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145 ECONOMIA Unidade III 7 ATIVIDADE ECONÔMICA NACIONAL: INTRODUÇÃO À TEORIA MACROECONÔMICA Esta unidade está dedicada a apresentar a você alguns assuntos introdutórios e relacionados à Teoria Macroeconômica, seus questionamentos centrais, evolução histórica e importância. Aborda assuntos relacionados à contabilidade social, notadamente as medidas de atividade econômica, a identidade entre renda e produto, bem como os conceitos de valor bruto da produção e valor agregado até chegar à medida maior, que é o PIB e suas variantes. Moeda e inflação também estão presentes nesta unidade. A Teoria Macroeconômica tem por objetivo fundamental analisar como são determinadas as variáveis econômicas na sua forma agregada. Essa teoria, também chamada de abordagem de equilíbrio geral, procura analisar se o nível de atividade econômica tem crescido ou diminuído, se os preços das mercadorias, conjuntamente, têm apresentado elevação ou diminuição. Diferentemente da Teoria Microeconômica, a Teoria Macroeconômica observa grandes mercados, como todos os de bens e serviços, o de trabalho, o mercado monetário – em decorrência da participação da moeda como meio de troca por mercadorias –, o mercado de títulos e, por fim, analisa também o mercado de divisas internacionais, pois os países mantêm relações entre si, de modo que as moedas, as chamadas divisas, que são reguladas pelo mercado cambial ou pelo governo, também são objeto de investigação dessa teoria. Preocupa‑se, portanto, em estudar o grupo dos consumidores de uma sociedade, assim como o seu conjunto de empresas. O interesse é determinar os fatores que influenciam o nível total de renda e do produto do sistema econômico. 7.1 Questionamentos centrais da Teoria Macroeconômica Os fatos macroeconômicos afetam a vida de todos nós. Muitos empresários planejam a elevação ou diminuição das quantidades produzidas de seus bens levando em conta qual será, por exemplo, o comportamento da renda da sociedade durante um determinado período de tempo. Observação A preocupação macroeconômica reside em conhecer o nível de renda de todos os indivíduos de uma sociedade, diferentemente da microeconomia, que está preocupada com a renda do consumidor individual. 146 Unidade III Observação Podemos, por uma primeira aproximação, listar alguns dos questionamentos levantados pela Teoria Macroeconômica: • qual o comportamento do nível geral de preços; • qual o comportamento do nível geral de produção de mercadorias; • qual a taxa de salários dos trabalhadores; • qual o nível de emprego e de desemprego; • qual o comportamento da taxa de juros da economia; • qual a quantidade de moeda que circula em um sistema econômico; • qual a quantidade de divisas internacionais que um país mantém como reservas; • qual a variação da taxa de câmbio entre a moeda nacional e a internacional; • qual o tamanho do endividamento do governo; • qual a taxa de investimento das empresas. Segundo Gregory Mankiw (1995, p. 2), [...] os macroeconomistas são cientistas que procuram explicar o funcionamento da economia como um todo. Reúnem dados sobre rendas, preços, desemprego e outras variáveis em diferentes épocas e diferentes países. Procuram, então, elaborar teorias gerais que ajudem a explicar esses dados. 1929 1930 60 80 100 200 300 desocupação Desocupação e produção industrial produção 1931 1932 1933 1934 Figura 53 – Emprego e produção industrial: preocupação macroeconômica desde a década de 1930 147 ECONOMIA A Teoria Macroeconômica compreende, então, a análise de todos os mercados, envolvendo os preços e quantidades das mercadorias, admitindo que modificações em algum mercado específico ou modificações em qualquer de suas variáveis afetam o comportamento de outros mercados. Vamos exemplificar para ficar mais claro aonde queremos chegar. Pense que, num determinado momento, uma empresa do ramo farmacêutico não esteja muito bem em suas finanças. A empresa é de grande porte, tem aproximadamente duzentos e cinquenta funcionários diretos e, para ajustar sua estrutura de custos, anuncia uma política de demissão envolvendo oitenta funcionários. Está bem. Oitenta pessoas perderão seus empregos e, dessa forma, deixarão de ter renda. Se deixarão de ter renda, como conseguirão atender às necessidades de consumo de sua cesta? Pense que essas oitenta pessoas sejam chefes de família e essas famílias são compostas por quatro membros: pai, mãe e dois filhos. Esse chefe de família, agora desempregado, não tem mais condições de pagar o estudo particular dos filhos, que ainda são menores de idade. Dessa forma, os filhos passarão a depender do ensino público. A família também possuía convênio médio (seguro saúde), que também deixará de ser pago em função da falta da renda. Caso algum membro desta família venha a necessitar de cuidados médicos, dependerá também do serviço público. Menos roupas serão adquiridas, as idas ao cinema serão cortadas, assim como os refrigerantes e o sorvete no final de semana. Quem foi afetado com a demissão efetuada pela indústria farmacêutica? • os funcionários, com a perda do emprego; • os membros da família dos funcionários que perderam o emprego; • a escola dos filhos dos funcionários que perderam o emprego, pois deixarão de receber as mensalidades, e poderá vir a ter dificuldades em manter sua estrutura de custos; • a empresa que administrava o convênio médico dessa família, que pode vir a ter dificuldades em remunerar os médicos conveniados; • o governo duplamente: primeiro, pela perda de arrecadação com impostos em função da queda de consumo; segundo, pelo aumento das despesas tanto na rede pública de ensino quanto no sistema único de saúde, pois aumentarão os atendimentos; • a empresa de exibição de filmes nos cinemas, já que algumas famílias cortarão esse tipo de lazer; • a empresa que produz refrigerantes bem como o mercadinho da esquina que vende os refrigerantes; • o sorveteiro e a indústria que produz sorvetes. Vamos adiante. As escolas que deixarão de receber mensalidades também têm funcionários, e se o número de alunos diminuir, o número de professores também reduzirá, bem como o de assistentes e demais trabalhadores que, por sua vez, também perderão renda e já sabemos o que ocorrerá. A empresa que administra convênio médico incorrerá no mesmo problema: mais pessoas sem renda. Nesse ponto, você já é capaz de pensar o que acontecerá com os demais setores da economia. 148 Unidade III Numa situação como a descrita, algo deve ser feito para que a atividade econômica volte a ser operante bem como os empregos retomados. É nesse contexto que a atuação do governo se faz presente na análise macroeconômica. É a partir da análise de equilíbrio geral que são formuladas as diretrizes da política econômica. Portanto, o conhecimento da macroeconomia ajuda as autoridades públicas a avaliarem políticas alternativas, por meio dos instrumentos de intervenção, sejam eles por parte fiscal, monetária, cambial, de rendas ou demais instrumentos de política. Conforme Moraes (1996, p. 196): A macroeconomia estuda o comportamento de variáveis que representam a soma (ou a média) de quantidades e preços em mercados numa escala nacional. O tipo de modelo que se associa à macroeconomia é, por essa razão, chamado de agregativo. Os principais problemas estudados pelo enfoque macroeconômico são o desemprego, a inflação, os efeitos das políticas econômicas sobre essas variáveis, o crescimento econômico e a distribuição de renda. Podemos esquematizar a divisão do estudo da economia: Economia Divide‑se em Microeconomia Empresas Famílias Governo País Macroeconomia Estudo do comportamento econômico Estudo do comportamento econômico Figura 54 – Divisão do estudo da economia: micro e macro 7.2 Evolução da Teoria Macroeconômica a partir da história A partir das guerras mundiais, entremeadas pela crise de 1929 e a Grande Depressão, a Teoria Econômica convencional passa a ser objetode investigação e passível de mudanças. A partir das catástrofes causadas pela Grande Depressão, há uma ruptura com a ciência clássica, pois os chamados economistas clássicos, dos quais é exemplo Jean Baptiste Say, acreditavam que as economias de mercado tinham a capacidade de, sem a interferência do governo, utilizar de maneira eficiente os recursos disponíveis, ou seja, produzir esses recursos com pleno emprego. A partir do momento em que as economias atingissem ponto de pleno emprego, o produto da economia e o emprego já estariam determinados, representando então a efetiva disponibilidade de recursos. 149 ECONOMIA Lembrete Lembra o que significa ponto de pleno emprego de recursos? Vimos isso no início de nossa viagem pela economia com a apresentação da curva de possibilidade de produção. Vale recordar. A macroeconomia, até então prevalecente, sugeria a existência de uma tendência automática ao pleno emprego de recursos e, dessa forma, a inexistência de desemprego de trabalhadores. No entanto, por conta principalmente da Grande Depressão dos anos de 1930, a evidência empírica mostrava pessoas buscando constantemente emprego sem alcançar sucesso. Neste ambiente, em 1936 surge A Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro, em que John Maynard Keynes mostrava que, contrariamente aos resultados apontados pela teoria clássica, as economias capitalistas não tinham a capacidade de promover automaticamente o pleno emprego. Assim, abriria oportunidade para a ação governamental e seus clássicos instrumentos de política econômica para direcionar a sociedade econômica rumo à utilização total dos recursos. Nesse sentido, para que se justificassem políticas de estímulo ao emprego e à renda dos trabalhadores, pensadores como Keynes e seus seguidores ganham espaço na Teoria Econômica. Após diversas leituras do livro de Keynes, surge a análise predominante na Teoria Macroeconômica, com o aprimoramento do instrumental IS‑LM, desenvolvido por Hicks e Hansen, estruturando uma nova escola no pensamento econômico que viria a ser chamada de síntese neoclássica. i i* E Y* Y IS LM Figura 55 – Instrumento IS‑LM Com o desenvolvimento da análise IS‑LM, a economia passa a ser estudada a partir das noções de equilíbrio, assim como o é na Teoria Microeconômica, mas o equilíbrio a ser estudado pela Teoria Macroeconômica é entre taxa de juros (i*) e renda (Y*). No instrumental IS‑LM: 150 Unidade III i = taxa de juros. i* = taxa de juros de equilíbrio. Y = renda. Y* = renda de equilíbrio. A curva IS (investiment‑saving) representa o equilíbrio no mercado de bens, em que a poupança seria igual ao investimento. A curva LM (liquidit‑money) representa o equilíbrio no mercado monetário, em que a oferta da moeda (M) seria igual à demanda por moeda (L). A partir desses equilíbrios, qualquer evento econômico passa a ser analisado como impacto no equilíbrio proporcionado por esses dois mercados. Observação Perceba que voltamos a falar do fluxo circular da renda demonstrado na unidade I. Agora, a curva IS representa o mercado de bens, mercado real, e a curva LM, o mercado monetário. Saiba mais Para melhor contato com o modelo IS‑LM, consulte o livro: VASCONCELLOS, M. A. S.; LOPES, L. M. Manual de macroeconomia: básico e intermediário. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. Há um capítulo específico ao assunto, bem como a descrição da evolução histórica da Teoria Macroeconômica. Num sistema econômico moderno, produz‑se grande variedade de bens e serviços, desde automóveis até parafusos e alfinetes, como aparelhos eletroeletrônicos, produtos hortifrutigranjeiros e serviços médicos e bancários. Sem contar laranjas, sapatos, ventiladores e mais uma infinidade de bens e serviços que você possa pensar. Como medir tudo isso? Uma das maneiras de avaliar o desempenho da economia é por meio da medição da produção agregada de bens e serviços. Porém, como é possível somar a produção de pares de sapatos com quilos de maçãs e litros de leite? Como medir tudo isso em uma única unidade de medida para verificar qual o produto agregado de uma nação? 151 ECONOMIA 7.3 Medidas de atividade econômica e distribuição da renda nacional Nesse momento, é pertinente perguntar como medir a produção realizada pelo sistema econômico, tendo em mente que ela é contínua no tempo: os bens e serviços são produzidos e consumidos, sendo necessário produzi‑los novamente, pois grande parte das necessidades humanas exige um consumo ininterrupto, como é o caso da alimentação, que precisa ser feita diariamente (SILVA; LUIZ, 2010). É neste contexto que surge a contabilidade nacional: “[...] método de mensuração e interpretação da atividade econômica que tem como objetivo medir a produção que se realiza em um sistema econômico em um determinado período” (SILVA; LUIZ, 2010, p. 44). Para medir o produto de uma nação, temos que ter em mente as quantidades de mercadorias que são vendidas em determinado período de tempo e seus respectivos preços. Quando são usados os preços de mercado, pares de sapatos, quilos de maçãs e litros de leite podem ser somados e comparados, conforme segue: Tabela 21 – Utilização dos preços de mercado para somar diferentes produtos Produto Quantidade Preço Valor de mercado Pares de sapatos 1.000 pares R$ 40,00 o par R$ 40.000,00 Maçãs 3.000 quilos R$ 3,00 o quilo R$ 9.000,00 Leite 5.000 litros R$ 1,30 o litro R$ 6.500,00 Total R$ 55.500,00 Com o exemplo apresentado, podemos chegar à medida de produto nacional, que será dado pelo valor monetário dos bens e serviços finais produzidos durante um determinado período de tempo, normalmente um ano. Nesse exemplo, o produto nacional dessa nação hipotética seria de R$ 55.500,00. Vamos adiante, lembrando‑nos do fluxo circular da renda para ver como isso opera. Observação Veja: não é possível somar unidades com quilos mais litros, mas é possível somar o valor monetário que representam. 7.3.1 Identidade entre renda e produto Já sabemos que o fluxo circular da renda mostra os fluxos reais e monetários. No fluxo real, temos de um lado bens e serviços sendo destinados das empresas para as famílias. Quanto ao fluxo monetário, as famílias geram receitas às empresas como pagamento da aquisição de bens e serviços, e as empresas geram rendas às famílias como remuneração à utilização dos fatores de produção. Relembrando: 152 Unidade III Gastos ($) (=PIB) Receitas ($) (=PIB) Bens e serviços comprados Terra, capital, trabalho e empreendedorismo Salários, aluguéis, juros e lucros ($) (PIB) Renda ($) (PIB) Insumos para a produção Bens e serviços vendidos Fluxo de bens e serviços Fluxo de dinheiro Mercado de fatores de produção Famílias Empresas Mercado de produtos Figura 56 – Fluxo circular da renda e do produto O fluxo circular da renda mostra o desenvolvimento de outros dois mercados: o mercado de bens e o mercado de fatores, que fazem parte do mercado real. No mercado de bens, aquele em que as empresas vendem às famílias sua produção, são estabelecidos os preços das mercadorias e suas respectivas quantidades. Já no mercado de fatores, aquele em que as famílias vendem às empresas fatores de produção, são estabelecidas as remunerações de cada um desses fatores e em quais quantidades serão utilizadas. Por exemplo, é no mercado de fatores que serão determinados os valores dos salários da mão de obra que será empregada. Lembrete Lembre‑se de que na Teoria Microeconômica os mercados também são considerados, tanto em termos de demanda como de oferta e, portanto, de determinação de preços e quantidades. Lá, a discussão é individual. Aqui, no agregado. Portanto, o fluxo circular da renda, na forma apresentada, é uma versão bastante simplificada da realidade ou do funcionamento de uma economia. No entanto, apesar de simples, podemos retirar a partir dele vários conceitos, como os de produto nacional e de renda nacional. 153 ECONOMIA Já sabemos que o produto nacional (PN) é o valor monetário de todos osbens e serviços finais produzidos na economia em determinado período de tempo. Portanto, a renda nacional (RN) será o total de pagamentos efetuados aos fatores de produção que foram utilizados para a obtenção desse produto. Então, estamos dizendo que há uma identidade entre produtos e renda: PN = RN. Vejamos um exemplo. Tabela 22 – Produção e renda Produção Renda Sapatos R$ 40.000,00 Salários R$ 25.900,00 Maças R$ 9.000,00 Juros R$ 10.480,00 Leite R$ 6.500,00 Aluguel R$ 8.430,00 Total R$ 55.500,00 Lucros R$ 10.690,00 Total R$ 55.500,00 Do exemplo, temos que o produto total da economia, o produto nacional, foi de R$ 55.500,00 e, para que fossem produzidos sapatos, maçãs e leite neste país, foi necessário utilizar trabalhadores, capital, terra e capacidade empresarial. Se esses fatores de produção foram utilizados, então eles foram remunerados. Lembrete Lembra que o uso de fatores gera remuneração e que a soma de todas as remunerações resulta na renda da sociedade? Explicamos isso na unidade I e agora com números. O total de produção de sapatos, maçãs e leite gerou R$ 25.900,00 em salários, R$ 10.480,00 de juros, R$ 8.430,00 de pagamentos pelo aluguel e, por fim, gerou R$ 10.690,00 de lucros, que foram reinvestidos na própria produção. No entanto, essa renda que foi gerada na produção deve retornar à produção na forma de consumo. Observação Estamos, por simplificação, supondo que essa economia hipotética produza apenas três bens, mas sabemos que além destes há uma enorme variedade. Os valores são meramente ilustrativos. 154 Unidade III Portanto, chegamos a outra identidade: Produto = renda = consumo De outra forma: Produto nacional = renda nacional = dispêndio nacional PN = RN = DN Vejamos: Tabela 23 – Produção, renda e consumo (em R$) Produção Renda Dispêndio Sapatos 40.000,00 Salários 25.900,00 Despesas de consumo Maçãs 9.000,00 Juros 10.480,00 Alimentação 17.400,00 Leite 6.500,00 Aluguel 8.430,00 Vestuário 3.420,00 Lucros 10.690,00 Habitação 7.330,00 Higiene 1.480,00 Saúde 5.330,00 Transporte 2.900,00 Educação 10.280,00 Lazer 730,00 Outras despesas Impostos 1.080,00 Despesas com acumulação Poupança 5.550,00 Total 55.500,00 Total 55.500,00 Total 55.500,00 Observação Ao analisar a tabela anterior, você consegue visualizar o fluxo circular da renda? A produção está representando as empresas, a renda representa os consumidores e o dispêndio, a renda que retorna às empresas. Além dos conceitos de produto nacional, renda nacional e de dispêndio nacional, devemos proceder ao conhecimento de outros conceitos, que também surgem por meio do fluxo circular da renda. 7.3.2 Valor bruto da produção e valor agregado Vamos supor que essa economia hipotética da qual estamos tratando produza, além de sapatos, maçãs e leite, também pães, já que existem gastos com alimentação, conforme demonstrado pelas categorias de dispêndio. 155 ECONOMIA Sabemos que os pães que nos alimentam quando tomamos nosso café pela manhã não surgem do nada, mas, sim, são produzidos por meio da combinação de fatores de produção. Sabemos ainda que um dos fatores de produção bastante importante à produção de pães é a farinha, que é derivada do trigo. O trigo, por sua vez, é proveniente da atividade agrícola, setor primário da economia, e será transformado em farinha por meio do processo de industrialização, categorizando, então, o setor secundário da economia. Após o trigo ser transformado em farinha, ela será utilizada para, dentre as demais coisas, ser transformada em pão a ser comercializado pelo setor terciário da economia. Vamos admitir que quem transforma o trigo em farinha não produz esse cereal, mas, sim, o adquire, e que o mesmo acontece com o produtor de pães. Ele não produz farinha, mas a compra para utilização. Então, no preço do pão estão inclusos os custos de fabricação; da mesma forma, no preço da venda final da farinha está incluso o gasto com a aquisição de trigo. Vejamos um exemplo que apresenta relações entre diferentes setores de atividade econômica. Os setores de atividade econômica são: • setor primário: atividades de extração, agricultura e pecuária; • setor secundário: atividades da indústria; • setor terciário: atividades do comércio e dos serviços. Vamos então ao exemplo: Tabela 24 – Estágios de produção de pão (em R$) Estágios da produção Vendas do período Custos do período Valor adicionado Trigo 30,00 – 30,00 Farinha 50,00 30,00 20,00 Pão 90,00 50,00 40,00 Total 170,00 80,00 90,00 Do exemplo, temos que o trigo foi vendido ao mercado pelo valor de R$ 30,00. Portanto, quem comprou o trigo teve um dispêndio total de R$ 30,00. Provavelmente, quem o adquiriu é aquela indústria que o transformará em farinha. Após a transformação do trigo, a farinha é vendida ao mercado ao valor de R$ 50,00. Como nesse preço de venda está embutido o custo de produção, ou seja, o custo com a aquisição de fatores de produção, o que o setor secundário agregou ao produto dessa economia foi somente R$ 20,00, ou seja, a diferença entre o preço de venda de sua mercadoria e os valores gastos com bens intermediários. 156 Unidade III Seguindo esse raciocínio, a farinha foi vendida no mercado ao preço de R$ 50,00 e quem a adquiriu incorreu em um dispêndio total de mesmo valor. Porém, quem comprou a farinha vai transformá‑la em pão, que será o produto da venda do setor terciário da economia. O pão, de acordo com o exemplo, será vendido por R$ 90,00, mas, como foram gastos R$ 50,00 em custos de fatores de produção, foram agora agregados ao produto nacional dessa economia somente R$ 40,00. Portanto, chegamos a novos conceitos: valor bruto e valor agregado. Entende‑se por valor bruto da produção o cálculo do que cada ramo de atividade recebeu com as vendas de bens, que no exemplo anterior representaria R$ 170,00. Entende‑se por valor agregado ou valor adicionado o cálculo do que cada ramo de atividade adicionou ao valor do produto final, em cada etapa do processo produtivo, que nesse exemplo é de R$ 90,00. Assim, o valor do produto agregado dessa economia é R$ 90,00, que corresponde à produção do último bem final dessa economia. Esse valor pode também ser encontrado somando‑se o valor adicionado em cada etapa do processo produtivo. Já o valor bruto da produção é a soma do valor de cada um dos bens na economia que, no nosso exemplo, é igual a R$ 170,00. Esse valor apresenta o problema da dupla contagem, já que no valor de cada produto também foram incluídos os valores dos insumos necessários à sua produção, ou seja, o chamado consumo intermediário. Então, VBP – VBI = VA Onde: VA = valor agregado ou valor adicionado. VBP= valor bruto da produção. VBI = valores de bens intermediários. A tabela que segue sumariza os valores encontrados em cada setor de atividade econômica. Tabela 25 – Valor bruto da produção, valor de bens intermediários, valor agregado Setor de atividade econômica Atividade VBP VBI VA Setor primário Trigo (agricultura) 30,00 – 30,00 Setor secundário Farinha (indústria alimentícia) 50,00 30,00 20,00 Setor terciário Pão (comércio) 90,00 50,00 40,00 Total 170,00 80,00 90,00 157 ECONOMIA Saiba mais Convidamos você a visitar a biblioteca virtual e pesquisar em livros de macroeconomia, ou mesmo naqueles que tenham o título de Introdução à Economia, o que vem a ser o problema da dupla contagem e o porquê da maior importância do valor agregado em comparação ao valor bruto da produção. 