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NOVE OLHARES SOBRE A SUPERVISÃO Celestino Alves da Silva Junior Mary Rangel (orgs.) >> http://www.papirus.com.br COLEÇÃO MAGISTÉRIO: FORMAÇÃO E TRABALHO PEDAGÓGICO Esta coleção que ora apresentamos visa reunir o melhor do pensamento teórico e crítico sobre a formação do educador e sobre seu trabalho, expondo, por meio da diversidade de experiências dos autores que dela participam, um leque de questões de grande relevância para o debate nacional sobre a educação. Trabalhando com duas vertentes básicas – magistério/formação profissional e magistério/trabalho pedagógico –, os vários autores enfocam diferentes ângulos da problemática educacional, tais como: a orientação na pré-escola, a educação básica: currículo e ensino, a escola no meio rural, a prática pedagógica e o cotidiano escolar, o estágio supervisionado, a didática do ensino superior etc. Esperamos assim contribuir para a reflexão dos profissionais da área de educação e do público leitor em geral, visto que nesse campo o questionamento é o primeiro passo na direção da melhoria da qualidade do ensino, o que afeta todos nós e o país. Ilma Passos Alencastro Veiga Coordenadora SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 1. SUPERVISOR ESCOLAR: PARCERIA POÍTICO-PEDAGÓGICO DO PROFESSOR Antonia da Silva Medina 2. O PABAEE E ASUPERVISÃO ESCOLAR Edil V. de Paiva Léa Pinheiro Paixão 3. O DIREITO AO SABER COM SAOR. SUPERVISÃO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA ESCOLA PÚBLICA Célia Frazão Linhares 4. ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO NA ESCOLA PÚBLICA: O PEDAGÓGICO E O ADMINISTRATIVO NA AÇÃO SUPERVISORA Celestino Alves da Silva Junior 5. A OPÇÃO DA SUPERVISÃO DIANTE DA AMBIVALÊNCIA Marileusa Moreira Fernandes 6. PARADIGMA DE AVALIAÇÃO EMANCIPATÓRIA E A AÇÃO SUPERVISORA: CIDADANIA E ESPAÇO PÚBLICO Marilu Fontoura de Medeiros 7. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DO SUPERVISOR, COMO ESPECIALISTA EM EDUCAÇÃO, NA AMÉRICA LATINA Mary Rangel 8. JOSÉ – DE DIA ALUNO DA ESCOLA, DE NOITE MENINO DE RUA Regina Leite Garcia NOTAS SOBRE OS AUTORES OUTROS LIVROS DOS AUTORES REDES SOCIAIS CRÉDITOS APRESENTAÇÃO Nove olhares sobre a supervisão reúne textos que oferecem subsídios às reflexões, no interesse de que se possam compreender, mais amplamente, a escola, o “especialista” e a ação supervisora. Antonia da Silva Medina (PUC/RS), Edil V. de Paiva (Uerj), e Léa Pinheiro Paixão (UFF), Celestino Alves da Silva Júnior (Unesp), Célia Frazão Linhares (UFF), Marileusa Moreira Fernandes (Supervisora da rede pública estadual de São Paulo), Marilu Fontoura de Medeiros (PUC/RS e UFRGS), Mary Rangel (UFF e Uerj) e Regina Leite Garcia (UFF) aproximam-se, por caminhos diversos, do espaço escolar e chegam à supervisão por óticas, fundamentos, paradigmas que instigam a ir “mais a fundo” no seu entendimento. Assim, Medina prevê a “reinauguração da ação supervisora”, propondo o supervisor escolar como parceiro político-pedagógico do professor. Paiva e Paixão, em O Pabaee e a supervisão escolar, discutem a influência do Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao ensino elementar na institucionalização da ação supervisora no ensino primário brasileiro. Silva Júnior focaliza a Organização do trabalho na escola pública: O pedagógico e o administrativo na ação supervisora, numa análise crítica, histórica, política, que se conclui pelo exame da concepção e da construção da cidadania e da democracia. Linhares aprofunda questões que revelam que os caminhos emancipatórios da supervisão estão entrelaçados com a afirmação de sujeitos da instituição escolar que precisam ser nutridos pela apropriação da memória e pelo exercício da narração. Fernandes busca na sua prática os dados que submete ao tratamento crítico, sintetizando-os no texto A opção da supervisão diante da ambivalência. Medeiros recorre a pensadores como Habermas e Castoriadis para refletir sobre o Paradigma de avaliação emancipatória e a ação supervisora: Cidadania e espaço público. Rangel traz Considerações sobre o papel do supervisor, como especialista em educação, na América Latina, discutindo conceitos, questionamentos e contribuições da pesquisa, com atenção ao estudo da representação social. Garcia toca, com sensibilidade, a vida na supervisão e na orientação educacional, através de José – De dia aluno da escola, de noite menino de rua. Esses “olhares”, portanto, fazem-se à luz de referentes capazes de estendê-los, levando-os além dos limites das especificidades da “função” supervisora, para que se possam alcançar seus entornos e suas implicações. No conjunto desses aportes confirma-se o princípio de que não se pode “olhar” a supervisão sem olhar a sociedade e seus reflexos na formação em conformação da escola, dos professores, dos “especialistas”. Acentua-se, finalmente, a necessidade de bases teóricas indispensáveis a que os “olhares” sobre a supervisão não se detenham na sua superfície, mas alcancem camadas mais profundas, onde se encontram raízes de questões que envolvem o trabalho educativo, seus serviços e compromissos. Celestino Alves da Silva Junior Mary Rangel 1 SUPERVISOR ESCOLAR: PARCEIRO POLÍTICO- PEDAGÓGICO DO PROFESSOR Antonia da Silva Medina Este texto resulta de minha tese de doutorado.[1] O trabalho foi desenvolvido com um grupo de supervisoras que comigo se dispuseram a participar da “reinauguração” da ação supervisora no interior da escola, visando a ensino e educação de qualidade. Reinaugurar a ação supervisora na escola e nos sistemas de ensino significou para nós fazer uma viagem de retorno às ações próprias do supervisor no exercício do trabalho já realizado, do que vem realizando e do que poderá vir a realizar. A revisão dessa ação consistiu num processo de desestruturação da atividade supervisora, na medida em que posições tradicionais foram sendo questionadas e em seu lugar outras foram surgindo. Com este compromisso e tendo como utopia a mudança social e educacional, fiz uma opção de pesquisa e tomei-me de coragem, trilhando os caminhos da pesquisação. Num movimento de ação/reflexão, reflexão/ação o trabalho foi avançando e deixando marcas distintas que identifico, neste capítulo, como: o caminho inicial do grupo de pesquisa, no qual registro o que vinha ocorrendo em matéria de supervisão nas escolas pesquisadas, o deslocamento do eixo das verdades à luz de alguns princípios teóricos e as sínteses a respeito do espaço e do objeto de trabalho do supervisor no interior da escola. Encerro o texto com algumas provocações para reflexões, discussões e debates a respeito da ação supervisora. Caminhada inicial do grupo de pesquisa Com o grupo de supervisoras/pesquisadoras que se autointitularam colaboradoras, a pesquisa começou a ser elaborada com base nas concepções apontadas pela literatura, ao longo da história já contada da supervisão escolar, nas minhas experiências de estudos e trabalho. Foram utilizados procedimentos científicos associados a diversas maneiras de ação coletiva, objetivando responder às seguintes questões: a) existe um espaço possível de ser ocupado pelo supervisor no interior da escola, relacionado com seu real objeto de trabalho? b) o trabalho do supervisor na escola está contribuindo para o trabalho do professor na sala de aula? c) é possível rever a natureza do poder e do controle na escola? d) qual é, afinal, o objeto de trabalho do supervisor na escola? As respostas a essas questões foram desdobradas em inúmeros questionamentos, confrontando situações localizadas na literatura com as situações vividas no cotidiano do trabalho. Num movimento no qual teoria e prática se interligavam na busca da construção de uma nova prática e de referências para a construção de uma nova teoria, a pesquisa foi se desenvolvendo em forma de espiral, na qual o confronto entre ideias, as indagações, as formulações de perguntas e os encaminhamentos de respostas encadeavam e ampliavam horizontes de compreensões, alimentando perspectivas e aprofundando ou rejeitando concepções. Assim, quando iniciamos a pesquisa, o grupo de supervisoras estava convicto de que a atuaçãodos supervisores, no interior das escolas, era uma necessidade indiscutível, atrelada à forma de administrar imprimida pelo diretor da escola. Primeiramente, disseram que o supervisor é o profissional que sustenta a proposta pedagógica da escola através da ação de orientar, acompanhar, controlar e avaliar o trabalho dos professores. Entendiam essa atuação ocorrendo ora com e ora sem a participação dos professores regentes de classe. As colaboradoras definiram a atuação com os professores regentes como atividades de grupo (reuniões) ou individuais (visitas de observação em sala da aula e entrevistas com professores das escolas). Declararam que a ação do supervisor visa o professor; por isso, pode-se dizer que se desenvolve de maneira direta quando há a presença física do professor, e indireta quando não há essa presença. As ações diretas concretizam-se em reuniões, visitas e entrevistas. As ações indiretas incluem as seguintes atividades: • elaborar o plano do setor de supervisão, a documentação do setor (regimento, leis, pareceres, regulamentos, normas e instruções), cronograma de atividades para a escola, instrumentos para observar as salas de aula, as pautas das reuniões; • controlar o cumprimento da carga horária dos professores e as aulas dadas e previstas na grade curricular; • realizar levantamentos estatísticos de rendimento dos alunos; • organizar o mural da escola; • realizar trabalho de reforço para ser aplicado aos alunos; • organizar turnos de trabalho e horários para os professores; • revisar notas, conceitos e pareceres descritivos do desempenho dos alunos; • controlar o preenchimento do diário de classe (livro de chamada) dos professores; • providenciar substituição de professores regentes de classe, nos casos de absenteísmo; • confeccionar material didático para os professores regentes; elaborar a correspondência da escola; • examinar e distribuir a correspondência que chega à escola. As colaboradoras apontaram essas atividades diretas ou indiretas como as mais comuns no elenco das atribuições assumidas pelo supervisor na escola. Lembraram que as atividades indiretas dizem respeito à atuação dos professores regentes e poderão ser transformadas em assuntos para serem tratados diretamente com os professores em reuniões, visitas ou entrevistas. As colaboradoras classificaram as reuniões gerais da escola em pedagógicas e administrativas. Chamaram de pedagógicas as reuniões coordenadas pelo próprio supervisor e classificaram-nas como reuniões: • gerais de planejamento curricular com todo o grupo de professores regentes de classe; • com os professores de classes paralelas; • com os professores de uma mesma disciplina; • com os professores que atuam numa mesma série; • com os professores para relato de determinadas experiências; • reuniões de estudos; • de avaliação (conselhos de classe). Foram chamadas de reuniões administrativas as coordenadas pelo diretor da escola identificadas como reuniões gerais da escola; reuniões com a equipe diretiva (diretor e vice-diretor, supervisor, orientador e secretário); reuniões com os diferentes setores que atuam na escola (biblioteca, promoções culturais, nutrição, banco do livro, serviços gerais, círculo de pais e mestres, clube de mães); reuniões com o Conselho Administrativo e Pedagógico da escola (CAP). [2] As colaboradoras revelaram, em segundo lugar, que sua atuação não se dá somente com os professores regentes de classe. Disseram que trabalham com a direção da escola, participando de: • atividades de elaboração do plano global da escola; • organização do quadro de pessoal; • planejamento do calendário escolar; • distribuição dos professores, conforme turmas ou classes; • planejamento dos eventos culturais e recreativos da escola; planejamento das atividades extraclasse (passeios, visitas, exposições); • planejamento das reuniões administrativas; • tomada de decisões a respeito das questões tanto administrativas quanto pedagógicas; • tomada de decisões para atender às solicitações dos professores da escola ou da própria RME. As colaboradoras afirmaram, também, que suas presenças às reuniões são frequentes e, ainda, que atendem os pais dos alunos quando o assunto diz respeito ao desempenho do professor e aos alunos com problemas disciplinares enviados pelos professores à secretaria da escola. As colaboradoras declararam, ainda, que apoiam e assessoram o desenvolvimento da programação dos demais setores da escola e ajudam a organizar atividades que oportunizem maior integração entre os elementos da comunidade escolar como, por exemplo, as promoções do Círculo de Pais e Mestres. Convictas de terem revelado as ações reais dos supervisores que atuam na RME as colaboradoras assinalaram que a sustentação para realizar o que lhes é atribuído resulta das condições pessoais e técnicas de cada supervisor. As condições pessoais dizem respeito à capacidade de adaptação ao trabalho nas escolas da RME, e ao desejo de cooperar para que a escola atinja os objetivos previstos no seu Plano Global, tais como: • ter entusiasmo pelo trabalho da escola; ser otimista com relação à possibilidade de atendimento às necessidades da escola; • gostar de conviver com os professores e os demais elementos da comunidade escolar; • ter a capacidade de compreender as pessoas com as quais trabalha; ter iniciativa e liderança; • saber se colocar no lugar do professor; • ser uma pessoa com capacidade de autocontrole; • ser discreta, ponderada, modesta; • estar disponível para o professor ou outra pessoa da escola; • saber ouvir o que o professor deseja comunicar, ser assídua, pontual e inspirar confiança. As condições técnicas abrangem a formação acadêmica relacionada ao conhecimento: das questões do ensino e da educação; das questões políticas que “enlaçam” as instituições escolares; das metodologias que podem ser utilizadas pelos professores regentes de classe. Abrangem, também, o esforço que o supervisor despende para se manter atualizado: • o modo como lidera os professores; • a forma como utiliza o controle do trabalho escolar; • a forma de poder e autoridade exercidos sobre os professores e os demais setores da escola; • o modo como se comunica. Acreditando que os supervisores da RME empenham-se na busca constante de tais qualidades, as colaboradoras declararam que os diretores tratam os supervisores de forma diversificada, como se explica a seguir. Há diretores que agem de forma democrática. Permitem aos supervisores atuar de “igual para igual” na equipe administrativa. Com esses diretores, os supervisores podem opinar, dialogar e ter certeza de que estão sendo aceitos como sujeitos que têm contribuição positiva para dar à escola. Diante dos professores, esses diretores tratam o supervisor com respeito, elevando ou tecendo críticas construtivas ao trabalho que o supervisor realiza na escola. Há diretores que conversam harmoniosamente com os supervisores, delegando as funções que lhes são próprias e não fazem intervenções do tipo ditatorial ao seu trabalho. Sempre que precisam de ajuda para resolver qualquer problema ou tomar alguma decisão, procuram o supervisor. Há diretores que não permitem que seja criado espaço para o supervisor trabalhar. Discutem de forma arrogante com os supervisores; tecem críticas destrutivas a respeito do trabalho do supervisor para os professores regentes de classe; desautorizam o supervisor diante dos professores; determinam o que e como o supervisor deve atuar na escola; estabelecem uma relação de competição com o supervisor. As colaboradoras iniciaram sua participação no grupo de pesquisa afirmando que a aceitação do trabalho do supervisor pelos professores era desencadeada pela forma como o diretor o tratava e via seu trabalho. Disseram que, na escola onde o diretor tratava bem o supervisor, os professores respeitavam seu trabalho e acreditavam nele. Nessas escolas os professores procuravam os supervisores, pediam sugestões e mantinham uma relação de amizade e de trabalho.Porém, nas escolas onde os diretores não aceitavam o trabalho do supervisor, os professores mostravam-se hostis à sua atuação, rejeitando qualquer iniciativa sua. As posições de aceitação, não aceitação, hostilidade ou indiferença por parte do diretor, assumidas diariamente em cada escola, fortaleciam os pronunciamentos feitos nas reuniões com as colaboradoras a respeito da convicção de que o trabalho do supervisor está na dependência de o diretor concordar que este atue nas escolas. Juntava-se à ideia da necessidade de aceitação do diretor a certeza de que as atividades do setor de supervisão se caracterizam como atividades grupais integradas com os demais setores da escola, sobretudo com o setor de orientação educacional. As colaboradoras declaravam como absoluta a ideia de que o supervisor atende o professor e o orientador atende o aluno, mas ambos precisam estar integrados, pois a razão de o professor estar na escola é o aluno e, portanto, os “problemas de desempenho do professor recaem sempre no aluno”. Com essas certezas, portanto, as colaboradoras marcaram o que foi denominado de primeiro momento das discussões de grupo. Deslocando o eixo das verdades À medida que essas certezas foram tendo como eco questionamentos com tentativas de respostas, sérias questões foram surgindo e deslocando o eixo das verdades: Por que nas nossas falas e na literatura surgem com frequência as expressões normativas do tipo “dever ser”, “tem que ser” ou “é”? Por que atribuímos ao diretor a capacidade de fazer o supervisor avançar ou regredir na sua atuação? Por que proclamamos a supervisão como sendo um trabalho eminentemente de grupo? Quando as colaboradoras iniciaram o movimento de expressar verbalmente respostas a essas questões, perceberam que o eixo, até então considerado firme pelas suas verdades, começava a sofrer desequilíbrio, indicando a necessidade de um tipo de movimento reflexivo diferente do anterior e que levasse a desequilibrar num processo continuado de equilibração. À medida que essa constatação foi se tornando evidente, o grupo passou a revelar resistência através das seguintes reações: • irritação com o local inadequado para as reuniões; • demonstração de que estavam sofrendo tensão provocada pelos seus próprios pensamentos a respeito de sua atuação como supervisor; • insatisfação com a atuação do diretor da escola; • insatisfação com o desempenho dos professores e o tratamento que muitos deles dispensavam ao supervisor; • insatisfação com outros profissionais da escola a respeito do tratamento dado à atuação dos supervisores; • insatisfação com o próprio andamento da pesquisa e seus possíveis resultados; • demonstração de comportamentos dispersivos nas reuniões; • repetições de assuntos, parecendo não haver avanços nas reflexões; • citação de problemas observados no cotidiano da escola e que possibilitassem reforçar suas “certezas”; • insistência em relacionar a resolução dos problemas vividos na sua escola com as percepções colhidas nas escolas onde seus filhos estudavam; • insistência em transformar as reuniões do grupo de pesquisa em momentos de discussão de assuntos de ordem familiar ou social. Na luta travada entre as certezas de querer descobrir o novo e o medo de perder as referências tradicionais, as indagações começaram a projetar dúvidas, perguntas, esclarecimentos e respostas nem sempre desejados e esperados. Lembraram que não interessava discutir no grupo se a supervisão era ou não necessária nas escolas da RME. Importava, sim, saber o que seria útil ou prejudicial, o que seria conveniente ou inconveniente, o que seria contrário ou não à atuação dos supervisores na referida rede. Assim, as colaboradoras insistiram em declarar que o espaço de atuação do supervisor na escola era bloqueado pelo diretor. Essa discussão revelou que o espaço de atuação do supervisor não consistia, simplesmente, na criação de um ambiente físico e sim na forma de ir e vir do supervisor, no movimento que ele faz, com quem faz, como o faz e para quem o faz na escola. No confronto entre as ideias que emergiram da discussão a respeito do espaço surgiram afirmativas como: • o supervisor está na escola para atender o aluno; • o supervisor está sempre ao lado do professor; • o supervisor conquista o professor; • o supervisor atende ao pedagógico da escola; • o supervisor é o sujeito que faz a leitura da escola na sua totalidade; • o supervisor cria necessidades para o professor; • o supervisor tem seu papel na escola. Surgiu, igualmente, o tema a respeito do setor de supervisão da escola, com os seguintes desdobramentos: a supervisão é trabalho de grupo; existe um buraco que separa o setor de supervisão da ação dos professores. À medida que esses temas foram tramando as discussões no grupo de colaboradoras, surgiu uma questão nova para algumas e antiga para outras: Que trabalho faz o supervisor? Para responder a essa indagação, as “verdades” referidas no primeiro momento foram trazidas novamente para discussão e apareceram questões novas a respeito da atuação do supervisor como, por exemplo, a questão do trabalho. As colaboradoras declararam que essa questão nunca fora discutida pelos supervisores; esclareceram que a palavra trabalho era usada como um substantivo qualquer, para indicar o fazer diário do supervisor; lembraram que já haviam discutido muito a respeito da didática, da pedagogia, das relações entre as pessoas, dos modelos de supervisão, mas nunca sobre trabalho e como esta questão é analisada e compreendida pelos componentes da comunidade escolar na qual se incluíam. Na discussão a respeito do tema “trabalho” emergiu outra questão: Qual é o objeto de trabalho do supervisor? Referindo-se às antigas certezas, as colaboradoras determinaram que o objeto de trabalho do supervisor é o aluno. Esta questão foi polêmica e suscitou discussões com argumentos que confirmaram o aluno como objeto de trabalho do supervisor. Mesmo assim, a discussão tomou várias reuniões e por intermédio de gráficos, pensamentos escritos ou em conversas com outros supervisores, experiências e vivências reforçaram a resposta correta a respeito do objeto de trabalho do supervisor: é o aluno. Desta forma, a discussão recaiu naturalmente sobre o objeto de trabalho dos setores da escola, numa lógica de raciocínio cujo axioma fundamental era de que a escola está na comunidade para atender o aluno. Aplicaram esta linha de raciocínio para todos os setores, obtendo sempre a mesma resposta: aluno. Assim, quando as respostas levaram à identificação do mesmo objeto de trabalho para todos os setores, o grupo começou a duvidar de suas “verdades absolutas” a respeito de seu objeto de trabalho. No entrecruzar das dúvidas, apareceram respostas tidas ora como certas, ora como incertas, instaurando conflitos e provocando impasses. Nesse momento de perplexidade, uma colaboradora declarou que não havia respostas e que o objeto de trabalho não existia, por isso, ele nunca fora tratado na RME. Essa resposta desencadeou, novamente, o movimento de discussão no qual todas as colaboradoras se declararam aptas para encontrar situações cuja análise encaminhasse possíveis respostas. No vaivém das discussões surgiu a expressão “objeto é o que não é sujeito”. Com base nessa premissa e contrariando o axioma anterior, o grupo concluiu que o aluno não constitui objeto de trabalho de nenhum setor da escola. Na escola, o objeto de trabalho para qualquer setor é o resultado de uma ação possível de ser quantificada. Esta constatação veio acompanhada de um movimento mais descontraído, no qual as colaboradoras tentavam especificar os meios possíveis de se identificar o objeto de trabalho do supervisor no interior da escola. Nessa busca de especificação, outros temas foram emergindo: • produção; • produto; • trabalho assalariado; • quem é trabalhador; • o professor é ou não é um trabalhador; • a escola é ou não é igual a uma fábrica; • o que se faz em uma fábrica e o que se faz na escola; • o significado do termo “objeto”para o supervisor. Tais temas passaram a compor as discussões que encaminharam questões, possibilitando aproximações mais nítidas a respeito do objeto de trabalho do supervisor. No confronto de perguntas, respostas e indagações e por intermédio da reflexão, as colaboradoras demonstraram que seu objeto de trabalho não era o aluno e que, até aquele momento, o objeto de trabalho, identificado pelos agentes educacionais como sendo a pessoa do aluno, vinha sendo confundido com a finalidade da escola como segmento da sociedade organizada. Apontaram, então, como objeto de trabalho do supervisor, o resultado da relação que ocorre entre o professor que ensina-e-aprende e o aluno que aprende-e- ensina. Disseram que esse resultado se apresenta sob a forma de uma produção gerada no seio da relação professor/aluno, possível de ser quantificada, conhecida como aprendizagem (conteúdos e situações que passam a fazer parte do conhecimento que o aluno ou alunos sistematizam na sala de aula, em face da qualidade do desempenho do professor regente de classe). As colaboradoras transformaram sua posição a respeito do objeto de trabalho do supervisor, passando de uma verdade absoluta a outra verdade, também absoluta. Declararam-se convictas de que o objeto de trabalho do supervisor é a síntese da relação professor/aluno, expressa sob a forma de relações e conteúdos ministrados pelo professor e adquiridos pelos alunos. O resultado dessa relação foi denominado produção, entendendo-se que essa produção do professor com os alunos constitui objeto específico de trabalho do supervisor escolar. Com essa convicção, desapareceu, temporariamente, a questão do “buraco” existente entre supervisor e professores. E o espaço de trabalho transformou-se no jeito concreto de como o supervisor costuma mover-se, agindo e refletindo a respeito de seu dia a dia, tendo na visão total da escola a especificidade do trabalho que o professor realiza com seus alunos. A partir desse momento, a pesquisadora e as colaboradoras passaram a levar para as escolas essas ideias, iniciando um processo diferente de reflexão e abandonando, aos poucos, a ação supervisora até então defendida, denominada “tradicional”. A tentativa de renovar a ação supervisora começou a ser questionada pelos diretores e demais supervisores das escolas, levando algumas colaboradoras a duvidar de sua capacidade de enfrentar o novo desafio. Prepararam-se para enfrentar esse desafio na escola por meio da discussão sobre temas tais como: • De que tratam a pedagogia e a didática conforme proposta da rede? • É possível andar na contramão da supervisão tradicional? • É possível manter ou mudar a supervisão na RME, cuja tradição é reconhecida pelos professores e proclamada: “Sempre foi assim”? • É possível olhar as escolas considerando suas dificuldades? • O trabalho nas escolas sofre com a divisão em setores? • Cada setor analisa a escola unicamente com base em sua própria percepção (lados da escola)? • As pessoas que atuam nas escolas são trabalhadores ou pessoas voltadas para a ação de filantropia? • O que se entende por saber e conhecimento? • O desejo é necessário ao trabalhador em geral e em especial aos professores? • A integração das atividades dos demais setores da escola é ou não é uma questão que importa para a atuação dos supervisores? • O supervisor desempenha seu trabalho democraticamente, ou demonstra ausência de autoridade? • Por que o supervisor faz e como faz seu trabalho? • O que o supervisor observa, o que ouve e o que pensa a respeito de sua ação na escola? Declararam, as colaboradoras, que, nessa maneira de ação supervisora que estavam tentando implementar na escola, o supervisor não é mais aquele sujeito que possui um “superpoder” de assessorar, acompanhar, controlar e avaliar o trabalho que os professores realizam nas escolas, mas aquele que constrói com os professores seu trabalho diário. Lembraram que essa construção se faz a partir do “desmascaramento das realidades existentes na escola”. Trouxeram, ainda, para as discussões, uma forma de supervisão na qual o supervisor aparece como elemento integrante e integrador do trabalho que os professores regentes de classe realizam na escola. Como integrante e integrador do trabalho do grupo, o supervisor procura manter um nível significativo de dinâmica no trabalho da escola como instituição formal. Visualiza, reflete e age na e com a totalidade da produção dos professores regentes, em geral, e, em particular, com cada professor conforme sua classe de alunos. O papel do supervisor passa, então, a ser redefinido com base em seu objeto de trabalho, e o resultado da relação que ocorre entre o professor que ensina e o aluno que aprende passa a constituir o núcleo do trabalho do supervisor na escola. A forma fácil ou difícil usada pelo professor para que o aluno aprenda será, portanto, o foco da pesquisa, do estudo e da reflexão por onde flui o trabalho do supervisor. O supervisor, fazendo uso da observação participante, poderá encontrar, no diálogo com os professores, formas próprias de intervir na qualidade do trabalho que os regentes realizam na sala de aula com seus alunos, negando, assim, o “receituário das transcrições diretas e indiretas”, tão fortemente difundido nas discussões iniciais do grupo de colaboradoras. Para que tal intervenção aconteça, as colaboradoras apontaram para a necessidade de os supervisores buscarem, constantemente, saberes e conhecimentos concernentes às várias formas de construir metodologias. Essas metodologias devem facilitar o ato de ensinar e de aprender, considerando a realidade da vida e das experiências dos alunos da RME, embora ainda não tenham estabelecido plano próprio para tais metodologias. Ao contrário, operam com uma rotina de trabalho que é planejada no dia a dia com os alunos, levando em conta os recuos e os avanços de ambos e do próprio supervisor, que passa a participar da construção do processo de ensinar e aprender, deixando de ser o reprodutor de um saber adquirido fora da realidade dos alunos da RME. As colaboradoras estabeleceram, também, que o trabalho do supervisor independe do aceite ou não do diretor da escola. No âmago do trabalho de quem ensina e aprende, existe uma necessidade que intitularam “par de olhos” para focalizar o trabalho do professor, no ato de discutir e refletir sobre sua qualidade. Disseram que essa avaliação gira em torno não só da realidade, mas principalmente das situações ainda não descobertas ou não percebidas pelo professor e que se fazem presentes na produção gerada na relação do professor que ensina-e-aprende com o aluno que aprende-e-ensina. Lembraram que essas situações (observando-se lacunas) são identificadas pela ação de pesquisar o cotidiano dos alunos da escola, suas experiências, o que esperam da escola e em que condições a escola pode contribuir, didaticamente, para sistematizar seus saberes e introduzi-los nos princípios do conhecimento científico. Quanto às metodologias do ensinar e do aprender, são construí-das à medida que se dá o confronto das forças que interagem na escola e não construídas a priori. Consideraram o confronto dessas forças que expressam realidades diversas, muitas vezes contrárias, como sendo o “ponto desencadeador” do processo de ensinar e aprender, pois partindo desse ponto desencadeador, a socialização do ensinar e do aprender acontece e a qualidade dessa socialização é acompanhada, refletida e estudada pelo supervisor e discutida com o professor ou os professores regentes de classe. Foram incluídos nessa socialização não só os problemas específicos da didática, envolvendo o ensinar e o aprender, mas também os temas que a circundam, como por exemplo a agressividade, a sexualidade, a religião, a morte, a raça e o gênero. Lembraram que esses temas, embora circundantes da didática, atingem a essência do aprender. As colaboradoras disseram que os professores regentes de classe estão envolvidos com os problemas de regência, ligados à didática de tal forma que não conseguemperceber esta outra dimensão do processo de ensinar e aprender. Revelaram que na produção do professor estão embutidos os aspectos que circundam a didática e que estes são, também, focos de observação do supervisor. Lembraram que os dados colhidos nessas observações constituem pauta para reuniões com os professores, roteiros de entrevista e focos para as visitas de observação em sala de aula. Com essas novas certezas, as colaboradoras apontaram para o que foi chamado segundo momento de discussões do grupo. Sínteses preliminares A passagem do segundo para o terceiro momento foi marcada por uma discussão que já tinha margeado os dois momentos anteriores e dizia respeito ao lugar ou espaço que ocupa o supervisor no interior da escola. As colaboradoras declararam que este lugar não ficava no vazio, “no ar”: ele ficava dentro de uma instituição, determinada por um sistema político e administrada por uma entidade mantenedora, no caso, a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, administradora das 32 unidades escolares que faziam parte da pesquisa. Disseram que estas unidades não são iguais; todas são diferentes. As colaboradoras chegaram a esta conclusão quando descobriram, comparando sua escola com o que era dito sobre as outras, que as escolas da RME são diferentes, têm peculiaridades muito próprias. Até então, as escolas sempre haviam sido pensadas como homogêneas. Essa homogeneidade, própria da estrutura administrativa das escolas e da legislação que as sustenta, foi confundida com relações, laços afetivos, pactos e alianças que regiam cada unidade escolar, em particular. Portanto, descobria-se que a legislação e a administração dos recursos humanos e financeiros eram os únicos aspectos tratados com igualdade em todas as escolas da rede. Indicaram que estas diferenças estão centradas: • na realidade da comunidade onde a escola está inserida; na realidade vivida e experienciada pelos professores regentes de classe; • na forma da campanha realizada para a eleição do diretor; • na forma como os diferentes grupos que atuam na escola se autoavaliam e se autocriticam; • na forma como as classes estão organizadas em sala de aula; • no modelo de disciplina que circula na escola; • no tipo de expressão verbal emitida nos corredores, na sala dos professores e no pátio da escola; • na postura didático-pedagógica e administrativa que caracteriza as vivências diárias da escola como um todo (desde a secretaria, passando pelos setores até a saída dos alunos do pátio da escola para suas casas). Consideraram, ainda, que, para tratar com todas essas diferenças, o supervisor precisa, além da formação pedagógica, do conhecimento de outras áreas (antropologia, filosofia, linguística, sociologia) e do aprofundamento de outros temas (agressividade, sexualidade, morte, raça e gênero). As discussões a respeito dessas necessidades apontaram para um “erro” contido nas reflexões do segundo momento, quando foi dito que no interior da pedagogia e da didática apenas seriam encontrados suportes para o trabalho do supervisor em relação ao professor. O exercício da função supervisora que se constrói tendo por base a produção do professor não se sustenta somente com a didática e a pedagogia, pois ele precisa de outras referências. Essa constatação revelou ao grupo a fragilidade de suas certezas e a necessidade de “estudar”, de avançar no que diz respeito ao trabalho produzido no interior da escola. Foi dito, também, que a expressão que atribui à escola a função de ensinar e educar, por ter sido usada indevidamente, perdeu seu real significado. Essa descoberta trouxe à discussão a comparação de que as respostas dadas às questões que vinham sendo levantadas pelo grupo são necessariamente provisórias. No decorrer das discussões, as colaboradoras experienciavam, de início, a convicção de que as respostas encontradas estavam certas; entretanto, imediatamente após a reflexão a respeito da ação diária, encontravam outras referências que desequilibravam tais certezas, o que levou o grupo à afirmação de que “não há resposta que dure por muito tempo”. Lembrando o histórico do grupo, as colaboradoras apontaram para três respostas (a supervisão como vem sendo desenvolvida na RME é necessária; o objeto de trabalho do supervisor é o aluno, resultante de sua relação com o professor e com os conteúdos aprendidos; o objeto de trabalho do supervisor é a produção do aluno) que haviam emergido nas discussões como sendo as verdadeiras até aquele momento e que foram perdendo esse sentido nas reuniões a respeito do agir do supervisor na escola. Na constatação de que não existem respostas que durem por muito tempo, lembraram que isso ocorre porque o ato de observar, refletir e agir dentro da escola vai trazendo fatos novos e, com estes fatos, um tipo de pensamento que supera o pensamento anterior. Essa reflexão levou o grupo a verificar que aqueles professores que procuram respostas prontas e definitivas para melhorar sua produção em sala de aula dificilmente as encontrarão e o supervisor que procura na administração da RME uma resposta acabada para o agir do supervisor na escola também terá dificuldades. Foi levantada a suposição de que a ideia de provisoriedade das respostas seria a responsável pela postura do supervisor definida como de “braços cruzados”. Diante da possibilidade de buscar respostas, levantar dúvidas e encaminhar posições baseadas na reflexão e no estudo do fazer diário, o supervisor entrou num processo de conflito cuja saída se mostrou possível para alguns e impossível para outros. Apontaram como base para uma possível saída a criação de um modo próprio de pensar a escola que levasse em consideração sua singularidade. Para isso, assinalaram a historicidade do trabalho de supervisão na RME, marcando uma espécie de reencontro com a história da primeira proposta de trabalho divulgada nos anos 60 e a proposta que estava sendo divulgada no momento da pesquisa. Nesse momento, o grupo deparou com as seguintes questões: • Como trabalhavam os supervisores da RME e como estão trabalhando? • Que interpretação a escola e a RME davam e atualmente dão à supervisão e ao supervisor? • Como faziam e como fazem o trabalho de supervisão na escola? • Que sustentação teórica tinha e tem o trabalho de supervisão, hoje? • Que pressupostos políticos, sociais e econômicos davam e dão sustentação a esse trabalho? • Que ideias sustentavam e sustentam o pensamento a respeito das classes populares? Ao confrontarem as propostas, começaram a traçar uma espécie de paralelo entre o que chamaram ação supervisora “tradicional” e ação “supervisora renovada”, conforme explicitado no quadro que segue: QUADRO I – AÇÃO SUPERVISORA TRADICIONAL Ter como objetivo a harmonia do grupo Explicitar as contradições, trabalhando o conflito com o objetivo de estabelecer relações de trabalho no grupo da escola Buscar a igualdade num processo de mascaramento da realidade Trabalhar tendo como base seu próprio desejo Ter a mesma leitura para todas as escolas Produzir modelos de conhecimento Enfatizar procedimentos linearizados Enfatizar a produção do professor no interior da escola, num movimento de ensinar e aprender Ser um facilitador Ter o conhecimento como um dado absoluto Ver na proposta pedagógica mais uma forma de modismo Ter comportamento de neutralidade Trabalhar, tendo em vista um tipo ideal de homem É preciso dizer que este quadro não é apresentado como um modelo de supervisão transformadora, mas como síntese realizada após um período de reflexão, com base no repensar já vivido. Acredito que, se estas reflexões tiverem prosseguimento, certamente o quadro sofrerá ainda inúmeras sínteses diferentes da que foi até aqui apresentada. Os supervisores constataram que a transformação de uma posição para a outra requer tempo, para que o supervisor possa mudar as representações e as práticas construídas ao longo de sua trajetória de trabalho. Assinalaram que o supervisor tido como tradicional “arma-se” com uma série de afirmações que situamsuas ações no plano do comodismo, da falta de esperança, do ver-se impotente diante do que está ao seu redor e que determina sua ação. Vejam-se os exemplos das palavras a seguir: • “sempre trabalhei assim e deu resultados”; • “o diretor não me dá apoio”; • “os professores não colaboram”; • “a comunidade é pobre e precisa ser ajudada”. Estas e outras características geraram mecanismos de defesa sustentados pela argumentação “racional”, dificultando e tornando moroso o avançar para novas posições. As colaboradoras afirmaram que o avanço nas posições se dá em meio a um conflito consigo mesmas como pessoas e com o trabalho que realizam na escola. A observação a respeito de sua própria ação e a reflexão avaliativa a respeito dessa ação é que poderão convencer ou não o supervisor a desestruturar aquelas práticas e representações que não correspondem à realidade de sua escola. Esta desestruturação desequilibra, “desmascara”, “desmente”, questiona e, assim, possibilita a construção de novas representações e novas práticas que poderão encaminhar a uma supervisão repensada no cotidiano das escolas. Dos impasses produzidos nessas reflexões, emergem conflitos típicos de pessoas que confrontam seus saberes, conhecimentos e práticas. Experienciei, teorizei, apliquei e vivi a situação de que a prática não pode ser apropriada pelo supervisor se ele não reflete sobre ela. Por isso, afirmo que repensar a supervisão escolar é perguntar, responder, achar, perder, desejar, expulsar, encontrar, enfim, problematizar a ação supervisora, criando um movimento no qual os eixos – aluno, professor e supervisor – incorporam e defendem o mesmo ato: ensinar e aprender ou aprender e ensinar. Entendo supervisão escolar como ação (ação compreendida como um fazer coletivo envolvendo reação) pensada com base na prática cotidiana da escola. Isto não é nenhuma novidade. Esta fala é antiga e pode parecer para alguns que está reaparecendo com roupagens novas. A experiência de pesquisar a ação supervisora me faz perceber que quando se repensa a prática cotidiana do supervisor escolar percebe-se que a ênfase dada à divulgação do trabalho do supervisor foi num momento histórico em que o conhecimento era projetado por ideias e pensamentos envolvendo expressões do tipo “deve ser” ou “é”. Nessa época de concepção linear voltada para princípios positivistas de ciência e funcionalistas de mundo, a ação supervisora era divulgada como realizada no dia a dia de uma escola imaginária sustentada pelo discurso do devia ser ou era. O momento histórico vivido hoje por nós supervisores impõe a fala deste mesmo cotidiano de ações e reações do dia a dia da escola, sempre recomeçado. Pensar, agir e reagir, elaborando sínteses a respeito da ação supervisora, implica ter-se uma concepção clara a respeito: • da escola como instituição social fincada numa sociedade que tem sua base no sistema capitalista; • do sentido que têm a educação e o ensino para este país; • da posição que o sistema de ensino atribui para o supervisor como um dos agentes educacionais; • da posição que o próprio supervisor se atribui como agente do ensino e da educação; • do objeto específico de trabalho do supervisor escolar e da capacidade de observar o cotidiano para, através dele, transformar sua ação. Por esta razão, pensar a prática cotidiana da escola requer profundo esforço prático-teórico e teórico-prático por parte do supervisor. Este esforço contribui significativamente para compreender a realidade escolar, sugerindo perguntas e indicando possibilidades. Este esforço é feito em parceria com os demais agentes educacionais[3] que atuam na escola, especialmente o professor regente de classe.