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SEMIÓTICA APLICADA AO
DESIGN
AULA 1
Prof.ª Suzie Ferreira do Nascimento
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CONVERSA INICIAL
Em nossos estudos, serão reunidos alguns tópicos de semiótica, que a
prática demonstrou serem úteis no dia a dia do designer. Com a infinidade de
tarefas que temos de desempenhar, é preciso ser muito criterioso no uso do
tempo, por isso, o objetivo é fazer com que cada tópico contribua para a
qualificação do seu trabalho.
Claro, toda seleção requer incluir alguns assuntos e abdicar de outros.
Então, fique atento: este não é um conteúdo que ambiciona ser profundo na
complexa ciência da semiótica, mas sim utilizar alguns dos seus preceitos na
prática do design. Agora, se você se apaixonar pelo tema (como se espera que
aconteça), então precisará procurar outros livros, alguns deles citados inclusive
neste conteúdo, combinado? Então vamos lá.
CONTEXTUALIZANDO
No século XVII, John Locke (1632-1704), um importante filósofo britânico,
utilizou a palavra semeiotiké para se referir aos seus estudos sobre semiótica. E
por que ele teria escolhido essa palavra? Trata-se de uma palavra grega que
pode ser muito útil à aproximação entre semiótica e design. Ela designa a atitude
de interpretar determinado sinal, e sua origem está na medicina.
No passado, se um paciente ia ao médico com manchas amarelas no
corpo, o doutor precisava interpretar aquele sinal, ou seja, precisava deduzir o
que estava errado no corpo do paciente a partir de uma indicação puramente
visual.
Pense que você deverá se utilizar da semiótica para fazer o trajeto
inverso, ou seja, ela pode te ajudar a encontrar o sinal, a tal mancha amarela,
que deve significar alguma coisa demandada do projeto que o seu cliente (ou
seja, quem te contrata para desenvolver o projeto) leva expressa interiormente.
O objetivo do designer, seja qual for a sua especialidade, à luz da
semiótica, é justamente oferecer o produto que encontre ressonância nas
necessidades emocionais do cliente usuário/público. Em outras palavras,
cabe ao designer significar aquela necessidade.
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Saiba mais
Além de Locke, Aristóteles e São Tomás de Aquino são outros dois nomes
importantes para o desenvolvimento da ciência da semiótica. Saiba mais lendo
as páginas 21 e 22 do livro Semiótica e produção de sentido: comunicação,
cultura e arte, de Max Costa e André Dias, da Editora Intersaberes.
TEMA 1 – A INTERDISCIPLINARIDADE DA SEMIÓTICA – POR QUE
SEMIÓTICA É FUNDAMENTAL AO DESIGN?
Os conhecimentos produzidos pela semiótica, ou seja, pelo estudo das
maneiras com as quais é possível significar alguma coisa, são de grande
utilidade para inúmeros outros campos. Quem estuda o desenvolvimento da
linguagem humana se interessa por mecanismos de comunicação e recorrerá à
semiótica para compreender como uma coisa indefinida e abstrata é substituída
por outra, representada ou concreta. Assim, certamente você já encontrou, ou
encontrará, estudos, pesquisas e situações no seu cotidiano em que é possível
sentir o aroma da Semiótica.
Se liga
A ciência da semiótica se ocupa do estudo das maneiras com as quais é
possível significar alguma coisa.
Mencionarei alguns possíveis exemplos: o estudo das cores geralmente
reserva boa parcela da sua teoria para o significado. Alguns deles são baseados
em convenção1, como o vermelho da paixão, outros em reações fisiológicas,
como o amarelo do perigo, outros ainda em semelhança, como o verde da
natureza, e assim por diante.
Quase sempre a cor está no lugar de, ou significa, outra coisa. Um
clássico da análise semiótica das cores é o livro Homem, comunicação e cor,
publicado no ano 2000, por Irene T. Tiski-Franckoviak. Nesse livro de influência
freudiana, a autora se aprofunda nos aspectos subjetivos da nossa reação às
1 Convenção é um acordo, explícito ou implícito, sobre quais sinais significam quais coisas.
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cores, e isso tem tudo a ver com as escolhas que o designer deve fazer, se quiser
produzir artefatos e representações significativas.
Figura 1 – Designer selecionando cores
Crédito: Beautrium/Shutterstock.
Qualquer disciplina que se ocupe de representações gráficas deverá,
também, tangenciar os estudos da semiótica. Uma linha, para quem a vê,
dificilmente será só uma linha. Ela está ali significando algo, desde uma estrada
à trajetória de uma seta, ou mesmo o contorno definido para alguma coisa que
não o tem naturalmente.
Além disso, uma linha reta causa impressões diferentes das causadas por
uma linha curva e, com isso, significa alguma coisa diferente. E mesmo linhas
de um mesmo tipo podem significar coisas diferentes. Veja, por exemplo, as
Figuras 2 e 3. Nos dois casos, a representação é composta por linhas curvas em
preto. No entanto, na Figura 2, as linhas estão no lugar de ondas, enquanto na
Figura 3, no lugar de uma rede.
https://www.shutterstock.com/g/Beautrium
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Figura 2 – Linhas curvas, formando ondas, em preto e branco
Crédito: Mastak80/Shutterstock.
Figura 3 – Grade em linhas pretas sobre superfície curva branca
Crédito: savva_25/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/Mastak80
https://www.shutterstock.com/g/savva_25
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Com as formas não é diferente: quem quer que olhe para um círculo,
saberá que ele é capaz de rolar, enquanto um quadrado, e um triângulo
assentado em sua base, não se movem, exceto se forem arrastados. Mas onde
fica a significação nesse caso? Justamente no fato de um círculo significar a
capacidade de rolar, ou entrar em movimento, mesmo estando parado, e em
uma representação plana. Quem utiliza o círculo para significar alguma coisa em
movimento não precisa mover, realmente, nada, basta representar o círculo.
Figura 4 – Formas geométricas
Crédito: Wolf_139/Shutterstock.
Veja este outro exemplo, agora vindo da moda: suponha que um produtor
tenha o desafio de apresentar um vestido fluido em uma foto, que é uma imagem
parada representada bidimensionalmente, ou seja, ele precisa significar a
fluidez, que é um atributo que geralmente as pessoas percebem com o tato e em
movimento.
https://www.shutterstock.com/g/wolf1983
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Figura 5 – Vestido em movimento
Crédito: Inara Prusakova/Shutterstock.
Se você observar bem, concluirá que a imagem representada na Figura 5
não permite saber se todo aquele movimento aconteceu, de fato, no estúdio, ou
se é um efeito gráfico. O que conta é que o olho do observador entende, sem
necessitar do auxílio do tato, que o tecido é leve. Ou seja, quem produziu a foto
encontrou uma maneira eficiente de significar a fluidez.
Quem trabalha com interiores faz significação o tempo todo. Mas fique
atento: para entender a significação, você precisa sempre perguntar o que
aquelas cores e materiais estão substituindo. A foto da Figura 6, por exemplo,
tem cores diversas, metal, madeira e uma cadeira de plástico. O que essas
coisas substituem? O metal e o plástico não existem sem tecnologia, por isso é
possível dizer que eles estão significando a tecnologia e a modernidade.
As cores vibrantes e justapostas são comuns em brinquedos, ou seja, elas
estão significando atributos comuns na infância, como despreocupação e
expectativa de futuro. Já os pufes coloridos, que parecem ser manufaturados,
estão significando o valor de coisas feitas à mão, eventualmente a lembrança de
uma avó. Claro que nada disso é obrigatório. Você verá ao longo deste conteúdo
https://www.shutterstock.com/g/inarik
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que tudo é um jogo e que o designer precisa da Semiótica para ter maiores
chances de ganhar, ou seja, acertar na significação.
Figura 6 – Ambiente moderno, com sofá cinza e almofadas coloridas
Crédito: Ground Picture/Shutterstock.
A arquitetura é repleta de sinais que substituem inquietações humanas.
Um observador atencioso poderá compreender a alma humana observandoas
espaçosas casas do interior, os barracos nas beiradas dos morros, os prédios
das metrópoles. Um ensaio muito sensível a respeito da Arquitetura das cidades
de Berlim e Viena no fim do século XIX foi escrito por Georg Simmel em 1903, e
leva o título, em português, de As Grandes Cidades e a Vida do Espírito
(Nascimento, 2016).
Mas talvez não seja equivocado dizer que a arte que mais investe em
semiótica é o cinema. A chamada sétima arte é feita, basicamente, de coisas
que significam outras coisas. Em um filme, o cineasta deve oferecer, pelo olho,
informações como cheiros, sensações de frio e calor, emoções de amor e ódio
e isso exige ser muito bom na arte da substituição. Se você se interessa pelo
tema, sugiro filmes de Steven Shainberg e de Wes Anderson. Assistindo
algumas vezes A Pele, que Shainberg produziu em 2006, o espectador é forçado
a admitir que quase todas as imagens são ricas em significado.
https://www.shutterstock.com/g/Ground+Picture
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Figura 7 – Cena do filme A pele, de Steven Shainberg
Crédito: Rotten Tomatoes Classic Trailers.
Conhecendo a trama, compreende-se, pela Figura 7, que o vestido
abotoado até o pescoço está no lugar da opressão que a personagem está
sentindo, que a pele sobre os ombros está no lugar do peso que ela carrega
(sobretudo considerando a relação com a mãe modista), que os dois
liquidificadores estão ali para dizer que, para aquele grupo social, o lugar dela é
na cozinha, e não junto aos convidados. Tudo isso dito em uma única cena, pela
correta significação. Portanto, com o recurso à semiótica, o cineasta está
multiplicando a capacidade comunicacional do filme. Em uma Arte cara como o
cinema, isso é muito importante.
O cinema também retira proveitos comunicacionais da Arquitetura. Portas,
janelas, transparências, dimensões e materiais, se utilizados com critério,
emitem discursos e narrativas complexas, que fascinam o espectador. Um
excelente exemplo, neste caso, é o filme iraniano A Separação, de Asghar
Farhadi (Nascimento, 2017), e I am love, que Luca Guadagnino produziu em
2011.
Até aqui você conheceu algumas aplicabilidades da semiótica em várias
áreas. Na sequência, apresentaremos um resumo geral de nossos estudos.
TEMA 2 – VISÃO GERAL
2.1 Visão geral dos estudos sobre semiótica aplicada ao design
Neste tópico, apresento a você uma prévia do que será tratado em nossos
estudos. Assim, você já fica sabendo quais conhecimentos adquirirá estudando
este conteúdo e de que maneira ele será útil para a sua vida profissional.
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Iniciando nossas discussões, o propósito é fazer com que você reconheça
que a semiótica é muito importante para a vida e para a sua atividade
profissional. Você aprenderá que se trata de uma ciência que estuda uma
característica humana vital à nossa sobrevivência, que é a significação, ou seja,
a Arte de trocar uma coisa por outra.
Se liga
Significar é trocar uma coisa por outra.
Depois, procuraremos convencê-lo de que é muito importante investir em
um bom repertório de significações, ou seja, gostaria que entendesse que
precisa ter uma reserva qualificada de experiências se quiser ter sucesso na
utilização dos signos. Sem isso, não terá segurança ao decidir o que deve ser
trocado pelo o quê. Esse repertório é necessário porque trabalhar com signos é
também trabalha com as sensações, emoções e desejos, seus e do cliente. Isso
quer dizer que o cliente se relacionará com seu produto de maneira muito
pessoal e, por isso, você precisa compreender, ainda que de modo breve, o que
é a subjetividade humana.
Apresentaremos, ainda, o primeiro ferramental objetivo para que você
saiba como utilizar a semiótica a seu favor. Será feita a introdução ao sistema
triádico (de três partes) no qual o seu produto deverá ser inserido como signo.
Você aprenderá que o seu produto deve significar, ou seja, estar no lugar das
emoções, sentimentos e desejos da pessoa que vai adquiri-lo.
O segundo ferramental importante será apresentado em nossos estudos,
quando abordarmos três categorias que servem para qualificar as maneiras com
as quais o seu cliente poderá encontrar suas próprias emoções significadas no
seu produto. Essas categorias priorizam as relações estimuladas por
semelhança (ícone), por alusão (índice) e convenções (símbolo).
Você também terá a oportunidade de conhecer ainda uma terceira
ferramenta de grande utilidade para nós, designers. Neste caso, são outras três
categorias que ajudam a organizar seu produto em três dimensões. Com essa
separação, você conhecerá melhor as suas produções e seus projetos ficarão
mais organizados.
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Finalizando nossos estudos, vamos recapitular os principais conceitos
aprendidos, de maneira aplicada a projetos de design, em que apresento e
analiso vários exemplos práticos.
Figura 1 – Mapa mental de nossos estudos
SIGNIFICAÇÃO, UMA PECULIARIDADE HUMANA
Você compreenderá por que a Semiótica é tão importante. Entenderá que se trata de uma
Ciência que estuda uma característica humana vital à nossa sobrevivência, que é a
significação, a arte de trocar uma coisa por outra.
REPERTÓRIO, SUBJETIVIDADE
você reconhecerá a importância de ter um bom repertório de signos e deverá entender que
esses signos são produzidos por subjetividades bastante complexas.
INTRODUÇÃO À TRÍADE DA SIGNIFICAÇÃO
Depois de compreender a ideia geral, SERÁ a hora de reconhecer que os produtos dos
designers devem ter significação, ou seja, eles devem substituir sensações, emoções e
desejos, para seu cliente em potencial.
RELAÇÕES ICÔNICAS, INDICIAIS E SIMBÓLICAS
você conhecerá uma ferramenta importante para conseguir produzir um design significativo: as
relações icônicas, indicias e simbólicas.
ORGANIZANDO O PRODUTO EM DIMENSÕES
Você conhecerá outro ferramental útil, que são as dimensões sintática, semântica e
pragmática. Com elas você estuda a produção de outros profissionais e organiza a sua própria,
porque conseguirá dividir o seu produto em três dimensões.
A INTERDISCIPLINARIDADE DA SEMIÓTICA.
Serão apresentados vários exemplos da aplicabilidade da semiótica em diversos segmentos do
Design.
Até aqui apresentei um panorama geral de nossos estudos. A seguir,
apresento alguns conceitos introdutórios. O objetivo é que você se familiarize
com um contexto mais amplo no que se refere à significação, se preparando para
o que vem nas etapas seguintes. Vamos lá?
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2.2 Visão geral dos tópicos estudados
2.2.1 Significar é trocar uma coisa por outra
Um dos princípios que você não deve esquecer, nem perder de vista ao
estudar este conteúdo, é que o que importa para os sistemas de signos são as
substituições. Trata-se de compreender como nós, humanos, substituímos
algumas coisas por outras, e com que finalidade.
Sob o ponto de vista prático, essa compreensão interessa porque você,
como designer, precisará encontrar substitutos eficazes na sua área. Conforme
exemplifiquei no tópico anterior, quase todas as atividades do design trabalham
com substituições, pois não é possível colocar sentimentos e sensações de
modo concreto em uma imagem, ou mesmo em um ambiente.
Se o que você faz será percebido somente pela visão, então todas as
informações têm de ser substituídas por imagem. Suponha que você fará uma
foto de comida e nessa imagem não pode haver pessoas, ou ambientação, o
que impede razoavelmente o uso da memória. Que recursos você utilizaria para
convencer o observador de que ela é saborosa? Como, por meio de uma
informação visual, poderá fazer com que esse observador sinta “água na boca”?
Figura 8 – Foto de comida com ênfase no enquadramento
Crédito: Timolina/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/timolina
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Figura 9 – Foto de comida com ênfase nas cores e no brilho
Crédito: Kritchai7752/Shutterstock.
Figura 10 – Foto de comida comênfase na elegância
Crédito: Pietruszka /Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/Kritchai7752
https://www.shutterstock.com/g/Pietruszka
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Analise comigo os exemplos nas Figuras 8, 9 e 10. A foto da Figura 8
explora mais a questão do enquadramento, colocando os elementos em diagonal
e aproximando o recheio da câmera, e a tábua de madeira ajuda a dar realidade
à medida que a foto favorece sua textura. Na Figura 9, a ênfase está no brilho e
nas cores, que são evidenciados pelo contraste com o branco do prato e a palha
fosca do suporte.
Finalmente, na Figura 10, o produtor parece querer transmitir a ideia de
sofisticação pela cor e pelo fino fio de molho que cai. Perceba que todos esses
recursos estão nas fotos em substituição ao paladar saboroso. E o mais incrível
é que funciona, ou seja, nós, humanos, conseguimos assimilar esse sistema de
trocas, mais do que isso, fazemos uso dele constantemente.
2.2.2 Sistemas organizados de substituição
Mas será que só humanos significam? Provavelmente não. Onde há
comunicação entre animais da mesma espécie, é porque existe algum tipo de
significação. Veja o exemplo das baleias: elas emitem sons e vibrações que
significam alguma coisa para outras baleias; embora não seja possível dizer
exatamente como isso acontece, o fato é que determinados sons para as baleias
significam perigo.
E entre os humanos, será que toda a significação depende de um acordo
prévio, ou fazemos isso naturalmente, como as baleias? Você pode responder a
essa pergunta imaginando que precisa pegar um ônibus em um lugar, cujo
idioma não conhece. Como irá fazer com que seu interlocutor entenda o que
precisa? Como fará para ser compreendido? Fará gestos? Apontará? Imitará
algum som? Dramatizará?
Enquanto você se esforça por encontrar o recurso mais adequado para
colocar no lugar do ônibus, provavelmente seu interlocutor estará buscando nas
suas experiências, algo que possa equivaler àquilo que ele vê você fazendo.
Eventualmente, ele encontrará, na sua própria mente, a figura do ônibus
correspondente aos signos que você estava produzindo. Conforme Nietzsche
explica, o olho do observador “conclui” o estado emocional que produz os gestos
(Nietzsche, 2005, p. 43). Se o nosso olho é capaz de “concluir” alguma coisa,
isso demonstra que nossa capacidade de significação não está limitada ao que
já está convencionado.
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Mas, com esse simples e exótico exemplo, você já pode ter uma ideia de
como seria difícil a nossa vida se a todo o momento tivéssemos de ficar
experimentando significações. Por isso, é vital recorrer às convenções. É preciso
que diferentes tribos saibam o que significa um sinal de fumaça, que muitas
pessoas saibam o significado das letras SOS, que todos os que dirigem saibam
os significados das placas de trânsito, e assim por diante.
Figura 11 – Ícones utilizados em tecnologias digitais
Crédito: Deemerwha studio/Shutterstock.
Em termos mais atuais, pense na quantidade de sinais que aparecem no
seu celular e na maneira quase instintiva com a qual você os compreende. No
exemplo da Figura 11, se a pessoa não souber o significado de todos aqueles
ícones, terá de ler um manual, o que hoje é quase impraticável. Exemplos como
esse mostram a importância das convenções que regem os sistemas mais
comuns de significação. Mas você concluirá que o designer precisa ir além
daquilo que já está convencionado. Neste sentido, ele desempenha papel de
artista.
2.2.3 Arte: onde tudo começa
É preciso estabelecer, desde já e com clareza, o que é arte no contexto
dos estudos da comunicação.
https://www.shutterstock.com/g/Khanchit+khirisutchaluai
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O filósofo Friedrich Nietzsche (1844–1900), profundo conhecedor do
tema, certa vez anotou em um fragmento a seguinte frase: prazer comunicado é
Arte (Nietzsche, 2005, p. 43). Essa definição nos ajuda bastante, porque
determina que arte é uma atividade que comunica uma sensação (Nascimento,
2014).
É importante compreender esse princípio porque existem outros conceitos
de arte e nem todos são condicionados à comunicação. Um artista
contemporâneo pode muito bem expressar a si mesmo em alguma arte e não
ser compreendido. Para a atividade do design, no entanto, a comunicabilidade é
fundamental.
Nietzsche, principalmente nos primeiros anos da sua produção filosófica,
entendeu que o artista era um criador de signos. E com criador, nesse caso, ele
queria dizer alguém que apresenta ao mundo a representação de algo até então
não representado. Pode parecer estranha a ideia de que nós, em pleno século
XXI, ainda necessitemos de novos signos. Você provavelmente acha que tudo
já está significado, mas isso não é verdade.
Um ser humano que nunca passou pela experiência de perder uma
pessoa querida desconhece a sensação, e não tem, ainda, para ela um signo,
algo para pôr em seu lugar. É verdade que há inúmeras músicas, imagens,
poemas falando de morte, mas não é seguro que algum desses recursos consiga
significar aquela dor individual. Voltando ao exemplo das tecnologias atuais,
imagine quantas novas angústias o ser humano contemporâneo está
experimentando sem que nenhum artista tenha criado ainda um signo para elas.
O fato de as pessoas começarem atividades adultas muito cedo, por
exemplo, gera um problema de significação. Um adolescente de 12 anos não
tem a mesma sensação, no que diz respeito à paixão, que um adulto de 30. Os
signos que ele terá de utilizar, muito provavelmente, serão tão inadequados
quanto os signos infantis são para um adulto.
Retornando à prática do design, o desafio no mundo competitivo de hoje
é encontrar esses nichos, sensações e sentimentos para os quais ainda não haja
significação ou, pelo menos, encontrar novas maneiras de significar o que já foi
significado. A maioria de nós manipula signos existentes, repete imagens,
palavras e sons de rápida assimilação. O estudo da Semiótica pode ajudá-lo a
fazer diferente.
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Até aqui foram apresentados os conceitos mais fundamentais para nossos
estudos. Nos próximos tópicos, escreverei mais pausadamente sobre cada um
deles.
TEMA 3 – SIGNIFICAR É SUBSTITUIR UMA COISA POR OUTRA
No tópico anterior, apresentei as principais ideias que serão
desenvolvidas. Você já sabe, então, que aqui nos aprofundaremos no
entendimento de que aplicar Semiótica tem a ver com saber como substituir
coisas.
Existem vários motivos pelos quais um designer precisa saber substituir.
O mais comum é a impossibilidade técnica. Você não pode trazer para o seu
produto o mar, o céu, uma árvore, um pet etc. Nada disso pode estar
concretamente no seu produto, por isso precisa ser substituído por outra coisa.
Vamos comparar as Figuras 12 e 13.
Figura 12 – Mulher carregando sacola de tecido
Crédito: Roman Zaiets Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/pt/g/romaset
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Figura 13 – Ilustração de bolsa com apetrechos de praia
Crédito: Stokkete/Shutterstock.
O que você vê na sacola da Figura 12 é uma sacola que pretende
substituir, ou estar no lugar de, uma atitude mais ecológica, posto que parece
ser feita de algodão, em um modelo muito simples, ou seja, algo que a pessoa
mesma pode fazer em casa se desejar. Com isso, o observador é levado a
pensar que aquela sacola é ecologicamente amigável, e a sacola
ecologicamente amigável estará no lugar do desejo que essa suposta pessoa
tem, de não agredir a natureza.
A sacola da Figura 13 apresenta outro tipo de substituição. A alça feita em
corda e as listras horizontais azuis são elementos comuns em barcos, ou seja,
eles estão ali em substituição ao barco, que não pode estar na sacola. Quem
produziu a sacola da Figura 13 trouxe elementos concretos, ainda que frações,
ou seja, pequenas partes de um barco de verdade. A pessoa que compra a
sacola estará, na verdade, comprando um artefato que estáno lugar do seu
desejo de tirar férias em um barco, ou coisa semelhante.
A imagem, no entanto, demonstra que o fotógrafo achou que esses
pequenos detalhes não eram suficientes e acrescentou uma série de outros
objetos mais óbvios, como a estrela-do-mar, apetrechos de férias, e ainda a praia
ao fundo. Fotos como essa são produzidas para consumo rápido e pretendem
não deixar margens à dúvida.
O observador deve compreender de modo imediato do que se trata, deve
ser convencido, a todo o custo, de que as férias que ele deseja estão
representadas por aquela sacola. Alguns programas televisivos são produzidos
https://www.shutterstock.com/g/cyano
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nesta mesma chave. Você os identifica pela extenuante repetição das falas e
pelo exagero emocional que, geralmente, vem acompanhado do exagero de
cores e sons. Compare esse excesso de informações com a Figura 14.
Figura 14 – Tigela de pipoca com controle-remoto
Crédito: PitukTV/Shutterstock.
O que os dois controles da imagem da figura 14 substituem? Obviamente
uma televisão ou aparelho similar. Indo além, a imagem toda substitui o momento
de relax, que é o desejo do observador. E isso com economia de informação.
Você provavelmente concordará, com base no comparativo entre as Figuras 13
e 14, que excesso não é garantia de melhor comunicação.
Agora vamos ao terceiro exemplo de sacolas. Observe com atenção as
Figuras 15 e 16.
https://www.shutterstock.com/g/PitukTV
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Figura 15 – Mochila amarela
Crédito: maximmmmum/Shutterstock.
Figura 16 – Ônibus escolar
Crédito: Prostock-studio/Shutterstock.
O objetivo do designer, neste caso, foi apresentar ao cliente uma mochila
que pudesse substituir o ônibus que leva as crianças para a escola. O que
importa no exemplo são as maneiras com as quais o nosso companheiro de
https://www.shutterstock.com/g/maximmmmum
https://www.shutterstock.com/g/prostock_studio
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profissão trouxe elementos do ônibus, atendo-se unicamente à forma e às cores.
Isso faz com que parte do trabalho fique à cargo do observador, pois é ele quem
tem que fazer todas as demais associações.
Um produto como esse requer um repertório específico, ou seja, não será
atrativo para todo mundo. Seu grande apelo está na substituição do ônibus, que
nem todos conhecem, e mesmo quem conhece pode não completar o trabalho
de significação mentalmente, como o artefato exige.
Dica
Um exemplo educativo de substituição complexa pode é a coleção de
moda criada pelo estilista brasileiro Oskar Metsavaht, para a Osklen, em
2015/2016. O estilista conviveu um tempo com o povo Ashaninka, na Amazônia
peruana. Metsavaht fez um trabalho sério de análise das cores, formas e de
valores daquele grupo social, e levou-os para sua coleção. O que esse trabalho
tem de especial é a não obviedade. Na ocasião, discutia-se muito a questão da
apropriação cultural, que é o que geralmente acontece quando designers
negligenciam a semiótica, partindo para uma substituição óbvia.
Sobre o trabalho de Metsavaht, sugiro que você procure imagens da
SPFW (São Paulo Fashion Week) 2016, na internet. Certamente concluirá que
não há nada de óbvio no trabalho do estilista brasileiro. Em vez de substituir a
arte do povo Ashaninka pela sua representação imagética, direta e simples, ele
foi em busca da compreensão dos seus elementos, transformando-os em outras
informações, estas, sim, presentes na sua coleção. Novamente, boa parte do
trabalho intelectual de compreensão fica para o observador. Reserve essa
informação para os conteúdos futuros.
Haverá um momento em que apresentarei alguma coisa sobre a análise
estética de Kant e como esse filósofo argumentou que a beleza tem a ver com a
sensação de prazer intelectual, ou seja, o prazer que o observador sente ao
decifrar um enigma. Esse prazer é negado nas substituições excessivamente
óbvias.
Se liga
Decifrar um enigma pode ser tão prazeroso quanto observar uma coisa
bela.
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Os primeiros exemplos que apresentei enfatizam a substituição de alguma
coisa concreta por imagens fictícias ou indícios, ou seja, a sua representação.
Mas, veja, isso é o comum, o que o seu concorrente também faz. Um passo
adiante é trabalhar para colocar em seu produto a sensação que o cliente tem
quando está no mar, quando contribui para salvar o planeta, quando retorna à
escola, e assim por diante.
O que é realmente desafiador é encontrar a representação concreta para
sentimentos abstratos. Talvez possamos até assumir que Metsavaht, na sua
coleção, ambicionou que seus clientes sentissem, ainda que por um momento,
o que é pertencer ao povo Ashaninka.
Isso porque, embora o observador saiba que está diante de algo
representado, a sensação que ele tem é real. Você já deve ter experimentado
isso no cinema ou assistindo uma série que gosta. Mesmo sabendo que aquilo
é uma fantasia, as suas sensações e emoções são reais, e essa é a conexão
que importa. É isso que faz com que aquela série ou cena fique gravada na sua
memória, e você se sinta tentado a assisti-la novamente, várias vezes.
Como pode perceber, criar uma conexão emocional entre um artefato e o
cliente é um grande desafio. Mas fique tranquilo, se seguir com atenção os
conteúdos, ao final dos estudos, estará mais preparado para alcançar esse
objetivo, que não é fácil, pois requer conhecer minimamente como funciona a
subjetividade humana. Vamos começar devagar, conhecendo os sistemas de
substituição mais diretos e simples.
TEMA 4 – SISTEMAS DE SUBSTITUIÇÃO CONVENCIONAIS, SIGNOS
ARBITRÁRIOS E NÃO ARBITRÁRIOS
Há pouco, mencionei que a vida humana sem convenções de
comunicação seria um caos. O modo como essas convenções acontecem
remonta a tempos longínquos, inacessíveis. Você já se perguntou, por exemplo,
como é que a língua portuguesa chegou aos portugueses? Talvez saiba que o
português é uma das línguas latinas, ou seja, deriva do latim. Mas de onde teria
vindo, afinal, o latim falado e escrito? Nos próximos parágrafos, você conhecerá
um pouco sobre como certas convenções e sinais de comunicação tomam forma.
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4.1 Sistemas convencionais de substituição
Alguns achados arqueológicos sugerem que, por volta de 30 mil anos
antes de Cristo, já havia algum sistema rudimentar de sinais utilizados para
contar. Registros de língua organizada, com sinais convencionais, podem ter
surgido por volta de 9 mil anos antes de Cristo. Para você ter um parâmetro, os
cristãos costumam situar o Rei Salomão por volta do ano 1000, ou seja, haveria
pelo menos 8 mil anos de escrita organizada antes de Salomão (Crystal, 2012,
p. 105).
Saiba mais
Você pode conhecer alguma coisa sobre as origens da escrita lendo todo
o capítulo 16 de
CRYSTAL, D. Pequeno tratado sobre a linguagem humana. 1. ed. [S.l.]:
Saraiva, 2012.
Há segmentos específicos da Semiótica que se dedicam ao estudo dos
sinais adotados na escrita. Talvez um dos estudiosos mais citados, nesse
sentido, seja o de Ferdinand Saussure, cujo trabalho Santaella assim descreve:
Nesse sentido, a linguística saussureana não é meramente uma teoria
para a descrição de línguas particulares, tais como a francesa, inglesa
ou ameríndia, mas uma teoria que tem por objeto os mecanismos
linguísticos gerais, quer dizer, o conjunto das regras e dos princípios
de funcionamento que são comuns a todas as línguas. (Santaella,
1983, p. 16)
Como Santaella mesmo adverte, Saussure representa uma corrente,
notadamente a europeia, enquanto Charles Peirce representa a corrente
americana. Mas os estudos de semiótica, representados em Saussure ou Peirce,
são relativamente recentes, por isso a Semiótica pode ser classificada como uma
ciência nova. Já o ato mesmo de significar, de substituir coisas por sinais, é tão
antigo quanto o ser humano. Isso quer dizer que não é a Semiótica que
estabelece as convenções, ela apenasestuda como essas convenções se
organizam.
Você verá, ao longo de nossos estudos, que uma maneira de introduzir
significado no seu trabalho é justamente utilizando as convenções ou as leis que
todo mundo já reconhece. Estamos cercados por elas, quer ver? Todos os
24
números são convenções, as placas de trânsito, sinais de acessibilidade, sinais
tecnológicos utilizados na linguagem virtual.
O artefato que você comprou por internet não chegaria à sua casa se não
houvesse uma convenção garantindo alguma lógica à disposição das casas nas
ruas. Para isso, é preciso números, sequência para maior ou para menor,
números convencionados à direita e à esquerda.
A maioria dos sinais convencionados é visual, mas existem convenções
para sinais sonoros. Já imaginou o que seria um jogo de futebol se o juiz ficasse
apitando aleatoriamente sem respeitar as convenções?
Evidentemente, nós somos alfabetizados para compreender os números,
e os atletas estudam para conhecer a convenção dos sinais do juiz. Mas há
convenções que não precisam ser estudadas. Quem não sabe que o chiado de
uma chaleira substitui o aviso verbal de que a água ferveu? Quanto menos
arbitrário for o sinal utilizado na convenção, menos restrito, menos exclusivo e,
portanto, mais universal.
Dica
Dizer que alguma coisa é universal significa assumir que ela vale para
todos, em todo o tempo.
Reserve essas informações sobre convenções para quando
apresentarmos a categoria simbólica de relações, pois nessa categoria só
entram as relações sustentadas por convenções.
4.2 Signos arbitrários e não arbitrários
Aproveitando o exemplo anterior do juiz, você deve saber que uma
maneira de se referir a ele é chamando-o de árbitro. Então, arbitrário e árbitro
são palavras que compartilham a mesma raiz, e árbitro é aquele que diz como
as coisas devem ser. Com isso, de maneira simples, considere que um signo
arbitrário é aquele que é assim, porque é assim. Um metro tem cem centímetros,
porque um grupo de pessoas concordou que seria assim. A direita não é
esquerda, porque um grupo de pessoas decidiu que essa era a melhor maneira
de distinguir sentidos.
A luz que dá passagem aos carros e pedestre é verde, porque assim foi
convencionado. Afinal, o que há de diferente na cor verde, para que todos
25
entendam que podem avançar? Pense, por exemplo, no número 2. O que há de
duplo no número 2? Ou por que não chamar o som ah de ípsilon?
Talvez você se lembre que, na sua alfabetização, os livros procuravam
fazer associações, entre letras e coisas. Por exemplo, desenhava-se a letra g na
silhueta de um gato, ou se substituía a letra o, na palavra Sol, pela representação
do Sol. Esses são artifícios sustentados pela semiótica, que buscam diminuir a
arbitrariedade daqueles signos para a criança.
Com isso, quero dizer que existem convenções assentadas em signos
arbitrários. Trata-se daqueles sinais cuja relação com aquilo que eles substituem
não parece ter a menor lógica. A verdade é que, na maioria das vezes, eles têm.
Algumas línguas representam suas letras com traços que aludem a coisas, como
casa, cabana, tumba etc., mas, em geral, essa conexão se perde no tempo, e os
sinais e as convenções nas quais eles são encontrados parecem, para nós,
como arbitrários.
Por exemplo, somente muito recentemente descobri que a saudação do
vulcano Spock, de Star Trek, não era um sinal arbitrário. Foi quando soube que
o ator Leonard Nimoy (1931-2015) a trouxe dos ritos sacerdotais e da letra
hebraica ש ("Shin"). E pior, como eu era criança, sempre achei que o sinal V
tinha alguma coisa a ver com vida, considerando que a saudação vulcana, em
português, era “vida longa e próspera”. Perceba que os sinais costumam sofrer
esse tipo de flexibilização, passando de arbitrários para não arbitrários à medida
que os estudamos.
Figura 17 – Saudação vulcana: o astronauta da Nasa Terry W. Virts fazendo a
saudação vulcana direto da Estação Espacial Internacional, em 27 de fevereiro
de 2015
Crédito: Terry W. Virts-NASA /CC/PD.
https://en.wikipedia.org/wiki/Terry_W._Virts
https://en.wikipedia.org/wiki/NASA
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Até aqui você viu o que são sinais ou signos arbitrários e de que maneira
eles são utilizados em algumas convenções. Vamos ver agora o que são signos
não arbitrários. Trata-se, justamente, daqueles que têm seu fundamento na
relação com aquilo que substituem.
