seu
redor, inclinaram-se diante das hostes estelares, adoraram Baal,
sacrificaram seus filhos e suas filhas no fogo e praticaram adivinhação e
feitiçaria. De acordo com o autor bíblico, “venderam-se para fazer o
mal aos olhos do SENHOR, provocando-o à ira”. Por isso, “o SENHOR
ficou furioso com Israel” e o expulsou de sua presença (2Rs 17.7-23).
No Antigo Testamento, nenhuma dessas práticas de ocultismo é
descrita em detalhes. Antes, em geral, as práticas são mencionadas em
uma lista e condenadas. Há uma clara pressuposição por parte dos
diversos autores veterotestamentários de que os leitores sabem
exatamente a que eles estão se referindo.
Na história do Antigo Testamento, o sacrifício de crianças no fogo
como parte de cultos pagãos foi algo que ocorreu em mais de uma
ocasião (cf. Jr 7.31; 19.5; 32.35; Mq 6.7). Fora do Antigo Testamento,
porém, há poucas informações sobre a prática de sacrifício de crianças.
Como vimos nos relatos sobre Manassés e sobre Oseias, a astrologia
era amplamente praticada nas respectivas épocas desses reis. Autores
bíblicos a descrevem como “inclinar-se para as hostes estelares”. Seria
desleixo de nossa parte imaginar que eles consideravam as estrelas
meramente objetos materiais. Ao longo de toda a história do antigo
Oriente Próximo, as estrelas foram deificadas e tidas como
representações de diversos deuses e deusas. Amós cita por nome duas
divindades astrais assírias às quais Israel prestou culto: “Seu rei Sicute, e
Quium, seu deus-estrela” (Am 5.26). Jeremias menciona o culto a
Ishtar, a “Rainha dos Céus” (Jr 7.18; 44.17-19). Naquela época, bem
como nas formas posteriores de astrologia greco-romanas, acreditava-se
que as estrelas controlassem os rumos da história. A lei proibia Israel
expressamente de adorar as estrelas (Dt 4.19), apesar de essa ser uma
prática comum em todas as outras nações ao redor de Israel.
No antigo Oriente Próximo, eram praticadas várias formas de
adivinhação. Uma das formas mais comuns era a observação do fígado
(hepatoscopia). Talvez pelo fato de o fígado ser a sede do sangue e,
portanto, o centro da vida, era especialmente importante na crença
popular como elemento que podia ajudar a desvendar o futuro. Outra
forma bastante conhecida de adivinhação era a necromancia, a
conjuração dos mortos, à qual o rei Saul recorreu quando visitou a
feiticeira em En-Dor (1Sm 28.3-25). Uma vez que a adivinhação estava
intimamente associada à magia em todas as suas formas, os autores
bíblicos a condenaram cabalmente (cf. Lv 19.26,31).7
Magia, bruxaria e feitiçaria desempenharam um papel importante em
todas as sociedades na história da religião. As principais características
eram sempre as mesmas. É especialmente relevante para nosso tema o
fato de que essas práticas se fundamentavam em uma firme crença na
esfera dos espíritos bons e dos espíritos malignos. Aqueles que
praticavam magia acreditavam que os seres sobrenaturais podiam ser
manipulados a fim de proporcionar benefícios ou de prejudicar outros.
Para o povo da aliança de Deus, essas práticas eram consideradas
perversas e abomináveis ao Senhor.
Situações envolvendo espíritos malignos
A atividade de espíritos malignos é descrita algumas vezes no Antigo
Testamento e, em geral, o autor faz questão de subordiná-la ao controle
soberano de Deus. No tempo dos juízes, Abimeleque desejava governar
uma parte do Reino do Norte, onde ficava a cidade de Siquém (Jz 9).
Depois de pedir e receber apoio dos habitantes de Siquém, eliminou sem
demora todos os seus concorrentes ao trono ao assassinar seus setenta
irmãos (com exceção de um, Jotão). Em decorrência dessa traição
sangrenta, “Deus enviou um espírito maligno entre Abimeleque e os
cidadãos de Siquém” quando fazia três anos que Abimeleque governava
Israel (Jz 9.23a).8 Esse conflito levou a um tempo de conflito civil,
guerra e morte.
Em virtude de o rei Saul estar atormentado por um espírito maligno,
seus conselheiros recomendaram que ele encontrasse alguém para tocar
harpa, pois acreditavam que lhe traria alívio (1Sm 16.14-23). Os
funcionários de Saul descobriram os talentos de um jovem chamado
Davi, que foi convocado para servir ao rei. Sempre que esse espírito
maligno afligia Saul, Davi tocava harpa e Saul sentia alívio. O texto diz:
“Saul [...] melhorava, e o espírito maligno o deixava” (1Sm 16.23b). Foi
esse mesmo espírito maligno que, em duas ocasiões, instigou Saul a
tentar matar Davi (1Sm 18.10-11; 19.9-10).
Outro relato apresenta uma situação em que um espírito maligno
inspirou quatrocentos profetas a darem conselho errado a Acabe, rei de
Israel, quando ele lhes perguntou se devia ir à guerra para recuperar
uma cidade ocupada por estrangeiros (1Rs 22.1-40). O texto retrata
uma interação com o Senhor, no céu, em que espíritos malignos
recebem permissão de sugerir maneiras de incitar Acabe a que atacasse
a cidade. Por fim, um dos espíritos malignos propõe ir a Acabe e ser
“um espírito mentiroso na boca de todos os profetas do rei” (1Rs
22.21-22). Depois de receber a aprovação de Yahweh, o espírito foi
bem-sucedido em sua missão de enganar o rei, embora o profeta do
Senhor tenha apresentado a Acabe todos os detalhes do plano celestial
conforme lhe haviam sido revelados. Em oposição ao conselho do
profeta do Senhor, Acabe atacou a cidade e foi morto na batalha que se
seguiu. Alguns comentaristas desse texto têm grande dificuldade em
determinar como devemos entender essa “interpretação espiritual” dos
acontecimentos. No entanto, ela deveser considerada em conjunto com
o relato em que Satanás pede permissão a Yahweh para afligir Jó (Jó
1.6-12). Essas três situações não apenas destacam o controle absoluto
de Deus sobre a esfera dos espíritos malignos, mas também mostram
que Deus até permite que essas forças realizem suas atividades perversas
como meio de concretizar os propósitos divinos.
A antiga serpente
O Apocalipse de João dá esperança a seus leitores ao predizer a derrota
futura da “antiga serpente”, também conhecida como Satanás ou o
Diabo (Ap 20.2). Essa é uma alusão ao relato em Gênesis da Criação e
da tentação de Adão e Eva pela serpente no jardim do Éden (Gn 3.1-
15). Paulo também falou desse acontecimento em sua Segunda Carta
aos Coríntios, em que comparou a astúcia eficaz da serpente à obra
pérfida de Satanás nos coríntios (2Co 11.3,14-15). Embora alguns
estudiosos hesitem em identificar a serpente em Gênesis 3 com Satanás,
essa era a interpretação unânime dos cristãos primitivos (e dos judeus).
A cena no jardim é o retrato clássico do caráter de Satanás como
tentador, um tema que encontramos em todo o Novo Testamento,
especialmente quando Paulo trata dos poderes das trevas. Essa narrativa
não revela o Diabo como espírito ou anjo, mas seu caráter sobrenatural
fica evidente para o leitor quando ele inspira uma serpente e a faz falar.
A serpente representava “um animal impuro arquetípico” na lei de Deus
(cf. Lv 11; Dt 14).9
Essa passagem marca o início da história da salvação. Demonstra a
necessidade de redenção da humanidade em razão da Queda. Destaca a
atividade do Diabo de promover pecado e rebelião contra Deus e,
consequentemente, a necessidade de esse ser perverso receber um golpe
esmagador para que os propósitos de Deus se cumpram (Gn 3.15).
O Antigo Testamento nunca trata explicitamente da origem de
Satanás, nem de como e quando ele se voltou contra Deus. É possível
que nas profecias contra o rei de Tiro (Ez 28) e contra o rei da
Babilônia (Is 14) se encontrem escondidos alguns vislumbres do estado
original e da queda de Satanás.10 Essa conexão era, sem dúvida, como
os intérpretes judeus entendiam essas passagens. No entanto, também é
possível que esses textos apontem para figuras angelicais e celestiais
associadas a essas nações, como o ser angelical chamado “príncipe da
Pérsia” em Daniel 10.13.
Satanás é mencionado em apenas mais três passagens do Antigo
Testamento (Jó 1—2; Zc 3.1-2; 1Cr 21.1). Em todas essas passagens,
ele aparece como inimigo sobrenatural de Deus e da humanidade. Em
Jó, Satanás aparece como aquele que acusa e aflige. Ele questiona a
autenticidade da retidão de Jó e de seu compromisso com Deus e afirma
que Jó teme a Deus porque Deus o abençoou tão ricamente (Jó 1.6-11).
Deus, em sua soberania, permite a Satanás afligir Jó. Satanás tira de Jó
toda a sua riqueza, deixa-o gravemente enfermo, mata todos os seus
filhos e volta sua esposa contra ele. No entanto, Jó reage a essas
tribulações avassaladoras com integridade e não peca contra Deus nem
se afasta dele. Essa passagem mostra o grande poder que o Senhor Deus
permite que Satanás exerça na terra e até sobre seu povo. Satanás não
apenas atua como acusador, mas também recebe de Deus autorização
para controlar coisas como enfermidades, roubos e até calamidades
naturais que causam mortes.11
O autor de 1Crônicas reitera a atividade de Satanás como tentador:
“Satanás se levantou contra Israel e incitou Davi a fazer um
recenseamento de Israel” (1Cr 21.1). Nessa passagem, Satanás também
é retratado como adversário de Israel, um papel que corresponde ao
significado do termo “Diabo” (diabolos), que os tradutores gregos do
Antigo Testamento escolheram traduzir por “Satanás”.
Por fim, na visão de Zacarias, Satanás acusa o sumo sacerdote Josué
de seus pecados passados em uma aparente tentativa de desqualificá-lo
para sua função (Zc 3.1-2). A atividade de Satanás de apresentar
acusações se alinha melhor com o uso extensivo do hebraico satan. No
Antigo Testamento, esse termo é usado em outras passagens com o
significado simples de “acusador” ou “adversário”. O escritor de
1Samuel registra, por exemplo, que os filisteus se opuseram à ideia de
Davi lutar ao lado deles, “senão se tornará nosso adversário [satan] na
batalha” (1Sm 29.4, RSV).
Satanás é, portanto, acusador e adversário poderoso do povo de
Deus. Desempenha suas funções hostis contra ele ao tentá-lo a se
rebelar contra a vontade expressa de Deus e ao causar até mesmo
destruição física, dor e aflição. Apesar da atividade maligna poderosa de
Satanás, o povo de Deus é chamado a manter sua devoção pura ao
Senhor.
Poderes angelicais sobre as nações
O Antigo Testamento revela mais um aspecto do reino invisível de
espíritos e anjos ao falar de seres sobrenaturais estreitamente associados
a todas as nações. Essa ideia aparece pela primeira vez em
Deuteronômio 32.8-9: “Quando o Altíssimo deu às nações a sua
herança, quando dividiu os filhos dos homens, estabeleceu as fronteiras
dos povos de acordo com o número dos filhos de Deus. Pois a porção
do SENHOR é seu povo, Jacó é a herança que lhe coube” (RSV). A versão
grega do Antigo Testamento interpreta os “filhos de Deus” como anjos,
portanto traduz a oração central por “estabeleceu as fronteiras dos
povos de acordo com o número dos anjos de Deus”.12 A melhor
maneira de explicar essa passagem é como ensino de que “todas as
nações da terra são entregues ao controle de poderes angelicais”.13
Embora o Antigo Testamento como um todo não diga muita coisa a
respeito dessa ideia, o livro de Daniel apresenta o retrato mais claro
dessa crença judaica. Ele fornece detalhes de uma visão dada por Deus
ao profeta Daniel, em que este é informado das atividades de anjos
colocados sobre as nações da Pérsia, Grécia e até de Israel. Aliás, um
anjo mediou a visão para Daniel. Aquele que lhe aparece é descrito
como um homem vestido de linho e de aparência deslumbrante. A
primeira parte da visão é dedicada a descrições de guerra e a conflito
angelicais. A visão, recebida durante o terceiro ano de Ciro, rei da
Pérsia, descreve a situação de Israel em relação aos impérios persa e
grego. O anjo diz:
O príncipe do reino da Pérsia me resistiu vinte e um dias; contudo,
Miguel, um dos príncipes supremos, veio em meu auxílio, e eu o
deixei ali com o príncipe do reino da Pérsia e vim lhe fazer entender o
que acontecerá a seu povo nos últimos dias [...] Mas agora voltarei
para lutar contra o príncipe da Pérsia; e quando eu terminar de lutar
contra ele, eis que virá o príncipe da Grécia [...] Não há ninguém que
lute ao meu lado contra eles, exceto Miguel, príncipe de vocês (Dn
10.13-14,20-21, RSV, grifo do autor).
As muitas ocorrências de príncipe se referem a poderes angelicais. O
título de autoridade provavelmente indica que esses vários príncipes
angelicais são comandantes de outras hostes angelicais em batalhas.
A palavra príncipe nessa passagem traduz o termo archōn em uma
das versões gregas do livro de Daniel.14 Archōn é uma palavra que os
quatro autores dos Evangelhos e Paulo usaram posteriormente para
Satanás ou para poderes espirituais malignos.
Parece haver uma correspondência direta entre o resultado das
batalhas angelicais e o destino das nações correspondentes. O propósito
dessa visão não era levar Daniel a desenvolver resignação fatalista em
relação à vida. O próprio Daniel podia exercer influência sobre os
poderes angelicais invisíveis. O anjo que visitou Daniel foi até ele em
resposta a sua piedade e a suas orações. O mensageiro angelical disse a
Daniel: “Desde o primeiro dia em que você decidiu buscar
entendimento e se humilhar diante de seu Deus, suas palavras foram
ouvidas, e eu vim em resposta a elas” (Dn 10.12).
A visão serve não apenas de meio para comunicar a Daniel
informações sobre o futuro, mas de estímulo para perseverar na piedade
e na oração. Deus dirige seus anjos como resultado das orações de seu
povo.
Miguel é o único anjo cujo nome é revelado nessa passagem. Ele é
descrito como príncipe de Israel (10.21), aquele que protege Israel
(12.1).Embora o livro de Daniel não descreva exatamente de que maneira os
anjos exercem seu controle sobre essas nações, a tradição judaica
posterior é mais explícita. Os anjos que governam sobre nações, exceto
Israel, são anjos enganadores. Um texto judaico ensina: “[Há] muitas
nações e muitos povos, e todos pertencem a ele [Deus], mas sobre todos
eles Deus fez com que espíritos governassem para que pudessem desviá-
los de segui-lo” (Jubileus 15.31).
Interesse judaico crescente no âmbito dos espíritos
Durante os dois séculos que antecederam o tempo de Jesus, pode-se
observar na literatura judaica um acentuado crescimento de interesse
pelo âmbito de anjos, espíritos e demônios. Essa preocupação com o
mundo dos espíritos pode ser observada em quase todas as facetas dessa
literatura: nos escritos apócrifos do Antigo Testamento (especialmente
Tobias), na literatura de Qumran, na literatura testamentária
pseudepigráfica e especialmente nos textos apocalípticos judaicos.
Os judeus desse período foram muito além daquilo que é revelado no
Antigo Testamento e deram detalhes sobre os números de anjos, seus
nomes e suas hierarquias. Enquanto o Antigo Testamento não diz nada
sobre a rebelião dos anjos perversos, textos judaicos do período do
Segundo Templo fornecem um relato completo. Também há muitas
discussões acerca da natureza da influência angelical sobre o destino das
nações bem como sobre a vida diária do indivíduo.
Parte considerável dessa curiosidade crescente a respeito da esfera dos
espíritos pode ser atribuída a uma tendência cada vez maior de separar
Deus do envolvimento direto com a vida diária. Sua transcendência
percebida levou muitos judeus a começarem a propor o papel
intermediário de anjos. Deus ainda estava no controle e conduziria a
história a seu ponto culminante com a destruição do mal, mas havia
confiado a administração do mundo aos anjos, e muitos deles tinham se
desviado. Para os judeus desse período, essa crença lhes dava mais
clareza acerca do problema de seu sofrimento.15 O governo ilegítimo
dos usurpadores romanos sobre a Palestina podia, então, ser explicado
de uma perspectiva demonológica; o reino de Satanás havia obtido
vitória temporária.
A comunidade de Qumran, que produziu os Manuscritos do Mar
Morto, explicou a situação política prevalecente dessa forma. A
comunidade publicou um documento, hoje conhecido como Rolo de
Guerra (1QM), que descreve uma batalha iminente entre os “filhos da
luz” e os “filhos das trevas”. Em certo nível, os “filhos das trevas” são
definidos como os romanos (Kittim), mas em outro nível, o espiritual, se
identificam com Satanás e com as forças angelicais malignas de seu
reino (1QM 13.4-5). Quando a batalha ocorrer, será decidida por
intervenção direta de Deus, que levantará a mão “em um golpe eterno
contra Satanás e todas as hostes de seu reino” (1QM 18.1). O rolo
visualiza que a batalha ocorrerá em duas dimensões, com homens
lutando contra homens e com anjos lutando contra anjos. No entanto,
há uma sobreposição em que os anjos bons são retratados ajudando o
povo de Deus e as hostes de Satanás ajudando os soldados romanos.16
Outros segmentos da literatura judaica mostram maior interesse em
revelar a influência de espíritos malignos sobre a vida diária do
indivíduo. Em um reflexo da crença popular, os Testamentos dos Doze
Patriarcas identificam uma raiz demoníaca em vários dos males morais;
muitas vezes, as pessoas sucumbem à influência dos espíritos malignos
de engano.
Essa literatura é extremamente importante ao abordarmos o Novo
Testamento, pois nos dá um vislumbre do judaísmo do tempo de Jesus e
do tempo do ministério de Paulo. Ajuda-nos a ver o ensino de Jesus e de
Paulo com nova perspectiva e vitalidade. A demonologia judaica
também é importante para nós em razão da influência formativa que
teve sobre o desenvolvimento da angelologia e demonologia cristãs
primitivas observadas por vários pais da igreja.
A queda dos anjos
Na literatura judaica desse período, um dos temas de maior
proeminência era a crença de que demônios entraram no mundo como
resultado de relações não naturais entre anjos e seres humanos. Essa
crença se baseia em uma interpretação de Gênesis 6.1-2,4, que diz:
Quando os homens começaram a se multiplicar na terra e lhes
nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens
eram bonitas e eles se casaram com aquelas que escolheram [...]
Naqueles dias, os nefilins estavam na terra, e também posteriormente,
quando os filhos de Deus foram até as filhas dos homens e tiveram
filhos com elas.
Muitos autores judeus interpretaram que “filhos de Deus” se refere a
anjos (chamados “Vigias”) que se rebelaram contra Deus. A
consequência desastrosa dessa união não natural foi o nascimento dos
nefilins, a origem de demônios e espíritos malignos. O livro apocalíptico
judaico de 1Enoque dedica 31 capítulos a um relato detalhado dessa
queda (1Enoque 6—36). De acordo com esse relato, depois que a beleza
física das mulheres da terra provocou eroticamente cerca de duzentos
anjos, liderados por certo Semiaza, os anjos tomaram a decisão
conjunta de transgredir seus limites divinamente estabelecidos e ter
relações sexuais com as mulheres. Enquanto residiam na terra,
ensinaram às pessoas muitos conhecimentos malignos, entre eles
alquimia, astrologia, encantamentos e guerra. As mulheres que
engravidaram desses seres sobrenaturais deram à luz gigantes grotescos.
Esses gigantes cometeram inúmeras atrocidades, mas sua morte não foi
o fim do mal desenfreado, pois deles vieram demônios:
Mas agora os gigantes que nascem dessa união de espíritos e carne
serão chamados espíritos malignos na terra, pois sua habitação será
sobre a terra e dentro da terra. Espíritos malignos saíram do corpo
deles [...] Os espíritos dos gigantes oprimem uns aos outros;
corromperão, cairão, serão instigados, cairão sobre a terra e causarão
angústia. Não ingerem alimento e não ficam sedentos, nem
encontram obstáculos. E esses espíritos se levantarão contra os filhos
das pessoas e contra as mulheres, pois procederam delas (1Enoque
15.8-12).
Acreditava-se que esses espíritos malignos, originários de gigantes,
continuariam a corromper a humanidade até o fim dos tempos, quando
Deus poria um fim à sua hostilidade e os julgaria. Na literatura judaica,
essa rebelião é mencionada várias vezes como a responsável pela
presença de demônios. Entrementes, os anjos bons, Rafael e Miguel,
prenderam debaixo da terra os anjos culpados desse crime contra
mulheres, e ali eles ficarão até o julgamento (1Enoque 10.1-14; cf. Jd 6;
1Pe 3.19-20; 2Pe 2.4).
Talvez tenhamos curiosidade sobre o tempo antes dessa rebelião,
especialmente diante do relato em Gênesis da tentação de Eva pela
serpente. Havia na crença judaica alguma rebelião anterior de anjos?
Fica claro que a mesma literatura judaica fala da existência de
atividades malignas de anjos perversos antes da Queda.17 Não há
praticamente nenhuma exposição, porém, a respeito de como ou
quando Satanás e seu grupo de anjos entraram em cena. Essa literatura
se refere a um representante principal do mal chamado “Satanás”, o
líder do grupo de anjos também chamados “Satanases”. Esses Satanases
acusam as pessoas e as fazem se desviar. É interessante que, de acordo
com 1Enoque, foi um desses mensageiros satânicos, chamado Gader’el,
que enganou Eva no jardim (1Enoque 69.6). Os judeus provavelmente
pressupunham algum tipo de queda pré-adâmica a fim de explicar a
função e o caráter malignos desse Satanás e de seus mensageiros hostis
(veja 1Enoque 40.7; 53.3; 54.6).
Classes e nomes
Asmodeus, Semiaza, Azazel, Mastema, Belial, Satanás, Samael e
Satanail são apenas alguns dos nomes usados para se referir a poderes
angelicais malignos no judaísmo do tempo de Paulo. Embora haja certa
diversidade a respeito das funções específicas de cada um desses
poderes, há uma crença razoavelmente comum em Satanás como seu
líder. De acordo com a representação desses poderes do mal, cada um
recebeu uma medida considerável de autoridade dentro da hierarquia
estruturada.Por exemplo, Semiaza é identificado como o líder dos anjos
que coabitaram com mulheres. Os duzentos anjos que vieram à terra
com ele foram divididos em grupos de dez, com um príncipe, como
Araquebe, Rame’el e Tam’el, sobre cada grupo.
Uma preocupação semelhante de dar nome aos anjos perversos e
classificá-los conforme sua função era típica de boa parte dessa
literatura judaica. Igualmente proeminentes são a organização e
denominação dos anjos bons ao redor do trono de Deus.
Nos anos depois da era do Novo Testamento, essa fascinação com a
esfera dos espíritos não diminuiu. Há referências frequentes a anjos
perversos e espíritos malignos na literatura rabínica. Um número muito
maior de espíritos malignos é identificado e descrito. Um estudioso
contou 123 demônios identificados por nome na literatura rabínica!18
A influência dos poderes sobre indivíduos
Hostis aos propósitos de Deus, os poderes malignos supostamente
exercem sua influência sobrenatural a fim de fazer os indivíduos se
desviarem da vontade revelada de Deus. Eles levam as pessoas a toda
espécie de impureza moral. Esse é um dos motivos pelos quais a
comunidade de Qumran chamava esse domínio maligno de “a
companhia das Trevas”. Observe como o Rolo de Guerra de Qumran
descreve essa atividade de Satanás e de seus poderes:
Satanás, Anjo da Malevolência, tu criaste para o Abismo; seu
[governo] é nas Trevas e seu propósito é produzir perversidade e
iniquidade. Todos os espíritos de sua companhia, os Anjos de
Destruição, seguem os preceitos das Trevas; para com eles é sua
[propensão] (1QM 13.11-12).
Os Testamentos dos Doze Patriarcas tratam de modo detalhado e
extensivo dessa atividade dos poderes das trevas e são importantes para
nos ajudar a entender a crença judaica. Os Testamentos, datados
aproximadamente do 1 ou século 2 a.C.,19 registram supostamente os
pronunciamentos finais dos doze filhos de Jacó. Os Testamentos se
preocupam em grande medida com questões éticas e procuram
promover conduta virtuosa entre os leitores judeus. Pintam um retrato
do pensamento judaico comum a respeito de como os espíritos malignos
influenciam as pessoas em sua vida diária. Por isso, são especialmente
valiosos para entender a discussão de Paulo sobre os espíri-
tos malignos.
De acordo com os Testamentos, cada indivíduo deve lutar
pessoalmente contra os espíritos malignos de engano, governados pelo
Diabo, ou Belial. Esses espíritos exploram fragilidades e impulsos
humanos a fim de promover seus fins perversos.
A promiscuidade sexual, de modo específico, é destacada como uma
das áreas de atividade pecaminosa instigada pelos espíritos malignos.
No Testamento de Rúben, o pecado sexual é chamado “a praga de
Belial” e é inspirado por um “espírito de promiscuidade (porneia) que
reside na natureza e nos sentidos” (Testamento de Rúben 6.3; 3.3). O
Testamento não atribui ao Diabo e a seus poderes total
responsabilidade pelos lapsos humanos nos encontros sexuais ilícitos; o
envolvimento da mente e dos sentidos humanos recebe igual papel. Ao
refletir sobre o pecado incestuoso de Rúben com Bila, concubina de seu
pai (cf. Gn 35.22), o Testamento dá mais ênfase à lascívia de Rúben e a
sua excitação mental: “Pois, se eu não tivesse visto Bila se banhar em
um lugar coberto, não teria caído nesse grande ato ilícito. Porquanto
meus sentidos foram tão absorvidos por sua feminilidade nua que não
fui capaz de dormir enquanto não realizei esse ato repugnante” (3.11-
12). Com base nessa experiência lamentável, o conselho de Rúben para
seus descendentes focaliza a disciplina de sua mente: “Meus filhos, não
dediquem sua atenção à beleza das mulheres, nem ocupem sua mente
com as atividades delas. Antes, vivam com integridade de coração no
temor do SENHOR [...] até que o SENHOR lhes dê a companheira que ele
desejar, para que não sofram como eu sofri” (4.1). Não obstante, ao
continuar a refletir sobre o que havia aprendido com esse
acontecimento, ele aponta para o envolvimento do Diabo: “Pois a
promiscuidade destruiu muitos. Quer um homem seja idoso, bem
nascido, rico ou pobre, ele se desonra entre a humanidade e dá a Belial
uma oportunidade de fazê-lo tropeçar” (4.7).
Os espíritos malignos de erro também se aproveitam da tendência
humana corrompida de ter inveja. O Testamento de Simeão reflete
sobre o papel de Simeão na traição de José por seus irmãos (Gn 37.12-
36). Simeão relata como um espírito maligno poderoso explorou sua
inveja de José:
No tempo de minha juventude, eu tinha inveja de José, pois meu pai
o amava mais do que a todos nós. Resolvi em meu interior que iria
destruí-lo, pois o Príncipe (archōn) do Erro cegou minha mente, de
forma que não considerei José meu irmão, nem poupei Jacó, meu pai
(Testamento de Simeão 2.6-7).
Portanto, Simeão adverte seus filhos para que “tenham cuidado com o
espírito de engano e inveja” (3.1). Se a influência desse espírito for
detectada, o indivíduo deve se voltar para o Senhor. Simeão aconselha:
“Se alguém foge para o Senhor em busca de refúgio, o espírito maligno
logo se aparta dele, e sua mente é tranquilizada” (3.5). Simeão
apresenta José como exemplo positivo. José foi capaz de amar seus
irmãos, apesar de ter sido traído por eles, “porque tinha o Espírito de
Deus” (4.4).
Esses dois exemplos nos ajudam a entender um pouco melhor em que
os judeus do primeiro século acreditavam quanto ao papel dos espíritos
malignos nas questões da vida diária, especialmente em referência à
moralidade pessoal. Algumas das ideias sobre os espíritos malignos
contidas nesses Testamentos também estão refletidas nos escritos do
apóstolo Paulo.
A influência dos poderes sobre a sociedade: religião
pagã
Autores judeus atribuíam o surgimento de todas as religiões não
judaicas à inspiração de poderes malignos. Ao tratar da influência dos
poderes sobre o desenvolvimento da civilização depois do Dilúvio,
Jubileus, texto do século 2 a.C., refere-se aos primórdios da idolatria.
Os habitantes de Ur dos caldeus “fizeram para si imagens fundidas, e
todos prestaram culto ao ícone que haviam feito para si como imagem
fundida. E começaram a fazer esculturas e imagens corrompidas. E
espíritos cruéis os assistiram e os fizeram desviar-se para que
cometessem pecado e corrupção. E o príncipe, Mastema, agiu com
determinação para fazer todas essas coisas” (Jubileus 11.4-5). De modo
semelhante, o livro apocalíptico de 1Enoque fala da raiz demoníaca da
idolatria: “Os espíritos dos anjos [...] profanaram as pessoas e as
conduzirão ao erro para que ofereçam sacrifícios aos demônios, como
que a deuses, até o grande dia de julgamento em que serão julgados até
que sejam extintos” (1Enoque 19.1).
Embora o Antigo Testamento não seja tão explícito a respeito do
envolvimento de poderes malignos na origem da idolatria, afirma que
sacrificar a ídolos corresponde a sacrificar a demônios (Dt 32.16-17).
Essa ideia também aparece no Novo Testamento (Ap 9.20). Mais
importante de tudo é o fato de que essa perspectiva acerca do
envolvimento demoníaco na religião pagã caracterizava a crença do
apóstolo Paulo, que ele transmitiu à igreja de Corinto (1Co 10.19-21).
Várias linhas do judaísmo também acreditavam na ação do Diabo e
de seus poderes. De acordo com 1Enoque, os anjos caídos ensinaram
aos seres humanos magia, encantamentos, alquimia e astrologia
(1Enoque 7—8; cf. tb. Jubileus 11.1-8).
A influência dos poderes sobre a sociedade: guerra e
Estado
Até mesmo a inquietação civil entre as nações e sua hostilidade para
com Israel são atribuídas à obra insidiosa dos poderes malignos. O livro
de Jubileus atribui uma tendência homicida nas pessoas à influência das
forças de Mastema, um anjo perverso que corresponde a Satanás: “E
[Mastema] enviou outros espíritos para aqueles que foram colocados
debaixo de sua mão para praticar todo erro e pecado e transgressão,
para destruir, causar perecimento e derramar sangue sobre a terra”
(11.5). Todas as armas de guerra também foram inspiradas por anjos
caídos: “E Azaz’el ensinou às pessoas a arte de fazer espadas e facas,
escudos e couraças” (1Enoque8.1).
A hostilidade do Egito para com Israel e especialmente para com
Moisés tem origem, de acordo com Jubileus, na oposição sobrenatural
do perverso Mastema. Na realidade, Mastema usou o faraó egípcio
para tentar matar Moisés; também foi ele quem deu aos magos egípcios
a capacidade de realizar grandes maravilhas em oposição a Moisés;
além disso, Mastema exerceu sua influência maligna sobre os egípcios
para que perseguissem Israel até o mar (Jubileus 48).
Como vimos anteriormente, a comunidade judaica que produziu os
Manuscritos do Mar Morto dá proeminência semelhante aos elementos
demoníacos em seu entendimento da sociedade. De acordo com o Rolo
de Guerra de Qumran (1QM), Satanás e seus poderes estão por trás dos
usurpadores romanos: “Todos aqueles [que estão prontos] para a
batalha devem marchar e montar seu acampamento diante do rei de
Kittim [romanos] e diante de todas as hostes de Satanás reunidas junto
dele para o Dia [da Vingança] pela Espada de Deus” (1QM 15.2-3).
Os elementos demoníacos desempenhavam, portanto, um papel
importante no entendimento popular judaico da sociedade no período
anterior ao Novo Testamento. Qualquer teoria judaica antiga de justiça
social daria um lugar de destaque à dimensão espiritual e sobrenatural
da vida. Aos olhos dos autores de Jubileus, justiça e liberdade da
opressão teriam sido impossíveis de obter para Israel sem tratar da
poderosa hostilidade demoníaca de Mastema. O povo de Israel foi
liberto de suas condições terríveis porque Yahweh operou por meio de
seu servo Moisés para redimi-lo como parte de seu plano maior para
seu povo. A comunidade de Qumran antevia a intervenção direta da
“poderosa mão de Deus” para desferir o golpe definitivo sobre “Satanás
e todas as hostes de seu reino”.
Magia judaica
Talvez nada reflita a crença popular judaica em demônios, espíritos e
poderes do mal mais claramente do que as informações amplamente
difundidas que ilustram o envolvimento dos judeus com a magia. Em
oposição ao Antigo Testamento e às restrições judaicas oficiais ao uso
de magia, muitos judeus em todo o mundo mediterrâneo e até em
lugares mais distantes adotaram e até desenvolveram as práticas de
ocultismo de seus vizinhos pagãos. Aliás, a magia judaica adquiriu fama
própria na Antiguidade. Sua importância para esclarecer a crença
popular é acertadamente enfatizada por P. S. Alexander:
Encantamentos e livros de magia [judaicos] [...] revelam áreas da
religião popular que, com frequência, são representadas de forma
inadequada nos textos literários oficiais e que, portanto, muitas vezes
são ignoradas pelos historiadores. É praticamente impossível exagerar
sua importância como indicador do ambiente espiritual em que partes
expressivas do povo viviam — ricos e pobres, instruídos e
ignorantes.20
O Novo Testamento em si ajuda a confirmar esse interesse judaico na
magia ao citar de modo específico o nome de dois magos judeus: Simão
(At 8.9) e Barjesus ou Elimas (At 13.6-12). Lucas também faz referência
a certos exorcistas judeus que acrescentaram o nome de Jesus a seu
repertório de nomes mágicos (At 19.13-20).
Ao longo do século passado, arqueólogos descobriram uma grande
quantidade de talismãs e amuletos mágicos judaicos. Muitos deles
foram reunidos e publicados com reproduções fotográficas como parte
de uma excelente obra de doze volumes do estudioso judeu E. R.
Goodenough sobre símbolos judaicos do período greco-romano.21
Goodenough contribuiu para chamar a atenção do mundo acadêmico
para o envolvimento dos judeus com a magia (e talvez até com as
religiões de mistério) por meio de sua análise das evidências materiais.
Os amuletos mágicos costumavam ter uma imagem de algum símbolo
judaico (como a menorá ou uma representação de Salomão) de um
lado; do outro lado, por vezes traziam uma série de palavras ou nomes
mágicos (como Sabaoth, nomes de anjos, de patriarcas e, com
frequência, de divindades pagãs). Esses amuletos eram usados para
várias finalidades, mas especialmente para proteger a pessoa de espíritos
malignos.
Também há vários documentos mágicos judaicos. Na coletânea
tradicional de papiros mágicos editada por Karl Preisendanz, alguns dos
textos mágicos são distintivamente judaicos. A extensão da influência
exercida pelo judaísmo no desenvolvimento da tradição mágica como
um todo é igualmente relevante. Vários estudiosos concordam que há
poucos textos mágicos gregos do final da Antiguidade que não tenham
algum tipo de elemento judaico.22 Os judeus forneceram aos gregos
novos nomes mágicos para invocar, como Iao (forma grega de Yahweh)
e muitos outros nomes considerados repletos de poder. A maioria dos
estudiosos não se preocupa em fazer distinção clara entre magia judaica
e pagã. As ciências ocultas atravessavam todas as divisas religiosas e
lançavam mão de todas as religiões.
Na magia judaica, é interessante observar a proeminência de
Salomão. De acordo com o relato bíblico da vida de Salomão, ele
recebeu de Deus uma medida de sabedoria que ninguém antes nem
depois dele superou (1Rs 3.12). Para o judaísmo posterior, essa dádiva
abrangia sabedoria e habilidade para lidar com a esfera espiritual. O
importante historiador judeu Josefo acreditava nessa tradição:
Deus também o capacitou [Salomão] para que aprendesse a perícia de
expulsar demônios, uma ciência útil e curativa para os homens.