7.3.3 Demais medidas agregadas A partir da identidade macroeconômica básica em que produto é igual à renda, que é igual ao dispêndio, podemos verificar então como são demonstradas as demais medidas agregativas de um sistema econômico. Iniciaremos pelo produto interno bruto. O produto interno bruto, PIB, refere‑se ao valor agregado de todos os bens e serviços finais produzidos dentro do território econômico do país, independentemente da nacionalidade dos proprietários das unidades produtoras desses bens e serviços,excluindo as transações intermediárias. É obtido por meio da seguinte fórmula: PIB = C + I + G + X + M Onde: PIB = produto interno bruto. C = consumo das famílias. I = investimento das empresas. G = gastos do governo. X = exportações. M = importações. Outra medida agregada é o produto nacional bruto. O PNB é obtido pelo valor de mercado de todos os bens e serviços finais produzidos na economia em um dado período de tempo. Em fórmula: PNB = C + I+ G + (X – M) Onde: 158 Unidade III PIB = produto interno bruto. C = consumo das famílias. I = investimento das empresas. G = gastos do governo. (X – M) = exportações líquidas. Exemplo de aplicaçãoExemplo de aplicação Procure pesquisar nos mais diversos meios de informação por que motivo o Brasil anuncia PIB e os Procure pesquisar nos mais diversos meios de informação por que motivo o Brasil anuncia PIB e os Estados Unidos anunciam PNB. Você verá que há um motivo forte.Estados Unidos anunciam PNB. Você verá que há um motivo forte. Saiba mais Acesse o site do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, www.ibge.gov.br, e veja como esse instituto divulga os dados da produção dos três setores da economia, bem como a estimação do produto interno bruto. Temos certeza de que obterá informações muito interessantes. Tendo sido então o PNB definido como o valor de mercado dos bens e serviços finais produzidos na economia, em um determinado período de tempo, e que, portanto, é avaliado em termos monetários, precisamos observar um aspecto bastante importante. Se, por exemplo, anunciamos que de um ano para outro houve aumento da ordem de 25% no PNB de um país, resta descobrir o que levou a esse aumento: se foram as quantidades de mercadorias que aumentaram ou se foram os preços das mercadorias que sofreram elevação. Para tanto, precisamos diferenciar PNB nominal de PNB real. O PNB nominal mede o valor da produção com relação aos preços prevalecentes no período durante o qual o bem é produzido. Já o PNB real mede o valor da produção em qualquer período com relação aos preços de um ano‑base. Ele nos mostra uma estimativa real ou física na produção entre anos específicos. Outra medida de atividade econômica pode ser verificada por meio do produto nacional líquido. O PNL é o agregado econômico que define o valor dos bens e serviços finais realmente acrescentados à riqueza nacional. Consiste na produção líquida total gerada pela economia de um país no período de um ano. Ele se diferencia do PNB por considerar apenas os investimentos líquidos, ou seja, exclui dos investimentos brutos a depreciação. Desconsidera o desgaste de fatores de produção fixos da economia. 159 ECONOMIA Desta forma, PNL = C + I l + G + (X‑M) Onde: PNL = produto nacional líquido. C = despesas com consumo. I = despesas com investimentos líquidos. G = despesas do governo. (X‑M) = exportações líquidas. Se o assunto aqui foram as medidas de atividade econômica e, como vimos, estas são avaliadas em unidades monetárias, torna‑se interessante considerar questões relacionadas à moeda, outro assunto da Teoria Macroeconômica. 7.4 Considerações acerca da teoria monetária Inicialmente, vamos refletir sobre o que vem a ser moeda. A moeda é um artigo utilizado para efetuar trocas. Dá‑se moeda em troca de algo. Trabalhamos em troca de moeda. O termo moeda designa moedas metálicas e papel moeda, as cédulas que utilizamos. Vamos pensar um pouco. A moeda tem valor? Você, por acaso, já encontrou alguém nas ruas de sua cidade vendendo moedas, vendendo dinheiro? Possivelmente não. Por qual motivo? Antes da resposta, reflita mais um pouco! Qual o valor de uma cédula, nota, de R$ 20,00? Quanto vale uma nota de R$ 100,00? Qual o valor de uma moeda metálica de R$1,00? Parece estranho dizer, mas, nas economias modernas, as notas bem como as moedas não têm qualquer valor. Representam valor! Representar valor significa ter poder aquisitivo. Uma cédula de R$ 50,00 representa um poder de compra de cinquenta unidades monetárias. Uma cédula de R$ 10,00 representa um poder de compra de dez unidades monetárias e assim por diante. Esse deve ser o motivo pelo qual não encontramos pessoas nas ruas vendendo moedas, pois qualquer pessoa não aceitaria vender uma nota de R$ 100,00 por um valor mais baixo do que ela vale e também ninguém aceitaria pagar mais do que esse valor pela nota. 7.4.1 Funções e histórico da moeda Podemos pensar que a moeda é uma mercadoria, mas não qualquer mercadoria. Uma mercadoria específica, que reúne a propriedade de ser trocada por qualquer outra mercadoria. Basta ter em mãos cédulas ou moedas metálicas para poder trocar por qualquer artigo que represente exatamente as unidades monetárias incorporadas na moeda. Se tivermos em mãos R$ 80,00, podemos adquirir qualquer mercadoria que tenha um preço idêntico ou menor do que esse valor e que esteja disponível para venda, obviamente. 160 Unidade III Figura 57 – Moeda A especial característica que a moeda reúne é a de ser aceita em qualquer situação. Veja um exemplo: seria muito difícil, numa economia moderna, adquirir mercadorias pagando, ou trocando, por outras mercadorias como à época do escambo. Caso você queira um sapato novo, você não conseguirá trocar no mercado pelo seu trabalho direto. Haveria a necessidade de dupla coincidência de desejos: o seu desejo em ter os sapatos e o do vendedor em utilizar sua força de trabalho. Agora, de posse da moeda, tudo fica mais fácil. Se o vendedor coloca à venda os sapatos que você deseja, basta que você tenha poder de compra, representado pela moeda, e os compre, pagando em moeda. Pronto. Efetuamos uma troca indireta. Moeda por mercadoria, no caso do comprador, e mercadoria por moeda, no caso do vendedor. Observação Se a moeda, então, pode ser pensada como uma mercadoria, mas uma mercadoria especial, ela deve também desempenhar algumas funções. Devido ao desenvolvimento da divisão do trabalho que especializou pessoas e empresas como produtores de mercadorias, nas economias modernas há um volume absurdamente grande de mercadorias à disposição da sociedade. Ainda mais: com a divisão do trabalho, os agentes econômicos tornaram‑se cada vez mais interdependentes uns dos outros, cada um depende do trabalho do outro ou depende, para seu bem‑estar, da produção do outro (JUDENSNAIDER; MANZALLI, 2011). Dessa forma, um volume grandioso de trocas indiretas é realizado e, nesse aspecto, a moeda desempenha uma de suas principais funções: ser intermediária de trocas (meio de trocas). A função de intermediária de trocas, ou, se preferir, meio de troca, ou ainda, meio de pagamento, permite que mercadorias sejam compradas e vendidas em diferentes períodos de tempo sem depender da coincidência de desejos. Além de servir como intermediário de trocas, a moeda exerce ainda outras duas funções básicas: servir como unidade de conta e também como reserva de valor. 161 ECONOMIA A função unidade de conta da moeda está representada nos diversos contratos existentes na economia. Em um contrato de trabalho, por exemplo, a função unidade de conta aparece no valor do salário ali grafado: x unidades monetárias. Num contrato de prestação de serviços, também desempenha sua função unidade de conta no valor que será pago pelo contratante ao contratado, mediante o serviço prestado. Está ainda representada nos preços dos produtos. Uma camisa, por exemplo, que está à disposição numa vitrine de uma loja qualquer: lá está, possivelmente numa etiqueta, a indicação do valor daquele produto, tantas unidades monetárias. Ali está, portanto, a moeda exercendo sua função de unidade de conta. Outro nome que pode ser atribuído a essa função da moeda é moeda de conta. A moeda de conta, que aparece ou nos contratos ou nos preços dos produtos, determina qual o montante de moeda corrente necessário para aquela troca. Uma última função desempenhada pela moeda é servir de reserva de valor. De posse de unidades monetárias, e dada a existência demercados à vista e a prazo, seu possuidor tem o direito de reservar tal moeda para consumo ou para pagamento futuro. Em economias com estabilidade monetária (sem inflação), a moeda consegue exercer tal função, de poder reservar ou preservar seu valor ao longo do tempo. Em períodos de inflação elevada, a erosão dos ativos monetários será uma consequência. Para que a moeda desempenhe suas funções, algumas características, particulares devem ser reunidas. Dentre as características estão as econômicas, entendidas como custo de estocagem e custo de transação negligenciáveis ou próximos de zero. O que isso significa? Significa que para manter moeda, seu custo é zero e que transportar moeda também tenha um custo zero. As outras características da moeda, as físicas, dizem que a moeda deve ser divisível, durável, que haja dificuldade em falsificação, que exista manuseabilidade e que também seja favorecida sua transportabilidade. Somente reunindo características físicas e econômicas a moeda consegue exercer suas funções de intermediária de trocas, unidade de conta e reserva de valor (JUDENSNAIDER; MANZALLI, 2011). É necessário efetuar um “passeio” pela história e conhecer as diversas formas que a moeda assumiu ao longo dos tempos. Desde a antiguidade, os povos utilizam moeda para efetuar trocas de mercadorias. Inicialmente as trocas eram efetuadas de forma direta, pois o homem vivia em pequenas comunidades, nas mais primitivas culturas, em que a economia funcionava à base de escambo. Esse sistema exigia a coincidência de desejos, pois apenas produtos encontravam‑se disponíveis para trocas. Conforme Passos e Nogami: [...] imaginem um indivíduo que tenha maçãs e queira castanhas. Seria uma coincidência fora do comum encontrar um outro indivíduo que tivesse gostos exatamente opostos, ansioso por vender castanhas e comprar maçãs. Ainda que aconteça o fora do comum, não há garantia de que os desejos das duas partes, no que se refere às quantidades e aos termos de troca exatos, coincidam. Da mesma forma, a menos que um alfaiate faminto encontre um fazendeiro nu que tenha alimentos e o desejo de ter um par de calças, nenhum dos dois pode realizar o negócio (PASSOS; NOGAMI, 2003, p. 446). 162 Unidade III Observação Percebe‑se, então, que com o desenvolvimento da divisão do trabalho e a maior especialização na produção de mercadorias, a prática rudimentar de escambo é dificultada. Nos primórdios, o homem vivia em pequenas comunidades de uma única família, e se utilizava da vegetação e da caça disponíveis na região que habitava. Esses recursos eram os únicos com os quais contava para a sua subsistência. Imagine um agricultor de cenouras, por exemplo. Se ele produz cenouras, o produto de seu trabalho são cenouras. Só que, não só de cenouras vive tal agricultor e sua família, eles dependem da produção alheia para sobreviver. Dependem, portanto, da troca de seu excedente pelo excedente de produção de outra pessoa. Suponha que tal agricultor de cenouras precise adquirir carne para sua alimentação. O que ele tem para trocar são cenouras e precisará encontrar no mercado algum produtor que venda carnes e que deseje cenouras em troca. Fácil, não? Não, não é fácil! E o manuseio? E o transporte? E a durabilidade, características físicas da moeda? E a divisibilidade? Parece realmente não ser fácil. Assim, as sociedades se empenharam para desenvolver um sistema em que um equivalente geral fosse aceito como meio de trocas, iniciando, desse modo, um sistema de trocas indiretas que passa a ser intermediado por algum bem que represente aceitação e curso geral. Estamos tratando da Era Mercadoria‑Moeda ou, simplesmente, moedas‑mercadorias. Foram utilizadas como moedas‑mercadorias o gado, o fumo, o azeite de oliva, os escravos, o sal, dentre outros produtos. Lembrete Para que uma mercadoria possa ser utilizada como moeda, ela deve apresentar as características de durabilidade, divisibilidade, homogeneidade, bem como facilidade no manuseio e transporte, características que não eram reunidas em alguns dos exemplos anteriormente citados, apesar de as moedas‑mercadorias terem facilitado um pouco a vida dos agentes. Outra forma de moeda utilizada pelas sociedades antigas foram as moedas preciosas, representando a Era da Moeda Metálica ou do Metalismo, notadamente pelo uso do ouro e da prata. Também fizeram parte desse período o cobre, o bronze, o ferro. O ouro, em barra, tem um valor incorporado. O mesmo ocorre com as unidades de prata. São mercadorias que, por não apresentarem depreciação, carregam seu valor ao longo dos tempos, permitindo às pessoas guardá‑las para serem utilizadas em trocas de mercadorias no melhor momento. Apesar de mais se assemelharem com as funções e características da moeda, são também mercadorias que, para serem trocadas por outras, dependem da dupla coincidência de desejos. Novamente: e o manuseio? E o transporte? E a durabilidade, características físicas da moeda? E a divisibilidade? Parece que o ouro e a prata também não foram as melhores alternativas para a moeda, daí então que a sociedade caminha para outra forma alternativa: a Era da Moeda‑Papel (JUDENSNAIDER; MANZALLI, 2011). 163 ECONOMIA Conforme Passos e Nogami, [...] a moeda representativa ou moeda‑papel veio eliminar, portanto, as dificuldades que os comerciantes enfrentavam em seus deslocamentos pelas regiões europeias, facilitando a efetivação de suas operações comerciais e de crédito, especialmente entre as cidades italianas e a região de Flandres. A sua origem está na solução encontrada para que os comerciantes pudessem realizar os seus empreendimentos comerciais. Em vez de partirem carregando a moeda metálica, levavam apenas um pedaço de papel denominado certificado de depósito, que era emitido por instituições conhecidas como ‘Casas de Custódia’, e onde os comerciantes depositavam as suas moedas metálicas, ou quaisquer outros valores, sob garantia (PASSOS; NOGAMI, 2003, p. 451). Tal modalidade de moeda, um papel, um certificado de depósito, desempenhava boa função. Tinha nele incorporado um valor representativo, inicialmente com lastro de 100% e garantia de aceitação, vez que representava ali uma determinada quantidade de valor. Dessa modalidade, a sociedade avança para outro tipo de moeda: a moeda fiduciária ou papel‑moeda. Moeda fiduciária, de fidúcia, garantia. Para Lopes e Rossetti, [...] a experiência de custódia e da conversibilidade mostrou que o lastro metálico integral (de 100%) em relação aos certificados em circulação não era necessário para a operacionalização desse novo sistema monetário. Essa constatação decorreu da percepção de que a reconversão da moeda‑papel em metais preciosos não era solicitada por todos os seus detentores ao mesmo tempo. Além disso, enquanto uns solicitavam a reconversão, outros ensejavam novas emissões, levando às casas de custódia novas quantidades de ouro e prata para depósito (LOPES; ROSSETTI, 2005, p. 33). Vamos entender melhor isso. As casas de custódia funcionavam como uma espécie de banco, onde alguns agentes depositavam barras de ouro, bem como suas peças de prata e, em troca, recebiam um papel representando aquele valor. Quilos de ouro x preço do ouro = valor do ouro. Valor do ouro depositado = um papel escrito o quanto vale. De posse de tal documento, papel‑moeda, exerciam suas trocas comerciais. O recebedor de tal documento possuía agora o direito de ir até a casa de custódia e resgatar o valor ali identificado. Tal reconversão nem sempre era necessária de forma que grande quantidade de ouro permanecia depositada em tais casas e os “guardiões dos metais preciosos” podiam começar a emitir papéis não mais lastreados (LOPES; ROSSETTI, 2005, p. 33). Inaugura‑se, então, um período em que a emissão de papel‑moeda será exercida por particulares até que o governo chame para si tal responsabilidade. 164 Unidade III Da modalidade de moeda fiduciária (papel‑moeda) até a modalidade da moeda bancária,manual ou escritural como conhecemos na atualidade, foi questão de tempo. 7.4.2 Da moeda aos meios de pagamento Consideradas todas as formas que a moeda assumiu durante os tempos, podemos verificar as formas que assume numa economia moderna como a de nossos tempos. Assim, podemos dizer que, sobre o montante de moeda que temos à nossa disposição, os meios de pagamento (MP) dividem‑se em papel moeda em poder do público (PMPP) e os depósitos à vista nos bancos comerciais (DVbc). Portanto, MP = PMPP + DVbc Ademais, podemos considerar ser PMPP moeda manual (cédulas e moedas metálicas) e DVbc moeda escritural (depósitos ou representação de saldos positivos e/ou negativos em contas correntes). Para que PMPP seja efetivamente utilizado pela coletividade, o Banco Central, na qualidade de autoridade monetária, precisa emitir moeda, PME, ou seja, papel‑moeda emitido. No entanto, nem todo PME converte‑se em PMPP, pois o próprio Banco Central retém parte desses recursos. Portanto, Papel moeda em circulação = papel moeda emitido – caixa do Banco Central (retenção) Por sua vez, os bancos comerciais também não colocam à disposição da sociedade todo o volume monetário de que o Banco Central injetou. Parte desses recursos, os bancos comerciais retêm em encaixe técnico. Assim, Papel moeda em circulação = papel moeda emitido – caixa do Banco Central – encaixe técnico bancário Vimos que a moeda manual é criada pela autoridade monetária e chega às mãos da coletividade via bancos comerciais. Esses últimos são responsáveis pela expansividade dos meios de pagamento por meio da criação de moeda escritural. A moeda escritural é criada, então, pelos bancos comerciais a partir do recebimento de depósitos à vista. Por meio de uma operação contábil, dá‑se a criação de meios de pagamento, e tal atividade aparece no balancete do banco comercial onde, a título de exemplo, no lado do passivo são registrados valores de depósitos recebidos e no lado do ativo são registrados todos os empréstimos concedidos a partir dos recursos recebidos pelos depósitos à vista. 7.5 O setor público na economia e a política econômica Para que seja possível compreender o papel que o governo desempenha em economias capitalistas, bem como a importância da política econômica, começaremos com as funções do governo e seus objetivos. É consenso entre os autores Nascimento (2014), Giacomoni (2012), Giambiagi e Além (2008), Riani (2012) e Matias‑Pereira (2012) que deve‑se a Richard Musgrave a definição do que são as funções do governo. Segundo Giacomoni (2012, p. 22), 165 ECONOMIA Richard Musgrave propôs uma classificação das funções econômicas do Estado, que se tornaram clássicas no gênero. Denominadas as “funções fiscais”, o autor as considera também como as próprias “funções do orçamento”, principal instrumento de ação estatal na economia. São três as funções: a) promover ajustamentos na alocação de recursos (função alocativa); b) promover ajustamentos na distribuição de renda (função distributiva); e c) manter a estabilidade econômica (função estabilizadora). Vejamos então as três funções básicas conforme identificadas no excerto anterior. Função alocativa Designa a alocação de recursos pela atividade estatal quando não houver eficiência da iniciativa privada ou quando a natureza da prática indicar a necessidade da presença do Estado. A intervenção estatal na alocação de recursos justifica‑se naqueles casos que não são de interesse do setor privado. É o processo pelo qual o governo divide os recursos para utilização no setor público e privado, oferecendo bens públicos, semipúblicos e meritórios, como rodovias, segurança, educação, saúde aos cidadãos. Dessa forma, está associada ao fornecimento de bens e serviços não oferecidos adequadamente pelo sistema de mercado (NASCIMENTO, 2014). Nesse sentido, cabe ao governo decidir pelo tipo e pela quantidade de bens públicos que ofertará, ou seja, a quais tipos de necessidades atenderá. Conforme Riani (2012), para assegurar uma alocação mais eficiente dos recursos, o governo não precisa produzir ou gerar diretamente o bem ou o serviço. Ele poderá fazê‑lo ou induzir a oferta pelo setor privado. Nesse aspecto, existem quatro possibilidades de atuação: • alocação por parte do governo de recursos diretos para a produção e, portanto, a oferta dos bens, de que são exemplos a defesa nacional e seus serviços de segurança pública; • compras governamentais em que o governo adquire a produção efetuada por outras empresas e repassa os bens à sociedade, de que são exemplos medicamentos, merenda escolar ou mesmo campanha de vacinação; • indução do setor privado a aumentar a produção via subsídios ou incentivos fiscais, favorecendo a produção e provocando queda de preços de venda, beneficiando determinada população; • empresas estatais em que o governo chama para ele a responsabilidade da produção de algum bem ou serviço que não seja oferecido pela iniciativa privada. Função distributiva Nem sempre toda a riqueza que é gerada em um país é distribuída de forma igualitária entre seus pertencentes, o que, por vezes, gera a chamada desigualdade social. Nesse sentido, Riani (2012, p. 22) esclarece que: 166 Unidade III fatores tais como oportunidade educacional, mobilidade social, habilidade individual, mercado de trabalho, propriedades dos fatores de produção etc. levam, dentro de uma economia de livre mercado, a desigualdades na apropriação da renda e da riqueza gerada pelo sistema econômico. [...]