[4] Compreendo o professor regente de classe como um profissional da educação que regula e administra, diretamente com os alunos, o trabalho didático- pedagógico da sala de aula. Compreendo o supervisor, também como profissional da educação, professor que já foi e ainda pode ser regente de classe. Como regente de classe, o supervisor vivenciou experiências que o professor está vivenciando. As experiências e os estudos de aprofundamento realizados pelo supervisor é que irão desencadear um trabalho visando compreender o desempenho do professor no cotidiano da escola, especialmente na sala de aula. No movimento para compreender o trabalho do professor, o supervisor levanta interrogações, faz afirmações, confronta ideias, tentando com o professor descobrir a melhor maneira de ensinar, aprender e educar uma determinada classe de alunos. Entendo que a aproximação do trabalho do supervisor com o trabalho do professor regente de classe é possível, desde que se considere a escola como local de trabalho produtivo. Sendo local de trabalho, a união entre supervisor e professor regente de classe se faz tendo por base a compreensão de que ambos são profissionais e trabalham em instâncias diferenciadas de uma mesma escola. De acordo com estas instâncias, um profissional – professor – constrói conhecimentos numa relação de ensinar e aprender com um aluno que aprende- e-ensina. Ambos imbricados em processos simultâneos de ensinar, aprender e educar geram uma produção específica – aprendizagem – do aluno. Esta aprendizagem passa a ser o objeto de trabalho do outro profissional – supervisor – que a problematiza, pondera, discute e acompanha com o professor o tratamento dado aos conteúdos lógicos e aos conteúdos relativos às condições existenciais dos alunos. É na compreensão e no entendimento da forma de tratamento dado pelo professor aos conteúdos e às condições de existência dos alunos que o supervisor sistematiza seu trabalho no interior da escola. Estas duas dimensões configuram o processo de ensinar e aprender, que se dá numa relação entre o professor que ensina-e-aprende, o aluno que aprende-eensina e o supervisor que orienta- aprende-e-ensina, embora não se possa identificar com precisão quem inicia este processo. Este processo está sendo por mim denominado como “parceria”. Para poder focalizar a realidade do processo de ensinar e aprender é preciso que o supervisor se utilize de metodologias que possibilitem um trabalho voltado para a ação diária do fazer do professor como regente de classe. O trabalho do supervisor, centrado na ação do professor, não pode ser confundido com assessoria ou consultoria, por ser um trabalho que requer envolvimento e comprometimento. O supervisor, tomando como objeto de seu trabalho a produção do professor, afasta-se da atuação linear, hierarquizada, burocrática que vem sendo questionada por educadores e passa a contribuir para um desempenho docente mais qualificado. Nesse processo, professor e supervisor têm seu objeto próprio de trabalho: o primeiro, o que o aluno produz; e o segundo, o que o professor produz. O professor conhece e domina os conteúdos lógico-sistematizados do processo de ensinar e aprender; o supervisor possui um conhecimento abrangente a respeito das atividades de quem ensina e das formas de encaminhá-las, considerando as condições de existência dos que aprendem (alunos). Nesta relação, o professor não perde o controle sobre seu trabalho, uma vez que este é condição essencial da ação de ensinar. No diálogo do professor com o supervisor surgem as formas para encaminhar o acompanhamento da aprendizagem dos alunos. Estas formas serão, em alguma medida, diferentes das que têm sido proclamadas como específicas do supervisor ou enquadradas no elenco típico de técnicas diretas e indiretas, indicadas na bibliografia existente a respeito da ação supervisora. As formas de ação que provocam reações que encaminham as aprendizagens terão de ser inventadas ou recriadas com base nas experiências vividas pelo supervisor e pelo professor no interior da sala de aula. Considerando as características próprias do professor, o supervisor desenvolve com ele as formas possíveis de controlar o processo de aprender e de ensinar. O supervisor abdica de exercer poder e controle sobre o trabalho do professor e assume uma posição de “problematizador”do desempenho docente. Problematizar o desempenho docente significa assumir com o professor uma atitude de indagar, comparar, responder, opinar, duvidar, questionar, apreciar e desnudar situações de ensino em geral e, em especial, as da classe regida pelo professor. Assim, o supervisor torna-se um parceiro político-pedagógico do professor que contribui para integrar e desintegrar, organizar e desorganizar o pensamento do professor num movimento de participação continuada, no qual os saberes e os conhecimentos se confrontam. As sínteses colhidas nos confrontos são referências que sustentam a ação do professor como regente de classe. Nesta problematização está implícita a ação que integra o professor e o supervisor com a comunidade na qual a escola se insere. Provocações para reflexões, discussões e debates Entendo que o trabalho do supervisor é determinado pelas demandas do trabalho do professor regente de classe. Sendo assim, a ação do supervisor com o professor configura-se numa parceria na qual ambos, politicamente, têm posições definidas com base nas quais refletem, criticam e indagam a respeito de seus desempenhos como profissionais que trabalham numa instituição social chamada escola, e em nível curricular específico. Afirmo, sem receio, que é o trabalho do professor regente de classe que dá sentido ao trabalho do supervisor no interior da escola. O trabalho do professor abre o espaço e indica o objeto de ação/reflexão, ou de reflexão/ação para o desenvolvimento da ação supervisora. Impugna-se, portanto, a concepção de uma ação supervisora centrada no controle puro e simples do trabalho do professor e em seu lugar apresenta-se como uma possibilidade de ação conjunta voltada para a produção do trabalho do professor em sala de aula como sujeito que ensina-e-aprende. Para compreender este processo o supervisor necessita: a) superar os impasses conceituais do termo supervisão; b) compreender a escola como local de trabalho; c) identificar-se como trabalhador da escola; d) conceber o professor como um dos trabalhadores da escola; e) desmistificar a figura do supervisor escolar; f) conceber-se como um sujeito que produz, reproduz e pesquisa diferentes maneiras de ensinar, de aprender e também de orientar; g) admitir que o professor na sua sala de aula tem sua própria produção; h) identificar a produção do professor na interação professor-aluno; i) estar convencido de que saber e conhecimento são predicativos de todos os seres humanos; j) admitir que é na interação do professor que ensina-e-aprende e do aluno que aprende-e-ensina que se encontra o eixo principal da aprendizagem sistematizada na escola. Concebendo este eixo como impulsionador das ações coletivas e das reflexões que acontecem nas reuniões com os professores, estas reuniões deixam de ser encontros para declinar avisos de toda ordem e sustentar o controle cerrado, para se transformarem em focos de discussões e reflexões, capazes de realimentar as ações exercidas pelos diferentes agentes educacionais e projetar ações repensadas para a escola. É também indispensável que se entenda que o espaço ocupado pelo supervisor na escola não lhe garante privilégios, pelo fato de não estar regendo classe; ao contrário, atribui-lhe um trabalho amplo na escola, envolvendo a ação dos professores, o anseio da comunidade e o desejo dos alunos. Essa ação requer do supervisor habilidades e conhecimentos para participar. Ao mesmo tempo, é interessante que o supervisor observe o que se desenvolve no dia a dia da escola, sempre recomeçado, registre as falas que ouve, os gestos que revelam os pensamentos necessários para o refletir da ação vivida pelos professores que, como homens e mulheres trabalhadores(as), carregam o fardo da sociedade capitalista. Esta sociedade tem uma forma própria de organizar suas instituições sociais, forma esta na qual se enquadra a escola, encarregada de desenvolver ensino e educação. Partindo dessa sociedade, com suas contradições, o supervisor atua como “um par de olhos” para focalizar, com os professores, o contexto no qual trabalham, por que trabalham, como trabalham e para quem trabalham. O supervisor parte do esclarecimento a respeito da ação diária que caracteriza o trabalho realizado na escola. O conhecimento que é gerado por essa ação poderá ser apropriado por intermédio de atividades de investigação da prática do professor como regente de uma determinada classe de alunos. Esse conhecimento, por si só, não basta; impõe-se a necessidade de considerar as exigências determinadas pela escola como instituição, a concepção que o professor tem de seu trabalho e o prazer ou desprazer que experimenta ao exercê-lo. Acredito que o supervisor, por intermédio de atividades baseadas na pesquisa do trabalho realizado no dia a dia da escola, identifica os espaços que pode ocupar ao problematizar o trabalho do professor regente de classe. Por ser o trabalho do professor o que dá sentido ao trabalho do supervisor, este não pode ser predeterminado ou preanunciado como sendo necessário. O trabalho do supervisor está tramado na ação do professor. Como as escolas não são iguais – são unidades diferentes ligadas a um mesmo sistema de ensino –, a forma que o supervisor utiliza para investigar seu espaço não pode ser a mesma. Cada escola possui especificidade em termos de comunidade, alunos, professores e administração. A forma como a escola foi construída, a disposição dos pavilhões, das salas de aula, das classes para os alunos sentarem, dos corredores, do pátio (em relação ao espaço que a circunda) e, ainda, a receptividade e a disponibilidade da comunidade para com a escola e da escola para com a comunidade apresentam diferenças acentuadas de uma escola para outra. Isto indica a impossibilidade de existir atuação igual para o supervisor em todas as escolas. Cada escola tem sua forma própria de encaminhar o trabalho do supervisor, considerando suas necessidades, seus desejos e os projetos de desenvolvimento como unidade do sistema de ensino. As escolas são unidades que têm, como matrizes, hábitos arraigados de uma história contada como “bem-sucedida”. Essa história pode encobrir a realidade cotidiana e impedir seu repensar como instituição social destinada ao atendimento de todas as classes sociais. Por meio do conhecimento que adquiri e de pesquisas que realizei ao longo da minha trajetória de mulher professora e supervisora, afirmo que existe espaço para a ação supervisora e este espaço pode ser ocupado por aqueles supervisores que desejarem problematizar, responder e duvidar, refletir/reagir e agir a respeito de seu próprio trabalho, cujo objeto é a produção do professor e do aluno no ato de ensinar e aprender. 2 O PABAEE E A SUPERVISÃO ESCOLAR Edil V. de Paiva Léa Pinheiro Paixão É impossível realizar a reconstrução histórica da escola primária no Brasil sem referência ao Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar, conhecido pela sigla Pabaee,[5] cuja importância, no perfil de várias das dimensões que aquele nível de ensino assumiu, é destacada por pesquisadores. Em particular, é reconhecido o papel que o referido Programa desempenhou na incorporação de uma perspectiva tecnicista na análise das questões educacionais nos anos 60. Por meio das ações do Pabaee e da dos profissionais que, direta ou indiretamente, sofreram sua influência, o Programa contribuiu, de maneira significativa, para enfatizar metodologias e técnicas de ensino como soluções para os problemas que o então ensino primário enfrentava, tais como os da evasão e da repetência (Barreto 1979; Moreira 1990; Libâneo 1989). A avaliação positiva do Pabaee foi lembrada para justificar os acordos MEC- Usaid que movimentaram o cenário educacional nos anos 60 (Santos 1981). Dentre as dimensões da influência daquele Programa, uma, em particular, tem sido objeto de estudos: a da supervisão associada ao currículo. Vale a pena recapitular, de forma breve, três dessas reflexões que tomaram como referência a história da supervisãoeducacional nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Goiás. Silva Junior (1986) localizou historicamente o início das atividades de supervisão educacional em São Paulo ao final dos anos 50/início dos anos 60. Num primeiro momento, as ideias sobre supervisão começaram a ser divulgadas em cursos promovidos pelo Serviço de Expansão Cultural da Secretaria de Educação. Neles as propostas e os materiais produzidos pelo Pabaee eram veiculados. Segundo o autor, o Pabaee era visto de forma positiva: Importa destacar aqui a atitude reverencial que sua simples existência despertava em muitos educadores brasileiros da época e a condição de autoridade inconteste que era automaticamente conferida aos seus mentores. Como corolário da situação, textos e documentos originários do Pabaee eram tidos para todos os efeitos, como material de primeira ordem e fonte obrigatória de atualização e aperfeiçoamento profissional. (p. 50) Em Goiás, na análise realizada por Bernardes (1983), a institucionalização da supervisão escolar adotou modelo defendido pelo Pabaee. O trabalho realizado no Centro de Treinamento do Magistério (CTM), em Inhumas, revelou as estreitas relações tecidas entre a supervisão em Goiás e o Pabaee. Criado no âmbito de uma política nacional coordenada pelo Inep visando à formação de supervisores de ensino primário, aquele Centro, organizado em departamentos por área de especialização, como o Pabaee, iniciou seu funcionamento com a colaboração de oito professoras do Pabaee cedidas pelo governo mineiro para “planejar e ministrar o primeiro curso de Formação de Supervisores de Goiás” (p. 85) em 1963. Esse grupo manteve-se em Inhumas e só começou a ser substituído, ao final de 1965, por professoras goianas que haviam concluído curso de especialização no Pabaee, em Belo Horizonte. A estratégia de organização do Centro de Inhumas pautou-se pela experiência do Centro Piloto de Belo Horizonte. A análise do conteúdo dos cursos e as ideias de supervisão escolar veiculadas então orientaram, segundo Bernardes, a supervisão escolar institucionalizada em Goiás. Segundo as conclusões da autora em pauta, o peso da influência das ideias do Pabaee na institucionalização da supervisão escolar ultrapassou os limites de seu estado. Fica evidente que a Supervisão Escolar institucionalizada em Goiás nasce, como a Supervisão Brasileira, ligada à ajuda técnico-financeira dos Estados Unidos e de outros organismos internacionais. Seu modelo é coerente com a teoria de educação para o desenvolvimento, de inspiração liberal e tecnicista, já impregnada na mentalidade dos educadores do Pabaee. (p. 76) Essa generalização, no entanto, foi contestada por Garcia (1988) tomando como objeto o caso de Minas Gerais. Naquele estado, a institucionalização da supervisão escolar verificou-se precocemente, pelo menos em relação a Goiás e São Paulo. Ali a supervisão surgiu com as reformas de 1906 implantadas no governo de João Pinheiro que criou o grupo escolar e introduziu a figura do inspetor técnico, precursor do supervisor atual, que deveria desempenhar funções técnicas nos grupos escolares. A consolidação das atividades de supervisão no sistema escolar, no entanto, realizou-se com as reformas de cunho escolanovista de Francisco Campos (secretário do Interior) ao final dos anos 20. Foi então criada a Escola de Aperfeiçoamento em 1929[6] quando se realizavam cursos de duração de dois anos, em tempo integral, visando à formação de docentes para os Cursos Normais e à assistência técnica ao ensino nos grupos escolares. Pretendia assim o governo mineiro formar os quadros necessários ao seu projeto de renovação pedagógica no ensino primário e no Normal. Realizavam o curso professoras primárias que, ao voltarem às escolas, deveriam atuar entre as colegas “na implantação dos novos métodos, dando início assim aos trabalhos de supervisão nas escolas mineiras” (Peixoto 1983, p. 147). Quando o Pabaee instalou-se, em 1957, no Instituto de Educação em Belo Horizonte, encontrou, no estado, um sistema articulado de supervisão nas escolas primárias. Portanto, não se pode dizer que, naquele estado, o Pabaee tenha sido fator importante na institucionalização daquela atividade. Isso significa que justamente o estado que sediava o Centro Piloto não deixou sua marca? Para Garcia (1988), essa marca existia e foi constatada na alteração da função desempenhada pelos agentes que atuaram como supervisores nas escolas. A supervisão existente, gestada no âmbito das reformas escolanovistas de Campos, tinha, como eixo de suas atividades, a escola. Esperava-se que as supervisoras atuassem sobre o trabalho do professor nas escolas, interferindo, diretamente, no que ensinar, no como ensinar e avaliar, educando professores e alunos para uma organização escolar fundada na ordem, na disciplina e na hierarquia e cimentada na visão liberal cristã... (p. 75) Garcia (1988) defendia que a orientação de supervisão introduzida pelo Pabaee respondia a transformações na organização do trabalho na escola naquele período histórico marcado pela desqualificação e pela parcelização do trabalho docente. Pois bem, no meu entendimento, com o Pabaee, a supervisão em Minas Gerais assume uma outra função e ganha um novo espaço de atuação. A função passa a ser a redefinição dos currículos e o espaço de atuação – os órgãos centrais do Sistema de Ensino. (p. 63) A hipótese com que Garcia trabalhou foi a de que “com o Pabaee, se iniciava uma nova fragmentação do processo de ensino, retirando dessa vez, da própria escola, a função do planejamento curricular” (p. 72). Para isso, enfatizava-se a discussão sobre currículo e buscava-se a formação de lideranças educacionais que pudessem se ocupar da reformulação de currículos nos órgãos centrais encarregados do planejamento, da coordenação, da avaliação e da administração do ensino nos estados. Ao criar um departamento de supervisão e currículos, o Pabaee, ainda na visão de Garcia (1988), acabou conferindo a essas áreas um espaço acadêmico e científico próprio, como áreas de conhecimento, que elas não tinham nem nos cursos de Pedagogia da época e que só passaram a ter em 1969, com a reformulação dos cursos de Pedagogia. (p. 67) A exposição de algumas ideias desses três estudos revela, em primeiro lugar, o reconhecimento do peso da influência do Pabaee na história da supervisão escolar naqueles estados que apresentavam, provavelmente, semelhanças com o que se passou em outros. Observa-se a tendência de avaliar as orientações sobre supervisão como produto do Programa, da influência americana, tendência essa exacerbada em Bernardes (1983), cujo estudo assume a existência de uma conspiração imperialista americana que procurava impor seus valores e seu way of life ao Brasil. Garcia (1988) avaliou que a preocupação com o currículo/supervisão, na verdade, suplantava os objetivos com os métodos de ensino. “Apesar da tão propalada ideia de que o Pabaee visava impor novos métodos e técnicas, minha hipótese é que a questão central para o Programa era o Currículo” (p. 63). Como se vê, a participação do Pabaee na trajetória da supervisão escolar merece discussão. Neste capítulo, pretendemos contribuir para essa discussão, fornecendo informações e formulando algumas análises, fruto de uma pesquisa[7] mais ampla de reconstrução histórica. Diante do que foi exposto, parece-nos pertinente trabalhar alguns pontos que se referem aos objetivos do Pabaee: Privilegiou-se a questão currículo/supervisão? Como se articulam as propostas americanas no campo educacional brasileiro? Nossas leituras de documentação do Pabaee (relatórios, memorandos, ofícios, cartas) permitem-nos afirmar que: • no projeto inicial do Pabaee e em seus primeiros anos de funcionamento, os objetivos não privilegiavam ações visando o campo de supervisão/currículo; • na alteração desses objetivos, ao final dos anos 50/início dos anos 60, aí sim, incluíram-se investimentos em supervisão/currículo. A pergunta que nos fazemos versa sobre o significado dessa alteração nas prioridadesque se realizavam com o Programa em desenvolvimento no solo brasileiro. Para nós, a valorização dessa atividade e a visualização da necessidade de se implantarem sistemas de supervisão compunham o universo de preocupações de educadores brasileiros. O treinamento de treinadores de professores primários A função do Pabaee no âmbito do ensino primário supõe uma abordagem de seus problemas e uma estratégia de ação que foram assim explicitados:[8] 1. Introduzir e demonstrar, a educadores brasileiros, métodos e técnicas utilizados na educação primária, promovendo a análise, aplicação e adaptação dos mesmos, a fim de atender às necessidades comunitárias em relação à educação, por meio de estímulos à iniciativa do professor no sentido de contínuo crescimento e aperfeiçoamento. 2. Criar, demonstrar e adaptar material didático e equipamento, com base na análise de recursos disponíveis no Brasil e em outros países, no campo da educação primária. 3. Selecionar professores na base de competência profissional, trabalho e conhecimento da língua inglesa, a fim de serem enviados aos Estados Unidos para cursos avançados, no campo da educação primária. (Hart e Renault 1957, p. 1) A leitura desse texto evidencia as ideias que alimentavam o projeto de assistência técnica ao ensino elementar. Há, em seu núcleo, um alvo central – o professor primário, a quem se pretende dotar de um instrumental considerado eficiente e necessário ao exercício de suas atividades: o domínio de novos métodos e de técnicas de ensino. Modernizar o ensino primário é, na perspectiva do Programa, trazer para o Brasil as inovações no campo da metodologia das áreas de ensino existentes nos Estados Unidos e procurar adaptá-las às especificidades do nosso país. Os multiplicadores considerados adequados a disseminar as inovações seriam os professores que atuavam nas escolas incumbidas da formação do professor primário: as Escolas Normais. Esse objetivo supunha a colaboração entre brasileiros e americanos na montagem de um Centro Piloto. Para tanto, já que não havia brasileiros competentes na tarefa, tornou-se necessário enviar grupos de professores que se especializariam na universidade americana, antes de se associarem aos americanos na empreitada. Os principais produtos dessa associação seriam os cursos destinados a formar “instrutores” para as Escolas Normais mais importantes do Brasil e o material apropriado às novas formas de ensinar. Não pairam dúvidas na formulação dos objetivos de que havia, como balizamento geral do Programa, a ideia de que a introdução de novas técnicas de ensino seria uma resposta aos problemas do ensino primário. Essa introdução supõe um projeto de “treinamento” que se faria, prioritariamente, via cursos incumbidos da qualificação desse profissional. Tal clareza de rumos não se esgotou na formulação de objetivos. Acompanhando-se a efetivação desse propósito nas estratégias empregadas na implantação do Programa, ela se confirma. Para constituir o grupo que atuaria em Belo Horizonte, foram enviados 14 professores, como bolsistas, à Universidade de Bloomington, estado de Indiana, em 1956, os quais retornaram ao Brasil em dezembro do ano seguinte: 13 deles foram imediatamente incorporados ao Programa. Aqui eles encontraram quatro especialistas americanos chegados alguns meses antes (entre agosto e outubro de 1957) que deveriam ocupar-se da administração do Programa, em colaboração com o diretor do Instituto de Educação (Charles M. Long) e funcionar como orientadores nos departamentos de Aritmética (Evelyn Bull), Linguagem (Luella Keithahn) e Psicologia (Louis A. Fitzgerald). Antes mesmo de sair do Brasil em direção aos cursos na universidade americana, os brasileiros assumiram compromissos com o futuro trabalho no Centro Piloto. Cada um deles seguiu programação visando a uma especialidade e foi alocado, na volta, nos seguintes departamentos: Magdala Bacha: Linguagem; Rizza Araújo Porto: Aritmética; Wellington Armanelli: Ciências; Maria Onolita Peixoto: Estudos Sociais; Marina Couto: Currículo e Supervisão; Nazira Feres Abi-Saber: Pré-primário; Maria Luiza A.C. Ferreira: Psicologia; Nelson Hortman: Audiovisual; Terezinha Nardelli: professora de 5ª série; Maria de A. Passos: professora de 4ª série; Beatriz Costa: professora de 3ª série; Marília Guimarães Assunção: professora de 2ª série e Terezinha Casasanta: professora de 1ª série. A inclusão, entre os bolsistas, de cinco professoras que assumiriam turmas no ensino primário (cinco entre 13) revela a importância dada, na estratégia do Pabaee, às classes de demonstração. Essas professoras foram contempladas com o mesmo tipo de formação que as futuras “formadoras” dos “formadores”. Com os 13 brasileiros formados nos Estados Unidos e os quatro americanos, foi possível a montagem, no Centro Piloto, dos departamentos (Linguagem, Aritmética, Ciências, Estudos Sociais, Currículo e Supervisão, Pré-primário e Psicologia), de um Serviço Audiovisual e de classes de demonstração na escola primária do Instituto de Educação. Também exigiram muitos esforços da direção as negociações em torno da utilização da gráfica da Escola de Direito da Universidade de Minas Gerais, para produção de material. Assim, foi possível dar início à execução das prioridades do Pabaee: cursos, demonstração e produção de materiais. É necessário chamar a atenção para as áreas que contavam, no início, com a participação dos quatro especialistas americanos; um deles assumiria a administração do Programa em Belo Horizonte em coparticipação com o diretor do Instituto de Educação, e, juntos, os dois se responsabilizariam pela direção técnica. Hierarquicamente superiores, os codiretores do Programa eram Hart (da Divisão de Educação da Usom) e Renault (secretário de Educação de Minas Gerais).[9] Apenas três departamentos contaram com a participação de especialistas: o de Psicologia, o de Aritmética e o da Linguagem. É possível deduzir que essas áreas foram consideradas prioritárias, dada a percepção que se nutria, no âmbito do Programa, acerca das tarefas dos americanos e dos brasileiros. Em documentos redigidos para circulação entre os técnicos americanos, a expectativa da contribuição a ser dada por ambos foi claramente anunciada. Neste Programa de cooperação, os brasileiros são inteiramente os elementos ativos. Os americanos sugerem e aconselham, os brasileiros executam. Os brasileiros entram em ação somente depois de estarem convencidos de que as idéias ou efeitos são adaptáveis ao local ou ambiente. (Pabaee 1957, p. 1) Naquele momento de implantação, esperava-se dos brasileiros que desempenhassem a função de tradutores das inovações às condições locais. Houve uma clara definição da divisão de trabalho: os americanos detinham o conhecimento técnico que o país precisava utilizar, mas apenas os brasileiros podiam tornar viável a aplicação desse conhecimento técnico. Essa divisão de tarefas que orientou os preparativos para implantação do Programa foi assumida também por Renault, tal como se pode verificar pela leitura de documentos assinados por ele e Hart, em 1957: Os técnicos estrangeiros podem possuir mais conhecimento técnico e um ponto de vista mais amplo; entretanto os técnicos do outro país (o Brasil, neste caso) conhecem as condições locais melhor e podem, portanto, introduzir e adaptar novas técnicas em certos ambientes locais, de uma forma extremamente mais eficiente do que qualquer estrangeiro no mesmo caso. (Hart e Renault 1957, pp. 4-5) A estratégia de assistência técnica então adotada previa que, no desenvolvimento do Programa, em contato com os americanos, trabalhando juntos com eles, os técnicos brasileiros fossem se qualificando para, aos poucos, assumir o controle total, tornando desnecessária a presença dos estrangeiros. Foi o que aconteceu: em 1964 cessou a participação, direta, americana, mas as atividades tiveram continuidade sob a direção de Lyra Paixão. A digressão sobre as expectativas em relação a brasileiros e americanos fez-se necessária para evidenciar a existênciade prioridades nos cuidados que antecederam a instalação do Centro Piloto em Belo Horizonte. Supondo que os americanos detinham os conhecimentos, sua participação era fundamental para garantir que as novas ideias, as novas técnicas, os novos métodos aqui desabrochassem. Apenas três departamentos, no entanto, puderam contar, desde o início, com a orientação dos americanos, o que leva a deduzir que suas atividades eram consideradas prioritárias. Com efeito, é possível compreender a prioridade dada às duas áreas de ensino consideradas básicas no ensino primário (Linguagem e Aritmética) e a Psicologia que lhes fornece fundamentos. A reconstrução da história do Pabaee fornece outras evidências que puderam ser apresentadas na defesa da tese de que, no início, a estratégia formulada nos objetivos revelara que o alvo prioritário das atividades do Programa fora a instrução de professores de Escolas Normais, e o conteúdo dessa instrução, a metodologia do ensino. Em 1958, Long, em Memorando nº 161/58, manifestou sua preocupação quanto à necessidade de se ampliar a área de influência do Pabaee; isso porque, em decorrência de problemas enfrentados com setores católicos mineiros e com a maior capacidade de influência do grupo do Instituto de Educação, os primeiros cursos oferecidos não atenderam apenas os professores de Escolas Normais Oficiais, mas também as professoras primárias (140 em dezembro de 1957), freiras-professoras de metodologia (120 entre janeiro e fevereiro de 1958), diretoras de grupos escolares (49 entre abril e maio de 1958), professoras de jardim de infância (70 em outubro e novembro de 1958). Em seu memorando, Long referiu-se à conversa com Casasanta sobre a conveniência de oferecer um curso mais longo para professores de Escolas Normais selecionados entre os mais destacados no país. Duas correções nos rumos que tomaram as ações em 1957 e 1958 são enfatizadas: (1) a procura da dimensão nacional do Programa, atendendo outros estados, além de Minas Gerais. Até então, os cursos atenderam às demandas mineiras, com exceção do curso para freiras que, além de alunas mineiras, contemplou interesses do ensino católico no Espírito Santo e em Goiás; (2) a prioridade concedida ao treinamento de professores de Escolas Normais. Essas duas correções, segundo Long, impuseram-se para concretizar o objetivo do acordo, qual seja o de preparar pessoal docente para as Escolas Normais do país. As palavras de Long, ao analisar a conveniência de atender à demanda de realização de curso para professoras primárias vinculadas às Escolas Normais mantidas por congregações religiosas, merecem ser apresentadas: [...] questionamos seriamente a sensatez de oferecer trabalho para professoras de Escolas de Demonstração antes de tentar alcançar os professores de Metodologia das escolas normais públicas e dos institutos de educação mantidos pelo poder público. Nós recomendamos firmemente que um curso consistente em Metodologia e disciplinas relacionadas seja oferecido primeiro para estes professores. (Long, C.M. 18/4/1958, p. 1) A seguir, Long explicitou as razões que determinaram a adoção daquela prioridade: Primeiro nós estamos informados, de modo confiável, que os professores de Metodologia exercem grande influência nas Escolas de Demonstração. Conseqüentemente, parece ser um imperativo trabalhar primeiro com as pessoas que mantêm e exercem liderança. Segundo, os Acordos Básicos do Pabaee demandam que o programa de atividades tenha como foco o professor educador. Em nossa opinião os fundadores do Pabaee foram sábios ao enfatizar a educação dos professores. O Brasil é um país extenso e o Pabaee é um projeto, relativamente, pequeno. Os fundos e recursos do Programa devem ser gastos em projetos que influenciarão o maior número de pessoas. Isto indica claramente que devemos trabalhar com pessoas que preparam professores, em vez de trabalhar com professores regentes de classes. (Idem, ibid., p. 12) Efetivamente, no primeiro semestre de 1959, foi realizado um curso que recebeu professores de Escolas Normais oficiais do país. Esse tipo de curso mais longo constituiu-se em umas das atividades sistemáticas mais importantes do Pabaee durante sua existência e teve continuidade na DAP/Centro Regional de Pesquisas Educacionais. Uma dimensão das prioridades do Pabaee emergiu do texto de Long: o ensino público. O Pabaee privilegiou o sistema público de ensino. Os primeiros cursos destinados a freiras compunham a estratégia do Programa para enfrentar as dificuldades vivenciadas pelos setores educacionais católicos mineiros que o questionavam em decorrência da orientação pragmatista da educação americana. Mereceu, ainda, destaque, no texto de Long, a referência à necessidade de trabalhar com pessoas que mantinham e exerciam lideranças. A avaliação, naquele momento, foi a de que essa liderança, considerando a necessidade de modernizar o trabalho do professor primário, era exercida pelos professores de Escolas Normais, sobretudo por professores que lecionavam metodologias de ensino. Tal avaliação do exercício de liderança, no decorrer do contato com a realidade educacional brasileira, sofreria alterações, levando à inclusão da categoria dos supervisores como agentes multiplicadores. Antes de concluir a parte ora enfocada, fazem-se necessárias algumas palavras sobre as atividades que se realizavam no Departamento de Currículo e Supervisão que compunha o desenho do Centro Piloto. Para trabalhar nesse Departamento, foi enviada aos Estados Unidos a bolsista Marina Couto. Com ela se iniciaram as atividades de currículo e supervisão, sem a orientação de especialista americano. Nos primeiros anos, a participação desse departamento, de forma prioritária, realizou-se em duas grandes frentes. Uma delas era a de que seus técnicos se encarregassem da organização dos trabalhos das classes de demonstração para que elas garantissem o apoio necessário aos cursos e a outras tarefas do Pabaee. Nele, as professoras primárias responsáveis pelas classes de demonstração, que trabalhavam em tempo integral, passavam parte do tempo extraclasse preparando e organizando suas atividades. O trabalho dos técnicos do departamento não era diferente daquele realizado por supervisoras das escolas: tinha, como alvo, a prática pedagógica na escola primária. A outra frente de trabalho do departamento de currículo e supervisão referia-se aos cursos oferecidos aos professores de Escolas Normais iniciados em 1959 (Cappen – Curso de Aperfeiçoamento para Professores de Escolas Normais). Tais cursos tinham em seu currículo conteúdos que permitiam uma visão das diferentes metodologias de ensino (linguagem, aritmética, estudos sociais e ciências), dos métodos audiovisuais, psicologia, administração, currículo, jardim de infância e avaliação. Além desses cursos, cada aluno especializava-se em uma área de metodologia. Eram destinadas 252 horas para essa especialização e, aproximadamente, 250 horas para os demais conteúdos. Nessa etapa, a supervisão não se constituía em opção de especialização. A participação dos professores do departamento nos cursos para professores de Escolas Normais restringia-se a uma disciplina com 15 horas de duração (2,8% do total) sobre currículo. Nela, incluíam-se uma visão geral de um curso de formação de professores primários, o currículo funcional do curso de formação e os objetivos do ensino na escola primária. A primeira especialista americana a trabalhar naquele departamento foi Rebecca Barnhart, que chegou em outubro de 1959 e retornou aos Estados Unidos em setembro de 1961. Ela é identificada, no Relatório do Pabaee, como “especialista em currículo”. No relatório que encaminhou ao ICA (International Cooperation Administration) ao retornar aos Estados Unidos, Barnhart sumarizou as principais atividades realizadas pelo Departamento de Currículo e Supervisão; nelas, incluiu os cursos para professores de Escolas Normais, a organização das atividades na Escola de demonstração, o treinamento das especialistas brasileiras do próprioPrograma, a produção de publicações referentes à área de currículo. Esse relatório deu conta da emergência de atividades visando um novo tipo de público: as supervisoras de ensino. Provavelmente a especialista foi testemunha de alterações, na prática, dos objetivos do Programa, alterações que impuseram nova redação à revisão do acordo assinado em 31-12-1961. A incorporação do treinamento de supervisores A redação dos objetivos do Pabaee na extensão do acordo de 1961 incluía a formação de supervisores do ensino. A justificativa apresentada para essa ampliação dos raios de influência do Programa era a necessidade de assistir os professores já treinados e de instituir um programa de treinamento em serviço em outras escolas elementares e centros regionais. Assim ficaram estruturados os objetivos: 1. Treinar quadros de instrutores de professores, orientadores e administradores para várias das Escolas Normais mais importantes do Brasil. 2. Elaborar, publicar e adquirir materiais didáticos, tanto para as escolas normais, quanto para as elementares do Brasil. 3. Fornecer treinamento em serviço através de demonstrações a outras escolas elementares e centros regionais do Estado. 4. Prestar assistência através de demonstrações e treinamento em serviço, no planejamento e construção de edifícios escolares funcionais e econômicos e na projeção e produção de seu respectivo aparelhamento. 5. Fornecer assessoria e treinamento em serviço na organização de equipes nas comunidades, para um programa de construção de escolas, através da autoajuda. 6. Enviar aos Estados Unidos, na qualidade de bolsistas, grupos de professores de escolas elementares e normais, recrutados em regiões típicas do Brasil, os quais retornarão a suas respectivas escolas para, sob contrato, integrarem os quadros de instrutores de professores, pelo prazo mínimo de dois anos, e enviar aos Estados Unidos autoridades governamentais de educação, para observação e treinamento, as quais estarão capacitadas a exercer uma atividade mais influente no ensino elementar do País, após o seu regresso. (Acordo, revisão nº 1, p. 2) Comparando esses objetivos aos explicitados no acordo inicial (1956), observa- se uma ampliação considerável no âmbito de ação do Programa: no acordo de 1956, o treinamento destinava-se a professores de Escolas Normais, consideradas as lideranças que promoveriam, via Cursos Normais, treinamento dos professores primários. Esses professores de Escolas Normais constituíam-se em fatores de multiplicação do trabalho do Pabaee. Na revisão de 1961, o treinamento foi estendido aos orientadores e aos administradores. A modalidade de “treinamento em serviço” foi agregada à estruturação original. Anunciou-se o desenvolvimento de ações para o planejamento de construções escolares, assessoria e treinamento para o Programa nas comunidades e construção de escolas. Além dos orientadores e dos administradores, a revisão do acordo incluía bolsas nos Estados Unidos para treinar autoridades educacionais influentes no ensino primário brasileiro, ou seja, para treinamento de lideranças que atuavam em nível de sistemas de ensino. Sem diminuir seu investimento no treinamento de professores de Escolas Normais, a revisão do acordo acrescentava novas preocupações, que indicavam a incorporação de objetivos de novo tipo. Tratava-se agora, também, de treinar profissionais que ocupassem ou pudessem ocupar posições de liderança na administração do ensino e aqueles responsáveis pelas atividades de supervisão em escolas, em delegacias regionais de ensino ou em órgãos de planejamento públicos. Assim, o Pabaee ampliou sua estratégia de resposta aos problemas do ensino primário. A inclusão das construções escolares como objeto de estudos do Pabaee tinha uma explicação. Renault, que continuava na codireção da Programação, havia assumido a coordenação da Campanha de Reparo e Restauração de Prédios Escolares após sua demissão do cargo de secretário de Educação, em março de 1959. Por outro lado, o Inep estava envolvido em programas de construções escolares. Na verdade, os novos objetivos do Pabaee formalizavam a incorporação de atividades que vinham se realizando, de alterações que emergiram no contexto educacional onde o Programa se implantou. Elas responderam a demandas do campo educacional brasileiro. De fato, o Pabaee vinha ministrando cursos intensivos de supervisão desde o primeiro semestre de 1960, atendendo à solicitação da Secretaria de Educação de Minas Gerais. O primeiro desses cursos, realizado em janeiro de 1960, teve como alunas 28 inspetoras de ensino do interior de Minas Gerais. Segundo relatos, procurou-se, nesse curso, deslocar a referência à “função de inspeção” para a “função de supervisão”. Schwab referia-se aos participantes como “novos supervisores” (Relatório mensal de atividades de janeiro e fevereiro de 1960). Os planos da Secretaria de Educação para organizar um trabalho de supervisão nas inspetorias regionais incluíram a criação de núcleos para o treinamento do professor primário nos sete agrupamentos de inspetorias mineiras e geraram demanda de vagas para possibilitar, a quatro representantes desses agrupamentos, a realização do Curso de Aperfeiçoamento para Professores de Escolas Normais (Cappen). Os documentos consultados revelaram, naquele momento, entre membros da equipe técnica do Pabaee, uma reação ao atendimento às demandas da Secretaria, interpretadas, ao que parece, como desvio dos objetivos do Programa, que previam a priorização de seus investimentos em cursos destinados a professores de Escolas Normais. Como diretor técnico substituto, Searles (1960, p. 1) registrou o seguinte comentário no relatório de atividades: Tem havido discussão sobre o que algumas pessoas chamam de desvio de nossos objetivos formulados como um Programa. Talvez, caso exista tal desvio, ele existe mais nas palavras do que no espírito, visto que estaria ajudando a educação brasileira e obtendo um efeito multiplicador. As resistências, se existiram, foram vencidas, porque a partir do segundo semestre de 1960, o Pabaee passou a incluir na listagem das especializações do Cappen, a opção “Currículo e Supervisão”. Aí, sim, pode-se dizer que o duo currículo/supervisão se equiparara, em termos de prestígio, às metodologias de ensino. O contexto educacional brasileiro e a ampliação dos objetivos Como se explica esta alteração dos objetivos do Pabaee? Uma pista interessante para a resposta a essa questão encontra-se no relatório de Barnhart (1961). Ao avaliar sua própria participação no Departamento de Currículo e Supervisão no período em que a ele esteve vinculada (1959-1961) e a atuação do Programa em geral, Barnhart apresentou duas categorias de atividade: dentro e fora do Pabaee; no item referente a “fora do Pabaee” observa: O interesse em algum dos tipos de assistência do Pabaee vem crescendo rapidamente, no último ano, em comunidades distantes, cidades e estados. Onde quer que se encontre um aluno, podem ser encontradas evidências do treinamento do Pabaee – e lá se faz necessário mais assistência para fortalecer e ampliar os campos de atividades (do Programa). Muitas solicitações vêm ao Pabaee de Instituições que não enviaram candidatos (aos cursos), buscando ajuda na revisão de currículos, no treinamento de professores, seminários, cursos intensivos para professores “em serviço”. É um desenvolvimento significativo e revelador do programa do Pabaee, que alcançou tais proporções que justificam a coordenação, por uma pessoa, em tempo integral, das atividades de extensão. (Barnhart 1961, p. 10) Barnhart, dedicando o período de 1959 a 1961 ao Pabaee, demonstrou como a atividade central do curso gerou novas demandas para o Programa, entre elas a colaboração na revisão do currículos nos estados e nas cidades. Evidentemente as professoras que realizavam cursos de especialização, ao retornar aos seus estados, então carentes de profissionais com competências em técnicas de ensino, organização de programas e currículos da escola primáriae da Escola Normal, eram, com frequência, chamadas a participar de atividades ligadas às Secretarias. Não existiam, em muitos estados, programas e currículos com objetivos, conteúdos e metodologias claramente formulados, como se aprendia no Pabaee. Ao assumirem novas responsabilidades, os órgãos de planejamento solicitavam assistência aos antigos professores, aumentando-lhes as tarefas, a que Barnhart considerou “extensão”. É significativo também, nesse movimento do Pabaee, o aumento da demanda da Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais. Como já foi dito, a supervisão em escolas primárias institucionalizara-se muito cedo, em decorrência das reformas de Francisco Campos, ao final da década de 1920. Ali existia o cargo de supervisão, exercido por profissionais qualificadas em curso pós-médio. Ora, era natural, então, uma certa pressão para que as supervisoras pudessem usufruir dos cursos oferecidos pelo Pabaee. Os planos de reorganização do sistema estadual de ensino geraram também, como se expôs, demandas de atendimento às inspetoras que, esperava-se, passassem a desempenhar funções mais próximas da supervisão. O contato com a realidade educacional brasileira também mostrou que o poder de divulgar as novas técnicas não se restringia aos professores de Escolas Normais, considerando-se que, nas décadas de 1950/1960, os professores leigos, que constituíam boa parte da população docente, não passavam pelas Escolas Normais. Nesse caso, a atuação de supervisores funcionaria para o chamado “treinamento em serviço”. Foi, então, o contato com a realidade que obrigou o Pabaee a um esforço de adequação, ampliando sua atuação e investindo na área de supervisão. Essa é também a opinião de Paiva (1979, p. 45): Os primeiros cursos ministrados pelo Pabaee tiveram por objetivo proporcionar estudo especializado, em Metodologia e Psicologia Educacional, a professores de Escolas Normais. À medida que se estudava a situação educacional no Brasil, a natureza dos cursos foi sofrendo modificações, de maneira a atender também às necessidades dos supervisores, diretores de escola, regentes de classe e responsáveis pelo currículo. A atenção dada às demandas da Secretaria de Educação que resultaram no curso para supervisores foi a chave para quebrar as reservas havidas quanto ao Programa, mantidas por autoridades educacionais do estado, segundo Schwab, no relatório dos meses de janeiro e fevereiro de 1960. No cenário nacional reaparecia, segundo Medeiros e Rosa (1985), a inspeção, de forma “modernizada”, sob a denominação de supervisão escolar. No início da década de 1960, iniciavam-se ações visando à constituição de Centros de Treinamento do Magistério nos estados. A ação do Pabaee em cursos para supervisores que atuariam no nível dos sistemas de ensino foi expandida com essa política. O MEC propôs a criação de dois desses Centros em cada estado, no Programa de Emergência (1962) e, posteriormente, no Plano Nacional de Educação. O Plano Trienal de Educação (1963-1965) previa a criação de 40 Centros de Treinamento do Magistério a serem mantidos pela União e a formação de “professores supervisores”, que dariam assistência a professores leigos ou regentes de ensino, tomando a seu encargo o acompanhamento dos trabalhos em, no máximo, dez classes primárias. Observações finais Como se constata pelo relato ora apresentado, o Pabaee não trazia, como projeto, ao se implantar em Belo Horizonte, uma proposta de atuação significativa em relação à supervisão escolar. Sua prioridade era influir na prática pedagógica das professoras primárias da rede pública de ensino, utilizando, como via preferencial, o trabalho realizado pelas professoras de metodologia de ensino das Escolas Normais. As ideias sobre a necessidade de implantação de sistemas de supervisão emergem do contexto educacional brasileiro. É verdade que elas se gestaram no convívio direto, com a experiência de outros países, em particular a dos Estados Unidos, e nos contatos e nos compromissos decorrentes da participação do Brasil nos órgãos internacionais de cooperação. É no contato com a realidade dos problemas do sistema de ensino brasileiro que o Pabaee se abre para se ocupar da supervisão, evidentemente, imprimindo sua marca, ou seja, baseando-se na perspectiva tecnicista que considerava a resposta moderna e adequada ao enfrentamento dos problemas do ensino primário brasileiro. A supervisão que se dissemina com a ajuda do Pabaee supervaloriza métodos de ensino das disciplinas como questões fundamentais, em detrimento de uma análise mais ampla das causas dos problemas da escola primária. A supervisão adota como solução a técnica de ensinar linguagem, aritmética, ciências, estudos sociais. Não cabe, no âmbito deste texto, analisar o significado da via que a supervisão dissemina sob a influência do Pabaee, mas interessa assinalar que, no Inep, quando se instala o Pabaee, estavam sendo gestadas explicações sobre os problemas da escola primária numa outra perspectiva, as quais, no entanto, não frutificaram, como o tecnicismo do Pabaee, mais adequado aos rumos que o país tomava sob a presidência do mineiro Juscelino Kubitschek. Referências bibliográficas BARNHART, R. End of tour report. International Cooperation Administration Aid Reference Center, 25 de maio de 1961. BARRETO, E.S. de S. “Tradição tecnológica e sistemas de ensino no Brasil”. Educação e Sociedade, nº 2. Jan. 1979, pp. 60-69. BERNARDES, M.P.A. “A supervisão escolar em Goiás”. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Iesae/Fundação Getúlio Vargas, 1983. BRANDÃO, C.R. Educador: Vida e morte. Rio de Janeiro: Graal, 1982. DIÁRIO OFICIAL. MEC/INEP. 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Revisão nº 1 do Acordo de 22-6-1956 assinada em 18-5- 1961. SCHWAB, P.R. Monthly Report Of Technical Director Elementary Education Project. Fevereiro 1960. 3 O DIREITO AO SABER COM SABOR. SUPERVISÃO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA ESCOLA PÚBLICA Célia Frazão Linhares Não te percas tão miseravelmente em teus pensamentos. Lady Macbeth/Shakespeare ... o pobre é a garantia de uma visão de futuro. Milton Almeida dos SantosA maior tragédia da escola pública brasileira é que ela convive com o conformismo da sociedade Em meio a tantas informações e teorias que se autodefinem como verdadeiras e científicas que não param de se amontoar, trazendo a impressão de que algo de importante e decisivo está para ser descoberto, inventado, anunciado, a crise da escola pública – que reflete e aprofunda a perda do exercício ético entre nós – continua a desafiar nossa capacidade de formulação e, por conseguinte, de intervenção. O desastre educacional produzido dentro da escola, que todos sabemos estar interligado aos processos crescentes de exclusão social, vem sendo pouco referido à sua dimensão simbólica, à construção histórica de valores e significados comuns sem os quais não é possível elaborar um projeto pedagógico. A problemática educacional tem sido tratada como uma subsidiária das questões econômicas e financeiras, tanto na perspectiva conservadora e liberal – com que se alinha a nova direita – quanto no tratamento elaborado pelas versões vulgares do socialismo e do materialismo histórico-dialético que se articulam no campo progressista. Em outras palavras: se dependemos quase exclusivamente das análises econômicas para nossos estudos e nossas explicações do processo social e educativo, é importante sublinhar que a esfera da produção não saiu ex nihilo, mas vem sendo partejada por embates tramados historicamente, quer dizer, fermentados na cultura, marcados pelo acervo da memória social, saturados de imagens que, por serem pouco discutidas, funcionam como a priori, legitimando alguns exercícios do poder em detrimento de outros. Agora, por exemplo, a classe dirigente insiste em apresentar promessas de solução para as graves questões nacionais, apontando as privatizações e as políticas neoliberais, enquanto nega à sociedade brasileira a participação na construção de um processo civilizatório. Na atual refundação capitalista, não há lugar para escolhas de sujeitos históricos: a opção colocada está presa na lógica da competição sem trégua, em que, por um lado, impõe-se a vitória dos mais fortes – num verdadeiro darwinismo social –, para ser consolidada com a legitimação, ainda que dada de forma passiva pelos derrotados e, por outro, profetiza-se a aproximação do caos, da barbárie. O dilema estabelecer-se-ia com a seguinte “escolha”: engole-se a tirania, o que corresponderia a resignar-se com ela, ou sua exacerbação vai acabando por aniquilar o que ela própria proclama defender, ou seja, as possibilidades de vida social. Ao minimizarmos o esforço humano e social para submeter a ordem cotidiana a um exercício de reinvenção – em que a memória seja restaurada como um baú de sonhos não realizados, de conflitos ainda não extintos e, portanto, de fonte de criação que tensiona o instituído no sentido de sua superação em busca de maior solidariedade[10] – perdemos um solo ético de fundamental importância para a educação. Como podemos olhar, descrever, estudar a questão da escola pública sem estremecer diante dela? Como podemos nos perder tão miseravelmente num jogo de pensamentos que se dissolvem em aplausos ou em efeitos de eco, sem que as elaborações sejam seriamente assumidas como instrumentos de intervenção da realidade? Afinal, como a escola pública se encontra já representa um intenso argumento inviabilizando as esperanças de diálogo e interlocução, sem as quais a escola não encontra sustentação possível. Só mesmo uma forte naturalização das desigualdades – que nos esconde seu profundo enraizamento histórico, com que vai se alimentando a razão cínica[11] que nivela todos os atos a uma avaliação utilitária e particularista – é que torna possível que não nos assustemos com a desintegração da escola pública. Sem escola pública que possibilite uma aprendizagem do conhecimento como uma tensão emancipatória, como realizar o fundamental exercício de escolhas em que cada nação define concretamente sua presença nessa rede de interdependências que vai se tornando cada vez mais intensa? Não podemos minimizar a importância que a escola e a cultura letrada exercem no sentido de frear os imediatismos das reações e de ampliar os instrumentos não só para a sobrevivência humana mas, sobretudo, para a compreensão da trama histórica e das escolhas alternativas de respostas que cada sociedade pode ter e que podem constituir-se como projetos. Mas bem sabemos que não é qualquer escola que irá nos ajudar a responder às graves questões intensificadas nesse período de crise. Sem uma escola pública que nos permita aceder à palavra, desnaturalizar as iniquidades com que fizemos nossa história, elaborar projetos coletivos e individuais, ou seja, sonhar outros mundos, será bem mais difícil sair deste abismo onde a miopia, própria da luta pela sobrevivência, nos mantém. A rigor, sob intensas ameaças da excludência física e moral, a ânsia de sobreviver, que marca este final de século, aproxima-se da selvageria com que o capitalismo se estruturou no século XVII, que fez Hobbes concluir que “o homem é o lobo do homem”. Em países de capitalismo periférico como o nosso, em que os direitos civis, sociais e humanos sempre primaram por sua função de adereços, pendentes de uma retórica que primou pela convivência com a iniquidade e com a injustiça, legitimadas por usos e costumes, a organização da sociedade e a noção da própria humanidade foram se impregnando de hierarquias e conflitos. Uns seriam mais humanos que outros. Roberto da Matta explorou a expressão “sabe com quem está falando?” para nos mostrar os limites das discussões em face de um escalonamento de privilégios, muito assentado na nossa estrutura social. Darcy Ribeiro (1995), remexendo nossa herança coletiva, registrou que “levamos sempre conosco a cicatriz de torturador, impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista” Em consequência de tudo isso, a indignação parece cabível quando privilégios já naturalizados são feridos ou ameaçados. Só alguns poucos têm espaço para a indignação[12] – com seus mecanismos de terrores –, enquanto para os demais caberia esperar pelas concessões e pelos favores. Oscila-se assim entre a violência ativa, ora dirigida aos destituídos de poder, ora por eles acionada, e a violência passiva, autodirigida pelas próprias vítimas, e que redunda em um conformismo que só cresce com o crescimento das excludências e suas ameaças. Uma e outra exprimindo a banalização da vida; uma e outra oscilando em manifestações de aplausos e de condenação. Isto equivale à alternância das duas faces de uma mesma moeda: a moral da sobrevivência e o jogo de luz do espetáculo narcísico. Afinal, não podemos nos esquecer de que, entre nós, o limite que separa o herói do vilão é sempre poroso, precário. Somente a pulverização dos significados sociais pode nos atirar nesse vale-tudo e, portanto, nesse vale-nada, fazendo-nos espectadores de um processo como o que vem vivendo a escola pública brasileira, quando se lhe arranca uma identidade social, denegando, a alunos e professores, o acesso a saberes e conhecimentos, a uma elaboração de um autoconhecimento pela partilha das experiências coletivas, como matrizes de projetos, expectativas e esperanças, com que viabilizaríamos nosso presente, que sempre se faz como uma travessia para o futuro. No nosso caso, para qual futuro? Numa época em que o próprio exercício ético exige um nível complexo de organização de conhecimento, quando a identidade nacional supõe a elaboração coletiva de símbolos e significados sociais (Castells 1990), é preciso encarar que um tipo de educação escolar que não atinge os sujeitos históricos obstrui nossa participação nacional nesse processo de independência da cultura e da economia, que nos vem sendo imposto num circuito homogeneizador e opressivo. Isto nos lança um desafio em dose dupla: ampliar a escola, ampliando internamente seus espaços de atuação de sujeitos. Sabemos que o sujeito é sempre conquista contra o assujeitamento: assujeitamento material, mas também assujeitamentomoral, que são operados simultânea e interligadamente. A servidão se faz norma quando os “educados” comandam o espetáculo social, exibindo instrumentos de cálculos e planos, justificando suas durezas pela suposta função de impedir o caos, a exclusão e as guerras que não param de promover. Guerras que, mais que bens materiais, destroem hoje sociedades, classes e grupos sociais e pessoas em verdadeiros assassinatos culturais, para usar uma expressão de Glauber Rocha. Não podemos nos esquecer de que são os que dispõem de um alto nível de escolaridade, e que pertencem às classes dirigentes, que comandam os grandes crimes contra a humanidade, embora a imagem do ladrão e do delinquente seja atribuída, com frequência, aos pobres, aos negros e mestiços, aos gays. Contra eles, é imputada a responsabilidade sobre os problemas nacionais: são eles apontados como a causa da violência urbana, do desemprego, do atraso nacional, das endemias e epidemias, da falta de aprendizagem escolar e por aí vai... São ainda os altamente escolarizados que vão forjando a tecnologia, como arma de luta, à sua imagem e semelhança, e logo impondo sua eficiência e sua frieza como modelo da e na produção social. Homens e mulheres-máquina, em diferentes locais da sociedade, acionam botões propulsores de uma produção acumulativa, competitiva, que se exibe em guerras “cirúrgicas” e técnicas, como a do Golfo, que vimos tão recentemente pela televisão. Uma alegoria do produto escolar? Escolarizados que sabem engendrar esquemas potentes de destruição, que conhecem como intensificar os mecanismos de acumulação, mas desprezam a vida, são reféns de uma cultura que alterna, como faca de dois gumes, a permissão de matar e a de sobreviver (Canetti 1995; Ensensberger 1995). Se o momento é de crise da própria civilização, dela só sairemos com uma escola que se refaça, escapando da reprodução do já feito mas sem abandonar a longa estrada percorrida. Até porque sabemos que o passado não nos condena, desde que aprendamos a conjugar a tradição, extirpada de seu entulho conformista, com o esforço de criação do novo. Sem um processo de escolarização vivo e duradouro, qualquer processo de democracia e desenvolvimento sofrerá de artificialidades intransponíveis. A perversão do conformismo social com a negação escolar é tão mais grave porque vai conformando uma opção de escola que, desde o início, vem marcando a sociedade brasileira: uma escola dual que agora toma a forma de escola apartada (Buarque 1994), fraturada e distanciada em suas partes, por abismos que não param de se aprofundar. Sem que a sociedade brasileira assuma a escola como uma questão fundamental, continuaremos sem direção para o próprio sistema de produção e para o próprio sistema político. Produzir para quê? Controlar com que direção? Em que sentido? Ingressar nos processos de mundialização só nos interessa se pudermos escolher a forma específica de nossa contribuição, como um exercício de liberdade e libertação, próprio de sujeitos coletivos em tensão com sujeitos individuais. Até agora o crescimento da economia brasileira fez se pari passu com a concentração de bens e a ampliação da miséria. *** Segundo divulgação do Unicef, o Brasil é o 6º país, entre os piores do mundo, em matéria de evasão escolar. Apenas 39% dos que ingressam na 1ª série atingem a 5ª série. Os companheiros recordistas em expulsão escolar (expressão que arranca esta realidade do eufemismo usual, que é a evasão escolar) são pequenos países africanos, alguns com recentes processos de independência política, muitos em guerra interna e com economia absolutamente insignificante, portanto em nada comparáveis ao Brasil. Vale a pena reconhecê-los: Guiné Bissau (20%), Etiópia (31%), Moçambique e Angola (34%), Madagascar (38%). Os números que retratam essa realidade assustadora para um país reconhecidamente pujante como o Brasil, com ilhas de sofisticação e prosperidade, não podem vir isoladamente. No ranking internacional, o professorado de São Paulo, o estado mais rico da Federação, ocupa uma posição inferior ao de Bombaím – considerada na Índia como a cidade da miséria. Mas as comparações não param aí. Confrontado com o que foi há 30 anos, o salário do professor sofreu uma redução de um quarto de seu valor (Veja, 20/11/1991), ocupando um dos últimos lugares entre os mais baixos salários do mundo. Afinal, este é um problema em que as evidências vão exibindo um nível de gravidade que não pode passar despercebido. Quando comparado aos garis e mesmo a certos tipos de empregados domésticos, o professor do ensino básico público, na maioria dos casos, fica em desvantagem financeira.[13] O número de pedidos de demissão da escola, depois de um concurso público, e até com a estabilidade garantida, bem nos dá a medida do desespero desses professores, frustrados em suas expectativas coletivas e individuais como classe popular, como mestiços e como mulheres. No Rio de Janeiro, 20 pedidos diários de demissão da rede municipal e estadual (Veja, 24/5/1995) mostram uma realidade que se inscreve como frustração no cotidiano escolar. Para confirmar, como exceção à regra – capturada por Chico Buarque de Holanda – , a dor do povo, dos professores, aqui e acolá, começa a sair nos jornais, assinalando incorporações à população que mora nas ruas, como foi o caso notório da professora de Campos que se alojou debaixo da ponte (JB, 22/8/1989). Mas ainda, na grande imprensa, começam a aparecer publicidades assinadas por empresas, às vésperas das eleições de 1994, destacando o orçamento de 10 bilhões de dólares gastos com alunos repetentes, como uma maneira de precaver aqueles que com “boa-fé” compõem a elite, que têm negócios ou empregos e que portanto pagam a despesa com programas populares de educação, para o fato de que deveriam estar alertas em relação à má administração pública e a todo aquele desperdício. Mas não param aí. Insinuam o prejuízo de tentar dar escola a quem não quer aprender. Velha tecla de culpabilização da vítima. *** Num país com uma pós-graduação que já conta com a produção de mais de seis mil dissertações, as quais alimentam um movimento editorial respeitável que garante uma expressão dentro e fora do Brasil, como convivemos com este descalabro público? Enquanto se difundem as comunicações via satélite, televisão a cabo e antenas parabólicas emprestam às cidades e às suas periferias o aspecto de uma horta de cogumelos gigantes (Macaé constitui um exemplo concentrado deste tipo de paisagem), a escola pública se esvai, perdendo sua credibilidade e a identificação social de seu trabalho. Esta constatação e este espanto fazem-se mais agudos quando confrontamos o alto teor de inventividade que percorre a cultura nacional: uma inventividade posta à prova neste exercício diário de driblar ameaças de morte. Uma inventividade que parece condenada a ser mantida fora da escola, privando-a do trabalho de traduzir problemas que são ocultados como enigmas invisíveis em desafios formulados e discutidos pedagogicamente. Como produzimos uma escola tão excludente que à medida que cresce fisicamente desintegra-se internamente? Como mantemos uma instituição escolar que exclui do exercício de fazer-se sujeito de conhecimento mesmo aqueles que inclui dentre seus pertencentes: professores e alunos? Com o pulso escravocrata, o Brasil reservou a aprendizagem letrada para a classe dirigente, tanto que até na década de 1920, apenas 25% da população brasileira sabiam ler e escrever. Os restantes 75% constituíam-se de analfabetos (Anuário Estatístico do Brasil 1936, citado por Ribeiro, M.L. 1982). Agora que os pobres, sempre considerados a ralé que nada merece, entraram na escola, ela torna-se diluída em ensinamento e perdida em termos de significação, sentido de vida, incapaz, portanto, de vertebrar um projeto pedagógico potente. A escola ficou vazia. Até então, mesmo livresca, repetitiva, autoritária, ela veiculava os interesses da classe que ocupava as posições de mando e que, portanto, controlava a sociedade brasileira.Agora, os que estão dentro dela têm cultura e interesses diferentes daqueles primeiros. Não lhes interessa conservar os privilégios que sempre os excluíram, mas fazer do saber escolar algo vivo, para ser refeito, que lhes ajude a entender mais de si mesmos, entendendo mais os movimentos que o Brasil vem produzindo; um saber escolar que contribua na ampliação de escolhas, um saber aberto a virar ferramenta em suas mãos, para que possam formatar espelhos capazes de os refletir inteiros, em suas lutas e dificuldades, em seus sonhos e pesadelos, em suas alegrias e em seus infortúnios; um saber que possa ser traduzido em narrativas, em que o ser popular e o ser pobre não sejam incompatíveis com a dignidade humana. Mas é neste enclave que a proposta de uma escola verdadeiramente pública cai numa rota de colisão com o capitalismo e suas marcas próprias dentro da cultura brasileira, ambos forjados pela excludência: se na escola entram os pobres, a escola deve ser pobre – eis a conclusão perversa. Nesta colisão, ainda está presente mais um agravante: a democracia como um projeto de direitos universais, que precisava de professores para a difusão de ensinamentos cívicos, morais e racionais, considerados indispensáveis para a participação cidadã, vem sofrendo processos de encolhimento. Atualmente, sua imagem tem um ar constrangido de quem se faz e se refaz em gabinetes fechados, definindo regras para legalização de sucessivas retiradas de direitos populares. É em meio a esses movimentos que se pode entender o problema da escola pública: abandonada pelos governos, denegrida pela rede de informação social, escanteada do debate público, esvaziada teoricamente, ocupada transitoriamente por profissionais que tentam conciliar a própria sobrevivência com sua permanência na escola, sistematicamente corroída pela profecia do não tem mais jeito. Os velhos esquemas de luta, como a greve por exemplo, parecem não responder à magnitude do problema. A convicção de que é urgente instituir uma nova concepção e uma nova prática de escola só não é maior que a ausência de pistas concatenadas, por deficiência de uma reflexão teórico-pedagógica que conjugue os avanços do pensamento filosófico, das ciências sociais, da psicanálise e da literatura com o desejo de compartilhar o saber como um exercício de engrandecimento da vida humana e social. Para não admitir o próprio e incômodo vazio, a escola se-faz arrogante, como se herdasse a empáfia da classe patrimonialista e escravocrata que a mantinha ocupada e controlada. Por isso, além de vazia, a escola assume um ar pedante, distante de sua realidade social, dos pais de seus alunos, sobretudo dos mais pobres, fazendo-se um espaço por onde ecoam gritos para manter a disciplina e por onde os silêncios significam, com frequência, negação de presenças indesejadas, impossibilidade de intervenções mais efetivas e criadoras. Mesmo sabendo das contradições, a força da hegemonia vai confirmando medrosos, fracassados e revoltados: uns e outros marcados por um espelho que os reflete no que eles têm de possibilidades, as mais negativas, devolvendo-lhes assim uma imagem autodesprezível. Esta é a nossa tragédia. Tragédia tão mais funda que se recusa a ser aliviada com unguentos tecnicistas. Tragédia da qual não podemos nos livrar sem contarmos com os movimentos instituintes com que os insatisfeitos buscam instalar caminhos de emancipação na sociedade e na escola. Se nossa sociedade e nossa escola não tivessem que responder à demanda dos pobres, desses “trabalhadores sem trabalho”, desses “estudantes sem estudo”, desses lavradores sem terra, desses que, com dificuldade, entram na emergência dos “hospitais sem a esperança da saúde”, bastariam remendos leves na política econômica, social e educacional. Mas pobres e miseráveis penetram na cidade, na escola, e sacodem o presente e nos fazem olhar o futuro, num exercício ousado de instituir o novo ou abdicar da democracia, da convivência, da própria humanidade. Portanto, uma tragédia que não pode ser enfrentada só com os que estão dentro da escola – professores e alunos, supervisores, orientadores, administradores e seus auxiliares –, mas que, sem eles, também não será resolvida. A eles cabe traduzir em saberes e fazeres escolares os projetos populares que vão sendo gestados pelos sujeitos históricos. As pressões sociais para que um número crescente de pessoas possa usufruir do conhecimento escolar vêm sendo respondidas com escolas públicas desfibradas. As escolas tornam-se um tipo de confinamento institucionalizado, cuja vantagem seria ocupar as crianças, transmitindo-lhes um saber sem sabor, impotente para fazê-las descobrirem-se vivas. Sua tarefa é impor aos alunos um tipo de disciplina e persistência que os dispõe para lutar só pela sobrevivência e que se entrelaça com um processo de aniquilamento moral, empurrando-os à resignação do perdedor. Assim, vai se delineando uma nova taxionomia para as instituições escolares (Apple 1993; Zemelman 1993): a destinada aos herdeiros dos triunfos da classe dirigente, com ciência, tecnologia e inventividade, capitaneadas para a competição – a chamada escola de mercado; as mantidas para preparar as “formigas” que engrossarão as filas dos candidatos aos empregos – a chamada escola mínima; e, finalmente, identificamos um tipo mais degredado de escola, que mais se assemelha a um depósito de crianças e jovens, que prepara perdedores conformados – a subescola. Uma subescola para uma subclasse: os excedentes da sociedade de consumo. Em primeiro lugar, não podemos extirpar da crise nem os riscos nem as oportunidades com que as encruzilhadas são feitas: nem só sonhos bons, mas tampouco pesadelos todas as noites. É preciso, sim, indignar-se com os desacertos e os blefes consentidos, e temer, responsabilizar-se e atuar para encontrar caminhos novos para a escola brasileira. Como despertar se o pesadelo nos maltrata? Uma das árias da ópera em que foi traduzido Werther, a obra apaixonada do jovem Goethe, tem um título muito expressivo: “Por que despertar se o sonho é tão bom?” Recentemente, retomando meu contato com essa ópera, refleti o quanto o embalo do sonho, fechado nele mesmo, pode desviar do contato, às vezes doloroso mas sempre rico, da própria realidade. Se tudo está bem para que despertar? Lembrei-me, então, de Milton Almeida dos Santos (Veja, 16/10/1994), em recente entrevista, depois do recebimento do prêmio internacional “Vautrin Lud Vali”, em que ele credita aos pobres a maior esperança de projetarmos uma sociedade mais solidária, pois sua presença nos faz perceber que não bastam remendos, mas sim que é preciso pensar o novo. Não podemos embarcar no acalanto de sonhos que nos impeçam de ver e enfrentar a realidade. Sofremos de uma outra ameaça – um pesadelo – que igualmente nos priva de uma intervenção efetiva, tanto mais quando nos mantém em estado de tensão e até nos impede de sonhar. Robert Kurtz (1992) tem apontado que o colapso da modernidade vai arrastando um esgotamento de sonhos, de expectativas, de esperanças com que se alimentou a vida social. Dentro da problemática escolar, podemos ver o crepúsculo de uma escola, forçada a declinar com um cerco material e cultural de seus professores. Dentro dela, o foco dos olhares parece ser a porta da saída.[14] Alguns esperam a aprovação no mestrado para, com a obtenção de uma bolsa, se prepararem para avanços na carreira, atingindo a docência na educação superior; outros buscam um novo emprego; outros pedem deslocamento para o trabalho administrativo; finalmente, outros requerem exoneração, aposentadoria precoce ou abandonam o emprego. Quem permanece na escola ainda desfruta de um horizonte, onde seja possível desenhar projetos coletivos de um trabalho pedagógico? Para onde foram as perspectivas de uma escola universal, interagindo com processos de democratização, de ampliação de direitos civis e políticos, traduzindo-se no mundo do trabalho, na participação cidadã? A escola parece agora não ter espaços para sonhos tão bons. Parasobreviver, foi cedendo às imposições burocráticas, tecnicistas, imediatistas, particularistas, levada pelo comando capitalista, abdicando de perspectivas utópicas. A aprendizagem escolar implica transmissões e aquisições que só são consolidadas mediante práticas recorrentes, em que o esforço de descoberta e elaboração própria precisa ser insistentemente empenhado. Daí, todo o edifício da educação estar assentado num investimento que tem o futuro como alvo. Não podemos perder de vista que são os projetos, portanto as referências que ultrapassam o presente, que lhes dão sentido e organização. O próprio caos só pode ser organizado se visto para além da confusão aparente, pelo estabelecimento de relações que ideias, conjecturas e imagens podem potencializar. São essas pistas, ainda que fugazes, que vão nucleando a constituição de um sentido, uma direção para a conduta, um significado para as ações humanas, sociais. Quer sob as ameaças do pesadelo ou sob o embalo do sonho, há a tentação de deixar escapar o real. Este, indomável por qualquer teoria e planejamento, está ancorado num movimento de fabricação de sentidos, que não para de se retecer, de se realinhar, de nos surpreender pelas novas direções assumidas, frutos de ações complexamente interligadas, que vão demarcando as configurações históricas, sempre em movimento. Mergulhados no sonho, podemos escapar da realidade para melhor enfrentá-la; podemos também nos fazer ausentes da trama histórica e acabar por perdê-la. Por outro lado, quando os sonhos se ausentam, o presente se desorganiza, as perspectivas que abrem o horizonte do amanhã se fecham, o hoje nos asfixia. Todos sabemos que não arbitramos a hora de despertar do pesadelo; que ele nos mantém como reféns de acontecimentos imaginários de alta densidade dramática nos quais não podemos interferir. Seria exagerado afirmar que estamos vivendo um pesadelo na escola pública brasileira? Ninguém deseja permanecer no pesadelo, mas a saída, também, não depende de atos deliberados só pela consciência, pela vontade. Para alguns professores, para acordar do pesadelo é preciso sair da escola. Entre o permanecer no pesadelo e o desligar-se da escola, há registros que nos interessam investigar. Como despertar, como organizar um alarme conjunto que em vez de sustos e precipitações, arme-nos para uma construção de larga duração histórica? Com que instrumentos a supervisão pode contribuir para a saída do pesadelo? Como se entrelaçariam, nesse trabalho, os supervisores e os professores? Para que a supervisão? Entre o desgaste retórico da questão e o confinamento utilitário Como em outros temas, a problemática dos especialistas em educação parece uma questão desgastada. Tantas publicações, tantas polêmicas, que parecem resultar inócuas. O assunto parece desaparecer da cena dos debates – mesmo sem estar resolvido. Em outra direção, ocorrem movimentos que atribuem tarefas pontuais à supervisão ou aos especialistas, como se todo esse encaixe de trabalhos pudesse se isolar das interligações em que a própria identidade da escola se entrelaça com os rumos da sociedade. Muito já se escreveu sobre a divisão de trabalho escolar e sobre a hierarquização de competências para combater os especialismos pedagógicos. Embora não sejam nem um pouco desprezíveis as condições de nascimento da supervisão e das demais habilitações em que a pedagogia se especializou no período da ditadura, entendo que a complexidade da sociedade e da escola brasileira comporta uma divisão técnica, desde que usada para fortalecer o trabalho pedagógico, vincado por um projeto de escola que não se mediocrize, que não renuncie a si mesma em sua especificidade de instituição de ensino e aprendizagem que não pode deixar de responder aos apelos éticos que, de forma intensa, atravessam a atual crise da civilização. A crítica pedagógica já denunciou também, com insistência, a exclusão dos trabalhadores e dos pobres da escola. Muito menos se tem falado de uma exclusão mais sutil, presente no próprio processo de inclusão, que vai demitindo e amortecendo alunos e professores: o engessamento dos sujeitos na escola, sua paulatina reificação, sua redução a objetos repetidores. Para encaminhar minha reflexão sobre a supervisão e a educação de professores no Brasil, vou tentar levantar duas questões, intrinsecamente interdependentes, e que percebo tecidas por uma densa multiplicidade de relações político- pedagógicas: a questão do sujeito e a questão do conhecimento escolar, para me aproximar de algumas pistas que vão se delineando como possíveis para professores, supervisores, orientadores, dirigentes, alunos e auxiliares da escola organizarem um solo de experiências e reflexões partilhadas, de onde possam ser partejadas perspectivas de futuro. A questão do sujeito e a questão do conhecimento escolar Na Grécia de Péricles (IV a.C.) vamos encontrar o debate sobre a quem cabe ser o sujeito da Verdade e quais as relações com a política e os valores que o processo de conhecer, ensinar e argumentar deve manter. Para os filósofos, a apreensão da Verdade dependeria da contemplação de essências que deveriam ser traduzidas com rigor, o que só o pensamento conceitual poderia realizar. Extremas exigências pairavam sobre os filósofos, que deveriam pautar sua vida por um entranhamento entre saber e fazer, pela busca de aproximação dos valores, preservando o conhecimento de vínculos com os interesses subjetivistas e particularistas. A Verdade, como derivada de essências invariáveis, não poderia transmutar-se segundo o gosto e os interesses do auditório. Seriam os filósofos os únicos habilitados e legitimados a traduzir as essências em conhecimentos, estes sim passíveis de serem ensinados? Já os sofistas ensinavam a qualquer um, sem preocupações com a Verdade, mas “de olho” na retórica do convencimento que garantisse a defesa de seus interesses. Para eles, o sujeito humano seria o espelho da realidade e, como esta é múltipla, também, ele poderia abrigar uma série de perspectivas de conhecimento. Daí a célebre afirmação de Protágoras “O Homem é a medida de todas as coisas”, que Pirandelo dramatizou com sua obra teatral Assim é se lhe parece. Na perspectiva sofística, portanto, o conhecimento poderia ser sempre usado, sem preocupações como ideal da Verdade, mas não poderia prescindir do referendum das multidões. A verdade nem seria eterna nem variável; a neutralidade seria impossível, diríamos numa linguagem atual, e todos os cidadãos teriam direito a disputar o consenso e tentar persuadir os demais sobre seus direitos, independentemente de qualquer conhecimento prévio. Datam, desta velha discussão, embates que continuam absolutamente vivos e que carecem ser rediscutidos e revitalizados na escola. O que é conhecer? Quem pode conhecer? Para que se procura conhecer? Como o conhecimento se torna cúmplice dos poderes? Quais as dimensões éticas do conhecimento? Quais as relações entre conhecimento e verdade? O que significa a curiosidade por conhecer? Como o desejo de conhecer abre caminhos de descoberta, potencializadores da ação humana? Por que o saber e o desejo se condensam na composição da alegria, da felicidade? É possível ler no cotidiano escolar, como no discurso pedagógico, a presença daqueles dois antagonistas: sofistas e filósofos. Só que a história foi acrescentando outras dimensões àqueles embates gregos. O conhecimento como algo externo, no estilo de uma bagagem cada vez mais volumosa que temos que adquirir, está apoiado num tipo de razão onipotente e acumuladora de informações. Uma razão “educada” como conquista e privilégio de uma elite, com a qual os outros – “os não educados” – deveriam aprender, ainda está em vigência. O mecanismo de produção e consumo do capitalismo industrial vem reforçando a concepção do conhecimento como bagagem. O interacionismo como uma transação entre objeto e sujeito que evite tanto o jugo do dado, presente no empirismo e no positivismo, quanto o voluntarismo, forte nos racionalismos e nos idealismos,ainda tem pouco vigor na escola, embora recorrentemente apareça no discurso pedagógico. Para a grande maioria dos professores, a concepção interacionista não ultrapassa a esfera celebrina. Em estudo extremamente interessante, realizado na Argentina, a pesquisadora Alícia Entel (1989) confirma o quanto a concepção de conhecimento na escola está carregada por uma imagem de “ente” exterior, um tipo de uma bagagem. O culto dessa bagagem, a ênfase na sua independência e na sua neutralidade, as promessas de um progresso sem limites, o investimento em projetos onipotentes de domínio e submetimento da natureza, para um possível e sempre transferido benefício da humanidade como um todo, foram marcos no desenvolvimento moderno dessa concepção. Quando o humano foi considerado como alvo da ciência, um tipo de realismo psicológico localizou a essência como algo individual, interno e congênito, que deveria ser atendido, esculpido e libertado. Mas toda a discussão sobre o conhecimento, os conteúdos e os métodos escolares parece ter desaquecido a problemática da verdade e da polifonia que a envolve. Com a complexidade social, que implica mediações e afastamentos entre os que produzem conhecimentos e os grupos que os absorvem e os consomem, o retorno à filosofia aparece como uma urgência para desfetichizar as ciências sociais (Heller 1991). Sem discutirmos as relações entre o conhecimento e a verdade, perdemos o solo natural para arguirmos os programas escolares. Quem os define? Com que critérios? Como neles estão inscritos os interesses de uma sociedade em conflito, que não pode ser identificada só com os interesses dos triunfadores? Qual o lugar para as lutas que buscaram construir uma sociedade mais justa? Como retornar o legado de projetos e esperanças que animaram a história? Como recolocar em pauta os anseios dos que foram derrotados? Como aurir dos conflitos sua força criadora? Nunca é demais repetir que a crise ética se expressa e se aprofunda com os obstáculos à própria comunicação humana. Se a verdade não é mais imutável e independente dos objetos e sujeitos, mas produzida continuamente pela história, sempre em movimento, a elaboração dos conhecimentos se faz num campo de batalhas onde os interesses de classe e de grupos se confrontam em conflitos abertos ou camuflados. A ciência e a filosofia passam a ser vistas, não como uma contemplação ou captação de essências, mas como uma produção histórica que envolve processos de racionalização e abstração e que, portanto, não pode prescindir da prática social, da ação coletiva. Os valores não são entidades superiores à história, que estariam magnetizando os humanos como deuses no Olimpo. Avaliar o que é verdadeiro e falso não depende de medidas externas, às quais vamos confrontar fatos e as posições com as quais tentamos traduzi-los. A expectativa de que o conhecimento pudesse repousar em certezas traduzidas em resultados insofismáveis e exatos que privilegiaram a matemática como a linguagem preferencial, e até exclusiva, com que os cientistas poderiam ter acesso aos segredos e aos mistérios da criação já está incluída no acervo de mitos ultrapassados. Deles sobram sentimentos que se aproximam ao de uma certa orfandade: Quem irá sancionar nossos acertos e nossos erros? Qual é o peso e a leveza de sermos sujeitos de nosso conhecimento? Com quem vamos dividir a responsabilidade de nossas escolhas, de nossas ações? Com quem podemos buscar pistas, as mais satisfatórias, para vencer as inseguranças, as confusões, as ambiguidades, já que todo discurso é por si mesmo polissêmico? As verdades e os conhecimentos são produzidos socialmente, dentro das lutas nas quais as condições da existência são engendradas. Como manter a objetividade, se a luta por construir conhecimentos e defender a verdade passa por interesses em conflito, nos quais estamos ineludivelmente implicados? Como renunciar à objetividade, sem fazer da Verdade uma causa menor, esvaziada de sua dimensão moral e ética? Quais as implicações de aceitarmos concepções como “Verdade absoluta” e “Verdade relativa”? Se a Verdade não se localiza fora, mas dentro da própria história, a neutralidade não será possível, mas não estamos nunca isentos da responsabilidade de tecermos a emancipação social, humana. Em nome de que e de quem um conhecimento pode ser declarado verdadeiro? Quais os limites éticos que separam a argumentação da empulhação? Se os valores se fazem nossos à medida que os traduzimos em ações e palavras, ou em palavras como ações, seria também por aí que eles seriam construídos e confirmados, nessa interação entre o sujeito que conhece e que se exprime e age e o objeto que vai sendo conhecido. Essa interação, feita por indivíduos, carrega a tensão social, coletiva, histórica, as marcas da cultura com que é produzida e da liberdade com que o ser humano se define. Aí reside nossa responsabilidade de sujeitos morais que somos. O saber com sabor na construção do sujeito do conhecimento Com a concepção de conhecimento como uma carga externa que devemos adquirir e que nós, professores, precisamos permanentemente obter e transmitir para fazer de nossos alunos seres “educados”, a escola vem funcionando como uma usina de moer sonhos e fibras de sujeitos. O conhecimento – que deveria auxiliar os estudantes a se conhecer, conhecendo a história e os conflitos de seu povo – da forma como vem sendo ensinado acaba por funcionar como mais uma rede de amordaçamento da voz e atrofia do pensamento. Sem os sujeitos do ensino e da aprendizagem, ou contra eles, contra seus interesses, o saber se faz amargo e com o sabor de derrota, como se fosse preciso quebrar-se a si mesmo para aprender. Essa é uma das lições que Freire (há mais de quatro décadas) insistentemente nos ensina: “A da paixão de conhecer que nos insere numa busca prazerosa ainda que nada fácil” (1967, p. 11). É impressionante o número de cientistas e pensadores que, revendo suas trajetórias de vida, param nas lembranças da escola para focalizar o desperdício da paixão de aprender e o desvio da curiosidade e do interesse de buscar respostas, como forma potente de contribuir com a vida. Há toda uma intersubjetividade escolar, educacional, que precisa ser recuperada, rememorada para, nesse exercício, repensarmos as camadas da história que foram se naturalizando num senso comum pedagógico. Na memória secular da escola e seus antecedentes podemos encontrar tanto jograis, trovadores, cantadores épicos, bufões, narradores e poetas, que ora vagavam de lugar em lugar, como detentores de um tipo de palavra pública, ora serviam em cortes, casas feudais e abadias, ou ensinavam ao ar livre, perto dos mercados (Manacorda 1989), como aqueles copistas que caprichavam na caligrafia artística como uma forma de obter penitência e descontar pecados (Le Goff 1989). Tanto remetendo ao riso – que Rabelais já havia entendido como uma forma de afirmação da vida – quanto ao grotesco – tão presente na cultura medieval – aquelas vozes itinerantes estremeciam a estabilidade dos dogmas pela circulação de uma “literatura” que era recriada em cada apresentação e que se renovava em múltiplos contatos. Vozes que retrataram a posição da mulher: seus conflitos, suas condições de vida, suas resistências, suas surpresas, seus desejos, suas reversões. Vozes potentes que ameaçavam e que pagaram pela partilha da alegria instituinte também nos tribunais da Inquisição.[15] Vozes que vão expressando o declínio do feudalismo e do imediatismo das reações guerreiras e que abrem canais para um outro estilo de paixões em que o lirismo e a conquista das mulheres passam por uma economia dos afetos que foi redefinindo as relações amorosas em meio a um interligamento de funções político-econômicas que conhecemos como “processo civilizador” (Elias 1994). Não podemos nos esquecer de que o auge desta vocalidade criadora correspondeu a um período dos mais brilhantes da literatura medieval (Zumthor 1993). Talvez seja oportuno lembrar, como faz Ensensberger (1995, p. 44), nossasgrandes dívidas para com as culturas analfabetas, posto que foram elas que inventaram a literatura, com suas “formas elementares, do mito à canção de ninar, do conto de fadas ao canto, da oração à charada [...]. Sem a transmissão oral não existiria a poesia, e sem os analfabetos não haveria livros”. Mas se recuarmos um pouco mais no tempo, poderemos surpreender na história, nos fins do século VIII e começo do IX, o que alguns historiadores, como Le Goff, denominam de Renascença Carolíngia. Período marcado por uma extensa atividade de compilação das obras antigas que se fazia simultaneamente ao fechamento das escolas externas aos mosteiros. Uma produção considerável de manuscritos respondia a um exercício de entesouramento e, portanto, sem a circulação e a divulgação que vitalizassem as obras. Apenas representavam valor econômico, como os utensílios de prata. Mas a própria feitura dos livros também representava uma obra de sacrifício e penitência que, no fundo, respondia a uma exigência de mortificação que poderia, numa contabilidade funesta, ser trocada pela garantia do céu. Desta rápida olhada nesse “renascimento” tão avarento, recolhemos dois registros importantes: 1) como a escrita, os títulos escolares e acadêmicos não podem ser considerados um valor em si, posto que eles se referem a uma compreensão da realidade e a uma atuação na vida, a que muitas vezes eles servem como obstáculos. 