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O MÍNIMO SOBRE CRIATIVIDADE Luiz Carreira 1ª edição — março de 2023 — CEDET Copyrigh © Luiz Carreira Os direitos desta edição pertencem ao CEDE — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Av. Comendador Aladino Selmi, 4630 Condomínio GR Campinas 2 — módulo 8 CEP: 13069-096 — Vila San Martin Campinas-SP Telefones: (19) 3249–0580 / 3327–2257 E-mail: livros@cedet.com.br CEDET LLC is licensee for publishing and sale of the electronic edition of this book CEDET LLC 1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761 Phone Number: (407) 745-1558 e-mail: cedetusa@cedet.com.br Editor: Thomaz Perroni Revisão & preparação: Jacinto Palhanova Capa: Guilherme Conejo Lopes Diagramação: Virgínia Morais Conselho editorial: Adelice Godoy César Kyn d’Ávila Silvio Grimaldo de Camargo FICHA CATALOGRÁFICA Carreira, Luiz. O mínimo sobre criatividade / Luiz Carreira; Campinas, SP: O Mínimo, 2023. isbn 978-65-85033-09-1 1. Psicologia: inteligência e criatividade. I. Título II. Autor cdd 153.3 ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO: 1. Psicologia: inteligência e criatividade – 153.3 www.ominimoeditora.com.br Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor Sumário APRESENTAÇÃO DA GAMBIARRA À INVENÇÃO: O QUE É CRIATIVIDADE DO ROBÔ À PESSOA: DO SER HUMANO A NATUREZA CRIATIVA DO ENGENHO À ARTE: A INVENÇÃO DO TALENTO DECÁLOGO DO PROCESSO CRIATIVO NOTAS DE RODAPÉ “As grandes coisas não se fazem só por impulso, e são o encadeamento de muitas pequenas coisas reunidas num todo”. — Vincent Van Gogh, Cartas a Theo Em senhor, dono de terras, antes de viajar, chamou seus três servos e a cada um deu uma quantidade de dinheiro, uma moeda que à época se chamava talento. O primeiro recebeu cinco, o segundo, dois, e o terceiro, um talento. Quando o senhor das terras voltou, chamou seus servos a prestar-lhe contas. Durante a ausência do senhor, os dois primeiros investiram os seus talentos e, como resultado, dobraram a sua quantidade. O terceiro servo, porém, resolveu enterrar o seu talento e devolveu ao dono apenas a quantidade que recebera. Os dois primeiros foram premiados, e o último punido. Aquele que escondeu o seu único talento ficou até mesmo sem ele, e foi expulso das terras do senhor. Essa parábola, aqui numa pálida paráfrase, é contada por Jesus no Evangelho de Mateus 25; 14-30. Como todas as parábolas, especialmente as da Bíblia, essa não é de fácil interpretação, mas há um sentido que tiramos quase imediatamente dela: quem recebe um talento que seja e, por medo ou qualquer outro motivo, o esconde, não o faz render ou frutificar, está desperdiçando algo muito importante. Muito bem, o problema do desperdício ainda pode soar um pouco abstrato em algumas situações menores, como desperdício de dinheiro, mas é impossível não ser tocado pelo duplo sentido da palavra talento na parábola. Quando se trata do desperdício do talento, então, a coisa fica mais séria porque, de algum modo, intuímos aí o desperdício de nossa melhor parte, o desperdício de nós mesmos. A própria dúvida, “será que eu tenho algum talento?”, já tem o gosto do desperdício quando paralisa ou nos afasta da ação que poderia descobrir ou inventar esse talento. Como voltarei a falar neste livro: talento que não se tem, se cria. Esse tema dos talentos está diretamente ligado ao da criatividade. De algum modo intuímos uma ligação verdadeira entre os dois temas e, de algum modo, queremos saber como estamos nós mesmos em relação a eles. Para entendermos o mínimo sobre a criatividade, temos que entender o que ela é, se é mais construir ou destruir, se todas as pessoas são criativas, o que é imaginação, se a criatividade pode ser ensinada, se existe inspiração, o que é processo criativo e como desenvolver o meu processo criativo. É isso que vamos fazer neste livro, e vamos começar por responder o que é criatividade — aliás, vamos começar pelo que não é criatividade, porque, antes de plantar, será preciso limpar o terreno. C DA GAMBIARRA À INVENÇÃO: O QUE É CRIATIVIDADE O QUE NÃO É CRIATIVIDADE? omeço este livro com uma tarefa difícil: definir o que é criatividade. Mas, como diz um personagem do filme Pequena Miss Sunshine,1 “fácil é uma palavra que não existe no vocabulário do adulto”. Uma definição é uma afirmação definitiva, espera-se, um enunciado capaz de traduzir conceitualmente algo da realidade de uma vez por todas e de modo irretocável. Mas isso é muito difícil de ser alcançado, se é que é possível. Em geral, uma definição deve ser feita por etapas, em camadas, aproximando-se do objeto ou do fenômeno aos poucos. Isso é da natureza da linguagem e da natureza da realidade. Veja, por exemplo, como é difícil definir uma coisa simples como uma cadeira. Se você disser “objeto sólido feito para as pessoas se sentarem”, bem, isso não a diferencia de um banquinho, de uma poltrona ou de um sofá. Será preciso ir em busca dos detalhes específicos que fazem de uma cadeira uma cadeira e não qualquer outra coisa. Agora, se é tão difícil encontrar uma definição para uma coisa simples, imagine para as complexas, como a arte, o amor, o tempo, a alma ou a criatividade. Para essas coisas é quase impossível vir aqui e dizer numa frase simples de dicionário o que elas são na realidade. Se o amor, que é uma realidade conhecida por nós, pudesse ser traduzido na objetividade de um verbete lexicográfico, quase toda a poesia, a filosofia, o cinema e a música não precisariam existir. Isso não quer dizer que seja impossível ou inútil definir fenômenos complexos. Isso apenas significa que não devemos ser inocentes e achar que ou há uma definição fácil e pronta ou não há nenhuma possível. Definir o que é criatividade, embora a julguemos conhecer bem, ou justamente por isso, é uma tarefa que exige atenção e precisão para captar exatamente o que é isso que está relacionado a ações tão fundamentais do ser humano como criar, solucionar, inventar, descobrir, interpretar, imaginar, elaborar, confeccionar, construir, mas, ao mesmo tempo, não é exatamente nenhuma delas. A essa dificuldade inicial, própria da linguagem, soma-se o fato de que a palavra criatividade muitas vezes é usada para designar coisas e fenômenos diferentes, e que de tão gasta pelo uso, tão imprecisamente empregada, tornou- se um gatilho de equívocos. Não é por preciosismo que começo este livro por uma questão que parece puramente discursiva, verbal. Uma boa definição, uma boa descrição do que é criatividade é muito importante para limpar o terreno de uma série de bobagens que normalmente nos impedem de compreender e, pior, de educar e desenvolver a nossa criatividade. Por isso achei necessário começar este livro esclarecendo do que estamos falando quando falamos em criatividade. Além disso tudo, há um problema de base na nossa educação e no nosso modo de interpretar textos e conceitos hoje em dia que gera muita confusão nas conversas mais simples. As escolas treinam os jovens desde cedo a acreditar que a verdade não existe, que tudo é relativo e que as palavras, portanto, não querem dizer nada objetivamente, que todos os textos e a própria realidade estão subordinados ao ponto de vista e à vontade individual de quem lê e interpreta. Essa é uma deturpação grosseira de um aspecto da realidade e da própria linguagem, e que, por muito difundida, gera muita confusão e afasta as pessoas da própria realidade. Mas, observe a beleza da expressão: “o que a palavra quer dizer”. Isso implica que as palavras querem dizer alguma coisa, ou seja, que as palavras não obedecem apenas à nossa vontade, mas se inclinam para algo na realidade, aquilo que podemos chamar de referente. Ao contrário do que quer o egoísmo cínico ou preguiçoso dos relativistas, as palavras dependem da realidade para significar. A palavra pássaro existe porque existe algo na realidade que sustenta o seu sentido. Do mesmomodo, a palavra criatividade corresponde a algo na realidade, e é essa correspondência que torna a palavra compreensível. Sem o esforço de buscar o referente, a realidade, o que as palavras querem dizer, ficamos enredados no espetáculo hipnótico da confusão relativista, que diminui de modo idiota toda a realidade e todas as outras pessoas ao capricho de uma vontade individual, a minha, dizendo, por exemplo: “pra mim, criatividade é isto”, “este é o meu ponto de vista”, “é o meu jeito de ver”, “eu acho isso e cada um que ache o que quiser”, “cada um tem a sua verdade”. E isso é o sintoma daquilo que chamo de Complexo de Humpty Dumpty, o autoritário e tagarela personagem em formato de ovo do livro Alice através do espelho de Lewis Carroll. O fato de a mesma palavra poder designar coisas diferentes não deve ser confundido com aquelas ilusões preguiçosas e arrogantes do relativismo. Uma coisa poder ser vista de modos relativamente diferentes não quer dizer que ela possa ser entendida de qualquer modo — nem, muito menos, que ela seja qualquer coisa. Uma colher pode ter vários formatos, valores e usos, mas não qualquer um, e nunca será, por exemplo, uma nuvem, um míssil ou um anjo. A depender da precisão com que entendemos o que é criatividade, nós encontraremos respostas diferentes, e melhores ou piores, para perguntas específicas tais como: o que são uma coisa, uma pessoa e um fenômeno criativos? Que áreas ou profissões a criatividade afeta? Na minha profissão posso ser criativo, mesmo sem ser um artista? Todas as pessoas são criativas? A criatividade pode ser ensinada? Criar é construir ou destruir? O que é inspiração? O que é o talento? Eu posso me tornar mais criativo? O que é processo criativo? Depois de definir o que é criatividade, essas são as perguntas que vou responder no restante deste livro. Por óbvio, o que é feito automaticamente, o que apenas reproduz, o que não envolve engenhosidade, que não busca entender, inovar, solucionar, ampliar o uso, o significado ou o valor de algo, não é criativo. O que é indiferente ou robotizado é oposto ao criativo. Mas, mais perigoso do que esses opostos nítidos, porém, é aquilo que se parece com criatividade e que, por parecer, nos engana e nos desvia das possibilidades reais de desenvolvê-la. Nessa categoria, alguns dos erros mais comuns são achar que a criatividade é: 1. Um jeito espontâneo de ser 2. Ter muitas ideias ou muita imaginação 3. Um dom 4. Algo exclusivo de artistas 5. Uma atividade inteiramente livre O jeito espontâneo e extrovertido de alguém faz parecer que essa pessoa é mais solta e, portanto, criativa. É muito comum associar a criatividade a determinadas aparências e comportamentos, identificando como criativas pessoas expansivas, esquisitas, espontâneas, desinibidas ou exóticas. Enganando a si mesma ou aos outros, uma pessoa pode achar-se criativa pelo que sente, mas como diz Oscar Wilde, “toda poesia ruim é fruto de sentimentos genuínos”. O modo de vestir, de falar, de gesticular, o jeitinho especial ou exótico de ser e de sentir, nada disso é criatividade. Certa vez o músico Charles Mingus disse o seguinte: “Admiro quem consegue fazer algo original. Mas não importa a originalidade, porque pode haver originalidade na estupidez, sem descrição musical de qualquer emoção ou beleza que o homem tenha visto, ou qualquer tipo de vida que tenha vivido. [...] Criatividade é mais do que apenas ser estranho. Qualquer um pode planejar coisas esquisitas; isso é fácil. O difícil é ser tão simples quanto Bach. Tornar o simples, incrivelmente simples, isso é criatividade.”2 Em grande parte como herança da noção de gênio romântico (herança já diluída nas mil armadilhas da fama e do culto vulgar da celebridade), a ideia de criatividade pode ver-se reduzida apenas a uma atitude pessoal vagamente relacionada à originalidade, à ruptura das regras e à rebeldia. Embora esses elementos possam compor a dinâmica complexa de personalidades mais criativas, é infantilidade supor que o jeitinho pessoal de alguém se comportar seja a verdadeira causa da invenção de coisas maravilhosas como a roda, a Nona Sinfonia, o papiro, a lâmpada, o alfabeto, a Divina Comédia ou o pão de queijo. Ezra Pound disse em sua entrevista à revista Paris Review, de modo taxativo: “Qualquer idiota pode ser expontâneo”. Qualquer pessoa pode ser estranha, esquisita, ter planos mirabolantes, mas, para ser criativo, é preciso encontrar uma forma inteligente e significativa dentro de uma linguagem. Quando Charles Mingus fala das invenções de Bach como soluções de incrível simplicidade, ele está dizendo que Bach não foi só original no sentido de se expressar, mas que criou soluções dentro de uma linguagem específica — a música — e essa criação tem qualidades materiais, simbólicas e artísticas, que, indo muito além da expressão individual, ampliam e transformam o sentido da própria linguagem na qual se insere. As complicadas invenções de Bach simplificaram, ou possibilitaram, o que veio depois, abrindo caminhos que não estavam disponíveis antes. Numa conferência de 1908 intitulada A invenção matemática, Henri Poincaré diz que “inventar consiste, precisamente, não em construir combinações inúteis, mas aquelas que são úteis (e que representam uma ínfima minoria). Inventar consiste em discernir, em escolher”. Mesmo que a ideia de utilidade precise ser melhor definida e que não possa ficar restrita ao uso e tenha que incluir as necessidades do próprio espírito contemplativo, a afirmação de Poincaré vai no mesmo sentido da de Charles Mingus, ou seja: tem de haver uma obra e essa obra tem que fazer sentido e ter valor num sistema. Ter muitas ideias ou muita imaginação é outra coisa que parece criatividade, mas não é. Só ter ideias não torna uma pessoa criativa. Do mesmo modo que uma vela não é um barco e uma roda não é um carro, um pensamento é só uma parte do fenômeno criativo. Uma pessoa cheia de ideias é apenas uma pessoa cheia de ideias, seja lá o que isso for. Ela pode ser simplesmente doida, atormentada, ansiosa, e suas supostas ideias podem ser fragmentos de imagens, sugestões discursivas, conceitos, noções, rastilhos de raciocínios, memórias, anseios de projetos, ilusões ou sensações, não importa. O que está na cabeça de alguém como pensamento ou ideia, isso que está, digamos, lá dentro, se não encontra forma, se não é comunicável, não é criativo. Lá dentro, na intimidade da pessoa, as ideias são, no máximo, um problema particular ou uma delícia do suposto gênio ou idiota. A imaginação é parte da criatividade, mas não toda ela, porque ela envolve outras operações da inteligência e outras habilidades. Das diversas possibilidades de entendimento e definição do que é criatividade, nenhuma prescinde da necessidade de haver uma obra objetiva e comunicável. Para que haja criatividade, algo tem que ser feito e posto em circulação, dentro de uma linguagem e interferindo num meio específico. Isso pode ser uma complexa solução matemática, um sofisticado aparelho eletrônico, um tempero, uma roupa, um gesto, um poema, uma técnica cirúrgica ou uma frase. Em qualquer caso, essa coisa tem que existir num meio específico, numa linguagem, e tem que circular objetivamente, com valor e significado para além de quem primeiramente a imaginou. Um poema imaginado por alguém não é um poema; é a imaginação de um poema, se tanto! Paul Valéry contou certa vez um diálogo ocorrido entre o pintor Edgar Degas e o poeta Stéphane Mallarmé, conforme o próprio Degas lhe teria relatado. Diz Valéry: “O grande pintor Degas costumava me contar esta fala de Mallarmé, tão justa e tão simples. Degas fazia versos às vezes, e chegou a deixar alguns deliciosos. Mas, de repente, ele passou a encontrar grandes dificuldades nesse trabalho paralelo à sua pintura. [...] Ele disse um dia a Mallarmé: — Teu trabalho é infernal! Não posso fazer o que quero, e no entanto, estou cheio de ideias! E Mallarmé lhe respondeu: — Não é com ideias, meu caro Degas, que se fazem versos. É com palavras”.3 É claro quehá uma relação entre as ideias e as palavras, entre a imaginação e o fazer, entre o engenho e a arte. O próprio Paul Valéry conta essa anedota num ensaio em que está investigando essas