. O mercado funcionando livremente sem a interferência do governo não se preocupará com a concentração de renda e da riqueza, uma vez que as atividades econômicas alcancem seus objetivos, atingindo frações segmentadas da sociedade detentoras de recursos para suas compras. Assim, a possibilidade espontânea da desconcentração da renda torna‑se ilusória. Diante o exposto, vê‑se que cabe ao Estado promover a melhoria na distribuição da renda por intermédio do gasto público como principal instrumento de política pública. Essa afirmação apoia‑se em Nascimento (2014, p. 80), segundo o qual a “função distributiva refere‑se à distribuição, por parte do governo, de rendas e riquezas”. Por outro lado, Rezende (2012), bem como Giambiagi e Além (2008) destacam que, além dos gastos governamentais a exemplo de transferências, a tributação progressiva aliada aos subsídios auxiliam no processo de distribuição do produto. Enquanto os programas de transferência apresentam‑se de forma direta quanto à redistribuição, a tributação progressiva oferece condições de o governo arrecadar recursos das camadas mais abastadas da sociedade e utilizá‑los como forma de financiamento de programas voltados para a parcela da população de mais baixa renda. Aqui, a forma de redistribuição seria uma melhoria dos atendimentos públicos nos sistemas de saúde ou mesmo nos utilizados para financiamento da construção de moradias populares. Giacomoni (2012, p. 25) complementa que, por mais que as políticas distributivas estejam inseridas no ambiente de correção de falhas de mercado, acabam por vezes sendo encaradas como “problemas de política e de filosofia social” pois cabe à sociedade avaliar o que vem a ser justiça distributiva. Concordando que a distribuição de renda também seja uma questão de orçamento público, são exemplos de política pública com efeito distributivo: educação gratuita, capacitação profissional e programas de desenvolvimento comunitário. Saiba mais Conheça mais sobre os programas de distribuição de renda no Brasil e seus efeitos na economia. Para tanto, convidamos a ler o texto: SOUZA, A. P. Políticas de distribuição de renda no Brasil e o Bolsa‑família: texto para discussão n. 281. C‑Micro Working Paper Series, n. 1, maio de 2011. Disponível em: https://bityli.com/9iRSL. Acesso em: 19 mar. de 2020. 167 ECONOMIA Função estabilizadora A função estabilizadora está estreitamente ligada ao desemprego e à inflação enquanto falhas de mercado pois, de formaabrangente, visa assegurar um desejável nível de emprego e estabilidade nos preços que não são totalmente controlados pelo sistema de livre mercado. Conforme Riani (2012, p. 22), quando o desemprego prevalece, o governo aumenta o nível de demanda no mercado, elevando seus gastos ou diminuindo seus tributos, recolocando a produção no pleno emprego. Por outro lado, se há inflação, o governo pode reduzir a demanda de mercado, ajustando seus gastos e/ou a carga tributária, o que contribui para a diminuição e controle de preços. Do ponto de vista da política fiscal, o governo pode corrigir o desemprego como falha de mercado pela elevação dos gastos públicos, aumentando a quantidade de dinheiro no sistema econômico, o que incentiva a sociedade a elevar o consumo, bem como as empresas a aumentarem seus níveis de produção. Dessa forma, com maior produção, as empresas passam a contratar maior quantidade de pessoas, o que expande a renda. O mesmo efeito será gerado se a opção for pelo uso da diminuição de tributação. Porém, com a expansão da demanda, os preços sobem, o que ocasiona inflação. Assim, paralelamente, o governo pode utilizar demais instrumentos, a exemplo da política monetária, para manter a estabilidade de preços. 7.5.1 Política monetária Agora temos condições de tratar das questões relacionadas à política monetária. Entende‑se por política monetária toda ação tomada pelo Banco Central com relação ao padrão monetário de um país. O Banco Central, considerada autoridade monetária em qualquer país, além de demais atividades, tem a função de preservar o valor da moeda ao longo do tempo. É responsável pelo controle direto da liquidez no sistema econômico de determinado país. Para o Banco Central desempenhar suas funções, ele pode adotar alguns instrumentos de política monetária. São eles: • emissão de moeda; • administração da taxa de juros; • coeficiente de recolhimento compulsório; • operação de redesconto; • operação de open market; • seleção do crédito. 168 Unidade III Observação Entre as principais atribuições de competência do Banco Central do Brasil no sistema monetário e financeiro nacional, podemos destacar: • Fiscalizar as instituições financeiras, aplicando, quando necessário, as penalidades previstas em lei. Essas penalidades podem ir desde uma simples advertência aos administradores até a intervenção para saneamento ou liquidação extrajudicial da instituição. • Conceder autorização às instituições financeiras, no que se refere ao funcionamento, instalação ou transferências de suas sedes, e aos pedidos de fusão e incorporação. • Executar a emissão de moeda e controlar a liquidez do mercado, bem como efetuar as operações de compra e venda de títulos públicos e federais. Vejamos as características de cada um dos instrumentos de política monetária. A emissão monetária é a forma primária de controle monetário por parte do governo, pois expande e contrai o volume de moeda disponível na economia, de acordo com seus objetivos. Com isso, é possível controlar a liquidez da economia e, por consequência, o multiplicador bancário – capacidade dos bancos comerciais expandirem meios de pagamento – também é controlado. Entende‑se por recolhimento compulsório a reserva legal determinada pelo Banco Central. Trata‑se da parcela dos depósitos à vista e a prazo que os bancos devem manter em caixa ou junto ao Banco Central. Para que você entenda melhor: os bancos comerciais são obrigados por lei a repassar ao Banco Central certa quantidade dos depósitos à vista que a coletividade efetua. Assim, o Banco Central regula a liberdade de os bancos comerciais negociarem todo o volume de dinheiro que têm à sua disposição e exercita a sua função de banqueiro dos bancos e salvaguarda os direitos dos correntistas (JUDENSNAIDER; MANZALLI, 2011). Da mesma forma que os bancos comerciais estão obrigados a repassar parte de seus saldos monetários captados por meio dos depósitos à vista, podem, quando necessário e atendendo a certas exigências, solicitar auxílio ao Banco Central. Para tanto, utilizam‑se da operação de redesconto. Com esse instrumento de política monetária, o Banco Central tem o objetivo de auxiliar instituições financeiras em dificuldades monetárias. Tal instrumento é acionado por bancos comerciais que já recorreram ao mercado interbancário na tentativa de cobrir seus saldos deficitários e não obtiveram sucesso por motivo justificado. Portanto, a última opção seria pedir ajuda, ou cobertura monetária, junto ao Banco Central. Nesse aspecto, o Banco Central desempenha outro papel que é o de ser emprestador de última instância. Motivo: quando um banco comercial recorre a ele para cobrir possível déficit de caixa, faz 169 ECONOMIA com que o Banco Central intensifique sua fiscalização naquele banco. O Banco Central emprestará os recursos necessários, mas a taxas de juros punitivas. Outro instrumento de política monetária é a operação de open market, ou, se preferir, operação de mercado aberto. É com esse instrumento que o Banco Central efetua leilões de venda e compra de títulos públicos para arrecadar recursos com a sociedade, para efetuar gastos ou simplesmente diminuir liquidez, ou para recomprar os títulos vendidos anteriormente. Se admitirmos um open market de venda, significa que o Banco Central está vendendo títulos públicos, colocando‑os à disposição para a aplicação por parte da sociedade e, dessa forma, retirando moeda de circulação. Esse é um exemplo de política monetária contracionista. De outra forma, será expansionista quando for utilizado um open market de compra. Assim, o Banco Central devolve os recursos tomados emprestados anteriormente. No Brasil atual, o principal instrumento de política monetária utilizado é a administração da taxa de juros. Podemos entender por juros o custo da moeda, do dinheiro. Agentes superavitários de moeda, que têm poupança ou qualquer outra aplicação financeira, recebem juros por deixar seu dinheiro à disposição para uso de outrem. De forma contrária, agentes deficitários de moeda pagam juros quando necessitam de recursos que são de outra pessoa. O juro é uma variável muito importante na economia e, por essa razão, um dos mais importantes instrumentos de política monetária. São trabalhados como taxa, taxa de juros, e toda vez que essa taxa sobe, investimentos industriais produtivos são freados, desencorajados, pois um empresário que toma junto a um banco certa quantia de dinheiro para investir na produção deve levar em consideração o quanto pagará pela tomada de empréstimo e o quanto receberá de lucros pelo investimento produtivo efetuado. Assim, dada uma taxa de juros mais elevada num tempo qualquer, o custo do dinheiro também fica mais elevado. O mesmo ocorrerá com o custo do crédito. Diante uma taxa de juros mais elevada, o crédito ao consumidor também sobe, pois as sociedades de crédito cobrarão um preço mais elevado pelo montante de dinheiro que emprestarão. Resultado: diminuição dos investimentos na produção, conforme o caso do nosso empresário, e também diminuição do consumo por parte de nosso cidadão tomador de crédito. Quando os empresários não investem na produção e os consumidores não adquirem produtos, temos a queda da produção de mercadorias, do emprego e da geração de renda. A economia entra, então, num processo recessivo, contracionista (JUDENSNAIDER; MANZALLI, 2011). Saiba mais Você pode obter mais informações acerca do uso da política monetária no site do Banco Central do Brasil: www.bcb.gov.br Procure pelas Atas de Reunião do COPOM – Comitê de Política Monetária. Nas Atas, você poderá perceber de que forma a política monetária está sendo conduzida no Brasil. 170 Unidade III 7.5.2 Política fiscal A política fiscal compreende ações do governo relacionadas ao seu orçamento, o Orçamento do Setor Público. Ela definirá o quanto o governo irá arrecadar e o quanto poderá gastar. O Estado adquire receita via impostos, tributos etaxas, pagas pelo contribuinte, no intuito de manter a ordem e os serviços providos pelo governo. A arrecadação governamental, chamada de receita do governo é feita via produção, circulação e consumo de mercadoria, além de movimentações financeiras, renda, entre outros. Para Judensnaider e Manzalli (2011), entre os principais geradores de renda do governo, citamos como exemplo, e de forma genérica: • Receitas provenientes da produção e circulação de mercadorias: — Circulação de mercadorias: ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e serviços). — Produção industrial: IPI (imposto sobre produtos industrializados). • Receitas provenientes da geração e apropriação da renda: — Geração de renda: IR (imposto de renda). • Receitas provenientes da propriedade, da acumulação de capital e das relações internacionais: — Sobre a propriedade: IPTU (imposto predial e territorial urbano). —― Sobre herança: IH (imposto sobre herança). — Sobre operações financeiras: IOF (imposto sobre operações financeiras). — Sobre relações internacionais: II (imposto sobre importações). O governo realiza gastos no intuito de suprir as necessidades da população não preenchidas pela iniciativa privada. Entre esses gastos, estão: • máquina do governo: manutenção dos serviços básicos e administrativos; • investimentos: construção de escolas, hospitais, rodovias, entre outros; • transferência de renda: programas que visam a auxiliar a população de baixa renda. Uma política fiscal será expansionista quando o governo aumenta seus gastos ou mesmo quando diminui a carga tributária sobre a sociedade. Ou seja, quando repassa maior volume de recursos monetários para a sociedade por meio de seus gastos ou quando deixa a sociedade com maior volume de dinheiro, diminuindo sua arrecadação. 171 ECONOMIA Quando o governo adota uma política fiscal expansionista, alguns efeitos na economia são gerados: • descontrole das contas públicas, pois os gastos podem ser, em algum momento, superiores às receitas e, dessa forma, o governo não consegue formar poupança; • aumento da inflação, uma vez que haverá maior volume de dinheiro em circulação, aumentado o consumo e os preços dos produtos; • redução na credibilidade externa devido ao descontrole orçamentário; • redução dos investimentos empresariais, pois o governo assume a liderança de aumentar a demanda agregada via gastos governamentais e produção; • redução do desemprego, por ativar a atividade econômica (JUDENSNAIDER; MANZALLI, 2011). E no caso de uma política fiscal contracionista? As consequências, dentre outras, serão: • equilíbrio nas contas do governo ou o que podemos chamar de superávit orçamentário; • aumento da credibilidade no exterior, devido austeridade; • elevação dos níveis de investimento estrangeiros, pois o país transmite maior segurança administrativa; • diminuição das transferências governamentais com relação à sociedade. O governo necessita da política fiscal para poder prover a sociedade de bens públicos. Os bens públicos são aqueles cujo consumo/uso é indivisível. Em outras palavras, o seu consumo por parte de um indivíduo ou de um grupo social não prejudica o consumo do mesmo bem pelos demais integrantes da sociedade. Ou seja, todos se beneficiam da produção de bens públicos mesmo que, eventualmente, alguns mais do que outros. São exemplos de bens públicos os bens tangíveis, como as ruas ou a iluminação pública, e os bens intangíveis, como a justiça, a segurança pública e a defesa nacional. Ademais, para poder arcar com as funções alocativa, distributiva e estabilizadora, o governo precisa gerar recursos. Como vimos, dentre as diversas fontes de receita, a principal é a arrecadação tributária. A fim de aproximar um sistema tributário do “ideal” é importante que alguns aspectos principais sejam observados. Um dos princípios da tributação, chamado princípio dos benefícios, diz que as pessoas deveriam pagar os impostos com base nos benefícios que recebem dos serviços do governo. Esse princípio tenta tornar os bens públicos semelhantes aos bens privados, para chegar, por aproximação, ao valor dos bens para o agente que o adquire. 172 Unidade III Por sua vez, o princípio da capacidade de pagamento versa que os impostos deveriam ser cobrados de acordo com a possibilidade que o agente tem de suportar o imposto. Tal princípio leva a duas noções de equidade: a equidade horizontal, que diz que contribuintes com capacidades de pagamento similares devem pagar a mesma quantia; e a equidade vertical, que afirma que contribuintes com maior capacidade de pagar impostos devem pagar mais impostos. Certamente, a equidade vertical atenderia ao princípio da progressividade. Outro princípio, o da neutralidade, requer que o sistema tributário não provoque uma distorção da alocação de recursos, e que, dessa forma, não prejudique a eficiência do sistema. O sistema tributário brasileiro está longe de representar um ótimo de Pareto, ou seja, está longe da eficiência administrativa e da justiça social. Devido à multiplicidade de impostos e alíquotas e à incidência sobre insumos, o efeito final do sistema brasileiro de impostos indiretos sobre os preços também não é muito transparente. Com relação à tributação direta e indireta, algumas considerações devem ser feitas: • Impostos indiretos são aqueles cobrados de produtores com relação à produção, venda, compra ou uso de bens e serviços. Frequentemente, impostos indiretos são arrecadados em vários estágios do processo de produção e venda, de forma que seus efeitos sobre os preços pagos pelo consumidor final na cadeia de transações não são claros. O efeito final sobre os preços, diante da tributação indireta, depende não apenas da medida em que os impostos são transferidos para a frente em cada estágio de produção, mas também da estrutura precisa das transações interindustriais. • Impostos diretos, a exemplo do imposto sobre o patrimônio, podem ser cobrados regularmente em função do simples ato de posse dos ativos durante um determinado período. É o caso do IPTU (imposto predial territorial urbano) e do IPVA (imposto sobre propriedade de veículos automotores) e atendem ao princípio da equidade e da progressividade. Os impostos diretos incidem sobre o indivíduo, mas nem sempre estão associados à capacidade de pagamento de cada contribuinte. O imposto de renda pessoa física é o imposto pessoal por excelência e, sendo assim, é aquele que se adapta aos princípios da equidade e progressividade, à medida que permite, de fato, uma discriminação entre os contribuintes no que diz respeito à sua capacidade de pagamento (JUDENSNAIDER; MANZALLI, 2011). Do lado das empresas, o imposto de renda pessoa jurídica incide sobre o lucro e apresenta um problema: ele pode contrariar os princípios da equidade e da progressividade, tendo em vista que não se pode ter certeza de que o ônus do imposto sobre o lucro recaia integralmente sobre o produtor. Em outras palavras, a empresa pode reagir à cobrança do imposto sobre os lucros repassando‑o, pelo menos em parte, para os preços finais de seus produtos, onerando, assim, os consumidores. 173 ECONOMIA 7.5.3 Política cambial É a política responsável pelo fluxo de moeda internacional no país. O controle da quantidade de moeda estrangeira é feito pela taxa de câmbio. A taxa de câmbio é a relação existente entre duas moedas de diferentes países e ela pode ser valorizada ou desvalorizada. Quando a moeda nacional está mais cara que a moeda estrangeira, dizemos que a taxa de câmbio está valorizada. Por exemplo, com R$1,00 se adquire US$ 1,20. Veja: com uma unidade da moeda nacional é possível adquirir mais que uma unidade da moeda estrangeira. Já no momento em que a moeda nacional é mais barata que a moeda estrangeira, percebe‑se um câmbio desvalorizado. Assim, para adquirir US$ 1,00, é necessária uma quantidade maior de reais; no caso, R$ 1,20. A política cambial tem sido de suma importância para a manutenção donível de emprego no país, principalmente para os setores exportadores, que, com uma taxa de câmbio desvalorizada, têm maior incentivo para vender produtos ao exterior. Figura 58 – Dólar como moeda estrangeira e divisa internacional Portanto, a taxa de câmbio reflete as necessidades de unidades monetárias nacionais para adquirir uma unidade monetária de uma moeda estrangeira. É no mercado cambial que são determinadas as taxas de câmbio, variável nominal, sob diferentes regimes cambiais: câmbio fixo, câmbio flutuante, dirty floating ou ainda o currency board. Num regime cambial fixo, a taxa de câmbio é administrada pelo Banco Central, que determina o valor do câmbio para um período específico. Já no câmbio flutuante, ou flexível, a taxa de câmbio é determinada pelo mercado, ou seja, pelas interações entre demanda e oferta de divisas internacionais (JUDENSNAIDER; MANZALLI, 2011). Admite‑se por dirty floating câmbio com flutuação suja. O que isso significa? Significa que o Banco Central de um país pode, mesmo num câmbio flutuante, exercer pressão sobre a taxa de câmbio, ou seja, pode fazê‑la flutuar até seja fixada numa meta estabelecida. Exemplo: suponha um país em que o regime cambial seja flutuante, e que as interações entre demandantes e ofertantes de divisas internacionais tenha conduzido a taxa de câmbio para um nível que somente favorece o importador de mercadorias. Assim, se se aumenta o volume de importações de mercadorias de um país, menor será a produção interna dele e, portanto, pode ter elevada sua taxa de desemprego. Diante tal preocupação, o Banco Central pode interferir no mercado cambial e, por meio de compra e/ou venda de divisas internacionais, faz flutuar a taxa de câmbio até um ponto em que sejam favorecidas as exportações. 174 Unidade III Por sua vez, o currency board é um regime cambial em que um país adota como moeda corrente a moeda estrangeira, na qual está ancorada, quando atravessa ou adota políticas de estabilização monetária, na tentativa de controlar a inflação. Há ainda que acrescentar outra diferença: a diferença entre a taxa de câmbio real e a taxa de câmbio nominal, que reside na diferença de inflação entre os países e entre uma e outra. 7.5.4 Política de rendas A política de rendas é um tipo de política utilizada pelo governo que procura melhorar a distribuição da renda e a justiça social. Ela atua diretamente sobre os fatores de produção e tenta reduzir os conflitos entre o capital e o trabalho. Melhorias nas condições de salários e trabalho, encargos trabalhistas mais justos, distribuição de resultados por parte das empresas aos seus funcionários são alguns de seus objetivos, assim como a proposta de um sistema de preços mínimos garantidores de consumo para população de baixa renda. No caso da economia brasileira, podemos utilizar como exemplo de política de rendas os seguintes programas: • política de preços mínimos; • política salarial; • programas de renda mínima; • Bolsa Família. Saiba mais Saiba mais sobre o programa Bolsa Família acessando o link a seguir: https://www.caixa.gov.br/programas‑sociais/bolsa‑familia/Paginas/ default.aspx 7.6 Inflação Mas, o que vem a ser inflação? Caracteriza‑se pelo generalizado e persistente crescimento nos níveis de preços, ou seja, ocorre inflação num período em que um elevado volume de mercadorias tem seus preços majorados e sequencialmente, de forma que, dia a dia, mês a mês, os preços sobem sem que, necessariamente, seus custos de produção tenham apresentado também elevação. Assim, quando há inflação, torna‑se necessária maior quantidade de moeda para adquirir as mesmas mercadorias. Resultado: perda do poder aquisitivo da moeda, que pode, com isso, causar sérios distúrbios à economia e à sociedade de forma geral (SILVA; LUIZ, 2010). 