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92 Unidade II Unidade II 5 GÓRGIAS, MÊNON, PROTÁGORAS E CRÁTILO Agora que você já leu os trechos mais famosos da obra de Platão, vamos examinar outros diálogos e seus conceitos principais. A organização desses diálogos segue certa ordem cronológica. Como esta deve ser uma das suas primeiras leituras de Platão, escolhemos alguns diálogos para entendermos também a ordem das percepções originais com as quais ele organizou sua filosofia. 5.1 Górgias Figura 10 Disponível em: https://bit.ly/3G6vHDu. Acesso em: 10 nov. 2022. O Górgias é um diálogo que retrata um confronto hostil entre Sócrates e o famoso sofista Górgias. É uma disputa entre a filosofia e a retórica. Sócrates pede para Górgias definir o que é a retórica, de maneira que ajude a distinguir o discurso retórico do discurso filosófico. O discurso retórico produz cantos de louvor e de culpa. O discurso filosófico examina as questões da dialética e da discussão (Górg., 448d10) para alcançar uma definição sintética, para entender o objeto de pesquisa. O filósofo não se incomoda com a refutação, quando isso leva a uma melhor compreensão e à sabedoria. Por isso, o filósofo não se esforça para vencer uma discussão (Górg., 457e-458a). 93 FILOSOFIA ANTIGA Sócrates faz Górgias se afastar do seu ponto de vista, de que a retórica constrói discursos e sua eficácia está contida apenas na atividade discursiva, diferentemente, portanto, das artes manuais. Górgias afirma que a retórica é a fonte da liberdade para o próprio ser humano e, ao mesmo tempo, é para cada pessoa sua fonte de poder sobre os outros na própria cidade (Górg., 452d6-8). Esse tipo de liberdade permite o poder produzido pela capacidade de persuadir os outros a aceitar uma proposição. A retórica é um produtor de persuasão (Górg., 453a2-3). Contudo, persuasão sobre o quê? Górgias afirma que é sobre as questões relativas à justiça (454b7). Sócrates pondera que há dois tipos de persuasão: um que promove as crenças e outro que produz conhecimento. As crenças são produzidas pela retórica. Assim como a poesia, Sócrates acredita que o objetivo da retórica é satisfazer e agradar o ouvinte. É uma espécie de lisonja ao público. A diferença entre a retórica e a poesia (pense aqui na música contemporânea, a forma mais cotidiana de utilização da poesia) é seu ritmo e sua métrica. A poesia falada sem ritmo é pura retórica, é apenas outra espécie de discurso público (Górg., 502a6-c12). Para Sócrates, o orador retórico cria crenças na alma de seus ouvintes (Górg., 455a3-4). Entretanto, Górgias contrapõe dizendo que até mesmo a medicina precisa convencer os pacientes da cura (Górg., 456b). A retórica é uma arte abrangente. Mas Górgias levanta um argumento que será percebido como o ponto fraco de seu raciocínio. Ele diz que a retórica não deve ser usada contra qualquer um, assim como a habilidade de lutar e bater nas pessoas. Embora o retórico ensine aos outros como usar essa habilidade com justiça, nada garante que o aluno não vá usar seus conhecimentos para abusar dos outros. O retórico sabe o que é a justiça, a injustiça e os valores morais, e deve ensinar ao aluno que os desconhece (Górg., 460a). Então, pela própria concepção de Sócrates, o retórico é também um filósofo. Mas, como Górgias não é um filósofo, não conhece de verdade os valores morais. Sua arte é apenas uma exibição para os ignorantes, de maneira que eles acreditem naquilo que ele fala (Górg., 459d-e). Todavia, como Górgias não quer admitir isso, concorda com Sócrates que todo retórico sabe o que é a justiça, e deve ser um homem justo e ensinar a diferença entre justiça e injustiça (Górg., 460b-c). Finalmente Górgias é pego na contradição, pois tinha afirmado que um aluno que aprendeu a arte da retórica pode usá-la para promover a injustiça, mas depois afirma que um mestre da arte retórica não pode cometer injustiças. Tudo isso é muito ofensivo aos ouvidos de Polo, aluno de Górgias, que assiste à discussão (Górg., 461b3). Sócrates lança uma nova dúvida, que sugere que o retórico não detém nenhum saber, nem transmite conhecimento. A retórica assim não seria uma arte (techne), mas um mero talento (empeiria). Sócrates afirma ainda que o objetivo da retórica é produzir o efeito de satisfação nos ouvintes. Para tentar explicar seu ponto de vista, ele elabora um modelo que distingue entre o cuidado do corpo e o cuidado da alma. A medicina e a ginástica se preocupam com o corpo; a culinária e os cosméticos pretendem se preocupar, mas de fato não o fazem. A política é a arte que cuida da alma. Tanto a justiça como a legislação são derivados da justiça. Contudo, a imitação de justiça é a retórica, e a imitação das leis é o sofisma. O remédio está para a culinária como a justiça está para a retórica, da mesma forma que a ginástica está para os cosméticos e a legislação para os sofismas. As formas verdadeiras do cuidar são as artes (technai) que visam ao bem. As formas falsas do cuidar visam ao prazer (Górg., 464b-465d). Sócrates diz que o sofismo e a retórica são coisas diferentes, mas, como são relacionados, as pessoas confundem uma coisa com a outra (Górg., 465c). 94 Unidade II Sócrates passa a explicar para Polo a relação entre poder e justiça. Para Polo, a pessoa que tem poder e o exerce com sucesso é feliz. Para Sócrates, uma pessoa é feliz apenas se ela é moralmente boa. Uma pessoa injusta ou má se sente miserável, mesmo quando escapa da punição de seus atos. Polo entende que essa posição é absurda (Górg., 473a1) e desafia Sócrates a fazer uma pesquisa entre todos os presentes para confirmar sua opinião. Todavia Sócrates insiste que “aquele que é injusto é sempre mais miserável do que aquele que sofre, e aquele que evita pagar o que é devido é sempre mais miserável do que aquele que paga” (Górg., 479e4-6). Se isso for verdade, para que serve a retórica? E, se os seus argumentos são válidos, por que existe a retórica? Sócrates conclui que, para alguém que evita fazer o mal a si mesmo e aos outros, a retórica é inútil. Polo finalmente desiste de discutir com Sócrates. Quem entra na discussão é Cálicles, que se apresenta como pessoa pragmática. Ele faz uma distinção entre a natureza e a convenção, e diz que acredita que a própria natureza revela o que é justo para o homem melhor e mais capaz, que é poder ter uma propriedade maior do que o homem menos capaz. A natureza demonstra isso de muitas formas, tanto entre os animais como quando comparamos as cidades e as raças dos homens. A lei da natureza é que o superior governa o inferior (Górg., 483c8-d6). Todo debate sobre a justiça nada mais é do que uma maneira pela qual os fracos tentam escravizar o forte. Por isso que a arte da retórica consiste em capacitar os que são fortes por natureza para dominar os fracos por natureza. Para Cálicles, a filosofia é uma ocupação infantil que, se for exercida na vida adulta, interfere com a posição masculina do poder e promove a ignorância de como funciona o mundo político real. Todo filósofo é afeminado e indefeso. Dá como exemplo o próprio Sócrates. E ainda afirma que a filosofia vai acabar condenando Sócrates no dia em que sofrer um processo de acusação (Górg., 486a-c). Para Cálicles, ter poder é ser capaz de realizar todos os seus desejos. O poder proporciona a liberdade, e a liberdade permite a licença de fazer o que se quer (Górg., 492a-c). Essa capacidade de fazer o que se quer é a realização do prazer, e a retórica é um meio para esse fim. A disputa entre retórica e filosofia demonstra que a primeira é utilizada para construir uma visão de mundo. Ela disputa com a filosofia a compreensão da natureza, da existência dos valores morais, da conexão entre a felicidade e a virtude. Também disputa a natureza dos sentidos e os limites da razão, o valor da busca racional de um propósito objetivo para a vida humana, assim como se há de fato qualquer diferença entre prazeres verdadeiros e falsos. Para Sócrates, a questão da filosofia diz respeito à forma como se deveviver a vida (Górg., 500c). A busca do poder e da glória é superior à vida com a filosofia? Observação Sócrates está tentando afirmar que, quem se utiliza da retórica ou da poesia, não fala por si, não exprime seus pensamentos, nem transmite conhecimento para o público, apenas incita suas emoções (Górg., 502a6-c12). 95 FILOSOFIA ANTIGA 5.1.1 Convencionalismo (Górg., 484) Em Górgias, mas também na República, Platão relata que os sofistas defendiam que a convenção das leis servia ao propósito de impedir que os mais fortes se aproveitassem do direito natural que a força lhes confere. Para eles, está de acordo com a natureza que o mais forte domine o mais fraco. Isso aconteceria mesmo quando um homem de natureza idônea rompesse os limites da convenção e deixasse de ser servo, tornando-se senhor (Górg., 484a; ABBAGNANO, 2007, p. 207). 5.1.2 Retórica (Górg., 452) Os sofistas inventaram a retórica. Górgias foi um sofista famoso e um de seus inventores. Esse diálogo de Platão descreve como operava a retórica sofista. Em princípio, é falar bem e de forma convincente, sem oferecer provas de que o que está sendo dito tem compromisso com a verdade. Essa é a forma da retórica. Platão e Sócrates combatiam essa forma de falar, pois sabiam que servia apenas para fazer as pessoas decidirem com as emoções, não com a razão. O objetivo da retórica é “persuadir por meio de discursos os juízes nos tribunais, os conselheiros no conselho, os membros da assembleia na assembleia e em qualquer outra reunião pública” (Górg., 452e). O orador retórico consegue “falar contra todos e sobre qualquer assunto, de tal modo que, para a maioria das pessoas, consegue ser mais persuasivo que qualquer outro com respeito ao que quiser” (Górg., 457a). Platão sugeriu o desenvolvimento de uma retórica pedagógica e educativa, que seria “a arte de guiar a alma por meio de raciocínios, não somente nos tribunais e nas assembleias populares, mas também nas conversações particulares” (Fedro, 261a). Para Aristóteles, a retórica era o inverso da dialética (Ret., I, 1, 1354a1). Segundo ele, a retórica é “a faculdade de considerar, em qualquer caso, os meios de persuasão disponíveis” (Ret., I, 2, 1355b26). A retórica considera todos os meios de persuasão que se referem a todos os objetos possíveis (Ret., I, 2, 1355b26; ABBAGNANO, 2007, p. 856). 5.1.3 Vontade (Górg., 466) A distinção entre a vontade como princípio racional da ação ou simplesmente como princípio da ação em geral é feita por Platão, para quem os tiranos não fazem o que querem, embora façam o que lhes agrada ou parece, visto que fazer o que se quer significa fazer o que se mostra bom ou útil, e isso é agir racionalmente (Górg., 466). Aristóteles definiu a vontade como “apetição que se move de acordo com o que é racional” (De An., III, 10, 433a23); para ele, a vontade equivale à escolha, “a apetição voluntária das coisas que dependem de nós” (Ét. Nic., III, 3, 1113a10; ABBAGNANO, 2007, p. 1007). 96 Unidade II 5.1.4 Expiação (Górg., 478) Platão acreditava que a expiação seria a maneira de curar as doenças da alma. Assim como a economia liberta da pobreza e a medicina liberta da doença, a justiça liberta da intemperança e da injustiça (Górg., 478a; ABBAGNANO, 2007, p. 415). 5.1.5 Pena (Górg., 480) O conceito de pena como correção do réu tem sua defesa por Platão em Górgias. Para ele, é melhor sofrer a injustiça que cometê-la. Para quem cometeu injustiça, o melhor a fazer é se submeter à pena: “Se uma culpa é cometida, é preciso ir o mais depressa possível aonde a pena possa ser cumprida, ou seja, ao juiz, que é como um médico, para que a doença da injustiça não se torne crônica e não torne a alma corrompida e incurável” (Górg., 480a). Segundo esse diálogo, “quem cumpre a pena sofre um bem”, no sentido de que, “se for punido com justiça, ficará melhor” e “se libertará do mal” (Górg., 480a). A pena é uma purificação que o próprio culpado deve querer. Essa purificação é assim percebida por quem vê na pena o restabelecimento da justiça. Para Aristóteles, a pena é a função de restabelecer a ordem da justiça em sua devida proporção. Ele percebeu que a maioria dos seres humanos teve a sorte de receber da natureza uma índole liberal, mas evita os atos vergonhosos por medo das penas: “A maioria obedece mais à necessidade que à razão, mais às penas que à honra” (Ét. Nic., X, 9, 1180a4; cf. 1179b11; ABBAGNANO, 2007, p. 749). 5.1.6 Dicotomia (Górg., 500) Em Górgias, Platão estabelece que a dicotomia é a divisão em duas partes de acordo com o método dialético platônico (Górg., 500d; ABBAGNANO, 2007, p. 275). 5.1.7 Arracional (Górg., 501a; Banq., 202a; Teet., 205e; Sof., 238c) Hoje em dia não fazemos distinção entre irracional e arracional. Platão usa esse vocábulo para significar o que é desprovido de razão ou aquilo que não se pode explicar racionalmente (Górg., 501). Aristóteles usava esse termo com o mesmo significado (ABBAGNANO, 2007, p. 78). 5.1.8 Mundo (Górg., 508) Para Platão, o mundo era o cosmo, a ordem total (Górg., 508a). Aristóteles fez distinção entre o todo, cujas partes podem ser dispostas de maneiras diferentes, e a totalidade, cujas partes têm posições fixas (Met., V, 26, 1024a1; ABBAGNANO, 2007, p. 687). 5.1.9 Cosmo (Górg., 508a) O cosmo é o mundo enquanto ordem (Górg., 508a; Met., I, 3, 984b16). Os pitagóricos foram os primeiros a chamar o mundo de cosmo, usando o termo em lugar de “mundo”, e sua concepção constitui uma das interpretações fundamentais da noção de mundo (ABBAGNANO, 2007, p. 215). 97 FILOSOFIA ANTIGA 5.1.10 Mito (Górg., 523a) Platão e Aristóteles consideravam mito uma expressão deformada da atividade intelectual. Pode-se atribuir ao mito apenas a verossimilhança, porque a verdade é a expressão genuína do intelecto (Górg., 523a). Contudo, Platão entendia que a verossimilhança em certos assuntos é a única validade a que o discurso humano pode aspirar (Tim., 29d) e, em outros, expressa o que de melhor e mais verdadeiro se pode encontrar (Górg., 527a). Platão também percebeu que o mito é a forma mais rápida da persuasão. A narrativa do mito não consegue ser demonstrada e às vezes nem mesmo compreendida, mas o seu significado moral ou religioso sempre é claro. Assim, o mito ensina sobre a conduta do homem em relação aos outros homens ou em relação à divindade. Platão escreve: Talvez estas coisas pareçam com mulheres velhas e as considerareis com desprezo. E não seria descabido desprezá-las se, com a investigação, pudéssemos encontrar outras coisas melhores e mais verdadeiras. Mas vós também, Polo e Górgias, que sois os gregos mais sábios de nossos dias, não conseguis demonstrar que convém viver outra vida que não esta (Górg., 527a-b; ABBAGNANO, 2007, p. 673). 5.2 Mênon Figura 11 Disponível em: https://bit.ly/3hDMxj6. Acesso em: 10 nov. 2022. Nesse diálogo Platão tenta esclarecer qual é a definição de virtude (arete). Arete significa virtude em geral, e não uma virtude particular, como a justiça ou a temperança. O diálogo de Sócrates com Mênon deixa este confuso. Como se diz em filosofia, usando novamente um termo grego, Mênon entra em aporia. Sócrates tenta esclarecer Mênon introduzindo ideias como a imortalidade da alma e a teoria do conhecimento como lembrança, a anamnese. Sócrates demonstra como o aprendizado funciona mantendo um diálogo com um dos escravos de Mênon, pedindo a ele que solucione um problema de geometria. Platão estabelece uma distinção entre conhecimento e crença. 98 Unidade II 5.2.1 Essência (Mên., 79b) A maneira de entender essência em filosofia é fazendo a pergunta quem ou o que é essa coisa. Por exemplo, quando perguntamos “Quem é João?”, podemos responder que João é um homem, que João é inteligente e muitas qualidades que percebemos em João. Se perguntamos “O que é a água?”, também conseguimos encontrar muitos adjetivos e/ou substantivos para explicar o que é a água. A essência de alguém ou de alguma coisa é qualquer resposta quese possa dar às perguntas “Quem?” ou “O quê?”. Isso equivale a explicar a substância de alguma coisa. Entretanto, quando queremos uma explicação mais precisa, temos de dizer que João é o filho mais velho da Maria e do Antônio da Silva, mora na rua tal, tem 20 anos de idade, sabe jogar futebol e estuda. A mesma coisa para a água, cuja melhor explicação é dizer que se trata de uma substância composta de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Nenhuma elucidação é mais verdadeira nem mais sintética do que essa. Por isso, em filosofia existe a ideia de essência necessária, que é a melhor explicação para quem é alguém ou o que é alguma coisa. Platão foi o primeiro a escrever sobre a essência no Mênon: Enquanto eu te pedia que me definisses a virtude inteira, tu evitas dizer-me o que ela é e afirmas que toda ação é virtude, se realizada com uma parte de virtude, como se tu já houvesses dito o que é a virtude na sua inteireza e eu devesse reconhecê-la mesmo depois de a reduzires a cacos (Mên., 79b). Esse trecho difícil demonstra que Sócrates, ao perguntar a Mênon o que é a virtude em sua inteireza, estava pedindo que ele dissesse qual é a essência necessária ou o que a virtude não pode não ser em qualquer circunstância. Quando pensamos a filosofia apenas com o uso comum das palavras, muitas vezes tendemos a discordar de seu significado. Essa confusão já existia entre os gregos, e por isso Aristóteles tentou qualificar melhor o termo substância. Para ele: Quem indica a essência ora indica a substância, ora uma qualidade, ora uma de outras categorias. Quando, referindo-se a um homem, se diz que ele é um homem ou um animal, entende-se sua essência como substância. Mas quando, referindo-se à cor branca, diz-se que é branca ou é uma cor, entende-se a essência como qualidade. Igualmente, quando se faz referência à grandeza de um côvado, afirmando que ela é a grandeza de um côvado, entende-se que sua essência é quantidade. O mesmo se diga nos outros casos (Tóp., I, 9, 103b27). 99 FILOSOFIA ANTIGA Aristóteles faz diferença entre a essência substancial e a simples essência: “O enunciado sempre se refere a alguma coisa, assim como a afirmação, e é sempre verdadeiro ou falso; mas o intelecto não é assim, sendo verdadeiro quando enuncia a essência segundo a essência substancial, e não verdadeiro quando a enuncia relativamente a alguma coisa” (De An., III, 6, 430b26). Com isso, ele não põe no mesmo plano todas as respostas que podem ser dadas à pergunta “O quê?”. Ao responder à pergunta “O que és?”, se João responde “jogador de futebol”, sua resposta não exprime realmente o que ele é por si mesmo, sempre e necessariamente, ou seja, na sua substância (ABBAGNANO, 2007, p. 362). 5.2.2 Anamnese (Mên., 80e-81) O mito da anamnese é usado por Platão em Mênon para tentar explicar o problema do aprendizado, também chamado de paradoxo do conhecimento. Esse problema é o seguinte: é possível perguntar para alguém aquilo que a pessoa desconhece? Platão acredita que sim, pois é isso que acontece quando ensinamos: mostramos para quem aprende quais as perguntas corretas que devemos fazer sobre alguma coisa, de forma que o aprendiz consiga elaborar as respostas corretas. Dessa forma, o aprendiz passa a entender aquilo que desconhecia anteriormente. Interessante é que Platão fundamenta a resposta de Sócrates através do mito da anamnese. Ele sugere que a alma é imortal e reencarna repetidamente. O conhecimento está inscrito na alma desde a eternidade. Contudo, cada vez que a alma reencarna, seu conhecimento é esquecido no trauma do nascimento. O que se aprende seria, portanto, a recuperação da lembrança do que se esqueceu. Primeiro se percebem as lembranças como crença, e a partir da compreensão isso se torna finalmente conhecimento: Sendo toda a natureza congênita e tendo a alma apreendido tudo, nada impede que quem se recorde de uma só coisa — que é o que se chama aprender — encontre em si todo o resto, se tiver coragem e não se cansar na busca, já que buscar e aprender não são mais que reminiscência (Mên., 80e-81e). Por esse motivo é que Sócrates (e Platão) não se entendia como professor, mas como parteira (maiêutica), ajudando o nascimento do conhecimento, que já estava no aluno. Hoje em dia usamos a palavra anamnese para descrever o método de fazer as perguntas certas, tanto em medicina como em pedagogia. (ABBAGNANO, 2007, p. 59). 5.2.3 Aprendizado (Mên., 81d) A teoria de Platão do aprendizado é a anamnese. O aprendizado, segundo Platão, acontece por associação entre as coisas e suas explicações. A alma pode, após haver captado uma coisa, captar também uma outra coisa que está vinculada à primeira (ABBAGNANO, 2007, p. 75). 100 Unidade II 5.2.4 Ciência (Mên., 98a) Nos textos de Platão, ciência significa o oposto de opinião. A garantia da ciência precisa ser feita por demonstração, mas também pode ser apresentada pela sua possibilidade ou porque valida o conhecimento. É preciso organizar um sistema no qual todas as afirmações sejam necessárias, nenhuma delas pode ser omitida ou mudada no momento da comprovação do conhecimento. Platão escreveu que as opiniões “desertam da alma humana, de modo que não terão grande valor enquanto alguém não conseguir atá-las com um raciocínio causal. [...] uma vez atadas, tornam-se ciência e permanecem fixas. Eis porque a ciência é mais válida do que a opinião legítima e difere desta pela seus nexos” (Mên., 98a; ABBAGNANO, 2007, p. 136). 5.2.5 Conceito (Mên., 86a-b; Féd., 76) A noção de conceito remete à sua natureza e função. O problema da natureza do conceito pode ter como solução a concepção do conceito como essência. O conceito é aquilo que se subtrai à diversidade e às opiniões, porque se refere às características que são constitutivas do próprio objeto, que não são alteradas pela mudança de perspectiva. Platão considerava ideias como o belo, o bem, o justo e a virtude como coisas reais, que continham substância. No Mênon ele se refere a elas como realidades “em si mesmas” e como são “em nós”, isto é, como conceito ou “a verdade dos entes” (Mên., 86a-b).Para ele o conceito era a essência necessária das coisas, motivo pelo qual elas não podem ser diferentes daquilo que são. Aristóteles atribui a Sócrates ter descoberto “o raciocínio indutivo e a definição do universal, duas coisas que se referem ao princípio da ciência” (Met., XIII, 4,1078b). Sócrates foi o primeiro a demonstrar como o raciocínio indutivo leva à definição do conceito, exprimindo a essência ou a natureza de uma coisa, o que a coisa verdadeiramente é, em todo lugar e todo tempo, portanto universal. Aristóteles articula a ideia de conceito de uma maneira mais complexa que Platão. O conceito para ele é o logos, que define a substância ou a essência necessária de uma coisa (De An., II, 1, 412b16). Por isso, ele é independente da coisa em si e persiste mesmo que a coisa que ele conceitua surja ou desapareça (Met., VII, 15,1039b23). Portanto, para Aristóteles, o conceito é idêntico à substância, que é a estrutura necessária do ser. Sendo o conceito essência, a qualidade de universal aparece como derivada: “o que é inerente ao sujeito em qualquer caso e por si, na medida em que um sujeito é o que é” (An. Post., I, 4, 73b25 ss.). Para Aristóteles, a universalidade é a substancialidade ou necessidade do conceito (ABBAGNANO, 2007, p. 164). 101 FILOSOFIA ANTIGA 5.2.6 Ciência (Mên., 98a) Platão descreveu a ciência como um sistema que comprova a validade, demonstrando suas afirmações. Esse sistema tem de ser construído de maneira que cada afirmação seja necessária e nada nela possa ser retirado, anexado ou mudado. Para Platão, as opiniões “desertam da alma humana, de modo que não terão grande valor enquanto alguém não conseguir atá-las com um raciocínio causal”. Entretanto, “uma vez atadas, elas se tornam uma ciência e permanecem fixas. Eis por que a ciência é mais válida do que a opinião legítima e difere desta pela seus nexos”(Mên., 98a). Apesar de mais sofisticada, a ideia de ciência de Aristóteles obedece ao mesmo conceito. Para ele, a ciência é um conhecimento demonstrativo, e com isso ele entende o conhecimento “da causa de um objeto, isto é, conhece-se por que o objeto não pode ser diferente do que é” (An. Pr., I, 2, 71b9 ss.). Portanto, a ciência se distingue da opinião e não coincide com ela; se coincidisse, “estaríamos convencidos de que um mesmo objeto pode comportar-se diferentemente de como se comporta e estaríamos, ao mesmo tempo, convencidos de que não pode comportar-se diferentemente” (An. Post., I, 33, 89a38; ABBAGNANO, 2007, p. 136). Lembrete Nos textos de Platão, ciência significa o oposto de opinião. 5.3 Protágoras Figura 12 Disponível em: https://bit.ly/3G7V0oF. Acesso em: 10 nov. 2022. Sócrates é informado de que Protágoras, o homem vivo mais sábio, está na cidade. Ele vai com amigos à casa de Cálias para encontrá-lo. Sócrates avisa seus amigos que os sofistas são perigosos. As palavras dos sofistas vão direto para a alma e podem corromper uma pessoa imediatamente. 