Quanto mais antigo, maior a chance de a relação entre o signo e aquilo
que ele substitui não ser arbitrária. Embora provavelmente haja signos dessa
espécie mais antigos, o exemplo mais didático e sobre o qual se tem mais
detalhes, vem da Torá hebraica (livro sagrado para os judeus, como a Bíblia é
para os cristãos), precisamente das narrativas do livro de Gênesis. Certa vez,
ouvi alguém fazer a seguinte distinção e acho que ela nos serve: os antigos,
quando queriam dizer o que uma coisa é, apontavam para essa coisa; os gregos
a descreviam.
Desta forma, o que ocorre na narrativa do Gênesis é exatamente isso:
apontar para uma coisa, cujos atributos correspondem àquilo para o qual não se
tem, ou não se pode ter, uma imagem. Quando Moisés, o patriarca, quis ensinar
ao povo quem era Deus, ele escolheu a pedra. E por quê? Porque a pedra tem
atributos que correspondem aos atributos da divindade hebraica.
Para enfatizar ainda mais a diferença, Moisés colocou, lado a lado, o
Tabernáculo e o Altar. Com isso, o Tabernáculo substituía os atributos humanos
da transitoriedade, do movimento, do desenvolvimento horizontal, enquanto a
pedra do altar substituía os atributos de Deus, quais sejam, a eternidade, a não
movimentação, a direção vertical.
Outro exemplo bem didático, vindo também dos antigos, são as pirâmides.
Para além de tudo aquilo que já se disse e sabe sobre as pirâmides construídas
pelo povo egípcio, há um aspecto pouco trabalhado, que é justamente seu teor
de substituição, seu caráter sígneo. O monumento em forma piramidal substitui
a ambição humana de ficar fora do tempo, de ser eterno, e para isso utiliza todos
os sentidos humanos que estão envolvidos no deslocamento. Quer saber como?
Como suas faces são iguais e ela é muito grande, uma pessoa pode, em
condições normais, andar quilômetros olhando para aquela forma sem que nada
mude, nem forma nem tamanho. Isso dará ao observador a impressão de que
ele está se deslocando sem sofrer a influência do tempo, e isso é eternidade.
Fantástico, não?
Perceba que o altar hebraico e a pirâmide são coisas concretas que estão
substituindo a relação com o tempo, que é algo abstrato, e isso é exatamente o
27
que o designer deverá aprender a fazer. Para isso, precisa conhecer os atributos
dos materiais e seu poder de substituição.
Falei anteriormente do cinema e aqui a sétima Arte volta a ser um bom
exemplo. A água é um elemento da natureza que tem certos atributos: ela molha,
penetra, aparece em nossos olhos quando estamos tristes ou sentimos dor.
Emergir da água significa, entre outras coisas, renascer. Da mesma maneira
como Moisés colocou a pedra no lugar do Deus para o qual não há imagem, os
cineastas colocam a água em situações estratégicas, em substituição a vários
sentimentos abstratos. Observe a Figura 18, que mostra mais uma cena do filme
A pele (2016), de Steve Shainberg.
Figura 18 – Cena de A pele, 2016.
Crédito: Rotten Tomatoes Classic Trailers.
A personagem vivida por Nicole Kidman está de avental e luvas de
plástico. O avental é transparente, e as luvas, amarelas. Tudo isso são atributos
materiais que o cineasta utiliza para fazer um discurso: a personagem está se
protegendo da água, ela não quer se deixar levar pelo sentimento, neste caso,
daquilo que vem pela tubulação, que são os pelos do morador do andar superior.
O amarelo alerta o espectador, que ainda não sabe nada disso, de que há
algo perigoso naquelecontato, e a transparência do avental denuncia que a
personagem, muito embora se defenda com roupas escuras e fechadas, tem o
seu peito vulnerável. Veja que o cineasta faz questão de enfatizar o efeito da
transparência do avental com a cortina de bolas que aparece ao fundo. Se você
reparou bem, a água nem precisa estar presente para que seus atributos sejam
reconhecidos.
28
A cena leva à compreensão de que água e emoção são a mesma coisa.
Resumindo, o item mais arbitrário, na cena, é a cor amarela que substitui o
perigo. O plástico transparente, a água, a tubulação, a roupa fechada, estão ali
em função dos seus atributos e não são, portanto, arbitrários.
Se liga
Trabalhar com signos não arbitrários é sustentá-los por compartilhamento
de atributos.
Os exemplos cotidianos são vários. Um par de alianças de casamento
compartilha com o ouro os atributos da durabilidade e da preciosidade, e com o
círculo sua continuidade. Um xampu, sem cor, compartilha com a água a
transparência da sua pureza. Artefatos de couro ou pele compartilham de todo o
valor simbólico que a vida daquele animal teve.
Lutar contra os atributos dos materiais, em termos de significação, é
desperdício de energia. Se uma empresa desenvolve um tecido tão agradável
ou mais que o algodão, mas que tem a aparência de plástico, terá que gastar
muito em publicidade para superar a relação que o observador constrói de modo
quase instintivo entre aquilo que ele vê como plástico, e os atributos pouco
confortáveis do material plástico. É como dizer que a pedra não é pedra, e que
a água não é água. Por outro lado, é preciso ter cuidado em utilizar falsos
atributos.
O brilho dourado, que é um atributo dos metais preciosos, muitas vezes,
é encontrado em torneiras de banheiro, botões e bijuterias. Com isso, o designer
leva para artefatos simples, algo daquele valor que o ouro comporta. A indústria
tem se esmerado em produzir falsos mármores, falsos pisos amadeirados, falsas
pedras, falsos brilhos, muitos com boa qualidade e acessíveis, mas o mercado
do luxo tende a resistir. O designer precisa ser criterioso no seu uso, mas é
preciso admitir que há um segmento em pleno desenvolvimento, que são os
laminados decorativos que imitam qualquer outro material mais natural ou de
maior valor.
Dados e Fatos
Os laminados decorativos têm causado uma revolução considerável no
design de interiores. Diferentemente do que acontecia com os antigos laminados
29
e as antigas “fórmicas”, os materiais atuais resistem à abrasão, resistem à
humidade, não ficam amarelos e podem ser colocados com colas mais comuns.
Isso para não falar nos novos acabamentos, que agora são feitos a laser,
reproduzindo com muita fidelidade a aparência de pedras e madeiras.
Fonte: Elaborado com base em Rudegon, 2022. Copyright © 2023, Gazeta do Povo2.
Você aprenderá, nas próximas etapas de estudo, que alguns atributos
materiais são justamente o que permite ao seu produto criar uma conexão
emocional com o cliente. Se uma noiva, por exemplo, deseja que seu casamento
seja puro, o material da aliança deve ter esse atributo, ou seja, o ouro deve ter
como uma de suas características a pureza. É assim, por meio do seu atributo,
que ele substitui o desejo da cliente.
Embora a questão do material seja muito forte, a não arbitrariedade dos
signos nem sempre é uma questão de material. Frequentemente um signo não
arbitrário se sustenta pela semelhança. Essa é uma qualidade muito importante
para a comunicação à medida que aumenta significativamente sua eficácia.
Observe na Figura 19 a quantidade de representações que substituem coisas
em função da semelhança.
Em certa medida, todos esses sinais são convencionais, mas não há nada
de arbitrário em um sinal que mostra pessoas caminhando, andando de bicicleta
e assim por diante. Agora, para compreender o que significa um sinal luminoso
com três cores, o observador precisa estar familiarizado com as convenções do
trânsito, porque o significado das cores pode, sim, ser arbitrário.
2 Disponível em: de: <https://www.gazetadopovo.com.br/conteudo-publicitario/rudegon/saiba-
por-que-o-laminado-decorativo-revoluciona-o-mercado-de-revestimentos/>. Acesso em: 12 abr.
2024.
30
Figura 19 – Sinais de trânsito
Crédito: Tonktiti/Shutterstock.
Até aqui você aprendeu o que é convenção e o que são signos arbitrários
e não arbitrários. Você precisará desse conhecimento para nossas discussões.
O próximo e último tópico tem como objetivo um aprofundamento na
compreensão de para que serve esse sistema de signos, considerando o ser
humano em geral.
TEMA 5 – COMO COMUNICAR O QUE AINDA NÃO FOI SIGNIFICADO?
Você já sabe que o objetivo deste conteúdo é ensinar a utilizar certos
conceitos da semiótica, e não cabe aqui avançar muito para além do que é
essencialmente prático. Ainda assim, é preciso considerar que a boa prática se
assenta em uma certa sofisticação, e essa sofisticação depende de certos
conhecimentos extraordinários.
Normalmente, um estudante de Design não pensa na significação como
algo necessário, para além dos aspectos pragmáticos, ou seja, não vai além do
que está diretamente ligado ao uso. A maioria de nós associa necessidade a
utilidade, mas o mundo não funciona assim. Deixe-me colocar de outra maneira:
se você e seu concorrente oferecem em uma vitrine produtos que, sob o ponto
https://www.shutterstock.com/g/Tonktiti
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de vista do uso e preço, são iguais, o que faria com que o cliente escolhesse o
seu?
As respostas podem variar, mas uma coisa é certa: se o cliente escolheu
o seu, é porque você colocou no seu produto alguma coisa que ele quer, e vai
além do uso que seu concorrente também atende. Supondo que o produto seja
uma cadeira, algo na sua cadeira supre uma necessidade que supera o simples
ato de se sentar. Descobrir que necessidade é essa é que é a chave do sucesso.
Sob o ponto de vista da semiótica, e particularmente da semiótica de
Peirce, que será o fio condutor de nossas discussões, perguntar ao cliente o que
ele quer não ajuda muito, porque não é raro que ele não saiba. Como assim o
cliente não sabe o que quer? Isso mesmo. O cliente pode não saber o que quer,
ou não saber sequer que quer alguma coisa. Considere que em mercados
competitivos é preciso adentrar esses terrenos de incertezas. Meu desafio, neste
tópico, é convencê-lo de que isso é importante.
Nietzsche, novamente, pode ser útil. Em um dos seus escritos, ele
apresenta uma figura de linguagem muito bonita. O filósofo descreve a
necessidade humana de significar como um desejo profundo de colocar as
próprias emoções fora do peito, materializando, ou seja, tornando concretas, as
impressões dos sentidos. Quase como se fosse possível materializar o seu
coração e oferecê-lo à pessoa que ama (Nascimento, 2014, p. 114).
Vamos pensar por uns momentos no artista. Lembre-se que artista, para
o nosso contexto, é um inventor de signos. Isso quer dizer que cabe a ele
inventar uma maneira para que as pessoas possam tornar concretas as
impressões dos seus sentidos. Para esse artista, os seres humanos são como
bebês. Eles sentem dores, insegurança, felicidade, saudade, mas não têm,
ainda, palavras para dizer o que sentem, e é provável que não saibam
exatamente o que sentem.
A função do artista é criar as palavras que o bebê poderá colocar no lugar
dos seus sentimentos e sensações. Para isso, ele tem de ter sido bebê um dia,
ou estar muito familiarizado com eles. Você poderá argumentar que seus clientes
não são bebês, mas, lembre-se, todos nós somos bebês para alguma coisa.
Anteriormente, mencionei as novas angústias, inventadas pelos meios
eletrônicos e mídias sociais. Esses são apenas os exemplos mais evidentes de
que a atividade do inventor de signos é atual. Se você tem, ou vier a ter, algum
contato com assuntosde psicologia, saberá que encontrar a representação para
32
um desejo, sensação ou sentimento é um fator determinante para a diminuição
da angústia, pois não há nada pior para o ser humano do que sentir alguma coisa
e não saber defini-la, representá-la. Nós, humanos, queremos entender a nós
mesmos por meio das coisas que nos cercam (Nascimento, 2014, p. 113). E é
aí que você deve entrar em ação se quiser fazer a diferença.
Cito aqui exemplos que podem ajudar. Em 2013, uma marca de luxo
produziu um filme institucional no qual apresentava modelos famosas, em
roupas de dormir luxuosas, na rua, abordando carros, como se fossem
prostitutas. O experimento foi arriscado e causou polêmica. Em termos
semióticos, o objetivo era claro: provocar o espectador, oferecer-lhe a
oportunidade de viver em alguns segundos uma emoção fora do padrão.
Em outra ocasião, uma revista de moda colocou na sua capa uma criança,
vestida em roupas de adulto, com poses sensuais. O objetivo, e o efeito, foram
similares. Lembre-se que o que está acontecendo, nesses exemplos, é uma
substituição: uma cena acessível no lugar de uma experiência real pouco
provável. Por meio de publicidades como essas, o observador tem a rara
oportunidade de dialogar e compreender um pouco mais do seu próprio eu
(Nascimento, 2014, p. 113).
Para que o produto venda, o cliente deverá reconhecer nele mesmo um
desejo que ele não tem consciência, ou jamais admitiria que tem. Ousadias como
essas são prerrogativas de quem pode arriscar. Se os clientes não alimentam
tais fantasias, ou se estiverem determinados a negá-las, o produto não venderá.
Claro que a maioria de nós não está em condições de arriscar tanto, mas
o princípio é válido. Como artista criador de signo, o designer precisa encontrar
paixões, desejos, angústias, fantasias ainda não representadas, do contrário terá
dificuldade em se diferenciar da concorrência.
Se liga
Caberá a você, e somente a você, encontrar as emoções e sentimentos
que ainda precisam ser representados ou, pelo menos, encontrar novas
maneiras de fazê-lo.
33
TROCANDO IDEIAS
Os signos têm a incrível capacidade de apresentar discursos, às vezes
bastante complexos, sem o uso de palavras. Citei vários exemplos vindos do
cinema, agora sugiro que analise comigo a Figura 20.
Figura 20 – Sinais convencionais de masculino, feminino, igual e diferente
Crédito: Dmitry Demidovich/Shutterstock.
Os três dados têm apenas sinais gráficos. A disposição, no entanto, faz
um forte discurso sobre a igualdade, ou desigualdade, entre homens e mulheres.
Para entender o discurso, o observador tem que conhecer os signos, tem que
saber o que substitui o homem, a mulher, o igual e o diferente; do contrário, não
compreenderá. Depois de ler o texto desta etapa, você já está em condições de
analisar e identificar se algum dos sinais é arbitrário. Do meu ponto de vista, o
mais arbitrário é o da mulher. Você concorda? Compartilhe seus comentários
com seus colegas no fórum.
NA PRÁTICA
Procure na internet propagandas de produtos de luxo e tente identificar
quais os desejos aquelas fotos estão substituindo. Uma dica é buscar por
reportagens ou depoimentos que denunciam práticas pouco ortodoxas
(estranhas ao que é normalmente aceito) de substituição, e depois tente
encontrar a foto que deu origem à denúncia. Fotos de moda, por exemplo, têm
https://www.shutterstock.com/g/Dzmitry+Dzemidovich
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uma maneira própria de se comunicar com o observador por meio de poses,
direção do olhar da modelo, partes ocultadas e mostradas do corpo.
Procure também marcas famosas de qualquer objeto em peças
publicitárias sem modelo. Sapatos, bolsas, perfumes etc. Analise o que o
produtor utilizou para comunicar qualidades daquele produto, investigue os
atributos! Tenha em mente que quem mais arrisca, e com quem se pode
aprender mais, são as marcas de luxo.
FINALIZANDO
Você fez seus primeiros contatos com a temática de nossos estudos, que
têm como objetivo ensinar como utilizar princípios de semiótica para alavancar
sua prática profissional. Agora você já sabe que o importante, aqui, são as
substituições. Sabe também que existem substituições convencionadas,
algumas baseadas em signos arbitrários, ou seja, sem uma relação óbvia com o
que substituem, e outras em signos não arbitrários, cuja relação é baseada,
normalmente, em compartilhamento de atributos.
Quero reforçar, nesta finalização, que o ponto-chave é saber o que é que
precisa ser substituído. Como artista inventor de signos, você precisa encontrar
a sua fonte, os desejos conhecidos ou não, conscientes ou não, admitidos ou
não, do seu potencial cliente.
Sugiro aqui alguns filmes que são muito ricos em matéria de significação:
• Wes Anderson:
o Os excêntricos Tenembaums (2001).
o Moonrise Kingdom (2012).
• Steven Shainberg:
o A Pele (2006) – você pode buscar por artigos disponíveis na internet
(Dobras/Temática).
o Secretária (2002) (classificação indicativa: 18 anos).
• Outros diretores:
o Minha vida em cor-de-rosa (1997).
o A separação (2011) – você pode buscar por artigos disponíveis na
internet (Semioses).
o Roda gigante (2017).
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REFERÊNCIAS
CRYSTAL, D. Pequeno tratado sobre a linguagem humana. 1. ed. Editora
Saraiva, 2012.
KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de Valério Rodhen e António
Marques. 3. ed. Rio de Janeiro: Forence Universitária. 2012.
NASCIMENTO, S. F. Moda e linguagem: Nietzsche e Arbus, uma aproximação.
Revista Dobras, 2014. Disponível em:
<https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/39/39>. Acesso em: 10
abr. 2024.
_____. O Estilo Modernista à luz da “necessidade” e da “inocência”. Trágica;
Edição temática Filosofia do Design, v. 9, n. 3, 2016. Disponível em:
<https://doi.org/10.59488/tragica.v9i3.26874>. Acesso em: 10 abr. 2024.
_____. El discurso de la arquitectura en A Separation, de Asghar Farhadi.
Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista. 2º Sem., 2017.
Disponível em: <http://www.semeiosis.com. br/?p=2461>. Acesso em: 10 abr.
2024.
NIETZSCHE, F. A Visão Dionisíaca do Mundo. Tradução de Marcos SP
Fernandes e Maria Cristina dos Santos de Souza. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
SANTAELLA, L. O que é semiótica. Coleção Primeiros Passos. [S.l.]: Editora
Brasiliense: 1983.
SEMIÓTICA APLICADA AO
DESIGN
AULA 2
Prof. Suzie Nascimento
2
CONVERSA INICIAL
Anteriormente, expliquei que este conteúdo não pretende ser exaustivo
na teoria, mas sim apresentar alguns conceitos estudados em Semiótica que
podem ajudá-lo a produzir artefatos, produtos e serviços mais significativos.
Nesta etapa, quero convencê-lo de que a questão do repertório, seu e do
cliente, é muito importante. Mas quero também tranquilizá-lo antecipando que
alguns conhecimentos requerem prática, profissional e de vida. Você verá que é
possível aumentar seu repertório de experiências por meio da Arte, assim como
você pode permitir que pessoas tenham experiências novas por meio das coisas
que você criará como designer. Para isso, precisa investir nos significados.
Vamos lá?
CONTEXTUALIZANDO
Quando um músico ou artista deseja apresentar seu repertório, ele
escolhe uma série de exemplares daquilo que sabe fazer. Quando um aluno vai
fazer uma redação, busca em seu repertório de leituras argumentos que possam
ser utilizados, almejando receber uma boa nota. Da mesma forma, o designer é
refém do próprio repertório quando se vê desafiado em um novo trabalho. Quem
tem pouco repertório acaba tendo que correr atrás do prejuízo. Cada atividade
exige um repertório específico, por isso o encontro entre profissionais de
diferentes áreas é tão rico, justamente porque permite criar maneiras de
significar, permitindo uma intersemiose.
Se ligaNa definição de Santaella, utilizar linguagens distintas, formando com isso
uma unidade coesa, é fazer “intersemiose” (Ramos, 2008, p. 32).
Histórias e casos
O movimento artístico brasileiro chamado Tropicália foi uma experiência
com repertórios diferentes. Na ocasião, vários artistas se empenharam em
romper as barreiras entre o que era considerado erudito e o que era considerado
expressão popular. Assim, poetas concretos e compositores baianos produziram
uma expressão artística única.
3
Santaella, ao estudar e escrever sobre a Tropicália, enfatizou que aquela
era uma expressão artística inovadora, consistente, produto do encontro entre
correntes distintas. Isso só foi possível porque cada uma daquelas correntes,
notadamente uma popular, vinda da Bahia, e uma erudita, vinda da Arte
Concreta tipicamente paulistana, possuía repertórios qualificados. Para
complementar o raciocínio de Santaella, trago agora exemplos do meu próprio
repertório de memórias. Quem foi jovem nos anos 80 lembrará das bandas
roqueiras nascidas em Brasília, que misturavam o português bem falado a um
humor tão ousado que hoje faria corar. Letras longas, quase sem refrão, que
contavam verdadeiras histórias, muitas delas trágicas, outras tragicômicas.
Aquela expressão artística, de grande apelo popular, não seria possível se seus
criadores não tivessem o respaldo de um bom acervo de livros em casa e um
vasto repertório de leitura.
Saiba mais
Quer saber mais sobre os aspectos semióticos do movimento Tropicália?
Leia o capítulo “O hibridismo semiótico da Tropicália”, em: RAMOS, F. B.
Tropicália: gêneros, identidades, repertórios e linguagens.
Do ponto de vista da Semiótica, o repertório de quem produz é apenas
uma parte do problema. Lembra que mencionei na etapa anterior que, para
Nietzsche, Arte é prazer comunicado? Pois bem, um bom repertório precisa
garantir a comunicabilidade. Isso quer dizer que o designer precisa se ocupar
também com o repertório do outro, daquele a quem ele deseja oferecer seu
produto. Agora, o maior desafio, sem dúvida, é desempenhar o papel de criador
de signos, ou seja, inventar novas maneiras de comunicação. Você verá, nesta
etapa, que uma das tarefas do designer é aumentar o repertório do cliente e,
ainda assim, garantir uma boa comunicação.
TEMA 1 – O REPERTÓRIO DO EMISSOR
Para os fins práticos deste estudo, proponho uma analogia. Suponha que
você tem uma caixinha onde guarda suas ferramentas de trabalho. Se elas são
suas, fazem parte do seu acervo. Mas se você tem uma maneira particular de
produzir alguma coisa com elas, então elas estão no seu repertório. No meu
caso, a prática como professora para cursos de Design me levou a ter um
pequeno repertório de filmes exemplares para o uso da Semiótica. Com isso,
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Realce
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quero dizer que já os assisti tantas vezes, escrevi e dei aulas sobre eles, que
posso dizer com segurança que fazem parte do meu repertório de professora,
mesmo que eu não tenha um grande acervo de filmes. Boa parte do
conhecimento acumulado pode ser considerado acervo. Quando você toma
posse deles e os usa na sua prática, eles incrementam o seu repertório. A
infinidade de informações que você consome nas redes sociais e na internet, se
chegam a se fixar na sua memória, podem ser acervo. Mas, convenhamos, a
maioria é simplesmente descartável. Então, por favor, não confunda informação
de internet com repertório.
Quando um indivíduo inicia sua formação profissional, o esperado é que
ele seja pobre de repertório, pois não tem conhecimento nem experiência. Com
o tempo, os estudos vão se tornando mais complexos e o volume de coisas
vistas e lidas aumenta. Mas o que realmente faz diferença no repertório individual
são as experiências: sucessos e fracassos. Nietzsche, em uma de suas reflexões
sobre comunicação, argumentou que nós, humanos, somos mais eficientes na
comunicação porque somos fisicamente frágeis. A tese é a de que indivíduos
que conseguem o que querem à força não têm por que aprender a negociar. Se
isso é fato, então explica por que os fracassos aumentam nosso repertório.
Quando não sabemos fazer alguma coisa, temos de tentar de diversas maneiras,
pesquisar, pedir ajuda. No processo, aumentamos nosso repertório. Então,
sugiro que, caso você esteja começando, pense nas suas dificuldades como um
processo de aumento de repertório.
Nesta parte do nosso estudo, o principal é compreender o papel do
emissor, ou seja, daquele que precisa de repertório para emitir uma mensagem.
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Realce
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Figura 1 – Meninos conversando por meio de brinquedo
Crédito: pio3/Shutterstock.
Mensagem, emissor e receptor são termos comuns para quem estuda
comunicação. Na Figura 1, o menino da direita é o emissor, o da esquerda é o
receptor e a mensagem é o que passaria de um ao outro pelo fio que une as
duas partes do brinquedo. Você poderá estar se perguntando o que isso tem a
ver com Design de moda, interiores, gráfico, animação e assim por diante. E eu
te respondo: lembra que o artista, para nós, é um inventor de signos, e que Arte
é a comunicação prazerosa? Então, por dedução, quem inventa signos
comunica e por isso pode ser considerado um emissor. Trocando em miúdos,
sempre que um designer cria, reinventa ou manipula signos, ele está emitindo
uma mensagem. Você já sabe que essas mensagens se materializam por meio
de substituições, sejam elas gestos, desenhos, materiais, língua, sons ou
cheiros.
Se liga
Inventar signos é uma atividade artística.
Seja qual for a sua área de atuação, certamente você espera se
comunicar de maneira eficaz com seu potencial cliente. Você quer que ele
entenda a sua mensagem. Toda mensagem que faz uso de convenções tem
6
mais chances de ser compreendida, porque segue leis que todos conhecem.
Mas, para não correr o risco de se tornar irrelevante, você precisa ser aquele
que melhor conhece a convenção e sabe utilizá-la de modo criativo. Pense na
dificuldade que é fazer uma comunicação inovadora para datas tradicionais
como Natal, Dia das Crianças, das mães, dos namorados. A sensação é a de
que tudo já foi dito.
Mas observe comigo a Figura 2. Trata-se de um cartão de Boas Festas
que se apoia basicamente na convenção das cores e do pinheiro, que ficou
convencionado como um símbolo das festividades. As felicitações de Natal e
Ano Novo, que aparecem em inglês, são quase redundantes, de tão objetivo que
é o cartão. A inovação ficou por conta da maneira como são representados os
pinheiros. O cérebro do observador tem de deduzir que são cortes e que a
sequência de cortes está representando um pinheiro. Como dizia Kant, esse tipo
de jogo, entre imaginação e entendimento, é muito prazeroso.
Figura 2 – Cartão natalino em três cores
Crédito: Riseness/Shutterstock.
Se você acompanhou o raciocínio, concluirá que um bom emissor, em
termos de Design, sabe explorar criativamente as convenções, sabe fazer as
substituições mais eficientes e, principalmente, sabe quando deixar uma parte
do trabalho para a mente do receptor. Ou seja, há elementos da mensagem que
devem ser apenas sugeridos. Uma boa analogia você encontra naqueles jogos
de adivinhação/mímica nos quais uma pessoa fica fazendo gestos e um grupo
de espectadores tem que adivinhar o nome da coisa imitada, que pode ser um
filme, ator, brincadeira ou música.
7
Figura 3 – Moça fazendo jogo de adivinhação
Crédito: Ground Picture/Shutterstock.
Com isso, quero dizer que, para ser um emissor de sucesso, você precisa
ir além da fala e escrita corretas, dos artefatos irrepreensivelmente úteis e
ecológicos. Nas mensagens significativas, quantidade de signos e adequação
ética não são sinônimos de qualidade. A chave é fazer a mente do observador
trabalhar com prazer enquanto decifra um enigma. Ninguém será umbom
emissor se não tiver um repertório qualificado e criatividade para utilizá-lo de
modo inovador. Steven Shainberg e Wes Anderson, diretores que citei na etapa
anterior, não produziriam filmes tão intrigantes se não fossem possuidores de
um repertório de signos extraordinário e não estivessem dispostos a arriscar.
Por isso, é tão desafiador para um jovem iniciante ultrapassar o uso
ordinário dos signos que, de tão utilizados, já se tornaram velhos e pouco
atrativos. O erro mais comum, conforme mencionei em etapa anterior, é
exagerar, repetir em demasia, tornar-se óbvio. Quase como um vendedor que
exagera nos argumentos para compensar um produto de qualidade
questionável. Tive a oportunidade de ver alunos recorrendo ao mesmo
estratagema, ou seja, tentar defender com argumentos um projeto
conceitualmente fraco. Não funciona.
900152
Realce
8
Penso que, para quem está começando, há duas possibilidades: aprender
com os melhores na sua área e fazer uma imersão em si mesmo. Não creio que
seja preciso escolher uma ou outra, e esse é o assunto do próximo tópico.
TEMA 2 – CONHECE-TE A TI MESMO
O famoso templo de Apolo, em Delfos, traz esta enigmática inscrição:
conhece-te a ti mesmo. Sócrates, famoso pensador grego, também ficou
conhecido por instigar seus interlocutores a fazerem questionamentos internos
a fim de conhecerem a si mesmos.
E como é que alguém poderia conhecer a si mesmo? Ou ainda, qual o
interesse disso para uma disciplina que se propõe a explorar a Semiótica de
maneira prática? A primeira pergunta é mais difícil de responder porque não há
muito acordo sobre o que é, e se existe, esse “si mesmo” realmente. Os
psicólogos vêm debatendo o “eu” há algum tempo, e este estudo não tem
ambição de resolver essa questão em definitivo. Em compensação, na etapa
anterior, já apresentei uma dica importante sobre o porquê isso importa na
prática do Design. Qualquer pessoa pode compreender um pouco mais do seu
próprio eu por meio de experiências com objetos, com poesia, música e cinema
(Nascimento, 2014a, p. 113). Nós nos experimentamos, conhecemos nossas
sensações e reações, interagindo com as coisas. Quantas vezes você já se
apaixonou pelo herói ou heroína de uma série, e quantas vezes já teve ímpetos
de matar o vilão? Assim, de certa maneira, é somente na experiência com o que
está fora de nós que podemos conhecer a nós mesmos. Você pode deduzir disso
que o filtro que utiliza para escolher aquilo que ouve, assiste ou lê determinará
quais as sensações interiores você conhecerá.
Um ator que precisa interpretar um assassino não tem que assassinar
ninguém para fazê-lo bem. Ele precisa conhecer o sentimento, a emoção. Por
isso dependerá de que alguém, antes dele, tenha colocado em Arte aqueles
sentimentos, do contrário não poderá experimentá-los. Para isso, ele precisará
dos livros, da música, e das artes representacionais. Um bom exemplo você
encontra nos quadros de Caravaggio (1571-1610). Diz-se que o pintor italiano
do século 16 tinha predileção por cenas violentas, a maioria retirada dos relatos
bíblicos. Essa violência o observador constata nas cores, nas marcas do pincel,
nas expressões dos personagens. Caravaggio ambicionou representar aquelas
emoções fortes e, ao fazê-lo, disponibilizou-as para todos nós.
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Figura 4 – Salomé com a cabeça de São João Batista
Crédito: National Gallery/PD-CC.
Se fosse solicitado a um designer que criasse um artefato em analogia ao
quadro de Caravaggio, ele teria que encontrar meios para expressar essa
mesma emoção. Melhor dizendo, teria que encontrar meios para que seu cliente
experimentasse aquelas emoções no seu produto. Para isso teria de utilizar as
formas, os materiais e as cores (Nascimento, 2014a).
É um erro grosseiro achar que experimentar sensações por meio da Arte
pode induzir pessoas a fazerem coisas que elas não fariam. O que a Arte
permite, e isso é bom, é que todos nós nos conheçamos, aprendamos a lidar
com as emoções, e isso sem consequências sociais graves. Através da Arte
podemos sentir ódio, e aprender a lidar com ele. Podemos nos frustrar, e
aprender a lidar com isso. Quem gosta de filmes de terror, ou brinquedos que
causam medo, terá muito mais repertório para esse tipo de sensação do que eu,
que não subiria em uma montanha-russa nem sob tortura. Igualmente, quem
gosta de narrativas romanceadas, com o tempo armazenará infinitos signos para
o que é amar, ser amado, perder o amor e assim por diante. Quem gosta de
futebol, no Brasil, desde pequeno aprende a lidar com a frustração, aprende que
o mundo não é justo e que não deve levar as coisas tão a sério. Aprender isso
na realidade da vida seria muito mais traumático. Esses são apenas alguns
exemplos de como as coisas nos dão a oportunidade de conhecer nossas
próprias emoções.
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Veja que significativa é a Figura 5. Trata-se de uma imagem muito bem
construída do ponto de vista da Semiótica. Ela exige um repertório específico
para ser produzida e compreendida. Quem a vê deve conhecer o artefato, deve
reconhecer onde ele está e saber para que serve. Somente assim decifrará a
narrativa. De posse desse repertório, o espectador conclui que houve um jogo e
que o atleta perdeu — o jogo e o controle emocional — descontando sua ira na
raquete. O observador poderá ainda ser empático ao jogador ou recriminá-lo.
Todas essas emoções são possíveis por meio de uma simples foto significativa.
Figura 5 – Fotografia de raquete de tênis quebrada
Crédito: Elkhophoto/Shutterstock.
Vistos dessa maneira, os produtos criados por designers precisam, muitas
vezes, ser como essa raquete, o lugar para onde o cliente irá dirigir suas
emoções inconsequentemente. É por causa desse mecanismo que existem os
caçadores de tendência, que são aqueles que observam as escolhas de compras
das pessoas e deduzem, a partir delas, certos sentimentos e sensações que
servem de indícios do futuro (Nascimento, 2014a). Nas nossas ações de compra,
em geral, acontece um duplo movimento: conhecemos a nós mesmos e nos
revelamos.
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Como designer, você terá mais dificuldade em produzir um artefato
significativo para alguém que está carente de amor, se não conhece essa
emoção. Isso vale para segurança, otimismo, frustração, vazio, alegria. Enfim, o
ser humano tem infinitas sensações e emoções que ele pode experimentar por
meio dos artefatos e serviços que você irá produzir. Isso quer dizer que, como
responsável por emitir o discurso, você precisa estar bem abastecido de
recursos. Deve conhecer muitas sensações e emoções, e saber como substituí-
las por signos. Aprender com os artistas a entrar, de maneira muito real, em cada
afeto. Ainda me lembro da tristeza que eu senti ao ler a letra de Cobaias de Deus,
no encarte que acompanhava o CD Burguesia. Soube, naquele momento, que o
poeta Cazuza estava morrendo. Aquela foi uma emoção real para mim, muito
embora eu não tenha estado perto da morte. Com Tempestade, que o Legião
Urbana lançou pouco tempo antes da morte de Renato Russo, soube, pelas
letras, que também ele estava morrendo. Foram dois poetas que me mostraram
o horror de ver a própria vida acabar antes da hora.
Agora, muito embora você possa adquirir parte desse repertório por meio
da Arte como aconteceu comigo, a prática mostra que é melhor, sempre que
possível, ter experiências não mediadas, ou seja, mais concretas. Digo isso
porque as gerações atuais podem substituir boa parte das suas relações
pessoais por outras, virtuais. Isso muda o tipo de experiência. Experiências
virtuais têm seu valor, mas elas nos protegem, nos deixam dentro de uma bolha.
Como dizem as mães, é preciso descer para brincar no parquinho, ainda que
haja o risco de ralar os joelhos.
Figura 6 – Crianças brincando de rolimã
Crédito: FamVeld/Shutterstock.
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Mas fique atento para este detalhe: um artista,hoje, pode pensar a sua
Arte como produto de subjetividade, ou seja, mera expressão de si mesmo. Não
é isso que proponho quando sugiro que aprendamos com os artistas. Como
designers, é preciso haver comunicação. O seu papel seria produzir artefatos e
produtos que ecoem as sensações e desejos de outras pessoas. Nesse sentido,
o Design é um reflexo da cultura e do grupo social no qual está inserido
(Nascimento, 2014a). Ele não tem autonomia para determinar o destino daquilo
que produz e, portanto, sua obra será sempre inacabada.
TEMA 3 – UMA OBRA INACABADA À ESPERA DA SUA SIGNIFICAÇÃO
Há muitos anos, tive a oportunidade de ler o clássico O Espírito das
Roupas: a Moda no Século Dezenove, de Gilda de Mello e Souza, publicado em
1987. Na época, eu era estudante de moda e me senti impactada com a maneira
consistente com a qual a autora argumentava que havia, sim, arte nas roupas.