relações mais profundamente. Mas, a frase de Mallarmé direciona nossa atenção para a verdade primeira da criatividade, ou seja, que ela tem que ser realizada na transformação significativa de uma matéria prima, na confecção de uma obra, ou, como diz a expressão grega, na poiesis, no fazer. Aquelas ideias na cabeça de Degas, mesmo na cabeça do grande Degas, não são poesia, não são pintura, ainda não são criatividade, mas só uma parte dela. O poeta Stanley Kunitz diz algo que devemos guardar como uma regra de ouro para entender o fenômeno da criatividade e o princípio fundamental do processo criativo: “O poema na cabeça é sempre perfeito. A resistência começa quando você tenta convertê-lo em linguagem”. Tornar-se criativo é aprender a lidar e vencer essa resistência. Parece uma diferença irrelevante? Pois é a diferença entre ter ideias e ter a capacidade e a coragem de submeter essas ideias à realidade material o que separa uma pessoa realmente criativa das fantasiosas ou frustradas. Tomar a criatividade como um dom é, também, ficar só com um pedacinho da coisa e, além disso, correr o risco de falsificar a parte mais importante dela, supondo que seja algo impossível de ser desenvolvido. Geralmente quando aceitamos a ideia de que a criatividade é um dom, damos como certo que ela só ocorre a alguns iluminados e que nem mesmo eles tiveram que fazer esforço, porque tudo o que fazem lhes vem pronto de alguma fonte insondável. É certo que algumas pessoas podem ter dons diferentes, mas é errado supor que a criatividade seja naturalmente para poucos e que nada se pode ou se deva fazer para educá-la ou desenvolvê-la. Mais à frente neste livro vou responder se criatividade pode ou não ser ensinada, mas já fica aqui uma sugestão: o que certamente pode ser ensinado são caminhos que levam a pessoa às suas melhores possibilidades de realização criativa. Esses caminhos geralmente começam pela superação de alguns obstáculos conceituais, falsos problemas, ilusões, enganos entorpecentes. Um deles, por exemplo, é a série de falsificações comuns em torno das ideias de gênio e talento, que, tratadas de modo leviano, podem prorrogar ou mesmo impedir o bom desenvolvimento de uma personalidade criativa, por inibi-la ou afrouxá-la demais. Outra falsificação perigosa é achar que a criatividade está restrita ao universo das artes. Do empresário ao jardineiro, do músico ao eletricista, do biólogo ao esportista, do professor ao médico, do sacerdote ao advogado, todos os campos de atuação humana são afetados pela criatividade porque ela é um traço da nossa natureza racional e cultural. A criatividade não está restrita a disciplinas específicas ou profissões determinadas. Só podemos levar a sério a ideia de que a criatividade é coisa de artista se levarmos também a sério a ideia de que todas as atividades humanas têm uma dimensão artística no sentido da capacidade de fazer, construir, elaborar, confeccionar, criar intencionalmente coisas novas. E é justamente nesse sentido que emprego a palavra artista neste livro. Assim, quando falo artista, estou me referindo, nesse contexto, na maioria das vezes a qualquer atividade criativa em qualquer área ou disciplina. É muito comum também associar a criatividade a um vago e juvenil conceito de liberdade, como a ausência ou anulação de todos os limites. Parece que liberdade é algo que se alcança por determinação própria; um belo e idílico lugar onde não há regras, normas ou limites, porque você voluntariamente os superou como quem se livra de imposições alheias. Mas liberdade não é ausência de limites, e sim a capacidade e a condição de lidar de modo racional com eles. É fazendo escolhas que se experimenta a liberdade, não abolindo as perdas como se a realidade se colocasse aos nossos pés. É como diz muito bem Gustavo Corção: «A força da liberdade é proporcionada à força da escolha. E assim é evidente que é nas mais pesadas opções e nas mais motivadas escolhas que resplandece a liberdade. Um homem é mais matemático quando resolve equações diferenciais do que quando faz um troco. Do mesmo modo o homem se afirma mais livre quando resiste a uma tentação do que quando faz bolinhas de miolo de pão”.4 O exercício da criatividade e a prática do processo criativo são livres justamente nesse sentido de inventar dentro das possibilidades, de construir dialogando com as regras da linguagem e dentro de todas as limitações das circunstâncias. Para dar o exemplo das artes, onde aquele sentido juvenil de liberdade costuma afetar sobretudo os iniciantes ou os extremamente vaidosos, o trabalho criativo do artista é encontrar as possibilidades e os significados possíveis nos limites da sua matéria prima, das suas habilidades, dos seus meios e da sua própria inteligência e personalidade. O artista experiente sabe que não domina completamente a sua matéria prima, mas que negocia com ela. Para finalizar, há uma outra possibilidade de mal entendido em torno da palavra criatividade, que não listei acima, mas que é preciso esclarecer agora. Alguns bons pesquisadores afirmam que a criatividade não é um fenômeno exclusivo do ser humano porque há padrões de memória e transformação em todos os sistemas orgânicos, e que os seres mais simples parecem tomar decisões criativas. Há, digamos assim, um padrão biológico criativo em todos os seres vivos. O conceito de vida não é um conceito fechado e definitivo, mas qualquer caracterização biológica da vida dificilmente escapará de alguns pontos em comum com as ideias de sistema, homeostase, metabolismo, adaptação, ciclos de vida, reprodução, evolução e resposta ambiental. Além disso, toda matéria tem uma memória e uma espécie de conhecimento interno que a faz reagir de determinados modos limitados e específicos a situações diferentes. Os seres trocam informações e, portanto, interagem de forma adaptativa conforme as informações recebidas e as que podem enviar. A vida é transformação e movimento. Os seres estão em mutação a todo tempo. O fim desse movimento ordenado de transformações com a mesma finalidade é também conhecido como morte. Há semelhanças, portanto, entre a criatividade e essa sequência de fenômenos biológicos, motivo pelo qual podemos achar que são a mesma coisa — como se o que nós, humanos, fazemos apenas se diferenciasse em grau daquilo que todos os seres vivos fazem. Todos aqueles processos biológicos podem compor o fenômeno da criatividade, mas não são suficientes para defini-la. Dizer que todos os seres vivos são criativos me parece um exagero metafórico, ou, mais especificamente, uma prosopopéia. Essas comparações são muito eloquentes aos olhos de quem tem por base os modelos evolutivos da ciência para explicar a realidade. Mas a realidade, a realidade humana, não cabe inteiramente nos modelos evolucionistas. O ser humano não é apenas mais evoluído que os outros animais. Nós temos mais diferenças significativas do que diferenças de grau. A criatividade é um fenômeno exclusivamente humano porque não se resume a usar ferramentas, raciocinar, encontrar soluções circunstanciais, sofrer transformações orgânicas e trocar informações, como todos os animais e a maioria dos seres vivos faz. Criatividade é uma atividade humana porque é a elaboração de uma resposta ao mesmo tempo pessoal e cultura à vida, uma resposta sempre intencional e capaz de gerar valor e significado para outros além daquele indivíduo que operou a transformação, e para além daquele momento em que ela ocorreu. A criatividade é um traço próprio do ser humano porque não se limita à resposta mais ou menos engenhosa que se dá às circunstâncias de acordo com as necessidades instintivas da espécie. A criatividade é o potencial humano, pessoal, de agir e fazer coisas respondendo não só às suas necessidades de sobrevivência, mas à sua necessidade e capacidade de projetar com valor e significadoa própria vida. O QUE É CRIATIVIDADE? Feita essa limpeza do terreno conceitual, vamos à definição objetiva: criatividade é a potência humana de criar, realizada em obras e atos significativamente úteis, valiosos e personalizados, comunicados na cultura. Vamos destrinchar essa definição porque nela está o que é essencial entendermos sobre a criatividade. Nela encontramos a seguinte sequência de ideias: 1. Criatividade como potência humana; 2. Uma potência de criar; 3. Não só a potência como uma possibilidade latente, senão como possibilidade realizada. Portanto, a criatividade é, ao mesmo tempo, uma potência que está no ser humano e a sua própria realização em obras e atos, que compõem a cultura e a civilização. 4. Essas obras e esses atos devem ser significativos, ou seja, não devem ser insignificantes; devem ser personalizados e, por isso, valiosos. Uma obra criativa não é apenas mais uma de uma série; ela está personalizada ou por trazer uma solução, ou uma inovação, uma invenção, enfim, algum valor intrínseco que a singulariza no contexto, na tradição e na linguagem à qual pertença. 5. Necessariamente comunicada à cultura porque uma obra não pode ser criativa sem entrar em contato com o conjunto de obras que a precedem e com uma comunidade capaz de entendê-la. Para que essa definição faça sentido, precisamos também entender corretamente as palavras potência e criar. Potência é o poder ou o potencial. Podemos dizer que a potência é aquilo que está pronto para ser realizado em ato. De outro modo, podemos dizer que os atos são a realização daquilo que já existia em potência. Se uma coisa cresceu, por exemplo, é porque tinha a potência do crescimento. Criar é uma palavra que tem dois sentidos diferentes, um divino e outro humano. A criação em sentido sobrenatural é o surgimento ex nihilo, ou seja, do nada para a existência; é obra de Deus. Deus fez surgir a própria realidade, e não novidades nela: “Omnia per ipsum facta sunt, et sine ipso factum est nihil, quod factum est” (João 1, 3).5 A criação é a passagem do nada para a existência, ou do caos à ordem. O segundo sentido é o propriamente humano, ou seja, refere-se ao campo de nossas possibilidades de fazer e agir. A criação humana, a criatividade, não tem a capacidade de fazer surgir a realidade, não pode trazer nada à existência que não seja a combinação de coisas que já existem; não manipula nem acessa o ex-nihilo. Mas, o que fazemos sob o nome de criação, de algum modo, descende daquele sentido divino e, em alguns casos, o emula e até deseja superar. No canto xi do Inferno da Divina Comédia, Virgílio diz a Dante: “Tua arte, assim, tão boa quanto seja, imita a natureza, da mesma forma que um aprendiz imita o seu mestre; de modo que pode a tua arte ser chamada a neta de Deus”.6 A natureza, que nos precede, é, nas palavras de Santo Tomás de Aquino, “um certo tipo de arte, ou seja, a arte de Deus”.7 Isso quer dizer que a natureza é obra, ou seja, que tem forma, ordem e significado, e que pode ser entendida e, ao mesmo tempo, causar admiração por revelar a sua razão e não aleatoriedade, por atrair para o seu mistério e sua integridade coerente. Por isso J.R.R Tolkien falava de subcriação ou criação secundária. O que o homem faz é ordenar e significar novamente o que já lhe está disponível. Por mais fabulosa que seja uma concepção narrativa ou imagética, ela sempre parte de elementos encontrados na realidade. Um dragão que voa com asas de borboleta, fala como um ser humano e é capaz de mudar vertiginosamente de tamanho, é apenas um arranjo fantasioso de elementos da realidade. Só podemos imaginar um dragão assim porque existem os animais, dos quais um dragão é um tipo, porque existe o voar, porque existem as asas e as borboletas, e existe a fala humana, e existe a proporção e a matéria e a possibilidade de sua observação e etc. Nenhuma fantasia cria uma realidade. Ela pode, no máximo, fazer combinações atípicas. No segundo capítulo, vamos analisar essa questão em detalhe, mas o importante agora é notar que a criação humana espelha de forma reduzida esse mesmo gesto de ordenação expresso originalmente na natureza. Assim, partimos já de uma limitação, digamos, natural, para entender a criação humana. A própria palavra invenção, sugerindo a inteira novidade, é, no fundo, um equivalente etimológico da palavra descoberta. Inventar é descobrir, criar é arranjar, compor, ordenar, confeccionar, significar, ou seja, fazer intencionalmente obras que articulam elementos da realidade. O potencial da criatividade não é, pois, um poder divino de fazer surgir algo novo na realidade, mas sim a capacidade e a inclinação humana de, dentro da realidade, compor, solucionar, inventar, descobrir ou elaborar coisas novas. A definição de criatividade de Fayga Ostrower toca precisamente nesse aspecto potencial e limitado ao mesmo tempo: “criar é basicamente formar. É poder dar forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse ‘novo’, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por suas vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar”.8 Para nós, criaturas humanas, é como diz o rei Lear de Shakespeare: “Nada vem do nada”. Entender a criação como essa atividade que articula e compreende elementos dados da realidade, combinando conhecimentos e habilidades diferentes, é uma mudança que pode parecer superficial, mas é muito importante e profunda para a educação de um espírito criativo. Ela gera, por exemplo, a disposição humilde necessária para observar e trabalhar na realidade, que é uma das chaves do processo criativo. Como está dito na definição acima, a palavra criatividade designa a potência de criar, mas também o próprio mecanismo de criação e os seus resultados, ou seja, o conjunto e a dinâmica das invenções, descobertas e soluções humanas na cultura e na civilização. Para facilitar nosso entendimento, portanto, vou apresentar a criatividade por dois lados um pouco diferentes, mas complementares. De um lado a veremos por fora, numa perspectiva extrínseca, como num mapa, procurando entendê-la como um mecanismo operando na sociedade humana. Por outro lado teremos uma visão intrínseca, observando a criatividade do ponto de vista pessoal, psicológico, comportamental, procurando entender aquela potência de criar do indivíduo humano. Como no próximo capítulo vou investigar melhor esse segundo lado, a criatividade como potencial humano, vou me dedicar agora a apresentar a criatividade por esse lado extrínseco, como um mecanismo da civilização. O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, um pesquisador importante da criatividade, propõe um modelo muito preciso e que nos ajuda a compreendê-la como fenômeno social ou como um mecanismo da cultura. Para Mihaly Csikszentmihalyi, a criatividade é um processo complexo e multifacetado, que resulta da combinação de vários fatores, não apenas da ação ou da intenção do agente criador. Nesse sentido, ela é um fenômeno semelhante a um acidente, para o qual deve contribuir, inclusive, uma dose de acaso. Em suas próprias palavras: “Uma ideia ou produto que merece o rótulo de criativo surge da sinergia de muitas fontes e não apenas da mente de uma única pessoa. [...] Sob esse ponto de vista, a criatividade resulta da interação de um sistema composto por três elementos: uma cultura que contém regras simbólicas, uma pessoa que traz novidade ao domínio simbólico e um campo de especialistas que reconhecem e validam a inovação”.9 Um exemplo prático: a ciência física é a cultura com suas regras simbólicas, a comunidade científica é o campo de especialistas, e Albert Einstein a pessoa que traz a novidade. Sobretudo se pensamos em sistemas de inovação, esse modelo pode ser aplicado a diversos casos permitindo-nos ver o fenômeno, como eu disse, de modo extrínseco, como uma engrenagem e, especialmente, podemos entender como ele não se reduzà perspectiva pessoal. É um modelo um tanto severo porque toma como criativa apenas aquela obra que é reconhecida por especialistas como fator de inovação em sistemas específicos. Considero que, assim, ao pé da letra, o modelo fica limitado aos domínios científico e tecnológico porque nestes o critério de inovação é soberano. Mas em outras áreas de atuação humana, igualmente