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LEI DO DEPOIMENTO ESPECIAL ANOTADA E INTERPRETADA FLÁVIO SCHMIDT JUIZ DE DIREITO EM MINAS GERAIS DOCENTE DA ESCOLA JUDICIAL DES. EDÉSIO FERNANDES (TJMG), ENFAM E CNJ LEI DO DEPOIMENTO ESPECIAL ANOTADA E INTERPRETADA ARTIGO POR ARTIGO Lei do Depoimento Especial Anotada e Interpretada © Flávio Schmidt J. H. MIZUNO 2020 Revisão: José Silva Sobrinho Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG) C114c Schmidt, Flávio. Lei do depoimento especial anotada e interpretada / Flávio Schmidt. – Leme, SP: JH Mizuno, 2020. 429 p. : 17 x 24 cm ISBN 978-65-5526-052-6 1. Direito penal. 2. Depoimento especial. 3. Prova (Direito) – Brasil. I. Título. CDD 345.8105 Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422 Nos termos da lei que resguarda os direitos autorais, é expressamente proibida a reprodução total ou parcial destes textos, inclusive a produção de apostilas, de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive através de processos xerográficos, reprográficos, de fotocópia ou gravação. Qualquer reprodução, mesmo que não idêntica a este material, mas que caracterize similaridade confirmada judicialmente, também sujeitará seu responsável às sanções da legislação em vigor. A violação dos direitos autorais caracteriza-se como crime incurso no art. 184 do Código Penal, assim como na Lei n. 9.610, de 19.02.1998. O conteúdo da obra é de responsabilidade dos autores. Desta forma, quaisquer medidas judiciais ou extrajudiciais concernentes ao conteúdo serão de inteira responsabilidade dos autores. Todos os direitos desta edição reservados à JH MIZUNO Rua Benedito Zacariotto, 172 - Parque Alto das Palmeiras, Leme - SP, 13614-460 Correspondência: Av. 29 de Agosto, nº 90, Caixa Postal 501 - Centro, Leme - SP, 13610-210 Fone/Fax: (0XX19) 3571-0420 Visite nosso site: www.editorajhmizuno.com.br e-mail: atendimento@editorajhmizuno.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil http://www.editorajhmizuno.com.br/ mailto:atendimento@editorajhmizuno.com.br “Acima de tudo, agradeço a Deus, nosso maior protetor, e, depois, à minha devoção a Santo Expedito e a Maria do Carmo, uma “santa” bajeense que deixou sua história em São Borja, RS, e até hoje irradia seus encantos a todos que depositam nela sua fé, e que me acompanham desde o início dessa longa jornada de conquistas profissionais; sem eles nada seria possível” AGRADECIMENTOS Aos meus filhos Flávio Filho, Maria Rita e Stephanie, a quem dedico esta obra com muito carinho, por acreditar que nossas crianças e adolescentes são a razão do nosso viver, trazem alegria, são ingênuos e sinceros em seus atos e refletem o verdadeiro amor. A Pâmela, minha companheira incansável, paciente e dedicada, a quem devo tudo para conseguir atingir este objetivo. Aos meus irmãos, Maria da Graça Schmidt Disconzi e José Roberto Moura Schmidt, que neste momento vêm cuidando de nossa mãe, Rita Lauter de Moura, a quem eu amo, com carinho, afeto e muito amor, o que nos dá tranquilidade para, de longe, continuar a vida sabendo de suas dedicações para o seu bem-estar. Ao meu pai, Adão Schmidt (in memoriam), meu timoneiro, que tudo me ensinou, me deu sabedoria e conhecimento, deixou registrado seu amor ao próximo, o que incutiu em minha personalidade sempre olhar para o meu semelhante. Aos meus amigos, colegas e integrantes da Coordenadoria da Infância e Juventude de Minas Geais (COINJ) ALDINA DE CARVALHO SOARES, ANDREYA ALCÂNTARA FERREIRA CHAVES, RIZA APARECIDA NERY, AFRÂNIO JOSÉ FONSECA NARDY, ELISEU SILVA LEITE, SÉRGIO LUIZ MAIA, JOSÉ ROBERTO POIANI, MARCOS PADULA e RICARDO RODRIGUES LIMA, obrigado pelo carinho, companheirismo, dedicação e apoio para que pudesse deixar registrada esta obra às nossas crianças e adolescentes. À Desembargadora Valéria Rodrigues Queiroz, a quem eu devo o maior respeito. Pessoa inconfundível, dedicada à causa infantojuvenil, reconhecida nacionalmente pelo seu trabalho, incansável, e que nos deu oportunidade desde 2018 de estar com ela na Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Minas Gerais acreditando que poderíamos mudar, ainda mais, as condições das nossas crianças e adolescentes e, com passos largos, estamos vencendo desafios para atingir nossos objetivos em prol deles. À Escola Judicial Des. Edésio Fernandes, uma das instituições mais importantes deste país, que vem nos dando oportunidade de contribuir para a Magistratura Mineira com a qualificação dos magistrados do TJMG. Ao Conselho Nacional de Justiça, que acreditou em nosso trabalho e deu oportunidade de difundir nossa experiência em outros Estados. À Editora JH Mizuno que, mais uma vez, acreditou no nosso trabalho. Flávio Schmidt PREFÁCIO A Lei n. 13.431, de 04 de abril de 2017, estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, tendo por objetivo resguardá-los de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, abuso, crueldade e opressão. Para que se combata a revitimização ou vitimização secundária, esta Lei definiu as formas e os protocolos de ouvida de criança ou adolescente acerca da situação de violência (artigo 4º, parágrafo 1º), por meio de escuta especializada e depoimento especial. Em que momento se dará a escuta especializada? Qual é o órgão competente para realizar a escuta especializada, visto que ela só pode ser feita uma única vez? A quem compete realizar o depoimento especial? Trata-se de uma medida cautelar de antecipação de provas? Quais são os protocolos que os profissionais deverão utilizar? Se a ouvida da criança ou do adolescente não for realizada dentro dos protocolos específicos, em local apropriado e por profissional capacitado, acarretará nulidade processual? Verifica-se assim, que apesar de ter entrado em vigor no ano de 2018, ou seja, há 2 anos, esta Lei vem causando ainda diversas discussões e interpretações entre as instituições que compõe a Rede de Proteção(rede de Assistência Psicossocial e Sistemas de Saúde e Educação, Conselho Tutelar, Segurança Pública e de Justiça) e o Sistema de Justiça Juvenil, quais sejam: Polícia Militar, Polícia Civil, Estado, Município, Conselho Tutelar, Defensoria Pública, Ministério Público e Poder Judiciário, por ser uma lei complexa, principalmente no que tange às competências, modo e limitações de agir de cada uma dessas instituições. A Justiça infanto-juvenil por ser interdisciplinar é complexa na integração de ações únicas em prol das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Mas a nossa missão é única: a Proteção Integral dos direitos das crianças e dos adolescentes que estão sob a tutela do Estado brasileiro. A implementação de um atendimento integrado evitará o processo de revitimização da criança ou adolescente, que sempre acontece quando as vítimas acabam relatando a violência que sofreram inúmeras vezes, em diferentes serviços da rede de proteção. A revitimização ou vitimização secundária, além de trazer muito sofrimento à vítima, retarda a ajuda que precisa ser imediata e adequadas para crianças e adolescentes. Nesse sentido, todo o sistema de proteção deve desenvolver políticas integradas e coordenadas que visem garantir os direitos humanos da criança e do adolescente e resguardá-los de toda forma de violência. Esta obra inova pela abrangência de seu conteúdo, contribuindo com um conjunto de subsídios para orientação dos profissionais que atuam na promoção e na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, pois é com a nossa correta atuação que iremos blindar essas crianças das várias e repetidas agressões sofridas, acarretando traumas irreparáveis. De forma técnica e ética define as competências e atribuições de cada uma das instituições já citadas, demonstrando que o não- cumprimento desta Lei, acarretará, em tese, crime de violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada,inclusive quando gerar revitimização, previsto no inciso IV, do art. 4º, da Lei de Depoimento Especial. Esta publicação é fruto de uma vasta experiência profissional e acadêmica na área da infância e da juventude desse competente e comprometido autor, magistrado da Comarca de Muzambinho/MG, Membro da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e Instrutor desta matéria na Escola Nacional da Magistratura-Enfam e na Escola Judicial Edésio Fernandes do TJMG, sendo um dos pioneiros na implantação da Lei de Depoimento Especial em sua Comarca em 2009. Precisamos caminhar juntos em uma única direção, tendo como foco, exclusivamente, a promoção da proteção e da defesa das crianças e dos adolescentes. Para tanto, torna-se necessário que haja interdisciplinaridade nos nossos pensamentos e nas nossas ações. Desembargadora Valeria Rodrigues Queiroz Superintendente da Coordenadoria da Infância e da Juventude doTJMG APRESENTAÇÃO Era um sábado pela manhã de um dia ensolarado, pássaros cantando, clima ameno em uma cidade na Zona da Mata das Minas Gerais, Raul Soares, quando eu, juntamente com um dos grandes amigos que fiz naquela maravilhosa cidade, Reinaldo de Almeida César, jogávamos uma partida de tênis na AABB (Associação Atlética do Banco do Brasil). No decorrer desse lazer vi ao fundo da quadra uma linda menina, cabelos longos, a qual usava um vestido claro com saia ondulada, sentada no degrau da arquibancada. Não a vi se aproximar, apenas observei em certo momento da partida que ela estava sentada ao fundo da quadra, ao meu lado. Não falava nada, só observava, até que em certo momento começou a correr atrás das bolas de tênis e as entregava em minha mão ou as jogava para pegar. Eu agradecia e ela me retribuía com um sorriso de uma criança encantadora. Assim foi por longos minutos, até que não a vi mais. Continuamos a partida e fiquei com aquele rosto na memória, ainda durante o jogo, e ao final indaguei ao parceiro se a conhecia, tendo respondido ele que não. Acessando a área social do Clube perguntei às pessoas que lá se encontravam se tinham visto aquela menina, mas ninguém a vira. Queria falar com ela, agradecer e, quem sabe, oferecer a oportunidade de ela jogar, um dia, tênis, o que não era comum naquela cidade, prova esta que somente Reinaldo, seus filhos e eu jogávamos na cidade. Os dias se passaram… Fiquei com aquela imagem na memória, inclusive me indaguei algumas vezes: quem seria aquela menina? Será que queria me dizer alguma coisa? Não obtive respostas! No dia 18 de setembro de 2003, pela manhã, porém, uma notícia choca aquela pacata cidade de pouco mais de 20.000 habitantes. Uma mãe, sem qualquer motivo aparente, fazendo uso de uma faca, desfere inúmeros golpes contra uma criança de seis anos, o que ocasionou sua morte. Inexplicável! Uma surpresa me esperava: a vítima era aquela linda menina de cabelos longos que usava um vestido claro com saia ondulada, a qual estava sentada no degrau da arquibancada ao fundo da quadra de tênis e que me retribuía com um sorriso de uma criança encantadora cada vez que lhe agradecia pela bolinha entregue. E não foi só! Descobri da pior maneira possível a identidade dela. Após o fato, seu pai procurou-me para contar que ela teria dito a ele que me conheceu um dia praticando esporte. Não soube dizer que tipo de esporte, mas era na AABB, e queria dizer tantas coisas, mas não teve oportunidade. Quem sabe seria um pedido de socorro, narrar ou denunciar fatos os quais só uma criança ou adolescente vítima de violência tem conhecimento em seu íntimo e pode descrever. Confesso que me senti culpado. Indagava: “Meu Deus, por que não me deu a oportunidade de ouvi-la? Por que não fez parar aquela partida e escutá-la?” Quem sabe poderia ter evitado aquela tragédia! Nunca obtive respostas. Lembro que foi muito difícil redigir a sentença da mãe, que assim resultou escrita: “Distribuir Justiça, que nada mais é do que um ato de amor, e amor é fazer o que é preciso, de acordo com as circunstâncias, o momento, o clamor, a dor de quem sofre. O Livro dos Salmos (88, 11) nos ensina: ‘A Justiça é a obra do bom Juiz, a paz é a obra da Justiça.’ Neste momento em que me despojo da veste comum dos mortais para vestir a toga e proferir meu veredicto, sabedor e consciente da minha pequenez, olho para o céu e peço ao Criador Maior que me prepare e me eduque para ver e sentir que essa troca de roupagem não é uma simples troca comum do dia a dia, comum no final de uma tarde estafante de trabalho. Em verdade, toda vez que estou coberto da toga do Juiz, sinto uma aproximação maior de Deus. Renovo em mim um compromisso assumido diante da sociedade, mas acima de tudo, diante do meu Deus, fonte na qual confio e a minha vida a Ele entrego. Gibran Khalil Gibran já dizia que nossos filhos não são nossos filhos, mas sim, ânsia da vida. O Papa João XXIII, conhecido como bonachão, nos legou que gostaria de ter um coração de criança porque as criancinhas não guardam mágoa nem rancor e que o seu reino é o céu. E neste instante pergunto-me: ‘onde estão J. e J. V.?’ Outra resposta não pode ser – ao lado do Pai Maior, protegidos sob Seu Manto Sagrado. Confesso que a sentença ora lançada muito me fez refletir, talvez por acreditar que a condição do homem é vidente – viver ou morrer – e nesta antítese passamos por momentos inexplicáveis, talvez como condição essencial e fundamental para provar a nós mesmos da nossa importância nesta vida que não é eterna, mas sim passageira, eis que por certo outra melhor virá. Em especial em minha vida, hoje, muito mais que antes do dia 14 de junho do corrente ano, data do nascimento da minha amada filha, esse coração que bomba em meu peito vê esse julgamento com outros olhos, não de parcialidade, mas de sentimento, de amor, carinho, afeto, dedicação, devoção… Busco encontrar explicação, justificativa para o comportamento de A. M., e não da ré, conforme é chamada no processo penal. Entretanto, de início tudo é vão. Mas continuo a insistir e chegarei ao final do meu simples convencimento com uma justificativa para tal comportamento. Examinando os autos em todo o seu conteúdo, quer pelo interrogatório da ré, quer pelas provas testemunhais, nada há para justificar. A., após devolver sua filha a Deus, de forma anormal – matando-a –, não sabe explicar o que aconteceu. Entretanto, volto a indagar: ‘Até que ponto, meu Deus, uma mãe que sempre teve comportamento calmo, tranquilo e equilibrado, exceto alguns fatos isolados em sua vida, que nunca ultrapassaram os atos corretivos na criação de sua filha, é capaz de cometer ato tão violento e deprimente?!’ Estou certo que cada profissional em sua área de atuação dará uma explicação. Entretanto, mesmo não querendo acreditar, mas fazendo um mergulho profundo no mundo de A., sou obrigado a crer que, além do exame de insanidade mental, dando-lhe como inimputável, naquele fatídico dia estava ela apossada de espíritos malignos. Revivendo a instrução processual como um filme fotográfico, vejo A., fria e distante de todos e de tudo. Nem uma palavra, nem um gesto, e sequer lágrimas. Mais parecia um ser ausente com um corpo presente. As pessoas, por meio de comentários na cidade, disseram que a ré era frequentadora da Igreja, exceto nos últimos dias, quando dormiu as noites no Cemitério da cidade. E aí, outra indagação: ‘Até que ponto a fé chega ao fanatismo, e se chega, será porque o Arquiteto do Universo dá tal permissão?’ A verdade é que não sei. São mistérios que nos envolvem desde a criação do Mundo. Contudo, de forma lógica, há que se concluir que tudo o que excede é prejudicial ao ser humano. Para o juiz criminal não basta avaliar um fato, o que já não é pouco. Incumbe-lhe penetrar no mais íntimo da alma, resolver os profundos e obscuros caminhos da mente, por vezes não apenas sombrios, mas tenebrosos. Importa ao juiz conhecer o temperamento, o caráter, as emoções,as paixões e tudo aquilo que possa influir na inteligência e na vontade, e mesmo assim não pode afirmar estar seguro de haver conhecido o homem. Gordon W. Allport já dizia: ‘ninguém pode compreender qualquer outra pessoa, porque nenhum ser humano participa diretamente dos motivos, pensamentos e sentimentos de outra pessoa’. Ao ser empossado, o juiz jura cumprir as leis e a Constituição, e é certo que tem diante de si a Lei. Mas a dificuldade não termina aí. Ao contrário, aí é que ela começa: a Lei é igual para todos, mas as condições pessoais exigem tratamento individualizado, que só o juiz, e somente ele, poderá usar. É cediço que é bom ter boas leis, mas melhor ainda é ter bons Juízes; a partir de agora, no silêncio da meditação judicial, afundado em Deus, ecoam e ressoam clamores, mas farei uso de uma visão penetrante a ponto de compreender que os comportamentos, as ações humanas hão de encontrar, do outro lado, uma resposta a um juiz preocupado em continuar a obra da criação do seu corpo, da sua alma, do seu mundo. Sinto neste momento o perfume dos campos gaúchos, meu rincão, minha vida. Estou sensível, capaz de ouvir uma música sem que seja tocada. Estou e sou juiz, por isso farei Justiça. Vou aos autos, tão somente para o exame de a insanidade mental buscar a conclusão que não poderia ser outra, que A. era, ao tempo da ação, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato, sendo totalmente irresponsável pelos atos da vida civil, não tendo condições de autodeterminar-se, nem reger sua pessoa, devendo ser enquadrada nas sanções do art. 26, caput, do Código Penal. Outro não foi o entendimento do parquet e da defesa. Firmo meu convencimento de que A. M. é inimputável e, destarte, está isenta de pena.” Não muito distante, agora já em Muzambinho, Sul das Minas Gerais, em 2009, prestes a dar início às oitivas das testemunhas e vítimas de um crime contra os costumes, ingressa na sala de audiência uma menina, pouco mais de quatro anos, vítima do pior crime contra uma mulher: o estupro. Perplexo, vi entrar, de mãos dadas com sua mãe, cabisbaixa, aquela menina sem qualquer reação, apenas caminhando em direção à cadeira que lhe esperava. Confesso que já havia nesses anos todos de Magistratura ouvido inúmeras crianças e adolescentes, nunca com aquela tenra idade, e muito menos vítima de um crime tão bárbaro. No método tradicional de oitiva de vítimas não tinha nem como dar início aos trabalhos, porque não vinham as palavras certas… foi então que resolvi conversar com ela e perguntar-lhe de sua escola, suas brincadeiras, seu brinquedo preferido, o que gostava de comer etc. Todos que ali estavam – Promotora, Advogado de Defesa, Escrevente e a própria mãe – observavam a dificuldade de ouvi-la. Não havendo outro meio dei início ao método tradicional de oitiva das vítimas e disse-lhe que iria ler para ela o que ela havia dito à Polícia sobre os fatos e, ao final, se tudo aquilo fosse verdade, bastava ela confirmar com um simples gesto, ainda que fosse com a cabeça, tudo para evitar constrangimento. Ao dar início a essa leitura, pela gravidade dos fatos, parei! Disse a todos que estavam presentes: Não, isso é um absurdo! Não vou revitimizar essa criança. Não posso, não devo, não é justo com esse pequeno ser, depois de tanto sofrimento diante de pessoas estranhas e nesse ambiente hostil, reviver tudo o que sentiu. Desculpem-me, mas a audiência está encerrada e a partir de hoje, seguindo meu colega gaúcho, hoje Des. Daltoé, Muzambinho passará a aplicar o “Depoimento Sem Dano” em defesa desses anjos, vítimas vulneráveis de um convívio de uma Sociedade que não é capaz de conter o avanço de crimes contra as crianças e adolescentes. A partir daquela data nunca mais nenhuma criança e adolescente reviveu seus horrores. Como no Rio Grande do Sul em 2003, aqui não tínhamos nenhum método e estrutura para realizar essa oitiva, mas contamos com a compreensão do Ministério Público, representado na época pela Promotora Gisela Stela Martins Araújo, e a Defesa, representada pelo Dr. Marco Antônio Ângelo. Com o apoio da Assistente Social do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Elisandra Mirian Médici, partimos atrás de uma psicóloga que fosse capaz de ouvir aquela menina e, não muito tempo depois, encontramos a Dra. Viviane Cristina da Silva, que nunca tinha ouvido falar nesse método, mas em poucas palavras aceitou o desafio de ouvir aquela vítima. Era chegada a hora de achar um local, ver os equipamentos… tudo aquilo era muito novo e tínhamos urgência, porque o réu estava preso. Não tivemos alternativa senão comprar do próprio bolso o gravador e contar com o apoio da Secretaria de Assistência Social do Município para ceder o prédio do CRAS e lá adaptar a sala para sua oitiva. Lembro-me que improvisamos uma caixa de som que ficava do lado de fora da sala onde estavam o Advogado, a Promotora, Assistente Social e eu, ligada por um fio ao microfone dentro do local onde estavam a infante e a psicóloga. Tudo era armazenado naquele gravador amador que ficou sobre a caixa de som. Ao término daquele árduo trabalho, mas recompensador pela ausência de revitimização da infante, contamos com o Instituto de Criminalística do Estado de Minas Gerais para fazer a transcrição de todo o diálogo, que foi introduzido nos autos como prova da oitiva. Devemos reconhecer ainda que nada disso seria possível se o Tribunal de Justiça de Minas Gerais não acolhesse esse método, ainda que improvisado, mas pioneiro no Estado e sem qualquer normatização à época, que, infelizmente, até o advento da Lei do Depoimento Especial, assim continuou, embora já tivesse recomendação do Conselho Nacional de Justiça (n. 33). Esses relatos refletem, entre tantos casos nesse país afora, a violência silenciosa nos lares brasileiros. A Lei 13.431/17 tem por objetivo criar mecanismos legais para evitar essas tragédias, no caso da oitiva qualificada, ou não revitimizar as crianças e adolescentes quando já vítimas ou testemunhas de violência, no caso do depoimento especial. Esperamos que esse novo ordenamento jurídico, aplicado de acordo com suas regras e métodos, venha auxiliar não só o Poder Judiciário dentro de sua completa estrutura, mas aqueles que tenham conhecimentos de fatos vinculados à violência contra crianças e adolescentes. Afinal, quem agradece são nossas crianças e adolescentes, que por anos foram vítimas silenciosas. O autor INTRODUÇÃO Tudo começou lá em 2003, com o então Juiz da Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, hoje Des. José Antônio Daltoé Cezar. O início da prática retratada pelo criador do Depoimento Especial está transcrito por ele próprio no item 2.1 dos comentários do art. 1.º da Lei 13.431/2017. Essa escuta de infantes nos processos judiciais gerou debates entre os campos jurídicos e da saúde, levando a Câmara dos Deputados a propor o Projeto n. 35/2007, de iniciativa da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Exploração Sexual, que previa acrescer a Seção VIII ao Capítulo III - Dos Procedimentos - do Título VI - Do Acesso à Justiça - da Parte Especial da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e Adolescente, dispondo sobre a forma de inquirição de testemunhas e produção antecipada de prova quando se tratar de delitos tipificados no Capítulo I do Título VI do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, com vítima ou testemunha criança ou adolescente, e acrescentava o art. 469-A ao Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal. O projeto tramitou de 12 de junho de 2007 a 10 de novembro de 2010, quando a matéria ficou prejudicada em virtude da aprovação de Substitutivo ao PLS 156/2009, remetendo a Câmara ao arquivo. Os ideais normativos de todos os envolvidos voltaram à estaca zero. O Conselho Nacional de Justiça, em 25/11/20101, assume então esse papel ao nortear essa prática, por meio da Recomendação n. 33, de 23/11/2010, donde recomendouaos tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais (Depoimento Especial). Em 01/12/2015, contudo, os deputados federais MARIA DO ROSÁRIO (PT-RS), ELIZIANE GAMA (REDE-MA), JOSI NUNES (PMDB-TO), ZÉ CARLOS (PT-MA), MARGARIDA SALOMÃO (PT-MG), TADEU ALENCAR (PSB-PE), ADELMO CARNEIRO LEÃO (PT-MG), MAINHA (SD-PI), MARIA HELENA (PT-PB) e DARCÍSIO PERONDI (PMDB-RS) apresentaram o PL 3.792/2015, que pretendia estabelecer o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência. Na justificativa do PL citava-se que o Brasil tem se ressentido da falta de legislação que proteja os direitos de crianças e adolescentes expostos ao sistema de justiça, seja como vítimas ou como testemunhas de violência física, psicológica, sexual e institucional. Frequentemente o que se vê é a falta de consideração quanto à condição de pessoas em desenvolvimento, o que resulta em violência institucional, que se dá nas interações de crianças e adolescentes com os órgãos educacionais, de atenção e de proteção especial, assim como órgãos de segurança e justiça institucional. Crianças e adolescentes são expostos à vitimização secundária, produzida pela ineficiência no trato da questão, e à vitimização repetida, quando ocorre mais de um incidente delitivo, ou ação ineficiente do Estado, ao largo de um período determinado. A criança e o adolescente pagam, portanto, um alto preço por entrarem em contato com o universo da violência, como vítimas ou testemunhas. Com essa preocupação, os deputados fizeram contato com magistrados, promotores de justiça, advogados e demais especialistas em direito e justiça da infância e adolescência para construir uma proposição legislativa que contemplasse as recomendações baseadas em normativas internacionais e na prática de tomada de depoimentos especiais em distintos países. O Grupo de Trabalho sobre o Marco Normativo da Escuta de Crianças e Adolescentes teve em sua composição renomados peritos na questão: André Felipe Gomma de Azevedo, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia - TJBA, Juiz-auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, membro do Comitê Gestor Nacional da Conciliação e do Grupo de Trabalho sobre Justiça Restaurativa; Beatriz Cruz da Silva, Coordenadora-Geral de Ações de Prevenção em Segurança Pública e Secretaria Nacional de Segurança Pública - Senasp, Ministério da Justiça – MJ; Benedito Rodrigues dos Santos, Antropólogo, Professor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Católica de Brasília – UCB – e Pesquisador associado do International Institute for Child Rights and Development - IICRD, Universidade de Victoria, Canadá; Casimira Benge, Coordenadora do Programa de Proteção à Criança, Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF; Daniel Issler, Juiz de Direito Titular da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Guarulhos, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP – e Coordenador do Setor de Mediação de Guarulhos; Eduardo Rezende Melo, Juiz de Direito Titular da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP – e Diretor da Associação Internacional de Juízes e Magistrados da Juventude e Família – AIMJF; Fabiana Gorenstein, Oficial de Proteção da Criança, Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF; Heloiza de Almeida Prado Botelho Egas, Coordenadora-Geral de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, Secretaria Nacional de Direitos Humanos - SDH, Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos – MMIRDH; Itamar Batista Gonçalves, Gerente de Advocacy da Childhood Brasil, membro da coordenação de pesquisa sobre inquirição de crianças e adolescentes em processos judiciais; Ivanilda Figueiredo, Professora da Faculdade de Direito do Centro de Ensino Unificado de Brasília – UNICEUB, Doutora em Direito (PUC-Rio), Relatora de Direitos Humanos e Estado Laico da Plataforma de Direitos Humanos - Dhesca Brasil; João Batista Saraiva, Advogado e consultor na área de direitos de criança e adolescente, Juiz aposentado da Infância e Juventude do Estado do Rio Grande do Sul; José Antônio Daltoé Cezar, Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS, Especialista em Direitos da Infância e da Juventude, Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul - FMP/RS; Luiziana Souto Schaefer, Psicóloga (PUCRS), Doutora em Psicologia (PUCRS), Especialista em Psicologia Jurídica, Especialista em Psicologia Clínica, Perita Criminal/Psicóloga do Instituto- Geral de Perícias do Rio Grande do Sul (IGP-RS) e Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse (NEPTE) da PUCRS; Robson Rui Campos de Almeida, Delegado Adjunto da Delegacia Especial de Proteção à Criança e ao Adolescente – DPCA, Polícia Civil do Distrito Federal – PCDF; e Thiago André Pierobom de Ávila, Promotor de Justiça Coordenador dos Núcleos de Direitos Humanos do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – MPDFT, Promotor Chefe do Núcleo de Enfrentamento à Violência e à Exploração Sexual contra a Criança e o Adolescente – NEVESCA. O clamor final do projeto de lei seria que, de fato, teria importância essencial para o aprimoramento do sistema jurídico brasileiro e para a conformidade da legislação doméstica aos acordos internacionais de proteção dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes. A Câmara dos Deputados aprovou, em 21 de fevereiro de 2017, o PL e, em 07/03/2017, remeteu ao Senado Federal para apreciação2, onde recebeu o n. 21/2017 (PLC3), sendo aprovado em 29 de março de 2017, transformando-se a seguir na Lei Ordinária n. 13.431/2017. Esse trâmite célere na reta final, contudo, teve um objetivo. O muzambinhense IZAÍAS FARIA DE ABREU, que é servidor público do Senado Federal e na oportunidade estava assessorando o então Presidente do TSE Ministro Gilmar Mendes, após um breve contato pela modernidade das redes sociais, nos confidenciou que, nos bastidores do Congresso Nacional e Palácio do Planalto, o objetivo era aprovar o PLC e sancionar a lei até o dia em que a Rainha da Suécia, Silvia Renate Sommerlath, que é brasileira4, participasse do Fórum Global da Criança na América Latina5, aderindo assim o Brasil à rede de proteção mundial da Criança e Adolescente, além de ser um presente à Sua Majestade, que é fundadora da Instituição Childhood Brasil6. De fato, a sanção da Lei ocorreu durante a abertura, no dia 04 de abril de 2017, do Global Child Forum, na Fiesp, em São Paulo, com a participação do Rei Carlos XVI Gustavo e da Rainha Silvia, da Suécia. Esse fato ficou marcado porque, nessa mesma época, estávamos no Rio Grande do Sul para conhecer a estrutura do Tribunal de Justiça daquele estado na colheita do Depoimento Especial em nome do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, presidido à época pelo nosso amigo e saudoso Des. Herbert Carneiro, e quem nos recepcionava era a Assistente Social do TJRS 1 2 3 4 5 6 7 Marleci V. Hoffmeister, uma sumidade no assunto, e o Des. Daltoé, momento em que juntos pudemos comemorar essa grande vitória da proteção à infância e adolescência. A novel lei veio normatizar mecanismos para prevenir a violência contra crianças e adolescentes, assim como estabelece medidas de proteção e procedimentos para tomada de depoimentos de vítimas e testemunhas de violência. O texto altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990)7, prevendo dois procedimentos possíveis para ouvir as crianças ou adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. O primeiro procedimento é a escuta especializada, que deve ser realizada perante órgão da rede de proteção e limitado estritamente ao necessário para o cumprimento de sua atribuição. O segundo é o depoimento especial, quando a criança é ouvida perante a autoridadejudicial ou policial. Esse depoimento será intermediado por profissionais especializados que esclarecerão à criança os seus direitos e como será conduzida a entrevista, que será gravada em vídeo e áudio, com preservação da intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha. A lei ainda define direitos e garantias e estabelece a integração das políticas de atendimento, definindo, ainda, um novo tipo penal, o que será examinado artigo por artigo nesse trabalho, além de fornecer ao leitor um vasto material para consultar como meio de integrar a norma em análise. Data da publicação da Recomendação n. 33 no DJ-e n. 215/2015. Nos termos do caput do art. 65 da Constituição Federal combinado com o art. 134 do Regimento das Casas Legislativas. Projeto de Lei da Câmara Ela é filha do empresário alemão Walther Sommerlath e da brasileira Alice Soares de Toledo. Global Child Forum (Um fórum para identificar oportunidades de negócios para investir nas crianças e contribuir para alcançarmos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável na América do Sul). Criado em 1999 pela Rainha Silvia da Suécia com o objetivo de proteger a infância e garantir que as crianças sejam crianças. A Childhood Brasil é uma organização brasileira que faz parte da World Childhood Foundation (Childhood), instituição internacional que conta com mais três escritórios: EUA, Alemanha e Suécia. Art. 25, que acresceu o inciso IX ao art. 208 do ECA; e o art. 28 revogou o art. 248 do ECA. Sumário Art. 1º Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – História do Depoimento Especial 2.1 – Início da Prática 2.2 – Pioneirismo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em Reconhecer a Prática do Depoimento sem Dano 2.3 – Obstinações dos Conselhos Federal de Serviço Social e de Psicologia 2.4 – Instituto Childhood: Protocolo de Entrevista Forense do NCAC (National Children´s Advocacy Center) 2.5 – Conselho Nacional de Justiça (CNJ): Reconhecimento. 