Um costureiro, escreveu ela, trabalha tal qual qualquer artista, quando está
fechado em seu ateliê: ele tem de respeitar o destino, a vocação da matéria.
Para isso, utilizará volume, linha, ritmo e cor. Um trabalho extremamente técnico
e familiar ao designer. Para o nosso tema, o relevante é a maneira como Gilda
de Mello e Souza descreveu as roupas como uma obra sempre inacabada, à
espera da sua significação. Segundo esse conceito, a roupa só alcançaria a sua
verdadeira identidade quando houvesse, dentro dela, um corpo vivo. Por isso,
seria uma obra que o artista confia a alguém, para que ele a complete
(Nascimento, 2014a).
Você verá, em etapas posteriores, que a Semiótica Peirceana faz uma
leitura análoga, à medida que prescreve que o signo significa alguma coisa para
alguém, ou seja, há um interlocutor ao qual cabe interpretar o signo, sem o qual
ele não existirá. Nesse sentido, a obra do designer também será confiada a
alguém, inacabada. Disso decorre que o caráter significativo de um artefato ou
produto estará sempre em aberto, sujeito ao inesperado e à surpresa. Nunca me
esqueço do senhor Wilson, do filme Náufrago. Quem projetou a bola não o fez
pensando em humanizá-la, mas foi esse o seu destino.
Dica
O diretor Robert Zemeckis, ao produzir Náufrago (2000), utilizou atributos
humanos para fazer com que o espectador criasse um vínculo afetivo com
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aquela bola. Lembra dos comentários, da etapa anterior, sobre os atributos da
pedra e da água? No filme, bastou a bola ter o rascunho aproximado de um rosto,
e um capim que parecia cabelo. O restante foi impulsionado pela solidão e pelo
desespero do náufrago. A ideia repercutiu tanto que, em 2022, o artefato foi
leiloado por mais de R$ 300 mil. Voltarei ao exemplo de Náufrago várias vezes.
Seria uma boa ideia você assistir.
Se liga
Em que pese todos os seus esforços, quem irá confirmar se o seu produto
tem, ou não, algum significado, é o interpretante, aquele para quem ele adquire
significado.
Na etapa anterior, mencionei que no livro do Gênesis, Moisés explica para
os hebreus quem era Deus por meio dos atributos da pedra, assim como
Zemeckis faz com que o espectador desenvolva afetividade por uma bola,
reconhecendo nela atributos humanos, por semelhança. Portanto, introduzir
certos atributos nos artefatos ou produtos é uma maneira de levar o observador,
ou cliente, à relação afetiva que se espera. No exemplo que eu capturei do livro
de Gilda de Mello e Souza, o costureiro provavelmente introduziu no seu vestido
atributos que seriam atrativos para um cliente específico, que ele manteve em
mente durante sua criação. Quase como se o vestido tivesse de dizer, por si
mesmo, para que, ou para quem, ele havia sido criado. Novamente, não há como
ter controle dessa relação, o que há são tentativas.
A expectativa de controle sobre a reação dos clientes ao seu produto faz
com que você tome certas decisões projetuais. Gosto de observar o mobiliário
como artefatos que se esforçam por dizer para que foram feitos. Imagino-os
como artefatos “desejantes”, coisas que desejam se completar ou serem
acabadas em um determinado uso ou lugar. Analise comigo as figuras 7 e 8.
Você concorda que essas luminárias só se completam quando estão no lugar
certo? A luminária que deseja estar na parede, criando efeitos óticos, não é a
mesma que deseja uma mesa que a acompanhe. Sem a parede e sem a mesa,
esses objetos ficam incompletos e inadequados.
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Figura 7 – Arandelas de parede
Crédito: Ecaterina Glazcova/Shutterstock.
Figura 8 – Luminárias de mesa
Crédito: Vfilimonov/Shutterstock.
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Então, você, designer, pode e deve tentar dirigir o uso dos seus artefatos
e produtos, mesmo sabendo que eles serão sempre uma obra inacabada. Eles
devem expressar o que desejam, de maneira inteligente. Artefatos pouco claros
demandarão excesso de informação publicitária e, com isso, correm o risco de
ficar cansativos, pois não deixam nada com que o observador se ocupar.
TEMA 4 – ARTEFATOS SÃO CHAMADOS À EXISTÊNCIA POR DESEJOS
Na etapa anterior, mencionei o filme A pele, de Steven Shainberg. O filme
é interessante para o estudo da aplicabilidade da Semiótica, sob vários aspectos.
A trama, mesmo, é uma mistura de biografia com ficção. Shainberg teve de fazer
malabarismos para explicar ao espectador que ele não pretendia ser biográfico
no sentido literal, ou seja, aquela poderia não ser a história de Diane Arbus,
personagem interpretada por Nicole Kidman (Nascimento; Campos, 2016). Por
outro lado, pretendeu ser muito verdadeiro em relação aos sentimentos que
Arbus teria experimentado ao longo da sua curta e trágica vida. Já observei, e
reafirmo, Shainberg é obcecado por substituições síngeas, o que faz dos seus
filmes, A pele em particular, uma fonte inesgotável de estudo (Nascimento;
Campos, 2016).
Para familiarizá-lo com o contexto, informo que o casal Arbus apresentado
na película é real e foi muito famoso entre os anos 50 e 60 em função das fotos
de moda que produziu para revistas importantes do segmento. Quando Diane, a
esposa, decidiu fazer carreira solo, rompeu drasticamente com a moda. Suas
fotos mais famosas, depois da mudança, são uma sequência de retratos feitos
durante uma viagem, na qual encontrou exóticos personagens, vários deles
trabalhando em circo (Nascimento, 2014b). Shainberg substituiu essa ruptura e
esses personagens pela figura sedutora do vizinho Lionel Sweenay, cujos
cabelos desciam pela tubulação e com quem a Arbus de Shainberg manteria um
romance proibido.
Anos depois da morte da Arbus verdadeira, Carol Schloss escreveu um
ensaio muito sensível sobre a alegada mudança temática do seu trabalho
fotográfico, indo da moda para personagens de circo. Segundo a autora, essa
ruptura temática nunca existiu no trabalho de Arbus. Para Schloss, Diane apenas
radicalizou uma característica que já estava presente em suas fotos de moda: a
denúncia de que as coisas criadas não são suficientes para dizer o que nós
somos (Nascimento, 2014b). Aprende-se com Schloss que essa insuficiência é
16
revelada pela expressão insatisfeita dos retratados. Muito sagazmente, Arbus
teria ido à procura de personagens circenses cujas poses e roupas faziam
referência de modo inequívoco ao mundo da moda, que ela conhecia tão bem
desde o seu tempo nas revistas. Para entender o artifício, observe comigo os
retratos das figuras 9 e 10. São dois homens utilizando o mesmo modelo de
chapéu, terno e camisa semelhantes. No entanto, o personagem da Figura 10
parece tragicômico. Claro, a maquiagem e o chapéu inclinado estão ali para não
deixar dúvida. Nos retratos de Arbus, se você procurar por eles na internet, verá
que a expressão é muito semelhante. O que Schloss argumenta é que as
pessoas dos retratos veem a si mesmas como as modelos das revistas, buscam
concretizar essa autoimagem nos artefatos de moda, mas o resultado não
convence.
Figura 9 – Homem com traje típicoCrédito: Susan Law Cain/Shutterstock.
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Figura 10 – Ilustração de homem atuando como palhaço
Crédito: Everett Collection/Shutterstock.
Na série de retratos de Arbus, a inadequação ficava mais do que evidente,
e com isso se imortalizou a narrativa que Schloss descreve. Aquelas plumas,
óculos e vestidos teriam falhado em atender às reivindicações internas de quem
os vestia, e isso teria ficado evidente nos olhares que Arbus conseguiu capturar
com suas lentes. Com Schloss, aprendemos que os seres humanos anseiam por
expressar a si mesmos nas coisas, conhecer-se, experimentar-se, e nem sempre
isso acontece.
Certa vez, Arbus disse estar convicta de que havia coisas que ninguém
veria se ela não as fotografasse (Nascimento; Campos, 2016). Parafraseando
Arbus, eu diria que há desejos, reivindicações internas, que as pessoas só
poderão experimentar por meio do seu trabalho como designer. Pense que você
pode ampliar as possibilidades, contribuindo para diminuir as frustrações.
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Exemplos típicos podem ser vistos na ampliação dos tamanhos das roupas e
das cores das maquiagens. Até poucos anos atrás, uma pessoa maior ou com
pele mais escura teria dificuldades em se manifestar adequadamente por meio
de roupas e maquiagens. O mercado tem ampliado consideravelmente essas
possibilidades.
O importante neste tópico é que você compreenda que o seu cliente, o
usuário, o interpretante do signo que você criou, tem o poder de recriar o seu
produto por meio de desejos. Você pode desenvolver uma bola, e ele, no
desespero, pode fazer dela um ser humano. Ou, você pode criar uma animação
para crianças, e um adulto encontrar algo de si nela. Como designer, você não
terá muito controle sobre o que as pessoas esperam ou farão com suas
produções. O que importa é que elas sejam ricas em possibilidades. Importa que
sejam produtos, de fato, artísticos. Analise, por exemplo, a riqueza do trabalho
de Arbus. O que ela produziu foi tão rico que sobreviveu a uma mudança radical
de temática, serviu de fonte inspiracional para o complexo trabalho semiótico de
Shainberg, inspirou um ensaio crítico atemporal escrito por Schloss, eu mesma,
depois de conhecer esses trabalhos, escrevi vários artigos sobre isso e você está
se beneficiando de Arbus nesta etapa. Prova-se assim que um trabalho
significativo é inesgotável, atemporal e universal. Se você fizer bem o seu
trabalho, seu produto será um acréscimo no mundo e na vida das pessoas, pois
poderá substituir inúmeros desejos, atendendo a muitas reivindicações internas.
Passo agora a exemplos menos filosóficos e mais práticos. Tenho em
casa uma mesa de madeira que ganhei da minha mãe. Tem tampo redondo
dobrável e, embaixo, uma estrutura onde podem ser guardadas as quatro
cadeiras, também dobráveis. Enfim, minha mãe podia abrir a mesa quando
recebia os filhos e netos, e usá-la como aparador quando estava sozinha, nas
rotinas da casa. Ela comprou a mesa pela flexibilidade do tamanho, que se
adequava à variação do número de pessoas à mesa. Eu detestava, porque
sempre batia os joelhos naquela estrutura. No entanto, observando a Figura 11,
hoje estou segura de que o problema não era a mesa, e sim um desencontro de
desejos. O destino daquela mesa, ou seja, o seu desejo, não era estar na sala
da minha mãe. Quem a projetou pensou em um mobiliário que pudesse ser
utilizado em área externa por algumas horas e depois fosse guardado, quem
sabe, em uma garagem. Na casa da minha mãe, pelo desejo dela, virou uma
mesa de copa.
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Figura 11 – Cena típica de churrasco em área externa
Crédito: Gorodenkoff/Shutterstock.
Sempre penso nisso quando coloco meus anéis. Com a idade, passei a
achar que certos anéis grandes não favoreciam a minha mão. Talvez eu devesse
dizer, em respeito aos artefatos, que minha mão deixou de favorecê-los. Minha
opção foi passar a utilizar anéis menores, nas falanges, aumentando, assim, o
comprimento dos meus dedos.
Figura 12 – Uso de anéis
Crédito: Suzie Ferreira do Nascimento.
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Como professora de Semiótica aplicada, não posso ignorar que o
designer que projetou os anéis que uso nas falanges pode ter passado horas
encontrando a melhor maneira de apresentá-los na base do dedo anelar. Mesmo
assim, eu opto por usá-los nas falanges dos dedos.
A mesa da minha mãe e meus anéis são dois exemplos pessoais de que
aquele que usa tem o poder de trazer à existência características do artefato que
o designer não previu. Mas isso só é possível porque o artefato possui bons
atributos e a potencialidade para isso. Em outras palavras, quem o concebeu
deixou ali possibilidades em aberto que o usuário pode explorar. Os retratos de
Arbus trataram de mostrar quando os artefatos falham nesta missão.
TEMA 5 – ALARGANDO A REALIDADE DO CLIENTE
Ao longo desta etapa, argumentei de várias maneiras em favor de uma
atenção especial para a significação daquilo que você faz. Iniciei falando sobre
a importância de ter repertório, expliquei que ele depende de autoconhecimento,
adverti que as produções dos designers costumam ser obras abertas, à espera
de alguém que as interprete e, por último, disse que o usuário, receptor ou
interpretante, tem o poder de dar novos significados ao seu produto por meio dos
seus desejos. Quero finalizar convidando você a se engajar no desafio de alargar
a realidade das pessoas, mais precisamente, do seu usuário ou cliente.
Aproveito a oportunidade para aumentar o seu repertório sobre a teoria
do Design, introduzindo aqui alguma informação sobre Vilém Flusser, um filósofo
tcheco que viveu no Brasil nos anos 70. Tinha um profundo interesse pelo
Design, e era também leitor de Nietzsche. É um dos poucos autores que
escreveu sobre teoria do Design em português. Seus ensaios são variados, e
sua obra nunca foi sistematizada, mas ele tem alguns princípios valiosos que
nos ajudarão com a aplicabilidade da Semiótica.
Saiba mais
Para saber mais sobre Flusser, leia o capítulo “Explorações do ser”, de
Anke Finger, no dossiê Flusser, que você encontra em: VÁRIOS AUTORES.
CULT – Dossiê: Vilém Flusser.
Flusser não era muito entusiasta da Arte como expressão subjetiva, no
sentido de não ter compromisso em fazer uma comunicação clara. Ao contrário,
defendeu que a experiência da Arte é algo que acontece depois que ela está
21
pronta, uma ação futura. O que Flusser está dizendo é que só é possível afirmar
alguma coisa sobre uma Arte depois que ela foi assimilada por alguém. Nesse
sentido, ele segue Kant, porque entende que a beleza de alguma coisa tem a
ver com a sua compreensão. O interessante, para nós, é que Flusser condiciona
a beleza ao balanço entre o que já se sabe sobre uma coisa e o que ela tem de
novidade (Nascimento, 2014a). Se você retomar o assunto da etapa anterior,
lembrará que foi exatamente isso que eu disse a respeito das substituições.
Um bom trabalho em termos de Semiótica precisa apresentar a
quantidade exata de novidade e os recursos necessários à sua apreensão, do
contrário, será excessivamente ruidoso, entediante ou confuso. Mas Flusser tem
mais a oferecer para a sua prática. Ele dizia que o designer que não apresenta
novidade alguma em seu produto não aumenta o domínio da realidade. Por outro
lado, se a novidade é muita, não seria compreendido, e isso também não
aumentaria o parâmetro do que é considerado real.
Nos termos de Nietzsche, em qualquer dos casos, o designer estaria
falhando no papel de inventor de signos (Nascimento, 2014a). Talvez você esteja
se perguntando por que isso é importante. Lembre-se do que argumentei
anteriormente: as pessoas se reconhecem na experiência que têm com as
coisas. É possível sentir emoções novas indo ao cinema, lendo um livro, vendo
ou usando uma joia, aprendendo um jogo e assim por diante. Com isso, o
parâmetro de realidade da pessoa se vê aumentado. No caso dosmodelos de
Arbus, eles desejavam apresentar a si próprios e encontraram um limite nos
artefatos, como se não houvesse artefatos suficientes para representá-los.
Seja indo ao cinema, comprando um artefato ou vestindo uma roupa, a
pessoa está tendo, ou deseja ter, uma experiência que pode ser alargadora.
Quando conhecemos mais e melhor nossas sensações, nosso mundo aumenta.
Ou seja, como designer, você pode aumentar o parâmetro do real permitindo
que o usuário tenha experiências reais por meio de signos que você insere no
seu produto. No meu caso, amadureci com os sentimentos tristes que Cazuza e
Renato Russo colocaram em suas letras. Graças à sua Arte, tornei-me uma
pessoa mais experiente e, em certo sentido, minha realidade foi aumentada.
Muitos garotos aumentam seu parâmetro do real com jogos. Quem nasce
em apartamento e se muda para uma casa térrea, ou vice-versa, terá uma série
de novas experiências com o espaço, com a Arquitetura, com o mobiliário, e com
isso alargará a sua própria realidade. Quem está habituado a andar de carro,
22
quando anda de moto ou bicicleta, tem o seu repertório de experiências
aumentado, e assim também a sua realidade. Enfim, toda nova experiência
estimulada pelas coisas é um aumento do parâmetro do real.
Anteriormente também argumentei que você deve se inspirar nas casas
de luxo, que se arriscam bastante nas suas peças publicitárias. Quero insistir um
pouco mais nisso, agora à luz de Nietzsche e Flusser. Nietzsche escreveu um
ensaio crítico a respeito da obra de Richard Wagner, cuja música você deve
conhecer pela famosa Cavalgada das Valquírias, que o diretor Francis Ford
Coppola imortalizou em Apocalypse Now (1979). A verdade é que há muitas
outras obras de Wagner em filmes, e a maioria de nós nem sabe. Embora
Nietzsche não o diga com estas palavras, o que subjaz à sua crítica a Wagner é
um problema de Semiótica.
Wagner, para agradar seu público, começou a produzir dramas
musicados, ou seja, começou a colocar a música como um acessório àquilo que
era falado na cena. Para Nietzsche, uma corrupção inaceitável. A preferência
dos cineastas atuais pela instrumentalidade de Wagner prova que o filósofo
germânico estava certo: músicas como a Wagneriana são tão eloquentes que
devem ser colocadas no lugar das palavras, e não à sua sombra. Veja o que
mencionei há pouco sobre Cazuza e Renato Russo. No meu caso, a força das
palavras suplantou meu interesse pelas músicas, que só vim a conhecer em um
segundo momento. Esse é um exemplo da força atrativa que as palavras têm
para nós, humanos modernizados. Por motivo similar, já não temos interesse em
cinema mudo.
Dica
O diretor de cinema Lars von Trier utilizou o prelúdio de Tristão e Isolda,
de Wagner, como trilha sonora em seu filme Melancolia (2011). A música de
Wagner é a ferramenta utilizada pelo diretor para significar o desespero dos
personagens com a aproximação do fim do mundo.
O principal, para esta abordagem, é que você preste atenção no motivo
pelo qual Wagner começou a submeter sua música às palavras: o público.
Portanto, assim como você e eu, Richard Wagner também precisava atender
certas demandas comerciais e, com isso, conforme a opinião de Nietzsche,
empobreceu sua música. Quem poderá dizer quantas Cavalgadas das Valquírias
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Wagner produziria se não tivesse optado pelo drama? Quantas experiências
deixaram de ser disponibilizadas ao público em função dessa opção?
Da mesma maneira, nós, assim acuados, quando privamos as pessoas
de experiência, deixamos de dar a elas a oportunidade de alargar suas
realidades, de estenderem seus parâmetros do real. A consequência é que o
mundo vai encolhendo e ficando cada vez mais monótono. Nietzsche entendeu,
e lamentou, que a música de Wagner estivesse adoecendo por ser produto da
demanda de uma sociedade que também adoecia e não era mais capaz de ter
experiências puramente musicais (Nascimento, 2014a).
Você e eu estamos sujeitos às mesmas pressões. Profissionalmente,
você terá de decidir o quanto estará disposto a arriscar em favor de um
alargamento do parâmetro do real, quando a maioria dos seus clientes desejar
ficar na sua zona de conforto. Ou, o que é mais provável, terá de decidir o quanto
de refinamento exigirá dos sentidos dos seus clientes, em uma época em que
todos estamos brutalizados pelo excesso de estímulos.
TROCANDO IDEIAS
Certa ocasião, assisti ao comercial de uma empresa especializada em
artefatos para churrasco. Já eram bem audíveis as demandas por igualdade
entre os gêneros, e a empresa resolveu arriscar com o tema. No geral, não
surpreendia: um grupo de mulheres, vegetais na grelha, e assim por diante. O
inusitado é que, lá pelas tantas, aparecia uma moça delicada segurando um
enorme saco de carvão. A mensagem era clara: igualdade de direitos requer
igualdade de deveres.
O autor da publicidade utilizou, propositalmente, uma dupla linguagem:
enquanto afirmava a igualdade com os recursos mais óbvios, questionava sua
validade com recursos mais sutis. A experiência trivial de assistir aquele
comercial alargou minha realidade, pois demonstrou que ainda é possível ser
criativo. Você lembra quando foi a última vez que assistiu a um comercial
inteligente, daqueles que somente algumas pessoas entendem a mensagem?
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NA PRÁTICA
Procure imagens de luminárias sem ambientação, apenas a foto técnica,
variando nos estilos. Em seguida, procure imagens que poderiam ser a
ambientação daquela luminária. Veja o exemplo:
Figura 13 – Luminária de pé
Crédito: Krakenimages.com/Shutterstock.
Figura 14 – Design de interior
Crédito: vanitjan/Shutterstock.
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Observe que a luminária tem um pé alto, ajuste de inclinação e não ilumina
o teto. O objeto que ela deve iluminar estará abaixo, provavelmente um pouco
deslocado. Por outro lado, a Figura 14 mostra uma poltrona confortável,
acompanhada de uma estante com livros, mas sem luminária. Conforme o que
você estudou nesta etapa, a luminária deve estar ao lado daquela poltrona.
Repita o exercício quantas vezes forem necessárias, até se sentir seguro
do raciocínio. Será importante para as próximas etapas.
FINALIZANDO
Nesta etapa, você aprendeu o valor de um bom repertório. Sugeri, a partir
das minhas próprias experiências, que você pode adquirir repertório por meio da
arte, dos jogos e das séries. Isso porque as emoções experimentadas na fantasia
são reais. Assistindo, jogando, tocando algo ou ouvindo algum som, todos nós
aprendemos um pouco mais sobre nós mesmos e, assim, aumentamos nossa
realidade.
Você também aprendeu que os produtos que criará devem ser ricos em
significado, pois estarão abertos ao mundo, a uma série de interpretações que
talvez você não possa prever. Como designer, você pode ser generoso e
oferecer ao mundo novas experiências.
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REFERÊNCIAS
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Revista Dobras, 2014b. Disponível em:
<https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/39/39>. Acesso em: 24
abr. 2024.
_____. O criador de roupas enquanto artista. Modapalavra, ano 7, n. 13, jan./jun.
2014a. Disponível em:
<https://revistas.udesc.br/index.php/modapalavra/article/view/5127/3314>.
Acesso em: 24 abr. 2024.
_____. CAMPOS, J. L. Possibilidades artísticas a partir da obra de Diane Arbus.
Temática, ano XII, n. 12. Dez./2016. Disponível em:
<http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/tematica>. Acesso em: 24 abr. 2024.
RAMOS, F. B. Tropicália: gêneros, identidades, repertórios e linguagens. 1. ed.
Porto Alegre: Educs, 2008. E-book. Disponível em:
<https://plataforma.bvirtual.com.br>. Acesso em: 24 abr. 2024.
SHLOSS, C. À margem: moda e dor na obra de Diane Arbus. In: BENSTOCK,
S.; FERRISS, S. (Orgs.). Por dentro da moda. Tradução de Lúcia Olinto. Rio de
Janeiro: Rocco,2002.
SEMIÓTICA APLICADA AO
DESIGN
AULA 3
Prof.ª Suzie Ferreira do Nascimento
2
CONVERSA INICIAL
Anteriormente, nosso esforço foi convencê-lo(a) de que é importante para
o desempenho da sua profissão entender as maneiras como nós, humanos,
substituímos coisas. Nesta abordagem, insistimos na ideia de que artefatos,
produtos e serviços grávidos de possibilidades significativas dão ao usuário
maiores possibilidades de experimentar a si mesmo, estendendo a sua própria
realidade. A partir deste conteúdo, queremos instrumentalizá-lo(a) para que
possa, de fato, desenvolver produtos e serviços generosos em possibilidades
sígneas.
CONTEXTUALIZANDO
Embora nós, humanos, sejamos pródigos na arte da significação, isso não
quer dizer que fazemos isso sempre da mesma maneira. É importante fazer essa
ressalva, já no início, para que você entenda o motivo pelo qual é necessário dar
tantas voltas antes de chegar ao ponto que interessa, que é aprender como
inserir significado nas coisas. Logo no início do nosso estudo, vimos que um dos
pilares da aplicabilidade da Semiótica na prática do Design é o americano
Charles Sanders Peirce (1839-1914). De fato, alguns conceitos de Peirce são de
grande valia para nós, designers, mas é preciso manter a humildade e
reconhecer que outros tempos, e outras culturas, relacionam-se com suas coisas
de outros modos. Por isso, antes de apresentar a tríade Peirceana, com a qual
esperamos que você se familiarize, investirei algumas páginas diferenciando a
visão de mundo para a qual o pensamento de Peirce é singularmente importante.
TEMA 1 – DE KANT ATÉ A TRÍADE PEIRCEANA
Para o tema que nos interessa, é importante saber que Peirce foi bastante
influenciado pelo pensamento de Kant. Immanuel Kant (1724-1804) foi um
filósofo germânico que viveu no século XVIII durante o Iluminismo, nome dado a
um conjunto de ideias que caracterizou a vida intelectual da Europa no século
XVIII, cuja característica mais conhecida é o grande valor dado à racionalidade
humana.
3
Saiba mais
Para saber mais sobre o Iluminismo, leia os tópicos 5.1 e 5.1.1 de
LOURENÇO, V. H. Construção do pensamento filosófico na modernidade.
Do ponto de vista do nosso conteúdo, é importante considerar que a
Filosofia de Kant dialoga com um grupo social que atribuía grande valor às
conquistas da razão humana. Como pretendemos demonstrar, isso tem
consequências profundas na maneira como se significam as coisas. Analise
comigo, por exemplo, as representações da Figura 1, na qual comparo três
representações do homem. Agrupei, da esquerda para a direita, o Kouros, que
é típico do período Arcaico Grego, depois, uma cópia romana de uma escultura
atribuída ao grego Fídias e, por último, um detalhe de uma pintura do
renascentista Rubens, de 1598. Cada um dos artistas quis representar, ou criar
um signo, para o homem. Observe que a pintura de Rubens busca representar
um homem mais real, mais próximo daquilo que seria uma pessoa comum. Isso
é um indicativo de que, desde o Renascimento1, a Europa nutria certa convicção
de que era importante representar as coisas como são, fato que se desdobrou,
depois, no Iluminismo.
Figura 1 – Comparativo da representação do homem em três tempos
Crédito: Lefteris Papaulakis/Shutterstock; Museu Nacional Romano do Palazzo Altemps-CC/PD;
Pedro Paulo Rubens-CC/PD.
Talvez você já tenha visto isso acontecer com algum herói seu.
Atualmente, existe a tendência em representar heróis do passado de maneira
1 Chama-se Renascimento o movimento artístico e cultural ocorrido na Europa entre os séculos
XIV e XVI, cuja característica foi a experimentação e a ambição de romper com ideais
considerados medievais. Considera-se que o Renascimento é o início da Modernidade.
https://www.shutterstock.com/pt/g/lefpap
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https://en.wikipedia.org/wiki/en:Peter_Paul_Rubens
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mais humanizada, ou seja, mais frágeis, alguns mais até corruptos. O
estratagema é similar: pega-se um signo ideal e se insere nele atributos que o
façam parecer mais real, mais próximo da maneira como nós, modernos, vemos
a nós mesmos. Subjaz a esse artifício a expectativa de que o signo possa revelar
alguma verdade nesse herói desconstruído.
A Filosofia de Kant não teria sido tão importante se não houvesse, antes
dela, uma verdadeira obsessão com as possibilidades de a razão revelar a
verdade sobre tudo. O problema é que Kant foi tão sagaz no estudo do
funcionamento da razão que acabou descobrindo, e revelando, seus limites
(Kant, 2012). Ou seja, sua Filosofia mostrou aos modernos que as coisas não
são verdadeiras em si mesmas, mas, sim, produto da interação entre a coisa
observada e o observador. Com Kant, aprende-se que esse herói desconstruído
não pode ser apontado como verdadeiro, afinal, ele existe somente porque nós,
seus observadores, o queremos assim.
Mas atenção: como designer criador de signos, você deve ter em mente
que querer, nesse caso, não é o querer que a sua razão reconhece e domina.
Por exemplo, você pode olhar para uma cadeira, ver uma cadeira e dizer: “esta
é uma cadeira, porque tem este e aquele atributo e eu e meus amigos decidimos
chamá-la assim”. Essa é uma decisão baseada em um querer que foi
determinado pela sua razão. Kant, Peirce e outros como eles estão interessados
no querer ao qual a razão serve. O que, afinal, levou você a se interessar pela
cadeira? Ou ainda, o que levou uma geração a querer descontruir os heróis do
passado?
É esse querer profundo e poderoso que os artistas e designers devem
ambicionar acessar. O propósito deste estudo é apresentar algumas ferramentas
com as quais você poderá tentar persuadir seu cliente a querer “profundamente”
aquilo que o seu produto tem a oferecer. Mais precisamente, maneiras pelas
quais você poderá colocar o querer do cliente no seu produto, por meio de
signos. É quase como se todas as vezes que um cliente se aproximasse de você
dizendo o que “quer”, você intimamente estivesse se perguntando “o que é que
ele quer de fato e não está me dizendo?”
Se você prestou atenção nos conteúdos anteriores, lembrará que em
vários momentos frisamos que os signos são legitimados pelo interpretante.
Essa é uma consequência da revolução causada pelas reflexões de Kant, ou
seja, o reconhecimento de que cada indivíduo se relaciona com as coisas de
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maneira particular. À época de Kant, isso gerou um problema para os estudos
sobre o belo. O filósofo havia demonstrado, e seus contemporâneos tiveram de
aceitar, que a verdade sobre uma coisa se baseava em interpretação individual.
Mas, se isso é certo, como é que nós, humanos, nos entendemos por meio de
signos?
Kant, e outros que o seguiram, demonstraram que nós, humanos, embora
individuais, somos dotados do mesmo mecanismo de apreensão das coisas.
Sem isso, não nos comunicaríamos. Mecanismo tão complexo que centenas de
anos ainda não esgotaram o que se pode estudar sobre ele. A ciência moderna
da Semiótica certamente é um dos frutos desse estudo. A Semiótica nos ajuda
a entender porque determinados signos são tão coletivos. Em outros termos, o
quê, no signo, pode ser comunicado. Daí termos citado, em conteúdos
anteriores, as frases de Nietzsche: “prazer comunicado é arte, e o artista é um
inventor de signos”. É o teor artístico do que você fará que tornará seu produto
um canal de comunicação.
Os teóricos do Design já há algum tempo optaram pela Semiótica de
Peirce, que foi estudioso de Kant, como sendo a ferramenta mais adequada para
estudar maneiras de incutir significado em produtos. Peirce foi um cientista
americano que viveu na virada do século XIX. As características mais marcantes
da sua produção teórica são a multiplicidade de temas tratadose a quantidade
de textos. Aos 16 anos, já sabia de memória algumas das obras de Kant, e era
conhecedor do que havia de melhor entre os gregos, ingleses e germânicos. Na
sua época, nenhuma universidade sabia exatamente onde enquadrá-lo, e
somente depois da sua morte foi reconhecido como filósofo. Hoje, já se sabe que
Peirce passou as últimas três décadas da sua vida estudando 16 horas por dia,
o que gerou um legado de 80 mil manuscritos, para além das 12 mil páginas
publicadas em vida (Santaella, 1983, p .3-4).
Devido ao trabalho incansável de pesquisadoras como Lúcia Santaella,
que tem uma infinidade de publicações sobre Semiótica, inclusive o clássico O
que é semiótica, publicado pela Brasiliense em 1983 na coleção Primeiros
Passos, e Lucy Niemayer, que, em 2003, publicou seu Elementos de semiótica
aplicados ao design, a aproximação entre Design e Semiótica, no Brasil, tem
sido feita por meio de Peirce, ainda que a maior parte dos seus escritos originais
não tenha sido organizada. Todavia, como ambicionei evidenciar nos parágrafos
anteriores, é preciso considerar que Peirce, muito provavelmente por influência
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de Kant, não está voltado para o que as coisas são, mas, sim, para as suas
múltiplas significâncias e modos de comunicação. Mas Santaella alerta, no seu
livro O que é Semiótica (Santaella, 1983, p. 8), que ele estava mais interessado
na consciência do que na razão. Aprende-se com Santaella que Peirce buscou
por muitos anos um sistema lógico, triádico, que pudesse ser aplicado a
absolutamente tudo (Santaella, 2019, p. 216).
“Tudo” inclui Design, mas certamente não se limita a ele. É importante que
você compreenda que as ferramentas que o Design foi buscar em Peirce não
foram concebidas, prioritariamente, para dizer o que um artefato é, nem mesmo
para o que ele serve, e sim para dizer o que ele significa. Assim, sempre que
você se angustiar porque o sistema de Peirce não é tão objetivo quanto gostaria,
lembre-se de que a Semiótica peirceana é devedora do pensamento de Kant,
tendo como objeto o homem moderno, que já não aceita respostas simples sobre
as coisas.
Nosso propósito, no início desta abordagem, foi que você, entendendo um
pouco de Kant, estivesse mais preparado para utilizar a Semiótica de Peirce.
Resumo esse meu intento em três aspectos que considero particularmente
relevantes:
• As coisas não são verdadeiras em si mesmas;
• Para que alguma coisa seja signo, deve gerar uma ação interpretativa;
• Não há uma causa determinada para a ação interpretativa.
De certa maneira, já vimos isso nos conteúdos anteriores. Lembre-se do
exemplo da bola Wilson. Com base no que ocorre no filme O Náufrago, não é
possível dizer que a bola é, de fato, uma bola, porque ela pode ser uma pessoa.
Se aquele artefato, desenvolvido incialmente para ser um ferramental esportivo,
tornou-se o signo de uma pessoa, ou seja, substituiu uma pessoa, isso quer dizer
que ele gerou uma ação interpretativa. E o fato de essa ação não ter sido prevista
pelo desenvolvedor da bola quer dizer que ela não foi determinada por ninguém,
exceto pelo interpretante. Peirce resume isso bem em um dos seus mais
conhecidos conceitos: signo é o que substitui alguma coisa para alguém.
A partir desse conceito geral, fica exposto o sistema triádico composto de
alguém, que é o interpretante, mais o alguma coisa, ou objeto, que é substituído
em um terceiro momento pelo signo.
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Figura 2 – Semiótica peirceana aplicada ao Design
Fonte: Nascimento, 2024.
Saiba mais
Para iniciar seus estudos sobre a aplicabilidade da Semiótica de Peirce,
leia as páginas 68 a 69 do livro Semiótica, dos autores CORDEIRO, R. Q. F.;
CAMPOS, C. R P.; ARAÚJO, A. C S.
O mais difícil costuma ser o fato de que nem signo, tampouco interpretante
ou objeto são coisas ou pessoas em si mesmas. No sistema de Peirce, nenhum
deles subsiste de modo isolado. O signo não existe sem objeto e interpretante,
e o interpretante só existe quando interpreta um signo. Nas próximas páginas,
veremos um pouco mais sobre cada um deles, sempre no sentido que melhor se
aplica à nossa prática, como designers. Começarei definindo o que é objeto,
seguido do interpretante e, por último, discorrerei sobre o signo propriamente
dito.
TEMA 2 – O OBJETO
A julgar pela minha experiência com alunos, o vértice que mais causa
confusão é o que corresponde a objeto. Por questões idiomáticas, objeto, para
nós brasileiros, é a coisa, o artefato, e raramente uma pessoa ou sentimento.