2) como são profundas as raízes que tentam enlaçar os livros com o sacrifício sem grandeza, arrancando do processo de conhecimento seu mais potente vigor: a alegria da criação que se sustenta em sujeitos que conjugam saber e desejo. Os dois registros servem para nos mostrar como foi se preparando essa atual política de conhecimento que hierarquiza sem parar os saberes, desqualificando a vida em favor do cálculo utilitarista. De tudo isso, resulta a expulsão da alegria, como expressão de afirmação e criação da vida, para consolidar um adestramento de seres coisificados, verdadeiros objetos com movimento, submetidos às conveniências de uma “sobrevivência com alto padrão de qualidade e conforto”. Já, no século XVI, Montaigne retoma de Rabelais a crítica da escola livresca, copista e burra, que empanturra o aprendiz de receitas e informações que só servem para impedi-lo de ser gente. O autor de Gargantua e Pantagruel, que havia liberado ironia nesta novela, mostrou o necrotério, em que ritos vazios iam enterrando a esperança e a vida num extraviado processo de educação que nada significava para o educando senão um exercício de negação que culminava com sua própria coisificação. Contra este desperdício de vida humana, Rabelais propôs o jogo, a brincadeira. “Ciência sem consciência não é senão ruína da alma.” Na própria ação do sujeito, Montaigne, como Rabelais, vincula a alegria de conhecer. Mas recusa com maior veemência o ideal enciclopédico, de “cabeça bem cheia”, enfatizando a “cabeça bem feita”. Para isto, ele acreditava ser essencial livrar-se das ideias já prontas e das lições fechadas, pela provocação da curiosidade do aluno, aproveitando a matéria simples, que a própria vida e a experiência nos vão fornecendo. No fundo, sua indignação dirige-se contra os processos que, em nome de uma cultura erudita e refinada, vão minando a força dos jovens e fazendo-os abatidos, passivos, acovardados. Com base neste entendimento, o autor de “Ensaios” contrapõe-se aos pedantismos das supostas culturas superiores e defende o direito da palavra do jovem aprendiz, e com ele a aventura de aprendizagens que fujam aos cânones da mesmice. Basta de enfeitar a sabedoria com este adorno pobre e feio, que é uma suposta seriedade, que tem a aparência de tristeza. Apesar do óbvio que este apelo trouxe, fortes razões, enraizadas em interesses e hábitos, contrapuseram-se, e ainda continuam em vigência, à entrada das forças de criação no conhecimento escolar, que o tornariam potente para quem o organiza, o ensina e o aprende. A tristeza, a sisudez e o tom de sacrifício, que de longas datas envolvem a escola e que fizeram com que Shakespeare afirmasse “o amor corre para o amor, como as crianças fogem da escola”, não podem ser deslocados só pela força das novidades tecnológicas e do consumo pedagógico. Em vez de afirmar que as brincadeiras ou as novidades facilitariam o trabalho escolar e por isso deveriam ser injetadas no processo de ensino-aprendizagem, entendo que é a própria concepção de conhecimento e de escola que está em questão: um conhecimento sem mistério e sem enigmas, que deve ser carregado como um peso pela vida afora, subjugando, subalternizando, ou um processo escolar que participe da aventura humana, que não pode ser engessada num rol de utilidades imediatas, mas que nos proponha questões, para cujas respostas possamos dialogar permanentemente com a vida, num exercício de vida. Por que a sabedoria vai se tornando antagônica aos bancos escolares? Se esta questão tem sido respondida pela argumentação da força dos interesses capitalistas, exigentes de um processo disciplinador que, dominando a escola, aniquila a imaginação e o idealismo de lutar contra as opressões e de criar laços solidários, considerados até poucos anos atrás como uma característica dos jovens, eles não podem quebrar o vigor do saber empenhado em resolver desafios, investindo em esperanças e projetos de quem ensina e de quem estuda. Memória e narração: Biografia da escola Começamos esta comunicação falando do desastre que vem extraviando a escola pública, discutimos como professores e surpervisores vivem um período de extremas dificuldades dentro da escola, posto que os problemas se acumulam e se exprimem com um tal nível de intensidade que cada susto, ainda sem ser ultrapassado, confronta-se com a presença de outras ameaças mais assustadoras: ao desmonte da escola e da preparação do professor dos anos 70, que correspondeu a uma massiva evasão de alunos, vem se seguindo a extrema dilapidação do professor e de suas condições de trabalho, que o faz conviver com escolas modernas e monumentais sem recheio pedagógico, e com espaços obsoletos e mal conservados. Nos anos 80 deu-se a evasão do professor, que continua aumentando. Nos anos 90, a violência urbana, as quadrilhas contraventoras decidem sobre o fechamento da escola e o crime e a morte convivem e agravam velhos problemas escolares. Mas nessa situação de caos e portas fechadas, inscreve-se um esgotamento de sonhos dentro da escola, que evoca a grande ameaça de convulsões intestinais, embates pela sobrevivência sempre posta a perigo, e que vai produzindo uma miopia que retém no miúdo, no retalho, nas migalhas, nas soluções imediatistas, os problemas da escola. A trajetória de vida dos professores vem sendo estudada na literatura internacional, através dos ciclos de vida, como correspondendo a fases como: tensão e descoberta, estabilização e preocupação didática, sedimentação da experiência com emergência de novas ideias, autoquestionamento, serenidade e distanciamento afetivo, conservantismo e desinvestimento (Nóvoa 1992).[16] Na escola brasileira, tal é a provisoriedade do vínculo de trabalho que aqueles professores com mais de 15 anos de exercício profissional já se tornam quase figuras raras. Sabemos todos que um campo de conhecimento, de saber e fazer, não se desenvolve se não contarmos com indivíduos que invistam na sua construção, construção que não tem uma visibilidade imediata.[17] A provisoriedade como norma funciona como uma espécie de ácido corrosivo para a constituição de qualquer instituição social, tal como o próprio campo de conhecimento pedagógico, que se relaciona, de diferentes maneiras, com o status e as possibilidades da carreira profissional. Para que os professores exerçam, com autonomia, a docência, precisam ir com ela construindo o reconhecimento da importância de sua função pela sociedade, da qual o salário e as condições de trabalho são expressões. É este reconhecimento que garante e abastece de autoridade a função pedagógica, oferecendo-lhes um espelho,onde a imagem da profissão pode ser retocada e redefinida, num tipo de negociação com a sociedade, com a escola e com o próprio profissional. A política de desqualificação da educação pública, em vigência em nosso país, vai cortando as possibilidades de autonomia do professor. Sem salário, pertencendo a uma classe subalternizada, sem relação instituinte com o saber, a autoridade pedagógica enfrenta extremos dasafios e ameaças. Na medida em que o percurso do professor dentro da escola torna-se algo passageiro, revestido de um caráter transitório em face das condições de trabalho que lhe são impostas, a convivência com os colegas torna-se rarefeita e amargada pelas desilusões de um tipo de experiência sofrida que ainda não foi trabalhada para libertar o sentido de dignidade presente na luta de grande parte dos professores e, pior ainda, destes muitas vezes ocultada. Agravando essa situação, quase inexistem mecanismos para “amortecer” o choque da entrada dos professores na escola. Se a primeira fase da vida do professor, conforme a literatura especializada e já mencionada, aparece como sendo de tensão e descobrimento, mesmo nos países onde a escola tem uma história de maior solidez, nos relatos de professores brasileiros o exercício inicial consiste em verdadeiro ritual de golpes que poderíamos chamar a peito aberto. Golpes tanto mais fortes, que parecem não contar com uma rede de significações que se entrelacem em projetos pedagógicos, quer de caráter político e, portanto, social, coletivo, quer de caráter individual. Sabemos que a estrutura institucional muda com mais rapidez do que as expectativas e as imagens que sobre ela guardamos. Até bem pouco tempo, ser professora arrastava um alto prestígio social que levou as classes populares a investir neste tipo de formação, imaginando através da carreira do magistério alcançar prestígio e acesso a um tipo de intelectual intermediário (expressão de Gramsci 1978), mas também ajudar no sentido de que as jovens pobres escapassem do trabalho manual que, além de pesado, mantém-se com conotações muito negativas na cultura ibero-americana. Com uma formação deficiente e ainda com algumas idealizações, os professores ingressam na carreira sem maiores respaldos. Em contraste com o campo educacional, encontramos nas profissões de prestígio, como medicina e direito, espaços organizados para favorecer a aprendizagem do que a tradição foi demarcando como essencial para os iniciantes. No caso da escola, o supervisor poderia assumir esse trabalho, fazendo-se mediador entre os novatos e a experiência docente: experiência institucionalizada, vitalizada pela reflexão. Uma das características de períodos históricos de intensa mutação, como o nosso, é o requerimento de qualificação e aperfeiçoamento continuados. O nível desta qualificação (mais criativa e autônoma, com o envolvimento do pensamento, ou mais reprodutora, adestradora e mecânica) tem sua correspondência com as hierarquizações concretizadas no mundo do trabalho. Para redefinirmos os rumos da escola, para o fazermos como um exercício de sujeitos, poderíamos entranhá-la de memória e narração. Os parâmetros do conhecimento escolar estão assim contaminados pelo consumo da informação jornalística, pela própria acumulação e fragmentação capitalista, pelo tecnicismo mecânico e por um tipo de positividade que é a de impor a resignação, que se manifesta na concessão de sua própria domesticação – feita sob controle rigoroso ou como negligência oficializada. Tudo isto leva a escola a sepultar as possibilidades de narração e de promoção de um tipo de processo de ensino e aprendizagem que investigue as necessidades históricas dos que buscam o saber, conjugando seus apelos coletivos com os individuais. O entranhamento de memória e narração poderia fazer a escola recriar-se como uma comunidade narrativa, em que a biografia de cada instituição escolar servisse de fio condutor para que professores e alunos fossem tomando contato com as lutas de instalação da escola e com aquelas outras em que vai se desdobrando seu desenvolvimento. Isto implicaria retomar antigos problemas, cujas soluções decorreram de árduo trabalho pedagógico, que foi absorvido a ponto de ser naturalizado, mas também restaurar embates ainda não resolvidos e que esperam novas oportunidades de discussão e ação (Benjamin 1985). Entrelaçados com o desenvolvimento da escola, os pólos de memória e narração poderiam provocar as narrativas de professores, suas histórias profissionais, os acontecimentos que eles testemunharam, os eventos sociais, os avanços e os recuos de cada época. Enfim, a própria materialidade da escola seria explorada por um inventário (Gramsci) de marcas constituintes de nossa história, da história partilhada, como um campo onde pudéssemos revisitar nossas trajetórias e as singularidades de cada período (com suas turmas de professores e alunos), com suas conquistas e frustrações. Nesse tecido narrativo, iriam aparecendo teorias e instituições e suas entradas e saídas ou permanências e modificações, vividas na e pela escola. Todo esse material, além de comunicado oralmente, poderia ser registrado por escrito, facilitando análises que tenham um tal tipo de assentamento e distância, que ajudem a escola a escapar das fantasias onipotentes das lembranças, sempre encantadas, de um “tempo de ouro” em que, supostamente, a escola seria perfeita. Como lembra Ginsburg (1987), essas idealizações são alimentadas pela ausência de material escrito. Instigando a escola a encontrar-se com seu presente e seu futuro pela via da restauração dos caminhos históricos, sociais e humanos de sua construção e pela apropriação partilhada de crenças e desejos para enfrentar medos e desafios, podemos levá-la também a se organizar para um processo autodefinido de avaliação e realinhamentos na concepção e nos procedimentos didáticos. Se professores e alunos se assumissem como narradores e passassem a usufruir de um exercício de construção de narrativas, escolhendo o que lembrar, o que destacar, o que minimizar, o que esquecer, todo um tecido vivo ficaria mais aberto à formação de vincos por onde o ensinar e o aprender ganhariam sentido capaz de fertilizar procedimentos didáticos. Os que estamos dentro da escola, para melhor conhecê-la e nos conhecermos dentro dela, precisamos abrir espaços para recuperar a memória, para exorcizar tanto esquecimento. Quem sabe, quando nos apropriarmos da escola pelas suas entranhas, teremos razões para comemorar as significações que, dentro dela, nos orgulharemos de construir. É impressionante, por exemplo, quando revisitamos os registros de política educacional ou de história da educação brasileira, a ausência de movimentos docentes no Brasil que tenham uma articulação aberta com os trabalhadores, antes da década de 1970. Tanto na Argentina[18] quanto no Uruguai,[19] com um sistema escolar mais fortalecido – consequência de uma outra história econômica e política –, encontramos, desde o começo deste século, organizações de maestros mais articulados aos movimentos populares. Mas o silêncio do professorado brasileiro pode exprimir, tanto a ausência de movimentos orgânicos, como a pobreza de instrumentos epistemológicos capazes de captar processos de resistência e contraposição hegemônica ainda incipientes. Se o movimento da Nouvelle Histoire libertou a História do registro positivista das grandes batalhas sempre protagonizadas em nome dos que ocupam lugares oficializados de poder, semelhante esforço precisa ocorrer dentro das escolas para restaurar o cotidiano de professores e professoras que, ao lado dos alunos e do corpo administrativo, dão vida à escola. Sabemos muito bem que a escola só funciona porque dentro dela estão professores e servidores que insistem em torná-la real, em reinventá-la a despeito das negações de todas as ordens. Quantas histórias surpreendentes têm professores, supervisores, orientadores, servidores e alunos para narrar? Apesar de sermos uma instituição que não pode prescindir do exercíciode vozes, parece que abafamos as vozes que lhes dão vida, fazendo delas eco de vozes distantes, que foram cristalizadas nos livros ou burocratizadas nas pautas de controle das secretarias. Através de narrativas abertas, que pedem outras narrativas, que tanto podem fecundar a organização escolar, como a ação de currículos e programas como, ainda, ganhar espaços privilegiados, verdadeiros polos de memória e narração, a escola poderá apropriar-se de seu legado. Um dos mais importantes, que nem é considerado nos planos orçamentários, o alto investimento de vida, feito por sujeitos históricos, buscando atiçar as fagulhas do conhecimento, como desdobramentos da curiosidade de saber, da necessidade de ter respostas e alegrias para o exercício de sua emancipação humana, sedenta de novos caminhos de solidariedade. Provocando a restauração da memória dada como perdida, o supervisor entrará em contato com elementos que lhe ajudarão a entender a escola como um inventário de procedimentos pedagógicos que a academia nem pressente existir, até porque escapa a deduções e induções de pequeno alcance; este inventário, menos visível, conjuga-se com sonhos que insistem tenazmente em emergir, animando as lutas escolares: projetos dessa intersubjetividade de professores e alunos que se encontraram e se encontram na escola. Através de polos de memória e narração, talvez se possa devolver a voz aos professores, retirá-los de um exercício em que sua voz é modelada como autoridade diante de uma sala de alunos pequenos, portanto uma voz hierarquizada, para fazê-la soar singularmente, compondo uma comunidade de pares que entram em contato com outras dimensões do tempo escolar: um tempo pretérito, em que uma tradição e uma especificidade começam a ser produzidas, cobrando permanentes definições de rumo. Além da especificidade do escolar que vai aparecendo, cada biografia da escola abre um registro de perdas e ganhos que representará um material rico para atuar e revitalizar o ensino-aprendizagem. Por meio desses núcleos, internamente as escolas poderão usufruir de um espaço pedagógico que fuja da carga administrativa que pesa nos Conselhos de Classe; por meio desses núcleos, uma rede de relações entre as escolas e as famílias de alunos e as comunidades pode ser estabelecida, mas também entre as diferentes escolas e, ainda mais, entre estas e as universidades. Dentro deles poder-se-ão articular os diferentes níveis da docência, atualmente tão segmentados, conjugando histórias de professores, ex-professores e de professores de educação básica, às de professores universitários. Referências bibliográficas APPLE, Michael W. Oficial knowledge: Democratic education in a conservative age. Nova York: Routledge, 1993, 226p. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. BOURDIEU, P. Lições de aula. São Paulo: Ática, 1988. BUARQUE, C. Niterói: UFF. Mimeo, 1994. CANETTI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, 487p. 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Seus problemas iniciam-se com a não delimitação de seu próprio local de trabalho, necessariamente móvel e variável conforme as tarefas a desempenhar, e crescem exponencialmente com a ausência habitual da necessária localização do trabalho de seus companheiros professores, obrigados à fragmentação de sua jornada e à consequente multiplicação dos locais em que ela se realiza. Pensada como um local de trabalho, a escola pública de São Paulo, em suas condições atuais, constitui um permanente desafio para a realização efetiva da ação supervisora. Quatro negações, quatro afirmações e, por último, quatro indagações podem caracterizar a complexidade da situação a ser enfrentada. As negações dizem respeito às peculiaridades da escola pública paulista como local de trabalho. Trata-se de um local: a) não padronizado; b) não unificado; c) não delimitado; e d) não pesquisado. Nossas escolas públicas foram instituídas e edificadas aleatoriamente, sem referência a padrões de qualidade ou de quantidade de salas de aula, de alunos e de professores. Os professores que nelas trabalham frequentemente multiplicam-se por várias delas porque a remuneração por hora-aula e a condição de ACT (Admitido em Caráter Temporário) ainda são as marcas das relações de trabalho no magistério público paulista. Um certo número de horas-atividade, definido por critérios de proporcionalidade numérica, estende o tempo de trabalho do professor a locais inacessíveis ao supervisor ou admiteque esse trabalho simplesmente não aconteça e, finalmente, o cotidiano das escolas públicas apenas muito recentemente passou a ocupar espaço nas agendas de pesquisa de nossos professores universitários. As afirmações referem-se aos professores e demais trabalhadores da escola pública paulista. São educadores: a) relativamente especializados; b) precariamente formados; c) frequentemente improvisados; e d) dificilmente agrupados. As dificuldades de reunião devem-se às razões já aqui apontadas. Um trabalhador que ainda precisa ser promovido à condição de trabalhador comum também não dispõe de tempo e condições favoráveis para reunir-se com seus companheiros. Por outro lado, a especialização (relativa), a formação (precária) e a improvisação (frequente) constituem limitações qualitativas que oneram a um só tempo os próprios professores, o supervisor e, principalmente, a conjugação de seus esforços. A adversidade de todas essas condições conduz, no limite, a uma interrogação central que se desdobra em quatro em virtude das possibilidades de resposta que encerra: Quais devem ser, afinal, os organizadores do trabalho na escola pública paulista – as autoridades governamentais, as autoridades do sistema escolar, as autoridades da unidade escolar ou o conjunto dos trabalhadores da unidade escolar como autoridades pedagógicas em que todos se constituem, neles incluído o supervisor por sua participação e por suas competências específicas? Admitindo-se a consciência da necessidade de se privilegiar a última hipótese e reafirmando-se o propósito da construção coletiva de um projeto para a escola pública, faz-se necessário, então, um exercício de revisão histórico-crítica da prática da supervisão escolar no Brasil e, em especial, no estado de São Paulo. Para repensar a história Poucas práticas profissionais terão pago um tributo tão alto às condições do tempo em que começaram a se desenvolver no Brasil tal como ocorreu com a supervisão escolar. Concebida como parte de um processo de dependência cultural e econômica e integrada a seguir a um projeto militarista-tecnocrático de controle do povo e da nação, a supervisão escolar apenas recentemente passou a emitir sinais de que seu significado e seus propósitos tornavam-se objeto de discussão entre seus praticantes. Em seu início a supervisão escolar foi praticada no Brasil em condições que produziam o ofuscamento e não a elaboração da vontade do supervisor. E esse era, exatamente, o objetivo pretendido com a supervisão que se introduzia. Para uma sociedade controlada, uma educação controlada; para uma educação controlada, um supervisor controlador e também controlado. Para que esse supervisor se fizesse possível foi-lhe dito e sugerido que o controle é sempre atributo dos que decidem, e foi-lhe dito e sugerido também que decidir é atributo privativo dos que detêm o poder; foi-lhe dito e sugerido ainda que não cabe perguntar sobre como as pessoas chegam ao poder, e foi-lhe dito e sugerido também que o poder é inamovível, imperturbável e sábio. Foi-lhe dito e sugerido, finalmente, que a melhor maneira de servir aos homens é ensiná-los a submeterem-se ao poder que determina suas vidas. Esta foi a lição de autoritarismo que o supervisor e a supervisão receberam logo após seu nascimento. Mas as pessoas e as instituições crescem, interrogam-se e interrogam suas circunstâncias. É possível não ser autoritário? É possível ser educador e autoritário? Por que não ser solidário? É possível ser educador sem ser solidário? As perguntas foram crescendo de tom e mudando de direção. Aos poucos o supervisor foi se integrando ao clamor do povo e dispondo-se à participação no debate educacional que se estabelecia. O supervisor/educador foi se dando conta de que a verdade não estava pronta e depositada em suas mãos para que ele a distribuísse aos professores que só poderiam conhecê-la por seu intermédio; o supervisor/educador foi descobrindo, tal como Guimarães Rosa, que “mestre não é quem sempre ensina, mas quem, de repente, aprende”; o supervisor/educador foi percebendo, enfim, que sua tarefa não era transmitir uma mensagem pronta e acabada, mas reunir os educadores para que eles pudessem elaborar sua própria mensagem e com ela tentar mudar para melhor a vida de todas as pessoas a quem a mensagem pudesse ser apresentada. De mensageiro oficial a articulador voluntário, o supervisor iniciou seu próprio caminho de renúncias. Orientado para o controle, desorientou-se com o cerco a que acabou submetido. Cerco teórico-político nas universidades que propunham a extinção de seu processo de formação e cerco prático-político nos movimentos de massa do professorado que não conseguia ver no supervisor um companheiro comum de jornada. Para o professor a equação competência técnica igual a compromisso político foi logo estabelecida. Ruidosamente estabelecida, aliás. Aplacaram-se em seguida as preocupações e as consciências. Se formos professores – tranquilizavam-se os mestres – nosso compromisso político estará resolvido, já que sabemos agora que ensinando competentemente, a escola brasileira estará esgotando os limites de sua contribuição à libertação do povo. Mãos à obra, pois, e tratemos de nos livrar dos perversos especialistas que se interpõem em nosso caminho. De ameaçador, o supervisor passou a ameaçado. Para que a educação brasileira se reorganizasse em direção à transformação social seria preciso livrá-la do “reacionarismo” de seus especialistas. Até hoje há quem pense nesses termos, sem atentar para o fato de que ensinar competentemente significa exercer domínio sobre uma tarefa especializada, ou seja, significa comportar-se adequadamente como especialista. A “superação dos especialismos” só viria a ser batizada com esse nome em 1986, mas desde então uma paradoxal estirpe vem se constituindo: a dos especialistas em superalismos. Dentro dessa visão, os especialistas são “os novos responsáveis pelo fracasso escolar”, tal como assinalou com muita propriedade Regina Leite Garcia (1986). Não percebem aqueles a quem Regina critica que estão se transformando na negação da negação que pretendem. No seu fervor antiespecialização acabam se comportando como especialistas em desagregação de esforços e em evocação de ressentimentos. A superação que postulam se reduz aos “superalismos” de que falo, porque não encontra respaldo no movimento real das unidades e dos sistemas escolares. Visões estereotipadas como essas que venho destacando contribuíram ao longo do tempo para a criação de um quase antagonismo entre supervisores e professores. Em contraposição à ideologia da competência que se foi desenvolvendo, desenvolveu-se também, conforme já indiquei anteriormente, a “ideologia da incompetência do outro”. Se existem problemas, pensaram todos e pensou cada um, eles certamente são determinados pela desqualificação dos demais educadores. Nunca pela clarividente categoria a que “eu” pertenço. Mas não ficamos por aí. Se o compromisso político é insuficiente, isto também se explica pelo temor, pela visão menor ou pela irresponsabilidade dos demais educadores. Nunca o seria pela atitude irrepreensível dos que se colocam a “meu” lado. Essa pretensão ao monopólio do compromisso político tem se constituído no obstáculo maior à elaboração do projeto coletivo dos educadores brasileiros. Em vários estados da Federação o vínculo partidário diferente do esquema no poder produz a exclusão e a marginalização de educadores que têm muito a dizer e a propor sobre a caminhada comum a ser encetada. No entanto, se estivermos todos comum e efetivamente empenhados na construção de um ensino de qualidade para as grandes camadas da população, aí sim encontraremos uma superação a ser promovida. A superação da pretensão, da autossuficiência e da arrogância dos que se imaginam providenciais e indispensáveis a toda ação coletiva que se venha a organizar. Escrevi há algum tempo que “ordenar a reflexão educativa é a expressão-síntese das alternativas que se apresentam ao supervisor” (Silva Jr. 1984). Parece-meimportante, nas condições de negociação e de luta que se desenvolvem hoje na sociedade brasileira, retomar essa afirmação a fim de tentar situá-la em seus contornos e em seus desdobramentos. Ao se dedicar à tarefa de organizar uma sólida reflexão sobre o momento atual da educação e da sociedade brasileira, não poderá o supervisor desconsiderar a necessidade do alargamento dos limites da reflexão que pretende. Se não cabe ao supervisor impor soluções ou estabelecer critérios obrigatórios de interpretação, cabe-lhe, sem dúvida, por ser brasileiro e por ser um educador responsável, ajudar na construção da consciência histórico-política necessária à luta contra a dominação. Isso implica uma posição de profunda atenção aos fatos do cotidiano escolar e do cotidiano da sociedade que lhe assegure condições de análise adequada do significado das ocorrências que se vão acumulando. Coordenando necessidades e aspirações, o supervisor certamente não pode permitir que se revigore seu antigo papel de controlador a serviço dos interesses estabelecidos. Mas há interesses a estabelecer e necessidades a atender. Estes são claramente os interesses da transformação social, mais uma vez postergados pela nova “conspiração das elites” que se arma e que se acirrará com certeza à medida que nos aproximarmos da redação final da atual Constituição. Coordenador de uma escola que busca a elaboração de uma nova visão de mundo, o supervisor responde também pela oportunidade da análise consciente e pela erradicação do arbítrio e do dogmatismo. Não conseguirá isso sozinho, evidentemente, e é a própria impossibilidade da ação individual que deverá orientá-lo para a necessidade do trabalho coletivo e do respeito às necessidades da maioria. Este supervisor, orientado para e pela solidariedade, enfrentará, por isso mesmo, seu grande desafio: “cabe-lhe ser solidário numa sociedade competitiva, afirmando pela convicção sua individualidade e negando com convicção o domínio sobre a individualidade do outro”; reconhecendo o indivíduo como a “síntese de múltiplas determinações” e ajudando a construir a “vontade coletiva que transforma a necessidade em liberdade” (Silva Jr. 1986). Se este for seu compromisso político, será em torno desse compromisso que sua presumível competência deverá se manifestar. Para reinaugurar a existência Pensar e fazer, cumulativa e interligadamente, é a marca necessária da prática coletiva a se estabelecer entre os educadores. Falamos dessa prática e da necessidade da contribuição do supervisor para que ela se estruture e se solidifique. Mas ela não pode, obviamente, ser pura prática. Pouco teremos avançado se passarmos apenas do plano das práticas isoladas e conflitantes para o plano das práticas articuladas e congruentes. O que vai assegurar essa articulação e essa congruência é a reflexão, é a elaboração do sentido do trabalho coletivo que se quer desenvolver. Elaborar uma prática coletiva em supervisão implica, necessariamente, a reelaboração da relação teoria e prática em supervisão. Como a grande maioria das agências sociais, a escola pública também se encontra impregnada pela lógica da organização capitalista do trabalho. Para esta lógica, a proposta do trabalho coletivo se reduz ao conceito de trabalhador coletivo, ou seja, exatamente ao oposto daquilo em que o trabalho e o trabalhador pedagógico devem se constituir. “Trabalhador coletivo” nesta lógica nada mais significa que a abstração da pessoa do trabalhador, abstração esta possível e necessária uma vez que a orientação geral e o controle da produção constituiriam prerrogativas da administração. Apenas a referência acima deveria ser suficiente para o reconhecimento da inviabilidade da organização do trabalho na escola pública com base em pressupostos de uma pretendida “Ciência” da administração de base genérico- empresarial. Orientada para o lucro e a acumulação privada, essa ciência simplesmente não tem como dar conta das questões de interesse público. No entanto, ela ainda se constitui na referência principal nas instâncias de formação e de atualização do supervisor de ensino. Rediscutir o vínculo teoria-prática em supervisão implica algumas indagações obrigatórias: Qual a relação da prática do supervisor com a práxis desejável do educador? Que teoria, afinal, dá conta dessa prática controvertida? De que forma a intervenção teórica encaminha essa prática até o horizonte da práxis propriamente dita? A existência de uma teoria é uma decorrência da análise da realidade e não se constitui apenas, como muitas vezes se sugere, como uma derivação de outras teorias preexistentes. Como sabemos, foi esta última maneira de se lidar com a teoria que acabou por preponderar nas tentativas até aqui realizadas de se implantar a prática da supervisão no sistema escolar do estado de São Paulo. Não há nada de muito surpreendente nessa constatação quando se considera que ainda se mantém como hegemônica a concepção positivista de ciência que inspirou o trabalho desenvolvido. Em relação a esse aspecto, devo registrar meu entusiasmo para a discussão das potencialidades da pesquisação como fonte para uma nova ação supervisora. Escrevi anteriormente que “há um lugar para o bom senso em supervisão” e que “esse lugar deve ser percorrido pelo intelectual que se propõe a traduzir e a elaborar conceitualmente as necessidades dos trabalhadores e do trabalho a ser desenvolvido”. Mais recentemente me referi ao fato de que “em decorrência mesmo da lógica do capital, as necessidades do trabalho e as dos trabalhadores nem sempre caminham paralelamente” (Silva Jr. 1986). Não tem sido fácil o caminho dos trabalhadores da educação que se dedicam ao trabalho de supervisão. Menos fácil ainda tem sido o caminho de outros trabalhadores da educação, os professores que nas salas de aula expressariam, de alguma forma, a validade do trabalho desenvolvido pela supervisão. Ainda amarrados a fragmentos teóricos superficialmente visualizados e a posições políticas insuficientemente elaboradas, que quase sempre acabam por desaguar na “ideologia da incompetência do outro”, nossos trabalhadores do ensino, sejam eles supervisores ou professores, pouco avançaram na construção de uma visão de mundo e de educação adequada às necessidades do trabalho a ser desenvolvido. Se a prática desordenada ainda parece longe da práxis consistente e articulada que se deseja, isto certamente decorre, em grande parte, dos problemas enfrentados no processo de formação percorrido. Tais problemas, no que dizem respeito aos supervisores, manifestam-se tanto no plano teórico-conceitual, a que já me referi, como também e, principalmente, no plano prático institucional. Não se sabe bem o que ensinar ao futuro supervisor e também não se examinam bem as condições em que a grande maioria dos supervisores é formada. Paradoxalmente, devo registrar que o processo de formação de supervisores da educação não é, ele próprio, objeto de nenhuma supervisão institucional. Em seu sentido mais estrito, o conceito de formação liga-se necessariamente à ideia de ensino. Por aí se dá a aquisição de conhecimentos, técnicas e habilidades que preparam a inserção produtiva em algum setor da organização social. Em seu sentido mais abrangente, porém, a formação compreende a própria assimilação da experiência humana acumulada e codificada. Assim entendida, conforme assinala José Misael Ferreira do Vale (1985), a formação confunde-se com o projeto político de uma sociedade e reflete, em verdade, as condições de existência nessa sociedade. Nestes termos, organizar um processo de formação de supervisores escolares adequado às necessidades atuais da sociedade brasileira significa pensar uma proposta de trabalho que se inicie pela consideração das aspirações e das necessidades dos alunos e dos professores ao lado dos quais o futuro supervisor vai construir sua prática profissional. Significa, consequentemente, formar para a prática coletiva e para a organização da vontade coletiva. Um tal propósito de formação obriga a um esforço especialpor parte dos professores que trabalham com a habilitação em supervisão escolar em nossas instituições de ensino superior. Diferentemente do que acontece em outras áreas de conhecimento já consolidadas, o professor de supervisão escolar não pode se valer de autores “clássicos” no campo, de obras consagradas ou de uma bibliografia variada e estimulante. Não há em supervisão escolar um “saber historicamente acumulado” que corresponda, por exemplo, ao suporte teórico que a biologia representa para a formação do médico, ou a física para a do engenheiro. O pouco saber que até aqui se acumulou é um saber comprometido com os valores e os interesses predominantes na sociedade em que ele se acumulou; é um saber que vem de encontro e não ao encontro das necessidades de transformação da sociedade brasileira. Ensinar supervisão no Brasil hoje significa necessariamente pesquisar supervisão. Pesquisar “a” e “para” a supervisão. Significa, consequentemente, examinar criticamente a prática que se desenvolve e investigar as situações e as condições que possam contribuir para o desenvolvimento qualitativo dessa prática. A ciência da supervisão, já o disse também anteriormente, será construída sem abrigar a pretensão da objetividade absoluta. É da unidade dialética das atividades teórica e prático-experimental que deverá resultar a supervisão da educação adequada ao atendimento das necessidades reais do conjunto da população. Para que esse saber estruturado sobre supervisão escolar se acumule e se aperfeiçoe será necessário, entretanto, enfrentar também adequadamente as dificuldades que se colocam no plano prático-institucional. Nas universidades brasileiras é ainda extremamente reduzido o número de pesquisadores que fazem da supervisão escolar seu objeto de estudo preferencial. Essa extrema carência se expressa na reduzida produção acadêmica sobre supervisão e na pequena participação dos especialistas em supervisão no debate sobre as grandes questões da educação brasileira. Essa produção e essa participação insuficientes têm permitido a continuidade de uma visão duplamente equivocada: porque elaborada com base na apreensão acrítica dos referenciais teóricos existentes e porque desligada em seus fundamentos das referências necessárias da realidade educacional brasileira. O número de supervisores já existentes em nossos sistemas e em nossas unidades escolares faz supor, à primeira vista, uma perspectiva de superação na prática das deficiências observadas em seu processo de formação. É sempre possível elaborar coletivamente a reflexão necessária à determinação do sentido da prática que se desenvolve. Para isso é preciso que se organizem as situações de encontro entre os praticantes e esta situação em que nos encontramos indica bem o caminho a ser percorrido. No entanto, é preciso, por outro lado, ter presente a necessidade da extensão e do aprofundamento do processo de formação prévia dos supervisores escolares em nossas universidades. Nas universidades propriamente ditas não é pequeno apenas o número de professores que se dedicam à supervisão. É também pequeno o número de seus cursos de habilitação. Isso quer dizer, ao menos no estado de São Paulo, que a formação de supervisores é tarefa quase que totalmente entregue às muitas “instituições de ensino superior” isoladas que se distribuem por seu território. Não é, pois, a escola pública de educação superior que prepara os supervisores da escola pública de educação básica. Muitas são as implicações da situação acima apontada. Mesmo que não se considerem os casos-limite (cursos vagos, fraudes e simulações de diversas ordens) é ainda assim necessário reconhecer que as condições de trabalho oferecidas aos professores dessas faculdades inviabilizam totalmente a perspectiva de uma investigação profícua e original sobre supervisão escolar ou qualquer outro objeto de estudo. Ministrando seus cursos invariavelmente em um único período (quase sempre o noturno) e remunerando seus professores apenas pelas horas-aula ministradas, não podem, evidentemente, essas instituições assegurar as condições de elaboração teórica ou de revisão crítica de um campo do conhecimento humano. Na verdade, em que pese toda sua boa vontade, o praticante de supervisão escolar que na condição cumulativa de professor dedica-se à formação de novos supervisores apenas pode oferecer aos seus futuros colegas o relato criterioso de sua própria prática. Foi essa prática que o levou à condição de professor, mas as condições de que dispõe como professor não lhe possibilitam a reflexão mais aprofundada sobre o sentido da prática que desenvolve. O que de melhor se pode esperar de uma tal situação é apenas a continuidade da prática que atualmente se desenvolve, o que certamente é muito pouco à vista das enormes carências e das muitas expectativas que envolvem a ação das escolas públicas de educação básica. Se em relação às condições de trabalho dos professores que dela se incumbem e das instituições que a oferecem a formação de supervisores defronta-se com problemas da magnitude dos que estamos analisando, em relação aos alunos que a buscam para se prepararem para o exercício futuro da supervisão a situação também não é, infelizmente, mais favorável. Sobrecarregados pelo excessivo número de seus encargos atuais como professores, coordenadores ou diretores das escolas públicas de educação básica, os futuros supervisores não podem dedicar a seus cursos de formação o tempo e o empenho indispensáveis a uma preparação criteriosa à nova função a que aspiram. Como se observa, a hipertrofia da administração sobre o ensino manifesta-se duplamente em nossos sistemas escolares. De um lado, a administração institucionalizada prepondera sobre a preocupação e a própria realização do ensino nas salas de aula; de outro, a administração como objeto de estudo não chega a sofrer a investigação e a análise que possibilitariam a revisão crítica de seu significado. Falo da administração ao mesmo tempo que da supervisão porque não considero que as duas práticas se distingam substancialmente. Supervisionar uma escola é orientar sua administração para a realização do ensino, seu objetivo precípuo. Como conseguir efetivamente essa realização deve ser a preocupação central do processo de formação dos supervisores. Já vimos que o ensino não tem se beneficiado desse processo, em razão das circunstâncias que têm envolvido sua concretização. Resta-nos, então, considerar como a práxis do supervisor poderá ajudá-lo a superar as deficiências de sua formação, contribuindo decisivamente para o reconhecimento de seu papel de articulador do projeto pedagógico de uma coletividade. Para reelaborar a significação Perplexidade, desalento e impotência têm sido as marcas habituais do cotidiano do supervisor paulista. Enredado na multiplicidade das tarefas que lhe são estipuladas e das que deve estipular e cobrar, parece-lhe extremamente remota a perspectiva de direcionar seu trabalho de forma a transformá-lo em um complemento desejável da ação do professor. É preciso reconhecer inicialmente a prisão burocrática no interior da qual o supervisor se movimenta. As dimensões dessa prisão estabelecida de fato pelos critérios usuais de funcionamento do sistema acabam muitas vezes hipertrofiadas pela visão de mundo e de educação insuficientemente elaboradas nos cursos de formação. Uma interpretação crítica da burocracia em que se movimenta é, pois, a primeira grande conquista a se esperar de uma práxis criativa do supervisor. Não se trata de uma expectativa infundada. Até mesmo a burocracia se renova e se contém quando os que a integram recusam-e a ser simplesmente burocratas. Como organização social que é, a escola sustenta-se necessariamente em uma certa burocracia instalada. Como organização voltada ao estudo e à reflexão, no entanto, ela só se realizará efetivamente se se dedicar à análise e à crítica da própria realidade em que se constitui, e isso passa, naturalmente, pela burocracia que a atravessa. Ocorre que a burocracia passa, frequentemente,de modo de organização a modo de pensamento e é nesse sentido que ela quase sempre se revela insuperável. Pensar burocraticamente é não pensar, é assumir a impessoalidade e renunciar, consequentemente, à expressão pessoal. É indispensável que o supervisor da escola se expresse como educador e como especialista. Do supervisor espera-se que aja como “o cimento possível da passagem para a coletividade dos educadores daquelas iniciativas e realizações que os pequenos grupos das escolas conseguirão produzir por seu apoio e orientação” (Silva Jr. 1984). Do “caos teórico-político-institucional” com que hoje se debate o supervisor deverá emergir uma “práxis” essencialmente pedagógica na qual o ponto obrigatório de referência constituir-se-á no encaminhamento das soluções possíveis para as grandes questões do cotidiano do ensino. Essas soluções terão que ser construídas em conjunto pelos educadores. No processo dessa construção coletiva encontrará o supervisor os contornos desejáveis de sua prática profissional. Tornar-se-á ele o organizador dessa grande reflexão educativa da qual participará em igualdade de condições com os demais educadores. Para tanto, o supervisor terá que repensar sua relação com os professores de modo a recredenciar-se em seu conceito. Colocar-se a serviço do serviço que os professores devem prestar a seus alunos constitui-se na melhor maneira de superar o atual desencontro, “transformando-o em um encontro necessariamente educativo, porque realizado entre educadores” (Silva Jr. 1984). Alguns pontos fundamentais devem também ser repensados e aclarados, se efetivamente pretendemos reordenar a práxis do supervisor e, com base nela, influenciar a reelaboração de seu processo de formação e de atuação profissional. Em primeiro lugar é preciso reafirmar que “se a educação, em seu significado mais profundo, é incompatível com os valores da sociedade capitalista, ela também o é com as formas de administração que essa sociedade gerou” (Silva Jr. 1990). Se a educação que se pretende orienta-se pelo princípio da solidariedade, não serão o “taylorismo” clássico ou moderno, o “fordismo”, os arremedos de “cogestão” ou suas muitas derivações que deverão se constituir em critérios para a organização do trabalho nas escolas públicas. O controle da produção pela administração, a parcelarização das tarefas e a separação das especialidades, que essas teorias pressupõem, apenas conduzem à inviabilização do caráter necessariamente pedagógico do trabalho escolar. Em segundo lugar, é preciso considerar que a inadequação das teorias atualmente disponíveis não significa que a elaboração teórica, como tal, seja inviável ou desnecessária como suporte para uma nova prática supervisora. Isso apenas significa que é necessário construir novas referências teóricas que decorram da análise da prática do supervisor e, ao mesmo tempo, observem a natureza peculiar do trabalho pedagógico como princípio orientador do trabalho a ser desenvolvido. Exercício de convicção, por natureza, o trabalho pedagógico não tem como ser