2.6 – Projetos Legislativos 3 – Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência 4 – Princípio da Prioridade Absoluta 5 – Direitos Humanos das Crianças e dos Adolescentes 6 – Resolução Nº 20/2005 do Conselho EConômico e Social das Nações Unidas e Outros Diplomas Internacionais 7 – Proteção dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes no Brasil 8 – Medidas de Assistência e Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Violência Art. 2º Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Descrições de uma História sem Direitos 2 – A Criança e o Adolescente como Sujeitos de Direitos Fundamentais 3 – Direitos Fundamentais Inerentes à Pessoa Humana 4 – Aplicação dos Direitos Fundamentais 5 – Atendimento pelo Poder Público Art. 3º Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Aplicação e Interpretação da Lei do Depoimento Especial 2 – Fins Sociais da Norma 3 – Aplicação na Área Civil 4 – Condições Peculiares da Criança e do Adolescente em Desenvolvimento 5 – Garantias Asseguradas pelo Estado, Família e Sociedade 5.1. – Garantias Asseguradas pelo Estado 5.2. – Garantias Asseguradas pela Família 5.3. – Garantias Asseguradas pela Sociedade 6 – Aplicação Facultativa Art. 4º Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Formas de Violência 2.1 – Violência Física 2.1.1 – Lei da Palmada 2.2 – Violência Psicológica 2.2.1 – No Meio Social 2.2.1.1 – Discriminação 2.2.1.2 – Depreciação ou Desrespeito 2.2.1.3 – Meios de Discriminação, Depreciação ou Desrespeito 2.2.1.3.1 – Ameaça 2.2.1.3.2 – Constrangimento 2.2.1.3.3 – Humilhação 2.2.1.3.4 – Manipulação 2.2.1.3.5 – Isolamento 2.2.1.3.6 – Agressão Verbal e Xingamento 2.2.1.3.7 – Ridicularização 2.2.1.3.8 – Indiferença 2.2.1.3.9 – Exploração 2.2.1.3.10 – Intimidação Sistemática (bullying) 2.2.1.3.11 – Comprometimento do Desenvolvimento Psíquico ou Emocional da Criança ou do Adolescente 2.2.2 – Na Relação Familiar 2.2.2.1 – Alienação Parental como Violência Psicológica 2.2.2.2 – Alienação Parental e as Falsas Acusações de Abuso Sexual 2.2.3 – Como Conduta Criminosa 2.3 – Violência Sexual 2.3.1 – Definição de Violência Sexual 2.3.2 – Violência Sexual pelo Abuso Sexual (art. 4.º, III, alínea a) 2.3.2.1 – Incesto 2.3.3 – Violência Sexual pela Exploração Sexual Comercial (art. 4.º, III, alínea b) 2.3.4 – Violência Sexual pelo Tráfico de Pessoas com o Fim de Exploração Sexual (art. 4.º, III, alínea c) 2.3.5 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual Contra Criança e Adolescente 2.3.5.1 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual em Espécie 2.3.5.1.1 – Do Estupro de Pessoas Menores de 18 Anos ou Maiores de 14 Anos 2.3.5.1.2 – Estupro de Vulnerável 2.3.5.1.3 – Do Uso de Menor Vulnerável para Servir à Lascívia de Outrem 2.3.5.1.4 – Da Satisfação de Lascívia Mediante Presença de Criança ou Adolescente 2.3.5.1.5 – Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma de Exploração Sexual de Vulnerável 2.3.5.1.6 – Uso de Menor Relativamente Vulnerável para Servir à Lascívia de Outrem 2.3.5.1.7 – Rufianismo de Menor 2.3.5.1.8 – Do Assédio Sexual do Menor 2.3.5.2 – Da Infiltração de Agentes de Polícia para Investigação de Crimes Contra a Dignidade Sexual de Criança e Adolescente 2.3.5.3 – O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Proteção Contra a Pornografia e o Aliciamento Infantojuvenil 2.3.5.4 – Pedofilia, Hebefilia e Pederastia 2.4 – Violência Institucional 3 – Meio de Escuta Forense 3.1 – Introdução 3.2 – Escuta Especializada 3.3 – Depoimento Especial 4 – Revelação Espontânea da Violência à Rede de Proteção e Afins 5 – Revelação Espontânea da Violência em Casos de Intervenção de Saúde 6 – Exigência do Cumprimento da Lei (Sanções) 6.1 – Introdução 6.2 – Tipificação de Crimes 6.3 – A Tipificação de Infrações Administrativas 6.3.1 – Introdução 6.3.2 – Infrações Administrativas Específicas Aplicadas à Lei do Depoimento Especial 6.4 – A Aplicação de Medidas Pertinentes aos Pais ou Responsáveis 6.5 – A Aplicação de Penalidades aos Encarregados de Cuidado, Às Entidades de Atendimento Responsáveis pela Execução de Programas Socioeducativos e de Proteção 6.6 – A Aplicação de Medidas às Entidades de Atendimento que Descumprirem as Obrigações do Programa de Internação 6.7 – Sanções ao Poder Público Art. 5º Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Da Aplicação da Norma 3 – Princípios Nacionais e Internacionais de Proteção à Criança e ao Adolescente 3.1 – Princípios Internacionais de Proteção à Criança e ao Adolescente 3.2 – Princípios Nacionais de Proteção à Criança e ao Adolescente 4 – Estrutura dos Direitos e Garantias Fundamentais da Criança e do Adolescente 4.1 – Receber Prioridade Absoluta e Ter Considerada a Condição Peculiar de Pessoa em Desenvolvimento 4.2 – Receber Tratamento Digno e Abrangente 4.3 – Ter a Intimidade e as Condições Pessoais Protegidas Quando Vítima ou Testemunha de Violência 4.4 – Ser Protegida Contra Qualquer Tipo de Discriminação, Independentemente de Classe, Sexo, Raça, Etnia, Renda, Cultura, Nível Educacional, Idade, Religião, Racionalidade, Procedência Regional, Regularidade Migratória, Deficiência ou Qualquer Outra Condição Sua, de Seus Pais ou de Seus Representantes Legais 4.5 – Receber Informação Adequada à sua Etapa de Desenvolvimento sobre Direitos, inclusive Sociais, Serviços Disponíveis, Representação Jurídica, Medidas de Proteção, Reparação de Danos e Qualquer Procedimento a que seja Submetido 4.5.1 – Informação sobre os Direitos da Escuta Protegida (Escuta Especializada e Depoimento Especial) 4.5.2 – Informação Sobre os Direitos Sociais 4.5.3 – Serviços Disponíveis em Decorrência da Escuta Protegida 4.5.4 – Representação Jurídica à Vítima ou Testemunha 4.5.5 – Medidas de Proteção à Vítima ou Testemunha 4.5.6 – Reparação de Danos 4.5.7 – Procedimentos da Escuta Protegida que Serão Submetidas as Vítimas e Testemunhas 4.6 – Ser Ouvido e Expressar Seus Desejos e Opiniões, Assim como Permanecer em Silêncio4.7 – Receber Assistência Qualificada Jurídica e Psicossocial Especializada, que Facilite sua Participação e o Resguarde Contra Comportamento Inadequado Adotado pelos Demais Órgãos Atuantes no Processo 4.8 – Ser Resguardado e Protegido de Sofrimento, com Direito a Apoio, Planejamento de Sua Participação, Prioridade na Tramitação do Processo, Celeridade Processual, Idoneidade do Atendimento e Limitação das Intervenções 4.9 – Ser Ouvido em Horário que lhe for mais Adequado e Conveniente, Sempre que Possível 4.10 – Ter Segurança, com Avaliação Contínua Sobre Possibilidade de Intimidação, Ameaça e Outras Formas de Violência 4.11 – Ser Assistido por Profissional Capacitado e Conhecer os Profissionais que Participam dos Procedimentos de Escuta Especializada e Depoimento Especial 4.12 – Ser Reparado Quando Seus Direitos Forem Violados 4.13 – Conviver em Família e em Comunidade 4.14 – Ter as Informações Prestadas Tratadas Confidencialmente, Sendo Vedada a Utilização ou o Repasse a Terceiros das Declarações Feitas pela Criança e pelo Adolescente Vítima, Salvo para os Fins de Assistência à Saúde e de Persecução Penal 4.14.1 – Questões Procedimentais e Processuais Vinculadas ao Sigilo da Escuta Protegida 4.14.1.1 – Informações Internas na Serventia do Juízo ou Cartório da Delegacia de Polícia 4.14.1.2 – Necessidade do Transporte dos Autos ou Depoimento Especial para Fora do Poder Judiciário ou Autoridade Judiciária 4.14.1.3 – Acesso do Advogado Constituído ou Nomeado Dativo, Defensoria Pública e o Assistente da Acusação às Informações Decorrentes do Depoimento Especial 4.14.1.4 – Não Aplicabilidade da Súmula Vinculante 14 do STF nos Procedimentos de Natureza Cível 4.14.1.5 – Decretação do Sigilo ou Segredo de Justiça em IP em que há Depoimento Especial 4.14.1.6 – Acesso de Informações por Terceiros ou Advogado sem Procuração 4.14.1.7 – Acesso ao Depoimento Especial de Testemunha ou Vítima Protegida (Lei n. 9.807/99) 4.14.1.8 – Acesso ao Depoimento Especial de Testemunha ou Vítima de em Processo de Natureza Cível 4.14.1.9 – Acesso ao Depoimento Especial como Prova Emprestada 4.15 – Prestar Declarações em Formato Adaptado à Criança e ao Adolescente com Deficiência ou em Idioma Diverso do Português 4.15.1 – Crianças e Adolescentes com Deficiência 4.15.2 – Crianças e Adolescentes Estrangeiros 5 – Planejamento da Participação da Criança e do Adolescente no Depoimento Especial pelos Profissionais e o Juízo Art. 6º Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Natureza Jurídica das Medidas Protetivas 3 – Competência para Analisar o Pedido das Medidas Protetivas 4 – Representação e Legitimidade para Requerer as Medidas Protetivas 5 – Pressupostos para Concessão das Medidas Protetivas 6 – Momento da Concessão das Medidas Protetivas 7 – Validade e Eficácia das Medidas Protetivas 8 – Recurso 9 – Consequências pelo Descumprimento das Medidas Protetivas 10 – Aplicação Subsidiária ou Supletiva da Lei Maria da Penha, Estatuto da Criança e do Adolescente e Outras Normas Conexas Art. 7º Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Escuta Especializada: Definição Legal 3 – Quem Realiza a Escuta Especializada 4 – Finalidade 5 – Procedimento 6 – Valoração da Escuta Especializada 7 – Reveleção Espontânia da Violência 8 – Questões Processuais 8.1 – Ausência de Contraditório e da Ampla Defesa na Escuta Especializada como Meio de Prova 8. 2 – Escuta Especializada Aplicada ao Ato Infracional: Oitiva Informal pelo MP (ECA, art. 179) 8.3 – Revelação Espontânea pela Criança e Adolescente e a Recusa da Escuta Especializada 8.4 – Substituição do Depoimento Especial pela Escuta Especializada: Possibilidade 8.5 – Escuta Especializada pelo Conselho Tutelar: Atribuições Art. 8º Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Teoria Geral da Prova 2.1 – Introdução 2.2 – Noção e Conceito de Prova 2.3 – Classificação da Prova 2.4 – Objeto da Prova 2.5 – Finalidade da Prova 2.6 – Direito à Prova 2.7 – Meios de Provas 2.8 – Fases da Prova 2.8.1 – Proposição 2.8.2 – Admissão 2.8.3 – Produção 2.8.4 – Valoração 2.9 – Natureza Jurídica das Leis Relativas à Prova 2.10 – Direito Intertemporal das Leis Relativas à Prova (Retroatividade, Aplicação Imediata e Irretroatividade) 2.11 – Princípio da Territorialidade e Prova dos Fatos Ocorridos no Exterior 2.12 – Renúncia da Prova 2.13 – Hierarquia das Provas 2.14 – Sentença e a Prova (Silogismo) 2.15 – Autodefesa 2.16 – Abuso do Direito de Defesa 3 – Depoimento Especial: Definição Legal 4 – Depoimento Especial Perante Autoridade Policial 4.1 – Prisão em Flagrante e o Depoimento Especial 4.2 – Vedação do Depoimento Especial pela Autoridade Policial 4.3 – Vício Sanável pela Ação Penal e a Palavra da Vítima nos Crimes Contra a Dignidade Sexual 5 – Depoimento Especial Perante Ministério Público 6 – Depoimento Especial Perante Autoridade Judiciária 6.1 – Depoimento Especial na Área Cível 6.1.1 – Depoimento Especial e a Alienação Parental 6.1.2 – Nas Ações de Família 6.2 – Depoimento Especial no Juizado Especial 6.3 – No Processo de Júri 6.4 – Depoimento Especial em Fase Recursal 6.5 – Depoimento Especial na Competência Originária 7 – Depoimento Especial Perante Autoridade Administrativa Legislação Correlata Análise Doutrinária Art. 9º 1 – Introdução 2 – Procedimento para Evitar Contato com Suposto Autor ou Acusado, ou Outra Pessoa que Representa Ameaça, Coação ou Constrangimento 3 – Garantia à Ampla Defesa na Hipótese do Afastamento do Imputado da Sala de Audiência 4 – Adiamento do Depoimento Especial por Restrição à Liberdade de Declarar os Fatos 5 – Medida Protetiva em Face das Pessoas que Representam Ameaça, Coação ou Constrangimento Legislação Correlata Análise Doutrinária Art. 10 1 – Introdução 2 – Local Apropriado e Acolhedor 3 – Infraestrutura 4 – Espaço Físico 5 – Privacidade da Criança ou Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência 6 – Material e Mobiliário da Sala de Escuta 7 – Ausência de Sala Especial Art. 11 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Protocolos 2.1 – American Professional Sciety On The Abuse Children (APSAC) 2.2 – Entrevista Cognitiva (EC) 2.3 – Protocolo National Institute Of Child Health And Human Development (NICHD) 2.4 – Protocolo RATAC 2.5 – Protocolo National Children’s Advocacy Center (NCAC). 3 – Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF) 3.1 – Introdução 3.2 – Entrevista Forense Utilizada no Contexto das Audiências de Tomada de Depoimento Especial 3.3 – Estrutura do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF) 3.3.1 – Estágio 1: Construção do Vínculo 3.3.1.1 – Introdução 3.3.1.2 – Construção da Empatia 3.3.1.3 – Regras Básicas/Diretrizes 3.3.1.3 – Diretriz: verdade e realidade 3.3.1.3 – Diretriz: corrija-me 3.3.1.3 – Diretriz: não “chute” ou “não invente” 3.3.1.3 – Diretriz: não entendo 3.3.1.4 – Prática Narrativa 3.3.1.5 – Diálogo Sobre a Família 3.3.2 – Estágio 2: Parte Substantiva 3.3.2.1 – Transição 3.3.2.2 – Descrição Narrativa 3.3.2.3 – Seguimento e Detalhamento 3.3.2.4 – Interação com a Sala de Audiência ou Sala de Observação 3.3.2.5 – Estratégia de Transformação de Perguntas da Sala de Audiência 3.3.2.6 – Fechamento 4 – Protocolo de Entrevista Forense (Versão Esquemático-Operativa) 5 – Protocolo a ser Aplicado pela Rede de Proteção 6 – Um Único Depoimento Especial 7 – Cautelar de Antecipação de Prova 7.1 – Introdução 7.2 – Legitimidade de Partes 7.3 – Hipóteses Obrigatórias 7.4 – Interesse Processual 7.5 – Competência 7.6 – Rito 7.7 – Decisão: Efeitos 298 7.8 – Destino dos Autos 7.9 – Juiz de Garantias 8 – Garantia à Ampla Defesa do Investigado 9 – Novo Depoimento Especial: Imprescindibilidade e Anuência da Vítima ou seu Representante Legal 10 – Questões Processuais 10.1 – Ausência de Autoria 10.2 – Conflito de Interesses Entre a Criança ou Adolescente e o Representante Legal 10.3 – Ausênciade Intimação do Advogado Constituído: Nulidade Relativa 302 10.4 – Réu Citado por Edital 10.5 – Dispensa do Depoimento Especial Art. 12 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Esclarecimentos Preliminares, Informações de Direitos e os Procedimentos a Serem Adotados, com o Planejamento da Participação da Criança ou Adolescente 2.1 – Vedada Leitura da Denúncia ou de Outras Peças Processuais 2.2 – Reconhecimento Pessoal ou Fotográfico no Depoimento Especial do Suspeito ou Investigado pela Criança ou Adolescente Vítima ou Testemunha. 