criativas, a inovação é um critério, mas não o único. Por exemplo, nas artes e nos esportes. Será mesmo que um atleta só pode ser criativo se o que ele faz impacta a sua modalidade a ponto de transformá-la? Será que esse atleta só é criativo se faz algo que nenhum outro atleta nunca fez? Do mesmo modo, um artista pode criar novidades sem inovar a linguagem e a tradição na qual está inserido. Não me parece que um excelente poema como A máquina do mundo de Carlos Drummond de Andrade tenha mudado ou inovado a tradição literária, mas isso não torna sua confecção menos criativa. Como a criatividade não é um fenômeno restrito aos domínios científico e tecnológico, onde a inovação e a descoberta podem ser os critérios maiores para definir o que é e o que não é criativo, devemos levar em conta algumas sutilezas muito significativas na criação em outras áreas. Temas importantes para serem discutidos sobre a relação entre inovação e criatividade são, por exemplo: Todo produto criativo necessariamente precisa ser inovador? A inovação gera sempre um benefício? Platão e Aristóteles10 já colocavam essas perguntas sobre a mesa. Eles já desconfiavam de que nem toda mudança é benéfica, de que nem toda criação significará progresso em qualquer área e de modo universal. Há de se considerar também uma diferença de proporções, de escala mesmo. Uma solução pontual, um arranjo, um improviso engenhoso pode ser entendido como uma ação criativa. Ainda que seja muito diferente em valor e significado da descoberta da penicilina ou da formulação dos princípios matemáticos da representação linear da perspectiva, uma gambiarra improvisada que solucione um problema circunstancial é, digamos assim, parte da família dos atos criativos maiores. A engenhosidade está no DNA do gesto criativo. Da gambiarra à invenção, há semelhanças e diferenças importantes para se compreender a criatividade. Nas artes, por exemplo, a inovação não é o único objetivo da criação nem tampouco o único critério de avaliação de qualidade, valor ou interesse. Veja o que diz Jean Genet comentando a obra de Alberto Giacometti: “Não compreendo bem o que em arte se chama um inovador. Uma obra deveria ser compreendida pelas gerações futuras? Mas por quê? E o que isso significaria? Que elas poderiam utilizá-la? Para quê? Não entendo. Mas entendo bem melhor — ainda que muito obscuramente — que toda obra de arte que queira alcançar as mais grandiosas proporções deve, com uma paciência e uma aplicação infinitas desde os momentos de elaboração, descer aos milênios, juntar-se, se possível, à noite imemorial povoada de mortos que irão se reconhecer nessa obra”.11 Essa observação de Genet revela que o que está em jogo na arte não é mesmo para outras áreas. Os eletrodomésticos, por exemplo, perdem seu valor e utilidade quando surge um aparelho novo mais eficaz. Nas ciências e na tecnologia, o sentido de progresso é um valor intrínseco; nas artes, não. Vamos observar, também, a diferença entre inovação e novidade, considerando que ambas fazem parte do fenômeno da criatividade. Uma novidade é uma obra feita, que não existia, passou a existir dentro de uma linguagem e entrou em relação com outras obras e outras pessoas. Uma inovação é quando essa novidade muda a linguagem à qual pertence, atualizando-a, transformando seus valores, regras e usos, de modo a orientar as possibilidades das próximas obras a serem feitas naquela linguagem ou domínio. Um exemplo rápido dessa diferença entre novidade e inovação: um poema que você escreva agora será imediatamente uma novidade, mas não necessariamente será uma inovação no campo da poesia. Não existia, e passou a existir, acrescentou-se à tradição, está em diálogo com o acervo existente, é uma novidade. Se essa novidade transformar a tradição poética, passa a ser uma inovação. Uma inovação causa uma alteração sistemática no domínio a que ela pertence até ao ponto de criar novos domínios. A novidade, porém, mesmo sem esse impacto, se não é apenas uma reprodução automática ou robótica, mas uma obra personalizada, ela é criativa e alimenta o domínio. Considero, assim, tanto a inovação como a novidade como episódios da criatividade. Nem toda cultura é feita de tecnologia. Uma tradição artística se mantém viva por inovações e por continuidades, por ruptura e por conservação. Um artista cria na invenção, mas também na experiência de variações e até mesmo na repetição de formas capazes de aprofundar o diálogo com a linguagem ou a tradição na qual suas novidades vivem. Apesar dessa ponderação, o modelo de Csikszentmihalyi é excelente por deixar clara a impossibilidade de entender a criatividade apenas na dimensão pessoal. Ao dizer que um produto “criativo surge da sinergia de muitas fontes e não apenas da mente de uma única pessoa”, ele nos oferece um mapa do funcionamento desse fenômeno para além das fantasias ególatras e dos fantasmas da genialidade. Esse mapa servirá tanto para quem quiser estudar o tema como para quem quiser de verdade desenvolver seus talentos e potencialidades de criação. A primeira conclusão que tiramos da descrição da engrenagem de Csikszentmihalyi é a necessidade imperativa de haver uma obra porque é ela que interage com o sistema, não a vontade, o pensamento ou o desejo da pessoa pretensamente criativa. A segunda é que essa obra nasce numa cultura dada, numa tradição, numa linguagem e que, portanto, lida com regras e valores anteriores; logo, por mais radicalmente inovadora ou inspirada que seja, é uma espécie de resposta. As inovações e as obras criativas dependem de uma linguagem que as antecede e as solicita. Essas duas conclusões podem parecer óbvias demais, mas o esquecimento dessas obviedades é geralmente um dos maiores entraves na educação e no desenvolvimento dos processos criativos. Sem tratar a obra como prioridade e sem levar em conta que criar é algo que ocorre dentro de domínios com regras estabelecidas, esquecemos a necessidade do trabalho, do desenvolvimento técnico e de tudo aquilo que consolida e dá eficácia a um processo criativo. Estamos, portanto, muito além do terreno da intimidade e do jeito de ser mais ou menos original de alguém que se julgue criativo. Ninguém é criativo para si mesmo ou apenas porque tenha certas características emocionais, psicológicas ou comportamentais. Ser criativo é atuar por meio de obras numa cultura. CRIAR É CONSTRUIR OU DESTRUIR? Eis aqui um dos muitos opostos falsamente incompatíveis que surgem quando se fala em criatividade. Construir e destruir são duas dimensões complementares do processo criativo, e que têm que ser entendidas dentro do quadro das relações entre obra, cultura e tradição, pois a própria ideia de inovação é dependente delas. Daí será inevitável falar um pouco sobre a técnica e os riscos da adoração da inovação e da tecnologia. Por fim, vou falar um pouco sobre o conceito de forma, porque esse costuma ser um gargalo no entendimento da ideia de construção, sobretudo no universo das artes. Sob a oposição entre construção e destruição costumam se abrigar dois dos maiores venenos para uma inteligência criativa: a petulância ignorante e a moderação medrosa. Um desconsidera a cultura e supõe que criar é um ato autônomo que surge do seu gênio e da sua vontade revolucionária e que cada gesto seu inaugura todas as possibilidades de significado. Outro, supondo ser a cultura um acervo venerável, uma espécie de Arca de Noé contra as intempéries do momento, agarra-se ao que já está solidamente estabelecido como refúgio contra a dinâmica insegura das ameaçadoras transformações. A criatividade ocorre numa dinâmica mais complexa do que prometem esses dois pólosopostos. Essa dinâmica é feita por tensões de construção e destruição, conservação e inovação, ordem e desordem. Em qualquer área que seja, não há como exercer a criatividade sem correr riscos, porque o coração da coisa é um gesto em direção ao que ainda não é conhecido, ao que ainda não está pronto. Também não é possível exercer a criatividade como se nada fosse conhecido, como se você partisse de um ponto zero, ou de um ponto de simples oposição e enfrentamento revolucionário, como se um gesto destruidor fosse por si mesmo sempre um reinauguração de tudo. Vejamos um exemplo: a criação da filosofia. Vamos considerar que ela foi uma invenção de Sócrates, o que pode ser uma simplificação, mas não é um erro. Quando Sócrates diz que sabe que não sabe, e que é isso justamente que o move ao saber, bem, ele está claramente correndo riscos, mas, também está dizendo que esse movimento o coloca em relação com algo que o antecede, que está lá, pois algo se sabe, existe a sabedoria, mesmo que ele não saiba ainda. Se a filosofia é o amor e a busca da sabedoria, é certo que a sabedoria existe, pois não se pode amar nem buscar o que não existe. Então, inventando a filosofia, Sócrates está dinamicamente exercendo o risco da transformação e a atenção cuidadosa e, digamos, conservadora, com o que já existe. A criatividade gera e se alimenta da energia dessa dinâmica entre destruir e construir. Uma mudança intencional há de destruir alguma coisa para edificar outra em seu lugar. Um escritor rompe a estabilidade da página em branco ao riscá-la com as linhas da sua sintaxe. Um pintor suja a tela até encontrar a forma e a ordenação da imagem que pretende. Olhando mais de perto a questão, podemos ver que o próprio trabalho de construção e ordenação de um artista faz-se desordenando e alterando alguma matéria prima. Assim, um escultor quebra a pedra ao esculpir, um pintor mistura as tintas, altera as cores, um músico rompe o silêncio quando toca seu instrumento. Há uma alteração do estado de coisas anterior devido ao fazer artístico, e há, podemos dizer, uma destruição, da forma e dos estados da matéria prima, na construção daquilo que se tornará obra. Assim como criar é construir e destruir ao mesmo tempo, o ato criativo em qualquer área de atuação humana está envolvido, também, numa série de outros pares opostos e complementares, que funcionam como uma engrenagem. É preciso estar atento ao significado dessas oposições e perceber como o sentido está muito mais na tensão entre os opostos do que na escolha simples de uma lado. Essa é, aliás, uma característica muito comumente apontada como essencial nas personalidades mais criativas: a capacidade de conviver e com oposições, contradições, complexidade e mesmo ambiguidades, preferindo ver ligações do que aferrar-se em incompatibilidades. Entre “isto ou aquilo”, é muito comum que pessoas mais significativamente criativas optem por “isto e aquilo”. Mas, voltando ao nosso tema, o ato de criação humano é ao mesmo tempo feito de conservação e ruptura, novidade e repetição, invenção e descoberta. Quando antes eu disse que somos animais de cultura, isso quer dizer que nossa vida é pessoal mas não isolada, e que, à diferença dos demais seres gregários, nós estamos em relação não só com o bando que está agora ao nosso redor, como num cardume ou numa boiada, mas também com os mortos e com os que ainda não nasceram. Alguém poderá dizer que também os peixes estão ligados aos seus antepassados e aos seus sucessores por meio da sua carga genética. O ser humano tem isso e mais: a ligação consciente, afetiva, simbólica — e essa não é uma diferença de grau, mas de natureza, um diferença ontológica. Quando o ser humano cultiva e cultua, ele não está apenas utilizando-se de um acervo, assim como um macaco pode usar circunstancialmente um graveto para alcançar o que deseja. A cultura é uma participação na qual, ao receber significado e valores, também passamos a significar e ter valor; ao cultivar os nossos mortos, ao não os abandonar como se saíssem completamente da vida, também nós agora, vivos, somos resgatados da mera indiferença animal ou mecânica e integrados numa ordem que supera as circunstância imediatas. A cultura e a civilização não são apenas um acervo de objetos úteis. O ser humano distingue-se da natureza criando o seu mundo dentro das possibilidades do mundo dado. Nós não podemos criar a natureza nem podemos criar fora da realidade, mas elas não nos bastam. Para todos os outros seres a existência está completa e plenamente significada. Para o ser humano, não. A incompletude do ser humano, essa necessidade de sentido, é a origem da nossa, digamos, natureza criativa. Desde a confecção das primeiras vestes e ferramentas, passando pelo domínio do fogo, pelas edificações, pela agricultura, pela pecuária, pela escrita, pela arte, até a eletrônica, é o que temos feito: criar esse espaço físico e simbólico que nos diferencia da natureza bruta. Toda criação humana está subordinada aos limites naturais da matéria prima que utiliza e à dimensão dos significados conhecidos pelo homem. Os códigos culturais e a tradição informam por dentro as suas próprias possibilidades criativas. Por exemplo: a poesia mais inventiva, mais inovadora e surpreendente, está feita numa língua que já existe. E ela só pode ser inovadora porque existe algo anterior que ela inova. O ato criativo, por mais que se creia ou seja revolucionário, desestabilizador, inovador, corresponde a fazer uma obra que terá significado dentro de alguma linguagem de um campo específico e de uma tradição. É como participar de uma conversa. O ato criativo é resultado da intenção de uma pessoa, mas é também, desde o início, resultado da cultura e da civilização. Cada obra ou solução encontrada só faz sentido dentro de um sistema de regras e valores, dentro de uma cultura, dentro de uma tradição. O novo depende do antigo, a transformação depende da estabilidade. O tema da cultura e da civilização está, portanto, intrinsecamente ligado ao tema da criatividade. Como tal, pensando na prática do fazer e do acervo de bens simbólicos e materiais que compõe a cultura e a civilização, as obras, as descobertas, as invenções, as soluções, enfim, tudo isso tem relação direta com o tema da técnica e da tecnologia. E aqui começamos a enfrentar uma daquelas maravilhosas ambiguidades dos temas centrais da vida humana, quando a mesma coisa que é remédio é veneno, quando enfrentamos o que os gregos chamavam de pharmakon. A técnica e a tecnologia, sob um olhar apressado, parecem o puro benefício do ser humano, mas, de perto, a coisa não funciona assim. Há uma diferença fundamental entre usar uma ferramenta, ser usado como ferramenta e ser usado pela ferramenta. Essa diferença é fundamental porque está no fundamento ou, podemos dizer, na essência do ser humano. Entre essas três possibilidades, o que é mais próprio da vida humana pode ser encontrado e pode ser perdido. No Fedro de Platão, Sócrates conta a história da conversa entre o rei Tamus do Egito, e Tot, a divindade inventora, que já criara “os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo de gamão e dos dados, e também os caracteres da escrita”. Tot tentava demonstrar ao rei a necessidade de ensinar e aplicar suas invenções no reino, mas o rei, prudente, o questionava sobre a sua utilidade, seus benefícios e potenciais malefícios. Mas, ante todas as tecnologias apresentadas por Tot, Tamus encasquetou especialmente com a escrita, sobre a qual o inventor dizia: “Aqui está, majestade, uma disciplina capaz de deixar os egípcios mais sábios e com melhor memória. Está descoberto o remédio para o esquecimento e a ignorância”. Parece óbvio o benefício, mas Tamuz vai além, vê no remédio o potencial veneno, e diz: “Engenhosíssimo Tot, uma coisa é inventar as artes e outra, muito diferente, discorrer sobre a utilidade ou desvantagens para quem delas tiver que fazer uso. Tal é o teu caso, como pai da escritura: pela afeição que lhe dedicas, atribuis-lhe ação exatamente opostaà que lhe é própria, pois é bastante idônea para levar o esquecimento à alma de quem a aprende, pelo fato de não obrigá-lo ao exercício da memória. Confiantes na escrita, será por meios externos, com ajuda de caracteres estranhos, não no seu próprio íntimo e graças a eles mesmos que passarão a despertar as suas reminiscências. Não descobristes o remédio para a memória, mas apenas para a lembrança. O