objetivado. Isso também não significa que a objetividade seja um valor a ser descartado ou que o pleno exercício da subjetividade constitua o critério universal para a organização do trabalho pedagógico. Subjetividade e objetividade precisam ser retomadas em seus significados essenciais para que suas relações se estruturem adequadamente em favor da realização da finalidade da escola pública. Dizia Gramsci (1978) que objetivo significa sempre “humanamente objetivo”, o que pode exatamente corresponder a “historicamente subjetivo”, isto é, objetivo significaria “universal subjetivo”. O que Gramsci nos ensina e Michel Löwy (1978) reafirma e destaca é que a objetividade não é a impessoalidade ou a neutralidade. Objetividade é a resultante da confluência das ações dos sujeitos da história, é uma construção, um ponto de convergência dos resultados das múltiplas pesquisas teórico- práticas da humanidade. Objetividade, enfim, diria eu, é aquilo sobre o que a humanidade se acertou. E a humanidade ainda não se acertou sobre o modo pelo qual o trabalho pedagógico deva ser organizado e menos ainda acertou quando pretendeu que esse trabalho fosse “objetivado”, ou seja, tivesse a sua concepção e o controle de sua realização retirados da pessoa naturalmente encarregada de promovê-los, que é, indiscutivelmente, o professor. Chegamos, assim, ao ponto central da relação trabalho pedagógico/trabalho administrativo. Sabemos já que o que dá sentido ao trabalho administrativo/supervisor em educação é o seu caráter de suporte ao trabalho pedagógico. Sabemos, também, por isso mesmo, ver o trabalho pedagógico como um determinante do trabalho administrativo. O que nos falta, para organizar melhor a confluência de nossas subjetividades, é considerar que o aspecto administrativo é também um componente do trabalho pedagógico. Quando o professor “ministra” sua aula ele também “administra” essa sua aula. Ele, que a planejou anteriormente, vai agora “executá-la”. Para isso, vai cumprir e distribuir tarefas, semelhantes ou diversificadas, utilizando diretamente ou determinando a utilização dos recursos disponíveis de modo a possibilitar que desse esforço humano coletivo por ele coordenado resulte o alcance da finalidade pretendida por todos: a aprendizagem dos alunos. Podemos chamar a isso de ensinar, mas também podemos chamar a isso de administrar. O ensino em geral não é substancialmente diferente da administração em geral. Foi a busca da substancialidade própria da administração que de alguma forma a afastou do ensino. Em busca de sua identidade a administração escolar e, por extensão, a supervisão afastaram-se do ensino para não ser com ele confundidas. A procura teórica frequentemente deu origem à distância pessoal: “como” administrador ou supervisor não me cabe pensar as situações de sala de aula. “Como” professores não cabe a “eles” pensar os problemas da administração. Logo, “como” supervisor, meu interlocutor “natural” e exclusivo na escola será o diretor, aquele que não se ocupa do trabalho docente... A reelaboração do sentido da ação supervisora só se fará possível, como se observa, com a necessária revisão crítica da relação de trabalho entre o diretor da escola pública e os professores de seu corpo docente. Essa relação, por sua vez, só se realizará em plenitude na medida em que o corpo docente da escola se reinstale como figura política e material, ou seja, na medida em que o corpo docente readquira identidade própria, decorrente de sua constituição e de sua estabilidade. Ironicamente, uma das tarefas mais complexas a que o supervisor se dedica, a atribuição de aulas, é também o indicador mais completo da fragilidade de sua ação institucional. “Recebendo” intermitentemente as aulas que lhe são “atribuídas”, o professor reduz-se à condição de trabalhador horista e eventual. Promovido, como se faz necessário à condição de trabalhador comum, será esse professor remunerado pelo seu tempo total de trabalho mensal, distribuído pela duração normal de uma jornada comum de trabalho, na qual estará contido o número de horas-aula a serem ministradas. “HTPs” (Horas de Trabalho Pedagógico) serão então, simplesmente, todas as horas do dia de trabalho do professor, independentemente do número de horas-aula desse dia. Não há sentido em um trabalho docente que não seja concebido direta ou indiretamente como um trabalho pedagógico. Com professores presentes durante todo o dia de trabalho em uma escola, e apenas nela, estarão colocadas as condições para a reelaboração do sentido da ação supervisora. A fusão do “administrativo” com o “pedagógico” sustentará o projeto organizacional, instrumento efetivo para a materialização do projeto político-pedagógico. Para concluir, lembrando a cidadania e a democracia A materialização da finalidade da escola pública tem sido confortavelmente reduzida ao processo de construção da cidadania. Digo “confortavelmente” porque, no contexto em que vem sendo discutida, cidadania confunde-secom democracia, que por sua vez confunde-se com exercício de direitos individuais. Esta é apenas uma pobre forma, embora indispensável, de democracia: a democracia da representação. Como tal, ela é necessária, mas não é suficiente para a resolução dos problemas da administração e da supervisão da escola pública. A insistência quase exclusivista na discussão sobre a qualidade dos mecanismos de representação reduz a perspectiva da democracia na escola pública a um processo de interesse imediato daqueles que povoam seu interior. A preponderância de sua manifestação faz com que a discussão se circunscreva ao aspecto político em sentido restrito, desconsiderando a democracia como forma de existência social. Vista por esse ângulo, a discussão sobre a democracia e a escola recolocaria em seu horizonte de considerações os problemas da exploração econômica, da separação entre produtores e proprietários, entre dirigentes e executantes, “governantes e governados”, como Gramsci não se cansava de registrar. A compreensão do sentido de democracia possível no interior da escola pública só se estabelecerá na medida da articulação necessária entre as lutas específicas de seus trabalhadores e as lutas genéricas e coletivas pela construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, ou, para ser mais explícito e incisivo, pela construção do socialismo democrático. Por isso escrevi em 1977 que “as escolas não existem para ser administradas ou inspecionadas. Elas existem para que as crianças aprendam”. Não estava ali desqualificando a necessidade ou a possibilidade da administração da educação ou de sua supervisão. Se estivesse, não teria imprimido a meu trabalho posterior a marca da tentativa de revisão crítica da questão da especialização em educação que de alguma maneira o caracteriza. Também não estava hipertrofiando o plano didático-pedagógico da vida escolar ao me referir à necessidade da aprendizagem. Estava sim, como até hoje, preocupado com a significação social da escola, seus limites e suas possibilidades de contribuição para a resolução da questão maior da educação popular. Também por isso me rejubilei interiormente quando Luiz Carlos de Freitas escreveu em 1989 algo muito semelhante: “Centrar a discussão do problema na eleição do diretor ou em termos da presença ou não de especialistas na escola tem ofuscado este ponto central da questão, ou seja, o fato de o aluno ser o principal protagonista da escola; o fato de a escola existir para o aluno” (grifos do autor). Marilena Chauí houvera escrito em 1982 (p. 68) que “a questão democrática, antes de ser discussão sobre a cidadania como direito à representação, deveria ser a questão da concreticidade da própria cidadania”. Miguel Arroyo (1987) também já escrevera que “a ênfase na educação para a cidadania se alimenta de uma concepção da história como progresso inexorável da barbárie à civilização, da miséria à felicidade de todos, da exploração à liberdade, processo que se consuma na sociedade industrial-capitalista moderna”, para em seguida perguntar: “Como manter essa concepção linear e triunfalista do progresso capitalista numa realidade como a nossa, onde a exploração e a miséria da maioria são tão evidentes, e quando a história mostra que as promessas, sempre repetidas pela burguesia, seus gestores e intelectuais, não só não se realizam, mas são irrealizáveis?” Entre a afirmação de Chauí e a indagação de Arroyo, Saviani (1983) já havia colocado sua hoje clássica constatação: “Quando mais se falou em democracia no interior da escola, menos democrática foi a escola; quando menos se falou em democracia, mais a escola esteve articulada com a construção de uma ordem democrática.” É essa construção da ordem democrática que se constitui no horizonte da construção social da escola. Daí a preocupação que registrei quanto a uma certa empolgação “eleitoralista” ou “eleitoral-participacionista” evidenciada no debate político-pedagógico dos anos iniciais da década de 1980. Daí também as reservas com que vejo o que chamei de “ideologias de conveniência”, tais como a “descentralização”, a “participação”, a “municipalização” e a “ação comunitária”. Repito aqui o que disse anteriormente: em todas elas o Estado “despubliciza” suas responsabilidades, ao mesmo tempo em que aparenta favorecer o público com a possibilidade que lhe abre de interveniência em suas decisões. Creio que os trabalhadores da escola pública, sejam eles professores, administradores ou supervisores, vêm elaborando de forma crescente sua consciência e sua compreensão desses problemas. Creio também que a unificação de seus locais de trabalho, que começa a se manifestar como bandeira de suas lutas, constitui um requisito indispensável para a elaboração de sua vontade coletiva. Como também já afirmei, sem a presença física do trabalhador individual o “trabalhador coletivo” não se constitui, mas também o projeto político não se elabora. As relações de trabalho e o próprio trabalho são, pois, na escola pública, assim como têm sido na história da humanidade, a fonte e o princípio do processo de organização da vida democrática. O “trabalho como princípio educativo” terá que passar de objeto de estudo, ou de referência formal na legislação do ensino, a princípio prático de ação no cotidiano dos trabalhadores da escola pública. Por ele e com ele poderemos percorrer o caminho de sua democratização. Referências bibliográficas ARROYO, M.G. “Educação e exclusão da cidadania”. In: Buffa, E. et al. Educação e cidadania: Quem educa o cidadão? São Paulo: Cortez, 1987. CHAUÍ, M. “O que é ser educador hoje?” In: Brandão, C.R. (org.). O educador: Vida e morte. Rio de Janeiro: Graal, 1982. FREITAS, L.C. “A organização do trabalho pedagógico: Elementos para a pesquisa e novas formas de organização”. Trabalho apresentado no Simpósio da Organização do processo do trabalho docente: Uma análise crítica. V Endipe. Belo Horizonte, 1989. GARCIA, R.L. e ALVES, N. O pensar e o fazer dos supervisores e orientadores educacionais. São Paulo: Cortez, 1986. GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. LÖWY, M. Método dialético e teoria política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. SAVIANI, D. Escola e democracia. São Paulo: Cortez, 1983. SILVA, JR, C.A. “Supervisão escolar e política educacional no Brasil”. São Paulo: Feusp, 1977. Dissertação de mestrado. __________. “Supervisão da educação: Especialização e especificidade”. Didática nº 20. São Paulo, 1984, pp. 49-60. __________. “Organização do trabalho na escola”. Cadernos de Pesquisa nº 59. São Paulo, 1986, pp. 73-76. _________. A escola pública como local de trabalho. São Paulo: Cortez, 1990. VALE, J.M.F. “O ensino de administração e a formação de administradores escolares”. Revista Brasileira da Administração da Educação nº 2. Porto Alegre, v. 3, jul./dez. 1985, pp. 61-70. 5 A OPÇÃO DA SUPERVISÃO DIANTE DA AMBIVALÊNCIA Marileusa Moreira Fernandes Iniciando a discussão O lócus central da qualidade de ensino é a escola. Dentre as diversas modalidades dessa, a escola pública de ensino fundamental ganha importância, não só pelo grande contingente de alunos e profissionais que abriga, como também pela relevante função social que lhe cabe desempenhar. É na escola que ocorrem as relações, não só dos atores mais diretamente ligados à ação educativa (alunos e professores), mas também as relações especificamente ligadas ao ensino e à administração, ao técnico e ao político, à sala de aula e ao sistema educacional, à educação sistemática e à assistemática, ao Estado e à sociedade. É na escola que todas essas questões ganham concretude; onde o micro e o macro se integram, interagem, dando cor e forma a valores, ideais, interesses e necessidades de diferentes grupos. É também nela que as pressões vindas das diferentes categorias de profissionais ligados à educação, na luta por melhores condições de trabalho, bem como de famílias, entidades e grupos sociais que defendem os interesses dos alunos, fazem-se sentir com maisvigor e energia. Por essa razão, debruçar-se sobre ela para compreendê-la na sua complexidade, tendo em vista a transformação necessária e possível, é tarefa fundamental no enfrentamento dos problemas educacionais. A essa tarefa têm se dedicado inúmeros teóricos e pesquisadores. Alguns estudam-na de forma isolada; outros adotam uma configuração mais abrangente e inter-relacionada. Análises no plano funcional, estrutural e formal têm sido empreendidas, muitas vezes tomando essas decisões de forma dogmática, impossibilitando uma compreensão mais significativa da realidade escolar. Dentre os estudos mais recentes, a análise do cotidiano tem possibilitado ricas apreensões da realidade. Penin (1987, p. 161) afirma que o conhecimento do cotidiano escolar é necessário por duas razões. Primeiro, porque sendo conhecido é possível conquistá-lo e planejar ações que permitam transformá-lo, assim como lutar por mudanças institucionais no sentido desejado [...] Segundo, porque o cotidiano, sendo conhecido, pode fornecer informações a gestões institucionais democráticas que queiram tomar medidas adequadas para facilitar o trabalho ao nível cotidiano das escolas e melhorar a qualidade do ensino aí realizado. Além do mais, esse tipo de análise possibilita um enriquecimento na teoria educacional, quer quanto a seus fundamentos, quer com relação a questões de ordem metodológica. Acreditando que a qualidade do ensino não se esgota, mas também passa pelo saber-fazer dos diferentes educadores, e levando em conta as reiteradas colocações acerca da importância da supervisão para o alcance dessa qualidade, gostaríamos de enfrentar dois desafios: • rediscutir questões teóricas ligadas à supervisão, com base na prática dos supervisores; • equacionar questões relativas à ação supervisora do ponto de vista da escola. Dessa forma, gostaríamos de analisar a prática de professores-coordenadores, vistos como elementos do sistema de supervisão e que nos últimos anos têm sido alocados nas escolas públicas estaduais paulistas por meio de diferentes projetos. Analisar o cotidiano desses profissionais, enfocando-o do ponto de vista das relações que mantêm no interior da escola e com o sistema de supervisão (na tentativa de provocar as mudanças e fornecer as informações de que nos fala Penin), bem como rediscutir questões teóricas relacionadas à supervisão e à formação de supervisores com base na pesquisa da realidade, é a proposta do presente estudo. Assim, as reflexões aqui contidas partem de e retornam a colocações teóricas e apoiam-se nos dados de uma pesquisa de campo levada a cabo nos anos de 1991 e 1992 em uma Delegacia de Ensino da capital paulista. Refletindo sobre o cotidiano da supervisão na escola O trabalho de supervisão em nível de unidade escolar levado a cabo pelos professores-coordenadores e pela equipe de supervisão da Delegacia de Ensino tem sido realizado em conformidade com a organização burocrática do sistema. Mais que isso: o modo burocrático de pensar tem levado esses profissionais a desempenhar um papel que nitidamente subordina as necessidades da escola e das pessoas que lá atuam às determinações dos órgãos centrais. Dessa forma, faz-se mister repensar o conteúdo e a finalidade da ação supervisora. O tema central das relações que se estabelecem entre a equipe de supervisão e os coordenadores e desses com os professores nas escolas é o da capacitação. A falta de reflexão sobre sua prática não tem levado esses profissionais a definir com precisão o sentido e a finalidade dessa capacitação. Assim, à diferença entre as pessoas imprime-se uma conotação de inferior/superior, dependendo do cargo ocupado na hierarquia do sistema. A partir daí, sem apoio em nenhum dado objetivo, as decisões e as ações desenvolvem-se tendo como pano de fundo o pressuposto da incompetência dos elementos que se situam no nível abaixo daquele que está em questão na escala hierárquica da Secretaria da Educação. Dessa forma, define-se, sem e apesar das pessoas e situações envolvidas, o conteúdo daquela capacitação. A decisão quanto a temas, estratégias e recursos a serem utilizados não leva em conta sua validade para essas pessoas e situações e muito menos para a finalidade da capacitação: o saber-fazer dos diferentes educadores diante da função social da escola, diante da necessidade de um ensino de qualidade para a maioria da população. As decisões ficam ao sabor da vontade ou da preferência de cada elemento que tem o poder de decidir. Muitas vezes se constitui em reprodução acrítica dos temas desenvolvidos por outras instâncias do sistema numa aceitação passiva de que aquilo que os órgãos superiores determinam tem validade por si só. Por trás dessa atitude, na verdade, pode-se perceber a presença de mitos que permeiam a formação do educador. Parte-se sempre de pressupostos de formação tidos como verdadeiros, o que leva à transmissão de “saberes científicos” tidos como inquestionáveis. Assim, coordenadores receberam treinamento específico em componentes curriculares ou em teorias de administração e supervisão transplantados de outros países ou de outros setores que não o escolar, esquecendo-se a especificidade da tarefa educativa e do trabalho desenvolvido na escola. A total desvalorização do saber da prática, da reflexão sobre o cotidiano de sua ação, norteada pela sua finalidade educativa, faz com que esse tipo de capacitação leve ao imobilismo e à dependência, que vêm justificar a tomada de decisão não compartilhada, baseada na falta de iniciativa e competência que a relação vertical e autoritária esmaga e corrompe, transformando-se numa profecia “autorrealizável”. Como não existe em supervisão educacional um “saber acumulado”, como em outros ramos do conhecimento, que possa ser transmitido, formando e preparando profissionais competentes, e como esse saber é buscado fora da atuação e da realidade em que trabalham esses profissionais, essa capacitação em serviço converte-se num engodo. Na verdade, o conteúdo refere-se ao “saber-fazer” dos diferentes profissionais e traz em si a conotação de saber fazer bem, para o que não há regras exaustivas, ou seja, garantidoras do sucesso. Primeiro, porque não há um conteúdo definido a priori; segundo, porque não existe uma metodologia que abstratamente o garanta. Objeto e método só ganham sentido quando se constroem conjuntamente diante de uma realidade concreta. Assim, a equipe de supervisores da Delegacia de Ensino não tem um “o quê” e um “como” para ensinar o coordenador a fazer bem seu trabalho, da mesma forma que este também não possui um conteúdo e uma metodologia dados aprioristicamente para tratar com o professor. Trata-se, portanto, de um saber a ser construído e a possibilidade dessa construção só se verifica quando, situando- se lado a lado, cada um coloca o saber que domina para conhecer a realidade concreta e atuar nela com vistas a um fim comum. Enquanto cada elemento quiser passar ao outro o conhecimento que domina ou julga interessante, sem ter claro como esse conhecimento se explicita no fazer do outro, este poderá até “aprendê-lo” mas dificilmente irá utilizá-lo em seu trabalho. Assim, o conhecimento que não pediu vem se justapor aos que possui, numa somatória que não se integra, interferindo em seu fazer. Na relação vertical estabelecida, em que o diferente é tratado como inferior ou superior, mas sempre distante, “de fora”, os profissionais transformam seu saber específico em um fim em si mesmo e não em um meio para auxiliar o outro a interpretar sua realidade e atuar segundo ela, recorrendo ao conhecimento necessário em cada momento da ação. Cada qual responde solitariamente à pergunta que não lhe foi feita e, portanto, sem ressonância no comportamento do outro. Tornam-se necessários o rompimento da relação existente e o estabelecimento de uma relação horizontal, em que o supervisor, debruçando-se sobre o seu fazer, possa entendê-lo e encontrar os caminhos para transformá-lo num “saber-fazer- bem”. Esse é um conhecimento construído coletivae incessantemente porque envolve situações dinâmicas, cambiantes em cada momento em que cada relação se dá. Essa relação pressupõe que se alternem as posições dos elementos do grupo porque não existe um que sabe e ensina e outros que vão aprender. Cada qual, em determinado momento, coloca seu saber para a construção do novo conhecimento, que direcione a ação. O questionamento da atuação de cada um, dos conteúdos e dos meios que utiliza, da forma como participa e da participação que permite aos outros (portanto, a reflexão sobre a prática concreta em sua relação com o objetivo que a orienta) torna-se fundamental. Tem-se, assim, uma situação peculiar em que a descoberta dos caminhos pressupõe o rompimento da relação estabelecida, mas dialeticamente esse rompimento só ocorre pela descoberta desses caminhos. O interlocutor qualificado é fundamental para essa mudança radical, mas ele também não está dado. A hierarquia do sistema não garante sua definição. Provocador dessa mudança, ele só surge no decorrer da própria mudança. Não há como se ter a segurança de verdades aprioristicamente dadas. Caminhar-se-á para a transformação caminhando e, assim, a reflexão contínua sobre a prática, amparada pelo seu fim, é condição necessária para a construção da práxis das pessoas envolvidas. Sem isso, tudo indica que a prática continuará descontínua, na dependência de um ou outro elemento, não promovendo a transformação do grupo como tal e levando à insatisfação tantas vezes detectada. Por outro lado, observa-se, em muitos coordenadores e supervisores, um “querer” que não tem se submetido e que busca desesperadamente os caminhos do “saber-fazer”. O poder está em provocar as mudanças sem ser lançado fora do processo. Mudanças são válidas, não por si mesmas, como elementos de poder para manter uma posição, mas sim para revelar a percepção de que a prática não tem conduzido ao fim perseguido, mas pode conduzir a ele se provocar uma análise radical. Dessa forma, a resistência não pode ocorrer de forma defensiva e acrítica. É necessário que o coordenador defina, com clareza, para si próprio, que objetivos persegue, que papel se propõe a desempenhar. A relação estabelecida de forma autoritária busca “encaixar” o coordenador em um papel não explicitado: o de reprodutor, na escola, das decisões tomadas pela Delegacia de Ensino e demais instâncias do sistema. Paralelo a esse, há a expectativa declarada de que ele seja um elemento criativo, com iniciativa, dinâmico, a fim de encontrar os momentos adequados para agir e provocar o trabalho cooperativo dos professores. Só não se declara com que objetivo ele deve exercer essas qualidades, mesmo porque as pessoas não têm essa percepção. Na prática, discurso e ação parecem se chocar, deixando o coordenador confuso, na medida em que ele também quer se “encaixar” em um papel. Mas que papel? Na escola, além de tudo, ele vive o conflito de, ao mesmo tempo, ser professor e coordenador; ligar-se ao diretor, assessorando-o no cumprimento de tarefas administrativo-burocráticas de que esse se ocupa e ao professor, que dele espera “receitas milagrosas” para seu fazer pedagógico. Ter um papel claramente definido é, para muitos pesquisadores que investigaram a supervisão em nível de unidade escolar, condição essencial para a realização do trabalho. Essa é para nós uma faca de dois gumes. O coordenador pode, diante de um papel claramente definido, viver a estereotipia do papel de forma limitadora de sua individualidade. Seu comportamento pode orientar-se pelo cumprimento das normas relativas a esse papel, conformando-se alienadamente a elas. Pode, por outro lado, fazer sobressair a dimensão subjetiva do exercício do papel, rompendo a camisa de força da burocracia. Colocados no centro de diferentes expectativas, algumas antagônicas, o coordenador e o supervisor vivem uma situação privilegiada, notadamente se considerarmos a possibilidade, mínima que seja, de reunião com os professores. Transformar esse espaço instituído em realidade, no exercício de uma função realmente comprometida com uma proposta política e não com o cumprimento de um papel alienadamente assumido, é uma possibilidade que se coloca a esses profissionais. A transgressão responsável da relação estabelecida, tendo como apoio o discurso instituído, é uma tarefa que eles não vêm realizando, mas que se abre como uma possibilidade na busca de sua identidade, possibilidade essa que se realizará, não somente (embora também) através de seu preparo técnico, mas no seu cotidiano por meio de uma práxis politicamente comprometida. Isso não ocorrendo, cria-se uma dependência e uma subserviência ao sistema e este se converte em sua própria finalidade. Esvaziado de sua finalidade educativa e ganhando vida própria, o sistema precisa se justificar e isso leva a um “frenesi” de atividades que se aceleram cada vez mais, impedindo a reflexão. De um lado, as instâncias intermediárias, entre a cúpula e as escolas, “incham” cada vez mais; de outro, nas unidades escolares acrescentam-se mais e mais elementos da supervisão e da administração que se desdobram em mil e uma atividades, atendem inúmeras necessidades criadas pelo sistema, e desviam-se cada vez mais da finalidade precípua da escola. Mais grave ainda: professores são alocados e retirados continuamente das funções de supervisão, recebendo treinamento nos moldes acima explicitados, passando a integrar o imenso contingente de educadores, não só acostumados ao sistema burocrático de organização, como a pensar burocraticamente, levando essa forma de atuar para seu relacionamento com o aluno. Aliás, dever-se-ia questionar o sistema acerca dessa precária situação de trabalho: o coordenador exerce uma função; a coordenação não se constitui num cargo. Isso favorece a descontinuidade do trabalho a ser desenvolvido nas escolas, ao mesmo tempo em que coloca o coordenador numa posição bastante frágil; não se submetendo às determinações e às expectativas do sistema, ele é afastado da função. A situação que lhe é imposta, embora não explicitada, já traz em si a sua submissão ao sistema de supervisão, de um lado, e à direção da escola, de outro, o que lhe confere uma estreita margem de ação. Por outro lado, se sua capacitação em serviço, nos moldes apontados, tiver um mínimo de sucesso, estará o sistema formando uma nova categoria de professor: aquele acostumado a pensar e agir burocraticamente, esvaziando seu próprio trabalho como docente. Daí nos preocupar muito a afirmação, já corrente nas escolas, de que todo professor deve, pelo menos por algum tempo, exercer as funções supervisoras, em alguma instância do sistema; “ele terá uma outra visão”, dizem. Se esta for uma “Super Visão”, que lhe permita enxergar mais o microespaço da sala de aula e compreender melhor as relações dessa com o social mais amplo, ótimo! Mas, se essa outra visão lhe ofuscar a mirada e enrijecerlhe o pensamento, então a situação criada será de um prejuízo descomunal para a educação. A avaliação poderia ser uma chave para impedir tal situação. No entanto, ao entrar como tema para essa forma de capacitação, também se transfigurou: de referencial para etapas seguintes e elemento de reflexão, converteu-se em uma etapa obrigatória e burocratizada do trabalho; passou a ser sinônimo de dados a serem tabulados, transformados em tabelas e gráficos e, graças à “modernização” da Secretaria de Educação, implantados em computador. Uma vez executado todo o ritual traçado, sua função já está cumprida. “Para que” e “por que” os dados são levantados resumem-se na justificativa de que “devem constar do Plano Diretor”! Resta-nos recorrer à participação. E o que constatamos? Ela também ganhou outras concepções e converteu-se em “participacionismo”, que se revela na participação formal e funcional. Assim, a simples presença física num encontro ou reunião ou o pertencer a um colegiado como o Conselho de Escola, por exemplo, responde pela participação que efetivamente não ocorre. Outras vezes a participação é para referendar decisões játomadas ou simplesmente opinar sobre questões pouco substantivas, como horário e local de ações já definidas. Todas essas constatações levam a repensar o conteúdo da ação supervisora, a forma como participa e o tipo de participação que favorece seus representantes. Esses dados apontam-nos para o tipo de compromisso que a supervisão assume e a que interesses serve. Se nos interessa o exercício de uma profissão autônoma, a formação de uma identidade profissional refletida, não ingênua ou alienada, é preciso estarmos atentos às dimensões coletivas da produção dos saberes e dos valores. E os valores precisam ser vivenciados na prática, refletindo a finalidade da ação supervisora e seu papel emancipador. Se os coordenadores, de forma consciente, crítica e comprometida, não assumirem sua posição na equipe de educadores de sua escola na organização coletiva de um projeto pedagógico que atenda às necessidades concretas da população a que assistem; se eles continuarem levando, de forma acrítica, para a escola, as determinações e os conhecimentos produzidos e selecionados fora dela, em vez de tornarem a escola o foco de atenção, indo buscar e cobrar nas diferentes instâncias do sistema os elementos que essas podem oferecer para viabilizar esse projeto, terão perdido uma oportunidade histórica de participar da construção social da escola. Na mesma posição estará a equipe da Delegacia de Ensino que, ao se propor à capacitação em serviço do coordenador, precisa considerá-lo sujeito do processo de construção de sua identidade, processo esse que ela favorecerá quando efetivamente se propuser a estar com ele, quando mergulhar nas situações reais que ele vive no cotidiano de sua escola, em vez de definir características e formas de atuação para o coordenador baseadas num saber nebulosamente estabelecido. Discutindo a opção diante da ambivalência A teoria de supervisão e a atuação dos supervisores nos diferentes níveis, alguns imbuídos do papel fiscalizador, outros apoiados na eficiência da metodologia e dos saberes científicos, produziram um discurso centrado na mudança, mas revelaram uma face essencialmente conservadora. O controle, característico da função, exerceu seu poder em benefício do sistema educacional, o que não equivale a dizer da educação. A hierarquia sustentada pela legislação e pelas normas definiu seu modelo e exerceu sua função reguladora na intenção de manter a eficiência do sistema. Mas, por que desejamos eficiente um sistema que tem como função a exclusão de uma grande camada da população e preocupa-se com a transmissão de valores compatíveis com o papel de subordinados? A ação que desmente o discurso ou é alienada, ou cínica. De uma forma ou de outra, provoca a crise no sistema. Essa surge como uma oportunidade: a de se definir um papel que resgate o educativo da função e do sistema. A dicotomia ação/discurso retoma seu caminho de unicidade na dimensão ética: os valores explicitados precisam ser vivenciados e assumidos na ação. A competência a ser construída pelos supervisores, em qualquer nível que atuem, deve se revelar primeiro na sua capacidade de visualizar claramente qual pode e deve ser o papel da supervisão exercida por um educador. Essa competência compartilhada precisa, em cada momento e espaço, assumir, na ação, a dimensão técnica e o compromisso político do saber-fazer. O compromisso com a mudança, para nós, define o olhar voltado para os fins da educação, para o ensino, para o aluno e não a “fidelidade” ao sistema. A coerência com esse compromisso impulsiona a ação para a vivência de valores que rompam efetivamente com o vínculo de submissão, com a relação estabelecida com função reguladora e normativa, que impõe um saber vindo de fora, em vez de auxiliar a construção de um saber coletivamente refletido e autoconstruído. Os valores dessa ordem, vivenciados na prática, colocarão os supervisores ao lado dos professores para, juntos, montarem um projeto de escola que possibilite ao aluno, qualquer que seja ele, a compreensão do significado do saber construído pela humanidade. É preciso que o compromisso político do educador-supervisor faça uso do discurso e dos espaços instituídos, fazendo uma reinterpretação crítica da burocracia imperante no sistema, a fim de colocá-la a serviço da finalidade educativa da escola. Provocando a reflexão sobre sua prática, tendo em vista a qualidade do ensino a ser oferecido à grande massa da população brasileira, o supervisor terá a oportunidade de redefinir seu papel, revertendo o fluxo, colocando o sistema a serviço da escola, impedindo que ela continue “tarefeira” do sistema, desviando- se cada vez mais de sua função social. Referência bibliográfica PENIN, Sonia T. de Souza. “Escola e cotidiano: A obra em construção; confronto entre as condições objetivas e representações de professores, diretores e pais em quatro escolas públicas de 1º grau de São Paulo”. Tese de doutorado em Educação. São Paulo: Feusp, 1987. 6 PARADIGMA DE AVALIAÇÃO EMANCIPATÓRIA E A AÇÃO SUPERVISORA: CIDADANIA E ESPAÇO PÚBLICO [20] Marilu Fontoura de Medeiros Trabalhar com temas como cidadania, emancipação e espaço público exige, na perspectiva habermasiana, a concreticidade da teoria e da prática na ação que se constrói no cotidiano. Sem o nexo entre ambas, pouco estaremos fazendo pela cidadania em seu processo de emancipação, que se efetiva na construção socioindividual crítica e reflexiva da liberdade (Habermas 1990a, 1993). Como já afirmaram alguns autores, falar, de forma teórica, na luta pela democracia com uma prática autoritária evidencia, em certa medida, a antítese da própria democracia. Somente com práticas genuinamente democráticas, instauradas em espaços públicos de forma transparente, processual, falível e intersubjetiva, estaremos realmente lutando pela instauração – passo a passo – de espaços democráticos (Habermas 1991). Uma ação concreta – seja a ação supervisora, ou a mediação estabelecida na ação orientadora ou na administrativa – exige o compromisso real com a construção da autonomia de “cada um” e de “todos” (Habermas 1990b; Castoriadis 1985). Neste contexto, apresentamos a proposta concretizada de construção de um paradigma de avaliação emancipatória em contexto concreto de um curso de especialistas em educação, realizado em uma universidade federal do sul do país. Construindo um paradigma emancipatório A proposta que apresentamos é, por sua própria natureza, mediada por um processo teórico-prático. Nele, trazemos o aporte da teoria crítica de sociedade defendida por Jürgen Habermas, na qual propõe uma ruptura dos paradigmas tradicionais, reportando-se à retomada da construção do sujeito em um paradigma, agora, enfaticamente intersubjetivo, baseado na interação, na linguagem e na comunicação; por outro lado, este processo está relacionado ao desvelamento dos interesses que orientam o uso do conhecimento empregado em nosso cotidiano. A mediação teoria e prática complementa-se na medida em que nos desafiam a reconstruir e aplicar o paradigma habermasiano a contextos socioeducacionais. Neste sentido, alguns trabalhos de pesquisa têm sido objeto de nossa atenção[21] e da tentativa de buscar a relação na prática pedagógica, evidenciando e refletindo os nexos ou interesses que mediaram nossa ação e a dos objetos de pesquisa que construímos no cotidiano da pesquisa.[22] Como parte deste desafio, buscamos, inerente à natureza da própria teorização, estabelecer um processo contínuo de reflexão, construindo na relação teoria- prática um paradigma de avaliação emancipatória, com base em uma teoria crítica de sociedade, advinda das teses de Habermas; esse paradigma inspira propostas que assumem seu significado mais explícito, pressupondo um processo de validade e legitimação, na medida em que o seu contexto se caracterize pela instauração e ampliação de espaços públicos de discussão. Esta questão tem, ainda, relação com a abordagem construtivista/reconstrutivista do conhecimento (Habermas 1989; Flickinger e Neuser 1984),que pressupõe a mudança e a superação de um paradigma do sujeito ou da consciência para uma proposta centrada, processualisticamente, na produção que se efetiva dia a dia, desvelando e refletindo não somente sobre os interesses, mas questionando os próprios interesses que norteiam e constroem nossas ações no cotidiano (ver Esquema I, Medeiros 1994). É a relação que o sujeito cognoscente tem com a natureza que define os dois paradigmas. No da consciência, o sujeito assume, em relação ao mundo dos objetos possíveis, uma ação voltada para o conhecimento e o agir sobre estes objetos para torná-los como deveriam ser. A lógica que o dirige, em essência, ainda é a de agir sobre o mundo/natureza para “comandar” o desenvolvimento, mesmo que em direção a uma transformação social coletivizada da denominada igualdade social. É interessante, então, perceber a questão do “Conhecimento obtido pela racionalidade centrada na comunicação” no esquema que se segue: ESQUEMA I Paradigmas do conhecimento com vistas à proposta de crítica de Jürgen Habermas O paradigma emancipatório representa, na perspectiva da teoria habermasiana, a retomada da razão ampliada, na qual se incluem o logos e o pathos e que sinaliza para o redimensionamento de um sujeito monológico, na direção de um sujeito dialógico. De novo, um paradigma é superado pela retomada de uma subjetividade que constrói, reflexivamente, sua liberdade, autonomia e emancipação em um processo socioindividual. Instaura-se a lógica da razão comunicativa, base do paradigma avaliativo, que se efetiva num processo argumentativo baseado em atos de fala, no qual são questionadas pretensões de validade que podem ser aceitas ou não, legitimadas pela força de argumentação. É nesta linha que trazemos Rouanet (1987), quando afirma que quem tem sido oprimida até hoje é a intersubjetividade, não a subjetividade, e que, além disso, a totalidade do processo histórico-social só pode ser compreendida, criticada e transformada quando o crítico usar a linguagem da razão intersubjetiva e não as “armas” oferecidas pela razão subjetiva. Explicitamos no Esquema I, a passagem de um paradigma que privilegia uma relação Sujeito-Objeto (S-O) para um paradigma que privilegia uma relação Sujeito-Sujeito (S-S). Neste, é retomada a dimensão de liberdade, de construção democrática e processualística dos espaços de cidadania, do sujeito, dos grupos- sujeito e do sujeito no (e/ou) coletivo. Há como que uma superação da ação do sujeito que usa sua perspectiva particular (mesmo que, contraditoriamente, apontada ou defendida como se fosse coletiva) como critério de verdade para conhecer e dominar objetos, sejam estes coisas ou pessoas; há um usar de perspectivas reciprocamente entrecruzadas entre o “eu”, o “tu” e o “outro” para conhecer e transformar estas três perspectivas (Klein, Lovatel e Medeiros 1993; Medeiros 1994). Tais condições e pressupostos consubstanciam-se nas propostas expressas na teoria da ação comunicativa (Habermas, 1988, 1989), suportada pelo que Habermas e outros adeptos da teoria crítica denominam como racionalidade crítico-emancipatória. No contexto da avaliação (Klein, Lovatel e Medeiros 1993) estabelecem-se parâmetros e categorias os quais nos facilitaram o mergulho de forma abrangente e orgânica numa proposta de avaliação emancipatória de um curso de formação de supervisores, orientadores e administradores em educação. Esta racionalidade a que nos referimos, com seu interesse centrado nas dimensões de democracia radical, de crítica dialética argumentativa, de espaço público, de transformação socioindividual, conduz à possibilidade da construção intersubjetiva da liberdade num processo de autonomia crítica e reflexiva, caracterizando uma avaliação que se propõe teórica e praticamente emancipatória. É oportuno, então, observar a “Teoria crítica de sociedade”, no esquema que se segue: ESQUEMA II Teoria de sociedade O paradigma de avaliação emancipatória traz, em sua relação teórico-prática, algumas categorias, não excludentes, tais como: • superação de um paradigma do sujeito e/ou da consciência por um paradigma do entendimento (que não o praticado no funcionalismo) e/ou da comunicação; • o desvelamento ideológico feito através da crítica dialética, que, processualisticamente, auxilie na construção do melhor argumento e na liberdade do sujeito em oposição à crítica dogmática; • a centração no desvelamento dos reais interesses que norteiam o uso do conhecimento; • a compreensão do uso do conhecimento como expressão de uma “razão ampliada”, na qual se incluem tanto o logos quanto o pathos expressos em vivências, fatos e normas; • a busca de uma ação que contemple o outro como par, como iguais diferenciados; • a qualificação democrática do argumento, configurando o assumir verdades falíveis nas esferas da vida e que englobam questionamentos tanto dos meios quanto dos fins e da ação em si mesma; • a pressuposição da ação não mediatizada por coerção, coação, cooptação, persuasão, patrulhamento ou admoestação que impeçam a manifestação da autenticidade, da verdade, da justiça e, consequentemente, da luta pela legitimidade; • a pressuposição de uma crítica não dogmatizada em fundamentalismos (sejam filosóficos, religiosos ou político-partidários), avançando na construção intersubjetiva da liberdade; • a valorização da linguagem (não em sua formalização), via atos de fala, como suporte para o “dar-se a entender” numa ação intersubjetiva; • a ênfase não só na gênese e no uso do conhecimento, mas na busca de pretensões de validade construídas argumentativamente; • o entendimento e a diferenciação de tipos de ações em suas racionalidades, sejam elas técnico-instrumentais, estratégicas ou emancipatórias, expressando interesses diversificados e preponderando no mundo do sistema ou no mundo da vida; • a consciência da interação entre o mundo do sistema e o mundo da vida, com suas óticas diferenciadas e da necessidade de privilegiamento do último; • a consciência de que as ações técnico-instrumentais e as estratégicas não possibilitam a construção socioindividual da liberdade, da autonomia, da emancipação; • a certeza de que esta construção só se valida em um processo centrado na reflexão crítica, que implica “pensar o pensamento”, “pensar por si mesmo” e “pensar com o outro”; • a ligação indissociável entre emancipação, reflexão crítica e desvelamento ideológico, como processos em sua força esclarecedora; • a clarificação de que este processo de emancipação opera-se pela “ressimbolização do mundo da vida” (empobrecido pelos valores e ótica do mundo do sistema) via “ampliação de espaços públicos”, como processos de transparência, nos quais se fazem presente a resistência e a ressonância; • a luta pela reabilitação da esfera pública, na qual as pessoas possam decidir como sujeitos, sem imposições, mas por uma disposição argumentativa; • a certeza de que a reabilitação desta esfera passa pela construção do “eu competente”, que pressupõe uma ética discursiva, com a necessária descentração do eu; • a consciência de que a emancipação e a autonomia só podem ser entendidas como legítimas se em suas dimensões de “autenticidade”, de “verdade” e de “justiça” contemplarem a “todos” e a “cada um”. As categorias presentes na proposta habermasiana foram por nós interpretadas (Klein, Lovatel e Medeiros 1993) para a construção do paradigma de avaliação emancipatório. A avaliação emancipatória, em nossa percepção, exige a validade de conceitos como democracia radical, espaço público, transformação socioindividual e crítica dialética/argumentativa. Emancipação está intimamente associada ao processo de desenvolvimento da consciência moral, de uma heteronomia para a autonomia, envolvendo dimensões linguísticas, cognitivas e interativas que potencializam processualisticamente a “maioridade” que se concretiza no processo de construção do “eu competente”. Emancipação relaciona-se com “libertação em relação a parcialidades [...] e, nela, os processos de autoentendimentose entrecruzam com um ganho de autonomia” (Habermas 1993, p. 99); relaciona- se com a possibilidade simbólica de falar e de ser ouvido (o que se relaciona com o interacionismo simbólico processual e não substantivo de Mead e de Searle); de expressar o pensamento num nível comunicacional entre dois ou mais sujeitos (o que implica processar o desenvolvimento sociocognitivo, com influências piagetianas); de estabelecer interação entre diferentes agentes de fala (o que caracteriza as dimensões