102 Unidade II Sócrates chega à casa de Cálias com Hipócrates e avisa que quer visitar Protágoras. Protágoras não nega ser um sofista, e afirma que pratica uma arte antiga utilizada também por Homero e Hesíodo. Ele diz que tem idade suficiente agora para ser pai de alguns dos presentes, e gostaria de falar para todas as pessoas na casa. Sócrates pergunta a Protágoras em que Hipócrates vai melhorar aprendendo com ele. Protágoras começa seu discurso com a afirmação de que um bom sofista pode transformar seus estudantes em bons cidadãos. Sócrates comenta que isso é bom, mas que ele pessoalmente não acredita que se possa ensinar a virtude. Diz ainda que o pensamento técnico (techne) pode ser transmitido aos alunos pelos professores, mas não a sabedoria. Para ilustrar seu ponto de vista, fornece muitos exemplos da vida real. Protágoras responde que a virtude pode ser ensinada, entretanto é melhor fazê-lo contando uma história do que com argumentos. Narra um mito sobre as origens dos seres vivos. Diz que Epimeteu criou os animais e deu-lhes os atributos. Na vez do homem, não havia mais nenhuma qualidade. Pediu ajuda a seu irmão Prometeu, que roubou o fogo dos deuses e ensinou aos homens como utilizá-lo. Prometeu roubou também a sabedoria da deusa Atena para os homens. Todavia o homem não conhecia a sociedade nem a política. Quando a raça humana entrou em extinção, Zeus enviou o mensageiro dos deuses Hermes para dotá-los de vergonha e justiça. Para Protágoras, isso bastava para responder a Sócrates, porque as pessoas pensam que a sabedoria sobre arquitetura ou medicina é para poucos, enquanto a sabedoria sobre justiça e política é mais compreensível. Protágoras apresenta então duas provas de que as pessoas concordam com ele. Primeiro, os cidadãos não repreendem os feios, os anões e os fracos, mas compadecem-se deles, porque não podem deixar de ser como são. Por outro lado, punem os injustos e acreditam que os indivíduos são responsáveis por não saberem algo que possa ser ensinado. Segundo eles, ensinam às pessoas que são injustas e não respeitam a religião, na esperança de incutir a bondade nelas. Os pais ensinam seus filhos desde a primeira infância, e os professores continuam a tarefa. Protágoras observa que nada disso é surpreendente, mas que o seria se assim não fosse. Ele termina abordando a questão de Sócrates: se a virtude pode ser ensinada, por que os filhos de homens virtuosos muitas vezes carecem de virtude? Protágoras sugere uma hipótese: imaginem uma cidade onde tocar flauta é uma atividade social muito importante e disso dependa sua sobrevivência. Todos os pais estariam ansiosos para que seus filhos tocassem flauta muito bem. Contudo, nem todos conseguiriam. Alguns teriam uma maior inclinação natural do que outros e, muitas vezes, o filho de um bom flautista seria mau flautista e vice-versa. Entretanto, todos eles seriam melhores flautistas do que uma pessoa comum que nunca aprendeu a tocar flauta. O mesmo valeria para a virtude. Ela é tão importante que todos aprendem até certo ponto. E isso faz com que pareça que a virtude é parte da natureza humana, mas de fato não é. Sócrates admite que Protágoras deu uma resposta excelente. Só há um pequeno detalhe, que ele tem certeza que o sofista vai esclarecer facilmente. Ele pergunta a Protágoras se os atributos 103 FILOSOFIA ANTIGA que formam a virtude, como a bravura, a bondade e a sabedoria, são uma ou várias coisas, como as partes de um rosto, que formam um todo mantendo sua substância individual. Protágoras responde que são várias coisas; evita o diálogo e as perguntas de Sócrates com um discurso retórico que não dá respostas evidentes, mas que entusiasma a plateia. Sócrates reclama que Protágoras parece um gongo falando, que não para de ressoar quando você faz uma pergunta, e que não vai parar até você colocar uma mão sobre ele. É uma atitude típica de Sócrates quando se opõe a um sofista, o qual usa um discurso eloquente para esconder os argumentos que não suportam um exame lógico. Ele prefere usar o seu sistema de perguntas e respostas para construir uma conclusão lógica. Ele não gosta de discursos longos como o de Protágoras porque são difíceis de acompanhar em seu raciocínio e, portanto, são logo esquecidos. Protágoras não gosta de ser confrontado com perguntas que parecem distrair sua retórica. Sócrates resolve ir embora, mas a plateia intervém e os dois homens concordam em adaptar suas formas de pensar para que a discussão continue. A discussão volta-se sobre a poesia de Pítaco e Simônides. Na interpretação de Sócrates, Pítaco afirma que é difícil ser um homem bom, mas que isso eventualmente é possível. Simônides, por outro lado, afirma que é impossível um homem viver sem nunca ter sido mau em algum momento em que ser bom seria difícil. Simônides elogia aqueles que pelo menos não gostam de fazer o mal. Para Sócrates, como Simônides era um homem sábio, devia saber que ninguém faz o mal de bom grado. Sócrates ainda argumenta que a autoridade de Simônides não contradiz a sua compreensão da virtude, mesmo quando alguém voluntariamente procede mal. Sócrates volta à questão inicial de saber se a virtude é uma ou muitas coisas, alegando que toda virtude está incluída no conhecimento. Ele argumenta que a razão pela qual as pessoas agem de forma prejudicial, para com os outros ou contra si mesmas, é porque elas apenas percebem as vantagens de curto prazo, ignorando que as perdas a longo prazo podem superá-las. Ele sugere que, se os homens aprendessem a estimar corretamente essas coisas com o auxílio de um conhecimento mais exato, não agiriam de maneira prejudicial. O mesmo vale para a coragem. Um nadador corajoso é aquele que sabe nadar melhor e, portanto, sua virtude é essencialmente um conhecimento, que pode ser considerado uma mesma coisa, como partes de um único objeto em vez de partes de um rosto. Sócrates aponta para o fato de que, se toda virtude é conhecimento, ela pode ser ensinada. Ele conclui que, para um observador, ele e Protágoras pareceriam loucos, que passaram um tempo grande falando apenas para conseguirem dizer um ao outro o que pensavam sobre a virtude. Protágoras reconhece que Sócrates é um adversário notável numa discussão e, por ser muito mais jovem do que ele, prevê que Sócrates poderia se tornar um dos homens mais sábios. Sócrates dá uma desculpa qualquer e vai embora. 104 Unidade II Observação Protágoras foi um sofista da escola de Mileto, famoso por sua frase: ”O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”. 5.3.1 Técnica (Prot., 321c) O sentido geral de técnica é o mesmo sentido geral de arte. Trata-se de um conjunto de regras que servem para organizar uma determinada atividade. Nesse sentido, técnica, arte e ciência são a mesma coisa. Todas são capazes de organizar processos ouoperações que produzam um efeito específico nas atividades humanas. A técnica diz respeito ao comportamento dos seres humanos em relação à natureza e visa à produção de bens. Platão pensava que a técnica sempre acompanhou a vida do homem sobre a Terra (Prot., 321c). Para ele, o ser humano era o animal mais indefeso da criação. Portanto, para que qualquer grupo humano sobreviva, é indispensável certo grau de desenvolvimento da técnica, e a sobrevivência e o bem-estar de grupos humanos maiores são condicionados pelo desenvolvimento dos meios técnicos (ABBAGNANO, 2007, p. 939) 5.3.2 Respeito (Prot., 322e) Demócrito foi o primeiro a pensar o respeito como princípio da ética: Não deves ter para com os outros homens mais respeito que para contigo mesmo, nem agir mal quando ninguém o saiba mais do que quando todos o saibam; deves ter para contigo mesmo o máximo respeito e impor à tua alma a seguinte lei: não fazer o que não deve ser feito (DIELS, 1903, Fr. 264). No discurso de Protágoras, Platão narra a origem da sociedade humana: temendo que nossa estirpe se extinguisse, Zeus ordenou que Hermes trouxesse o respeito recíproco e a justiça para o meio dos homens, a fim de que esses fossem princípios ordenadores das cidades, criando entre os cidadãos vínculos de benevolência (Prot., 322e). O respeito recíproco e a justiça são entendidos por Platão como os dois princípios fundamentais da “arte política”, que é a técnica da vida em sociedade. Aristóteles, acreditava que o respeito era uma emoção e não uma virtude (Ét. Nic., II, 7, 1108a32), e o considerava o contrário do temor (Ét. Nic., 10, 9, 1179b11). Kant também pensou o respeito como uma emoção, mas uma emoção que era o único sentimento moral (ABBAGNANO, 2007, p. 854). 105 FILOSOFIA ANTIGA 5.4 Crátilo Figura 13 Disponível em: https://bit.ly/3tnomYQ. Acesso em: 10 nov. 2022. Nesse diálogo, Sócrates é convidado por Crátilo e Hermógenes a explicar se os nomes são convencionais ou naturais. Um idioma é um sistema de sinais arbitrários ou as palavras têm uma relação intrínseca com as coisas que significam? Ao discutir como um nome se relaciona com uma coisa, Sócrates compara a criação original de uma palavra com o trabalho de um artista. Um artista usa a cor para expressar a essência de uma coisa numa pintura. Da mesma forma, o criador de palavras usa letras contendo certos sons para expressar a essência do assunto de uma palavra. Há uma letra que representa melhor as coisas suaves, outra para coisas líquidas, e assim por diante. Ele comenta que a melhor maneira possível de falar consiste em usar a maioria dos nomes que significam as coisas que nomeiam, enquanto a pior maneira de falar é usar o tipo oposto de nomes. Hermógenes contrapõe essa hipótese dizendo que os nomes surgiram devido ao costume e à convenção. Eles não expressam a essência das coisas, de tal forma que podem se adaptar a outras coisas, dependendo das pessoas ou sociedades que as utilizam. Por mais da metade do diálogo, Sócrates faz suposições a respeito da questão de Hermógenes sobre a origem dos nomes e das palavras. Essas palavras incluem os nomes dos deuses olímpicos e muitas delas descrevem conceitos abstratos. Por exemplo, o termo grego ῥεῦμα pode referir-se ao fluxo de qualquer meio e não se restringe ao fluxo de água ou dos líquidos. Muitas das palavras que Sócrates usa como modelo podem ter vindo de uma ideia originalmente ligada ao nome, mas que foi modificada ao longo do tempo. Aquelas para as quais ele não consegue encontrar uma conexão com o grego, fazem-no assumir que são de origem estrangeira. Ou então que foram tão desvirtuadas que perderam qualquer semelhança com a palavra original. Platão escreve: “os nomes foram tão retorcidos de todas as formas, que não me surpreenderia se o antigo idioma comparado com o que está em uso pareça ser uma língua bárbara” (Crát., 421d). 106 Unidade II A teoria final das relações entre nome e objetos é proposta por Crátilo, que acredita que os nomes têm origens divinas, tornando-os necessariamente corretos. Sócrates repreende essa ideia lembrando a Crátilo da imperfeição de certos nomes na percepção das coisas que significam. A partir daí, Sócrates rejeita o estudo da linguagem, acreditando que ele é filosoficamente inferior ao estudo das próprias coisas. 5.4.1 Nome (Crát., 388) Quando Platão define o nome como um “instrumento capaz de ensinar e fazer discernir a essência, do mesmo modo como a lançadeira é capaz de tecer a tela” (Crát., 388b), sua definição se adapta a qualquer termo ou expressão linguística. Aristóteles foi o primeiro a analisar o nome: “O nome é um som vocal significativo por convenção, que prescinde do tempo e cujas partes não são significativas se tomadas separadamente” (De Int., 2, 16a19). Por “prescindir do tempo”, o nome é diferente do verbo, que sempre oferece uma determinação do tempo. Como observa Aristóteles, a expressão infinitiva “não homem” não é um nome (ABBAGNANO, 2007, p. 714). 5.4.2 Verdade (Crát., 385b; Sof., 262e; Fil., 37c) Entende-se por verdade a qualidade de um procedimento cognoscente que obtém êxito (penso, logo existo). A verdade também pode ser entendida como a correspondência entre duas coisas ou como a conformidade a uma regra. Essas concepções de verdade não são nem mesmo alternativas entre si. Desde Platão que os filósofos usam o termo verdade em vários sentidos e com propósitos diferentes. O conceito de verdade como correspondência é o mais antigo. Desde os pré-socráticos a ideia de verdade é utilizada, mas Platão foi o primeiro a formulá-la explicitamente em Crátilo: “Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso é aquele que as diz como não são” (Crát., 385b). Por sua vez, Aristóteles dizia: “Negar aquilo que é, e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é, e negar o que não é, é a verdade” (Met., IV, 7, 1011b26 ss.; V, 29, 1024b25). Aristóteles enuncia também as duas teses fundamentais dessa concepção de verdade. A primeira é que a verdade está no pensamento ou na linguagem, não no ser ou na coisa (Met., VI, 4, 1027b25). A segunda é que a medida da verdade é o ser ou a coisa, não o pensamento ou o discurso, de modo que uma coisa não é branca porque se afirme com verdade que ela assim é, mas afirma-se de verdade que ela é branca porque é (Met., IX, 10, 1051b5). A concepção de verdade como conformidade a uma regra ou um conceito também foi elaborada por Platão. Ao tomar como fundamento o conceito que considero mais sólido, tudo o que me pareça estar de acordo com ele será por mim posto como verdadeiro, quer se trate de causas, quer se trate de outras coisas existentes; o que não 107 FILOSOFIA ANTIGA me pareça de acordo com ele será por mim posto como não verdadeiro (Féd., 100a; ABBAGNANO, 2007, p. 994). 5.4.3 Herói (Crát., 398c) Segundo Platão, os heróis eram semideuses nascidos de uma mulher mortal que se apaixonou por um deus, ou de um homem mortal que se apaixonou por uma deusa (Crát., 398c). Com essa definição, Platão limitava a noção de herói à mitologia. Por isso a filosofia não considera os heróis. Aristóteles concorda com Platão e ainda observa: Se houvesse duas categorias de homens tais que a primeira diferisse da segunda tanto quanto se julgava que os deuses e os heróis diferiam dos homens, sobretudo pela valentia física e pelas qualidades da alma, então sem dúvida ficaria evidente a superioridade dos governantes sobre os governados (Pol., VII, 14, 1332b17; ABBAGNANO, 2007, p. 498). 5.4.4 Alma (Crát., 399d; Fedro, 245d) Para Demócrito, a alma era formada por átomos redondos, que podem penetrar no corpo com grande rapidez e movê-lo (cf. ARISTÓTELES, De An., I, 2, 404, 1). Platão afirmou que a alma se move por si, e fez dessa suposição a sua definição: “Todo corpo cujo movimento é imprimido de fora é inanimado, todo corpo que se move de per si, do seu interior, é animado; e essa é, precisamente, a natureza da alma” (Fedro, 245d). Para Platão,a alma é a causa da vida (Crát., 399d) e por isso é imortal, já que a vida constitui a sua própria essência (Féd., 105d ss.). Platão fez distinção entre a realidade da alma, simples, incorpórea, que se move por si, que vive e dá vida, e a realidade corpórea, que tem as qualidades opostas. Isso determinou todas as noções de alma no Ocidente (ABBAGNANO, 2007, p. 27). 5.4.5 Retidão (Crát., 428e) Platão descreveu a retidão como um critério ou medida racional das coisas, que determina o princípio para julgá-las. Ele diz, por exemplo, que “a retidão do nome é mostrar o que a coisa é” (Crát., 428e), entendendo que este é o critério para julgar acerca da precisão de um nome. Com o mesmo sentido, Aristóteles usa a expressão reta razão, querendo dizer sabedoria (Ét. Nic., VI, 13, 1144b23; ABBAGNANO, 2007, p. 856). 5.4.6 Gramática (Crát., 431b) A gramática é definida por Platão no Crátilo quando faz a analogia entre a gramática e a arte figurativa. Assim como um artista procura reproduzir os traços dos objetos com o desenho e as cores, o gramático procura fazer a mesma coisa com as sílabas e as letras. 108 Unidade II O objetivo é igual, “imitar a substância das coisas”. Se conseguir reproduzir tudo o que pertence a essa substância, a imagem será bela, mas, se deixar alguma coisa fora ou se acrescentar algo não pertinente, a imagem não será bela. Nesse sentido, o gramático é um “artífice de nomes, portanto um legislador que pode ser bom ou mau” (Crát., 431b ss.). Esse é o primeiro conceito de gramática formulado, que é normativo, porque o gramático não descreve, mas prescreve (ABBAGNANO, 2007, p. 490). 5.4.7 Linguagem (Crát., 433) Linguagem em geral é o uso de signos arbitrários intersubjetivos, que possibilitam a comunicação. A linguagem pode ser estabelecida como convenção, como originária da natureza ou pertencente a ela, ou como escolha de determinação significativa. Essas interpretações foram expostas por Platão. A linguagem como convenção e originária da natureza tem em comum a necessidade da relação entre o signo linguístico e seu objeto. Platão critica a teoria que afirma que as raízes linguísticas seriam imitações dos sons naturais: “neste caso, aqueles que imitam o balido das ovelhas, o canto dos galos e a voz dos demais animais dariam nome aos animais cuja voz imitam” (Crát., 423c). Essa objeção de Platão diz que uma coisa é a imitação de um som e outra coisa é a imposição de um nome. Contudo, o princípio da onomatopeia foi muitas vezes utilizado para explicar a formação das palavras originais nesta ou naquela língua. A ideia da linguagem como convenção nega que a linguagem possa admitir o erro, porque uma palavra formada por convenção deve ter o mesmo valor de qualquer outra. A ideia da naturalidade impede que a linguagem inclua o erro, porque a linguagem representa sempre aquilo que é, mantendo-se sempre como garantia da verdade. Essas percepções de linguagem não admitem que ela seja julgada como certa ou errada. Contudo, a ideia da linguagem como operação, uso ou escolha permite essa possibilidade. Quando escolhemos, podemos usar a linguagem como instrumento para designar as coisas, e eventualmente errar ao fazer escolhas. Para Platão, entender a linguagem como instrumento de escolha é perceber que “o discurso nasce da união recíproca das espécies” (Sof., 259d), e que as espécies não estão todas unidas nem todas desunidas, mas algumas podem juntar-se e outras não. As possibilidades da linguagem, portanto, são limitadas pelas possibilidades de combinação das espécies ou formas do ser (Sof., 262c). Platão evita adotar a convencionalidade ou a naturalidade, e no Crátilo afirma: Gostaria que, na medida do possível, os nomes fossem semelhantes às coisas, mas temo que — como diz Hermógenes — essa atração da semelhança nos leve para um terreno escorregadio e, assim, seja necessário lançar mão também de um meio mais grosseiro, que é a convenção, para certificar-nos da exatidão dos nomes (Crát., 435c). Para Platão, os nomes que damos aos números não podem ser considerados naturais, pois não são semelhantes ao que indicam. Ele explica dessa forma: “Se o uso não é uma convenção, seria melhor dizer que não é a semelhança a maneira como as palavras significam, mas antes o uso: este, ao que parece, pode significar tanto por meio da semelhança quanto da dessemelhança” (Crát., 435a-b). 109 FILOSOFIA ANTIGA Platão anunciou aqui uma tese que mais tarde foi recuperada pela linguística contemporânea. É o uso que constitui o significado das palavras. Desse ponto de vista, o uso é a escolha repetida ou convalidada que cria um instrumento linguístico. Como qualquer instrumento, os linguísticos também podem ser mais ou menos adequados à sua finalidade. Assim, Platão justifica que a linguagem é falível, pois tem a possibilidade de dizer o que não é (Sof., 261b). Platão escreveu no Crátilo: Será que preferes a maneira como Hermógenes e muitos outros falam quando dizem que os nomes são convenções e que são claros para aqueles que os estipularam e conhecem as coisas às quais correspondem, e que essa é a justeza dos nomes, de tal forma que não importa se a convenção é feita segundo o que já se tenha estabelecido ou o contrário, como chamar de grande o que hoje chamamos de pequeno ou de pequeno o que hoje chamamos de grande? (Crát., 433). Este convencionalismo puro, que afirma a pura arbitrariedade da referência linguística, desapareceu com Aristóteles e só voltou a aparecer no pensamento contemporâneo com Ferdinand Saussure e Charles Sanders Peirce (ABBAGNANO, 2007, p. 616). 6 PARMÊNIDES, FÉDON, FEDRO E O BANQUETE 6.1 Parmênides Figura 14 Disponível em: https://bit.ly/3E07UTd. Acesso em: 10 nov. 2022. O Parmênides é um relato do encontro entre os dois grandes filósofos da escola eleática, Parmênides e Zenão de Eleia, e o jovem Sócrates. O motivo do evento era a leitura da tese de defesa do monismo de Parmênides, feita por Zenão. O cerne do diálogo é um desafio lançado por Sócrates aos dois. Usando seu método de redução ao absurdo, Zenão tinha argumentado que, se pensarmos que cada coisa não é uma e a mesma coisa, então qualquer coisa poderá ser muitas coisas ao mesmo tempo. 110 Unidade II O problema é que isso é impossível. Sócrates diz que essa é uma percepção errada, pois conseguimos fazer a distinção entre as coisas sensíveis que percebemos e suas ideias originais ou formas criadoras. Assim, uma coisa pode ser semelhante e diferente ao mesmo tempo, da mesma maneira que pode assumir formas de semelhança e desigualdade, da unidade e da pluralidade. Pense, por exemplo, na água: ela apresenta três estados, líquido, sólido e gasoso. Pode ser rio ou chuva. O que Sócrates afirmava é que, enquanto a água como coisa pode assumir várias qualidades diferentes, a ideia de água, a ideia de líquido, a ideia de chuva e todas as demais que dão forma às coisas significam sempre uma só coisa. Parmênides resolve então responder a Sócrates. Primeiro, verifica se entendeu o que Sócrates estava querendo dizer: que existem ideias ou formas, de um lado, e coisas ou objetos que podemos perceber com os sentidos, do outro. Então, Parmênides pergunta que tipo de forma Sócrates pode reconhecer, e ele responde que não tem dúvida sobre a existência das ideias matemáticas, éticas e estéticas, mas que não tem certeza se existe uma ideia do homem, do fogo ou da água. Entretanto, ele não acredita que exista uma ideia da lama, uma ideia dos cabelos ou mesmo uma ideia da sujeira. Parmênides responde que, quando ele for mais comprometido com a filosofia, vai considerar que em sua teoria há espaço até mesmo para as ideias dessas coisas de que hoje ele não tem certeza. Parmênides questiona certos aspectos da teoria das ideias ou formas, e apresenta cinco argumentos contra ela. Argumento 1. Se coisas particulares vierem a participar da forma (ou da ideia) da beleza, da semelhança ou da grandeza, elas se tornarão lindas ou parecidas ou grandes (Parm.,130e-131e). Parmênides quer saber de Sócrates quantos detalhes podem ser incluídos numa única forma ou ideia. Se uma ideia estiver presente em muitas formas, então, por simples pensamento aritmético, ela será muitas coisas e não uma só. Sócrates sugere que a ideia pode ser como o dia, que está presente em muitas coisas ao mesmo tempo. Parmênides refuta com o argumento de uma vela de navio recobrindo várias pessoas para mostrar que a ideia e sua forma consequente são múltiplas. Argumento 2. O motivo de Sócrates acreditar na existência de uma única ideia para cada caso é que, quando ele vê, por exemplo, um número de coisas grandes, parece haver uma única qualidade que todas compartilham, que é a grandeza (Parm., 132a-b). Todavia, examinando a série de coisas grandes (x, y, z) e a grandeza, esta mesma é, em certo sentido, considerada grande. Se todos os membros desta série participam de uma única ideia, então deve haver outra grandeza em que grandes coisas e a primeira forma de grandeza estejam incluídas. Entretanto, se essa segunda forma de grandeza também for grande, então deverá haver uma terceira forma de grandeza, que inclua as coisas grandes e mais essa também, e assim até o infinito. Esse mesmo argumento foi depois utilizado por Aristóteles. Argumento 3. (Parm., 132b-c) À sugestão de Sócrates de que cada ideia é um pensamento que existe na alma, mantendo assim a unidade da forma, Parmênides responde que um pensamento deve ser de alguma coisa que é uma ideia. Portanto, é necessário explicar a relação de participação 111 FILOSOFIA ANTIGA entre a ideia e sua forma. Além disso, se as coisas podem compartilhar as ideias que não são mais do que pensamentos, então elas consistem em pensamentos e pensam, ou então são pensamentos, mas não pensam. Argumento 4. Sócrates sugere que as ideias são padrões na natureza, paradigmas, dos quais as várias instâncias são cópias ou semelhanças (Parm., 132c-133a). Parmênides argumenta que, se as várias instâncias forem como as ideias, as formas serão como suas instâncias. No entanto, se as coisas são semelhantes, então elas participam da ideia de semelhança. Assim, a semelhança é como a semelhança nas coisas concretas, temos outra regressão ao infinito. Argumento 5. Parmênides denomina de “grande dificuldade” que a teoria das ideias surja como consequência da afirmação da existência separada das formas (Parm., 133a-134e). As formas não existem em nosso mundo, mas apenas em seu próprio mundo. Contudo, as coisas do nosso mundo estão relacionadas entre si, mas não com as formas. Nosso conhecimento tem uma relação com o nosso mundo, não com o mundo das ideias, enquanto para Sócrates o conhecimento ideal é o conhecimento não das coisas, não do nosso mundo, mas do mundo das ideias. Portanto, não conseguimos reconhecer no nosso mundo as ideias. Apesar da incapacidade de Sócrates em defender a teoria contra os argumentos de Parmênides, logo em seguida o próprio Parmênides parece defender a teoria. Parmênides diz que sem as ideias não há possibilidade da dialética. Afirma que Sócrates foi incapaz de defender a teoria porque ele não foi dialético o suficiente para sustentá-la. Então o diálogo é retomado com um desempenho real de exercício dialético, no qual outro jovem toma o lugar de Sócrates como interlocutor de Parmênides. Seguem-se argumentos sutis de difícil compreensão. A segunda parte do diálogo pode ser dividida em três partes: Hipótese nº 1: Se a coisa é una. Aquilo que é uno não pode ser composto de partes, porque então seria feito de um múltiplo. Nem pode ser um todo, porque o todo é um conjunto de partes. Uma coisa, por exemplo, que não tem partes e não é um todo. Não tem um começo, um meio nem um fim, porque estas são designações de partes, portanto, é ilimitado. Não tem forma, porque não é nem linear nem circular: um círculo tem partes e todas elas são equidistantes do centro, mas o uno não possui nem partes nem centro. O uno também não é uma linha, porque uma linha tem um meio e dois extremos, o que o uno não pode ter. Assim, o uno é aquele que não tem forma. É aquele que não pode estar em nada nem mesmo em si. Se o uno estivesse no outro, estaria cercado pelo outro em que se encontrasse, e seria tocado em muitas partes pelo outro que o contém. Contudo, como o uno não tem partes, não pode estar dentro de outra coisa. Se fosse em si mesmo, ele se conteria, mas, se ele estiver contido, será diferente do que o contém e, portanto, o uno se apresentará como duas coisas. O uno não pode se mover porque o movimento é mudança da coisa ou mudança na posição. O uno não pode mudar porque não tem partes para mudar. Para se mover de posição, precisaria se mover de forma circular ou linear. Se o uno gira em torno de si, sua parte externa gira em torno de seu meio, mas, 112 Unidade II como é uno, não existe diferença entre o centro e seus limites. Se o uno se move, faz isso através de outra coisa, na qual ele não pode estar dentro. Assim, o uno não se move. O uno deve ser ele próprio e não pode ser diferente disso. Então, o que é uno não participa do fluxo de tempo, e por isso é eterno. Hipótese nº 2: Se o uno existe. O uno é e deve ser parte de si mesmo. Uma parte do ser uno é o próprio ser. Se o ser é uma parte do uno, ele é um todo que também é um conjunto de partes. Se o uno não participa do ser, deve existir como uma única parte. Por outro lado, o ser é ilimitado e está contido em tudo que existe. Então, uma vez que o uno faz parte do ser, ele está dividido nas mesmas partes que o ser. Se pensarmos nas partes de uma forma, como um círculo, as partes, a circunferência e o centro, são elas próprias partes de um todo, e o conjunto está delimitado. Portanto, como o centro está na mesma distância de todas as outras partes, o uno deve apresentar uma forma linear, ou esférica, ou um misto das duas. Se a ideia do uno estiver em algumas das partes, será ao mesmo tempo igual e diferente de si mesmo. Portanto, o uno existe em outro lugar, onde é fixo e está em movimento ao mesmo tempo. Hipótese nº 3: Se o uno não existe. Se ele não existir, fará parte de tudo que é diferente dele. Então, tudo é parcialmente uno. Assim, a semelhança, a dissimilaridade, a igualdade e a pequenez pertencem à ideia de uno, uma vez que elas são ideias que espelham a si mesmas. Contudo, sendo parte de tudo, o uno pode ser grande ou pequeno, dependendo das coisas com que as comparamos. Então, pensado dessa maneira, o uno faz parte do ser, mas também do não ser. Portanto, se o uno participa de uma coisa, mas também de seu contrário, ele permanece eterno. Como o uno anula os contrários, ele não é nomeável, não pode ser discutido, não é cognoscível, sensível ou demonstrável. Todas as coisas aparecem como unidade ou seu múltiplo, limitadas e ilimitadas, semelhantes e diferentes, estão em movimento ou estão paradas, e não aparecem como o uno, são diferentes dele e das outras coisas. Eventualmente não existem. Mas, se o uno não existe, como ele faz parte de tudo, as coisas também não existem. Então, ser ou não ser? Se pensarmos na ideia como o uno das formas, a resposta fica evidente. 