que ofereces aos que estudam é simples aparência de saber, não a própria realidade. Depois de ouvirem um mundo de coisas, sem nada terem aprendido, considerar-se-ão ultrassábios, quando, na grande maioria, não passarão de ignorantes, pseudossábios, simplesmente, não sábios de verdade”.12 Não é nosso assunto aqui a discussão particular sobre as vantagens e desvantagens da nova tecnologia da escrita e dos livros, mas hoje, mais de dois mil e trezentos anos depois do relato dessa hipotética conversa, hoje, na época em que temos o Google, é razoável ponderar, como fez o rei Tamus, se o acesso imediato à informação não só é capaz de inibir a memória como de forjar falsos sábios. O que nos interessa aqui é lembrar, já que estamos falando de criatividade, que a inovação e a tecnologia não são necessariamente sinônimo de solução nem de benefício exclusivamente. A técnica é característica propriamente humana, mas que tanto pode libertar o ser humano quanto aprisioná-lo. A tecnologia é uma faca de dois gumes. A mesma ferramenta que pode salvar vidas pode tirar vidas. A mesma ferramenta que promove liberdade, pode tirar liberdade. A mesma ferramenta que distribui informação pode espalhar a ignorância. Só uma pessoa completamente tola pode acreditar que a ciência é sempre um benefício em si. O modo mais pobre e enganoso de se definir a forma é como a simples aparência externa de algo que nunca se mostra. Mas, se a forma aparente não tivesse relação necessária com o seu conteúdo não aparente, ela não seria uma forma dele. O conteúdo precisa da forma e, se se mostra, se se comunica, é nela, com ela que o faz. Como diz o belíssimo poema de Yeats, como separar a dança do dançarino? O conteúdo vive na forma, que não é a sua embalagem, mas a sua realidade sensível. A forma é o resultado de uma ordem, que implica alguma razão e algum significado. Dar forma ou percebê-la é entrar em contato com uma ordenação significativa, com um sentido ou uma racionalidade. E não se confunda racionalidade com lógica. O contrário da racionalidade, ou da razão, nesse sentido é a indiferença ou ausência de intenção. Na criação humana as formas são sempre intencionais. Os efeitos dela podem até ser incompreensíveis e aleatórios, mas ela em si resulta de alguma intenção. Isso não quer dizer que ela expresse uma intenção específica no sentido de uma mensagem objetivamente escondida em si. Não, nada disso. Quando digo que a obra é sempre intencional quero dizer que ela resulta de uma ação deliberada que traz em si a razão das escolhas específicas do seu agente. Para deixar isso claro, vejamos, por exemplo, as experiências surrealistas e dadaístas de criar poemas com palavras sorteadas ao acaso. Primeiro, a intenção era fazer poemas com isso, e, segundo, as palavras eram de algum modo pré-selecionadas; de qualquer forma, pré-selecionadas. Em terceiro lugar, havia de se tomar a decisão de interromper o processo. E o mero fato de decidir o momento de interromper a composição revela a intencionalidade da ação. Por que o artista parou naquele momento? Por que escreveu as palavras na mesma linha ou por que saltou as linhas? Por que leu desta ou daquela forma, dando às palavras esta ou aquela entonação? Vejamos também uma pintura como a de Jackson Pollock cujos efeitos parecem sugerir para muitos um gesto aleatório, um resultado sem intenção. Basta olhar suas telas para ver que ele trabalha com uma cartela específica e não com todas as cores em cada tela. Alguém pode dizer que seria mesmo impossível usar todas as cores. Sim, isso mesmo, e, diante do impossível ele como qualquer artista escolhe dentro do possível. Pollock jogou seu braço para a esquerda quando poderia ter jogado para direita, derramou quando poderia ter espirrado tinta e espirrou quando poderia ter derramado. E, claro, escolheu parar em algum momento. Assim, aquilo é aleatório ou intencional? O artista não consegue fugir do fato de ter que escolher entre possibilidades. E escolher é limitar, limitar é dar forma, e dar forma é compor sentido. Ainda que tenha um pé na análise, a criação é o resultado de uma síntese, e, como tal, uma operação de composição de possibilidades. A potência de fazer isso é a criatividade. T DO ROBÔ À PESSOA: DO SER HUMANO A NATUREZA CRIATIVA TODAS AS PESSOAS SÃO CRIATIVAS? odas as pessoas são criativas? Apesar de muita gente fazer muita força para desperdiçar os seus talentos, inibir a imaginação e sucumbir aos estados animalesco ou robótico, sim, todas as pessoas são potencialmente criativas porque a criatividade é uma dimensão da própria natureza humana, um traço da sua razão vital, um componente daquilo mesmo que faz do ser humano o que ele é essencialmente. O próprio Mihaly Csikszentmihalyi, que no capítulo anterior nos deu um modelo para a definição extrínseca da criatividade, diz que “a criatividade é uma fonte central de sentido em nossas vidas”. Uma fonte central quer dizer algo que está na essência, alimentando a nossa vida. O ser humano é um animal além do animal e um anti-robô. Uma vida humana reduzida aos instintos e às sensações ou robotizada, logo se vê, é uma vida infeliz ou inferiorizada. O ser humano não foi talhado para viver como um animal, acuado pelo instinto de sobrevivência, a responder apenas ao desejo imediato numa relação de fuga e recompensa. O ser humano não é uma máquina, cujas ações são todas programadas de fora e cujo funcionamento só se justifica quando realiza o objetivo específico que lhe dá utilidade. O ser humano vai além do animal e muito, muito além da ferramenta. Nós, cada um de nós, eu, você, aquela outra pessoa ali perto, alguém que viveu na casa da Pérsia há mais de dois mil anos, distante no tempo, ou alguém agora num apartamento na cidade de Wuhan, na China, todos nós, ou melhor, cada um de nós, é um ser do sentido, experimentando a possibilidade e a carência de sentido, procurando ser alguém, não só um bicho nem só uma máquina. A nossa vida não está pronta nem determinada. Ao contrário: nós experimentamos sempre uma carência que vem da necessidade de entender e de dar sentido a isso mesmo que chamamos nossa vida. Um leão, por exemplo, será o leão que tem de ser. Nem o leão nem a samambaia têm dúvidas se estão fazendo o melhor a respeito de si mesmos. Eu e você sabemos que, de algum modo, mesmo limitados por todas as circunstâncias, ainda assim somos autores da nossa própria vida. Aquela pergunta feita às crianças nunca nos abandona: quem você quer ser quando crescer? A clássica definição do ser humano como animal racional não pode ser entendida apenas como um animal que pensa nem muito menos como um animal que pensa logicamente. O animal racional é o animal do sentido e da linguagem, o animal da cultura, o animal que precisa entender e significar, que vive além do instante, articulando passado e futuro, memória e projeto, herança e criação. Para ter certeza disso, nós não precisamos de uma sofisticada prova acadêmica; basta pensarmos em nós mesmos e lembrar do seguinte: em nossa vida pessoal, na minha e na sua, estamos obrigados a responder questões tais como “quem eu sou?, quem eu quero ser?, o que vou fazer hoje?, como devo reagir nessa situação?, o modo como reagi estava certo ou errado?, o que outras pessoas fizeram ou fariam nesse caso?, o que pensam de mim?, o que estou fazendo me deixa triste ou feliz, realizado ou frustrado?, o que posso fazer melhor?”. Os outros animais não precisam nem podem fazer essas perguntas. Nós não só podemos, como estamos fadados a respondê-las. Parte dessa resposta racional, intencional, inteligente sobre a nossa própria vida já é o exercícioda potência da criatividade. Quando nós fazemos, bem ou mal, o nosso projeto de vida, estamos criando uma narrativa e, portanto, exercendo a nossa criatividade. Algumas pessoas, por exemplo, vivem vidas infelizes ou menores do que poderiam só porque não souberam imaginar ou construir possibilidades mais significativas, amplas, verdadeiras ou propícias para si mesmas. E, sendo a imaginação uma parte da nossa inteligência e do nosso potencial criativo, uma imaginação inibida ou mal educada há de limitar nossa atuação vital, não só reduzindo nossas possibilidades de fazer coisas boas como também de viver uma vida mais significativa. Os animais também são capazes, muitas vezes, de construir coisas, usar instrumentos e raciocinar soluções novas diante de novas situações; porém, eles não estão contando uma história, eles não estão fazendo nada de pessoal, eles estão apenas obedecendo ao instinto de se proteger ou alimentar suas necessidades imediatas, corporais. Um ser humano está, ao agir e ao fazer coisas, respondendo a quem ele é e a quem ele quer ser, ou seja, compreendendo e dando significado a si mesmo. Assim, é certo dizer que a nossa vida é a nossa primeira obra. Pode parecer uma frase meio piegas, um clichê, mas quanto menos a ouvimos como uma lição de moral e mais como uma descrição dramática, tanto mais essa frase será verdadeira. Ora, se a minha própria vida me exige ser criada ou inventada por mim, é evidente que a criatividade é uma potência de toda pessoa humana. O fato é que, como todas as nossas qualidades e defeitos, ela pode também ser desenvolvida ou inibida, pode ser bem ou mal aplicada. A criatividade, sendo esse potencial inscrito na natureza humana, assim como a linguagem e a liberdade, é parte do que somos em essência como animais culturais, e o modo como a compreendemos, portanto, há de refletir no modo como nos compreendemos. Há, podemos dizer, dois modelos para entendermos a criatividade entre os pólos da construção e da destruição, que podem nos ajudar a pensar sobre detalhes importantes dessa, digamos, antropologia criativa. Um modelo prometeico e um modelo adâmico. O modelo prometeico apresenta o ato criativo como um gesto de rebeldia contra a subordinação humana em relação aos deuses. No modelo adâmico, o ato criativo é uma herança e o próprio destino do ser humano. Claro que essa divisão é esquemática e, separando os pólos, serve para mostrar os opostos ideais, mas não deve esconder a dinâmica tensa que há na combinação dessas diferentes forças. Na linhagem de Prometeu, do demiurgo, do Fausto, do Frankenstein, do gênio, culminando ou diluindo-se na imagem do artista como um mártir da própria criação, até o tipo que parece imolar vida e obra no altar às vezes trágico, mas sobretudo patético, do culto à subjetividade e à personalidade, aparece o artista como um rebelde. Mas, embora a rebeldia possa ter o seu encanto, e embora seja um ingrediente da complexa combinação de fatores da criatividade, o histrionismo romântico não tem nada a ver com a realidade da criatividade humana, primeiro porque o seu exercício é já uma obediência à nossa inclinação natural e, segundo, porque a nossa criação está subordinada à realidade, e não vai além da articulação de possibilidades, do arranjo de materiais dados, jamais sendo a criação no sentido de surgimento de uma outra realidade a partir do nada. Chega a ser um pouco ridículo que alguém leve a sério a ideia de que a sua realização artística rivalize com Deus. Uma coisa é fazer uma máquina, um quadro, um poema; outra, bem diferente, é criar a natureza. Embora hoje se creia com facilidade que o homem é sim capaz de recriar a natureza, que os destinos do planeta e talvez do cosmo estejam em nossas mãos, embora esteja na base da nossa educação e do nosso senso comum algo de Dr. Frankenstein, parece-me que isso apenas demonstra que a ilusão prometeica não é um problema do passado mítico. A criatividade é um traço fundamental da existência humana. Não importa a nossa crença religiosa, ou não importa muito, para vermos que o modelo adâmico confirma aquilo que podemos observar em nós e na história, que somos por natureza culturais e criativos. É isso que está dito na belíssima expressão da nossa vida como imagem e semelhança do Criador. A necessidade humana de invenção, descoberta e criação é algo tão essencial para nós que não se reflete apenas na obra que fazemos, mas na obra que somos. Viver em sociedade, utilizar e desenvolver ferramentas não são as ações distintivas do ser humano. Outros animais fazem isso. Mas o que nenhum outro animal faz é criar a própria história, ou seja, decidir sobre si mesmo, escolher quem quer ser diante das possibilidades da vida; em outras palavras, criar a si mesmo. O ser humano não se confirma humano ao criar máquinas, mas ao criar a sua própria história de vida. Um animal viverá a sua biologia do começo ao fim. Um ser humano viverá, além da sua biologia, a sua biografia, e viverá nela a biografia dos outros, o que significa que somos como que escritores e leitores da nossa vida. Como bem explica o filósofo Mário Ferreira dos Santos, “há dois mundos: o mundo da natureza ou natural, e o mundo da cultura. A natureza é o nascido, oriundo de si, e entregue ao seu próprio crescimento. Mas quando na natureza é incorporado um valor, ou uma forma, ei-la que se torna cultural. Os objetos da cultura são aqueles que o espírito transformou, dando-lhes um valor. [...] A cultura é o mundo próprio do homem. O homem vive na natureza e é natureza, mas, pelo espírito, transcende a natureza, cria cultura. É esta que o humaniza, e a história dessa humanização é a história da cultura”.13 Essa natureza criativa experimentada por cada um de nós é a mesma que está expressa no livro de Gênesis, que trata justamente da criação: “Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher. [...] Deus os abençoou: “Frutificai — disse Ele — e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a”. Além de sermos a imagem e a semelhança daquele que seria o máximo arquiteto, o máximo criador, está claro que ele nos ordenou a não apenas usufruir da natureza, mas, sobretudo, a fazê-la frutificar e a dominá-la, ou seja, nós nascemos criativos e culturais. E não pensamos com isso uma diferença entre povos mais ou menos civilizados e todas as confusões que daí podem vir. A coisa é simples: observando uma aldeia indígena veremos que ela coloca a sua casa num terreno limpo, geralmente num círculo que a afasta da floresta, que a protege dela. A aldeia está perto, mas não dentro da floresta, a aldeia está na cultura. Entrar na floresta para caçar, com ferramentas, lembremos, é uma tarefa especializada, que exige educação e técnica, pois ela coloca o ser humano em risco fora do seu ambiente próprio. O ser humano em Paris ou na aldeia está exercendo a sua natureza de imagem e semelhança do Criador. Mas, continuando a ler esse texto fundamental que é o Gênesis, há ainda algo extraordinariamente bonito a ser notado: que a natureza humana é também originalmente poética, posto que outra tarefa dada por Deus a Adão é a de nomear a Sua criação. “Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nome a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens...”