Você precisa superar esse obstáculo. No sistema peirceano, objeto é sempre,
e unicamente, aquilo que o signo substitui.
Se liga
Objeto é aquilo que o signo substitui.
Agora, observe o seguinte discurso:
Uma das cenas mais memoráveis da minha vida ocorria quando eu,
segurando a mão da minha mãe, aguardava o ônibus que me levava para a
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escola. Hoje, em uma vitrine, vi uma mochila que me trouxe lembranças
agradáveis. Não resisti, entrei e comprei.
No discurso escrito, a palavra mochila significa a mochila verdadeira, que
é seu objeto. Veja no diagrama:
Figura 3 – Diagrama objeto e signo. Diagrama do professor
Crédito: maximmmmum/Shutterstock.
Analisando o discurso mais detalhadamente e à luz do que você aprendeu
nos conteúdos anteriores, a mochila verdadeira, a que foi vista na vitrine, tem
atributos formais e de cor que levaram o observador a pensar no ônibus da
escola. Ou seja, a mochila significou o ônibus verdadeiro e, por isso, passou a
ser signo do ônibus, que passa a ser seu objeto. Veja no próximo diagrama.
Figura 4 – Diagrama objeto e signo. Diagrama do professor
Crédito: maximmmmum/Shutterstock; Prostock-studio/Shutterstock,
Conforme você viu, a mochila, que era objeto, passou a ser signo. Por
que? Porque objeto é aquilo que o signo substitui. No exemplo, tanto a mochila,
quanto a palavra ônibus estão substituindo o ônibus real significado na foto (é
bom lembrar que a foto de um ônibus é signo, e não o ônibus de verdade). Então,
para esse exemplo, o ônibus real é um objeto substituído pelo signo mochila e
pela palavra, que também é signo.
https://www.shutterstock.com/g/maximmmmum
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Mas o principal, o que realmente fará a diferença na sua atividade como
designer criador de signos é o que vem representado no diagrama a seguir:
Figura 5 – Diagrama objeto e signo. Diagrama do professor
Crédito: maximmmmum/Shutterstock.
Infelizmente, é aqui que a maioria se confunde, justamente porque
esquece a definição: objeto é aquilo que o signo substitui. Tentei convencê-
lo, nos conteúdos anteriores, que terá maiores chances de sucesso se seus
produtos forem grávidos de significado. Eles precisam significar alguma coisa
para alguém. Essa alguma coisa geralmente são sentimentos, sensações e
desejos. Aquele querer sobre o qual falei há pouco. No discurso que apresentei,
a pessoa não resistiu ao apelo da vitrine porque a mochila, naquele momento,
significou uma série de sentimentos importantes para ela. Logo, o objeto mais
relevante naquele caso são os sentimentos, e não a mochila ou o ônibus.
Mas o que merece destaque no exemplo dado é a significação do ônibus
na mochila. Este é o trabalho do designer como criador de signos: encontrar
maneiras de colocar nos seus artefatos ou serviços atributos de outras coisas,
fortes o suficiente para sensibilizar o observador por meio dos seus desejos. O
exemplo também ajuda a fazer a distinção entre o querer racional e o querer ao
qual a razão serve.
A pessoa que comprou a mochila tomou uma decisão racional ao comprá-
la. Mas a racionalidade que foi posta em ação no ato da compra serviu, ou esteve
a serviço, de uma série de outros desejos.
Dica
O filme iraniano A Separação, de Asghar Farhadi, significa a dor da saída
da personagem Simin da casa,pela saída difícil do piano. O filme não tem
música, porque a personagem que toca o piano é a que se ausenta. O esforço
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dos carregadores levando o piano escada abaixo significa a dificuldade que foi,
para a personagem, abandonar o marido e a filha. Nesse caso, a dor é o objeto,
e o piano funciona como signo dessa dor (Nascimento, 2017).
Dica
Em conteúdos anteriores, você aprendeu que a origem da palavra está no
grego, Semeiotiké, e que essa palavra teria alguma coisa a ver com identificação
de problemas de saúde por meio de sintomas, manchas amarelas na pele, por
exemplo. Na ocasião, sugerimos que você pensasse a atividade do designer
como uma atividade às avessas, ou seja, como se coubesse ao designer
encontrar os sinais visíveis para alguma coisa interna. Ao aprender a definição
do objeto, você agora já pode concluir que os artefatos criados pelos designers
estão ancorados em sensações, emoções e desejos internos, sendo assim, seus
sinais visíveis.
No próximo tópico, veremos os conceitos básicos que você precisa saber
para identificar o interpretante.
TEMA 3 – INTERPRETANTE
Também nesse caso, é muito importante memorizar o conceito
fundamental: interpretante de um signo é aquilo que o legitima. No nosso
linguajar prático, será quase sempre quem o legitima.
Se legítimo é o que é amparado por uma lei, então Peirce almejou fazer
com que, na sua tríade, a lei fosse dada por aquilo ou aquele que interpreta o
signo. Nos próximos conteúdos, você aprenderá que há leis, ou convenções, que
facilitam o seu trabalho como inventor de signos. Mas não é disso que se trata
aqui. O que Peirce parece ter em mente é que o caráter legítimo do signo é dado
sempre, e somente, pelo seu interpretante.
Essa é uma influência kantiana, pois Kant revelou que a verdade sobre
alguma coisa é produto dessa coisa com seu observador.
No exemplo da mochila que parece ônibus exposta na vitrine, o
interpretante mais óbvio é a pessoa, porque é ela quem entende o signo e
acessa seu objeto [sentimentos e desejos] por meio dele. É ela quem declara,
figuradamente, que aquela mochila, de fato, significa toda aquela emoção
guardada na memória. Existem maneiras mais complexas de pensar o papel do
interpretante, mas essa atende aos objetivos deste estudo: pense no
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interpretante como aquela pessoa para a qual o seu artefato deve significar
alguma coisa. Ou melhor, pessoa sem a qual o seu artefato será insignificante.
Você aprendeu, nos conteúdos anteriores, que não conseguirá dominar
completamente essa relação. Suas melhores chances estão na consistência
significativa. É preciso ser persuasivo.
Dica
Ser persuasivo é utilizar recursos emocionais e simbólicos para fins de
comunicação.
Este é um bom momento para retornar à sétima arte. O cinema, como
você sabe, é uma arte cara, que não pode ser tão individualista. Alguns diretores,
é verdade, fazem obras muito subjetivas e, assim, comprometem parte da sua
comunicação. Outros, no afã de trazer muitos espectadores às salas de cinema,
fazem obras tão popularescas que são esquecidas na semana seguinte. Em
qualquer caso, o destino dessas obras é selado pela audiência, ou seja, pelo
interpretante. Mas há alguns motivos pelos quais o cinema é uma Arte a ser
continuamente estudada. Fazer cinema é dar vida à pintura ou fotografia. É
do movimento que vem a palavra2.
Saiba mais
Para saber mais sobre como a imagem adquiriu movimento no cinema,
leia o tópico “Periodização” no livro História do cinema mundial, de Fernando
Mascarello.
Uma fotografia tem razoável poder persuasivo, mas o sentido humano
prioritariamente envolvido é a visão. No cinema, a imagem ganha primeiro o
movimento, depois a cor e, finalmente, a audição entra em ação.
A vida que o cinema ambiciona apresentar é capturada pelos sentidos do
interpretante. Ele vê o herói lutando, o cavalo correndo com crinas ao vento, e
as folhas oscilando. Ele entende que aquelas imagens em movimento, unidas
aos sons, são signos, ou seja, substituem coisas reais. Claro, nem tudo no
cinema é representação do real, afinal, não existem unicórnios reais, habitantes
reais do planeta Vulcano, e assim por diante. O que importa é que o interpretante
2 Cinematógrafo é uma palavra que vem do francês cinématographie. A origem está no grego:
kínēma, que tem a ver com movimento e pôr em movimento, unido à graphein, que diz respeito
à ação genérica de gravar (https://etimologia.com.br/cinema/). Acesso em: 25 mar. 2024.
12
reconheça a proposta do signo. Importa também você observar que, geralmente,
quanto mais sentidos estiverem envolvidos na experiência, mais persuasão.
Tenha em mente que o trabalho de interpretação do signo pelo
interpretante é bastante complexo, afinal, o observador só tem os sentidos
(olhos, ouvidos, nariz, paladar, tato) para captar as informações, e o restante do
trabalho é mental. É a mente que tem de ser criativa no embaralhar e
desembaralhar das informações recebidas. Paralelo ao trabalho da mente, está
a consulta à memória, às emoções, ao inconsciente.
Portanto, o interpretante é refém do seu próprio repertório de informações
e experiências, conforme você já aprendeu nos conteúdos anteriores. Nem todo
mundo saberá quem são os Klingons ou os Vulcanos. Da mesma maneira, seria
injusto exigir de alguém da minha geração que saiba quem é Son Goku de
Dragon Ball. Essas são questões de repertório geracional. Existem também
repertórios culturais. Brasileiros, europeus, africanos e asiáticos têm repertórios
próprios, e isso, de alguma maneira e em certa medida, influencia em seus
gostos.
Exemplarmente, tenho um acervo razoável de séries asiáticas assistidas.
Meu enxuto repertório de filmes ocidentais ricos em recursos semióticos me
permite dizer que o cinema asiático não significa da mesma maneira que o
ocidental. Tive oportunidade de assistir trabalhos asiáticos primorosos em
termos de composição formal e uso das cores, mas não me lembro de ter visto
algum em que o amarelo significasse perigo, ou o vermelho identificasse, para o
espectador, quem seria assassinado. Para retomar o exemplo do significado da
água, nas séries asiáticas, geralmente cabe ao personagem masculino proteger
o personagem feminino da chuva com um infalível guarda-chuva que está
sempre à mão.
A ênfase está no cuidado, na proteção. Nos filmes ocidentais, geralmente
os personagens não se protegem da chuva, eles se molham prazerosamente,
pois molhar-se significa se deixar penetrar pela emoção.
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Figura 6 – Menino de capa e guarda-chuva
Crédito: Olesia Bilkei/Shutterstock.
Exemplos como esses mostram que, embora todos os humanos capturem
as informações com os mesmos sentidos, e assim entendido, quanto mais
sentidos envolvidos melhor, você, como criador de signos, precisa considerar
que existem outros fatores envolvidos, tais como as diferenças culturais.
Grandes empresas investem bastante no estudo das diferentes maneiras
pelas quais seu público interpreta os signos. Um exemplo didático pode ser visto
no mercado de luxo do Oriente Médio. As casas de moda vendem seus produtos
para milionárias, sejam elas ocidentais cristianizadas ou muçulmanas árabes. A
diferença, em geral, aparece na maneira pela qual esses produtos são
oferecidos, em outras palavras, nos diferentes signos que aquela cultura aceita
e entende. Compare as Figuras 7 e 8.
Figuras 7 e 8 – Modelos femininas posando com bolsa de alça longa
Crédito: Victoria Fox/Shutterstock; Robert Fowler/Shutterstock.
No geral, as grandes marcas respeitam certos códigos aos quais os
interpretantes são mais sensíveis. Essa é uma linguagem que fica muito definida
https://www.shutterstock.com/g/olesiabilkei
https://www.shutterstock.com/g/Victoria_Fox
https://www.shutterstock.com/g/RobRu
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nas poses das modelos. Conformevocê pode observar na figura à esquerda,
para interpretantes ocidentais cristianizados, a modelo aparece com os braços e
pernas afastados do corpo, como uma figura aberta, e o olhar se dirige, sem
barreiras, diretamente para o observador. Se o produto for oferecido para
mulheres islâmicas de países mais fechados, os membros se aproximam do
corpo, e o olhar é desviado. A modelo não enfrenta nem desafia o observador, e
sua figura é fechada, inclusive com as vestes, como se vê na figura à direita.
Repito, esses são estratagemas de venda. Na maioria das vezes, o
artefato mesmo não varia. Isso quer dizer que os designers que trabalham com
luxo têm o cuidado de inserir atributos reconhecíveis por ambas as culturas. Em
algum nível, os dois consumidores, ocidental cristianizado e islâmico, encontram
naquele artefato o signo para seus desejos.
Voltando aos exemplos do repertório, mesmo quem não sabe quem é Son
Goku ou os Klingons está perfeitamente habilitado a sentir paixão, medo,
frustração, alegria. A experiência tem me mostrado que quanto mais básicas
forem as emoções consideradas como objeto a ser significado, mais
interpretantes o reconhecem.
Resta, ainda, escrever algumas palavras sobre o que seria signo,
considerando o que você aprendeu sobre objeto e interpretante.
TEMA 4 – SIGNO
Os estudiosos dos escritos de Peirce já concluíram que ele tentou várias
definições para o que seria signo, sendo que cada definição vinha acompanhada
de uma série de consequências. Isso porque Peirce, conforme vimos
anteriormente, morreu sem terminar ou sistematizar todos os seus estudos.
Todavia, do ponto de vista que nos interessa, é possível assumir o conceito geral
de que signo é aquilo que está no lugar do objeto para um interpretante
(Santaella, 2019, p. 216).
Se liga
Uma maneira de definir signo é afirmar que ele é aquilo que significa
alguma coisa para alguém.
Essas são definições derivadas da definição de objeto (aquilo que o signo
substitui) e de interpretante (aquele que legitima o signo). Lembrando do
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exemplo do início desta abordagem, a mochila amarela é signo de uma série de
emoções que a pessoa sentiu ao vê-la na vitrine. Nesse caso, escolhi o exemplo
porque a mochila deixa entrever quais foram os atributos que o designer utilizou
para inserir naquele artefato os indícios do ônibus. Já no clássico exemplo da
bola Wilson, a situação é diferente, porque quem desenvolveu a bola não o fez
pensando no personagem Sr. Wilson. Ainda assim, foi esse o signo que o
interpretante encontrou. Observe o diagrama.
Figura 9 – Diagrama signo e objeto
Crédito: Paolo Ponga/Shutterstock.
A bola, para o náufrago, é signo das sensações de saudade e solidão. É
também signo do desejo de ter companhia. As sensações e desejos são o objeto,
ou seja, aquilo que o signo substitui.
E somente para o náufrago, de quem vem a lei que o interpreta. Quem
desenhou a bola não pensou em saudade. Foi alguém, da produção do filme,
que percebeu o potencial humanizável da sua forma. Afinal, se uma criança pode
substituir uma cabeça humana por um círculo, uma pessoa desesperadamente
só poderia substituir uma pessoa por uma bola.
Claro que o exemplo da bola Wilson é didático, mas, convenhamos, ele
não estimula muito nossa atividade, pois deixa quem desenvolveu o artefato de
fora do circuito. Prefiro pensar no designer como aquele que, por inventar signos,
cria pontes. Veja o diagrama a seguir.
https://www.shutterstock.com/g/Paolo+Ponga
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Figura 10 – Diagrama representando o signo como ponte
Crédito: inimalGraphic/Shutterstock.
Penso que uma maneira mais proveitosa de aplicar a tríade peirceana na
atividade do Design é pensar que aquilo que o designer faz deve servir de ponte
entre o interpretante e o seu objeto. É o caso da mochila, na narrativa que
criamos. Ali, o designer que desenvolveu a mochila construiu também uma ponte
entre aquele cliente e suas lembranças do passado, permitiu que fossem
revividas sensações, que fossem alcançados desejos.
Um joalheiro que produz um anel de noivado está, na verdade,
ambicionando criar uma ponte entre a noiva e todas as sensações e desejos que
ela projeta no casamento. No terreno das joias, talvez a cena mais emblemática
seja a abertura do filme “Bonequinha de luxo”. O espectador vê um táxi
estacionar e dele desce uma moça, vestida sedutoramente. Ele deduz que é de
manhã, porque a rua está vazia, a personagem come um croissant e, com a
outra mão, segura um copo de café.
Ali ela passa alguns segundos perdida em pensamentos olhando para a
vitrine de uma famosa loja de joias. Nem uma palavra é dita, mas os signos estão
lá, e o espectador entende que ela passou a noite fora, está sozinha, e deseja
encontrar um marido rico.
https://www.shutterstock.com/g/DGuzhanin
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Figura 11 – Diagrama alusivo à Bonequinha de luxo
Crédito: Svetography/Shutterstock; chuhastock/Shutterstock.
A pose, a roupa, o croissant e o café são signos suficientemente claros
para que o espectador antecipe todo o drama do filme. Isso não seria possível
se a loja famosa na qual está a joia não significasse um objeto (sentimento) muito
específico.
TEMA 5 – EXPLORANDO TODOS OS SENTIDOS
Sem dúvida, a maioria dos signos são produzidos por vias visuais, ou seja,
quase sempre os artefatos se tornam signos pelo que apresentam aos olhos do
interpretante. Mas o designer deve manter em mente que as pessoas têm cinco
sentidos. Como vimos, quanto mais sentidos estiverem envolvidos em uma
experiência, maior a sua comunicabilidade.
Dica
A inserção da terceira dimensão em um signo altera consideravelmente a
ação dos sentidos. Exemplarmente, Gilda de Mello, no livro O espírito das
roupas, refere-se ao costureiro como artista, e não menciona o ilustrador ou
desenhista (Nascimento, 2014a). O paralelo que a autora pretendia fazer não se
aplicaria aos desenhistas justamente porque eles não costumam manipular
materiais ou experimentar volumes, já que sua prática acontece na
bidimensionalidade. Um jeans rasgado pode significar muitas coisas para quem
vê. Mas é somente vestindo e tocando que se sente a trama, a entrada do ar, a
liberdade dos movimentos.
https://www.shutterstock.com/g/svetography
https://www.shutterstock.com/g/chuhastock
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Figura 12 – Jeans rasgado
Crédito: benjamas11/Shutterstock.
O mesmo vale para uma roupa cheia de alfinetes. Existe, claro, um
discurso acessível aos olhos, mas ele só vale porque as pessoas sabem a dor
que se sentiria se aqueles alfinetes acidentalmente abrissem.
Figura 13 – Modelo com jaqueta e alfinetes
Crédito: Juliana Astra/Shutterstock.
Quem trabalha com interiores deve ficar atento. Nenhuma foto ou
representação gráfica é capaz de significar para o olho aquilo que o tato seria
capaz de detectar.
Figura 14 – Representação de mobiliário em materiais diversos
Crédito: YKvisual/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/benjamas11
https://www.shutterstock.com/g/Juliana+Astra
https://www.shutterstock.com/g/YKvisual
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Indo mais adiante, quem compra um apartamento na planta, compra uma
ideia, uma expectativa, porque não há como saber o que será estar dentro
daquele imóvel. A dificuldade aumenta se você, como profissional, não tem
acesso a experiências mais sensoriais, que ultrapassem a manipulação de
programas de computador. Não é uma coisa fácil conseguir se imaginar dentro
de um ambiente que não existe. E se não puder imaginá-lo, não poderá mostrá-
lo convincentemente ao seu cliente.
Experiência Valiosa
Adolf Loos foi um importante arquiteto e decorador austríaco que viveu na
virada do século XIX para o XX. Além de excelente decorador, era muito bom
ensaísta. Seu mais famoso ensaio é Ornamento e Delito. Loos costumava
dirigir-se aos seus colegas arquitetos como “artistas gráficos”, porque estavam
se especializando em representaçõesbidimensionais. Loos deixou poucos
projetos finalizados em desenho. A maioria dos seus ambientes foi elaborada
mentalmente e com croquis em perspectiva solta.
TROCANDO IDEIAS
Escolha um dos cômodos da sua casa e faça uma lista dos materiais mais
relevantes. Depois, procure atribuir a eles significados, com base em alguns dos
seus atributos. Por exemplo, se você escolheu a cozinha e ali há um fogão a
lenha, identifique os atributos daquele fogão que podem significar alguma coisa
para você. O mesmo pode ser feito para o interior do seu carro, ou uma peça de
roupa preferida. Estude-os atentamente, identifique materiais e formas, e tente
justificar a sua significação. Leve seus exemplos para o fórum e veja se seus
colegas têm alguma observação a fazer.
NA PRÁTICA
Este ano encomendei, da minha sobrinha de 13 anos, uma pintura em
tela. Deixei o tema livre, e ela, olhando para minhas coisas, sugeriu uma cena
de quarto, semelhante à de um quadro de um pintor famoso que ela não
lembrava o nome. Tratava-se de O quarto em Artes, de Vincent van Gogh.
Apenas pedi que ela incluísse um gato, alusivo ao meu gato de verdade.
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Conforme você pode conferir na Figura 15, meu exemplar de van Gogh
veio com gato. Sob o ponto de vista da significação, há alguns aspectos que
valem sua observação.
A pintura da minha sobrinha não pretendeu estar no lugar ou significar o
quadro de van Gogh, que não tinha gato, tampouco tapete preto. Mas o gato foi
significado de diversas maneiras. Ele é visto saindo debaixo da cama, a caixa de
areia e os potinhos de água e ração são azuis, como os verdadeiros e, caso
ainda restasse alguma dúvida, o retrato do gato na parede veio acompanhado
das palavras Gato e Cat, uma vez que o meu gato não tem nome. Não duvido
que o tapete preto esteja ali significando os pelos pretos que ele deixa pela casa.
Figura 15 – Quadro familiar, Van Gogh com gato
Fonte: Larissa.
O que a minha sobrinha de 13 anos fez foi “significar” de diversas
maneiras o gato. Esse é um exercício que você pode praticar inúmeras vezes e
de diversas maneiras. Pense que deseja comunicar seu afeto para alguém, sem
o recurso das palavras. Como você faria?
21
FINALIZANDO
Nesta abordagem, você conheceu o contexto a partir do qual a Semiótica
de Peirce ganha relevância. Entendeu que o estudioso propositadamente
desenvolveu um sistema triádico no qual nenhuma parte subsiste sem a outra.
Aprendeu também que objeto, em Semiótica, não quer dizer, necessariamente,
um artefato concreto. Na maioria das vezes, para nós, designers, o objeto são
abstrações, como sentimentos e desejos de um possível cliente. Finalmente,
procurei fazê-lo compreender a sua atividade como uma espécie de ponte, por
meio da qual o interpretante pode acessar seu objeto. Mais adiante,
apresentaremos maneiras pelas quais essas pontes são construídas.
22
REFERÊNCIAS
KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valerio Rodhen e António
Marques. 3. ed. Rio de Janeiro: Forence Universitária, 2012.
NASCIMENTO, S. F. O criador de roupas enquanto artista. Modapalavra,
Florianópolis, v. 7, n. 13, jan./jun. 2014. Disponível em:
<https://revistas.udesc.br/index.php/modapalavra/article/view/5127/3314>.
Acesso em: 25 mar. 2024.
NASCIMENTO, S. F. El discurso de la arquitectura en a separation, de Asghar
Farhadi. Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista, São Paulo,
2017. Disponível em: <http://www.semeiosis.com.br/?p=2461>. Acesso em: 25
mar. 2024.
NIETZSCHE, F. A visão dionisíaca do mundo. Tradução de Marcos SP
Fernandes e Maria Cristina dos Santos de Souza. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
SANTAELLA, L. O que é Semiótica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
(Coleção Primeiros Passos).
SANTAELLA, L. Estética e semiótica. Curitiba: Intersaberes.
SEMIÓTICA APLICADA AO
DESIGN
AULA 4
Prof.ª Suzie Ferreira do Nascimento
2
CONVERSA INICIAL
Em conteúdos anteriores, argumentei em favor da importância do estudo
da significação para a nossa atividade como designers. Espero tê-lo convencido
de que os estudos de Peirce, embora complexos, disponibilizam para nós um
ferramental de grande valia.
Anteriormente, você aprendeu um sistema triádico para estudo dos
signos. Sugeri que pensasse nos seus produtos como um dos vértices, mais
precisamente como a ligação, ou ponte, que permite ao interpretante acessar
seu objeto, ou seja, suas emoções, sentimentos e desejos mais profundos.
Agora, quero mostrar, com mais detalhes, como você pode transformar seus
produtos em pontes. Preparado?
CONTEXTUALIZANDO
Assimilar o princípio da significação, certamente, fará de você um
profissional diferenciado. A falta desse conhecimento torna os produtos óbvios e
entediantes, ou confusos. Além disso, produções pobres em significação ficam
muito mais caras. Saber substituir significa saber o que colocar no lugar de uma
casa, de um ônibus, de um animal sem ter que trazê-los concretamente para a
atividade. Pense na quantidade de palavras, ações e tempo que um cineasta
gastaria se não soubesse trabalhar o significado da água.
É verdade que apenas uma pequena parcela dos designers atua no
cinema e, por isso, é preciso redobrar a atenção. Você e eu temos um laboratório
de experiências ao alcance dos dedos. Afinal, estamos imersos em um mundo
de imagens, gestos, construções, mobiliários, roupas, carros e assim
infinitamente, e podemos estudá-los, basta ter o olhar atento. Quero desafiá-lo a
investigar o que cada uma dessas coisas, ou signos, está substituindo. O que é,
afinal, seu objeto.
Esse olhar atento, que disseca as coisas que existem, irá ajudá-lo a obter
um consistente repertório de significações que você poderá utilizar na sua
profissão. Nesta etapa, pretendo mostrar uma maneira de identificar que tipo de
relações existem entre os signos e os objetos [sentimentos, desejos, sensações]
que os trouxeram à existência.
3
TEMA 1 – A IMPORTÂNCIA DOS SENTIDOS
Indagar sobre as relações que existem entre signo e objeto é uma prática
ancorada nas reflexões de Peirce sobre Lógica. Em conteúdos anteriores, já
comentei que essa aproximação só é possível graças à recepção que
pesquisadoras como Santaella e Niemeyer fizeram desse estudioso, cujo
interesse de pesquisa era amplo e não propriamente dirigido ao Design. Isso
quer dizer que não seria possível, no contexto desta disciplina, apresentar a você
a profundidade das reflexões de Peirce. O que se faz, no geral, é pinçar alguns
dos seus conceitos e aplicá-los, e esse tem sido também o meu critério.
Tenha em mente que o conteúdo desta etapa só fará sentido se você
aprendeu bem o que é signo, interpretante e objeto. Se ainda está confuso
quanto ao que é objeto, volte para a etapa anterior e insista nos exemplos dados.
Recorde também que os produtos e serviços que você desenvolve [(os signos)]
são necessários para que outras pessoas percebam a si mesmas por meio deles,
tendo, com isso, sua realidade aumentada. As pessoas se estendem pelo seu
produto ou serviço porque, de algum modo, eles estão significando um desejo,
uma emoção, um sentimento [(o objeto)].
Figura 1 – Diagrama representando o signo como ponte
Crédito: inimalGraphic/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/DGuzhanin
4
Tendo compreendido isso, sugiro uma analogia. Provavelmente você já
teve que formatar seu computador. No linguajar popular, a palavra formatar é
signo de apagar todas as informações contidas na memória. Na maioria dos
casos, é signo de desespero, não é mesmo? A tarefa que se sucede ao formatar
é reintroduzir dados e informações, já que os anteriores foram perdidos.
Agora imagine que isso pudesse acontecer com você. Que fosse possível,
por alguma razão, apagar todas as informações que você armazenou noseu
consciente e inconsciente ao longo dos anos. Como seriam reintroduzidas essas
informações? Isso teria que ocorrer por meio dos sentidos, que são nossos
órgãos captadores de informações. Seria preciso tocar, cheirar, ouvir, degustar
e ver. Os sentidos enviariam informações ao seu cérebro e, voilà [(eis aí)], o já
conhecido jogo entre imaginação e entendimento enunciado por Kant.
A importância do envolvimento dos sentidos nas experiências com
produtos tem sido cada vez mais valorizada. Para tirar proveito deste conteúdo,
você precisa fazer um esforço para sempre voltar a esse princípio: os sentidos é
que captam todas as informações.
Experiência valiosa
Os estudiosos do Marketing sensorial estão sempre tentando quantificar
a influência dos sentidos nas decisões de compra. A maioria adota como critério
a supremacia da visão, seguida de audição e olfato, deixando para um terceiro
momento o paladar e o tato. Conforme esse critério, os sentidos menos
responsivos seriam aqueles que exigem o contato físico entre o cliente e o
artefato ou substância. Se o tema é do seu interesse, sugiro a leitura Brand
sense: segredos sensoriais por trás das coisas que compramos, de Martin
Lindstrom, da Editora Bookman.
Questionar se o que os sentidos captam pode ser considerado verdade,
é trabalho da Filosofia. Platão, por exemplo, desconfiava dos sentidos e dizia
que a verdade sobre as coisas estava na ideia. Você deve ter estudado, em
algum momento, a alegoria da caverna de Platão. Na alegoria, os homens na
caverna eram enganados pela visão, lembra? Particularmente, sou da opinião
de que, nesses assuntos, Nietzsche nos serve mais.
Certa vez, ele escreveu que essa desconfiança com os sentidos era uma
injustiça, porque os sentidos não mentem. Afinal, as sombras na parede da
caverna eram verdadeiras, logo, a visão não mentiu. Para Nietzsche, o que
5
ocorre é que o cérebro, com todas as conexões que é capaz de fazer, nos faz
desconfiar dos sentidos, que são os mais espetaculares instrumentos de
observação jamais inventados (Nietzsche,2000, pp. 26-27).
No seu trabalho como inventor de signos, isso precisa ser considerado.
Você e eu somos herdeiros de séculos de valorização da razão e desconfiança
com os sentidos. Além disso, somos reféns de uma época na qual os sentidos
são pouco explorados, porque as informações são predominantemente visuais,
excessivamente apelativas e rápidas. Com isso, nossos demais sentidos, que
são delicados e precisam de tempo para serem refinados, ficam em segundo
plano.
Então, vamos aprender com Nietzsche a respeitar os sentidos dos nossos
clientes. Parta do princípio de que os sentidos não mentem naquilo que
informam. Se entre a informação racionalmente elaborada que você dá e a
sensação dos sentidos do cliente houver divergência, fique certo de que ele
optará pelas informações que recebe dos sentidos. Com isso, o cliente
[(interpretante)], que é quem legitima o seu artefato como signo, irá associá-lo a
um objeto [(sentimento)] bem pouco interessante, que é a falsidade.
Evidentemente, os recursos tecnológicos de hoje permitem substituir
materiais caros por outros mais populares. É possível encontrar bons
acabamentos de superfície que parecem mármore, ouro e bronze, mas não são.
Os olhos do cliente, provavelmente, serão ludibriados com a ajuda do cérebro,
que irá comparar com outros materiais conhecidos e não encontrará diferenças.
Mas, ao final, se o tato não confirmar a textura e a temperatura, todo o esforço
de convencimento irá por água abaixo.
Redirecionar a informação de um sentido para outro requer inteligência.
No caso do revestimento que imita mármore, a imitação deve ser tão boa a ponto
de a visão convencer o tato. Sobre isso, certa vez resolvi investigar como
Shainberg, no filme A pele, teria feito referência ao paladar a ao olfato. Encontrei
dois artifícios bem interessantes: em uma cena, ele troca o paladar pela
aproximação da câmera à boca dos personagens, reforçando a informação para
a visão, associado à captação clara do som que a boca faz ao mastigar; em
outra, ele troca o olfato pela respiração, pois Lionel quando vivo havia expirado
seu ar em uma boia que Diane, depois de sua morte, inspirou. Nos dois casos,
a informação chegou ao espectador pela visão e pela audição, mas o paladar e
o olfato foram acionados.
6
Talvez você já tenha tido oportunidade de observar a força com que os
sentidos atuam na sua memória. Comigo sempre acontece. Posso não lembrar
de um endereço, mas me lembro bem dos lugares em que passei muito frio, ou
muito calor. Posso não me lembrar de uma receita, mas não esqueço das
comidas que me fizeram mal. Cheiros ruins, uma vez conhecidos, serão sempre
identificados. É praticamente impossível esquecer certas informações que
recebemos dos sentidos.
Disso decorre que a ambição de quem presta serviço ou vende alguma
coisa é, ou deveria ser, ter algum controle sobre a informação dada aos sentidos
dos clientes. Isso porque eles serão mais persuasivos do que qualquer
argumento racional técnico, ético ou pragmático.
Foi explicado nesta parte sobre sentidos porque o tema é fundamental
para o que vem a seguir. Nas próximas páginas, será apresentado a você uma
nova ferramenta, também tríplice, para melhorar o potencial simbólico dos seus
produtos e serviços. Na verdade, três categorias de relações que ajudarão a
organizar o seu projeto. Mas fique atento: no limite, tudo é signo [(substitui o
objeto para alguém)]. Um cheiro, um som, um toque estarão substituindo outras
coisas e isso fará deles, em certa medida, signos.
Será explicado por meio dessas categorias como cada um dos sentidos
se relaciona com o signo que você inventará. Lembre-se que o objetivo aqui é
entender de que maneira o seu signo poderá servir de ponte entre o cliente
[(interpretante)] e o seu desejo [(objeto)].
Figura 2 – Diagrama alusivo à Bonequinha de Luxo, com indicação das relações
Crédito: Svetography/Shutterstock; chuhastock/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/svetography
https://www.shutterstock.com/g/chuhastock
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No diagrama da Figura 2, as relações têm a função de ajudar a encontrar
características do signo [(o artefato que você criou)] que o interpretante [(cliente
ou usuário)] associará ao seu objeto [(desejo)]. A duração é substituída pelo
círculo, o valor pela pedra, a exclusividade pela forma do solitário, e assim por
diante. As categorias ícone, índice e símbolo (Santaella, 2019, p. 226-227)
apenas ajudam a perceber essa relação com mais clareza.
Saiba mais
Leia o que Santaella escreve sobre relações icônicas, indiciais e
simbólicas nas páginas 226 e 227 de: SANTAELLA, Lucia. Estética e semiótica,
da Intersaberes, disponível na Biblioteca virtual Pearson.
Lendo qualquer texto de Santaella sobre o tema, você concluirá que a
ciência da Semiótica é muito ampla e que Peirce ambicionava uma lógica que
servisse para tudo e não somente para artefatos e produtos, que são os objetivos
desta etapa. Portanto, é com grande liberdade que nós, designers, retiramos de
Peirce alguns conceitos que nos ajudam a compreender a significação das
nossas produções. Feita essa ressalva importante, considere o exemplo
apresentado na tabela da Figura 3.
Figura 3 – Tabela simplificada para relações sígneas
RELAÇÕES SÍGNEAS SIMPLIFICADAS
Reconhecimento por
semelhança
Ícone
Reconhecimento pela
sugestão de algo que
não está no signo
Índice
Reconhecimento por
adequação à
convenção
Símbolo
Crédito: kartika01/Shutterstock; Omeris/Shutterstock; graphixmania/Shutterstock.
Como você pode concluir, todas as imagens na tabela são signos de
alguma coisa relativa ao animal leão. No primeiro quadro, aparece uma
https://www.shutterstock.com/pt/g/kartika01
https://www.shutterstock.com/g/graphixmania
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representação esquemáticada cabeça de um leão. O processo pelo qual você
reconhece isso é chamado de relação icônica, porque depende de você já ter
visto algo assim antes. No segundo quadro, você vê uma pegada. Claro, de
alguma maneira, você reconhece por já ter visto, mas você não deve permitir
que isso gere confusão.
É preciso identificar o que é mais importante na mensagem e, nesse caso,
é o indício do animal, porque ele deixou ali uma pegada. Finalmente, no terceiro
quadro, você vê a letra que identifica o signo Leão, no Zodíaco. Das três
representações, essa é a que mais depende da convenção para ser
compreendida. Nos temas seguintes, será descrito mais detalhadamente sobre
cada uma dessas possíveis maneiras de compreensão do signo.