6.1.1 Instante (Parm., 156d) A noção de instante como limite ou condição do tempo, que representa uma espécie de compromisso entre o tempo e a eternidade, é de Platão: O instante parece indicar o que serve de transição entre duas mudanças inversas. A passagem do movimento ao repouso e vice-versa não ocorre a partir da imobilidade que ainda está imóvel nem do movimento que ainda se está movendo. A natureza um pouco estranha do instante está no fato de ser o ponto médio entre repouso e movimento, mesmo não estando ele no tempo, o que o torna ponto de chegada e de partida do que se está movendo em direção ao estar parado, e do que está parado em direção ao mover-se (Parm., 156d; ABBAGNANO, 2007, p. 566). 113 FILOSOFIA ANTIGA 6.1.2 Universal (Parm., 132a) Universal tem dois significados para a filosofia: o primeiro, objetivo, indicauma determinação qualquer, que pode ser atribuída a várias coisas; o outro, subjetivo, indica a possibilidade de um juízo, como o bem e o mal, ser válido para todos os seres racionais. O universal ontológico é a forma ou a ideia em Platão (Parm., 132a). Para Aristóteles, é a forma ou substância de alguma coisa, que contém tanto o aspecto ontológico quanto o lógico. Ontologicamente, o universal é a ideia ou a essência que pode ser partilhada por várias coisas, que confere às coisas a natureza ou o caráter que têm em comum (Met., XIII, 4, 1078b28). Essa definição de Aristóteles é quase universalmente aceita na história da Filosofia. Foi ao universal nesse sentido que os lógicos medievais atribuíram o caráter de signo e a função de suposição (ABBAGNANO, 2007, p. 982). 6.1.3 Terceiro homem (Parm., 132a) O argumento do terceiro homem é uma redução ao infinito como fez Parmênides em sua refutação primeira a Sócrates (Parm., 132a). Aristóteles utilizou várias vezes esse argumento contra as teorias das ideias de Platão (Met., I, 9, 990b17; VII, 13, 1039a2). O argumento é o seguinte: uma vez que um homem individual é semelhante ao homem ideal, deve existir também a ideia de um terceiro homem, do qual os dois participem. Como argumentavam os sofistas, quando dizemos que um homem está passeando na praia, não estamos falando nem da ideia de homem, que é imóvel, nem de um homem em particular. Portanto, devemos estar falando de uma terceira forma de pensar o homem. Na medida em que, na sua forma abstrata, a ideia de homem não significa nenhum homem em especial, quando pensamos que um homem qualquer está passeando, não pensamos em ninguém em particular; sabemos estar falando de alguém que existe, mas que não é ninguém que descrevemos. Então, para podermos entender que existe alguém que está passeando na praia e que essa pessoa tem a forma de homem, deverá existir uma terceira ideia de homem, que englobe tanto a ideia original quanto a pessoa que existe e está passeando. Isso é o que chamamos em filosofia de terceiro homem. Uma ideia que se reduz ao infinito, pois, se tentamos ser mais precisos, por exemplo, dizendo que o homem está passeando na praia devagar, precisamos novamente pensar que é uma característica do homem existir de acordo com a ideia de homem, andar de acordo com a ideia de homem que anda, passear de acordo com a ideia de homem que anda devagar, e isso parece uma boneca russa, daquelas que uma está dentro da outra. Só que nesse caso fazemos a operação ao contrário: ao invés de abrirmos as bonecas para encontrarmos outra, começamos com uma boneca pequena e vamos colocando-a dentro da boneca maior. Uma ideia engloba a anterior, de forma que todas elas se ajustem uma dentro da outra, até o infinito (ABBAGNANO, 2007, p. 955). 6.1.4 Eleatismo O eleatismo era a filosofia de Parmênides e de Zelão. Platão e Aristóteles assumiram o seu princípio de que só o ser é e não pode não ser. Isso significa que o ser tem uma unidade, uma imutabilidade e uma necessidade para poder existir. O ser humano só reconhece o ser através do pensamento racional, 114 Unidade II pois o mundo sensível e o conhecimento que obtemos com os sentidos só nos informam as aparências do ser (ABBAGNANO, 2007, p. 308). 6.1.5 Platonismo O platonismo é a adoção de elementos da doutrina de Platão, que desde Aristóteles podem ser organizados como a teoria das ideias ou formas, segundo a qual elas são objeto do conhecimento e têm características diferentes das coisas naturais, pois demonstram uma unidade e são imutáveis. O conhecimento através dos sentidos, chamado de conhecimento sensível, não tem valor de verdade. O propósito da filosofia é a realização da justiça nas relações humanas, e o caminho é a dialética como procedimento científico. Essas são as três grandes diferenças entre Aristóteles e Platão, e marcam a distinção entre o platonismo e o aristotelismo. 6.2 Fédon Figura 15 Disponível em: https://bit.ly/3fYzLes. Acesso em: 10 nov. 2022. Neste diálogo, Sócrates discute a natureza da vida após a morte, no último dia antes de tomar cicuta. Sócrates foi preso e condenado à morte por um júri ateniense por não acreditar nos deuses oficiais e por corromper a juventude da cidade. O diálogo é contado da perspectiva de um dos alunos de Sócrates, Fédon de Élis. Ao manter uma conversa dialética com um grupo de amigos, incluindo os tebanos Cebes e Símias, Sócrates fornece argumentos para a imortalidade da alma. Ele quer afirmar que há uma vida após a morte. Portanto, o tema principal desse diálogo é a ideia de que a alma é imortal. Sócrates oferece quatro argumentos para a imortalidade da alma. 115 FILOSOFIA ANTIGA O argumento cíclico explica que as ideias são eternas e imutáveis e, como a alma sempre traz vida, não deve morrer e é necessariamente imperecível. Como o corpo está sujeito à morte física, a alma deve ser seu oposto, portanto indestrutível. A lei geral da natureza mostra que todo contrário surge do seu contrário: o feio do belo, o pequeno do grande. A teoria da reminiscência explica que possuímos algum conhecimento não empírico desde o nascimento. Isto implica que a alma existe desde antes do nascimento, para poder conter esse conhecimento. Com os sentidos percebemos a existência das coisas, mas essa percepção nunca é tão perfeita como a ideia que fazemos delas. Para que isso seja assim, a alma deve ter conhecido a essência das coisas, sua ideia ou forma ideal numa outra vida. Depois que a alma se liga ao corpo, é necessário recordar o que se encontra num estado latente. Dessa forma, conhecer é recordar o que a alma já conhece. O argumento de afinidade explica que as coisas invisíveis, imortais e incorpóreas são diferentes das coisas visíveis, mortais e corporais. A ideia é anterior e não deriva do objeto. A percepção sensível de um objeto nunca coincide com a ideia pura; apenas a desperta, mas não a gera. A teoria das ideias explica que as formas são entidades incorpóreas e estáticas, e são a causa de todas as coisas no mundo. Por exemplo, coisas bonitas contêm a ideia da beleza; o número cinco participa da ideia de 5 etc. Por sua natureza própria, a alma participa da forma da vida, o que significa que a alma é imortal. 6.2.1 Morte (Féd., 64c) As religiões e filosofias que admitem a imortalidade da alma acreditam como Platão que a morte é a “separação entre a alma e o corpo” (Féd., 64c). Depois da separação começa um novo ciclo de vida da alma. Alguns entendem como reencarnação da alma em novo corpo (ABBAGNANO, 2007, p. 683). 6.2.2 Em si (Féd., 65d, 75c) Em si é o que se considera sem referência a outra coisa. Platão e Aristóteles utilizam essa expressão dessa maneira. Platão fala do “belo mesmo”, da “semelhança mesma”, expressões traduzidas nas línguas modernas como “belo em si” e “semelhança em si”. Isto indica o belo ou a semelhança sem relação com as coisas que deles participam (Féd., 65d, 75c; Parm., 130b, 150e etc.). Aristóteles emprega ainda essa expressão para indicar uma qualidade ou uma substância de um animal que seja examinado independentemente das relações com sua espécie (cf. Met. VII, 14, 1039b9; ABBAGNANO, 2007, p. 329). 6.2.3 Corpo (Féd., 66b) Platão em Fédon (66b ss.) oferece a concepção mais antiga e difundida do corpo, que é ser um instrumento da alma. Como qualquer instrumento, o corpo pode ser elogiado pela função que exerce ou pode ser criticado por não corresponder a seu objetivo. De qualquer forma, o corpo contém a alma (ABBAGNANO, 2007, p. 211). 116 Unidade II 6.2.4 Catarse (Féd., 67a, 69) Para Platão, a catarse tem um sentido moral e metafísico. Significa a libertação em relação aos prazeres (Féd., 67a, 69c). Mas também significa a libertação da alma em relação ao corpo, no sentido de que a alma se separa ou se retira das atividades físicas e surge a morte (Féd., 67c). Platão também define a catarse como “a discriminação que conserva o melhor e rejeita o pior” (Sof., 226d). Aristóteles utilizou muitoo termo catarse com seu significado médico de purificação ou purgação. Também foi o primeiro que o usou para descrever um fenômeno estético, que é uma espécie de libertação ou serenidade que o drama e a música provocam no ser humano: A tragédia é imitação elevada e completa da ação, que tem certa extensão, pela linguagem e diversas espécies de adorno distribuídas em suas várias partes; imitação realizada por atores e não em forma narrativa e que, suscitando o terror e a piedade, chega à purificação de tais afetos (Poét., 1449b24 ss.). As emoções também podem sofrer “purificação e agradável alívio”. E “as músicas mais aptas a produzir purificação transmitem uma alegria inocente aos homens” (Pol., VIII, 7, 1342a17; ABBAGNANO, 2007, p. 120). 6.2.5 Associação de ideias (Féd., 76a) Platão usou essa expressão para indicar a conexão recíproca dos elementos da consciência, que permitem que sejam evocados uns pelos outros, de acordo com algum princípio uniforme ou através das leis fundamentais (Féd., 76a). Aristóteles usava a expressão da mesma forma (De Memoria et Reminiscentia, II, 451b18-20; ABBAGNANO, 2007, p. 85). 6.2.6 Misologia (Féd., 89d-90b) Em Platão, a misologia é análoga à misantropia. A misantropia acontece quando se confia em alguém sem discernimento, e a misologia quando se acredita em raciocínios que depois se mostram falsos (Féd., 89d-90b; ABBAGNANO, 2007, p. 671). 6.2.7 Finalismo (Féd., 97c) Segundo Platão e Aristóteles, Anaxágoras foi o primeiro pré-socrático a admitir a causalidade do fim (Féd., 97c; Met., I, 3, 984b18). Platão descreve sua forma de pensar como consequência do princípio de Anaxágoras de que a inteligência é a causa ordenadora do mundo. “Se a inteligência ordena todas as coisas e dispõe cada coisa do modo melhor, achar a causa graças à qual cada coisa é gerada, destruída ou existe significa descobrir qual é a sua melhor maneira de existir, modificar-se ou agir” (Féd., 97c). Entretanto, a ideia na qual prevaleceu a concepção finalista na metafísica é a aristotélica. Aristóteles afirma que “tudo aquilo que é por natureza existe para um fim” (De An., III, 12, 434a) e identifica o fim com a mesma substância, “forma ou razão de ser da coisa” (Met., VIII, 4, 1044a31). 117 FILOSOFIA ANTIGA Por outro lado, julga que o universo inteiro está subordinado a um único fim, que é Deus, do qual dependem a ordem e o movimento do universo (Met., XII, 7, 1072b). Por isso Aristóteles defende a causalidade do fim, dizendo que as coisas não acontecem com vistas ao seu melhor resultado; às vezes o melhor resultado é o efeito acidental da necessidade. Aristóteles observa que aquilo que acontece geralmente não pode ser explicado com o acaso, mas supõe a necessidade da ação do fim (Fís., II, 9, 200a5; ABBAGNANO, 2007, p. 457). 6.2.8 Causalidade (Féd., 97c, 101c) A noção de causa surge com Platão, que a considera como o princípio pelo qual uma coisa é ou torna-se o que é. Ele afirma que a verdadeira causa de uma coisa é aquilo que, para a coisa, é o melhor, isto é, a ideia que garante o estado perfeito da própria coisa. De modo geral, o bem é a causa daquilo que existe de bom nas coisas e das próprias coisas (Féd., 97c, 101c; ABBAGNANO, 2007, p. 124). Ao lado dessas causas primeiras, Platão admitiu também aquilo que chamou de concausas, que são as limitações encontradas pela obra criadora do demiurgo e que constituem os elementos de necessidade do próprio mundo (Tim., 69a). A primeira análise da causa foi feita por Aristóteles. Foi ele quem pela primeira vez afirmou que o papel do conhecimento e da ciência é conhecer a causa das coisas (Fís., I, 1, 184a10). Entretanto, notou ao mesmo tempo que há várias espécies de causa. A causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final são causas possíveis, segundo Aristóteles (ABBAGNANO, 2007, p. 125). 6.2.9 Dever-ser (Féd., 99c) Platão escreveu que, se a doutrina de Anaxágoras, de que existe uma inteligência que ordena o mundo do melhor modo, é verdadeira, então o bem e o dever-ser sustentam e agregam todas as coisas (Féd., 99c). Assim, o que deve ser é aquilo que é bom que aconteça, desde que esteja previsto por uma norma (ABBAGNANO, 2007, p. 267). 6.2.10 Participação (Féd., 100) Participação foi um dos dois conceitos que Platão usou para definir a relação entre as coisas e as ideias: “Nada torna bela uma coisa a não ser a presença ou a participação do belo em si mesmo, seja qual for o caminho ou o modo como a presença ou a participação se realizam’’ (Féd., 100d). Posteriormente Platão entendeu a participação como imitação: “Parece-me que as ideias estão como exemplares na natureza, que os outros objetos se assemelhem a elas e sejam suas cópias, e que essa participação das coisas nas ideias consiste em serem imagem delas” (Parm., 132d; ABBAGNANO, 2007, p. 745). 118 Unidade II 6.2.11 Vida (Féd., 105c) Platão identificava a alma com a vida (Féd., 105c), porque considerava propriedade da alma a capacidade de “mover-se por si” (Fedro, 245c). Aristóteles entendia por vida “a nutrição, o crescimento e a destruição que se originam por si mesmos” (De An., II, 1, 412a13) e considerava que a vida é própria dos seres animais, pois estes “possuem em si mesmos uma potência ou um princípio tal que sofrem aumento ou diminuição nas direções opostas” (De An., II, 413a27; ABBAGNANO, 2007, p. 1000). 6.3 Fedro Figura 16 Disponível em: https://bit.ly/3WUUXT3. Acesso em: 10 nov. 2022. Antes de ler o resumo de Fedro, você precisa saber que a cultura da cidade de Atenas era preponderantemente homossexual: homens amavam homens, desde o momento em que entravam no ginásio de esportes, onde aprendiam a ser guerreiros. Os atenienses se casavam e formavam família, o que era importante, mas o amor era uma coisa nobre que devia ser reservada somente aos homens. Também precisa entender que, nesse diálogo, Platão estabelece a existência da alma na forma que posteriormente foi aceita por várias religiões diferentes. Sócrates encontra-se com Fedro nos arredores de Atenas. Fedro acaba de vir da casa de Epícrates, onde Lísias, filho de Céfalo, fez um discurso sobre o amor. Sócrates acompanha Fedro esperando que ele repita o discurso que ouviu. É um diálogo apenas entre os dois, em fala direta. Eles se sentam na beira de um rio, embaixo de uma árvore, e conversam. Fedro começa a repetir o discurso de Lísias: “Você entende, então, minha situação: eu disse a ele que bom teria sido para nós se tivesse dado certo”, e o discurso prossegue explicando as razões pelas quais é melhor ter um amante que não se ama do que amar de verdade. O relacionamento com alguém que não se 119 FILOSOFIA ANTIGA ama demonstra objetividade e prudência. Não gera fofoca quando são vistos juntos, não gera ciúmes e permite uma possibilidade maior de ter outros parceiros. Você não estará com alguém que está inebriado pelo amor e, portanto, não pensa direito. Ele explica que é melhor estar com alguém que queira retribuir os favores carnais do que com alguém que necessite do seu amor. Lísias conclui dizendo que o discurso já foi longe o suficiente, e os ouvintes são então convidados a fazer perguntas. Sócrates, tentando conquistar Fedro, diz que está em êxtase com tudo que Fedro contou. Sócrates diz que, como o discurso parecia tornar Fedro radiante, ele tem certeza de que Fedro entende dessas coisas melhor do que ele e que não saberia como sentir o mesmo êxtase com essas palavras. Fedro percebe o sarcasmo de Sócrates e pede a Sócrates que pare de brincar com ele. Sócrates responde que Fedro ainda está admirado com o discurso de Lísias, mas que consegue fazer um discurso ainda melhor do que o que ele ouviu. Fedro e Sócrates observam que ali, no campo, Sócrates parece um peixe fora da água, e Sócrates atribui essa falha ao seu amor em aprender, mas que as árvores e o campo aberto não ensinam, enquanto os homens na cidade permitem que ele aprenda muito. Sócrates diz que ele, Fedro, conseguiu tirá-lo dacidade da mesma forma que fazemos um animal com fome andar se mostramos uma cenoura para ele. No caso de Sócrates, ele persegue bons discursos e conhecimento e, se oferecerem isso a ele, ele andará por toda a Grécia buscando-os. Sócrates finalmente inicia seu discurso sobre o amor. Em vez de enumerar os motivos como Lísias tinha feito, começa explicando que mesmo que todos os homens desejem beleza, alguns estão apaixonados e outros não. Ele diz que todos nós somos governados por dois princípios: um é o desejo inato de prazer, e o outro é o nosso juízo adquirido que busca o que é melhor (Fedro, III, 237d). Quando seguimos nosso juízo, pensamos corretamente, mas quando seguimos o desejo atrás do prazer é arrogância. Perseguir os desejos leva a coisas diferentes. Aquele que segue seu desejo por comida é um glutão, e quem persegue seus desejos encontra um fim tosco. O desejo de apreciar a beleza, reforçado pela beleza dos corpos humanos, é chamado Eros. O problema, ele explica, é que alguém inebriado de desejo quer transformar seu jovem amante naquilo que seja mais agradável para si mesmo, e não no que é melhor para o menino. O progresso intelectual do jovem será sufocado, sua condição física vai se perder e o amante não vai desejar que o menino cresça, amadureça e forme uma família. Tudo isso vai acontecer porque o amante o está moldando pelo desejo de prazer e não pelo que é melhor. Em algum momento, a razão tomará o lugar da loucura do amor, e os juramentos do amante e as promessas ao seu jovem serão quebrados. Fedro acreditava que um dos maiores bens é a relação entre um amante e seu jovem. Essa relação traz orientação e amor para a vida do jovem. O jovem tem no amante um modelo valioso. Ele exibe seu melhor comportamento para não praticar algo vergonhoso; portanto, o jovem está sempre agindo melhor. 120 Unidade II A ausência da vergonha abre espaço para o sentimento de orgulho, para impressionar o próprio amante. Impressionar seu amante traz mais aprendizado e orientação para a vida do jovem. Aquele que não ama não fará nada disso, sempre governado pelo julgamento e não pelo desejo de prazer. Sócrates está prestes a ir embora e desistir do diálogo, quando ele percebe um “sinal divino familiar”, seu daemon (entidade divina em que os gregos acreditavam, semelhante aos anjos da guarda católicos), o que sempre ocorria quando estava prestes a fazer algo que não devia. Ele precisava fazer a expiação por alguma ofensa contra os deuses. Sócrates percebe qual foi a sua ofensa: se o amor é um deus ou algo divino, como ele e Fedro concordam que é, ele não pode ser algo ruim, como ele disse. Sócrates começa discutindo a loucura. Se a loucura é ruim, então os discursos anteriores teriam sido corretos, mas, na realidade, a loucura dada como um presente dos deuses nos fornece algumas das melhores coisas que temos. Há, de fato, vários tipos de loucura divina: de Apolo recebemos o dom da profecia, de Dionísio os rituais místicos e a embriaguez como alívio das nossas dificuldades, das Musas a poesia e de Afrodite o amor. Sócrates resolve provar a origem divina da loucura do amor. Primeiro ele prova a imortalidade da alma: a alma está sempre em movimento e é motor de si própria. Ela é fonte de tudo que se move, pois as coisas que precisam ser movidas por forças externas não têm alma. É necessário que a alma seja imortal. Para Sócrates, uma alma é como a “união natural de uma parelha de cavalos alados e seu carro”. Enquanto os deuses têm dois bons cavalos, todos os outros têm uma mistura: um é belo e bom, enquanto o outro não o é. Como as almas são imortais, aquelas fora dos corpos patrulham o céu, desde que suas asas estejam em perfeitas condições. Quando uma alma perde suas asas, ela cai na Terra e assume um corpo humano, que então parece se mover. As asas crescem com a sabedoria, a bondade e a beleza do divino. No entanto, a malícia e a feiura fazem as asas encolher e desaparecer. No céu há uma procissão da carros liderada por Zeus, que cuida de tudo e coloca as coisas em ordem. Todos os deuses seguem Zeus nesta procissão. Enquanto os carros dos deuses são equilibrados e fáceis de controlar, aqueles que estão no céu devem domar o seu cavalo ruim, pois este os arrastará de volta para a Terra. À medida que a procissão alcança o alto do céu, os deuses são levados, em um movimento circular, a contemplar tudo o que está além do paraíso. Sócrates diz que as coisas que não fazem parte do céu não tem cor, forma ou matéria, e só podemos conhecê-las com a inteligência. Nessa jornada eles são capazes de ver a justiça, o autocontrole, o conhecimento e todas as coisas que são em si mesmas, imutáveis. Depois da procissão circular, os deuses recuam para dentro do céu. As almas imortais que seguem os deuses de perto conseguem conduzir seus carros até a borda do paraíso e olhar para a realidade. Como têm dificuldade em lidar com seus cavalos, elas percebem algumas coisas da realidade, outras não. Outras almas, que são incapazes de conduzir seus carros, nem sequer 121 FILOSOFIA ANTIGA percebem o que há na realidade. Continuam, portanto, dependentes de suas opiniões, sem conhecer a verdade. Quando uma alma percebe qualquer coisa verdadeira, passa a subir mais alto e conseguir também ver mais a realidade. Contudo, ao final, todas as almas caem de volta à Terra. Dependendo da percepção da verdade que elas aprenderam a ver na realidade, aquelas que evoluíram são reencarnadas como filósofos, e as demais vão se tornando reis, estadistas, médicos, profetas, poetas, trabalhadores manuais, sofistas e tiranos, respectivamente. As almas têm ciclos de reencarnação. Geralmente, leva 10 mil anos para que uma alma deixe crescer suas asas e volte para onde veio; já os filósofos, depois de terem sido filósofos por três vezes seguidas, deixam crescer suas asas e retornam ao céu após 3 mil anos. Isso acontece porque eles já viram tudo o que tinham de ver e sempre mantêm em sua memória aqueles conhecimentos. Eles ignoram as preocupações humanas e são atraídos para o divino. As pessoas comuns os repreendem por isso, pois não sabem que o amante da sabedoria é possuído por um deus. Essa é a verdadeira loucura do amor, o amor à sabedoria. Quando alguém manifesta esse tipo de amor depois de ver a beleza aqui na Terra, lembra-se da verdadeira beleza que foi vista no céu. Quando lembram, suas asas voltam a crescer. Quando se lembram da verdadeira beleza ao ver um menino bonito, ele é chamado de amante. Embora todas as almas tenham visto a realidade como ela deve ser para os humanos, nem todas se lembram disso. As que não se lembram se confundem com a beleza em si e só perseguem os desejos da carne. Esta busca do prazer, mesmo quando manifestada pelo amor dos corpos bonitos, não é inspirada pela loucura divina; apenas demonstra que essas almas perderam a razão. Quando uma alma iniciada vê um jovem lindo, experimenta a maior alegria. Quando longe do jovem, ocorre uma dor na alma trazida pela saudade, e as asas voltam a endurecer. Assim, o amante é tomado pela angústia. Sócrates volta ao exemplo da carruagem. O bom cavalo é controlado pela sensação de vergonha da alma, mas o mau cavalo excita o desejo e faz tudo que pode para propor ao jovem os prazeres do sexo. Todavia, mesmo que isso aconteça, quando o condutor do cavalo olha para o rosto do jovem, sua memória traz de volta a visão das formas de beleza e do autocontrole que ele possuía na procissão com os deuses. Como isso ocorre algumas vezes, finalmente o mau cavalo se torna obediente e, depois de domado, ao ver o rosto do jovem, a alma do condutor permite que ele trate esse jovem com reverência e admiração. À medida que ele se aproxima do jovem, se o amor é recíproco, surge nova oportunidade para o contato sexual. Se o amor superar esse desejo, os dois se tornam verdadeiros campeões olímpicos. É a combinação perfeita de autocontrole humano e loucura divina, e depois da morte suas almas retornam ao céu. Aamizade de um amante é divina, conclui Sócrates, enquanto a de um não amante oferece apenas prazeres humanos baratos e lança a alma na Terra por 9 mil anos. Ele pede desculpas aos deuses pelos discursos anteriores, e Fedro se junta a Sócrates em oração. Depois, Fedro concorda que o discurso de Sócrates foi melhor do que o de Lísias. Então, eles começam a discutir a natureza e os usos da retórica. Sócrates insiste que um discurso em si não é algo reprovável. O que é vergonhoso é falar ou escrever com maldade ou sem vergonha. 