175 ECONOMIA Em períodos de inflação elevada, a moeda deixa de desempenhar uma de suas principais funções, que é a de preservar valor ao longo do tempo. Em período de inflação elevada, como viveu a sociedade brasileira boa parte dos anos 1970 e dos oitenta, a moeda perde seu valor na medida em que é recebida! Suponha uma pessoa que receba hoje seu salário, digamos de R$ 1.500,00, e que o índice de inflação no mês corrente, medido pelos mais diversos índices disponíveis, esteja em torno de 40% ao mês. Se tal pessoa deixar guardado, digamos num bolso de algum paletó no armário, e for usar tal recurso daqui a trinta dias, os R$ 1.500,00 representarão poder de compra de exatamente R$ 900,00. Mas, como assim? É que receber um valor hoje dentro de um período inflacionário e não utilizar esse recurso o mais rápido possível faz com que haja a perda de seu valor. Em nosso exemplo hipotético, perda de R$ 600,00. Significa que os preços das mercadorias ficaram 40% mais elevados e a quantidade de moeda disponível não mais será capaz de adquirir a mesma quantidade de mercadoria que era adquirida anteriormente. Quem sofre? Na maior parte das vezes, e como salienta Mankiw (2008), a população de baixa renda. Precisamos, então, entender como é produzida a inflação, ou seja, por que existe e quais suas causas. Basicamente, são três os tipos de inflação, sendo um deles o de demanda. Vejamos o que diz Mankiw: Vamos supor que observamos, ao longo de um determinado período de tempo, o preço de um sorvete de casquinha aumentar de 5 cents para um dólar. Que conclusão poderíamos tirar do fato de que as pessoas estão dispostas a dar muito mais dinheiro em troca de um sorvete? É possível que as pessoas estejam gostando mais de sorvete (talvez porque algum químico tenha desenvolvido um novo e maravilhoso sabor). Mas, provavelmente, não é esse o caso. O mais provável é que as pessoas continuem apreciando o sorvete da mesma forma e que, com o passar do tempo, a moeda usada para comprá‑lo tenha se tornado menos valiosa. De fato, o primeiro entendimento sobre a inflação é de que ela tem mais a ver com o valor da moeda do que com o valor dos bens (MANKIW, 2010, p. 636). Portanto, o que determina o valor da moeda é a relação entre sua demanda e sua oferta, assim como é determinado o preço do tomate nos mais variados mercados. Se há mais tomate sendo ofertado, o preço do tomate será relativamente baixo e caso exista pequena quantidade de tomate sendo ofertado, ou seja, disponível à sociedade, seu preço tende a ser relativamente mais elevado. Voltando à inflação, conforme Samuelson (1979), a inflação de demanda, ou de consumo, é causada pelo crescimento do volume de moeda disponível ao público, não necessariamente acompanhado pelo crescimento da produção. Como para a demanda poder concretizar‑se é necessária a existência de moeda, a inflação de demanda pode ser entendida como excesso de moeda em circulação, ou seja, quando há expansão de liquidez. Nesse caso, os preços tendem a aumentar devido à grande quantidade de dinheiro em circulação influenciando consumo por parte da população. Por seu turno, os empresários, diante elevado consumo e percebendo que há grande quantidade de moeda em poder do público, elevam preços no afã de que a venda será certa. Ribeiro (1990) explica que uma das características da inflação de demanda é que ela ocorre em períodos de expansão da economia a exemplo do experimentado pelo milagre econômico 176 Unidade III brasileiro, no qual o governo investiu fortemente na industrialização do país, elevando os níveis de produção e superando períodos anteriores. Tais medidas diminuíram o desemprego, expandindo renda e consumo. Outro tipo de inflação é o de oferta, ou seja, explicado ou pelas condições de oferta de produtos ou pelo comportamento de seus custos de produção, ou mesmo pela disponibilidade de fatores de produção que são utilizados como bens intermediários. A inflação de oferta ocorre quando os custos de produção aumentam, ou seja, quando se paga mais para produzir determinados bens ou ofertar determinados serviços. Assim, pode ocorrer inflação de oferta diante de: • diminuição da ofertade um fator de produção; • elevação nos preços dos fatores de produção; • elevação nos custos da produção derivado de elevação de tributação; • elevação nos salários pagos pelas empresas, caso sejam reajustados acima da correção monetária do período ou por convenção coletiva e sindical; • monopolização de determinado setor, diminuindo as possibilidades de concorrência; • demais ocorrências que representem estreita relação entre custos de produção de um bem e seu preço. Resumindo, para Silva e Luiz, [...] a inflação de custos tem origem na oferta de bens e serviços. É causada pela elevação dos custos de produção, repassados para o consumidor pelo aumento do preço do produto. Um fator agravante é o controle do mercado (monopólio ou oligopólio), que permite aos empresários obterem lucros extraordinários pelo aumento dos preços dos seus produtos, pois não há perigo de concorrência (SILVA; LUIZ, 2010, p. 116). O outro tipo de inflação, a inercial, difere das outras, pois nesta há tendência à perpetuidade. Significa que a inflação de um período é automaticamente repassada para o período que se segue. De que forma? Pela indexação, que consiste em reajustar pagamentos ou valores futuros, pela inflação do presente. Observe o exemplo muito bem desenvolvido por Silva e Luiz: Imaginemos que o Sr. Alberto tome emprestado R$ 100.000,00 de seu amigo, Sr. Carlos, e prometa pagar‑lhe em dois meses. Nesse período, supondo uma economia inflacionária com taxas mensais de 10%, teremos uma inflação acumulada de 21% nos dois meses que correspondem ao prazo do empréstimo. Pontualmente, no final do período, o Sr. Alberto entrega ao amigo os R$ 100.000,00 que havia tomado emprestado. Resultado, o Sr. Carlos foi prejudicado, pois os R$ 100.000,00 que recebeu do amigo valem 177 ECONOMIA menos do que os R$ 100.000,00 que ele havia emprestado dois meses antes. Por sua vez, o Sr. Alberto saiu ganhando, pois pagou apenas R$ 100.000,00, quando deveria ter pago, pelo menos R$ 121.000,00. [...]. Se o Sr. Alberto e o Sr. Carlos tivessem combinado, na ocasião do empréstimo, que o montante emprestado seria corrigido pela inflação, o Sr. Carlos receberia R$ 121.000,00 e não se sentiria lesado pelo favor que prestou ao amigo (SILVA; LUIZ, 2010, p. 116‑117). Em função disso, ou seja, para não haver distorções entre ganhadores e perdedores, contratos de trabalho, contratos de aluguel, preços de mercadorias e valores de outras transações são protegidas, pelo uso da indexação, de correção monetária. Uma observação a ser feita acerca da inflação inercial é que ela tende a se manter em determinado patamar por um determinado período, depois volta a crescer e, finalmente, estabiliza‑se em um novo patamar por algum tempo. Esse processo ocorre porque as correções dos preços satisfazem os agentes por um determinado tempo, ou seja, essas correções elevam a participação dos agentes na renda. Saiba mais Para que você possa compreender melhor o processo inflacionário no Brasil, sugerimos a leitura de alguns textos complementares. Sobre o Plano Cruzado, leia: BRESSER‑PEREIRA, L. C. Inflação inercial e plano cruzado. Revista de Economia e Política, São Paulo, v. 6, n. 3, jul./set. 1986. Disponível em: http://www.rep.org.br/pdf/23‑2.pdf. Acesso em: 23 mar. 2011. Sobre o Plano Collor, leia: BRESSER‑PEREIRA, L. C.; NAKANO, Y. Hiperinflação e estabilização no Brasil: o primeiro Plano Collor. Revista de Economia e Política, São Paulo, v. 11, n. 4 (44), out./dez. 1991. Disponível em: http://www.rep.org.br/pdf/44‑6. pdf. Acesso em: 23 mar. 2011. Sobre o Plano Real, sugerimos a leitura de: BRESSER‑PEREIRA, L. C. A economia e a política do Plano Real. Revista de Economia e Política, São Paulo, v. 14, n. 4 (56), out./dez. 1994. Disponível em: http://www.rep.org.br/pdf/56‑10.pdf. Acesso em: 23 mar. 2011. 178 Unidade III 8 O DESENVOLVIMENTO E O CRESCIMENTO ECONÔMICO É com os cálculos agregativos que podemos ter noção da forma como uma economia gera sua renda e como é distribuída entre os agentes econômicos. Portanto, com as medidas agregativas, notadamente o PIB (que é uma medida meramente quantitativa), é que podemos medir o crescimento de uma economia. Outra de igual importância é o desenvolvimento, uma medida qualitativa. Nesse aspecto, expressões como desenvolvimento, desenvolvimentismo, subdesenvolvimentismo e economias em desenvolvimento devem ser consideradas. 8.1 Características de uma economia subdesenvolvida Dois olhares podem ser empregados para falar do assunto subdesenvolvimento. Um deles trata a questão de maneira ideológica, como uma mera classificação no tempo das condições sociais e econômicas de um país comparado a outros, mesmo que de estruturas diferentes. Por esse olhar, a caracterização se daria por análises conjunturais, sem que uma raiz econômica fosse, de fato, concreta. O outro olhar reside na escolha de fatos mais concretos ligados à estrutura econômica e social de uma nação e que permitam sua classificação como subdesenvolvida. Aos fatos concretos são atribuídos fatores históricos, territoriais e regionalização, acesso aos meios de produção e geração de renda, para citar apenas alguns. Conforme destaca Souza (2009), a definição de subdesenvolvimento passa pela noção de que o crescimento demográfico ocorre de forma mais rápida do que o crescimento econômico e, diante de tal irregularidade, não tarda para que a renda e a riqueza se concentrem nas mãos de poucos, o que gera, por consequência, pobreza e miséria para as classes menos favorecidas. Ainda como decorrência disso, indicadores sociais e ambientais apresentam menor qualidade em relação aos de países considerados desenvolvidos e as estruturas econômicas, no que diz respeito à inovação tecnológica, não se apresentam totalmente adequadas para que sejam superados os entraves colocados aos países nessa situação. Para Sandroni (1996, p. 580), subdesenvolvimento é uma [...] situação inferior do sistema econômico‑social de um país em relação aos padrões econômicos das nações industrializadas. Evidencia‑se por indicadores como exportação baseada em produtos primários, forte participação de produtos industrializados na pauta de importação, importação acentuada de tecnologia e capitais estrangeiros, persistência de elevadas taxas de desemprego, baixa produtividade, baixa renda per capita, mercado interno bastante limitado, baixo nível de poupança e subconsumo acentuado. [...] O subdesenvolvimento está ligado ao problema da dependência, que atinge desde países extremamente pobres, como Bangladesh, até países de considerável nível de industrialização e diversificação do aparelho produtivo, como Brasil, México e mesmo os ricos Estados árabes produtores de petróleo. 179 ECONOMIA Outra característica marcante do subdesenvolvimento é que os países classificados dessa forma apresentam instabilidade política e econômica, além de serem altamente dependentes de acesso à tecnologia e capitais de países ditos “desenvolvidos”. Mesmo que exista produção industrial, a maior parte do que é produzido tem como destino o consumo interno, a base exportadora trabalha principalmente com produtos de baixo valor agregado, notadamente aqueles provenientes do setor primário. Na medida em que uma maior quantidade de países entra no comércio internacional, a questão da produtividade e da competitividade impera, desfavorecendo aqueles cuja pauta exportadora não é diversificada ou tão competitiva com relação aos demais. Nesse aspecto, o que dita a regra da competitividade são custos de produção, preços internos e para exportação, bem como custos logísticos, determinados pela questão territorial. Junto com as questões de produtividade e competitividade, elevadas taxas de inflação e as dificuldades orçamentárias de governos de países subdesenvolvidos colocam‑se como entraves à capacidade do setor público para financiar projetos em áreas chamadas estratégicas – ou infraestruturais – a exemplo de transportes,educação, saúde, comunicações e área social na tentativa de diminuir suas desigualdades. No mundo contemporâneo, uma questão que gera controversa quanto à classificação de países como subdesenvolvidos e desenvolvidos é que, uma vez classificados como tal, o seriam para todo o sempre. Assim, uma vez que um país seja caracterizado como subdesenvolvido, isso lhe dá uma marca, independentemente se por determinação ideológica ou por condições reais de classificação. Da mesma forma como em alguns períodos a classificação dos países atendia à denominação de centro‑periferia, a literatura econômica passou a adotar uma nova denominação: desenvolvidos e emergentes, em que aos primeiros dá‑se uma conotação permanente e, aos segundos, uma condição não permanente, mas de possibilidades de conquista ao desenvolvimento. Observação Muitas vezes faz‑se referência a um país como emergente com o emprego do termo big emerging markets (BEM). A denominação centro‑periferia é um conceito cunhado pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e empregado para descrever um processo de multiplicação do avanço tecnológico na economia mundial que seja passível de explicar a distribuição de seus ganhos entre os participantes. Ocorre que, com o avanço do capitalismo industrial e a chamada nova divisão internacional do trabalho, os ganhos derivados das relações entre diferentes regiões não foram distribuídos uniformemente. Para Bielschowsky (2000, p. 16), [...] a tese parte da ideia de que o progresso técnico se desenvolveu de forma desigual nos dois polos. Foi mais rápido no centro, em seus setores industriais, e, ainda mais importante, elevou simultaneamente a produtividade de todos os setores das economias centrais, provendo um nível técnico mais 180 Unidade III ou menos homogêneo em toda a extensão dos seus sistemas produtivos. Na periferia, que teve a função de suprir o centro com alimentos e matérias‑primas a baixo preço, o progresso técnico só foi introduzido nos setores de exportação, que eram verdadeiras ilhas de alta produtividade, em forte contraste com o atraso do restante do sistema produtivo. É, portanto, com base em tal ideia que reside a tese, também desenvolvida pela Cepal, da deterioração dos termos de troca, pois, enquanto o progresso técnico ocorre nos países ditos já industrializados, as economias em processo de industrialização estão produzindo bens primários e seus preços relativos de troca são bastante díspares: a economia da periferia exporta bens de baixo valor agregado para importar bens de elevado valor agregado, fazendo com que ocorra transferência de excedente e de ganhos de produtividade para o centro. Assim, a divisão internacional do trabalho somente acirraria a disparidade entre os polos, visto que o centro apresenta tendência a reduzir sua taxa de expansão das importações de bens primários conforme seu progresso técnico avança para a forma poupadora de bens primários. 8.1.1 Fundamentos teóricos da economia subdesenvolvida Conforme destaca Souza (2009), na economia subdesenvolvida, considerada em sua forma mais simples, na assim chamada forma primitiva, estão alguns setores entendidos como os de subsistência, de mercado interno e de mercado externo, e há relações entre eles. O setor de subsistência é composto de pequenos latifúndios de baixa produtividade e dedicados à produção agrícola. Nele está concentrada a produção das atividades relacionadas à agricultura de subsistência, pois a monetização é quase inexistente. O consumo exercido pelo setor é de sua própria produção, restando apenas uma pequena parte do que foi produzido para abastecimento do mercado de setor externo que, de acordo com seu desempenho, pode beneficiar ou prejudicar o dinamismo do mercado rural, assim como o urbano e industrial. Observação É recorrente, quanto às características indicadas do setor de subsistência, encontrar alusão ao setor terciário da economia, composto de desempregados das áreas rurais ou mesmo aqueles que exercem trabalho ocasional. Quanto ao setor de mercado interno, Souza (2009, p. 18‑19) diz que, [...] em seu estágio inicial de desenvolvimento, é formado por atividades ligadas ao atendimento da população residente e ao fornecimento de insumos e serviços às empresas e pessoas vinculadas ao comércio externo, como alimentos, matérias‑primas beneficiadas, embalagens, transportes. No processo de desenvolvimento, o setor industrial urbano leva vantagens em seu relacionamento com o setor agrícola, através da extração do excedente 181 ECONOMIA gerado neste último setor. O setor agrícola apresenta superávits em balança comercial, porque suas exportações excedem o volume de importações, uma vez que suas necessidades de consumo são supridas pelo setor de mercado interno. Esse superávit em moeda estrangeira é utilizado no financiamento de importações e máquinas, equipamentos e insumos industriais utilizados no setor industrial urbano. Figura 59 – Colheita de café no estado de São Paulo em 1902, caracterizando a economia agroexportadora A figura a seguir mostra a estrutura de uma economia subdesenvolvida. Porém, para que se possa compreendê‑la, Souza (2009, p. 19) adverte que algumas considerações devem ser efetuadas: (a) A balança comercial da economia nacional mantém‑se equilibrada; (b) o valor das exportações do meio rural (XR) apresenta‑se significativamente superior ao valor das exportações do meio urbano industrial (XU), pelo menos nas fases iniciais do processo de desenvolvimento; (c) o meio rural mantém superávit na balança comercial (XR > MR); (d) o meio urbano e industrial apresenta déficit em sua balança comercial com o exterior (XU < MU), pela necessidade de importar bens de capital e insumos industriais; e (e) o meio urbano e industrial possui um superávit com o meio rural, ou seja, o valor da produção do meio urbano e industrial destinado ao meio rural (YUR) supera o valor da parcela da produção do meio rural endereçada ao meio urbano e industrial (YRU). 182 Unidade III Meio rural Setor externo Meio urbano e industrial YRU YRR YUR XU MU YUU XR MR Figura 60 – Estrutura de uma economia subdesenvolvida O que é possível depreender da análise da estrutura anteriormente apresentada? Podemos notar que a produção exercida pelo setor denominado de meio rural (YR) tem três vias de destino: a primeira é seu próprio consumo, aquele considerado de subsistência devido a atividades pouco monetizadas (YRR); a segunda é a exportação (XR); a terceira é o consumo no meio urbano e industrial (YRU), sendo que a produção destinada a esses mercados (YRU + XR) é majoritariamente composta de alimentos e matérias‑primas com baixo valor agregado. O equilíbrio do meio rural será conquistado quando as exportações do setor rural forem maiores do que suas importações e a renda do setor urbano for maior do que a renda do setor rural. A identidade a seguir ilustra o que acabamos de afirmar: (XR > MR) = (YUR > YRU) Para Souza (2009, p. 20), a equação [...] diz que, no equilíbrio, o déficit do meio rural com o meio urbano e industrial (YUR > YRU) fica financiado por seu superávit com o exterior (XR > MR). Por seu turno, a produção do meio urbano e industrial (YU) destina‑se ao próprio meio urbano (YUU), à exportação (XU) e ao meio rural (YUR). A produção destinada ao mercado externo e ao meio urbano e industrial (XU + YUR) compõe‑se de produtos industrializados e serviços. O equilíbrio do meio urbano industrial é dado por (XU < MU) = (YUR > YRU), ou seja, o déficit do meio urbano e industrial com o exterior (XU < MU), no equilíbrio, fica integralmente financiado por seu superávit com o meio rural (YUR > YRU). Como o segundo membro das duas equações anteriores é o mesmo, temos que (XR > MR) = (XU < MU). Da tautologia (XR > MR) = (XU < MU) pode‑se concluir que, em condição de equilíbrio, em termos de balança comercial, sendo X = M, um superávit produzido pelo meio rural com relação ao exteriorserá 183 ECONOMIA igualado ao déficit externo provocado pelas importações do meio urbano e industrial. Considerando uma economia em que impere o modelo de substituição de importações, vê‑se que a produção e a exportação daquilo que é exercido pelo meio rural deve financiar as importações exercidas tanto pelos meios urbanos quanto pelos industriais. Mais: deve, ainda, financiar o desenvolvimento desses meios. Observação Perceba que estamos tratando da extração de excedente por um setor do que foi produzido por outro: no caso, o excedente é extraído do setor rural em favorecimento do desenvolvimento daqueles ditos mais avançados. Várias são as formas de extração do excedente produzido pelo setor rural em favorecimento dos setores urbano e industrial. Dentre elas estão: • Elevação da tributação sobre produtos que devem ser importados pelo setor rural e que tenham como origem de produção os setores urbanos e industriais, ou mesmo produtos oriundos do setor exportador, para o caso de importação pelo setor urbano. • Confisco cambial representado pela quantidade de dólares que é apropriada pelo governo diante daqueles obtidos pelos exportadores de produtos específicos, a exemplo do que fez o Brasil em 1953 com as exportações de café (SANDRONI, 1999). • Deterioração dos termos de troca entre setor urbano e industrial em que o volume de dólares necessários para importação de bens pelo setor rural é maior do que o necessário para que o setor urbano importe os bens produzidos por aquele setor. Saiba mais Entenda mais sobre a deterioração dos termos de troca lendo a definição que Paulo Sandroni oferece à expressão “relações de troca” em sua obra: SANDRONI, P. Novíssimo dicionário de economia. São Paulo: Best Seller, 1999. Considerando então que a economia consiga se industrializar via modelo de substituição de importações, as importações do setor urbano (MU) tendem a apresentar elevação devido a esse tipo de indústria ser dependente de alguns meios de produção manufaturados, bem como bens de capital que lhe oferecerão condições de produzir bens de consumo na economia doméstica interna. Para o caso de as exportações exercidas pelo meio rural (XR) não apresentarem crescimento ao mesmo tempo em que cresce o potencial importador do setor urbano e industrial, o que se verificará na economia serão déficits comerciais (X < M) que serão considerados entraves ao processo de crescimento econômico. 