TEMA 2 – RELAÇÕES ICÔNICAS
Tal qual foi feito em conteúdos anteriores, nos ateremos apenas ao
conceito fundamental. Considere que relações icônicas são aquelas que
permitem o reconhecimento do signo por semelhança ou analogia.
Para a aplicabilidade mais direta, esse conceito é suficiente. Aqui você
deverá se concentrar em todas as informações que o seu produto terá e que
serão reconhecidas por semelhança ou analogia. Neste caso, você está
trabalhando com a memória do interpretante, porque ele precisa reconhecer a
semelhança ou seu caráter análogo.
No exemplo da mochila amarela e do ônibus, ele só interpreta o signo
porque consegue, por meio da mochila, acessar o ônibus em sua memória, ou
seja, reconhece porque já viu algo semelhante ou análogo.
Figura 4 – Diagrama relações icônicas
Crédito: maximmmmum/Shutterstock; Prostock-studio/Shutterstock.
9
A rigor, um ícone só poderia ser identificado pelo olho porque a palavra
ícone, na sua raiz grega, tem a ver com imagem. É a característica de
semelhança ou analogia que nos dá essa liberdade de falar em um tipo de ícone
que afeta os demais sentidos, então:
Figura 5 – Os sentidos e as relações icônicas
Crédito: Fauzi Muda/Shutterstock.
Claro que nosso mecanismo de percepção é complexo e, quando alguém
rememora uma lembrança afetiva a respeito de um ônibus por um estímulo
visual, nisso estão incluídos os cheiros, os risos das crianças, o sabor do lanche
e assim por diante. Mas isso seria o mesmo que tentar argumentar que se sente
o sabor de bolo quando se olha para um anel de noivado: funciona, mas
complica. Para fins de aprendizado, é preciso ser mais objetivo. Então vamos
começar assumindo que os sentidos só podem capturar informações pelos
canais que lhes são próprios.
Concentre-se no olfato. O nariz recebe informações de cheiro e cabe ao
cérebro compará-las com outras informações. Muitas empresas já capitalizam
com essa relação icônica olfativa colocando fragrâncias em suas lojas e
produtos. O potencial cliente passa, sente o cheiro e completa a relação,
associando aquela marca, ou produto, a algum evento da infância ou a alguma
pessoa querida. Para a minha geração, por exemplo, não há nada mais eficaz
para lembrar cinema, do que o cheiro da pipoca com manteiga. Não é necessário
ver o pipoqueiro, basta a informação olfativa. Perceba que o que manda mesmo,
nessa significação, é a relação afetiva com o evento. O cheiro da pipoca é
apenas o estímulo aos sentidos.
https://www.shutterstock.com/g/mohd+fauzi+bin+muda
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Figura 6 – Foto ilustrativa de pipoca de cinema
Crédito: LoopAll/Shutterstock.
Mas os sentidos são particularmente atuantes naquilo que não agrada, ou
nos ameaça. Soube de uma cidade na qual havia uma única empresa de ônibus
que levava todos os jovens menos abonados à praia. Essa empresa utilizava
uma fragrância típica no interior dos ônibus. Como resultado, toda uma geração
associou aquele cheiro à falta de recursos.
Lembro de ter entrado em uma loja de calçados e sentir um cheiro forte
de borracha que me lembrou sapatos de qualidade questionável. Dei meia-volta
e saí. Se você prestar bem atenção, verá que as suas memórias olfativas mais
fortes estão relacionadas a segurança, fortes afetos, sobrevivência, e assim por
diante, sendo os cheiros agradáveis, ou não.
Voltemos agora ao sabor de bolo que vem do anel de noivado. Talvez o
confuso, para você, seja o fato de que a nossa percepção não isola os sentidos.
Informações recebidas pelo olfato podem provocar reações imagéticas, assim
como informações recebidas pelo olho podem, sim, provocar memórias olfativas.
Experiência valiosa
No romance O perfume, a história de um assassino, de Patrick Süskind,
o personagem principal não tem cheiro e, por causa disso, é ignorado por todos.
Conta a história de que ele se tornou alquimista e aprendeu a fazer perfumes.
De tanto praticar, encontrou a fórmula exata para ter cheiro de gente. Me recordo
que os ingredientes não eram nada elogiáveis, mas funcionou. Com isso, quando
ele queria ser “visto” pelas pessoas, passava o perfume. Quando queria passar
despercebido, não passava.
https://www.shutterstock.com/g/LoopAll
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Li o romance O perfume, a história de um assassino há anos, muito antes
de ter qualquer interesse por Semiótica, mas me lembro que fiquei surpresa ao
pensar que alguém poderia ficar invisível pelo fato de não ter cheiro. A fantasia
criada no livro ensina que a imagem, sem a memória de um cheiro, perde força.
No sentido contrário, uma imagem pode adquirir cheiro se for
suficientemente forte em apelo, de maneira a conseguir fazer com que o olho do
observador desperte, na memória, aquela lembrança olfativa. Quem quer que
tenha alguma vez sentido o cheiro de uma mexerica, também conhecida como
mimosa ou bergamota, ao ver a imagem a seguir, terá uma reação olfativa. Da
mesma maneira que conseguimos sentir o cheiro da pipoca, se a imagem for
suficientemente boa.
Figura 7 – Relação icônica olfativa
Crédito: DimaBerlin/Shutterstock.
Não é necessário se alongar neste tema porque o que vale para um
sentido, vale para os demais. Temos memórias de cheiros, gostos, sons, toque
e visuais. Nosso cérebro localiza essas memórias quando quer qualificar uma
nova experiência. Com isso, aciona sensações de prazer, dor, saudade, alegria,
tristeza, relacionadas àquelas memórias, e é aí que está o objeto. É nisso que
você tem que prestar atenção.
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Observe o ambiente da Figura 8. Suponha que aqueles pufes coloridos
foram feitos manualmente pela avó, ou seja, semelhantes aos pufes feitos pela
avó. Se isso for verdade, quem projetou o ambiente explorou as relações
icônicas, porque a presença do pufe provocará certos sentimentos no cliente por
meio do reconhecimento da semelhança. Esse reconhecimento será
predominantemente visual, mas se o pufe não corresponder em termos táteis ou
olfativos, os demais sentidos irão alertar a visão de que aquela é uma memória
falsa, enfraquecendo o caráter icônico da relação.
Figura 8 – Ambiente moderno, com sofá cinza e almofadas coloridas
Crédito: Ground Picture/Shutterstock.
A produção da imagem da Figura 9, por exemplo, tem parte da sua força
respaldada por ligações icônicas. Quem produziu a foto espera que o espectador
reconheça o chapéu como sendo masculino e de época, os detalhes metálicos
como sendo próprios de máquina, o espartilho como sendo um artefato
preferencialmente feminino, e assim por diante. Sem essas relações icônicas, o
espectador não sente o impacto das oposições que dão graça à modelo.
https://www.shutterstock.com/g/Ground+Picture
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Figura 9 – Modelo em produção teatral
Crédito: Kiselev Andrey Valerevich/Shutterstock.
Então, tenha em mente que cada vez que o seu produto provocar
memórias, seja por vias olfativas, de tato, paladar, audição, ou visuais, será
imediatamente associado com alguma sensação. A isso chamamos relações
icônicas, categoria que agrupa aquelas relações que se apoiam no
reconhecimento da semelhança, ou seja, com participação criativa da memória.
Como profissionaldo Design, você precisa aprender a capitalizar essas
associações que os sentidos do seu cliente fazem. Os conteúdos anteriores
permitem que você conclua que esse tipo de relação é bastante dependente dos
repertórios.
TEMA 3 – RELAÇÕES INDICIAIS
Esta nova categoria de relações agrupa aquelas cujo fundamento está na
alusão a alguma coisa que acontece fora do signo.
Se liga
Relações indiciais são qualidades do signo (seu artefato) que se
relacionam com o objeto (desejos, sentimentos etc. do cliente) por meio da
alusão a alguma coisa que ocorre fora do seu artefato.
https://www.shutterstock.com/g/prometeus
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Dos três conceitos fundamentais, este, a meu ver, é o menos claro. Em
contrapartida, você verá que os exemplos são bastante simples. Também neste
caso vale o seguinte diagrama:
Figura 10 – Diagrama relações indiciais e os sentidos
Crédito: Fauzi Muda/Shutterstock.
Para a aplicação que nos interessa, pense em índice como um indício, um
vestígio deixado por alguma coisa ou ação. Os exemplos mais clássicos são as
pegadas, a fumaça e a sombra. Você não terá dificuldades em entender que a
pegada é o vestígio de um animal e a fumaça é um vestígio de fogo, tanto quanto
a sombra é vestígio de alguma coisa concreta.
A maioria das relações indiciais em produto são levadas a termo pelo tato.
Uma pessoa de olhos vendados, se tiver o tato treinado para isso, poderá
identificar e qualificar os vestígios deixados pelas ferramentas. Quando vestimos
uma roupa, nossa pele nos informa sobre as costureiras ou maquinário que
estiveram ali. Voltando ao exemplo dos interiores e dos revestimentos modernos,
uma parte importante das relações indiciais fica comprometida, justamente
porque nos laminados desaparecem certos indícios que dão garantia aos
materiais mais raros.
Se você observar bem, esses vestígios são, geralmente, sinais deixados
por uma ação. Compare comigo as Figuras 11 e 12. O pincel da Figura 11,
principalmente tendo ao seu fundo a cadeira de barbeiro, é um signo, pois está
no lugar da barbearia. Agora, a Figura 12 indica que ocorreu, ou ocorrerá, uma
ação. Quem vê a foto, não vê a ação, mas seus indícios.
https://www.shutterstock.com/g/mohd+fauzi+bin+muda
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Figura 11 – Pincel de barba como signo
Crédito: Parilov/Shutterstock.
Figura 12 – Indícios do ato de barbear
Crédito: AlexBuess/Shutterstock.
Comparando as Figuras 13 e 14, você chegará à conclusão semelhante.
Ambas são representações gráficas. No entanto, na Figura 13 predomina o
https://www.shutterstock.com/g/Parilov
https://www.shutterstock.com/g/AlexBuess
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caráter sígneo, porque o primeiro pensamento que nos ocorre é que aquela
imagem está no lugar de outra coisa, é uma ilustração significando uma boca.
Já na 14, o que predomina é a relação indicial, porque a primeira coisa que
pensamos é na ação de uma pessoa como antecedente: alguém beijou aquela
folha de papel.
Figura 13 – Representação gráfica de uma boca
Crédito: Logvin art/Shutterstock.
Figura 14 – Representação de carimbos de batom em uma folha
Crédito: Redcollegiya/Shutterstock.
Observe agora com atenção a Figura 15. Evidentemente, não estaria
errado dizer que a foto do prato é o signo do prato, ou que a foto toda significa
uma refeição. Mas o importante é saber por que você chegou a essa conclusão,
e para isso precisa identificar as relações indiciais.
https://www.shutterstock.com/g/Marina+Logvin
https://www.shutterstock.com/g/redcollegiya
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Figura 15 – Fotografia de prato com talheres
Crédito: Addictive Stock Creatives/Alamy /Fotoarena.
O mais evidente são as sombras que a visão captura. Elas são indícios
da luz e poderiam ser do prato todo, afinal, poderiam muito bem substituí-lo, mas
há vários outros indícios de ações. A flor é indício de que alguém a arrancou do
solo, os talheres são indícios de refeição. Quem conhece os métodos de
produção, poderá ver na forma e no material dos talheres e do prato indícios de
certas ferramentas.
Os indícios permitem saber que a refeição acontece no campo, que será
servida à moda ocidental (com garfo e faca), que não será sopa e, em alguma
medida, qual o traje adequado para a ocasião. Todos esses indícios apontam
para ações que acontecem fora da imagem.
Em termos sígneos, as relações indiciais são muito ricas, porque são elas
que comunicam, ao cliente, como foram produzidos certos produtos. A
tecnologia e a mão de obra artesanal deixam vestígios que agregam valor. O
cliente não precisa tocar um tecido cortado a laser para saber o que aquilo
significa em termos de tecnologia. De maneira similar, parte do valor de um anel
de brilhantes está nos vestígios deixados pelo ourives. O mesmo vale para
sapatos e bolsas de couro: quanto mais marcas de trabalho, mais valiosos.
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Figura 16 – Ourives trabalhando em anel
Crédito: Kitreel/Shutterstock.
Figura 17 – Artesão dando acabamento em sapato
Crédito: Robert Przybysz/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/Futurframes
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Você pode assumir que a relação indicial agrega valor ao seu produto, em
boa medida, pela importância que a ação que ele sugere tem. Você pode
explorar esse tipo de relação e, com isso, aumentar o valor do seu produto.
Observe a foto da Figura 18. Na sua totalidade, o que ela pretende é dar
indícios da energia humana consumida em um show. Mas isso é transmitido por
uma série de pequenos índices. Há indício de alguém ou alguma coisa rasgando
a camiseta, há indícios de alguém ter jogado água, para simular suor, além dos
vários indícios de trabalhos na jaqueta. Os indícios, ainda que fabricados,
aludem ao esforço gasto pelo modelo, em alguma ação, e esse esforço é o que
mais próximo está do objeto daquele signo. O que de fato importa é que o
observador acesse o “objeto” que é a doação do músico à sua Arte.
Figura 18 – Modelo em jaqueta de couro e camiseta
Crédito: vdovin_vn/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/vdovin_vn
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O jeans rasgado, por exemplo, surgiu primeiramente ancorado pelo valor
da ação da qual decorria aquele dano no tecido. Era preciso mostrar que o jeans
carregava uma história. Com os avanços tecnológicos, isso se perdeu. Hoje os
desgastes no tecido são feitos por máquinas, cujo valor o usuário geralmente
desconhece.
Os exemplos que dei até aqui enfatizam o tato, mas existem relações
indiciais importantes que acontecem através de outros sentidos. O cheiro, se
desacompanhado da coisa que o originou, é um índice. Você pode entrar em um
elevador vazio e sentir o perfume de alguém que esteve ali antes. Toda a comida
preparada com personalidade terá indícios de quem a preparou, sem que essa
pessoa apareça. Sons podem ser indícios, desde que desacompanhados da
origem. O chiado de uma chaleira é indício de água fervendo, o som da sirene é
indício de ambulância.
Alguma confusão sempre acontece pelo fato de indícios serem parte
integrante do signo. Afinal, é disso que se trata, não? De encontrar maneiras de
criar um signo, sendo uma delas através de indícios. O som da sirene e o chiar
da chaleira são indícios que fazem com que, na nossa mente, se forme a imagem
de uma chaleira e de uma ambulância, ou seja, signos da chaleira e da
ambulância. Junto com essa imagem virão o sentimento de saudade da ocasião
em que se ouviu o chiado da chaleira, ou o de desespero, quando se ouviu a
sirene da ambulância vindo socorrer um ente querido. Desta forma, as relações
indiciais fazem a conexão entre um signo e seu objeto, muitas vezes, passando
pelo acesso à memória [(ícone)], e é isso que você precisa aprender a explorar.
Mas há muitas situações dúbias. Suponha que você tenha sido contratado
para produzir uma sacola de praia e tenha utilizado para a alça um pedaço de
corda, tipicamente utilizada em barcos. Em tese, a corda é uma parte do barcoque não pode estar na sacola.
Essa corda seria signo do barco ou seu indício? De fato, o conceito
fundamental estabelece que indício é algo, no signo, que aponta para algo fora
dele, mas no caso da sacola, o mais correto é dizer que você intencionou criar
um signo para praia ou férias, ou seja, colocar a sacola no lugar de praia ou
férias e, para isso, utilizou uma relação que se sustenta muito mais por relação
icônica (o cliente reconhece por semelhança ou analogia) do que por indício.
Mas e a foto do meu pai, já falecido, que tenho na parede, é um signo
(está no lugar de um sentimento-objeto) ou é índice do meu pai que já não vive?
21
Geralmente, fotos são signos para determinados afetos, como saudade,
respeito, segurança etc., e se sustentam principalmente por relações icônicas.
Quem vê, reconhece o retratado por semelhança ou analogia. Por outro lado, a
foto de um falecido é como seu cheiro, indicia uma vida que esteve ali, mas não
está mais. Isso quer dizer que uma forte característica do índice é a ausência e
o valor afetivo daquela ausência.
Dica
Logo no início do filme A pele, de Shainberg, a personagem principal beija
um camafeu. A ação do beijo significa, para o espectador, que o artefato significa
para a personagem alguém muito querido. O espectador, que em tese já sabe
que o filme é sobre uma fotógrafa, reconhece a função do camafeu por uma
relação icônica, e espera ver ali uma foto, mas o diretor a substituiu por uma
mecha de cabelo. A mecha funciona como índice porque, reforçada pela
ausência da foto, indica que pertenceu a alguém que já não existe.
Tatuagens são outro exemplo indicial interessante. A figura tatuada é
signo daquilo que representa: o desenho de um elefante significa o animal
elefante. Neste caso, um signo sustentado basicamente por relações icônicas.
O rosto de um filho, ou da mãe, significam o afeto que se tem por eles, esse afeto
é o seu objeto. Agora, se aquela mãe ou filho já faleceu, a relação entre o signo
e seu objeto se vê potencializada pela ausência, pelo fato de que o que estava
vivo não está mais, assumindo características indiciais.
TEMA 4 – RELAÇÕES SIMBÓLICAS
A terceira e última categoria de relações agrupa aquelas que ocorrem por
meio de convenções. A experiência tem mostrado que estas são as relações
que o aluno identifica mais facilmente. Conforme você estudou no início da
disciplina, convenções são acordos. Alguns desses acordos se baseiam em
atributos, outros são completamente arbitrários. Novamente, as relações
simbólicas dificilmente são puras.
Na maioria das vezes, elas têm alguma coisa de icônica, pois as
convenções dependem de um reconhecimento de semelhanças. A depender da
sua atividade, você mesmo pode estabelecer a convenção. Citarei dois bons
exemplos. O primeiro vindo da moda, o segundo, do cinema.
22
Para o primeiro exemplo, me baseio no texto “Tempo do luxo, tempo das
marcas”, de Elyette Roux, em uma parceria que fez com Gilles Lipovetsky em O
luxo eterno, publicado em 2003. Seu argumento é o de que parte do sucesso
das marcas mais longevas está ancorado no respeito aos próprios princípios, ou
seja, aquelas leis ou convenções acordadas desde o seu lançamento. Roux tem
em vista um problema comum para as marcas que duram mais que seus
criadores, qual seja, ter de escolher entre ficar velha e morrer, ou perder a
identidade se adaptando aos novos tempos.
Um dos casos mais bem-sucedidos de renovação sem perda de
identidade foi levado a termo pelo estilista Karl Lagerfeld [(1933-2019)]. Quando
Lagerfeld foi contratado para ser diretor da casa Chanel, a marca já estava em
processo de estagnação, uma senhora prestes a ser colocada de lado no mundo
da moda.
O que o designer fez para se assegurar que a identidade de Chanel seria
mantida no processo de atualização foi dar um mergulho na ética da sua
fundadora, em busca dos seus “sins” e “nãos”. Lagerfeld entendeu que o que
permitiu que Chanel fosse tão consistente em suas criações foi justamente a sua
visão de mundo: o modo particular como ela se relacionava com o universo
masculino e com os homens.
O estilista soube encontrar os signos desses valores e percebeu que eles
não variavam. A camélia, os acessórios, alguns tecidos em particular estavam
sempre lá. Ele entendeu que havia um argumento moral no modo como a estilista
utilizava tecidos e modelagens masculinas, bijuterias junto a joias, tecidos
populares junto a tecidos luxuosos.
Lagerfeld fez um trabalho precioso de semiótica ao cruzar os atributos
desses itens com os valores defendidos pela estilista, encontrando, desta forma,
a relação correta entre ética e estética (Lipovetsky; Roux, 2003, p. 142-144).
Portanto, o que Lagerfeld fez foi, basicamente, encontrar as convenções [(leis)]
que a estilista havia adotado, talvez até de modo inconsciente, tratando de
mantê-las.
Para o segundo exemplo, vindo do cinema, mais uma vez recorrerei ao
trabalho de Shainberg, em A pele. Obviamente ele não inaugurou esse recurso,
mas é o que eu melhor conheço. Trata-se de, nos primeiros minutos do filme,
apresentar ao espectador a convenção adotada. Quase como se o diretor
23
estivesse consciente de que é preciso explicar ao leitor, antecipadamente, seu
sistema de signos: o quê, afinal, está no lugar de quê.
Em A pele, as primeiras cenas deixam claro que o azul é a cor de Lionel,
que o amarelo significa perigo, que os objetos (chave e roupas) serão utilizados
pelo seu valor sígneo, que os sons serão explorados como indícios de ações, e
assim por diante. Isso é comunicado em uma cena na qual Diane chega, de
ônibus, em um campo de nudismo.
Shainberg reserva outra cena quase que exclusivamente para mostrar ao
espectador o que ele quer dizer com água, com roupas abertas ou fechadas, e
pelos. A cena ocorre dentro do banheiro, quanto Diane seca os cabelos, depila
as pernas, fecha o vestido e, em um último momento, retira um pelo da
sobrancelha, que cai sobre uma torneira fechada.
Vem à memória dois outros filmes que impressionam pelo rigor do código,
ou convenção, adotado para as cores. Wes Andersen, em Moonrise Kingdom,
utiliza cores dos milharais em todas as cenas. Woody Allen, em Wonder Wheel,
controla a luz das cenas pela intensidade da emoção e pela entrada e saída dos
personagens.
Saiba mais
Para informar-se sobre as convenções das cores, leia os capítulos
“Significado cultural e simbólico das cores” e “Aspectos conceituais e simbólicos
da cor nas artes” no livro Teoria e prática da cor, de KRAEMER, Derli;
MARQUES, Carolina C. R. Disponível na biblioteca virtual minhabiblioteca.
Com tais exemplos, pretende-se alertá-lo para o fato de que convenções,
em semiótica, são mais do que números e letras em uma placa, embora isso
seja, de fato, convenção.
Como não poderia deixar de ser, nossos sentidos participam do
reconhecimento das convenções. Convencionar que o amarelo é perigo só
funciona para quem pode utilizar a visão. O Braile é um sistema de convenções
específico para o tato. A sirene de uma ambulância só pode gerar uma relação
indicial porque, em algum momento, convencionou-se que aquele som seria
utilizado em ambulâncias. Então, para relações simbólicas, também vale o
diagrama da Figura 19.
24
Figura 19 – Diagrama relações simbólicas e sentidos
Crédito: Fauzi Muda/Shutterstock.
Crédito: Fauzi Muda/shutterstock.
Existem convenções que são estudadas detalhadamente na Estética. É
nessa disciplina que se aprende as diferenças simbólicas entre uma linha vertical
e uma horizontal, entre uma curva suave e um vértice pontiagudo, entre o que
está na frente, e o que está atrás. Essas convenções não são arbitrárias, porque,
por alguma razão, nossos sentidos reconhecem essa dinâmica sem necessidade
de fazermos acordos formais sobre elas.
https://www.shutterstock.com/g/mohd+fauzi+bin+mudahttps://www.shutterstock.com/g/mohd+fauzi+bin+muda
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Figura 20 – Modelos com cabelo estilo Punk
Crédito: Thai Soriano/Shutterstock; Peter Kim/Shutterstock.
Observe as modelos da Figura 20. Qual dos dois cabelos seria mais
agradável ao toque? Nos dois casos, o objeto da proposta do penteado é uma
certa rebeldia, um desejo de afastamento, talvez, mas o cabelo da direita se vê
suavizado pela curva e também pela passagem gradual da cor, dois efeitos
estéticos que atraem para o toque.
Com isso, é possível dizer que as convenções estéticas (formas e cores
dos penteados) são uma informação visual que aciona o sentido do tato e, com
isso, reforça, ou enfraquece, a relação entre o signo (penteado) e seu objeto
(rebeldia).
Figura 21 – Pessoas em posição recostada e em pé
Crédito: Conrado/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/thai
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https://www.shutterstock.com/g/cartonking
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Analise comigo agora a Figura 21. Quem produziu a foto eliminou as
convenções mais corriqueiras de indumentária feminina e masculina. O principal,
porém, é comunicado aos nossos sentidos pela pose das figuras e dos pés. O
olho humano não precisa mais do que uma linha predominantemente vertical e
outra predominantemente horizontal para identificar uma hierarquia. A figura que
manda é a que está em pé, na vertical. Quem produziu a foto propositalmente
manteve a cor rosa na pessoa vertical, e a azul nos tênis da pessoa que está
recostada, reintroduzindo uma clássica convenção de cores para os gêneros.
Figura 22 – Três pessoas sentadas
Crédito: fizkes/Shutterstock.
Figura 23 – Homens de gravata em diferentes poses
Crédito: Apollofoto/Shutterstock; Viorel Sima/Shutterstock.
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https://www.shutterstock.com/g/feedough
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O modo como os sentidos reconhecem a convenção da hierarquia das
posições fica ainda mais evidente na Figura 22. A pessoa da esquerda veste
meias vermelhas, e a da direita, meias azuis. Pela convenção de cores, o azul
seria dominante em força.
No entanto, as mãos das pessoas invertem a hierarquia, porque a pessoa
da esquerda tem na mão uma folha de papel enrolada na posição vertical,
enquanto que a pessoa da esquerda tem as mãos vazias e abaixadas. A pessoa
do meio seria uma situação hierarquicamente intermediária, não fosse o pé
avançado em relação aos outros dois.
Esse pé a coloca em situação privilegiada relativamente às outras duas
pessoas. De modo similar, na Figura 23, a posição inclinada enfraquece a linha
vertical e, assim, não compete com o relógio, que é posto em primeiro plano. Os
braços abertos da pessoa à esquerda, ao contrário, evidenciam a falta da linha
vertical que estaria na gravata.
Figura 24 – Pessoas de rosa e de azul
Crédito: Yakobchuk Viacheslav/Shutterstock.
Ainda nessa temática das convenções estéticas que estabelecem
hierarquias, observe a Figura 24. Na figura da esquerda, o tom rosa não é
suficiente para diminuir a força das linhas verticais formadas pela altura da
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pessoa e pelo rolo de massa. Quanto à figura da direita, a cor preta e o notebook
não são suficientes para compensar a pouca altura e a posição horizontal das
mãos.
Voltando ao exemplo de Chanel, parte importante do seu estilo se assenta
na justaposição de contrários já convencionados, e isso só é possível porque a
estilista não ambicionou desconstruí-los, mas, sim, explorou com inteligência
suas diferenças, justapondo-as, utilizando-as a seu favor.
Os sentidos do observador nunca são enganados quanto a isso. É
possível identificar claramente onde está a convenção do masculino, onde se
manteve a do feminino, onde está o genuíno, onde se optou pelo falso. Não é
por acaso que, quando pensamos em Chanel, nos vêm o preto e branco à mente,
em termos simbólicos, um par de cores opostas.
TEMA 5 – A IMPORTÂNCIA DE ORGANIZAR
Neste tópico, quero alertar para a complexidade de um processo de
significação. Conforme relatei anteriormente, as reações das pessoas aos
nossos produtos não são atos isolados. Envolvem os sentidos, o repertório, as
memórias. Ou seja, quero sugerir que tome muito cuidado para que o seu
produto não inclua, acidentalmente, alguma relação indesejada.
Evidentemente, como você já aprendeu neste estudo, não poderá
controlar o que ocorre no seu cliente. Isso, porém, não é impedimento para que
tenha absoluto controle do que coloca no seu produto. Nos dois próximos tópicos
darei algumas dicas de como ter sucesso nesta empreitada. Basicamente, é
preciso fazer com que todas as relações envolvidas, sejam elas icônicas,
indiciais ou simbólicas, trabalhem com um único propósito. Mas é igualmente
importante organizar a informação dada aos sentidos, independentemente de
qual a relação dominante.
5.1 Organizando as relações
Se este texto alcançou seu objetivo, você já deve ter percebido que as
relações que darão significado ao seu produto dificilmente são de um único tipo,
e não trabalham isoladamente. Há relações indicias que se constroem sobre
convenções, como é o caso da sirene da ambulância. E muitas relações
simbólicas são desdobramentos de relações icônicas, como no caso de placas
29
de trânsito que avisam a presença de animais, trabalhadores, idosos e crianças.
Em épocas natalinas, o Papai Noel, que é uma convenção, é reconhecido por
índices, tais como meias, sacos de presentes, enfeites em vermelho e branco e
assim por diante.
Um artefato de luxo, conforme observei há pouco, em geral se vê
valorizado pelos indícios de mão de obra e material. Neste caso, qualquer
convenção ou ícone envolvido deve favorecer o índice. Não é comum, por
exemplo, artigos de luxo abusarem das cores, e um dos motivos é que as cores
são poderosas em estabelecer relações simbólicas, nem todas condizentes com
o luxo.
Se o que você precisa é desenvolver um artigo natalino, invista na
convenção e faça com que indícios e ícones a reforcem. Seria difícil gerar a
conexão desejada se um cartão de Natal tivesse, por exemplo, cheiro de
tangerina [(relação icônica olfativa)] ou fosse gravado em uma placa de alumínio
[(relação indicial tátil)].
O personagem Lionel, de A pele, é introduzido ao espectador através de
uma série de relações que se reforçam: os artefatos típicos de circo são
carregados em uma caixa e são imediatamente reconhecidos como instrumentos
circenses, por relação icônica; ouve-se os barulhos do andar superior e são
vistos os cabelos na tubulação, como indícios de Lionel; quanto ao homem
mascarado, é visto pela primeira vez pela janela, veste azul e vermelho, que são
as cores convencionadas para o futuro casal de amantes, ou seja, relação
simbólica. Neste caso, o diretor determinou a ordem, e que tipo de informação
seria dada em qual relação. Todas, no entanto, contribuem para revelar,
lentamente, quem é o misterioso personagem.
Essa não é uma sabedoria adquirida na modernidade. Retome comigo o
exemplo do altar que Moisés construiu e cujas informações constam no livro de
Gênesis. Provavelmente, ele era alguma coisa parecida com o que se vê na
Figura 25.
30
Figura 25 – Altar de pedra
Crédito: Eziu/Shutterstock.
Conforme comentei em uma das primeiras etapas, Moisés se utilizou de
atributos para significar aquilo para o qual não havia uma representação. No
caso, atributos da pedra para significar o Deus de Abraão. Agora observe comigo
como são utilizados o ícone, o índice e o símbolo para construir esse signo.
Primeiro, é fundamental que o observador reconheça os atributos físicos da
pedra. Ele só saberá que ela é dura, se algum dia, tentou quebrá-la. Saberá que
ela é indiferente ao tempo se, por alguma razão, observou que ele envelhece, e
a pedra não.
Trata-se, portanto, de semelhança e analogia.Sabe-se pelo texto mosaico
que a lei do altar proibia que fossem manuseados nas suas pedras qualquer
ferramenta. Não era permitido cortá-la, fazer inscrições, pintá-la ou alterá-la com
qualquer outra operação. Com isso, o que era obrigatório no altar era a
inexistência de qualquer indício de trabalho de ferramenta. Finalmente,
compreende-se o valor do altar pela tradição e pelo hábito.
O altar era construído sempre da mesma maneira, no mesmo tipo de
terreno, para celebrar as mesmas coisas. Desta forma, fica evidente que Moisés,
muito antes de haver a ciência da semiótica, utilizou ícone, índice e símbolo para
31
reforçar um único signo. Sabe-se, assim, que as categorias que Peirce encontrou
para qualificar as relações são de fato abrangentes e muito, muito antigas.
No tópico seguinte, será enfatizado que, além de saber estabelecer uma
unidade de propósito para as relações, deve-se evitar que o produto confunda
os sentidos do cliente.
5.2 Organizando as informações para os sentidos
Foi afirmado anteriormente que nossos captadores de informação
trabalham juntos, e o cérebro dá sua contribuição comparando e jogando com a
imaginação. Como designer criador de signos, sua maior chance de sucesso
está em seduzir os sentidos a trabalharem conforme o seu plano. Tentar seduzir
os sentidos é dizer a eles por onde começar a captação da informação e em que
velocidade.
Se o produto que você desenvolve depende de uma interação tátil
demorada, isso precisa ficar claro para os sentidos. É preciso que o cliente queira
tocar e permanecer tocando. E isso sem a sua instrução. As convenções
estéticas, nesta hora, são de grande utilidade, pois nos contam como é que o
cérebro, em geral, avalia as informações que recebe dos sentidos. O que
significa uma linha, uma cor, uma textura, as posições espaciais e assim por
diante.
Um interior bem planejado deve informar aos sentidos o fluxo da
movimentação, os pontos de atenção, e a utilidade dos cômodos. Os sentidos
do cliente assimilam o objeto aconchego, por meio da sensação causada pelo
teto rebaixado, pela qualidade da luz e pelo toque das superfícies. A figura
humana vestida será mais bem compreendida se der pontos de atenção para o
observador e uma hierarquia. O olho seguirá a instrução dada. Cabe a quem
organiza a veste dizer ao olho se o que tem que ser observado primeiro é o rosto,
os pés, as mãos, e assim por diante.
Mas nem toda a organização é formal. Quem trabalha com comida, por
exemplo, deve saber o que servir primeiro, acompanhado de que, até que a
refeição se complete. Um som ambiente inadequado, ou uma louça inadequada,
podem pôr a perder o paladar.
32
TROCANDO IDEIAS
É importante que você pratique essa observação e tente argumentar da
maneira mais segura possível. Sempre que se sentir impactado por um artefato,
filme, ou foto, tente identificar que tipo de relações causaram esse impacto. Se
você experimentou alguma comida e isso lhe causou alguma sensação afetiva,
tente identificá-la. O mesmo vale para um ambiente, uma música, um cheiro. O
que vem primeiro à sua mente: um indício, um ícone ou um símbolo?
Quase sempre é essa primeira impressão a que manda, a que organiza
todas as outras. Então, se o que mais favorece a relação entre o seu produto ou
serviço e o objeto do interpretante é o índice, fique atento para que as relações
simbólicas e icônicas não trabalhem no sentido contrário e assim
sucessivamente. Leve suas experiências ao fórum, instigue seus colegas para
que opinem sobre suas descobertas.
NA PRÁTICA
Uma informação organizada para os sentidos não precisa ser tediosa.
Veja o exemplo da Figura 26, a foto retrata a confusão feita por um cão, que
aparece envolto em cabos. A imagem é bem calculada: o emaranhado laranja é
contraposto de modo proposital às formas retangulares dos objetos à direita, o
que estabelece uma relação de pesos visuais, com especial atenção para o
detalhe em azul, que é a cor complementar do laranja.
O cão está centralizado, e o móvel atrás estabelece uma divisão em
terços, e essas são diretrizes espaciais que dão equilíbrio. Além disso, através
de uma relação icônica, nosso tato é acionado e nos informa que aqueles fios
são maleáveis, enquanto os equipamentos são rígidos, e isso tem a ver com
textura. Resulta, então, em uma informação clara para os sentidos, apesar de
retratar confusão. O contrário acontece na Figura 27, que não dá qualquer
direção ao olhar.
33
Figura 26 – Cão enrolado em fios
Crédito: Masarik/Shutterstock.
Figura 27 – Mulher com brincos e óculos
Crédito: Anna Zhuk/Shutterstock.
Profissionalmente, sugiro que evite deixar os sentidos do cliente em
dúvida. Lembre-se que esse não é um jogo que se ganha com argumentos
https://www.shutterstock.com/g/szwann
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racionais. Você pode ter bons motivos para dizer que isso significa aquilo, mas
seus argumentos não garantem que os sentidos do seu cliente concordarão. E,
a rigor, caberá a eles informarem ao cliente todas as características do signo que
você criou. Isso também se aprende com o cinema: a significação deve ser
objetiva e sucinta. Nada, absolutamente nada no seu produto deve estar ali por
acaso ou acidente.