(ver Gen 1 e 2). O QUE É A IMAGINAÇÃO? O que vou fazer aqui não é a extensa explicação que o tema da imaginação merece, tampouco um estudo sobre as funções cognitivas, mas apenas um comentário que nos ajude a desfazer alguns equívocos e falsos pressupostos que atrapalham muito o desenvolvimento dos processos criativos. O primeiro fato que temos de ter claro é que a imaginação é parte da inteligência, não o seu oposto, desvio ou alternativa. Numa falsificação da vida humana, é muito comum aceitarmos algumas divisões esquemáticas carregadas de simplismo entre razão e imaginação. A divisão acadêmica entre ciênciasexatas e ciências humanas, por exemplo, é uma etiqueta dessa falsificação. É comum confundir entender e inteligir com analisar, mas a análise é apenas uma parte possível do processo de captar e compreender aspectos da realidade. Uma inteligência criativa, ao contrário, alimenta-se muito mais da capacidade de articular e ver unidades do que apenas partir, analisar. A inteligência humana funciona na interação com a realidade, de onde ela, digamos assim, retira conhecimento que está lá e o articula com o conhecimento que está cá no ser, na pessoa. Quando nós descobrimos alguma coisa sobre a pedra, por exemplo, que ela é dura, a pedra já sabia disso. A inteligência não é um processo mental de formulação de conceitos. Saber explicar alguma coisa, ou saber colocar determinadas ideias ou experiências em palavras é uma habilidade e, talvez, um saber entre saberes. Sabemos respirar e digerir e não temos nem ideia de um terço de tudo o que está envolvido nesses complexos processos que realizamos ordinariamente. Isso significa, inclusive, que o conhecimento pode ser mais ou menos consciente. De uma forma simplificada, podemos dizer que a inteligência acontece em toda a série de aproximações de entendimento do ser com a realidade. Essas aproximações são feitas num circuito que começa pelas percepções sensíveis, ou seja, o que captamos pelos cinco sentidos, que se comunica com a nossa memória, onde ocorre uma série de reelaborações complexas, que incluem desde a lembrança linear, a imaginação, raciocínio, etc. etc., de onde voltamos a interagir com a realidade exterior que nos provocou pelos sentidos. A inteligência não é só um raciocínio e a memória não é só um acervo de informações. A imaginação, que está ligada à memória, tem a ver (repare na beleza dessa expressão!) com a geração de imagens, de hipóteses que nos permitem especular o que ainda não está aparente na realidade mas dela pode ser entendido. Como diz Julián Marias, “a imaginação é inseparável da memória; ora, a memória é sempre empírica, provém da experiência de nossa vida, incluindo nela as ‘experiências imaginárias’, o quanto imaginárias possam ser do ponto de vista de uma realidade ‘exterior’, mas que biograficamente tenham acontecido. Isso faz com que a imaginação esteja ligada de início à estrutura empírica da vida humana, além de estar, por outro lado, à sensibilidade e, por conseguinte, à corporeidade completa”.14 O ser humano não é o espectador de um mundo estável, como se fosse ele mesmo único detentor das possibilidades de conhecimento, a única subjetividade para a qual todas as coisas estão passivamente enviando informações lineares. A vida está em movimento, há uma dinâmica de alterações e possibilidades latentes, e ler a realidade é ler também essa trama potencial, como explica muito bem o filósofo Olavo de Carvalho: “A percepção humana do mundo real é a percepção de um conjunto imenso de dinâmicas e potências e não a percepção apenas de corpos estáticos em presença física; ou seja, amputado do potencial ou do possível, o mundo real não é mais mundo real, é uma fantasmagoria estática que nunca existiu”. Isso deixa, portanto, evidente que “a imaginação não é feita para tirar você do real, mas para instalar você no real”.15 Ao contrário, portanto, do que supõe o senso comum, a imaginação não é uma espécie de diversão do pensamento, mas uma das formas do exercício da inteligência. Aliás, muitas vezes um raciocínio lógico perfeito pode ser justamente uma forma de emburrecimento, distanciando a nossa inteligência daquele acordo com a realidade, que é a inteligência. O impacto dessa compreensão é imenso para o desenvolvimento do processo criativo. A CRIATIVIDADE PODE SER ENSINADA? Essa é uma questão com a qual podemos ficar correndo para sempre atrás do próprio rabo ou ficar com uma resposta simplista, se quisermos saber se a parte misteriosa do fenômeno da criatividade pode ser ensinada. A resposta simplista seria não, e seria uma resposta correta, mas a uma falsa questão ou a uma questão mal formulada. É evidente que há um traço insondável da criatividade, algo que nem mesmo quem a experimenta com frequência e alto nível pode solucionar. Por que exatamente essa ideia, desse jeito, a essa pessoa, nesse momento? Perguntas como essas não têm e não terão resposta assertiva, apenas especulações mais ou menos proveitosas, mais ou menos interessantes. Assim, vamos partir do princípio que há algo misterioso e, talvez, insondável na criatividade. Mas é como um iceberg ao contrário, em que o pedacinho menor está invisível, e a maior parte, aparente e plenamente acessível. Essa maior parte é feita de pedaços interligados uns aos outros, dentre os quais estão: trabalho, técnica, educação, envolvimento, atenção, esforço, coragem, capacidade de julgamento, conhecimentos específicos, experiência. Essa parte maior da coisa pode e deve ser ensinada. Ninguém nasceu artista, cientista, ou qualquer outra coisa. Quando dizemos isso, é apenas por força de expressão para indicar uma indicação ou um gosto revelados desde muito cedo por alguém para determinada área. Como vou discutir isso em detalhe no capítulo seguinte, apenas quero adiantar aqui algo fundamental para a nossa conversa sobre o que pode ser ensinado da criatividade. E é o seguinte: ninguém nasceu pronto e o gênio mais precoce do mundo que você escolher como contra-exemplo passou por um processo de educação, treinamento e teve uma enorme dose de entrega e envolvimento com o que estava fazendo para fazer algo verdadeiramente significativo. “1% de inspiração e 99% de transpiração”. Essa frase, atribuída a mais de duzentos e cinquenta artistas, traduz perfeitamente o que quero dizer. Independentemente de a porcentagem poder variar um pouco, é verdade que o processo criativo e o ato de criação ocorrem na articulação entre algo misterioso chamado inspiração e muito, mas muito mesmo de tudo aquilo que se pode desenvolver voluntariamente chamado transpiração. Esse pedaço maior do iceberg, que é o pedaço que dá sustentação ao todo, não só pode ser ensinado como só pode ser conquistado por educação. Sem se educar, não há nem mesmo como estar apto à possibilidade da inspiração. Há como ensinar o misterioso momento daquela percepção singularíssima que muda tudo o que estamos vendo? Não. Mas há como educar a inteligência, há como fazê-la melhorar e crescer, há como educar a atenção, a vontade, o envolvimento, há como desenvolver a persistência, a paciência, a coragem para correr riscos, há como ensinar a técnica, há como desenvolver as habilidades. A educação da criatividade é uma educação sistemática para deixar a pessoa em condições de experimentar e realizar o seu potencial criativo. M DO ENGENHO À ARTE: A INVENÇÃO DO TALENTO EXISTE INSPIRAÇÃO? esmo sem saber exatamente o que é inspiração, não é difícil nem errado afirmar com certeza que ela existe. Além de milhares de relatos de artistas, cientistas, empresários, esportistas, basta investigar a nossa própria experiência para constatar que há momentos nos quais as ideias parecem fluir com facilidade, nos quais vemos ou intuímos algo por inteiro, de uma vez, momentos nos quais parece que captamos o sentido oculto de algo importante — enfim, momentos nos quais nos sentimos iluminados, inspirados. Por que há momentos em que as coisas parecem se encaixar e como que por estalo a obra ou ideia parecem vir prontas, de uma vez? Como e por que há momentos em que temos uma espécie de abertura ou iluminação? O tema da inspiração, porém, corre o risco, como qualquer outro, de servir apenas para mesmerizar o observador ao invés de abrir caminhos para o entendimento real da coisa. Nós vamos fazer um pequeno passeio conceitual e histórico pela ideia de inspiração, mas o importante mesmo é compreender que o ato de criação é feito por uma parcela de mistério, ao qual podemos dar o nome de inspiração, e outra de procedimento e atitudes claras, acessíveis e ensináveis às quais podemos dar o nome de trabalho, e que configuram a essência do processocriativo. É a essa combinação dinâmica de inspiração e trabalho que se refere Camões quando diz que cantará os feitos grandiosos se a tanto o ajudarem engenho e arte. Engenho é a capacidade imaginativa de projetar, de criar, de vislumbrar soluções e formas. Dom Quixote, célebre fabulador, era o engenhoso, o cheio de engenhosidade. A arte é a habilidade, a capacidade de fazer, a técnica. A criatividade é feita da combinação essencial desses dois saberes — um, digamos, especulativo, e outro, prático. Ao engenho corresponde a inspiração; à arte, o trabalho. O processo criativo, como veremos a seguir, é o caminho pessoal para a articulação eficiente dessas duas dimensões da criação. A célebre história contada por Vitrúvio no séc. i a.C. sobre o momento em que Arquimedes encontra a solução para um problema com o qual vinha lidando desde que o Rei Hierão ii o desafiara tornou-se uma lenda comum a respeito da criatividade. Diz Vitrúvio que, depois de muito se dedicar ao problema, Arquimedes deu com a solução justamente no momento em que relaxava em sua banheira. Ficou tão empolgado com o achado que saiu pelas ruas de Siracusa nu, a gritar eureka!, eureka!, palavra grega para achei, encontrei. Essa mesma história seria contada depois, no séc. II d.C., por Ateneu de Náucratis de forma muito mais crível por um motivo simples: a solução encontrada por Arquimedes estaria relacionada à navegação e não à pureza do ouro, como dizia Vitrúvio. Isso ajudaria a entender por que Arquimedes teve sua revelação na banheira, observando a flutuação de um objeto e projetando-a sobre o problema ao qual se dedicara ferozmente nos últimos dias. Mas isso é uma minúcia histórica que não importa muito aqui. Como toda lenda, esta aporta verdades e mentiras. Uma das verdades da lenda está no fato de que o momento da descoberta, o momento de conhecer, gera grande alegria, algo que se compara ou é mesmo como uma descarga de energia. Há um componente erótico na vontade de conhecer e no excitante momento da descoberta. Por outro lado, uma das mentiras é tomar esse instante, esse acontecimento pontual, esse momento do eureka, do estalo, do achado, como o próprio fenômeno criativo inteiro, quando, na verdade, ele é uma parte do processo complexo de entender, descobrir, inventar, solucionar, criar. Ficamos encantados com a imagem de uma solução encontrada na hora de relaxamento, durante o banho, quando Arquimedes está submerso na revigorante água do banho, mas esquecemos que esse estalo, essa inspiração não caiu no colo gratuitamente, porque ele estava há dias submerso no problema, comprometido com uma solução. Há duas noções ou sentidos imediatos ligados à palavra inspiração: primeiro, a fase do ato de respirar em que se põe o ar para dentro do corpo; segundo, a noção de algo encontrado, algo que brota de dentro como de uma fonte desconhecida, ou que vem de fora como uma iluminação. Curiosamente, de acordo com Étienne Souriau, este segundo sentido, figurado, de uma iluminação vinda de fora, é que é o original, ao passo que a inspiração como parte da mecânica respiratória é um sentido que surge no séc. xviii. Não é nosso tema essa investigação filológica ou etimológica, mas vale observar com atenção a beleza dessa imagem que aproxima uma iluminação ou a elevação da capacidade perceptiva e criadora com o ato de respirar, puxar para dentro de si o oxigênio, a vida ao redor. Além do aspecto vital que essa imagem evoca, ela nos remete à interação, à troca do interno com o externo, do íntimo com o que vem de fora, do nosso organismo com a realidade ao redor, que o alimenta. Assim, essa imagem, de modo potente, revela algo verdadeiro do processo criativo. No vocabulário antigo, a inspiração é o afflatus (sopro) divino. Estar inspirado é estar habitado pelos deuses. Os poetas eram inspirados, auxiliados ou mesmo possuídos por forças transcendentes como as musas que, lembremos, são as nove filhas da Memória, o que mostra que o modelo antigo não era absurdo. O cristianismo está repleto de metáforas da voz, do sopro e do som como fonte de iluminação, conversão, criação e vida. Os textos sagrados são escritos inspirados pelo Espírito Santo. Só para dar um exemplo, há uma passagem no Livro de Reis do Antigo Testamento em que Elias testemunha a presença de Deus. O narrador nos diz que, no momento da passagem do Senhor, houve sucessivamente “um vento enorme, forte, que fendia montanhas e esmagava rochas, um terremoto e um incêndio, mas o Senhor não estava em nenhum deles. Depois do vendaval, do terremoto e do fogo, porém, veio “uma voz de brisa leve, e aí estava o Senhor” (1Reis 19, 21). Essa passagem é maravilhosa porque além da surpresa de que Deus tenha se apresentado não pela violência de fenômenos naturais assustadores, mas pela mansidão de uma voz de brisa leve, ela indica que Deus, como essa voz, pode ser ouvida pelo homem, ir para sua intimidade, habitá-lo, fazer parte dele, uma indicação que se confirma em toda a sabedoria cristã, que estabelece uma relação crucial entre a capacidade de ouvir e a de crer. Étienne Souriau em seu Vocabulaire d’Esthétique16 mostra como a história do conceito de inspiração é a história de sua laicização17 . Do mundo antigo ao moderno, o conceito de inspiração foi perdendo o seu aspecto transcendental e religioso até chegar ao conceito psicanalítico de inconsciente coletivo, o que para Jorge Luis Borges, por exemplo, significava o embrutecimento do conceito original. É claro que estou dando por certo que apenas fomos mudando as formas de explicar a mesma coisa. Não é tão certo assim que a possessão das musas, o sopro do Espírito Santo, os fenômenos psicológicos e os estímulos neurológicos sejam explicações distintas da mesma coisa. Evidentemente não se trata disso, mas, independente das nossas preferências por modelos de explicação, no caso particular de compreender a potência criativa do ser humano, todas essas são perspectivas do que permanece misterioso. As semelhanças das possíveis explicações da inspiração são muito interessantes. Em todos os casos há uma ideia de movimento, um trânsito entre a intimidade e a exterioridade ou entre tempos, como uma lembrança que eclode, ou entre consciente e inconsciente. O escritor E.M. Forster, já distante do valor sagrado da ideia antiga ou cristã de inspiração, mantém essa noção de movimento: “No estado de criação o homem é arrancado para fora de si mesmo. Ele se deixa descer até o subconsciente como um balde, e, quando é içado, traz consigo algo que, em condições normais, estaria além do seu alcance”.18 Carlos Drummond de Andrade, numa entrevista dada à tv em 1982, disse o seguinte sobre a inspiração: “Eu acho, ao contrário das teorias modernas, que a inspiração existe. A inspiração é o momento em que você sente um impulso, às vezes criando até uma espécie de elevação ligeira da temperatura. Você se sente assim um pouco inflamado, um pouco quente, assim, com vontade de fazer alguma coisa. Depois vem a razão, vem a análise, você vai fazer a frio o poema, já agora mais com a razão mais do que com sentimento, mas sem abandonar nunca o sentimento. É uma mistura [...]