122 Unidade II Fedro afirma que, para ser um bom orador, não é preciso conhecer a verdade, mas persuadir, pois a persuasão é a finalidade do discurso. Sócrates responde que um orador que não distingue o mal da boa vontade não tem qualidade. No entanto, Sócrates não condena a arte da retórica, e pondera que mesmo quem deseja honrar a verdade precisa convencer quem escuta. Para exercer a arte da retórica, devem-se apresentar divisões sistemáticas entre dois tipos diferentes de enunciado: quando se fala de coisas concretas, todos os ouvintes entendem a mesma coisa; contudo, quando se fala de ideias e conceitos, cada ouvinte ouve coisas diferentes. Como Lísias não começou fazendo essa distinção e não conseguiu definir o que é o amor desde o início, seu discurso parece palavras jogadas ao léu. Sócrates entende que todo discurso deve ser tratado como um organismo vivo, com um corpo próprio. Precisa ter pé e cabeça e um meio, e tudo deve se encaixar para formar o todo. O discurso de Sócrates sobre o amor começou com uma tese, e o pensador fez várias divisões até chegar ao amor divino e o estabelecer como o maior dos bens. A arte de fazer essas divisões é a dialética e não a retórica. Sócrates e Fedro lembram que os grandes oradores do passado organizaram seus discursos com uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão. Entretanto, Sócrates diz que não saber usar essas ferramentas é como um músico que conhece as notas, mas não entende de harmonia, ou um médico que conhece os remédios, mas não entende a origem da febre. Só quem domina a dialética não faz discursos vazios de significado. Sócrates conta uma lenda egípcia sobre a descoberta da escrita: o deus Theut deu a escrita de presente ao rei Thamus, dizendo que ele deveria ensinar a todos a escrever. Quando o deus Theut diz que a escrita é um remédio para a memória, o rei Thamus responde que a escrita permite que se lembre alguma coisa que não se consegue guardar na memória. É um remédio para lembrar, sem precisar adquirir, diz ele, e isto apresenta uma aparência de conhecimento, mas não a realidade da sabedoria. As gerações futuras podem ler muito, mas se não internalizarem a sabedoria vão apenas parecer sábias. Como não são sábias de fato, será difícil que elas tenham sucesso. Nenhuma instrução escrita de uma arte, diz Sócrates, tem a garantia de produzir bons resultados, mas apenas de lembrar como se deve fazer para aqueles que já sabem. Além disso, os escritos são silenciosos. Como não podem falar nem responder perguntas, dificilmente conseguem fazer sua própria defesa. 6.3.1 Hybris (Fedro, 238) Com este termo, que não tem tradução nas línguas modernas, os gregos entenderam qualquer violação dos limites que o homem deve manter nas suas relações com os outros homens e com a ordem das coisas. A injustiça é uma forma de hybris, porque é a transgressão dos limites em relação aos outros homens. Para Platão, a hybris acontece quando se ultrapassa “a medida do justo” (Fedro, 238a). Aristóteles entendeu que a hybris era uma ofensa gratuita feita aos outros apenas pelo prazer de sentir-se superior (Ret., II, 2, 1378b23; ABBAGNANO, 2007, p. 520). 123 FILOSOFIA ANTIGA Lembrete A noção de causa surge com Platão, que a considera como o princípio pelo qual uma coisa é ou torna-se o que é. 6.3.2 Princípio (Fedro, 245c; Teet., 155d) Platão usava o conceito de princípio no sentido de causa do movimento (Fedro, 245c) ou de fundamento da demonstração (Teet., 155d). Aristóteles foi o primeiro a fazer uma lista de todos os seus significados. Princípio é o ponto de partida de um movimento. Princípio é o que facilita aprender uma coisa. Princípio é o início de um objeto construído. É a causa externa de um processo ou de um movimento. O princípio também pode significar mudanças de ação ou de comportamento e, finalmente, o princípio é o início do processo de conhecimento. Aristóteles diz que toda causa é um princípio, e que assim ambos são pontos de partida do ser, do devir ou do conhecer (Met., V, 1, 1012b32-1013a19; ABBAGNANO, 2007, p. 792). 6.3.3 Imortalidade (Fedro, 245d) A imortalidade da alma foi admitida por pensadores órficos, pitagóricos e Platão. Platão dizia: Toda alma é imortal, porque o que se move incessantemente é imortal. Aquilo que move outra coisa e é movido por outra coisa, ao parar de mover-se, para de viver. Só o que se move por si, pelo que nunca falta a si mesmo, nunca deixa de mover-se, mas é também fonte e princípio de movimento para todas as coisas que se movem (Fedro, 245d). Platão explica no Fédon que a alma, por participar necessariamente da ideia de vida, não pode deixar de viver, do mesmo modo que o número três, que participa necessariamente da ideia de ímpar, não pode deixar de ser ímpar (Féd., 104-107; ABBAGNANO, 2007, p. 542). 6.3.4 Queda (Fedro, 248a) O mito da queda aparece em Fedro quando Platão escreve que a alma humana teria decaído de um estado original de perfeição, no qual contemplava a verdade de frente, na bem-aventurança (Fedro, 248a; ABBAGNANO, 2007, p. 819). 6.3.5 Belo (Fedro, 250) A ideia que temos hoje do belo, que reconhecemos nos objetos e nas coisas que admiramos, nasceu com a filosofia moderna. Para Platão, a beleza era uma das substâncias perfeitas, à qual “coube o privilégio de ser a mais evidente e a mais amável” (Fedro, 250e). Por isso, na beleza e no amor que ela suscita, o homem encontra o ponto de partida para a recordação ou a contemplação das substâncias ideais (Fedro, 251a; ABBAGNANO, 2007, p. 105). 124 Unidade II 6.3.6 Método (Fedro, 270c) Platão utiliza o termo método como sinônimo de investigação numa filosofia, como o método cartesiano. Entretanto, também o usa para indicar um procedimento organizado, que pode ser repetido e corrigido, e que garante que se alcancem resultados válidos (Fedro, 270c) Aristóteles utiliza essa palavra com os mesmos sentidos (Pol., 1289a26; Ét. Nic., 1129a6; ABBAGNANO, 2007, p. 668). 6.3.7 Diálogo (Fedro, 275) Platão deixa clara sua desconfiança dos discursos escritos, porque eles não respondem a quem tem dúvidas sobre o texto e não escolhem seus interlocutores (Fedro, 275c). Talvez esse tenha sido o motivo maior que levou Sócrates a não escrever e manter sua forma de conversa dialógica. O diálogo como forma literária procura reproduzir o ritmo da conversa e ajuda a investigação conjunta. A exigência do diálogo está presente em todas as formas da dialética. Ele permite a discussão das questões filosóficas, incluindo as teses contrárias, sem abrir mão da polêmica. O diálogo inclui, dessa maneira, a tolerância filosófica e a religiosa, quando admite o reconhecimento de outros pontos de vista, que são também considerados legítimos, bem como a boa vontade de entender as suas razões (ABBAGNANO, 2007, p. 274). 6.4 O Banquete Figura 17 Disponível em: https://bit.ly/3Tvo8cH. Acesso em: 10 nov. 2022. O Banquete narra um simpósio, que era uma conversa que acontecia depois da refeição. Na Grécia antiga, após a refeição formal, os homens se retiravam para a sala reservada para eles, e todos se sentavam ou deitavam em grandes sofás encostados às paredes, para conversar. Geralmente se bebia nesse momento, deixando claro que nem todas as falas nasciam da razão. Na narrativa de 125 FILOSOFIA ANTIGA Platão, a festa acontece na casa do dramaturgo Agatão em Atenas. Muitas personalidades da época estão presentes. O Banquete é narrado por Apolodoro. Na introduçãoApolodoro conta para um amigo que foi organizado um banquete pelo dramaturgo Agatão para celebrar sua vitória num festival de peças de teatro, a Dionísia de 416 a.C. Apolodoro não participou do banquete, que aconteceu quando ele ainda era criança, mas ele ouviu a história de Aristodemo, que esteve presente. Apolodoro depois confirmou várias partes da história com Sócrates, de quem era um grande admirador. Então, Apolodoro passa a narrar o banquete acontecido na casa de Agatão, quando o anfitrião desafia os presentes a discursar em louvor do deus Eros, o deus do amor. Enquanto todos comem, se perguntam onde está Sócrates, que está atrasado. Dizem que ele parou para pensar na varanda de um vizinho e se perdeu em seus pensamentos. Quem primeiro sugere que todos devem fazer um discurso em elogio a Eros é Fedro. A proposta é competir quanto a quem faz o melhor discurso, e é o deus Dionísio quem deve julgar. Quando Sócrates aparece, todos preveem que os discursos serão superados pelo de Sócrates, que vai falar por último. Fedro começa dizendo que Eros é o mais antigo dos deuses e conclui que é ele quem promove a virtude nas pessoas. Pausânias é o segundo orador, e introduz a distinção entre o amor nobre e o amor tosco, o que antecipa o discurso de Sócrates. O amante tosco busca gratificação sexual, e seus objetos são mulheres e jovens. O amante nobre volta seu carinho aos jovens, estabelecendo relações ao longo da vida, que trazem os benefícios descritos por Fedro. Este amor deve honrar a inteligência e a sabedoria de um só parceiro. Em seguida, Erixímaco discursa na vez de Aristófanes, já que ele ainda não se recuperou de seu ataque de soluço. Erixímaco começa dizendo que o amor afeta tudo no universo, inclusive as plantas e os animais. Afirma acreditar que, quando alcançamos o amor, devemos protegê-lo. Eros, o deus do amor, dirige tudo o que acontece entre os humanos e os deuses (Banq., 186b). Há duas formas de amor entre os humanos, e uma é saudável, mas a outra é doente (Banq., 186b-c). O amor pode ser capaz de curar os doentes. O amor guia a medicina, a música e a astronomia (Banq., 187a). Erixímaco sugere também que a teoria dos humores é regida pelo amor, quando regula o calor e o frio, a umidade e a aridez; quando tudo está em equilíbrio, resulta em saúde (Banq., 188a). Ele conclui: “O amor como um todo tem total poder e é a fonte de toda felicidade. Ele nos permite associar e ser amigos, uns com os outros e com os deuses” (Banq., 188d). Sua descrição de Eros é que ele encoraja a moderação e a solidez da mente e do caráter. Em seguida fala Aristófanes, um dramaturgo cômico. Aristófanes conta uma história fantástica e mitológica. Seu discurso é uma explicação do porquê de as pessoas apaixonadas dizerem que se sentem inteiras quando encontram seu parceiro amoroso. Ele observa que as pessoas devem entender a natureza humana antes de interpretar as origens do amor e como isso afeta suas vivências contemporâneas. 126 Unidade II Isto porque, nos tempos primitivos, os seres eram formados de dois corpos, cada um com seus próprios rostos e membros. Como criaturas esféricas, elas andavam como palhaços que fazem cambalhotas aos pares (Banq., 190a). Contudo, esses seres originais eram muito poderosos. Havia três sexos: o masculino, o feminino e o andrógino, que era meio masculino, meio feminino. Essas criaturas tentaram escalar as alturas do Olimpo e planejaram se estabelecer entre os deuses (Banq., 190b-c). Zeus pensou em fulminá-los com raios, mas, como não queria se privar de sua devoção e das oferendas, decidiu cortá-los pela metade, separando os dois corpos. Por isso que até hoje as pessoas andam por aí procurando sua cara-metade, que seria o mesmo que encontrar sua natureza primitiva. As mulheres que foram separadas das mulheres correm atrás de seu próprio tipo (as lésbicas). Os homens que foram separados de outros homens também procuram seu próprio tipo e adoram ser abraçados por outros homens (Banq., 191e). Todavia, aqueles que derivam de seres andróginos, são os homens e as mulheres que se envolvem no amor heterossexual. Ele diz que há quem acredite que os homossexuais são desavergonhados, mas acha que eles são os mais valentes e mais viris, pois os homossexuais são os melhores políticos e artistas (Banq., 192a), e que os heterossexuais são adúlteros e infiéis (Banq., 191e). Aristófanes ainda afirma que, quando duas pessoas que foram separadas uma da outra se encontram, elas nunca mais querem se largar (Banq., 192c). Aristófanes termina dizendo que os homens devem temer os deuses e adorá-los, senão eles vão nos cortar ao meio novamente e acabaremos pulando numa perna só (Banq., 193a). Se os humanos aceitarem Eros, deus do amor, eles escaparão desse destino. O discurso seguinte é de Agatão. Ele reclama que os palestrantes anteriores cometeram o erro de felicitar a humanidade pelas bênçãos do amor, não prestando a devida homenagem ao próprio deus (Banq., 194e). Segundo ele o amor é o mais novo dos deuses, é inimigo da velhice (Banq., 195b) e se apega à juventude. Agatão afirma que o amor é delicado, gosta de andar na ponta dos pés nas flores e nunca se instala onde não há “broto para florescer” (Banq., 196b). Parece que todos os personagens da festa, com a possível exceção dele mesmo, não seriam passíveis do sentimento de amor. Contudo, ele também acredita que o amor é fonte da justiça, da moderação, da coragem e da sabedoria, ou seja, das virtudes cardeais da Grécia antiga. Apesar de desprovido de conteúdo filosófico, o discurso que Platão escreve para Agatão é muito bonito e contribui para a ideia de amor platônico, de que o objeto do amor é a beleza. Sócrates se volta educadamente para Agatão e, com sua ajuda, começa um diálogo com uma série de perguntas e respostas. Acontece que Agatão acaba concordando com muitos pontos de vista de Sócrates, e contradizendo várias afirmações que tinha feito anteriormente (Banq., 199d). Sócrates narra o que lhe foi dito por uma mulher, Diotima. Diotima inicia explicando que o amor é um espírito entre os deuses e os seres humanos. Nasceu tendo como pai a “confraternização” e mãe a “pobreza”. Assim, o amor herdou qualidades dos dois progenitores, pois é majestoso, severo e mestre de artifícios e decepções (Banq., 203d), mas também é delicadamente equilibrado e engenhoso (Banq., 204c). Como nasceu na festa de aniversário de Afrodite, 127 FILOSOFIA ANTIGA tornou-se seu seguidor e servo e, consequentemente, é um amante da beleza; como a sabedoria é uma das coisas mais belas, é ainda amante da sabedoria. Diotima define o objetivo do amor como “a possessão perpétua do que é bom”. Os amantes estão prenhes do que é bom e alcançam a imortalidade através da procriação, seja ela intelectual ou física. Diotima explica que os seres humanos devem tentar proceder a uma ascensão para alcançar a forma ideal do belo. Devem começar com o amor a uma pessoa linda em particular. Depois devem passar desta instância particular para o belo em geral, fazendo um movimento entre a beleza física e a beleza moral. O quarto passo é alcançar o amor pela sabedoria, e finalmente a apreciação da beleza absoluta e divina, o ideal do belo. Quando Sócrates vai começar seu discurso, chega Alcibíades, o grande general, belo, mas embriagado. Sua chegada é interpretada como a do deus Dionísio, que deve julgar os discursos. Alcibíades se senta com Sócrates e Agatão, e diz que Sócrates conseguiu novamente se sentar ao lado do homem mais bonito da sala, que é Agatão (Banq., 213c). Sócrates pede a Agatão para protegê-lo dos ciúmes de Alcibíades, reivindicando a Alcibíades que o perdoe (Banq., 213d). Alcibíades diz que vai perdoá-lo (Banq., 213e). Perguntando por que todos parecem sóbrios, Alcibíades é informado do acordo feito anteriormente (Banq., 213e, c). Depois de dizer que suas divagações de bêbado não merecem ser ouvidas da mesma forma que os discursos, ele insiste que não espera que ninguém acredite em umapalavra que Sócrates disse. Mas Alcibíades resolve elogiar Sócrates (Banq., 214c-e). Alcibíades compara Sócrates com uma estátua de Sileno: a estátua é feia e oca, mas está cheia de pequenas estátuas douradas dos deuses (Banq., 215a-b). Depois compara Sócrates com o sátiro Mársias. Mas Sócrates, diferentemente do sátiro, não precisa de uma flauta para enfeitiçar as pessoas, pois consegue esse feito apenas usando suas palavras (Banq., 215b-d). Alcibíades declara que, quando ele ouve Sócrates falar, se sente tão profundamente perturbado, que sua alma começa a perceber que sua vida aristocrática não é melhor que a de um escravo (Banq., 215e). Sócrates é o único homem que faz Alcibíades sentir vergonha (Banq., 216b). No entanto, Sócrates é fascinado por jovens lindos, perseguindo-os encantado (Banq., 216d). Ele afirma que a maioria das pessoas não sabe quem é Sócrates por dentro. Alcibíades pensou que Sócrates o queria sexualmente, e resolveu deixar que ele o seguisse e assim tentaria ensinar-lhe tudo o que sabia (Banq., 217a). Todavia, Sócrates não foi atrás dele, e foi Alcibíades quem começou a seguir Sócrates, “como se eu fosse amante e ele minha jovem rapina!”(Banq., 217c). Como Sócrates continuamente o rejeitou, Alcibíades começou a pensar em Sócrates como o único amante verdadeiro e digno que já teve. Então, diz a Sócrates que nada poderia ser mais importante do que aprender com ele como se tornar uma pessoa melhor, e pede para Sócrates ajudá-lo a alcançar esse objetivo (Banq., 218c-d). 128 Unidade II Sócrates responde que, se ele tivesse esse poder, por que trocaria sua verdadeira beleza interior pela aparência de beleza que Alcibíades pode oferecer? Além disso, Alcibíades pode estar errado e ele no fundo pode ser inútil para Alcibíades (Banq., 218e-219a). Alcibíades passa o resto da noite dormindo ao lado de Sócrates (Banq., 219b-d). Finalmente, Alcibíades discursa descrevendo as virtudes de Sócrates. Conta inclusive que Sócrates salvou sua vida numa batalha e depois se recusou a aceitar honras (Banq., 219e-221c). Conclui dizendo que Sócrates é único em suas ideias e realizações, incomparável a qualquer homem do passado ou do presente (Banq., 221c). E que fique o alerta: Sócrates até pode tentar cortejar você, mas, antes que você o conheça realmente, estará apaixonado por ele. Sob a influência de Dionísio, todos ficam bêbados. Aristodemo vai dormir. Quando ele acorda na manhã seguinte, Sócrates ainda está falando e debatendo. Finalmente, todos adormecem; Sócrates se levanta e vai tratar da sua vida. Observação Em português a obra é conhecida como O Banquete; contudo, em outras línguas ela é chamada de O Simpósio. 6.4.1 Temperamento (Banq., 188a; Tim., 86b) Platão evoca a medicina para explicar como o estado de saúde influencia a disposição do homem de agir, de acordo com a mescla de humores que compõem seu corpo (Banq., 188a; Tim., 86b). A teoria do temperamento é de Hipócrates (século V a.C.), considerado o pai da medicina. Hipócrates descreveu os humores como os quatro fluidos do corpo para o exame de um paciente: o sangue, a fleuma (os mucos nasal e intestinal e a saliva), a bile amarela (secreção do fígado) e a bile negra (a secreção do baço ou do pâncreas), correspondentes aos quatro elementos do macrocosmo. De acordo com o humor predominante, temos os quatro temperamentos: o sanguíneo, o fleumático, o bilioso e o melancólico (ABBAGNANO, 2007, p. 944). 6.4.2 Sexo (Banq., 189c) Platão, ao falar da origem do sexo, conta o mito dos andróginos para explicar a origem dos comportamentos sexuais (Banq., 189c). Todavia, a filosofia de Platão não se detém sobre o sexo, mas discute o amor. Platão, embora afirmasse a inferioridade da mulher (Rep., 455), acreditava que os homens e as mulheres deviam receber educação de acordo com suas aptidões para comporem a cidade ideal: filósofos, guerreiros, artesãos. Nesse sentido, o sexo deveria garantir que as pessoas se reproduzissem de forma controlada para que seus filhos herdassem suas qualidades (ABBAGNANO, 2007, p. 889). 129 FILOSOFIA ANTIGA 6.4.3 Gênero (Banq., 190c) Platão usou a ideia de gênero com três significados. O primeiro é o gênero como a geração dos seres da mesma espécie, e é neste sentido que falamos do gênero humano (Banq., 190c). O segundo sentido é empregado para determinar a hereditariedade das linhagens (Banq., 191c). Platão ainda usa gênero no sentido de diferenças entre as pessoas: “Cada figura é semelhante a outra figura, porque no gênero todas elas formam um todo. No entanto, as partes do gênero ou são contrárias umas às outras ou são diferentíssimas entre si” (Fil., 12e; ABBAGNANO, 2007, p. 478). 6.4.4 Amor (Banq., 200a) O Banquete é o primeiro tratado filosófico sobre o amor. Fica claro que, apesar da origem sexual, as características do sexo devem ser sublimadas para que se alcance o verdadeiro amor. O amor nasce da necessidade, que incita o desejo de conquistar e de conservar uma coisa que não se possui (Banq., 200a). O amor dirige-se para a beleza, que não é outra coisa senão o anúncio e a aparência do bem, logo, desejo do bem (Banq., 205e). Ele também é o desejo de vencer a morte (como demonstra o instinto de gerar, próprio de todos os animais) e é, portanto, a via pela qual o ser mortal procura salvar-se da mortalidade, não permanecendo sempre o mesmo, como o ser divino, mas deixando após si, em troca de envelhecer e morrer, algo de novo que se lhe assemelha (Banq., 208a-b). Platão distingue tantas formas do amor quantas são as do belo, desde a beleza sensível até a beleza da sabedoria, que é a mais elevada de todas e cujo amor, isto é, a filosofia, é, por isso mesmo, o mais nobre (Banq., 210a). Em Fedro, a finalidade é mostrar o caminho pelo qual o amor sensível pode tornar-se amor pela sabedoria, isto é, pela filosofia, e o delírio erótico pode tornar-se uma virtude divina, que afasta dos modos de vida usuais e empenha o homem na busca dialética do conhecimento do mundo (Fedro, 265b). Essa doutrina platônica do amor, ao mesmo tempo que contém os elementos de uma análise positiva do fenômeno, oferece também o modelo de uma metafísica do amor (ABBAGNANO, 2007, p. 38; AUDI, 1999, p. 712). 6.4.5 Alma bela (Banq., 210b) Platão fala da beleza na alma como uma forma de beleza superior à beleza do corpo (Banq., 210b; ABBAGNANO, 2007, p. 33). Observação Pela ordem cronológica, A República deveria entrar aqui, entre O Banquete e Teeteto. Contudo, por se tratar de um texto fundamental na obra de Platão, preferimos abordá-lo antes. 130 Unidade II 7 TEETETO, LEIS, SOFISTA E POLÍTICO Nesta unidade, prosseguiremos com a leitura de diálogos de Platão já na sua fase madura. Você vai notar que Sócrates deixa de ser o centro das atenções, com novas personagens debatendo diretamente as ideias de Platão. 7.1 Teeteto Figura 18 Disponível em: https://bit.ly/3A5Bw00. Acesso em: 10 nov. 2022. O diálogo tem uma breve introdução em que Euclides de Megara conta a seu amigo Terpsião que viu Teeteto passando muito mal depois de uma batalha. Euclides diz que tem um registro escrito de um diálogo entre Sócrates e Teeteto, que ocorreu quando Teeteto era jovem. Este diálogo é então lido em voz alta para os dois homens por um escravo de propriedade de Euclides. Sócrates pergunta a Teodoro se ele conhece algum estudante de geometria que demonstra ser um futuro mestre. Teodoro diz que sim, mas que ele não queria elogiar muito o rapaz para que ninguém pensasse que ele estava apaixonado por ele. Ele observa que o jovem Teeteto lembra muito o jovem Sócrates. Os dois homens encontram Teeteto passando óleo no corpo. Teodoro diz que ele é inteligente, viril e um órfão cuja herança foi desperdiçada pelos seus tutores. Sócrates comenta com Teeteto que ele não consegue chegar a uma conclusão sobre o que é o conhecimento, e está procurando um conceito simples para descrevê-lo. Teeteto afirma que não sabe a resposta e Sócrates declara que está lá para ajudar.Sócrates diz que moldou sua vida seguindo o exemplo de sua mãe, que era uma parteira. Da mesma forma que ela ajudava os bebês a nascer, Sócrates consegue perceber quando um jovem está prestes a dar à luz uma ideia. Sócrates compara seu trabalho filosófico com a obstetrícia, ou maiêutica. Esse método, que depois será chamado de método socrático, consiste em gerar o conhecimento com uma série de perguntas e respostas. 