3 – Livre Narrativa e Intervenção Necessária por Meios Técnicos para Elucidação dos Fatos 3.1 – Introdução 4 – Transmissão em Tempo Real e Preservação do Sigilo do Depoimento Especial 5 – Avaliação de Perguntas Complementares 6 – Perguntas Adaptadas à Linguagem da Compreensão da Criança ou do Adolescente 7 – Gravação do Depoimento Especial em Mídia 8 – Direito de Prestar Depoimento Especial Diretamente ao Magistrado 9 – Preservação da Intimidade e da Privacidade da Vítima ou Testemunha 10 – Ausência do Suspeito ou Investigado Durante o Depoimento Especial 11 – Medidas de Proteção Específicas Sobre o Depoimento Especial 12 – Preservação e Segurança da Mídia Relativa ao Depoimento Especial 13 – Depoimento Especial em Segredo de Justiça 14 – Questões Processuais 14.1 – Compromisso de Dizer a Verdade e o Depoimento Especial 14.2 – Testemunha com Vínculo de Parentesco 14.3 – Condução Coercitiva de Testemunha 14.4 – O Sistema do Cross-Examination e o Depoimento Especial Art. 13 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Notificação Compulsória 3 – A Relevância Penal da Omissão Descrita na Norma 4 – Notificação Compulsória de Doenças, Agravos e Eventos de Saúde Pública nos Serviços de Saúde Públicos e Privados 5 – Atos de Violência na Rede Escolar 6 – Violência em Programa de Acolhimento Institucional ou Familiar, em Unidade de Internação ou Semiliberdade do Sistema Socioeducativo 7 – Conscientização da Sociedade Art. 14 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Sistemas de Justiça, Segurança Pública, Assistência Social, Educação e Saúde 3 – Ações Articuladas, Coordenadas e Efetivas para Acolhimento e Atendimento Integral à Vítima de Violência 4 – Diretrizes das Ações 4.1 – Abrangência e Integralidade: Avaliação e Atenção Às Necessidades Decorrentes da Violência 4.2 – Capacitação Interdisciplinar Continuada 4.3 – Mecanismos de Informações 4.4 – Planejamento Coordenado do Atendimento e do Acompanhamento 4.5 – Celeridade do Atendimento 4.6 – Prioridade do Atendimento 4.7 – Intervenção Mínima dos Profissionais 4.8 – Monitoramento e Avaliação das Políticas de Atendimento 5 – Casos de Violência Sexual: Urgência e Celeridade no Atendimento de Saúde e Produção Probatória (Confidencialidade) Art. 15 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Denúncia Espontânea 3 – Encaminhamento da Denúncia Espontânea 3.1 – À Autoridade Policial para Apuração de Notitia Criminis 344 3.2 – Ao Conselho Tutelar para Aplicação de Medidas de Proteção 3.3 – Ao Ministério Público para Agir de Acordo com suas Atribuições 4 – Denunciação Caluniosa e Comunicação Falsa de Crime de Contravenção Art. 16 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Programas, Serviços ou Equipamentos 3 – Finalidade: Atenção, Atendimento Integral e Interinstitucional 4 – Composição por Equipes Multidisciplinares Especializadas 5 – Integração de Serviços Art. 17 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Serviços de Saúde para Atenção Integral à Criança e ao Adolescnete em Situação de Violência 3 – Finalidade: Atendimento Acolhedor Art. 18 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Violência que Deixa Vestígio 2 – Perícia Art. 19 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Elaboração de Plano Individual e Familiar de Atendimento 3 – Atenção à Vulnerabilidade Indireta dos Membros da Família 4 – Avaliação e Atenção às Situações de Intimidação, Ameaça, Constrangimento ou Discriminação da Vitimização 5 – Representação ao Ministério Público Art. 20 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Delegacias Especializadas no Atendimento de Crianças e Adolescentes 3 – Equipes Multidisciplinares Destinadas a Assessorar as Delegacias 4 – Ausência de Delegacia Especializada 5 – Observação do art. 14 Art. 21 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Situação de Risco 3 – Representação da Autoridade Policial 4 – Medidas de Proteção Específicas 4.1 – Evitar o Contato Direto com o Suposto Autor da Violência 4.2 – Afastamento Cautelar do Investigado da Residência ou Local de Convivência 4.3 – Prisão Preventiva do Investigado 4.4 – Inclusão da Vítima ou Testemunha e sua Família nos Atendimentos Socioassistenciais 4.5 – Inclusão em Programa de Proteção a Vítimas ou Testemunhas Ameaçadas 4.6 – Requerer Cautelar de Antecipação de Prova 5 – Validade e Eficácia das Medidas de Proteção Art. 22 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Meios de Provas Diversos Previstos na Própria Lei do Depoimento Especial 3 – Meios de Prova Legal, Moralmente Legítimos e Lícitos 4 – Prova Emprestada 5 – Laudo Psicossocial 6 – Questões Processuais 6.1 – Gravação de Conversa Telefônica 6.2 – Gravação de Conversa Ambiental 6.4 – Prova Digital Art. 23 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Juizados ou Varas Especializadas Contra a Criança e o Adolescente 3 – Cumulação de Competência 4 – Ausência de Juizado ou Varas Especializadas ou Cumulação de Competência Art. 24 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Introdução 2 – Análise do Núcleo do Tipo 3 – Sujeito do Delito 4 – Tipo Objetivo 5 – Tipo Subjetivo 6 – Consumação e Tentativa 7 – Ação Penal 8 – Escuta Especializada e Caracterização do Tipo Penal Art. 25 Legislação Correlata Análise Doutrinária 1 – Proteção Judicial dos Interesses Individuais, Difusos e Coletivos 2 – Atos Normativos Necessários à Efetividade da Lei do Depoimento Especial 3 – Normas Sobre o Sistema de Garantia de Direitos ANEXOS ANEXO I - Modelos de Decisões sobre Escuta Especializada e Depoimento Especial ANEXO II - Decreto Federal n. 9.603/2018 ANEXO III - Pacto Nacional pela Implementação da Lei 13.431/2017 ANEXO IV Resolução CNJ n. 299/2019 ANEXO V - Fluxo Geral da Lei 13.431/2017 ANEXO VI - Guia Prático – para Implementação da Política de Atendimento de Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência (CNMP-PRESI N. 61/2018) ANEXO VII - Protocolo de Polícia Judiciária para Depoimento Especial de Criança e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência do Distrito Federal Padronizado no Âmbito das Polícias Civis dos Estados e do DF ANEXO VIII - Sala do Depoimento Especial, Espaço Físico, Materiais e Mobiliário e Equipamentos Técnicos ANEXO VIX - Cartilha Depoimento Especial TJRS ANEXO X - Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF Revisado 2020) ANEXO XI - Resolução n. 20/2005 – ECOSOC ANEXO XII - Resolução n. 113/CONANDA/2006 ANEXO XIII - Parâmetros de Atuação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência Referências • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • MODELOS DE DECISÕES SOBRE ESCUTA ESPECIALIZADA E DEPOIMENTO ESPECIAL (Disponível on-line pelo QR-Code ou endereço acima) Aplicação de Medida de Proteção: Requerimento do Ministério Público Aplicação de Medida de Proteção: Requerimento da Vítima ou Testemunha Aplicação de Medida de Proteção: Requerimento da Autoridade Policial Assentada de Audiência: Direito ao Silêncio Assentada de Audiência:aplicação de Direitos e Garantias (Art. 5.º) Ausência do Acusado no Dia da Audiência: Despacho (Art. 9.º) Cautelar de Produção Antecipada de Prova: Deferimento Cautelarde Produção Antecipada de Prova: Sentença Compartilhamento de Informações com a Rede de Proteção Conflito de Interesse: Nomeação Assistência Qualificada Jurídica Denúncia Espontânea ao Juízo Depoimento Especial: Ausência de Autoria Depoimento Especial no Júri: Indeferimento em Plenário Depoimento Especial: Réu Citado por Edital Depoimento Especial: Dispensa Atendimento Médico Depoimento Especial: Dispensa por Risco à Vida ou à Integridade Física Depoimento Especial Facultativo Depoimento Especial com Deficiência Dispensa do Depoimento Especial: Reiteração de Declarações Anteriores Dispensa do Depoimento Especial: por Ser Imprescindível, Mas Sem Anuência da Vítima ou Testemunha ou seu Representante Legal Escuta Especializada como Meio de Prova Indeferimento de Depoimento Especial: Alienação Parental Notificação Compulsória ao Juízo https://diariododireito.com.br/files/depoimento_especial.html • • • • • Nulidade: Ausência de Intimação de Advogado Constituído pelo Réu Nulidade do Depoimento Especial por Vício Insanáel no Inquérito Policial Pedido de Providência Cível Ex Officio Prova Emprestada Vedação de Depoimento Especial Pela Autoridade Policial Art. 1º LEI Nº 13.431, DE 4 DE ABRIL DE 2017 TÍTULO I DISPOSIÇÕES GERAIS Art. 1º Esta Lei normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência, nos termos do art. 227 da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos da Criança e seus protocolos adicionais, da Resolução no 20/2005 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas e de outros diplomas internacionais, e estabelece medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência. Legislação Correlata CF, art. 226, §8.º, 227, caput, e §4.º; ECA, arts. 5.º, 18-A, 70 e 70-A; Resolução n. 113/2006, do CONANDA; Recomendação n. 33/CNJ/2010; Decreto n. 9.603/2018; e Resolução CNJ n. 299/2019. Análise Doutrinária 1 – INTRODUÇÃO 2 – HISTÓRIA DO DEPOIMENTO ESPECIAL 2.1 – Início da Prática 2.2 – Pioneirismo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em Reconhecer a Prática do Depoimento Sem Dano 2.3 – Obstinações dos Conselhos Federal de Serviço Social e de Psicologia 2.4 – Instituto Childhood: Protocolo de Entrevista Forense do NCAC (National Children’s Advocacy Center) 2.5 – Conselho Nacional de Justiça (CNJ): Reconhecimento. 2.6 – Projetos Legislativos 3 – SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE VÍTIMA OU TESTEMUNHA DE VIOLÊNCIA 4 – PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA 5 – DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES 6 – RESOLUÇÃO Nº 20/2005 DO CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL DAS NAÇÕES UNIDAS E OUTROS DIPLOMAS INTERNACIONAIS 7 – PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES NO BRASIL 8 – MEDIDAS DE ASSISTÊNCIA E PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA 1 – INTRODUÇÃO Não é difícil de compreender que o direito nasceu junto com a civilização, aliado à história da sociedade, sob a forma de costumes que foram se tornando obrigatórios. Isso aconteceu em razão da necessidade de um mínimo de ordem e direção, de regras de conduta, com o objetivo de regular o convívio entre os homens e proporcionar harmonia nas relações humanas. O surgimento do direito teve por finalidade regular justamente essas relações humanas, a fim de proporcionar paz e prosperidade no seio social, para impedir a desordem, o crime e o caos que seria proporcionado pela lei daqueles que detinham o poderio, principalmente, o econômico, ou seja, aquele que fosse mais forte, e tendo como objetivo alcançar o bem comum e obter a justiça. Por isso é importante conhecer a história de uma norma jurídica, que em outras palavras, é própria da sociedade, estando intimamente ligada ao direito. Com efeito, o direito surge para colocar direção, ordem, regras de conduta para regular o convívio na sociedade, a fim de conseguir que os homens vivam em harmonia É importante esclarecer, diante de todos esses aspectos, que o direito surge com o objetivo de obter justiça e realizar o bem comum, isto é, dar a cada caso a solução merecida, adequada conforme o sentimento humanitário ponderado e calcado em interpretação conforme os princípios gerais do direito. Como visto, a história não poderia estar dissociada do estudo do direito. É nesse sentido que vem a importância dela para o Direito, que nada mais é do que uma ciência que pesquisa e estuda o significado dos processos de alteração das estruturas jurídicas, penetrando e convivendo com as naturais modificações de ordem política, econômica e cultural de uma sociedade ao longo do tempo. Assim, por ser ciência, a história de um direito descreve e revela, pesquisa e esclarece, coordena e explicita a vida jurídica de um povo em todos os seus aspectos, detendo-se nas fontes, nos costumes, na legislação que o rege, enfim, em todas as manifestações que resultam do conhecimento dos fatos ocorridos. Dada a sua importância, não poderíamos deixar de contar a história do Depoimento Especial, que fez surgir a Lei 13.431/2017. 2 – HISTÓRIA DO DEPOIMENTO ESPECIAL Na Série Justiça Pesquisa, promovida pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça (DPJ/CNJ), que tem a finalidade de realizar pesquisas de interesses do Poder Judiciário brasileiro por meio de contratação de instituições sem fins lucrativos, incumbidas estatuariamente da realização de pesquisas e projetos de desenvolvimento institucional, realizou por meio da Universidade de Fortaleza – Edital de Convocação Pública e Seleção n. 02/2017 do CNJ – o Projeto de Pesquisa “A Oitiva de Crianças no Poder Judiciário brasileiro: estudo em foco na implementação da Recomendação n. 33/2010 do CNJ e da Lei 13.431/2017”, que foi divulgado no dia 30/05/2019, através do portal do CNJ1. Neste excelente trabalho de realização da Fundação Edson Queiroz Universidade de Fortaleza – UNIFOR – e Centro de Ciências Jurídicas Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional, coordenado por Antônio Jorge Pereira Júnior, tendo como pesquisadores Juliana Nogueira Loiola, Juliana Rodrigues Barreto Cavalcante, Marília Bitencourt C. Calou P. Rebouças, Maryunna Laís Quirino Pereira, Nardejane Martins Cardoso, Rafaela Gomes Viana e Thiago Pessoa Colares, entre os temas apresentados está a evolução histórica do Depoimento Especial: “Como explicado anteriormente, houve relevante evolução normativa no tocante à proteção de direitos da criança e do adolescente até que se chegasse ao reconhecimento de sua importância na forma de coleta do relato de situações de violência pelos menores no ambiente judicial. Referidas normas serviram de base para implementação da prática do Depoimento Especial no Brasil. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, datada de 1989, teve como precedente a Declaração dos Direitos das Crianças de 1959. Logo após sua aprovação, o Brasil fez-se signatário, sendo ela anuída pelo Congresso Nacional, mediante o Decreto Legislativo n. 28, de 14 de setembro de 1990. No dia 22 de novembro daquele ano foi promulgada pelo Decreto n. 99.710 (CONTINI, 2006, p. 4). De acordo com dados da Unicef (BRASIL, 2018): ‘A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Convenção sobre os Direitos da Criança – Carta Magna para as crianças de todo o mundo – em 20 de novembro de 1989, e, no ano seguinte, o documento foi oficializado como lei internacional. A Convenção sobre os Direitos da Criança é o instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal. Foi ratificado por 196 países.’ A importância do documento se traduz, primeiramente, por seu valor vinculante entre os Estados-Partes que o ratificaram. Tais entes comprometeram-se a partir de então a tomar medidas apropriadas de conteúdo legislativo, administrativo, social ou educacional para garantia de proteção de crianças e adolescentes contra toda forma dediscriminação, violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos, exploração e abuso sexual. É pertinente ressaltar que a Convenção foi elaborada dentro de um quadro de garantia integral. Destarte, a norma internacional evidencia a necessidade de priorização na gestão estatal de forma a consolidar a perspectiva da criança como sujeito de direito. Dois dispositivos da convenção se dirigem para a ideia inicial de proteção na oitiva dos menores dentro de processos judiciais. O art. 12, primeiro artigo, composto por dois parágrafos, trata, respectivamente do direito à livre expressão e da oportunidade da criança ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem diretamente ou por meio de representante ou organismo adequado. Por sua vez, o art. 19, também constituído por dois parágrafos, trata da proteção contra todas as formas de violência e sugere programas de prevenção destinados a assegurar o apoio necessário à criança, bem como medidas sociais próprias para o acompanhamento dos casos de maus-tratos. Outros documentos, como a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança (1924), (elaborada no cenário após a I Guerra Mundial), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Declaração dos Direitos das Crianças (1959) prestaram contribuição no sentido de enunciar a necessidade de proteção especial, ainda que não fosse feita referência à forma de inquirição de menores em âmbito judicial. No Brasil, após uma evolução social e legislativa, e sob influência de alguns dos normativos internacionais anteriormente citados, culminou-se na promulgação do art. 227 da CF/1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei n. 8.069, de julho de 1990, estabelecendo-se o quadro- padrão com o paradigma da proteção integral em detrimento da doutrina da situação irregular, vinculada ao Código de Menores de 1979. Dentro desse contexto garantista e diante do cenário de grande número de demandas envolvendo crianças como depoentes, o Conselho Nacional de Justiça estabeleceu orientações aos tribunais brasileiros para a coleta de depoimento desses infantes por meio da Recomendação n. 33/2010. Em razão disso, foi sancionada em 2017 a Lei n. 13.431, corroborando com os direcionamentos do CNJ.” Ocorre, entretanto, que para nós chegarmos à Lei 13.431/2017, há uma longa história. Neste contexto, o melhor relato é do próprio José Antônio Daltoé Cezar, criador do “Depoimento Sem Dano”, narrado em artigo denominado “Depoimento Sem Dano/Depoimento Especial – treze anos de uma prática judicial”, na obra “Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes – Quando a Multidisciplinaridade Aproxima os Olhares”2, a quem peço licença para transcrever, confiando a ele sua autoria3 na íntegra, inclusive utilizando os tópicos semelhantes para ser fiel ao seu texto. 2.1 – Início da Prática O Brasil até 2003 desconhecia este método de proteção no meio jurídico. Tudo começou com José Antônio Daltoé Cezar, Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Magistrado desde 1987, quando implantou no Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre o Projeto Depoimento Sem Dano, utilizando meios eletrônicos e a intervenção direta de psicólogos e assistentes sociais nas inquisições judiciais de crianças e adolescentes vítimas de violência. O histórico dessa trajetória, contado pelo próprio, teve três momentos distintos: “Fazendo uma trajetória dos problemas que enfrentei na jurisdição, os quais determinaram que procurasse uma alternativa menos danosa para ouvir jovens vítimas de violência, especialmente sexual, nas instruções dos processos, recordo que em 1988, ano do meu ingresso na magistratura, na comarca de Santa Maria, já nos primeiros dias de trabalho, tive que ouvir uma menina de aproximadamente sete anos de idade, a qual era supostamente vítima de abuso sexual por parte do padrasto, um homem com mais de vinte anos de idade. Naquele momento relembro, eu, que vinha da advocacia civilista e fui por quatro anos empregado de uma instituição financeira, que em nenhum momento dos estudos que viabilizaram meu ingresso na magistratura essa possibilidade tivesse sido aventada (ouvir crianças vítima de violência), nem na graduação, nem nos cursos de preparação para o concurso, tampouco no próprio concurso, seja nas provas escritas ou orais. Por óbvio que com tamanho despreparo a escuta judicial dessa menina quase não ocorreu, e por mais esforço que fiz para ser acolhedor, e ainda tenha o acusado sido retirado da sala de audiências durante o depoimento, pouca ou nenhuma informação foi obtida, terminando ele, que estava preso preventivamente, sido liberado na mesma solenidade. A maior recordação que tenho daquele momento era o absoluto desconforto da menina naquele ambiente. Não parava tranquila na cadeira à minha frente, olhava para o teto insistentemente, balbuciava alguns sons que não eram passíveis de serem entendidos. Os anos se passaram, e em todas as comarcas na quais exerci a jurisdição, situações como aquela relatada, algumas com maior ou menor grau de sofrimento, sempre se repetiram, e nenhum movimento, nos meios jurídicos ou acadêmicos, foi apresentado para alterar essa prática judicial. Lembro também que anos após a experiência antes relatada, desta vez na comarca de São Leopoldo, ouvi uma adolescente de 12 anos que supostamente era vítima de um estupro com violência real. O acusado, um rapaz de 19 anos de idade, dizia-se apaixonado pela adolescente, inclusive propôs a casar com ela. O depoimento foi realizado com muito sofrimento, mesmo tendo o rapaz sido retirado da sala de audiências, a menina não parava de chorar, e em momento algum referiu ter consentido o ato sexual. Disse ter sido obrigada a manter relação sexual com o acusado, que usou de violência real, e que sequer o conhecia. Porém, o pior momento daquela audiência estava por vir. Ao final do depoimento da vítima, quando chorava ela compulsivamente, o defensor do acusado perguntou se ela havia gozado, em outras palavras, se ela sentiu-se prazerosamente satisfeita com o ato sexual. Por óbvio, a pergunta foi indeferida, mas ela foi ouvida pela adolescente, que ficou revoltada com aquele tipo de indagação. Merecia uma menina de 12 anos de idade, supostamente vítima de estupro com violência real, ouvir aquele tipo de pergunta? O sistema processual penal vigente não atua, permitindo esse tipo de prática, como vitimização secundária das vítimas que são chamadas a prestar declarações? Terceira recordação que tenho de momentos desagradáveis decorrentes de depoimentos prestados por jovens vítimas de violência ocorreu em 2002 em Porto Alegre, quando então atuava como Juiz da Infância e Juventude, em procedimento para apuração de ato infracional. Segundo a representação oferecida pelo Ministério Público, um adolescente de 17 anos de idade teria praticado violência sexual com uso de força contra uma menina de 07 anos de idade. Como nas vezes relatadas anteriormente, o momento do depoimento foi muito desconfortável para a vítima. Mesmo tendo o suposto infrator sido retirado da sala de audiências, ela nada conseguiu falar, sua fisionomia era de pavor, chorou muito. Como resultado, apenas mais um momento difícil para uma suposta vítima de violência sexual, sofrimento esse não decorrente da violência que sofreu, mas de uma exposição inadequada perante o sistema de justiça (dano secundário), e a liberação, sem qualquer responsabilização, de um provável praticante de um ato infracional grave. Aqui, dois males decorrentes de uma prática vetusta e inadequada, prevista em nossa legislação penal e no ECA, quais sejam, o sofrimento da vítima, que não teve espaço adequado para falar de suas tristezas, e o sentimento de impunidade que possivelmente aflorou naquela jovem, o qual provavelmente praticou um ato infracional de natureza grave.” Após a última audiência, Daltoé afirma que não mais ouviria nenhuma criança ou adolescentevítima de violência na forma estabelecida na legislação. Entretanto, após tomar esta atitude, observou que havia alguns obstáculos a serem superados para que os depoimentos fossem colhidos de forma mais acolhedora e satisfatória para o sistema de justiça, “[…] incluindo nesse as próprias partes, a saber: a) escolha de uma forma alternativa que viabilizasse a retirada do depoente de dentro da sala de audiências, sem que isso determinasse a não observância dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório; b) identificação de profissionais que se dispusessem a participar desse ato processual, salientando que inexiste previsão administrativa para o pagamento de tal tipo de trabalho; c) busca de modelos de escuta judicial em outros países, já que no Brasil, então, não se tinha conhecimento de nenhuma proposta acadêmica com o mesmo escopo”. Considerando a narrativa dos fatos que o levaram a não mais ouvir infantes vítimas de violência, precisava ele de meios para colocar em prática sua ideia: “foi então que tive conhecimento do livro publicado pela Dra. Veleda Dobke4, Promotora de Justiça de Porto Alegre, que apresentou dois modelos de inquirição de crianças realizados em outros países: a) sistema de videoconferência, com a criação de um espaço que permitisse a escuta da vítima sem que necessitasse ela estar presente na sala de audiências; b) a escuta da vítima através do equipamento denominado Câmara Gessell (sala de vidro espelhado), na qual os operadores do direito permanecem em uma sala contígua à sala de entrevista, vendo e assistindo ao depoimento, podendo em momentos apropriados interagir com o técnico que facilita a escuta. Obtidas as primeiras informações, pela estrutura física do Foro de Porto Alegre, em 2003, foi feita a opção pela audiência com videoconferência. Outra dúvida surgiu então. Quem arcaria com os custos dos equipamentos, já que não existia nenhuma experiência anterior, conhecida no país, que justificasse um gasto administrativo nesse sentido. A opção foi eu próprio adquirir uma câmera do estilo das câmeras de segurança hoje conhecidas, tendo o Promotor de Justiça João Barcelos de Souza Júnior (hoje Desembargador do TJRS) adquirido e adaptado um gravador, não digital, que ligasse o vídeo ao áudio. Um aparelho de TV antigo foi doado e colocado na sala de audiências, para que o depoimento pudesse ser visualizado. O segundo obstáculo, a identificação de profissionais que se dispusessem a participar desse ato processual, foi superado com maior facilidade, pois o fato de ser lotado em uma vara especializada da infância e da juventude, que então possuía equipe técnica própria (hoje não possui mais), consultados, assistentes sociais e psicólogos concordaram em participar do trabalho. O terceiro obstáculo, treze anos depois dos trabalhos se iniciarem, ainda está em desenvolvimento, pois somente agora os protocolos internacionais que regulamentam a audiência forense com jovens vítimas de violência estão sendo validados no país. A primeira audiência na forma apresentada ocorreu no ano de 2003, em um processo para destituição do poder familiar de um pai acusado de abusar sexualmente de uma filha adolescente, tendo, nesses trezes anos de prática, somente em Porto Alegre, centenas de depoimentos sido tomados com as preocupações aqui apresentadas.” Este, pois, é o início do Depoimento Especial, cuja origem se dera por uma necessidade de ouvir infantes vítimas de violências sexual, que se tornavam acuadas e revitimizadas diante da formalidade das regras processuais penais, somado à impunidade dos agentes pelo silêncio muitas vezes das vítimas em não querer relatar seus sofrimentos. 2.2 – Pioneirismo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em Reconhecer a Prática do Depoimento Sem Dano Alguns meses depois da primeira audiência do Projeto Depoimento Sem Dano, com inúmeros pedidos de Juízes para que o mentor do projeto realizasse na Capital gaúcha a escuta no novo método de crianças e adolescentes vítimas, surgiu a necessidade de apresentar um plano de trabalho à Corregedoria-Geral de Justiça, que à época era comandada pelo Desembargador Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, que na companhia de dois juízes auxiliares, compareceram no Fórum Central para conhecer a iniciativa, o que resultou na autorização para que fossem instalados equipamentos modernos, como mais salas em outras 25 comarcas do Estado. O projeto foi acolhido pela Casa Correcional, resultando a partir do trabalho realizado na Capital a expansão para o interior. No ano de 2008, por iniciativa do Poder Judiciário do RS, o parlamento gaúcho aprovou a Lei 12.913/2008, que alterou a Lei 9.896/1993, e foi sancionada pela Governadora do Estado, a qual autorizou que o Conselho da Magistratura, excepcionalmente, transferisse para os Juizados Regionais da Infância e da Juventude a competência dos julgamentos de adultos que praticassem crimes sexuais contra crianças e adolescentes. A Associação Nacional dos Defensores Públicos ajuizou a ADI n. 4.774, na qual postulava a declaração de ilegalidade da Lei 12.913/2008, por afrontar o ECA, que disciplina a competência das varas especializadas da infância e da juventude. Referido feito encontra-se pronto para ser julgado desde 23/04/20145, já tendo a PGR e AGU apresentado seus pareceres, ambos no sentido de que a ação seja julgada improcedente, cujo fundamento conclusivo daquele é no sentido de que “a norma atacada está não apenas de acordo com a Constituição e com o entendimento firmado por essa Suprema Corte, como também consulta os interesses de crianças e adolescentes que de alguma maneira participem dos processos a serem julgados pelos órgãos judiciários que a lei criou”. Com o advento da Lei 13.431/2017, que traz expresso em seu art. 23 que “os órgãos responsáveis pela organização judiciária poderão criar juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente”, acreditamos que pode ocorrer a perda do objeto da ADI. 2.3 – Obstinações dos Conselhos Federal de Serviço Social e de Psicologia O Conselho Federal de Serviço Social, por meio da Resolução n. 554, de 15 de setembro de 2009, conhecendo que no Depoimento Sem Dano, como técnicos facilitadores da entrevista, além de psicólogos, também atuavam assistentes sociais do quadro do TJRS, dispôs que não reconhecia a inquirição dos infantes vítimas de violência nos processuais judicias como sendo atribuição ou competência do profissional assistente social. A Resolução ainda concedeu prazo de 60 dias para que os profissionais adequassem suas atividades laborais ao que a partir de então era disciplinado, ou seja, parassem de trabalhar no projeto, sob às responsabilidades disciplinares ou éticas. O Conselho Federal de Psicologia, no mesmo sentido do Conselho de Serviço Social, editou a Resolução n. 10, de 29 de junho de 2010, na qual também proibiu expressamente que os profissionais da psicologia trabalhassem nas inquirições de crianças e adolescentes em situação de violência, estabelecendo que o não cumprimento dessa disposição constituiria falta ética-disciplinar, passível de capitulação nos dispositivos referentes ao exercício profissional do Código de Ética, sem prejuízo de outros que pudessem ser arguidos. O TJRS, por conta de atingir servidores técnicos do seu quadro, ajuizou ações perante a Justiça Federal postulando a suspensão das resoluções do CFESS e CFP, os quais foram julgados procedentes em todas as instâncias para o efeito de suspender permanentemente os seus efeitos, apenas