184 Unidade III Desse modo, a expansão das exportações agrícolas e mesmo de produtos manufaturados, desde as fases iniciais da industrialização, torna‑se indispensável para evitar estrangulamentos no processo de desenvolvimento (SOUZA, 2009, p. 21). Para o mesmo autor: Com a expansão da economia de mercado, cai a participação da produção destinada à subsistência na produção rural (YRR/Y). Em muitas regiões subdesenvolvidas, isso ocorre principalmente em função da elevação dos preços de exportações. Tal participação aumenta no caso de reduções dos preços dos bens agrícolas exportados, quando cresce YRR e diminui XR. Nas crises do setor de mercado externo no Brasil, no passado, as populações voltavam às atividades de subsistência e esse setor expandia‑se. Ele funciona como elemento de estabilidade da economia, amortecendo as crises do setor de mercado externo e mantendo o nível de emprego do meio rural, embora com baixa produtividade. [...] A economia estaciona nas crises e evolui nos surtos exportadores, pelos encadeamentos das exportações sobre as atividades urbanas e os investimentos que afetam o nível da produção do setor de mercado interno. A produção destinada ao consumo próprio do meio rural se reduz, enquanto aumenta a demanda urbana por produtos agropecuários. O desenvolvimento econômico tende ao setor de mercado interno e às exportações. Entretanto, essa transformação de estrutura depende do dinamismo das exportações e de suas ligações com o setor de mercado interno. Assim, torna‑se importante aumentar sua competitividade pela redução de custos e melhoria da qualidade dos produtos exportados (SOUZA, 2009, p. 21). O que se faz necessário entender é que o setor externo representa a agricultura comercial voltada para a exportação, bem como para as atividades comerciais ligadas ao comércio de importação e de exportação da economia urbana. Observação Pode‑se entender o setor externo como aquele caracterizado por atividades atravessadoras, de prestação de serviços de importação e de exportação a outros setores, sem que dele provenha produção física. Trata‑se, assim, somente de um sistema que facilita o escoamento da produção e o aprovisionamento de bens que as economias não produzem, mas necessitam importar. 185 ECONOMIA Por sua vez, como o setor externo não é produtor, seu dinamismo está completamente dependente da demanda do mercado internacional no que diz respeito à necessidade de bens primários, de que é majoritariamente exportador. Como o bom desempenho do setor externo depende dos “bons ventos” da economia internacional, os preços de exportação são influenciados por dois fatores: • demanda externa que impulsiona para cima em época de aquecimento e para baixo em período de recessão; • potencial produtivo quanto à oferta de bens pelos setores de subsistência nos países subdesenvolvidos (excesso de oferta influencia os preços negativamente enquanto os eleva em períodos de escassez). Para países cuja pauta de exportações é bastante restrita, ou seja, concentrada em poucos produtos, há baixa oportunidade de manipulação dos preços internacionais, o que dificulta o desenvolvimento do setor de mercado interno. Porém, se a economia diversifica sua pauta de exportações, a situação pode vir a ser diferente. 8.2 Características do desenvolvimento O que irá, de certa forma, diferenciar um do outro – subdesenvolvimento do desenvolvimento – é o grau de industrialização, que necessita de elevados níveis de investimento e, portanto, de capital, muitas vezes é produzido no âmbito das exportações de bens primários. Nesse aspecto, conforme ressalta Souza (2009), como os investimentos são constituídos, em grande parte, por bens de capital importados, são as exportações que representam a contrapartida da poupança para seu financiamento. Assim, [...] há uma mudança no caráter da base exportadora, e foi isso que ocorreu no Brasil após 1950: as exportações, de fator determinante do nível de renda, passaram a ser o elemento estratégico no processo de formação de capital (SOUZA, 2009, p. 23). Para a economia que já se encontra industrializada, a importância do que se chama de base exportadora tem efeitos sobre o multiplicador do setor de mercado interno, bem como sobre a necessidade de financiamento de importação de bens de capital, se assim necessário. O que é importante perceber é que somente haverá exportação de bens em duas condições: a primeira é a demanda externa, e a segunda, a produção interna com excedente. O aumento das exportações de bens produzidos internamente injeta recursos na economia doméstica, os quais tanto podem ser utilizados para ampliar o consumo interno por bens internos como para ampliar as condições de aquisição de bens de capital que são importados. Dessa forma, saldos comerciais positivos impulsionam o acesso à tecnologia, gerando economias de escala e elevação da produtividade da economia doméstica. 186 Unidade III Para Souza (2009, p. 23), [...] a base exportadora aparece como a causa do crescimento econômico das regiões subdesenvolvidas, principalmente nos seus primeiros estágios, e como elemento dinâmico de aumento de eficiência e competitividade em economias industrializadas. A industrialização surge em uma etapa posterior e como consequência do desenvolvimento inicial da base exportadora. Em outras palavras, uma agricultura em expansão e uma base econômica diversificada representam maiores níveis de renda, que se traduzem em maior grau de consumo, de poupança e de investimento.Até que não sejam superados os entraves do subdesenvolvimentismo, a base exportadora estará restrita a poucos bens agrícolas e, por consequência, seus efeitos multiplicadores serão instáveis. Assim, a decolagem da economia em desenvolvimento estará na dependência: • do crescimento de suas exportações, o que é determinado pelo nível de produtividade e competitividade da economia doméstica; • do grau de integração das cadeias produtivas internas; • da estrutura interna de distribuição de renda; • da eliminação dos estrangulamentos do desenvolvimento econômico. Antes de caracterizar o que vem a ser desenvolvimento, é necessário conceituar crescimento econômico: há tempos economistas percebem que são imensas as diferenças entre crescimento e desenvolvimento. Se crescimento significa apenas o aumento da renda per capita, desenvolvimento implica conhecer os beneficiários do aumento da renda. Em outras palavras, desenvolvimento requer distribuição de renda, para que o crescimento não seja concentrador ou excludente. Além disso, desenvolvimento requer respeito ambiental, já que isso está intrinsecamente ligado às condições de sustentabilidade da atividade econômica. O debate entre os conceitos de desenvolvimento e crescimento nasceu da percepção de que, apesar das elevadas taxas de desempenho econômico, vários países apresentavam baixos níveis de qualidade de vida aos seus habitantes. Essa análise fez com que os economistas elaborassem outras medidas de mensuração que não as meramente quantitativas de produção, ou de “crescimento”. Quer dizer, buscou‑se entender o que poderia determinar o padrão de qualidade de vida, estabelecendo que esse padrão seria mensurador do desenvolvimento humano (incluído aí o desenvolvimento econômico); a partir daí, foram criados indicadores para que o padrão pudesse ser determinado. De uma forma extremamente simplificada, procurou‑se entender não apenas o tamanho do “bolo” (representativo da produção de bens e serviços), mas o quanto ele poderia saciar a fome das pessoas. 187 ECONOMIA O raciocínio é simples: o fato de um bolo ser grande ou pequeno não significa que ele tem condições de saciar a fome das pessoas. Se forem poucas pessoas, é possível que todas fiquem satisfeitas, contudo, se o bolo for pequeno e uma das pessoas ficar com a metade, ainda que sejam poucas pessoas, a satisfação será menor. O mesmo raciocínio vale para um bolo grande e um contingente enorme de pessoas. Ainda que o bolo cresça, se o número de pessoas aumentar mais do que o crescimento do bolo, é bem provável que a insatisfação persista. Dessa forma, o crescimento seria dado pelo tamanho do bolo; em contrapartida, o desenvolvimento seria dado pela saciedade das pessoas ao se alimentarem dele. Além disso, não seria suficiente o tamanho médio de cada fatia do bolo para que se pudesse concluir pela saciedade ou não das pessoas; seria necessário saber o quanto de justiça teria sido utilizada para a divisão do bolo. 8.2.1 Características do desenvolvimentismo enquanto prática e política As discussões acerca do desenvolvimentismo nas economias capitalistas surgiram por volta dos anos 1930, em função da Grande Depressão, em que as políticas de desenvolvimento passam a enfatizar a industrialização via substituição de importações, com incentivos eventuais às exportações. Trata‑se, além disso, de se pensar o desenvolvimento econômico das nações liderado por políticas governamentais que impulsionam a demanda agregada, bem como a produção. Do ponto de vista da teoria econômica, haverá uma mudança de eixo em termos de análise econômica. As economias capitalistas antes da Grande Depressão eram analisadas do ponto de vista da oferta. As ideias em voga eram a máxima de Jean‑Baptiste Say de que a oferta cria sua própria procura, e a noção de magic hands smithiana. Com a Depressão e seus efeitos, e diante do surgimento das teorias keynesianas, a análise econômica voltou‑se, então, para o ponto de vista da demanda – a demanda efetiva. Algumas medidas governamentais fazem‑se necessárias para haver desenvolvimentismo em ambiente de substituição de importações (SOUZA, 2009), por exemplo: • adoção de barreiras alfandegárias e intervenções no mercado cambial, com a manipulação da taxa de câmbio e confisco de divisas; • controle quantitativo de importações, a fim de evitar a fuga de divisas com gastos supérfluos e proporcionar mercado para a indústria nacional nascente; • incentivos a indústrias específicas através de créditos subsidiados e renúncias fiscais, com a participação de empresas estatais e de empresas estrangeiras; • aumento do poder de compra das populações rurais por meio de políticas agrícolas envolvendo crédito, seguro, preços mínimos, estoques reguladores, investimentos em estradas rurais, comercialização da produção e reforma agrária; • implantação de infraestrutura de transportes, energia e comunicações. 188 Unidade III Para que a economia consiga atravessar o estágio do subdesenvolvimento para o desenvolvimento, a política desenvolvimentista deverá estar centrada em alguns pontos chamados de estrangulamento, cuja solução no curto prazo não é tão simples. Vejamos alguns desses entraves. Um deles está relacionado à dificuldade da economia doméstica em conseguir diversificar a produção interna e, por consequência, melhorar sua pauta de exportações para que sejam conquistados saldos superavitários em transações correntes no balanço de pagamentos. Por que é difícil diversificar a produção interna? Para que haja diversificação da produção, o empresário deve entrar em ação no sentido de buscar novas alternativas em produzir aquilo que o mercado deseja. Mais do que isso: é necessário o tino empreendedor, criativo, arrojado e visionário para verificar e acompanhar o que a demanda está esperando de sua produção – e não somente a demanda interna, mas, principalmente, a internacional. Em um ambiente de economia em que as relações internacionais não são tão fortes, o acesso a novos meios de produção e novas formas de invenção se apresenta como entrave ao empreendedorismo e à criação. Outros fatores que prejudicam bastante o dinamismo da indústria, em termos de modernização, residem nos baixos índices de escolaridade da população, causando escassez de qualificação profissional, o que gera custos empresariais de desenvolvimento profissional. Como a taxa de poupança da economia também não é tão elevada, a capacidade creditícia fica reduzida, influenciando para cima as taxas de juros, o que inibe o empresariado na tomada de crédito. Resultado: poucos recursos para investimentos produtivos, tanto de qualificação técnica quanto de força de trabalho. Geralmente, é o Estado quem exerce uma ação coordenada do desenvolvimento e quem procura vencer esses estrangulamentos. Em fases mais avançadas do processo de desenvolvimento, os principais estrangulamentos decorrem do esgotamento do modelo de substituição de importações, em razão da pequena dimensão do mercado interno para algumas substituições, como bens de capital, da insuficiência de capital e da concentração da renda (SOUZA, 2009, p. 24). Souza (2009, p. 24) continua: A transição de uma economia de subsistência para uma economia industrializada, com amplo setor de mercado interno, pressupõe a transição de inúmeros obstáculos criados pelo próprio crescimento econômico. Nesse processo, o desenvolvimento ocorreria por etapas, começando pela economia de subsistência, passando pelas exportações e pelas inovações tecnológicas, e terminando pela era do consumo de massa com altos níveis de bem‑estar para o conjunto da população nacional, a exemplo do welfare state. Deve‑se a Rostow (1974) a noção de que o desenvolvimento ocorre por etapas em que a economia apresenta dinâmica como característica. Para ele, o desenvolvimento pode ser visto como um processo de evolução de economia de subsistência, primitiva, a uma forma mais avançada, com tecnologia 189 ECONOMIA avançadae de consumo de massa. O pensamento rostowiano está enraizado em considerações de que nações insuficientemente desenvolvidas conseguem superar seus entraves até conseguir alcançar o desenvolvimento econômico dito satisfatório. O modelo de desenvolvimento estaria dividido em cinco etapas: • Primeira etapa: economia predominantemente agrícola em que a maior parcela da população está empregada nesse setor. Devido à baixa tecnologia de produção e a processos rudimentares, a produtividade é baixa e o quantum produzido é suficiente para atender à demanda com certa folga. A posse da terra é símbolo de poder e riqueza, e se dá grande importância aos clãs, famílias e castas. • Segunda etapa: etapa chamada de criação das pré‑condições para o arranco ou para a decolagem rumo ao crescimento. Aqui, já se verifica avanço tecnológico na produção do setor primário e alguns insights na indústria ainda modesta e leve expansão da demanda em mercados mundiais. Há uma demanda social por melhores níveis educacionais devido à ascensão da classe média e a classe dominante tradicional passa a sofrer com a concorrência de grupos industriais urbanos. O Estado é induzido a efetuar gastos em benefício do bem‑estar da população e se verificam aumentos nos investimentos em infraestrutura de transporte, comunicações e energia, bem como na produção de matérias‑primas estratégicas para a indústria, favorecidas pelo crédito bancário devido ao surgimento dessa atividade. Pelas palavras de Souza (2009, p. 247), “criam‑se, desse modo, forças endógenas e autônomas para o crescimento econômico autossustentado” em que prevalece a ideia da valorização da expertise individual do ser humano quanto ao seu potencial criativo. • Terceira etapa: fase do arranco ou decolagem propriamente dita, em que foram superados os entraves até então vigentes. É uma fase em que o desenvolvimento surge com normalidade e tem‑se o surgimento de novas indústrias, tecnologicamente interligadas, cujos lucros são reinvestidos na criação de novas condições de produção. Verifica‑se a criação de novos grupos empresariais, o que favorece o crescimento do emprego inclusive no setor de serviços, apoiando o bom desenvolvimento do comércio e da indústria do setor produtor de bens de consumo. Não tardam a aparecer as inovações tecnológicas e a produção de novos itens, bem como o acesso a novas fontes de insumos de produção, inclusive no campo agrícola, que agora também consome bens industrializados. • Quarta etapa: denominada etapa da marcha para a maturidade, com: [...] um longo intervalo de crescimento econômico continuado, no qual a economia assimila a tecnologia moderna. Implanta‑se a indústria de bens de capital e a economia aumenta suas exportações de produtos manufaturados, com tecnologia intensiva. A sociedade passa a gerar internamente grande parte da tecnologia que adota em seu processo produtivo. Na fase da maturidade econômica, a economia desenvolve indústrias diferentes daquelas que geraram a decolagem. É uma etapa em que a economia demonstra que possui as aptidões técnicas e organizacionais para produzir não tudo, mas qualquer coisa que decida produzir (SOUZA, 2009, p. 247). 190 Unidade III • Quinta etapa: é chamada etapa do consumo em massa, em que a economia é liderada pelos setores produtores de bens de consumo duráveis e setor de serviços que facilitam a vida da população. Há ligeira queda de preços da economia devido a melhores condições de oferta e maior competitividade entre as empresas, o que faz com que o salário real se eleve, permitindo, assim, o consumo em massa. “Nesta fase, o Estado investe mais na assistência social. É o chamado estado de bem‑estar social característico dos anos 1950‑1970, nos países desenvolvidos” (SOUZA, 2009, p. 247). 8.2.2 Desenvolvimentismo no pensamento econômico brasileiro O desenvolvimentismo no Brasil marca uma ideologia econômica que sustenta um projeto de industrialização como forma de superar entraves até então colocados pela economia agroexportadora (ou primária) e pelo próprio modelo de substituição de importações: economia fechada e baixa produtividade, para citar alguns. Bielschowsky (2000) indica haver, para o Brasil, duas linhas de interpretação acerca do desenvolvimentismo: uma ligada ao setor privado e outra ao setor público. No que diz respeito ao setor privado, a ideia prevalecente era a da proteção aos interesses da classe empresarial, propondo uma visão nacionalista, enquanto economistas que trabalhavam no setor público apresentavam certa dualidade: enquanto uns, os não nacionalistas, propunham que as ações desenvolvimentistas deveriam ser tomadas pelo mercado, a partir dos interesses empresariais, outros, chamados de nacionalistas, preconizavam a estatização de setores estratégicos, a exemplo de energia, mineração e transporte, além do favorecimento à indústria de base. Assim, durante o período de 1930‑1945 percebem‑se as origens do desenvolvimentismo, que se consolidaria na década de 1950, sob dois pilares distintos, mas interligados. O primeiro, ligado ao setor privado, propunha um projeto de industrialização de forma planejada e que atendesse aos interesses do capital industrial dominante na época. Aqui forte papel foi desempenhado por dois núcleos de reflexão sobre o tema: Conselho Econômico (CNI) e Departamento Econômico. Bielschowsky (2000, p. 79) destaca que Essa pequena elite empresarial vivenciava o que se pode denominar, sem risco, de experiência pioneira em planejamento econômico. No esquema corporativo do Estado Novo, os líderes empresariais tiveram participação em várias das muitas agências econômicas governamentais que se criaram. Estabeleceu‑se, dessa forma, um fértil cruzamento ideológico entre sua visão de mundo e as ideias e conceitos desenvolvimentistas que se formavam nos novos órgãos federais, nos quais se discutia a respeito de comércio exterior, energia, transportes, indústria siderúrgica e tantos outros temas de âmbito nacional. O ponto culminante desse momento pioneiro de concepção desenvolvimentista foi a apresentação, por Roberto Simonsen, em 1944, do projeto de criação de uma Junta Nacional de Planificação no Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial. 191 ECONOMIA O desenvolvimentismo interpretado pelas ideias de Simonsen (BIELSCHOWSKY, 2000), representando a classe do setor privado baseava‑se nos seguintes aspectos: • uma das formas de dizimar a pobreza seria a industrialização integrada; • a industrialização brasileira acompanharia um processo de reestruturação que vinha acontecendo nas economias da América Latina; • a industrialização somente avançaria com apoio das correções pelo Estado, das falhas de mercado: para tanto, protecionismo e intervenção estatal seriam indispensáveis; • a intervenção estatal deveria ir além dos instrumentos triviais de políticas públicas: teria de incluir investimentos em setores estratégicos. Pelo lado do setor público, havia duas correntes: a dos não nacionalistas e a dos nacionalistas. Como bem afirma Bielschowsky (2000, p. 103), Desde suas origens, nas décadas de 1930 e 1940, o desenvolvimentismo foi uma ideologia econômica com fortes vínculos com o nacionalismo. Havia então toda uma inclinação ideológica, por parte da maioria dos adeptos do projeto de superação do atraso brasileiro pela via da industrialização, no sentido de desconfiar das possibilidades de se obter um concurso positivo do capital estrangeiro nesse projeto. Os mais radicais viam o capital estrangeiro como um bloco monolítico de interesses imperialistas, antagônicos ao projeto. E, mesmo entre os moderados, predominava a visão de que, pelo menos nos setores fundamentais para a industrialização (energia, transporte, mineração etc.), o Estado deveria garantir o controle decisório, deslocando o capital estrangeiro ou impedindo sua entrada. De visão não nacionalista, destaca‑se Roberto Campos, considerado o economista de maior expressão em um período emque a economia brasileira passava de sua estrutura agroexportadora para a economia industrial, então internacionalizada. O projeto não nacionalista de desenvolvimento deveria incluir a questão do planejamento da industrialização. Propunha que [...] se deveria procurar contornar a arcaica máquina administrativa brasileira, incapaz de executar as tarefas do desenvolvimentismo através da formação de equipes de planejamento e administração voltadas para a formulação e execução de uma política de investimentos básicos (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 109). Quanto à visão nacionalista do desenvolvimentismo, a defesa era da constituição de um capitalismo industrial moderno no País. Para os defensores desse ponto de vista, o desenvolvimento seria alcançado pela intervenção por investimentos estatais em setores estratégicos, admitindo que o setor privado não teria fôlego para tanto. Conforme destaca Bielschowsky (2000, p. 129), 192 Unidade III O grande encontro dos desenvolvimentistas nacionalistas deu‑se em meados dos anos 1950, quando Furtado e Barbosa Oliveira fundaram o Clube dos Economistas, órgão que reuniu algumas dezenas de técnicos nacionalistas do governo federal e alguns desenvolvimentistas do setor privado. Vale destacar alguns pontos importantes do pensamento desenvolvimentista nacionalista: • defesa de intervenção estatal na economia; • políticas econômicas orientadas ao planejamento; • subordinação da política monetária à política de desenvolvimento; • adoção, por parte do Estado, de medidas econômicas de cunho social. Saiba mais O principal expoente do pensamento nacionalista é Celso Furtado. Leia mais em: BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. Concentre‑se no capítulo cinco: “O pensamento desenvolvimentista”. 