interativa e linguística com base em Searle e Austin) e, finalmente, de potencializar ao longo da vida os processos de desenvolvimento moral, de uma ação heteronômica crítica para uma ação autônoma crítica-reflexiva em seu aporte socioindividual (o que traz contribuições marxianas e, principalmente, de Kohlberg e de Piaget com as superações neomarxistas propostas por Habermas). Entendemos democracia radical como processo de comunicação política que se desenvolve com ausência de violência numa moldura argumentativa, na qual são contemplados tanto o dissenso quanto o consenso. Nesse processo, são levantadas pretensões de verdade. A condição que lhe dá origem ocorre com um desenvolvimento responsável e compartilhado pelas perspectivas do “eu”, do “tu” e da construção do “outro” qualitativamente diferenciada. O processo de busca perene e radical da verdade dos fatos, da adequação das normas e da veracidade do locutor pode ser questionado, exigindo validação intersubjetivamente estabelecida e deflagrando a necessidade de processualizar a legitimidade. Por sua vez, este questionar-se exige a construção do que é denominado como “eu competente” (Habermas 1989, 1990a) em uma perspectiva radicalmente democrática. Representa uma luta cotidiana de conquista que só se substantiva em uma clivagem de argumentação livre de coerção, com transparência, com uso de espaços públicos e de campos de ressonância destes espaços e processos (Habermas 1990a, 1991). Espaço público refere-se à dimensão de transparência (Habermas 1989) e de ressonância das tematizações e das argumentações, tanto dos meios quanto dos fins da prática social, quando esses temas não forem considerados legítimos em sua autenticidade, verdade e justiça (Habermas 1991). Transformação socioindividual ocorre a cada momento do cotidiano à medida que se configurar a alteração qualitativa do real quanto ao significado e à legitimidade das vivências, dos fatos e das normas que estão sendo tematizados e, nestas condições, negociados, renegociados, alterados e reinstaurados num processo intersubjetivo argumentativamente estabelecido. Crítica dialética e argumentativa, em nossa pretensão, é garantida somente se nela preponderar a dimensão na qual o criticado não se sente oprimido, persuadido, coagido, cooptado, mas liberto para argumentar com seus pares. Desvelando a dimensão do nexo teórico-prático, categoria fundamental do paradigma Habermas propõe, em sua análise de uma teoria crítica de sociedade (seja tanto do capitalismo como do socialismo burocrático), uma ruptura paradigmática entre lógicas (Habermas 1982, 1987, 1988), conforme análise em trabalho anterior (Medeiros 1994), ao lidar com os nexos entre “interesses e conhecimentos” como determinadores e desveladores de racionalidades. Opera, neste sentido, “com nexos entre teoria e prática como expressão de racionalidades” (Medeiros 1994), fundadas em um processo de permanente reflexão entre o que propugnamos como teoria e o que executamos como prática. Tal ação desvela uma outra lógica, que denominamos como “lógica interna”, assumindo seu critério de verdade com base na lógica que impera em nossa prática (Austin 1992; Habermas 1993). Isto significa, em outras palavras, que uma intenção emancipatória só o será realmente quando cumprir, na prática (e não só na teoria), seus supostos. Este foi o pressuposto perseguido em todo o trabalho de construção e reconstrução do paradigma de avaliação no decorrer da pesquisa que tratou da figura concreta do especialista em educação. Da mesma forma, também, influenciou a perspectiva já difundida por Habermas (1987) e Matos (1989) de que, quando se estuda um objeto particular (em nosso caso, o próprio curso), procura-se vê-lo não como um sistema estabelecido, mas como um produto histórico do passado e como aspiração de realizações no futuro. Não se reduz a uma autocrítica interna: a crítica passa, então, a ser o elemento que permeia o processo de conhecimento, não somente pondo em questão uma hipótese explicativa ou transformadora de um problema, mas suscitando uma atitude diante do conhecimento, como tal, em sua totalidade (na qual incluímos todos nós), cujo objeto e resultado são permanentemente questionados. Essa forma específica de interação caracteriza-se pela presença de uma multiplicidade de interlocutores que buscam, juntos, pelo argumento, tornar transparentes os contextos internos e externos de dominação, questionando meios e fins que se prestem a esta dominação. O processo avaliativo, longe de constituir-se numa busca de verdades absolutas, caracteriza-se pela consideração de todas as razões que justifiquem as pretensões de verdade levantadas pelos participantes, relativas a qualquer dimensão factual, de vivência ou de norma do objeto construído na avaliação. Visa, portanto, a um mundo legitimado pela própria dinâmica de busca de verdades. Fica claro que a reflexão crítica só é emancipatória quando feita por meio de atos de fala dirigidos ao entendimento, conforme vivenciamos em diferenciados contextos de construção dos objetos de pesquisa (Medeiros, Colla e Martins 1993; Klein, Lovatel e Medeiros 1993; Medeiros 1994). A distinção entre crítica dogmática – que oprime a quem é criticado – e crítica dialética – que liberta a quem critica e a quem é criticado – pareceu-nos fundamental para a compreensão de uma participação verdadeiramente libertadora. Enquanto a crítica dogmática procura impor ao que é criticado a própria visão, sempre exterior ao objeto criticado, a crítica dialética debruça-se sobre o que vai ser criticado e recebe do objeto, no momento da crítica, impulsos de pensamento que nascem precisamente das brechas e contradições. Aos olhos da crítica dialética, as contradições não constituem indícios de fraqueza do pensamento do autor tratado, mas indicadores de um determinado problema que ainda não foi resolvido definitivamente ou que está encoberto. (Siebeneichler 1989, p. 27) É uma crítica que, longe de oprimir o que é criticado, consiste numa ajuda, num enfrentamento democrático, visando construir argumentos e explicações para facilitar a compreensão e a transformação da realidade, por meio de um movimento dialógico. A crítica dialética pressupõe o exercício de uma racionalidade que busca incessantemente, num movimento de ir e vir, de negar e afirmar, de argumentar e contra-argumentar, a verdade das proposições, a autenticidade subjetiva e a correção de normas. Difere da racionalidade cujas medidas de critérios de verdade estão associadas ao conhecimento de objetos e ao domínio sobre estes objetos. E, neste sentido, usar um ou outro tipo de racionalidade nas ações humanas não é indiferente para o benefício social das ações dos especialistas-supervisores nas escolas. Segundo Habermas (1987 e 1988), as racionalidades apresentam-se como ações orientadas ao êxito e como ações comunicativas. Denomina de instrumental uma ação orientada ao êxito, quando a consideramos sob o aspecto de observância a regras de ação e avaliamos o grau de eficácia da intervenção em um estado físico; em troca, denominamos estratégicas a uma ação orientada ao êxito, quando a consideramos sob o aspecto da observância de regras de eleição racional e avaliamos o grau de eficácia no intento de influir sobre as decisões de um oponente racional. As ações instrumentais podem estar associadas às interações sociais; as ações estratégicas são ações sociais. (Habermas 1988, pp. 384-385) Seria, nas suas devidas proporções, o questionamento de Rouanet (1987, p. 158) sobre o quetem sido feito para legitimar um sistema injusto, quando se esgotou o estoque de legitimação disponível – as de baixo, vindas do mercado, as de cima, vindas da tradição. A solução é transformar medidas práticas em medidas técnicas, apresentar as tarefas do Estado como tarefas prioritariamente administrativas, sujeitas a regras que não precisam de qualquer justificação senão a sua [suposta] própria eficácia, e não normas, que exigiriam uma tematização inconveniente, que acabaria por tornar transparentes as estruturas de dominação, como testamos em pesquisa sobre autonomia, educação ambiental e consciência moral (Medeiros, Biaggio, Ribeiro e Kronbauer 1985). Assim, ficava claro para nós que o nexo entre teoria e prática evidenciava a presença de uma outra lógica fundada numa relação com o que fazemos e muito menos com o discurso[23] (empregado neste momento em um sentido não habermasiano) que supomos ou desejamos defender. Neste ponto, Guattari (1986) apresenta uma posição semelhante à de Habermas, ao defender a ideia de que podemos apresentar uma postura democrática e progressista, mas sermos, na verdade, fascistas em nossa prática. Para os dois, o fazer seria a autenticação de nosso real pensar e de nossos desejos. Como defende Austin (1992), somos o que fazemos e não o que dizemos que desejamos fazer. Repetindo, esta condição é determinante para reafirmar que o uso de uma ou outra racionalidade não é indiferente ao benefício social. Dessa forma, o processo avaliativo, por nós construído na pesquisa, tem como pressupostos teórico-metodológicos princípios habermasianos, fundados em: (1) busca de uma comunidade de comunicação com o intuito de tematizar, questionar vivências, fatos e/ou normas na perspectiva de atos de fala (verbais e não-verbais) que incluam o “eu”, o “tu” e o “outro”; (2) inclusão de “todos e de cada um” em espaços públicos, como condição de construção, consolidação e aperfeiçoamento da radicalidade do processo democrático; (3) aceitação dos contrários e da diferença no espaço público, de transparência, visando ao embate no uso do conhecimento/tematização das verdades; (4) valor do discurso argumentativo e da não-violência, mesmo que simbólica; (5) desvelamento ideológico das contradições e da “lógica interna” no uso do conhecimento, desocultando os reais interesses e, neste processo, o desocultamento do ilegítimo, pelas suas dimensões de inautenticidade/autenticidade, verdade/inverdade, justo/injusto; (6) assunção da reflexão não como monólogo reflexivo, mas como processo que se instaura com o outro, numa ação descentrada, intersubjetiva; (7) crítica dialética em oposição à crítica dogmática; (8) condição da construção socioindividual da liberdade como mediadora e resultante de um processo emancipatório, autônomo, crítico e reflexivo, construindo uma sociedade processualisticamente mais legítima. (Klein, Lovatel e Medeiros 1993, p. 113) O processo de pesquisa como imanente ao processo avaliativo emancipatório Enfrentando o processo de construção de uma avaliação emancipatória na fronteira demarcada pela construção radical da democracia em sua vontade coletiva (Habermas 1988, 1990a, 1991), buscamos analisar as possibilidades de ação no mundo do sistema, tendo como ênfase os valores e a lógica do mundo vivido. É pressuposto que as ações dominadas pelo mundo do sistema, que envolvem o Estado e a economia, assumem a lógica e/ou racionalidade do capital, do lucro, do poder, do domínio, não abrindo perspectivas naturais para o exercício da ação comunicativa. Deste “mundo” fazem parte, quase sempre, as ações técnico-instrumentais e as ações estratégicas. O mundo vivido abrange a ciência, a moral e a arte, em suas essências, sendo dele a possibilidade de uma ação comunicativa, única capaz de abrir perspectivas à construção intersubjetiva da liberdade e da autonomia (Habermas 1988, 1990a; Klein, Lovatel e Medeiros 1993). Por sua vez, partindo da interdependência destes dois mundos na sociedade concreta e historicamente situada, procuramos usar do conhecimento na avaliação e na construção/reconstrução de um curso de especialização para habilitação de especialistas em educação em um processo interativo entre teoria e prática. O tripé “processo dialógico, ação administrativa e construção/vivência de um processo avaliativo”, presente na pesquisa supracitada, é assumido como essencialmente político, uma vez que pressupõe uma modalidade de ação caracterizada pelo discurso argumentativo. Esse processo discursivo objetiva, reflexivamente, examinar normas, fatos e/ou vivências, discuti-los, revê-los, refutá-los, desde que buscando a emergência de espaços públicos com base nessas ações, inclusive com a reinstauração desses fatos ou normas em novas bases argumentativamente estabelecidas. Meios e fins são desvelados ideologicamente na medida em que são questionados em suas pretensões de verdade, isto é, na medida em que não sejam considerados legítimos. Qualquer verdade merece ser encarada como falível, seja expressa no campo das esferas das vivências como verdade subjetiva, dos fatos como verdades objetivas, ou da esfera das normas como verdades sociais; qualquer sujeito, pela condição de simetria de fala, qualifica-se para fazer valer o processo de argumentação, como base para a falibilidade das verdades. A ausência de violência simbólica e a presença da moldura argumentativa são condições mínimas para a existência dessa comunicação política, base da ação democrática e emancipatória (Habermas 1993). Assim, emancipação, reflexão crítica e desvelamento ideológico estão indissociavelmente ligados, expressando nexos entre teoria e prática. Estes três processos manifestam-se via atos de fala que se configuram como unidades de análise para o entendimento do “estado de coisas” e a possibilidade de construção de espaços públicos, por sua natureza transparentes e democráticos. É o ato de fala que possibilita a ação comunicativa entre sujeitos que se relacionam, sujeitos capazes de falar e de agir, definido este ato como “a menor sequência verbal nas emissões de um falante em um contexto de comunicação, que resulta tanto inteligível como aceitável para, pelo menos, outro sujeito capaz de linguagem e ação” (Habermas 1988, p. 172). Esses atos de fala pressupõem critérios de argumentação discursiva, implicando uma distribuição simétrica de chances de prática da palavra que se fundam em cinco postulados, como bases para o processo democrático e, consequentemente, para o processo avaliativo emancipatório: (1) postulado de igualdade/simetria comunicativa: todos os possíveis participantes do discurso argumentativo necessitam de igual chance para usar atos de fala comunicativos; (2) postulado de igualdade de fala: todos os participantes do discurso têm a mesma chance de proceder a interpretações, fazer asserções, recomendações, explicações, justificativas, bem como problematizar pretensões de validade; (3) postulado de veracidade e sinceridade: os falantes aceitos no discurso necessitam ser autênticos em suas relações consigo mesmos e com os demais, tornando-as transparentes aos demais; (4) postulado de verdade: os falantes praticantes do discurso argumentativo têm a mesma chance de utilizar atos de fala capazes de expressar ideias, conhecimentos, fatos que sejam verdadeiros; (5) postulado de correção das normas: no discurso, os agentes têm igual chance de empregar atos de fala que expressem opor-se, permitir e proibir, fazer e retirar promessas que podem ser justas. A ação da pesquisa sobre especialistas em educação orientada nesta direção traz em seu aporte a valoração das ações que possam promover o entendimento e a construção de uma nova realidade, com apoio numa relação intersubjetiva de enfrentamentos de dissensos e de pontos comuns, visando alcançar níveis de consenso racional e dialeticamente determinados em sua dinâmica e em suas possibilidades, uma vez que: vistos na perspectiva dos participantes, os dois mecanismos, o do entendimento motivador de convicção e o de influenciação (grifodo autor) via coerção, coação, persuasão, que induz o comportamento, excluem-se mutuamente. Ações da fala não podem ser realizadas com a dupla intenção de chegar a um acordo com um destinatário sobre algo e, ao mesmo tempo, produzir algo nele, de modo causal (grifo do autor). Na perspectiva de falantes e ouvintes, um acordo não pode ser imposto de fora e nem ser forçado por uma das partes – seja através da intervenção direta na situação da ação [interesse técnico-instrumental, inclusão nossa], seja, indiretamente, através de uma influência calculada sobre os enfoques proposicionais de um oponente [interesse estratégico, inclusão nossa]. Aquilo que se obtém visivelmente através de gratificações ou ameaças, sugestão ou engano, não pode valer intersubjetivamente como acordo, pois tal intervenção fere as condições sob as quais as forças ilocucionárias [interesse crítico- emancipatório, inclusão nossa] despertam convicções e geram contatos. (Habermas 1990a, pp. 70-71) A proposta pedagógica da construção do paradigma avaliativo, objeto da pesquisa, foi visualizada na sua parcialidade/totalidade, quando temas polêmicos foram tematizados sob óticas diferenciadas, num espaço de não coerção e de não violência.[24] O processo avaliativo foi acontecendo, basicamente, durante discursos argumentativos, nos quais meios e fins foram problematizados e refletidos, sendo colocadas em discussão pretensões de validade, erguidas quanto à autenticidade das vivências subjetivas e à veracidade dos fatos e das normas percebidas como justas e corretas. O desvelamento público ideológico e a tematização das verdades constituem-se, ao mesmo tempo, ideológicos e contraideológicos, capazes de impedir que sujeito e coletivo sejam usados técnica e/ou estrategicamente. Como já afirmamos (Klein, Lovatel e Medeiros 1993), é desse processo político que emerge a condição do espaço público, local por excelência da palavra, no qual se supõem estruturas de consciência capazes de transcender seus próprios limites, abrindo-se para os pontos de vista de todos os participantes do processo comunicativo; movimento esse que é concretizado pelo descentramento defendido por Habermas (apoiando-se em Piaget e em Kohlberg), como condição essencial para a ação comunicativa. Este espaço público propicia moldura argumentativa para a pretensão de validade das verdades democraticamente postadas, pois, como afirma Rouanet (1987, p. 306), não se trata, como na cidade-estado, de uma democracia que se define pelo que ela exclui [...] nem como nas democracias populares, de uma fórmula para legitimar a dominação pelos aparelhos. Nem, finalmente, de uma semidemocracia, moldura liberal enquadrando todos os autoritarismos [...]. É uma democracia capaz de assegurar, no sentido mais preciso, a liberdade de opinião, fórmula consagrada que agora recebe uma significação absolutamente literal. Se a opinião é a essência da democracia, esta é essencial para assegurar a opinião. A democracia não é o reino da opinião verídica, mas da opinião tout court; cenário em que se encontram todos os interlocutores, e que proporciona as condições formais para que os interesses gerais, confrontando-se com os particulares, sejam capazes de produzir opiniões verdadeiras. A conceptualização teórico-prática do educador-especialista construída no contexto concreto do paradigma Como parte do trabalho de pesquisa sentíamos a necessidade, no projeto referido, de redefinir a concepção do especialista em educação, ampliando-a em horizontes teórico-práticos mais esclarecedores e como resultado da ação individual e coletiva (Klein, Lovatel e Medeiros 1993). A ideia refletida nessa concepção-ação nasceu associada à construção do paradigma avaliativo emancipatório. Apoiando-se na teoria habermasiana como suporte ao processo avaliativo, a equipe de pesquisa refletiu sobre a possibilidade de, utilizando-se de pressupostos e conceitos desta teoria, ampliar e redefinir do conceito à ação do especialista. Para tanto, seguiu pelo caminho do desdobramento dos conceitos de emancipação e autonomia que estavam associadas à nossa crença e à ideia defendida por Castoriadis (1985) de que “o especialista só tem sentido se nas suas ações estiverem implícitas as dimensões de cogestão, de respeito ao outro e da busca de autonomia”. Como bem definiu esse autor (Castoriadis 1985), a autonomia só o é, se nela estiverem contemplados cada um e todos os sujeitos, processo no qual o outro não é visto como um objeto da engrenagem social. Da mesma forma, Habermas (1990b), ao trazer a noção de emancipação e autonomia, deixa margens para trabalhar a figura do especialista vinculada a dimensões de ações intersubjetivas, livres de coerção, persuasão ou dogmatização. De qualquer maneira, os dois autores concordam que a práxis tem em vista promover a autonomia da qual nasceu, implicando em que o que se pretende atingir (o desenvolvimento da autonomia) está em estreita relação com o meio para o atingir (o exercício da autonomia) e, neste caso, o exame depende de como se operam a prática e o desvelamento do outro. (Castoriadis 1975, p. 129, apud Habermas 1990b, p. 301) Como já afirmamos no projeto (Klein, Lovatel e Medeiros 1993), a ideia de um especialista/educador, cujas ações devem ser de respeito ao outro e de busca de autonomia, fez-nos pensar num sujeito que pode transformar relações que são, tradicionalmente, de poder e de domínio – com verdades impostas e/ou inquestionáveis – em relações de entendimento sobre verdades do mundo em sua falibilidade e processualidade intersubjetiva. Acreditamos ser a racionalidade usada pelos sujeitos na busca dessas verdades o que possibilita uma outra situação. Se a busca de verdades sobre o mundo contrapuser homem e mundo, homem e outros homens, abrem-se possibilidades de controle de um homem sobre outro homem. Nesse contexto, supostamente, o sujeito aparece como fonte de determinação de toda a realidade. Se, numa perspectiva de concepção dialética de mundo, a busca de verdades for feita através da formação radical de vontade, na conexão entre sujeito e mundo, entre sujeitos e outros sujeitos, através da crítica e da reflexão intersubjetiva, criam-se condições para o desvelamento das ilegitimidades, sem se cair no funcionalismo consensual, no denominado pessimismo dos primeiros frankfurteanos ou no determinismo histórico do marxismo burocrático (Hobsbaum 1992; Habermas 1992). A obra de Jürgen Habermas ofereceu-nos a possibilidade do salto qualitativo da razão crítica para uma razão comunicativa intersubjetiva. Com base nesse conceito de razão, são racionais, como afirmamos ao longo do texto, tanto as proposições que correspondem à verdade objetiva dos fatos, como as que forem validadas no processo argumentativo em que o consenso for alcançado sem deformações internas nem externas, invocando pretensões de validade com relação a três tipos de proposições: as que se referem ao mundo objetivo das coisas, ao mundo social das normas e ao mundo subjetivo das vivências e das emoções. Como afirma o autor (Rouanet 1987), o sujeito envolvido na comunidade de comunicação está alegando que suas afirmações sobre fatos são verdadeiras, que as normas que propõe são justas e que a expressão de seus sentimentos é veraz. Estas afirmações podem ser aceitas ou contra-argumentadas até a possibilidade de um consenso fundado neste mesmo processo argumentativo, ao que Habermas (1991) denomina de ética discursiva, construída com pressupostos de não violência física ou simbólica. No mesmo sentido, Oliveira (1986, p. 11) afirma que: reconhecer alguém como membro de uma comunidade de argumentação significa reconhecê-lo em sua autonomia inalienável, portanto, em sua liberdade originária. Daí a inconciliabilidade entre argumentação e repressão. Dessa forma, a racionalidade empregada comporta conotações de força não coercitivamente unificadoras, geradoras de consenso, de um discurso, cujos participantes ultrapassam suas opiniões, a princípio limitadas subjetivamente, a favor de um acordo racionalmentemotivado. A razão comunicativa expressa-se num entendimento descentrado do mundo, capaz de transformar o contexto pela transformação do sujeito em intersujeito. Isso se concretiza quando, numa comunidade de comunicação, os consensos transformadores derivam de críticas dialéticas que, diferentemente das críticas dogmáticas, não destroem o que é criticado (Habermas 1990a). Delineou-se, assim, para nós (Klein, Lovatel e Medeiros 1993), o especialista/educador/transformador que buscamos construir na e com a prática: um sujeito comprometido com a crítica dialética, capaz de não só “pensar por si mesmo” mas de “pensar o pensamento”, além de “pensar com o outro” reflexivamente, capaz de falar e de agir envolvendo as dimensões moral, linguística e interativa, construindo socioindividualmente a liberdade. Essa competência comunicativa, assegurada pelo plano intersubjetivo da ação e da linguagem, permite que os sujeitos, em seu discurso, superem a heteronomia imposta pelo concreto histórico socialmente instaurado, através do questionamento das pretensões de validade geralmente presentes na linguagem institucional. É o que denominamos como a possibilidade de “superação de contextos normativamente assegurados, por contextos comunicativamente obtidos”. Assim, os interesses condutores do conhecimento que orientam, no caso, a ação supervisora, no desenvolvimento da prática pedagógica, são aqueles comprometidos com a transformação social, construídos via ação comunicativa, através da qual os fatos, as normas e as vivências são constantemente submetidos a questionamentos e críticas, por meio de processos argumentativos. Reafirmamos (Medeiros 1993) que essa transformação de fundo a que nos propusemos representa o que Habermas defende como a noção do “eu competente”, superadas as contradições presentes nos atributos sistêmicos, funcionalistas ou behavioristas, já atribuídos ao termo “competência”. Retoma, nesses termos, a defesa apresentada por Freitag (1990, p. 24) como instando ser esse o Telos de qualquer ação educativa: todo esforço pedagógico pode e deve concentrar-se em permitir o desenvolvimento de todas as competências do “eu” (cognitiva, moral, lingüística e interativa). Todo o esforço deve concentrar-se em assegurar uma competência interativa cada vez maior dos indivíduos, ampliando o seu grau de liberdade de opiniões de fatos, normas legítimas de normas absurdas, mentiras de verdades. Somente assim teremos adultos psiquicamente maduros que saibam distinguir seus desejos e projeções (das possibilidades de satisfação individual e coletiva), adultos capazes de utilizar racionalmente os recursos da natureza, cidadãos capazes de reorganizar sua sociedade em bases justas e igualitárias. Graças a essas competências, os sujeitos constroem condições de reconstruir as leis que regem o mundo por meio da busca argumentativa e processual da verdade. São sujeitos que não se conformam com o sistema de normas que vigora na sociedade, tendo condições argumentativas de questioná-lo, buscando, no interior de uma ética discursiva, novos princípios normativos para a ação individual e coletiva, à base do melhor argumento. Em resumo, esse arriscar-se num jogo dialético de verdades falíveis em seus meios e em seus fins, consubstancia a luta pela superação processualística de contextos normativamente assegurados (e pouco questionados) por contextos argumentativamente obtidos, numa ação permanente de construção intersubjetiva de espaços públicos de liberdade, que abrem perspectivas para a processualidade da ação cidadã. À guisa de conclusão: Lições que emergiram da construção crítica do paradigma de avaliação emancipatório e a ação supervisora Em resumo, no processo de pesquisa trabalhamos com quatro grandes objetivos que contemplaram: o acompanhamento e a avaliação do curso implementado; a análise da proposta pedagógica e seu nexo com a prática; a análise do currículo em termos da formação do especialista e a “formação radical da vontade” democraticamente instaurada; a testagem de um paradigma de avaliação que possibilitasse a emergência de ações emancipatórias socioindividualmente construídas, sendo sobre este último objetivo que nos debruçamos na presente reflexão. Uma das lições que tiramos de um processo vivenciado ao longo do curso avaliado foi a de que o processo de democratização qualificada e a instauração de um processo emancipatório e de autonomia reflexiva e socioindividual (Habermas 1990b; Guattari e Negri 1987; Castoriadis 1985) se dão, uma vez que exista um nexo entre os pesquisadores, os professores, os alunos e um nexo entre a teoria e a prática de cada um. Assim, fez-se necessário que o desejado como parte do paradigma avaliativo fosse, também, parte de nossa prática cotidiana. Isso significa que não podemos apresentar uma fala ou um discurso, em seu sentido lato, se não o mantivermos na prática; neste caso, estaremos em uma outra lógica, uma lógica interna, manifestando nosso real nexo de ação. Significa, também, que não podemos propor uma ruptura em direção à transformação emancipatória, se nela não estivermos imersos, indicando a coerência entre o pensar e o dizer/fazer. A tematização de fatos, de vivências e/ou de normas necessita ser constante em nossas ações, assumindo-se nas ações a proposta da falibilidade da verdade (Habermas 1988). Da mesma forma, tivemos, constantemente, presente que a lógica e a verdade não se instauram no discurso (do que é falado), mas na prática do dia a dia. Tal pressuposto auxiliou a analisar nossa própria prática, a da instituição como um todo, a dos alunos e dos professores em relação à proposta do curso; permitiu que novas verdades, argumentativamente estruturadas, fossem criadas, negociadas, renegociadas e reinstauradas, no que se refere tanto à proposta sociopedagógica do curso, como ao redimensionamento da figura do especialista/educador/transformador e à ação cotidiana dos alunos em sua práticas como profissionais. Além disso, o paradigma auxiliou a que professores, alunos/especialistas, a administração, a coordenação e os pesquisadores desenvolvessem uma estrutura argumentativa, resgatando dimensões da cidadania e do processo de legitimação do real em sua concretude. Referências bibliográficas AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. CASTORIADIS, Cornelius. A experiência do movimento operário. São Paulo: Brasiliense, 1985. FLICKINGER, Hans-Georg e NEUSER, Wolfgang. Teoria de auto-organização. As raízes da interpretação construtiva do conhecimento. Porto Alegre: Edipucrs, 1984. FREITAG, Bárbara. Psicologia genética e teoria crítica em Piaget e Habermas: Uma síntese. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 1990. GUATTARI, Felix e NEGRI, Toni. Novos espaços de liberdade. Coimbra: Centela, 1987. GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. 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Esta discussão, na América Latina, se faz especialmente necessária, considerando a importância do movimento de emancipação social. E o“especialista” supervisor, como educador e profissional, tem o seu papel estreitamente vinculado e comprometido com este movimento. Mary Rangel Ao refletir sobre o supervisor, como “especialista” em educação na América Latina, as questões que se apresentam são muitas e complexas. Pretendendo-se pontuar apenas alguns aspectos relativos ao papel “supervisor”, observam-se elementos conceituais, a discussão do “especialista” e das “especialidades” pedagógicas, a questão do currículo, como um dos objetos de trabalho da supervisão, e a importância da pesquisa, com atenção às possíveis contribuições da representação social. Todos esses aspectos adquirem um sentido particular na América Latina, notando-se a importância do momento histórico de emancipação sociocultural, política e econômica. A consciência da necessidade do movimento emancipatório (da superação da dependência de grupos e países hegemônicos) é condição e qualidade de ser e estar educador (em suas diversas funções, incluindo, portanto, a supervisão) na América Latina. É este sentido de consciência que preside todas as considerações deste texto, que se inicia pelos elementos conceituais da supervisão. Supervisão: Elementos conceituais A consideração ao conceito de “supervisão” incorpora elementos da função e do trabalho do supervisor, sublinhando-se o seu papel de educador e, portanto, de profissional comprometido com o significado e as implicações sociopolíticas da educação. “Supervisão” encaminha o sentido de “visão-sobre”, necessária à percepção ampla dos aspectos e dos componentes das atividades supervisionadas. Tratando-se das atividades escolares e da supervisão pedagógica (aqui entendida como supervisão que, na escola, se faz no âmbito do processo de ensino- aprendizagem), a “visão-sobre” alcança os fatores inerentes às relações entre alunos, professores, conteúdos, métodos e contexto do ensino. As relações que se estabelecem no processo de ensino-aprendizagem convocam a atenção dos educadores, pela importância social do conhecimento – objeto desse processo – e dos sujeitos a quem esse conhecimento se destina. No caso dos educadores-supervisores, pela especificidade de seu trabalho, solicita-se uma atenção especial às oportunidades de estudo (de reflexão teórico-prática) e de coordenação (organização comum do trabalho), no interesse de que as decisões e as ações referidas ao ato de ensinar e aprender se façam de modo fundamentado e articulado. Com referência ao estudo, o supervisor apresenta-se, então, como um líder (reconhecido pela competência, pela identificação com os interesses coletivos) que mobiliza, que dinamiza encontros para discussão e atualização teórica das práticas. E, entre os vários objetivos desta “mobilização” ao estudo, destacam-se, novamente, a consciência do propósito das ações e a ampliação (político-social) dos princípios e dos conceitos que as orientam. Desse modo, evitam-se a rotinização e a mecanização das ações, entendendo-se que o processo de ensino-aprendizagem é contextualizado e socialmente comprometido. Assim, ao se “estudar” este processo, observam-se as suas implicações, os seus “porquês” e para quem. Nos “porquês” e para quem se realiza o ensino-aprendizagem na América Latina, sublinham-se as necessidades das camadas majoritárias da população e a estreita – a íntima – relação entre conhecimento, consciência da realidade e condições de emancipação. O estudo do ato de ensinar e aprender (mobilizado, dinamizado, liderado pelo educador-supervisor) leva, então, em conta o compromisso de garantir o alcance do conhecimento pelo aluno (e também pelo professor), entendendo-se a importância desse conhecimento para a prática social. E porque a prática social se impõe como origem e finalidade da prática pedagógica, o estudo (as oportunidades de encontros, neste sentido, “coordenados” e mobilizados pelo supervisor) encaminha-se na direção de compreender e praticar o ensino, no interesse de assegurar a aprendizagem do conhecimento crítico-social. E os conceitos serão, portanto, ampliados. A técnica – o “como fazer” o ensino- aprendizagem – adquire significado pela vinculação aos seus motivos sociais. Assim, articulam-se competência e consciência, alargando as visões (e ações) do processo de ensino-aprendizagem. Pela iniciativa de abrir espaço a discussões, ao estudo, e pela liderança consciente, o supervisor traz contribuições relevantes na perspectiva da relação educação-sociedade. Na relação entre educação e sociedade é preciso notar não só os compromissos da educação (com o conhecimento e a sua finalidade crítico-social), como também os compromissos do Estado com a educação. É este mais um sentido, uma direção, um motivo da liderança do supervisor na América Latina. Daquele que se propõe (conceitualmente) à visão-sobre, à coordenação (“ordenação” comum, coletiva, do trabalho, observando as articulações das diversas atividades e a consciência dos seus fins) espera-se, também, que lidere as reivindicações do direito da educação e dos educadores ao dever (que se realiza no apoio, nos recursos, nas prioridades) do Estado. A qualificação do trabalho educativo e dos profissionais que o realizam inclui-se, então, como meta e motivação da liderança que o supervisor assume na especificidade (e na competência e no compromisso) de seu papel. Assim, quando se discute a liderança na função supervisora, é menos importante configurar “tipos” de líderes (“carismáticos”, ou não) ou “habilidades” de relações humanas (interpessoais) do que o sentido, a direção, o significado dessa liderança. Volta-se, portanto, ao objetivo de ampliação (sociopolítica) de conceitos, aplicando-a à compreensão do “líder”, que se faz pela competência e pelo compromisso com os interesses coletivos. Confirmam-se, então, a ideia e o princípio de que o supervisor não é um “técnico” encarregado da eficiência do trabalho e, muito menos, um “controlador” de “produção”; sua função e seu papel assumem uma posição social e politicamente maior, de líder, de coordenador, que estimulao grupo à compreensão – contextualizada e crítica – de suas ações e, também, de seus direitos. É com este conceito do papel supervisor que se chega à discussão do significado de “especialista” e da “especialidade” pedagógica. O “especialista” e a “especialidade pedagógica” Na literatura educacional produzida ou divulgada na América Latina é possível encontrar, com frequência, questionamentos ao “especialista” e às “especialidades pedagógicas”, remetendo-os e fundamentando-os na crítica à divisão do trabalho, que, por sua vez, é remetida à crítica à divisão de classes. Entretanto (mais uma vez recorrendo-se a conceitos), não se podem associar, forçosamente, a condição (e função) de “especialista” e as “especialidades pedagógicas” às “divisões” ou “elitizações” que prejudicam o sentido comum e coletivo do trabalho. No caso do especialista em educação, é interessante observar que essa condição não se aplica, apenas, a quem exerce funções como as de administração, orientação educacional ou supervisão. Na verdade, são também “especialistas” (no sentido de quem domina, especificamente, uma determinada área de trabalho) os professores de modo geral, no âmbito de seus conteúdos específicos. As propostas em favor dos “generalistas” encontram obstáculos na realidade da evolução e da especialização do conhecimento, sua produção, suas formas de aplicação, em todos os campos. Não se podem negar as especificidades do saber e do trabalho. Contudo, “especificidade” não significa, necessariamente, desarticulação, até porque os fatos (e atos) “específicos” inserem-se em circunstâncias e situações mais amplas; é o que se entende pelo princípio da relação entre especificidade e totalidade. Levando-se essas considerações à supervisão (produção do conhecimento e práticas) reafirma-se a ideia de que a especialidade refere-se à especificidade e não à divisão do trabalho. Um dos argumentos a esta afirmação encontra-se no fato de que a “co-ordenação” (lembrando-se, novamente, o sentido de organização em comum e articulação do trabalho) é uma das “especificidades” da função supervisora. E a “co-ordenação” é uma necessidade do trabalho; esta necessidade (aplicada à educação e à escola) permite observar que, mesmo que se eliminasse a “figura” do supervisor “especialista”, não se poderia prescindir da coordenação, como serviço que garanta as articulações indispensáveis ao ensino-aprendizagem. As articulações no processo de ensino-aprendizagem são necessárias às decisões (coletivas) sobre programas, material didático, procedimentos de ensino, avaliação, recuperação e contextualização do processo, tanto quanto ao estudo (à discussão e à consciência) de seus fundamentos. Pode-se, então, reafirmar que a “especificidade” da função supervisora não implica “divisões” que dissociam, desarticulam ou elitizam as atividades pedagógicas; ao contrário, a ação (específica) do supervisor se faz no sentido de fortalecer os elos entre as ações e os sujeitos que as realizam. Esses elos também se destacam, quando se pensa o currículo como um dos objetos de trabalho (e estudo) da supervisão. O currículo como objeto de trabalho da supervisão Quando se reflete sobre a supervisão e o currículo na América Latina, retorna-se à questão do compromisso dos educadores com a garantia de que as camadas populares alcancem o conhecimento. Observando-se que o conhecimento é a própria substância do currículo, entende- se o valor da participação dos supervisores nas decisões sobre sua constituição, sua prática e sua avaliação nas escolas. Além das determinações normativas (a serem analisadas, discutidas, sujeitas às questões que se apresentam no cotidiano da escola), incluem-se nas atenções dos supervisores a organização e a coordenação de oportunidades em que professores, alunos e pais possam estudar, discutir, avaliar a qualidade do conteúdo e da prática do currículo. Submetem-se, então, às discussões (que podem ser estimuladas e coordenadas pelos supervisores) a oferta de disciplinas, sua posição (e seu interesse) em cada série e em cada nível de escolaridade, sua carga horária, a relação entre o currículo e a realidade dos alunos e da comunidade a que se destina. Ainda na “seara” do currículo – e da ação supervisora – inclui-se a articulação dos diversos setores da escola; é o momento em que as chamadas “especialidades pedagógicas” do currículo – a administração escolar, a orientação educacional, a supervisão – “afinam” seus projetos específicos de trabalho com o projeto maior, da escola, da educação, da sociedade. Esse “afinamento” de propósitos adquire consistência e significado na América Latina pela inserção no projeto mais amplo, de emancipação, de promoção social. E é importante, então, que todas essas questões – da supervisão e do currículo, com atenção à América Latina – constituam-se em objetos de pesquisa e, portanto, em objetos a serem construídos científica e coletivamente. Da importância da pesquisa aos referentes da investigação de representações sociais A supervisão, seus conceitos, seus elementos teórico-práticos e seu papel entre as demais “especialidades” pedagógicas na América Latina merecem e convocam um aprofundamento que estimula e solicita a pesquisa, a construção (científica e coletiva) de seus objetos de conhecimento e trabalho. A pesquisa apresenta-se como uma das alternativas à ampliação do alcance (social, político, histórico) da supervisão e de suas condições, suas circunstâncias e seus compromissos na América Latina. A pesquisa supõe e requer a participação, o envolvimento de todos os sujeitos interessados ou “praticantes” da supervisão: professores, alunos, pais, pessoas da comunidade, “especialistas”, e aqueles que ocupam postos de decisão no sistema oficial da educação ou, ainda, de outras áreas, considerando a abrangência das relações entre a função supervisora e a sociedade. Retornando ao princípio e ao critério de que a prática social é origem e finalidade da prática pedagógica, é interessante notar as possibilidades de contribuição da representação social, como uma das perspectivas teórico- metodológicas da pesquisa em supervisão. A representação social admite uma diversidade de concepções, de acordo com o campo de estudo, a exemplo da psicologia cognitiva, da sociofilosofia marxista, das investigações do imaginário e da psicologia social. Entretanto, especialmente no caso da base marxista, do estudo do imaginário ou da psicologia social, a pesquisa de representações oferece elementos e referentes que podem trazer à construção do conhecimento sobre supervisão informações significativas sobre o pensamento e a conduta dos sujeitos que, direta ou indiretamente, estão envolvidos com a função. As percepções dos sujeitos (de acordo com sua inserção, com seu lugar social, com sua experiência com o ato supervisor) interessam, de modo especial, às pesquisas movidas pela preocupação com o contexto, com as circunstâncias, com os fatos da realidade, com a consistência pedagógica e política da supervisão. Seja na concepção marxista, que associa as representações à ideologia, seja no estudo do imaginário, que procura ir “a fundo” na raiz (etimológica, mitológica) de conceitos, seja na psicologia social, em que se focaliza a representação como conhecimento prático (veiculado por conceitos e imagens que constituem categorias explicativas dos fatos) seja, ainda, pelos processos de conhecimento, investigados na formação de representações, no enfoque da psicologia cognitiva, esta perspectiva de estudo pode contribuir com as produções sobre supervisão e com o aperfeiçoamento de sua inserção na realidade da América Latina. A pesquisa de Santos (1992) exemplifica os subsídios da investigação de representações, como também, pelos seus achados, reforça e ilustra a discussão conceitual com que se introduziu este texto. Em 20 escolas distribuídas, duas a duas, por dez distritos de educação e cultura do município do Rio de Janeiro, foram pesquisadas representações da supervisão (seu papel, sua concepção) formadaspor professores, diretores, supervisores e orientadores educacionais. Na justificativa teórica do estudo incluem-se Araújo (1987) e Silva Junior (1986), quando enfatizam a importância da análise de percepções, conceitos e papéis atribuídos ao supervisor. Na configuração do problema inclui-se o esvaziamento (de fundo político-partidário) da supervisão, ocasionando a redução ou a eliminação (como é o caso dos Centros Integrados de Educação Pública – no Rio de Janeiro) da “categoria” de supervisores. E assim, Santos (1992) entra nas escolas (mesmo nas cinco que, das 20, não possuíam, naquele momento, supervisores) e pergunta sobre o conceito e a imagem do supervisor. Os dados que esse estudo oferece permitem, então, a análise das dimensões da representação do supervisor, tomando-se por base o campo da psicologia social, na linha moscoviciana. Em Moscovici (1978; 1981; 