131 FILOSOFIA ANTIGA Sócrates acredita que a ideia do conhecimento é a percepção, e deve estar de acordo, pelo menos no sentido figurado, com a máxima de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Sócrates se esforça em conseguir concatenar as duas ideias. Sugere falácias lógicas para que Teeteto chegue a uma conclusão. O jovem reclama que Sócrates quer confundi-lo. Contudo, Teeteto retoma o pensamento e se admira com o raciocínio apresentado. Sócrates diz que sua admiração pertence à natureza do filósofo. Ele sugere ao jovem ser paciente e aguentar suas perguntas, para que suas crenças ocultas sejam desfeitas na luz do dia. Sócrates faz um resumo do que todos concordaram até então. Todavia, aparece um problema, pois o conhecimento não pode ser uma percepção sensorial. Sócrates pergunta por que, quando o mesmo vento sopra, um de nós sente frio e o outro não. Como resposta ele se vale da ideia de fluxo de Heráclito: “Nada é em si apenas uma coisa... Tudo está em um processo de ser”. Como não há um significado fixo nas coisas, elas constroem seu significado a partir da relação de diferença que têm para as outras coisas. Ele incorpora ao seu raciocínio a afirmação de Teeteto de que “o conhecimento é percepção sensorial”, e eles passam a investigar se essa afirmação é verdadeira. Sócrates lamenta que Protágoras esteja morto e não possa defender sua ideia. Resolve então se colocar no lugar de Protágoras para defender sua ideia como ele o faria (Teet., 166a-168c). Sócrates diz que Protágoras afirma com a sua máxima que todas as coisas estão em movimento; o que quer que seja está em movimento para quem o percebe, seja um indivíduo, seja o Estado. Teodoro diz que não era um discípulo de Protágoras, mas afirma que ele era um amigo. Sócrates convida Teodoro a defender melhor Protágoras do que ele conseguiu fazer (Teet., 168d). Entretanto, Sócrates não tem certeza de que não deturpou Protágoras ao atribuir a cada um a medida de sua própria sabedoria. Pressiona Teodoro com a questão, e ele sugere que Protágoras admite que aqueles que não concordam com ele estão corretos (Teet., 171a). Ao retratar Protágoras como um relativista epistemológico, quando as percepções individuais de cada pessoa são sua realidade e sua verdade, Sócrates e Teodoro atribuem a Protágoras uma posição lógica absurda. Sócrates muda de assunto e tenta esclarecer por que os filósofos parecem desajeitados e estúpidos para o resto da humanidade. Ele explica que os filósofos se expõem à zombaria porque não estão preocupados com o que interessa para a maioria das pessoas. Eles não se importam com escândalos na casa do vizinho, nem com coisas sem importância. O filósofo se preocupa com coisas que existem, como beleza e conhecimento. Sócrates desenha o retrato clássico do intelectual distraído, que não consegue fazer a cama nem cozinhar uma refeição (Teet., 175e). Sócrates afirma ainda que existem apenas dois tipos de vida para os seres humanos: a vida feliz dos filósofos justos, ou a vida amarga e miserável, como a da maioria das pessoas (Teet., 176-177). Sócrates percebe que esta digressão está atrapalhando o seu projeto original, de definir o conhecimento. Teodoro responde que ele acha essas digressões de Sócrates mais fáceis de seguir do que seus argumentos anteriores. Para voltar a falar em ter conhecimento, Sócrates faz uma distinção entre ter e possuir. Ter implica possuir, sempre; por outro lado, alguém pode possuir alguma coisa, como um pássaro, sem realmente tê-lo com ele a qualquer momento (Teet., 199a). Sócrates compara a mente humana com uma gaiola e observa que, quando um homem persegue em sua mente o conhecimento de alguma coisa, ele pode 132 Unidade II alcançar uma coisa errada. Diz que confundir entre onze ou doze é como pôr um pombo na gaiola e, na hora de buscá-lo, pegar uma pomba (Teet., 199b). Teeteto sugere que, para completar a imagem da gaiola, você precisa imaginar pedaços de ignorância voando dentro dela com os pássaros. Contudo, se é assim, como distinguir entre as aves que representam o conhecimento real e as que representam o falso? Existem outros pássaros que significam esse tipo de conhecimento? Sócrates chega à conclusão de que isso é absurdo e descarta a analogia da gaiola. Sócrates e Teeteto retornam à definição de conhecimento como “julgamento correto” (Teet., 200e). O julgamento correto seria, para Teeteto, a verdade livre de erros (Teet., 200e). Entretanto, Sócrates contra-argumenta dando como exemplo um júri num tribunal, sendo persuadido a acreditar num advogado. Essa persuasão não é o mesmo que conhecer a verdade. Tudo que o advogado deseja é produzido para criar uma posição a seu favor (Teet., 201a). Embora Teeteto acredite que isso é possível de acontecer, o advogado também pode persuadir o júri da verdade (Teet., 201b). Sócrates não gosta da ideia de que alguém persuadido alcança o conhecimento verdadeiro, pois aqueles que escutam não sabem julgar corretamente o que ouvem (Teet., 201c). Então, a partir desse conflito, Sócrates decide que o julgamento correto e o conhecimento devem ser coisas diferentes. Teeteto lembra que o julgamento correto deve ser relativo a alguma coisa da qual nos damos conta, e isso deve equivaler ao conhecimento (Teet., 201d). As coisas das quais não nos damos conta são incognoscíveis, enquanto aquelas das quais nos damos conta são conhecidas. Sócrates responde contando um sonho que teve, no qual ele ouviu falar de elementos primários (Teet., 201e). Esses elementos primários só podem ser nomeados, mas não podemos decidir se existem ou não. Os exemplos são palavras como “em si, que, cada, sozinho ou este” (Teet., 202a). Originalmente são apenas palavras, nomes, que isolados não dizem muita coisa. Quando esses elementos são agregados, Sócrates entende que se forma um complexo (Teet., 202b). Os elementos primários são “inexplicáveis e incognoscíveis, mas percebíveis”, enquanto os complexos são “conhecíveis e expressáveis” e, portanto, podem ser objeto de um “julgamento correto” (Teet., 202b). Ele finalmente concorda com Teeteto que o conhecimento é um julgamento correto de alguma coisa de que nos damos conta (Teet., 202c). No entanto, Sócrates demonstra dificuldade quando examina as letras. Ele pega as duas primeiras de seu nome, S e O, e se pergunta se a sílaba Só é conhecida enquanto as letras individuais não o são (Teet., 203b-d). Teeteto responde que a ideia é estranha, e então Sócrates deduz que, para conhecer a sílaba, as letras deveriam ser conhecidas primeiro (Teet., 203e). Sócrates propõe que a sílaba possa ser uma forma única produzida a partir das letras. Com isso em mente, Sócrates considera se a soma e o produto são a mesma coisa (Teet., 204a). Teeteto diz inicialmente que não são, mas muda de opinião quando Sócrates pede que ele use diversas formas matemáticas para expressar o número seis (Teet., 204c-205b). Quando Teeteto concorda com Sócrates, o filósofo volta ao tema das sílabas e das letras para concluir, das respostas de Teeteto, que as sílabas são diferentes das letras e não podem conter letras (Teet., 205b). Teeteto diz que isso é ridículo (Teet., 205c). Sócrates volta a falar sobre a diferença entre os elementos primários e os complexos e propõe que eles pertencem à mesma classe, pois não têm partes e constituem uma única forma (Teet., 205d). 133 FILOSOFIA ANTIGA Sócrates resume esta inversão observando que, se alguém tentar dizer que o complexo é cognoscível e expressável enquanto o elemento não o é, é melhor não dar ouvidos (Teet., 205e).Ele sugere o exemplo de um músico que sabe distinguir as notas individuais, que são os elementos primários da música, para indicar que os elementos são mais fáceis de serem conhecidos (Teet., 206b). Então, quando conhecemos os elementos primários, temos um conhecimento muito mais claro e eficiente do que o das sílabas, no estudo de qualquer disciplina. Uma explicação consiste em tornar claro o pensamento por meio da voz, com o emprego de verbos e substantivos, fazendo refletir-se como num espelho a imagem de sua opinião. Teeteto concorda com ele (Teet., 207a). Ou seja, Sócrates sugere que um homem, ao vocalizar seu julgamento, deveria poder fazer referência aos elementos primários do assunto (Teet., 207a). Dando o exemplo de definir uma carroça através suas partes individuais (Teet., 207a), concordam todos que uma argumentação precisa nominar elemento por elemento (Teet., 207d). Sócrates então pergunta a Teeteto: se, ao aprender a escrever, faltam letras, é possível você demonstrar ter conhecimento de como se escreve (Teet., 208a)? Esse ponto conclui a segunda argumentação de Sócrates, de que só nos damos conta de alguma coisa de fato se conhecemos todos os elementos dessa coisa e suas formas complexas de se organizar (Teet., 208c). A terceira definição que Sócrates propõe é se podemos nomear alguma coisa a partir de um detalhe ou uma característica única dela, que difere de todas as demais (Teet., 208c). No entanto, essa definição falha quando conhecemos a diversidade de um objeto. Para poder ter conhecimento, deve-se ter um julgamento correto da coisa em todos os seus elementos e em toda a sua diversidade (Teet., 210a). Saiba mais Para ler o texto completo de Teeteto, acesse: PLATÃO. Teeteto. Tradução Carlos Alberto Nunes. [s.d.] Disponível em: https://bit.ly/2vFHfJ5. Acesso em: 10 nov. 2022. 7.1.1 Maiêutica (Teet., 15c) Originalmente a maiêutica é a arte da parteira. Sócrates declara em Teeteto que essa era a profissão de sua mãe. Sócrates compara sua forma de ensinar a essa arte, porque consiste em fazer nascer o conhecimento que se forma na mente de seus discípulos: “Tenho isso em comum com as parteiras: sou estéril de sabedoria; e aquilo que há anos muitos censuram em mim, que interrogo os outros, mas nunca respondo por mim porque não tenho pensamentos sábios a expor, é censura justa” (Teet., 15c; ABBAGNANO, 2007, p. 637). 134 Unidade II Observação O nome maiêutica é uma homenagem clara de Sócrates à sua mãe. Trata-se de uma das raras menções à sabedoria feminina na filosofia grega. 7.1.2 Filologia (Teet., 161a) Em Platão, essa palavra significa amor aos discursos (Teet., 161a; ABBAGNANO, 2007, p. 441). 7.1.3 Movimento (Teet., 181d) Em geral, mudança ou processo de qualquer espécie. Esse significado corresponde ao termo grego. Platão distinguia entre duas espécies de movimento, a alteração e a translação (Teet., 181d). Aristóteles considerava também a geração e a corrupção como movimentos substanciais, e o aumento e a diminuição como movimentos quantitativos (Fís., III, 1, 201a10). Para ele, o movimento era a realização do que está mantido em potência, portanto coisas diferentes como uma construção, a aprendizagem, a cura, o crescimento e o envelhecimento são realizações de potencialidades (Fís., 201a16). A física aristotélica é toda ela uma teoria do movimento. O teorema fundamental, “tudo o que se move é movido por alguma coisa” (Fís., VII, 1, 256a14), leva à teoria do primeiro motor imóvel do universo, que seria a mais antiga prova da existência de Deus (ABBAGNANO, 2007, p. 686). 7.1.4 Silogismo (Teet., 186d) Essa palavra foi usada por Platão como sinônimo do raciocínio em geral (Teet., 186d). Posteriormente foi empregada por Aristóteles para indicar o tipo perfeito do raciocínio dedutivo. Ele a definiu como “um discurso em que, postas algumas coisas, outras se seguem necessariamente” (An. Pr., I, 1, 24b18; I, 32, 47a34; ABBAGNANO, 2007, p. 896). 7.1.5 Consciência (Teet., 189e; Sof., 263e) Para Platão e Aristóteles, a consciência era dar atenção aos seus próprios modos de ser, incluindo as suas ações, assim como exprimi-las através da linguagem. Na filosofia da Grécia, não havia a noção de consciência como qualquer tipo de realidade especial da espiritualidade, portanto, não havia nem a boa, nem a má consciência. Em Platão, o que melhor se aproxima dessa noção moderna de consciência da alma é a definição do pensamento como “diálogo interior da alma consigo mesma” (Teet., 189; Sof., 263e). É interessante que Platão diz que o pensamento se organiza a partir da linguagem para perguntar e responder. A linguagem é o que permite a percepção da alma, e no diálogo Filebo Platão, quando refuta a tese de que o bem consiste no prazer, argumenta que essa ideia reduziria a vida humana à vida de 135 FILOSOFIA ANTIGA um molusco fechado em sua casca. O que viria a faltar na natureza humana se a vida fosse fechada em si mesma seria a lembrança do prazer vivido, da opinião verdadeira, que permite saber que se está sentindo prazer, e do raciocínio, que faz a previsão do prazer futuro (Fil., 21c). Então, para Platão, aquilo que conhecemos sobre os nossos sentidos e sobre as ideias da alma são lembranças das nossas atividades cognitivas em geral, e essa lembrança é a consciência. Ele insiste no fato de que essas atividades cognitivas só podem ser atribuídas à alma, quando “a alma só, por si”, consegue se perguntar o que há de comum nas sensações (Teet., 185e). Aristóteles não descreve nenhuma noção de interioridade espiritual. Para ele, a consciência é estar ciente das próprias percepções sensíveis (De An., III, 2, 425b12; ABBAGNANO, 2007, p. 186). 7.1.6 Tábua rasa (Teet., 191) Segundo Abbagnano (2007), esta expressão sugere que a alma nasce sem informações até adquirir conhecimento. Essa comparação da alma com o processo de gravação de sinais numa tábua de cera apareceu em Ésquilo (Prom., 789). Platão comparou a alma a um bloco de cera onde são gravadas as sensações e os pensamentos, para depois nos lembrarmos delas (Teet., 191d). Aristóteles comparou o intelecto a uma tabuinha em que não há nada escrito inicialmente (De An., III, 4, 430a1; ABBAGNANO, 2007, p. 936). 7.1.7 Pôr (Teet.. 191c) O verbo pôr é encontrado em Platão com o sentido de assumir uma hipótese (Teet.,191c; ABBAGNANO, 2007, p. 775). 7.1.8 Elemento (Teet., 210e) O conceito de elemento como parte de um todo foi primeiro exposto por Platão (Teet., 210e; ABBAGNANO, 2007, p. 308). 7.2 Leis Durante muito tempo, até o século XIX, a autenticidade dessa obra de Platão, composta de 12 livros, foi questionada. Todavia, Aristóteles refere-se às Leis como um diálogo de Platão em numerosas passagens, e hoje nenhum estudioso sério duvida de sua autenticidade. Aristóteles escreve que Leis é uma obra posterior à República (Pol., 2.6). O questionamento se deve, em parte, ao abandono da dialética socrática. Além disso, Leis é confrontado com A República. Nas duas obras temos modelos para a constituição de cidades. Contudo, enquanto na República a cidade ideal é completamente utópica, em Leis a cidade de Magnésia, que precisa ser fundada, acaba recebendo sugestões detalhadas de Platão sobre como isso deve ser realizado. Entretanto, Platão não questiona suas próprias sugestões, nem conduz o pensamento através da investigação de outras possibilidades. Ele simplesmente dita aquilo que acredita ser certo e justo para que os homens encontrem formas virtuosas de conviver. 136 Unidade II As Leis, ao longo de 12 livros, trazem uma conversa que aconteceu em Creta. São três seus interlocutores: um visitante de Atenas chamado apenas de ateniense, e que se acredita ser o alter ego de Platão; Megilo, um espartano; e Clínias, um cretense. O ateniense propõe que os três discutam a governança e as leis enquanto fazem sua peregrinação ao templo de Zeus. Os dois primeiros livros pretendem estabelecer o objetivo maior das leis (telos), que seria o comportamentovirtuoso dos cidadãos. Neles, há discussão de vários temas que servem para pensar como a cidade poderia alcançar seu objetivo. O terceiro livro é um debate sobre as origens dos sistemas políticos (politeia). Discutem-se as mudanças nesses sistemas políticos e as tentativas do legislador de aprender a partir da história de várias cidades e reinos que existem, como Pérsia, Esparta, Creta e Atenas. Ao final do referido livro (Leis, III, 702b), Clínias revela que ele teria um uso prático para aquela discussão. As cidades de Creta decidiram fundar uma nova cidade, que seria chamada de Magnésia, numa parte remota de Creta. Ele e mais nove outras pessoas seriam responsáveis por essa fundação. Clínias pede ao ateniense para ajudar na elaboração de uma constituição e das leis. O ateniense concorda e propõe que eles usem um novo método de legislar, utilizando prelúdios que visam persuadir os cidadãos, que poderão ser lidos antes das próprias leis. Os livros 4 e 5 trazem a defesa para o uso dos prelúdios às leis em geral. O livro 5 é na verdade um exemplo de um prelúdio, talvez até mesmo um grande prelúdio à legislação. O ateniense faz uma proposta detalhada de como deveriam ser a constituição e as instituições políticas e sociais para que os cidadãos fossem virtuosos. O ateniense começa dizendo que os cidadãos deveriam honrar suas almas acima de todos os seus outros bens, pois elas são divinas. Para fazê-lo, basta seguir a virtude em vez de satisfazer todos os desejos. O corpo deve ser tratado com moderação para poder abrigar a alma. Dinheiro e propriedades também devem ser amealhados com moderação, para poderem permitir à pessoa cuidar de sua alma. O ateniense se volta para o caráter das pessoas, e censura como “o maior de todos os males” e “a causa de todos os erros cometidos de cada homem em todas as ocasiões” (Leis, V, 731d) o excesso de amor próprio, que podemos referenciar modernamente como egoísmo. Ele encoraja cada cidadão a amar não a si mesmo ou seus próprios bens, mas sim o que é justo. O ateniense define os tipos de prazer e dor que caracterizam a vida moderada e imoderada, argumentando que aqueles que qualificam a vida moderada devem ser preferidos e, portanto, que a vida virtuosa é mais agradável. Tendo terminado de expor as regras gerais para as leis do comportamento, o ateniense começa a esboçar a organização do Estado (Leis, V, 734e). Ele prescreve detalhes como o número de famílias que deverão habitar a cidade de Magnésia, suas propriedades e até mesmo a quantidade de dinheiro que cada um deve ter. Percebemos que, diferentemente de uma cidade ideal, Magnésia deve lidar com todas as características da natureza humana. No livro 5, o ateniense anuncia que eles estão tentando a construção do que seria a “segunda melhor” cidade, talvez aludindo ao fato de que Platão continuava apoiando mais o seu projeto anterior de cidade ideal. 137 FILOSOFIA ANTIGA Nas Leis a cidade até pode ser a segunda melhor, mas é mais compatível com a natureza humana. O que as Leis representam como ideal, que deve ser de fato possível de alcançar, é que precisa ser uma cidade em que todos os cidadãos estejam sujeitos às mesmas elevadas exigências éticas. Para isso, Platão desenha uma proposta das instituições sociais e políticas básicas de Magnésia. Apesar de a sua localização ser longe do mar, ela é autossuficiente em recursos, sem produzir nenhum excesso de produtos que vise à exportação. Platão entende essas inadequações como vantagens, pois desencorajam as atividades marítimas e comerciais das cidades corruptas. Estas permitiriam a ganância pelo dinheiro e pelas riquezas aos cidadãos, e muito contato com os estrangeiros, que sempre trazem diferentes hábitos e culturas, nem sempre fundamentados na boa educação ética que seria proporcionada aos habitantes de Magnésia. Em Magnésia há restrições quanto ao uso da terra. Além disso, cada família proprietária de terras deve ajudar a financiar um sistema de alimentação para todos. Platão estabelece quatro classes de propriedade: os membros da classe superior ou primeira têm ativos no valor entre três e quatro vezes o valor do lote, e as ferramentas e os animais necessários para cultivá-lo. A segunda classe recebe entre duas e três vezes do maior valor e assim por diante. O que for acumulado será confiscado pela cidade (Leis, V, 744d-745a). Tais ativos não incluem ouro e prata, que só podem ser propriedade da cidade, e haveria apenas uma moeda simbólica (Leis, V, 742a). Muitos dos habitantes de Magnésia não são cidadãos. Há uma grande população de escravos públicos e privados. Também são admitidos estrangeiros transitórios e estrangeiros residentes (metecos), que podem permanecer lá durante no máximo vinte anos. Os escravos e os estrangeiros são uma necessidade econômica para a cidade, o que permite as atividades domésticas, de produção e de comércio que os cidadãos não fariam. Os proprietários de terra ou chefes de família são indivíduos, mas a cidadania não se restringe a eles, e possuir a terra não é uma condição necessária da cidadania. Os filhos e herdeiros dos proprietários também são cidadãos, mas estão sujeitos ao serviço militar aos 20 anos, e com essa idade podem votar, mas só podem ingressar no serviço público aos 30 anos. Eles não herdarão nem a terra nem a casa até que seu pai venha a falecer. Em Magnésia, as famílias privadas continuam a existir. Contudo, elas não têm direito à propriedade. Porém, precisam ser igualmente educadas e podem estar no serviço militar e participar de suas próprias refeições comunitárias (Leis, VI, 780d). O ateniense diz que elas são capazes de alcançar as quatro virtudes cardeais (Leis, VII, 804d-805a). Em Magnésia, as mulheres podem participar das eleições e ocupar cargos políticos, e o ateniense as considera igualmente como cidadãos (Leis, VII, 814c). Magnésia dispõe de uma grande quantidade de órgãos públicos, e os principais são a Assembleia, o Conselho, os magistrados, especialmente os guardiões das leis, os tribunais e um estranho conselho que só funciona à noite. A Assembleia é a principal autoridade da cidade. Ela é composta de todos os cidadãos ou, mais precisamente, de todos aqueles que serviram ou estão servindo nas forças armadas. A Assembleia é responsável pela eleição da maioria dos cargos públicos e magistrados da cidade. Também deve julgar os crimes contra o patrimônio público e assumir a política externa. 138 Unidade II O Conselho é composto de 90 membros escolhidos por eleição de cada classe proprietária, num total de 360 membros. Os homens são elegíveis para o cargo aos 30 anos, e as mulheres aos 40. Todos os membros têm mandato de um ano. O Conselho exerce poderes administrativos comuns, como chamar e dissolver a Assembleia, receber embaixadores estrangeiros, supervisionar eleições e assim por diante. Os guardiões das leis são 37 cidadãos, com pelo menos 50 anos de idade, que assumem no momento de sua eleição até os 70 anos de idade (Leis, VI, 755a). Há quatro maneiras de eles atuarem. Têm a tarefa geral de supervisionar os cargos públicos. Exercem amplos poderes sobre os cidadãos em geral, e, por exemplo, podem cobrar multas daqueles que gastam demais, emitir passaportes e supervisionar o cuidado de órfãos. Contudo, esses guardiões das leis devem participar de uma espécie de conselho noturno, que tem esse nome justamente porque deve funcionar à noite para que todos tenham acesso a ele depois das atividades cotidianas (Leis, XII, 961b6-8). Esse conselho tem uma função educativa. Por exemplo, aqueles que violaram as leis devido à ignorância, e não ao mau caráter, ficarão presos por cinco anos. Durante esse tempo, os guardiões devem se encontrar com eles para reeducá-los (Leis, X, 909a). Platão confere a esse conselho um grande poder político. Todavia, repetidamente nas Leis, Platão enfatiza que ao permitir qualquer magistrado ou autoridade há um risco muito grande de abuso do poder. Esse risco existe mesmo se a autoridadedispuser de conhecimento, pois aqueles que conhecem a verdade também estão sujeitos à corrupção. Entre suas várias funções judiciais, os guardiões são responsáveis pelo direito de família, pelo direito de propriedade e pelo abuso das leis. A tarefa mais importante é a revisão e complementação das leis existentes. Também há um amplo sistema de tribunais em Magnésia, tanto públicos como privados. Uma das principais propostas de Platão é a estrutura elaborada para recursos nos casos judiciais. Para Platão, uma das inovações mais importantes na teoria política das Leis é a exigência de que os bons legisladores tentem primeiro persuadir os cidadãos da forma certa a agir, e não simplesmente ordenar comandos a eles por meio de leis (Leis, IV, 722b). Platão compara o legislador em Magnésia a um médico, que deve primeiro explicar para as pessoas sua condição e os motivos para determinado tratamento antes de prescrevê-lo (Leis, IV, 722b-723b). Ao fazerem isso, eles educam os pacientes e usam “argumentos que se aproximam do filosofar” (Leis, X, 857c). Platão pensa que a lei sem persuasão deve ser condenada como mero exercício da força (Leis, IV, 722b). Os prelúdios de uma lei devem ter algumas características: explicar e ensinar às pessoas as razões e os princípios que fundamentam a verdade daquela lei (Leis, 885d-e). Portanto, os prelúdios às leis devem ensinar aos cidadãos o que têm de aprender (Leis, IV, 718c, 720d, 723a; IX, 857d-e e 888a). Os prelúdios são instâncias de persuasão racional, e precisam tentar influenciar as crenças das pessoas apelando a considerações racionais. Eles devem substituir velhas crenças por novas, úteis. 