Salomão também elaborou encantamentos por meio dos quais
enfermidades são aliviadas. E deixou como legado a forma de usar
exorcismos pelos quais são expulsos demônios para que nunca mais
voltem, e esse método de cura é de grande eficácia até hoje, pois vi
um homem de meu país, chamado Eleazar, libertar pessoas
endemoniadas na presença de Vespasiano e de seus filhos, bem como
de seus capitães e de uma multidão inteira de soldados (Josefo,
Antiguidades 8.2.5).
Em seguida, Josefo apresenta um relato bastante detalhado de como
Eleazar realizava exorcismos usando um anel mágico e recitando
encantamentos pretensamente escritos por Salomão. Várias dessas
tradições mágicas salomônicas foram preservadas na forma de um
documento conhecido como Testamento de Salomão. Embora esse
Testamento seja posterior ao Novo Testamento, muitos estudiosos
concordam que pode ter sido compilado no século 1 d.C. É uma
importante fonte para nos ajudar a entender a demonologia judaica
antiga.23 O Testamento era uma importante obra judaica de magia e
uma espécie de enciclopédia de demonologia. A obra tem como centro a
reconstrução por Salomão do Templo em Jerusalém, mas focaliza de
modo específico a oposição demoníaca que ele enfrentou e sua
capacidade não apenas de frustrar os poderes malignos, mas também de
manipulá-los para que ajudassem na construção do templo. De acordo
com o Testamento, o arcanjo Miguel deu a Salomão um anel de selar
mágico que ele usava para interrogar os poderes malignos. Quando
Salomão o usava, conseguia descobrir seus nomes e suas atividades
perversas e obrigá-los a dizer como podiam ser impedidas. O
Testamento é, portanto, cheio de relatos de interrogatórios de demônios
por Salomão e de descrições de como ele os manipulava.
Essas tradições a respeito de Salomão deviam ser de grande
importância para os judeus, que tinham medo de espíritos malignos e
que buscavam uma forma de se proteger. Vários autores cristãos
primitivos têm conhecimento da tradição de Salomão e fazem alusão a
exorcismos realizados com o uso de fórmulas salomônicas. O
Testamento é importante para nosso estudo, pois nos dá mais um
vislumbre da crença em demônios e do uso de magia que se desenvolveu
na cultura popular de todo o mundo mediterrâneo, até mesmo no
judaísmo. O Testamento também emprega vários termos usados pelo
apóstolo Paulo quando se refere aos poderes das trevas. Por certo, isso
não significa que ele concordava com tudo o que é dito no Testamento,
mas mostra que estava preocupado em apresentar determinada
perspectiva desses poderes malignos (em cuja existência ele acreditava),
a saber, uma perspectiva baseada na realidade histórica de Cristo.
Devemos tratar aqui de um itemfinal a respeito do judaísmo do
primeiro século. Muitos judeus tinham forte crença na astrologia. O
próprio Testamento de Salomão dá testemunho do interesse judaico na
astrologia (uma vez que magia e astrologia apresentam pontos comuns
consideráveis). Nos últimos cinquenta anos, novos dados arqueológicos
e documentos recém-descobertos confirmaram e mostraram em mais
detalhes esse interesse pela astrologia. Por exemplo, entre os
Manuscritos do Mar Morto, há um documento astrológico (um
horóscopo que contém os signos do zodíaco) que provavelmente reflete
parte das crenças da comunidade de Qumran e esclarece também que as
crenças astrológicas se estendiam até a alguns sábios judeus.24
Esta discussão comprova e ilustra a forte crença judaica nos poderes
das trevas ao longo de toda a sua história, uma crença que se
intensificou no período próximo do nascimento de Jesus. Ademais, o
judaísmo do período romano apresenta uma tendência preponderante
de desconsiderar as restrições veterotestamentárias à prática de magia e
astrologia. Essas atividades se tornaram um mecanismo comum para
superar a ameaça temível dos poderes das trevas.
1 Veja o excurso em “Lilith”, in: John D. W. Watts, Isaiah 34—66, Word Biblical
Commentary 25 (Waco: Word, 1987), p. 13-4; veja também David Aune, “Night Hag”, in: The
International Standard Bible Encyclopedia (Grand Rapids: Eerdmans, 1986), vol. 3, p. 536.
2 Targum de Pseudo-Jônatas sobre Nm 6.24-26, conforme citado em Watts, Isaiah 34—66,
p. 13.
3 C. H. Gordon, “Two magic bowls in Teheran”, Orientalia 20 (1951): 310.
4 A NIV interpreta essas palavras como referência a outros animais, daí os termos hebraicos
serem entendidos como “criaturas do deserto”, “corujas”, “bodes selvagens” e “criaturas da
noite”. A RSV entende que os dois últimos termos têm conotação demoníaca; ela os traduz por
“sátiro” e “bruxa da noite”. O Antigo Testamento grego apenas resume os termos hebraicos
usados sob os termos gregos daimonia (“demônios”) e outra palavra que significa algum tipo de
espírito maligno (onokentauros). Para corroboração da interpretação demonológica, veja Watts,
Isaiah 34—66, p. 13.
5 Veja Francis Brown, S. R Driver, C. A Briggs, A Hebrew and English Lexicon of the Old
Testament (1953; reimpr., Oxford: Clarendon, 1978), p. 972.
6 Sobre esse tópico, veja David Aune, “Magic; Magician”, in: The International Standard
Bible Encyclopedia (Grand Rapids: Eerdmans, 1986), vol. 3, p. 214-6.
7 Para uma discussão completa desse tópico, veja David E. Aune, “Divination”, in: The
International Standard Bible Encyclopedia (Grand Rapids: Eerdmans, 1979), vol. 1, p. 971-4.
8 C. F. Keil e F. Delitzsch observam que “‘um espírito maligno’ não era apenas uma
‘disposição má’, mas um demônio maligno que produzia discórdia e contenda, assim como um
espírito maligno veio sobre Saul [...] [Não foi] Satanás em si, mas um poder espiritual
sobrenatural debaixo de sua influência” (“Joshua”, in: Commentary on the Old Testament
[reimpr., Grand Rapids: Eerdmans, 1980], p. 365).
9 Gordon J. Wenham, Genesis 1—15, Word Biblical Commentary 1 (Waco: Word, 1987), p.
73, 88.
10 Veja E. Stauffer, Theology, p. 64. Para uma apresentação popular dessa ideia, veja C. Fred
Dickason, Angels: elect and evil (Chicago: Moody, 1975), p. 127-37.
11 Veja Gerhard von Rad, “διάβολος”, in: Gerhard Kittel, org., Theological Dictionary of the
New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1964), vol. 2, p. 74.
12 Na verdade, o texto em hebraico diz: “filhos de Israel”. A tradução da Septuaginta dessa
expressão foi fortalecida pela descoberta em Qumran de uma versão em hebraico de Dt 32.8
que diz “filhos de Deus”.
13 D. S. Russell, The method and message of Jewish Apocalyptic (Philadelphia: Westminster,
1964), p. 248. Veja sua excelente discussão sobre “os anjos da guarda das nações” (p. 244-9).
14 A versão teodosiana de Daniel usa archōn, enquanto a Septuaginta traz stratēgos
(“comandante de um exército”, “general”).
15 Veja Russell, Apocalyptic, p. 237-8.
16 Observe especialmente as seguintes linhas do rolo: “Os santos anjos estarão com suas
hostes [os exércitos do povo de Deus]” (1QM 7.6); “A hoste de seus espíritos está com nossos
soldados de infantaria e com os soldados da cavalaria” (1QM 12.8-9); “E o Príncipe da Luz,
que nomeaste desde tempos antigos para vir nos apoiar” (1QM 13.10); “[Satanás] cinge-se para
vir socorrer os filhos das trevas” (1QM 16.11); “[Deus] enviará auxílio eterno para a
corporação de seus remidos pelo poder do Anjo principesco do reino de Miguel” (1QM 17.6).
17 Veja Russell, Apocalyptic, p. 254-7, para uma exposição detalhada sobre a variedade das
tradições judaicas a respeito da existência de espíritos malignos antes do Dilúvio.
18 J. Maier, “Geister (Dämonen)”, in: T. Klauser, org., Reallexikon für Antike und
Christentum (Stuttgart, l975), vol. 9, cols. 680-7.
19 Há certo grau de incerteza quanto às datas exatas desses documentos. Para complicar a
questão, alguns estudiosos acreditam que os Testamentos receberam interpolações e revisões
cristãs. Em 1976, James Charlesworth resumiu os estudos acadêmicos sobre os Testamentos da
seguinte forma: “É provável que os Testamentos tenham alcançado uma forma
reconhecidamente semelhante à que conhecemos por volta de 100 a.C. Ao que parece, os
Testamentos são baseados em um núcleo antigo [...] Esses doze Testamentos provavelmente
foram revisados por um judeu posterior, talvez no século 1 a.C. [...] e, sem dúvida, receberam
interpolações; em uma ou outra ocasião, foram retrabalhados por ‘cristãos’ ao longo de séculos,
começando por volta de 100 d.C., em razão da dependência do Evangelho de João [...] Hoje,
nenhum estudioso diz que os Testamentos foram escritos perto do final do segundo século d.C.
e redigidos por um cristão, como M. de Jonge sugeriu certa vez” (The pseudepigrapha and
modern research with a supplement [Chico: Scholars, 1981], p. 212-3). Desde que Charlesworth
fez esse comentário, não surgiram novos estudos acadêmicos que alterassem radicalmente sua
avaliação. Em virtude do papel de anjos e espíritos malignos no centro do mundo conceitual dos
testamentos, é apropriado usá-los como um dos meios para investigar as ideias judaicas do
primeiro século d.C. associadas à angelologia e à demonologia.
20 P. S. Alexander, “Incantations and books of magic”, in: G. Vermes, F. Millar, M. Black,
M. Goodman, orgs., E. Schürer, The history of the Jewish people in the age of Jesus Christ, ed.
rev. (Edinburgh: T. & T. Clark, 1987), vol. 3, p. 342.
21 E. R. Goodenough, Jewish symbols in the Greco-Roman Period (New York: Pantheon,
1953), vol. 2, p. 153-295.
22 Alexander, “Incantations”, p. 345.
23 Alexander, “Incantations”, p. 373-4, argumenta em defesa do surgimento de uma versão
antiga do Testamento no primeiro século e afirma que ela “certamente pode ser usada para
esclarecer a demonologia judaica antiga”.
24 Para uma discussão completa desse tema, veja James H. Charlesworth, “Jewish interest in
astrology during the Hellenistic and Roman Period”, Aufstieg und Niedergang der Römischen
Welt II.20.2 (Berlin: Walter de Gruyter, 1987), p. 926-56.
Q
5
O ensino de Jesus
uando Paulo de Tarso percorria uma estrada longa e
empoeirada para Damasco, na Síria, ele encontrou uma pessoa
que mudaria o curso de sua vida para sempre: o Senhor
ressurreto dos cristãos que ele perseguia. Jesus Cristo apareceu
a Paulo e o chamou para proclamar aos gentios sua morte e
ressurreição. A pessoa e o ensino de Jesus se tornariam o fator mais
influente no pensamento e nos escritos de Paulo.
De modo algum Jesus permaneceu calado a respeito do reino dos
espíritos malignos. Aliás, o conflito de Jesus com os poderes das trevas é
um tema importante em todos os relatos de seu ministério nos
Evangelhos. Depois de ser tentado pelo governante dos demônios, ele
partiu para o ataque e combateu as forças do mal. Também refletiu
sobre o significado de sua missão e sofrimento em relação ao Diabo e
aos poderes das trevas. O ensino de Jesus acerca dos poderes malignos
exerceu grandeinfluência sobre o apóstolo Paulo e, portanto, é
extremamente importante que o estudemos.
Jesus é atacado: a tentação
Satanás aparece pela primeira vez nos três Evangelhos Sinóticos como o
tentador sobrenatural de Jesus (Mt 4.1-11; Mc 1.12-13; Lc 4.1-13). O
Diabo reconheceu que Jesus era o Filho de Deus e fez uma tentativa
ousada de desviar Jesus de sua missão redentora divinamente concebida.
Ao que parece, os ataques não pegaram Jesus de surpresa nem
aconteceram fora dos propósitos da direção soberana de Deus. Cada
um dos Evangelhos relata que o Espírito Santo conduziu Jesus ao
deserto. Ali, enquanto Jesus realizava um jejum extremamente longo, o
Diabo procurou se aproveitar de seu estado físico debilitado a fim de
convencê-lo a se comportar de forma contrária ao plano de Deus. Ele
testou a devoção de Jesus a seu chamado messiânico.
Primeiro, o Diabo tentou Jesus em uma área de extrema
vulnerabilidade: a fome. Ele queria que Jesus usasse seus poderes
divinos para saciar sua fome; não queria que Jesus esperasse até o final
do jejum para obter alimento por meios comuns. Jesus repeliu o ataque
ao citar uma passagem do Antigo Testamento que refletiu sua devoção
às questões mais fundamentais da vida: “O homem não vive só de pão”
(Dt 8.3). Nessa experiência de fome, Jesus percebeu que Deus estava lhe
ensinando essa lição importante.1
Segundo, o Diabo testou Jesus para ver se ele era suscetível a orgulho
e se tinha uma potencial sede de poder; ele testou, em última análise, a
lealdade de Jesus ao Pai. O Diabo mostrou para Jesus todos os reinos da
terra e seu esplendor e os ofereceu a ele em troca de sua obediência e
adoração. Repetidamente, a nação de Israel havia se rendido a essa
tentação, abandonado Deus e prestado culto a deuses estrangeiros.
Jesus, pelo contrário, resistiu à tentação. Revelou para Satanás sua
devoção intensa e exclusiva a Deus ao citar um trecho da Lei: “Temam
o SENHOR, seu Deus, e sirvam somente a ele” (Dt 6.13).
Por fim, o Tentador procurou instigar Jesus a testar a devoção de
Deus a ele, talvez para calar qualquer dúvida que ainda permanecesse,
ao desafiar Jesus a saltar de um lugar elevado e, portanto, obrigar Deus
a salvá-lo. Como parte dessa estratégia, o Diabo lembrou Jesus de uma
promessa divina de que ele não sofreria nenhum mal. Jesus, em total
sintonia com a revelação escrita da vontade de Deus, resistiu (agora pela
última vez) ao expressar seu desejo de não colocar Deus à prova. Jesus
verbalizou o conteúdo da ordem de Deus registrado em Deuteronômio
6.16: “Não ponham à prova o SENHOR, seu Deus”.2 Como Richard
France observa, “o Filho de Deus só pode viver em um relacionamento
de confiança que não precisa de testes”.3
O Diabo, ao fracassar em seu plano de influenciar Jesus nessa ocasião
e de impedir o propósito de Deus por meio dele, deixa Jesus. E Jesus é
vitorioso sobre o Inimigo. Esse é um dos motivos pelos quais, mais
adiante, Jesus pôde dizer a seus discípulos: “O príncipe deste mundo
[...] não tem nenhum direito sobre mim, mas o mundo deve saber que
amo o Pai e faço exatamente o que meu Pai ordenou” (Jo 14.30).
O uso das Escrituras foi parte essencial da resistência bem-sucedida
de Jesus às tentações do Diabo. Aliás, as únicas palavras de Jesus
registradas pelos autores dos Evangelhos ao relatar as cenas da tentação
de Jesus são citações das três passagens de Deuteronômio. Como
veremos adiante, Paulo também aconselhou os cristãos a respeito do
papel importante da Palavra de Deus (“a espada do Espírito”) para
resistir ao Diabo (Ef 6.17). É importante observar, contudo, que Jesus
não usou as Escrituras com um sentido mágico, como quem segura um
crucifixo para espantar o Maligno. As Escrituras que Jesus escolheu
eram não apenas apropriadas para a natureza da tentação, mas também
refletiam de modo exato a devoção do Filho ao Pai. Os textos
comunicam a unidade de propósito entre o Filho e o Pai.
Outro aspecto da vitória de Jesus ao enfrentar tentação sobrenatural
pode ser atribuído à obra do Espírito em sua vida. Lucas enfatiza que,
quando Jesus saiu para o deserto, estava “cheio do Espírito Santo” (Lc
4.1). A cena da tentação também vem depois do batismo de Jesus por
João, ocasião em que o Espírito desceu sobre ele de forma visível como
pomba (Mc 1.9-11; Mt 3.13-17; Lc 3.21-22; Jo 1.29-34). Paulo
reafirma a experiência de estar cheio do Espírito como pré-requisito
para resistir aos ataques violentos das forças malignas (Ef 5.18; 6.10-
20).
A tentação de Jesus pelo Diabo foi intensamente pessoal. Nenhuma
outra pessoa estava ao seu lado quando o Maligno o testou no deserto
da Judeia. Se Jesus não houvesse relatado sua experiência com o Diabo
a seus discípulos, não teríamos conhecimento dessa ocorrência.
Felizmente, Jesus nos deu uma descrição de sua luta, uma descrição que
influenciou as palavras do apóstolo Paulo sobre a guerra espiritual e
que serve de modelo relevante para a igreja de hoje.
Ao contrário do povo de Israel, que foi testado no deserto depois do
Êxodo e fracassou, Jesus foi bem-sucedido. Ao contrário de Adão, que
se rendeu à sedução do Diabo no Jardim, Jesus resistiu. Ele continuou a
resistir até à morte, uma morte que obteve do Pai nossa expiação e
reconciliação.
Jesus no ataque: exorcismos
A atividade de Jesus ao expulsar espíritos malignos era, para as pessoas
de seu tempo, uma das coisas que mais chamavam a atenção a seu
respeito. Os autores dos Evangelhos dedicaram trechos extensos de sua
narrativa a relatar as interações de Jesus com esses espíritos. Por esse
motivo, é importante descobrir o significado dessa atividade notável de
Jesus.
Quando Jesus começou seu ministério, disse que estava cumprindo a
profecia de Isaías 61.1-2:
O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para
pregar as boas-novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar
liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os
oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor (Lc 4.18-19, grifo
do autor).
O Pai enviou Jesus para proclamar uma mensagem de libertação, isto é,
de libertação para os que se encontravam escravizados pelo pecado,
debaixo da servidão e opressão do reino de Satanás. Jesus interpretou os
“presos” mencionados por Isaías não como criminosos literais em
cadeias cumprindo a merecida sentença por seu crime (como, por
exemplo, devedores encarcerados). Jesus veio para libertar todos que
estão presos pelo pecado, os prisioneiros de Satanás.
Embora Lucas use a passagem de Isaías para preparar o cenário para
todo o seu Evangelho,4 o conflito de Jesus com Satanás e seus poderes
malignos constitui parte importante de todos os Evangelhos. Muitos
comentaristas observaram as nuanças da mensagem de libertação de
Jesus para o perdão de pecados, mas surpreendentemente poucos
destacaram a dimensão espiritual dessa libertação, a saber, a liberdade
do cativeiro do reino de Satanás.
É significativo que, no Evangelho de Lucas, logo depois de Jesus
pregar na sinagoga em Nazaré, ele tenha libertado um homem do
controle de um demônio na sinagoga em Cafarnaum (Lc 4.31-37; Mc
1.23-28). Nesse incidente é a primeira vez que vemos Jesus na ofensiva.
Ele exerce seu poder divino para libertar o homem da influência
opressora do espírito maligno.
Em um contraste gritante com os métodos complicados usados pelos
exorcistas daquela época, Jesus apenas deu uma ordem simples: “Cale-
se e saia dele”. Tipicamente, fórmulas de exorcismo judaicas e
helenísticas consistiam na invocação de inúmeras divindades por meio
de nomes mágicos (combinações ininteligíveis de letras), no uso de
algum tipo de material mágico (como uma pedra preciosa ou um
pedaço de chumbo) e, com frequência, na realização de algum rito.
Jesus, no entanto, é capaz de expulsar espíritos por sua própria
autoridade, para grande surpresa dos líderes da sinagoga de Cafarnaum
e das multidões.
Essa manifestação de seu poder gerou, em muitas ocasiões, fama
pública que Jesus se apressou em suprimir. Não obstante, Jesus curou
muitos de sua aflição demoníaca direta. Além dos relatos específicosde
exorcismo nos Evangelhos, há várias declarações resumidas do ataque
frontal de Jesus ao reino de Satanás. Marcos, por exemplo, diz que, em
Cafarnaum, “toda a cidade se reuniu à porta. E ele curou muitos que
sofriam de várias doenças, e expulsou muitos demônios” (Mc 1.33-34,
NASB). O exorcismo foi parte contínua do ministério de Jesus na terra.
Jesus fornece uma explicação em forma de parábola para o
significado de seus exorcismos em todos os três Evangelhos Sinóticos
(Mc 3.20-30; Mt 12.22-30; Lc 11.14-23). Faz essa declaração em
resposta a uma acusação incisiva das autoridades judaicas em
Jerusalém. De acordo com elas, Jesus estava possuído por Belzebu
(outro nome para Satanás) e realizava seus muitos exorcismos por meio
do governante dos demônios.
Em resposta, Jesus argumenta, primeiro, que é tolice imaginar que
Satanás agiria em oposição a seus propósitos ao lutar contra suas
próprias forças. Se ele o fizesse, estaria acabado! Segundo, Jesus conta a
seguinte parábola:
Ninguém pode entrar na casa de um homem forte e levar embora
seus bens sem antes amarrar o homem forte. Só então pode roubar a
casa dele (Mc 3.27; veja tb. Mt 12.29; Lc 11.21-22).
Com base no contexto das palavras de Jesus, fica evidente que “homem
forte” é uma referência a Satanás e que sua “casa” corresponde a seu
reino. Os “bens” são os itens de maior valor, e não são coisas, mas, sim,
pessoas. Satanás mantém a humanidade incrédula debaixo de servidão.
Cristo veio para lutar contra esse “homem forte” e saquear sua casa,
isto é, libertar os cativos do reino de Satanás.
Essa passagem se torna, portanto, um testemunho extremamente
importante da missão de Jesus. Fornece esclarecimento adicional sobre a
natureza da expiação. Jesus veio não apenas para tratar do problema do
pecado no mundo, mas para tratar do maior adversário sobrenatural de
Deus: o próprio Satanás.
Os muitos exorcismos de Jesus mostram claramente seu poder sobre
o Maligno. Também fornecem vários exemplos da capacidade de Jesus
de “amarrar” Satanás e “roubar a casa dele”. No relato de Marcos
sobre o endemoniado geraseno, um homem atormentado talvez por mil
demônios, é extremamente importante observar que “ninguém
conseguia prendê-lo” (Mc 5.1-20, esp. v. 3). Com apenas uma ordem
concisa: “Saia deste homem, espírito impuro”, Jesus libertou o homem
da terrível influência demoníaca.
Os exorcismos, contudo, não eram por si mesmos adequados para
tratar de maneira definitiva do Diabo e de seus poderes, isto é, para
“amarrá-lo”. Só podiam prefigurar um acontecimento de importância
muito maior. A tradição cristã primitiva como um todo considera a
cruz/ressurreição o ponto de fundamental consequência no conflito de
Cristo com os poderes (Jo 12.31-33; At 2.34-35; Ef 1.20-22; Cl 2.15;
Fp 2.9-11; Hb 2.14; 1Jo 3.8). Foi por meio desse acontecimento que
Satanás e suas hostes receberam o golpe fatal que representou sua
destruição final. O “homem forte” foi derrotado.5
Uma vez que Cristo derrotou Satanás, ele pode saquear seu reino por
meio do trabalho evangelístico da igreja. É provável que a parábola
sobre amarrar o homem forte tenha dado grande ânimo para os
esforços evangelísticos da igreja primitiva. Já que Satanás foi, em algum
sentido, “amarrado” na cruz, a igreja (como agente de Cristo) agora
podia “levar embora seus bens”.
Os próprios demônios pareciam ter consciência da relevância da
missão de Cristo quando lhe perguntaram: “Vieste para nos destruir?”
(Mc 1.24). Essas palavras olham além da derrota deles na cruz e
prenunciam sua destruição escatológica definitiva na segunda vinda de
Cristo. O homem forte foi, verdadeiramente, derrotado na cruz, mas
ainda está ativo e ainda é poderoso. Ele não tem nenhuma autoridade
sobre Cristo e sobre o reino de Deus; essa questão foi resolvida na cruz.
Enquanto o reino de Deus não vier em sua plenitude, porém, Satanás,
em uma tentativa de expandir seu reino, continuará a se opor ao povo
de Deus. A igreja precisa vigiar, orar e proclamar o evangelho.
Mateus e Lucas deixam claro que os exorcismos são, de alguma
forma, sinal da presença do reino de Deus. Jesus certa vez disse a seus
acusadores: “Mas, se é pelo Espírito [‘dedo’, em Lucas] de Deus que
expulso demônios, então o reino de Deus chegou a vocês” (Mt 12.28;
Lc 11.20). Ethelbert Stauffer explica o significado desse texto da
seguinte forma: “O reino de Deus está presente onde o domínio do
adversário foi subvertido”.6 Sua explicação certamente não esgota o
significado pleno do reino de Deus, mas dá ênfase apropriada ao
significado do reino em relação à obra de Satanás. Susan Garrett
observa: “À medida que o reino de Satanás diminui, o reino de Deus
cresce proporcionalmente [...] Toda cura, exorcismo ou ressurreição dos
mortos é perda para Satanás e ganho para Deus”.7
O mundo está debaixo da autoridade de Satanás
Satanás é chamado de “homem forte” em razão de seu poder e de sua
autoridade abrangentes. Ele é o governante (archōn) de um exército
inteiro de espíritos malignos (Mc 3.22) e tem certa medida de
autoridade sobre todos os reinos do mundo (Mt 4.8-9; Lc 4.6). A
literatura joanina tem muita coisa a dizer a respeito de Satanás como
“governante”. O Evangelho de João se refere a Satanás como “o
príncipe (archōn) deste mundo” em três ocasiões (Jo 12.31; 14.30;
16.11). João, em sua primeira epístola, enuncia essa ideia com grande
veemência: “Sabemos que somos filhos de Deus e que o mundo todo
está sob o controle do Maligno” (1Jo 5.19).
O domínio mundial de Satanás não significa que o mundo todo está
envolvido com ocultismo ou tem uma conduta absolutamente imoral.
Significa, porém, que o mundo está separado de Deus e, portanto,
associado ao Diabo. No ensino de Jesus (e, posteriormente, no ensino
de João), há dois senhores principais: Deus e Satanás. Aqueles que não
professaram Cristo ainda fazem parte do reino de Satanás. João registra
o comentário de Jesus para um grupo de líderes religiosos judeus que o
rejeitaram: “Se Deus fosse seu Pai, vocês me amariam, pois vim de Deus
e agora estou aqui [...] Vocês pertencem a seu pai, o Diabo, e querem
realizar o desejo dele” (Jo 8.42,44). Uma ideia semelhante é transmitida
na parábola de Jesus sobre o joio, em que o joio representa “os filhos
do Maligno” (Mt 13.24-30,36-43). O joio, semeado pelo Diabo, cresce
junto com o trigo (“os filhos do reino”) até o fim dos tempos, quando
há uma separação em que o trigo é colhido e o joio, queimado.
O Evangelho de João não traz nenhuma reflexão sobre o significado
do título de Satanás “príncipe deste mundo”. O termo “príncipe”, ou
archōn, era usado amplamente para denotar o oficial que ocupava o
cargo mais elevado em uma cidade ou região do mundo greco-romano.
Até mesmo no Antigo Testamento em grego, archōn era usado para um
líder nacional, local ou tribal. Esse termo político comum foi aplicado
pela primeira vez à organização hierárquica do reino sobrenatural no
livro de Daniel (10.13,20-21; 12.1), em que se refere ao chefe ou líder
dos poderes angelicais. Nos Evangelhos Sinóticos, o Diabo é descrito
como “principal governante” (archōn) dos demônios (Mt 9.34; 12.24;
Mc 3.22; Lc 11.15). No Evangelho de João, esse governo é estendido a
todo o mundo. Para João, “mundo” se refere à sociedade humana à
medida que é organizada em oposição a Deus. Ao que parece, embora a
influência e o controle de Satanás digam respeito principalmente a
pessoas, também se estendem a instituições e organizações humanas, à
ordem política e social.
Vitória na cruz
Como se vê na parábola do homem forte registrada nos três Evangelhos
Sinóticos, a morte e a ressurreição de Cristo marcaram a derrota
definitiva de Satanás. O Evangelho de João também considera a
importância suprema da cruz quanto a suas implicações para Satanás.
No relato de João sobre a predição do sofrimento de Jesus, ouvimos
Jesus dizer: “Chegou a hora de ser julgado este mundo; agora o príncipe
deste mundo será expulso” (Jo 12.31). Posteriormente, no mesmo
Evangelho, Jesus diz que o Espírito convence o mundo do juízo,
“porque o príncipe destemundo já está condenado” (Jo 16.11). Nessa
epístola, João resume a missão de Jesus, que culminou com a morte e a
ressurreição de Cristo, ao afirmar que “o Filho de Deus se manifestou
para destruir as obras do Diabo” (1Jo 3.8b).
Ao dizer que o Diabo foi “expulso” como resultado da cruz, João
não representa Jesus como um romântico impotente e incapaz de
reconhecer o mal existente no mundo. A declaração também não deve
ser interpretada como a expulsão de Satanás do céu (cf. Ap 12.7-9).
Antes, Jesus se refere a uma perda definitiva de autoridade por Satanás
sobre o mundo.8 Os cristãos enfrentam a tensão ímpar de terem vencido
Satanás em virtude de sua identificação com a obra de Cristo na cruz
(cf. 1Jo 2.13-14) e de precisarem dar continuidade à guerra contra
Satanás enquanto ainda vivem no mundo durante a presente era
perversa. Estudiosos do Novo Testamento descrevem esse paradoxo
como “tensão escatológica”, o “agora” mas “ainda não” de nossa vida
cristã. A nova era começou, o reino de Deus está presente, mas apenas
de forma parcial. Satanás prossegue com sua atividade hostil, mas não
tem nenhum poder, autoridade ou controle sobre aqueles que se
apropriam de sua nova identidade em Cristo. Portanto, Jesus exorta
seus discípulos: “Permaneçam em mim” como um ramo permanece na
videira (Jo 15.1-8).
Agora que Satanás foi “expulso”, Cristo pode edificar sua igreja. Em
João 12, Jesus prossegue: “Mas eu, quando for levantado da terra,
atrairei todos a mim” (Jo 12.32). No presente, Jesus exerce soberania
salvadora sobre o mundo, mas não soberania política.
A cruz também condena Satanás (Jo 16.11). Haverá uma condenação
futura absoluta de Satanás, mas ela terá a cruz como base. Raymond
Brown comenta: “O próprio fato de Jesus estar justificado diante do Pai
significa que Satanás foi condenado e perdeu seu poder sobre o
mundo”.9 A morte de Jesus pode ter parecido uma grande vitória de
seus inimigos, mas teve um resultado surpreendente. Jesus foi
ressuscitado, a redenção foi obtida e Satanás foi condenado. Ademais,
Jesus ainda está presente depois de sua morte na pessoa do Paracleto, o
Espírito Santo (Jo 16.7).
Ao passo que, nos exorcismos, Jesus libertou alguns indivíduos do
poder do Diabo, por meio de sua morte e ressurreição ele libertou toda
a raça humana. Todos que têm fé em Cristo e permanecem nele podem
ter parte em sua vitória sobre Satanás e sobre os poderes das trevas.
A missão dos discípulos
Jesus, por meio de sua morte na cruz, obteve a redenção para todos que
creem nele. Agora ele dá continuidade a sua missão redentora ao
mundo por meio da atuação da igreja.
Jesus preparou os Doze para essa empreitada de proclamação ao
enviá-los em uma missão preliminar de abrangência limitada (Mt 10.1-
16; Mc 6.7-11; Lc 9.1-6). Ele os comissionou para anunciar a vinda do
reino e lhes deu autoridade sobre demônios, bem como a capacidade de
realizar curas.10 Esses relatos prefiguram o ministério pós-Pentecostes
dos Doze.11 Embora algumas das instruções específicas nos relatos
deem a impressão de ser limitadas a determinada situação e época, “sua
preservação por Marcos e pelos outros Evangelistas mostra que os
princípios fundamentais presentes nelas eram considerados de valor
perene para a igreja”.12
Em uma ocasião posterior, Lucas registra a comissão, pelo Senhor, de
72 discípulos para empreender uma missão semelhante (Lc 10.1-23).
Também nesse caso, os discípulos são instruídos a proclamar a
proximidade do reino e recebem autoridade sobre demônios. Quando
descreve a volta deles dessa missão, destaca o fato de que ficaram
maravilhados com sua autoridade sobrenatural: “Senhor, até os
demônios se submetem a nós em teu nome” (Lc 10.17).
Jesus deu uma resposta em três partes para o relato dos discípulos.
Primeiro, revelou que ele havia visto Satanás “caindo do céu como
relâmpago” enquanto eles realizavam sua missão (Lc 10.18). Essa
imagem não se refere a uma visão extática que Jesus teve de Satanás
caindo do céu no passado (sua rebelião inicial) ou no futuro (na cruz ou
na segunda vinda de Jesus). Antes, Jesus revela como o confronto
agressivo dos discípulos com o reino de Satanás estava obtendo vitória
sobre o poder e a influência de Satanás.13 O Maligno havia trovejado
do céu com grande furor.
Segundo, Jesus confirmou a autoridade dos discípulos sobre o reino
demoníaco. Disse-lhes que haviam recebido autoridade (exousia) para
pisar em cobras e escorpiões (dois símbolos de demônios)14 e para
“vencer todo o poder do inimigo” (Lc 10.19). Uma vez que eles haviam
se apropriado da autoridade de Cristo, o poder do Maligno não podia
feri-los. Ethelbert Stauffer observa ao comentar sobre esse versículo:
“Assim como o Pai tinha dado ao Filho autoridade sobre o Adversário,
o Filho dá essa autoridade a seus discípulos”.15 A mesma autoridade é
concedida a todos os discípulos na comissão anunciada por Jesus depois
da ressurreição. Ele disse aos discípulos: “Toda a autoridade [exousia]
me foi concedida no céu e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de
todas as nações” (Mt 28.18-19). É a presença prometida de Jesus com
eles ao cumprirem sua comissão evangelística que garante essa
autoridade sobre seu principal adversário e sobre todos os poderes das
trevas (Mt 28.20). O livro de Atos, escrito por Lucas, também enfatiza
o papel do Espírito Santo de dar poder aos discípulos para que
evangelizem o mundo (veja esp. At 1.8).
Por certo, os discípulos precisavam de poder divino para lhes dar
ousadia e zelo na proclamação do evangelho, com frequência feita para
públicos hostis. No entanto, sua necessidade de poder e autoridade
sobrenaturais vai muito além do mero plano físico de anunciar o
evangelho. Um adversário sobrenaturalmente poderoso, que usaria de
todos os recursos à sua disposição para impedir a propagação do
evangelho, confrontou a igreja primitiva, que precisou de poder divino
para enfrentar essa oposição sobrenatural. Desde a interação de Filipe
com Simão, o mago, até o confronto de Paulo com Elimas e a profunda
influência do ocultismo sobre a igreja em Éfeso, Atos nos dá
testemunho explícito da magnitude desse poderoso antagonismo.
Quando os 72 regressaram da missão, as palavras finais de Jesus para
eles tinham por objetivo atenuar seu entusiasmo a respeito da nova
autoridade que haviam recebido e apresentá-la sob a perspectiva
correta. Jesus disse: “Não se alegrem porque espíritos se submetem a
vocês, mas alegrem-se porque os nomes de vocês estão escritos no céu”
(Lc 10.20). Joseph Fitzmyer comenta apropriadamente: “Jesus afasta a
atenção dos discípulos de ideias de sucesso espetacular e a focaliza na
consideração de seu estado celestial”.16 Ter poder para expulsar
demônios não é garantia de que alguém é cristão. No Sermão do
Monte, Jesus afirmou que, no dia do julgamento, muitos lhe dirão:
“Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não
expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?”. Em seguida,
Jesus explica que lhes responderá: “Nunca os conheci. Afastem-se de
mim, vocês que praticam o mal” (Mt 7.22-23). Os exorcistas judeus em
Éfeso (At 19.13-16) são um exemplo de pessoas que não conheciam
Jesus, mas invocaram seu nome em uma fórmula de exorcismo.