Os sentidos do cliente terão dificuldade em avaliar o que é e o que não é
parte do produto. Cabe ao bom profissional ter segurança nas opções de
significação que faz no tipo e motivo das relações que utiliza. Uma boa roupa,
uma boa foto, um bom ambiente em termos significativos são como uma boa
cena: não permitem que o os sentidos do observador desviem sua atenção para
o que não faz parte da narrativa.
Comece com coisas simples do seu cotidiano, tente organizar o seu
quarto ou uma mesa para receber os amigos, ou mesmo a roupa que vestirá pela
manhã, de maneira a organizar a informação para os sentidos do observador.
Estabeleça o que o olho deve observar primeiro, para onde deve se dirigir em
seguida e como deve finalizar.
FINALIZANDO
Nesta etapa, você aprendeu o valor do cinco sentidos como captadores
de informações. Aprendeu também a identificar as relações icônicas, indiciais e
simbólicas que permitem que o seu produto tenha sucesso em significar o objeto
do interpretante. Cabe a você, agora, treinar seus próprios sentidos para
aumentar seu repertório de sensações. Mãos ao trabalho e até a próxima.
35
REFERÊNCIAS
LIPOVETSKY, G.; ROUX, E. O luxo eterno: da idade do sagrado ao tempo das
marcas. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SANTAELLA, L. Estética e semiótica. 1. ed. Curitiba: Intersaberes, 2019.
Disponível em: <https://plataforma.bvirtual.com.br>. Acesso em: 24 abr. 2024.
1
SEMIÓTICA APLICADA AO
DESIGN
AULA 5
Prof.ª Suzie Ferreira do Nascimento
2
CONVERSA INICIAL
Em momento anterior de nossos estudos, ressaltamos que seres
humanos têm a extraordinária habilidade de encontrar elementos concretos que
substituem abstrações. Somos capazes de substituir o perigo por placas, o amor
por um presente, e até nosso mau humor por uma expressão facial pouco
amistosa. Agora já sabemos também que a Semiótica é a ciência que estuda e
tenta compreender esse precioso mecanismo de substituição.
Aprender princípios básicos de Semiótica pode ser muito útil à nossa vida
profissional, pois eles nos capacitarão a fazer as coisas de maneira diferente do
concorrente. Quanto mais criativos formos em matéria de substituições, maiores
serão as chances de sermos notados. Essa não é uma sabedoria moderna, nem
mesmo algum conhecimento produzido pela Semiótica para fins exclusivos de
utilização no Design. Moisés, personagem importante da tradição hebraica, foi
pródigo em matéria de substituições no projeto do Altar e do Tabernáculo em
tempos imemoriais. Aristóteles, grande pensadorgrego, já sabia que a
capacidade de encontrar as semelhanças era o que tornava o poeta fértil em
metáforas, ou seja, em maneiras inovadoras de expressão.
As relações que estudamos anteriormente são maneiras de encontrar
semelhanças. Já estamos em condições de identificar as relações icônicas,
indiciais e simbólicas que possibilitarão ao nosso produto substituir
concretamente os desejos dos nossos clientes. Mas há aspectos do nosso
produto que não são suficientemente estudados por meio dessas relações, por
isso precisamos de mais ferramentas. Nesta etapa de estudos, aprenderemos
como descrever o nosso produto, qualquer que seja ele, por meio de suas
dimensões.
CONTEXTUALIZANDO
O princípio que rege as dimensões de alguma coisa é bastante simples.
Quando procuramos um notebook, um celular, uma geladeira ou mesmo uma
casa, sempre precisaremos saber sua largura, altura e profundidade, pois com
essas medidas poderemos imaginar o produto no espaço. Assim, as medidas
são uma categoria por meio da qual se pode informar sobre determinada coisa;
entretanto, há outras. Assim como uma caixa pode ser descrita em termos de
largura, altura e profundidade, um computador pode ser descrito em termos de
3
hardware e software, o ser humano pode ser descrito em termos de corpo, alma
e espírito, e um projeto de Arquitetura pode ser descrito em termos de hidráulica,
elétrica e estrutura.
No contexto de nossas discussões, devemos pensar em dimensões como
categorias que possibilitam a descrição do nosso produto do modo mais
detalhado possível. O desafio é descobrir os detalhes que costumam ficar
ocultos em uma descrição mais abrangente. O exercício é muito importante para
que tenhamos segurança quanto ao que estamos fazendo.
As dimensões são particularmente úteis para organizar um projeto ou
portfólio, porque com elas organizamos as informações descritivas. Quando o
aluno se esforça para organizar um trabalho em dimensões tripartites (ou seja,
em três partes), sempre descobre aspectos do seu projeto nos quais não havia
pensado, ou zonas de pouca clareza que precisam ser melhoradas.
Portanto, tenhamos em mente que este conteúdo tem o objetivo de
fornecer uma ferramenta a mais de trabalho, um instrumento para que a nossa
produção acadêmica e profissional tenha mais qualidade. Nosso objetivo, como
já apontado, é mostrar que a ciência da Semiótica tem aplicabilidade na sua vida
profissional prática.
TEMA 1 – O QUE SÃO E PARA QUE SERVEM AS DIMENSÕES E AS FUNÇÕES
DE UM PRODUTO
Precisamos nos convencer de que não há uma única maneira de tratar as
dimensões de um produto. A Semiótica que deriva dos estudos da linguagem
tem um sistema; quando é aplicada ao Design, assume outro, assim como a
informática terá o seu, a medicina o seu, a arquitetura o seu, e assim por diante.
Dica
A palavra dimensões, além de designar altura, largura e profundidade, é
utilizada para distinguir categorias de uma mesma coisa, geralmente com a
finalidade de organizar informações.
Para não aumentar a dificuldade, será necessário passar rapidamente por
algumas delas antes de tratarmos especificamente da prática em Design.
As pessoas criam sistemas descritivos de acordo com as características
do que querem descrever. As dimensões da Semiótica foram concebidas com
4
base nos interesses da linguística, e entraram no Design por meio da
Comunicação Visual. Por isso, ficará mais fácil diferenciar as dimensões
apresentadas neste estudo se soubermos como elas foram concebidas
inicialmente na linguística.
Se liga
Linguística é a ciência que estuda o uso concreto da língua pelos seus
falantes, e a Comunicação se ocupa da transmissão das mensagens entre o
emissor e o receptor. Ambas se utilizam de signos.
1.1 Dimensões da Semiótica
Um nome importante nesse novo cenário é o filósofo estadunidense
Charles William Morris (1901-1979), autor do Fundation of a Theory of Signs
(“Fundamento para uma Teoria dos Signos”). De acordo com a clássica definição
de Morris:
• a dimensão sintática estuda e descreve as relações entre os signos;
• a dimensão semântica estuda a relação entre tais signos e seus objetos;
• a dimensão pragmática estuda o modo como os usuários interpretam e
empregam os signos (Marcondes, 2005).
Não é de hoje que os estudiosos tentam encontrar pontos de tangência
entre os sistemas adequados à linguística e à comunicação e os interesses do
Design. O semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980) publicou, em 1967, o
livro Sistema de moda, no qual ambicionou parear as imagens de moda
reproduzidas nas revistas especializadas com o sistema linguístico. Essa obra
explora o fato de a língua e a moda impressa terem em comum sistemas de
signos gerados e mantidos pela cultura. Barthes reconheceu na indumentária
vestida e descrita uma linguagem, e buscou entender o que as roupas diziam,
ou o que as pessoas diziam por meio delas.
Alison Lurie, que escreveu A linguagem das roupas, em 1981, levou essa
relação ao extremo ao tentar criar uma espécie de alfabeto capaz de decifrar o
que as roupas comunicam, propondo associações entre cores fortes e virilidade,
entre a ausência de gravata nos padres e a castração, entre a quantidade de
peças que alguém utiliza para vestir-se e um vocabulário mais ou menos rico
5
(Nascimento, 2014). Esses foram empreendimentos arriscados, mas tiveram seu
valor.
Com base em nossos estudos, podemos compreender que não é possível
aplicar às relações sígneas construídas pelas roupas as mesmas restrições que
se aplicam à língua, que é basicamente convenção arbitrária. Todos nós temos
de respeitar as convenções da língua em alguma medida, do contrário, ninguém
nos entenderá. Se ninguém entender a nossa roupa, as consequências não
serão tão graves. Se apontamos para a pedra e dizemos “é água”, nosso
interlocutor nos olhará com desconfiança. Entretanto, na cultura ocidental atual,
se nossas roupas dizem “eu sou importante” quando na verdade não somos, as
pessoas tenderão a não levar isso em muita consideração. Podemos, como
indivíduos, desrespeitar convenções de vestimenta, mas não devemos fazer o
mesmo com as convenções da língua.
No entanto, prestemos atenção: para os sentidos do observador, existe,
sim, um discurso sendo emitido pelas cores, formas e texturas da indumentária,
e o cérebro toma essas informações como verdadeiras, porque os sentidos não
mentem sobre aquilo que capturam. Pensemos naquele artista estadunidense
famoso que costuma se vestir como mendigo. Todos os que o conhecem sabem
que aquilo é excentricidade deliberada. Contudo, se esse mesmo ator, vestido
como mendigo, for passar férias em um país no qual não é conhecido e onde a
mendicância é crime, poderá ir para a cadeia, porque os sentidos daquelas
pessoas afirmarão que ele é, de fato, um mendigo. Ou ainda, pensemos naquele
dia em que saímos de casa com a primeira roupa que encontramos no armário
porque ficamos estudando Semiótica Aplicada até de madrugada. Os sentidos
do nosso observador não terão interesse nos nossos motivos; o que eles sentirão
é uma maior dificuldade em organizar o que captam, causando ao observador
uma desagradável sensação de confusão.
Iniciativas como a de Barthes e Lurie nos possibilitaram reconhecer que,
considerando a grande flexibilidade atual de atuação do Design, a classificação
de Morris é a que mais se adequa, porque trata as dimensões com base no
signo, extrapolando os limites da convenção. Em momento anterior de nossos
estudos, fornecemos informações suficientes para que possamos analisar o
caráter sígneo de uma gama razoável de situações profissionais.
No entanto, é preciso ampliar a análise porque o profissional do Design
tem preocupações que antecedem a existência do seu produto no mundo e, além
6
disso, seu produto ou serviço precisa estar ancorado no uso racional.Nem tudo
em um produto ou serviço pode ser deixado sob responsabilidade da
“interpretação” de cada um. A bola Wilson, em algum momento, foi pensada em
termos de forma e material, e de uso como ferramenta desportiva, e esses
aspectos não são diretamente abordados pela análise do signo. Foi preciso
pensá-la em termos técnicos, encontrar meios de produzi-la, pensar na sua
usabilidade, e assim por diante. As ferramentas que conhecemos da Semiótica
não são tão aplicáveis nesses casos.
Alguns estudiosos já trilharam esse caminho em busca do ferramental
teórico mais adequado para analisar os produtos do Design, a exemplo de
Niemeyer (2007, p. 49) e seu livro Elementos de semiótica aplicados ao Design.
A autora, que é doutora em Comunicação e tem uma longa história na ESDI
(escola de Design mais antiga do Brasil), recorreu ao filósofo germânico Max
Bense para ajustar a classificação da Linguística à prática do Design, assumindo
que o produto (nesse caso, ela tem em vista produtos industriais) poderia ser
dividido em quatro diferentes dimensões:
• dimensão material (hílico);
• dimensão técnica ou construtiva (semelhante à sintática de Morris);
• dimensão da forma (semelhante à semântica de Morris);
• dimensão do uso (semelhante à pragmática de Morris);
É importante perceber que há uma mudança significativa no entendimento
do que são as dimensões propostas por Niemeyer, considerando a classificação
de Morris, embora os nomes continuem os mesmos. Niemeyer introduz vários
aspectos que são do interesse produtivo do Design Industrial. Esse ajuste, no
entanto, traz consequências. Nós já aprendemos que há várias relações
(dimensão semântica na qualificação de Morris) que podem se efetivar entre o
signo e o objeto, independentemente da sua forma (qualificação de Niemeyer).
O mesmo poderia ser dito em relação à correspondência entre uso e
interpretação. No filme O náufrago, a interpretação (dimensão pragmática na
classificação de Morris) que o náufrago dá à bola Wilson estabelece um uso
(classificação de Niemeyer) completamente distinto daquele levado em
consideração no projeto da bola.
É importante registrar que Niemeyer tem plena percepção da dificuldade
que é essa aproximação. A autora sabe bem que a prática do designer,
7
particularmente o que atua na indústria de artefatos, prioriza certos aspectos, e
a Semiótica, outros:
Um produto, como o telefone, pode não ser definido só por aspectos
técnicos ou mesmo ergonômicos, nem por suas funções práticas ou
ambientais, mas por uma evocação que ele provoque, como um
personagem de história em quadrinhos ou uma garrafa de refrigerante.
Parece claro, assim, que a dimensão pragmática, com o apoio das
dimensões material e sintática, não será suficiente para a descrição e
explicação de um produto (Niemeyer, 2007, p. 52, grifo nosso)
Essa evocação tem de ser trabalhada na dimensão semântica em um
sentido amplo, não pode ficar restrita aos efeitos causados na visão como
prefere a Comunicação Visual, tampouco se limita à forma.
Até aqui mostramos as dificuldades que os teóricos estão enfrentando na
aproximação entre a Semiótica, que se volta para a linguagem e comunicação,
e um sistema descritivo que pretende ser aplicável ao Design. Soma-se a isso o
modo como o Design penetrou em outras áreas, para além da produção
industrial de artefatos, e podemos concluir que há muito trabalho a ser feito.
Estrategicamente, retomaremos nos próximos tópicos as funções do
Design, elencadas por Löbach, um autor dedicado ao Design Industrial,
complementando-as com aquilo que os autores da linguística chamaram de
dimensões. Ao final, dedicaremos um tópico mais extenso à dimensão sintática
(estrutura), por ser importante para a nossa atividade profissional.
1.2 Löbach e funções do Design
As funções dos produtos de Design são tema de vários livros, mas um dos
mais populares no Brasil é Design Industrial, escrito por Bernd Löbach, em 1976,
publicado em português no ano 2000. Segundo o autor, um produto pode ser
descrito por meio das suas funções prática, estética e simbólica. Um bom
produto de Design deveria atender às três funções com a mesma excelência:
deveria ser correto sob o ponto de vista prático, causar uma agradável
experiência estética, bem como possibilitar ao usuário fazer conexões
emocionais por meio dele.
Dica
Quando Löbach publicou Design Industrial, só existiam duas
especialidades em Design: Design de produto (físico e industrial – larga escala
de produção) e Comunicação Visual ou Design gráfico. Todavia, ele apresenta
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funções que são aplicáveis aos produtos digitais, aos não seriados – produção
única –, como ambientes, roupas sob medida e customização.
Como todo o sistema classificatório, o de Löbach também tem seus
limites. É preciso boa vontade para não ver o quão sobrepostas estão as funções
estética e simbólica. É um sistema que funciona bem se forem feitas as
perguntas certas, e por isso mesmo pode nos ajudar em várias situações de
projeto. A classificação em dimensões da Semiótica, a seu turno, é mais
abrangente, mas dificulta a aplicabilidade imediata. Já devemos ter concluído
que a análise semiótica, ainda que aplicada, exige uma boa dose de pensamento
abstrato.
Se liga
A qualificação de Löbach é bastante utilizada nos estudos para o Design,
no entanto, a sua terminologia não coincide com a utilizada pela Semiótica de
Peirce.
Saiba mais
Para saber mais sobre as funções adotadas por Löbach, leia o capítulo
“Funções dos produtos industriais”, no livro Design Industrial (2001).
Dica
Apontamos que as medidas de uma coisa são uma categoria que busca
dar informações que possibilitem localizá-la no espaço. Entretanto, descrever
uma coisa por meio de categorias triplas não é exclusividade da geometria. A
Filosofia, por exemplo, busca descobrir o que uma coisa é com base em três
perguntas fundamentais: o que, como e por quê. Arnheim (2000) adaptou essas
perguntas filosóficas ao estudo da imagem e estabeleceu que a sua função
poderia ser descrita nas categorias: epistêmica (o que é), estética (como é) e
simbólica (por quê é). Com essa tríaden ele pode descrever a imagem como
informação sobre o mundo (o que), como algo capaz de dar satisfação (como)
e, finalmente, como símbolo (por quê). Assim, não há nada de extraordinário na
tentativa de qualificar um produto ou serviço de acordo com a sua funcionalidade.
Conforme adiantado há pouco, nos próximos tópicos vamos resumir as
funções de Löbach, complementando-as com as dimensões da semiótica
sempre que isso for do interesse de uma melhor prática.
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TEMA 2 – FUNÇÃO PRÁTICA
De acordo com a definição de Löbach, a função prática de um produto
reúne seus aspectos que atendem diretamente a necessidades humanas
fisiológicas, tais como facilidade, conforto, segurança etc. Entram aqui aspectos
voltados à ergonomia, funcionalidade, bem como todas as questões que podem
ameaçar a segurança. Carros, equipamentos eletrônicos, brinquedos, roupas,
todos esses produtos podem causar lesões ao usuário, e uma maneira de evitar
que isso aconteça é, no projeto, prestar muita atenção à sua função prática.
Conforme já sabemos, à época, Löbach tinha em vista apenas algumas áreas
de aplicação do Design. Atualmente, a gama é muito maior, e é preciso encontrar
a função prática em todas elas.
Para localizar a função prática na nossa atividade, devemos nos
concentrar no conceito: o quê, no nosso trabalho, envolve o uso pelo cliente.
Uma fonte tipográfica inadequada, a falta ou mau funcionamento de um link, a
opção incorreta de cores justapostas, enfim, as possibilidades são muitas e
variam conforme a especialidade.
O aluno ou profissional que se dedica a isolar esse aspecto do seu projeto
e estudá-lo separadamente, terá muito a ganhar. É uma ilusão pressupor que
tudo está resolvido quando a parteestética é convincente. Após a pandemia, por
exemplo, muitas pessoas passaram a trabalhar em casa, e isso está
demandando uma nova abordagem no mobiliário. Aquela cadeira bonita que
costumava entrar em harmonia com a decoração do quarto e da sala, agora
precisa atender às exigências ergonômicas de uma rotina pesada de trabalho. A
pandemia fez com que a sua função prática ganhasse relevância diante da sua
função estética.
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Figura 1 – Foto genérica de ambiente Home Office
Crédito: SeventyFour/Shutterstock.
Na maioria dos casos, não encontraremos grandes dificuldades em
identificar a função prática de uma coisa. O mais difícil é se disciplinar a separar
essa função das demais. No Design de Moda, essa dificuldade é notória. O aluno
resiste a dar verdadeira atenção às facilidades requeridas pelo vestir, porque
está empolgado com a função estética. A rigor, o designer deveria fazer sempre
uma experiência com seu produto ou serviço sem nenhum apelo estético, ou
seja, sem despertar qualquer interesse nos sentidos que não seja aquele que se
volta exclusivamente para o conforto e segurança. Separar as funções do nosso
produto ajuda a adquirir esse hábito.
Ainda assim, saber identificar a função prática não esgota o problema.
Esse será um procedimento relativamente simples sempre que a função prática
coincidir com bons princípios para a utilidade: uma calça serve para proteger, um
celular para comunicação, uma casa para morar etc. Nesses casos, a “correta”
função prática coincide com os benefícios do uso da ergonomia e da segurança.
Agora, vamos analisar a coroa da Figura 2. O que seria “correto” em
termos práticos, considerando a função desse artefato? Uma coroa correta é
aquela que identifica o rei e sua majestade, ou seja, seu uso se justifica apenas
pelo simbolismo que carrega. A sua verdadeira função não se submete aos
critérios de correção de Löbach para a função prática.
No contexto que esse autor analisa os produtos industrializados, o artefato
deve estar correto sob o ponto de vista da usabilidade, ou seja, conforto e
segurança. Entretanto, seria um grave erro, no caso da coroa, colocar tais
https://www.shutterstock.com/g/SeventyFour
11
características acima da significação. Afinal, um rei deve ser capaz de suportar
o desconforto e carregar o peso da sua realeza. Sob o ponto de vista da
classificação de Löbach, a maioria das coroas e tronos seriam deficitários na
função prática, porque sacrificam o conforto e a segurança em favor da função
simbólica. Pelo mesmo motivo, autores ortodoxos teriam dificuldade em
classificar sapatos de salto muito alto como bons produtos de Design. Eles
podem ser considerados corretos sob o ponto de vista da utilidade, pois são úteis
para dar às mulheres determinadas sensações, mas, sob o ponto de vista do
sentido que Löbach prescreve à função prática (usabilidade, ergonomia etc.), a
maioria não seria aprovada.
Figura 2 – Coroa
Crédito: tomertu/Shutterstock.
Outro exemplo dúbio pode ser visto em alguns carros, motos e similares.
Embora, sob o ponto de vista da função prática seus projetistas, devessem
priorizar o conforto, alguns modelos têm como característica uma certa
dificuldade que o piloto deseja enfrentar. Seus consumidores desejam “usá-los”
com certa dificuldade.
Dica
A Ferrari F40 é considerada um dos carros mais icônicos da história
automotiva. Criado para o 40.º aniversário da marca Ferrari, o F40 foi o design
automóvel final do fundador Enzo Ferrari. Seu desejo de criar o melhor carro
para motorista foi recebido com fortes elogios e críticas quando foi lançado ao
público, em 1987. Em uma época em que a tecnologia automotiva estava
https://www.shutterstock.com/g/tartwork
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avançando em direção à assistência de direção digital e analógica, que tornavam
os carros potentes mais gerenciáveis para um conjunto mais amplo de pilotos,
Enzo Ferrari se afastou desse conceito e desenvolveu um carro que exigia um
piloto competente. O carro resultante se tornou um dos mais procurados pelos
colecionadores de Ferrari (Hicks, 1994). Design criticism: Ferrari F40, por Mark
Angelo Cela. Disponível em: <https://www.markcelagraphics.com/design-
criticism-ferrari-f40>. Acesso em: 23 abr. 2024.
Se liga
Na classificação de Löbach, a prioridade na função prática são questões
de conforto e segurança de modo mais objetivo, quase sempre levadas em
consideração no projeto, antes do lançamento do produto ou serviço no
mercado, ou seja, relativizando os usos mais diretamente demandados por
questões de significação. O exemplo da Ferrari mostra que separar a função
prática da simbólica pode ajudar a desenvolver ambas as funções com mais
qualidade, sem que uma prejudique a outra, ou seja, há questões de significado
que não são vistas no estudo da função prática, e vice-versa.
Na Figura 3, exemplificamos satisfatoriamente os benefícios de identificar
a função prática no seu produto.
Figura 3 – Copo sem detalhes visuais
Crédito: PrimeMockup/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/IannielloAlfonso
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O copo limpo, sem as informações que serão impressas, possibilita que o
designer preste atenção ao manuseio, à junção do copo com a tampa, aos
materiais, e assim por diante.
O mesmo serve para roupas, como na Figura 4. Toda a peça de roupa
precisa ser analisada cuidadosamente em sua funcionalidade e ergonomia e,
nesse momento, é preciso retirar todas as demais influências sobre os sentidos.
Figura 4 – Camisetas brancas
Crédito: airdone/Shutterstock.
Com a identificação do que pertence exclusivamente ao uso, os sentidos
do projetista ficarão mais atentos às costuras, ao caimento, ao colarinho, à
textura do tecido, ou seja, à sua função prática.
A depender da nossa área de atuação, será mais fácil ou difícil separar
todos os elementos da função prática. Um arquiteto poderá separar, em
maquete ou em tamanho real, a parte estrutural dos divisores de espaço e dos
elementos decorativos. Um designer de interiores deveria experimentar o
espaço, o ambiente vazio, sem qualquer influência visual, para reconhecer os
fluxos, as sensações térmicas, a entrada de luz. Quem projeta bancos de carro
deve poder descrever sua função prática em detalhes.
Saiba mais
Vejamos como Löbach descreve o assento de um automóvel na página
58 do livro Design Industrial (2001).
https://www.shutterstock.com/g/airdone
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Há mercados nos quais a função prática é dominante, a exemplo do que
ocorre com os aparelhos de TV e celulares. Com raras exceções, uma TV
considerada cara não difere da outra, mais em conta, no que concerne à função
estética. Celulares de última geração são visivelmente semelhantes aos da
versão anterior, embora possam ser muito diferentes no funcionamento. Em
mercados como esses, o que conta é a inovação tecnológica que está dirigida
essencialmente ao uso.
Agora, assumir que em determinado segmento a função prática é
dominante não significa assumir que nele a parte ergonômica ou a
funcionalidade devem ser resolvidas com base em um único critério. Em uma
série asiática, por exemplo, na qual uma personagem extraordinariamente rica
manuseava um aparelho celular, o que realmente me impactou não foram os
detalhes em ouro e a forma diferenciada, mas sim o fato de ser um aparelho
pequeno, estreito, cuja utilidade, presumivelmente, estava limitada a fazer e
receber ligações: o inusitado luxo de poder ter um aparelho celular que não dá
acesso à internet, que não recebe nem envia mensagens, o luxo de não ser
encontrado, exceto por pessoas muito selecionadas. Esse exemplo, assim como
o do carro esportivo, comprova que a correção na função prática, em alguns
casos, não é determinada pelo que há de mais tecnológico ou mais ergonômico.
Há, em certos momentos, motivos fortes o suficiente para estabelecer que certos
confortos e facilidadessejam deliberadamente negados.
Dica
Como designer, precisamos conhecer bem as diversas dimensões e
funções que atravessam o nosso produto para poder estabelecer uma clara
hierarquia entre elas, e saber, assim, justificar com convicção suas escolhas
projetuais.
Até aqui, discorremos sobre como Löbach entendia a função prática.
Agora vejamos como a classificação proposta por Bense e Niemeyer pode
complementá-la.
Na classificação de Niemeyer, a dimensão pragmática pretende
incorporar as funções práticas e ampliar esse entendimento para o que ocorre
com o produto depois da sua inserção no mercado, incluindo assim os
significados que a ele aderem por meio do seu interpretante. Seria relativamente
15
fácil apontar como função prática o “durante o projeto” e diretamente construtivo
e, como dimensão pragmática, o “depois do projeto” e a significação.
Contudo, infelizmente, prático e pragmático no terreno das teorizações
que envolvem o Design se sobrepõem. A própria Niemeyer é do entendimento
de que a dimensão pragmática absorve outros aspectos pós-produção, como
descarte, e há uma distância considerável entre descarte e significação. A ideia
básica é separar como parte da dimensão pragmática tudo, ou quase tudo, do
seu produto que dependerá da ação de terceiros, depois de pronto.
Particularmente, podemos considerar problemático incluir questões
interpretativas (acontecem depois) nos mesmos critérios necessários para
estabelecer a função prática. Entretanto, é bastante útil incluir no projeto
questões que dizem respeito ao meio ambiente, esforços repetitivos, usos
indevidos. Sempre haverá aspectos pertinentes ao nosso produto que não
aparecem claramente na nossa concepção e produção, mas que terão
relevância na interação com o usuário e a sociedade em geral. Nisso, a
dimensão pragmática amplia consideravelmente a função prática.
Aconselhamos que, ao invés de nos angustiarmos com teorias,
escolhamos as dimensões ou funções que melhor apresentam o nosso produto
ou serviço como um todo, estabelecendo os critérios, deixando-os muito claros
para nós e para quem for interagir com o nosso projeto. Se tivermos de errar,
que seja pelo excesso de zelo.
Figura 5 – Ilustração de pessoa com dúvida
Crédito: Roman Samborskyi/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/Roman+Samborskyi
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Por exemplo, se o que acontece depois com nosso produto ou serviço
precisa ser cuidadosamente analisado, devemos incluir os dois fatores, mas não
misturá-los: tratar separadamente as questões que envolvem descarte, lesões
por repetição, usos indevidos etc. e as que envolvem ações interpretativas, ainda
que ambos os fatores possam ser classificados como parte da dimensão
pragmática.
Figura 6 – Mouse
Crédito: Dimedrol68/Shutterstock.
Se estamos projetando um mouse, no que concerne à interpretação há
diversos elementos sob os quais deverá estar seguro, e que dizem respeito ao
usuário. Na Figura 6, a cor e forma foram escolhidas em função da interpretação
que o artefato receberá posteriormente do seu interpretante. Em contrapartida,
o uso repetitivo, o descarte, a fragilidade das conexões, são problemas que
também aparecerão depois, no uso. A dimensão pragmática tem a vantagem
de nos lembrar que tudo o que fazemos em termos de Design tem uma vida
posterior, mas precisamos separar seus aspectos e estudá-los
independentemente para podermos encontrar a melhor solução para o conjunto.
Podem ser incluídos ainda na função prática alguma coisa das
dimensões material e da sintaxe. Isso ocorre porque, conforme a metodologia
proposta por Löbach, quando retiramos do produto tudo o que concerne ao
estético e ao simbólico, o que sobra, em geral, é material e estrutura, sem os
quais as coisas não têm sua função prática.
https://www.shutterstock.com/g/dimedrol68
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TEMA 3 – FUNÇÃO ESTÉTICA
Há pelo menos dois conceitos teóricos vinculados à palavra “estética”, e
precisamos aprender a diferenciá-los. Vamos encontrar autores e segmentos de
estudo que tratam a Estética como sendo o estudo da aparência, ou seja, de
todos os fenômenos. Nesse sentido, somos “fenômenos” estéticos porque as
pessoas no vêm e sabem que existimos. Há, porém, um outro entendimento que
vincula Estética aos estudos do belo, tentando definir o que é o belo, e por quê.
Embora certamente sejamos fenômenos estéticos, para a Estética que se ocupa
do belo, talvez sejamos de pouco interesse.
Löbach (2001, p. 59-60) considera como pertencente à função estética
aquilo do produto que os sentidos humanos percebem e que se desdobra em
questões psicológicas, o que indica que ele está mais voltado para o primeiro
sentido, no qual tudo que é percebido, principalmente pelo sentido da visão, é
um fenômeno estético.
Essa definição, no entanto, é muito ampla, e dificulta sua localização nos
produtos e serviços. Todavia, entendendo a motivação do livro do Löbach, ficará
mais fácil identificarmos a função estética. O que o autor está propondo é que,
para estudar em detalhes um projeto, produto ou serviço, precisamos separá-lo
em partes. Se na função prática concentramos tudo o que é indispensável ao
funcionamento, deve haver uma função que receba aquilo que não está
discriminado na função prática.
Com isso, automaticamente, identificamos elementos que pertencem à
função estética, porque ela incorpora tudo o que concretamente precisa estar
no nosso produto para que ele seja percebido, mas que não é fundamental ao
seu funcionamento. É quase como dizer que tudo o que é concreto e foi retirado
do produto na identificação da função prática seja agrupado novamente na
função estética.
Löbach se insere em uma tradição. Ele, assim como alguns dos seus
antecessores notáveis, investiram bastante no discurso de que “a forma segue
a função”. Assim pensada, a função estética – à qual pertence a forma – foi
vista, por alguns, como algo acessório, que deveria sempre estar submetido às
exigências da funcionalidade.
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Experiência valiosa
Louis Sullivan, o “Pai dos Arranha-céus” de Chicago, inovou ao utilizar
estilos ornamentais para enfatizar a verticalidade de suas obras. Foi esse
princípio que o levou a proclamar a sentença “a forma segue a função”, embora
ele próprio conceda os créditos da frase a Vitrúvio. Confira o texto de Rory Stott
para conhecer mais.
Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/626678/em-foco-louis-
sullivan>. Acesso em: 23 abr. 2024.
É comum hoje em dia as pessoas resistirem fortemente a qualquer
metodologia que separe forma e função, aparência e conteúdo, e assim por
diante, justamente porque estas são dicotomias tipicamente industriais,
modernas e, de certa maneira, mecânicas. Entretanto, como designers,
precisamos superar essa resistência. Sobretudo porque, para efeitos de projeto,
saber identificar as diferentes categorias, dimensões ou funções de alguma coisa
foi, e continua sendo, uma ferramenta muito útil. Como abordamos logo no início,
saber identificar as diversas categorias que estão presentes naquilo que
produzimos vai nos ajudar a conhecer todos os detalhes da nossa própria
produção, e as funções de Löbach, nesse sentido, são uma ferramenta de fácil
assimilação. Contudo, é preciso atenção para não ser induzido a erros.
Observemos as chaleiras das Figuras 7 e 8. Na função prática, elas
seriam muito semelhantes, porque ambas são úteis para ferver água e isso é
determinado pelos seus componentes básicos. Agora, o que fica para a função
estética é bem distinto. É importante notarmos que a forma do bico, do pegador
e a cor são itens com apelo estético, e não funcional.
Figura 7 – Chaleira vermelha
Crédito: monticello/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/monticello
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Figura 8 – Chaleira dourada
Crédito: Kanurism/Shutterstock.
Para nós, designers, não é um detalhe menor o fato dea compra de
muitos produtos ser decidida em função daqueles itens que são analisados pela
função estética. Há mercados tão concorridos que todos os agentes já
alcançaram a excelência na função prática, e precisam se distinguir na
estética. No exemplo das chaleiras, é relativamente fácil concluir que as
diferenças entre os dois artefatos estão na função estética. No entanto, quanto
mais praticamos, mais percebemos as sutilezas.
Vamos analisar agora a garrafa e a taça apresentadas na Figura 9 a
seguir. O que, nesses dois objetos, pertenceria realmente à função estética?
Sem pensar muito, poderíamos concluir que a forma da garrafa e da taça são
elementos tipicamente estéticos, afinal, há uma variedade considerável de
formas de garrafa para vinho e para taças que possibilita diferenciá-las no
mercado.
Porém, se formos um especialista da área, saberemos que a forma da
garrafa para vinho e a forma da taça têm características que são determinadas
pela sua função prática. O vinho precisa ser armazenado em determinada
posição, fechado à rolha, o bico da garrafa deve ser mais estreito. No caso da
taça, a haste deve ser de tal forma que o contado mais demorado com a mão
não aqueça o líquido, a boca da taça deve ser mais estreita par manter os
aromas, e assim por diante.
Ou seja, dentro da categoria “forma” encontraremos elementos da função
prática e da função estética. Em outros termos, quando estamos analisando a
função prática, não podemos simplesmente ignorar a forma. O que precisamos
aprender a diferenciar, dentro da categoria “forma”, é aquilo que é da função
prática daquilo que é da função estética. Isso vale tanto para os exemplos das
chaleiras e do mouse quanto para a garrafa.
https://www.shutterstock.com/g/kanur+ismail
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Figura 9 – Garrafa e taça
Crédito: Stokkete/Shutterstock.
Dica
Quando o nosso interesse está voltado para a função estética, devemos
nos esforçar para não incluir as questões que são mais bem estudadas na
função prática, ainda que, para isso, precisemos tratar a forma em duas
funções.
Além da íntima relação que existe entre a forma e a funcionalidade, há
também certa dificuldade em separar o que fica melhor exposto como função
estética daquilo que vai para a função simbólica, porque em geral as duas
funções se manifestam na forma.
Em momentos anteriores, mencionamos que as séries asiáticas não
costumam trabalhar as cores pelo seu significado, e sim pelo seu apelo estético.
Esse é um bom exemplo de como é necessário distinguir o que é da função
estética e o que é da função simbólica.