. Agora, em geral, nunca sai perfeito, você tem que ler aquilo, reler, mostrar para um amigo, guardar pro dia seguinte, botar numa gaveta às vezes por três meses”.19 O arquiteto espanhol Carlos Garcia-Delgado em livro publicado em 2022 sobre criatividade faz uma diferença entre pessoas que têm uma memória quente (as muito imaginativas) e as pessoas que têm uma memória fria, menos propensas à criação. Garcia- Delgado, sugerindo uma teoria cinética da memória, diz que “de acordo com a teoria cinética da matéria, a temperatura de um corpo material é uma magnitude que mede a velocidade média de suas partículas. Pois bem, em nossa teoria cinética da memória diremos que uma memória tem alta temperatura quando os seus dados têm alta mobilidade. Em outras palavras, quando a facilidade de combinar-se (imaginação) seja alta. Uma baixa temperatura da memória significará, ao contrário, que nossacapacidade de imaginação é baixa”.20 Ninguém sabe ao certo qual o elemento, qual a fagulha específica que acende uma obra especial. Ninguém sabe o segredo da concepção da Nona Sinfonia, nem Beethoven sabia. Mas sabemos, e ele sabia, que a grande obra não poderia ter sido feita, que tal segredo não poderia acontecer, sem o trabalho, sem a formação, sem o esforço. Alguém poderá objetar dizendo que mesmo com tanto trabalho quanto teve Beethoven outra pessoa não faria a Nona Sinfonia. De fato não faria a mesma coisa, mas temos que levar em conta o seguinte: primeiro, sem esse trabalho todo nem ele mesmo a teria feito, e, segundo, com um trabalho — inclua aqui, evidentemente, esforço, treinamento, estudo, comprometimento, resistência, persistência, etc etc. — igual ao de Beethoven, qualquer pessoa faria algo certamente especial e muito superior ao que ela mesma poderia sonhar alcançar sem ele. De qualquer modo, o tema da inspiração aponta para o surgimento ou a tomada de consciência de uma ideia ou de uma imagem, que pede para ser traduzida numa forma ou numa solução real. Por isso, o tema da inspiração, além de sua aura, digamos, poética, aponta para o próprio mecanismo da criação. Olhando, então, esse mecanismo, somos obrigados a constatar que seja lá o que for a inspiração, ela não funciona sozinha, é parte de um conjunto do qual depende, um conjunto feito, dentre outras partes, de habilidades, cultura e energia de trabalho. Na hipótese de uma inspiração ocorrer a alguém que não tem as habilidades, a cultura ou a energia para realizar a coisa para a qual foi inspirado, bem, nesse caso, essa inspiração será no máximo uma ideia legal que surgiu e sumiu sem deixar rastro além, talvez, de um vago sentimento de perda. Para quem está envolvido no processo criativo e não é um pesquisador do assunto, o problema não é constatar a existência de um fenômeno chamado inspiração nem ter um modelo convincente para explicá-lo, o problema é fazer o que for necessário para acessar essa experiência não como episódios fortuitos, mas como parte da sua vida, e estar preparado para aproveitá-la numa produção significativa. O problema é apostar na inspiração como quem aposta na loteria, o problema é esperar por ela como quem torce para ser sorteado num evento totalmente aleatório à sua vontade. O problema é desejar a inspiração como se deseja um prêmio sem mérito. Mesmo quem ganha numa loteria, faz alguma coisa para isso, ir até lotérica, escolher os números, pagar a aposta. Essa aposta medrosa e preguiçosa na inspiração, gera confusões infrutíferas como, por exemplo, a ideia de bloqueio criativo. Muito do que se chama bloqueio criativo não é bloqueio de nada, é falta de humildade para fazer o trabalho ordinário em busca das possibilidades extraordinárias. A pessoa espera inventar uma roda por dia mas não quer fazer exercícios, arrumar a oficina, investigar, contemplar, tentar, falhar; acha que cada gesto seu tem que ser genial; espera que, quando lhe vier a ideia da sua Nona Sinfonia, começará a trabalhar. Enquanto isso, deixa de praticar o instrumento, exercitar as escalas, arriscar-se em fracassos; quer resultados grandes sem se envolver com as pequenas partes do processo. “Quanto mais eu treino, mais sorte eu tenho” é uma daquelas boas frases atribuídas a diversos autores. Já a vi citada com se de Tiger Woods e Oscar Schmidt, por exemplo. Mas não importa a autoria; importa que ela chama a nossa atenção para um aspecto decisivo do processo criativo. Provavelmente essa frase surgiu como resposta irônica a quem tratou o sucesso de um atleta como um evento fortuito, de sorte. Talvez ela nos leve a crer que o sucesso desse atleta resultou só da quantidade de treino, e sabemos que além da quantidade, conta muito também a qualidade. Mas, há um elemento a ser pinçado aqui como fundamental: que aquela pretensa sorte só ocorre a quem está realmente comprometido com algum propósito e com o processo. E aqui está o pulo do gato: enquanto o talento e a inspiração são hipóteses, o trabalho é real, acessível e, sem ele, nada pode ser levado a sério no processo criativo. O excelente professor de processo criativo Charles Watson repete como um mantra certeiro a seguinte frase: “Não é inspiração que gera trabalho, é trabalho que gera inspiração”. Quem fica esperando uma grande ideia para começar a trabalhar geralmente morre esperando. E essa regra se explica porque criar, como eu disse no capítulo 1, não é sentir ou pensar em alguma coisa, é um complexo fenômeno que tem que culminar na capacidade de fazer, e a capacidade de fazer não é algo que se adquire senão pela experiência, pelo envolvimento, comprometimento, pela atenção, pela prática, pelos riscos, pelos erros. Vejamos o que disse certa vez o cineasta Ingmar Bergman. “Você sabe o que é o cinema? Oito horas de trabalho duro todos os dias para conseguir três minutos de filme. E, durante essas oito horas, talvez existam apenas 10 ou 12 minutos, se você tiver sorte, de criação verdadeira. E talvez eles não apareçam. Então você precisa se reorientar para trabalhar outras oito horas e rezar para que consiga seus 10 minutos dessa vez”. O trabalho é fundamental, é a única certeza e a única parte acessível do processo a todos. Mais do que isso, o trabalho é a engrenagem, e, embora possa parecer menos valioso do que a inspiração e o talento, sem ele tudo é apenas fantasia ególatra ou infantil. Sem o trabalho, a inspiração e o talento são uma espécie de lixo radioativo, que vai contaminar tudo com frustração e especulações inúteis, entre procrastinação e falsas expectativas, um lixo radioativo de ação lenta que pode nos empurrar a ter que dizer, tarde demais, olhando a nossa própria vida, que ela foi, como diz o verso de Manuel Bandeira, “a vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. O QUE É PROCESSO CRIATIVO? Antes de qualquer explicação, podemos antever na palavra processo o sentido daquilo que continua, que se desenvolve no tempo, que dura, transcorre, avança, produz, prospera, progride. O dicionário Le Petit Robert oferece-nos uma definição muito boa: “Conjunto de fenômenos ocorrendo na mesma ordem; modo de proceder; sequência ordenada de operações conduzindo a um resultado [...]. O conjunto de fenômenos concebidos como ativo e organizado no tempo”. Se a criatividade é um potencial que você tem, mas que pode não resultar em nada de concreto na sua vida, ficando sempre como uma hipótese, uma sensação ou uma intimidade que vai morrer com você, devemos entender como tornar essa potência em ato, o que passa, necessariamente, pela experiência de um processo criativo. A busca persistente e ordenada chama-se processo porque não é ocasional, acidental, feita de vez em quando. É como um curso, um percurso, uma jornada, tem fases complementares, combina teoria e prática, e depende da experiência pessoal, vai do desenvolvimento das habilidades à conquista da maestria, exige inteligência e horizonte de consciência atualizado, meditação e, sobretudo, um grande comprometimento pessoal. O processo criativo pode ser definido como a ordenação e a inteligência dos nossos esforços na busca de realizar o nosso potencial criativo, elevando e qualificando a nossa atenção e o nosso conhecimento, melhorando nossa capacidade e energia de trabalho, desenvolvendo nossas habilidades, definindo propósitos e nos responsabilizando em um comprometimento real com o que fazemos e com quem somos. Mentes criativas podem ser um mistério, mas você não admira Maria Callas ou Orson Welles, Graham Bell ou Nelson Rodrigues, Henry Ford ou Michelangelo pelo que havia dentro da cabeça deles, mas justamente pelo que eles botaram para fora, ou seja, pelo que fizeram, realizaram, comunicaram. O processo criativo, portanto, nos oferece uma resistência realista à noção de criação como evento singular, fruto de uma ocasião ou acidente raro e imponderável. O processo não exclui o acaso nem, como já vimos aqui, o mistério da criatividade, mas quebra as ilusões infantis e egoístas de que a obrapossa brotar do nada e sem o nosso esforço. O acaso, a sorte, a inspiração, os achados, os sustos, as iluminações repentinas, o lampejo, as revelações, enfim, fazem parte do processo criativo. Compreender o trabalho de criação como um processo não descarta nada disso, e não exclui a vitalidade fundamental da intuição ou do instinto na criatividade. Ao contrário, o processo criativo é um modo de trabalho e vivência para gerar e aproveitar produtivamente esses momentos. Costumo fazer a seguinte pergunta, que não é retórica, e deve ser levada a sério: é o talento que faz a obra ou a obra que faz o talento? Observando todos os gênios ou pessoas que consideramos talentosas ou inspiradas, algo lhes é comum: uma obra realizada, não apenas desejada, especulada, prometida. É a obra que nos permite ver aquele gênio ou talento. Sem a obra tudo é fantasia, no pior sentido da palavra, ou seja, uma ilusão enganadora. Não há possibilidade de algo especialmente bom ser feito, descoberto, inventado, sem um percurso, sem um processo que inclui fracassos, erros, aprendizado. Por mais que alguém tenha, sei lá, um dom natural muito especial, mesmo assim, esse dom só alcançará a realidade por meio de uma obra, e uma obra só será realizada por meio do trabalho. Por isso, o fazer é o grande formador desse mesmo dom hipotético. Mozart era talentoso? Sim, mas o que mostra isso senão o fato de ele realizar esse talento na prática, na obra? Além disso, quando Mozart mostrou-se um gênio, suas mãozinhas infantis já estavam deformadas de tanto praticar sobre os teclados do seu instrumento. O seu gênio veio à tona por meio de um profundo envolvimento com a música, por meio do esforçado desenvolvimento de uma habilidade. O Liber mutus, Livro mudo, um clássico da literatura medieval sobre a alquimia, é todo feito de imagens, à exceção de uma página onde se lê o seguinte texto: “Ora, lege, lege, lege, relege, labora, et inveniens”, ora, lê, lê, lê, relê, trabalha, e encontrarás. Eis a descrição de um processo, com ações intencionalmente ordenadas, consequentes, voltada para um propósito ou uma finalidade. Nesse processo, as etapas vão de uma disposição inicial de atenção, até o trabalho propriamente dito e a descoberta ou invenção pretendida. Orar, rezar, é a primeira instrução, que implica uma atitude de humildade. Acionar esse tipo de atenção já coloca a pessoa numa posição adequada de abertura fundamental. Depois, a frase insiste em ler, ler, ler e reler. Aqui o processo indica a atenção focada e persistente, a vontade e o esforço de entender, a coragem de olhar e interpretar. Depois de ler e reler, labora, trabalha, faz. É preciso praticar, lidar objetivamente com a matéria prima, elaborar e transformar o que está dado, é preciso fazer (poiesis), sair da passividade para o compromisso e o risco da atividade. Essa instrução é exigente, mas esperançosa pois afirma que, se seguirmos o processo, encontraremos. E aqui vale observar uma diferença fundamental entre esperança e expectativa. A expectativa é a espera e a antecipação sofrida de um algo que ainda não aconteceu. A esperança é a confiança no que está acontecendo porque o que está acontecendo tem o seu sentido vinculado a um o motivo ou o propósito verdadeiros, que já iluminam antecipadamente o percurso. É com esperança, não só com expectativa, que você investe num processo tão exigente quanto o processo criativo. Isso dá um traço comum às pessoas mais criativas em diversas áreas, que é o seu profundo comprometimento com o processo. Estar envolvido com o que se faz é suficientemente significativo, e não totalmente dependente da recompensa idealizada. O resultado não é o único motor da ação. O fazer em si mesmo é capaz de mover as pessoas criativas. Quanta gente, por exemplo, não deixa de criar porque quer ter a garantia do sucesso ao invés de correr os riscos e aproveitar as delícias do percurso? A persistência, o foco e a coragem de errar e conviver com o fracasso são traços fundamentais do envolvimento com o processo criativo. Não é possível acertar sempre, e é muito inocente supor que se vai acertar da primeira vez. Van Gogh diz em uma de suas cartas a Theo: “A grandeza não é uma coisa fortuita, ela deve ser desejada. [...] Considero como uma coisa positiva e de grande importância que nos esforcemos em desenvolver nossa energia e nosso pensamento. [...] O caminho para fazer melhor mais tarde é fazer hoje tão bem quanto possível”. Antes deste livro, escrevi outro sobre processo criativo todo baseado na análise do percurso de Vincent Van Gogh,21 que é um exemplo maravilhoso para desmontar nossas ilusões sobre a criatividade como uma espécie de loucura. Nesse livro, intitulado A orelha de Van Gogh ou a lição do semeador, mostro como o gênio de Van Gogh foi fruto de muito trabalho e estudo, de muita coragem e comprometimento para fazer o melhor. O cultivo do processo é pessoal e cria as condições para a excelência. Não adianta se achar bom nem mesmo ser bom por hipótese. É preciso fazer-se bom. Por isso Aristóteles dizia ser a ética um saber prático. Entrar num processo criativo é, antes de tudo, fazer algo consigo mesmo submetendo-se à educação, ao trabalho e à busca de resultados objetivos. Isso significa que a personalidade criativa é uma formação. COMO DESENVOLVER O MEU PROCESSO CRIATIVO? Bem, eis outra pergunta cheia de respostas em si. Se estou perguntando como fazer algo, já dou por certo que é possível fazê-lo, que quero ou preciso fazê-lo e que busco uma resposta prática. Além disso, a pergunta traz uma outra resposta embutida: que o processo deve ser desenvolvido, pois não é algo que se encontra enlatado, disponível numa prateleira de mercado, pronto para consumo. Desenvolver um processo criativo pessoal é fazer uma série de escolhas, ajustes e ordenações da nossa vida no sentido de, aos poucos, aumentar e dar mais eficiência ao nosso convívio com a nossa arte. Quando eu digo aqui arte, quero dizer a nossa linguagem, a nossa área, aquilo que geralmente é reduzido ao nome de profissões tais como pintura, negócios, hipismo, medicina, arquitetura, literatura, cinema, biologia, etc., etc. Desenvolver um processo criativo é viver um processo criativo, é conviver com alguma área de modo profundamente responsável, não como quem passeia por ali de vez em quando. Aqui só nos interessam as respostas práticas, afinal, uma vez que decidimos fazer algo, digamos, na pintura, tenho que fazer algo da minha vida para que ela se torne o terreno adequado dessa realização. Certa vez, durante uma palestra sobre criatividade, alguém me disse que queria escrever um Guerra e paz. Muitos na mesma hora riram desse jovem, era um jovem, mas acharam graça da coisa errada, que era a sua ambição. Ninguém é um gênio até realizar a coisa genial, e Tolstoi tornou-se Tolstoi justamente porque ambicionou e fez tudo o que pode para escrever algo como Guerra e paz, Anna Kariênina, Sonata Kreutzer. O problema não é ter a ambição de escrever um Guerra e paz, o problema é ter só a ambição sem a vontade, sem a disposição, sem a humildade de sofrer o período de aprendizado, sem fazer os esforços e os sacrifícios necessários, sem amar o processo tanto quanto ou mais do que a hipotética recompensa de reconhecimento alheio. Como demonstra Aristóteles em sua Ética, é a discrepância entre o que eu quero ser de melhor e o que eu tenho sido, a infelicidade humana. E a infelicidade não é falta de prazer, mas falta de sentido, palavra que aqui traz em si as ideias de significado e valor. Desenvolver um processo criativo pessoal é, sobretudo, ajustar a vida para que ela seja convergente com o propósito imaginado. Isso fica bem claro em outro diálogo que tive com um aluno em outra palestra. O aluno me disse que sonhava em ser escritor, e queria saber de mim o que devia fazer. Primeiro perguntei por que ele queria ser escritor, e ele me disse que amava a literatura. Eu lhe perguntei a quanto tempo ele sentia essa vocação, esse chamado, essa vontade. Ele me disse que já fazia alguns anos. Euentão lhe perguntei quantos dias por semana e quantas horas por dia ele escrevia. Ele me disse que de vez em quando tentava escrever, mas que a coisa não estava funcionando direito. E eu lhe respondi com sinceridade e amor pedagógico: você está mentindo para si mesmo pois é impossível dizer que ama alguma coisa e não fazer nada por ela, não é possível dizer que ser escritor e não fazer justamente aquilo que faz um escritor, ou seja, escrever. Ele queria ser visto como escritor ou ver-se a si mesmo como tal. Se quisesse mesmo tornar-se um escritor teria que se submeter a um processo criativo, ou seja, adequar a sua na prática, não na fantasia. Essa adequação faz-se