Exemplos semelhantes podem ser encontrados em papiros mágicos
gregos. O mais importante, contudo, é que o indivíduo seja verdadeiro
discípulo e, portanto, tenha seu nome registrado no livro da vida.
Com frequência, há discordância entre intérpretes sobre até que
ponto (ou mesmo se) a missão dos Doze e a missão dos 72 prefiguram o
ministério da igreja e, portanto, são normativas para nós hoje. Aspectos
de ambas as missões são claramente situacionais e singulares (p. ex., a
ordem para não ir aos gentios no relato de Mateus). Não há dúvida de
que pelo menos duas partes importantes desses relatos de missões
prefiguram a missão da igreja para todas as gerações: sua natureza
como missão de proclamação e a autoridade dos discípulos sobre
demônios.17
O livro de Atos e as Epístolas do Novo Testamento ilustram e
confirmam esses dois pontos. Duranteo ministério de Jesus, os
discípulos foram comissionados para proclamar a proximidade do reino
de Deus. A morte e a ressurreição de Jesus cumpriram posteriormente o
conteúdo das “boas-novas” a respeito do reino. Depois da ressurreição
de Jesus (At 1.3) e depois que ele falou aos discípulos durante quarenta
dias a respeito do reino de Deus, os discípulos proclamaram “as boas-
novas do reino de Deus e o nome de Jesus Cristo” (At 8.12; 14.22;
19.8; 20.25; 28.23). Aliás, Atos termina com Paulo em Roma, onde ele
“pregava o reino de Deus e ensinava a respeito do Senhor Jesus Cristo
com intrepidez e sem impedimento algum” (At 28.31).
Em Atos, Lucas também oferece a seus leitores muitos exemplos
inspiradores de pessoas cheias do Espírito que venceram oposição
satânica para propagar o evangelho. De maneira complementar, os
autores das epístolas dedicam esforço considerável a reforçar a
identidade dos crentes em Cristo, que abrange sua autoridade sobre os
poderes das trevas.
Cabe aos crentes de hoje continuar a cumprir sua missão de
proclamação com zelo e apropriar-se do poder e da autoridade que lhes
pertencem em virtude da presença de Cristo em sua vida.
Vitória final de Cristo e de seu povo
Todos os autores dos Evangelhos falam do anúncio, por Jesus, de sua
planejada volta gloriosa. Marcos escreve que todos verão “o Filho do
Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória” (Mc 13.26; veja
tb. Mt 24.30; Lc 24.27). Sua volta desencadeará uma série de
acontecimentos de proporções cósmicas. O Senhor reunirá seu povo de
todas as partes da terra e dará início a um tempo de julgamento e de
condenação de todo o mal (cf. esp. Mt 25.31-46). Jesus diz, de modo
específico, que o Diabo e seus anjos serão entregues ao tormento de
fogo eterno preparado para eles (Mt 25.41).
Embora Jesus não tenha dito muito mais sobre essa condenação dos
poderes das trevas, o Apocalipse de João desenvolve esse tema em mais
detalhes. A visão do apóstolo inclui um relato da condenação de
Satanás. Por fim, o Diabo será lançado em um “lago de fogo que arde
com enxofre” (também chamado “segunda morte”), onde sofrerá
castigo eterno (Ap 20.10).
Essa mensagem de esperança é para todos que conhecem Cristo. A
persistência atroz do mal no mundo, instigada em grande medida pelo
Diabo e por seus poderes das trevas, logo chegará ao fim.
1 R. T. France, Matthew, Tyndale New Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans,
1985), p. 98.
2 A sequência das duas últimas tentações é invertida no Evangelho de Mateus.
3 France, Matthew, p. 99.
4 Veja Joseph A. Fitzmyer, The Gospel according to Luke I-IX, Anchor Bible 28 (New York:
Doubleday, 1981), p. 529; I. Howard Marshall, Commentary on Luke, New International
Greek Testament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1978), p. 177-8.
5 Susan R. Garrett, The demise of the devil (Minneapolis: Fortress, 1989), p. 45-6, propõe de
forma convincente que a conquista do homem forte por Jesus em Lc 11.21-22 ocorreu não
apenas nos exorcismos, mas, principalmente, em sua morte e ressurreição.
6 Ethelbert Stauffer, Theology of the New Testament, 5. ed. (New York: Macmillan, 1955),
p. 124.
7 Garrett, Demise, p. 45.
8 Raymond E. Brown, The Gospel according to John I—XII, Anchor Bible 29 (New York:
Doubleday, 1966), p. 477.
9 Brown, John XII—XXI, p. 714.
10 Uma ligação bem mais próxima entre demônios e enfermidades era percebida no mundo
do Novo Testamento do que se costuma considerar plausível na sociedade ocidental de hoje.
Por isso, Jesus foi acusado simultaneamente de estar “fora de si” e de estar possuído por
Belzebu (Mc 3.21-22; cf. tb. Jo 10.20: “Muitos deles diziam: ‘Ele está endemoninhado e
enlouqueceu’.”). Embora as diversas oportunidades que os discípulos tinham talvez
apresentassem a necessidade simultânea de lidar com um espírito maligno, vai muito além das
evidências nos Evangelhos propor que cura e exorcismo eram inextricavelmente ligados.
11 Quanto ao relato de Lucas, Marshall, Luke, p. 350, observa: “Lucas desejava registrar que
os Doze, os quais ocupam lugar de destaque em Atos como testemunhas e missionários, já
haviam sido chamados por Jesus e experimentaram uma prefiguração de seu ministério
posterior”.
12 Marshall, Commentary on Luke, p. 351.
13 Fitzmyer, Luke X—XXIV, p. 860. A passagem não deve, portanto, ser associada à
expulsão de Satanás do céu descrita em Ap 12.7-13, acontecimento ainda futuro. Cf. tb. Robert
H. Mounce, The Book of Revelation, New International Commentary on the New Testament
(Grand Rapids: Eerdmans, 1977), p. 240, que interpreta a remoção de Satanás do céu em Ap 12
como o “prelúdio cósmico da consumação”.
14 Veja Marshall, Luke, p. 429.
15 Stauffer, Theology, p. 286, nota 397.
16 Fitzmyer, Luke X—XXIV, p. 860.
17 De modo semelhante, Graham Twelftree, Christ triumphant: exorcism then and now
(London: Hodder & Stoughton, 1985), p. 86, conclui: “Uma vez que exorcismo, a derrota de
Satanás e a vinda do novo reino são interligados e que Jesus enviou seus discípulos para
proclamar a vinda do Reino, podemos supor que fosse intenção dele que os discípulos atuassem
como exorcistas e que, verdadeiramente, eles eram exorcistas”. No entanto, seu enfoque no
exorcismo é restritivo demais para a compreensão da autoridade dos discípulos sobre os poderes
malignos.
A
PARTE 2
O ENSINO DE PAULO SOBRE
OS PODERES
quilo que o apóstolo Paulo tem a dizer sobre os poderes das
trevas deve ser formativo para nosso pensamento como
cristãos. Para aqueles de nós que encontramos em suas cartas
teologia normativa para a crença e a prática, o ensino de Paulo
sobre os poderes deve moldar e refinar nossa cosmovisão. Uma
avaliação criteriosa de seu ensino sobre esse assunto é, portanto,
essencial, especialmente tendo em conta que nossa cosmovisão moderna
é considerada, com frequência, antagônica ao ensino bíblico sobre
espíritos malignos.
Como Paulo deve ser entendido quanto a essa questão? Ele discorda
da premissa cultural predominante de que espíritos malignos não
existem? Qual é seu parecer sobre a ideia de que espíritos malignos
influenciam os assuntos da humanidade e se opõem ao plano divino de
salvação? Como Paulo instrui suas igrejas a reagir a essas forças?
A melhor maneira de encontrar respostas a essas perguntas é
considerar Paulo e suas cartas em seu contexto religioso e cultural do
primeiro século. Depois de investigarmos a fonte do ensino de Paulo e
de que forma ele interage com os cristãos primitivos à luz da realidade
em que estão inseridos, poderemos esclarecer até que ponto Paulo
concordava com os conceitos comuns de espíritos do mal e em que
aspectos diferia deles. E, o que é mais importante, poderemos ver, da
perspectiva do apóstolo, como os cristãos devem enxergar a esfera dos
poderes das trevas à luz de seu relacionamento com Cristo.
D
6
O que são os poderes?
esde o Iluminismo, muitos estudiosos “desmitologizaram” os
poderes das trevas na tentativa de relacionar à vida moderna
declarações das Escrituras sobre as forças do mal. Para esses
estudiosos, a ideia de elementos demoníacos é uma forma
cultural ou mítica de fazer referência a maus pensamentos e ações de
uma pessoa ou de uma instituição social corrupta. Afirmam que os
principados e poderes são idênticos a outras forças hostis nas cartas de
Paulo, especificamente aos poderes do pecado, da lei, da carne e da
morte.
Qual era, exatamente, o pensamento de Paulo? Ele considerava que
os poderes eram espíritos com uma existência independente, ou meras
projeções de conceitos abstratos de mal pessoal, comunitário e político?
Eles são reais!
No tocante a essa questão, Paulo certamente é um homem típico de sua
época. Em linha com o pensamento judaico e pagão popular, ele
também tomava por certo que o mundo é repleto de espíritos malignos
hostis à humanidade. Nunca expressou nenhuma dúvida a respeito da
existência desse reino. Antes, ensinou a suas igrejas maneiras de viver e
ministrar em um mundo em que esses poderosos adversários
sobrenaturais existem.
No entanto, precisamos ser mais exatos. Não basta apenasobservar
que Paulo acreditava em espíritos malignos; temos de entender o que ele
verdadeiramente pensava a esse respeito. Logo, é importante discernir o
quanto da crença popular ele aceitava e o quanto rejeitava.
Encontramos parte da resposta para essa pergunta ao observar a
terminologia variada que ele usava para os poderes das trevas (veja
quadro da p. 326).
A fonte do vocabulário de Paulo para os poderes
Uma questão importante da qual temos de tratar é se Paulo dependia
principalmente da demonologia judaica de sua época ou se seu conceito
do mal era arraigado mais fortemente na crença popular pagã. Não é
adequado dizer que Paulo extraiu os termos que ele usa para espíritos
malignos exclusivamente do Antigo Testamento, embora muitas das
palavras empregadas por ele ocorram no Antigo Testamento grego (a
LXX, ou Septuaginta). Os termos “Satanás” e “Diabo” são comuns no
Antigo Testamento, mas o nome “Belial” não ocorre ali nenhuma vez
(veja 2Co 6.15). Enquanto o termo traduzido por “poderes” (dynameis)
é bastante frequente no Antigo Testamento grego, as expressões que
Paulo usa com mais frequência para os poderes, archai e exousiai, não
aparecem nenhuma vez ali.1
Na opinião da maioria dos estudiosos, o vocabulário de Paulo para
os poderes reflete a demonologia judaica de sua época. Todos os termos
empregados por Paulo para os poderes ocorrem em documentos
judaicos do período greco-romano. O judaísmo no tempo de Paulo
tinha uma angelologia bastante desenvolvida, como fica evidente nas
seguintes citações de documentos judaicos nos quais encontramos vários
dos mesmos termos usados por Paulo:
E ele [Deus] convocará todas as forças [dynameis] dos céus, e todos
os santos acima, e as forças do Senhor: os querubins, os serafins, os
ofanins, todos os anjos de governo [archai], o Eleito e outras forças
[exousiai] na terra e sobre a água (1Enoque 61.10).2 E vi ali [no
sétimo céu] uma luz excepcionalmente grande, e todos os exércitos
flamejantes dos grandes arcanjos, e as forças [dynameis] incorpóreas
e os domínios [kyriotētes] e as origens [archai] e as autoridades
[exousiai], os querubins e os serafins e o trono [thronoi] de muitos
olhos (2Enoque 20.1).3 Ali com ele [Deus] estão os tronos [thronoi] e
as autoridades [exousiai]; ali são oferecidos louvores a Deus para
todo o sempre (Testamento de Levi 3.8).
Embora os três textos se refiram à hierarquia angelical ao redor do
trono de Deus, os judeus acreditavam que a mesma hierarquia existisse
no reino do mal. Ademais, muitos desses termos costumavam ser usados
para se referir a diversos níveis hierárquicos de líderes humanos em
cargos governamentais de autoridade. Era amplamente difundida a
crença de que o reino angelical era estruturado de forma análoga aos
reinos políticos terrenos.
Embora Paulo usasse vários termos conhecidos no judaísmo para os
poderes angelicais, isso não significa que aquilo que ele tinha a dizer a
respeito dos poderes das trevas fosse ininteligível para o não judeu.
Enquanto “principados” (archai) e “autoridades” (exousiai) parecem
ser expressões exclusivamente judaicas para o âmbito invisível, muitas
outras palavras que o apóstolo empregava também eram usadas por
gentios para se referir ao mundo dos espíritos e a poderes invisíveis.
Conceitos como “poderes” (dynameis), “domínios” (kyriotētes),
“tronos” (thronoi), “anjos” (angeloi), “governantes do mundo”
(kosmokratores), “demônios” (daimonia), “espíritos elementares”
(stoicheia) e “governantes” (archontes) eram conhecidos e usados por
pagãos, como fica evidente em seus textos mágicos e astrológicos.4
É muito importante lembrar que, em vários lugares, uma linha
bastante tênue separava crenças religiosas gentílicas e judaicas durante o
primeiro século. Por um lado, muitos judeus praticavam magia,
acreditavam em astrologia e tomavam emprestados conceitos religiosos
dos cultos de seus vizinhos pagãos. Por outro lado, os gentios adotavam
muitas ideias e termos cultuais do judaísmo. Esse fato é observado mais
claramente nos papiros mágicos gregos, em que, em uma fórmula
mágica, Yahweh, Salomão e nomes angelicais judeus são invocados
junto com Hécate, Hélio, Serápis e inúmeras outras divindades gregas e
orientais. É difícil, portanto, separar aquilo que é “judaico” daquilo que
é “helenístico” ao tratar de espíritos bons e espíritos malignos. Em
alguns aspectos, essa questão se torna desnecessária em razão do
espírito da época (Zeitgeist). Todos acreditavam na existência de
espíritos bons e espíritos malignos e tinham em comum um vocabulário
básico para se referir a eles.
A questão de importância fundamental, portanto, é em que Paulo
acreditava a respeito desse reino. Nesse aspecto, Paulo dependia
fortemente de sua herança judaica e do ensino de Jesus.
E quanto ao gnosticismo como fonte?
Alguns estudiosos interpretaram as referências de Paulo a principados,
poderes e autoridades como governantes angelicais que controlam as
sete esferas planetárias no sistema de crença gnóstico. Encontram
semelhanças impressionantes de vocabulário entre Paulo e o
gnosticismo e pressupõem que o apóstolo tenha tomado esses termos
emprestados do gnosticismo. Por esse e outros motivos, intérpretes
dessa linha argumentam que os leitores das cartas de Paulo estavam
tendo dificuldades de lidar com a influência gnóstica e, portanto, ele
teria escrito para combater esse ensino perigoso que estava se
infiltrando em seu meio. Essa argumentação está presente especialmente
na história da interpretação de Efésios e de Colossenses, escritos que são
tidos, por vezes, como o ensino de Paulo contra o gnosticismo; ou,
conforme a interpretação de alguns estudiosos, o autor dessas cartas
(considerado, com frequência, alguém diferente de Paulo) revela a
influência do gnosticismo sobre ele próprio!
A dificuldade de qualquer interpretação gnóstica se encontra no fato
de não haver evidências claras que apoiem até mesmo a existência do
gnosticismo antes do início do cristianismo. Um estudioso evangélico,
Edwin Yamauchi, apresentou uma argumentação bastante convincente
de que o gnosticismo só surgiu como sistema de pensamento religioso
coerente depois de 70 d.C. e talvez até depois de 135 d.C.5 Vários
estudiosos indicam essas duas datas porque consideram que o
gnosticismo nasceu no judaísmo e que o catalisador para seu
surgimento foi a decepção messiânica ligada à vitória cabal dos
romanos nas duas guerras judaicas.6
Arraigar a origem do gnosticismo no século 2 d.C. não significa,
porém, que muitos dos conceitos que encontramos nos sistemas
gnósticos de pensamento (do 2 ao século 4 d.C.) não existissem no
século 1 d.C.7 O gnosticismo não consistia em um conjunto de
conceitos inteiramente novos; antes, lançava mão de uma ampla
variedade de tradições religiosas. O gnosticismo apresenta ecletismo
(empréstimo de ideias) extraordinário. Adotou seus conceitos e ideias
centrais da multiplicidade de religiões greco-romanas, astrologia, magia,
religião persa e iraniana, judaísmo e, em vários pontos, até do
cristianismo. A terminologia para os poderes angelicais no gnosticismo
provavelmente veio do reservatório de termos para espíritos, anjos,
demônios e deuses que praticamente todas as tradições tinham em
comum. No gnosticismo, porém, esses poderes receberam funções
claramente definidas como governantes de esferas planetárias
ascendentes. Essa parece ser a contribuição singular do gnosticismo
para a história da religião (com forte influência do mitraísmo).
Portanto, o gnosticismo não é tão relevante como imaginam alguns
estudiosos para entender as referências de Paulo aos principados,
poderes e autoridades.
Os poderes fazem parte do reino de Satanás
O ensino de Paulo sobre os poderes exigia uma mudança considerável
de perspectiva para muitos de seus convertidos gentios. Na crença
popular, e especialmente na magia, eles estavam acostumados a pensar
na existência de espíritos “bons” e espíritos “malignos”. Na magia, era
importante saber o nome dos espíritos bons e prestativos que podiam
ser invocados para ajudar e para protegerdos espíritos malignos.
Em conformidade com o Antigo Testamento, o judaísmo de seu
tempo e o ensino de Jesus, Paulo ensinava que havia um representante
principal do mal, Satanás, que comandava um exército de “forças
espirituais da perversidade”. Ao que tudo indica, Paulo não aceitava as
diversas distinções entre espíritos bons e espíritos malignos feitas por
seus convertidos gentios em sua experiência pré-cristã. Todos os
espíritos invocados e reverenciados na magia, astrologia e nos cultos
pagãos eram malignos e “demoníacos”.
Satanás, ou o Diabo, é o “deus desta era” (2Co 4.4). Embora Deus,
como Criador de tudo o que existe, seja supremamente soberano,
Satanás recebeu permissão de exercer muitas atividades perversas na
terra. João registra ocasiões em que Jesus chama a atenção para a
presente autoridade do Diabo ao descrevê-lo como “o príncipe [archōn]
deste mundo” (Jo 14.30; 16.11). Embora a autoridade de Satanás não
seja absoluta, também não é insignificante. Ele exerce influência
destrutiva de toda espécie em todos os níveis da vida e manifesta sua
grande hostilidade contra o propósito redentor de Deus no Senhor Jesus
Cristo e por meio dele.
De acordo com Paulo, Satanás mantém cativa a humanidade
descrente. Ele “cegou a mente dos descrentes para que não vejam a luz
do evangelho da glória de Cristo” (2Co 4.4). Mesmo no final da
carreira apostólica, as convicções de Paulo não haviam mudado. Para
ele, quem se opunha ao ministério do evangelho havia caído em uma
armadilha do Diabo, “que os aprisionou para fazerem sua vontade”
(2Tm 2.26). Em outra passagem, o apóstolo descreveu a atividade de
Satanás como “escravidão” dos descrentes. Antes da obra redentora
divina, os gálatas estavam “escravizados aos princípios elementares
[stoicheia] do mundo” (Gl 4.3). Aqui, Paulo descortinou os assistentes
poderosos de Satanás que realizam os mesmos propósitos malignos que
seu líder. Em Efésios, ele descreve o cativeiro dos descrentes como estar
“mortos” em suas transgressões e pecados. Em seguida, fala do
“príncipe do poder do ar” (Ef 2.1-2).
Ao cegar as pessoas, ao mantê-las cativas e escravizá-las na esfera da
morte, a ação de Satanás e de seus poderes se opõe em todos os pontos
ao propósito amoroso, reconciliador e vivificador de Deus em Cristo.
Satanás usa de inúmeras tramas para defraudar as pessoas e se
aproveitar delas mesmo depois de se tornarem cristãs (2Co 2.11; Ef
6.11). Embora seu caráter seja sombrio e perverso, ele muitas vezes se
apresenta de forma extremamente positiva para promover sua obra
enganosa (2Co 11.14).
Os poderes estão envolvidos nas religiões do mundo
Os convertidos gentios ao cristianismo tinham diante de si uma questão
importante: Que perspectiva deveriam ter de seus antigos deuses e
deusas? Como os adoradores de Dionísio, por exemplo, deveriam
enxergar seu deus, agora que eram cristãos? Ele era verdadeiramente
um deus, mas um tanto inferior ao único Deus? Ou era apenas uma
imagem de pedra que não representava nenhum ser divino real?
Paulo tratou desse tema de modo específico em sua Primeira Carta
aos Coríntios (1Co 8; 10).8 A igreja de Corinto tinha diante de si duas
questões que levaram o apóstolo a falar desse assunto. Os coríntios
estavam preocupados em entender (1) se podiam fazer refeições no
templo de um dos deuses locais, e (2) se era permissível comer carne que
havia sido sacrificada a um deus ou a uma deusa.
Havia divergências entre os crentes coríntios sobre essas duas
questões. Ao que parece, alguns cristãos mais seguros de si, sabendo que
um ídolo não tem existência real (8.4), não tinham escrúpulos de entrar
no templo de um ídolo e fazer uma refeição ali (8.10).9 No entanto, seu
modo de agir era causa do colapso espiritual de outros cristãos. Ao ver
os crentes mais seguros de si usar sua liberdade dessa forma, os cristãos
mais “fracos” criavam coragem de fazer o mesmo e consumir alimentos
oferecidos a um deus (provavelmente em um dos templos). Esses crentes
mais fracos sofriam crises de consciência, e alguns voltavam à idolatria.
É provável que essa situação não fosse apenas um problema em
potencial que Paulo estivesse tentando evitar, mas, sim, que alguns da
igreja de Corinto tivessem voltado de fato à adoração pagã.
Uma vez que Paulo estava, compreensivelmente, bastante preocupado
com a situação, responsável por destruir (8.11) alguns desses crentes
preciosos, ele apresentou uma longa argumentação em que defendia que
os coríntios cortassem todos os vínculos com os templos pagãos10 e que
os crentes mais fortes se mostrassem sensíveis às questões de consciência
dos mais fracos, dispondo-se a abrir mão de seu direito de comer
alimentos oferecidos a ídolos.
Um dos elementos centrais da argumentação de Paulo nessa passagem
é a presença de um caráter demoníaco nas religiões não cristãs. Ele
concordava com os cristãos mais instruídos de Corinto que, em
princípio, um ídolo não tem existência real e independente (8.4).
Também concordava que, para o cristão, não há outro deus senão o
único Deus verdadeiro: as divindades pagãs como Apolo, Ísis, Serápis e
os demais são apenas pretensas divindades. Não obstante, Paulo
declarou que esses deuses têm uma forma de existência real e observou
que “de fato, há muitos ‘deuses’ e muitos ‘senhores’” (8.5). Em certo
sentido, ele acreditava na existência de outros “deuses” e “senhores”,
mas de forma qualitativamente distinta daqueles que lhes prestavam
culto. Mais adiante, Paulo afirmou que essas imagens representam
demônios (10.20-21), e não verdadeiras divindades; não se deve
considerar que ocupem o mesmo nível do único Deus. Em outro
sentido, porém, são deuses e senhores verdadeiros à medida que são
subjetivamente considerados dessa forma por aqueles que lhes prestam
culto;11 são “reais” para seus adoradores. Ademais, para os cristãos
“fracos” de Corinto, esses deuses ainda eram bastante reais em sua
“consciência” ou “percepção”. Sua “convicção intelectual de que havia
um só Deus ainda não havia sido plenamente assimilada em nível
emocional”.12 Havia um atraso das convicções de seu coração em
relação a seu entendimento cognitivo. Não podemos subestimar a
provável dificuldade que pessoas habituadas a crer na realidade de
muitos deuses tiveram para transformar, de modo repentino, esses anos
de convicção religiosa profundamente arraigada em uma estrutura de
crença monoteísta. O fato de esses deuses pagãos na verdade não serem
“nada”, porém, não os torna menos perigosos.
Posteriormente, Paulo argumentou que há uma relação próxima entre
idolatria e atividade demoníaca. Disse: “Será que estou dizendo que o
sacrifício oferecido a um ídolo é alguma coisa, ou que o ídolo é alguma
coisa? Não, mas os sacrifícios dos pagãos são oferecidos a demônios, e
não a Deus, e não quero que vocês tenham comunhão com demônios”
(10.19-20). Na mente de Paulo, havia de fato seres sobrenaturais
associados à idolatria pagã: os poderes das trevas! Em dois versículos,
Paulo usa o termo demônio quatro vezes. Para ele, na realidade eram
demônios que recebiam a carne sacrificada (10.20). Ao comer e beber
nos templos pagãos, os coríntios estavam bebendo do “cálice de
demônios” e participando da “mesa de demônios” (10.21). Em
essência, estavam tendo “comunhão” (koinōnia) com demônios, uma
comunhão que devia ser reservada exclusivamente para seu
relacionamento com Cristo (1.9). A comunhão com o Senhor Jesus à
sua mesa devia substituir inteiramente a participação à mesa de
demônios. Logo, para o apóstolo, as religiões pagãs tinham um caráter
intensamente demoníaco.
Esse posicionamento não era, de maneira nenhuma, novidade para
Paulo. Representava o posicionamento formal do judaísmo. O cântico
de Moisés de louvor a Deus, que reflete sobre o comportamento
idólatra dos israelitas no deserto, anuncia: “Eles o deixaram com
ciúmes por causa dos deuses estrangeiros, e provocaram sua ira com
ídolos abomináveis. Sacrificaram a demônios, que não são Deus” (Dt
32.16-17). Essa atitude para com os ídolos é refletida em outras partes
do Antigo Testamento e no judaísmodo período do Novo
Testamento.13 A crença judaica mais próxima do tempo de Paulo é bem
exemplificada em um documento judaico do século 2 a.C., que comenta
sobre a idolatria dos filhos de Noé no seguinte trecho:
E fizeram para si imagens fundidas, e todos prestaram culto ao ícone
que haviam feito para si como imagem fundida. E começaram a fazer
esculturas e imagens corrompidas. E espíritos cruéis os assistiram e os
levaram a se desviar para que cometessem pecado e corrupção. E o
príncipe [desses demônios], Mastema, agiu com determinação para
fazer todas essas coisas. E ele enviou outros espíritos àqueles que
foram colocados debaixo de sua mão para praticar todo erro e
pecado e toda transgressão, para destruir, para fazer perecer e para
derramar sangue na terra (Jubileus 11.4-5).14
Outro documento judaico, datado de pouco antes do tempo de Cristo,
associa a idolatria à feitiçaria e a demônios: “Tenho grande tristeza,
meus filhos, em razão da lascívia e das feitiçarias e idolatrias que vocês
praticarão contra o reino, ao seguir médiuns, adivinhadores e demônios
de engano” (Testamento de Judá 23.1).15 O Testamento de Naftali se
refere aos gentios que trocaram a adoração ao Senhor pela idolatria,
também associada a demônios: “Os gentios mudaram sua ordem, tendo
se desviado e abandonado o Senhor, e seguiram após pedras e paus,
tendo seguido após espíritos de engano” (Testamento de Naftali 3.1).16
De modo semelhante, quando Paulo escreveu aos romanos, condenou
os gentios por trocarem o culto a Deus por uma mentira. A seus olhos,
“trocaram a glória do Deus imortal por imagens feitas para se
assemelhar a homem mortal, bem como a pássaros, quadrúpedes e
répteis” (Rm 1.23). Aquilo que ele disse aos coríntios não contradiz, de
maneira nenhuma, sua declaração aos romanos. Paulo não se ateve a
descrever os deuses pagãos como imagens inanimadas; também
declarou que Satanás e seus poderes das trevas usaram essas religiões
não cristãs para manter a humanidade em escravidão.
Fica perfeitamente claro o motivo pelo qual Paulo instou com os
coríntios: “Fujam da idolatria” (1Co 10.14). Ao manter qualquer tipo
de envolvimento com os templos pagãos, os coríntios se expunham à
poderosa atividade demoníaca e colocavam em risco sua lealdade ao
único Deus verdadeiro. Alguns estavam sendo destruídos por esse
envolvimento (8.11). Aqueles entre os coríntios que tinham
“conhecimento” não levaram em conta a influência extremamente
perigosa dos poderes hostis das trevas ligados de modo próximo às
religiões não cristãs. O batismo e a participação da mesa do Senhor não
garantiam imunidade à atividade traiçoeira de poderes demoníacos. De
modo semelhante, o povo de Israel não estava imune aos efeitos mortais
da idolatria, apesar de também ter sido simbolicamente “batizado” e ter
consumido “alimento espiritual” e “bebida espiritual” (10.1-12).
Paulo fez distinção, contudo, entre comer em templos pagãos (que ele
considerava participação em idolatria) e comer em casa alimento que
havia sido sacrificado a um deus (10.23-33). No segundo caso, a
sensibilidade para com cristãos mais fracos devia guiar o cristão mais
forte; a idolatria deixava de ser a questão em pauta. Por um lado, o
apóstolo os aconselhou a comer “tudo o que se vende no mercado, sem
fazer perguntas por causa da consciência” (10.25). Por outro lado,
contudo, pediu comedimento da pessoa que, ao comer carne na
presença de outro cristão (mais fraco) na casa de um não cristão, talvez
ofendesse a consciência do cristão mais fraco (10.27-29).
A maneira de Paulo tratar a situação em Corinto tem muito a ensinar
de relevância fundamental para a igreja de hoje, especialmente ao
ministrarmos para pessoas com antecedentes que envolvem formas
diversas de culto pagão. Gordon Fee apresenta uma descrição
apropriada dessa relevância:
Aqueles que trabalham com o resgate de prostitutas e de pessoas
dependentes de drogas, por exemplo, ou com pessoas envolvidas com
expressões diversas de voduísmo e adoração a espíritos, têm
entendimento existencial desse texto que outros dificilmente
percebem. Muitas dessas pessoas precisam ser afastadas em caráter
permanente de suas associações anteriores, o que inclui não voltar
para evangelizar nos locais que frequentavam, pois sua vida anterior
exerce sobre elas influência extremamente tenaz. Paulo levava a sério
o poder dos demônios, daí sua preocupação de que uma pessoa
anteriormente idólatra, ao retornar a suas idolatrias, fosse destruída,
isto é, voltasse a suas antigas condutas e ficasse ainda mais presa a
elas, a ponto de chegar a sofrer perda eterna.17
Um dos princípios centrais que nortearam a reação de Paulo à situação
em Corinto foi a convicção de que a idolatria é estimulada por
demônios. Para o apóstolo, a idolatria consistia em prestar culto a
qualquer imagem feita por mãos humanas. Implicava adoração e serviço
a qualquer coisa que não fosse o único Deus verdadeiro. A participação
na idolatria incluía tudo o que era associado ao serviço e à adoração a
deuses. Para os coríntios, abrangia a prática de comer em templos
pagãos.
Por extensão, o princípio prático para nós hoje é de que todas as
diversas religiões não cristãs representam uma manifestação especial da
ação de poderes das trevas para enganar pessoas e desviar sua atenção
do único Deus verdadeiro.
O que Paulo não diz
Embora Paulo tenha muita coisa a dizer sobre os poderes das trevas, há
uma série de coisas que ele não diz, especialmente quando lemos suas
cartas no contexto do judaísmo de sua época. Sem dúvida, seria de
ajuda para nós identificar um posicionamento definido de Paulo quanto
a algumas questões relacionadas aos poderes; no entanto, temos de nos
contentar com certa medida de ignorância no tocante à extensão de seu
pensamento sobre os espíritos malignos. Eis algumas áreas a respeito
das quais Paulo não se pronuncia:
1. Uma explicação sobre a rebelião e queda dos anjos. Muitas
tradições propõem que o julgamento de Deus sobre o rei de Tiro em
Ezequiel 28 e sobre o rei da Babilônia em Isaías 14 são textos que vão
além de mera descrição de circunstâncias históricas desses reis
específicos e transmitem conhecimento acerca da rebelião de Satanás e
de uma hoste de anjos. Boa parte do judaísmo durante o período greco-
romano considerava o relato em Gênesis 6, em que os “filhos dos
homens” (interpretados como anjos) se deitaram com mulheres mortais
e geraram criaturas que se tornaram espíritos demoníacos, a origem dos
poderes das trevas (cf. p. ex., 1Enoque 6—11). Em nenhum momento
Paulo confirmou essas tradições (ou quaisquer outras) a respeito da
origem dos espíritos malignos, nem fez alusão a elas. Apenas tomava
por certo que havia no mundo espíritos malignos sobrenaturais hostis a
Deus e à igreja. Por quê? “Porque esses problemas de origem são
colocados em segundo plano em razão de questões extremamente
prementes e realistas a respeito das artimanhas do Diabo na vida
real.”18
2. Os nomes dos poderes angelicais. Vimos que muito da literatura da
época de Paulo (especialmente a literatura apocalíptica) focalizava a
identificação, por nome, dos poderes, como Ruax, Barsafael, Artosael e
Belbel. Com exceção de uma única referência a Satanás como Belial
(2Co 6.15), Paulo não tem nenhum interesse em chamar os espíritos por
nome. Para ele, é provável que se tratasse de uma empreitada inútil,
pois todos atenderiam à autoridade de Cristo.
3. A ordem dentro da hierarquia angelical. Embora Paulo tenha
usado muitas das categorias para seres angelicais encontradas em textos
apocalípticos judaicos, nunca forneceu mais esclarecimento sobre as
posições hierárquicas relativas dos principados, poderes e autoridades.
O texto judaico Testamento de Adão relaciona os poderes angelicais de
acordo com suas várias ordens, da mais baixa para a mais alta, e
fornece as respectivas funções. De acordo com o Testamento, a ordem
mais baixa é dos anjos, seguida de arcanjos, arcontes, autoridades,
poderes, domínios e, então, as ordens mais elevadas: tronos, serafins e
querubins. As diversas referênciasde Paulo aos poderes não mostram
nenhum interesse em posições hierárquicas ou ordens. Também nesse
caso, o interesse de Paulo era primeiramente funcional; em outras
palavras, ele queria que suas igrejas soubessem da existência de seres
angelicais poderosos que investem contra os cristãos e que estivessem
preparadas para reagir a esses ataques.
4. As atividades de certos demônios e como são impedidas. Algumas
formas de judaísmo consideravam importante entender exatamente a
autoridade que os espíritos malignos tinham sobre pessoas e como
podiam ser vencidos. Por exemplo, acreditava-se que um espírito
maligno chamado “Lix Tetrax” promovesse desunião e começasse
incêndios. Somente por meio da ação e da autoridade do arcanjo bom
Azael a atividade perversa de Lix Tetrax podia ser detida (Testamento
de Salomão 7.1-8). De modo contrastante, o apóstolo Paulo apontou
somente para o Senhor Jesus Cristo como fonte da autoridade dos
crentes sobre os poderes das trevas. Em nenhum momento fez alusão à
necessidade de invocar anjos ou de ter conhecimento especial a respeito
da função dos diversos espíritos malignos.