139 FILOSOFIA ANTIGA Os prelúdios são destinados a fornecer instrução ética. O legislador deve ser a fonte primária de instrução sobre o que é justo e bom. Assim, os cidadãos vão aprender por que as leis são justas e boas, e também o porquê de segui-las. Devem aprender que agir virtuosamente é bom para eles. Essa proposta dos prelúdios marca uma diferença significativa com A República. A educação dos cidadãos deve lhes dar a compreensão racional das leis e, em geral, um entendimento de verdades éticas. Na República só os reis-filósofos recebem uma educação que pode resultar em uma valorização racional das verdades éticas básicas. Na República, todos os cidadãos devem permanecer dentro da caverna, menos os reis-filósofos. Aparentemente Platão concedeu, nos anos de maturidade, que para a maioria dos cidadãos só a persuasão retórica consegue apelar ao seu sentido de honra e vergonha, para que aceitem a verdade ética. Platão insiste na educação como base fundamental para a construção e manutenção da cidade. Como em outras obras, Platão é bastante crítico em relação ao conteúdo ético da poesia (e das artes narrativas em geral) e do conhecimento da ética propostos pelos poetas (Leis, IV, 719a-c; VII, 811b-e), e sugere censurar a poesia que será permitida na cidade (Leis, II, 657b; IV, 719b-d; VII, 796e-802e). Outra presença importante nas Leis é Deus. Ele é apresentado desde o início como a fonte apropriada das leis e das instituições humanas. Esta noção de Deus como legislador ou governante de uma cidade retorna no livro 4, quando os interlocutores estão considerando que tipo de constituição dar à sua nova cidade. O ateniense afirma que o melhor governante para uma cidade é Deus, e que eles deveriam imitar a regra de Deus, ordenando a sua sociedade em obediência ao elemento imortal dentro de si mesmos, ou seja, a razão, que aqui terá o nome da lei (Leis, IV, 714a; VI, 762e). Deus também é mostrado na obra como o modelo apropriado para a vida humana. No discurso aos novos colonos, eles são informados de que devem ter Deus como exemplo, e que para fazer isso é necessário tornar-se virtuoso. O ateniense afirma que Deus é a medida das coisas humanas, e isso significa que Deus, por possuir as maiores virtudes, incorpora o padrão que devemos procurar (Leis, IV, 716c-d). Também é importante notar que, nos primeiros livros das Leis, somos incentivados a rezar aos deuses; os deuses são apresentados como tendo o poder de intervir nos assuntos humanos (Leis, IV, 717a; VIII, 828b-d). O livro 10 fala da existência e da natureza de Deus. A maior parte dele consiste do argumento contra três crenças que são as causas características de impiedade: que os deuses não existem; que os deuses não estão preocupados com os seres humanos; e que os deuses podem ser influenciados por orações e sacrifícios. O ateniense diz que as pessoas que acreditam que os deuses não existem, que tudo o que existe são as substâncias materiais constantes na natureza, simplesmente desconhecem as causas dos movimentos que vemos no cosmos. Platão escreve que eles não conseguem entender a natureza e 140 Unidade II o poder da alma, que “mais do que tudo governa suas mudanças e todas as suas transformações” (Leis, X, 892a). Ele argumenta que a alma deve ser a fonte de todos os outros movimentos, pois nada tem a capacidade de se mover sem ela. Como a alma governa o movimento dos corpos em geral, deve controlar os movimentos dos céus em particular (Leis, X, 896e); e, como os movimentos são ordenados, eles devem ser regidos por uma boa alma que possui razão, em vez de uma má alma (Leis, X, 897b-898c). O ateniense, em seguida, diz que tal alma deve ser considerada um deus (Leis, X, 899a-b). Depois ele explica que Deus cuida dos seres humanos e não pode ser subornado. Deus é como um artesão que sabe as medidas certas. Como nas demais obras, Platão acredita que o objetivo de cada indivíduo, na medida em que se torna racional, é a sua própria felicidade ou bem-estar (eudaimonia). Entretanto, a ênfase das leis na felicidade dos cidadãos e a importância que dão à virtude para a condução de uma vida feliz e agradável também sugerem que Platão permanece fiel à sua ideia. Platão faz distinção entre os bens humanos, como saúde, beleza e riqueza, e os bens divinos, ou seja, as virtudes, e afirma que os bens humanos não são bons sem a virtude. Eles são bons para o homem bom, mas ruins para o homem mau (Leis, II, 661b-c). A virtude é um componente essencial da felicidade humana e um pré-requisito para todos os outros benefícios. Várias passagens das Leis sugerem que o tipo de virtude que Platão pensa que os cidadãos de Magnésia devem ter envolve uma espécie de relação para o bem do cosmos como um todo, em vez de um esforço especial em favor de seu próprio bem. 7.2.1 Estado de natureza (Leis, III, 677e) Em Platão, no livro 3 das Leis, é o estado em que os seres humanos se encontram depois da destruição de suas cidades por catástrofes naturais: Esta é a condição dos homens depois da catástrofe: uma terrível e ilimitada solidão, a terra imensa e abandonada; mortos quase todos os animais e os bovinos, sobrou apenas um pequeno grupo de cabras, qual mísero resto, para que os pastores recomeçassem a vida (Leis, III, 677e; ABBAGNANO, 2007, p. 698). 7.2.2 Empirismo (Leis, IV, 720c-d) É um pensamento filosófico que determina que a experiência é critério ou norma da verdade. Platão expôs um pensamento próximo do empirismo. O método dialético de Platão sugere a verificação e a comprovação daquilo que se atribui à realidade. Quando são comprovadas, são aceitas, mas, quando não são comprovadas, podem ser corrigidas ou modificadas. Esse empirismo de Platão é apenas observado hoje em dia, pois na sua época ele contrapunha seu método à experiência (Leis, IV, 720c-d; ABBAGNANO, 2007, p. 326). 141 FILOSOFIA ANTIGA 7.2.3 Casamento (Leis, IV, 721) Para Platão, o casamento era uma instituição natural. Ele entendia que a sociedade era o princípio e a origem de todos os Estados (Leis, IV, 721a). Aristóteles pensava a família como algo “anterior e mais necessário que o Estado” (Ét. Nic., 8, 12). Tanto Platão como Aristóteles achavam necessário que o Estado regulasse o casamento (ABBAGNANO, 2007, p. 118). 7.2.4 Egoísmo (Leis, V, 731e) O termo nasce apenas no séculoXVIII, mas Platão pensava que o “amor desmesurado por si mesmo” é a causa de todas as culpas dos homens (Leis, V, 731e; ABBAGNANO, 2007, p. 307). 7.2.5 Ateísmo (Leis, X, 891c, 892b) Platão faz a análise do ateísmo no livro 10 das Leis. Ele considerou que o ateísmo tomava uma das seguintes formas: a negação da divindade; a crença de que a divindade existe, mas que não cuida dos seres humanos; e a crença de que a divindade pode atender os seus pedidos com doações e oferendas. A primeira forma é o materialismo, que sustenta que a natureza precede a alma. Para Platão, esse é o erro de todos os filósofos da natureza que consideram a água, o ar e o fogo como princípios das coisas e os chamam natureza por entenderem que são a origem delas (Leis, X, 891c, 892b). Para refutar o materialismo, Platão tentou demonstrar que o movimento dos corpos celestes pressupõe um primeiro motor imaterial. Quanto à crença de que a divindade não se ocupa das coisas humanas, Platão diz que isso seria igual a admitir que a divindade é preguiçosa e indolente, e, portanto, inferior aos mortais. Contudo, para ele, o pior ateísmo é o dos que acreditam que podem convencer a divindade a ajudá-los oferecendo homenagens e donativos. Para Platão, essas pessoas põem a divindade no mesmo nível dos cães, que amansados com comida permitem que os rebanhos sejam roubados. Os deuses estariam também valendo menos que os homens comuns, que cumprem as leis sem aceitar presentes ilícitos (Leis, X, 909d). Na análise de Platão, a única forma de ateísmo filosófico é o materialismo naturalista, em que o corpo precede a alma (ABBAGNANO, 2007, p. 87). 7.3 Sofista O Sofista é um diálogo da maturidade de Platão. Seu propósito principal é demonstrar o que é um sofista e como ele difere de um filósofo e de um político. Cada um deles se distingue do outro através de uma forma particular de conhecimento. Esse diálogo é entendido como continuação do Teeteto, pois os mesmos personagens estão presentes. Várias vezes o diálogo volta a esclarecer pontos da teoria das formas ou das ideias de Platão. 142 Unidade II Esse diálogo é um dos três que não apresentam Sócrates como orador principal, embora, como em sua continuação, o Político, ele esteja presente desempenhando um papel secundário. A outra obra com essa característica é Leis. Quem assume a liderança da discussão é o Estrangeiro de Eleia. Os participantes são Sócrates, Teeteto e um visitante de Eleia, cidade natal de Parmênides. O Estrangeiro utiliza um método diferente de definição do que aparece nos diálogos anteriores de Platão. Sua forma de argumentar busca um modelo, depois uma comparação do exemplar com o objeto de estudo, seguida da coleta e divisão das informações coletadas sobre o objeto de estudo. No começo, o Estrangeiro escolhe como modelo um pescador, que compartilha algumas qualidades com o sofista, que é o objeto de estudo. A qualidade comum entre os dois é conhecerem a técnica (techne) de um determinado campo de conhecimento. Então, através do método de coleta de diferentes tipos de conhecimento específico, como a agricultura, a medicina e a destreza dos artesãos, ele tenta reuni-los em um único tipo, ao qual chama de arte produtiva. Da mesma forma, enumera coisas que são comuns à aprendizagem, ao conhecimento, ao comércio, ao combate e à caça, que podem ser agrupados como um tipo de arte aquisitiva. Uma vez estabelecidos esses dois grupos, a arte produtiva e a arte aquisitiva, como tipos principais, o Estrangeiro procede à divisão dos tipos em especialização na produção e especialização na aquisição. Então, ele tenta descobrir a qual desses dois subtipos o pescador pertence. Promovendo uma classificação, enquadra o pescador na arte aquisitiva. Ao continuar com o mesmo método, ele divide a arte aquisitiva entre possuir as coisas ou trocar (negociar) seus bens. Determina então que o sofismo negocia seus bens. O sofista é um tipo de comerciante. Depois de enumerar muitas classificações e divisões sucessivas, o Estrangeiro chega finalmente à definição do modelo do que é um pescador. Após a explicação verbal do modelo, que equivale a sua definição, ele tenta descobrir o que o modelo, e o objeto de estudo, o sofista, têm em comum. Quais as semelhanças e diferenças entre o sofista e o modelo do pescador? Através desta comparação, e depois de ter percebido os diferentes tipos e subtipos na atividade do sofista, ele classifica o sofismo como uma especialização, com a seguinte forma de divisão: “1. produção, caça por persuasão e ganhar dinheiro; 2. aquisição, vender a alma; 3. Vender a alma no varejo, vender no varejo coisas que outros produzem; 4. vender a alma no varejo, vender no varejo coisas que ele faz; 5. se apossar das coisas, competição e experiência de ganhar dinheiro com uma discussão”. Ao longo do processo de comparação dos diferentes tipos através do seu método de coleta, o Estrangeiro descobre alguns atributos nos quais os tipos podem ser divididos, sempre de acordo com uma diferença estabelecida em relação a outra coisa. Esse método é semelhante às categorias de Aristóteles, pois organiza as coisas em quantidade, qualidade, relação, localização, tempo, posição, finalidade etc. Dele sai a expressão popular “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Depois de não ter conseguido definir o sofisma, o Estrangeiro tenta uma versão final pela organização de suas cinco definições. Como elas compartilham uma qualidade, que é a imitação, ele finalmente qualifica o sofismo como arte de imitação. Prosseguindo na divisão da arte de imitação e sua criação 143 FILOSOFIA ANTIGA de cópias mantendo a aparência, ele chega à conclusão de que um sofisma se enquadra na arte da aparência, ou seja, o sofista imita o sábio. O sofista é apresentado de forma negativa, mas é possível dizer que se trata de alguém que apenas pretende deter o conhecimento, ou mesmo ser um divulgador de conhecimento falso somente quando se pode distinguir entre uma opinião verdadeira e outra falsa. Parece impossível dizer que o sofista apresenta as coisas de uma maneira que elas não são. Mesmo um sofista não pode apresentar um não ser como um ser, porque sugeriria que o que não existe, existe, ou mesmo que a inexistência existe. Se, quando apresenta as coisas da maneira que elas não são, não fosse possível imaginar que elas poderiam ser daquela forma, o sofista não conseguiria argumentar nada a respeito delas. Por exemplo, se um sofista resolver provar que unicórnios existem, visto que podemos imaginar o que é um unicórnio, um cavalo com um chifre no meio da testa, se o sofista argumentar bem, vai nos convencer de que eles existem. Por quê? Porque conseguimos imaginar a existência de um unicórnio. Caso contrário, o sofista não poderia pretender comprovar a sua existência. O Estrangeiro sugere que a raiz desse problema é a doutrina de Parmênides do ser e do não ser. Ele critica tal ideia afirmando que é impossível que coisas que não existam possam ser. Antes de prosseguir com a definição final do que é um sofisma, o Estrangeiro tenta deixar claros os conceitos que usou enquanto procedia a sua definição. Ele pretende esclarecer qual é a natureza do ser (o que é), do não ser, da identidade, da diferença, do movimento enquanto fonte de mudança e do repouso, e como todas essas coisas estão relacionadas. Primeiro, ele examina a noção de Parmênides e a compara com a de Empédocles e Heráclito, a fim de descobrir se o ser equivale à mudança, ou ao repouso, ou a ambos. Sua conclusão é que o repouso e a mudança fazem parte do ser, portanto ambas são suas qualidades. Parmênides disse que apenas o repouso determina o ser, porque ser é um tipo de estado que todas as coisas que existem têm em comum. A identidade é outro tipo que todas as coisas que pertencem ao mesmo gênero compartilham com referência a um determinado atributo e que percebemos rapidamente com uma análise. Já a diferença é um tipo que torna as coisas do mesmo gênero distintasentre si e, portanto, nos permite avançar na sua divisão lógica. Finalmente, o chamado não ser não é o oposto do ser, mas apenas diferente dele. Portanto, a negação do ser é identificada com a diferença. O não ser é distinto do ser, e não o oposto dele. Assim, o unicórnio não é um tipo de cavalo, nem mesmo um não cavalo. Um unicórnio é uma coisa diferente de um cavalo, apesar de podermos identificar muitas qualidades semelhantes entre as duas ideias. Seguindo estas conclusões, a afirmação verdadeira pode ser distinguida da falsa, uma vez que cada declaração consiste em um verbo e um nome. O nome se refere ao assunto. Como um pensamento ou um discurso é sempre sobre alguma coisa, o discurso ou pensamento não pode ser sobre nada, sobre o não ser. O verbo é o sinal da ação que o sujeito executa sobre o assunto, entendido aqui que o assunto é 144 Unidade II uma coisa. Quando o verbo indica algo sobre o assunto, ou seja, mostra uma de suas propriedades, então a afirmação é verdadeira. Quando o verbo apresenta algo que não é uma das propriedades do assunto, a afirmação é falsa, mas não está atribuindo o ser ao não ser. É plausível, então, que as coisas que não são de alguma forma são, e também é possível que o sofista produza falsas aparências ao imitar o sábio. Depois de ter resolvido a questão entre ser, não ser, a diferença e a negação, bem como a possibilidade de aparecer e parecer, mas não ser realmente, o Estrangeiro finalmente define o que são sofismas: “A sofística é uma arte produtiva, humana, de imitação, de cópia, um tipo de aparência, desinformada e insincera, na forma de arte de contra-argumentar”. 7.3.1 Espécie (Sof., 235d; Teet., 178) Uma espécie é uma parte ou um elemento de um conceito. É nesse sentido que Platão usa essa palavra (cf. Sof., 235d; Teet., 178a etc.), seguido por Aristóteles (Met., X, 7, 1057b7; Cat., 2b7). A espécie é o atributo que se aplica a uma pluralidade de termos que diferem especificamente entre si (ABBAGNANO, 2007, p. 352). 7.3.2 Nada (Sof., 242d) Existe o nada como não ser, sugerido por Parmênides, e o nada como alteridade ou negação, exposto por Platão. Parmênides afirmou que “o nada não é”. Platão admitiu o ser do não ser: Resulta que há um ser do não ser, tanto para o movimento quanto para todos os gêneros, já que em todos os gêneros a alteridade, que torna cada um deles outro, transforma o ser de cada um em não ser, de modo que diremos corretamente que todas as coisas não são e ao mesmo tempo são e participam do ser (Sof., 256d). O que Platão está afirmando é que não existe a possibilidade da não existência se conseguimos expressar sua ideia. Tudo que podemos pensar que não existe, existe no mundo das ideias, portanto não existe um nada absoluto (ABBAGNANO, 2007, p. 695). 7.3.3 Possibilidade (Sof., 247) A possibilidade de provocar ou de sofrer uma ação foi pensada por Platão como a definição do ser em geral: Digo que é existente tudo aquilo que tem por natureza a possibilidade de fazer uma coisa qualquer ou de sofrer uma ação (inclusive tudo o que existe em medida mínima e por uma vez só, e com respeito à coisa mais insignificante). Por isso, faço a seguinte definição: os entes não são outra coisa senão possibilidades (Sof., 247e). 145 FILOSOFIA ANTIGA Aristóteles definia a possibilidade como “aquilo que pode ser verdadeiro” (Met, V, 12, 1019b32; ABBAGNANO, 2007). 7.3.4 Erro (Sof., 247e) Platão expôs a doutrina do erro no Sofista. Ele percebeu que o erro é impossível quando afirmamos que o ser é e que o não ser não pode ser nem pensado nem expressado. Nesse caso, qualquer coisa que se possa dizer o que é, é verdade. Contudo, se for assim, não há nenhuma diferença entre o sofista e o filósofo, entre o charlatão e o sábio. Por isso, a possibilidade de erro obriga que se investigue para encontrar a verdade. Como não se pode negar uma existência sem negar a própria verdade, Platão define o ser como possibilidade (Sof., 247e). Como possibilidade, o ser não é nem um, nem muitos, nem movimento, nem repouso. Entretanto, cabe ao ser ser uma coisa ou outra. O método de descoberta deve identificar quais características do ser podem se unir e permanecer juntas e quais não podem. Quando a dialética estuda as combinações possíveis das formas do ser, o erro se apresenta simplesmente como uma combinação que não se conforma às regras. O erro é como um conjunto de letras sem sentido ou um conjunto de sons sem harmonia (Sof., 263). Essa doutrina platônica do erro é adaptada por Aristóteles, que parte de uma definição do erro no Sofista: “O erro é a negação do que é ou a afirmação do que não é” (Met., IV, 7,1011b26). A partir de Aristóteles, o problema que se coloca para a filosofia não é a busca da verdade, mas do erro. Por isso, as propostas mais comuns encontradas na filosofia sugerem que o erro não existe, ou que se deve a uma força que perturba o funcionamento normal do intelecto, afetando a sua vontade ou a sua sensibilidade (ABBAGNANO, 2007, p. 340). Lembrete Como possibilidade, o ser não é nem um, nem muitos, nem movimento, nem repouso. Entretanto cabe ao ser ser uma coisa ou outra. 7.3.5 Outro (Sof., 254) Os cinco gêneros supremos do ser, ou categorias do ser, enunciados por Platão no Sofista são: o ser, o repouso, o movimento, o idêntico e o outro. O outro é pensado como um gênero à parte pelo seguinte: o repouso e o movimento são; portanto, sob o aspecto do ser, são idênticos. Todavia, também são diferentes um do outro, e essa diversidade confere a cada um a sua identidade. O outro é o diferente, é um gênero igualmente originário e irredutível aos outros quatro (Sof., 254 ss.). O reconhecimento do outro como gênero permite que Platão resolva a antinomia segundo a qual é impossível dizer algo falso. O falso é o que não é, e dizer o que não é significa não dizer nada. Então, se pensássemos o erro da mesma maneira, o erro seria inexistente. Se o erro fosse inexistente, qual seria a diferença entre um filósofo e um sofista? Ao admitir a existência do outro, o não ser pode 146 Unidade II ser interpretado como o outro do ser. Se dizemos que uma coisa é não grande, ou não bela, isso significa dizer que é outra, diferente do que é grande ou bela. Mas nem por isso essa coisa é o oposto do ser, o nada (Sof., 257b ss.). Essa afirmação da realidade do não ser, enquanto outro, ou diferente, é apresentada pelo Estrangeiro (Sof., 242d; ABBAGNANO, 2007, p. 736). 7.3.6 Categoria (Sof., 254) Categoria é um conceito que serve de regra para investigar as coisas, ou para determinar sua expressão linguística em qualquer campo. Platão considerou as categorias como determinações da realidade. Também admitiu que são noções que servem para pesquisar e compreender a própria realidade. Ele criou a ideia de categorias como gêneros supremos: o ser, o movimento, o repouso, a identidade e a alteridade (Sof., 254 ss.). Como alguns desses gêneros estão interligados e outros não, também as palavras se interligam. Quando essa nova organização corresponde ao real, o discurso é verdadeiro; caso contrário, é falso (Sof., 263 ss.). Essa correspondência entre a realidade e o discurso, através das determinações das categorias, é a base da filosofia de Aristóteles. Para ele, as categorias são os modos como o ser se predica das coisas nas proposições, portanto os predicados fundamentais das coisas. Segundo ele, uma substância tem qualidades e pode aparecer em quantidades diferentes. Isso é determinado por uma relação entre as substâncias, que pode ser de lugar, tempo ou posição. Essa substância pode agir, pode possuir ou pode sofrer intervenções. O conceito aristotélico de categoria como determinação pertencente ao próprio ser, da qual o pensamento deve servir-se para conhecê-lo e exprimi-lo em palavras, foi adotado por muitas escolas filosóficas (ABBAGNANO, 2007, p. 121). 7.3.7 Ser (Sof., 455) O problema do conceito do ser começa quando tentamos entender a diferença entre dizer: “Sócrates é umhomem” e “Sócrates é (existe)”. Há dificuldade em encontrar uma definição que explique as duas coisas ao mesmo tempo. No primeiro caso, o termo é usado como um predicativo; no segundo caso, aludimos apenas à percepção da existência. É justamente por causa dos múltiplos significados que aparentemente designam o que é o ser que se torna difícil encontrar um significado único e fundamental que explique todos eles. Essa discussão filosófica durou séculos e ficou conhecida como o “problema do ser”. Contudo, desde que Kant, no século XVIII, conseguiu demonstrar que podemos conviver com essas duas noções da existência, não mais nos preocupamos com isso. Em Parmênides, Platão dá destaque à diferença entre a hipótese “o um é um” e a hipótese “o um é”; nesta última “é” significa “participação no ser” (Parm., 137e, 142b). 147 FILOSOFIA ANTIGA O significado de ser não é suficientemente estabelecido pela existência da corporeidade, nem mesmo por sua negação. Um ser considerado corpóreo (Sócrates) pode ter as mesmas características formais de um incorpóreo (Deus): ambos podem ser bons, justos e honestos. Nesse sentido, Platão discorda das posições materialistas, pois entende que há possibilidades em comum entre as coisas corpóreas e as incorpóreas, no momento em que se afirma que os homens são (existem) e os deuses são (existem) (Parm., 247d). Quando se procura um significado primário formal e generalizável do ser, todas as soluções para este problema sempre consideram como primária e fundamental uma característica determinada do ser (Sócrates é justo). É bem verdade que as características formais do ser conseguem eventualmente evidenciar uma solução do problema: podemos buscar a determinação do significado primário de ser nas características percebidas numa instância particular do próprio ser, que venha a servir de exemplo. Porém, para isso, é necessário que se escolha uma característica que sirva à generalização, ou seja, que possa também referir-se às outras instâncias, grupos ou entes. Portanto, na frase “Sócrates é um homem”, podemos substituir a palavra Sócrates por qualquer outro nome de homem. Todavia, também podemos dizer que “Sócrates é justo”, e generalizar para outras instâncias, grupos ou entes: “O governo é justo”, “Os professores são justos” ou “O tribunal é justo”. Como existem três maneiras pelas quais o ser pode ser enunciado, pela necessidade, pela possibilidade e pela assertoriedade, teoricamente também são possíveis as três soluções para o problema do ser. Contudo, como podemos reduzir a assertoriedade à necessidade, na história da filosofia surgiram duas soluções para conceituar o ser. A primeira delas é dizer que o que cria o ser primário é a necessidade; a segunda é que o que cria o ser primário é a possibilidade. A primeira concepção de Platão do ser primário como possibilidade atende a duas exigências fundamentais: em primeiro lugar, explica porque se diz que tanto as coisas corpóreas quanto as incorpóreas são (Sof., 247d); em segundo lugar, leva em conta o fato de que o ser é, ou pode ser conhecido (Sof., 248e). A exigência da possibilidade exclui a dúvida quanto a se a materialidade ou a imaterialidade devem fazer parte da definição do ser. A ideia de que o ser pode ser conhecido (e, portanto, há possibilidade da sua existência) exclui da definição do ser qualquer determinação necessária. Assim, não precisamos dizer que o ser seja necessariamente justo, ou que o ser seja necessariamente injusto (Sof., 249d). Portanto, na sua primeira proposta de concepção, Platão entendeu que o ser é apenas possibilidade. Ele afirma que podemos dizer que qualquer coisa é, desde que ela tenha uma possibilidade qualquer de praticar uma ação, ou então de ser submetida a uma ação por parte de outra coisa qualquer, mesmo que essa ação seja mínima e só ocorra uma vez (Sof., 247e). Contudo, este conceito da possibilidade não cria uma metafísica. Se a principal característica do ser é a possibilidade da existência, o ser não tem determinações unívocas necessárias. Não é necessário que ele seja um, e não muitos; imutável, e não mutável; imóvel, e não em movimento; eterno, e não temporal etc. Ou seja, o ser pode apresentar duas características contraditórias em determinadas, mas diferentes, condições. Pensem na borboleta que antes era uma lagarta. 