por ações objetivas como, por exemplo: por quantas horas ao dia me dedico? Quantos dias por semana? O que faço nessas horas? O que não sei e preciso saber? De quais ferramentas preciso? Como o restante do meu tempo pode impactar positivamente o que faço na hora do meu trabalho? Com essas perguntas vão surgindo outras que não podem ficar sem resposta, tais como: qual é o meu propósito? Qual é o meu plano? Do que devo abrir mão? Do que não devo abrir mão? Uma explicação importante: quando falo em plano não quero dizer que todas as pessoas tenham que ter o mesmo nível ou tipo de organização refletidos numa planificação modelar de vida. Quero apenas sinalizar que mesmo rotinas aparentemente caóticas como, por exemplo, a do pintor Francis Bacon, para dar resultado, estão respondendo a um plano, a uma estratégia que implica, além de outras, a escolha de horários e escolhas de companhias. Quem perde completamente o domínio desse plano, quem se desorganiza completamente, dura pouco, sucumbe, e, para não mencionar consequências mais graves, sai do seu processo criativo, simples assim. Nesse plano você deve considerar questões como: qual meu espaço de trabalho? Ele está adequado? Como me virar num espaço que não me ajuda? Como me virar com tudo o que não me ajuda? Como não sucumbir às dificuldades práticas? Dito isso, vamos considerar que o desenvolvimento do seu processo criativo é a articulação de um propósito com um estilo de vida, articulação que busca harmonizar um talento às suas realizações práticas. A seguir, então, farei uma breve consideração sobre o talento e vocação e, seguida, vou apresentar um método capaz de te ajudar a desenvolver o seu processo criativo. A vocação é, como você já sabe, um chamado. É claro que isso parece algo solene, elevado, e de fato é porque esse chamado nos remete ao sentido religioso e sagrado, e não há como não sentir reverência diante do que é santo. Mas esse chamado da vocação pode ter o seu sentido estendido a contextos aquém do sagrado e ser aplicado àquela voz da nossa vida nos chamando para a sua verdade, para aquilo que temos que fazer e sem o qual parece que mentimos para nós mesmos. O talento pode ser entendido como uma inclinação natural da pessoa para determinadas atividades nas quais o pouco que ela faz sai mais fácil ou resulta melhor. Gosto de pensar no talento como uma inclinação porque essa imagem revela fisicamente algo que parece ocorrer na alma e na inteligência, que tende, que se inclina, que se volta, que se converte para algo. E essa inclinação não é ainda uma obsessão, que pode ser uma atração unívoca, mas uma relação de reciprocidade. Você se inclina para uma coisa e essa coisa te responde positivamente, com prazer, retribuindo a atenção, entregando-se a você com mais docilidade. Mas, a ideia de talento exige cuidados semelhantes aos que tivemos em relação à ideia de inspiração. O talento pode ser aquilo mesmo que te levará à realização da sua vocação, mas pode também tornar-se um desvio, um desperdício quando tratado como objeto de fascínio ou de inveja. Ficar encantado com o próprio talento sem submetê-lo ao esforço ou não fazer qualquer esforço por supor-se sem talento são dois caminhos paralelos rumo à frustração. Eu sempre insisto no seguinte: talento que não se tem, se cria, e talento que se tem, se não cria, morre. Eu proponho, então, um método chamado arco, para educar ou criar o talento, e desenvolver o seu processo criativo. Sei que a palavra método pode ser assustadora para quem está interessado em criatividade, mas isso é bobagem. Método quer dizer, antes de tudo, caminho e, mais que isso, caminho que se conhece. Meta, em grego, é através. Hodos é caminho. Método é o caminho através do qual se vai e se chega. E como conhecemos um caminho? Claro por experiência própria, como diz o célebre verso de Antonio Machado, “el camino se hace al andar”, mas também pela experiência alheia, dos que vieram antes, dos que sabem algo, pelos mapas, pelos depoimentos, pela explicação, pela narrativa de quem já passou por ali. Um método, um caminho, começa por um propósito. Lembremos do que diz o gato de Cheshire a Alice quando ela lhe pergunta por onde ir: “— Gatinho de Cheshire — começou um pouco tímida, pois não sabia se ele gostaria do nome, mas ele abriu ainda mais o sorriso. [...] Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar? — Isso depende bastante de onde você quer chegar, disse o Gato. — O lugar não importa muito…, disse Alice. — Então não importa o caminho que você vai tomar, disse o Gato”.22 Qualquer que tenha sido o propósito que você mais ou menos desenhou, isso implicará uma série de escolhas consequentes. Um exemplo: se o propósito é escrever bem, você tem como saber que jogar video game ou aprender a saltar de paraquedas não são atividades cruciais para a realização daquele propósito. Se compreendemos, então, o talento como um fenômeno composto de dois elementos, uma inclinação individual misteriosa e um processo inteligente e consequente de esforço, é neste segundo que você deve investir suas forças para cultivar aquele. Horácio, na sua carta aos pisões, conhecida como a sua Arte Poética, já apontava a falsa dicotomia entre inspiração e estudo, que é um modo de nomear o binômio talento e trabalho. “Já se perguntou se o que faz digno um poema é a natureza ou a arte. Eu por mim não vejo o que adianta, sem uma veia rica, o esforço, nem, sem cultivo, o gênio; assim, um pede ajuda ao outro, numa conspiração amistosa”. Você nunca será um artista ou um criador em qualquer área se quiser saltar o teste real do trabalho e do cultivo do talento. A dúvida entre talento e trabalho é tola. É uma perda de tempo. Pode haver trabalho sem talento. Mas não há talento reconhecível — ou seja, talento realizado — sem trabalho. Portanto, não há tempo a perder perguntando quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha. Se você tem talento, ou julga ter, deve começar a trabalhar e educar-se agora, deve, enfim, seguir um método e entrar no seu processo criativo. Sem trabalho e educação, esse talento será sempre suposto, sempre um brinquedo íntimo ou um fantasma torturante. MÉTODO ARCO Bernard B. Goldner, no seu livro The Strategy of Creative Thinking, usa a sigla arc para falar do trinômio atitude, receptividade e criatividade (Atittude, receptivity and creativity). Daí me surgiu a ideia do arco, que não tem nada a ver, além da sigla, como o que propõe Goldner. Pode parecer estranho que eu esteja copiando descaradamente um achado alheio justamente num livro sobre criatividade. Mas, não. Não é estranho porque o que faço aqui é revelar a fonte de uma ideia e um procedimento crucial nos processos criativos. Da proposição de Goldner, eu cheguei a outra ideia com outras consequências. A imagem do arco, que evoca também a imagem da flecha e, ambas, as imagens complementares da tensão e do disparo, da força e da precisão, do trazer para si para disparar para longe, enfim, o arco é um belo símbolo do processo criativo. Símbolo de força e concentração, precisão, intenção, foco, energia, combinação de elementos diferentes como intenção e dependência das circunstâncias. Para atirar com arco, é preciso antes fazer uma força contrária ao do sentido do alvo da flecha, é preciso manter a atenção focada na unidade que é o alvo, mas, ao mesmo tempo, captar os elementos circunstanciaiscomo o vento, a respiração e o movimento ao redor para executar um bom tiro. Isso é semelhante à administração de forças contrárias e complementares do processo criativo, que deve conciliar foco e abertura, ação e contemplação, raciocínio e intuição, conservação e renovação. Como já vimos neste livro, uma das habilidades da personalidade criativa é combinar mais do que excluir, pois o processo criativo pede mais composição do que análise. Além disso, o arco suscita também uma noção de trajetória e gradação. Os vários pontos de um arco podem significar os vários estágios de um percurso. Um arco de possibilidades, um leque de possibilidades. O processo criativo, como o nome já diz, é dinâmico, e não estático. Há um arco de atuações e de resultados nesse movimento que é o processo de criar. O Método arco é composto de quatro circuitos complementares: atenção, resposta, confecção e oferta. Chamo-os de circuitos porque não são etapas sucessivas e excludentes, mas elementos que funcionam de modo integrado, em que cada um depende dos demais e para eles gera energia e fornece informações para que o todo funcione de modo orgânico. O modo proponho, experimento e ensino o Método arco tem a finalidade justamente de desenvolver um processo criativo pessoal, adaptável às circunstâncias e às áreas mais diversas. A prática e a consciência dos quatro circuitos do método são como que uma base de educação dos pontos cardeais sobre quais uma pessoa entra no processo criativo. Não é possível descrever aqui todos os detalhes do método, como, por exemplo, os exercícios, mas creio que pode iluminar nossa conversa sobre criatividade e processo criativo, ainda que de modo tão resumido. CIRCUITO DA ATENÇÃO A pergunta guia é: O que eu amo? Trata da primeira qualidade criativa, que é atenção e todas as formas de inteligência a ela relacionadas, como memória, imaginação, percepção, capacidade de síntese, entre outras. O que é atenção e qual sua importância na formação pessoal e no processo criativo? Qual a diferença entre atenção e foco? Como educar a própria atenção? Qualquer ato criativo começa pela atenção. O artista, o cientista, o empreendedor, enfim, qualquer pessoa criativa tem a capacidade de ver o que os demais não vêm, de captar o que é significativo antes de criar. Nos seus cadernos sobre pintura, Leonardo da Vinci nos dá um conselho fundamental: “Se você olhar uma parede velha, coberta de pátina e sujeira, ou a estranha aparência de algumas pedras frisadas, você deve descobrir ali muitas coisas como paisagens, batalhas, nuvens, atitudes incomuns, rostos engraçados, cortinas, etc. Para além da massa confusa de objetos, a mente será alimentada com uma abundância de desenhos, e temas perfeitamente novos”. Seja uma obra de arte, uma elucidação científica, uma inovação tecnológica, a criação de um produto ou uma solução de gestão, todas as ações e os resultados criativos nasceram de alguém que percebeu algo de modo especial na sua experiência e na realidade, algo que chamou a sua atenção, não pode mais ser ignorado, e pediu-lhe uma resposta. Seja um problema que precisava ser resolvido, uma oportunidade de aperfeiçoamento ou uma necessidade existencial de comunicação e expressão artística, o ato criativo, como o ato de conhecer, começa pela percepção. Nem todo mundo tem a disposição de ouvir a realidade desse modo e nem todo mundo tem a disposição de buscar as melhores e mais significativas respostas, mas aqueles que não podem recusar esse chamado já começaram a experimentar uma parte decisiva do seu potencial criativo. É muito comum que atletas, ao comentarem sobre os gênios da sua modalidade, façam referência à capacidade que eles têm de antever os lances e as soluções das jogadas, a capacidade de entendimento e de antevisão. Essa capacidade, que pode surgir como um dom natural, pode e deve, também, ser desenvolvida. E esse desenvolvimento é a educação da atenção, que constitui o primeiro circuito do Método ARCO. Essa educação corresponde a esforços teóricos e práticos, exige reflexão e exercícios que não poderia explicar aqui pela limitação de espaço da nossa conversa neste livro, mas sobre os quais posso apontar as raízes. A primeira deles, que vai ao centro da necessidade de uma educação educada pode ser bem ilustrada pelo Cristo, na seguinte passagem do Evangelho de Lucas: “Porque, onde estiver o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração” (Lc 12, 34). Como realizar coisas interessantes se você não está interessado? Como realizar coisas valiosas se você não dá valor às coisas? Como participar de uma conversa se você não quer ouvir? Como encontrar algo verdadeiro sendo mentiroso? No Pequeno livro sobre o modo de aprender e de estudar, o mestre Hugo de São Vitor, um dos maiores pedagogos da história, começa seu ensinamento por três conselhos fundamentais: “A humildade é o princípio do aprendizado, sobre ela muita coisa tem sido escrita, as três seguintes, de modo principal, dizem respeito ao estudante: 1) Não tenha como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura; 2) Não se envergonhe de aprender de ninguém; 3) Quando tiver alcançado a ciência, não despreza os outros”.23 Para nosso caso, observando bem, podemos tirar que o conhecimento começa pelo reconhecimento humilde do desconhecimento, e segue na abertura à realidade, aos outros, à interdisciplinaridade e retorna, novamente, à humildade na relação com os que ainda não sabem. De certo modo, essa é uma descrição dos circuitos do método ARCO, culminando numa grande consciência sobre a oferta do que se faz. O processo criativo exige a capacidade de lidar com contrários, a capacidade de ser flexível para articular diferenças e contradições. Estar num processo criativo, portanto, significa correr riscos, riscos que começam por uma atenção aberta às possibilidades, e não traz respostas prontas. Uma atenção criativa é potencialmente subversiva e, ao contrário do que muitos subversivos de carteirinha pensam, essa atenção aberta e sincera é, também, anti- ideológica. Uma personalidade ideologicamente revolucionária é, no fundo, uma personalidade obediente, enquadrada num esquema, presa a um modelo de explicação e, portanto, mais fechada à realidade, menos flexível, menos cuidadosa com todos os detalhes que escapem à perfeição da sua explicação prévia sobre a realidade como ela acredita que tem de ser. Um aspecto prático da educação da atenção é ter consciência da diferença entre atenção e foco, e exercitar as habilidades distintas que essas duas capacidades exigem. Darei aqui apenas uma pequena indicação dessa diferença e de como ela deve ser tratada na educação da atenção. Foco é uma atividade especializada e temporária da atenção. É uma atividade mental ligada à precisão e à eficácia do fazer. A atenção é o circuito geral, aberto, cujo critério não é a atividade específica mas os valores e a disposição de espírito. A atenção é dinâmica, flexível, rápida e carrega consigo valores e critérios capazes de selecionar o que merece mais e o que merece menos de si. O foco é lento, meticuloso, e fisicamente muito mais exigente. A educação bem educada funciona o tempo inteiro, o foco é acionado em situações específicas. Focar é selecionar, escolher, separar, discernir um objeto ou aspecto da realidade. Focar é também a capacidade de fechar ou concentrar a atenção nesse objeto ou aspecto. Isso significa tanto uma dedicação subjetiva quanto objetiva. O nosso pensamento está voltado para algo, sem permitir-se a distração que nos levaria para longe. Reduzimos a esfera de observação para aprofundar e intensificar o que podemos ver. Objetivamente, nos fechamos no escritório, no ateliê, no laboratório, na oficina, para proteger a nossa atenção e, temporariamente, especializá-la. Qualquer pessoa pode imaginar o desastre de um cirurgião disperso no momento da cirurgia. Um processo criativo exige o mesmo tipo de engajamento quando a atenção vira foco, o que ocorre em todas as áreas com diferentes dinâmicas em cada uma delas na combinação entre foco e atençãoou níveis de concentração. Um exemplo que sempre dou sobre essa diferença entre atenção e foco é do jogador de tênis. Durante o jogo, o seu foco tem que estar na bolinha, naquela pequena, rápida e nervosa bolinha. Se perder o foco daquele pequeno ponto móvel, ele perde a jogada. Mas, enquanto sua atenção está presa a um ponto específico, a sua atenção está ativa no contexto do jogo inteiro: como estão as reações do meu adversário, o comportamento do público, o vento a lua se modificando, o cenário todo atrás da bolinha, as reações do meu corpo, a evolução do cansaço, enfim, como está tudo o que de algum modo implica no jogo além da bolinha. Mas um