5. Territórios governados por anjos maus. O livro de Daniel revela
que anjos bons e anjos maus receberam poder sobre determinados
países. Daniel falou, especificamente, de anjos maus que exercem
influência sobre a Pérsia e sobre a Grécia, enquanto o anjo Miguel luta
contra eles em favor de Israel. Embora Paulo lance mão do livro de
Daniel extensamente quanto a termos e conceitos (entre eles, o termo
archōn), o apóstolo nunca associou os poderes das trevas a um país ou
território específico. Por exemplo, nunca suplicou a Deus que frustrasse
o príncipe angelical de Roma, nem que amarrasse o governante
demoníaco de Corinto. Essa abordagem pode ser explicada, em parte,
pelo fato de que ele costumava falar de modo um tanto abrangente ao
se referir aos poderes: por exemplo, reunindo todos em uma só
categoria e falando da supremacia de Cristo ou da autoridade dos
cristãos sobre eles. É provável que, para Paulo, não fosse uma questão
de grande importância um crente identificar com precisão que anjo mau
exercia autoridade suprema sobre determinado território na hierarquia
demoníaca. Paulo enfatizava o reconhecimento de que existem
emissários demoníacos poderosos que atacam a igreja e dificultam sua
missão e que podem ser vencidos por meio da confiança no poder de
Deus.
1 Há uma exceção. O texto teodosiano de Dn 7.27 usa archai para traduzir a palavra
hebraica para “governantes”.
2 Faz algum tempo, R. H. Charles considerou esse texto importante para entender a fonte do
vocabulário usado por Paulo para os poderes; veja R. H. Charles, The apocrypha and
pseudepigrapha of the Old Testament (Oxford: Clarendon, 1913), vol. 2, p. 180, 226-7. Em
tempos mais recentes, Matthew Black, The Book of Enoch or 1 Enoch, Studia in Veteris
Testamenti Pseudepigrapha 7 (Leiden: Brill, 1985), p. 234, observou que “comentaristas e
outros ainda consideram essas palavras nossa principal autoridade antiga para esses termos do
Novo Testamento, p. ex., ‘os principados e poderes’”.
3 Charles, Apocrypha and pseudepigrapha, p. 441, comenta que esses são exatamente os
mesmos termos usados por Paulo.
4 Para uma discussão sobre o uso desses termos na magia e na astrologia, veja Clinton E.
Arnold, Ephesians: power and magic. The concept of power in Ephesians in light of its
historical setting, Society for New Testament Studies Monograph 63 (Cambridge: Cambridge
University Press, 1989), p. 51-69.
5 Veja Edwin M. Yamauchi, Pre-Christian gnosticism, 2 ed. (Grand Rapids: Baker, 1983);
veja também seu artigo “Pre-Christian Gnosticism, the New Testament and Nag Hammadi in
recent debate”, Themelios 10 (1984): 22-27.
6 Para uma discussão mais completa dessa questão, veja meu texto Ephesians: power and
magic, p. 7-13.
7 A melhor introdução sobre os diversos sistemas gnósticos de pensamento é apresentada em
Kurt Rudolph, Gnosis: the nature and history of an ancient religion (San Francisco: Harper &
Row, 1987).
8 Para um estudo detalhado dessa questão, veja Wendell L. Willis, Idol meat in Corinth: the
Pauline argument in 1 Corinthians 8 and 10, SBL Dissertation Series 68 (Chico: Scholars,
1985).
9 Gordon Fee, The First Epistle to the Corinthians, New International Commentary on the
New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 359 [publicado em português por Vida
Nova sob o título 1Coríntios: comentário exegético], argumenta que essa é a questão
fundamental em todo o trecho de 1Co 8—10.
10 A respeito desse ponto, fui convencido pela argumentação de Gordon Fee, Corinthians, p.
359-63, para quem essa é uma questão separada do consumo de carne oferecida como sacrifício
em outro contexto, como na casa de um não cristão. Devo meu entendimento de 1Co 8—10 em
grande medida ao excelente estudo de Fee sobre essa passagem.
11 Ibidem, p. 373.
12 J. Murphy-O’Connor, conforme citado em Fee, Corinthians, p. 381.
13 Veja o cap. 4: “Judaísmo”.
14 Para vários outros textos que ilustram essa crença judaica amplamente difundida, veja
Hermann L. Strack; Paul Billerbeck, Kommentar zum neuen Testament aus Talmud und
Midrasch, 6. ed. (Munich: C.H. Beck, 1975), vol. 3, p. 47-60.
15 Tradução de H. W. Hollander; M. de Jonge, in: The Testaments of the Twelve Patriarchs,
Studia in Veteris Testamenti Pseudepigrapha 8 (Leiden: Brill, 1985), p. 225.
16 Ibidem, p. 301.
17 Fee, Corinthians, p. 388, nota 62.
18 Stauffer, Theology, p. 66.
A
7
A derrota dos poderes na cruz
cruz é o momento fundamental da história da salvação. Essa é
uma realidade não apenas no sentido de que Cristo fez
expiação pelo pecado por meio de seu sangue, mas também no
sentido de que Cristo conquistou uma vitória decisiva sobre os
poderes malignos.
A soberania absoluta do Criador
Embora Cristo e a igreja sejam representados ao longo de todo o Novo
Testamento em conflito com os poderes, em nenhuma ocasião essas
forças antagônicas se viram livres e independentes da soberania
absoluta de Deus. Ele é soberano porque é o Criador. Quando Paulo
orava, dirigia-se ao Pai “do qual recebe o nome toda a família nos céus
e na terra” (Ef 3.15). Cada um dos membros de cada uma das divisões
da hierarquia angelical “recebe um nome” de Deus, isto é, sua
identidade e sua autoridade vêm dele. Todos os grupos na hierarquia de
seres angelicais, tanto bons quanto maus, recebem sua vida e sua
existência de Deus, o Pai. Ele é verdadeiramente o Pai, pois é a fonte de
toda a vida.
Em nenhum dos escritos de Paulo a soberania do Criador em
referência aos poderes é apresentada de modo mais claro e incisivo do
que em Colossenses 1.15-20. Nessa passagem, todas as funções do
Criador são atribuídas a Cristo, no qual “foi do agrado de Deus que
[...] habitasse toda a plenitude”. Cristo é louvado por criar e sustentar o
Universo e por movê-lo em direção ao tempo da consumação, que será
caracterizado por reconciliação universal. Paulo pode, legitimamente,
exaltar a soberania de Cristo sobre todos os poderes porque Cristo
criou todos eles.
Era inconcebível para Paulo que o Criador algum dia viesse a perder
o controle de sua criação. Também era inimaginável para ele que algum
dia as forças das trevas ameaçassem vencer a providência e a autoridade
divinas. Deus sempre manteve o controle, e permanecerá no controle
enquanto continua a desdobrar seu propósito na história. Para Paulo,
ele é o Deus que “faz toda as coisas segundo o propósito de sua
vontade” (Ef 1.11). Nem as estrelas nem os espíritos astrais (os quais se
costumava crer que controlavam o destino humano) podem revogar os
planos de Deus. Somente o Deus que elege e redime, que escolheu para
si um povo antes da criação do mundo, exerce controle sobre a história
e sobre o destino humano.
A tentativa de arruinar o plano redentor divino (1Co
2.6-8)
Paulo nos dá um vislumbre de um momento no tempo em que os
poderes imaginaram que podiam frustrar para sempre o propósito
redentor de Deus. Outro autor cristão, o apóstolo João, revelou que
Satanás tinha desejado acelerara jornada de Cristo até a cruz ao entrar
em Judas, a fim de que ele traísse Cristo e o entregasse às autoridades
(Jo 13.27).1 Paulo confirma o relato de João da intenção de Satanás e
diz que os poderes das trevas estavam convencidos de que podiam
neutralizar os propósitos de Deus ao apressar a morte de Cristo. Paulo
escreve:
Entretanto, falamos uma mensagem de sabedoria entre os maduros,
mas não de sabedoria desta era ou dos governantes [archontes] desta
era, que estão sendo reduzidos a nada. Pelo contrário, falamos da
sabedoria secreta de Deus, uma sabedoria que estava oculta e que
Deus preordenou para nossa glória antes do começo dos tempos.
Nenhum dos poderosos desta era o entendeu, pois, se o tivessem
entendido, não teriam crucificado o Senhor da glória (1Co 2.6-8).
Essa passagem oferece três esclarecimentos importantes para nosso
entendimento dos poderes. Primeiro, o conhecimento que eles têm do
plano de Deus é limitado; eles não sabiam exatamente como Deus daria
início a seu método de redenção por meio de Cristo. Paulo diz
claramente: “Nenhum dos poderosos desta era o entendeu”. Deus não
revelou a esses seres sobrenaturais sua “sabedoria secreta” (lit., sua
“sabedoria em mistério”). As complexidades do plano da salvação
foram mantidas em segredo não apenas da humanidade, mas também
da esfera dos anjos. Por isso, a oposição satânica concluiu
ingenuamente que matar Jesus fosse a forma de se livrar do Filho de
Deus que tinha vindo fazer a vontade do Pai e dar início a seu reino.
Segundo, destruição iminente aguarda os governantes demoníacos
(1Co 2.6). Paulo afirma que os governantes desta era “estão sendo
reduzidos a nada” (NIV), “estão desaparecendo” (NASB), “estão
declinando até seu fim” (NEB). Aqui, Paulo empregou um termo forte
(katargeō), que, em geral, é usado com o sentido de “tornar impotente”,
“abolir” e “exterminar”.2 Por ironia, é o que está acontecendo com os
poderes, pois a cruz de Cristo marcou sua derrota. Embora eles talvez
conquistem vitórias temporárias em sua hostilidade contínua contra a
igreja, sua destruição final é certa. Paulo usa o mesmo termo (katargeō)
mais adiante em sua Primeira Carta aos Coríntios quando diz que todos
os poderes hostis terão de ser destruídos antes de “ele entregar o reino a
Deus, o Pai” (1Co 15.24). Os governantes demoníacos também são
descritos por Paulo como parte “desta era”. Em conformidade com a
escatologia judaica tradicional, Paulo pensava em duas eras: a presente
e a vindoura. Os poderes fazem parte da presente era perversa (cf. Gl
1.4) da qual Deus está resgatando seu povo. A destruição dos poderes é
ainda mais certa porque a segunda vinda de Cristo marcará o fim
“desta era”. Toda a plenitude de vida na era por vir será
experimentada, sem que seja necessário lutar contra a influência
diabólica dos governantes demoníacos.
Terceiro, os governantes demoníacos se envolvem intimamente com
os assuntos da vida ao agir nas pessoas e por meio delas. Com base nos
relatos dos Evangelhos, fica evidente que Jesus foi pregado à cruz por
seres humanos: soldados romanos que seguiram as ordens do procônsul
Pôncio Pilatos. Jesus fora entregue a Pilatos para ser crucificado pelo
conselho judaico que consistia nos anciãos, principais sacerdotes e
mestres da lei e era liderado pelos sumos sacerdotes Anás e depois
Caifás. Ademais, uma multidão havia se reunido para a Páscoa e
exigido de Pilatos, aos gritos, que Jesus fosse crucificado. Ao que
parece, a culpa pela morte de Jesus deve ser atribuída a todas essas
pessoas. E, no entanto, nessa passagem, Paulo destacou a
responsabilidade demoníaca pela morte de Jesus. Nem todos os
intérpretes da passagem a entendem dessa forma. Na opinião de alguns,
Paulo tem em mente apenas os governantes humanos responsáveis pela
crucificação, geralmente Anás, Caifás e Pilatos.3 Há vários bons
motivos, porém, para considerar que era intenção de Paulo que seus
leitores pensassem em governantes demoníacos ao ler esse trecho.
Primeiro, ele usou o termo “governante” (archōn) em outros textos para
se referir a Satanás. Em Efésios 2.2, por exemplo, Paulo descreveu
Satanás como “príncipe [archōn] do reino do ar”. É verdade que, em
outra ocasião, usou esse termo para governantes humanos (Rm 13.3),
mas o importante aqui é que essa palavra faz parte do vocabulário
paulino para se referir a um ser espiritual maligno.
Segundo, é mais natural interpretar que serão “exterminados”
(katargeō) governantes demoníacos do que governantes humanos.
Posteriormente na mesma carta, Paulo disse que Cristo deve destruir
(katargeō) os poderes das trevas (“todo domínio, autoridade e poder”)
antes de entregar o reino a Deus Pai (1Co 15.24). Ele também usou a
palavra katargeō para dizer que Cristo matará “o Perverso” inspirado
por Satanás durante um período de grande angústia no fim dos tempos
(2Ts 2.8). Ele nunca usou esse termo para a destruição final da
humanidade descrente. É significativo que o escritor de Hebreus
também tenha empregado o termo katargeō para se referir ao reino
espiritual maligno: Cristo, por sua morte, “destruiu” o Diabo (Hb
2.14).
Terceiro, essa interpretação é a que explica mais adequadamente a
argumentação de Paulo nessa passagem. No contexto mais amplo, ele
estava exaltando a sabedoria inescrutável de Deus. A sabedoria divina é
a essência da mensagem de Paulo e é transmitida aos crentes pelo
Espírito por revelação. Paulo depreciava a sabedoria humana por ser
inútil para entender os caminhos de Deus. Agora, ele desenvolve seu
argumento ao mostrar que nem mesmo os poderes angelicais eram
capazes de entender a sabedoria secreta de Deus.
Quarto, Paulo provavelmente usou o termo governantes para anjos
maus porque fazia parte da ampla gama de termos para espíritos
malignos na tradição judaica da época. Ademais, é provável que tivesse
a conotação de poder e autoridade excepcionais na hierarquia de seres
espirituais malignos. É especialmente o caso quando vemos que se
tratava de um título para Satanás. O uso de “governantes” (archōn) no
judaísmo para anjos maus pode ser ilustrado por sua ocorrência no
Testamento de Simeão, texto do século 2 a.C. Nesse documento,
Simeão supostamente apresenta o motivo para a inveja e o ódio que
nutria por seu irmão José:
No tempo de minha juventude, eu tinha inveja de José, pois meu pai
o amava mais do que a todos nós. Resolvi em meu interior que iria
destruí-lo, pois o Príncipe [archōn] do Erro [ou “engano”] cegou
minha mente, de forma que não considerei José meu irmão, nem
poupei Jacó, meu pai (Testamento de Simeão 2.6-7).4
Esse texto também ilustra a tendência do judaísmo posterior de
reescrever a história patriarcal atribuindo envolvimento demoníaco a
acontecimentos.
Por fim, a palavra “governante” (archōn) também fazia parte do
vocabulário cristão primitivo para coisas satânicas. O “príncipe
[archōn] deste mundo” é uma das expressões mais comuns de João para
o Diabo (cf. Jo 12.31; 14.30; 16.11). Um exemplo de seu uso pelos Pais
Apostólicos pode ser observado na Epístola de Barnabé, do final do
primeiro século:
Há duas formas de ensino e de poder: uma da luz e a outra das trevas
[...] Em uma se encontram os anjos de Deus que irradiam luz e, na
outra, os anjos de Satanás. E um é Senhor desde toda a eternidade e
por toda a eternidade, enquanto o outro é Senhor [archōn] desta
presente época de iniquidade.5
Paulo considerava os governantes demoníacos responsáveis pela morte
de Cristo. Toma por certo que os poderes de Satanás estavam operando
nos bastidores para dirigir o curso dos acontecimentos na semana da
Paixão. Não fazia parte do propósito de Paulo explicar exatamente
como esses governantes demoníacos operavam. No mínimo, podemos
imaginar que estavam profundamente envolvidos ao exercer sua
influência insidiosa em Judas, Pilatos, Anás e Caifás e por intermédio de
todos eles, bem como ao instigar a multidão.6
A tentativa demoníaca de frustrar o plano de Deus ao matar Cristo
falhou. Os poderes não compreenderam toda a extensão da sabedoria
de Deus, a saber, que o Pai usaria a mortede Cristo para fazer expiação
pelo pecado, ressuscitaria Cristo vitoriosamente dentre os mortos e
formaria a igreja. O que eles menos esperavam era sua própria derrota!
A vitória de Cristo sobre os poderes (Cl 2.15)
Em nenhuma outra parte do Novo Testamento a vitória de Cristo sobre
os poderes das trevas recebe expressão mais plena do que em
Colossenses 2.15: “E, tendo despojado os poderes e as autoridades, fez
deles espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz”. A morte e
ressurreição de Cristo marcam o início da destruição deles. Cristo
conquistou a vitória definitiva sobre os poderes: vitória que tem
repercussões eternas. Vale a pena examinar os detalhes das declarações
de Paulo.
Deus despojou os poderes. A morte e a ressurreição de Cristo
despojaram as forças malignas de qualquer poder eficaz contra ele e
contra os membros de seu corpo, a igreja. Antes da cruz, os poderes
mantinham um reino e escravizavam a humanidade, mas a obra de
Cristo mudou essa realidade. Esses poderes não são mais capazes de
exercer sua influência instigadora sobre aqueles que Cristo tomou para
si. Cristo pode redimir pessoas do cativeiro e lhes dar liberdade porque
ele despojou os poderes.
De que maneira a morte e a ressurreição de Cristo efetuaram esse
despojamento? Elas o efetuaram exatamente porque os poderes não
tiveram como impedir Cristo de fazer expiação pelo pecado. Cristo, ao
entregar sua vida e derramar seu sangue, pôde oferecer o perdão de
pecados para seu povo. Os poderes perderam, com isso, seu principal
mecanismo para manter as pessoas em escravidão: “Vocês estavam
mortos em suas transgressões e pecados [...] quando seguiam [...] o
príncipe do poder do ar” (Ef 2.1-2). Houve propiciação para a ira de
Deus, e foi removida para sempre de diante dele a ofensa do pecado. A
obra de Cristo concedeu àqueles que creem acesso a Deus por meio do
qual poderiam receber uma nova natureza e ser preenchidos com seu
poder divino capacitador.
A ressurreição mostrou que nem mesmo a morte podia vencer Cristo.
A mais forte arma do arsenal de Satanás não foi suficiente para
conquistar Cristo. E não se mostrará suficiente para destruir seu povo.
É de se duvidar que Paulo imaginasse uma redução da capacidade ou
do poder de Satanás em virtude da obra de Cristo na cruz. Com um
exército de espíritos poderosos, Satanás continua a ser um inimigo
considerável. O despojamento dos poderes ocorreu com respeito a
Cristo e àqueles que são incorporados a ele. Ficou evidente que o poder
e a sabedoria de Satanás são inadequados para derrotar Cristo, o que
leva Paulo a sua segunda declaração.
Deus expôs os poderes publicamente. A cruz “expôs” a relativa
fraqueza dos poderes. A palavra que Paulo escolheu também poderia ser
traduzida por “fazer de exemplo”, “humilhar” ou “zombar”. Ao que
parece, era um termo que costumava ser usado para expor ou humilhar
alguém que houvesse cometido adultério. Esse uso é visto em sua única
outra ocorrência no Novo Testamento em Mateus 1.19, que descreve a
situação em que José não quis expor Maria “à desonra pública”, ou
seja, não quis “humilhá-la” publicamente por seu suposto adultério.
Um escritor antigo menciona uma lei cipriota “de acordo com a qual
uma adúltera tinha de cortar o cabelo e era submetida a desprezo pela
comunidade”.7
Quando a crucificação de Cristo se aproximava, os poderes
imaginaram que, finalmente, matariam o Filho de Deus e acabariam
com seus misericordiosos propósitos salvíficos (1Co 2.6-8). No entanto,
a morte e a ressurreição de Cristo revelaram a insensatez do plano deles.
E. F. Scott oferece uma explicação eloquente para essa “exibição” em
seus comentários sobre Efésios 3.10:
Os poderes hostis haviam procurado frustrar a obra de Deus e
concluíram que haviam sido bem-sucedidos quando conspiraram
contra Cristo e provocaram sua crucificação. Involuntariamente,
porém, foram meros instrumentos nas mãos de Deus. A morte de
Cristo fora exatamente o meio elaborado por Deus para a realização
de seu plano. Portanto, é declarado aqui que os poderes hostis, depois
de seu breve e aparente triunfo, tomaram consciência de uma
sabedoria divina que jamais haviam imaginado. Viram a igreja surgir
como resultado da morte de Cristo e efetuaram aquilo que, como
vieram a perceber, era o propósito secreto de Deus.8
Pensando que seriam capazes de destruir Cristo, os poderes ficaram
estarrecidos ao vê-lo ressuscitar dos mortos e assumir o lugar de
“cabeça” de um novo corpo de pessoas que ele estava unindo a si. Com
isso, ficou evidente para todos que os ardis dos poderes foram inúteis.
Em Gálatas 4.9, Paulo sem dúvida tinha bons motivos para dizer que os
“espíritos elementares” são “fracos” e “miseráveis”.
Deus fez dos poderes espetáculo público em um desfile triunfal. Paulo
agora desenvolve a ideia de exibição pública dos poderes ao usar um
“desfile triunfal” para retratar sua derrota. Ele empregou uma
expressão comum no contexto de vitória militar romana. Quando um
general derrotava os exércitos adversários e vencia a batalha, era
realizado um “desfile triunfal” para celebrar a vitória. O general bem-
sucedido ia adiante do cortejo, seguido de seu exército, que cantava
hinos de vitória e festejava a conquista com grande alegria. Nesse
desfile, também eram exibidos o rei conquistado e todos os seus
guerreiros que houvessem sobrevivido. Os inimigos abatidos e
derrotados se tornavam espetáculo público para ser ridicularizados, e
sua subjugação era exibida a todos.9 De modo semelhante, Deus fez dos
principados e poderes espetáculo público, mostrando a impotência deles
diante de Cristo. Eduard Lohse, estudioso do Novo Testamento,
observa: “Enquanto sua derrota arrasadora é exibida para o mundo
todo, a superioridade infinita de Cristo é demonstrada”.10
A morte e a ressurreição de Cristo representam, portanto, sua vitória
decisiva sobre os poderes das trevas. Essa verdade é fortemente atestada
em outras passagens do Novo Testamento. O escritor de Hebreus
também menciona esse fato ao destacar o líder dos poderes, Satanás:
“Ele [Cristo] também participou dessa condição humana, para que, por
sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, isto é, o Diabo”
(Hb 2.14). João declara em uma de suas cartas: “Para isso o Filho de
Deus se manifestou: para destruir as obras do Diabo” (1Jo 3.8).
Seria uma interpretação exagerada dessas passagens imaginar alguma
espécie de batalha visível entre os poderes e Cristo enquanto ele estava
na cruz, a qual representou o ápice do conflito entre eles. A cruz foi o
esforço desesperado dos poderes para destruir aquele sobre o qual se
encontrava a esperança de salvação do mundo. É verdade que foram
bem-sucedidos em sua missão de providenciar que Jesus fosse morto.
Na infinita sabedoria de Deus, porém, esse foi o método divino para
obter a salvação de todos os que creem. Os poderes das trevas não
faziam ideia de que Jesus ressuscitaria dos mortos.
A supremacia de Cristo (Ef 1.15-23)
Logo depois da ressurreição de Jesus Cristo, veio sua exaltação divina.
Deus colocou Jesus em um lugar de poder “à sua direita, nas regiões
celestiais, muito acima de todo governo, autoridade, poder e domínio”
(Ef 1.20-21).11 Sem nenhum constrangimento, Paulo destacou que a
exaltação de Cristo significou que ele recebeu lugar de poder e
autoridade inigualáveis como base para o exercício de seu senhorio.
Não havia um príncipe angelical sequer que pudesse ser citado como
ameaça ao domínio de Cristo.
As palavras “de todo título [lit., ‘nome’] que se possa mencionar”
devem ter sido especialmente expressivas para aqueles que, outrora,
haviam praticado magia, como era o caso de muitos dos cristãos em
Éfeso. Paulo, ciente de que os nomes certos e a invocação dos nomes
mais poderosos eram essenciais para a prática de magia, argumentou
explicitamente em defesa da superioridade de Cristo. Não há deus,
deusa, poder, espírito ou demônio imaginável que não esteja debaixo do
domínio de Cristo. Somente Cristo é supremo. Somente ele merece
devoção.
Paulo também declara: “E Deus colocou todasas coisas debaixo de
seus pés”. Todas as coisas, o que inclui os poderes das trevas, agora
estão debaixo da autoridade de Cristo. Para o apóstolo, esse era um
cumprimento messiânico de Salmos 8.6 (“Tu o fizeste governante de
todas as obras de tuas mãos; colocaste tudo debaixo de seus pés”) e de
Salmos 110.1 (“O SENHOR disse a meu Senhor: ‘Senta-te à minha direita
até que eu faça de teus inimigos um estrado para teus pés’”). Assim
como a humanidade recebeu domínio sobre a criação física para
governá-la (Sl 8.6), Cristo recebeu agora domínio sobre todo o reino
dos espíritos e anjos em virtude de sua ressurreição e exaltação. No
entanto, o domínio de Cristo se estenderá muito além da esfera
espiritual e incluirá toda a criação. Nesse contexto, Paulo enfatiza o
senhorio imediato de Cristo sobre o mundo angelical.
Salmos 110.1 é uma das passagens do Antigo Testamento citadas
com mais frequência por autores cristãos primitivos. Costumava ser
usada para interpretar a entronização de Cristo por Deus. Os
“inimigos” nesse salmo eram sempre identificados com os poderes
invisíveis que Cristo havia derrotado e subjugado.12 Paulo, em sua
interpretação desse salmo, apresentou uma lista representativa dos
poderes que Cristo conquistou. A subjugação dos poderes do mal por
Cristo cumpre, portanto, a expectativa do Antigo Testamento.
Paulo deu mais explicações sobre o domínio universal de Cristo e
disse que Deus havia designado Cristo para ser o “cabeça” governante
de tudo para a igreja (Ef 1.22-23). Embora os poderes ainda não
reconheçam voluntariamente sua liderança e superioridade e prossigam
com suas atividades hostis, no final terão de prestar contas a Cristo e
reconhecer que ele é seu governante e Senhor (Ef 1.10; Fp 2.10).
Para os cristãos no oeste da Ásia Menor que temiam a hostilidade
constante dos poderes, essa passagem deve ter se mostrado
especialmente apropriada e consoladora. Para os cristãos de hoje que
têm discernimento suficiente para enxergar o impacto das obras
malignas do Diabo e de seus poderes em suas muitas formas, essa
passagem deve ser fonte de ânimo e inspirar confiança.
Os poderes como prisioneiros de Cristo (Ef 4.8-10)
Paulo usou Salmos 68.18 para desenvolver sua argumentação em defesa
da supremacia de Cristo sobre os poderes das trevas ao interpretá-los
como prisioneiros derrotados em combate. Também usou esse salmo
para apresentar uma discussão sobre as pessoas com dons que Cristo
provê para a igreja. O salmo é citado da seguinte forma em Efésios 4.8:
“Quando ele subiu para o alto, levou cativos em suas fileiras e deu dons
aos homens”. Embora Paulo use o salmo principalmente como
introdução para sua apresentação sobre os dons, seus comentários sobre
subir para o alto com cativos não é acidental.
Ao explicar o salmo, Paulo disse que Cristo desceu “às mais baixas
profundezas da terra” (TEV) antes de sua ascensão (Ef 4.9-10). É
provável que essa descrição se refira à descida de Cristo ao mundo dos
mortos, expressa de modo mais completo em 1Pedro 3.18-22,13 quando
Cristo possivelmente proclamou sua vitória sobre todos os anjos e
espíritos caídos e os advertiu sobre sua destruição iminente. Essa
passagem fornece, portanto, mais evidências da universalidade do
senhorio de Cristo.
Esse texto deve ter sido especialmente significativo para as pessoas do
primeiro século que tinham grande temor do mundo dos mortos e
adoravam suas divindades.14 Na crença popular, Ártemis, Hécate e
Selene eram deusas que, supostamente, exerciam poder sobre o mundo
dos mortos. Em vários papiros se diz até que Hécate era portadora das
“chaves do Hades”, uma função atribuída exclusivamente a Cristo em
Apocalipse 1.18.
Nessa passagem, Cristo é retratado como alguém mais poderoso do
que todos que o mundo dos mortos representa. Em Filipenses 2.10,
texto em que a supremacia universal de Cristo é louvada, Paulo
expressa a mesma ideia: “Portanto, Deus o exaltou à mais alta posição e
lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de
Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da terra, e toda
língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para a glória de Deus Pai”
(Fp 2.9-11, grifo do autor).
Embora Cristo sempre tenha sido soberano por ser o Criador, ele
ainda precisava derrotar esses poderes rebeldes. A cruz, a ressurreição e
a exaltação de Cristo são a base para sua vitória sobre os poderes.
Como veremos no capítulo seguinte, a base para nossa vitória sobre
esses poderes também está enraizada na morte, ressurreição e exaltação
de Cristo.
1 Por ironia, quando, em um momento anterior de seu ministério, Jesus falou sobre sua morte
iminente, Pedro tentou dissuadi-lo da necessidade da cruz, e Jesus respondeu: “Para trás de
mim, Satanás!” (Mt 16.23). Ao que parece, os poderes a serviço de Satanás estavam confusos a
respeito de como Deus cumpriria seus propósitos salvíficos por meio de Cristo. Ainda assim, à
medida que se aproxima o momento do sofrimento de Jesus, fica evidente que Satanás se
empenhou para que ocorresse a morte física de Jesus.
2 BAGD, p. 417.
3 Em tempos mais recentes, essa ideia foi proposta por Gordon D. Fee, The First Epistle to
the Corinthians, New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids:
Eerdmans, 1987), p. 101-7 [publicado em português por Vida Nova sob o título 1Coríntios:
comentário exegético]. No parecer de Fee, o termo governantes se refere não apenas às pessoas
responsáveis pela crucificação, mas também aos líderes desta era em sentido mais amplo, o que
abrange o “sábio” de 1.20 e 2.6.
4 Devo essa observação a Otto Everling, Die paulinische angelologie und dämonologie
(Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1988), p. 13.
5 Tradução para o inglês de J. B. Lightfoot, The Apostolic Fathers (Grand Rapids: Baker,
1978), p. 153.
6 Considero necessário fazer distinção entre essa interpretação e a de Oscar Cullmann. De
acordo com Cullmann, a intenção de Paulo era fazer uma referência dupla, tanto às autoridades
humanas quanto aos poderes angelicais, ao usar o termo governante. O termo em si tem apenas
um referente em um contexto e, aqui, o contexto aponta para governantes demoníacos. O
resultado de minha interpretação, pelo menos dessa passagem, na verdade não fica muito
distante da interpretação de Cullmann. Veja Oscar Cullmann, Christ and time (London: SCM,
1951), p. 191-210 [publicado em português por Fonte Editorial sob o título Cristo e o tempo].
7 BAGD, p. 173.
8 E. F. Scott, The Epistles of Paul to the Colossians, to Philemon, and to the Ephesians
(London: Hodder & Stoughton, 1930), p. 189.
9 Para um estudo criterioso desse tema, veja L. Williamson, “Led in triumph: Paul’s use of
thriambeuo”, Interpretation 22 (1968): 317-22.
10 Eduard Lohse, Colossians and Philemon, Hermeneia (Philadelphia: Fortress, 1971), p.
112.
11 Para um estudo detalhado dessa passagem, veja Clinton E. Arnold, Ephesians: power and
magic (Cambridge: Cambridge University Press, 1989), p. 52-6, 70-85.
12 Veja David M. Hay, Glory at the right hand: Psalm 110 in early Christianity (Nashville:
Abingdon, 1973).
13 Quanto a essa passagem, veja as excelentes considerações de J. Ramsey Michaels, 1 Peter,
Word Biblical Commentary 49 (Waco: Word, 1988), p. 194-222. Para Michaels, a referência de
Pedro à proclamação feita por Cristo aos espíritos em refúgio (ou “em prisão”) é “a maneira de
Pedro de dramatizar concretamente a universalidade do senhorio de Cristo, que ele deixa claro
no v. 22: ‘a ele estão sujeitos anjos, autoridades e poderes’” (p. 206).
14 Veja minha discussão sobre essa passagem em Ephesians: power and magic, p. 56-8.
A
8
Um novo reino e uma nova
identidade para os crentes
lguns anos atrás, enquanto eu dirigia na estrada, um adesivo no
carro à minha frente chamou minha atenção. Dizia: “Cristãos
não são perfeitos; são apenas perdoados”. Por alguns anos, esse
epigrama circulou amplamente entre cristãos. Parecia fornecer
uma resposta para as acusações de hipocrisia feitas contra a igreja pelos
de fora (e talvez aliviasse a consciência dos cristãos quenão respeitavam
os limites de velocidade!), ao mesmo tempo que transmitia uma verdade
doutrinária fundamental: o perdão de pecados.
Não tenho objeções à mensagem comunicada por esse adesivo.
Desaprovo, contudo, a atitude simplista quanto à conversão que essa
declaração pode produzir. Cristãos são, verdadeiramente, pessoas
perdoadas. Contudo, muito acontece nos bastidores da conversão.
Quem se torna cristão passa a ser de fato uma nova pessoa e membro
de um novo reino com um Senhor absolutamente poderoso e amoroso.
O recém-convertido é divinamente resgatado da escravidão em um reino
controlado por forças malignas sobrenaturais. E muito mais. Tornar-se
cristão não é apenas decidir seguir a Cristo; também é uma obra
redentora divinamente poderosa realizada por Deus.
Cristãos recebem uma nova identidade. Sua nova condição se torna a
base para mudar seu modo de viver na terra. Como disse um
proeminente estudioso do Novo Testamento, viver a vida cristã consiste
em “nos tornar aquilo que somos”. Em certo sentido, é verdade que os
cristãos não são perfeitos, mas estão “em obras”. Em outro sentido, na
presença de nosso Deus justificador, os cristãos são perfeitos.
Como crentes, temos de saber quem somos agora; em outras
palavras, temos de conhecer nossa nova identidade no relacionamento
com Cristo. Esse conhecimento é a base para nosso comportamento e
para resistir aos poderes sobrenaturais das trevas.
Resgatados do reino das trevas
Assim como Deus libertou Israel da escravidão no Egito, Cristo
resgatou os crentes do domínio de Satanás e de seus poderes do mal.
Aos colossenses, Paulo diz: “Pois ele nos resgatou do domínio das trevas
e nos transportou para o reino de seu Filho amado, em quem temos a
redenção, o perdão dos pecados” (Cl 1.13). Por trás dessa declaração se
encontra o Êxodo como modelo definidor de libertação. Paulo usou o
mesmo termo para “resgatar/libertar” que ocorre repetidamente em
todo o Antigo Testamento grego para descrever a libertação de Israel da
servidão no Egito (veja, p. ex., Êx 6.6; 14.30).
A libertação da escravidão do reino de Satanás também ocupa o
cerne do conceito paulino de “redenção”.1 Também nesse caso, Paulo
usou a mesma terminologia que ocorre no relato do Êxodo para
descrever o resgate de Israel. Êxodo 6.6 diz: “Eu os livrarei de serem
escravos deles e os resgatarei com braço estendido” (TA). Aqui, o
conceito de redenção parece servir de ponte entre dois resultados da
obra de Cristo na cruz: libertação do reino de Satanás e perdão do
pecado. O conceito de Paulo de redenção, importante para seu
entendimento da morte de Jesus (veja p. ex. Rm 3.24; 1Tm 2.6) é amplo
o suficiente para abranger os dois conceitos. Alguns segmentos do
judaísmo desejavam que o Messias resgatasse seu povo do reino do
Diabo. Um documento judaico do segundo século, por exemplo,
declara: “Ele libertará [ou ‘resgatará’] de Belial todo cativo dos filhos
dos homens, e todo espírito de erro será pisoteado” (Testamento de
Zebulom 9.8). Cristo é “nossa redenção” (1Co 1.30) em virtude de sua
obra na cruz, onde ele não apenas pagou o resgate pelo pecado, mas
também destruiu o poder da influência do domínio maligno (Cl 2.14-
15).
Nessa passagem de Colossenses, Satanás é descrito como “autoridade
das trevas”. Essa expressão destaca seu governo sobre um domínio. O
domínio abrange os diversos poderes das trevas mencionados ao longo
do restante da Carta de Paulo aos Colossenses: poderes, autoridades,
espíritos elementares e assim por diante. Também abrange seus cativos,
todos que não são membros do reino de Cristo.
Trevas e luz são as metáforas contrastantes escolhidas por Paulo para
descrever a natureza dos dois reinos antagônicos. Paulo usou essas
imagens em outros textos para descrever os dois reinos conflitantes. Em
2Coríntios, ele diz: “Que comunhão pode ter a luz com as trevas? Que
harmonia existe entre Cristo e Belial?” (2Co 6.14-15). Faz-se distinção
aqui entre os respectivos líderes de cada domínio.
