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O mundo paradisíaco de Ulume é abalado por dois acontecimentos estra-
nhamente próximos: a visão de Munakazi, jovem de uma aldeia próxima por 
quem ele fica encantado, e a queda de uma granada que o deixa ferido. 
[...] Decidiu ali, sem ainda saber quanto estava ferido, Munakazi tem de ser 
minha. Não fazia senão seguir a sabedoria vinda de muito atrás, pois se alguém 
que pensa morrer tem saudade de uma mulher, então é inútil lutar contra 
esse amor avassalador, o mais sensato é conviver com ele. Sabedorias antigas 
trazidas por todos os cágados do mundo. E Ulume respeitava os ensinamentos 
dos antepassados, resguardados nas mahambas que se enterram à entrada dos 
kimbos ou nas encruzilhadas dos caminhos [...]. Nunca os seus lábios proferiram 
qualquer blasfémia contra os antepassados, ou contra o espírito que agitava o 
vento. Como podia então desprezar ou mesmo só ignorar o sinal evidente que 
a granada lhe deu? 
PEPETELA. Parábola do cágado velho. 
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 12. (Fragmento).
O amor e a guerra surgem como as forças que irão abalar o mundo har-
monioso de Ulume e Muari. Na sabedoria dos velhos, sempre venerados na 
tradição popular, o menino Ulume aprendeu sobre a inexorabilidade das 
guerras. Observe.
Os mais velhos do kimbo contavam, ainda Ulume era pequeno. 
Nesta terra sempre passam guerras. [...]
Sempre foi assim, desde os avós dos avós. Mais tarde vieram os brancos. 
Exércitos de negros de outras regiões, comandados por brancos, vinham ocupar 
terras e apanhar escravos em guerras de kuata-kuata. As aldeias ficavam quase 
desertas, só velhos e crianças sobravam. Para morrer de fome e desespero 
pouco depois. [...]
E depois acabaram as guerras de kuata-kuata. Os brancos se fixaram em 
povoações, fundaram Calpe, a cidade do sonho. De Calpe vinha tudo, o bom e 
o mau. Para Calpe fugiam os jovens, à procura do sonho. [...] Mas as guerras não 
pararam totalmente. Por vezes havia revoltas e os brancos vinham com seus 
sipaios arrasar tudo. De novo, do mais profundo das Mundas, o povo renascia.
Agora sim, acabaram as guerras e as revoltas. Mas não há paz. A fome sempre 
persiste, pois a abundância que a terra produz só chega para pagar os impostos, 
nunca para saciar a nossa fome. E se protestamos, a palmatória e o chicote estão 
aí para nos calar. Por isso, ainda vai haver uma grande revolta. 
Falavam assim os sekulos, os kotas, os makulundus do kimbo, nomes de 
línguas diferentes para designar os mais velhos, os mais sábios. Quando Ulume 
era pequeno.
E já Ulume estava casado e tinha filhos pequenos, estoirou mesmo a grande 
revolta. Em alguns sítios, das aldeias se levantou gente com as armas possíveis 
e os brancos fugiram para a segurança de Calpe. [...]
PEPETELA. Parábola do cágado velho. 
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 13-14. (Fragmento).
Nesse capítulo, séculos de história de guerras e sofrimento que mar-
caram o povo angolano são apresentados a partir de um olhar diferente. 
A sabedoria dos velhos afirma a existência da guerra como um aconteci-
mento previsível e quase natural. O interessante, porém, é observar que a 
última guerra apresentada é diferente das anteriores. Nesse caso, o povo 
se revolta contra seus opressores e, armados com seus poucos recursos, 
tenta conquistar a liberdade. 
 Jovem da Unita com arma, 
Angola, 1974.
Mahamba: estrado encimado por 
chifres para proteção das aldeias 
(cultura Tchokue).
Kimbo: aldeia (em Kimbundo e 
outras línguas africanas).
Blasfémia: palavra ou declaração 
que insulta a divindade, 
pronunciamento contra valores 
sagrados.
Kuata-kuata: Agarra-agarra 
(em várias línguas). Era essa a 
denominação para as guerras de 
captura de escravos.
Sipaio: soldado ou policial nativo 
da África e da Índia.
Munda: principal montanha de 
um território na designação dos 
Cuvale (tribo que vive ao sul de 
Angola).