8.3 Economia internacional A chamada teoria “pura” do comércio internacional, ao adotar uma perspectiva de longo prazo, concentra‑se na explicação de fatores reais como determinantes do fluxo comercial entre países. Para tanto, conforme Baumann (2004) ressalta, essa teoria apoia‑se em algumas hipóteses simplificadoras: • todas as variáveis do sistema econômico são determinadas de forma independente dos fluxos monetários; • todos os preços da economia são flexíveis e os mercados de produtos e de fatores de produção funcionam sob a lógica da concorrência perfeita; • para cada país considerado, o estoque de fatores de produção deve ser encarado como uma variável exógena, independentemente de sua remuneração; • como a utilização dos fatores de produção independe de sua remuneração, os fatores são móveis entre setores, mas imóveis entre países. 193 ECONOMIA Dadas as restrições, a preocupação central desse tipo de teoria está em descobrir a existência ou não de ganhos com o comércio internacional, bem como qual será o padrão do fluxo comercial, ou seja, que produtos uma economia deveria exportar e importar e a que nível de preços. Em outras palavras, a teoria “pura” procura identificar o que determina o comércio internacional. 8.4 O mercantilismo Durante o período em que se desenvolve a Revolução Comercial e consolida‑se o pensamento mercantilista, as teorias explicativas das relações comerciais prescreviam que cada nação deveria exportar o máximo e importar o mínimo para que fosse mantido saldo positivo em sua balança comercial. Nesse contexto, o comércio longínquo era visto como fonte de riqueza para os países e a prosperidade de uma economia era medida pelo seu estoque de metais preciosos. A visão dominante entre os séculos XVI e XVIII foi essencialmente uma postura mercantilista, em que o comércio era admitido como uma fonte de riqueza, mas sob uma ótica bastante peculiar: a de acumulação sem limites de poder de compra, possibilitada por crescentes ganhos derivados de superávits comerciais. Para Dowbor (1990) e Singer (1989), a exacerbação do comércio produziu dois efeitos sobre a estrutura econômica europeia. O primeiro corresponde ao fluxo de metais preciosos para a Europa, pois a quantidade de ouro chegou a dobrar em meados do século XVI. Como a produção de bens pouco se alterou, houve elevação de preços e redução dos rendimentos dos senhores feudais. Sobre o tema, Dowbor (1990, p. 13) ressalta que: nessa época, os senhores feudais recebiam as contribuições anuais dos servos ainda em trabalho e em produtos, mas a forma dominante já era de simples pagamento, em moeda, de uma taxa fixa por pessoa. Ao dobrar a quantidade de ouro, enquanto a produção de bens permanecia pouco alterada, os preços duplicaram [...], reduzindo pela metade os rendimentos dos senhores feudais. O segundo desses efeitos foi o reforço da produção, pois conforme Dowbor (1990, p. 14) explica: a rápida acumulação de capital nas mãos dos comerciantes e a abertura dos mercados internos criam uma atuação em que há ao mesmo tempo a procura pela produção e a procura pelos meios para desenvolver essa produção. Dessa maneira, o comércio internacional promovido pelo maior relacionamento entre países passava a ser encarado como uma disputa por uma quantidade limitada de metal precioso. Cada país, assim, poderia obter vantagens às custas dos demais, por intermédio da acumulação de metal. A visão mercantilista, além de ser altamente nacionalista e priorizar o bem‑estar do próprio país, implicava uma percepção estática da disponibilidade de recursos. A atividade econômica era, portanto, reduzida a um jogo de soma zero no qual os ganhos de um país têm lugar em detrimento dos resultados obtidos pelos demais. Sobre isso, vejamos uma passagem de Araújo (1989, p. 22): 194 Unidade III Os mercantilistas, por seu lado, preocupavam‑se sobretudo com a política econômica, com saldos favoráveis na balança comercial, com o estoque de metais preciosos e com o poder do Estado. Este seria tão mais forte quanto maior fosse seu estoque de metais preciosos. Para alcançar isso, ele deveria restringir as importações e estimular as exportações. Mas essa é uma política inconsequente. Se todos os países restringirem suas importações, quem conseguirá exportar? As importações de um são as exportações do outro. Não podia dar outra coisa. A política mercantilista exacerbou o nacionalismo, estimulou as guerras e promoveu uma maior presença do Estado nos assuntos econômicos. Diante desse quadro, as proposições mercantilistas passam a ser objeto de críticas. Um dos primeiros pensadores a opor‑se veementemente a essa lógica foi David Hume, ao questionar o argumento básico de uma economia poder acumular indefinidamente divisas sem com isso afetar sua posição competitiva no mercado internacional. 8.5 Visão de David Hume Conforme Kuntz (1983), há três traços principais na explanação de Hume que explicitam o que viria a ser o comércio internacional: a concepção de um mecanismo de ajuste automático nas contas externas, que inutilizaria qualquer intervenção governamental; a aplicação da teoria quantitativa da moeda quanto aos efeitos econômicos de superávits ou déficits na balança comercial de cada país e a alegação de que vantagens comparativas são variáveis determinantes na mobilidade de recursos em um sistema sem intervenção. O argumento é o de que a acumulação de divisas na forma prescrita pelos mercantilistas, ou seja, via superávits comerciais, acabaria por afetar a oferta interna de moeda e, assim, elevar o nível de preços e salários internos. Em sua obra, Escritos sobre economia, de 1777, David Hume dedica um capítulo à análise da moeda. Dentre outras considerações, efetua a que se segue: O dinheiro não é, propriamente falando, um dos objetos do comércio, mas apenas o instrumento sobre o qual concordaram os homens para facilitar a troca de uma mercadoria por outra. Não é uma das rodas do comércio: é o óleo que torna mais suave e fácil o movimento das rodas. A grande abundância de dinheiro tem uso bastante limitado, e pode às vezes até mesmo constituir uma perdapara o comércio de uma nação com os estrangeiros (HUME, 1983, p. 201‑202). Ainda sobre a moeda, David Hume (1983, p. 203) esclarece que: em qualquer reino onde o dinheiro comece a afluir com maior abundância que anteriormente, tudo assume novo aspecto: o trabalho e a indústria ganham vida; o comerciante torna‑se mais empreendedor; o fabricante mais hábil e diligente e até mesmo o agricultor empurra o arado com maior alegria e atenção. Não é fácil explicar isto, se considerarmos apenas a 195 ECONOMIA influência que a maior abundância de moeda exerce sobre o próprio reino, elevando o preço das mercadorias e obrigando todos a pagarem um número maior dessas cédulas amarelas ou brancas por tudo que compram. Quanto ao comércio exterior, parece que uma grande quantidade de dinheiro é bastante desvantajosa, porque eleva o custo de todo tipo de mão de obra. Se admitirmos que o excesso de dinheiro pode comprometer a competitividade das exportações do país superavitário, admitiremos também que se reduz a possibilidade de que se continue a geração de excedente comercial, ou seja, de que sejam aumentados indefinidamente os superávits comerciais. Acerca disso, Baumann (2004, p. 11) resume que: o movimento de divisas entre dois países opera como um mecanismo automático, que leva à igualdade entre os valores de exportações e importações. Esse raciocínio é conhecido como o mecanismo preço‑fluxo‑espécie, de Hume. Sobre tal mecanismo, vejamos a contribuição de Williamson (1988: p. 131): David Hume havia desacreditado a base macroeconômica da posição mercantilista. Em 1752 mostrou que um superávit permanente nos pagamentos não era viável e que, portanto, não tinha sentido algum como objetivo de política, enquanto um déficit seria solucionado por si mesmo, de modo que não era preciso preocupar‑se com a possibilidade de um país perder toda a sua oferta monetária e ter de, por isso, deixar de produzir. A alegação básica era que o padrão ouro tinha um mecanismo de ajuste automático. Pelos argumentos de David Hume, o mecanismo de ajuste automático funcionaria da seguinte forma: um déficit em balanço de pagamentos ensejaria uma saída de ouro do país, ocasionando uma queda na oferta monetária. Esta contrai a demanda interna por mercadorias, diminuindo seus preços e diminui a demanda interna por produtos estrangeiros, o que, em outras, palavras, reduz as importações. A queda nos preços das mercadorias produzidas internamente eleva a competitividade internacional, ampliando, portanto, as exportações. Por fim, reduz‑se o déficit no balanço de pagamentos. Williamson (1988) ressalta que há algumas premissas necessárias a serem atendidas para se garantir que o mecanismo de fluxo‑espécie‑preço funcione da forma descrita por Hume. São elas: • que a taxa de câmbio seja fixa; • que se evite a esterilização completa, ou seja, que não seja compensada uma queda nas reservas com elevação do crédito interno; • que se aceite a Teoria Quantitativa da Moeda; • que os preços externos permaneçam constantes ou que se elevem; 196 Unidade III • que seja satisfeita a condição Marshall‑Lerner; • que não exista mobilidade de capital. 8.6 Produtividade do trabalho e vantagens comerciais Enquanto no século XVI os mercantilistas ainda viam a aquisição de ouro e da prata como forma mais importante de enriquecer o país, a própria necessidade de dispor de cada vez mais produtos para exportar e adquirir o ouro gera uma outra visão de fonte de riqueza: a capacidade de produzir, que se desenvolve com a Revolução Industrial. Na Inglaterra, esta teve seu auge por volta das três últimas décadas do século XVIII e começo do século XIX. Nesse período, a Inglaterra tinha um mercado interno bem desenvolvido, comparativamente aos demais países da Europa, no qual se procurava a produção em maior quantidade para vender a preços mais baixos, o que significava lucros crescentes. Além disso, a busca por maiores lucros conjugada ao aumento das vendas foi estimulada pela demanda externa por bens produzidos na Inglaterra, dando motivos para a explosão de inovações tecnológicas então ocorridas. Segundo Dowbor (1990, p. 36‑37), a Revolução Industrial promoveu efeitos positivos para países desenvolvidos, como a Inglaterra do século XIX. Vejamos sua explanação: (a) com a progressão da divisão do trabalho e da mecanização, a produtividade do trabalho dá um salto imenso, reduzindo, pela primeira vez na história, o custo unitário dos produtos manufaturados, permitindo assim realizar grandes economias de escala; (b) a industrialização leva a custos decrescentes, à medida que exige um processo permanente de inovações tecnológicas; (c) a industrialização acarreta a multiplicação de economias externas: abrem‑se estradas, formam‑se trabalhadores, estende‑se a rede de comercialização, desenvolvem‑se transportes e comunicação, constituindo um conjunto de infraestrutura que torna mais barato o funcionamento de cada empresa nova que se instala. Em outras palavras, ainda para Dowbor (1990), a Revolução Industrial generalizou a utilização da tecnologia ao desenvolver a produção de ferramentas, especializou e modernizou a produção manufaturada, promoveu, nos países desenvolvidos, o processo de enriquecimento cumulativo através da conquista de novos mercados a cada progresso técnico da sua indústria, invadiu diversas partes do mundo com produtos manufaturados, e por fim, estimulou a industrialização. 8.6.1 Adam Smith e suas vantagens absolutas Em 1776 com A riqueza das nações, de Adam Smith, e em 1817, com Princípios de economia política e tributação de David Ricardo, ocorre uma evolução no pensamento econômico. Incorporando os fatos e os valores da Revolução Industrial, forma‑se a teoria clássica do liberalismo. Segundo ela, dentre outros 197 ECONOMIA aspectos, o sistema econômico livre do Estado permite a cada capitalista e a cada trabalhador buscar o seu próprio interesse no mercado. Trata‑se da recomendação do laissez‑faire, laissez‑passer, que podemos identificar como a recomendação da irrestrita abertura dos portos, ou dos mercados, na promoção de maior relacionamento entre as nações, fato que na época favorecia o poder industrial inglês. A abertura dos mercados seria importante, pois como enfatiza Smith (1996, p. 77): quando o mercado é muito reduzido, ninguém pode sentir‑se estimulado a dedicar‑se inteiramente a uma ocupação, porque não pode permutar toda a parcela excedente de sua produção que ultrapassa seu consumo pessoal, pela parcela de produção do trabalho alheio, da qual tem necessidade. Ainda para Smith (1996, p. 420): com plena segurança, achamos que a liberdade do comércio, sem que seja necessária nenhuma atenção especial por parte do governo, sempre nos garantirá o vinho de que temos necessidade; com a mesma segurança podemos estar certos de que o livre comércio sempre nos assegurará o ouro e a prata que tivermos condições de comprar ou empregar, seja para fazer circular as nossas mercadorias, seja para outras finalidades. Com esse argumento, percebe‑se que o comércio externo beneficiaria todos os países participantes, já que em primeiro lugar, daria escoamento à produção excedente de manufaturados, caso não existisse demanda interna. Em segundo lugar, valorizaria, no mercado externo, mercadorias que poderiam tornar‑se supérfluas no mercado interno, e em terceiro lugar, o comércio externo provocaria a elevação da produção, “aumentando assim a renda e a riqueza reais da sociedade” (SMITH, 1996, p. 430). Com isso, Adam Smith defende a teoria das vantagens absolutas, entendidas em custos de produção – na sua época, notadamente custos de mão de obra. Seu argumento difere daquele postulado pelas teorias “puras”, pois parte do pressuposto de que as trocas comerciais beneficiam todas as nações que delas participam, e que cada país obtém vantagens maiores ou menores na produção de cada mercadoria. Mais claramente, se o mercado internacional fosse encaradocomo forma de competição e sem qualquer interferência governamental, cada país procuraria especializar‑se na produção de mercadorias, que lhe daria maior vantagem absoluta, tanto natural quanto adquirida. Dessa forma, se cada nação participante do comércio internacional procurasse sua produção mais vantajosa, ou seja, aquela vantagem absoluta, todas as mercadorias seriam trocadas ou vendidas pelo seu valor mais baixo, e daí surgiria a riqueza de todas as nações, pois para Smith (apud SINGER, 1989, p. l47): riqueza significa obter bens de uso necessários ao consumo da população com o menor gasto de tempo de trabalho humano. Nesse sentido, o comércio internacional, livre de interferências não econômicas promoveria a riqueza de todas as nações. 198 Unidade III Smith (1996) assegura então que toda pessoa procura empregar seu capital da forma mais vantajosa possível, visando à manutenção de sua própria vantagem. Com efeito, se todas as pessoas o aplicarem no fomento da atividade nacional, a sociedade como um todo atingirá o emprego mais vantajoso de seu capital, e cada indivíduo se esforçará para aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade, já que os produtores individuais consideram de seu interesse empregar toda sua atividade de forma que obtenham alguma vantagem sobre seus vizinhos, comprando, com uma parcela de sua produção, tudo o mais de que tiverem necessidade (SMITH, 1996, p. 435‑438). Sendo assim, se algum país puder fornecer uma mercadoria a um custo mais baixo do que aquele de sua produção interna, para Smith seria melhor comprá‑la do que produzi‑la, ou seja, seria melhor importá‑la. Dessa forma, deixando de produzir tal mercadoria, encaminha‑se o capital e o emprego necessário para outra produção, que poderá fornecer maior vantagem. Ao produzir internamente aquela mercadoria, que é mais barata quando se importa, há um desperdício de recursos produtivos, provocando, então, uma queda no valor da produção anual da atividade do país, e não é isso que um país deseja. Smith acrescenta ainda que as vantagens naturais que um país pode deter frente a outro na produção de determinadas mercadorias tornam‑se, às vezes, tão grandes que não ensejariam provocar um processo de concorrência com relação a essa mercadoria: não interessa se as vantagens que um país leva sobre o outro são naturais ou adquiridas. Enquanto um dos países tiver suas vantagens, e outro desejar partilhar delas, sempre será mais vantajoso para este último comprar que fabricar ele mesmo (SMITH, 1996, p. 44). 8.6.2 David Ricardo e suas vantagens comparativas David Ricardo dá forma definitiva a essa concepção, argumentando que cada país não precisaria ter uma vantagem absoluta na produção de todas as mercadorias, mas deveria especializar‑se na produção de mercadorias em que tivesse maiores vantagens relativas ou comparativas, também em custos. Nesse sentido, Ricardo sustenta, assim como Smith que, em uma economia de livre mercado, cada nação procurará aplicar todo o seu capital, bem como todo o seu trabalho, em atividades que lhe tragam o máximo benefício, como se cada país buscasse sua “vantagem individual”. Obter vantagem significaria ter eficiência na produção derivada da utilização de uma quantidade menor de trabalho na produção. Assim, para Ricardo (1996, p. 97‑98): um país dotado de grandes vantagens em maquinaria e em capacidade técnica, e que consiga produzir certas mercadorias com muito menos trabalho do que seus vizinhos, poderá importar em troca dessas mercadorias parte dos cereais necessários ao consumo. 199 ECONOMIA Dessa forma, dois países poderiam tirar proveito do comércio, se cada um tivesse uma vantagem relativa na produção. Vantagem relativa ou comparativa significa que a quantidade de trabalho incorporado em duas mercadorias seria diferente entre dois países, de modo que cada um poderia ter pelo menos uma mercadoria cuja quantidade relativa de trabalho incorporado seria menor do que a de outro país (HUNT, 1989, p. 137). Assim, o comércio internacional seria importante para uma nação, pois ampliaria a quantidade de mercadorias transacionadas, elevaria a diversidade dos produtos nos quais os salários poderiam ser gastos a um custo menor e, por fim, aumentaria o grau de satisfação da sociedade (RICARDO, 1996, p. 93‑97). Por suas palavras: se Portugal não tivesse nenhuma ligação comercial com outros países, em vez de empregar grande parte de seu capital e de seu esforço na produção de vinhos, com os quais importa, para seu uso, tecidos e ferramentas de outros países, seria obrigado a empregar parte daquele capital na fabricação de tais mercadorias, com resultados provavelmente inferiores em qualidade e quantidade. Para Singer (1989, p. 147), Ricardo (1996) demonstra então, que mesmo que um país tivesse grandes vantagens naturais ou adquiridas em todas as esferas de produção, conforme explicava Smith, a especialização de sua produção apenas nos ramos em que suas vantagens comparativas fossem maiores, trar‑lhe‑ia mais vantagens que a autossuficiência econômica. Ainda que essa teoria não explicite que os ganhos de especialização se deem no consumo ou na acumulação de capital, não se repartem homogeneamente entre as nações participantes do intercâmbio comercial (SINGER, 1989). Durante boa parte do século XIX, as políticas comerciais das nações capitalistas mais avançadas e das menos desenvolvidas observaram suas recomendações de política econômica, notadamente a política de “portos abertos”, em que se entende ampliação das relações comerciais internacionais. As poucas exceções a essa visão e a essa política derivam do argumento da indústria infante, cujo conteúdo, em última instância, sugere um fechamento temporário do país ao livre comércio, contrariando as relações de comércio até então apresentadas. A abordagem clássica dos custos comparativos desempenhou importante papel no quadro da teoria das vantagens resultantes da especialização e das trocas internacionais. Suas conclusões tiveram grande utilidade e, nesse sentido, as bases teóricas do enfoque ricardiano puderam ser aplicadas a situações reais, principalmente em sua época, quando o trabalho era considerado o fator básico determinante dos custos de oferta da maior parte dos bens e serviços produzidos pelas nações. Se o trabalho fosse o único fator de produção, as vantagens comparativas poderiam surgir apenas por causa de diferenças internacionais da produtividade da mão de obra, mas no mundo real elas também refletem diferenças entre os recursos dos países, por exemplo: terra, capital, recursos minerais, entre outros. Dessa forma, diante de novos recursos teóricos e em decorrência das consideráveis modificações 200 Unidade III na estrutura de produção das nações, a teoria clássica das vantagens comparativas passa a ser objeto de diversas reformulações. 