Os crentes foram desarraigados de um domínio e transplantados para
outro. Quando Paulo disse que Deus nos “transportou” para o reino de
seu Filho amado, usou terminologia que talvez lembrasse seus leitores
judaicos de deportação e colonização políticas. De acordo com o
historiador judeu Josefo, Antíoco “transferiu” vários milhares de judeus
para a Ásia Menor no século 2 a.C.2
Os seguidores de Cristo têm verdadeiramente uma nova cidadania.
Fomos resgatados das garras dos poderes das trevas. Essa ação “nos
bastidores” ocorre na conversão e é representada pelo rito do batismo.
Voltar-nos para Cristo envolve uma obra poderosa de Deus em nosso
favor. Alguns talvez tenham a “sensação” de que a conversão é uma
decisão pessoal, mas um resgate que não conseguimos enxergar ocorre
no mundo invisível.
Não devemos ser tentados a imaginar que somente pessoas
envolvidas com ocultismo e com a adoração a Satanás são escravas do
“domínio das trevas”. Paulo deixou claro que todos que não são crentes
(isto é, que não estão no reino de Cristo) são escravos dos poderes
hostis. Esse conceito é especialmente difícil de ser compreendido pelos
ocidentais, mas, ainda assim, é verdadeiro. Até mesmo aqueles que têm
moralidade elevada, que obedecem às leis civis e parecem ser membros
produtivos da sociedade são cativos do domínio de Satanás caso não
sejam crentes.
Paulo explicou de várias maneiras a nova identidade daqueles que
foram feitos membros do reino de Cristo. Entender essa nova condição
é essencial para resistir à contínua influência hostil dos poderes do
antigo domínio e viver em conformidade com os padrões éticos do reino
de Deus. Investigaremos alguns dos conceitos paulinos do significado da
vida nova em Cristo especialmente relevantes para adquirirmos uma
perspectiva correta da vida cristã à luz da oposição que enfrentamos dos
poderes das trevas.
Em Cristo
A expressão predileta de Paulo para descrever a situação do crente é
“em Cristo”. Essa expressão (e seus cognatos) ocorre mais de duzentas
vezes nos escritos de Paulo. É repleta de profundo significado para
entender quem somos como povo remido de Cristo. Sua frequência
destaca o desejo de Paulo de que os crentes se vejam ligados de modo
próximo a seu Senhor vitorioso.
Para começar a explicar essa condição, podemos descrever o que ela
não é. Deve ser distinguida de viver “em trevas”, “em pecado”, “no
mundo”, “em Adão” e “na carne”. É interessante que Paulo nunca disse
que a vida pré-cristã era vivida “em Satanás” ou “no Diabo”. Esse fato
ressalta o relacionamento qualitativamente diferente que há entre o
crente e Cristo, em comparação com o descrente e o Diabo.
Quem está “em Cristo” passou por uma mudança fundamental.
Paulo diz: “Se alguém está em Cristo, é nova criação; as coisas antigas
já passaram, e surgiram coisas novas!” (2Co 5.17,TA). Uma atividade
criadora divina ocorre na vida de quem se torna cristão. Donald
Guthrie explica que ela se refere “à morte da antiga criação, dominada
por forças espirituais adversas, e ao surgimento da nova criação, em que
tudo tem Cristo como centro”.3
Estar “em Cristo” também reflete iniciação em uma nova era. A
morte e a ressurreição de Cristo deram início à “era vindoura”, que
consiste em vida, justiça, paz e alegria. De modo contrastante, Adão
representa a vida na presente era. Por meio de Adão vieram o pecado, a
condenação e a morte (Rm 5.12-14). Logo, Paulo pode dizer: “Pois da
mesma forma que, em Adão, todos morrem, em Cristo todos serão
vivificados” (1Co 15.22).
O conceito paulino de estar “em Cristo” não é uma ideia mística de
absorção em uma divindade concebida de forma panteísta e que produz
perda de individualidade, como uma gota de água que cai no oceano.
Em Cristo, a identidade é mantida, mas a característica distintiva é a
unidade e o relacionamento com um líder que dá poder e direção. Essa
verdade fica mais evidente no conceito de Paulo de que os crentes são
membros do “corpo de Cristo”.
Unidos a Cristo e uns aos outros
A nova identidade dos crentes também deve ser entendida em relação aoque Paulo chamou “corpo de Cristo”. A obra do Espírito Santo une
todos os novos crentes ao corpo de Cristo na conversão (1Co 12.13). A
imagem do corpo é um dos métodos de Paulo para retratar a
solidariedade dos crentes uns com os outros e sua proximidade de
Cristo. Paulo enfatizou a interdependência dos diversos membros do
corpo, pois Deus concedeu a cada pessoa uma aptidão especial
(charisma) para ministrar a outros (1Co 12.1-30).
Quando Paulo escreveu aos efésios e aos colossenses, desenvolveu
ainda mais essa imagem ao descrever Cristo como o “cabeça” do corpo
(Ef 1.22-23; Cl 1.18). Paulo deixou implícito que, como “cabeça”,
Cristo atua não apenas como líder, mas também como “o poder que
inspira, governa, guia, combina e sustenta, a fonte de sua atividade, o
centro de sua unidade, a sede de sua vida”.4 O cabeça verdadeiramente
confere poder ao corpo e o capacita para que cumpra sua missão apesar
da intensa hostilidade demoníaca. O cabeça pode desempenhar esse
papel porque Deus exaltou Cristo e colocou todos os poderes
demoníacos malignos debaixo de seus pés (cf. Ef 1.22). Nós, crentes,
devemos atender aos impulsos direcionadores do cabeça e receber seu
poder capacitador.
A mesma ideia é manifestada pela imagem paulina da igreja como
noiva de Cristo (Ef 5.22-33). Essa imagem, mais do que todas as outras,
enfatiza a proximidade e a intimidade que Cristo deseja ter com seu
povo. Cristo não apenas ama seu povo e sacrifica sua vida por ele, mas
também “o alimenta e dele cuida” (Ef 5.29). De seus recursos divinos,
ele dá aos membros de seu corpo tudo de que precisam para a vida e a
piedade.
Mortos, ressuscitados e exaltados
Enquanto os poderes governam um domínio de morte, todos que
conhecem Cristo receberam vida. Deus pode conceder vida aos
membros de seu povo somente por meio da identificação deles com a
obra de Cristo, especialmente com sua morte e ressurreição. O batismo
simboliza essa unidade com Cristo, como Paulo explica: “Portanto,
fomos sepultados com ele na morte por meio do batismo a fim de que,
assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos mediante a glória do Pai,
também vivamos uma vida nova” (Rm 6.4).
A verdadeira liberdade vem da identificação com a morte de Jesus —
liberdade do pecado, da morte e do controle dos principados e poderes.
Embora essa liberdade seja definitiva e absoluta à medida que existimos
para a era vindoura, precisamos nos apropriar dela enquanto ainda
vivemos na presente era e temos um corpo corruptível. Por isso, Paulo
considerou necessário admoestar seus leitores ao procurar convencê-los
de que estão mortos para o pecado. Ele insistiu com os cristãos
romanos: “Considerem-se mortos para o pecado, mas vivos para Deus
em Cristo Jesus” (Rm 6.11), porque “morrendo, ele [Cristo] morreu
para o pecado de uma vez por todas; mas vivendo, vive para Deus” (Rm
6.10). Como crentes, o pecado não tem mais influência irresistível sobre
nós. Portanto, podemos rejeitá-lo.
De modo semelhante, no que diz respeito aos poderes demoníacos, os
cristãos precisam crer que verdadeiramente não são obrigados a se
render a sua influência. Paulo tem de lembrar os cristãos colossenses de
que morreram para os poderes demoníacos. Ele diz: “Se vocês
morreram com Cristo para os espíritos elementares do universo, por
que vivem como se ainda pertencessem ao mundo?” (Cl 2.20, RSV). Os
crentes colossenses estavam sendo tentados a seguir os princípios de um
ensinamento falso que, no parecer de Paulo, era inspirado pelos
próprios poderes malignos. Quaisquer que sejam as manifestações da
influência dos poderes hostis, os crentes têm força para resistir. A força
vem de sua identificação com a morte de Cristo. Na cruz, ele derrotou o
pecado, a morte e os poderes das trevas.
Parte da dificuldade é associada a desmascarar a influência dos
poderes malignos. É possível que os cristãos colossenses estivessem
aceitando sem questionar os ensinamentos falsos que lhes eram
apresentados, pois imaginavam que fossem proveitosos para sua
espiritualidade. No entanto, Paulo revelou em sua Carta aos
Colossenses a verdadeira natureza demoníaca desses ensinamentos.
Também precisamos da capacitação da sabedoria de Deus para
discernir criteriosamente a natureza de todos os ensinamentos.
A autoridade dos crentes sobre os poderes malignos é arraigada em
sua identificação com a ressurreição e a exaltação de Cristo. Essa
autoridade é explicada de modo mais claro na Carta de Paulo aos
Efésios, uma carta em que Paulo se mostrou preocupado com a questão
dos poderes malignos. Em Efésios 1, ele louvou o poder
incomparavelmente formidável de Deus, por meio do qual ele
ressuscitou e exaltou Cristo a um lugar “muito acima” de toda posição
hierárquica na ordem dos poderes das trevas (Ef 1.19-22). Em Efésios 2,
ele aplicou essa cristologia exaltada diretamente ao cristão: “E Deus nos
ressuscitou com Cristo e com ele nos fez assentar nas regiões celestiais
em Cristo Jesus” (Ef 2.6). A implicação desse fato para os crentes no
tocante aos poderes é clara quando levamos em conta o contexto que
norteia essa passagem. Assim como Cristo ocupa um lugar de
superioridade aos poderes, também os crentes ocupam um lugar de
superioridade à autoridade e às forças do Diabo. O poder que
ressuscitou Jesus dos mortos é o mesmo poder agora disponível para os
crentes. Portanto, o apóstolo pode orar para que os efésios se tornem
cada vez mais conscientes desse recurso divino. Ele disse aos efésios:
“Oro também para que os olhos de seu coração sejam iluminados, a fim
de que vocês conheçam [...] a incomparável grandeza de seu poder para
conosco, os que cremos” (Ef 1.18-19). Essa verdade é especialmente
relevante no contexto mais amplo da Carta de Paulo aos Efésios, pois
torna-se a base doutrinária para sua discussão posterior sobre a guerra
espiritual em Efésios 6.10-20.
Paulo também declarou a mesma verdade aos colossenses, que
estavam lutando contra a influência dos poderes das trevas. Lembrou-os
de que haviam sido sepultados com Cristo e ressuscitados com ele pela
fé no poder de Deus (Cl 2.12). Com base na identificação deles com a
obra de Cristo, Paulo os admoestou a se considerarem mortos para os
poderes malignos (Cl 2.20) e vivos para Cristo, pois foram ressuscitados
com ele (Cl 3.1). Paulo deu a esses crentes uma das promessas mais
consoladoras do Novo Testamento: “Pois vocês morreram, e agora sua
vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3.3). De modo prático, o
ensino de Paulo sobre o relacionamento dos cristãos colossenses com
Cristo significava que eles tinham poder para resistir à influência de
falsos ensinamentos prejudiciais e para alinhar sua conduta de modo
mais próximo com os desejos de Deus. Também não deviam continuar
a ter medo da influência de poderes demoníacos, que haviam lhes
causado temor antes da conversão e que seus amigos e vizinhos
continuavam a temer.
A identificação com Cristo em sua morte e ressurreição é uma
verdade incrivelmente importante para todos que lutam contra a
influência de forças demoníacas em sua vida. Tornar-se cristão significa
estar ligado a um Senhor poderoso que exerce autoridade irresistível
sobre a esfera das trevas.
Cheios/investidos de poder e autoridade
Paulo ensinou aos colossenses que foi do agrado de Deus que habitasse
em Cristo toda a “plenitude” (plērōma) divina (Cl 1.19). O apóstolo
reafirmou essa ideia em sua carta para eles: “Pois em Cristo toda a
plenitude da divindade habita corporalmente” (Cl 2.9). Paulo fez essa
declaração no texto porque desejava relacioná-la à igreja colossense:
não é apenas mais uma verdade louvável a respeito do Cristo
onipotente, mas algo de grande importância para a vida diária dos
crentes. O apóstolo prosseguiu: “E vocês receberam a plenitude em
Cristo, o cabeça de todo poder e autoridade” (Cl 2.10).
Observe que Paulo associou o fato de os colossenses terem
“plenitude” (plērōma) divina com a supremacia de Cristo sobre os
poderes demoníacos. Por quê? Paulo estava tentando convencer os
colossenses de que haviam sido investidos de poder e autoridade sobreo
âmbito demoníaco. O apóstolo poderia muito bem ter omitido essa
declaração. Ao que parece, ele aplicou de modo específico o significado
de estarem cheios de recursos de Deus a sua luta com os poderes.
O verbo que Paulo empregou aqui está no tempo perfeito grego e é
traduzido por “vocês receberam a plenitude”. Nesse caso, Paulo
desejava comunicar a esses crentes que, quando se tornaram cristãos,
receberam essa dádiva; mais importante que isso, porém, é o fato de que
a “plenitude” divina continua disponível para eles como provisão de
Deus no conflito em andamento com o reino de Satanás.
O termo plenitude se refere a muito mais do que apenas poder e
autoridade sobre as forças das trevas. Para a maioria dos estudiosos, diz
respeito a uma porção de coisas relacionadas a Deus, que abrangem seu
poder, sua essência, sua glória, sua presença e seu amor. É provável que
tenha em segundo plano a ideia da shekiná no Antigo Testamento:
“Olhei e vi a glória do SENHOR enchendo o templo do SENHOR” (Ez
44.4). Essa é quase uma sobreposição com a obra do Espírito Santo que
enche o crente.5
Cabe ao cristão se apropriar dessa “plenitude”. Paulo considerou
necessário orar para que os efésios fossem “cheios de toda a plenitude
de Deus” (Ef 3.19). Embora a plenitude de Deus esteja disponível para
o crente, precisa ser recebida e usada. Crença e oração se tornam fatores
extremamente importantes para a apropriação desses recursos.
O Espírito e os dons
A vida cristã é caracterizada pelo recebimento do Espírito Santo. Ter o
Espírito é o que distingue os cristãos dos não cristãos (1Co 2.10-14).
“Para Paulo, ter o Espírito é o elemento indispensável para a vida
cristã”.6 O Espírito é, portanto, a base para a nova identidade do
crente.
Na época de Paulo, as pessoas acreditavam na existência de espíritos
que podiam entrar em indivíduos e alterar seu comportamento. De
modo contrastante, Paulo fala repetidamente de um espírito divino
específico cuja habitação no interior do indivíduo ele favorecia
exclusivamente. Esse espírito divino é de natureza qualitativamente
distinta dos espíritos que as pessoas conheciam nas religiões helenísticas
e na magia. Esse único “Espírito Santo” é relacionado de modo
próximo ao único Deus e a Cristo. Aliás, o Espírito é chamado
“Espírito de Deus” (Rm 8.14) e “Espírito de Cristo” (Rm 8.9). Ele é
enviado por Deus e revela Deus para nós (2Co 2.12; Gl 4.6), pois
conhece as coisas profundas de Deus (1Co 2.10-11). Esse Espírito é o
único ser espiritual que, de acordo com Paulo, deve ter um lugar na vida
do crente.
Enquanto na magia popular um espírito sobrenatural (“um assistente
divino”) costumava ser invocado para realizar a vontade de quem o
recebia, Paulo considerava que o Espírito Santo vinha para realizar
somente a vontade e o propósito do único Deus, que se revelou a Israel
como Deus “santo”. Ele havia ordenado a seu povo: “Sejam santos
porque eu, o SENHOR, o Deus de vocês, sou santo” (Lv 19.2). De modo
semelhante, o Espírito de Deus é “santo” e almeja promover a santidade
no meio das pessoas nas quais ele habita. O Espírito estimula virtudes
como bondade, amor, alegria e paz, e capacita os crentes a se livrarem
das coisas impuras que fazem parte de sua vida (Gl 5.16-26). O Espírito
é, com efeito, a provisão divina para conceder poder aos cristãos a fim
de que façam “morrer os delitos do corpo” (Rm 8.13).
O Espírito Santo atua no contexto da solidariedade conjunta dos
crentes. É o Espírito que nos une a Deus e que nos liga com fortes
vínculos a outros crentes, formando o corpo de Cristo. Ao refletir sobre
a unidade dos crentes no corpo, Paulo observa: “Pois todos nós fomos
batizados por um só Espírito em um só corpo, quer judeus, quer gregos,
quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só
Espírito” (1Co 12.13). Quando alguém se torna cristão, recebe o
Espírito Santo, que o inclui na comunidade cristã. As metáforas
expressivas de “batizar” e “beber” enfatizam a realidade e a extensão
dessa dádiva divina: “ser imersos no Espírito e beber profundamente do
Espírito”.7 Essa experiência em comum do Espírito constitui a base da
unidade para todos os cristãos e torna todos os crentes parte do corpo
único de Cristo.
Entre os crentes, a mutualidade faz parte do plano divino. Os cristãos
não podem ser individualistas. Nenhum crente tem todos os dons do
Espírito. Antes, cada crente recebe dons do Espírito de forma singular
para ajudar outros a crescer em sua vida cristã (1Co 12). O exercício
constante desses dons inspirados pelo Espírito (charismata) por parte
dos membros da igreja é essencial para o progresso contínuo de todos
os membros do corpo.
No modo de pensar de Paulo, ninguém pode experimentar o
suficiente da presença do Espírito que proporciona inspiração e poder.
Paulo instou com os crentes para que sempre buscassem uma
manifestação mais plena da presença e da obra do Espírito (Ef 5.18).
Ele desejava que fossem continuamente “enchidos” com o Espírito, que
se manifestaria na qualidade da adoração na comunidade: eles falariam
“entre si com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando
de coração ao Senhor” (Ef 5.19). Ser “enchidos” pelo Espírito
certamente produziria também o uso contínuo dos dons edificadores do
Espírito e reforçaria o cultivo da virtude cristã. Tudo isso forma um
contraste gritante com o mundo do qual tinham vindo os leitores
efésios. Paulo prefacia todos os seus comentários sobre o Espírito nesta
passagem com a admoestação: “Não se embriaguem com vinho”. É
possível que a embriaguez e o frenesi das farras associadas ao culto ao
deus Dionísio, divindade do vinho, constituam o cenário cultural geral
dessa declaração.8 Os leitores do primeiro século foram instruídos a
deixar de lado a embriaguez e a inspiração de qualquer outro espírito
ou de qualquer outra divindade (como Dionísio) e a se render
inteiramente ao Espírito Santo de Deus. Deviam se permitir ser enchidos
completamente com o Espírito de Deus e dar graças a Deus Pai.
Somente ele pode animar o coração e dar alegria. Em virtude da
presença do Espírito, podemos “cantar e louvar de coração ao Senhor”.
Seguros e protegidos
Paulo atestou com eloquência a segurança daqueles que estão “em
Cristo” diante de todos os poderes hostis concebíveis. Ele foi além da
segurança e retratou os crentes envoltos pelos braços de um Deus
amoroso, sempre protegidos e sempre sob seus cuidados.
Para encerrar uma seção na qual descreveu a natureza da vida no
Espírito, Paulo chamou a atenção de seus leitores para o amor e para o
poder de Deus em Cristo. Ele observa:
Pois tenho certeza de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem
principados, nem coisas do presente, nem coisas por vir, nem
poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra coisa na
criação poderá nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus, nosso
Senhor (Rm 8.38-39, RSV).
Embora em toda a Carta aos Romanos Paulo tenha tratado
principalmente das influências do pecado, da lei, da carne e da morte
sobre o crente, aqui ele voltou sua atenção para uma lista mais
abrangente de forças que poderiam nos separar de Deus. Seu enfoque
foi principalmente sobre espíritos hostis e forças angelicais contra as
quais lutamos. Esse fato se evidencia de modo especial em suas
referências a “anjos”, “principados”, “poderes” e, possivelmente, a
“altura” e “profundidade”.
Principados e poderes aparecem em todas as cartas de Paulo como
seres espirituais que ele considerava hostis ao povo de Deus. Nesse
contexto, anjos devem ser entendidos como os anjos maus e rebeldes
que atuam de modo semelhante aos principados e poderes. Paulo
empregou o termo anjo com esse sentido (veja 2Co 12.7; Cl 2.18), e ele
era amplamente usado no judaísmo para descrever seres sobrenaturais
aliados a Satanás.
Ao que parece, Paulo pode ter usado as palavras altura e
profundidade como forma abrangente de se referir a todos os espíritos
astrais que controlavam o destino humano, conforme comumente se
acreditava. Em textos de astronomia, os dois termos parecem ser
técnicos. Eramempregados com frequência para falar do zênite ou do
nadir das estrelas, isto é, do ponto mais alto e do ponto mais baixo
alcançado por um corpo celeste. Talvez seja intencional que, logo em
seguida, Paulo se refira literalmente, a “nem qualquer outra coisa na
criação”, ou “nem qualquer outra criatura” (ARA). Na opinião de
alguns comentaristas, essa referência confirma que Paulo tem em mente
espíritos astrais quando usa altura e profundidade. J. D. G. Dunn
observa sobre essas duas palavras: “Paulo se vale propositadamente de
termos astronômicos correntes para denotar toda a extensão dos céus
visíveis e invisíveis ao olho humano e, portanto, todos os poderes
astrológicos conhecidos e desconhecidos que supostamente definiam e
controlavam a sorte e o destino dos seres humanos”.9
Em Cristo, nada pode nos separar do rico amor de Deus derramado
sobre nós. Nem mesmo os poderes das trevas, não importa como sejam
entendidos, são capazes de romper a união entre Deus e seu povo. Isso
não significa que esses principados e poderes não tentarão fazê-lo.
Nosso conflito com eles prossegue, mas, em Cristo, temos provisão
copiosa de poder capacitador e amor divinos para nos sustentar.
Na Segunda Carta de Paulo aos Tessalonicenses, o apóstolo declarou
a promessa divina de proteção de modo bem mais simples. Em uma
carta que adverte os crentes a respeito de um indivíduo “perverso”
inspirado por Satanás (2Ts 2.8-9), a garantia dada por Paulo de
proteção divina deve ter sido extremamente reconfortante. Paulo lhes
disse: “Mas o Senhor é fiel e os fortalecerá e os guardará do Maligno”
(2Ts 3.3). A promessa já havia se mostrado verdadeira na experiência
dos tessalonicenses como recém-convertidos. Na carta anterior, Paulo
comentou que tinha enviado Timóteo para ver como estavam
progredindo na fé, pois teve medo de que “o tentador os seduzisse, e
nosso trabalho fosse inútil” (1Ts 3.5). Ao contrário desses receios,
Paulo descobriu que os tessalonicenses estavam crescendo na fé, apesar
de perseguição, e propagando ativamente a mensagem do evangelho. O
Senhor verdadeiramente era fiel a eles. E os fortalecia e protegia do
Maligno.
Estar protegidos de espíritos malignos era uma grande preocupação
para as pessoas que viviam no primeiro século. O termo proteger ocorre
repetidamente em papiros mágicos como parte de fórmulas cujo
propósito era oferecer proteção a quem as usasse, em especial na forma
de um amuleto mágico. Esse tipo de magia é chamado com frequência
de magia “apotropaica”, que significa, literalmente, “repelente”,
alegando proteger as pessoas de espíritos malignos.
Para Paulo, somente o único Deus verdadeiro dá “proteção”. Sua
proteção para os crentes se estende até o governo de todos os poderes
das trevas e abrange o próprio Satanás.
Embora Deus nos dê proteção, quando alguém se torna cristão não
significa que adquire imunidade automática ao âmbito demoníaco. Os
crentes precisam aprender sobre sua posição em Cristo. É exatamente
por isso que o estudo das Escrituras e de teologia é tão importante para
a vida cristã. Uma vez que Satanás é enganador e acusador, precisamos
saber a verdade a respeito de quem somos em Cristo. Temos de nos
apropriar da realidade de nossa nova identidade e valorizá-la no mais
profundo de nossa consciência para que possamos viver como pessoas
livres, resgatadas da servidão dos poderes das trevas.
Essas verdades são difíceis de entender e aceitar. Paulo sentiu
necessidade de orar e pedir ajuda do Espírito Santo para que guiasse os
cristãos efésios a fim de que abrissem o coração para elas (Ef 1.17-18).
Por certo, vários leitores de Paulo em Éfeso tinham ouvido muitas das
mesmas verdades serem ensinadas por seus mestres quando se reuniam
para prestar culto e receber instrução. Afinal, Paulo havia passado
quase três anos naquela região e transmitido pessoalmente sua doutrina
àqueles que se tornariam líderes e mestres das igrejas locais. Muitos
ainda precisavam ser convencidos. Também precisamos pedir a Deus a
ajuda iluminadora do Espírito para que possamos entender o pleno
significado da obra de Cristo por nós e de nossa nova identidade em
Cristo.
Uma vez compreendida a verdade sobre nossa nova identidade em
Cristo, temos de alinhar nossa vida com essa realidade. Precisamos
aprender a lançar mãos dos recursos disponíveis por meio de nossa
união vital com Jesus Cristo. Temos de nos apropriar da plenitude do
Espírito para viver no mundo a cada dia. E é nesse momento que temos
de falar de “guerra espiritual”.
1 Ethelbert Stauffer escreveu uma das poucas teologias do Novo Testamento que apresenta
esse aspecto com clareza e veemência (veja New Testament Theology, 5. ed. [New York:
Macmillan, 1955, p. 146-9]).
2 Josephus [Josefo], Antiquities 12.149.
3 Donald Guthrie, New Testament Theology (Downers Grove: InterVarsity, 1981), p. 648
[publicado em português por Cultura Cristã sob o título Teologia do Novo Testamento].
4 J. B. Lightfoot, Saint Paul’s Epistles to the Colossians and to Philemon (Grand Rapids:
Zondervan, 1977), p. 227. Para considerações detalhadas adicionais sobre a imagem de
“cabeça-corpo”, veja meu texto Ephesians: power and magic. The concept of power in
Ephesians in light of its historical setting, Society for New Testament Studies Monograph 63
(Cambridge: Cambridge University Press, 1989), p. 79-82.
5 G. Münderlein, “Die Erwählung durch das Pleroma”, New Testament Studies 8 (1962):
264-76. Para mais considerações, veja Ephesians: power and magic, p. 82-5.
6 Gordon D. Fee, The First Epistle to the Corinthians, New International Commentary on the
New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 603 [publicado em português por Vida
Nova sob o título 1Coríntios: comentário exegético].
7 Ibidem, p. 605. Fee propõe que essas duas orações sobre batismo e sobre beber são
paralelas e comunicam o mesmo conteúdo. Para ele, referem-se à experiência comum de
conversão dos crentes, e não a uma segunda experiência do Espírito, separada da conversão.
8 Veja Cleon L. Rogers, “The Dionysian background of Ephesians 5:18”, Bibliotheca Sacra
136 (1979): 249-57. Essa interpretação recebeu apoio de vários estudiosos, entre eles, mais
recentemente, Jacob Adai, Der Heilige Geist als Gegenwart Gottes in den einzelnen Christen, in
der Kirche und in der Welt, Regensburger Studien zur Theologie (Frankfurt am Main/Bern/New
York: Peter Lang, 1985): 222-3.
9 James D. G. Dunn, Romans 1—8, Word Biblical Commentary 38a (Waco: Word, 1988), p.
513.
A
9
A influência dos poderes
sobre os crentes
influência dolorosa do Maligno continua a ser sentida no
mundo inteiro. Os horrores da guerra, da pobreza, da
discriminação e da exploração financeira são evidentes em toda
parte. Os cristãos não parecem ser imunes às instigações de
Satanás para que pratiquem o mal. Muitos não resistem. Relatos de
adultério, conduta financeira indevida, hipocrisia, divisão e afins são
bastante típicos da igreja moderna. Muitos conselheiros pastorais
relatam inúmeros casos de cristãos que lutam com dificuldade contra o
envolvimento demoníaco direto em sua vida.
Satanás como inimigo derrotado, porém ativo
As experiências de vida deixam claro para nós que Satanás e suas forças
persistem com grande energia em suas ações malignas. Paulo, em todas
as suas cartas, tomou por certa a oposição contínua e poderosa de
Satanás ao povo de Deus, e tratou com suas igrejas sobre como reagir a
esse mal. Ao mesmo tempo, contudo, Paulo tinha convicção de que a
morte e a ressurreição de Cristo haviam derrotado e despojado os
poderes das trevas (Cl 2.15). Como entender essas duas perspectivas
aparentemente contraditórias?
Primeiro, é verdade que, na cruz, Cristo conquistou uma vitória
decisiva sobre os poderes. Em virtude de sua morte e ressurreição, ele
quebrou o domínio opressor do mal sobre a humanidade, o que lhe
permite resgatar pessoas do reino de Satanás e torná-las parte de seu
reino. Uma vez que essas forças não têm poder ou autoridade sobre
Cristo, também não têm poder ou autoridade sobre os que são
membros de seu corpo.Os crentes consentem com a influência dos
poderes malignos apenas na proporção em que não dependem dos
recursos a seu dispor em Cristo. Os crentes podem resistir às tentações
de Satanás ao pecado quando se apropriam do poder de Deus que lhes é
oferecido por meio de sua união com Cristo.
Segundo, uma batalha decisiva muitas vezes determina o resultado de
uma guerra. A vitória de Cristo na cruz definiu para sempre o resultado
do conflito de Cristo com os poderes das trevas. A guerra continua, mas
cada batalha é um confronto relativamente secundário em comparação
com a batalha vencida pela morte e ressurreição de Cristo. Oscar
Cullmann fez uma analogia proveitosa sobre o conflito de Cristo com
os poderes ao usar dois acontecimentos importantes da Segunda Guerra
Mundial: o Dia D e o Dia da Vitória na Europa.1 Ninguém duvida que
o resultado da Segunda Guerra Mundial foi decidido quando as forças
aliadas desembarcaram na Normandia em 6 de junho de 1944 (Dia D).
No entanto, o Dia da Vitória na Europa, isto é, o dia da vitória final, só
chegou em 8 de maio de 1945, quase um ano depois. Muitas batalhas
foram travadas e muitos soldados morreram, mas o fato de o inimigo
não ter conseguido impedir a invasão bem-sucedida dos aliados definiu
a guerra. Outro estudioso relaciona esses acontecimentos ao conflito de
Cristo e da igreja com os poderes:
O Dia D foi apenas um prelúdio para o Dia V, o Dia de Cristo, a
parúsia, o dia da vitória final de Deus em Cristo. É a convicção de
que, embora a campanha talvez ainda se arraste e o Dia V, o dia de
glória final, ainda não possa ser avistado, o Dia D acabou e os
poderes do mal receberam um golpe do qual jamais se recuperarão.2
A igreja continua a viver nesse período de combate com os exércitos
inimigos remanescentes. A vitória final é garantida, mas é ainda um
tempo de perigo, e há muitas batalhas a serem travadas. Satanás e seus
poderes continuam a atacar a igreja, a manter a humanidade cativa e a
promover toda espécie de mal no mundo inteiro. Os crentes
continuarão a sofrer os efeitos angustiantes do mal em grande escala
instigado pelos poderes das trevas — males como guerra, políticas
públicas moralmente deploráveis, crimes, violência de gangues e afins.
Contudo, os poderes não podem mais nos fazer prisioneiros, nos
separar de Deus e nos manter em pecado. Temos liberdade em Cristo.
Temos uma mensagem de redenção e de liberdade a proclamar.
A natureza tripla das influências malignas
Neste livro, o enfoque sobre o tema dos principados e poderes pode
levar o leitor a concluir que Paulo atribuía uma raiz demonológica a
todo o mal. Não é o caso. O conceito paulino da natureza da influência
maligna sobre as pessoas é bastante equilibrado.
Em Efésios 2.1-3, Paulo diz que o comportamento pecaminoso nasce
de três influências persuasivas que podemos visualizar como três fios
combinados para formar uma corda resistente. Essa corda amarra os
descrentes firmemente e os mantém em escravidão no reino das trevas.
Pode ser proveitoso retratar essas três fontes de influência maligna da
seguinte forma:
1. O mundo: “a ordem deste mundo”
2. O Diabo: “o príncipe do reino do ar”, “o espírito que agora atua
nos desobedientes”
3. A carne: “as vontades de nossa natureza pecaminosa [...] seus
desejos e pensamentos”.
Do modo mais simples possível, podemos categorizar essas três
influências como “o mundo, o Diabo e a carne”. No entanto, temos de
considerar em mais detalhes o que Paulo disse de forma específica.
Nessa passagem, Paulo estava revelando a natureza da vida de seus
leitores antes de se voltarem para Cristo. Aqui, um conjunto de
princípios dominantes nos ajuda a entender o conceito paulino de que o
mal influencia a vida das pessoas em geral, sejam elas cristãs ou não
cristãs. Os cristãos ainda precisam combater as mesmas fontes de
influência maligna por meio do poder de Cristo. Aqueles que não são
crentes, e estão, portanto, separados de Cristo, encontram-se
escravizados por essas influências e não têm poder nem capacidade de
escapar.
Quando Paulo falou da “ordem deste mundo”, tinha em mente a
poderosa influência das atitudes, dos hábitos e das preferências sociais
contrários aos padrões de santidade de Deus. Literalmente, o texto
culpa o caráter da “era deste mundo”. Há um contraste nítido entre o
caráter “desta era” e o da “era vindoura”. John R. W. Stott descreve
muito bem o caráter da “era deste mundo”:
As duas palavras, “era” e “mundo,” expressam todo o sistema social
de valores contrário a Deus. Esse sistema permeia e, na verdade,
domina toda a sociedade não cristã e mantém as pessoas em
cativeiro. Onde quer que pessoas estejam sendo desumanizadas —
por opressão política ou tirania burocrática; por uma perspectiva
secular (que rejeita Deus), amoral (que rejeita absolutos) ou
materialista (que exalta o mercado de consumo); por pobreza, fome
ou desemprego; por discriminação racial; ou por qualquer forma de
injustiça — ali podemos detectar os valores sub-humanos “desta era”
e “deste mundo”.3
Essa influência começa quando a pessoa nasce, com os valores que lhe
são transmitidos por seus pais e pela família mais ampla. É reforçada ao
longo de toda a vida, tanto formal quanto informalmente, por meio do
sistema de ensino e da mídia, bem como por pressão de pares. Continua
a ser transmitida por meio de formas de pensar, tradições, costumes e
até mesmo instituições. Isso não significa que tudo na sociedade é mau.
No entanto, há muita coisa na sociedade que nos afasta de Deus.4
“O príncipe do reino do ar”, a segunda influência maligna que Paulo
retratou, é um ser sobrenatural poderoso encarregado de toda a hoste
de espíritos malignos que, de acordo com a crença dos antigos, residia
no ar. Esse governante é, mais precisamente, um “espírito”, e Paulo
descreveu seu método de forma bastante imediata e direta: “O espírito
que agora atua nos [ou entre os] desobedientes”. Seria impreciso dizer
que todos que desobedecem a Deus estão “possuídos” por um espírito
maligno. No entanto, Paulo deixou claro que esse agente perverso e seus
emissários exercem um tipo de influência bastante próximo e pessoal
sobre indivíduos. Esse espírito exerce forte influência persuasiva,
embora muitas traduções em nosso idioma não captem essa descrição.
Quando Paulo disse que o príncipe “atua”, usou uma palavra que fazia
parte de seu vocabulário de poder e que pode ser traduzida por: “O
espírito que agora opera poderosamente...”. A GNB traduz por “o
espírito que agora controla as pessoas”. Observe que Paulo enfatiza
aqui a obra do espírito maligno em pessoas, e não em instituições.
A última influência maligna que Paulo ressaltou foi o que ele chamou
“a carne”. Essa é a expressão predileta de Paulo para falar do impulso
interior das pessoas de agir de maneiras que se desviam do padrão de
retidão de Deus. Indica não apenas a força motivadora interior por trás
das ações associadas ao corpo, como pecado sexual, mas também
aspectos da vida de pensamento, como inveja e ira. Esse impulso
interior de fazer o mal é contrastado com o novo impulso de viver com
integridade moral proporcionado pela dádiva divina do Espírito Santo
(cf. Gl 5.19-23).