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Pepetela, que lutou contra os soldados portugueses como um guer-
rilheiro do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), enfrenta 
questões difíceis da história recente, como a guerra civil que teve início 
após a independência do país. No romance, os filhos de Ulume, Kanda e 
Luzolo, simbolizam a disputa fratricida travada entre os guerrilheiros do 
MPLA e da UNITA (União Nacional para Independência Total de Angola). Os 
irmãos vão para a guerra, mas lutam em facções opostas. 
Os fios narrativos da Parábola do cágado velho representam a força que 
move a literatura de Pepetela. O autor, em seus romances, promove a refle-
xão sobre o presente a partir de um jogo especular com o passado místico 
e histórico dos angolanos. O resultado desse processo é um texto literário 
de grande carga simbólica, no qual as tradições nativas são resgatadas 
como parte essencial da identidade cultural do povo de seu país.
Agualusa: o esfumaçamento 
das fronteiras geográficas
José Eduardo Agualusa pertence à geração de autores angolanos que 
começaram a escrever após a independência de seu país. Nesse sentido, 
embora seus romances e contos também abordem a questão da identidade 
cultural, dão ao tema um tratamento diferente. 
A história passada continua a ser revisitada, mas o olhar dos narradores 
aponta para uma indefinição das fronteiras políticas, ideológicas e geográfi-
cas que, para os autores dos anos 1960, pareciam tão claramente traçadas. 
Como afirma o romancista e filósofo ganense Kwame Anthony Appiah:
[...] Os romancistas pós-coloniais da África já não estão com-
prometidos com a nação [...]. Mas o que escolheram em lugar da 
nação não é um tradicionalismo mais antigo, porém a África — o 
continente e seu povo. [...]
APPIAH, Kwame A. Na casa de meu pai: a África na filosofia e na cultura. 
Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 213. (Fragmento).
Angolano de nascimento, filho de portugueses e vivendo entre Luanda, 
Lisboa e Rio de Janeiro, Agualusa transita por esses países e acaba por 
identificar pontos de contato muito fortes entre suas culturas. Mais do 
que isso: enxerga de que maneira as duas grandes colônias portuguesas — 
Brasil e Angola — afetaram a metrópole que as controlava. 
Nas águas do Atlântico, três países se encontram 
Construído como uma narrativa epistolar, o romance Nação crioula é, no 
contexto da obra do autor, aquele que revela de modo mais explícito um 
olhar mais abrangente para a questão colonial. Em Nação crioula Agualusa 
explora um interessante recurso ficcional: dá vida a uma personagem criada 
por Eça de Queirós, o aventureiro Fradique Mendes, que viaja para Luanda, 
onde se apaixona por uma ex-escrava, Ana Olímpia Vaz de Caminha. 
Os muitos fios narrativos que se cruzam por meio das cartas enviadas 
por Fradique à sua madrinha, ao amigo Eça de Queirós e à própria amada, 
Ana Olímpia, vão desvendando, para o leitor, a interpenetração das culturas 
portuguesa, brasileira e angolana no século XIX. 
A primeira carta, por exemplo, recria o impacto da chegada dos portu-
gueses a Angola, em maio de 1868:
 Agualusa, na Escócia, 
11 ago. 2008.
A ascendência portuguesa 
e brasileira e o fato de haver 
nascido em Huambo (Angola), 
em 1960, fizeram com que 
José Eduardo Agualusa es-
colhesse se autodenominar 
afro-luso-brasileiro. Embora 
seja graduado em Agronomia 
e Silvicultura pelo Instituto 
Superior de Agronomia, em 
Lisboa, é como jornalista e 
escritor que ele se desta-
ca. Divide seu tempo entre 
Angola, Portugal e Brasil. É 
um dos sócios da editora 
Língua Geral, dedicada ex-
clusivamente a autores de 
língua portuguesa. Primeiro 
escritor africano a receber 
o Prêmio Independente de 
Ficção Estrangeira, criado 
pelo jornal britânico The In-
dependent em colaboração 
com o Conselho das Artes do 
Reino Unido, é considerado 
hoje um dos principais au-
toresda literatura africana. 
Entre seus romances, mere-
cem destaque: Estação das 
chuvas (1996), Um estranho 
em Goa (2000), O ano em que 
Zumbi tomou o Rio (2003), O 
vendedor de passados (2004) 
e As mulheres de meu pai 
(2007).
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Minha querida madrinha,
Desembarquei ontem em Luanda às costas de dois marinheiros cabindanos. 