1992; 1994) – aprofundado e confirmado por pesquisadores como Spink (1993), Vala (1993), De Rosa (1993), Duveen (1993), Wagner e Elejabarrieta (1994), e Farr (1991) – as dimensões da representação compõem-se da atitude, da informação e do campo de representação ou imagem. A atitude expressa o julgamento do valor, a posição do sujeito diante do objeto da representação; a informação revela a organização do conhecimento sobre o objeto; o campo de representação remete à ideia de “imagem”, de “modelo social” (Moscovici 1978, p. 69). Tomando-se os achados de Santos (1992), é possível identificar (nas diversas escolas, nos diversos sujeitos) alguns elementos comuns que sublinham o traçado das dimensões da representação do supervisor. Desse modo, a atitude expressa-se por traços de valorização do desempenho: traços que se mostram mesmo na ausência do supervisor, quando, por exemplo, a diretora é compelida a assumir sua função: neste momento, atuando como diretora da escola e sendo obrigada pelas circunstâncias a desenvolver um trabalho específico da supervisão, vejo, mais do que nunca, a sua necessidade... (Diretora de escola pública do município do Rio de Janeiro, apud Santos 1992, p. 136) Buscando-se, na atitude, os aspectos da conduta do supervisor que sustentam a valorização positiva, encontra-se a “co-ordenação” (a organização “com” e, portanto, coletiva do trabalho) a integração (a articulação das especificidades do planos e das ações), o encaminhamento de estudos, através dos quais se estimula a consciência crítica e a ampliação do entendimento (social e pedagógico) dos princípios e dos projetos. Na informação, corroboram-se os aspectos que movem a atitude positiva. E o supervisor é, então, “informado” como aquele que promove um trabalho associativo, procurando trazer a diversidade das disciplinas e suas questões específicas para a discussão do grupo, para o estudo, para espaços comuns de reflexão, indispensáveis a que se partilhem e consolidem os princípios e os projetos. Esses mesmos elementos “afiguram” o supervisor. Nesta “afiguração”, encontram-se imagens que se delineiam por expressões como “elo de ligação”, “colega educador”, “elo integrador”, “formador de laços”, “articulador”, “mobilizador”. Voltando, com os achados de Santos (1992), ao vetor teórico, moscoviciano, da representação, reencontra-se o dado da coerência entre as três dimensões (Moscovici 1978, 1994). A coerência da representação do supervisor revela-se, na investigação de Santos (1992), através das ideias de articulação, coordenação e mobilização. Observando-se que, na representação, as imagens concretizam, ilustram o conceito e “ajudan a que las personas se forjen una visión menos abstrata del objeto representado” (Ibánez 1988, p. 48), compreende-se a importância do significado de “articulador” e “mobilizador” – que se associam a “elos e laços” – como figuras “representativas” do supervisor. As imagens projetam e “retratam”, portanto, a informação na qual se pode perceber que a organização do conhecimento sobre o trabalho supervisor se faz no sentido de associar, de tornar comuns, coletivas, partilhadas, as ações. Na dimensão de atitude revela-se, então, o julgamento positivo do valor e da necessidade da função supervisora. Assim, mesmo considerando os limites da pesquisa de Santos (1992), a teoria das representações na psicologia social leva a considerar a relevância de cada uma das afirmações sobre o supervisor, como resultante de uma formação social, cujo processo inclui a comunicação, a interação, a experiência. Spink (1993) subsidia essa reflexão, observando que “é necessário entender sempre como o pensamento individual se enraíza no social [...] e como um e outro se modificam mutuamente” (p. 4). Pontuando essa mesma questão, Jodelet (1989) esclarece que o social intervém na formação individual da representação de várias maneiras: pelo contexto em que as pessoas se situam, pela comunicação que se estabelece entre elas, pela matriz cultural, pelos valores ligados às posições ou “pertenças” dos sujeitos a grupos com interesses específicos. Essa mesma discussão é feita por Moscovici e Doise (1991) quando tratam “das representações individuais às representações sociais” (pp. 206-212), e retomada por Vala (1993) no questionamento às teorias que ignoram a influência mútua entre contexto social e pensamento individual. A interação e a comunicação social são processos de veiculação e produção (coletivas) de representações. Assim, “as representações sociais são um produto das interações e dos fenômenos de comunicação no interior de um grupo social” e, dessa forma, “refletem as situações desse grupo, os seus projetos, problemas e estratégias” (Vala 1993, p. 7). Chega-se, nesse ponto, à importância da experiência, da vivência cotidiana dos sujeitos, na formação de representações. É com essa compreensão que Moscovici (1978, 1981) fala das representações como conhecimento que as pessoas utilizam no seu dia a dia, referindo-se à “realidade que conhecemos por experiência” (p. 27). Trazendo essas referências teóricas ao estudo de representações da supervisão, reafirma-se a possibilidade de que traga subsídios à investigação de como os sujeitos percebem e conceituam seu papel. A preocupação com o conceito de supervisão – preocupação que se realça em vários estudos, a exemplo do de Mendes (1987), Franz (1990), Pereira (1989) – acentua-se num momento em que se (re)indaga sobre a necessidade de sua presença e sobre a sua importância. Portanto, seja na perspectiva da representação, seja em outras perspectivas teóricas, é relevante procurar na prática, na escola, na comunicação, na experiência, como se revela o trabalho supervisor e, principalmente, como se pode aperfeiçoá-lo. Desse modo, se a opção da pesquisa se der pela ótica da representação social, é preciso firmar o entendimento de que a configuração de representações é um dos meios pelos quais se podem obter elementos à análise crítica e ao avanço de concepções e critérios que orientam as condutas. Essas ponderações sugerem, também, recorrer à discussão do real e do ideal nas representações, ou seja, ao componente de realidade – do que se vivencia, do que se integra às comunicações e às interações – e ao componente de aspiração, ou seja, do que se espera que seja. O que se quer dizer, portanto, é que no “ato de pensamento” pelo qual se representa, mesclam-se o ideal e o real. Esses dois planos da representação esclarecem-se em Moscovici (1978). Reconhece-se o plano ideal, quando o autor observa que “as representações individuais ou sociais fazem com que o mundo seja o que pensamos que ele é ou deve ser” (p. 59). Reconhece-se o plano real, quando Moscovici (1978) assinala que “as representações constituem uma das vias de apreensão do mundo concreto circunscrito em seus alicerces e suas consequências” (p. 44). Jodelet (1989) sustenta essa mesma posição quando assinala que a representação não é “cópia” do real, nem “cópia” do ideal, nem a parte subjetiva do objeto, nem a parte objetiva do sujeito; ela é o processo pelo qual se estabelece sua relação. Nesse mesmo sentido, Vala pontua, nasrepresentações, a “atividade concreta dos grupos sociais” (1986, p. 2) e, portanto, o real, concomitante com o ideal, pelo “fato de as representações incluírem modos desejáveis de ação” (1993, p. 15). Para compreender a concomitância do real e do ideal na formação e na expressão das representações, é preciso também entendê-las como “teorias” destinadas à “explicação e à elaboração do real” (Moscovici 1978, p. 50). No processo de representar, “edifica-se” uma “doutrina”, que permite explicar e prever os atos: Representar não consiste somente em selecionar, completar um ser objetivamente determinado com um suplemento da alma subjetiva. É, de fato, ir mais além, edificar uma doutrina que facilite a tarefa de decifrar, predizer ou antecipar os seus atos. (Moscovici 1978, p. 27) Assim, as “categorias explicativas” do objeto da representação decorrem de “teorias implícitas” sobre esse objeto. Por isso, Vala (1993) refere-se às representações como “teorias sociais práticas”(p. 7) ou “processos através dos quais os indivíduos em interação social constroem teorias sobre os objetos sociais, que tornam viáveis a comunicação e a organização dos comportamentos”(Moscovici apud Vala 1993, p. 2). Trazendo essas referências teóricas à análise dos dados da pesquisa de Santos (1992), observa-se que a “teoria” sobre o supervisor – “teoria” formada na prática, no curso das interações e das comunicações sociais – “explica” seu papel coordenador, integrador, articulador. E se no ato de representar mesclam-se o real (o componente da experiência, do dia a dia, do que se vivencia no concreto das situações) e o ideal (o que se deseja, o que se espera), é possível também acreditar que este “elo de ligação” ou “elo integrador”, ou “formador de laços”, “articulador”, “mobilizador”, ou, ainda, “colega educador”, seja alguém que se revelou na vivência, no convívio, na realidade do trabalho, ou alguém que corresponde às aspirações, à vontade, ao ideal do grupo. Mesmo que se submetam as referências teóricas da representação (que neste estudo se formulam no campo da psicologia social) aos questionamentos oriundos da análise da ideologia, permanecem, nas expressões dos sujeitos – nas suas “teorias explicativas” do papel do supervisor –, sua visão e, na dimensão de atitude, seu sentimento, que, qualificados, trazem informações significativas ao estudo da função supervisora. Todas essas considerações esclarecem e sustentam a observação que se fez ao introduzir este segmento em que se tratou da importância da pesquisa, com atenção aos referentes da investigação de representações, confirmando-se, portanto, suas possibilidades de contribuição, como uma das alternativas teórico- metodológicas de produção do conhecimento sobre o supervisor: uma produção necessária quando se pretende discutir, com fundamento e consistência teórico- prática, a percepção, o conceito, a imagem do supervisor, em contextos específicos como o da América Latina, seus problemas e seus desafios pedagógicos e sociais. Portanto, é com este registro, com este reconhecimento da importância da pesquisa, da produção crítica e contextualizada do conhecimento, notando-se as contribuições da representação social, que se concluem estas considerações sobre o papel do supervisor, como “especialista” em educação na América Latina. Lembrando, entretanto, que um texto traz subsídios quando não se conclui em si mesmo, seja porque retorna à prática, seja porque provoca novas construções teóricas, espera-se que essas reflexões possam acrescentar incentivos à continuidade das discussões sobre o “especialista” supervisor e as solicitações que a realidade latino-americana lhe encaminha. Referências bibliográficas ARAÚJO, H.R. “Formas de poder social atribuídas aos supervisores educacionais das escolas oficiais do 1º grau do município do Rio de Janeiro”. Dissertação de mestrado em Educação. Rio de Janeiro: UFRJ, 1987. DE ROSA, A.S. “Social representations and attitudes problems of coherence between the theoretical definition and procedure of research”. Papers on Social Representations nº 3. Áustria, 1993, v. 2, pp. 178-192. DUVEEN, G. “The development of social representations of gender”. Papers on Social Representations nº 3. Áustria, 1993, v. 2, pp. 171-177. FARR, R.M. “Individualism as a collective representation”. 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Palestra de abertura da 1ª Conferência Internacional de Representação Social. Ravello, 1992. __________. Palestra de encerramento da 2ª Conferência Internacional de Representação Social. Rio de Janeiro, 1994. MOSCOVICI, S. e DOISE, W. Dissensões e consenso: Uma teoria geral das decisões coletivas. Lisboa: Horizonte, 1991. PEREIRA, L.H. da S. Canto de regresso à história da Asseerj. Rio de Janeiro: Asseerj, 1989. SANTOS, A.C. dos. “Representação social da supervisão em escolas municipais do Rio de Janeiro”. Dissertação de mestrado em Educação. Rio de Janeiro: Uerj, 1992. SILVA JÚNIOR, C. Supervisão da educação: Do autoritarismo ingênuo à vontade coletiva. São Paulo: Loyola, 1986. SPINK, M.J. (org.). O conhecimento no cotidiano. As representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1993. VALA, J. “Sobre as representações sociais – Para uma epistemologia do senso comum”. Cadernos de Ciências Sociais. 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Segundo ela, José chegava atrasado quase todas as manhãs, o que lhe parecia desinteresse de sua parte. Seu desinteresse era tal que muitas vezes chegava até a dormir na sala de aula. E – o que considerava mais grave – não fazia os deveres de casa. Embora ela já houvesse chamado “o responsável”, ninguém apareceu. Sem saber o que fazer, buscou o auxílio da orientadora, “especialista” em resolver os problemas dos alunos. Marta, a orientadora educacional, surpreendeu-se, pois, ao chegar à escola, convidara os professores para uma reunião, em que deixara claro, ou pelo menos acreditava ter deixado claro, que o papel da orientação educacional não era mais de “atendimento de caso”, como por tanto tempo fora. Fizera a crítica do papel que a orientação educacional cumprira na manutenção do status quo. Após fazer acrítica teórica de tal ação conservadora, apresentara a nova orientação educacional, comprometida com a construção coletiva de uma escola de qualidade para a classe trabalhadora. Mostrara como e por que a orientação educacional e a supervisão haviam sido criadas, que papel haviam cumprido, e quais os fundamentos teóricos e a ideologia subjacentes às ações dos dois “especialistas”. Recuperara a trajetória desses profissionais, que partiram de uma ação conservadora baseada no psicologismo, no caso da orientação educacional, e no tecnicismo, no caso da supervisão. E, no momento atual, aproximaram-se, atuando, ambos, numa linha sociopolítico-pedagógica. De controladores, o supervisor do trabalho docente e o orientador dos comportamentos punham-se a serviço dos professores e dos alunos, no sentido de que os professores melhor ensinassem para que todos os alunos aprendessem, pois para isso é que há escola. No entanto, apesar do discurso enfático da orientadora, eis que lhe aparecia “um caso” a ser resolvido. Em conflito, Marta pôs-se a pensar sobre o que fazer, pois se nada fizesse, naturalmente cairia no descrédito dos professores. Por outro lado, se se deixasse seduzir pelo apelo da professora, mordendo a isca do “atendimento de caso”, nunca mais sairia das demandas de quem nem sempre sabe como lidar com o que lhe parece “o aluno-problema”. Sem saber o que fazer, a orientadora levou o “problema”, agora problema seu, para ser discutido na reunião de coordenação de orientação educacional, em que todas as orientadoras se reuniam quinzenalmente para trocar experiências, aprendendo umas com as outras e todas com a coordenadora, responsável pelo processo de educação continuada do grupo de orientadoras educacionais do município do Rio de Janeiro. Da reunião saiu, não só com uma ideia, mas com a certeza de que aquelas reuniões eram, como afirmara sua colega, um momento de renovação de esperanças e confiança... assim como uma bola, que se enche de gás nas reuniões e que vai se esvaziando durante os 15 dias de solicitações e desgastes na escola. A ideia que levou consigo foi sugerida por uma de suas colegas orientadoras que, lembrando-se de sua experiência com arte, dera-lhe a ideia de criar um Núcleo de Arte, estratégia para, sem deixar de atender à solicitação da professora ansiosa, não cair na armadilha do “atendimento de caso”. Ao chegar à escola, procurou a diretora e lhe solicitou um espaço para criar o Núcleo de Arte, onde “atenderia as crianças encaminhadas pelas professoras”. Com a aquiescência da diretora, começou a listar o material indispensável para iniciar as atividades. Procurou também parcerias para o trabalho, conseguindo adesão imediata da supervisora, da bibliotecária e da professora de arte. E puseram-se a trabalhar. Com José, vieram outras crianças. E começou o Núcleo de Arte da escola a funcionar, o que veio a provocar significativas mudanças pedagógicas, objetivo maior de Marta. Aliás, ela escrevera em seu diário de campo no dia em que a diretora concordara com sua ideia: O que importa, de fato, não é “resolver o caso encaminhado pela professora”, mas criar na escola um clima de coconstrução, ou melhor, de reorientação curricular. Este é o objetivo maior de meu trabalho – atuar junto com a supervisão, no sentido de provocar a discussão coletiva da prática pedagógica, contribuindo assim para a melhoria da qualidade do trabalho desenvolvido na escola. É destas mudanças que me ponho a falar, já que estou certa de que elas nos darão pistas em relação às possibilidades de uma ação pedagógica conjunta, supervisão e orientação educacional, na escola. O Núcleo de Arte As crianças chegavam ao Núcleo de Arte após o término do horário das aulas, para as do primeiro turno, e antes do início das aulas, para o grupo do segundo turno. Vinham cheias de alegria e encontravam a orientadora, a supervisora, a bibliotecária e a professora de arte, igualmente cheias de entusiasmo pela nova atividade, que começou a despertar a curiosidade de todos na escola. A diretora forneceu o material tradicionalmente considerado “material de arte”, como lápis, pincéis, tintas, tesouras, cola, papel etc. A supervisora e a orientadora mobilizaram os professores e os alunos para que trouxessem “material de sucata”, a se transformar em material de criação. Chamaram também os pais para uma reunião, em que explicaram o tipo de trabalho que realizariam, solicitando sua colaboração. Pediam tudo o que não tivesse uso, pois o aparentemente inútil tornar-se-ia utilíssimo, redefinido que seria no Núcleo de Arte. Foram aparecendo caixas de ovos, copos de iogurte, jornais velhos, caixas de papelão, restos de pano, de lã, de linha, de algodão, lâmpadas queimadas, pilhas velhas, roupas velhas, sapatos velhos, chapéus velhos, e tanta, tanta coisa, que pela variedade desafiava a imaginação das professoras e das crianças para o seu reaproveitamento. Além do material trazido pelas crianças e pelas professoras, acrescido aos materiais comprados pela diretora, foi realizada uma excursão pelo quarteirão em que estava localizada a escola. Desse passeio, foram trazidas novas contribuições: cachos de madeira oferecidos pelo marceneiro da esquina, pedaços de metal oferecidos pelo mecânico da oficina de automóveis da outra esquina, copos e sacos de papel do botequim, folhas secas encontradas na calçada. Esses materiais, e outros que foram sendo anexados posteriormente, constituíram-se no acervo do Núcleo de Arte. O sucesso da excursão fez com que vez por outra o grupo excursionasse pelos arredores da escola, não apenas em busca de novos materiais para o Núcleo de Arte, mas também, em busca de “inspiração”. E, o que é mais importante: algumas professoras, estimuladas pelo resultado da excursão do grupo do Núcleo de Arte, tiveram coragem de ousar sair da sala de aula e ganhar o espaço da rua, transformando-o em espaço pedagógico. As descobertas feitas pelas turmas na rua transformavam-se em conteúdos pedagógicos, enriquecendo os conhecimentos formais, a que em geral as professoras estão submetidas. Abriam-se as portas da escola, ampliava-se o universo cultural de professoras e alunos, enriquecia-se o currículo. Recuperava-se o elo perdido escola-vida. Os ensinamentos sem sentido tornavam-se aprendizagens significativas na unidade dialética teoria e prática. As atividades do Núcleo de Arte passavam por desenho, pintura, recorte, colagem, esculturas, teatro de máscaras, de fantoches, música, e tudo aquilo que surgisse como possibilidade de criação/recriação. Do já-conhecido de alguns, abriam-se para o desconhecido de todos, o que só era possível pelo clima de confiança e de desejo comum que se instalara no grupo. Inicialmente constituído de “crianças-problema” encaminhadas por professoras, o grupo foi se diversificando, rompendo com o estigma da “doença a ser curada”, tornando-se apenas um espaço prazeroso, em que as crianças vinham criar coletivamente, independentemente dos “problemas” que pudessem ter, ou que se acreditava que tivessem. O resultado do trabalho desenvolvido no Núcleo de Arte começou a ser levado para as reuniões pedagógicas promovidas pela supervisora e pela orientadora. As professoras que inicialmente se mostravam curiosas apenas em saber sobre seus alunos foram se interessando pelo trabalho de arte e suas possibilidades pedagógicas. Desdobramentos do trabalho no Núcleo de Arte Por solicitação das professoras, começaram a ser discutidas as potencialidades de um trabalho de arte, seus fundamentos teóricos, metodologias mais adequadas, técnicas de fácil uso, uso de diferentes técnicas com possibilidades diversas. A arte como linguagem expressiva e comunicativa. A arte como enriquecimento à aprendizagem da linguagem escrita. A arte como fonte de prazer. A arte como recurso pedagógico. A arte como conhecimento. À medida que as professoras percebiam mudanças em seus alunos, iam se interessando mais e mais por um trabalho que até um certo momento parecia meio misterioso, ou sem sentido, quem sabe? A frequênciaàs reuniões pedagógicas ampliou-se. As perguntas mudavam de qualidade. De um ingênuo “O que é que vocês descobriram dele?” ou “Você não acha que precisa chamar a mãe para levar esta menina a uma psicóloga?”, avançavam para “Como eu poderia fazer na minha sala de aula para que as crianças se tornassem mais interessadas?” ou “O que posso fazer para tornar a minha prática pedagógica mais criativa?”, chegando a: “Será que vocês me ajudariam a fazer um trabalho mais criativo?” O primeiro pedido de auxílio veio de uma professora da 1ª série e de uma professora da 4ª série. A supervisora foi em auxílio da professora da 1ª série e a orientadora pôs-se à disposição da professora da 4ª série. A supervisora ajudou a professora-alfabetizadora a replanejar seu trabalho, incorporando a literatura e o desenho, a pintura e a modelagem, o recorte e a colagem, a música e o teatro como linguagens em si, e como conteúdos de alfabetização, enriquecendo o processo de aprendizagem da linguagem escrita. Acompanhava a professora diariamente, observava as crianças em interação e em situações de interlocução e de coconstrução, intervinha, participava, sugeria. Ao final de cada aula, discutiam o realizado e planejavam o próximo passo com base nos resultados. Os progressos observados nas crianças encorajavam a professora a ousar mais. O suporte da supervisora dava-lhe mais segurança. Tratava-se, afinal, de uma experiência compartilhada. A professora começou a registrar seu trabalho, e seus registros eram discutidos nas reuniões pedagógicas, o que foi provocando uma saudável emulação entre as professoras-alfabetizadoras. Da tradicional cartilha, as professoras iam se valendo de livros de literatura infantil, de revistas, de histórias em quadrinhos, de jornais e revistas. Instituiu-se a troca de correspondência, e Freinet foi introduzido às professoras que, entusiasmadas, passaram a discuti-lo em suas reuniões quinzenais. De Freinet partiram para Paulo Freire. E as reuniões, de simples trocas de experiências, tornaram-se um grupo de estudo. Novos autores iam sendo introduzidos à medida que se tornavam oportunos para o momento e para os desafios enfrentados pelo grupo. A teoria passava a ter sentido para o grupo, algumas vezes por cumprir uma função explicativa, outras vezes por se tornar aplicativa. A qualidade das aulas mudou, a qualidade das produções das crianças mudou, a qualidade da alfabetização mudou. E neste processo de mudanças, mudava também a professora. A cada resultado avaliado, aumentava sua autoconfiança, e, por consequência, aumentava também sua coragem de ousar. Tornar-se criativa exige coragem e segurança. As produções das crianças eram trazidas à luz da teoria nas reuniões quinzenais. A cada novo desafio (não compreender o processo de apropriação da linguagem escrita pelas crianças tornou-se um desafio), a supervisora apresentava novos aportes teóricos que pudessem dar conta da situação que desafiava os conhecimentos pedagógicos das professoras-alfabetizadoras. O grupo ia construindo sua competência docente coletiva e um forte compromisso comum com seus alunos. O mesmo se deu com a professora da 4ª série, a professora de José. Tendo procurado a orientadora educacional para “resolver o problema de José”, foi descobrindo novas possibilidades de atuação, não apenas com José, mas com sua turma toda. À medida que a orientadora lhe trazia os resultados de seu trabalho com José, seja as atividades de arte, seja as entrevistas realizadas com José e com sua avó, a realidade vivencial do menino lhe ia sendo revelada, o que, até então, era-lhe desconhecido. O mundo da miséria, até então conhecido apenas através de notícias de jornal, de filmes ou de romances realistas, ia invadindo o universo protegido da moça de classe média, tornada professora. José era órfão de pai e mãe, e vivia com a avó materna, velha e pobre. Moravam os dois num cortiço, onde ocupavam um quarto, compartilhando o banheiro e a cozinha com os demais inquilinos, tão pobres quanto os dois. Sobreviviam da venda de doces que a avó fazia durante o dia e que José vendia à noite. É evidente que, enquanto não vendesse todos os doces, José não voltava para casa. Isto o obrigava a ficar perambulando pelas ruas até muito tarde, tendo por companhia bêbados, prostitutas e meninos que vagavam pelas ruas como ele próprio. No entanto, apesar de voltar frequentemente de madrugada, não deixava de ir à escola na manhã seguinte. Chegava atrasado, sim, mas chegava. Às vezes adormecia enquanto a professora dava aula, mas lá estava. Era evidente o valor que José dava à escola. Talvez sua presença insistente se devesse à sua expectativa de melhorar de vida por meio do que pudesse aprender na escola. Afinal, a ideologia da ascensão social, via educação, é fortemente internalizada pela população. Ou talvez fosse à escola apenas para merendar, quem sabe, a sua única refeição, ou pelo menos como uma possibilidade de economizar o pouco de que dispunham, ele e sua avó. Seja qual for a verdadeira razão para a presença diária de José na escola, este era um dado definitivo para a orientadora. E foi com este dado que ela procurou reverter a idiossincrasia da professora. O processo de mudança da professora foi lento e cheio de contradições. É como afirma Agnes Heller em relação aos preconceitos: demanda muito tempo para que desenvolvamos uma atitude crítica em relação aos esquemas recebidos, e, frequentemente, não se chega à libertação dos preconceitos. A professora, como já afirmei, jovem de classe média urbana, protegida contra os “incômodos da miséria”, trazendo consigo representações rígidas do “bom aluno”, como poderia se abrir para compreender a situação de José, que fugia aos padrões de normalidade por ela internalizados? Para Joana, aquele menino era desinteressado, pois quem está interessado é assíduo, pontual, atento. José chegava atrasado à escola, não trazia os deveres de casa feitos, chegando algumas vezes a adormecer em plena aula – “evidências de desrespeito e desinteresse”. Desinteresse, desrespeito, ou o genérico “problema”, o fato é que alguma coisa o menino tinha, que só um especialista deveria poder diagnosticar. Compreender a situação de José e os seus motivos exigiria de Joana abrir-se de seu universo cultural fechado e preconceituoso. O caminho mais fácil era, portanto, o de encaminhar o “problema” para a orientadora educacional. Foram necessários tempo e evidências empíricas, além do respaldo teórico, para que a professora pudesse lentamente ir se abrindo para outras visões de mundo, diferentes das que lhe haviam ensinado em sua história vivencial e profissional. Isto porque, além dos preconceitos de classe média, ela carregava a visão estereotipada aprendida em seu curso de formação de professora, em que haviam lhe ensinado que tudo o que foge a uma pseudonormalidade é anormalidade, e precisa ser tratado. José não era igual ao modelo de aluno que aprendera no Instituto de Educação. Como aceitá-lo em sua diferença, se para ela o mundo era homogêneo, sem lugar para as diferenças? Antes de preocupar-se com sua aprendizagem, era preciso que a orientadora tratasse de sua “doença”, para então, e só então, ela poder atuar como professora. Daí tê-lo encaminhado para o SOE (Serviço de Orientação Educacional), onde a especialista competente o atenderia, preparando-o para o mundo harmonioso da normalidade, sua sala de aula, onde, caminhando juntos pelos mesmos caminhos, todos devem aprender. Consciente da situação a ser enfrentada, a orientadora usou toda sua sensibilidade para ir trazendo a realidade vivencial de José, com cuidado para não desqualificar a professora, ao mostrar uma outra verdade que, obviamente, punha por terra a verdade acreditada por Joana. Trouxe, por exemplo, dados da situação familiar e econômica de José: como vivia, de que vivia, com quem vivia, onde vivia. Trouxe trabalhos realizados por José, desenhos, pinturas e colagens, em que ficavam claras a importância que para ele tinha a escola, e a condição miserável em queele vivia. Trouxe situações dramatizadas pelo menino, em que ficava evidente sua experiência de menino de rua, solto por ruas e praças, exposto ao perigo e preso à responsabilidade de garantir o sustento de sua pequena família. Em todas as situações, José revelava criatividade, responsabilidade e empenho em levar os compromissos assumidos a termo. Aos poucos ia se revelando um outro José, até então desconhecido de Joana. Mas José não se limitava a se mostrar em suas produções; ele abria as portas de um mundo ignorado pela professora, que a obrigava a pensar e a fazia sofrer, às vezes, e a se defender, outras vezes. O impacto das descobertas foi provocando mudanças em Joana, até que um dia ela irrompeu pelo SOE, dizendo: “Agora quem precisa de atendimento sou eu!” De uma longa e penosa conversa surgiram o desejo de mudar a prática pedagógica e o pedido de auxílio. Daí em diante, Marta passou a frequentar a sala de aula de Joana, e juntas iniciaram um trabalho com as crianças, entre as quais se encontrava José. Começaram com o Flicts, de Ziraldo. O livro possibilitou um rico projeto, que se estendeu por um mês. Fizeram leituras pictóricas, criaram textos individuais e coletivos, dramatizaram, criaram músicas com vozes e instrumentos, realizaram experiências com cores, pesquisas sobre bandeiras e sobre países, compararam línguas diferentes (português, francês, inglês) e escritas diferentes (a escrita árabe, a chinesa, a nossa), estudaram povos e culturas diferentes. Por caminhos diferentes, estudavam matemática, história, geografia, ciências, estudos sociais, arte e língua portuguesa. Mas a grande diferença podia ser percebida nas expressões de prazer das crianças e da professora. Professora e alunos descobriam o grande prazer de conhecer e de criar. Assim como a supervisora fizera com a professora da 1ª série, a orientadora foi, pouco a pouco, deixando a professora a sós com seus alunos. Ambas pretendiam que as professoras fossem conquistando maior autonomia, na medida em que se percebessem capazes de atuar mais criativamente. Deixar as professoras a sós com seus alunos não significava abandoná-las, mas lhes abrir espaços de ação mais independente, embora se mostrassem sempre disponíveis para a troca, a discussão e o suporte teórico e afetivo. A escola vai mudando Das primeiras mudanças, ainda em nível individual – uma professora, alfabetizadora e uma professora de 4ª série –, foram se dando mudanças mais amplas, mais abrangentes, mais no nível coletivo da escola. Este era o objetivo comum da supervisora e da orientadora. Mudanças coletivas só podem se dar no coletivo. E o espaço do coletivo na escola são as reuniões pedagógicas, que já aconteciam por iniciativa da supervisora e bem antes da chegada da orientadora. As reuniões pedagógicas aconteciam quinzenalmente, e delas participavam professores do ensino fundamental, nem todos, mas um número razoável. É mais fácil conseguir a participação das professoras de 1ª a 4ª série. Sua dedicação é exclusiva a uma turma. Mesmo quando trabalham em outra escola, ficam na mesma escola durante o turno completo e todos os dias. Só têm a responsabilidade de uma turma em cada escola e sentem esta turma como “sua turma”. Enquanto isto, os professores de 5ª a 8ª séries vivem correndo de uma escola para outra, e nessa corrida sobra pouco tempo para reuniões, quando não falta tempo para planejar e até para conhecer cada aluno. São verdadeiros mascates pedagógicos, correndo de uma escola para outra, com sua pastinha pedagógica. Em matéria de reunião só o Conselho de Classe, e, assim mesmo, dependendo do dia e do horário. E seria possível exigir tanto de quem, para sobreviver, tem de correr contra o tempo, pois se não correr, o salário corre mais rápido do que o tempo, e acaba antes de chegar o final do mês? Quando faço a crítica ao aviltamento salarial dos professores e às condições de vida e de trabalho a que foram condenados, não estou fazendo a apologia do “pro que ganho faço muito”, mas estou querendo dizer que não é possível escola de qualidade com professores mal pagos. Estou, na verdade, querendo dizer que o professor mascate foi produzido socialmente, como parte do quadro de destruição da escola pública. E que ele é tão vítima quanto os seus alunos. Esses professores poucas vezes compareciam às reuniões pedagógicas, embora dessem uma contribuição interessante quando estavam presentes. Eram mais politizados e traziam questões mais ligadas ao contexto social e econômico e às condições de trabalho a que estavam submetidos os profissionais da educação. Eram mais reivindicativos e denunciavam uma certa postura assistencialista entre algumas das professoras primárias. Reclamavam muito da falta de base de seus alunos, colocando a culpa nas professoras das séries iniciais, que não teriam ensinado o que seria indispensável para que as crianças pudessem entender os conteúdos específicos de suas disciplinas, para que tivessem desenvolvido hábitos de estudo, para que tivessem adquirido a capacidade de estudar com autonomia. À medida que as reuniões foram ganhando sentido para o grupo de professores, a frequência foi aumentando. Comentários de corredor, de sala de professores, de entrada e de saída de turno, de encontros casuais iam fazendo a “propaganda” das reuniões pedagógicas e do trabalho da supervisora e da orientadora educacional. A diretora, até então ausente das reuniões, passou a frequentá-las. Com a presença da diretora nas reuniões pedagógicas, o processo decisório foi se tornando um pouco mais democrático, saindo do gabinete e das mãos exclusivas da diretora para a decisão compartilhada. Reavaliando a avaliação Com o aprofundamento das discussões nas reuniões pedagógicas, o grupo chegou ao ponto nodal da escola: o sistema de avaliação. A avaliação sempre se dera por meio de provas, testes, exercícios, e, algumas vezes, de observações dos professores, cujos resultados eram quantificados, e transformados em notas. Os Conselhos de Classe eram os momentos de apresentação dos resultados e, no máximo, de confronto das diferentes avaliações realizadas pelos professores. Eram momentos decisivos, pois ali se definia quem seria aprovado e quem seria reprovado. Alguns professores, mais conscientes, trocavam informações sobre os alunos, discutiam os progressos de cada aluno, e, ao final, decidiam coletivamente. Outros, menos comprometidos, ou mais pressionados pelo exíguo tempo de que dispunham em sua luta pela sobrevivência, limitavam-se a entregar para a supervisora as listas de suas turmas com as notas relacionadas, sem dar à supervisora qualquer espaço de interferência no sentido de que as crianças e os adolescentes pudessem ser avaliados mais globalmente. Jamais se discutira as consequências sociais da reprovação, e, muito menos, a subjetividade presente na avaliação, por mais objetivo que alguém se pretenda. O Conselho de Classe era apenas o momento em que os professores se reuniam, sob a coordenação da supervisora, para “trocar figurinhas”. Todos chegavam com muita pressa para acabar de uma vez o que lhes parecia uma perda de tempo. Aliás, para entregar e confrontar notas, tirando as médias, “a supervisora pode fazer sozinha”, como afirmavam alguns. Até aquele momento, naquela escola, a avaliação era direcionada apenas pelas perguntas: Quem avaliar? O que avaliar? Como avaliar? Quem avaliar? Diriam os professores: “É óbvio que os alunos.” O que avaliar? Responderiam os mesmos professores: “É claro que o que os alunos aprenderam do que ensinamos.” Como avaliar? A esta pergunta, diferentes professores responderiam de forma diferente... mas não tanto: A minha avaliação é justa porque é objetiva. Eu faço uma prova no final do mês, onde fica claro quais os melhores, quais os médios, e quais os candidatos à reprovação. Eu faço a cada semana um exercício para a turma toda, e vou fazendo a avaliação cumulativa. Assim eu tenho mais dados sobre o aproveitamento de cada aluno. Com a minha experiência eu já posso dizer, no primeiro diade aula, quem vai passar e quem vai ficar. No olho, minha amiga. Eu vou avaliando cada exercício, e vou anotando. No final do mês, está pronta a avaliação. Não perco tempo. Como afirmei acima: diferente... mas não tanto. Pois todos colocavam no aluno a responsabilidade absoluta por seu fracasso. Todos avaliavam apenas o desempenho cognitivo dos alunos, quantificando-o. Todos centravam-se nos alunos e no resultado (chamado produto, não por acaso), desconsiderando o processo global vivido pelo grupo de alunos, e de cada aluno individualmente, e, sobretudo, descontextualizando o desempenho de desiguais, como se iguais fossem. Finalmente, todos se “esqueciam” de que a aprendizagem constitui-se em unidade dialética com o ensino. Neste enfoque, aos professores caberia apenas ensinar. Os alunos que mostrassem ter aprendido o que havia sido ensinado pelo professor eram aprovados; os que não tivessem aprendido eram reprovados. Ou melhor, os que mostravam saber aquilo que o professor considerava importante saber do que havia ensinado eram aprovados. Aqueles que não respondiam “corretamente” às perguntas feitas pelo professor na prova eram reprovados. A avaliação quantificava, rotulava, discriminava, aprovava ou reprovava, excluía. Tudo isso com a capa da neutralidade, da objetividade, da justiça. Com o envolvimento nas reuniões pedagógicas, os professores foram tomando consciência do que efetivamente acontecia quando avaliavam; o que estava subjacente à avaliação, e as consequências sociais do processo avaliativo. A discussão política da avaliação ia provocando tomadas de consciência em alguns e resistências em outros, mas, sem dúvida, sofrimento em todos, pois as descobertas sobre o que vinha sendo feito com as crianças das classes populares provocavam muito sofrimento, sobretudo naqueles que tinham uma participação política em partidos progressistas e no sindicato de professores, e que percebiam a contradição entre o discurso político genérico e a prática pedagógica concreta. Porém, ajudados uns pelos outros, o grupo continuava, e crescia. Ao avançar, colocava-se outras questões. O grupo começou a discutir avaliação, perguntando-se: • A quem cabe avaliar? • Quem deve ser avaliado? E por quê? • Qual a finalidade da avaliação? • Quando se deve avaliar? • O que é avaliar? • Como avaliar? A lógica da avaliação ia mudando à medida que mudava a postura dos profissionais da escola. Um novo projeto pedagógico ia sendo gestado. Mudanças substantivas se davam. A supervisora e a orientadora, que haviam provocado a discussão, municiavam o grupo com textos de suporte às mudanças. O grupo foi discutindo os pressupostos teóricos da avaliação tradicional; onde, como, e por que surge a avaliação na história da escola; o papel controlador e homegeneizador que cumpre; a prática avaliativa como prática social; as versões tecnicistas de avaliação que privilegiam o problema das técnicas aplicadas; o discurso pseudocientífico que reduz homens e mulheres a “condutas observáveis”; a arbitrariedade de temas e questões privilegiados pelos professores nas provas; os métodos que desvinculam os fenômenos psicológicos da totalidade social e humana em que se dão. O grupo ia compreendendo com Angel Barriga que “o problema da avaliação não poderá ser visto e analisado com outro enfoque enquanto se mantiver o mesmo paradigma epistemológico para sua análise”. Para mudar a avaliação escolar, seria necessária uma ruptura epistemológica, com a construção de um novo paradigma epistemológico, fundamentado em concepções de aprendizagem, de escola e de sociedade, de homem, de mulher e de criança, diferentes das concepções hegemônicas. Esta parecia uma tarefa hercúlea. Como construir um novo paradigma avaliativo? O grupo entrou em crise. E a orientadora trouxe Gramsci, para ajudar a compreender o que acontecia com os profissionais da escola. A crise se instala quando, ao lado do arcaico o novo se coloca e busca seu espaço para se expressar. O amálgama do que é válido no arcaico (e deve ser conservado) com o que é viável no novo (e deve ser estimulado) é o cimento da construção do futuro. O fragmento de Gramsci foi discutido e rediscutido. Voltava sempre que o grupo se perdia na crise. Do fragmento foram para o texto. E Gramsci tornou-se “íntimo” do grupo, explicando a sociedade, a escola, a prática política e pedagógica. Aliás, o grupo lia avidamente os textos que eram traduzidos pela supervisora e pela orientadora. As leituras passaram a ter sentido, pois contribuíam para a compreensão dos impasses que o grupo vivia, e forneciam subsídios para que fossem encontradas soluções para os problemas. As discussões teóricas eram confrontadas com o material empírico trazido pelos professores, resultado de suas práticas. Além das discussões teóricas, o grupo vivia experiências ligadas à avaliação. Exemplo disso foi a proposta da supervisora de que o grupo de professores, por área e individualmente, elaborasse uma prova sobre determinado item do programa. Ao final do exercício, constataram que cada professor havia privilegiado um ponto de vista diferente do que seus colegas haviam feito, embora se tratasse do mesmo item do programa. Se os professores davam valores diferentes ao mesmo item do programa, como afirmar que tal ou qual aluno não havia aprendido “o mais importante”? Outra experiência, desta vez proposta pela orientadora educacional, foi que os professores avaliassem um colega quanto a cabelos, pele, altura, gordura, olhos, boca, coisas “tão objetivas” e aparentes, as quais, no entanto, ao final, todos perceberam, entre divertidos e surpreendidos, que cada um avaliara diferentemente. Perceberam a falácia da objetividade e da neutralidade. Esse exercício foi complementado por outro, em que a orientadora apresentava fotografias de crianças, jovens, adultos e velhos, de diferentes gêneros, de diferentes origens étnicas e raciais, de diferentes classes sociais, e pedia que avaliassem. Foi ficando evidente para o grupo quanto de subjetividade e de preconceitos carrega a prática avaliativa. A experiência vivenciada permitiu aos professores recordarem quantas vezes “antipatizaram” com algum aluno, sem qualquer razão aparente. A orientadora ia ajudando o grupo “a se lembrar”, evitando que se fixassem na culpa, o que só traria sofrimento. Para isso, lançou mão das mesmas técnicas que utilizava com as crianças no Núcleo de Arte, pois, consciente do potencial integrador da arte, dele se valia. As experiências vivenciadas pelo grupo de professores eram em seguida discutidas e confrontadas com a teoria. Com isso, a discussão sobre avaliação ia sendo aprofundada, provocando mudanças nas práticas avaliativas, que sempre voltavam para as reuniões, onde eram socializadas entre os professores. O grupo partia de sua própria prática avaliativa, buscava a teoria explicativa às situações trazidas, e retornava à prática avaliativa em seu cotidiano. As mudanças foram acontecendo, e, como eram sempre compartilhadas, o autor sentia-se estimulado a ousar cada vez mais. Alguns foram além de suas pernas e “quebraram a cara”, tendo de voltar atrás. Outros eram menos afoitos, indo mais devagar. Muitos limitavam-se a acompanhar cuidadosamente o movimento de mudança que se instalara. As diferenças de ritmo e de possibilidades eram respeitadas, o que cumpria um papel pedagógico, pois ensinava aos professores que as crianças e os jovens também são sempre diferentes uns dos outros, e que devem ser respeitados em suas diferenças. Começaram por instituir a auto e a heteroavaliação. Como os alunos não estavam preparados para esta mudança, em algumas turmas houve excessos, provocando o ressentimento das professoras. Em outras turmas deu certo, talvez por mais maturidade dos alunos, ou por mais segurança da professora. A aprendizagem era de todos, portanto todos sentiam-se inseguros. Mas, como o caminhante faz o seu caminho, o grupo foi construindo o caminho novo, e nesse processo de construção do novo, construía-se, individual e coletivamente. Outrasmudanças foram se dando gradativamente. O grupo aprendia o que o povo sabe quando diz que “a pressa é inimiga da perfeição”. As avaliações foram se tornando mais globais, mais