Portanto, Paulo apresentou o verdadeiro caráter da influência
maligna em todas as suas três manifestações. A fonte das tendências
malignas é tanto interior quanto exterior às pessoas, bem como
sobrenatural. Indivíduos têm uma propensão interior para o mal, e seu
ambiente (seus pares, a mídia, normas sociais, e assim por diante)
também os influencia fortemente. Essa perspectiva que associa as
categorias “o mundo, a carne e o Diabo” também era parte importante
do pensamento de Tiago (veja Tg 3.15), de João (1Jo 2.15-17; 3.7-10)
e, supostamente, do pensamento comum na igreja primitiva.
O ensino de Paulo indica que a explicação para nosso
comportamento não se encontra exclusivamente na natureza humana
ou na influência do mundo. De modo semelhante, uma explicação
exclusivamente demoníaca para comportamentos divergentes é
indevidamente míope. Antes, devemos explicar comportamentoscom
base simultaneamente na natureza humana, no ambiente e na influência
demoníaca. Uma parte talvez desempenhe um papel predominante, mas
as três partes precisam ser levadas em conta. A teologia de Paulo sobre
esse assunto tem implicações importantes para aqueles que se dedicam a
ministérios de aconselhamento. No entanto, também precisamos
considerá-la de grande relevância para a vida da igreja.
O aspecto demoníaco recebe a maior ênfase em Efésios e Colossenses,
enquanto a carne é mais proeminente em Romanos e Gálatas. As
situações gerais dos leitores de cada livro talvez contribuam para essas
ênfases específicas. Se os leitores efésios e colossenses tinham a
tendência de precisar de ajuda para lidar com seu envolvimento passado
com práticas de ocultismo, esse fato pode explicar por que o aspecto
demoníaco é enfatizado mais fortemente nessas duas cartas.
Em última análise, porém, Paulo considerava Satanás o principal
adversário de Cristo e de seu reino. A explicação demoníaca para o
comportamento perverso precisa ser vista como o fio que liga todas as
três influências malignas. Na prática, Satanás explora as tendências
depravadas da carne e exerce certa medida de controle sobre todos os
níveis de determinada ordem social.
Por meio da cruz de Cristo, os cristãos são libertos dessas influências
persuasivas e escravizadoras. A morte e a ressurreição de Cristo
trouxeram a “era vindoura”, a qual irrompe na presente era. Hoje, os
crentes já participam de muitas das bênçãos e de muitos dos recursos da
era por vir. Por meio da cruz de Cristo, nossa carne foi crucificada, e
podemos viver sob os impulsos do Espírito Santo, que nos conduz e nos
capacita. Por fim, a cruz de Cristo marcou a vitória decisiva de Deus
sobre os poderes do mal. Por meio da união com Cristo, os cristãos
podem resistir a Satanás e ser vitoriosos sobre seu reino.
Como os poderes influenciam os crentes
A preocupação maior de Paulo era com a saúde e o bem-estar de suas
igrejas. Consequentemente, ele não dedicou muito tempo a refletir
acerca da influência dos poderes sobre o mundo como um todo. Não
explicou, por exemplo, como os poderes das trevas exerciam controle
sobre os césares romanos, a economia ou as relações diplomáticas entre
as diversas províncias romanas. Isso não significa que o ensino de Paulo
sobre os poderes não tenha nenhuma relevância para entender sua
influência sobre estruturas sociais, políticas e econômicas. Aliás, seu
pensamento tem implicações importantes para entender essas estruturas
e interagir com elas. O que foi preservado para nós, porém, são suas
cartas para as igrejas, que enfrentavam diversos conflitos internos e os
efeitos contínuos do pecado. Paulo advertiu suas igrejas para que se
preocupassem com o mundo. Essa preocupação, contudo, devia ser
manifestada principalmente por meio da proclamação do evangelho de
Cristo.
Por certo, Paulo ainda considerava os cristãos suscetíveis à influência
prejudicial dos espíritos malignos. Quando alguém se torna cristão, não
luta apenas contra as tentações da carne e contra as seduções do
mundo. A obra sobrenatural poderosa do Diabo e de seus poderes se
opõe aos cristãos individuais e à igreja como um todo. O fato de os
poderes explorarem a carne e exercerem sua influência sobre os sistemas
mundiais torna abrangente a extensão de sua influência.
Além de deduzir as implicações da obra de Cristo para os poderes, as
cartas de Paulo se propõem a descrever a natureza da influência dos
poderes sobre os crentes. A seguir trataremos de algumas formas
específicas pelas quais as forças das trevas procuram exercer controle
sobre os cristãos.
Tentação
A atividade mais conhecida de Satanás e de seus poderes é a tentação.
Paulo chegou a dar a Satanás o título de “tentador” (1Ts 3.5). Satanás
instiga os membros do povo de Deus a se comportar de maneiras
contrárias aos desejos de Deus. Ao fazê-lo, Satanás espera voltar a
escravizá-los em seu domínio (Gl 4.8-9).
Infelizmente, Paulo não fornece um quadro completo da psicologia
da tentação. Não descreve de nenhuma forma precisa como Satanás
tenta os crentes. Embora essas informações pudessem satisfazer
consideravelmente nossa curiosidade, ao que parece Paulo concluiu que
tinha dado a seus leitores todas as informações práticas de que
precisavam para resistir à influência maligna dos poderes.
Com base no teor dos escritos de Paulo como um todo e em nossa
discussão de Efésios 2.1-3 de modo específico, temos a impressão de
que, para ele, Satanás e seus poderes operam por meio de influências
interiores e exteriores sobre pessoas; em outras palavras, Satanás usa e
explora “a carne” e “o mundo”. Quando Paulo escreveu para os
coríntios sobre o relacionamento conjugal, advertiu maridos e esposas a
não se absterem de relações sexuais por um período extenso. Seu medo
era que não tivessem autocontrole adequado e que Satanás os tentasse a
abrir mão da fidelidade conjugal, supostamente ao ter relações com
outra pessoa (1Co 7.5). Em outra passagem, o apóstolo descreveu a
imoralidade sexual como um ato da “carne” (Gl 5.19). É provável que,
em seu parecer, Satanás trabalhasse para intensificar o desejo humano
por satisfação física. Essa ainda é uma tentação da carne, mas é
carregada de atividade sobrenatural enérgica e persuasiva dos poderes
das trevas. Isso explica, em parte, por que o autocontrole só pode ser
desenvolvido por meio da obra do Espírito de Deus (Gl 5.23,16-18).
Satanás também tenta os crentes por meio de uma ampla variedade
de influências exteriores (“o mundo”), pois ele é “o deus deste mundo”
(2Co 4.4), e seus subordinados angelicais são espíritos elementares “do
mundo” (Gl 4.3; Cl 2.8,20). príncipe das trevas pode, portanto, exercer
tremenda influência sobre todas as estruturas de existência, o que inclui
a religião. Uma das dificuldades que Paulo e a igreja tinham com “o
mundo” dizia respeito às diversas formas de ensinamentos falsos que
vinham, com frequência, de grupos de fora (mas também de influências
corruptoras internas). Em todos os casos, esses cristãos do início da
igreja enfrentavam pressão para se conformar a tradições religiosas não
cristãs, geralmente às práticas e crenças de seus vizinhos.
Dar lugar ao Diabo
Paulo nunca usou em suas cartas a linguagem de “possessão
demoníaca” (situação descrita, com frequência, como “estar
endemoniado”) tão comum nos Evangelhos. O mais perto que chegou
da linguagem de “possessão” foi em seu conceito de “dar lugar ao
Diabo”, em Efésios 4.27. Ele advertiu os cristãos de Éfeso: “Não deem
lugar ao Diabo”.
Topos é o termo grego que a NIV traduz por “ponto de apoio” e a
NVI traduz por “lugar”. Também pode ser traduzido por
“oportunidade” (NASB, RSV) ou “chance” (TEV; NEB traduz por
“brecha”). Portanto, esse versículo pode ser expresso como: “Não deem
ao Diabo a oportunidade de exercer influência”.5 Em Romanos 12.19,
Paulo usou topos de maneira semelhante quando disse: “Amados, não
procurem vingar-se, mas ‘deixem espaço’ [literalmente, ‘deem lugar’ ou
‘deem oportunidade’] para a ira de Deus”.
Essa foi a única ocasião em que Paulo fez essa declaração em uma de
suas cartas. Ele não explicou que tipo de “lugar” ele acreditava que o
Diabo pudesse conseguir na vida do crente, nem como o Diabo opera
uma vez que o crente lhe dê “oportunidade”. J. A. Robinson interpretou
essa passagem como referência a uma “oportunidade para a entrada de
um espírito maligno”.6 Não consigo encontrar um apoio claro para essa
asserção da tradição judaica, mas há vários exemplos da ideia de que
membros do povo de Deus dão ao Diabo (Belial) a oportunidade de
assumir o controle de sua vida. O Testamento dos doze patriarcas,
escrito pouco antes do tempo de Cristo, tem muito a dizer sobre a
possível influência do Diabo e de seus espíritos sobre o povo de Deus.
Um texto específico associa a ira descontrolada a dar lugar ao Diabo,
exatamente como no contexto de Efésios 4.27. O Testamento de Dã 4.7
declara: “A ira e a falsidade são, juntas, um mal de dois gumes, e
trabalham em conjunto para perturbar arazão. E, quando a alma é
continuamente perturbada, o Senhor se retira dela e Belial a governa”.7
À luz dessa tradição judaica, não é de surpreender que Paulo associe a
ira excessiva a entregar o controle da vida ao Diabo.
Paulo é claro a respeito de como o crente pode dar ao Diabo a
oportunidade de exercer controle. Sua advertência sobre dar lugar ao
Diabo é prefaciada pela admoestação: “Não deixem que o sol se ponha
sobre a sua ira” (Ef 4.26). Paulo via o excesso de ira como um dos
meios pelos quais Satanás poderia obter acesso à vida do crente. É bem
possível que ele não considerasse essa falha específica o único ponto de
vulnerabilidade para a exploração diabólica. O apóstolo mencionou
várias outras falhas no contexto mais amplo da passagem, como
mentira, roubo, palavras torpes, amargura e maldade. É provável que
qualquer atividade pecaminosa da qual o crente não trate com o poder
do Espírito possa ser explorada pelo Diabo e transformada em meio de
controle sobre a vida do crente. Portanto, os cristãos precisam resistir.
Para o apóstolo, não há meio-termo. Não existe cristianismo
nominal. Ou os crentes resistem à influência do Maligno, que atua por
intermédio da carne e do mundo, ou cedem o controle de sua vida aos
poderes das trevas.
Por isso, é extremamente perigoso para os crentes guardar amargura
ou rancor ou furtar de seu local de trabalho, entre outros exemplos.
Ceder a essas tentações não apenas confirma a fraqueza da carne, mas
também abre a vida dos crentes para o controle do Diabo e de seus
poderes.
Enganados por servos de Satanás (2Co 10—13)
Desde o jardim do Éden, Satanás continua a usar seu método diabólico
de engano e a fazer as pessoas crerem em mentiras. Foi o que aconteceu
nas igrejas de Paulo especialmente com a proliferação de ensinamentos
falsos e da atuação enganadora de falsos mestres. Ao escrever para os
gálatas, para os coríntios e para os colossenses, Paulo advertiu esses
crentes acerca da influência de ensinamentos falsos. Nos três casos,
associou esses ensinamentos explicitamente à obra de Satanás e de seus
poderes. Paulo também instruiu Timóteo a respeito de como lidar com
falsos mestres em Éfeso, indivíduos que, com efeito, estavam sendo
manipulados por Satanás. Todas essas formas de ensinamentos falsos
têm como característica a contestação da verdadeira natureza do
evangelho e da pessoa do Senhor Jesus Cristo, levando sempre a estilos
de vida e comportamentos errados.
Os coríntios estavam dando ouvidos a um grupo de oradores
refinados que haviam se descrito como apóstolos e missionários (2Co
11.13). Esses falsos mestres desprezavam Paulo publicamente e
procuravam mostrar que tinham um nível mais elevado de autoridade
espiritual sobre os coríntios. Embora, ao que parece, afirmassem ter
autoridade recebida de Jerusalém, Paulo deu a entender que estavam
ensinando um Jesus e um evangelho diferentes daqueles que ele havia
proclamado para os coríntios (2Co 11.4). Em seguida, Paulo os acusou
de serem “falsos apóstolos, obreiros enganosos, fingindo-se de
apóstolos de Cristo”. Por fim, ele revelou a verdadeira identidade desses
indivíduos: eram servos de Satanás que fingiam ser cristãos. Paulo
considerava Satanás o mestre da dissimulação e do engano. De acordo
com o apóstolo, Satanás pode até se disfarçar de anjo de luz (2Co
11.14). Algumas linhas da tradição judaica acreditavam que Satanás
tinha usado esse disfarce ao tentar Eva no jardim do Éden.8
Paulo temia que esses emissários de Satanás levassem os coríntios a
crer em um evangelho distorcido. Portanto, alertou-os: “Receio que,
assim como Eva foi enganada pela astúcia da serpente, a mente de vocês
seja de alguma forma desviada de sua devoção pura e sincera a Cristo”
(2Co 11.3). Diante dessa situação, Paulo procurou “destruir
fortalezas”; seu desejo era derrubar o muro de hostilidade que seus
adversários tinham levantado entre ele e seus convertidos em Corinto
(2Co 10.4). Ademais, uma “fortaleza” de ensinamentos falsos precisava
ser erradicada de seu meio, pois era contrária à verdade do evangelho.
Ralph Martin comenta: “Paulo faz distinção entre os intrusos hostis em
Corinto, cuja obra satânica (11.13-15) ele quer destruir e neutralizar, e
a comunidade de crentes paulinos a respeito dos quais ele tem a
esperança otimista de que se recuperarão da cilada de desvio e
sedução”.9 Portanto, Paulo escreveu para os coríntios com o propósito
de desmascarar o caráter satânico desse novo ensino e exortá-los a
quebrar o jugo de Belial (veja 2Co 6.14—7.1). Seu desejo era que
renovassem o compromisso com o verdadeiro evangelho proclamado
por ele como apóstolo legítimo do Senhor Jesus Cristo, o evangelho do
Cristo que sofreu e que chama seu povo a manifestar poder divino na
fraqueza.
Paulo desmascarou outros tipos de ensinamentos falsos de inspiração
demoníaca que aviltavam o evangelho de Cristo na igreja em Colossos e
entre as igrejas na região da Galácia. O apóstolo disse que os novos
ensinamentos em Colossos haviam chegado até eles por meio de seres
humanos, mas que, na verdade, eram inspirados pelos “espíritos
elementares do mundo” (Cl 2.8). Contrariavam a plena suficiência de
Cristo para os crentes colossenses.
Escravidão a espíritos elementares (Gálatas)
Os novos ensinamentos que ameaçavam a igreja da Galácia desferiam
um golpe contra o cerne do evangelho (Gl 1.6-9). Fica claro que alguns
indivíduos zelosos da Judeia estavam ensinando aos cristãos gálatas que
eles deviam ser circuncidados conforme as prescrições mosaicas (e que
deviam cumprir outros requisitos legais) a fim de ser salvos. Aos olhos
de Paulo, essa exigência comprometia a verdadeira natureza da
mensagem do evangelho: a salvação é concedida sem a realização de
obras da lei, é salvação somente pela graça.
Paulo também disse que os gálatas estavam “observando dias
especiais, meses, tempos e anos” (Gl 4.10). Embora Paulo não
considerasse problemático cristãos terem convicções pessoais sobre
essas questões (Rm 14.5), não concordava que essas observâncias (entre
elas, a circuncisão) fossem tidas como obrigações religiosas, como parte
da resposta necessária à mensagem do evangelho. Na mente de Paulo,
recorrer à circuncisão e às observâncias da lei correspondia a voltar à
escravidão, uma escravidão aos principados e poderes (stoicheia; Gl
4.9)!
Para o apóstolo, tanto judeus quanto gentios estavam debaixo de
servidão aos poderes das trevas antes da conversão. Ele explicou que os
judeus não remidos eram escravos dos poderes elementares do Universo
(Gl 4.3).10 Ao que parece, essas forças hostis exploram a lei e usam-na
como instrumento para manter em cativeiro o judaísmo descrente. A
redenção de Deus por meio de Cristo proporciona liberdade da lei e
liberdade da servidão aos poderes (Gl 4.3-5).
De modo semelhante, antes da conversão, os gentios “eram escravos
daqueles que, por natureza, não são deuses” (Gl 4.8). Em outros
tempos, imaginavam que estivessem adorando deuses e deusas
verdadeiros em seus cultos pagãos, mas logo descobriram que essas
divindades não passavam de ídolos, instrumentos do Diabo e de seus
poderes das trevas. Os gálatas pareciam ter deixado para trás seus
deuses pagãos, mas agora estavam sendo tentados a acrescentar
exigências legais judaicas ao evangelho puro de Cristo, que Paulo lhes
havia ensinado. Na mente de Paulo, isso era o mesmo que trocar uma
forma de escravidão aos poderes por outra.
De acordo com F. F. Bruce, Paulo estava argumentando que “os
stoicheia [...] não apenas ordenavam o modo de vida judaico debaixo
da lei, mas também ordenavam o modo de vida pagão a serviço de
deuses que não eram deuses. [...] Apesar de todas as diferenças
fundamentais entre o judaísmo e o paganismo, ambos implicavam
sujeição às mesmas forças elementares”.11 Bruce acrescenta: “Para
aqueles que não desfrutavam o benefício da liberdade cristã, os
stoicheia [‘espíritos elementares’] eram ‘principados e poderes’ que
mantinham em servidão a alma dos homens”.12 O evangelho é,
verdadeiramente, uma mensagem de liberdade. Qualquer forma de
legalismocomo princípio de vida cristã é contrária ao evangelho.
A religião pagã e a lei judaica aparecem aqui como dois sistemas que
Satanás e seus poderes usam para manter o descrente em cativeiro e
voltar a escravizar o crente. Atuam, portanto, como dois aspectos do
mundo ou da “presente era perversa” e mostram como os poderes
operam em conjunto no mundo.
É surpreendente que até mesmo algo inerentemente bom — a Lei —
possa ser deturpado por Satanás e usado para realizar seus propósitos.
Essa influência maligna foi exercida sobre os gálatas na forma de novos
ensinamentos propagados por pessoas que lhes pareciam críveis e que
tinham credenciais. À primeira vista, os novos ensinamentos
provavelmente deram aos gálatas a impressão de que eram verdadeiros
e atraentes. Podemos generalizar a partir disso que as influências dos
poderes são exercidas de formas sutis. Somente o discernimento
espiritual é capaz de detectá-las. Uma lição a ser aprendida da situação
dos gálatas, bem como dos coríntios, é a importância para todo crente
de estar profundamente arraigado na doutrina sólida, especialmente na
cristologia. Satanás sempre procura nos levar a crer em uma mentira a
respeito de Cristo e de sua obra redentora.
À luz desses exemplos de ensinamentos falsos inspirados por Satanás,
não é de surpreender que Paulo, no final de sua vida, tenha advertido
Timóteo: “O Espírito diz claramente que, nos últimos tempos, alguns
abandonarão a fé e seguirão espíritos enganadores e doutrinas
ensinadas por demônios” (1Tm 4.1). O apóstolo estava cada vez mais
consciente desse método sutil, porém eficaz, usado por Satanás para
provocar a destruição da igreja.
Paulo descreveu aqueles que apresentavam esses ensinamentos falsos
como pessoas que haviam caído na “armadilha do Diabo, que os fez
cativos para cumprir sua vontade” (2Tm 2.26). Essa declaração nos
ajuda a entender o caráter dos falsos mestres. São, em essência,
instrumentos de Satanás. O Inimigo e seus poderes atuam por meio
desses agentes humanos para enganar e desencaminhar a igreja. No
entanto, nem tudo é desanimador. Há esperança até mesmo para
aqueles que são emissários de Satanás. Deus ainda pode lhes conceder
“arrependimento, levando-os ao conhecimento da verdade” (2Tm
2.25). É o que pode acontecer se derem ouvidos à liderança da igreja
com o coração aberto. Paulo exortou os líderes a terem uma atitude de
bondade ao trabalhar com essas pessoas, mantendo sempre como
objetivo o arrependimento delas.
Influência direta e imediata com sintomas físicos
As Escrituras nos dão um exemplo singular e extraordinário de como
Deus permite que um anjo mau cause certa medida de desconforto físico
em um cristão. Nesse caso, a aflição demoníaca não é resultado de
pecado na vida do crente; em vez disso, ela faz parte do meio
providencial de Deus para garantir que seu servo dependa dele.
Essa situação afligiu o próprio apóstolo Paulo. Ele disse aos coríntios:
“Para impedir que eu me tornasse arrogante por causa da grandeza
dessas revelações, foi-me dado um espinho na carne, um mensageiro de
Satanás, para me atormentar” (2Co 12.7). Provavelmente ninguém
jamais descobrirá a natureza exata desse “espinho na carne”. É bem
possível que fosse uma aflição física.13 Várias ideias específicas foram
propostas, como problemas de vista, malária recorrente, um transtorno
nervoso, problemas de fala e até mesmo epilepsia.
A passagem deixa claro que esse mal era causado por um
“mensageiro de Satanás”, literalmente, um “anjo de Satanás”. Não se
tratava de uma atividade incomum de Satanás. Ralph Martin destaca
que Satanás é associado à enfermidade física na tradição bíblica.14 Deus
permitiu que Satanás fizesse Jó adoecer (Jó 2.5), e Jesus acusou Satanás
de ser aquele que havia mantido uma mulher enferma por dezoito anos
(Lc 13.16). Fora da tradição bíblica, era comum acreditar que espíritos
malignos causassem doenças.
Paulo explicou que pediu explicitamente ao Senhor três vezes para
que esse “espinho” fosse removido, mas Deus não permitiu que isso
ocorresse. Ele deixou que esse agente demoníaco ferisse Paulo para que
o apóstolo recorresse ao poder de Cristo, e não a suas próprias forças.
Deus lhe disse: “Minha graça é suficiente para você, pois meu poder se
aperfeiçoa na fraqueza” (2Co 12.9). Como Paulo enfatizou, Deus
permitiu que esse mal continuasse para que ele não desenvolvesse a
propensão de ser independente de Deus e não se tornasse arrogante.
Paulo se sentia especialmente suscetível a essa tentação em virtude da
revelação extraordinária que Deus lhe havia concedido (2Co 12.1-6).
O exemplo de Paulo ressalta nitidamente o desejo de Deus de que
seus servos sejam humildes. Um espírito arrogante, orgulhoso ou
independente é tão contrário ao que Deus quer em nós que ele pode
permitir que um agente demoníaco nos aflija. Esse exemplo também nos
adverte de que não é necessariamente da vontade de Deus que todas as
doenças sejam aliviadas. Deus pode permitir que uma enfermidade
desagradável persista a fim de garantir nossa humildade e nossa
dependência dele.
Como instrumento de disciplina de Deus
Há uma segunda forma positiva pela qual Deus usa soberanamente as
forças de Satanás. Assim como Deus usou um anjo mau para instilar no
apóstolo Paulo uma atitude apropriada, ele também pode usar as forças
das trevas para promover a restauração de cristãos que se desviaram.
Paulo, em sua Primeira Carta aos Coríntios, tratou com firmeza de
uma situação extremamente grave: a igreja de Corinto estava tolerando
que um membro tivesse relações com sua madrasta (1Co 5.1-13). O
apóstolo os repreendeu por fazerem vista grossa para a situação de
imoralidade ostensiva e por sua arrogância apesar dessa situação. Instou
com eles para que expulsassem esse homem da igreja. Instruiu a igreja a
se reunir e “[entregar] esse homem a Satanás, para a destruição da
carne, a fim de que seu espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus” (1Co
5.5, RSV).
Note que o objetivo final dessa ação é a restauração. Não é um ato
de livrar-se de algo desagradável, mas uma medida disciplinar com o
propósito de promover, em última análise, o bem-estar da pessoa.
Embora a intenção fosse a salvação desse indivíduo à luz da volta de
Cristo, é provável que o apóstolo desejasse que o arrependimento desse
homem ficasse evidente para a comunidade cristã antes que ele fosse
restaurado.
Paulo definiu a expulsão do homem como entregá-lo a Satanás para a
destruição da carne. É pouco provável que Paulo tivesse em mente uma
verdadeira entrega em que Satanás seria chamado pessoalmente e o
homem seria colocado nas mãos dele. O texto provavelmente expressa
aquilo que Paulo considerava o resultado final da excomunhão. Gordon
Fee oferece uma explicação adequada dessa ação:
Em contraste com a comunidade reunida de crentes que experimenta
o Espírito e o poder do Senhor Jesus nos dons edificantes e na
amorosa preocupação mútua, esse homem deve ser colocado de volta
no mundo em que Satanás e seus “principados e poderes” ainda
exercem forte influência sobre a vida das pessoas para destruí-las.15
Esse homem não se beneficiaria mais do atencioso cuidado do corpo de
Cristo. Satanás e suas forças poderiam exercer sobre ele suas influências
homicidas.
Paulo imaginava que esse processo produziria a “destruição da
carne”. Embora vários comentaristas entendam que isso indique a
morte física do homem, é provável que seja mais apropriado interpretar
a passagem como fizeram os tradutores da NIV: “... para que a
natureza pecaminosa seja destruída” (TA).16 Essa ocorrência poderia,
muito bem, incluir enfermidade física ou mesmo morte, mas a
linguagem não torna essa conclusão necessária. Infelizmente, Paulo não
explicou de modo específico de que maneira ele imaginava que
ocorreria a destruição da carnalidade desse indivíduo. No entanto, o
apóstolo se mostrou otimista de que ela aconteceria.
De forma semelhante, Paulo “entregou a Satanás” outros dois
homens, Himeneu e Alexandre (1Tm 1.20). Nesse caso, o apóstolo foi
mais específico acerca do objetivo da remoção deles daigreja; ele
desejava que fossem “[ensinados] a não blasfemar”. Também aqui,
Paulo não diz o que imaginava que Satanás e seus poderes fariam aos
dois homens, mas fica claro que ele via valor positivo nesse processo.
É importante ajustar nosso modo de pensar sobre a disciplina
eclesiástica à luz dessas duas passagens. A disciplina eclesiástica não é
meramente uma ação social; é uma ação espiritual. Implica remover um
crente do âmbito principal da atividade do Espírito Santo, o corpo de
Cristo. Esses exemplos também nos fazem lembrar que como a reunião
regular do povo de Deus é, verdadeiramente, de importância
fundamental.
Obstrução da missão da igreja
Não é de surpreender que Satanás também procure restringir os
esforços evangelísticos dos cristãos. A atividade evangelística representa
um ataque direto ao domínio de Satanás. Ele se esforça ao máximo para
frustrar os cristãos que buscam revelar a mensagem redentora do
evangelho.
Satanás é o “deus desta era”, que “cegou a mente dos descrentes para
que não vejam a luz do evangelho” (2Co 4.4). A missão da igreja
consiste em restaurar a visão dos cegos. O evangelho tem de ser
proclamado no poder do Espírito, pois a igreja tem diante de si um
inimigo de proporções sobrenaturais no comando de uma hoste de
poderes angelicais que procuram impedir a expansão do reino de Cristo.
Paulo nos dá um vislumbre da oposição satânica que ele próprio
sofreu em seu afã de pregar o evangelho aos tessalonicenses. De acordo
com o relato de Lucas em Atos, Paulo mal teve três semanas para pregar
o evangelho ao povo de Tessalônica (At 17.1-9). Ele foi obrigado a
deixar a cidade repentinamente em razão de uma violenta deflagração
local de perseguição. Temendo pelo bem-estar espiritual daqueles que
haviam se tornado cristãos, Paulo desejava intensamente voltar e passar
mais tempo com eles. Escreveu então aos tessalonicenses e lhes disse que
ele e seus companheiros haviam tentado visitá-los repetidamente;
“contudo, Satanás nos impediu” (1Ts 2.18, RSV).
Paulo não revelou a maneira específica pela qual Satanás havia
frustrado seus esforços, mas, sem dúvida, o apóstolo viu o curso dos
acontecimentos que impediram sua volta como a ação poderosa de
Satanás, e não como providência do Espírito Santo para redirecioná-los
(cp. At 16.6-10). Comentaristas oferecem várias sugestões para a ação
de Satanás: por meio do “espinho na carne” de Paulo, da oposição dos
judeus e da repressão por parte das autoridades civis de Tessalônica.
Qualquer que tenha sido o método, Paulo percebeu por trás dele a mão
de Satanás.
Paulo ensinou à igreja que ela também enfrentaria forte hostilidade
demoníaca ao pregar o evangelho. Consequentemente, a igreja teria de
depender do poder de Deus a fim de tornar o evangelho efetivamente
conhecido. Essa dependência é, na prática, o aspecto ofensivo da
“guerra espiritual” (Ef 6.10-20).
Paulo ensinou que Satanás colocaria armadilhas para difamar a igreja
e, por fim, impedir sua missão no mundo. Uma das qualificações para o
presbítero é ter boa reputação perante os não cristãos, para que esse
líder não seja caluniado e, com isso, a igreja não caia em descrédito
(1Tm 3.7). Paulo descreveu essa situação de descrédito como cair “na
cilada do Diabo”. De acordo com Gordon Fee, “é uma cilada que o
Diabo arma quando o comportamento dos líderes da igreja torna os de
fora menos propensos a ouvir o evangelho”.17
Esse descrédito do evangelho poderia se dar não apenas por meio dos
líderes da igreja, mas também pelos membros de modo geral. Paulo viu
uma oportunidade de Satanás difamar a igreja quando jovens viúvas se
tornaram fofoqueiras ociosas e intrometidas (1Tm 5.13-16).
Consequentemente, aconselhou esse grupo a se casar, formar família e
cuidar bem de seus lares.
Há uma lição clara a ser aprendida com essas duas passagens de
1Timóteo. Comportamento indisciplinado ou pecaminoso entre seus
membros reduz consideravelmente a capacidade da igreja de alcançar
com o evangelho de Cristo a comunidade em que ela se encontra. É
importante que os crentes resistam aos impulsos satânicos de
desagradar a Deus, não apenas para seu bem espiritual, mas também
para o trabalho evangelístico eficaz da igreja. Nossa vida deve adornar
as boas-novas que proclamamos.
1 Oscar Cullmann, Christ and time, tradução para o inglês de Floyd V. Filson (Philadelphia:
Westminster, 1949), p. 139-43 [publicado em português por Fonte Editorial sob o título Cristo
e o tempo].
2 A. M. Hunter, conforme citado em J. Christian Beker, Paul the Apostle (Philadelphia:
Fortress, 1980), p. 159 [publicado em português por Academia Cristã sob o título Apóstolo
Paulo: vida, obra e teologia].
3 John R. W. Stott, The message of Ephesians, The Bible Speaks Today (Downers Grove:
InterVarsity, 1979), p. 73.
4 Para uma descrição proveitosa da natureza perversa do “mundo” e “desta era” e como essa
realidade influencia a ordem social, veja Stephen C. Mott, Biblical ethics and social change
(Oxford: Oxford University Press, 1982), cap. 1: “Biblical faith and the reality of social evil”, p.
3-21.
5 BAGD, p. 823.
6 J. Armitage Robinson, St. Paul’s Epistle to the Ephesians (London: Macmillan, 1907), p.
112.
7 Para mais paralelos judaicos e considerações sobre esse versículo, veja meu texto Ephesians:
power and magic, p. 65.
8 Veja Ralph P. Martin, 2 Corinthians, Word Biblical Commentary 40 (Waco: Word, 1986),
p. 351.
9 Ibidem, p. 306-7.
10 É o caso quer interpretemos “nós” como uma referência somente aos cristãos judeus, quer
aos cristãos judeus e gentios.
11 F. F. Bruce, The Epistle to the Galatians, New International Greek Testament
Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), p. 202.
12 Ibidem, p. 30.
13 Em oposição a John Wimber, Power healing (San Francisco: Harper & Row, 1987), p.
272, nota 15, para o qual o “espinho na carne” de Paulo era uma referência a seus adversários
em Corinto. Como Martin, 2 Corinthians, p. 415, observa, o mais claro indício contrário a essa
interpretação é o fato de Paulo ter orado três vezes para que o “espinho” fosse removido dele
(12.8). É improvável que, em princípio, Paulo tenha orado para ser poupado de oposição e
perseguição. Esses eram elementos pressupostos em seu ministério, e tudo indica que o apóstolo
orava para que o evangelho superasse esses obstáculos e prevalecesse. É bem mais provável,
contudo, que Paulo tenha pedido que Deus o poupasse de algum mal físico incômodo que, a seu
ver, prejudicava sua agilidade e dificultava seu ministério.
14 Martin, 2 Corinthians, p. 415.
15 Gordon Fee, The First Epistle to the Corinthians, The New International Commentary on
the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), p. 209 [publicado em português por Vida
Nova sob o título 1Coríntios: comentário exegético].
16 Para uma defesa detalhada desse posicionamento, veja Fee, Corinthians, p. 210-3.
17 Gordon D. Fee, 1 and 2 Timothy, Titus, New International Biblical Commentary
(Peabody: Hendrickson, 1988), p. 83.
U
10
Cristo e nenhum outro
m problema recorrente para membros de tribos na África que se
tornam cristãos é o que fazer com seus deuses do lar e com as
divindades às quais seus antepassados prestavam culto. Devem
abandoná-los e destruir todas as imagens e a parafernália do
culto a eles? Ou devem mantê-los e procurar adorar a Cristo e também
as divindades tribais? Essa é uma decisão extremamente difícil para o
chefe de uma tribo que teme que abandonar os deuses de seus
antepassados traga problemas e até morte para ele e seu povo.
Na época de Paulo, os cristãos lidavam com a mesma questão. Sem
dúvida, recém-convertidos se perguntaram: Por que não continuar a
celebrar os ritos de mistério de Cibele ou de Dionísio? Por que não usar
um amuleto, invocando deuses e anjos para que os protegessem de
espíritos malignos? Por que não prestar culto a Hécate ou a Selene pela
proteção que podiam oferecer de espíritos astrais e perigosos espíritos
de animais selvagens? Sua espiritualidade não seria enriquecida pela
observância dos ritos de mistério de Deméter ou dos dias sagrados
dedicadosa Ártemis ou a Yahweh?
Os cristãos colossenses, em especial, certamente fizeram perguntas
desse tipo. A igreja recém-formada de Colossos, situada em um vale no
interior, a pouco mais de 150 quilômetros de Éfeso e a apenas 18
quilômetros de Laodiceia, enfrentava dificuldades para resistir à
influência de outras tradições religiosas. Em um ambiente espiritual em
que o sincretismo era considerado parte normal da vida, esses cristãos
eram tentados a fazer concessões em sua fidelidade exclusiva a Cristo.
A todos os cristãos tentados a sincretizar sua fé, Paulo deu uma
resposta bastante clara na Carta aos Colossenses. Yahweh continua a
ser um Deus zeloso. Deseja que todos os crentes se dediquem a ele e a
seu Filho amado, o Senhor Jesus Cristo, de modo sincero e total.
O problema em Colossos: Cristo e algo mais
Paulo percebeu que um ensino perigoso ameaçava a saúde e a
estabilidade da igreja em Colossos.1 Embora seja difícil interpretar com
certeza os detalhes do desvio, a impressão é a de que um grupo de
pessoas da igreja defendia que os membros restantes seguissem seu
exemplo e adotassem uma série de práticas que não faziam parte da
tradição cristã nem do ensino apostólico. Essas práticas pareciam estar
arraigadas em uma perspectiva sincrética do cristianismo, em que
elementos da iniciação de mistério, de observâncias rituais judaicas e de
práticas de magia eram combinados com o evangelho. Paulo revelou em
sua carta a natureza demoníaca desses ensinamentos falsos e das
práticas que os acompanhavam. Ele chamou a igreja a um novo
compromisso com a pureza do evangelho.