8.6.3 Recursos e comércio: o modelo Heckscher-Ohlin O teorema desenvolvido pelos suecos Eli Heckscher e Bertil Ohlin enfatiza as razões e os ganhos com o comércio internacional, pois fatores diferentes de produção estão disponíveis nos mais diversos países e mostram que as vantagens comparativas de cada nação são influenciadas pela interação entre a abundância relativa dos fatores de produção e a tecnologia da produção – ou seja, a quantidade e a intensidade relativa com que os fatores de produção são usados na geração de bens diferentes. Tomando por base Krugman e Obstfeld (1999), Gonçalves (1998) e Williamson (1988), passamos a exemplificar o teorema. Esse modelo considera que cada economia pode produzir dois bens, tecidos e alimentos, e que a produção de cada um deles requer o uso de dois fatores de produção específicos e com oferta limitada: mão de obra e terra. Nesse caso simples de dois itens, dois produtos e duas regiões, ou seja, modelo 2x2x2, o comércio praticado entre os países seria baseado na troca dos produtos mais baratos de cada região, portanto, aqueles cuja produção utilize relativamentemaior quantidade do fator abundante em termos domésticos. Assume também que os consumidores dos diferentes países têm preferências idênticas e que a sociedade pode maximizar seu bem‑estar como se fosse um indivíduo e que um maior nível de bem‑estar para a sociedade implica maior nível de produto para cada indivíduo. Sendo assim, o modelo de Heckscher‑Ohlin diz respeito ao comércio em equilíbrio entre duas economias, passando a ideia de que o país, por exemplo, onde o trabalho for relativamente abundante será capaz de produzir o bem intensivo em trabalho a um custo relativamente baixo, obtendo uma vantagem comparativa em sua produção. Para Williamson (1988, p. 37), o modelo pode ser enunciado da seguinte maneira: “cada país exportará o bem intensivo em seu fator abundante”. Sabemos que o custo de produção de um bem depende dos preços dos fatores de produção. Se o aluguel da terra, por exemplo, for mais elevado, então o bem cuja produção seja intensiva terá preços mais altos. Nesse caso, a importância do preço de fator particular no custo de produção de um bem depende, entretanto, da quantidade do fator que a geração do bem envolve. Se a produção de tecido utiliza pouca terra, então um aumento no preço da terra não terá muito efeito sobre o do tecido. A partir da determinação do preço dos tecidos e dos alimentos, bem como do estabelecimento do padrão de oferta limitado de terra e mão de obra, podemos identificar quanto de cada recurso será direcionado na economia à produção de cada bem – e, portanto, a quantidade produzida de qualquer mercadoria na economia, de acordo com a curva de possibilidade de produção. Se a oferta de terra na economia aumenta, isso favorecerá a produção intensiva e será desfavorável à produção dos bens de trabalho intensivo. A terra e a mão de obra não mais utilizadas na produção de tecidos serão transferidas para o setor de alimentos, cuja produção aumentará mais do que 201 ECONOMIA proporcionalmente ao incremento na oferta de terra, ocasionando um deslocamento para fora na curva de possibilidade de produção. Agora, a economia pode produzir mais alimentos do que antes. Para Krugman e Obstfeld (1999, p. 75‑76): o efeito enviesado dos incrementos dos recursos nas possibilidades de produção é a chave para entender como as diferenças em recursos aumentam o comércio internacional. Uma vez que a economia doméstica tem uma proporção maior de mão de obra do que de terra do que a economia estrangeira, a doméstica é abundante em mão de obra e a estrangeira, em terra. Se o tecido for um bem intensivo em mão de obra, a fronteira de possibilidade de produção da economia doméstica relativa à estrangeira é deslocada para fora, mais na direção dos tecidos do que na dos alimentos. Assim, coeteris paribus, a economia doméstica tende a produzir uma proporção mais elevada de tecidos do que de alimentos. Nas palavras de Krugman e Obstfeld (1999, p. 77): sinteticamente, eis o que aprendemos sobre os padrões de comércio: a economia doméstica tem uma proporção maior de mão de obra em relação à terra do que a economia estrangeira; isto é, a economia doméstica é abundante em mão de obra e a economia estrangeira é abundante em terra. A produção de tecidos utiliza uma proporção maior de mão de obra em relação à terra que a produção de alimentos: ou seja, tecidos são intensivos em mão de obra e alimentos em terra. A economia doméstica, país abundante em mão de obra, exporta tecidos, o bem intensivo em mão de obra; a economia estrangeira, país abundante em terra, exporta alimentos, o bem intensivo em terra. A regra geral dessa teoria é: os países tendem a exportar bens cuja produção é intensiva em fatores com os quais eles são favorecidos em abundância. Diante das considerações anteriores, ao ser confrontado com os fluxos de comércio internacional, o modelo Heckscher‑Ohlin parece ser o que mais se aproxima da realidade. Em sua mais simples manifestação, as causas fundamentais das redes de trocas entre as nações parecem encontrar‑se nas diferenças estruturais quanto à disponibilidade de recursos. Estes não se encontram distribuídos na mesma proporção entre as nações e, diante das dificuldades para a sua mobilização de uma para outra, cada uma tende a se especializar na produção dos bens e serviços mais apropriados à sua tipologia de recursos. Os excedentes resultantes tendem a ser trocados no exterior por produtos cuja obtenção não se ajuste à estrutura interna de recursos. Assim, poderíamos dizer que, do ponto de vista da teoria neoclássica das relações internacionais, o comércio internacional é, na realidade, uma espécie de troca de recursos abundantes por recursos escassos. 202 Unidade III 8.7 Balanço de pagamentos O balanço de pagamentos é o registro sistemático de todas as transações econômicas efetuadas entre residentes e não residentes de um país durante determinado período. Esse registro atende à subdivisão de transações correntes (TC), movimentos do mercado real de bens e serviços e movimentos de capitais (CF) representados por fluxos de moeda, renda, crédito e investimentos. Portanto, o registro do balanço de pagamentos considera o lado real e o lado monetário das relações internacionais. O saldo de TC é o resultado das contas do lado real da economia: balança comercial, balança de serviços e a balança de rendas, essa última dividida em duas subcontas: renda primária e renda secundária. A conta balança comercial (BC) apresenta o saldo free on board (FOB) de exportações e importações de bens realizadas durante determinado período. A conta balança de serviços (BS) registra os saldos das operações de serviços realizadas entre o país e os outros, a exemplo de transportes, seguros e aluguéis de equipamentos. Já a conta de rendas, em sua primeira e maior subconta, a renda primária, registra o envio e recebimento de lucros obtidos por empresas domiciliadas no Brasil ou no exterior; os lucros obtidos através da posse de ativos financeiros; a remuneração de empregados e reinvestimentos. Na conta de renda secundária ficam registradas as transferências pessoais que, na versão anterior do balanço de pagamentos, eram chamadas simplesmente de transferências unilaterais. Elas se referem ao saldo das transações que não envolvem contrapartida, a exemplo de donativos (na forma monetária ou em produtos) que um país envia a outro sem que o país recebedor ofereça algo em troca. Em geral, apresentam‑se na forma de ajuda humanitária, remessa de alimentos e medicamentos. Assim, TC = BC + BS + BR (Primária + Secundária) Os saldos das contas capital e financeira representam os fluxos monetários realizados entre diferentes países durante determinado período, subdivididos em conta capital, que representam os envios e recebimentos de recursos para pagamentos de bens não financeiros não produzidos como, por exemplo, o pagamento de royalties ou de passes de atletas, e em conta financeira, na qual ficam registrados os saldos de investimento direto no país (IDP), que se constituem em investimento em ativos fixos e investimentos financeiros (investimento em carteira) por exemplo: ações, títulos públicos, debêntures etc. No balanço de pagamentos, o registro sistemático das transações atende ao princípio contábil das partidas dobradas, a partir do qual um lançamento a débito em uma conta corresponderá a um lançamento a crédito em outra conta, sendo o contrário verdadeiro. Assim, pela lógica contábil, o saldo das contas deve ser zero. Sistematizando: BP = TC + CC + CF = 0 Conforme Silva e Carvalho (2003): “no balanço de pagamento, o que garante essa igualdade são os capitais compensatórios, compostos de reservas, empréstimos de regularização do FMI e atrasados”. 203 ECONOMIA O balanço de pagamentos apresenta a seguinte estrutura: Quadro 5 – Estrutura do balanço de pagamentos Balanço de pagamentos A Balança comercial (mercadorias) Importações FOB (débito) Exportações FOB (crédito) B Balança de serviços (saldos decontas: podem apresentar tanto débitos como créditos) Viagens internacionais (turismo, negócios), transportes (fretes), seguros, rendas de capitais (juros, dividendos e lucros), serviços diversos (royalties, assistência técnica, aluguéis de equipamentos), serviços governamentais (embaixadas, consulados, representações no exterior) C Balança de rendas (remuneração de fatores) Renda primária (emolumentos obtidos através de investimento e trabalho): salário, lucros, dividendos e juros Renda secundária: transferência de recursos sem a exigência de contrapartida, por exemplo, o envio de donativos para outro país D Conta capital: (recursos para pagamentos de bens não financeiros não produzidos) Royalties, passes de atletas, direitos autorais E Conta financeira Investimento direto estrangeiro (IDE) e investimento direto no país (IDP) Reinvestimentos (reinvestimentos de empresas já instaladas no país) Empréstimos e financiamentos (financiamentos de bancos estrangeiros de curto e longo prazo) Investimentos em ativos financeiros (ações, títulos e debêntures, por exemplo) F Erros e omissões Saldo da conta financeira (‑) saldo de transações correntes (‑) saldo da conta capital = erros e omissões Adaptado de: Vasconcellos (2001). Saiba mais Desde 2015, o Banco central sistematiza as informações do balanço de pagamentos de acordo com a mais nova edição do Manual de Balanço de Pagamentos e Posição Internacional do Fundo Monetário Internacional (FMI), o BPM 6. Para ter mais informações sobre isso, acesse: BANCO CENTRAL DO BRASIL. Perguntas frequentes (FAQs) sobre a conversão de BPM5 para BPM6. [s.d.]c. Disponível em: https://www.bcb.gov. br/ftp/infecon/faqbpm6p.pdf. Acesso em: 9 jul. 2020. 204 Unidade III Na tabela a seguir é possível acompanhar os últimos resultados do balanço de pagamento do Brasil: Tabela 26 Data Transações correntes Conta capital Conta financeira Erros e omissões 2010 ‑79.014 242 ‑69.950 8.823 2011 ‑76.288 256 ‑80.512 ‑4.480 2012 ‑83.800 208 ‑83.040 552 2013 ‑79.792 322 ‑78.626 844 2014 ‑101.431 232 ‑96.587 4.613 2015 ‑54.472 461 ‑56.152 ‑2.141 2016 ‑24.230 274 ‑15.713 8.243 2017 ‑15.015 379 ‑9.926 4.709 2018 ‑41.540 440 ‑42.422 ‑1.322 2019 ‑49.452 369 ‑51.511 ‑2.428 8.8 O papel das instituições multilaterais Entre 1942 e 1944, em Bretton Woods, foi realizada uma conferência que reuniu os países aliados contra o eixo fascista. Seu objetivo era a estabilização econômica e o alcance do pleno emprego. Várias propostas foram apresentadas, porém, as únicas levadas realmente em consideração foram as britânicas, desenvolvidas por John Maynard Keynes, e as dos Estados Unidos, apresentadas por Harry Dexter White. Era necessário que se criasse um sistema que superasse as deficiências do padrão‑ouro e do câmbio livre, sendo que a crítica mais acirrada quanto ao padrão‑ouro vinha da Inglaterra e de Keynes (MODESTO, 2013). 8.9 A Conferência de Bretton Woods e suas instituições Para Keynes, o padrão‑ouro criava problemas fundamentais. Ele acreditava que uma economia em crescimento necessitava de expansão monetária, a fim de que se pudesse fazer frente a esse maior volume de produtos, não pressionando os juros para cima e/ou os preços para baixo. No padrão‑ouro, a disponibilidade de moeda dependia de um fator exógeno que, no caso, era a disponibilidade de ouro. Caso o ouro fosse escasso, poderia não haver moeda suficiente para que se realizassem as transações normais dessa economia. Uma forma de se combater esse problema era o aumento na taxa de juros, de modo a atrair ouro de outros países; essa política, entretanto, não era prejudicial apenas para os outros países (que, de certa forma, agem da mesma forma), mas também para o próprio país que havia adotado tal medida, dado que um aumento na taxa de juros prejudicava o consumo e o investimento interno. O outro problema era o “ajuste assimétrico”. Para Keynes, quando uma economia crescia mais do que as outras, ela incorria em problemas de déficit comercial. Afinal, quando cresce a renda de um país, também cresce a necessidade de se importar bens, enquanto as exportações dependem da renda de outros países. Sendo assim, segundo Keynes, se um país crescesse mais do que os outros, a demanda por importação cresceria mais depressa que a possibilidade de exportar; logo, haveria o problema de como 205 ECONOMIA se pagar pela diferença. Havia duas soluções nesse caso: ou o país se endividava (o que não podia ser feito infinitamente) para cobrir os déficits, ou restringia as importações, o que era prejudicial para todos os envolvidos. Por exemplo: o país A importava do país B; quando o país A criava impedimentos aos produtos importados do país B, ele reduzia a renda do país B; com uma menor renda, o país B importaria menos produtos, que poderiam ser, no caso, os produtos do país A. Já o câmbio livre (que foi adotado por praticamente todos os países no início da década de 1930) consistia na estratégia de que cada país determinasse a taxa de câmbio que julgasse a correta para cada momento. O problema é que em momentos de depressão e desemprego, os países desvalorizavam a sua moeda com o intuito de elevar as suas exportações líquidas, transferindo assim os seus problemas para os seus vizinhos. Com o tempo, esse tipo de política foi perdendo a eficácia, pois quando um país desvalorizava a sua moeda, o outro reagia da mesma forma a fim de se proteger de tal medida. Por outro lado, a proposta americana era muito mais modesta, pois a grande preocupação dos EUA no pós‑guerra era a adoção de práticas restritivas quanto ao comércio internacional. O Plano White previa a criação de uma instituição com um papel duplo. O primeiro seria o de funcionar como um fórum: esse fórum avaliaria se poderiam ou não ser feitos os ajustes nas taxas de câmbio entre os países‑membros, sendo esses ajustes permitidos quando o país provasse que a sua economia havia passado por mudanças fundamentais, tornando necessários ajustes na taxa. Esse mecanismo eliminaria as desvalorizações oportunistas, cujo objetivo era o de transferir problemas para os seus vizinhos. A segunda função era a de financiar o ajuste de curto prazo do balanço de pagamentos, de modo que esse desajuste não causasse pressão sobre a taxa de câmbio. O tesouro seria composto pelas moedas dos países‑membros, em quantidades proporcionais à importância dessas moedas no comércio e na economia internacional. Assim, um país poderia recorrer à instituição comprando a moeda que precisasse para ajustar a sua economia. Segundo Modesto (2013), é importante notar que o Plano Keynes estava preocupado com as crises de balanço de pagamentos causadas por fugas de capitais, pois ele tinha convicção de que algumas classes de capitais desestabilizavam a economia internacional e doméstica, sem trazer nenhum beneficio. O Plano White, em contrapartida, se preocupava com o funcionamento do comércio internacional. A instituição prevista pelo Plano White não tinha condições de criar liquidez internacional; esta dependia de um estoque definido de moedas nacionais e, sendo assim, a liquidez internacional dependeria da política monetária dos países que emitissem essas moedas internacionalmente aceitas. Logo, haveria um limite para a ajuda financeira dessa instituição, a qual, alías, não poderia promover o ajuste expansivo proposto pelo Plano Keynes, pois não teria controle sobre as reservas dos países‑membros e nem a autoridade para coagir países superavitários a expandir a sua demanda. Como não podia deixar de ser, o Plano White foi o vencedor e, então, foram criados o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial (CARVALHO, 2004). Temos então que as medidas adotadas foram as do Plano White, e não as do Plano Keynes. Ainda como parte do efeito dominó ocasionado pela crise de 1929 e envoltos na comoção causada pela Segunda Guerra Mundial, os países industrializados estabeleceram um conjunto de normas para a paridade cambial, tornandoas moedas indexadas ao dólar, sendo este ancorado na conversibilidade ao ouro. Data dessa época o surgimento do Banco Internacional de Reconstrução de Desenvolvimento (Bird), constituinte do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), como mais um resultado de Bretton Woods. 206 Unidade III Conforme Manzalli e Gomes (2006, p. 89‑90), [...] o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional são dois importantes organismos criados para promover a coordenação de políticas entre países, notadamente na área financeira, mas muitas vezes tal coordenação ocorre em detrimento de interesses de sociedades. Com o avanço do comércio de longa distância na Europa, surge certa tendência de que as coordenações financeiras, predominantemente administradas por famílias dos comerciantes locais, passem a desempenhar um papel primordial na definição dos interesses políticos e econômicos de diversos grupos no continente. Com o tempo, o desenvolvimento do comércio privado de moedas e instrumentos financeiros. De acordo com Sandroni (1996), a criação do FMI em 1944 foi impulsionada pela tentativa de promover a cooperação monetária entre todos os países do mundo. Essa iniciativa partiu da necessidade de equilibrar paridades monetárias justas entre diferentes moedas, evitando desvalorizações concorrenciais e formando um grande fundo com recursos dos países‑membros. Esses recursos seriam utilizados em favor de países que encontrassem dificuldades nos pagamentos internacionais, principalmente aqueles que apresentavam recorrentes déficits em sua conta de transações correntes. Uma das principais funções do Fundo era regular as paridades das moedas. Tinha o objetivo essencial de presidir um regime internacional de câmbio praticamente fixo, promovendo a cooperação monetária internacional mediante uma instituição permanente que servisse de mecanismo para consulta e colaboração sobre problemas monetários. Em seu instrumento constitutivo estabeleceu‑se, ainda, que recursos financeiros do Fundo seriam oferecidos temporariamente aos países‑membros para proporcionar‑lhes oportunidades de corrigir desequilíbrios no seu balanço de pagamentos, sem recorrer a desvalorizações cambiais, consideradas destrutivas da prosperidade internacional (MANZALLI; GOMES, 2006, p. 96). Já o Banco Mundial, instituição financeira internacional ligada à Organização das Nações Unidas (ONU) e também criada em 1944, tinha como propósito o financiamento de projetos de recuperação e de promoção de desenvolvimento econômico dos países atingidos pela guerra (SANDRONI, 1996). Figura 61 – Edifício sede da ONU, em Nova York 207 ECONOMIA Na prática, esse papel ficou a cargo do chamado Plano Marshall, e o banco passou a lidar de modo crescente com o tema do desenvolvimento econômico e a atuar, sobretudo, nos países subdesenvolvidos (BAUMANN, 2004). Formalmente, seu intuito era canalizar capital para investimentos que permitissem elevar a produtividade das empresas, o padrão de vida das pessoas e as condições de trabalho nos países‑membros. Assim, a preocupação primordial do Banco Mundial seria aquela ligada à melhoria das condições de vida da população, quer dizer, às questões de cunho qualitativo (e não quantitativo‑ financeiro, a exemplo do FMI). Conforme salientam Manzalli e Gomes (2006), o objetivo básico do Banco Mundial era o de auxiliar a reconstrução e o desenvolvimento de territórios dos países‑membros atingidos pela destruição da guerra. Esse objetivo deveria ser atendido por meio de atividades dedicadas a: • Prover capital para fins produtivos. • Promover o investimento externo privado. • Complementar o investimento privado mediante o fornecimento de capital para fins produtivos. • Promover o crescimento equilibrado de longo prazo do comércio internacional. • Manter o equilíbrio nos balanços de pagamento mediante o incentivo internacional a investimentos para o desenvolvimento de recursos produtivos. Os resultados das políticas keynesianas logo se fariam sentir e a economia americana viveria o seu período de maior riqueza e crescimento. 