no Rio Grande do Sul. No Ceará, em 2012, o MPF ajuizou Ação Civil Pública (n. 0004766- 50.2012.058100) e obteve a suspensão, também permanente, só que dessa vez em todo o território nacional, das Resoluções ns. 554/2009 do CFESS e de n. 10/2010 do CFP. A gestão – É de batalhas que se vive a vida – 2017 a 2020 – do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), no dia 20 de fevereiro de 2020, emitiu notasobre a Resolução n. 299/2019 do CNJ. Após uma análise histórica de uma década de discussões que sempre se manifestou contrário, voltou a reiterar “que assistentes sociais não possuem competência para a realização do depoimento ou oitiva de crianças e adolescentes. Assistentes sociais possuem conhecimentos que contribuem para o reconhecimento das necessidades das crianças, adolescentes e suas famílias e devem atuar para que sejam atendidas, com vistas à garantia e acesso de seus direitos”. E no final do documento recomendou: “1) Assistentes sociais dos Tribunais de Justiça não realizem oitiva e/ou inquirição de crianças e adolescentes, nem tampouco apliquem os protocolos e técnicas que fujam à formação de suas competências e atribuições profissionais; 2) Quanto aos procedimentos que antecedem e que são posteriores ao Depoimento Especial, ou que se articulam no processo de trabalho, devem-se observar os direitos fundamentais da criança e/ou adolescente, fazendo uso das garantias previstas em lei e considerando os fundamentos da Doutrina da Proteção Integral; 3) Importante destacar que, sempre que o/a profissional for requisitado/a realizar tarefa que não corresponda à situação de atendimento prioritário, por envolver proteção a situação de risco a crianças e adolescentes, realize informação por escrito em processo judicial ou protocolada no órgão adequado, indicando as implicações decorrentes do ato. E que, havendo negação do atendimento e/ou violação de direitos da criança e do/a adolescente, informe aos órgãos competentes e órgãos de controle correspondentes; 4) Profissionais que estejam sendo requisitados/as indevidamente na Rede de Proteção a realizar oitiva ou depoimento de crianças e adolescentes (inclusive sob a denominação de “escuta especial”) devem responder ao Judiciário, dentro do prazo estipulado na determinação, que não possuem competência profissional para realizar tal ato, estando impedido/a de fazê-lo de forma justificada, podendo, inclusive, se utilizar dos documentos produzidos pelo CFESS. Devem ainda, procurar o CRESS do seu estado e denunciar as situações de requisição indevida. Importante informar se a Comarca possui equipe interprofissional no quadro de servidores/as; 5) O CFESS recomenda que, dentre outras iniciativas, os CRESS devem protocolar as informações de queixas recebidas junto às Corregedorias dos Tribunais de Justiça ou Ministério Público (a depender da situação), bem como remeter ao CFESS as informações e mapeamento das situações no estado.” Acreditamos que, embora legítima a discussão, a tendência da recomendação é sua suspensão novamente, principalmente pelas decisões judiciais ocorridas em sede federal em 2002 (ACP n. 0004766- 50.2012.058100). No CNJ, pelo menos, já houve decisão contrária. O Plenário do Conselho Nacional de Justiça julgou improcedente, por unanimidade, o Procedimento de Controle Administrativo 0004543-46.2018.2.00.0000, apresentado pela Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do TJSP que buscava a nulidade do Provimento CGTJSP n. 17/2018. De acordo com o relator, Conselheiro Valtércio de Oliveira, psicólogos e assistentes sociais são profissionais capacitados para auxiliar os magistrados a viabilizar a escuta protegida. Deve-se ressaltar que “ao contra-argumento, psicólogos favoráveis ao depoimento especial explicitam que nas entrevistas realizadas o ritmo e o estado emocional da criança e do adolescente são respeitados, que o psicólogo, por suas competências técnicas, ao perceber limitações ou impossibilidades do entrevistado para falar sobre o ocorrido poderá, verbalmente ou por escrito, contraindicar o depoimento naquele momento. Em relação ao sigilo profissional é que não há quebra de dever de sigilo, pois no depoimento especial o psicólogo estaria ouvindo a criança em situação que lhe diz respeito, em um contexto de segredo de justiça. Sobre a autonomia profissional, é entendido que este é um espaço em que os psicólogos, com suas competências técnicas e metodológicas, podem intervir de forma interdisciplinar cada um com sua expertise, direito e psicologia”. (TABAJASKI, VICTOLLA E VISNIEVSKI, 2019, p. 736) Muzambinho, comarca pioneira no Estado de Minas Gerais a implantar o Depoimento Sem Dano, em 2009, enfrentou a mesma represália dos Conselhos em face das técnicas facilitadoras que colaboravam com a realização da escuta, inclusive ameaçando instauração de processo administrativo se não cessassem os trabalhos. As profissionais, respaldadas pelo Magistrado e pelas decisões favoráveis perante a Justiça Federal, mantiveram as escutas e não houve qualquer ingerência por parte dos órgãos às profissionais. Neste sentido será a tendência atual, como em todo o país, até porque há uma norma de regência nacional que prevê a oitiva de crianças e adolescentes por assistentes sociais e psicólogos. 2.4 – Instituto Childhood: Protocolo de entrevista Forense do NCAC (National Children´s Advocacy Center) Daltoé, em 2007, quando apresentava o Projeto Depoimento Sem Dano, conheceu duas pessoas – Benedito Rodrigues dos Santos e Itamar Batista Gonçalves – que se tornaram parceiros e deram publicidade ao projeto. Benedito era professor da Universidade Católica de Brasília e Itamar gerente de advocacy, da ONG Childhood Brasil, instituição ligada ao World Childhood Foundation, organização internacional criada em 1999 pela Rainha Silvia, da Suécia, que é brasileira, para proteger a infância, e ambos demonstraram interesse em participar do desenvolvimento do projeto, oferecendo apoio, recursos humanos e financeiros. No ano seguinte (2008) a Childhood elaborou um cronograma de viagens ao exterior para conhecimento das práticas existentes em outros países. Os países visitados foram Argentina, Inglaterra, Lituânia e Espanha. O resultado da viagem foi a publicação da obra Depoimento Sem Medo (?) – Culturas e Práticas Não-Revitimizantes7, em 2008, além de apresentar práticas adotadas por dezenas de países. Não parou por aí. A Childhood Brasil, buscando dar profissionalismo e foco acadêmico ao projeto, trouxe ao Brasil profissionais com reconhecimento internacional na matéria, entre eles, Chris Newlin, Diretor Executivo do Centro Nacional de Proteção à Infância, Alabama, EUA; Gail Goodman, Professora de Psicologia e Diretora do Centro de Pesquisa de Políticas Públicas na Universidade da Califórnia, Davis, EUA; e Pamela Hurley, Diretora do Projeto Criança-Testemunha do Centro para Criança e Famílias no Sistema de Justiça, Ontário, Canadá. Eles foram responsáveis por trazerem experiências de seus países e contribuíram nas capacitações dos técnicos judiciários que trabalhavam nos procedimentos judiciais, inclusive vinculados ao CNJ. O resultado foi a publicação, em 2014, do livro Escuta de Crianças e Adolescentes em Situação de Violência Sexual: Aspectos Técnicos e Metodológicos8. No ano de 2015, o professor Benedito Rodrigues dos Santos, com parceria da Childhood, deu início à validação acadêmica do protocolo de escuta de crianças e adolescentes em situação de violência, denominado Protocolo de Entrevista Forense de NCAC (National Children´s Advocacy Center), que foi adaptado para a realidade brasileira como Protocolo de Entrevista Forense com Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência Sexual. A Childhood Brasil tem convênio com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e a ENFAM (Escola Superior de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados) no sentido de colaborar com a capacitação de magistrados e servidores que trabalham no Depoimento Especial. 2.5 – Conselho Nacional de Justiça (CNJ): Reconhecimento. No ano de 2010 o CNJ, especificamente em 09 de novembro, em Sessão Ordinária de n. 116º, através do ATO n. 00006060- 67.2010.2.00.0000, aprovou, por unanimidade, a Recomendação n. 33/2010, dirigida a todos os Tribunais de Justiça dos Estados e o do DF e Territórios, para que nos processos envolvendo crianças e adolescentes vítimasde violência, quando de seus depoimentos em juízo, fossem observadas as seguintes orientações: a) implantação de sistema de depoimento videogravado para as crianças e os adolescentes, o qual deverá ser realizado em ambiente separado da sala de audiências, com a participação de profissional especializado para atuar nessa prática; b) capacitação de todos os profissionais que participam da escuta judicial, a partir de então denominada Depoimento Especial, usando os princípios básicos da entrevista cognitiva; c) o acolhimento deve contemplar o esclarecimento à criança ou adolescente a respeito do motivo e efeito de sua participação no depoimento especial, com ênfase à sua condição de sujeito em desenvolvimento e do consequente direito de proteção, preferencialmente com o emprego de cartilha previamente preparada para esta finalidade; d) os serviços técnicos do sistema de justiça devem estar aptos a promover o apoio, orientação e encaminhamento de assistência à saúde física e emocional da vítima ou testemunha e seus familiares, quando necessários, durante e após o procedimento judicial; e) implantação de medidas de controle de tramitação processual que promovam a garantia do princípio da atualidade, garantindo a diminuição do tempo entre o conhecimento do fato investigado e a audiência de depoimento especial. Daltoé ressalta “[…] que para a edição da Recomendação 33/2010, foi o trabalho incansável da Conselheira Morgana Richa, que buscou cercar-se de todas as informações sobre a matéria, e assim obter a anuência dos demais Conselheiros do CNJ, que emprestou todo o seu apoio para que a prática judicial fosse recomendada.” O resultado do esforço dos profissionais referidos é que deu ensejo à tramitação de projetos legislativos para que se tornasse uma realidade o Depoimento Especial. 2.6 – Projetos Legislativos A primeira tentativa de regulamentação do Depoimento Especial ocorreu no ano de 2006, na Câmara dos Deputados, por meio do Projeto de Lei que tomou o número 7.524, de autoria da Deputada Maria do Rosário (PT-RS), o qual acrescentava o Capítulo IV-A ao Código de Processo Penal de 1941, regulamentando a forma como seria feita a inquirição judicial de crianças e adolescentes, como vítimas e testemunhas. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal; contudo, nessa casa, após realização de audiência pública da qual participaram defensores e opositores, o entendimento foi de que o seu texto deveria ser incorporado ao projeto de lei do novo CPP que tramitava no Congresso Nacional (Disposições Especiais Relativas à Inquirição de Crianças e Adolescentes, artigos 192, 193 e 194), o qual foi posteriormente aprovado e encaminhado à Câmara dos Deputados. Como permaneceu parado por mais de seis anos sem que houvesse previsão para seu exame, um grupo de deputados vinculados à causa da infância e juventude de diversos partidos, novamente com a coordenação da Deputada Maria do Rosário, elaboraram o Projeto n. 3.792/2015, que estabelecia o sistema de garantia de direito de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência9. A justificativa do projeto teve como fundamento que o Brasil tem se ressentido da falta de legislação que proteja os direitos de crianças e adolescentes expostos ao sistema de justiça, seja como vítimas ou como testemunhas de violência física, psicológica, sexual e institucional. Frequentemente o que se vê é a falta de consideração quanto à condição de pessoas em desenvolvimento, o que resulta em violência institucional que se dá nas interações de crianças e adolescentes com os órgãos educacionais, de atenção e de proteção especial, assim como órgãos de segurança e justiça institucional. Crianças e adolescentes são expostos à vitimização secundária produzida pela ineficiência no trato da questão, e à vitimização repetida, quando ocorre mais de um incidente delitivo, ou ação ineficiente do Estado, ao longo de um período determinado. A criança e o adolescente pagam, portanto, um alto preço por entrarem em contato com o universo da violência, como vítimas ou testemunhas. Com essa preocupação estivemos em contato com magistrados, promotores de justiça, advogados e demais especialistas em direito e justiça da infância e adolescência para construir uma proposição legislativa que contemplasse as recomendações baseadas em normativas internacionais e na prática de tomada de depoimentos especiais em distintos países. O Grupo de Trabalho sobre o Marco Normativo da Escuta de Crianças e Adolescentes teve em sua composição renomados peritos na questão, entre eles, André Felipe Gomma de Azevedo, Beatriz Cruz da Silva, Benedito Rodrigues dos Santos, Casimira Benge, Daniel Issler, Eduardo Rezende Melo, Fabiana Gorenstein, Heloiza de Almeida Prado Botelho Egas, Itamar Batista Gonçalves, Ivanilda Figueiredo, João Batista Saraiva, José Antônio Daltoé Cezar, Luiziana Souto Schaefer, Robson Rui Campos de Almeida e Thiago André Pierobom de Ávila. Ao finalizar constou que o projeto de lei era essencial para o aprimoramento do sistema jurídico brasileiro e para a conformidade da legislação doméstica aos acordos internacionais de proteção dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes. Desse último trabalho legislativo surgiu a Lei 13.431, publicada em 04 de abril de 2017, regulamentada pelo Decreto n. 9.603, de 10 de dezembro de 2.018. 3 – SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE VÍTIMA OU TESTEMUNHA DE VIOLÊNCIA A Lei 13.431/2017 normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, e cria mecanismos para prevenir e coibir a violência. O Decreto n. 9.60310, de 10 de dezembro de 2018, regulamentou a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, e em sua Seção I do Capítulo II, traz a estrutura do sistema de garantia de direitos. A composição do Sistema de Garantia de Direitos e os responsáveis pela detecção dos sinais de violência são os órgãos, os programas, os serviços e os equipamentos das políticas setoriais que integram os eixos de promoção, controle e defesa dos direitos da criança e do adolescente. O sistema trabalhará de forma integrada e coordenada, garantidos os cuidados necessários e a proteção das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, os quais deverão (a) instituir, preferencialmente no âmbito dos conselhos de direitos das crianças e dos adolescentes, o comitê de gestão colegiada da rede de cuidado e de proteção social das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, com a finalidade de articular, mobilizar, planejar, acompanhar e avaliar as ações da rede intersetorial, além de colaborar para a definição dos fluxos de atendimento e o aprimoramento da integração do referido comitê; (b) definir o fluxo de atendimento; e (c) criar grupos intersetoriais locais para discussão, acompanhamento e encaminhamento de casos de suspeita ou de confirmação de violência contra crianças e adolescentes. O sistema tem toda uma estrutura de proteção à criança e adolescente para garantir seus direitos, que será analisado de acordo com os dispositivos na norma em comento. 4 – PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA O primeiro dispositivo da lei traz seu objetivo específico: “normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência”. A aplicação e interpretação da norma veremos adiante, quando da análise do art. 3.