Como em todas as outras cidades do mundo mediterrâneo na época
de Paulo, muitos deuses e deusas eram venerados em Colossos.2 Uma
vez que arqueólogos nunca escavaram essa cidade antiga, sabemos
pouca coisa a respeito de suas religiões com base em inscrições, templos
ou imagens cultuais. Felizmente, foram descobertas várias moedas
colossenses com imagens de algumas das divindades adoradas na
cidade, como Ísis, Serápis, Ártemis de Éfeso, Zeus de Laodiceia,
Deméter, Men, Selene e Hélio. Podemos supor que as práticas de magia
e as crenças astrológicas fizessem parte do panorama espiritual dos
cidadãos colossenses, pois eram profundamente arraigadas nas cidades
litorâneas da Ásia Menor. Também há indícios de uma comunidade
judaica relativamente grande em Colossos e em duas cidades vizinhas,
Laodiceia e Hierápolis. Logo, é provável que houvesse uma sinagoga
judaica na cidade ou em suas cercanias.
Também há indícios de que os ensinamentos falsos tinham ligação
explícita com a iniciação de mistério. Essa ligação pode ser vista em um
trecho da carta em que Paulo descreve a natureza dos ensinamentos
falsos como parte de sua controvérsia. Infelizmente, essa ligação não
fica clara em muitas das versões modernas do Novo Testamento. Em
Colossenses 2.18, Paulo advertiu os cristãos colossenses: “Não
permitam que ninguém que tem prazer na falsa humildade e na
adoração de anjos os desqualifique para o prêmio. Essa pessoa conta em
detalhes o que viu, e sua mente carnal se torna arrogante, cheia de
ideias inúteis” (NVI; TA). Anos atrás, Sir William Ramsay, sumidade
em geografia e religiões da Ásia Menor, propôs que a parte em itálico
do versículo deve ser traduzida mais precisamente por: “O que tinha
visto quando realizou o estágio superior do ritual [de mistério]” (TA).3
As diferentes traduções giram em torno da interpretação de um termo
de grande importância nesse versículo, que tem aqui sua única
ocorrência no Novo Testamento. É, na verdade, um termo bastante raro
em toda a literatura grega, e todo tradutor tem dificuldade de identificar
seu significado exato nesse contexto. Literalmente, a oração é: “O que
tinha visto, entrando”. Há quem procure explicar a palavra “entrando”
com o sentido de “investigando” ou “explicando”. Ramsay baseia sua
interpretação na ocorrência do termo em uma série de inscrições
religiosas encontradas apenas alguns anos antes em um santuário
pagão. O termo ocorria várias vezes e parecia se referir ao ponto
culminante dos ritos de iniciação nos mistérios do deus Apolo em seu
templo em Claros, no litoral oeste da Ásia Menor. O que torna essa
descoberta ainda mais importante para a interpretação de Colossenses é
o fato de que um dos grupos que tinha ido ao templo de Apolo era de
Laodiceia, a vizinha mais próxima de Colossos.
Tudo parece indicar que os ensinamentos falsos em Colossos tinham
uma ligação próxima com as religiões de mistério. É possível que uma
facção da igreja colossense estivesse propondo que seus irmãos crentes
participassem com ela da celebração dos ritos de mistério de uma
divindade local, ou talvez até que instituíssem uma iniciação de mistério
cristã. Ramsay propôs que havia um líder rival na congregação que
estava apresentando ideias trazidas de sua antiga crença nas religiões de
mistério, produzindo, com isso, uma forma mística de cristianismo.
Os ensinamentos perigosos em Colossos também tinham uma ligação
explícita com práticas de magia. A expressão “adoração de anjos” (Cl
2.18) oferece indício dessa ligação. É bem possível que Paulo estivesse
condenando uma invocação mágica de anjos.4 Não é necessário que
pensemos apenas nos anjos bons que cercam o trono de Yahweh.
Cristãos e judeus não eram os únicos que usavam a palavra anjo para
seres sobrenaturais ou espíritos. Pagãos também empregavam esse
termo para se referir a suas divindades (p. ex., Hécate) e para falar de
espíritos intermediários. Ao entendermos o termo com esse sentido,
vemos que Paulo advertiu os colossenses a não se envolverem com a
invocação de outros deuses ou de seres sobrenaturais para pedir
proteção ou a realização de determinada tarefa. Para o apóstolo, isso
correspondia a lhes prestar culto. Somente Cristo merecia adoração.5
Essa facção que estava causando tumulto apresentava seus
ensinamentos como “filosofia” (2.8). Esse termo não indica
necessariamente adesão a ideias de determinado filósofo grego ou escola
filosófica de pensamento. Filosofia era um termo usado de modo
bastante amplo, até mesmo com o sentido de práticas mágicas. A
oposição de Paulo a essa filosofia fica evidente quando ele diz que seus
“argumentos aparentemente convincentes” (2.4) são “vazios” e
“enganosos” (2.4,8).
Os ensinamentos não eram apenas intelectuais, sem impacto sobre a
vivência diária. Paulo mencionou um número considerável de práticas
ascéticas ao caracterizá-los. O comportamento ascético se estendia a
“severidade com o corpo” (2.23), talvez indicando mutilações
corporais. Autoflagelação era um comportamento típico daqueles que
participavam dos cultos a Cibele e a Átis, sabidamente existentes
naquela região. Observâncias rituais e de alimentação também tinham
um papel nessa “filosofia”. Paulo advertiu os crentes a não permitirem
que ninguém lhes impusesse exigências rituais quanto a alimentos e
bebidas ou com respeito a festas religiosas, luas novas e sábados (2.16).
O apóstolo também desprezou as frases de proibição que,
aparentemente, os seguidores desses ensinamentos citavam: “Não
manuseie! Não prove! Não toque!” (2.21).
Os ensinamentos rivais pareciam ter elementos das religiões de
mistério, das práticas de magia e até das crenças judaicas (sábados).
Eram, inequivocamente, uma “filosofia” sincrética: cristianismo e algo
mais.
A ligação entre os ensinamentos falsos e os poderes
Com exceção de Efésios, há mais referências aos principados e poderes
em Colossenses do que em qualquer outra carta de Paulo. O apóstolo
usou uma ampla variedade de termos para se referir a esses poderes:
“tronos”, “domínios”, “principados”, “autoridades”, “espíritos
elementares” e “anjos” (RSV). Embora alguns estudiosos tenham
procurado argumentar em defesa da interpretação de alguns desses
poderes como anjos bons, especialmente aqueles que são mencionados
em Colossenses 1.16, o contexto mais amplo da carta os retrata em tons
um tanto sombrios. Os mesmos “principados” (archai) e as mesmas
“autoridades” (exousiai) mencionados em Colossenses 1.16 são
descritoscomo inimigos derrotados em 2.15, sobre os quais Cristo é o
cabeça (2.10). É mais provável que Paulo desejasse que todas essas
referências a poderes espirituais em Colossenses fossem entendidas
como poderes malignos das trevas.
De acordo com a análise de Paulo, a “filosofia” religiosa que
ameaçava a igreja de Colossos podia ser atribuída, em última análise, à
inspiração de “espíritos elementares” (stoicheia). Em Colossenses 2.8,
Paulo diz: “Tenham cuidado para que ninguém os tome por presa de
filosofias e engano vazio [1] segundo tradições humanas, [2] conforme
os espíritos elementares do universo, e não de acordo com Cristo”
(RSV).
Na primeira parte do versículo, Paulo condena o envolvimento
humano evidente que propaga esses ensinamentos errôneos
comunicados pela tradição humana. Na segunda parte do versículo, ele
destaca a verdadeira origem dos ensinamentos com sentido pessoal e
espiritual: “espíritos elementares” inspiram esses ensinamentos. Com
isso, ele associa os ensinamentos falsos a envolvimento demoníaco da
mesma forma que caracteriza as religiões pagãs em geral como algo
demoníaco em 1Coríntios 10.20-21. Uma situação semelhante está em
mira em 1Timóteo 4.1, em que os crentes são advertidos a respeito de
ensinamentos instigados por demônios: “O Espírito diz claramente que
nos últimos tempos alguns abandonarão a fé e seguirão espíritos
enganadores e doutrinas ensinadas por demônios”. Aqueles que
promovem esses ensinamentos são descritos como “mentirosos
hipócritas”, uma indicação de que afirmam ser cristãos, mas, na
verdade, são defensores de Satanás.
Os ensinamentos falsos em Colossos eram perigosos justamente
porque eram inspirados pelos adversários sobrenaturais que Cristo
morreu para derrotar. Por isso, mais adiante é cabível Paulo perguntar:
“Se vocês morreram com Cristo para os espíritos elementares do
universo, por que vivem como se ainda pertencessem ao mundo?” (Cl
2.20, RSV). Por meio da união com Cristo e ao apropriar-se de seus
recursos, os crentes podem resistir às várias influências malignas de
Satanás e de seus poderes. No caso dos colossenses, a influência maligna
era sentida especialmente nos ensinamentos rivais transmitidos por
pessoas dentro do contexto da igreja.
Somente Cristo é supremo
Paulo tinha convicção de que os ensinamentos de seus adversários em
Colossos representavam uma oposição direta ao senhorio absoluto de
Cristo para esses crentes. Ao dar ouvidos à “filosofia”, estavam
transferindo sua lealdade de Cristo para os principados e poderes. É
bem provável que fossem motivados, em parte, por medo do mundo
sobrenatural maligno. Continuavam a ter receio da influência de
espíritos terrestres que poderiam lhes fazer mal na vida diária, de
espíritos astrais que controlavam seu destino e de espíritos do mundo
dos mortos que poderiam atormentá-los na vida por vir. Será que Cristo
era verdadeiramente capaz de protegê-los desses poderes? Tinham
incertezas a esse respeito e ficavam apreensivos. Sua dúvida os levava a
buscar o caminho mais “seguro”, a adoração a Cristo e a outros deuses.
A fim de restaurar a confiança deles no Senhor Jesus, Paulo começou
sua carta com uma das passagens mais eloquentes e comoventes de
louvor poético a Cristo nas Escrituras. Colossenses 1.15-20 declara de
modo tocante a supremacia exclusiva de Cristo.6 O arranjo poético, a
escolha de palavras e a bela expressão levaram muitos estudiosos a se
referir a essa passagem como hino cristão primitivo. É possível que
Paulo tenha citado um hino conhecido e cantado nos cultos em
Colossos e em outras igrejas da Ásia. Embora Paulo possa ter redigido
essa passagem especificamente para os colossenses, o poder retórico de
sua argumentação é ainda mais acentuado caso ele tenha citado um
hino já existente. Com efeito, os colossenses seriam culpados de não
internalizar o que liam e cantavam.
Como prefácio para o hino, Paulo demonstrou que eles não viviam
mais na escravidão do domínio de Satanás. Disse: “Ele nos resgatou do
domínio das trevas e no transportou para o reino de seu Filho amado”
(Cl 1.13). Em seguida, o hino destaca o caráter do Filho de duas
maneiras: Cristo é Senhor da criação e Senhor da reconciliação.
Como Senhor da criação, Cristo é retratado em seu relacionamento
singular com o Deus único e invisível. Cristo não é um intermediário
angelical ou apenas um entre muitos outros. Tem prioridade temporal
sobre toda a criação e um relacionamento ímpar com Deus, pois é a
“imagem” de Deus e tem todos os direitos de primogenitura. Cristo
também é Senhor da criação porque é o Criador. Paulo faz questão de
ressaltar que Cristo é o criador não apenas de todas as coisas na terra e
no céu, mas, especialmente, do âmbito mais temido pelos colossenses, a
esfera invisível, “sejam tronos ou poderes, sejam governantes ou
autoridades” (1.16). Aliás, esses poderes devem a continuidade de sua
existência a Cristo, uma vez que ele é quem sustenta a criação (1.17).
Como Senhor da reconciliação, Cristo é retratado na segunda parte
do hino nesse papel ao trazer harmonia absoluta a toda a sua criação.
Desfigurada pela rebelião contra o propósito de Deus, a criação
enfrenta constante transtorno e angústia em razão do impacto
degenerativo do mal. A obra de Cristo fornece a base para a esperança
no futuro. Na consumação dos tempos, todas as coisas serão
reconciliadas com Deus por meio de Cristo. Mais uma vez, Paulo
enfatizou que as entidades celestiais, a saber, os principados e poderes,
estão incluídos em “todas as coisas”.
O hino assevera de forma brilhante o senhorio de Cristo sobre os
principados e poderes. Que grande consolo deve ter sido para os
colossenses ser tranquilizados com a certeza de que Cristo é superior
aos poderes que eles temiam e aos quais, outrora, haviam prestado
culto. Cristo não apenas os criou, mas é aquele que lhes dá vida e os
sustenta. A história está debaixo de seu controle e, por fim, os poderes
serão humilhados diante dele.
Paulo continuou a desenvolver sua argumentação em defesa da
supremacia de Cristo ao declarar, mais adiante na carta, que Cristo “é o
cabeça de todo poder e de toda autoridade” (Cl 2.10). Essa declaração
se baseia no fato de que “em Cristo toda a plenitude da divindade
habita corporalmente” (Cl 2.9), o que também foi mostrado no hino (Cl
1.19): “Pois foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a sua
plenitude”. Cristo é retratado, mais uma vez, em unidade singular e
próxima com o Deus de Israel. Tom Wright explica que a encarnação
de Cristo “foi e é a ‘realidade sólida’ em que se cumpriram todas as
prefigurações de outrora, todas as promessas antigas de que Deus
habitaria com seu povo”.7 Agora Deus está verdadeiramente com os
membros de seu povo, habitando na vida deles e lhes dando direção e
força. No versículo 10, a ênfase é sobre a certeza do controle exercido
por Cristo sobre os poderes: nenhum poder angelical maligno está fora
do âmbito da soberania dele. Hoje, os crentes compartilham dessa
autoridade.
O ponto alto da argumentação de Paulo em defesa da supremacia de
Cristo sobre os poderes se encontra em Colossenses 2.15. Os
principados e poderes foram derrotados na cruz. Esse sinal do fim para
os poderes foi decisivo. Eles foram despojados de sua influência
irresistível sobre os crentes. Agora são como cães ferozes presos por
uma correia. Embora ainda estejam ativos e continuam a causar
destruição e promover o mal, estão debaixo do controle e da autoridade
de alguém mais poderoso, ao qual são obrigados a obedecer.
Cristo não é apenas um entre vários poderes em determinado nível da
hierarquia angelical. Ele ocupa o topo. É supremo. Apesar das alegações
de outras religiões e ao contrário das premissas da magia, os colossenses
podiam verdadeiramente adorar Cristo como aquele que é preeminente.
Não obstante a argumentação eloquente e convincente de Paulo nesse
sentido, não podemos minimizar a dificuldade que os cristãos
colossenses devem ter enfrentado para crer nessa verdade no mais
profundo de sua consciência. O longo tempo de crença em uma
multiplicidadede deuses e espíritos e de aprendizado de como cada um
podia ser aplacado é algo bem diferente da confiança em um só, alguém
tão distinto.
Cristo é suficiente
Paulo aplicou seu ensino sobre a supremacia exclusiva de Cristo à
situação deles. Seu maior desejo era vê-los ter uma vida centrada em
Cristo. Ele escreve: “Portanto, assim como vocês receberam Cristo Jesus
como Senhor, continuem a viver nele, arraigados e edificados nele,
fortalecidos na fé, como foram ensinados, transbordando de gratidão”
(Cl 2.6-7). Paulo lhes garantiu que, em Cristo, eles tinham todos os
recursos de que precisavam. Assim como Deus concedeu a Cristo toda a
sua plenitude divina, Cristo concede aos crentes o poder capacitador, o
amor e a graça divina para resistir à influência do mal e viver de acordo
com a vontade de Deus. Paulo diz claramente: “Vocês receberam
plenitude em Cristo” (Cl 2.10). Não é por acaso que a declaração feita
por Paulo logo depois dessa seja a descrição de Cristo como aquele
“que é o cabeça sobre todo poder e toda autoridade” (Cl 2.10). A
implicação inequívoca dessa passagem é de que parte dos recursos
divinos que Cristo concede aos crentes consiste em sua autoridade sobre
os poderes malignos.
Cristo pode conceder sua plenitude aos crentes em razão do
relacionamento singular que eles têm com ele, simbolizado no rito do
batismo. Os crentes foram vivificados com Cristo ao ser identificados
com ele em sua morte e ressurreição (Cl 2.12-13). Com efeito, a morte
deles com Cristo os fez morrer para a influência poderosa dos espíritos
elementares (Cl 2.20). Cristo é suficiente para protegê-los dos espíritos
malignos. Não são necessários filactérios, amuletos ou talismãs. Não é
necessária nenhuma iniciação em um mistério para conferir
esclarecimento espiritual adicional, pois Cristo é o “mistério de Deus” e
“nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do
conhecimento [gnōsis]” (Cl 2.2-3).
A esperança e a força desses crentes estão entremeadas com o fato de
que Cristo verdadeiramente habita em sua vida (Cl 1.27). Esse fato não
deve ser entendido com o sentido de uma absorção mística na
divindade. Cristo habita pessoalmente na vida dos crentes e os infunde
com seu poder, preenchendo-os com seu amor e dando-lhes uma
bendita esperança para o futuro. Essa é a essência do “mistério” cristão.
A característica que resume o cristianismo é o relacionamento com
Cristo. Tendo em conta o senhorio plenamente abrangente de Cristo e
sua suficiência absoluta, não resta aos colossenses nenhum motivo
legítimo para sincretizar sua fé. Cristo é tudo de que precisam!
Apropriação dos recursos em Cristo
Não basta ter um conceito correto de Cristo. Concordar com um credo
ou com uma declaração de fé não garante uma vida vitoriosa. Na
prática, a teologia pode facilmente tornar-se desvinculada da ética, e
aquilo em que alguém crê a respeito de Cristo pode não influenciar
necessariamente o modo de vida dessa pessoa. A cristologia tem
implicações transformadoras para a vida. Exige resposta e compromisso
totais.
Os colossenses precisavam ter seu conceito de Cristo purificado e
também ser admoestados a lançar mão dos recursos que ele provê para
a vida diária. Paulo os repreendeu por não “se apegar firmemente à
cabeça, da qual todo o corpo, sustentado e unido por suas juntas e seus
ligamentos, desenvolve-se conforme o crescimento dado por Deus” (Cl
2.19, NASB). É o “cabeça” do corpo que provê aquilo de que precisam,
mas eles têm de buscar o sustento que ele oferece e estar dispostos a
recebê-lo. Também têm de se esforçar sinceramente para viver de
acordo com o caráter de sua nova vida celestial. São cidadãos de dois
reinos. Enfrentarão a tentação de se concentrarem nas limitações e nos
problemas da vida na presente era perversa. Paulo argumentou com
veemência que o foco da atenção deles devia ser o caráter de sua vida
nova e de todas as bênçãos espirituais, segurança e dádivas que a
acompanham. Para o apóstolo, esse enfoque é o segredo para vencer os
obstáculos da vida aqui e agora; é a base para a ética cristã. Estudiosos
do Novo Testamento se referem a esse conceito como “tensão
escatológica” entre o “já” e o “ainda não” que ocupa o cerne da
teologia de Paulo.
A fim de que os colossenses se apropriem dos benefícios dessa vida
nova, precisam voltar o coração e a mente para “as coisas do alto” (Cl
3.1-2). Ali, Cristo está assentado à direita de Deus. E é no alto que a
vida dos colossenses agora “está escondida com Cristo em Deus” (Cl
3.3), em virtude de sua identificação com a morte de Cristo. Parte da
busca pela vida celestial se dá por meio de uma imersão profunda nos
ensinamentos de Cristo. Paulo os incentiva a deixar que “a palavra de
Cristo habite ricamente” neles (Cl 3.16). A busca também implica
oração, uma expressão de fé em Deus, mas também um canal para se
comunicar com Deus e contar para ele suas necessidades. Portanto, o
apóstolo os exortou: “Dediquem-se à oração, estejam sempre alertas e
sejam agradecidos” (Cl 4.2). Consciente de sua própria necessidade de
força e capacitação divinas, Paulo pede que orem por ele (Cl 4.3-4).
Em Colossos, o impulso sincrético que os cristãos enfrentavam era
forte, especialmente porque havia sido reforçado por uma vida inteira
de adoração a muitos deuses. É provável que a pressão de fora da igreja
fosse igualmente intensa. Membros da sociedade colossense
provavelmente não compreenderam as asserções de exclusividade de
Cristo. Os ensinamentos falsos em Colossos certamente eram
arranjados e apresentados de forma atraente. No parecer de Paulo,
contudo, eram errados, pois eram inspirados por espíritos malignos e
depreciavam o senhorio supremo e suficiente de Jesus Cristo.
1 No momento estou trabalhando em um projeto de pesquisa para uma monografia sobre os
antecedentes do conflito em Colossos. Não há como explicar ou corroborar com a precisão que
eu gostaria muitas das nuanças e detalhes de minha perspectiva sobre o conflito colossense, em
razão dos limites de espaço nesta breve apresentação. Indico ao leitor minha pesquisa, a ser
publicada em breve, sobre os antecedentes do problema em Colossos.
2 Para mais detalhes sobre a cidade antiga de Colossos, veja meu verbete sobre Colossos em
Anchor Bible Dictionary, org., David Noel Freedman (New York: Doubleday, 1992).
3 Sir William M. Ramsay, “The mysteries in their relation to St. Paul”, Contemporary Review
104 (1913): 198-209, esp. 205; The teaching of Paul in terms of the present day (London:
Hodder & Stoughton, 1914), p. 283-305. Eduard Lohse, Colossians and Philemon
(Philadelphia: Fortress, 1971), p. 114, propõe a tradução: “Que ninguém que tenha prazer na
prontidão de servir e na adoração a anjos condene vocês, por ter tido visões deles durante o rito
de mistério (TA), enfatuado sem motivo em sua mente terrena”. O argumento foi desenvolvido
mais recentemente por Randall A. Argall, “The source of religious error in Colossae”, Calvin
Theological Journal 22 (1987): 6-20.
4 Procurei apoiar essa interpretação em duas monografias apresentadas na Society of Biblical
Literature (“Hellenistic magic: a new key for understanding the Colossian heresy”, apresentada
para o New Testament Epistles Section of the Pacific Coast Region of the Society of Biblical
Literature [25 de mar. 1988]) e para a Evangelical Theology Society (“Magic, mystery religions,
and the Epistle to the Colossians”, apresentada na reunião anual da Evangelical Theological
Society, Wheaton, Illinois [18 nov. 1988]).
5 A interpretação da expressão “adoração de anjos” é tema de grande controvérsia entre
intérpretes. Muitas outras perspectivas foram propostas, mas entre as de maior destaque se
encontra aquela que entende essa expressão com o sentido de “adorar com os anjos” e
pressupõe um cenário em volta do trono celestial de Yahweh. Nessa interpretação, as
características gerais da heresia em Colossos são descritas principalmente como uma forma de
ascetismo místico judaico. Veja Peter T. O’Brien, Colossians, Philemon, Word Biblical
Commentary 44 (Waco: Word,1982), p. xxx-xli, 142-3.
6 Vários livros e artigos foram escritos sobre o caráter hínico dessa passagem. Para uma boa
bibliografia de fontes, veja O’Brien, Colossians, p. 31-2.
7 N. T. Wright, Colossians and Philemon, Tyndale New Testament Commentary (Grand
Rapids: Eerdmans, 1986), p. 103.
E
11
Guerra espiritual
“Pois nossa luta não é contra carne e sangue, mas contra os
governantes, contra as autoridades, contra os poderes deste mundo
de trevas e contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais.”
fésios 6.12 é um dos versículos mais conhecidos de toda a Bíblia,
mas é um dos textos das Escrituras interpretados e entendidos de
modo mais equivocado, além de, na prática, ser o mais
negligenciado. Imersos em uma cultura segundo a qual espíritos
malignos não existem, cristãos ocidentais têm dificuldade até de
começar a empreender a guerra espiritual. Passamos mais tempo nos
perguntando se devemos mesmo crer em demônios do que tratando de
como devemos reagir a eles.
Há quem se veja indeciso diante desse tema. Embora concordemos
mentalmente com a probabilidade de que espíritos malignos existam,
uma vez que a Bíblia assim o diz, na realidade essa ideia não faz
diferença prática em nossa vida diária. Ao tratar de um problema
pessoal como uma enfermidade ou depressão, as únicas alternativas que
consideramos são os serviços médicos e psicológicos. Não damos muita
atenção ao aspecto espiritual. Até mesmo no ministério cristão, a
dimensão espiritual é, com frequência, ignorada. O evangelismo
ineficaz, por exemplo, muitas vezes é atribuído à falta de treinamento
ou de capacidade de persuasão, e não à forte oposição demoníaca.
Alguns segmentos do cristianismo levam a sério a existência de
demônios e procuram confrontar a dimensão espiritual. Infelizmente, os
excessos de alguns desses grupos por vezes ofuscam os aspectos
saudáveis do ensino e da prática de outros. Efésios 6.10-20 se torna,
equivocadamente, um manifesto sobre exorcismo. Ou demônios são
identificados por trás de praticamente todos os problemas. O restante
do cristianismo, infelizmente, descarta até mesmo a perspectiva mais
proveitosa desses grupos a respeito de demônios, pois lhes parece
exagerada.
Precisamos, mais do que nunca, adquirir uma perspectiva revitalizada
da guerra espiritual. Se não tivermos consciência da atuação sutil e
poderosa de nosso inimigo, ele nos derrotará. Talvez ele já exerça forte
controle sobre algumas áreas da vida em que não temos consciência de
sua ação insidiosa.
Para muitos pensadores, a sociedade ocidental está no limiar de uma
grande mudança de cosmovisão. Estudiosos como Hans Küng anteveem
um movimento de enorme importância da “era moderna” para a “era
pós-moderna”, uma grande mudança de paradigma na forma que os
ocidentais veem a realidade. Não há dúvida de que a influência
crescente do pensamento oriental e o impacto cada vez mais expressivo
do movimento da Nova Era influenciarão como a cultura ocidental
percebe as coisas sobrenaturais. A igreja precisa estar pronta para esse
novo desafio. Poucos diriam que a igreja está bem preparada para lidar
de modo eficaz com os problemas específicos que surgem ao ministrar
para pessoas que tiveram envolvimento com o ocultismo. A melhor
maneira de identificar o que a guerra espiritual significa para nós no
presente é discernir o que significava para Paulo e seus leitores naquele
tempo. Primeiro, a guerra espiritual precisa ser entendida em relação ao
que significava para aqueles que viviam em Éfeso e na região oeste da
Ásia Menor, onde crenças do ocultismo prosperavam e onde não havia
dúvidas sobre a realidade da influência do reino espiritual. Segundo,
essa guerra precisa ser entendida no contexto mais amplo de toda a
Carta aos Efésios.
O espiritismo em Éfeso
A cidade de Éfeso não era muito diferente de qualquer outra cidade do
mundo helenístico. Tinha, porém, grande fama de ser um centro de
práticas de magia. Lucas reforça essa fama com seu relato da queima de
uma enorme quantidade de livros de magia (At 19.13-20). Como
observamos no primeiro capítulo, a magia tinha por objetivo a
manipulação do mundo dos espíritos. Baseava-se em uma cosmovisão
segundo a qual espíritos bons e maus estão envolvidos com
praticamente todos os aspectos da vida.
Éfeso também era conhecida por sua divindade protetora, Ártemis de
Éfeso. A Ártemis efésia era venerada como deusa do mundo dos mortos.
Também se acreditava que ela exercesse poder efetivo sobre os espíritos
na natureza e na vida selvagem. Os signos do zodíaco em sua imagem
cultual garantiam a seus adoradores que ela era uma divindade cósmica
que exercia influência sobre os espíritos astrais encarregados de
controlar o desdobramento do destino. Éfeso não era apenas a cidade
de Ártemis; pelo menos outras 44 divindades eram veneradas ali.
Eram justamente pessoas desse tipo (praticantes de magia e
adoradores de Ártemis e de outros deuses incontáveis) que estavam
abraçando a fé cristã e se tornando parte das igrejas da região. É
extremamente fácil ler Efésios com nossas lentes culturais e não
entender a natureza e a magnitude das questões que esses cristãos
recém-convertidos do primeiro século enfrentavam. Embora almejassem
se dedicar a Cristo, é provável que a ideia de sincretizar o cristianismo
com outras práticas e crenças fosse extremamente atraente. Quanto aos
elementos demoníacos, os leitores efésios tinham muito mais em comum
com culturas não ocidentais do que conosco no Ocidente.
É bem provável que Paulo tenha escrito a Carta aos Efésios para que
fosse lida não apenas em Éfeso, mas em várias igrejas na região
ocidental da Ásia Menor. Éfeso é um bom ponto de referência para nós
ao tratar dos efésios. Era a capital da província, com pelo menos 250
mil habitantes. Era um centro religioso com influência estratégica sobre
toda a Ásia Menor.1 Também havia sido a base de operações de Paulo
durante sua estada de quase três anos nessa província. As questões
fundamentais eram semelhantes em todas as igrejas da Ásia ocidental.
Os crentes recém-convertidos precisavam de ajuda para desenvolver
uma cosmovisão cristã. Precisavam especialmente entender qual devia
ser seu posicionamento diante dos deuses e das deusas aos quais haviam
prestado culto, e diante dos vários espíritos astrais, terrestres e do
mundo dos mortos que haviam temido.
Escrevi um livro sobre a Carta de Paulo aos Efésios no qual
argumento que essa epístola foi ocasionada, em parte, pela forte
preocupação de Paulo de tratar das necessidades dos convertidos com
antecedentes que chamaríamos, hoje, de crenças de “ocultismo”.2 Isso
explica por que os principados e poderes e o tema da guerra espiritual
recebem mais atenção em Efésios do que em qualquer outra carta de
Paulo. Efésios passa a ser, então, a carta essencial para entender o
pensamento de Paulo sobre a questão de principados e poderes.
Cristo, os poderes e o poder de Deus
Paulo desejava que não restasse dúvida a seus leitores de que Cristo é
superior aos poderes que eles temiam e aos quais outrora haviam
servido. Ciente de que seus leitores seriam tentados a duvidar da
superioridade e da suficiência absoluta de Cristo, o apóstolo pediu a
Deus que abrisse os olhos deles para que vissem o poder
incomparavelmente grandioso do Deus do Senhor Jesus Cristo. Sua
oração se tornou um comentário sobre o imenso poder divino: “A
incomparável grandeza de seu poder para conosco, os que cremos,
conforme a atuação de sua poderosa força, que ele exerceu em Cristo
quando o ressuscitou dos mortos e o fez assentar-se à sua direita nas
regiões celestiais”. Paulo não parou aí. Em seguida, tratou das
implicações da exaltação de Cristo para a posição dos poderes. Cristo
está “muito acima de todo governo e autoridade, poder e domínio, e de
todo título que se possa dar, não apenas nesta era, mas também na que
há de vir”. Os poderes são o foco específico quando Paulo diz: “Deus
colocou todas as coisas debaixo de seus pés e o designou para ser o
cabeça de todas as coisas para a igreja” (Ef 1.19-22).
Antes de convocarseus leitores crentes para a guerra espiritual, Paulo
pediu que a força de Deus fosse concedida a todos eles. Orou para que
“com as gloriosas riquezas, ele os fortaleça no íntimo de seu ser por
meio de seu Espírito” (Ef 3.16). Depois de interceder por seus leitores,
ele os admoestou no fim da carta: “Fortaleçam-se no Senhor e em seu
forte poder” (Ef 6.10). O poder de Deus é essencial não apenas para
resistir à influência dos poderes de Satanás, mas também para
manifestar amor na comunidade cristã e viver de acordo com os
padrões éticos que Paulo lhes havia ensinado.
A força poderosa exercida por Deus na ressurreição está disponível
para os crentes. Paulo incentivou os cristãos a lançar mão desse poder
para a vida diária. Os crentes da Ásia Menor precisavam desenvolver
uma perspectiva inteiramente nova do poder divino. Seu entendimento
distorcido das coisas sobrenaturais precisava ser purificado por
crescimento no conhecimento do único Deus verdadeiro e do motivo
pelo qual ele concede poder a seu povo.
Primeiro, a fonte desse poder é nova. Eles foram reconciliados com
Yahweh, “um só Deus e Pai de todos” (Ef 4.6). Ele é o Deus de Abraão,
Isaque e Jacó, mas também é o Deus do Senhor Jesus Cristo. Ele é
supremo e não tem concorrentes. Todas as divindades anteriores às
quais eles haviam servido deviam ser abandonadas e consideradas
manifestações e atividade de principados e poderes malignos.
Segundo, esses crentes foram conduzidos a um meio novo e singular
de acesso ao poder divino. Uma fórmula ou receita mágica não é capaz
de manipular Deus. Ele é um Deus pessoal, que tem comunhão com seu
povo e busca um relacionamento com aqueles que lhe pertencem. Essa
comunhão com Deus não se dá pela absorção mística na divindade, por
um ritual de mistério ou por algum outro meio. Ocorre pelo acesso a
Deus possibilitado pela obra de Jesus Cristo na cruz (Ef 2.18). Os
crentes foram colocados em união extremamente próxima com o
Senhor Jesus Cristo, uma realidade à qual Paulo costuma se referir
como estar “em Cristo”. A proximidade e a solidariedade desse vínculo
são tantas que os crentes podem considerar que foram ressuscitados e
exaltados com Cristo (Ef 2.6). Essa é a base para a nova identidade dos
crentes e para sua participação na autoridade de Cristo sobre os poderes
do mal.
Terceiro, há um novo propósito para conceder poder divino às
pessoas. Os crentes não devem mais usar poder sobrenatural para fazer
o mal a outros ou para fins egocêntricos. O poder de Deus é concedido
aos crentes a fim de capacitá-los para que tenham uma vida abnegada.
Os crentes são chamados a exercitar o tipo de amor sacrificial
demonstrado na cruz (Ef 5.2). Aos olhos do mundo, isso é impossível.
E, embora Satanás e seus poderes procurem impedir os crentes de amar
de forma abnegada, o poder de Deus os fortalece para que o façam.
A natureza da influência maligna
Em Efésios, Paulo faz questão de mostrar que as pessoas não podem ter
um posicionamento neutro em relação às decisões da vida. Elas são
profundamente afetadas por um conjunto de influências malignas
determinantes. Essas influências conduzem as pessoas por um caminho
que leva à morte, à vida longe de Deus. Em Efésios 2.2-3, Paulo
descreve essas influências quanto a seu ambiente (“a presente ordem
deste mundo”), à propensão interior para o mal (“a carne”) e ao
adversário sobrenaturalmente poderoso (“o príncipe do poder do ar, o
espírito”).
Ao chamar a atenção para essas três forças, Paulo mostrou o caráter
inescapável da morte para os não cristãos e, portanto, sua necessidade
de experimentar a obra redentora de Deus. No entanto, o entendimento
dessas três influências malignas também é importante para os cristãos
em sua busca por propagar o evangelho e viver de acordo com seus
padrões éticos. Essas influências continuam a ser sentidas mesmo depois
de alguém ser salvo. O cristão não está automaticamente imune à
tentação, nem à influência do mundo, nem aos ataques diretos de
Satanás.
Embora essas três influências continuem a operar, há uma diferença
categórica para o cristão. O crente vive em união com o Cristo
ressurreto e pode recorrer ao poder de Cristo: em sua vitória sobre a
tentação, em sua resistência às seduções e influências do mundo e,
acima de tudo, em sua vitória e consequente autoridade sobre Satanás e
sobre os poderes das trevas. Essa passagem forma, portanto, o cenário
essencial para que entendamos devidamente por que uma orientação
sobre a vida cristã como guerra é tão importante.
A vida cristã como guerra
A passagem sobre a guerra espiritual representa a igreja sob ataque
intenso do Diabo e de seus poderes do mal. Para realçar essa imagem,
Paulo usou a metáfora extensa de um soldado que veste a armadura
apropriada. No presente caso, o soldado usa um cinto, uma couraça,
calçados, um escudo e um capacete e, então, empunha uma espada. O
objetivo principal dessas imagens é mostrar que o cristianismo deve ser
entendido como uma guerra e que os crentes devem se preparar para
essa guerra da mesma forma que um soldado se prepararia para a
batalha. Não é importante identificar se Paulo tem mente um soldado
romano, grego, judeu ou persa. A maioria das imagens é extraída
diretamente de Isaías (cf. Is 11.5; 52.7; 59.17). Ademais, é preciso ter
cautela para não interpretar excessivamente cada uma das imagens
materiais como, por exemplo, ao enfatizar que o capacete protege o
cérebro e a couraça, os órgãos vitais. Paulo se sentia à vontade para
variar as verdades espirituais que ele associava às imagens militares. Por
exemplo, enquanto a couraça representa a justiça em Efésios 6.14,
simboliza fé e amor em 1Tessalonicenses 5.18.