8.10 A globalização como fenômeno multidimensional Já na segunda metade do século XIX, a economia dos países então desenvolvidos atinge a maturidade e, nos tempos e nos padrões de um capitalismo industrial ainda caracterizado por mercados dominados por empresas de porte relativamente pequeno, alcança também um grau elevado de evolução tecnológica. Importantes mudanças se verificam nos setores de siderurgia, metalurgia, mecânica pesada e ferrovias, e com a capacidade produtiva crescente nessas indústrias, aumenta a necessidade de mercados para o escoamento da produção e a necessidade de matérias‑primas baratas, fazendo com que os países desenvolvidos fornecessem aos países subdesenvolvidos estradas de ferro e pequeno equipamento industrial. Portanto, as economias capitalistas mais avançadas conseguiam exportar os processos que haviam sido o eixo principal de sua expansão e modernizavam a extração de matéria‑prima via exploração intensiva (DOWBOR, 1990). Retomando um pouco das teorias das vantagens comparativas de Smith e Ricardo, de que cada país deveria se especializar na produção de mercadorias com maiores vantagens naturais ou adquiridas na produção, e ainda as ideias dos mercantilistas, de que o comércio exterior era visto como uma maneira de obter mais metais preciosos, conjugadas com as reformulações de Heckscher‑Ohlin quanto à dotação de fatores, estas posições já davam base para um processo de internacionalização da atividade econômica, como se têm discutido desde a década de 1990, porque quebravam barreiras e abriam 208 Unidade III novos mercados em busca de maior lucratividade. Além disso, Marx identificava no comércio exterior uma influência compensatória contra a tendência à queda da taxa de lucro, Sweezy dava importância à exportação de capitais e Luxemburg dizia que as economias capitalistas necessitavam de economias não capitalistas para sua expansão. Nesse sentido, a tendência à internacionalização da economia é uma ideia e um fato antigo, e conforme as economias se especializam em determinados produtos e trocam estes produtos entre si, conseguem atingir um nível mais elevado de produtividade, de consumo e de acumulação de capital, ainda que com distribuição não homogênea entre os países envolvidos no processo. Deste modo, o conceito de internacionalização está ligado à possibilidade de comércio entre países facilitado pelo desenvolvimento dos meios de transporte (BAUMANN, 1996), resultando na interdependência de uma economia com relação a outras, no que toca a mercados. Já o conceito de globalização é mais abrangente, e em certo sentido mais próximo da visão marxista, pois em vez de enfocar o relacionamento comercial entre países através de trocas de produtos, se refere a fluxos, entre as nações, de fatores de produção, processos produtivos e produtos, acompanhados de fluxos de informação (FIGUEIREDO, 1993). Para Baumann (1996), o aspecto que diferencia o processo de globalização do de internacionalização é a intensidade dos acontecimentos, bem como seus efeitos, que têm caráter de constante ampliação e afetam todos os agentes econômicos dos mais diversos países. 8.11 Diferentes conceitos de globalização De acordo com os ensinamentos de Chesnais (1996) e de Mattei (1997), o termo globalização surgiu no início dos anos 1980 nas escolas americanas de administração de empresas, dando significado a uma Nova Ordem Mundial Única, representando um processo de interdependência e interação entre países e povos no que diz respeito às relações produtivas, comerciais, financeiras, tecnológicas e culturais e ainda interligando o mundo através da participação dos meios de comunicação. Para Batista Jr. (1997b, p. 159), trata‑se de um termo carregado de ideologia e que invadiu o discurso político e cotidiano com muita facilidade e conveniência por sugerir um “processo de unificação do mundo, de formatação deuma única sociedade mundial, sem conflitos ou fronteiras”. Para Regina Gadelha (1997, p. 256), “globalização é uma velha palavra, com a qual se procura dar nova roupagem a velhos processos estruturais da expansão do capitalismo em escala mundial”, pois transportando‑nos ao passado, esse processo já ocorre sob o nome de imperialismo, conforme considerado anteriormente por Rosa Luxemburg. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Batista Jr. (1997a, p. 85; 1997b, p. 162) afirma que globalização é a palavra da moda para designar um fenômeno muito antigo, como as grandes navegações do final do século XV impulsionadas por Portugal e Espanha. Para ele, esse fato já dá indícios de um mercado mundial. Desta forma, sendo uma palavra da moda, deveria estar sempre acompanhada de aspas, dada a “carga de fantasia e mitologia” que transforma o termo em algo enganoso e numa “falsa novidade”. 209 ECONOMIA Assim, a palavra globalização tem sido utilizada pelos governantes de países subdesenvolvidos como uma “cortina de fumaça”, uma espécie de desculpa para tudo o que acontece de bom ou de ruim em um país, no intuito de paralisar o pensamento crítico dos países periféricos, porque “governos fracos e omissos servem‑se desta retórica para isentar‑se da responsabilidade, transferindo‑a para um fenômeno impessoal e vago, fora do controle nacional”. Para Aldaiza Sposati (1997, p. 43‑4), o processo de globalização não é um processo uniforme, pois não atinge todos os cidadãos da mesma forma e com a mesma intensidade, já que o processo procura “universalizar a diferenciação”. Quando o processo avança no sentido de horizontalizar valores, trata‑se de um processo positivo, mas tem‑se mostrado um processo de verticalização de valores, “numa forma de hierarquização de cidadãos e dominação da elite”. Dowbor (1995, p. 4) tem posição assemelhada à de Sposati por também acreditar que a globalização é um processo hierarquizado, pois aproveitam‑se disso cerca de 500 a 600 empresas transnacionais que comandam 25% da atividade econômica mundial, controlando 80‑90% das inovações tecnológicas, principalmente na chamada tríade. Sendo assim, o processo de globalização também não é geral, pois “se olharmos nosso cotidiano, desde a casa onde moramos, a escola de nossos filhos, o médico da família, o local de trabalho, até os hortifrutigranjeiros da nossa alimentação cotidiana, trata‑se de atividades do espaço local e não global”. Diante disso, seria necessário então mudar a ideia de que tudo se globalizou. Para Franco (1996), o processo de globalização nada mais é do que a representação do maior crescimento dos fluxos comerciais de produtos e do avanço dos investimentos externos diretos, em comparação ao crescimento produtivo. Para ele, a capacidade produtiva não avança com a mesma intensidade que avança o comércio internacional de produtos e finanças e, portanto, o processo de globalização resume‑se num crescimento da propensão a exportar e a importar. Observação A chamada tríade, ou mundo triádico, é composta por Estados Unidos, Japão e Alemanha. Dando outras conotações para o conceito de globalização, Otavio Ianni (1997, p. 15‑6) traz para discussão conceitos inovadores e nos remete a diferentes pontos de vista sob os aspectos sociais, econômicos, políticos, culturais e até religiosos. Para ele, na época da globalização, “o mundo começou a ser taquigrafado como ‘aldeia global’, ‘fábrica global’, ‘terra pátria’, ‘nave espacial’, ‘nova babel’, entre outras expressões que ele chama de ‘metáforas da globalização’ que correspondem às conquistas e dilemas da modernidade e ‘expressam inquietações sobre o presente e ilusões sobre o futuro’”. Segundo Ianni (1997, p. 13), A descoberta de que a Terra se tornou mundo, de que o globo não é mais apenas uma figura astronômica, e sim o território no qual todos encontram‑ se relacionados e atrelados, diferenciados e antagônicos – essa descoberta surpreende, encanta e atemoriza. Trata‑se de uma ruptura drástica nos 210 Unidade III modos de ser, sentir, agir, pensar e fabular. Um evento heurístico de amplas proporções, abalando não só as convicções, mas também as visões de mundo. Ao mesmo tempo em que a inexistência de barreiras geográficas ou políticas entre os países reverbera na mente das pessoas, outros significados são também atribuídos à “globalização”, e isso de tal forma ocorre que podemos encontrar o termo sendo utilizado tanto para descrever a hegemonia do hambúrguer no cardápio alimentar quanto para representar a comunicação via internet, rápida, simultânea e integradora. Na verdade, globalização significa que o termo acabou por resultar quase vazio de sentido, e para traçar (ao menos) algumas fronteiras demarcadoras, é necessário que um esforço especial seja feito para compreendermos seus conceitos, contextualizados no tempo e na história, entendidos a partir das diferentes correntes ideológicas daqueles que vêm estudando o fenômeno. Afinal, Desde que o capitalismo desenvolveu‑se na Europa, apresentou sempre conotações internacionais, multinacionais, transnacionais e mundiais, desenvolvidas no interior da acumulação originária, do mercantilismo, do colonialismo, do imperialismo, da dependência e da interdependência (IANNI, 1997, p. 14). De maneira simplificada, o termo, que passou a ser utilizado na década de 1980, comparece no vocabulário acadêmico ou popular sob duas principais formas: ou no sentido positivo, relacionado ao processo de integração da economia mundial, ou normativo, prescrevendo e sugerindo estratégias de desenvolvimento baseadas na hegemonia política do capital internacional. Segundo Prado (2003, p. 2), Como todo conceito imperfeitamente definido, globalização significa coisas distintas para diferentes pessoas. Pode‑se, no entanto, perceber quatro linhas básicas de interpretação do fenômeno: (I) globalização como uma época histórica; (II) globalização como um fenômeno sociológico de compressão do espaço e tempo; (III) globalização como hegemonia dos valores liberais; (IV) globalização como fenômeno socioeconômico. Vejamos, portanto, como cada um desses pontos de vista contribui para a compreensão do fenômeno da globalização. 8.11.1 A perspectiva histórica Do ponto de vista histórico, o termo faz referência a vários e diferentes eventos. Para alguns historiadores, globalização se refere ao período iniciado com o término da Guerra Fria, sendo seu ato fundador a queda do muro de Berlim e a capitulação final do socialismo à superioridade do capitalismo ocidental. Outros preferem situá‑la na década de 1950, quando, após o término da Segunda Guerra, os Estados Unidos iniciaram sucessivas intervenções militares na Ásia, na América Central e no Oriente Médio, todas elas com o objetivo de defender os interesses do capital ocidental. 211 ECONOMIA Lembrete Lembre‑se de que a Guerra Fria marcou um estado de beligerância e de confrontos políticos entre Estados Unidos e União Soviética que teve início após o final da Segunda Guerra Mundial, quando acordos assinados entre os países envolvidos no conflito armado dividiram o mundo em duas grandes áreas de influência. Observação Observe que, quanto à discussão do fim do socialismo e à prosperidade do capitalismo ocidental, alguns autores fazem questão de enfatizar que tal socialismo do período nada mais era do que um outro formato do capitalismo, daquela vez sob forma estatal. Outros datam o processo como tendo início no século XVI, com as grandes navegações e a ação colonizadora da Europa na América, na África e na Ásia. A razão pela qual se defende a descoberta do Novo Mundo como o primeiro patamar do que seria a globalização é que, a partir daí, ter‑se‑ia criado um sistema econômico de interferência mundial, com importação e exportação de escravos e produtos primários, e transformador da vida tanto das colônias como dos países compradores e portadores de tecnologia. Essa transformação seria impulsionada depois pela Revolução Industrial,que, mecanizando os meios de produção e barateando os produtos finais, teria obrigado os países proprietários dos meios de produção a procurar mercados consumidores além dos que já haviam conquistado em seus próprios países. Na época, o desenvolvimento da economia dependia muito da expansão geográfica dos fluxos de transporte, criando‑se através do comércio marítimo uma rede que permitia transformar em consumidor qualquer habitante, mesmo que de uma região isolada. A dicotomia entre os países que detinham novas tecnologias em mãos e aqueles que só consumiam o produto final da modernização foi se reforçando, ao passo que a onda de internacionalização motivada pela Revolução Industrial foi se alastrando pelo mundo. 8.11.2 A perspectiva da compressão do espaço e do tempo No que diz respeito à interpretação relativa à compressão do espaço e do tempo, há também diferentes leituras: tanto o fenômeno pode ser explicado a partir da dissolução das fronteiras geográficas (evidenciada pela formação de grandes blocos tais como a União Europeia) como pela criação de um espaço global, comum e virtual. A velocidade da informação, disseminada via web, teria finalmente possibilitado o surgimento da grande aldeia global, nave espacial em que todos a bordo caminhariam 212 Unidade III rumo a um espaço sem fronteiras, verdadeira Torre de Babel redimida dos pecados, romântica e utópica. Essa leitura de mundo (imersa na crença do progresso representado pelos avanços tecnológicos da informática) teria, em 2001, sua mais completa tradução e receberia também o seu maior golpe: perto das oito horas da manhã do dia 11 de setembro, em Nova York, os ataques às Torres Gêmeas reuniriam todos em frente à televisão, acompanhando os trágicos eventos que finalmente marcariam o início do século XXI. 8.11.3 A perspectiva da ideologia Do ponto de vista ideológico, globalização também pode significar a hegemonia dos valores liberais. Essa interpretação consideraria o colapso de Bretton Woods e as dificuldades do capital internacional após os choques do petróleo em 1973 e 1979 como demarcadores da formalização de uma forma de pensar o mundo distante do keynesianismo e do monetarismo, uma forma alternativa que garantiria o crescimento, o desenvolvimento e a distribuição da riqueza. Dignos representantes dessa maneira de interpretar a realidade, Ronald Reagan (nos Estados Unidos) e Margaret Thatcher (na Inglaterra) se encarregariam de propagar o advento do neoliberalismo triunfante, continuação e reinterpretação do liberalismo clássico: se antes as forças de mercado deveriam se libertar das garras da Igreja e dos resquícios do sistema feudal, agora deveriam se colocar contra qualquer coisa que se opusesse à mão invisível dos agentes econômicos. Enfim, a vitória final da revolução burguesa, como resultado de um acordo das elites econômicas globais libertas de quaisquer entraves para consolidação hegemônica dos interesses do capital, foi simbolizada pelo Consenso de Washington. Em resumo, era o fim da história, se a considerarmos como a sucessão de embates entre o capital e o trabalho. 8.11.4 A perspectiva econômica No que se refere à interpretação socioeconômica, o termo “globalização” está relacionado à atuação das empresas multinacionais e à internacionalização da economia mundial. Dessa forma, processos de produção cada vez mais rápidos e dinâmicos, bem como a repartição internacional das etapas da produção entre diferentes países, dariam ao mundo uma nova face: o pós‑fordismo seria o responsável pela consolidação de uma economia baseada em processos integrados, um único e pulsante mercado global em que o capital, as mercadorias, os recursos e as pessoas circulariam livremente. Para Prado (2003, p. 4), a globalização então poderia ser definida como A interação de três processos distintos, que têm ocorrido ao longo dos últimos 20 anos, e que afetam as dimensões financeira, produtiva‑real, comercial e tecnológica das relações econômicas internacionais. Estes processos são: a expansão extraordinária dos fluxos internacionais de bens, serviços e capitais; o acirramento da concorrência nos mercados internacionais; e a maior integração entre os sistemas econômicos nacionais. Para efeito desta disciplina, vamos considerar a globalização um processo que se dá a partir da aceleração de intercâmbios e fluxos entre os países do mundo, nos planos econômico, político 213 ECONOMIA e social. Mais: dentre todos os planos sob os quais se apresenta, o econômico é o que nos interessa, especialmente no que reverbera em outros campos. Assim, a produção de mercadorias em determinados países significaria mais do que apenas a produção local, uma vez que os locais de produção escolhidos pelas empresas poderiam ser (e costumam ser) países diferentes daqueles nos quais está instalada sua sede principal, acarretando o que ficou denominado de mundialização da produção. Também é econômico o plano gerador da abertura nos países subdesenvolvidos que precisam do capital estrangeiro para se desenvolver e da maior participação do capital internacional, advinda de estratégias financeiras (em especial dos países desenvolvidos). É o plano que põe em xeque estruturas e costumes construídos e mantidos há muito, sobrepondo‑se a eles e, algumas vezes, comprometendo a identidade cultural de muitos povos. Assim, a globalização não significa apenas um processo de expansão dos mercados e de aceleração dos fluxos econômicos entre as fronteiras nacionais. Junto consigo, como um de seus efeitos, surge uma consciência de que valores morais e sociais fundamentais devem ser estendidos para todos os povos (BARBOSA, 2006, p. 12). Utilizando‑se da contribuição de Fiori (apud MATTEI, 1997, p. 66), o conceito de globalização é algo que ainda está em construção, pois procura refletir uma nova formatação do desenvolvimento do sistema capitalista, dado o avanço do processo de acumulação de capital, tanto no âmbito produtivo quanto no financeiro e de sua internacionalização. Para efeito deste estudo, e após análise das contribuições anteriormente apresentadas, temos que o processo de internacionalização diz respeito à capacidade de os países manterem relações comerciais entre si, seja no âmbito da produção, no das informações ou no financeiro, à medida que se dá o desenvolvimento do capitalismo e, portanto, da concorrência, tornando‑se necessária a manutenção de boas relações internacionais. Já o processo de globalização é aqui entendido como um aprofundamento do processo de internacionalização. Dizemos isso pois as relações internacionais são um processo extremamente antigo, mas agora, com o desenvolvimento de um maior padrão tecnológico e concorrencial, bem como da facilidade advinda dos meios de comunicação e transportes, o processo de globalização trata‑se, portanto, de uma maior intensidade na interdependência entre economias. Sendo assim, não encaramos a chamada globalização como processo novo e nem como fenômeno, em se tratando de produtos, processos produtivos e informações. Tratar‑se‑ia por fenômeno, ou por processo novo, a capacidade e intensidade nos fluxos de capital em sua forma monetária, a chamada indústria das finanças, com sua valorização autônoma, mas nesse aspecto aplicaríamos o conceito de mundialização. Reforçando nosso argumento, dentro do conceito de internacionalização, estaria a capacidade adquirida pelos países de manterem trocas de bens de capital e de consumo, de processos produtivos, de informações e de capitais no sentido financeiro. No conceito de globalização, estaria apenas a noção da maior intensidade, nos dias de hoje, de tais trocas, com exceção da última, quais sejam, as trocas 214 Unidade III monetárias, que se inserem no conceito de mundialização, ligado aos investimentos externos diretos e à valorização autônoma do capital, em sua forma especulativa. Dentro desse contexto, a realidade alheia nunca esteve tão próxima da realidade de qualquer cidadãodo mundo, se ele tiver acesso aos meios de comunicação através dos quais se dá a disseminação dos acontecimentos mundiais. De fato, as interligações das empresas, das aplicações financeiras, das exposições da mídia e do fluxo de pessoas nunca afetaram tanto as pessoas, e os reflexos dos resultados da globalização podem ser observados em quaisquer países. A questão é a desigualdade com que isso se dá, podendo‑se fazer uma divisão nítida entre países cuja política interna afeta com mais peso as políticas de outros países e aqueles que são geralmente mais afetados, fazendo desses últimos dignos da colocação de marginalizados da produção intelectual, política e financeira internacional. Barbosa (2006) ainda lembra: é importante ressaltar que o processo de globalização nunca foi inevitável; por mais que o isolamento de qualquer nação seja impossível, também é improvável a aplicação de uma nova ordem global, feito que a globalização não foi ou é um processo homogêneo e de igual acesso para todos. Para Stiglitz (2007, p. 62), A grande esperança da globalização é que ela elevará os padrões de vida em todo o mundo: dará aos países pobres acesso aos mercados externos para que possam vender seus produtos, permitirá a entrada de investimentos estrangeiros que fabricarão novos produtos a preços menores e abrirá as fronteiras, de tal modo que as pessoas possam viajar para o exterior a fim de estudar, trabalhar e mandar para a casa dinheiro para ajudar suas famílias e financiar novos negócios. Esse seria o projeto de globalização, e o mal‑estar presente no imaginário dos políticos, jornalistas e da população em geral encontraria explicação não na globalização em si, mas no seu mau gerenciamento. Em resumo, a onda neoliberal – hoje caracterizada pelo maior alcance do capital estrangeiro, pela política de liberalismo econômico e incentivo à privatização e pelo crescente surgimento de novas tecnologias – apresentaria variações em termos de aplicabilidade nos países inseridos no contexto de globalização, tornando‑os suscetíveis a crises, à elevação dos juros, ao desemprego e a outros efeitos negativos das políticas da conjuntura mundial. Isso explicaria as críticas que cercam as práticas globalizadoras e as tentativas de controle da economia por parte dos governos não tão adeptos do excesso de liberdade atribuído ao capital do mercado financeiro. Internacionalização, mundialização, universalização, ocidentalização. São vários os significados, ora complementares, ora opostos. “Faz tempo que a reflexão e a imaginação sentem‑se desafiadas para taquigrafar o que poderia ser a globalização do mundo. Essa é uma busca antiga, iniciada há muito tempo, continuando no presente, seguindo pelo futuro. Não termina nunca” (IANNI, 1997, p. 23). Baumann (1996, p. 34) sustenta que a dificuldade em conceituar o que realmente designa o processo de globalização está na variedade de significados que têm sido atribuídos às transformações, já que trata‑se de um processo que impacta diversas áreas da economia. Para ele, o start para a globalização ocorreu através de alguns acontecimentos e condições favoráveis ao crescimento do comércio internacional pós‑Segunda Guerra Mundial.