148 Unidade II É ou não é o mesmo ser? Portanto, não é possível enumerar definitivamente as determinações unívocas do ser, nem é possível criar uma metafísica que permita uma lista sistemática de suas determinações unívocas e absolutas. Platão chegou a essa conclusão em Parmênides. Esse entendimento está no seguinte trecho do diálogo: “o uno, sendo ou não sendo, ele e as outras coisas, em relação a ele e entre si, todas, em tudo, são e não são. Aparecem e não aparecem” (Parm.,166c). Toda vez que tentamos determinar as características universais e necessárias do ser, precisamos fazer uma investigação empírica. Entretanto, como qualquer teste empírico só encontra possibilidades da existência, não há como determinar alguma característica que seja realmente necessária para que alguma coisa ou alguém exista. Isso fez Platão conceber o ser como uma possibilidade. Se existe a possibilidade de ser, isso explica por que dizemos que tanto as coisas corpóreas quanto as incorpóreas são (Sof., 247d). Também devemos considerar o fato de que o ser é conhecido ou pode ser conhecido (Sof., 248e). Essa definição exclui a necessidade, ou seja, não é necessário que uma mesa tenha determinada característica para poder existir enquanto mesa. Se olhamos para uma imagem de mesa ou para uma mesa, vamos conferir existência para duas coisas diferentes (uma imagem e um objeto) e considerá- las como manifestação da mesma coisa, ou pelo menos do mesmo tipo de coisa. Por isso Platão afirma que o ser é apenas possibilidade. Desse ponto de vista, pode-se dizer que a tradição filosófica empirista é herdeira e principal representante da concepção de ser cuja primeira formulação se encontra no Sofista de Platão. Uma possibilidade pode ser determinada unicamente com base na experiência, na observação dos fatos, nunca por um meio puramente racional ou a priori. Atribuir ao ser o significado de possibilidade significa abrir caminho a indagações específicas, destinadas a determinar, em cada caso, de que possibilidade se trata. Com fundamento nessa concepção, mesmo que as determinações do ser mudem, é necessário que mudem, pois a mudança é determinada por princípio e absolutamente previsível. Por outro lado, quando Platão interpreta o ser segundo a necessidade, e isso prevalece posteriormente na metafísica clássica, a famosa tese de Parmênides “O ser é e não pode não ser” estabelece que o significado fundamental do ser é a necessidade, o não poder não ser. Assim, Platão insiste na diferença entre a hipótese “o um é um” e a hipótese “o um é” (Parm., 137e, 142b; ABBAGNANO, 2007, p. 878). Lembrete Os cinco gêneros supremos do ser, ou categorias do ser, enunciados por Platão no Sofista são: o ser, o repouso, o movimento, o idêntico e o outro. 149 FILOSOFIA ANTIGA 7.4 Político O Político é um diálogo que descreve uma conversa entre Sócrates, Teodoro, uma outra pessoa também chamada Sócrates, que os estudiosos costumam apelidar de “o jovem Sócrates”, e novamente o Estrangeiro de Eleia. Assim como no diálogo anterior, o Sofista, Platão tentou definir a diferença entre um filósofo e um sofista, aqui ele busca estabelecer a diferença entre um político, um sofista e um filósofo. Um político possui um determinado tipo de conhecimento e, para sabermos qual é, precisamos descobrir a sua essência. Como o conhecimento em si é teórico e não envolve nenhuma ação prática – por exemplo, a aritmética, que fornece informações abstratas –, temos de examinar o que é o conhecimento prático ou direto. Esse tipo de conhecimento envolve ações práticas, como a arquitetura ou qualquer outro tipo de produção física. Qualquer pessoaque seja capaz de aconselhar sabiamente o governante de uma cidade detém o conhecimento que um governante deveria ter (Pol., 259a). A ciência do governo diz respeito à forma de governar as pessoas com sabedoria. Ela é sempre a mesma, seja em relação a uma pequena família, seja em relação a uma grande nação (Pol., 259b). Portanto, existe um tipo de conhecimento especializado em governar, seja o Estado, seja a família. O poder de um governante para manter seu governo tem pouco a ver com o uso de suas mãos ou do seu corpo, mas muito com a compreensão e a força de sua alma (Pol., 259c). Os que praticam o conhecimento teórico ou abstrato apenas pensam, e outros, como um arquiteto, também supervisionam o trabalho das pessoas (Pol., 260a). Se comparamos o trabalho dos dois em relação ao conhecimento teórico, podemos dizer que o filósofo apenas produz juízos, enquanto o arquiteto impõe regras e supervisiona sua aplicação. Um político trata do conhecimento teórico, mas também da sua aplicação (Pol., 260c). Existem dois tipos de pessoas que lidam com o conhecimento teórico diretivo: aquelas que elaboram diretrizes e dão ordens, e aquelas que recebem diretrizes e as transmitem, da mesma maneira que acontece com as mercadorias no varejo, quando se transportam mercadorias produzidas por outros. Um político é o governante de um grupo. Se utilizamos o método dialético para entender o que ele faz, surge um problema, pois o método não considera as pessoas diretamente. Seu processo alcança a verdade, mas não o exame das pessoas. Como há muitos tipos de pessoas que guiam os seres humanos, então devemos usar o método para descobrir a essência do político como líder de seres humanos. Um mito narra que o Sol e as estrelas se erguiam no oeste e se punham no leste, e que o demiurgo inverteu o movimento deles. Outra lenda diz que homens de tempos passados eram nascidos da terra e não gerados uns dos outros. Esses mitos podem contar alguma coisa sobre a natureza do político. Somente as coisas mais divinas de todas permanecem inalteradas em si, mas o corpo não está incluído nesta classe. O céu e o universo, embora tenham sido criados pelo demiurgo, participam da natureza dos corpos e, portanto, não podem estar isentos de perturbações (Pol., 269d). Contudo, o 150 Unidade II criador de todas as coisas em movimento é capaz de mover-se em si mesmo. Quando o demiurgo inverteu o movimento da natureza, os seres humanos começaram a se desenvolver para trás no tempo: os velhos tornaram-se jovens de novo e depois desapareceram. Os mortos nasceram de novo na sua existência terrena e viveram na direção oposta no tempo: da velhice à juventude. No início dos tempos, Deus governou e supervisionou diretamente toda a vida, e a humanidade viveu em paz. Sob seu domínio, não havia formas de governo ou posse individual de mulheres e crianças. Todos os seres humanos ressuscitavam da terra, sem memória do passado. A terra lhes deu frutos em abundância, que cresciam em árvores e arbustos que não tinham sido plantados pela mão do homem. Moravam nus e ao ar livre, e as diferenças de temperatura das estações eram suaves. Eles não tinham camas, mas deitavam-se na grama macia, que crescia abundantemente da terra. Essa era a vida do homem nos dias de Cronos. O mundo foi então abandonado pelo demiurgo. Quando se completou o tempo determinado a todas as coisas e chegou a hora em que deveria produzir-se a mudança, esta raça nascida da terra desapareceu por completo, havendo cada alma completado o seu ciclo de nascimentos e voltado à terra tantas vezes como semente quantas determinara a sua própria lei. Então, o piloto do universo, abandonando, por assim dizer, o leme, voltou a encerrar-se em seu posto de observação; e o mundo, levado pela sua tendência e pelo seu destino natural, moveu-se em sentido contrário. Todos os deuses locais que assistiam a divindade suprema em seu governo, compreendendo prontamente o que se passava, abandonaram também as partes do mundo confiadas aos seus cuidados. E o mundo, subitamente mudando o sentido de seu movimento, provocou, no seu próprio seio, um terremoto violento, em que pereceram os animais de toda espécie. Depois, ao fim de um tempo suficiente, terminados os distúrbios e o terremoto, o mundo prosseguiu num movimento ordenado o seu curso habitual e próprio, zelando e governando, como senhor, tudo o que havia em seu seio, bem como a si próprio, e relembrando, tanto quanto possível, as instruções de seu criador e pai – de início, com maior exatidão; depois, com crescente enfraquecimento. Esta falta se deveu aos princípios corporais que entraram na sua constituição, aos caracteres herdados de sua natureza primitiva, que comportava uma grande parte de desordem antes de alcançar a ordem cósmica atual. De seu construtor é que recebeu tudo o que tem de belo, e de sua constituição anterior decorrem todos os males e todas as iniquidades que se cometem no céu, e que daí passaram ao mundo, transmitindo-se aos animais. Enquanto desfrutava da assistência de seu piloto, que alimentava aos seus, os quais viviam em seu seio, salvo raros fracassos, só produzira grandes bens; uma vez dele desligado, quando o mundo foi abandonado a si mesmo, nos primeiros tempos que se seguiram, ainda procurou levar todas as coisas para o melhor; entretanto, com o avançar do tempo e do esquecimento, tornando-se mais poderosos os restos de sua turbulência primitiva, que finalmente alcançou o seu apogeu, raros são os bens e numerosos os males que a ele se incorporam, arriscando-se à sua própria destruição e à de tudo o que ele encerra. Por esse motivo, o Deus que o organizou, compreendendo o perigo em que o mundo se encontrava, e temendo que tudo se dissolvesse na tempestade e viesse a desaparecer no caos 151 FILOSOFIA ANTIGA infinito da dessemelhança, tomou de novo o leme. Recompondo as partes que, neste ciclo percorrido sem guia, tombaram em dissolução e desordem, ele o ordenou e restaurou de maneira a torná-lo imortal e imperecível (Pol., 273a-e). Então, Platão descreve o estado de natureza. Uma vez privados dos cuidados deste Deus, que os possuía e os mantinha sob sua guarda, cercados de animais dos quais a maior parte era naturalmente feroz, e que se tornaram desde logo selvagens, agora que também eles se viram sem força e sem proteção, os homens se tornaram presas desses animais. Nos primeiros tempos, não tiveram qualquer indústria ou arte; e foi desde este momento de grande abandono, em que seus alimentos deixaram de vir-lhes espontaneamente, e em que não sabiam ainda procurá-los, pois que nenhuma necessidade os havia, até então, obrigado a isso, que, segundo as antigas tradições, nos foram dadas pelos deuses lições e ensinamentos indispensáveis: o fogo por Prometeu; as artes por Hefesto e sua companheira; as sementes e as plantas por outras divindades. Assim, tudo de que a vida humana é feita nasceu desses primeiros passos; quando os homens viram-se privados da vigilância divina, devendo conduzir-se sós e zelar por si mesmos, tal como o universo, pois tudo o que fazemos é imitá-lo e segui-lo, alternando, na eternidade do tempo, estas duas maneiras opostas de viver e nascer. Ao olhar para o regente divino como um tipo de verdadeiro estadista, podemos dizer que todas as pessoas que governam cuidam daqueles que governam. O verdadeiro estadista não governa pela violência, mas por princípios fundamentados. Os conceitos mais importantes devem ser explicados através do uso de modelos ou de exemplos. Nós conhecemos as coisas de uma forma onírica e, depois que despertamos, não sabemos mais nada (Pol., 277d). Podemos aprender melhor usando nosso discernimento para entender os elementos e comparando-os às instâncias daquilo que não compreendemos. Isso é aprender com um exemplo ou a partir de um modelo. Não é para isso que servem os exemplos? Tomamos uma coisa e a comparamos por analogia com outra instância distinta da qual temos uma concepção correta, e da comparaçãosurge uma noção verdadeira, que inclui o conhecimento das duas coisas, do modelo e da coisa comparada (Pol., 278b). Ninguém que comece com opiniões falsas pode alcançar uma pequena parte da verdade, nem alcançar a sabedoria. Alguém deve discernir a verdade para que os outros aprendam a verdade (Pol., 279d). Ao abordar a essência do estadista, usamos modelos e comparações de elementos falsos e verdadeiros para descobrir as características específicas da verdadeira regência (Pol., 279e). Há muitas pessoas que afirmam falsamente conhecer a essência do político. Então, devemos separar o que é verdadeiro do falso, identificando quem é um governante sábio e quem não é. Todos esses conhecimentos envolvem a tentativa de proibir os excessos e os erros. Ambos são descobertos através da conscientização das ações incorretas. 152 Unidade II Toda experiência ou ciência depende da habilidade em distinguir os menos capazes dos mais capazes. São necessárias medidas de competência para diferenciar os níveis de capacidade superior, médio e inferior em todas as artes e nas ciências. As pessoas que não compreendem as distinções entre os níveis de competência confundem o conhecimento com a ineptidão e a incapacidade. Para entender as coisas, é primeiro necessário ver todas aquelas coisas de natureza similar que são membros de uma classe, para em seguida distinguir cada membro da classe dos demais. O inquérito sobre a essência da tradição do governo visa melhorar não só o nosso conhecimento da política, mas também o nosso poder de raciocínio (Pol., 285d). Algumas coisas boas aparecem de forma clara, que a maioria das pessoas pode reconhecer. Mas as grandes verdades não têm nenhuma imagem visível para o homem (Pol., 285e). Aquele que deseja ter a alma de um pesquisador deve adaptar o olho ao sentido e, portanto, devemos nos treinar para aceitar ou fazer um relato racional das verdades e dos conceitos superiores. Para as coisas imateriais, que são as mais nobres e as maiores, que são acessíveis apenas pelo pensamento e pelas ideias, é necessária a razão (Pol., 286a). Um governo sábio não pode ser determinado pela forma de atuar, uma vez que é uma ciência. Quando determinamos a essência do governo sábio, podemos verificar quais, entre as pessoas que dizem possuir essa experiência, realmente a possuem e quais são meras pretendentes. A massa de pessoas desinformadas em uma democracia não consegue atingir o conhecimento necessário para isso (Pol., 292e). Porém as pessoas conseguem perceber, pela experiência, se uma autoridade governa sabiamente ou não. O principal critério do governo sábio é se o governante possui a experiência e o conhecimento capazes de beneficiar as pessoas (Pol., 293b). Enquanto os governantes atuam de acordo com os princípios da sabedoria e da justiça, e usam seu poder para a melhoria da segurança geral e o desenvolvimento da cidade, a cidade que eles governam e que possui essas características pode ser descrita como o Estado verdadeiro. Todos os outros tipos de governo não são genuínos ou reais, mas apenas imitações ou simulacros de um governo. Alguns deles são melhores e outros são piores. Dizemos que os melhores simulacros são Estados bem governados, mas não passam de imitações, como os outros (Pol., 293d). A elaboração de leis escritas é uma parte do bom governo, mas o importante não é que a lei deva governar, mas que um governante sábio consiga governar (Pol., 294a). As leis escritas não compreendem perfeitamente o que há de mais nobre e mais justo para todos e, portanto, não conseguem fazer valer o que é melhor. O problema das leis é que há diferenças entre os seres humanos e suas ações que conferem movimentos irregulares intermináveis às coisas humanas, que não admitem nenhuma regra universal e simples. E não se consegue estabelecer uma regra que dure o tempo todo (Pol., 294b). As leis escritas sempre se esforçam para alcançar a conformidade absoluta. São iguais a um tirano obstinado e ignorante, que não permite que nada que contrarie seu comando seja feito. Nem quando há mudança repentina das circunstâncias, nem quando as mudanças permitem algo melhor do que o que tinha sido previsto anteriormente (Pol., 294c). 153 FILOSOFIA ANTIGA Nenhum legislador que tem que governar e fazer justiça vai conseguir decretar o bem geral, fornecendo exatamente aquilo que é adequado para cada caso particular. Um governante sábio vai estabelecer leis de uma forma geral, para a maioria, baseado nos casos reais das pessoas ou nos costumes tradicionais (Pol., 295a). Portanto, as leis escritas devem ser revisadas e readaptadas conforme as circunstâncias o exigirem. Um governante sábio pode achar necessário forçar as pessoas a fazer o que é melhor. Um governante sábio observa a regra de prover justiça aos cidadãos com inteligência e habilidade, sendo capaz de preservá-los e, na medida do possível, melhorá-los (Pol., 297b). Mas um governo sábio deve residir em um grupo pequeno ou num indivíduo (Pol., 297c). Podemos descobrir o modelo para o governante sábio no piloto de um barco ou no médico sábio, que sabem decidir pelo bem dos outros. Aquele que detém conhecimento e é um verdadeiro estadista fará muitas coisas dentro de sua própria esfera de ação por seu conhecimento, sem levar em conta as leis, mesmo quando isso for contra aquilo que ele mesmo escreveu e obrigou a ser cumprido. Qualquer pessoa ou grupo de pessoas que combatam e desobedeçam a lei escrita com vistas a alcançar um bem maior se comportam como verdadeiros estadistas. Não há como a maioria ser capaz de aprender todo conhecimento de qualquer arte ou ciência. Por isso que as formas inferiores de governo, aquelas que imitam o bom governo, não devem fazer nada contrário às suas leis escritas e aos costumes tradicionais. Quando um governante não governa nem pela lei, nem pelo costume, mas finge seguir o conhecimento da ciência política para que só ele possa agir violando as leis, sua atuação é movida por ganância e ignorância, e esse governante não passa de um tirano. A maioria das pessoas nunca necessita ser levada a acreditar que alguém pode ser digno de tal autoridade. Nem que é capaz ou está disposto a governar com o espírito da virtude e do conhecimento, ou a agir com justiça para todos. Elas devem saber que o governante será um déspota, que vai errar, prejudicar e matar quem quiser. Se houvesse um único governante sábio, seria bom recebê-lo, reconhecendo que ele sozinho seria o governante feliz de um Estado perfeito. Contudo, como o Estado não é uma colmeia e não tem uma pessoa que naturalmente seja reconhecida como superior, tanto no corpo quanto na mente, a humanidade se sente obrigada a fazer cumprir as leis, e se esforça para se aproximar o máximo que puder da verdadeira forma de governo. A retórica é a prática de persuadir uma multidão com uma narrativa agradável. Ela não ensina a verdade. A política é a ciência de determinar se devemos empregar a persuasão ou a força contra alguém, ou se devemos nos abster completamente. A arte verdadeira e natural do governo não deve permitir que nenhum Estado seja formado por uma combinação de homens bons e maus, se isso puder ser evitado. A natureza humana deve sempre ser testada e depois educada por professores adequados, que sejam ministros de seus propósitos. O conhecimento do bom governo manterá a autoridade. 154 Unidade II A ciência do governo sábio deve ser aprendida por todos os educadores e instrutores legítimos, não permitindo que eles treinem os homens para produzir personagens inadequados à constituição política, mas somente personagens adequados. 7.4.1 Prático (Pol., 258d-e) O significado filosófico tradicional de prático é aquilo que dirige uma ação. Platão distinguia a ciência prática, como a construção de edifícios, que é “inerente por natureza às ações”, da ciência cognitiva, como a aritmética, que não se relaciona com a ação (Pol., 258d-e). Aristóteles dizia que “nas ciências práticas a origemdo movimento está em alguma decisão de quem age, porque prática e escolha são a mesma coisa” (Met., VI, 1, 1025b22). Para ele, as ciências práticas eram a política, a economia, a retórica e a ciência militar, e a ética era parte fundamental da política (Ét. Nic., I, 2, 1094b; ABBAGNANO, 2007, p. 785). 7.4.2 Política (Pol., 259a-b) A política, enquanto teoria do Estado, seguiu o exemplo da República de Platão em sua utopia de Estado perfeito. Todavia, na maneira de legislar, seguiu o realismo dos modos e dos instrumentos para melhorar a forma do Estado propostos por Aristóteles. Entretanto, geralmente é difícil distinguir uma coisa da outra. A política enquanto doutrina do direito e da moral foi descrita na Ética de Aristóteles. A investigação do que deve ser o bem e da diferença para o bem supremo é descrita por ele: “Essa ciência parece ser a política. Com efeito, ela determina quais são as ciências necessárias nas cidades, quais as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto” (Ét. Nic., I, 2. 1094a26). Discutindo a teoria do Estado, Aristóteles escreve em sua obra Política: Está claro que existe uma ciência à qual cabe indagar qual deve ser a melhor constituição: qual a mais apta a satisfazer nossos ideais sempre que não haja impedimentos externos; e qual a que se adapta às diversas condições em que possa ser posta em prática. Como é quase impossível que muitas pessoas possam realizar a melhor forma de governo, o bom legislador e o bom político devem saber qual é a melhor maneira de governo em sentido absoluto e qual é a melhor forma de governo em determinadas condições (Pol., IV, 1, 1288b21). Portanto, para Aristóteles, a política tem a função de descrever a forma do Estado ideal, mas também de determinar a forma do melhor Estado possível, conforme as suas circunstâncias (ABBAGNANO, 2007, p. 773). 155 FILOSOFIA ANTIGA 7.4.3 Irreversível (Pol., 269) Platão, no mito do Político, afirmou a reversibilidade do devir cósmico. Para ele, quando é atingido o tempo que lhe foi designado, o mundo “recomeça a girar em sentido contrário” e inverte a ordem do tempo. Isto aconteceria porque o mundo é a coisa mais perfeita possível, mas também é um corpo e, como tal, está sujeito a mudanças. “Por isso, seu destino é refazer seu giro em sentido inverso, sendo essa a mínima mudança possível do seu movimento” (Pol., 269c-e; ABBAGNANO, 2007, p. 586). 7.4.4 Medida (Pol., 284e) Platão considerou a medida como uma arte. Essa arte era composta de duas partes, sendo a primeira a arte de medir o número, o comprimento, a altura, a largura e a velocidade. A segunda parte era medir a relação do meio-termo, do conveniente, do oportuno, do obrigatório e de todas as percepções das coisas que estão no meio de extremos (Pol., 284e). Assim, podemos considerar a medida a relação entre uma grandeza e a unidade. Aristóteles observou que a unidade também pode ser entendida de dois modos: a unidade convencional ou aparente e a unidade absolutamente indivisível (Met., X, 1, 1053a22). Para ele, havia que se entender o que se mede, e o instrumento ou valor com que se mede (Met., X, 1, 1053a22). Platão via na justa medida a ordem e a harmonia das coisas, e para Aristóteles o meio era a regra da virtude ética. Nesse mesmo sentido a medida foi entendida por Protágoras, quando determinou o princípio de que o homem é a medida das coisas, e por Aristóteles, que via no homem virtuoso “o cânon e a medida das coisas” (Ét. Nic., III, 4, 1113a33; ABBAGNANO, 2007, p. 656). 8 TIMEU Figura 19 Disponível em: https://bit.ly/3A92B2F. Acesso em: 10 nov. 2022. Esse diálogo ocorre no dia seguinte ao que Sócrates descreveu seu Estado ideal. Nas obras de Platão, essa discussão ocorre na República. Sócrates sente que sua descrição do Estado ideal não agrada às pessoas. 