No versículo 12, o uso do termo luta descreve uma cena de conflito.
No primeiro século, essa palavra era comumente usada não no contexto
de guerra, mas como termo típico para o esporte de luta. Ocorre até
mesmo em inscrições da Ásia Menor ocidental em referência a eventos
de luta em diversos jogos realizados nas cidades da região. É provável,
portanto, que Paulo use esse termo para enfatizar a proximidade do
confronto com os poderes do mal. O uso dos termos do mal e trevas
também aponta para o caráter da guerra espiritual. Os governantes do
mundo (kosmokratores) são retratados como indivíduos “do mal” que
governam este “mundo de trevas”. A cena toda é inserida “no dia
mau”, uma provável referência ao fato de que “os dias são maus” (Ef
5.16) e de que haverá tempos intensos de ataque demoníaco. Por fim, o
Diabo é retratado de forma extremamente vívida, atirando setas em
chamas contra a igreja (Ef 6.16). O tom da passagem tem por propósito
transmitir a sensação de perigo extremo.
O perigo que esses poderes organizados das trevas representam para
os cristãos pode ser arrasador caso não tenham socorro. No entanto, os
cristãos não estão sozinhos. Estão unidos ao Senhor exaltado que
derrotou as forças do mal e agora concede seu poder e sua autoridade à
igreja. Ao longo de toda a carta, o apóstolo enfatizou o poder de Deus e
sua disponibilidade aos crentes. Essa ênfase chega a seu ápice quando
Paulo diz: “Sejam fortes no Senhor e na força de seu poder” (Ef 6.10).
Ele juntou três termos que denotam poder (endynamō, kratos e ischys) e
têm como efeito combinado o destaque nítido para o poder absoluto de
Deus, especialmente em contraste com os poderes mais fracos das
trevas.
Paulo também definiu e esclareceu o poder de Deus ao especificar
como Deus concede seu poder à igreja e ao relacionar os meios pelos
quais a força capacitadora de Deus é transmitida. O apóstolo enumerou
sete armas espirituais. Cinco são dádivas objetivas de Deus (verdade,
justiça, o evangelho, a salvação e o Espírito/a palavra de Deus) e duas
enfatizam nossa responsabilidade (fé e oração). Nossa responsabilidade
também fica implícita nas cinco dádivas de Deus (veja tb. o quadro no
final do capítulo). Embora essa lista de recursos (“armas”) espirituais
não esgote todas as dádivas divinas à disposição dos cristãos, representa
a essência de tudo o que é mais importante para travarum combate
bem-sucedido contra os poderes das trevas.
A natureza da guerra espiritual, como Paulo a retratou aqui, diz
respeito principalmente à conduta cristã e à propagação do evangelho, e
não ao exorcismo ou à erradicação do mal estrutural. O cerne da guerra
espiritual pode ser adequadamente resumido como resistência e
proclamação.
Guerra espiritual como resistência
Quatro vezes na passagem Paulo empregou os termos ficar firme/resistir
(mesma raiz no grego: Efésios 6.11,13-14). No contexto mais amplo de
Efésios, fica evidente que Paulo não deseja que os crentes “deem lugar
ao diabo” ao se render a ira excessiva, mentira, roubo ou qualquer
outra tentação de impureza moral (Ef 4.27). De acordo com Paulo, o
Diabo e seus poderes atuam em conjunto com a carne e o mundo (Ef
2.2-3; veja acima) para promover o pecado entre os cristãos e dificultar
o progresso do evangelho. Por isso, os cristãos precisam se apropriar do
poder capacitador de Deus a fim de viver com integridade moral.
A guerra espiritual é, portanto, resistência. É um posicionamento
defensivo. Implica reconhecer a natureza sobrenatural da tentação e
estar preparado para enfrentá-la. Também implica apropriar-se do
poder de Deus para avançar na erradicação dos vícios morais que já
estão presentes na vida.
As duas primeiras armas espirituais que Paulo citou foram “verdade”
e “justiça”. Ao que parece, essas armas têm dois aspectos. Por um lado,
precisam ser entendidas como dádivas divinas para lutar na guerra
espiritual. Por outro lado, devem ser consideradas virtudes que têm de
ser cultivadas na vida dos crentes. Essa perspectiva é bastante natural,
pois o evangelho tem implicações para a conduta cristã. Paulo
considerava o evangelho “verdade” (Ef 1.13) e poder de Deus para a
salvação (Rm 1.16). De modo contrastante, o Diabo é o arqui-inimigo
que usa muitas intrigas para deturpar, enganar e enredar. Os crentes
precisam receber convicção e garantia da veracidade do evangelho e
daquilo que ele afirma a respeito deles como filhos de Deus. Por
implicação, os crentes precisam viver de forma coerente com a verdade
do evangelho. Mentira e engano não podem ter lugar na vida do cristão;
são uma afronta ao Deus da verdade. Logo, em Efésios, Paulo disse aos
cristãos: “Cada um de vocês deve abandonar a mentira e falar a verdade
a seu próximo” (Ef 4.25; veja tb. 5.9).
Um dos componentes mais extraordinários da salvação que Deus
provê é a dádiva da “justiça”. Depois de Paulo dizer aos romanos que
“não há nenhum justo, nem um sequer” (Rm 3.10), ele tratou em mais
detalhes da maravilhosa notícia de que “essa justiça de Deus se
manifesta pela fé em Jesus Cristo para todos os que creem” (Rm 3.22).
Essa justiça significa que quem crê em Jesus foi absolvido de toda a
culpa diante de Deus. Foi completamente perdoado e reconciliado com
ele como amigo e, melhor ainda, como filho ou filha. O Diabo e seus
poderes malignos certamente gostariam de que os cristãos não cressem
nessa verdade. Os poderes se esforçam para convencer as pessoas de que
é impossível Deus tê-las perdoado pelas coisas horríveis que fizeram no
passado. Essa ideia não poderia ser mais equivocada. Os cristãos foram
verdadeiramente perdoados por meio do sangue de Cristo e, portanto
podem viver com intrepidez e confiança, sem culpa, medo ou
insegurança.
Ter a justiça de Deus, porém, implica responsabilidade. O apóstolo
admoesta seus leitores a se despojar do velho homem e se revestir do
novo homem “criado para ser semelhante a Deus em verdadeira justiça
e santidade” (Ef 4.24). O desenvolvimento da santidade pessoal e da
integridade faz parte da preparação para alcançar vitória na guerra
espiritual. Em contrapartida, falta de integridade e de santidade pessoal
certamente são empecilhos para que o crente resista aos ataques
violentos dos subordinados de Satanás.
Outro aspecto de grande importância para que o crente resista é a
“salvação”, associada ao capacete como quinta parte da armadura (Ef
6.17). A salvação precisa ser entendida conforme Paulo a explicou no
contexto mais amplo da carta. Em Efésios 2.5-10, Paulo reiterou duas
vezes para seus leitores: “Pela graça vocês são salvos” e descreveu com
eloquência o conceito de salvação. Essas duas ocorrências são as únicas
ocasiões em todas as cartas de Paulo em que ele usou o tempo perfeito
grego para se referir à salvação. O tempo verbal perfeito enfatiza o
resultado de uma ação decisiva realizada no passado. Paulo queria que
seus leitores tivessem plena confiança em sua identidade em Cristo.
Eram salvos e desfrutavam os benefícios de serem salvos.
Paulo explicou a que estava se referindo ao falar de salvação nesse
mesmo contexto com três conceitos substanciais: (1) os crentes
receberam vida com Cristo, (2) foram ressuscitados com Cristo e (3)
foram assentados com ele nos lugares celestiais (Ef 2.4-6). Para o
apóstolo, é de importância fundamental que os cristãos saibam quem
eles são em Cristo, a fim de que resistam à influência de Satanás e de
suas forças na vida deles. Só poderão resistir por meio da salvação e da
união com Cristo.
Por fim, o crente recebe uma “espada” para se defender dos ataques
do Maligno. A espada é associada ao Espírito e à Palavra de Deus.
Assim como Jesus usou as Escrituras para resistir às tentações de
Satanás enquanto estava no deserto (Mt 4.1-11), Paulo exorta os
crentes a usar a Palavra de Deus para resistir ao Diabo em suas
situações pessoais. Não devemos entender essa instrução como um uso
semimágico das Escrituras, pronunciadas em voz alta como forma de
refrear o Diabo. Antes, a ideia é estarmos plenamente familiarizados
com as Escrituras e entendermos corretamente sua relevância para
qualquer situação. Quando Jesus foi tentado, o Diabo aplicou as
Escrituras de forma inapropriada e fora de contexto; Jesus respondeu ao
Diabo com a aplicação apropriada das Escrituras e conforme sua devida
intenção ao transmitir a vontade de Deus sobre questões específicas. O
estudo detalhado e sistemático das Escrituras com regularidade é de
suma importância para todos os crentes. É parte essencial da
participação eficaz na guerra espiritual.
Guerra espiritual como proclamação
A guerra espiritual não fica apenas na defensiva; também toma a
ofensiva. Paulo convocou os soldados de Cristo para que avançassem
sobre território inimigo ao proclamar o evangelho do Senhor Jesus
Cristo. Assim como Cristo amarrou o homem forte para saquear sua
casa, também o corpo de Cristo saqueia o reino de Satanás ao
proclamar a promessa de resgate divino para os cativos do reino das
trevas.
Há uma peça no equipamento do soldado que, apesar de não ser uma
arma, lhe permite assumir uma postura ofensiva na batalha: bons
calçados. Um soldado típico caminhava longas distâncias quando seu
exército avançava para o campo de batalha e, depois, perseguia o
inimigo. (Sem dúvida, foi o caso quando Xerxes saiu com seus exércitos
da distante Pérsia para conquistar a Grécia!) Os calçados do cristão
devem ser caracterizados pela “prontidão de anunciar as boas-novas da
paz” (Ef 6.15, TEV). Os crentes precisam estar preparados para
compartilhar as boas-novas de Cristo em qualquer lugar para onde
Deus os conduzir.
Muitos comentaristas observaram corretamente que a única arma
ofensiva de toda a panóplia é a espada (Ef 6.17). Embora seja usada
como parte da resistência do crente, também é uma arma de ataque. A
Palavra de Deus e a obra do Espírito são os meios pelos quais o povo de
Deus avança para desafiar Satanás e saquear seu reino. São os meios
que Deus usa para trazer pessoas para si, transformar a vida delas e
colocá-las em um relacionamento com ele.
Portanto, de acordo com Paulo, a principal ação ofensiva que o
cristão é chamado a realizar no mundo consiste em propagar o
evangelho — as boas-novas da salvação por meio da morte e
ressurreição de Cristo. O evangelho representa “o poder de Deus para
resgatar pessoas da tirania [do Diabo]”.3
Todo o transcurso do ministério de Paulo é modelo dessa
proclamação agressiva. A igreja deve seguir o exemplo doapóstolo.
Lucas parecia entender essa ideia e escreveu seu relato do trabalho
missionário de Paulo de uma forma que inspiraria zelo e coragem entre
os crentes que o lessem. Ao mesmo tempo, Lucas não minimizou o
tanto de conflito que Paulo enfrentou em sua empreitada de
proclamação. Lucas interpretou boa parte desse conflito, conforme
descrito no primeiro capítulo, como poderosa oposição demoníaca. No
entanto, os cristãos que dependerem do poder de Deus, como Paulo
dependia, vencerão as hostilidades inimigas, o evangelho continuará a
avançar e cada vez mais pessoas serão salvas do domínio das trevas.
Mesmo aqui, no contexto de Efésios, apesar de Paulo estar preso,
estava preocupado de modo pessoal com a missão da igreja. Seu desejo
era que o poder capacitador de Deus fosse concedido a ele pela oração,
não necessariamente para demonstrar o caráter sobrenatural do
evangelho por meio de acontecimentos miraculosos. Ele percebia sua
necessidade do toque de Deus para que pudesse proclamar o evangelho
sem temor, com intrepidez. Mesmo depois de todos os anos de pregação
bem-sucedida, Paulo ainda sentia grande necessidade de uma infusão
divina de poder para lhe dar coragem de proclamar o evangelho
destemidamente. Ele pede: “Orem também por mim, para que, quando
eu abrir a boca, sejam-me dadas palavras para que eu possa tornar
conhecido, destemidamente, o mistério do evangelho, do qual sou
embaixador em cadeias. Orem para que eu o declare destemidamente,
como devo” (Ef 6.19-20). A prontidão incessante de Paulo para
proclamar as boas-novas foi uma característica distintiva de sua vida.
De modo semelhante, deve ser de suma importância para os crentes das
gerações seguintes. Essa é a missão da igreja!
Oração como principal arma
Se Paulo tivesse de resumir a principal forma de obter acesso ao poder
de Deus para lutar vitoriosamente na guerra espiritual, ele afirmaria,
sem hesitar, que é por meio da oração. A oração recebe muito mais
proeminência na passagem sobre guerra espiritual do que qualquer
outro implemento. A oração também é a única parte da armadura
espiritual que não tem uma arma física correspondente (como a couraça
ou o escudo).
Quando Paulo falou de oração, relacionou-a de modo próxi- mo ao
conceito de fé. Ele também mencionou a fé em razão de seu papel para
a participação na guerra espiritual. Associou a fé ao escudo. Ela é
mencionada explicitamente como a forma de superar ataques diabólicos
intensos: “Tomem o escudo da fé, com o qual poderão apagar todas as
setas inflamadas do Maligno” (Ef 6.16). A oração se tornou, para o
apóstolo, a manifestação prática da fé. Por esse meio, é possível resistir
eficazmente a Satanás.
Ao longo de toda a Carta aos Efésios, Paulo enfatizou o papel da fé
para nos apropriarmos do poder de Deus. A fé que ele demandou se
baseia no fato objetivo da ressurreição de Cristo e em sua exaltação
acima dos poderes sobrenaturais. O poder de Deus não é concedido aos
cristãos por meio do uso de um amuleto mágico, ou mesmo de um
crucifixo. Também não é possível obter acesso a ele ao realizar um rito
ou entoar determinadas palavras. O poder de Deus é concedido por
meio da simples confiança nele.
Essa confiança se expressa de modo mais comum no ato da oração.
Logo, Paulo convocou os cristãos a orar “em todo o tempo” e “por
todos os santos” (Ef 6.18). O próprio apóstolo deu exemplo disso para
seus leitores nessa carta e lhes disse qual era a essência de suas orações
por eles: para que tivessem consciência cada vez maior do poder de
Deus e para que Deus os fortalecesse com seu poder (Ef 1.15-23; 3.14-
19).
A passagem sobre a guerra espiritual é vista, com frequência, por
uma perspectiva individual; em outras palavras, cada cristão deve orar e
pedir a Deus forças para lutar na batalha. Na verdade, Paulo retratou o
processo de armar-se de forma conjunta. A igreja toda participa dele.
Aliás, cada crente é responsável por armar outros crentes. Todas as
admoestações de Paulo nessa passagem estão no plural. Mais
importante do que isso, porém, é o fato de Paulo instar com os crentes
para orar “por todos os santos” (Ef 6.18). Uma vez que essa exortação
faz parte de sua explicação sobre a oração como parte final da
armadura, é mais natural entendê-la como recomendação do apóstolo
quanto ao pré-requisito e ao meio de adquirir capacitação divina. Esse
fato é corroborado pela atitude do apóstolo de pedir orações por si
mesmo nos versículos que vêm logo em seguida. Na realidade, ele pede
a seus leitores que o armem para a guerra espiritual, especialmente para
sua ação ofensiva de proclamar o evangelho. Sem dúvida, as duas
orações em Efésios 1 e 3 servem de exemplo. Por meio dessas orações,
Paulo preparou a armadura de Deus para que seus leitores a usassem e
estivessem protegidos. Ao colocar de lado a linguagem metafórica da
guerra espiritual e expressar essa ideia de forma simples, poderíamos
dizer que ele orou para que Deus lhe concedesse seu poder a fim de que
resistisse às tentações de Satanás e fosse divinamente capacitado para
proclamar o evangelho destemidamente, apesar da hostilidade e de
obstáculos demoníacos.
A guerra espiritual é, portanto, mais proativa que reativa. É a
preparação antes da tempestade. De modo prático, inclui orar pelos
“sãos”, além de orar pelos “enfermos”, isto é, orar especificamente por
indivíduos para que resistam à tentação em suas áreas pessoais de
vulnerabilidade. Inclui orar pelo avanço do evangelho diante de
hostilidade demoníaca localizada e intensa à missão contínua da igreja.
Esse conceito tem o potencial de revigorar grupos de oração e reuniões
de oração na igreja de nossos dias.
A igreja de hoje precisa de uma percepção mais forte da mutualidade
do corpo de Cristo. A igreja ocidental, de modo específico, sofre de
“cristianismo individualista”. Em vez de condenar o irmão ou a irmã
que cai em pecado, temos de olhar primeiramente para nós mesmos.
Será que pedimos que a graça de Deus capacitasse essa pessoa para que
ela resistisse às importunações de Satanás para fazer o mal? A guerra
espiritual é um chamado à oração comunitária.
1 Veja Richard E. Oster, “Ephesus as a religious center under the Principate, I. Paganism
before Constantine”, Aufstieg und Niedergang der Römischen Welt II.18.2 (Berlin: Walter de
Gruyter, no prelo), p. 1661-728.
2 Veja Clinton E. Arnold, Ephesians: power and magic. The concept of power in Ephesians in
light of its historical setting, Society for New Testament Studies Monograph Series 63
(Cambridge: Cambridge University Press, 1989).
3 John R. W. Stott, The message of Ephesians, The Bible Speaks Today (Downers Grove:
InterVarsity, 1979), p. 280.
O que fazer diante dos poderes das trevas
Interpretação da armadura de Deus
 É impossível ser bem-sucedido sozinho. Recorra à força que Cristo promete lhe dar.
 Tenha consciência de que você não pode esperar uma vida tranquila e fácil. Há forças
sobrenaturais malignas tentando destruí-lo.
1. Vista suas calças: revista-se da verdade
 Saiba da verdade de quem você é em Cristo, pois os poderes das trevas tentarão enganá-lo.
 Pratique a honestidade e viva com integridade moral.
2. Vista a couraça da justiça
 Tenha consciência de sua condição diante de Deus: você foi absolvido de seus pecados.
 Adquira santidade pessoal e desenvolva bom caráter.
3. Calce suas botas: prepare o evangelho da paz
 Prepare-se para compartilhar o evangelho onde quer que Deus o chame a fazê-lo.
4. Tome o escudo da fé
 Não duvide! Creia que Deus ajudará você a vencer.
5. Coloque o capacete da salvação
 Tenha convicção de sua identidade em Cristo: você foi salvo e unido a Cristo; recebeu vida
com ele, foi ressuscitado e exaltado com ele.
6. Empunhe a espada do Espírito, a Palavra de Deus
 Dedique sua vida a propagar o evangelho ativamente.
 Conheça as Escrituras e aplique-as a todas as situações difíceis.
EM RESUMO: ORE!
 Peça a Deus que fortaleça você para resistir à tentação e compartilhar o evangelho de forma
eficaz.
 Peça a Deus que fortaleça seus irmãos em Cristo para que resistam à tentaçãoe
compartilhem o evangelho de forma eficaz.
P
12
A vitória final de Cristo sobre
os poderes
aulo deu aos cristãos motivo de esperança para o futuro. Deus
está encaminhando a história para um ponto culminante que
resultará no reinado eterno e absoluto de seu Filho glorioso, o
Senhor Jesus Cristo. Essa é “bendita esperança” que os crentes
aguardam (Tt 2.13).
Aqueles que viviam no primeiro século tinham medo intenso dos
poderes sobrenaturais hostis que controlavam o andamento da história
e o destino pessoal de cada um. Hans Dieter Betz fornece uma
expressão clara da cosmovisão predominante:
Em geral, acreditava-se que o homem se encontrasse subjugado e
oprimido por essas forças [isto é, por entidades demoníacas
poderosas], em situação de desesperança e impotência. Elas brincam
com o homem conforme seus caprichos, desde que ele entra no
mundo até quando parte. Ao atuarem dentro do homem, usam seu
corpo, mas também o atacam exteriormente, nas experiências
terríveis e traumáticas daquilo que a “Sorte” (deusa Tique)1 tem
reservado para ele. Nessas condições, a vida não é, de maneira
nenhuma, vida; antes, é morte diária.2
Betz observa que, a fim de lidar com a vida diária, “em muitos cultos
antigos, desenvolveram-se medidas cultuais para tranquilizar e aplacar
as forças demoníacas. Essas medidas abrangiam orações, rituais,
sacrifícios, astrologia, magia e teurgia”.3 Tratamos de vários desses
itens na primeira parte deste livro.
Os cristãos primitivos, em contraste nítido com os vizinhos não
cristãos, não tinham nenhum motivo para temer os poderes malignos.
Estavam unidos ao único e verdadeiro Senhor, que havia derrotado
todas as forças hostis por meio de sua morte e ressurreição. Sabiam que
seu futuro estava entretecido com aquele que está conduzindo a seu
desfecho a presente era repleta de todas as formas de mal. Todos os
poderes das trevas serão extintos. Os cristãos primitivos podiam,
portanto, ser um povo alegre, cheio de esperança, grato a Deus Pai, que
os havia escolhido para ser seu povo antes da fundação do mundo (Ef
1.3).
Hostilidade contínua e uma última rebelião
Paulo se esforçou, em todas as suas cartas, para preparar seus leitores
para um longo período de conflito com Satanás e com as forças das
trevas (esp. Ef 6.10-20). Em meio a todas as lutas e batalhas, Paulo lhes
ofereceu uma promessa importante: “Em breve, o Deus da paz
esmagará Satanás debaixo dos pés de vocês” (Rm 16.20). Aqui, Paulo
tem em mente a maldição pronunciada por Deus sobre a serpente em
Gênesis 3.15: “Ele lhe esmagará a cabeça, e você lhe ferirá o
calcanhar”. Essa passagem estava presente na expectativa judaica
messiânica daquela época, como mostra o Testamento de Levi 6.5-6:
“O Senhor Deus é o poderoso de Israel, que virá à terra como homem e,
por meio dele, salvará Adão. Então, todos os espíritos de engano serão
entregues para ser pisoteados, e os homens reinarão sobre os espíritos
malignos”.4 Para Paulo, essa tarefa seria realizada pelo Senhor Jesus
Cristo. Satanás e todos os seus poderes serão arruinados na segunda
vinda de Cristo.
Paulo deixou claro que uma intensificação de atividade satânica
antecederá a volta de Cristo (2Ts 2.1-12). Falou de uma rebelião
amplamente difundida contra Deus, liderada por uma importante figura
maligna, que ele chamou “o perverso”. O próprio Satanás infundirá
nesse indivíduo poder sobrenatural, e ele será capaz de realizar sinais e
maravilhas de toda espécie (2Ts 2.9; cf. tb. Ap 13.2). A tônica de sua
atividade será o engano: ele se dirá superior ao único Deus verdadeiro e
a todas as divindades que as pessoas adoram em suas várias religiões
pagãs. Procurará levar todas as pessoas a lhe prestar culto e desviará a
atenção delas do Deus verdadeiro. Durante esse período, Deus permitirá
até que espíritos de engano iludam não cristãos e confirmem sua crença
no grande engano do “perverso” (2Ts 2.11).5 A entrada desse
“anticristo” em cena será, em vários aspectos, intencionalmente paralela
à forma em que acontecerá a segunda vinda de Cristo, a fim de tornar o
engano ainda mais atraente. Essa violenta investida final de rebelião,
porém, só ocorrerá quando Deus permitir que a atual “força
refreadora” seja removida.
No parecer de Paulo, esse poderoso emissário humano de Satanás
não será obstáculo para Cristo quando ele voltar. O apóstolo
proclamou em tom triunfante que “então será revelado o perverso, a
quem o Senhor Jesus matará com um sopro de sua boca” (2Ts 2.8).
O ensino de Paulo aqui ressalta como serão sombrios os dias que
antecederão de imediato a vinda de Cristo. Como será difícil para
aqueles que não conhecem Cristo se voltarem para ele! Os crentes
precisam ter consciência de como será a vida nesses dias para que não
sejam enganados. Essa passagem também esclarece os aspectos
característicos do método de operação de Satanás: ele atua por meio de
indivíduos, imita a verdade e procura, acima de tudo, enganar as
pessoas e afastá-las do único Deus verdadeiro.
A sujeição final dos poderes a Cristo
Os principados e poderes malignos, bem como seu líder, Satanás,
chegarão a um ponto definido da história em que sua tirania será
eliminada. Em nossos dias, eles agem como cães ferozes presos por uma
longa correia. Quando Cristo voltar, ele encurtará a correia a ponto de
não poderem mais fazer nenhum mal, nem provocar nenhum medo.
Serão completamente aplacados.
Paulo enxergava a consumação da história no ato de Cristo de
entregar seu reino a Deus Pai. Antes disso, Paulo antevia dois
acontecimentos importantes: (1) a ressurreição dos mortos e (2) a
“destruição” dos inimigos de Cristo. O primeiro inimigo a ser
derrotado é a hoste de poderes espirituais. Paulo explica: “Então virá o
fim, quando ele [Cristo] entregar o reino a Deus Pai depois de ter
destruído todo domínio, autoridade e poder” (1Co 15.24, RSV). Em
primeiro plano na mente do apóstolo estão todos os espíritos malignos
sobrenaturais e anjos maus que a igreja combateu ao longo de toda a
sua existência. Esses são exatamente os mesmos termos que Paulo usou
em outra passagem para falar desses poderes (cf. Ef 1.21). São forças
malignas cuja influência ficou evidente em toda espécie de oposição
humana a Deus e em toda forma de mal estrutural.
Dificilmente seria intenção de Paulo comunicar a ideia de que esses
poderes serão destruídos no sentido de que serão aniquilados. Antes, é
provável que o termo “destruir” (katargeō) seja a ideia de privá-los de
sua capacidade de fazer o mal, isto é, aplacá-los.6 A morte e a
ressurreição de Cristo marcaram o início do fim deles, como Paulo
descreveu em 1Coríntios 2.6-8. Essa passagem deixa implícito que
Cristo completará essa obra em um ato final. Eles serão despojados
para sempre de sua capacidade de atuar de forma hostil e coerciva
contra o povo de Deus.
A morte é citada, então, como inimigo final que será despojado de
sua capacidade de tirar a vida das pessoas. A morte e os poderes das
trevas constituem, juntos, os inimigos que Deus sujeitará a Cristo, isto
é, que ele colocará “debaixo de seus pés” como cumprimento de Salmos
110.1 e Salmos 8.6. A ressurreição de Cristo é a garantia para os crentes
de que eles também terão vida, mesmo depois de passarem pela morte
física. Os crentes são unidos a seu Senhor ressurreto de forma tão
próxima que não apenas participam de modo limitado da vida
ressurreta no presente, mas também serão ressuscitados dos mortos em
sua vinda (parúsia).
Em Efésios e Colossenses, Paulo expressou em palavras diferentes a
mesma promessa da subjugação final, por Cristo, dos poderes das
trevas. Em Efésios 1.10, Paulo falou da consumação da era como “fazer
convergir em Cristo todas as coisas da terra e do céu”. A extensão
abrangente do reinado de Cristo é destacada aqui; nenhuma parte da
criação continuará a operar em rebelião ostensiva a Cristo. Seu reinado
inclui especialmente todos os principados e poderes.
Em Colossenses, Paulo descreveu o fim dos tempos como
reconciliação universal. Disse: “Pois foi do agrado de Deus que nele [em
Cristo] habitasse toda aplenitude, e por meio dele reconciliasse consigo
todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão no céu,
ao estabelecer a paz pelo seu sangue derramado na cruz” (Cl 1.19-20).
Por certo, os poderes das trevas não serão redimidos no mesmo sentido
que os cristãos e, portanto, não experimentarão reconciliação com Deus
como amigos. Paulo deixou claro mais adiante na carta que os poderes
foram derrotados na cruz como inimigos (Cl 2.15). Eles são subjugados
contra sua vontade. A ênfase dessa passagem é sobre a harmonia
universal final e sobre a ausência de qualquer mal pessoal ou estrutural.
Como diz um comentarista, “as alternativas, se esses poderes foram
subjugados ou se foram redimidos, são falsamente formuladas. É
decisivo que o novo mundo será um mundo de paz e reconciliação, e
Cristo será seu governante”.7 O céu e a terra não terão mais as
degenerações e os deslocamentos traumáticos provocados pelo mal.
Serão conduzidos de volta a sua ordem divinamente criada e
determinada por meio da ressurreição e exaltação de Cristo.8 Nesse
contexto, Paulo concentra a atenção especialmente na cruz de Cristo
como instrumento principal de Deus para garantir paz e harmonia
absolutas em toda a criação.
Os poderes das trevas terão, enfim, de reconhecer que Jesus é
verdadeiramente o Senhor, como Paulo disse aos filipenses: “Para que
ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da
terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para a glória de
Deus Pai” (Fp 2.10-11). Quaisquer que sejam os tipos de poderes
sobrenaturais existentes (espíritos astrais, espíritos terrestres, espíritos
do mundo dos mortos), todos serão obrigados a reconhecer o senhorio
soberano de Cristo. Ele acabará com sua hostilidade.
Embora Paulo não tenha tratado dessa questão em detalhes, deu a
entender que os crentes julgarão com Cristo, no fim dos tempos, o
sistema mundial e todos os anjos maus (1Co 6.3). Outros autores do
Novo Testamento também indicaram esse julgamento futuro dos anjos
(2Pe 2.4; Jd 6). Não cristãos enfrentarão o mesmo julgamento e a
mesma condenação que o Diabo (1Tm 3.6). O Apocalipse de João
antevê que o Diabo e seus poderes serão lançados em um lago de fogo,
onde serão atormentados por toda a eternidade (Ap 20.10,14).
Para os leitores de Paulo do primeiro século, essas passagens
certamente foram um grande consolo à luz de seus medos dos poderes
hostis e das forças invisíveis do destino. A história está nas mãos de um
Deus amoroso, que comprou a redenção com o sangue de seu único
Filho. Nós também temos a certeza de que quaisquer forças do mal que
estejam nos afligindo estão com os dias contados. Em breve, Cristo
reinará supremo e restaurará o mundo a seu esplendor criado.
1 Nos antigos cultos gregos, Tique (gr. Tykhe, “sorte”) era a divindade tutelar responsável
pela fortuna e prosperidade de uma cidade, seu destino e sorte, fosse ela boa ou ruim. (N. do E.)
2 Hans Dieter Betz, Galatians, Hermeneia (Philadelphia: Fortress, 1979), p. 205.
3 Ibidem, p. 205.
4 Tradução para o inglês de H. W. Hollander; M. de Jonge, The Testaments of the Twelve
Patriarchs, Studia in Veteris Testamenti Pseudepigrapha 8 (Leiden: Brill, 1985), p. 121. Eles
fornecem várias referências adicionais que ilustram a crença judaica de que o Diabo e seus
espíritos serão destruídos no fim dos tempos (p. 125).
5 Veja I. Howard Marshall, 1 and 2 Thessalonians, New Century Bible Commentary (Grand
Rapids: Eerdmans, 1983), p. 204.
6 Veja C. K Barrett, The First Epistle to the Corinthians, Harper’s New Testament
Commentary (San Francisco: Harper & Row, 1968), p. 358.
7 Joachim Gnilka, Der Kolosserbrief, Herders theologischer Kommentar zum Neuen
Testament (Freiburg: Herder, 1980), p. 75 (tradução do autor). Igualmente, Ralph Martin, em
Reconciliation: a study of Paul’s theology (Atlanta: John Knox, 1981), p. 119, afirma que, nesse
contexto, “‘reconciliação’ tem o sentido de harmonia e paz dentro da ordem cósmica”.
8 Eduard Lohse, Colossians and Philemon, Hermeneia (Philadelphia: Fortress, 1971), p. 59.
D
PARTE 3
A INTERPRETAÇÃO DOS
PODERES PARA HOJE
ois grandes obstáculos assomam diante de nós na interpretação
da relevância para a igreja atual do ensino de Paulo sobre os
poderes. Primeiro, há o problema da percepção de mito. Como
observamos na introdução, a sociedade ocidental não acredita
na ideia de espíritos, sejam eles bons ou maus. Trazer de volta a ideia de
espíritos malignos seria considerado por muitos um retrocesso a um
mito primitivo. Precisamos, portanto, tratar seriamente de como trazer
à luz a relevância contemporânea do testemunho bíblico sobre esse
tema.
O segundo grande obstáculo que enfrentamos é a ampla variedade de
interpretações dos poderes. A interpretação cristã tradicional enfatiza a
influência dos poderes sobre indivíduos. A maior parte dos livros
carismáticos populares sobre esse assunto trata principalmente da
ministração a indivíduos possuídos por demônios. Essas duas
perspectivas pressupõem, obviamente, que os espíritos malignos
existem.
Interpretações mais recentes dos poderes enfatizam, de modo
contrastante, a influência deles em escala mais ampla, a saber, a atuação
dos poderes principalmente por meio das estruturas de nossa existência.
Coisas como estruturas políticas e sociais são citadas com mais
frequência (capitalismo, socialismo, nacionalismo), mas outros fatores
também são incluídos, como padrões sociais, normas culturais, hábitos
de grupo (como o desenvolvimento de uma mentalidade de rebanho em
uma partida de futebol). Essas “estruturas de existência” são vistas,
então, como os objetos de nossa luta espiritual e, possivelmente, tidas
como demoníacas. Muitos que adotam essa perspectiva veem as
referências bíblicas aos poderes como símbolos de realidades não
pessoais.
Para a maioria dos cristãos, porém, a questão da influência difundida
dos poderes não tem sido tema de reflexão criteriosa. A seção a seguir
tratará do problema de como interpretar os poderes dentro da realidade
de nosso século e nos levará a refletir com mais profundidade acerca da
influência dos poderes sobre indivíduos e em uma escala bem mais
ampla. Os comentários serão limitados às implicações que podemos
extrair do ensino do apóstolo Paulo sobre os principados e poderes.
Podemos ser ainda mais beneficiados por um estudo atento da vida de
nosso Senhor, do livro de Atos, das demais epístolas do Novo
Testamento e de Apocalipse.
N
13
Realidade ou mito?
o linguajar comum, a palavra mito transmite a ideia de
irrealidade, uma narrativa sem base factual com personagens
humanos e sobre-humanos sem nenhuma realidade objetiva.
Podemos dizer que a terra de Oz, o feiticeiro e a bruxa malvada
do oeste são míticos, pois são criações imaginárias sem existência
verificável. Esse fato não indica que a narrativa não tem significado
para nós; sem dúvida, ela tem. Todos nós podemos nos identificar com
o medo que Dorothy sente da bruxa malvada e com seu desejo de voltar
para casa.
Muitos diriam que espíritos malignos são míticos em um sentido
semelhante. São personagens sobre-humanos imaginários de uma
narrativa que tem significado para nós, mas não devem ser considerados
seres reais, com uma existência verdadeira.
De modo contrastante, o apóstolo Paulo nunca deu nenhum sinal de
dúvida no tocante à existência real dos principados e poderes. Para ele,
eram seres angelicais que pertenciam ao reino de Satanás. O objetivo
deles é afastar a humanidade de Deus por meio da influência direta em
indivíduos, bem como pelo exercício de controle sobre as religiões do
mundo e sobre diversas outras estruturas de nossa existência.
Não podemos esquecer, porém, que Paulo estava inserido em sua
época. Vivia em uma cultura, aliás, em uma era, que asseverava a
existência do mundo dos espíritos. Jamais teria ocorrido a uma pessoa
do primeiro século perguntar se essas forças eram reais ou não. Quem
vivia nessa época se preocupava mais em como lidar com a influência
dos poderes.
A crença na existência real desses poderes

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