Atirado para a praia, molhado e humilhado, logo ali me assaltou o sentimento 
inquietante de que havia deixado para trás o próprio mundo. Respirei o ar quente e 
húmido, cheirando a frutas e a cana-de-açúcar, e pouco a pouco comecei a perceber 
um outro odor, mais subtil, melancólico, como o de um corpo em decomposição. É 
a este cheiro, creio, que todos os viajantes se referem quando falam de África. [...]
AGUALUSA, José Eduardo. Nação crioula: a correspondência secreta 
de Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Gryphus, 2001. p. 11. (Fragmento).
Logo na chegada, Fradique e seu companheiro de viagem, o escocês 
Smith, são acolhidos pelo coronel Arcénio Pompílio Pompeu de Carpo, um 
degredado da Ilha da Madeira, que se tornou a pessoa mais poderosa de 
Luanda e se outorgou o título militar. Arcénio de Carpo fez fortuna “com-
prando e vendendo a triste humanidade”, ou seja, traficando escravos. Com 
a arrogância hipócrita dos escravocratas, o coronel afirmava contribuir 
para o crescimento do Brasil, explicitando o olhar predominante na época 
para a questão da escravidão e do tráfico de negros. Como relata Fradique, 
o raciocínio de Arcénio procura justificar a necessidade dessas práticas 
abomináveis: “[...] o Brasil, onde o número de colonos europeus é muito re-
duzido, depende inteiramente de escravos. Se o tráfico acabar, a agricultura 
brasileira entra em colapso”.
As cartas trocadas entre Fradique Mendes e Eça de Queirós permitem 
que Agualusa realize, por meio da ficção, uma análise crítica da situação 
de Portugal em relação às suas colônias africanas. No trecho transcrito 
a seguir, acompanhamos a justificativa apresentada por Fradique para 
se recusar a escrever um artigo sobre “A situação actual de Portugal em 
África”, que lhe havia sido solicitado pelo amigo escritor.
Meu querido José Maria, 
[...]
Receio, meu bom amigo, não ser do interesse de Portu-
gal que o mundo conheça a presente situação das nossas 
colónias. Nós, Portugueses, estamos em África por esqueci-
mento: esquecimento do nosso governo e esquecimento dos 
governos das grandes potências. Qualquer ruído, mesmo o 
pequeno rumor de um pequeno artigo da Revista de Portu-
gal, e corremos o risco de que a Inglaterra descubra que no 
território português da Zambézia não há Portugueses — e 
lá ficaremos nós sem a Zambézia!
O meu silêncio, portanto, é patriótico. Se permanecer-
mos quietos e calados pode ser que o mundo, ignorando 
que não estamos no Congo, na Zambézia ou na Guiné, nos 
deixe continuar a não estar lá. [...]
A nossa presença em África não obedece a um princípio, 
a uma ideia, e nem parece ter outro fim que não seja o saque 
dos africanos. Depositados em África os infelizes colonos 
portugueses tentam em primeiro lugar manter-se na sela, 
isto é, vivos e roubando, pouco lhes importando o destino 
que o continente leva. E Portugal, tendo-os depositado, 
nunca mais se lembra deles. Uns tantos, assim esquecidos, 
depressa perdem a memória da pátria e em pouco tempo 
se cafrealizam. Esses são os mais felizes. Entranham-se 
pelo mato (“Deus é grande”, costumam dizer, “mas o mato 
é maior”) e assim como trocam as calças e as camisas por 
mantas de couro, da mesma forma abandonam a língua 
portuguesa, ou usam-na em farrapos, de mistura aos sonoros 
idiomas de África. [...]
O que é que nós colonizamos? O Brasil, dir-me-ás tu. 
Nem isso. Colonizámos o Brasil com os escravos que fomos 
buscar a África, fizemos filhos com eles, e depois o Brasil 
colonizou-se a si próprio. Ao longo de quatro demorados 
séculos construímos um império, vastíssimo, é certo, mas 
infelizmente imaginário. [...]
AGUALUSA, José Eduardo. Nação crioula: a correspondência secreta de 
Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Gryphus, 2001. p. 131-133. (Fragmento).
Cabindanos: indivíduos do grupo 
dos cabindas.
Se cafrealizam: viram cafres, ou 
seja, adquirem as características 
dos negros que viviam no sudeste 
da África.
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