Diferentemente do que ocorre nas produções ocidentais, nas asiáticas, o
amarelo, o azul, o vermelho são, geralmente, escolhidos em função do efeito
visual que causam como cor, e não porque signifiquem alguma coisa. O amarelo
estará ali para aumentar a luz e causar efeito nas outras cores, mas dificilmente
para alertar sobre algum perigo. Na Figura 10 a seguir, não é porque o
observador não consegue decifrar o significado das opções feitas para as cores
que elas não precisam ser analisadas, afinal, causam impressões no observador
https://www.shutterstock.com/g/cyano
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e, em certa medida, afetam a forma da construção; é para isso serve a função
estética.
Figura 10 – Parede colorida
Crédito: Bule Sky Studio/Shutterstock.
Por meio da Figura 11, complementamos o raciocínio. Poderíamos, se
quiséssemos, extrair alguns signos do frasco, sobretudo considerando os
conteúdos que já estudamos. Entretanto, a análise da função estética demanda
que reparemos no contraste entre o vidro e a madeira, entre a linha reta e a
curva, na posição inclinada, na transparência do vidro. Todas essas informações
são estéticas, afetam o observador, e podem ser analisadas separadas de sua
função simbólica.
Figura 11 – Frasco de perfume
Crédito: Constantinos Loumakis/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/platongkoh
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Isso significa que boa parte da análise que aprendemos a fazer em nossos
estudos está ancorada em conhecimentos que são estudados em pesquisas e
abordagens que se dedicam à Estética. É preciso que saibamos o que é uma
linha, o que é direção, o que é ritmo, o que é equilíbrio. Sem tais conceitos,
ficaremos “presos” à análise dos signos.
Sim, ser capaz de identificar o que algo significa e, principalmente, ser
capaz de incutir significado no seu produto, é fundamental. Entretanto,
precisamos ser igualmente capazes de analisar e compreender a nossa
produção sem essa influência. Isso é necessário porque a análise da
significância tem como características a fluidez e a liberdade interpretativa, e isso
abre para o aluno uma rota de escape perigosa, porque tudo remete a alguma
coisa e, com isso, se dá tudo por explicado. Na vida prática, não é assim.
Quando separamos a função estética da simbólica, essa dificuldade
emerge, e precisamos enfrentá-la. Profissionalmente, devemos estar
capacitados a descrever e nominar os detalhes daquilo que produzimos.
Precisamos saber como o nosso produto remete ao conforto, ao luxo, ao street,
ao moderno, enfim, a todas essas palavras que costumamos utilizar para facilitar
o processo. Geralmente, quando utilizamos a palavra “moderno” para descrever
alguma coisa, tomamos como certo que o interlocutor, ou cliente, resolverá tudo
por sua própria conta. Não raro, utilizamos as palavras para “compensar” certas
deficiências do nosso produto. Como designers, devemos aprender a evitar esse
recurso. É preciso que desenvolvamos o hábito de manter ao nosso lado
diuturnamente um cliente fictício que sempre pergunta “mas por que assim, e
não de outro jeito?”, e que evitemos de recorrer à função simbólica como
resposta. Devemos justificar a cor, a forma, a textura, tudo sem recorrer ao
simbolismo. Assim, vamos concluir que a dificuldade aumenta bastante, mas os
benefícios são igualmente grandes.
Vamos exercitar isso com a mochila da Figura 12. Em momento anterior,
ela foi explorada pelo potencial sígneo. Agora, vamos descrevê-la conforme a
sua função estética.
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Figura 12 – Mochila
Crédito: maximmmmum/Shutterstock.
O que mais se destaca é a cor amarela, que tem a capacidade de iluminar,
chamar a atenção para si. Seu contorno é definido por linhas pretas cuja
característica mais marcante é a parte reta, bem definida verticalmente; somado
a isso, as curvas são suaves. As linhas de contorno ajudam a combater o efeito
da profundidade, que também é negada pela opacidade do material. Todas
essas características fazem com que o olho do observador perceba uma forma
geométrica plana, estruturada, definida, que chama a atenção pela cor. Uma
forma que não deixa dúvidas, nem instiga o olho a procurar por outras
informações. A pressa em encontrar o simbólico, muitas vezes, impede o aluno
de praticar esse tipo de descrição.
TEMA 4 – FUNÇÃO SIMBÓLICA
Se compreendemos os limites da função estética, já devemos ter
concluído que, para descrever o nosso produto, precisamos de uma categoria
para colocar e analisar as relações sígneas que estudamos em momentos
anteriores. Já sabemos que há aspectos do produto que, para serem analisados,
precisam levar em conta a ação interpretativa do cliente ou do observador. Na
separação em funções de Löbach, o lugar mais adequado para isso é a função
simbólica, em que ficam as “associações de ideias” (Löbach, 2001, p. 65).
Mas fiquemos atento: na função simbólica, Löbach (2001, p. 64) coloca
questões “espirituais, psíquicas e sociais” e emocionais. Se estudamos
anteriormente com atenção, vamos lembrar que, na Semiótica de Peirce,
https://www.shutterstock.com/g/maximmmmum
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símbolo está relacionado especificamente a relações baseadas em convenções.
Löbach se refere a símbolo em um sentido bem mais amplo.
DicaA função simbólica de Löbach não se limita às relações simbólicas que
podem ser extraídas de Peirce. Ela pretende englobar o signo como um todo, e
não somente aquilo que nele se estabelece por convenções.
Para não tornar esse conteúdo repetitivo, vamos considerar que nossos
conhecimentos sobre a Semiótica de Peirce são suficientes para analisar aquilo
que em nosso produto estaria na função simbólica de Löbach.
Saiba mais
Para saber como Löbach trabalha a função simbólica, recomendamos o
tópico 4.3 do livro Design Industrial (2001). A linguagem que ele utiliza é
diferente, e conhecê-la aumentará o nosso acervo de palavras e ideias.
No que concerne à prática, é plausível tratar o estético e o simbólico (no
sentido amplo) em uma única dimensão semântica, como sugerido no
esquema da Figura 13. Contudo, ressaltamos que Niemeyer (2007) não entende
assim. Ela separa um item específico para as características sígneas e o
denomina referências.
Saiba mais
Para saber como as relações sígneas aparecem nas referências de
Niemeyer, recomendamos a leitura do tópico 8 do seu livro Elementos de
semiótica aplicados ao design (2007).
Lendo o texto de Niemeyer, vamos notar que o contexto no qual ela coloca
as relações sígneas é, em algum sentido, “externo”, pensado depois do produto
acabado, e não na nossa concepção, conforme aprendemos em momento
anterior. Além disso, as características que são reservadas à dimensão
semântica no texto de Niemeyer (o que uma cadeira expressa, como propicia o
ato de se sentar, o que representa no seu ambiente etc.), aproximam-se da
dimensão pragmática, porque ambas englobariam consequências do produto
ou serviço no mundo, e com isso se entrecruzam com a função prática do
Löbach. De fato, as dimensões semântica e pragmática ampliam o horizonte da
25
“função”, mas essa aproximação levanta uma série de outros campos dúbios que
costumam confundir o aluno.
Com base no que a prática tem nos ensinado, é preciso fazer um esforço
para separar o simbólico do estético (no sentido que esses conceitos adquirem
na proposta de Lobäch), treinar nosso olho para identificar o efeito do material e
das formas nos sentidos, sem o recurso ao simbólico, como sugerido no exemplo
do frasco de perfume e da parede colorida.
Agora, quando estivermos analisando a função simbólica, nunca nos
esqueçamos do que aprendemos anteriormente: formas, material e cores são os
recursos por meio dos quais se estabelecem as relações sígneas entre o objeto
desejo do cliente e o interpretante (seu cliente). Deixemos de lado o já
desgastado recurso ao “remete à”. Sejamos específicos.
Se assumimos para nós e para o cliente afirmações como “a cadeira é
bela”, “a cama é confortável, “a coleção é consistente,” o ambiente é moderno,
“o jogo é divertido”, além de estarmos em condições de definir, não somente com
palavras, mas com nosso trabalho, o que são cadeira, cama, coleção, ambiente,
jogo, precisamos também estarmos seguros de que introduziu no nosso produto
ou serviço a beleza, o conforto, a consistência, a modernidade e a diversão, e
isso, em produtos que têm materialidade, acontece por meio de formas, cores,
texturas etc. É importante lembrarmos que o diálogo que importa se
estabelece entre o nosso produto ou serviço e os sentidos do usuário.
Palavras, nesse momento, valem pouco.
O frasco de perfume não “remete” a nada. Ele “significará” alguma coisa
para alguém por meio de sua forma, material e cor, assim como a parede
colorida, ou seja, o simbólico não prescinde do estético, mas o profissional do
Design deve saber separá-los. Em momentos anteriores de nossos estudos,
nossa intenção foi convencê-los de que, com as ferramentas da Semiótica de
Peirce, teremos mais chances de persuadir nosso cliente ao fazê-lo entender o
nosso produto ou serviço com a significância que, como designers, esperamos.
Em outras palavras, um produto ou serviço bem resolvido na sua significação
dará ao designer maiores condições de influenciar a vida posterior, o “estar no
mundo” do nosso produto ou serviço. Porém, para isso, precisamos do respaldo
da Estética, da colorimetria, do estudo dos materiais, e assim por diante.
Considerando o disposto até aqui, podemos assumir que, para este
estudo, vale o disposto na Figura 13.
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Figura 13 – Sugestão para aproximação dos conceitos
Fonte: Nascimento, 2024.
É importante perceber que, com as setas coloridas, intencionamos
relacionar todas as denominações que Bense e Niemeyer utilizaram no contexto
das dimensões à classificação de funções de Löbach, inclusive a sintaxe, que
mantivemos como um elemento separado em Löbach, visto que merece
destaque.
A relação é aproximada, porque os conceitos não coincidem, os limites
das categorias são flexíveis e, principalmente, todas elas se sobrepõem em um
mesmo produto. Essa dificuldade é pertinente à aproximação teórica que se fez
entre a Linguística e a Comunicação Visual, derivando disso teorias que hoje são
aplicadas em uma ampla gama de atuações do Design.
Nosso objetivo, nesse conteúdo, é ajudar a encontrar as ferramentas que
mais contribuem para o nosso trabalho, para melhorar a qualidade daquilo que
fazemos. Nessa direção, separamos um tópico específico para a dimensão
sintática, por parecer a menos estudada.
TEMA 5 – DIMENSÃO SINTÁTICA
Entendemos que um acréscimo importante pode ser dado às funções do
Löbach pela observação da sintaxe.
A maneira mais rápida de entender para que serve a dimensão sintática
na nossa atividade é entender a função da sintaxe na Linguística. Mencionamos
há pouco o trabalho de Barthes e Lurie, e o que esses estudiosos fizeram foi
parear signos linguísticos (palavras) aos signos da indumentária (roupas).
Pretendemos demonstrar que os mesmos erros que acontecem no uso das
palavras podem acontecer nos produtos de Design.
Observemos este exemplo: “Maria fora lá brinca”. Do ponto de vista da
sintaxe, essa é uma combinação incorreta porque os signos linguísticos não
estão corretamente relacionados, visto que a correta relação seria “Maria brinca
27
lá fora” (Marcondes, 2005). Então, existe uma maneira correta de dispor as
palavras dentro de uma frase para que esta, ao final, faça sentido, e isso é
sintaxe. Estudar essas combinações é fazer uma análise sintática.
Na Linguística, a sintaxe correta é buscada por meio do estudo das
estruturas de uma língua. Devemos estar lembrando dos estudos sobre análise
sintática com nosso professor de português. Lá aprendemos as regras que
determinam a correta construção da frase. Aprendemos que as palavras não
podem ser combinadas de qualquer jeito sem prejuízo da mensagem.
Profissionalmente, teremos muito a ganhar se pensarmos o nosso produto
ou serviço com base no mesmo princípio. No que concerne à dimensão
sintática, é preciso que as partes que constituem aquilo que fazemos sejam
harmonicamente conectadas, que a relação entre elas seja contínua. Tudo o que
é desnecessário deve ser retirado, pois atrai a atenção dos sentidos para o que
não é importante, e o que é importante deve vir primeiro, seguido do que é
complemento. A sintaxe de um produto pode ser procurada em vários níveis. Na
sua estrutura construtiva, passando pelos fluxos de movimentação do usuário,
até a continuidade necessária para as coleções. Cada vertente do Design terá o
seu interesse em termos de dimensão sintática.
Citaremos aqui exemplos vindos da moda, mas podemos aplicá-los a
outros interesses. Na Figura 14, apesar de não ser um exemplo de solução
ótima, nela é possível identificar alguma coerência. As várias texturas se
harmonizam porque há apenas duas cores em tela: o vermelho e o branco, ainda
que o vermelho puro não apareça. Nesse caso, é esse par de cores que serve
de estrutura.
Figura 14 – Texturas em modelos
Crédito: Xeniia X/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/Asauriet28
Agora, tentemos encontrar alguma coerência visual no conjunto da Figura
15 a seguir.
Figura 15 – Mulheres
Crédito: Creative Lab/Shutterstock.
A dificuldade com a Figura 15 prova que há maneiras corretas e incorretas
de arranjar os elementos daquilo que produzimos. O olho humano terá
dificuldade em encontrar um caminho para compreender a imagem, porque não
há uma estrutura facilmente perceptível que perpasse as três modelos. As peças
são diferentes, não há relação entre as cores, as texturas não parecem ter
sentido, e cada modelo tem um estilo. É como se várias palavras tivessem sido
grafadas em dados e esses dados jogados ao acaso.
A analogia com frases ajuda, mas não nos esqueçamos de que a nossa
língua tem uma estrutura linear, uma coisa atrás da outra. Muitas atividades do
Design têm estruturas volumétricas, como pode ser visto no exemplo da Figura
16.
Figura 16 – Ilustração de estrutura volumétrica
Crédito: nasirkhan/Shutterstock.
https://www.shutterstock.com/g/AG+Creative+Lab
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É preciso que invistamos algum tempo analisando nosso produto para
descobrir qual é a estrutura, nele, que realmente importa e determinará todo o
restante. O conceito de sintaxe, no entanto, permanece: as partes precisam ter
conexão, sentido e clareza, do contrário, o observador ou usuário não terá com
ele uma experiência agradável.
TROCANDO IDEIAS
Considerando a sua atividade como designer, identifique possíveis
estruturas (dimensão sintática) e aspectos mais marcantes que você possa
qualificar como função prática, estética e simbólica. Justifique suas escolhas e
peça a opinião dos colegas no fórum. Procure contato com alunos da sua área
e aproveite essa ferramenta de diálogo para confirmar suas ideias.
NA PRÁTICA
Sugerimos o seguinte exercício prático: vá ao seu guarda-roupa, separe
diversas peças e tente organizá-las de maneira coerente, com uma sintaxe
correta. Observe o exemplo da Figura 17. Com facilidade, você identificará:
1. presente em todas as peças – babado e tecido de algodão;
2. presente em algumas peças – listras e bolas;
3. tipo de peça – saia e blusa.
Figura 17 – Arara com roupas
Crédito: Creative Lab/Shutterstock.
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Agora, imagine que cada uma dessas peças é uma palavra dentro de uma
frase. Para a frase ser agradável e a mensagem clara, você precisa saber quem
é o sujeito, qual o predicado, onde vai a vírgula, o ponto final etc. Na arara, isso
significa dizer que temos que decidir qual a primeira peça, onde estarão os
intervalos visuais, se as peças com listras estarão agrupadas ou intercaladas
com as de bolas, e assim por diante, até encontrar a situação “ótima”, que nós,
geralmente, dizemos que é a mais “bonita”, ou pelo menos a que mais agrada.
Você só tem a certeza de que aquele arranjo é o que exprime beleza quando
está convicto de que qualquer movimento a mais estraga.
FINALIZANDO
Aprendemos que a análise detalhada de uma coisa, qualquer que seja
ela, será mais bem elaborada se as suas partes forem separadas por categoria.
Aprendemos, ainda, que já existem diversas categorias conhecidas, sendo
funções e dimensões as mais citadas nos estudos do Design. Nosso intuito foi
fazer entender que a decisão sobre qual grupo de categorias melhor descreverá
o produto ou serviço cabe ao projetista ou designer, pois cada situação
demandará detalhar mais e melhor uma determinada parte do conjunto. Há
aspectos da joalheria que são estranhos aos games, e há aspectos importantes
para games que não afetam a joalheria, e assim infinitamente. Quanto mais
acertarmos nas categorias, mais conheceremos o nosso produto a fundo, e
maiores serão as nossas chances de acerto.
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REFERÊNCIAS
ARNHEIM, R. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São
Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2000.
LÖBACH, B. Design Industrial. São Paulo: Blucher, 2001.
MARCONDES, D. Em defesa de uma concepção pragmática de linguagem.
Gragoatá, Niterói, ano II, v. 18, p. 11-29, 1. sem. 2005.
NASCIMENTO, S. F. Moda e linguagem: Nietzsche e Arbus, uma aproximação.
Revista Dobras, 2014. Disponível em: <https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/
article/view/39/39>. Acesso em: 23 abr. 2024.
NIEMEYER, L. Elementos de semiótica aplicados ao design. 2. ed. Rio de
Janeiro: 2AB, 2007.
SEMIÓTICA APLICADA AO
DESIGN
AULA 6
Prof.ª Suzie Ferreira do Nascimento
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CONVERSA INICIAL
Olá! Seja bem-vindo(a). O objetivo deste conteúdo é mostrar de maneira
mais objetiva como a Semiótica está presente nas diversas áreas de atuação do
Design. Comentaremos sobre moda, utilidades domésticas, imagens em
movimento e imagens paradas.
É oportuno lembrar que o estudo foi pensado para fornecer ferramentas
práticas, aplicáveis ao seu dia a dia como designer. Entre um aprofundamento
em teorias e exemplos de aplicação, dei sempre preferência aos exemplos. Caso
queira se aprofundar no tema, recomendamos a leitura dos livros de Lucia
Santaella e Lucy Niemeyer, as principais desbravadoras dessas trilhas que
buscam aproximar a Semiótica ao Design. Há bons livros sobre Semiótica nas
bibliotecas virtuais.
Preparado(a)?
CONTEXTUALIZANDO
Considerando as diversas áreas de atuação do Design, muitas vezes você
precisará rever seu conceito de “necessidade”. Muitos produtos não são
adquiridos pela sua funcionalidade ou preço. Por esse motivo os produtos de
luxo, por exemplo, apelam fortemente para o objeto [desejo] do interpretante
[quem legitima o signo], pois se entende que o que leva à compra é o desejo.
Mesmo fora do mercado do luxo, no qual a decisão de compra pode ser feita
com base em critérios técnicos e de usabilidade, a concorrência já está tão
acirrada que é preciso apelar aos sentidos do cliente, porque na técnica todos
os concorrentes já estão empatados.
Exponho esse contexto para convencê-lo de que o nosso assunto é
importante. Saber como aumentar a potencialidade sígnea do que você faz pode
ser um fator decisivo na escolha do cliente pelo seu produto. Nesta última etapa,
quero reforçar que as ferramentas da Semiótica podem atuar a seu favor.
TEMA 1 – A SEMIÓTICA NA MODA
Comentei algumas vezes que a Semiótica é a ciência que estuda as
maneiras com as quais nós, humanos, substituímos coisas. No geral,
substituímos sentimentos, sensações e desejos abstratos por coisas concretas.
Um estilista, vitrinista, diretor de desfile, costureiro ou industrial, que produz
3
alguma coisa relativa à moda, busca produzir essa coisa concreta que substituirá
nossas sensações e sentimentos.
1.1 Moda como necessidade psicológica
O mundo da moda é muito complexo e, justamente por isso, pode ensinar
muito, até para quem não trabalha diretamente com roupas. Essa complexidade
é necessária porque a moda não é um sistema mecânico, movido por intenção
racional. Embora o mercado e a questão econômica sejam fatores importantes,
a moda é uma espécie de língua e, como tal, é produto da cultura e das pessoas.
A moda é um bom exemplo para entender que as necessidades humanas
nem sempre se reduzem ao uso, ao pragmático, ao correto. As pessoas não
precisam da moda para se abrigar do frio, ou para se proteger de qualquer
agressão. Na sua origem burguesa (final da Idade Média), a moda ocidental
atendeu a uma necessidade psicológica. De um modo muito resumido, você
pode assumir que a Europa, depois que abdicou das crenças que prevaleceram
na chamada Idade Média, descobriu seu próprio paradoxo: o ser humano
moderno quer estar junto, mas também separado; necessita de movimento, mas
também do repouso (Nascimento, 2017). A moda é o movimentoque mais
evidencia a convivência desses contrários.
Observe que as senhoras da Figura 1 vestem chapéus iguais, a mesma
flor no peito, mangas compridas e gola alta, diferenciando-se em alguns
detalhes. Com esse artifício, podiam se assemelhar, fazer parte de um grupo e,
ao mesmo tempo, manter a individualidade.
Figura 1– Moda do século XIX
Créditos: chippix/Shutterstock.
4
Saiba mais
Uma das reflexões mais interessantes sobre a moda como artifício capaz
de proporcionar pertencimento e, ao mesmo tempo, diferenciação, foi feita pelo
filósofo germânico Georg Simmel, no texto A moda, publicado em português pela
revista Iara e disponibilizado em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/109259/mod_resource/content/2/Sim
mel%20-%20A%20moda.pdf>. Acesso em: 22 maio 2024.
Se você prestar atenção, verá que foram as pessoas que, antes dos
estilistas e das marcas, sentiram a necessidade de um produto que garantisse
certa homogeneidade, mas, ao mesmo tempo, individualidade. Sem essa
peculiar característica do ocidente moderno, o esforço da marca, tanto como o
talento do estilista, não seria suficiente para gerar o fenômeno moda. Conforme
abordamos, o reconhecimento e legitimação dessas produções como signo
moderno foi trabalho dos seus interpretantes.
Por isso você não deve se satisfazer com análises que ficam presas ao
significado mais evidente. Há muito trabalho e complexidade por trás de uma
coleção que alude às abelhas, à água ou qualquer outro tema da ocasião.
Por ser um sistema que depende essencialmente das inquietações da
sociedade, a produção da moda envolve muitos discursos e intencionalidades.
Ela precisa ser flexível e acompanhar as mudanças naturais da cultura, mas, ao
mesmo tempo, precisa da estabilidade das marcas. Felizmente, para quem está
estudando, é uma característica das marcas mais luxuosas o não relaxamento
no que diz respeito à identificação dos seus valores. Eles têm de estar presentes
em todos os produtos, e em qualquer exposição. Isso vai da embalagem do
perfume ao vestido da modelo em uma divulgação em vídeo. A identidade de
uma marca precisa ser preservada apesar da necessidade de atualização e
todas as trocas de diretores e estilistas. As casas de luxo têm de estar na moda
e, ao mesmo tempo, não estar.
Mencionei em outras etapas o exemplo de Karl Lagerfeld, para Chanel,
que renovou a marca, mas manteve a identidade da estilista. Outro bom exemplo
foi a parceria entre a Dior e John Galiano. É muito interessante observar como
Galliano introduziu novidade e ousadia em uma marca tradicional como a Dior.
Recomendo que procure imagens do desfile de alta costura de outono/inverno
de 2007/08. Você verá que os recursos semióticos estão todos lá. Apesar da
5
modernidade e arrojo dos trajes, é possível reconhecer a feminilidade clássica
de Dior em todos eles.
Dados e fatos
O site de notícias G1 publicou, em 2008, a seguinte notícia a respeito do
desfile de Galliano para Dior: John Galliano apresentou uma Dior de grande
vitalidade, com uma coleção "dioríssima" que revisita e moderniza os “tem-que-
ter” da Maison. [...] Galliano multiplicou suas referências em homenagem a
Christian Dior. A coleção, chamada de "totalmente Dior" pelo próprio Galliano,
trouxe a famosa silhueta "New Look", que causou sensação e escândalo em
1947, com sua cintura super marcada e saias amplas. Os célebres tailleurs "Bar",
com saias-lápis que esculpem o corpo feminino e os drapeados também
apareceram, outras referências importantes da Maison sutilmente modernizadas
com um toque especial do enfant terrible John Galliano (Disponível em:
<www.g1.globo.com/noticias/mundo>. Acesso em: 22 maio 2024).
Lagerfeld, estilista alemão, e Galliano, estilista britânico, são exemplos
genuínos de como um bom profissional é capaz de manter o frescor de uma
marca tradicional, por meio do estudo aprofundado das características dos
materiais e das formas. O observador é impactado pela novidade, mas, ao
mesmo tempo, reconhece os valores da marca. Esse reconhecimento é visual,
portanto, objeto de estudo da Semiótica.
Por isso é sempre recomendável que você exercite observando os
melhores, as marcas com mais recursos. Nelas, terá mais garantia de encontrar
um discurso coerente, produtos pensados em termos semióticos, uma direção
persuasiva bem definida e deliberada que busca tecer o encontro entre os
valores da marca e os desejos do cliente. Uma junção levada a termo pelo
estilista, também ele dotado de características próprias. O produto Chanel,
produzido por Lagerfeld, assim como o produto Dior, produzido por Galliano, são
únicos, ainda que pertençam à longa da trajetória dessas marcas e tenham sido
consumidos por muitas pessoas, em modas cada vez mais efêmeras.
Fiz este comentário inicial para lembrá-lo de que, se o seu objetivo é
produzir algo relevante, não há como escapar de uma análise cuidadosa dos
aspectos semióticos, mesmo se o seu produto for de rápido consumo.
6
1.2 A função estética na Moda
Mencionei em conteúdos anteriores que é muito difícil para o aluno, que
está envolvido com Moda, “libertar-se” do vício da significação imediata. Quase
sempre ele recorre ao “remete a” alguma coisa, mas tem dificuldade em
encontrar os elementos que justificam esse comentário. Você precisa combater
esse vício, e uma maneira de fazê-lo é treinando o olhar para identificar o que é
puramente estético, conforme abordamos em conteúdos anteriores.
Um exercício relativamente fácil para quem não quer ficar preso aos vícios
da significação é retirar o artefato ou imagem da sua posição habitual. Com este
recurso, o olho se vê obrigado a trabalhar mais com as informações estéticas.
Veja o exemplo nos modelos da Figura 2.
Figura 2 – Modelos invertidas
Créditos: Nadya Korobkova /Shutterstock; Couperfield/Shutterstock.
Observe que, mesmo em posições não usuais, a forma, em geral, agrada.
Isso quer dizer que os principais ângulos, a cor e as texturas são suficientes para
gerar uma sensação agradável nos sentidos, e isso é um bom indicativo.
Imagens e artefatos sem estrutura ou sem hierarquia nas informações costumam
ficar ainda mais confusas quando descoladas do recurso à memória e sem o
reconhecimento por semelhança.
Você pode confirmar esse princípio na Figura 3. Imagine que aquela pia
cheia de louça suja é, na verdade, o projeto de uma vitrine. O efeito não é tão
desagradável quanto poderia ser o de uma pia suja, e isso acontece porque os
recursos estéticos se sobressaem à significância. Observe que há três níveis
7
que definem a profundidade: na frente peças mais baixas e desorganizadas, no
meio as peças com um conjunto de três cores terciárias em tamanho médio e,
ao fundo, a torneira em destaque por causa da altura e do brilho. Há pelo menos
dois triângulos: o das peças coloridas com a torneira e outro, inclinado, resultado
da união dos pontos em vermelho. A foto também está distribuída em terços,
sendo o terço inferior para as peças mais claras e nos dois terços superiores
predominam os azulejos azuis. Portanto, são os recursos estéticos que dão ao
olhar a sensação agradável, a despeito da bagunça na pia.
Figura 3 – Pia com louças sujas. À direita, com marcações do professor
Créditos: Gemenacom /Shutterstock.
A Figura 4 é ainda mais ilustrativa. Perceba que os artefatos que a
compõem perdem bastante da sua relação icônica pela atuação deliberada da
força do estético. O olhar percebe primeiro a disposição das formas e das cores
e somente em um segundo momento é que recorre ao reconhecimento dos
artefatos e suas funções.
Figura 4 – Ferramentas de pintor
Créditos: Stock-Asso/Shutterstock.
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Em um desfile, a relação entre o que é simbólico e o que é estético
acontece de maneira semelhante. O olho verá o efeito estético antes do cérebroelaborar o simbólico.
Na maioria das vezes, e mesmo que você não trabalhe com moda, a
identificação do que é “puramente” estético será uma ferramenta muito útil para
garantir que, neste aspecto, ele esteja bem-resolvido. Sem separar o estético do
simbólico, será difícil ter essa certeza.
1.3 Relações sígneas na Moda
O objetivo deste estudo é que você se habilite a introduzir significado
naquilo que produz. Como a Semiótica é a Ciência que estuda as substituições
e nós estamos imersos em um mundo de significações, não falta material para
observar e aprender.
Com isso em mente, analise comigo a imagem genérica da Figura 5.
Lembre-se que a Semiótica estuda as substituições. Então é preciso encontrar
as relações entre o que você vê, e algum sentimento, sensação ou desejo.
Comece pelas relações que estudou com Peirce.
Onde foi utilizada a relação icônica [semelhança]? Seu uso mais óbvio
está na folha verde. Quem vê a folha, reconhece porque já viu antes uma igual
ou semelhante. Com essa relação, traz para a interpretação da foto todas as
lembranças e conhecimento que tem sobre folhas.
Onde você identifica indícios? Há um vento movendo o tecido, ação
reforçada pela posição dos braços e das pernas da modelo, e há resíduo de cor
no tecido da saia. Esses indícios levam à compreensão de que o tecido é leve e
de que não houve um processo de branqueamento agressivo. Com essas
informações o que você tem é a afirmação de um valor: trata-se de um produto
amigável em termos ecológicos e agradável de usar.
Observe que a foto não é significativa em termos simbólicos. O preto, o
plissado, a bota, são elementos que podem ser associados a convenções, mas
isso seria ir longe demais na intencionalidade da foto. O produtor poderia, se
quisesse, ter acrescentado uma etiqueta com algum símbolo associado ao
ecológico. Nesse caso, estaria utilizando a convenção.
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Figura 5 – Modelo de saia
Crédito: Aquarius Studio/Shutterstock.
Veja que o discurso da Figura 6 é completamente distinto: as relações
icônicas levam o observador a um ambiente luxuoso, com história. Esse
ambiente possui indícios de riqueza nos balaústres, na moldura dourada ao
fundo. Há indícios de mão de obra especializada no tecido, seja pelo bordado
brilhante, ou por alguma tecnologia necessária para obter esse resultado.
A relação simbólica permite concluir que a modelo está em uma ocasião
comemorativa, porque não é convencional a pessoa se vestir assim no dia a dia.
Portanto, trata-se de um vestido especial, feito para uma ocasião especial, que
será vestido por uma mulher especial.
Figura 6 – Modelo em traje de festa
Créditos: anna.evlanova/Shutterstock.
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Comparando os dois exemplos, fica fácil concluir que a hipotética marca
do vestido de festa não tem na ecologia o seu principal valor. Não é por esse
caminho que ela se conecta com seu cliente, ainda que possa ser
ambientalmente responsável. As duas fotos deixam claro qual o valor da marca
a que pertencem e, com isso, determinam que tipo de cliente desejam atender.
A análise feita com essas fotos serve para vitrines, embalagens, desfiles,
e assim por diante. O importante é treinar ser específico, não recorrendo ao
“remete a”. A significância do produto, foto ou vitrine tem de vir primeiramente
dos seus elementos concretos.
TEMA 2 – A SEMIÓTICA NOS UTILITÁRIOS
Você já deve ter percebido que muitos outros artefatos estão sujeitos à
moda. Eles modificam de acordo com o jogo constante que existe entre o que as
pessoas desejam e o que o mercado quer vender. Um exemplo bem interessante
pode ser visto nos equipamentos que as pessoas compram para suas facilidades
domésticas, desde a televisão até a geladeira.
2.1 Utilitários domésticos
Conta a história que as primeiras televisões precisavam ser oferecidas em
forma de mobiliário, assim como a primeira máquina fotográfica digital precisou
ter aparência de analógica. Esse tipo de recurso foi sempre necessário para
gerar relações icônicas capazes de minimizar a resistência do cliente ao que é
muito diferente.
Mas houve também um período no qual as pessoas estavam orgulhosas
de exibir seus equipamentos: era preciso que a televisão parecesse televisão, e
a geladeira parecesse geladeira. Atualmente, há uma tendência apontando para
um novo desaparecimento dos utilitários domésticos, que tendem a ficar dentro
de armários. Com o espaço cada vez mais escasso e caro, é preciso retirar o
que não está em uso do campo de ação da visão, aumentando, assim, a
sensação de vazio.
Gosto de pensar que o que está acontecendo hoje é uma guerra: por um
lado, o espaço querendo ganhar predominância, por outro, os utilitários
resistindo bravamente para manter seu direito à aparência.
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Como designer, você já sabe que qualquer artefato “fala”, emite discurso
pela sua aparência, seja pela forma, pela cor, ou pela textura. Esse discurso nem
sempre é coerente e agradável, mas está sempre lá. Então, a única maneira de
“calar” um artefato, é escondendo-o dentro do armário.
Saiba mais
Conheça o projeto never too small que reforma microambientes antigos,
de 15 a 49 m2, e veja como eles “escondem” todos os utilitários, deixando
visíveis somente os que contribuem com a beleza. Disponível em:
<https://www.apartamento203.com.br/2020/05/22/never-too-small/>. Acesso
em: 22 maio 2024.
A valer a tendência do momento, essa conquista dependerá em grande
parte dos atributos estéticos: quanto mais bonito [agradável], maior a chance de
o utilitário ficar fora do armário. Se tal artefato conquistar o direito à aparência,
vale para ele o que vale para qualquer outro: ele emitirá um discurso por meio
dos seus atributos estéticos associados às relações sígneas que conseguir
manter com o desejo do cliente. Compare comigo as Figuras 7, 8 e 9.
Figura 7 – Eletrodomésticos metálicos
Créditos: Luis Echeverri Urrea/Shutterstock.
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Figura 8 – Eletrodomésticos em amarelo
Créditos: Maxx-Studio/Shutterstock.
Figura 9 – Eletrodomésticos em verde
Créditos: Pixel-Shot/Shutterstock.
Com um pouco de paciência e observação pausada, você começa a
perceber as diferenças. Veja que, na primeira imagem, a forma dos artefatos
admite uma passagem mais brusca entre linhas curvas e retas. Esse contraste
é reforçado pela constante variação entre o metal brilhante e o preto fosco. Esse
contraste gera um dinamismo que a visão percebe e esse esforço, assim como
qualquer exercício físico, consome energia.
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O conjunto da segunda imagem também valoriza o contraste, mas
acrescenta a cor amarela. O tratamento da cor dá solidez aos equipamentos, faz
com que saiam do geral e adquiram individualidade.
O conjunto da terceira imagem, a seu turno, oferece formas suaves,
confirmadas pela cor embranquecida e fria. São três conjuntos que os sentidos
percebem de maneira bem diferenciada, antes mesmo de qualquer recurso à
memória. Os sentidos do observador recebem essas informações até com a foto
virada de cabeça para baixo, conforme sugeri no tópico anterior.
No que concerne às relações, perceba que os utilitários domésticos
tendem a declarar sua função pela forma. Um ferro de passar não deve parecer
uma chaleira e vice-versa. Essa declaração se embasa em relação icônica,
porque o observador reconhece o ferro de passar pelo fato de já ter visto
inúmeros semelhantes. O profissional que cria o artefato pode inserir outras
informações icônicas, que permitam ao observador lembrar da geladeira da sua
avó, ou de uma linha de produção industrial. A relação indicial pode ser utilizada
para valorizar a tecnologia empregada, ou para acentuar uma lembrança. Um
relógio, por exemplo, pode ser transparente para exibir seu mecanismo, e uma
chaleira pode vir com marcas de uso para reforçar a ideia de “história”.