º; contudo, desde já, podemos verificar que a lei deixou claro que ela veio para normatizar e organizar a oitiva de crianças e adolescentes. A lei criou regras específicas de escuta, organizando os procedimentos dentro de um sistema de garantia às crianças e adolescentes, sejam elas vítimas ou testemunhas de violência pela própria norma definidas, com mecanismos de prevenção e coibição da violência. Os infantes – crianças e adolescentes– serão ouvidos de duas formas: escuta especializada, que é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade (art. 7.º); e depoimento especial, que é o procedimento de oitiva da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária (8.º). A normatização da escuta protegida veio para atender a uma garantia constitucional: Princípio da Prioridade Absoluta (CF, art. 227, como previsto nos arts. 4.º e 100, parágrafo único, II, do Estatuto da Criança e Adolescente11). Está previsto na Carta Magna que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente tem origem relativamente recente. No direito romano, com a separação dos pais os filhos ficavam com o pai, tendo em vista a concepção vigente à época de que o pai era o senhor e proprietário de tudo, inclusive dos filhos. No século XIV, surgiu na Inglaterra o instituto do parens patriae, que se consubstanciava em uma prerrogativa do Rei e da Coroa para proteger pessoas incapazes e suas propriedades; no século XVII, houve a diferenciação das atribuições do parens patriae para a proteção das crianças e dos loucos, impondo-se assim outros standards de conduta, ou seja, a variação do tratamento conforme a situação diferenciada. Foi nesse período de transformações que se constatou que o sistema de tutela da criança e do adolescente passava por políticas públicas, ou seja, dada a necessidade de tutela diferenciada da criança e do adolescente, era necessária a intervenção do Estado. No âmbito dessa mudança de comportamentos teve início, já no século XIX, a presunção de que os pequenos, até os sete anos de idade, deveriam ficar com a mãe, em princípio a pessoa mais adequada para cuida da criança (tender years presumption). Embora pudesse parecer, à primeira vista, que se tratara de uma simples mudança, do ambiente paterno ao materno, foi uma alteração de grandes proporções, em virtude de sua justificativa: a presunção do ambiente materno fundava-se essencialmente nos ‘melhores interesses das crianças’. O princípio do Best Interest foi consagrado no 7.º Princípio da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, segundo o qual, “os melhores interesses da criança serão a diretriz a nortear os responsáveis pela sua educação e orientação; esta responsabilidade cabe, em primeiro lugar, aos pais”. Dando seguimento à Declaração de 1959, a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, fixou no art. 3.º, 1, que “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança”. O princípio do “melhor interesse da criança” é corolário da doutrina da proteção integral, que perpassou os mandamentos da Carta Magna de 1988. Tal doutrina sustenta que a criança e o adolescente têm direitos específicos a serem protegidos. O dever de proteção não se limita ao Estado, mas se estende à família e à sociedade, constituindo um dever social. Não obstante os inquestionáveis avanços, ainda existem graves obstáculos que distanciam a tutela integral da criança da realidade. Vive-se, assim, na prática brasileira, um concreto problema de eficácia das normas que atribuem à criança e ao adolescente um extenso rol exemplificativo de direitos e garantias fundamentais; por outro lado, basta verificar a violência doméstica, abuso sexual, mortalidade infantil, trabalho infantil, trabalho escravo, prostituição infantil, descumprimento dos deveres paternais, dentre outros. A escuta especializada e o depoimento especial vêm ao encontro desses direitos para garantir aos infantes a proteção do Estado para narrarem as violências sofridas ou que presenciaram evitando a revitimização. 5 – DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES O Brasil, segundo Luciano Maia12 (2008, p. 117), é parte de quase todas as convenções e tratados de direitos humanos celebrados no âmbito das Nações Unidas. Dentre eles, os principais instrumentos internacionais de proteção e defesa dos Direitos Humanos são: Pacto Internacional dos Direitos Civil e Políticos (1966), incorporado ao Direito Brasileiro pelo Decreto n. 592, de 07/07/1992; Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), incorporado ao Direito Brasileiro pelo Decreto n. 592, de 07/07/1992; Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968), incorporado ao Direito Brasileiro pelo Decreto 65.810, de 09/12/1969; Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), incorporado ao Direito Brasileiro pelo Decreto 89.460, de 20/03/1984; Convenção Sobre os Direitos da Criança (1989), incorporado ao Direito Brasileiro pelo Decreto 99.710, de 21/11/1990; e Convenção Contra a Tortura e Outras Formas de Tratamento Desumanos ou Cruéis (1984), incorporado ao Direito Brasileiro pelo Decreto n. 98.386, de 09/11/1989, e pela Lei 9.455/97. Hoje a Convenção sobre os Direitos da Criança é um dos instrumentos mais importantes reconhecidos internacionalmente, mas no passado recente não era assim. O início do debate internacional sobre os Direitos das Crianças e Adolescentes tem um marco: caso Marie Anne. BASTOS13 retrata este caso, que teve grande repercussão no século XIX. Ocorreu na cidade de Nova York, no EUA. A menina (Maria Anne) tinha nove anos e sofria maus-tratos pelos pais, o que desencadeou uma grande repercussão no ano de 1896, fazendo com que o caso chegasse aos tribunais. No entanto, até aquele momento não existia, no sistema judiciário norte-americano, uma entidade destinada à proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes, o que desencadeou um sentimento de defesa por parte da Sociedade Protetora dos Animais, que alegou que até mesmo os animais devem ser livres de uma vida de agressões, tratamentos violentos ou degradantes. A primeira referência que se tem, em âmbito internacional, sobre a proteção específica dos direitos humanos da infância e da adolescência é a Juvenile Court Art de Illinois, que foi o primeiro Tribunal de Menores nos Estados Unidos, criado em 1899. A ideia espalhou-se pela Europa entre 1905 e 1921, quando praticamente todos os países europeus criaram seus Tribunais de Menores (SPOSATO, 2006, p. 3314). No entanto, foi após a Primeira Guerra Mundial, quando um grande número de crianças e adolescentes tinham se tornado órfãos, que “os menores” começaram a ter reconhecidos seus direitos, com a criação de um Comitê de Proteção da Infância pela Liga das Nações em 1919, considerado o primeiro órgão governamental supranacional a aprimorar e focar seu trabalho nas crianças (VANNUCHI; OLIVEIRA, 2010, p. 3315). Em 1924 incorporou-se pela Liga das Nações, reunida em Genebra, pela primeira vez a expressão Declaração dos Direitos da Criança, resultado de um trabalho do Comitê de Proteção da Infância. Essa declaração, que foi elaborada e redigida por membros da ONG Sav the Children, representa o primeiro documento internacional sobre os Direitos da Criança, buscando garantir a proteção e motivar os Estados- Membros a estabelecerem dispositivos que garantissem a proteção dessa população em âmbito nacional. Veio a Segunda Guerra Mundial e graves direitos dos infantes foram atingidos, milhares de crianças ficaram órfãs ou deslocadas de seuspais e famílias; atrocidades ocorreram envolvendo crianças e adolescentes. A ONU criou o fundo de ajuda internacional (Unicef – United Nations International Child Emergency Fund) com o objetivo de socorrer “os menores” a partir dos países devastados pela guerra, mas se exigia algo mais. A ONU, então, em 1959, dá mais abrangência com a Declaração Universal dos Direitos da Criança, na qual reafirma a importância de se garantir a universalidade, a objetividade e a igualdade nas questões relativas aos direitos da criança. A partir dessa declaração as crianças e adolescentes passaram a ser considerados prioridade absoluta e sujeitos de direitos em sentido amplo. ANGÉLICA BARROSO BASTOS16 afirma que apesar de se reconhecer uma proteção especial às crianças prevista em documentos internacionais como a Declaração de Genebra, de 1924, e a Declaração dos Direitos importantes, como de 1959, a doutrina da Proteção Integral somente ganhou contornos mais definidos em 1963, com o Congresso Pan- americano realizado em Mar del Plata, na Argentina, quando a Proteção Integral do Menor foi tema central. Com base nesse congresso ocorreu em 1969 a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (conhecida como Pacto de San José da Costa Rica), na qual se estabeleceu o conceito de proteção integral, definindo no art. 19 que “toda a criança tem o direito de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado” (COSTA, 2004, p. 01). 6 – RESOLUÇÃO Nº 20/2005 DO CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL DAS NAÇÕES UNIDAS E OUTROS DIPLOMAS INTERNACIONAIS As Nações Unidas, por meio do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas – ECOSOC –, elaboraram a Resolução n. 20/2005, que estabelece diretrizes internacionais para que os órgãos jurisdicionais dos estados participantes adotem com a finalidade de garantir a integridade e os direitos das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes. O anexo17 da Resolução prevê a estrutura no Ato Administrativo. O escopo da Resolução são os procedimentos adotados em face dos infantes, que também garantem o direito à ampla defesa do autor da violência, equilibrando, assim, os direitos, as garantias e a eficácia do processo, protegendo a criança e o adolescente. O Relatório Analítico Propositivo – JUSTIÇA PESQUISA – A Oitiva de Crianças no Poder Judiciário Brasileiro, com foco na implementação da Recomendação n. 33/2010 do CNJ e da Lei 13.431/201718, aborda em síntese as diretrizes, os princípios, direitos e as boas práticas para oitiva de crianças e adolescentes: “As diretrizes que devem ser adotadas pelos países inseridos nas Nações Unidas estão anexadas ao relatório. Nela estão estabelecidos objetivos que devem ser perseguidos pelos estados, quais sejam: (a) revisão de leis e procedimento internos, com finalidade de garantir-se a compatibilidade principiológica; (b) auxílio aos governos, organizações não governamentais na formulação e aplicação da legislação, políticas e programas; (c) orientação de profissionais e voluntários; (d) orientação e ajuda aos que lidam diretamente com as crianças em processo, para que confiram a estas tratamento sensível e compatível à vulnerabilidade. Por conseguinte, são estabelecidos na resolução em comento princípios que devem nortear os operacionalizadores dos processos que envolvam crianças. São eles: (1) dignidade relacionada diretamente ao respeito da criança; (2) não discriminação, enquanto postulado da isonomia, que indica que o tratamento deve ser o mesmo para toda e qualquer criança; (3) melhor interesse da criança, evidenciado na proteção integral e preocupação com o desenvolvimento harmonioso; e, por fim, (4) participação, na perspectiva de que a criança e o adolescente são, sobretudo, sujeitos de direito com direito à voz e de serem ouvidos em processo, precipuamente aos que lhe digam respeito. A Resolução n. 20/2005 ainda elenca direitos que devem ser observados no âmbito dos países, quais sejam: (1) direito a tratamento digno e com compaixão; (2) direito à proteção de qualquer discriminação; (3) direito à informação de forma abrangente; (4) direito a ser ouvido e a expressar opiniões e preocupações; (5) direito à assistência eficaz; (6) direito à privacidade; (7) direito à proteção quanto às eventuais adversidades processuais; (8) direito à segurança; (9) direito à reparação; (10) direito a medidas preventivas especiais. Por fim, na resolução há preocupação com a implementação das denominadas boas práticas para oitiva de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas em processos criminais. Enfatiza-se que o principal aspecto para se garantir a realização da prova eficientemente no processo penal com a preservação dos direitos da criança depende da qualificação dos profissionais. Portanto, um dos esforços na implementação é a formação, educação, informação e treinamento continuados dos profissionais que realizam procedimentos de oitiva de crianças e adolescentes. Há que se focar no desenvolvimento de competências para implementação do DE, conforme expõe Marleci V. Hoffmeister (2019, p. 116): […] ao se falar em processo de capacitação, não podemos perder de vista a estreita relação que há com o termo competência, pois não basta ter recebido capacitação se o profissional não desenvolveu as competências para planejar, executar, desenvolver”. Diretrizes sobre Justiça para as crianças vítimas ou testemunhas de crimes, portanto, estabelecem boas práticas baseadas no consenso do conhecimento contemporâneo e das normas, padrões e princípios internacionais e regionais relevantes e devem ser aplicadas em conformidade com a legislação nacional e os procedimentos judiciais pertinentes, bem como ter em conta as condições jurídicas, sociais, econômicas, culturais e geográficas. No entanto, os Estados devem esforçar-se constantemente para superar dificuldades práticas na aplicação das Diretrizes. 7 – PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES NO BRASIL A Lei 8.069/90 (ECA) operou uma verdadeira revolução no ordenamento jurídico nacional, introduzindo novos paradigmas na proteção e garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes. A norma estatutária regulamentou a doutrina da proteção integral, recepcionada pelo art. 227 da CF, apresentando um diploma inovador, verdadeiro instrumento da democracia participativa, retirando dos infantes a condição de mero objeto de medidas policiais e judiciais, conferindo-lhes a posição de sujeitos de direitos fundamentais. Deu-se a condição de prioridade nacional, fornecendo meios necessários à efetivação de seus interesses, direitos e garantias. O Estatuto da Criança e do Adolescente é considerado mundialmente um dos melhores textos legais sobre a matéria relacionada a proteção de crianças. A doutrina de proteção integral adotada pelo ECA decorre da Convenção dos Direitos da Criança. O art. 2.º, item 2, da Convenção dos Direitos da Criança, dispões sobre o termo proteção. O art. 19 obriga todos os Estados a adotar medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas a proteger as crianças contra todas as formas de violência. Daí a origem da referida norma-base do ECA: o art. 19 da convenção. O ECA perfilha a doutrina da proteção integral, baseada no reconhecimento de direitos especiais e específicos de todas as crianças e adolescentes (v. art. 3.