bom jogador, um atleta profissional de alto desempenho, está atento não só durante as partidas e os treinamentos. Manter a disciplina, por exemplo, é uma forma fundamental de atenção. Mesmo quando não está jogando, mesmo quando fora das quadras, o atleta sabe que ainda está dentro do seu esporte. Isso serve para qualquer área de alta performance, da poesia aos negócios. CIRCUITO DA RESPOSTA A pergunta guia é: Quem eu quero ser? Trata da vocação e do planejamento de vida, de como tornar-se responsável, ou seja, como responder ao seu talento ou mesmo como criá-lo. O que eu quero ser? O que é vocação? Como realizá-la? O nome desse circuito define precisamente o que a ele corresponde: a minha resposta à vida. Qual a minha resposta? Como vou atuar no mundo e nas circunstâncias que me couberam viver? Em que área? Em que disciplina? Para quê? Como? Em que nível? Responder é interagir de forma consciente, intencional. A resposta involuntária, automática, pronta ou imediata, não é uma resposta, mas apenas uma reação. Por isso, a ideia de resposta implica a de responsabilidade. Nesse circuito do método, as perguntas são: o que eu quero fazer? O que eu posso fazer? O que eu devo fazer? Nesse circuito aguçamos os ouvidos para ouvir a nossa vocação. Algo nos convoca a participar, e perdura como necessidade. Podemos ser indiferentes a muita coisa, mas não a tudo. Algo se impõe a solicitar uma resposta nossa, pessoal, intransferível. Não importa se nos achamos à altura da tarefa, achando que sim ou que não, o fato é que não podemos calar a necessidade de agir e fazer. Se a terceira fase do arco do processo criativo, ou seja, a construção, nos exige aprendizagem técnica, a resposta nos impõe a educação da vontade. Se a atenção é uma disposição, a resposta é um compromisso. Eu me disponho a perceber tudo, mas me comprometo a responder algo. A resposta começa, portanto, por uma tomada de consciência daquilo com o que, daqui para frente, você estará comprometido, e que te ocupará objetivamente em termos de tempo e configuração da vida prática. Há no método arco, sobre esse circuito, também, uma série de reflexões e exercícios que contribuem para a conscientização das possibilidades de resposta, que passam desde uma investigação sobre a própria vocação até os modos de organização da vida capazes de viabilizar a sua realização. O ponto de partida é uma consciência bastante realista sobre si mesmo e as suas circunstâncias de vida. Nunca se deve menosprezar as circunstâncias reais em função de idealizações ilusórias e enganadoras. Traduzindo objetivamente: você não deve achar que a sua realidade é pobre demais para merecer a sua atenção e a sua resposta positiva. Processos criativos consistem em conseguir tirar leite de pedra, matar um leão por dia, dar nó em pingo d’água. A matéria prima ao seu redor sempre será suficiente para perceber e alcançar notas verdadeiras da natureza humana. Machado de Assis nunca precisou sair do Rio de Janeiro para fazer a obra universal que fez. Não quero dizer com isso que você tenha que se conformar, mas apenas que não deve se acostumar à lamentação. Encontrar uma resposta é agir na realidade. Se, por exemplo, para fazer o que você realmente quer, for preciso mudar de cidade ou país, nunca jamais, em hipótese alguma, ficar reclamando a sua situação será um caminho produtivo. Ou você arruma um jeito de sair para julgar que tem que ir, ou acha uma solução adaptada onde está. O ponto fundamental aqui é que a inveja do ideal não é uma resposta criativa nem significativa nem valiosa. O circuito da resposta tem por princípio a compreensão das circunstâncias e o realismo responsabilidade. Toda vez que nos acostumamos a dar todas as desculpas porque a situação não é ideal, estamos mentindo para nós mesmos. Eu faria alguma coisa boa se isso, se aquilo! O circuito da resposta procura dar um corte nessa falsificação da vida. De um modo ou de outro a nossa circunstância nos dá material para fazer algo bom e bem feito. Como diz A.D. Sertillanges, “toda réstia de luz pode levar ao sol”.24 CIRCUITO DA CONSTRUÇÃO A pergunta guia é: Como fazer? Trata da capacidade de fazer, das habilidades técnicas, dos desafios materiais de todo processo criativo, desde a ordenação das atividades até os detalhes daquilo que vamos chamar de trabalho vertical. Envolve tanto uma compreensão teórica sobre criação, quanto questões práticas de ordenação, inteligência e energia do trabalho. O que é criar? Como criar? A construção é o fazer. Aqui entra o desafio de materializar, de desenvolver- se tecnicamente, encontrar formas, dominar a linguagem, adquirir habilidades, ter a coragem de realizar, correr os riscos das falhas, administrar os fracassos, buscar a expertise. É o desdobramento necessário da resposta. Ezra Pound diz que “os artistas são as antenas da raça”. Com a imagem das antenas em mente, pensamos logo na ideia de captação. É verdade, as antenas captam o que está no ar. Mas, elas não apenas captam como transformam o sinal captado em outra coisa. Assim, grosso modo, uma antena pega no ar o que você não podia ver e transforma isso até virar imagem ou som que você possa ver e ouvir de modo inteligível. Um artista, um agente criativo em qualquer área, assim como uma antena, capta, transforma e transmite. Ora, o processo criativo é prioritariamente feito de transformação. Não adianta você perceber o mármore e ter uma ideia de escultura. Você precisa transformar essa pedra e dar-lhe um sentido para que se torne escultura. As dificuldades e a natureza material das realizações vão interagindo dinamicamente com as ideias do artista, assim como com as do cientista, do empreendedor, do médico, etc. No desenho, por exemplo, é fundamental aprender a aproveitar os erros dos traços que não obedecem o controle estrito da vontade. E, muitas vezes, é o traço inesperado, o erro, que indicará caminhos melhores ao artista, melhores do que ele havia pensado. Todas essas sutilezas são muito interessantes e muito importantes nessa etapa do processo criativo, mas o ponto sobre o qual quero chamar atenção aqui é anterior e mais básico: construir uma obra é transformar objetivamente alguma matéria prima, ou seja, impor a algo uma forma, uma intenção. Essa etapa é, portanto, do enfrentamento das resistências materiais e do desenvolvimento das habilidades, do desenvolvimento da capacidade de fazer. Para construir, é preciso dominar as regras complexas de uma linguagem, seja ela a linguagem musical ou de costura. No circuito da construção aprofundamos a relação necessária entre o engenho e a arte. A arte é o fazer, é a forma intencional à qual podemos chamar, tecnicamente, artifício. Nesse sentido, podemos chamar de artistas todos os artífices, os indivíduos criadores que elaboram algo criativo em qualquer área, não apenas os artífices daquilo que chamamos hoje de Artes ou Belas Artes. Um artista tem que tornar as suas mãos sábias, inteligentes, espertas, capazes. E é por isso que a prática constante é tão fundamental no processo criativo. O trabalho ordinário e o treinamento são fundamentais para dar ao artífice a capacidade de realizar, buscar, encontrar o extraordinário. Esse circuito trata da força e da coragem de realizar. Trata da energia e da inteligência do trabalho. Muita gente se ilude sobre criatividade ao encantar-se com seus resultados extraordinários, masesquecendo-se do quanto ela depende do ordinário. A persistência é uma regra de outro para quem busca a excelência. É como Anton Tchekhov disse certa vez numa carta a um jovem escritor: “Por que você não escreve? Um dia você terá bolhas nos seus dedos e você se tornará um escritor. Eu vou ajudá-lo, se você quiser. Você não deve esperar pela inspiração, mas, ao contrário, deve escrever todos os dias. Em torno de seis anos, você será um bom escritor”.25 Uma nota curiosa é que Tchekhov fala de seis anos de trabalho para desenvolver a expertise, e esse prazo mais ou menos corresponde à regra das 10.000 horas proposta pelos pesquisadores Anders Ericsson e Robert Pool. E essa regra também é o que se pode observar em vários casos como o de Van Gogh que, desde que decide tornar-se um pintor de excelência, leva dez mais ou menos oito a dez anos de trabalho intenso até alcançar essa expertise. Muito sucintamente, essa regra preconiza que dez mil horas de trabalho vertical ou o que eles chamam de prática deliberada, leva a pessoa ao domínio da sua área, à expertise e a resultados extraordinários. Não podemos aqui entrar na discussão sobre as 10.000 horas exatamente (algo que nem os autores levaram ao pé da letra), mas é bastante óbvio que um longo período de prática orientada pela inteligência das ações, com bom feedback, com progressivos graus de dificuldade, profundo comprometimento, força de propósito, enfim, é evidente que essa trabalho vertical por algum tempo próximo a uma dezena de anos é um segredo não muito secreto dos mestres de cada área criativa. CIRCUITO DA OFERTA A pergunta guia é: A quem eu sirvo? Trata da publicação, exposição, comunicação ou oferta da obra realizada. É uma etapa fundamental do processo criativo, que tem a ver diretamente com o amadurecimento do artista/criador. A quem eu sirvo? Que bem eu gero para o outro quando faço bem feito o que faço? Um poema escrito nunca mostrado a ninguém, nunca lido por ninguém que não seja o seu próprio autor, nunca existiu como poesia, nunca existiu como arte. Uma bondade imaginada, que nunca se converteu num gesto de bondade para o próximo, não é nada. Fazer uma obra é fazer para outros. Não importa que seja para uma multidão ou para uma única pessoa, mas uma obra só existe plenamente quando é entregue ao outro. A criatividade é um fenômeno de interação entre pessoas, de interação cultural. Sem ofertar, ou seja, publicar, mostrar, entregar a sua obra ao outro, ela ainda não é uma obra, ela não completou o seu destino necessário. Fazer uma obra para si faz tão pouco sentido quanto fazer uma uma caridade para si mesmo. Só ao compartilhar, publicar, expor, ofertar, é que a obra está realmente realizada. Se a criatividade é uma qualidade da natureza humana que confirma a dignidade do ser, que amplia e aprofunda o sentido do ser como imagem e semelhança de Deus, isso se dá não apenas pelo traço da inventividade, mas, também, pelo traço da caridade de compartilhar o inventado, descoberto, imaginado, de realizar. Neste como nos demais circuitos, há uma articulação necessária entre aspectos práticos e teóricos do problema. A oferta pensada em sentido prático deve resolver problemas que vão desde a timidez de propor e mostrar a obra até as soluções materiais dos meios pelos quais fazê-lo. Há muitos aspectos interessantes a se aprender nesse terreno. Do ponto de vista teórico, teoria aqui bem entendida como um olhar de cima, uma compreensão superior das partes, uma visão que tende à razão dos princípios, que depois devem retornar à prática, bem, entendida assim, uma visão teórica deve nos levar a compreender o motor da nossa ação como um gesto de oferta, como um serviço, não como a reprodução automática de ações robóticas, mas como a confirmação da nossa humanidade, que está inscrita no amor ao próximo. DECÁLOGO DO PROCESSO CRIATIVO 1. Não é inspiração que gera trabalho, é trabalho que gera inspiração. 2. Liberdade não é ausência de limites, mas a condição de lidar conscientemente com eles. 3. Há regras, e é preciso conhecê-las, sobretudo as secretas, ou seja, as que só se revelam com a prática e a meditação. 4. A técnica não é tudo, mas sem ela quase nada se pode fazer. 5. Não importa o seu tema, importa a sinceridade com que você o investiga. 6. O gênio está mais na capacidade de compreender unidades do que na de analisar ou criticar. 7. Fazer para agradar aos outros é mentir para todos; não fazer para não desagradar aos outros é mentir para si mesmo. 8. Uma obra dentro da sua cabeça não é uma obra, é só um pensamento, se tanto. 9. Não existe perfeição antes de todos os erros possíveis. 10. Ao invés de esperar por situações ideais, aprenda a não desperdiçar. Nota: um exemplo maravilhoso desse percurso em busca da perfeição através dos erros é o modo como Leonardo da Vinci chamava sua técnica de desenho: pentimenti ou arrependimentos para ilustrar justamente aquilo que está dito nesse decálogo no item 9: “Não existe perfeição antes de todos os erros possíveis”. Da Vinci desenhava seus esboços buscando a perfeição almejada a partir dos traços errados de cada desenho. Nos seus pentimenti, a forma vai surgindo de traços errados e da correção do curso das linhas arrependidas, mas que não se apagam e se integram à unidade formal última do desenho. Estudos da Virgem com a criança e Santa Ana e o jovem Batista (aprox. 1505). The British Museum NOTAS DE RODAPÉ 1 Filme de Jonathan Dayton e Valerie Faris. Título original: Little Miss Sunshine. 2 Revista Mainliner. United Airlines Magazine, July 1977. Citado por Olivia Bertagnolli em Creativity and the writing process (1982); pág. 181. 3 VALÉRY, Paul. Poésie et pensée abstraite, Théorie poétique et esthétique (1939) in: Œuvres, vol. 1, p. 1324 (Pléiade ed. 1957). Aqui em tradução própria. 4 Corção, Gustavo. As fronteiras da técnica. Campinas, SP: Vide Editorial, 2021; p. 55. 5 “Tudo, por meio d’Ele, começou a existir e, sem Ele, coisa alguma começou a existir” (João, 1;3) 6 Aqui apresento o texto em tradução simplificada da seguinte passagem original: “che l’arte vostra quella, quanto pote, / segue, come’l maestro fa’l discente; / si che vostr’arte a Dio quasi è nepote” . 7 Aquino, Santo Tomás de. Comentário sobre a física; Livro II, Lição 14. 8 Ostrower, Fayga. Criatividade e processos de criação. São Paulo: Vozes, 2014; p. 9. 9 Csikszentmihalyi, Mihaly. Creativity: Flow and the Psychology of Discovery and Invention. Harper Perennial, 2013. (Aqui, em tradução própria) 10 No caso de Aristóteles, ver, por exemplo, Política, livro 2; 1260b27 - 1269 a 29. No caso de Platão posso citar o Fedro, sobre o qual falarei logo a seguir. 11 Genet, Jean. O ateliê de Giacometti. (tradução de Célia Euvaldo). São Paulo, Cosac & Naify, 2000; p. 12. 12 Platão. Fedro, 274 A - 275 A. (tradução de Carlos Alberto Nunes). Belém: ed.ufpa, 2011; p. 181-183. 13 SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia e história da cultura; vol. I. São Paulo: Logos, 1 edição: 1962; p. 44. 14 Julian Marias. Antropologia Metafísica: a estrutura empírica da vida humana. (tradução de Diva Ribeiro de Toledo Piza). São Paulo: Duas Cidades, 1971; p. 216. 15 Carvalho, Olavo de. Curso online de filosofia — seminário de filosofia, aula 21; transcrição própria. https://sl.seminariodefilosofia.org/ 16 Souriau, Étienne. Vocabulaire d’Esthétique. Paris: Quadrigue, 2004. 17 Na verdade, esse termo nem é muito adequado, embora comunique hoje diretamente a ideia de perda de sacralidade ou mesmo de religiosidade, que é de fato o que ocorreu com o conceito de inspiração. Mas, apenas para esclarecer esse detalhe, laico não é aquilo que está fora da religião, mas o que não é clerical. O sentido avesso ou alheio ao religioso é uma metonímia moderna. 18 Singh, A. (1986). The novels of E.M. Foster. New York, NY: Atlantic Publishers and Distributors; p. 20. 19 Trecho transcrito de entrevista dada por Carlos Drummond de Andrade na TV à jornalista Leda Nagle em 1982. 20 Garcia-Delgado, Carlos. El yo creativo: una aventura de la mente.Barcelona: Arpa, 2022; p. 103. 21 Ebook disponível em www.luizcarreira.com 22 Carroll, Lewis. Alice no país das maravilhas. (tradução de Rosaura Eichenberg). Porto Alegre: L&PM, 2007; p 84. 23 Texto originais e em diversas traduções facilmente encontrável na Internet. 24 Sertillanges, A.D. A vida intelectual (tradução de Roberto Mallet). Campinas, SP: Kírion, 2019. 25 Blaisdell, Bob. Chekhov Becomes Chekhov: The Emergency of a Literary Genius: 1886-1887. New York: Pegasus Books, 2022; p. 196. Apresentação Da gambiarra à INvenção: O que é criatividade Do robô à pessoa: do ser humano A natureza criativa Do engenho à arte: a invenção do talento DECÁLOGO DO PROCESSO CRIATIVO Notas de Rodapé