Perceba que esse investimentocriativo na forma perde razoavelmente o
seu sentido quando as pessoas passam a esconder seus utilitários em armários.
Como comentei em relação à Moda, esse efeito não é puro reflexo do
mercado. Ele revela que certos grupos sociais estão com seus sentidos
esgotados, e não querem mais dispender energia na apreensão das coisas.
2.2 Celulares e cia
Figura 10 – Homem com celular
Créditos: Stock-Asso/Shutterstock.
14
Um segmento que abdicou quase por completo dos atributos estéticos é
o dos dispositivos eletrônicos. A vinculação entre sua aparência e o objeto
[desejo que ele atende] do cliente se tornou pura abstração. Conforme
exemplifica a Figura 10, as pessoas manipulam esses pequenos artefatos e
ninguém mais presta atenção neles.
Faça o teste: procure peças comerciais recentes que sejam interessantes
sob o ponto de vista do aparelho celular em si; você concluirá que a maioria
enfatiza o objeto, ou seja, o que se pode fazer com ele, e o aparelho mesmo, é
muito discreto. O mercado da telefonia móvel nos ensina de maneira bastante
clara que a maioria dos consumidores, além de evitar o apelo estético, também
não está interessada nos avanços tecnológicos, e sim no quanto aquele aparelho
pode significar, ou seja, garantir o seu acesso ao objeto, que é o contato com a
família, a segurança do filho, ou a produtividade no trabalho. O objeto “status”
que era assegurado por recursos estéticos foi perdendo continuamente sua
posição para o objeto “estar em contato”, assegurado pela tecnologia [invisível].
O exemplo dos celulares confirma o que escrevi sobre a moda
(Nascimento, 2017). Assim analisados, esses aparelhos foram uma resposta
relativamente tardia a uma inquietação muito antiga. Com eles, você e eu
podemos nos isolar quando nos sentimos oprimidos pelo excesso de pessoas, e
podemos nos conectar com elas quando nos sentimos sozinhos. Perceba que
os inventores do celular, na verdade, nada mais fizeram do que encontrar um
objeto muito particular do ocidente moderno [angústia], substituindo-o por um
signo [aparelho de comunicação individual].
TEMA 3 – SEMIÓTICA NOS INTERIORES
Do ponto de vista da Semiótica, ou seja, da significação das coisas, os
ambientes nos quais as pessoas vivem são como suas roupas: uma emissão
continuada de informações. Por isso, o que comentei sobre moda e celulares,
vale também para o design de interiores. Projetos como o Never too Small, que
mencionei há pouco, demonstram que há uma tendência pela valorização do
espaço vazio, mas não no sentido que se via nos projetos amplos dos famosos
modernistas, mas sim em ambientes muito reduzidos.
Esse movimento foi sentido pela Arquitetura há muitos anos, e ficou
evidente nas constantes aberturas, portas envidraçadas, ambientes conjugados,
entre outros detalhes acrescentados à arquitetura moderna. Os moradores já
15
não aceitavam o isolamento da cozinha e do quarto, mas, por outro lado, não
estavam dispostos a enfrentar abertamente o excesso de informações.
Dica
O cineasta iraniano Asghar Fahradi explora esse mesmo recurso na
arquitetura em seu filme A separação (Nascimento, 2017), mostrando como as
pessoas necessitam das transparências, das portas envidraçadas, das janelas,
para romper com o isolamento típico das construções coletivas modernas.
Saiba mais
Você pode descobrir mais sobre o uso da semiótica na Arquitetura no
artigo El discurso de la arquitectura en A Separation, de Asghar Farhadi,
publicado pela Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista,
disponível em:
<https://semeiosis.com.br/issues?issue=iB7FIipqXC6VF8VpRFh3&article=sribg
dYILYujzBYmSCX4>. Acesso em: 22 maio 2024.
Como designer, você precisa estar atento a esses movimentos, pois é
neste campo que ocorre a significação: é preciso encontrar o objeto para poder
sugerir uma substituição sígnea que seja confirmada pelo interpretante.
Considere com cuidado essa tendência ao esgotamento sensível das
pessoas. Esse fenômeno deve servir de motivação para que você seja muito
criterioso na maneira como trabalha as relações sígneas naquilo que faz. Seja
gentil com os sentidos do seu cliente, não peça que eles interpretem ou
assimilem mensagens inúteis, desagradáveis e confusas. Tenha em mente que
tudo emite discurso e demanda dos sentidos uma interpretação. O ambiente no
qual uma pessoa passa boa parte do seu dia, local onde precisa encontrar
descanso e segurança, merece cuidado.
Observe a Figura 11. Na decoração sugerida, o cliente deve reconhecer
o animal e as folhas nos quadros, e a palavra home no relógio. O designer está
evocando a memória do observador para tais reconhecimentos. É possível inferir
que, ao ser estimulado por tais ícones, o usuário trará para o ambiente memórias
que envolvem experiências com animais e vegetação, além da ideia de lar
[home], legitimando, assim, o ambiente como signo do objeto [sensação que ele
espera ter no ambiente]. Como profissional, você precisa saber dosar o quanto
16
de estímulo à memória e aos sentidos serão suficientes e necessários para que
o cliente se mantenha agradavelmente no ambiente.
Figura 11 – Sofá e acessórios
Créditos: Africa Studio/Shutterstock.
Diferentemente, não precisará da memória para se relacionar com os
desenhos gráficos das almofadas, cujo apelo é estético, mas é uma ilusão
recorrer ao abstrato pretendendo, com isso, não demandar esforço dos sentidos.
Veja o caso das pinturas popularmente conhecidas como abstratas
[Figura 12]. Elas parecem buscar justamente impedir que o observador tenha
com elas alguma relação icônica. Parecem tentar deliberadamente negar
qualquer relação entre a representação e alguma coisa conhecida. Mas os
abstracionistas nos ensinam que os sentidos, quando não encontram relações
icônicas diretas, vão buscar outras maneiras de compreender o que captam. Isso
pode ser instigante e prazeroso, mas consome energia.
Figura 12 – Pintura abstrata
Créditos: Vaclav Taus/Shutterstock.
17
Os ambientes, assim como as roupas, são uma arena delicada e
complexa, justamente porque neles o que está em jogo não é pura utilidade.
Repito: tudo emite mensagem, e os sentidos humanos recebem essas
mensagens antes de qualquer elaboração racional sobre utilidade.
Como já abordamos, o primeiro impacto, em geral, é o estético, o visual.
Mas os sentidos estão atentos também à sensação tátil, aos cheiros e aos
barulhos. Um ambiente emite todas essas informações, sejam elas planejadas
ou não. A brisa na cortina é uma mensagem aos sentidos, o ruído do caminhar
no piso é uma mensagem aos sentidos, o cheiro do material sintético é uma
mensagem aos sentidos. Depois disso, ainda se somam todas as informações
vindas da memória, todo o conhecimento que o observador tem sobre aquilo.
Não é por acaso que os sentidos humanos se esgotam, pois trabalham todo o
momento tentando capturar o que vai no seu entorno.
Por isso é preciso levar em consideração o tempo de exposição. Um
quarto de dormir e uma sala de estar não podem submeter seus ocupantes ao
mesmo nível de informação que é permitido em uma loja, na qual ele ficará
apenas alguns minutos. A chave do sucesso para quem atua nesse segmento é,
ainda, concentrar-se no objeto, ou seja, no desejo do cliente, no seu sentido mais
profundo: é preciso encontrar aquilo que causará uma agradável sensação aos
seus sentidos naquela situação específica e durante aquele tempo.
Veja que, na Figura 13, a cor predominante é o beje, ou seja, não é tão
opressivo quanto seria o todo branco, mas o ambiente é balanceado por
momentos de vermelho. Com a prática, você deverá adquirir sensibilidade
suficiente para determinar o quanto de vermelho, e onde, será suficiente para
oferecer algum dinamismo prazeroso, não extenuante.
Figura 13 – Sala de estar
Créditos: Artazum /Shutterstock.
18
Entenderque as pessoas estão cansadas não significa se resignar ao
tédio e à monotonia. Conforme o exemplo que dei da pia com louças sujas, até
o ambiente mais caótico pode ser tratado de maneira estética e dar alguma
direção e tranquilidade aos sentidos.
Gosto de pensar que as ferramentas da Semiótica ajudam a criar
“histórias”. Um bom contador de histórias sabe como fugir dos termos gastos,
sabe como surpreender, como levar o leitor aonde ele quer ir.
Experiência valiosa
Há algumas semanas ouvi alguém comentando que Grande Sertão
Veredas é uma obra de difícil tradução, justamente porque seu autor, Guimarães
Rosa, utiliza muitas expressões que só farão sentido para brasileiros. Veja este
exemplo: “Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é
questão de opiniães... O sertão está em toda a parte”. E mais adiante: “Mas,
agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range
rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia.” (Grande Sertão Veredas).
Voltando ao nosso tema, de fato, o objeto [angústias, inquietações e
desejos] de Grande Sertão Veredas não é exclusivo dos sertanejos, pois no
romance estão colocadas questões universais, mas os signos [palavras e figuras
de linguagem] escolhidos por Guimarães Rosa adquirem sua grandeza somente
para quem conhece o Brasil, fala e lê português brasileiro. O estilo de Guimarães
Rosa demanda certo repertório por parte do interpretante. Sem isso, seu
romance perderá em significado. Agora, considerando o que se pode extrair da
língua portuguesa, para brasileiros, Guimarães Rosa foi um gênio. Ele conseguiu
inovar em temas já conhecidos, seduzir leitores com palavras desconhecidas,
em um perfeito balanço entre o conhecido e o desconhecido, entre a tradição e
a novidade.
TEMA 4 – SEMIÓTICA NAS IMAGENS ANIMADAS
Talvez uma das batalhas mais acirradas pela captura dos sentidos seja,
atualmente, a que ocorre nas chamadas “mídias sociais”. É preciso comunicar,
a todo o custo, e no menor tempo possível.
O interessante é que essa é uma batalha bastante antiga. O ponto de
partida ainda é a Sétima Arte. Considere que o Cinema está para as mídias
sociais assim como a guerra está para a indústria. É no Cinema que são feitos
19
os maiores avanços, o maior investimento, e é lá que estão os maiores talentos.
Com o tempo, a indústria cinematográfica foi se expandindo para outras mídias,
como a TV, e para outras áreas, como os comerciais. Há verdadeiras obras de
arte comerciais feitas em 6 minutos. Sugiro a série The Gentleman's Wager, da
Johnnie Walker, Reincarnation, que Lagerfeld produziu para Chanel, o Un
Rendez Vous, produzido por Guy Ritchie para a Dior Homme, todas disponíveis
no YouTube.
Mas é possível fazer coisas igualmente boas e em menos tempo. Você
não terá dificuldades para chegar a essa conclusão se procurar por peças
comerciais televisivas da década de 80. Me recordo especificamente de uma
cujo objetivo era vender jeans. A cena acontecia dentro de uma piscina. Um
casal jovem se beijava apaixonadamente dentro da água enquanto ia despindo
o jeans e, ao fundo, o telespectador ouvia Mania de você, de Rita Lee. Além da
cena e da música, apenas o slogan: tire a roupa para quem você ama. Um
verdadeiro filme passado em 60 segundos, o tempo atual de um reels. Os
comerciais de 60 segundos, da boa época, provam que não é preciso mais do
que isso para comunicar uma mensagem consistente. O que precisa é
criatividade, profissionalismo e talento.
Hoje, todo o usuário de mídias sociais terá ao alcance de um click diversas
ferramentas de edição para produzir filmes de 60 segundos. Mas você
concordará comigo que a maioria do que se vê nas redes não consegue capturar
o observador por um segundo, quem dirá sessenta.
Os exemplos que sugeri têm uma coisa em comum: uma boa história. A
boa história acontece pela conjunção de dois fatores que você já conhece: a
clara definição de um objeto [desejo, sentimento, sensação] e uma correta
sintaxe. O produto vende como consequência de uma boa relação entre esses
fatores. Evidentemente essa boa história utiliza todos os recursos semióticos que
apresentei em conteúdos anteriores. Quem produz o filme ou a animação deve
saber o que colocar no lugar do quê, para transmitir mais informação em menos
tempo e recursos, mas essas substituições convergem para o objeto, e só
funcionam em boa sintaxe. É a excelência na arte da substituição e a precisa
direção dada aos sentidos, que permitem ao diretor dizer tanto, em tão pouco
tempo.
Na verdade, um look agradável, um desfile, um ambiente aconchegante,
nada mais são do que a sintaxe correta das informações sensíveis, ou seja, uma
20
boa história que os sentidos do observador leem com interesse e prazer. Isso se
aplica a qualquer outro serviço.
4.1 A semiótica na animação
Muito embora o cinema seja, de fato, a melhor escola, hoje existe um
mercado significativo para outros tipos de animação, das mais modestas até as
mais sofisticadas. Com as ferramentas atuais é possível misturar imagens
dinâmicas com imagens paradas e sons. A animação pode explorar os sentidos
da visão e da audição de diversas maneiras, mas o que você aprendeu até aqui
ainda vale: é preciso ter uma boa sintaxe, e isso implica organizar a informação
para os sentidos.
Analise comigo este vídeo da série De Onde Vem, produzido pela TV
escola, que você encontra neste endereço:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/video/me000722.mp4>, acesso
em: 22 maio 2024. Trata-se de um material produzido para crianças já
alfabetizadas, duração aproximada de 4 minutos, cujo objetivo é ensinar. Há uma
infinidade de vídeos nos quais a fala é desnecessária. Mas neste, se você retirar
o som, verá que a sintaxe das imagens, por si só, não é suficiente, não cria uma
narrativa agradável.
O objetivo dos meus comentários é ajudá-lo a identificar as substituições
e relações utilizadas feitas pelo produtor. O vídeo faz parte da série De Onde
Vem e a intenção é ensinar à criança de onde vem o avião.
Já de início [Figuras 14 e 15] a criança se vê transportada para dentro do
vídeo por meio de uma relação icônica, pois reconhece que a personagem Kika
é uma criança “como ela”. Ela também precisa ter visto um avião antes, para
saber do que se trata.
Figuras 14 e 15 – Vídeo de onde vem o avião, TV Escola
Fonte: TV ESCOLA/SEED
21
Por meio de relações simbólicas, a criança reconhece a escrita e a
interrogação. Perceba que nesta outra cena [Figura 16], o narrador explica que
um avião “a jato” cobre a distância ente São Paulo e Salvador em pouco mais de
2 horas. A informação é complementada pelo mapa da costa brasileira, pela seta
dinâmica e pelo relógio que vai de meio dia às 14h, em alguns segundos. A
criança que assiste vai recebendo, assim, um reforço de informação por meio de
relações simbólicas, ou seja, convenções que ela já é capaz de reconhecer.
Figura 16 – Vídeo de onde vem o avião, TV Escola
Fonte: TV ESCOLA/SEED.
Quem ensina para Kika o que é um avião é Jumbo, um avião falante. Ele
dará vários detalhes históricos e técnicos sobre seus antepassados. Sua
narração é uma sequência de informações duplamente significadas: primeiro
pela fala [simbólica] e depois pela imagem [icônica]. Quanto ele fala “cartas”,
surge a imagem animada de cartas, quando fala “pessoas”, aparecem imagens
de pessoas, e assim por diante. Quando fala que “em pouco tempo” o avião
evoluiu, surge na tela uma sucessão de figuras de aviões que vão se
sobrepondo, rapidamente, também “em pouco tempo”. Ou seja, é o dinamismo
das imagens que transforma uma afirmação imprecisa como “pouco tempo” em
um dado objetivo, assim como o movimento dos ponteiros do relógio permite a
associação entre deslocamento e tempo.
Talvez o mais difícil, considerando o objetivo do vídeo, seja ensinar parauma criança como é que um avião consegue voar.
22
Primeiro, a criança precisa relacionar o avião com o peso. Para isso entra
em cena uma balança, que mostra quantos elefantes equivalem a um avião. É
necessário que ela reconheça a balança e saiba alguma coisa sobre elefantes,
sobretudo o seu tamanho e peso, do contrário não poderá fazer a relação
icônica.
Figuras 17 – Vídeo de onde vem o avião, TV Escola
Fonte: TV ESCOLA/SEED.
Kika é que faz a relação entre Dumbo, o desenho do elefante que voava,
e Jumbo, que é o nome do avião falante. É importante observar que a
personagem infantil não “vê” o Dumbo, ela o traz à memória por uma associação
de semelhanças entre palavras e peso. Estabelecida a relação, o avião falante
adverte que Dumbo voava porque batia as asas, coisa que o Jumbo não pode
fazer. E como é que ele voa? Por meio de turbinas.
Figuras 18 – Vídeo de onde vem o avião, TV Escola
Fonte: TV ESCOLA/ SEED.
23
Na cena em que Jumbo explica o que é uma turbina, aparecem as setas
e a turbina vai trocando de cor, do azul, para vermelho e amarelo. Ou seja, a
informação é explicada por meio do simbolismo das sinalizações e das cores.
Em outra cena, diversas setas ajudam a explicar que as forças verticais e
horizontais precisam estar equilibradas para que o Jumbo se desloque
horizontalmente.
Figuras 19 – Vídeo de onde vem o avião, TV Escola
Fonte: TV ESCOLA/SEED.
Até aqui você observou que o vídeo, muito embora simples e pouco
tecnológico, atinge seu objetivo, pois consegue explicar para uma criança coisas
básicas sobre algo complexo, como é o voo de um avião. Sem as corretas
substituições, seriam necessárias muitas páginas de texto.
Mas o vídeo tem ainda uma peculiaridade importante no que concerne às
relações indiciais. Essa é uma observação interessante porque este índice, a
priori, não tem a ver com o objetivo do vídeo. A relação indicial é particularmente
trabalhada nas relações familiares que são uma espécie de pano de fundo. A
figura feminina adulta, cuja cabeça nunca aparece, é um indício. Sabe-se que
ela é a “mãe”, porque o personagem infantil a chama assim. A criança que
assiste terá de elaborar que aquela figura sem cabeça que segura a bolsa, onde
estão carteira, dinheiro, e a subsistência, está substituindo a sua própria mãe.
24
Figura 20 – Vídeo de onde vem o avião, TV Escola
Fonte: TV ESCOLA/SEED.
Você, como entusiasta de Semiótica aplicada, não deve considerar
acidental o fato de o vídeo omitir qualquer indício da figura paterna, pois quem
chegará de avião é um “tio”. Na cena em que ele desce do avião, o personagem
sai sozinho, há um espaço vazio entre ele e a mulher e os dois meninos que
estão à frente, indicando que eles não são parte da família.
Figura 21 – Vídeo de onde vem o avião, TV Escola
Fonte: TV ESCOLA/SEED.
Conforme você pode concluir, é preciso estar atento aos indícios. A
ausência de alguma coisa pode tanto evitar certos estímulos, como torná-los
mais fortes. A ausência da figura paterna pode ser um meio de não estimular a
criança a trazer o pai para a narrativa, mas pode igualmente chamar a atenção
para essa falta.
25
Lembro de ler lido certa vez um artigo sobre o uso deliberado da semiótica
por um famoso cineasta americano que usa seus filmes para militar
politicamente. O artigo alertava para o uso que ele faz de convenções estéticas,
colocando certas pessoas antes, ou depois, maiores ou menores, de acordo com
as suas preferências políticas, e isso em filmes divulgados como
“documentários”, ou seja, o espectador assiste como informativo, mas a
semiótica tem ferramentas que permitem emitir discursos direcionados aos
sentidos, suplantando a barreira daquilo que é dito. No caso do cineasta, o artigo
menciona os simbolismos estéticos, na animação em questão, são os indícios
que assumem esse papel.
TEMA 5 – A SEMIÓTICA NA IMAGEM PARADA
Em conteúdos anteriores mencionei a Comunicação Visual. Se você
concordou comigo que os artefatos emitem mensagens por meio da sua
aparência, então concluirá que existem mensagens sendo comunicadas o tempo
todo e os sentidos têm dificuldade em ignorá-las. Assim entendida, Comunicação
Visual é, na verdade, um termo bastante genérico porque, afinal, tudo o que o
olho humano percebe é, em algum sentido, uma comunicação visual.
Para os fins deste estudo, considere que a ciência da Comunicação
estuda os meios pelos quais as pessoas se comunicam, o interesse de quem
trabalha em Design gráfico está, em geral, voltado para uma boa comunicação,
e a Semiótica é uma ferramenta muito útil para analisar comunicações gráficas.
É possível passar horas decifrando enigmas imagéticos.
Figura 22 – Representação de Édipo e a esfinge
Créditos: delcarmat/Shutterstock.
26
Diz a lenda que havia, em Tebas, uma esfinge que dizia: “decifra-me ou
te devoro”. A Semiótica de Peirce nos resgata do feitiço dessa esfinge ao fazer
notar que o signo substitui o objeto “para alguém”. Ou seja, não é muito produtivo
tentar decifrar o que a marca, design ou artista “quer dizer”, porque a legitimidade
do signo é dada pelo seu interpretante.
Mais proveitoso é saber o que as formas, cores e texturas realmente falam
por meio dos seus atributos. Se o profissional que a produziu utilizou
consistentemente os recursos que a Semiótica disponibiliza, você identificará
essas soluções. Um diretor criativo, um design gráfico, um estilista, um
decorador, todos têm de submeter sua comunicação àquilo que os sentidos
humanos conseguem capturar, sendo o principal deles a visão.
As ferramentas são as mesmas, seja para a escolha de uma fonte
tipográfica para um logotipo, ou um sofá: aquela forma comunicará por meio da
sua cor, do seu contorno, da sua textura, e o sentido da mensagem só será
compreendido se houver uma boa e correta sintaxe. Perceba que nas figuras 23
e 24 não faria muito sentido utilizar a fonte de “The Digital” para “The Carnival”
ou vice-versa. E as contribuições da cor e da forma variadas das letras em “The
Carnival” ficariam comprometidas sem estudos compositivos de equilíbrio visual,
juntamente com os “pontos” coloridos que lembram confetes.
Figura 23 – Representação de fonte tipográfica
Créditos: artyway/Shutterstock.
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Figura 24 – Representação de fonte tipográfica
Créditos: artyway/Shutterstock.
Todos os sistemas de sinalização são estudados pela Comunicação
Visual, e podem ser analisados à luz da Semiótica de Peirce, porque há um
objeto sendo substituído por um signo.
Observe a Figura 25. Qual o objeto da foto e quantos signos ele tem? O
mapa, a bandeira, e as palavras, são signos dos Estados Unidos da América,
que é uma nação, objeto de todos esses signos. Embora útil para fins didáticos,
é uma foto questionável sob o ponto de vista da economia, porque apresenta
repetidos signos para um único objeto.
Figura 25 – Mapa e bandeira dos Estados Unidos
Créditos: hyotographics/Shutterstock.
Um dos objetos mais universais e populares do mundo é o amor.
Convencionou-se que o órgão humano que melhor significa esse sentimento é o
coração. Então, na maioria das datas comemorativas que envolvem amor se
utiliza essa dupla significação: um desenho, foto, balão, que significa o órgão
humano coração que, por sua vez, significa o sentimento amor. A Figura 26
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mostra um gesto que se popularizou a partir dos asiáticos e que pretende imitar,
com os dedos, a forma do coração. Esse tipo de comunicação depende
essencialmente das relações icônica, ou seja, do reconhecimento da
semelhança.
Figura 26 – Dedos em forma de coração
Créditos: Andre Boukreev/Shutterstock.
Analise comigo a Figura 27. Para que a imagem faça algum sentido, o
observador deverá reconhecer o aparelho de telefone fixo e saber como ele
costumava ser utilizado. Para as geraçõesmais novas, talvez não seja possível
fazer as relações icônicas que a foto demanda, simplesmente porque não
conhecem telefones fixos, de discar, muito menos o que significava “orelhão”.
Para essa geração, a foto não significará nada, porque para ela não é possível
fazer relações icônicas.
Figura 27 – Orelhão
Créditos: Master1305/Shutterstock.
29
Observe que a compreensão da foto na Figura 28 também depende muito
das relações icônicas. Ela será insignificante para quem nunca viu pesos, não
conhece a fita métrica e, principalmente, nunca associou perda de peso à calça
jeans. Mas quem produziu a foto utilizou esses artefatos propositalmente porque,
com eles, leva seu público-alvo a uma série de associações enfatizadas por
relações icônicas.
Figura 28 – Calça jeans, peso e fita métrica
Créditos: dream studio/Shutterstock.
Os ícones de aplicativos e funções que você vê no seu celular exploram
as relações icônicas ao seu máximo. É preciso que o usuário reconheça alguma
coisa neles e deduza sua função sem precisar recorrer aos manuais. O mesmo
ocorre com placas de trânsito, avisos de orientação e similares.
Mas, conforme já abordamos, na comunicação visual as relações
simbólicas predominam, porque emissor e receptor precisam “falar a mesma
língua”, ou seja, precisam utilizar os mesmos sinais, e isso ocorre porque há
convenções. Veja comigo a Figura 29. Você e eu entendemos que as setas
indicam dois sentidos, um para cima, outro para baixo, e que para cima é melhor
que para baixo. Essa mensagem só é possível porque existem convenções.
30
Figura 29 – Setas vermelho e verde
Créditos: fewerton/Shutterstock.
A Figura 30 reúne uma série de signos [substituem objetos], cuja principal
característica é a convenção, ou seja, sua principal relação com o observador é
simbólica, eles são aceitos como necessários, como lei.
Figura 30 – Símbolos religiosos
Créditos: Doidam 10/Shutterstock.
Todas as marcas ambicionam fortalecer suas relações simbólicas e entrar
para o mundo das leis, daquilo que é, porque é. Aquela marca famosa com a
maçã mordida não precisa mais que o observador saiba qual é a relação do seu
produto com a maçã. Ela é, porque é. Ninguém mais pensa em maçã quando vê
a marca, e sim em tecnologia e artefatos eletrônicos.
Hoje está no mercado um aplicativo de arquivo de notas que usa como
signo a cabeça de um elefante. Talvez para alguns usuários o elefante já tenha
entrado para a categoria de símbolo, mas, para mim, que não conheço muito do
assunto, ainda se trata de um elefante e eu sempre penso que é um aplicativo
desenvolvido na Índia, porque a relação que estabeleço com o signo é icônica,
e não simbólica.
31
Dica
Veja que interessante o exemplo da Figura 31. Os alunos que
desenvolveram o gráfico exploram as relações de maneira peculiar. Na linha do
ícone, as três representações gráfica se utilizam do ovo pela semelhança da
forma, da mesma maneira que abordamos em conteúdos anteriores. Já na linha
do índice, é preciso mais atenção. O que está sendo considerado “indício” é a
alusão à forma do ovo, seja nas letras da palavra egg, ou no uso do ovo para
confirmar uma ideia. Nos dois casos, o ovo não está lá propriamente, mas algo
dele fortalece o signo e, por isso, os alunos classificam como indicial. Agora veja
como apresentam o símbolo. Eles exploram o que o ovo é: sua capacidade de
gerar outra vida. Qual seria a relação disso com a convenção? O que está em
tela, para os alunos, é a “lei”. A lei segundo a qual um ovo é o que é. Ou seja, há
uma lei que determina que o ovo seja o início de uma vida, assim como há uma
convenção que aproxima ovos de chocolates aos coelhos, na Páscoa. Nos dois
casos, a relação é simbólica.
Figura 31 – Esquema ícone, índice símbolo
É possível conseguir bons resultados na comunicação gráfica com
relações indiciais. Recorde que indício tem a ver com alguma coisa que
acontece, ou aconteceu, mas não é testemunhado. Você, ou seu cliente, sabe
que ocorreu alguma coisa pelos indícios, que são traços ou pistas que levam a
uma conclusão. Saber explorar relações indiciais em seu trabalho pode ser de
grande valia.
32
A mãe, quando vê gotas de suor no bebê, recorre às relações indiciais,
porque precisa deduzir a partir do suor, outras coisas que estão acontecendo e
que ela não vê. Pode ser alguma infecção, ou excesso de calor no ambiente
considerando os níveis adequados. Na Figura 32, as gotas de suor estão ali para
induzir às mesmas relações. O observador deve concluir qual foi a “causa”
daquelas gotas, e para isso recorrerá às relações indiciais. Essa suposta “causa”
é que traz, para a mente do observador e consequentemente para a foto,
diversos produtos e serviços, de desodorante à academia, legitimando-os como
signos do objeto “vida saudável”.
Figura 32 – Mulher transpirando
Créditos: Gorodenkoff/Shutterstock.
É importante que você seja muito consciente da presença dos indícios no
seu trabalho. Devem ser visíveis somente os que agregam valor. A indústria do
jeans é uma das mais pródigas no uso das relações indiciais como valor
agregado. É preciso que o tecido tenha passado por experiências. Seja o
desgaste do tempo, a violência de um corte, a interferência do usuário, ou
qualquer outra ação cujo indício deve ser visível.
Não é um processo tão fácil quanto parece, e mais ainda para ser
apresentado em imagem gráfica. Recorde que o observador, ou usuário,
interage com o jeans por meio dos seus sentidos. No caso da imagem parada, a
informação “verdadeira”, ele recebe do olho. A modelo da Figura 33 veste um
jeans cuja barra indicia várias coisas, mas a mais importante é o crescimento. A
barra foi feita, desfeita, emendada, enfim, várias ações cujo propósito é dar maior
comprimento. Desdobra-se, disso, a compreensão de que a perna da modelo é
muito longa. Para que perceba no jeans um estilo, ou para que avalie pernas
longas como ideais, serão necessárias outras relações.
33
Figura 33 – Mulher com jeans
Créditos: Creative Lab/Shutterstock.
Dica
Na década de 1950, o jeans foi proibido em algumas escolas nos Estados
Unidos. Os alunos compraram litros de água sanitária e branquearam seus
jeans, para poder continuar usando. A experiência está registrada no site da
Levis e comprova que faz parte do jeans registrar, em tecido, a história, e a leitura
dessa história se dá pelos indícios (Disponível em:
<https://www.levi.com.br/informacoes/501-historias>. Acesso em: 22 maio
2024).
Comentei em conteúdos anteriores que certos artefatos adquirem seu
valor justamente porque têm indícios de ações difíceis, do esforço que se fez
para que aquele artefato pudesse existir. É o caso do acabamento à mão em
peças de couro, em joias, artefatos de madeira e outros. Portanto, qualquer
esforço ou tecnologia que possa agregar valor ao seu trabalho, deve deixar
indícios.
Isso quer dizer que a força do índice está naquilo que não aparece,
naquilo que o observador deve concluir. Fiz esse mesmo comentário em relação
à animação da TV Escola, mas alguns trabalhos fotográficos são primorosos
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nesse sentido, porque quem observa introduz a ação na imagem parada. Veja,
por exemplo, a Figura 34. Não há nada de tão horrível na fotografia de um urso
de pelúcia e um sapato de criança no chão. Mas a ausência da criança leva o
observador a uma conclusão trágica.
Figura 34 – Sapato de criança com ursinho de pelúcia
Créditos: Mama Belle and the kids/Shutterstock.
TROCANDO IDEIAS
Na prática, raramente um produto ou serviço é assimilado por meio de
uma única relação. É comum, e recomendável, que haja várias, e uma clara
hierarquia entre elas. Os sentidos devem saber por onde começar, inclusive
quando capturam informações de uma imagem parada.
Como exercício, considere a seguinte situação: Um clientesolicitou a um
design gráfico que criasse um postal em alusão ao falecimento de um pet, que
será distribuído como lembrança para as pessoas mais íntimas, que têm
relações afetivas com o animal. O resultado você vê na Figura 35. De acordo
com o ferramental que você aprendeu, é possível fazer a seguinte análise:
• Recursos estéticos: a foto do cão está centralizada, emoldurada, em
destaque em relação às outras peças. Quem produziu a foto teve o
cuidado de organizar a rosa e a vela de acordo com convenções estéticas:
a vela, em pé, a chama apontando para o alto, para onde se convenciona
que vão as almas, e a rosa branca na horizontal, caída e cortada do solo.
• Relações indiciais: a foto estabelece uma relação indicial à medida que,
com ela, o observador é levado ao cão vivo, algo que existiu em algum
momento, mas não está ali. Isso também se pode dizer da coleira, que é
indício da ação de passear com o cão, ainda que esteja em segundo
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plano. A vela e a rosa também estabelecem relações indiciais porque
aludem a uma cerimônia ou sentimento. Quem vê a foto, não vê a
cerimônia nem o sentimento, mas os conclui através dos indícios.
• Relações icônicas: se o observador não conhece o cão, ou não sabe para
que serve uma coleira, o signo fica comprometido.
• Relações simbólicas: é preciso que o observador reconheça as
convenções vinculadas ao uso da vela, da flor, e da cor branca, do
contrário o signo se enfraquecerá.
Figura 35 – Homenagem ao cão morto
Créditos: New Africa/Shutterstock.
Tenha em mente que é preciso uma atenção especial à sintaxe. As
relações e os atributos estéticos não podem ser isolados uns dos outros. Por
isso, em geral, uma relação contribui com a outra.
Encontre outras relações na foto e apresente para os seus colegas no
fórum.
NA PRÁTICA
Agora suponha que você foi contratado para produzir uma imagem para
uma campanha institucional alertando para os problemas do mau gerenciamento
do tempo, e com o apoio dos conteúdos, você chegou ao resultado apresentado
na Figura 36.
Assim, fala uma relação de todas as ferramentas utilizadas, desde os
elementos estéticos, passando pelas relações indiciais, icônicas e simbólicas.
Ao final, “conte” a história que os sentidos do seu cliente devem ler na sua
imagem.
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Créditos: AvokadoStudio/Shutterstock.
FINALIZANDO
Parabéns, você chegou ao fim do estudo de Semiótica aplicada ao
Design. Espero sinceramente que as ferramentas que apresentei sejam úteis
para que seu trabalho ganhe em potencial sígneo.
Fique atento: a Semiótica é uma Ciência com múltiplos interesses, alguns
deles ainda em processo de formação, como ocorre com sua aproximação ao
Design. Você encontrará diferentes abordagens e maneiras de tratar os
conceitos, e não deve se angustiar por isso. O importante é entender de que
maneira essas ferramentas podem agregar valor ao seu trabalho.
Saber analisar imagens tem seu valor, mas o mais importante é saber
como trazer essa experiência para a sua prática, seja ela gráfica, ou não. A
Semiótica, embora tenha grande desenvolvimento na Linguística e na
Comunicação, está em tudo porque nós, humanos, substituímos nossos
sentimentos e desejos por aquilo que mais se adequa e está mais disponível.
Então, um som significa, uma comida significa, uma roupa significa, uma cena
de cinema significa. Afinal, signo é o que substitui o objeto para alguém. Para
a significação, não há limites de aplicabilidade.
Boa sorte com seus estudos, e sucesso no trabalho! Até a próxima.
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REFERÊNCIAS
BRAIDA, F.; NOJIMA, V. L. Um Estudo da Dimensão Semântica do Signo “Ovo”
Aplicada ao Design Gráfico: Uma Prática em Sala de Aula. In: CONGRESSO
BRASILEIRO DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO EM DESIGN, 8, 2008,
São Paulo. Anais... Associação de Ensino e Pesquisa de Nível Superior de
Design do Brasil (AEND|Brasil), 2008.
NASCIMENTO, S. F. El discurso de la arquitectura en A Separation, de Asghar
Farhadi. Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista, v. 5, n. 1, jun.
2017.