qualitativas, de sazonais tornavam-se contínuas, de limitadas à avaliação única da professora abriam-se para uma avaliação interdisciplinar, de punitivas tornavam-se diagnósticas, contribuindo para a reformulação do planejado. Se os alunos estão tendo sucesso, “estamos no bom caminho”. Se alguns não estão avançando “é preciso repensar conteúdos, metodologias, relações”. Afinal, a vítima não pode ser responsabilizada por um fracasso, que foi sendo compreendido como uma produção social, cujas consequências sociais são lamentáveis. E assim o grupo crescia e a qualidade do trabalho pedagógico ganhava corpo. A avaliação foi se tornando um instrumento valioso de conhecimento e de interpretação da realidade. As crianças e os adolescentes começavam a aparecer em sua complexidade. As práticas docentes adquiriam uma qualidade antes desconhecida. O processo educativo começava a ser avaliado, e para isso era necessário que os alunos participassem, e que os pais fossem ouvidos. O currículo começava a ser reconstruído. Apareciam sinais de um projeto político- pedagógico-orgânico. Perguntas nunca antes formuladas começavam a surgir: • Por que os alunos da turma X, que no ano passado se saíram tão bem em matemática, neste ano estão, em sua maioria, apresentando resultados medíocres? • Por que o José, que trabalha durante a noite, não é transferido para o segundo turno? • Por que os alunos da turma Y estão tão bem em estudos sociais e tão mal em língua portuguesa? • Por que a turma X vai tão bem com o professor Paulo, e a turma Y vai tão mal com o mesmo professor? Perguntas novas a partir do surgimento de novas preocupações. Necessidade de ouvir outros profissionais, como a merendeira, o porteiro, a servente. Necessidade de ouvir os pais. Necessidade de conhecer mais sobre a vida dos alunos: como vivem, convivem e sobrevivem, de onde vieram suas famílias, qual sua história familiar, de grupo sociocultural, de classe social, que experiências vivem fora da escola, o que sabem, como falam de seu saber, o que desejam saber, o que precisam saber. Perguntas que demandam ouvir os alunos e seu mundo, deixando-os falar. Para isso foi preciso que a orientadora educacional saísse da escola, abrindo um novo tipo de diálogo com o universo cultural ao qual o aluno pertence. Para muitas das perguntas, as respostas estavam fora da escola, e a orientadora educacional foi investigar o mundo até então desconhecido da instituição. Os dados levantados por meio de visitas, entrevistas e questionários voltavam à escola, eram trazidos para as reuniões pedagógicas e incorporados ao currículo. Uma nova relação da escola com a família As mudanças que começaram a se dar na escola provocaram reações, algumas favoráveis e outras desfavoráveis, da parte dos pais. Alguns pais vinham reclamar que “a professora não está mais corrigindo o caderno de meu filho”, outros vinham aplaudir “uma forma nova de ensinar, que minha filha está gostando muito”. A supervisora e a orientadora concluíram que estava na hora de chamar os pais para uma reunião pedagógica. Assim fizeram, convencidas da necessidade de dar-lhes satisfações do trabalho que estava sendo realizado na escola, embora cheias de medo de sua reação. Sabiam da importância de se criar uma cumplicidade entre a escola e a família, já que havia um objetivo comum a ambas: que todas as crianças tivessem sucesso em seu processo de aquisição do conhecimento socializado pela escola. No dia marcado, após convite enviado por meio dos alunos a seus pais, a supervisora, a orientadora, a diretora e alguns professores esperavam pontualmente à hora aprazada. O clima era tenso, pois todos sabiam da importância desse encontro. Os pais foram chegando e sendo convidados a ocupar as cadeiras do auditório. Após 15 minutos de tolerância, a diretora abriu a reunião, dando-lhes as boas- vindas e dizendo-lhes da importância de tê-los na escola para discutir o projeto pedagógico do estabelecimento, e para lhes dar conta do que estava sendo realizado com seus filhos. Passou em seguida a palavra à supervisora, que discorreu sobre o que estava sendo feito, por que estava sendo feito, e como estava sendo feito. Falou, na verdade, sobre a reorientação curricular que acontecia na escola. Ao finalizar, passou a palavra à orientadora, para que ela falasse sobre o núcleo de arte e suas finalidades. Foram mostrados trabalhos de crianças, colocados em exposição nas paredes e comentados pela orientadora e pela professora de arte. Em seguida, a supervisora retomou a palavra, a fim de explicar como as atividades de arte se incorporavam ao currículo, enriquecendo- o. Falaram ainda algumas das professoras sobre o trabalho em desenvolvimento com suas turmas, os resultados já atingidos e os resultados pretendidos a médio e longo prazos. Terminadas as apresentações, a diretora abriu a palavra aos pais, que, no início timidamente, foram pouco a pouco ganhando confiança para perguntar, concordar e discordar, assumindo seu direito de participar da vida escolar de seus filhos. A reunião durou duas horas, o que para um primeira reunião era gratificante. Ao final, alguns pais avaliaram como muito positivo o encontro, pedindo que aquele tipo de reunião acontecesse com mais frequência. Antes de fechar a reunião, foram levantados o melhor horário e o melhor dia da semana para a realização de reuniões de pais, ficando determinados a data e o horário do encontro seguinte. Ficou clara a dificuldade de realização de reuniões em horário de trabalho dos pais. O melhor horário seria, portanto, à noite, ou, o que era mais conveniente, aos sábados, dia em que os pais estavam mais disponíveis. Só ouvindo os pais é possível saber de suas dificuldades em vir à escola em horários incompatíveis com a vida de um trabalhador, e compreendendo suas razões, romper com a visão preconceituosa e recorrente entre os professores de que “pai não quer nada”, ou que “só vem à reunião de pais quem não precisa”. Esta foi a primeira de uma série de reuniões que, de pedagógicas, foram entrando por questões administrativas, o que anunciava uma direção colegiada, objetivo crescente de todos. Nesse meio tempo, a orientadora educacional, auxiliada pela assistente social do Distrito de Educação, fazia as visitas às famílias dos alunos, ouvindo sobre o que era seu objetivo precípuo, frequentemente ouvindo muito mais do que pretendera, e algumas vezes se surpreendendo com a reação à sua visita, com um embaraçador “nunca alguém da escola veio na nossa casa”. Junto com o cafezinho com biscoito e o “não repara que é casa de pobre”, a conversa ia revelando o mundo objetivo e subjetivo dos alunos, que voltava à escola para enriquecer a avaliação e reorientar o currículo. Abre-se a relação entre a escola e a comunidade Após o primeiro encontro informal com a comunidade, que se deu com a excursão realizada com as crianças pela orientadora educacional, foi avaliada a pertinência de um contato mais frequente com a comunidade circundante. O bairro caracteriza-se sobretudo por serviços: pequenas lojas, oficinas, laboratórios, escritórios, bancos, restaurantes, botequins, além de algumas casas de saúde, cinemas e empresas estatais. Parecia, à equipe envolvida no trabalho coletivo, que era preciso mobilizar aquela comunidade para sua responsabilidade social com a educação das crianças e dos adolescentes da escola. Esta era uma responsabilidade histórica da orientação educacional. Cabia portanto à orientadora atuar. E assim foi feito. Inicialmente foram realizadas algumas visitas a pequenos comerciantes, bancos e empresários locais. Alguns se mostravam receptivos, outros fechavam qualquer possibilidade de diálogo. Após as primeiras visitas, foi fixada uma data para a primeira reunião escola-comunidade, sendo elaborados os convites pela professora de arte, e em seguida enviados a cada destinatário.Na data marcada, lá estavam a diretora e a orientadora educacional, tensas porque inseguras, aguardando que os convidados chegassem, “se é que viriam”, cada uma dizia para si mesma, sem coragem de admitir para a outra o seu receio. Vieram poucos, mas vieram alguns. E os que vieram, eram movidos pelo desejo de colaborar com a escola. A parceria que se instalou foi bastante proveitosa para a escola, embora tenha sido sempre problemática. Quem trabalha com resultados tem dificuldade de compreender o ritmo da escola e, sobretudo, os nem sempre visíveis resultados imediatos. De qualquer modo, representou uma rica aprendizagem, tanto para a escola quanto para os empresários. Da primeira reunião saíram algumas iniciativas conjuntas, senão pela generosidade ou pelo compromisso social de todos, pelo menos, pela competição que se instalou entre os participantes da reunião. Houve, por exemplo, um concurso de cartazes, promovido por um banco; a festa junina teve a colaboração de algumas empresas, por meio de prendas; foi oferecido um ônibus para levar os alunos e algumas professoras a uma exposição de pintura; um supermercado criou oportunidades de trabalho de meio expediente para meninos que faziam biscates, ou que, como José, “se viravam” pelas ruas; o Banco do Brasil também ofereceu oportunidades de estágio remunerado. A escola começava a ser percebida como um espaço educativo da comunidade. A comunidade começava a se perceber como corresposável pelo que acontecia na escolha. A ação supervisora e a ação orientadora O que aconteceu nesta escola poderia acontecer sem a participação da supervisora e da orientadora? Alguns diriam que qualquer professor poderia fazer tudo o que as duas profissionais, chamadas pejorativamente de “especialistas”, realizaram. Eu tenho dúvidas. Ainda que qualquer professor pudesse realizar o trabalho que as duas profissionais desenvolveram naquela escola, as funções supervisora e orientadora estavam fortemente presentes, e não me parece que qualquer professor pudesse desempenhá-las. Em primeiro lugar, porque há conhecimentos específicos que tornam mais eficiente e eficaz uma prática. As ações da supervisora e da orientadora produziram resultados, entre outras razões, porque ambas tinham uma formação específica. O mesmo acontece com qualquer especialista de qualquer área de conhecimento. Embora qualquer brasileiro conheça a língua portuguesa, quem está capacitado a ensiná-la na escola é o professor de língua portuguesa. Ainda que os diferentes professores das diferentes áreas do conhecimento ensinem o uso da língua portuguesa em matemática, história, geografia, estudos sociais, ciências, arte ou educação física, quem efetivamente ensina a língua portuguesa, com suas convenções e particularidades, é o professor especialista em língua portuguesa. Os demais ensinam, embora frequentemente sem saber que o fazem, a língua em uso. Qualquer pessoa que tenha passado pela escola tem conhecimentos de história, geografia, matemática, ciências naturais e sociais, no entanto quem pode ensinar estas disciplinas é o especialista de cada uma das áreas. Os conhecimentos específicos só o especialista domina, e é ele, portanto, quem pode desempenhar mais competentemente a função de professor da área. Isso porque, com a ampliação e o aprofundamento dos conhecimentos específicos a cada área, foi se tornando impossível a alguém dominar todos os conhecimentos de todas as áreas. O homem renascentista só foi possível até a Renascença. Daí para os nossos dias limitamo-nos a admirar Leonardo da Vinci, sabendo que a omnilateralidade é uma das nossas utopias, cada vez mais difícil de realizar numa sociedade de especializações e especialistas. A supervisora, como qualquer profissional, em seu curso de formação e em sua prática, prepara-se para atuar como especialista, no caso, como coordenadora do processo curricular, seja em sua formulação, execução, avaliação e reorientação. Prepara-se também para atuar com o grupo de professores no sentido da construção de uma competência docente coletiva. E é instrumentalizada para coordenar o processo de construção coletiva do projeto político-pedagógico da escola. É ela, em suma, a especialista em currículo, ou no jargão dos especialistas, a “curriculeira”. Por que deslocar um professor para desempenhar a função supervisora para a qual não foi preparado, deixando de se dedicar àquilo para que foi formado? Assim também no que se refere à função orientadora. Em seu curso de formação e em sua prática, a orientadora foi se fazendo especialista. Ela foi preparada para atuar com as famílias e a comunidade, fazendo a articulação escola-família- comunidade-sociedade. É ela quem irá trazer dados indispensáveis para a construção de um currículo que responda às características, às possibilidades, às necessidades e aos desejos dos alunos. É ela quem procurará estabelecer uma sintonia entre o trabalho escolar e o mundo do trabalho que acontece fora da escola. É ela quem influirá para que o trabalho seja o fio condutor da prática pedagógica, como princípio educativo. É ela, portanto, quem contribuirá para a recuperação da unidade teoria-prática, escola-vida. Enquanto o supervisor mobiliza os professores para a construção do currículo e para a discussão da prática pedagógica, o orientador traz a realidade socioeconômico-cultural dos alunos, em seus aspectos objetivos e subjetivos, para o currículo. É claro que a escola pode funcionar sem supervisores e orienta-dores, mas, fora de dúvida, estes profissionais podem contribuir para a melhoria do trabalho desenvolvido na escola. E José? E José, herói de nossa pequena história? Bem, José, embora personagem central de nossa história, foi o pré-texto, pois o texto mesmo foi o rico processo de reorientação curricular iniciado na escola pela ação conjunta da supervisora e da orientadora educacional. Nossa história conquista espaços mais amplos Tendo sido convidada a participar de um Encontro de Supervisores, Orientadores e Diretores de escolas da rede municipal de Caxias, município do estado do Rio de Janeiro, fui surpreendida com um jogral criado por parte do grupo de orientadores. Emocionada, ao final lhes solicitei uma cópia, e, sem consultá-los, transcrevo a sua criação, pelo que ela revela de compromisso e de capacidade de luta de um grupo que acredita ter uma contribuição a dar na construção de uma escola de qualidade para a classe trabalhadora, historicamente desqualificada e alijada da escola que se afirma “democrática”. Para não ser injusta, coloco apenas o nome da organizadora, Teresa Sarmento, já que não seria capaz de recuperar os nomes de todos os participantes. Fica a minha homenagem a este grupo de batalhadores, que numa quente manhã de dezembro, encontrou-se para me ouvir e para apresentar a sua síntese do que deve e pode ser a orientação educacional. Daqui para baixo, a autoria é do grupo de orientadores da rede municipal de Duque de Caxias. O jogral da orientação educacional (A relatora) A orientação educacional, compromissada com um ensino democrático e com um ensino de qualidade, busca uma ação mais abrangente, saindo da visão psicologizante e ideologizada, para tentar compreender e interferir no processo pedagógico. (Todos) Os orientadores educacionais buscam uma ação mais abrangente, atuando por meio dos professores, de todos os professores, de modo a atingir indiretamente a todos os alunos. (Relatora) A orientação educacional, como parceira de todos os segmentos progressistas, desvelou o discurso ideológico que propunha a escolha de ocupações profissionais, de acordo com as aptidões, para ampliar a discussão das relações entre a escola e o mundo do trabalho, para a comunidade escolar. (Todos) Pensar criticamente a sociedade, repensando a função do trabalho e da escola, influindo na formação do aluno crítico, trabalhador e cidadão. (Relatora) A organização do trabalho e as relações de trabalho deverão ser debatidas nas escolas com alunos, pais e professores, passando a fazer parte integrantedo currículo. Quando se afirma que não se pode trabalhar dessa ou daquela maneira porque não deixam, ou porque alguém impôs que fosse de outra forma, estamos diante de uma relação autoritária. (Todos) Relação autoritária? Sim, porque se de um lado há alguém dificultando, por outro lado há alguém aceitando a dificuldade ou a imposição. (PG1) Por comodismo? (PG2) Por omissão? (Relatora) Não adianta; o fato concreto é que se estamos aceitando levar adiante uma proposta de trabalho, um projeto em que se acredita, isso significa lutar, enfrentar oposições e barreiras. (PG3) Como pode ser colocado o conceito de trabalho na escola? (Relatora) O trabalho deve ser colocado não só como uma realização dos homens, mas, também, como uma forma de exploração deste homem. (Todos) E o orientador educacional como trabalhador? Pausa (Relatora) É necessário que o orientador educacional compreenda o que é a escola hoje e qual a sua função neste contexto, para que ele possa influir para a sua transformação. (Todos) Ser competente é condição para quem deseja transformar a sociedade. Pausa (Relatora) No entanto, isto não basta. É necessário aliar a competência técnica ao compromisso político. Daí a importância do envolvimento dos orientadores educacionais nas questões relativas à sua categoria. (Todos) Participando da Associação de Classe. (PG1) Participando, em todos os níveis, das reivindicações do magistério. (PG2) Participando, no que lhe é específico e no seu local de trabalho, para que todos tenham acesso ao conhecimento, ou seja, trabalhando para a democratização do ensino. Pausa (Relatora) Participando das reivindicações que hoje se colocam, através dos movimentos sociais: associações de bairro, comunidades de base e tantos outros. (Todos) Trabalhando por uma sociedade mais justa. (PG3) Por que, afinal, tudo isto? Pausa (Relatora) Porque se o seu compromisso é com a transformação da sociedade, é preciso um posicionamento como profissionais e como cidadãos. Se o orientador educacional opta por influir na mudança da sociedade, toda a direção de suas ações se dará no sentido desta opção. Ou seja, a direção de seu trabalho será a preparação do futuro cidadão crítico e participativo. (Todos) Como atuar? (Relatora) Atuando em três frentes. (PG1) A primeira é a questão do trabalho no currículo, parte integrante da vida de todos na escola. (PG2) A segunda seria a garantia de que todos tenham acesso ao conhecimento veiculado pela escola. (Todos) De que maneira podemos agir? Pausa (Relatora) Repensando, junto com professores, pais, supervisores, diretores e demais funcionários envolvidos na escola, os conteúdos transmitidos. (Todos) Repensar o que é avaliação e como se processa. (PG3) É avaliando o processo ensino/aprendizagem, ou avaliando uma parte do processo – o aluno? (PG1) São identificadas as falhas para se avaliar o trabalho pedagógico, ou se distribuem apenas conceitos? (Todos) A terceira frente de atuação diz respeito à articulação entre as diferentes disciplinas e o trabalho. Pausa (Relatora) Para isso é necessário que a vida do aluno seja o ponto de partida do planejamento global da escola; que este envolva toda a comunidade escolar – professores, alunos, pais e funcionários – para que, com base neste planejamento global, possam ser planejadas as ações específicas de cada disciplina. (Todos) Entendemos que só assim os conteúdos transmitidos terão sentido para nossos alunos e possibilitarão que eles compreendam a realidade e possam nela influir. (PG1) Acreditamos ser este, talvez, o caminho para a aquisição do conhecimento crítico, que contribuirá para que os alunos atuem no sentido da transformação social. (Relatora) Mas são muitos os obstáculos e os desafios a serem enfrentados na educação fundamental. (PG1) Baixa produtividade. (PG2) Nível insatisfatório de qualidade de ensino. (PG3) Prática de avaliação de desempenho escolar inadequada. (PG1) Pouca criatividade do sistema para atender a grupos em situação específica. (PG2) Metodologias e processos inadequados para o trabalho com grupos em situação de risco. (PG3) Inexistência de políticas e de comprometimento mais amplo com as questões do magistério. (PG1) Dispersão na alocação de recursos destinados a investimentos para desenvolver e aperfeiçoar o sistema. (PG2) Enfraquecimento da escola como instituição-chave no processo ensino- aprendizagem. (PG3) Descontinuidade das políticas educacionais. (PG1) Baixa sustentação social de projetos pedagógicos inovadores e de métodos mais eficientes de administração educacional. (Todos) O sistema educacional vem mostrando incapacidade de associar o acesso e a permanência, com qualidade e equidade, para uma clientela afetada por profundas desigualdades sociais. (Relatora) Para o sucesso escolar não basta oferecer vagas em número suficiente. É preciso estabelecer metas que possam deixar a escola mais atuante quanto à permanência, com bom aproveitamento dos alunos que a frequentam. (Todos) Vontade política para enfrentar os problemas. Pausa (PG2) Política salarial e plano de carreira. (Todos) Vontade política para enfrentar os problemas. (PG3) Valorização profissional. (Todos) Vontade política para enfrentar os problemas. (PG1) Eliminação das desigualdades educacionais. (Todos) Vontade política para enfrentar os problemas. Pausa (Relatora) Os orientadores educacionais têm de estar comprometidos de forma efetiva com a construção do projeto pedagógico da escola, explicitando seu compromisso político com a classe trabalhadora, empenhados em promover a real democratização da escola pública, em busca da qualidade de ensino, que concretize a cidadania, favorecendo a inserção do aluno no mundo do trabalho e na complexa sociedade onde terá de conviver e que deverá transformar. Pausa (Todos) Para tanto a proposta de trabalho da orientação educacional é por uma escola pública de qualidade, que articule trabalho e educação. (Relatora) Portanto, o referencial teórico-metodológico, que embasa a prática do orientador educacional na escola, não poderá prescindir de uma atualização continuada, para que ele possa estar preparado para exercer o seu papel. Fechamento do jogral (Relatora) Lá vem o OE. (PG1) Sempre com disposição. (Todos) Trabalhar, trabalhar. (Relatora) Cadê o OE? (PG2) Refletindo sobre educação. (Todos) Integrar, integrar. (Relatora) Lá vem o OE. (PG3) Sempre com reivindicações. (Todos) Lutar, lutar. (Relatora) Cadê o OE? (PG1) Procurando soluções. (Todos) Atuar, atuar. (Relatora) Lá vem o OE. (PG2) Com a bandeira da transformação. (Todos) Transformar, transformar. (Relatora) Cadê o OE? (PG3) Nos polos, junto com a divisão. (Todos) Integrar, integrar. (Relatora) Lá vem o OE. (PG1) Acreditando na educação. (Todos) Acreditar, acreditar. (Relatora) Cadê o OE? (PG2) Junto ao Sepe e ao povão. (Todos) Melhorar, melhorar. (Relatora) Lá vem o OE. (Todos) Dando adeus à omissão. Assim falaram os orientadores de Duque de Caxias, no dia 15 de dezembro de 1994. Quero agora dar a palavra aos supervisores, já que o fiz com os orientadores educacionais. Dou a palavra a uma supervisora que, assim como o grupo de orientadores de Caxias, tomou a palavra, e falou em seu nome e em nome de sua categoria. No decorrer do ano letivo de 1994 trabalhei com as supervisoras e as orientadoras educacionais ligadas à Secretaria Municipal de Educação do município de Angra dos Reis. A cada 15 dias nos encontrávamos para discutir a escola, e na escola, as práticas supervisora e orientadora. Quando aceitei escrever um capítulo para o livro organizado por Mary Rangel e Celestino Alves da Silva Junior levei meu texto para ser discutido pelo “meu grupo de Angra”. Na semana seguinte, uma das supervisoras trouxe um texto escrito por ela, que, ainda segundo ela, teria sido o resultado da leitura que fizera do meu texto. Meu texto teria provocado nela “um mergulho em minha história de professora e de supervisora”. Transcrevo o texto de Ritade Cássia da Cunha Salomão Barroso, supervisora da rede pública de Angra dos Reis, que muito contribuiu para que pudéssemos construir algum conhecimento sobre as possibilidades da orientação e da supervisão na escola, quando ambas estão comprometidas com a construção coletiva de um projeto político-pedagógico orgânico na escola, sintonizado com um projeto emancipatório de sociedade. Com a palavra, portanto, Rita, que fala melhor do que eu, em nome dos supervisores deste país. Supervisor – Agente de mudança ou mudança para ser Agente No ano de 1979 eu acabara de sair do curso de formação de professores com um diploma, muitos amigos e um monte de ideias que aos poucos iam se transformando em ideais. Lembro-me bem da Escola Municipal Santos Dumont, na Japuíba, onde em 1980 eu iniciava minha trajetória no magistério. Nos primeiros meses a vontade era de sair correndo, mas, aos poucos, o desafio me levava a encarar com garra a função de professora-alfabetizadora na antiga 1sn1 (Primeira série nível 1), o que hoje considero um grande equívoco, mas que na época parecia uma alternativa interessante. Nesse mesmo tempo, eu iniciara o curso na faculdade de Pedagogia, nas habilitações de magistério e de supervisão. O curso era em Campo Grande, o que exigia de nós, professoras-estudantes, um grande esforço, pois nos deslocávamos duas horas para ir e duas horas para voltar, conseguindo retornar a nossos lares já de madrugada. Isto, quando o ônibus que compramos não se dava ao luxo de quebrar. Durante os quatro anos de faculdade, tive um professor que marcou muito minha atuação futura como supervisora, já em 1983, na Secretaria Municipal de Educação (onde comecei como estagiária). Este professor colocava-nos sempre que a ação supervisora era uma ação de parceria, comunhão e troca. Naquela época, Angra dos Reis era considerada Área de Segurança Nacional, e nossas ações eram limitadas e ousadas ao mesmo tempo. Limitadas porque convivíamos com uma situação de ditadura militar que nos incomodava sobremaneira, e ousadas porque fazíamos coisas das quais nos orgulhávamos muito. Exemplo disso foi o Iepem – Encontro de Professores das Escolas Municipais. Numa ocasião em que era proibido falar, nós ousávamos fazer o primeiro encontro, para que nossos colegas começassem a repensar sua prática educativa, e, melhor do que isto, começassem a avaliar nossa própria prática, o que para nós era muito importante e corajoso. Conquistamos espaços, começamos a buscar intercâmbio com outras instituições, como a UFF – Universidade Federal Fluminense –, que desde aquela época é nossa grande aliada e companheira. Vide Manhães, companheiro de lutas desde aquele tempo... O trabalho era para nós uma grande emoção, e, por incrível que possa parecer, nossa autonomia era bastante grande, possibilitando-nos descobrir muitas coisas por nós mesmas. Errávamos, acertávamos, mas éramos unidos, coesos, enfim, éramos uma equipe. O secretário e a diretora do Departamento de Educação à época, apesar de representarem figuras austeras, eram profissionais altamente comprometidos com a educação, e dispensavam um respeito muito grande à equipe com a qual trabalhavam, valorizando-nos como pessoas e como profissionais, o que nos propiciava sinceridade em nossas críticas e ações. O tempo passou, a luta continuou, e de 1985 a 1993 minha trajetória profissional foi um pouco conturbada, dividida entre o município e o estado, entre a supervisão e a direção de departamento, entre ser inspetora escolar e elemento do promunicípio, gerente educacional do Núcleo de Educação e Cultura e professora de psicologia do Centro de Formação de Professores. Retornei à Secretaria Municipal de Educação em janeiro de 1993, numa situação muito conflituosa para mim, pois a ligação com a Secretaria era forte, as “feridas do saber” ainda estavam muito vivas em mim, e o “novo” representava uma resistência que, por muitos motivos, eu tinha e da qual não sabia como me livrar. O reencontro com a equipe Apesar do conflito, a alegria de rever antigos colegas que ainda estavam ali dava-me um novo ânimo. E comecei a pensar: Por que não? Afinal, ser profissional é isto... Ser profissional é transpor barreiras e conseguir repensar sempre o que se faz. Comecei atuando como inspetora, função na qual procurei sempre tirar, do administrativo, dados da pesquisa, para que pudesse atuar no campo pedagógico. Este era um momento difícil para nós, pois todos os orientadores e supervisores haviam sido deslocados para as escolas, com o apelido de “orientadores pedagógicos”, ou OP, “apelido do apelido”. Com a nova denominação, vinha a nova orientação de que deveríamos realizar o mesmo trabalho, sem que, em nenhum momento, nos tivessem dito o que pretendiam que efetivamente fizéssemos. Perdíamos a identidade, pois já não seríamos um grupo de supervisores e orientadores que tentavam se articular a partir de nossas diferenças, e passávamos a ser cobrados de algo que não nos tinha sido explicitado, e para o que não havíamos sido preparados ou consultados (não vai aqui nenhuma crítica a esse ou àquele colega, mas à situação em si, com a qual deparávamos). Ação orientadora e supervisora – Como podem se articular? Acho que o grande passo inicial é a gente querer estar junto, não só com aquele colega da escola, mas com todos os colegas da Rede. A ação supervisora e orientadora se dá a partir do momento em que partimos para um conhecimento maior do que temos, do que pretendemos fazer com o que temos e, sobretudo, por que fazemos. A partir daí, a construção é feita com a base, ou seja, você conhece para adaptar, adapta para possibilitar e possibilita para alcançar. Cria-se naturalmente uma cadeia de contribuições e recursos que possibilitam uma ação integrada, não só de orientadores e supervisores, mas de pais, alunos, pessoal administrativo, pessoal de apoio, comunidade, Secretaria Municipal de Educação. Esta cadeia, quando se instala, mobiliza todos, na direção do professor que ensina e do aluno que aprende. Como e o que dificulta Os antigos tinham um ditado que dizia: O que começa errado acaba errado. Está aí o grande segredo! A maneira como passamos nossa proposta ou iniciamos nossa discussão é ponto fundamental no caminho a ser trilhado posteriormente. A resistência se dá no momento em que alguém chega dizendo que tudo o que você fez está errado, arcaico etc. Reporto-me ao texto de Regina e encontro a prática levando à teoria através do conhecimento espontâneo. É uma teoria com sentido. Penso que a teoria pura, apenas para reflexão, é cansativa e não dá conta da capacidade de compreensão e ampliação do trabalho que está sendo realizado aqui e agora. Daí eu ter feito, em nosso segundo encontro com Regina, a colocação de que o professor sabe que precisa mudar, mas que ele precisa primeiro mudar sua prática, para encontrar uma nova teoria, simultaneamente. Não sendo assim, ele fica como está, pois é mais seguro. Ninguém muda se não tiver chão. Conclusão Poderia enumerar algumas condições para que a ação educacional (gostaria de assim denominá-la) pudesse se dar com qualidade e parceria. 1. Respeitar a história do profissional, seja ela qual for. 2. Antes de achar que seu projeto é o melhor do mundo, lembre-se que os outros pensam, e pensam pensar certo. 3. A escola não é uma instituição isolada, portanto devemos compartilhar nossas experiências com outras escolas das diversas redes de ensino. 4. Não devemos julgar os profissionais apenas pelas universidades ou faculdades que cursaram, ou pela biblioteca pessoal que possuem. 5. Nem sempre aquilo que se ouve ou vê é realmente o que é. 6. É preciso que sejam criados em Angra dos Reis, ou facilitado aos profissionais de Angra, o acesso a cursos de especialização, de extensão, de mestrado e de doutorado. Sendo assim, o que se entende por ação educativa é uma ação de valorização de todos os profissionais e de todos os alunos. Nós pregamos isso o tempo todo, em nossa ação com os professores, para que seja colocadoem prática com os alunos. No entanto, não somos capazes de fazê-lo com nossos companheiros ao lado. Há 15 anos venho tentando contribuir para a construção de uma escola pública de qualidade. Muitos profissionais, com os quais convivi, foram muito importantes para a seriedade com que conduzo hoje minha vida profissional. O tradicional e o moderno são tempos fundamentais, para que encontremos nosso equilíbrio. A “mudança” que necessitamos brota de nosso dia a dia, de nossa capacidade e sensibilidade para ver aquilo que pode parecer óbvio para outros. Já presenciei cenas de risos e de expressão de falsos valores, que me entristeceram profundamente. Profissionais que se encantam com meras palavras, e riem de sua própria ação na História. Triste “saber”!!! Triste “sentir”!!! Eu me orgulho muito de tudo o que fiz até hoje, seja como professora, como supervisora ou como inspetora. Foram e são valores que me levaram e levam a estar aqui e agora com vocês, sem o menor medo e com toda a humildade, e poder dizer: Estarei sempre pronta a recomeçar e a ser um agente de mudança. Esta é a minha contribuição para, mais uma vez, repensarmos a supervisão e, quem sabe, podermos contribuir para a melhoria do trabalho pedagógico e educativo na escola pública brasileira. NOTAS [1] “Supervisão escolar – Da ação exercida à ação repensada: Uma experiência na Rede Municipal de Ensino (RME) de Porto Alegre, RS”. A tese transformou- se num livro editado pela Edipucrs em março de 1995, intitulado Supervisão escolar: Da ação exercida à ação repensada . [2] Conselho Administrativo e Pedagógico (CAP): órgão consultivo e normativo da escola, presta assessoramento ao diretor em assuntos administrativos e pedagógicos, sendo constituído por diretor, vice-diretor, supervisor, orientador educacional e representante do corpo docente. [3] Agentes educacionais compreendidos como profissionais e trabalhadores de educação. [4] Regente de classe é o professor unidocente ou o titular de uma disciplina específica. [5] Apoiado em acordos gerais estabelecidos entre o Brasil e os Estados Unidos, o Ministério de Educação e Cultura solicitou, em 11/4/1956, assistência técnica à Missão Norte-Americana de Cooperação Técnica no Brasil (Usom-B) para a criação de um centro experimental de programa piloto de educação elementar em Belo Horizonte. Em 22/6/1956 foi autorizado o planejamento do programa e assinado acordo com a universidade de Indiana para realização de cursos para brasileiros que viriam a atuar naquele programa. Em 15/1/1957, o Diário Oficial publicou portaria do ministro da Educação e Cultura Clóvis Salgado, atribuindo ao Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) a execução do programa; foram nomeados seus codiretores Thomas A. Hart (responsável pela Divisão de Educação da Usom) e Abgart Renault (secretário de Estado da Educação e Cultura de Minas Gerais). Como diretores técnicos responsáveis pela administração do centro piloto no Instituto de Educação, assumiram o recém- nomeado diretor do Instituto de Educação, Mário Casasanta, e Charles M. Long, da Usom. O Pabaee iniciou suas atividades em julho de 1957. Em maio de 1964, cessou a participação americana direta na administração, mas as atividades se mantiveram; então o Pabaee passou a ser dirigido por Lyra Paixão. Em 6/5/1965, o Pabaee transformou-se na Divisão de Aperfeiçoamento (DAP) do Centro Regional de Pesquisas Educacionais João Pinheiro. [6] Sobre a Escola de Aperfeiçoamento, consultar Peixoto (1983) e Prates (1989). [7] Para realizar esta pesquisa, as autoras contaram com o apoio do CNPq, do Inep, da Fapemig e da UFMG. Parte do trabalho de pesquisa foi realizada como atividade das autoras na qualidade de docentes da Faculdade de Educação da UFMG. Atualmente Léa Pinheiro Paixão é professora da UFF, e Edil Vasconcellos de Paiva, da Uerj. [8] No acordo celebrado em 22/6/1956, os objetivos foram assim enunciados: “1. Formar quadros de instrutores de professores de Ensino Normal para diversas Escolas Normais mais importantes do Brasil. 2. Elaborar, publicar e adquirir textos didáticos tanto para as Escolas Normais como para as Elementares. 3. Enviar aos Estados Unidos, pelo período de um ano, na qualidade de bolsistas, cinco grupos de instrutores de professores de ensino normal e elementar recrutados em regiões representativas do Brasil que ao regressarem serão contratados pelas respectivas escolas normais para integrarem os quadros de instrutores de professores pelo período de 2 anos.” [9] No decorrer da implantação do Pabaee, o diretor do Instituto de Educação foi se tornando figura secundária na administração. As decisões, parece, eram tomadas pelos americanos, em contatos com Renault. A direção do Programa se fazia, formalmente, em dois níveis. Havia dois codiretores e dois diretores administrativos. Ao se implantar o Programa, Hart e Renault eram os codiretores e assumiram a direção administrativa Casasanta e Schwab. Mais tarde foram nomeados codiretores norte-americanos Charles H. Long, Philip K. Schwab, Maurice Norton e Crayton T. Jackson. Abgar Renault manteve a codireção brasileira do Programa em todo o período. Na direção administrativa, Casasanta foi, depois, substituído pelos diretores do instituto de Educação, que o sucederam no cargo: Manuel Casasanta e José Mesquista de Carvalho. [10] Não podemos esquecer que o mito grego concebe as musas, de quem a poesia receberia um lampejo inspirador, como filhas de Zeus e de Mnemósine, a deusa da memória, que representaria uma guardiã contra o esquecimento. [11] Já em 1988, Jurandir F. Costa vem usando essa expressão para analisar “o descrédito das leis e o ataque ideológico à ideia do sujeito moral ideal” (1994, p. 40), referenciando-se em estudos de Sloterdijk. [12] “Balançamos em movimentos pendulares entre duas esferas de valor: uma indignada e furiosa, outra generosa e condescendente, e acreditamos com isso salvar a própria pele.” (Castello 1994, p. 14). [13] A exceção mais clara se inscreve nas administrações do PT que, pela própria ideologia partidária, confere um tratamento especial à educação e à saúde. [14] Pesquisa recente feita pelo sindicato de professores de Santa Catarina mostrou que um terço dos professores deseja mudar de profissão ( Veja , 24/5/1995). [15] Quantos jograis e jogralesas, adivinhos e adivinhas foram condenados pela memória e pelo prazer que exibiam, que eram entendidos como perigosas parcerias com o diabo. [16] Antes de Nóvoa 1992, histórias de vida de professores foram estudadas como método para entender o magistério e a educação de docentes por autores como: Ozouf 1967; Muel 1977; Huberman 1987; Casey 1992; Stephen e Goodson 1992 . [17] Dando a palavra a Bourdieu (1988, p. 51) vamos ouvi-lo enfatizando que: “Os campos sociais [...] só podem funcionar na medida em que haja agentes que invistam neles, nos mais diferentes sentidos do termo investimento, e que lhes destinem seus recursos e persigam seus objetivos, contribuindo, assim, por seu próprio antagonismo, para conservar-lhes a estrutura, ou, sob certas condições, para transformá-los”. [18] A “Primera Convención Americana de Maestros: Primarios, secundarios y universitarios”, realizada em Buenos Aires em 1928, já recomendou “às entidades do magistério uma vinculação efetiva com as organizações de trabalhadores para secundar ativamente a obra de melhoramento cultural do proletariado americano...” Rama, German 1963. [19] Em trabalho anterior (Linhares 1993) trabalhamos as raízes populares da escola e da universidade no Uruguai e suas íntimas relações com a construção da identidade nacional e a luta dos trabalhadores. A autonomia universitária, que implicou a participação de estudantes e egressos nas decisões universitárias, foi conquistada em 1908. [20] O presente trabalho é resultado de pesquisas desenvolvidas entre UFRGS e PUCRS, de 1990 a 1993, com base no tema “Construindo um processo avaliativo pela via da ação comunicativa, crítica e emancipatória e suas possibilidades no cursode formação de especialistas em educação”, por meio de equipe composta por Maria Helena Klein (UFRGS), Tereza H. Lovatel (UFRGS) e Marilu Fontoura de Medeiros (PUCRS/UFRGS). [21] Pesquisas desenvolvidas com referencial equivalente, embora com equipes diferenciadas: uma delas trata da relação trabalho da universidade e 1º grau de ensino (PUCRS e UFRGS) e outra, de paradigmas ideológicos e consciência moral presentes na educação ambiental (PUCRS e UFRGS). [22] Excertos de uma das pesquisas – a da construção de uma proposta de avaliação – é objeto deste relato e reflexão. [23] O discurso, na perspectiva habermasiana, representa a possibilidade de uso de atos de fala voltados para o entendimento e fundados na argumentação intersubjetivamente estabelecida. Nele, fatos, vivências e normas são tematizados em suas pretensões de verdade; ou seja, implicam o uso de atos ilocucionários, diferentemente dos atos instrumentais e estratégicos (perlocucionários), que visam ao êxito e ao domínio. O discurso estabelece a condição para a tematização de verdades consideradas ilegítimas. [24] As questões tematizadas ao longo do processo avaliativo contemplaram temas que envolviam a organização das disciplinas, a estrutura administrativa, a dimensão político-pedagógica, entre outros, como parte da estrutura curricular, buscando desvelar os reais nexos entre teoria e prática. SOBRE OS AUTORES Antonia da Silva Medina é doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde atuou nos cursos de mestrado e doutorado. Celestino Alves da Silva Junior (org.) é livre-docente e professor da graduação e dos cursos de mestrado e doutorado em Educação da Universidade Estadual Paulista. Célia Frazão Linhares é doutora e livre-docente em Educação e realizou seu pós-doutorado em Políticas Educacionais e Avanços Tecnológicos na Universidad Complutense de Madrid e na Universisy of London. É professora titular de Política Educacional da Universidade Federal Fluminense, participando da graduação e dos cursos de mestrado e doutorado em Educação. Edil V. de Paiva é doutora em Educação pela Universidade de Pittsbrugh e professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuando na graduação e no mestrado. Léa Pinheiro Paixão é doutora em Ciências da Educação pela Universidade Paris V e professora titular de Sociologia da Educação da Universidade Federal Fluminense, onde atua na graduação e nos cursos de mestrado e doutorado em Educação. Marileusa Moreira Fernandes é mestre em Educação pela Universidade de São Paulo e, além de supervisora, desenvolve trabalhos de planejamento e coordenação na Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. Marilu Fontoura de Medeiros é doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde é professora titular. Integra também os cursos de mestrado e doutorado em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mary Rangel (org.) é doutora em Educação Brasileira pela UFRJ. É professora titular de didática da UFF, atuando na graduação e nos cursos de mestrado e doutorado em Educação. É também professora titular da área de ensino-aprendizagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com atividades na graduação e no curso de mestrado em Educação. Regina Leite Garcia é doutora em Educação Brasileira pela UFRJ e realizou seu pós-doutorado nas Universidades de Londres e de Wisconsin- Madison. É professora titular em alfabetização da UFF, onde atua na graduação, na pós-graduação latu sensu em Alfabetização, como coordenadora, e nos cursos de mestrado e doutorado em Educação. OUTROS LIVROS DOS AUTORES MÉTODOS DE ENSINO PARA A APRENDIZAGEM E A DINAMIZAÇÃO DAS AULAS – E-BOOK Mary Rangel SUPERVISÃO E GESTÃO NA ESCOLA: CONCEITOS E PRÁTICAS DE MEDIAÇÃO – E-BOOK Mary Rangel (org.) SUPERVISÃO PEDAGÓGICA: PRINCÍPIOS E PRÁTICAS - EBOOK Mary Rangel (org.) http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4185 http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4134 http://www.papirus.com.br/livros_detalhe.aspx?chave_livro=4382 Siga-nos nas redes sociais: >>>>>>>> Acesse também nosso catálogo on-line http://issuu.com/papiruseditora Capa: Fernando Cornacchia Foto de capa: Rennato Testa Copidesque: Lúcia Helena Lahoz Morelli Revisão: Antônio Carlos R. da Silva Jr. e Cristiane Rufeisen Scanavini ePUB Coordenação: Ana Carolina Freitas Produção: DPG Editora e Papirus Editora Revisão: Roberta Munhoz Alecrim Exceto no caso de citações, a grafia deste livro está atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa adotado no Brasil a partir de 2009. Proibida a reprodução total ou parcial da obra de acordo com a lei 9.610/98. Editora afiliada à Associação Brasileira dos Direitos Reprográficos (ABDR). DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA: © M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. – Papirus Editora editora@papirus.com.br | www.papirus.com.br mailto:%20editora@papirus.com.br Cover Page Nove olhares sobre a supervisão SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 1. SUPERVISOR ESCOLAR: PARCEIRO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DO PROFESSOR 2. O PABAEE E A SUPERVISÃO ESCOLAR 3. O DIREITO AO SABER COM SABOR. SUPERVISÃO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA ESCOLA PÚBLICA 4. ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO NA ESCOLA PÚBLICA: O PEDAGÓGICO E O ADMINISTRATIVO NA AÇÃO SUPERVISORA 5. A OPÇÃO DA SUPERVISÃO DIANTE DA AMBIVALÊNCIA 6. PARADIGMA DE AVALIAÇÃO EMANCIPATÓRIA E A AÇÃO SUPERVISORA: CIDADANIA E ESPAÇO PÚBLICO[20] 7. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DO SUPERVISOR, COMO ESPECIALISTA EM EDUCAÇÃO, NA AMÉRICA LATINA 8. JOSÉ – DE DIA ALUNO DA ESCOLA, DE NOITE MENINO DE RUA NOTAS SOBRE OS AUTORES OUTROS LIVROS DOS AUTORES REDES SOCIAIS CRÉDITOS