156 Unidade II Hermócrates pede a Crítias para contar a história da viagem de Sólon ao Egito, onde ele ouviu sobre Atlântida. Crítias conta de forma resumida a história de Atlântida e como Atenas travava guerra contra ela (Tim., 25a). Ele então anuncia que Timeu vai contar a origem do universo. Timeu começa com uma distinção entre o mundo físico e o mundo eterno. O físico é o mundo que muda, perece e é objeto de opinião e sensação irracional. O eterno nunca muda e é apreendido pela razão (Tim., 28a). Os discursos sobre os dois mundos estão condicionados pelas diferenças de seus objetos. De fato, “uma descrição do que é imutável, fixo e claramente inteligível será imutável e fixa” (Tim., 29b), enquanto uma exposição do que muda e é provável também irá mudar e ser provável. “Como sendo é tornar-se, a verdade é a crença” (Tim., 29c). Portanto, a descrição do mundo físico, que está se modificando, “não deve procurar nada além de uma história provável” (Tim., 29d). Timeu sugere que, uma vez que nada “se torna ou muda” sem uma causa, a causa do universo deve ser um demiurgo ou um deus, uma figura que ele chama de pai e criador do universo. E, como o universo é justo, o demiurgo deve ter olhado para a forma eterna da justiça para fazê-lo, mas isso não aconteceu com o mundo perecível (Tim., 29a). Assim, usando o mundo eterno e perfeito de formas ou ideias como modelo, ele criou o nosso mundo, que no início só existia em um estado de desordem. Segundo Timeu, o demiurgo, por ser bom, também queria que o mundo o fosse. Para isso, o demiurgo construiu as coisas a partir da substância, imitando modelos imutáveis e eternos que serviram como paradigma. Essa necessidade é importante para a cosmogonia de Platão. Timeu descreve a substância original como matéria sem homogeneidade ou equilíbrio, em que os quatro elementos, terra, ar, fogo e água, existiam sem forma, misturados e em constante movimento. Considerando que a ordem é superior à desordem, o ato essencial do criador foi trazer ordem e clareza a essa substância. Portanto, todas as propriedades do mundo devem ser explicadas pela escolha do demiurgo do que é justo e bom de acordo com a ideia de uma dicotomia entre o bem e o mal. O mundo é uma criatura viva. Como as criaturas não inteligentes são aparentemente menos legítimas do que as inteligentes, e uma vez que a inteligência precisa ser instalada em uma alma, o demiurgo “coloca a inteligência na alma e a alma no corpo” para criar um ser vivo e inteligente. “Portanto, usando o idioma da probabilidade, podemos dizer que o mundo se tornou uma criatura viva dotada verdadeiramente de alma e inteligência pela providência de Deus” (Tim., 30a-b). Seguindo a ideia de que a parte é imperfeita, quando comparada com o todo, como o mundo é perfeito, deve ser único. Logo, o demiurgo não criou vários mundos, mas apenas um único mundo (Tim., 31b). Além disso, como ele queria que sua criação fosse uma imitação perfeita da ideia de eterno, pois o eterno é a fonte de todas as outras coisas, não havia necessidade de criar mais de um mundo. O criador decidiu também fazer o corpo perceptível do universo com quatro elementos. Além do fogo e da terra, que tornam os corpos visíveis e sólidos, um terceiro elemento era necessário, porque “duas coisas não podem ser corretamente juntas sem um terceiro, deve haver algum vínculo de união 157 FILOSOFIA ANTIGA entre elas”. Além disso, uma vez que o mundo não é uma superfície, mas um sólido, era necessário um quarto meio para alcançar a harmonia: portanto, o criador colocou a água e o ar entre o fogo e a terra. “E por estas razões e por tais elementos, que estão em número de quatro, o corpo do mundo foi criado e foi harmonizado por proporção” (Tim., 31-33). O demiurgo criou o mundo com a forma geométrica de um globo. Na verdade, a forma redonda é a mais perfeita, porque compreende ou mede todas as outras formas e é a mais completa de todas: “ele [o demiurgo] considerou que o mesmo é infinitamente mais justo do que o contrário” (Tim., 33b). O criador atribuiu então ao mundo um movimento rotativo ou circular, que é o “mais apropriado para mente e inteligência” por ser o mais uniforme(Tim., 34a). Timeu então explica como a alma do mundo foi criada. O demiurgo criou a alma do mundo e a colocou no centro do corpo do mundo e a difundiu em todas as direções. Tendo assim sido criado como um ser perfeito, autossuficiente e inteligente, o próprio mundo é um deus (Tim., 34b). Mas a alma do mundo não poderia ser mais nova do que seu corpo. O demiurgo, graças à sua condição e virtude, constituiu a alma anterior ao corpo e mais velha do que ele, para o dominar e governar, a partir dos seguintes recursos: juntou o ser indivisível, que é imutável, e o ser divisível, que é gerado nos corpos, e misturou uma terceira forma de ser, feita a partir daquelas duas. “E quanto à natureza do mesmo e do outro, estabeleceu, de igual modo, uma outra natureza entre o indivisível e o divisível dos seus corpos. Tomando as três naturezas, misturou-as todas numa só forma e pela força harmonizou a natureza” (Tim., 35a-b). Desenvolveu uma unidade a partir das três e depois distribuiu o todo por tudo mais que criou, sempre com as mesmas características de trindade. Então, o demiurgo relacionou o corpo e a alma do universo: ele difundiu a alma do centro do corpo até as extremidades, em todas as direções, permitindo que a alma invisível envolvesse o corpo visível. A alma começou a girar e este foi o começo de sua vida eterna e racional (Tim., 36e). Timeu faz conjecturas sobre a composição dos quatro elementos que alguns gregos antigos pensavam constituir o universo físico: terra, água, ar e fogo. Ele liga cada um desses elementos a um certo sólido: o elemento da terra seria um cubo, do ar um octaedro, da água um icosaedro e de fogo um tetraedro. Cada um desses poliedros perfeitos seria, por sua vez, composto de faces triangulares a partir dos triângulos com 30-60-90 graus e 45-45-90 graus. As faces de cada elemento podem ser divididas em seus triângulos de ângulo reto, sejam isósceles ou escalenos, que juntos dariam conta de formar toda a matéria física. As características particulares da matéria, como a capacidade da água para extinguir o fogo, foram relacionadas à forma e ao tamanho dos triângulos que a constituíam. O quinto elemento é o dodecaedro, cujas faces não são triangulares, e que foi usado para representar a forma do universo como um todo. O motivo talvez tenha sido porque o dodecaedro tem a forma que mais se aproxima de uma esfera, que, como Timeu observou, era a forma com que Deus criou o universo. A extensa parte final do diálogo aborda a criação de seres humanos, incluindo alma, anatomia, percepção e transmigração da alma. 158 Unidade II 8.1 Atlântida (Tim., 24) Segundo o Timeu, de Platão, um sacerdote da deusa egípcia Sais teria narrado a Sólon a história de Atlântida, que ficava além das Colunas de Hércules. Essa história teria acontecido antes do dilúvio universal. A ilha era a capital de uma grande monarquia que dominava da Líbia até o Egito, e também da margem europeia do Mediterrâneo até a Etrúria, hoje a região da Toscana, na Itália. Essa monarquia tentou dominar a cidade de Atenas, que combateu e venceu os invasores. Isso garantiu a liberdade de todos os povos dominados nas margens do Mediterrâneo. Mais tarde, Atlântida afundou no mar e desapareceu (Tim., 24 ss.; ABBAGNANO, 2007, p. 90). Observação Mesmo que tenha sido citada na obra de Platão, não há até hoje nenhuma comprovação da existência de Atlântida. 8.2 Céu (Tim., 28c) Para Platão, céu é todo corpo encerrado pela circunferência externa, isto é, o próprio mundo na sua totalidade (Tim., 28c). Aristóteles acreditava que o céu era formado por uma substância diferente, o éter. O éter se movia de forma circular, não sofrendo geração nem corrupção. Para Aristóteles, a geração e a corrupção dos corpos aconteciam em função de dois movimentos alternados: um do centro para as bordas, e seu contrário, das extremidades para o centro. Todos os elementos, a água, o ar, a terra e o fogo, estão sujeitos a esses movimentos, e também participam da composição das coisas terrenas (ABBAGNANO, 2007, p. 133). 8.3 Paradigma (Tim., 29b) Para Platão, o paradigma é um modelo ou um exemplo (Tim., 29b, 48e). Ele considerava como paradigma o mundo dos seres eternos, do qual o mundo sensível é imagem (ABBAGNANO, 2007, p. 742). 8.4 Criação (Tim., 29e) O conceito de criação dado por Platão em Timeu demonstra a ausência da necessidade do efeito em relação à causa que o produz. O demiurgo é um deus artesão, que num ato voluntário de bondade quer a multiplicação do bem (Tim., 29e). Isso significa que o mundo não nasce de uma necessidade que serve como causa de sua criação. A ação criadora do demiurgo trabalha com as ideias ou substâncias que servem de modelo para a criação do mundo. Portanto, a criação a que Platão se refere não surge do nada, mas de modelos propostos. Na Bíblia lemos que Deus criou o céu e a terra (Gênesis 1, 1), mas não fica explícito se ele criou do nada (ex nihilo) ou a partir de ideias. Como Platão diz que o mundo tem alma, o demiurgo primeiro criou a alma do mundo, e depois o próprio mundo. O deus judaico-cristão é onipotente, e assim, com poderes ilimitados, converte através de sua ação toda matéria de acordo com sua vontade. 159 FILOSOFIA ANTIGA Por sua vez o deus de Aristóteles, como primeiro motor imóvel do mundo, é causa do movimento, ou seja, do devir e da ordem do mundo, mas não de seu ser substancial, que é tão eterno quanto o próprio Deus (Met., XII, 6, 1071 b 3 ss.; ABBAGNANO, 2007, p. 219). 8.5 A alma do mundo (Tim., 34b) Platão concebeu o mundo como um ser vivo, dotado de alma própria. No Timeu ele descreve que essa alma teria sido construída e distribuída geometricamente pelo demiurgo (Tim., 34b; ABBAGNANO, 2007, p. 34). 8.6 Tempo (Tim., 37d) Platão pretende que o tempo é percebido por meio dos ciclos planetários, através das estações ou das gerações, que demonstram para nós aquilo que na verdade é eterno, e que vemos como a forma de movimento do ser eterno (Tim., 37d, 38b-39d). Assim, o tempo se confirma como a ordem mensurável do movimento. Esse conceito cíclico do mundo e da vida humana está de acordo com o entendimento científico de tempo. Essa concepção é proposta pelos pitagóricos, ao definirem o tempo como a esfera celeste que abrange tudo, que com o seu movimento ordenado permite ser medido. Desse modo, ele se torna a imagem móvel da eternidade. A definição de Aristóteles, “o tempo é o número do movimento segundo o antes e o depois” (Fís., IV, 11, 219b1), é a expressão sintética dessa concepção, que percebe o tempo como a ordem mensurável do movimento (ABBAGNANO, 2007, p. 944). 8.7 Mediação (Tim., 41a-c) A mediação é uma atividade que relaciona dois termos ou dois objetos. Na Antiguidade, cabia aos demônios uma função mediadora entre os deuses e os seres humanos. O demiurgo de Platão delega às divindades inferiores, ou demônios, a criação dos seres mortais (Tim., 41a-c). Para Aristóteles, o silogismo é determinado pela função mediadora do termo médio, que contém um termo e é contido pelo outro termo (An. Pr., I, 4, 25b35; ABBAGNANO, 2007, p. 655). 8.8 Sonho (Tim., 45e) Platão acreditava que o sonho é a ação da imaginação durante o sono (Tim., 45e). Aristóteles também (De Somniis, 1, 459a15), e essa é a concepção adotada pela psicologia moderna. Os filósofos algumas vezes se dedicaram à análise do sonho para mostrar a incerteza da diferença entre o sonho e a vigília, utilizando-o como elemento de dúvida teórica. O exemplo mais notável vem de Descartes. 160 Unidade II Platão dizia: “Nada nos impede de crer que as conversas que agora mantemos sejam mantidas em sonho, e quando em sonho cremos contar um sonho, a semelhança das sensações no sonho e na vigília é realmente maravilhosa” (Teet., 158e). Por outro lado: o tempo durante o qual dormimos é igual ao tempo em que estamos acordados, e em ambos nossa alma afirma que só as opiniões que têm naquele momento são verdadeiras; desse modo, por igual espaço de tempo dizemosque são verdadeiras ora estas, ora aquelas, e defendemos umas e outras com a mesma energia” (Teet.,158d; ABBAGNANO, 2007, p. 919). 8.9 Necessário (Tim., 47d) Platão acreditava que a matéria era necessária, e considerava o necessário como uma das condições da existência do mundo (Tim., 47d). Para Aristóteles, o necessário é o que está nas coisas naturais, mais precisamente na matéria delas, porque constitui a condição delas (Fís., II, 9, 200a30). Ele fez também distinção entre o que é necessário por si e o que é necessário devido a uma causa externa. Essas concepções não mudaram ao longo da história da filosofia (ABBAGNANO, 2007, p. 703). 8.10 Metempsicose (Tim., 49) A metempsicose é a crença que defende que a alma se transmigra de um corpo para outro. Hoje utilizamos o nome de reencarnação. É uma ideia muito antiga e de origem oriental. Essa crença, difundida pelos pitagóricos, foi aceita por Empédocles (Fr., 115, 117, 119) e por Platão (Tim., 49 ss.; ABBAGNANO, 2007, p. 668). 8.11 Matéria (Tim., 50) As quatro definições filosóficas de matéria são a matéria como sujeito, a matéria como potência, a matéria como extensão e a matéria como força. Para Platão e Aristóteles, a definição de matéria como sujeito se alterna com a de matéria como potência. Na matéria como sujeito, a matéria se apresenta de forma passiva, e Platão a chama de meio das coisas naturais, porque a matéria “acolhe em si todas as coisas sem nunca assumir forma alguma que se assemelhe às coisas, pois é como a cera que recebe a marca” (Tim., 50b-d). Nesse sentido, a matéria é o material bruto, amorfo, passivo e receptivo, do qual as coisas naturais são compostas. Aristóteles chama esse material de sujeito: “Chamo de matéria o sujeito primeiro de uma coisa, a partir do qual a coisa não é gerada acidentalmente” (Fís., I, 9, 192a). Como sujeito, a matéria é aquilo que permanece através das mudanças opostas. No movimento o objeto que se move permanece o mesmo, apesar de variar suas posições. Na mudança quantitativa, uma maior quantidade de pedra não muda a qualidade do objeto, a pedra (Met., VIII, 1, 1042a27). Platão diz que a matéria “nunca perde a potência” (Tim., 50b). Também Aristóteles identifica a matéria com a potência: “Todas as coisas produzidas, seja pela natureza, seja pela arte, têm matéria, 161 FILOSOFIA ANTIGA pois a possibilidade que cada uma tem de ser ou não ser é a matéria de cada uma” (Met., VIl, 7, 1032a20). Contudo, segundo Aristóteles, a potência não é apenas essa possibilidade pura de ser ou não ser; é uma potência operante e ativa; Uma casa existe potencialmente se nada houver em seu material que a impeça de tornar-se casa e se nada mais houver que deva ser acrescentado, retirado ou mudado. [...] E as coisas que têm em si próprias o princípio de sua gênese existirão por si mesmas quando nada de externo o impedir (Met., IX, 7, 1049a9 ss.). A autossuficiência da potência para produzir, que transforma a matéria de material bruto em coisa que permite a produção, deixa de considerar a matéria como passiva. Essa parece ser a acepção atomista de Demócrito. O termo matéria aparece pela primeira vez em Aristóteles, que referindo-se a Demócrito escreve sobre o “corpo comum de todas as coisas” (Fís., III, 4, 203a33-203b1). Aristóteles também destaca as três diferenças entre os átomos: a configuração, a ordem e a posição (Met., I, 4, 985b15), e podemos entender que ele está falando da própria extensão da matéria, porque os conceitos de configuração, ordem e posição juntos significam a extensão (ABBAGNANO, 2007, p. 646). 8.12 Mãe (Tim., 51a-b) Para Platão, a mãe do universo era a matéria amorfa. O pai era o modelo eterno que o demiurgo seguiu para criá-lo: Essa mãe e receptora de tudo, de tudo o que de visível e sensível é criado, não deve ser chamada de terra, nem de ar, nem de fogo, nem de água, nem de outra coisa que destas nasça ou da qual estas nasçam; é uma espécie invisível e amorfa, capaz de tudo acolher, partícipe do inteligível e difícil de conceber (Tim., 51a-b; ABBAGNANO, 2007, p. 636). 8.13 Demiurgo (Tim., 51a) Trata-se do artesão que constrói o mundo. Essa palavra aparece pela primeira vez no Timeu, de Platão. O demiurgo é uma divindade que cria o mundo à semelhança da realidade ideal, utilizando uma matéria informe e resistente que Platão chama de matriz do mundo (Tim., 51a). A obra criadora do demiurgo segue os princípios constitutivos da própria natureza, que são as formas ideais eternas, a matéria com sua necessidade e o espaço que não admite geração e destruição e que é a sede de tudo o que é gerado (Tim., 52b). Para Platão, o demiurgo também cria as outras divindades, os demônios, que tinham a função de gerar os seres vivos (Tim., 41c; ABBAGNANO, 2007, p. 239; AUDI, 1999, p. 217). 162 Unidade II 8.14 Persuasão (Tim., 51) Crença cuja certeza se apoia em bases principalmente subjetivas, ou seja, pessoais e incomunicáveis. A distinção entre persuasão e ensinamento racional foi estabelecida por Platão: O pensamento é gerado em nós por via de ensinamento; a opinião, por via da persuasão. O primeiro baseia-se sempre num raciocínio verdadeiro; a outra carece desse fundamento. O primeiro continua firme em face da persuasão; a outra deixa-se modificar (Tim., 51e; ABBAGNANO, 2007, p. 759). 8.15 Razão (Tim., 70a) O conceito de razão tem muitos significados. Podemos entendê-la como uma faculdade do ser humano, que o distingue dos animais. Também é compreendida como a razão de ser, ou a essência necessária de uma coisa. Ainda é argumento ou prova, no sentido de motivação. Daí a expressão “ter razão”, que significa ter argumentos ou provas suficientes. Há uma ideia matemática da razão, quando se fala da razão direta ou da razão inversa. A razão é o que libera o ser humano dos preconceitos, do mito, das opiniões falsas e das aparências. Também orienta o ser humano a se libertar dos apetites dos sentidos, que é o que temos em comum com os animais. A polêmica de Heráclito e Parmênides contra as opiniões, as crenças ilusórias aceitas pela maioria, foi baseada na razão, que deve ser o único critério orientador do pensamento. Platão e Aristóteles contrapunham os sentidos à razão (Tim., 70a; Ét. Nic., I, 13, 1102b15). A razão deveria dirigir as atividades humanas de maneira uniforme e constante (ABBAGNANO, 2007, p. 824; AUDI, 1999, p. 776). 8.16 Lei (Tim., 83) Lei é uma regra dotada da necessidade de que uma coisa aconteça de certa forma, tendo alguma força que garanta a sua realização. A noção de lei é diferente da noção de regra e de norma. A regra pode ser isenta de necessidade. Encontramos regras não apenas nas leis ou nas normas jurídicas, mas também nas prescrições da arte ou das técnicas profissionais. A norma é uma regra que diz respeito apenas às ações humanas e não tem nenhum valor necessário em si mesma. Assim, as leis naturais e as regras técnicas não são normas. 163 FILOSOFIA ANTIGA Há apenas duas espécies de lei, a lei natural e a lei jurídica. A lei jurídica sempre nasce de um contrato – por exemplo, a constituição de um Estado. A lei natural pode surgir com hábito ou convenção, mas também existe como relação simbólica: honrar pai e mãe. A noção de lei como razão surgiu na Grécia com a normativa escrita do conceito de justiça. Platão (Tim., 83e) e Aristóteles (De Cael., I, 1, 268a13) utilizaram o conceito de lei natural, e foi graças a eles que o conceito de racionalidade da natureza e a expressão dessa racionalidade em proposições universais e necessárias acabaram prevalecendo na história da filosofia, influenciando o direito (ABBAGNANO, 2007, p. 601). 8.17 Demônio (Tim., 41a) Demônio na Grécia era qualquer ser divino que não o supremo. Sua função era de mediação. Sócrates atribuía à voz que o chamava para sua tarefa e para o que devia ou não fazer ”algo de divino” (Apol., 31d). Platão acreditava que essas divindades tinham sido criadas pelo demiurgo (Tim., 41a; ABBAGNANO, 2007, p. 239). ObservaçãoA ideia de demônio como um ser do mal surgiu apenas muito mais tarde, na filosofia medieval. 164 Unidade II Resumo Górgias e Protágoras são considerados os dois fundadores da retórica. Trabalhavam como sofistas. Eles realmente existiram e são suas figuras públicas que Platão comenta e critica. No diálogo Górgias, Platão discute a ilusão que o uso das palavras pode provocar nos ouvintes. No diálogo Protágoras, Platão reflete sobre como as palavras são relativas e como a semântica pode induzir a enganos. No Mênon, o filósofo tenta determinar o que é a virtude. Na primeira parte, Mênon entra em contradição ou aporia. Mesmo assim, ele instiga Sócrates com aquilo que considera um paradoxo do conhecer: como se pode investigar uma coisa que não se conhece, nem se faz ideia previamente? Sócrates responde que ninguém pode investigar aquilo que não conhece, pois realmente não sabe o que procura, nem pode examinar o que conhece, pois já sabe de antemão o que procura. No entanto, Sócrates sugere que o conhecimento é possível, pois as ideias já estão presentes na alma. Convoca um escravo e, através de seu método dialético, o faz entender um problema matemático. A partir daí ele consegue traçar uma linha entre conhecimento verdadeiro e crença. Crátilo também existiu e foi um discípulo de Heráclito, aquele que acreditava que não é possível banhar-se duas vezes na mesma água de um rio. Segundo Diógenes Laércio, Crátilo foi o primeiro professor de Platão. A questão nesse diálogo é se as palavras que são substantivos existem por convenção ou têm alguma natureza. Platão se questiona se a linguagem é um sistema de símbolos arbitrários ou se estes possuem alguma relação intrínseca com as coisas que significam. Parmênides foi um filósofo pré-socrático que escreveu sobre a natureza. No diálogo que leva seu nome, Platão apresenta uma tese sobre as formas inteligíveis e as examina de acordo com a filosofia de Parmênides. Na segunda parte do diálogo, Platão faz Sócrates pensar o uno a partir das ideias de Zenão de Eleia, que tinha sido discípulo de Parmênides. Interessante é que Platão está discutindo nesse diálogo as armadilhas da razão, nas diversas formas de desenvolver o raciocínio. Vimos também O Banquete, mais exatamente um simpósio, que era a reunião após a refeição, quando os homens iam conversar. No diálogo Platão discute Eros, o amor. Ele discorre sobre a qualidade do amor. Daí a famosa expressão “amor platônico”, que seria a grande forma de amar, sem nenhum sentido sexual, mas como amizade e verdadeiro reconhecimento do outro. 165 FILOSOFIA ANTIGA Teeteto é um diálogo entre Sócrates e um jovem inteligente chamado Teeteto. Trata-se de uma discussão sobre a natureza do conhecimento. Platão sugere que a única possibilidade de atingir o conhecimento é por meio da razão. Através de Sócrates, Platão discute o relativismo e como cada um tem sensações muito próprias. Portanto, tentar organizar o conhecimento a partir das sensações pode até representar a verdade para um indivíduo, mas não a verdade das coisas em si. Teeteto sugere que saber alguma coisa é apenas acreditar que ela é verdade. Contudo, ele próprio percebe que precisamos de uma terceira condição para alcançar o conhecimento: descobrir qual é a crença verdadeira e como se dá sua justificação. Ou seja, além de acreditar que uma coisa é verdadeira, precisamos de uma justificativa para crer que uma coisa é verdadeira. Assim como numa novela, o Sofista começa onde acaba o Teeteto. Da crença na verdade, Platão passa a discutir como um discurso se curva às crenças dos ouvintes, quando um sofista resolve encantar a audiência com a retórica. Ele então debate como um sofista pode convencer os outros daquilo que se pode acreditar que é verdade. Comparando com o que os poetas fazem ao encantar as plateias, sugere que os sofistas não têm nenhum compromisso com a verdade. Basta que aquilo que seja dito tenha possibilidade de ser acreditado pela audiência. Uma boa argumentação substitui a verdade pela conveniência. As Leis são um diálogo inacabado em que Sócrates nem aparece. Como obra da maturidade, ela não sugere que Platão ainda acredite que a boa educação sugerida como base da cidade ideal na República seja ainda a estrutura maior dessa cidade. No lugar da educação, surgem as leis. Nas Leis o legislador necessita do consentimento do povo para legitimar a legislação. Platão entende que o legislador deve pretender ser um educador das pessoas. Sua missão não é castigar as transgressões, mas tentar impedir que elas aconteçam. Este livro termina com o Timeu, a única obra de Platão que sempre esteve presente na cultura ocidental. Ele é contemplativo e fala sobre a diferença entre o mundo físico e o mundo eterno. O primeiro é o mundo em movimento, que percebemos pelos sentidos. O segundo só pode ser percebido pela razão. O mundo em movimento segundo Platão só pode ser descrito em termos daquilo que é provável, do que aparece. Todavia, Timeu percebe que nada se torna ou muda sem ter uma causa. Por esse motivo o universo deve ter sido causado ou criado por um artesão, o demiurgo. O mundo 166 Unidade II teria sido criado por ele, que seria o pai e o criador do universo. Como o universo é justo, esse demiurgo deve ter copiado um modelo eterno e perfeito sugerido pelas formas ideais. Nesse sentido o demiurgo significa uma inteligência que organiza o universo, uma noção que tinha sido proposta por Anaxágoras. Ele pensa e produz, dando o exemplo de que a teoria e a prática precisam existir em conjunto. O demiurgo produz a alma do mundo, a alma humana e a alma vegetativa. As coisas sensíveis surgem da cópia das formas inteligíveis que fornecem o modelo. Essas formas existiriam em si mesmas, independentes do demiurgo, e seriam eternas. 167 FILOSOFIA ANTIGA Exercícios Questão1. Observe os quadrinhos e analise as afirmativas a seguir. Figura 20 Disponível em em: https://bit.ly/3TuqB6U. Acesso em: 10 nov. 2022. I – O primeiro quadrinho faz referência ao método empregado por Sócrates para buscar o conhecimento. II – O objetivo dos quadrinhos é mostrar que atualmente a filosofia não se sustenta sem a tecnologia. III – Os quadrinhos fazem referência à teoria das ideias de Platão, segundo a qual, as ideias filosóficas devem ser sempre questionadas. É correto o que se afirma somente em: A) I. B) II. C) III. D) I e II. E) II e III. Resposta correta: alternativa A. 168 Unidade II Análise das afirmativas I – Afirmativa correta. Justificativa: o método socrático consistia em sempre colocar em dúvida o que conhecemos. II – Afirmativa incorreta. Justificativa: os quadrinhos fazem uma crítica à pseudofilosofia que circula nas redes sociais. III – Afirmativa incorreta. Justificativa: os quadrinhos referem-se a Sócrates e a seu método de alcançar o conhecimento. Questão 2. Leia os quadrinhos e analise as afirmativas. Figura 21 Disponível em em: https://bit.ly/3A7uGY2. Acesso em: 10 nov. 2022. I – O objetivo dos quadrinhos é mostrar que o desenvolvimento tecnológico permite a especialização e a evolução do pensamento filosófico. II – Os quadrinhos sugerem que, atualmente, indagações banais substituíram as grandes questões filosóficas. III – Ao usar perguntas retóricas em todos os quadrinhos, o texto mostra que não houve alterações metodológicas e cognitivas ao longo dos séculos. 169 FILOSOFIA ANTIGA É correto o que se afirma somente em: A) I. B) II. C) III. D) II e III. E) I e II. Resposta correta: alternativa B. Análise de afirmativas I – Afirmativa incorreta. Justificativa: os quadrinhos não revelam evolução do pensamento nem a sua especialização. II – Afirmativa correta. Justificativa: a pergunta formulada pelo personagem do último quadrinho refere-se a uma dúvida banal, totalmente distante das questões filosóficas apontadas nos quadrinhos anteriores. III – Afirmativa incorreta. Justificativa: os quadrinhos destacam e criticam a diferençadas dúvidas atuais para as questões filosóficas clássicas. 170 REFERÊNCIAS Textuais ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. AGOSTINHO, S. A cidade de Deus. Bragança Paulista: Universidade São Francisco, 2011. AGOSTINHO, S. A verdadeira religião. São Paulo: Paulus, 2002. AGOSTINHO, S. Confissões. Petrópolis: Vozes de Bolso, 2011. AQUINO, S. T. Questões disputadas sobre a verdade. Campinas: Ecclesiae, 2015. AQUINO, S. T. Suma contra os gentios. Campinas: Ecclesiae, 2015. AQUINO, S. T. Suma teológica. Campinas: Ecclesiae, 2017. ARISTÓTELES. Da alma. São Paulo: Editora 34, 2006. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores – Vol. 1). ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores – Vol. 2). ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edipro, 2006. ARISTÓTELES. Política. Campinas: IFCH/Unicamp, 1998. ARISTÓTELES. 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