º). Embora a Convenção não faça expressa menção ao termo proteção integral, esse novo paradigma fica evidenciado diante da grande quantidade de direitos reconhecidos. Foi anteriormente prevista no texto constitucional, no art. 227, instituindo a chamada prioridade absoluta. A palavra informa a precedência, a “prima facie” dos direitos da criança e do adolescente em confronto com os outros. Isso em razão da fragilidade e da vulnerabilidade, devendo existir um regime especial de proteção (Luís Carlos Barroso, voto proferido no RExt 777889). Assim, a doutrina da proteção integral e o princípiodo melhor interesse são duas regras basilares do direito da infância e da juventude que devem permear todo tipo de interpretação dos casos envolvendo crianças e adolescentes. Trata-se da admissão da prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente. 8 – MEDIDAS DE ASSISTÊNCIA E PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Ao final do disposto, observa-se que o legislador frisou a observação da norma às medidas de assistência e proteção. A norma garante a proteção integral, o que já estava previsto em outros ordenamentos jurídicos, mas acresceu regras de assistência diante da violência, que são medidas que podem ser adotadas contra o agressor ou usadas pelos infantes, a saber: a) receber assistência jurídica qualificada e psicossocial especializada, e facilite a sua participação e o resguarde contra comportamento inadequado adotado pelos demais órgãos atuantes no processo; b) ser assistido por profissional capacitado e conhecer os profissionais que participam dos procedimentos de escuta especializada e depoimento especial; e c) direito a pleitear medidas protetivas contra o autor da violência; etc. O importante dentro de todo o ordenamento da novel legislação é que está garantida a proteção dos infantes para relatar seus sofrimentos sem revitimização, embora encontremos alguns poucos doutrinadores que ainda acham tempo para criticar essa iniciativa afirmando que esse tipo de legislação serve apenas como lei que promete garantias contraditórias, quando o real não atinge o ideal (triste assim!). Art. 2º Art. 2º A criança e o adolescente gozam dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas a proteção integral e as oportunidades e facilidades para viver sem violência e preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e social, e gozam de direitos específicos à sua condição de vítima ou testemunha. Parágrafo único. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios desenvolverão políticas integradas e coordenadas que visem a garantir os direitos humanos da criança e do adolescente no âmbito das relações domésticas, familiares e sociais, para resguardá-los de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, abuso, crueldade e opressão. Legislação Correlata CF, arts. 1.º, III, 3.º, IV, 5.º, caput, I, 226, §8.º, parte final, e 227, caput, parte final, e §4.º; Lei 13.431/2017, arts. 4.º, §4.º, 14, 16, parágrafo único, e 25; ECA, arts. 3.º, 4.º, caput e parágrafo único, 5.º, 17, 18, 70-A, 86 e 100, parágrafo único, I, II e III, e 208, XI; e Decreto n. 9.603/2018. Análise Doutrinária 1 – DESCRIÇÕES DE UMA HISTÓRIA SEM DIREITOS 2 – A CRIANÇA E O ADOLESCENTE COMO SUJEITOS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS 3 – DIREITOS FUNDAMENTAIS INERENTES À PESSOA HUMANA 4 – APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 5 – ATENDIMENTO PELO PODER PÚBLICO 1 – DESCRIÇÕES DE UMA HISTÓRIA SEM DIREITOS Os infantes, crianças e adolescentes, até há pouco tempo não gozavam de qualquer direito. A história nos conta isso. NUCCI19, utilizando a lição de André Karst Kaminski, conta-nos esta história: “na época medieval, sob os olhos europeus, os menores não tinham quase nenhum valor, pois não produziam com a mesma capacidade do adulto e ainda tinham de ser alimentados, cuidados, vestidos… Enfim, eram indivíduos dependentes, motivo pelo qual muitos acabavam morrendo pelo abandono, pela negligência ou pela exploração quando vendidos para servir de escravos, ou embarcados para servir de mão de obra nas navegações, empreendendo esforços sobre-humanos, consumindo alimentação estragada e convivendo em um ambiente desprovido das mínimas condições de saúde e higiene. Além disso, e em decorrência da proibição da presença de mulheres nos navios, o que envolvia também um certo misticismo de que atraíam o azar à expedição, o menor era também seviciado, servindo de ‘mulher’ nas embarcações, que às vezes lotavam mais de 80 homens e ficavam no mar por quase um ano. (…) Essa, então, foi a primeira criança – portuguesa – que aqui chegou: abandonada, vendida, explorada, seviciada. Depois, sabemos, a mesma forma de tratamento dos conquistadores continuou com a criança indígena – brasileira – que aqui foi encontrada, ludibriada, dominada, reduzida em sua liberdade e escravizada, mesmo contra a vontade dos jesuítas católicos, que depois para cá vieram a fim de catequizá-las (em 1570, D. Sebastião redige a Carta Régia, garantindo liberdade aos índios, cuja escravidão só seria definitivamente proibida em 1595). E isso também se seguiu por um longo período com a criança africana, já nascida filha da escravidão (em 1538 começam a chegar os primeiros escravos africanos: no Período Colonial, mais de quatro milhões foram trazidos, a grande maioria jovens do sexo masculino)” – O Conselho Tutelar, a Criança e o ato infracional: proteção ou punição?, p. 15. Na sequência, citando Lidia Natalia Dobrianskyj Weber, Laços de Ternura, Pesquisas e Histórias de Adoção, p. 28, traz outro trecho desta história sem direitos: “[…] desde a Antiguidade, em praticamente todas as sociedades, o abandono ou exposição de crianças e, mesmo o infanticídio, eram práticas comuns. Nesta época a família estava sob a autoridade do pai, o qual tinha direito à vida e à morte sobre seus filhos. Para os romanos, o direito à vida era outorgado em um ritual, geralmente pelo pai, que tinha direitos ilimitados sobre seus filhos. O recém-nascido era depositado aos pés de seu pai e, se ele desejasse reconhece-lo, tomava-o em seus braços; se o pai saía da sala, a criança era levada para fora da casa e exposta na rua. Se a criança não morria de fome ou de frio, pertencia a qualquer pessoa que desejasse criá-la e transformá-la em escrava. Legalmente, esse direito durou até o século IV d. C., mas informalmente, o infanticídio e o abandono eram práticas comuns até o final da Idade Média. É possível perceber o clima reinante por um pensamento do famoso filósofo Aristóteles, que dizia: ‘um filho e um escravo são propriedade dos pais e nada do que se faça com sua propriedade é injusto, pois não pode haver injustiça com a propriedade de alguém’ (Roig e Ochotorena, 1993)”. Somente em época recente passamos a valorar nossas crianças e adolescentes, conferindo a eles direitos com proteção integral. 2 – A CRIANÇA E O ADOLESCENTE COMO SUJEITOS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Segundo J. J. Gomes Canotilho20, direitos fundamentais “são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio- temporalmente […] direitos fundamentais seriam os direitos objetctivamente vigentes numa ordem jurídica concreta”. Esses direitos são considerados inatos ao ser humanos e estão previstos na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e presentes nos Estados Democráticos de Direito. A Constituição de 1988 previu e assegurou em seu art. 5.º os direitos fundamentais. No que tange à criança e ao adolescente, o legislador constituinte particularizou dentre os direitos fundamentais aqueles que se mostram indispensáveis à formação do indivíduo ainda em desenvolvimento, elencando-os no caput do art. 227: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar. O Estatuto da Criança e do Adolescente consagrou em seu artigo 3.º a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, e não como objetos. Está previsto no ECA que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata o estatuto, assegurando-se, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. O dispositivo em análise é quase uma reprodução do que já prevê o art. 3.º do ECA, sendo decorrência natural do contidono art. 5.º, caput, e inciso I, da CF, que confere a todas as crianças e adolescentes igualdade de direitos em relação a todos os demais cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no país. A garantia prevista na ordem jurídica é que, apesar da ausência da plena capacidade civil, as pessoas em desenvolvimento têm o poder de ostentarem, como titulares, prerrogativas inerentes ao exercício de direitos fundamentais. Poderão, pois, exercer livremente os direitos humanos reconhecimentos internamente que, positivados, passam a ostentar o status de fundamentais. 3 – DIREITOS FUNDAMENTAIS INERENTES À PESSOA HUMANA A Constituição Federal de 1988, no caput do art. 5.º, reconhece como titular de direitos fundamentais, orientada pelo princípio da dignidade humana (inciso III do art. 1.º) e pelos conexos princípios da isonomia e da universalidade, toda e qualquer pessoa, seja ela brasileira ou estrangeira residente no País. O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana, pode ser definido como direitos fundamentais. Esses direitos têm elevada posição hermenêutica em relação aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, diante das diversas características presentes21: imprescritibilidade (os direitos humanos fundamentais não se perdem pelo decurso do prazo), inalienabilidade (não há possibilidade de transferência dos direitos humanos fundamentais), inviolabilidade (impossibilidade de desrespeito por determinações infraconstitucionais ou por atos das autoridades públicas, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e criminal), universalidade (a abrangência desses direitos engloba todos os indivíduos, independentemente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou convicção político-filosófica), efetividade (a atuação do Poder Público deve ser no sentido de garantir a efetivação dos direitos e garantias previstos, com mecanismo coercitivos para tanto, uma vez que a Constituição Federal não se satisfaz com o simples reconhecimento abstrato), interdependência (as várias previsões constitucionais, apenas de autônomas, possuem diversas intersecções para atingir suas finalidades) e complementaridade (os direitos humanos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas na forma conjunta, com a finalidade de alcance dos objetivos previstos pelo legislador constituinte). A Carta Magna, em seu Título II, classificou os direitos fundamentais em cinco capítulos: Direitos Individuais e Coletivos (correspondem aos direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de sua própria personalidade, v.g., vida, dignidade, honra e liberdade, estando previstos no art. 5.º), Direitos Sociais (tem por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, que configura um dos fundamentos de nosso Estado Democrático, estando consagrado no art. 6.º), Direitos de Nacionalidade (é o vínculo jurídico político que liga um indivíduo a certo e determinado Estado, fazendo desde indivíduo um componente do povo, da dimensão pessoal deste Estado, capacitando-o a exigir sua proteção e sujeitando-o ao cumprimento de deveres impostos), Direitos Políticos (conjunto de regras que disciplina as formas de atuação da soberania popular) e Direitos Relacionados à Existência, Organização e Participação em Partidos Políticos (a CF regulamentou os partidos políticos como instrumentos necessários e importantes para preservação do Estado Democrático de Direito, assegurando- lhes autonomia e plena liberdade de atuação, para concretizar o sistema representativo). O respeito aos direitos humanos fundamentais, principalmente pelas autoridades públicas, é pilastra mestra na construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. A previsão dos direitos humanos fundamentais direciona-se basicamente para a proteção à dignidade humana em seu sentido mais amplo. A norma que instituiu o Depoimento Especial assegura que a criança e o adolescente gozam dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. 4 – APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Constituiu-se regra assegurar a proteção integral e as oportunidades e facilidades para viver sem violência e preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e social, gozando, ainda, de direitos específicos à sua condição de vítima ou testemunha. A criança e o adolescente em decorrência de sua idade, estágio de formação da personalidade, deve ter-lhe assegurado viver em um mundo sem violência, preservando sua saúde, seja física ou mental, para que possa se desenvolver moral e intelectualmente dentro do seio social. Ocorrendo, entretanto, qualquer violência definida na lei (art. 4.º), seja ela vítima ou testemunha, é-lhe assegurada nessas condições a aplicação dos direitos fundamentais, evitando, assim, que sofra mais com seus horrores. 5 – ATENDIMENTO PELO PODER PÚBLICO Os entes federados deverão desenvolver políticas integradas e coordenadas que visem a garantir os direitos humanos da criança e do adolescente no âmbito das relações domésticas, familiares e sociais, para resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, abuso, crueldade e opressão. O legislador avocou o Poder Público para realizar essa tarefa de política de atendimento. O Decreto n. 9.603/2018, de 10 de dezembro de 2018, que regulamentou a Lei 13.431/2017, reforçou esse entendimento ao imputar a ele (Poder Público) o dever de assegurar as condições de atendimento adequadas para que crianças e adolescentes vítimas de violência ou testemunhas de violência sejam acolhidos e protegidos e possam se expressar livremente em um ambiente compatível com suas necessidades, características e particularidades (art. 8.º). Esse atendimento deve ocorrer dentro do sistema de garantia de direitos22. Art. 3º Art. 3º Na aplicação e interpretação desta Lei serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento, às quais o Estado, a família e a sociedade devem assegurar a fruição dos direitos fundamentais com absoluta prioridade. Parágrafo único. A aplicação desta Lei é facultativa para as vítimas e testemunhas de violência entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos, conforme disposto no parágrafo único do art. 2º da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Legislação Correlata CF, art. 227, caput, e §4.º; Lei 13.431/2017, arts. 4.º, § 4.º, 14, 16, parágrafo único, e 25; ECA, arts. 1.º, 2.º, caput e parágrafo único, 4.º, 5.º, 6.º e 100, parágrafo único, II e IV; Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013); Leis 12.318 e 12.318/2010; e Decreto n. 9.603/2018. Análise Doutrinária 1 – APLICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA LEI DO DEPOIMENTO ESPECIAL 2 – FINS SOCIAIS DA NORMA 3 – APLICAÇÃO À ÁREA CÍVEL 4 – CONDIÇÕES PECULIARES DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE EM DESENVOLVIMENTO 5 – GARANTIAS ASSEGURADAS PELO ESTADO, FAMÍLIA E SOCIEDADE 5.1 – Garantias Asseguradas pelo Estado 5.2 – Garantias Asseguradas pela Família 5.3 – Garantias Asseguradas pela Sociedade 6 – APLICAÇÃO FACULTIVA 1 – APLICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA LEI DO DEPOIMENTO ESPECIAL No direito brasileiro quem disciplina a aplicação das leis em geral é a Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro (Lei 12.376/2010). Sua função é reger as normas, indicando como interpretá-las ou aplicá- las, determinando-lhe a vigência e a eficácia. O intérprete, dentro desse contexto, deve examinar a norma de acordo com as regras do vernáculo, utilizando de raciocínio lógico para uma análise metódica da norma em toda a sua extensão, desvendando seu sentido e alcance a partir do ordenamento jurídico de que é parte,relacionando-se com todas as outras com o mesmo objetivo, direta ou indiretamente, partindo da premissa dos seus antecedentes históricos, verificando-se as circunstâncias fáticas e jurídicas que lhe antecederam, tomando como parâmetro a sua finalidade, adaptando-a às novas exigências sociais. A Lei 13.431 foi publicada no Diário Oficial da União em 05 de abril de 2017, e teve período de vacatio legis de um ano (art. 29), entrando em vigor em 05 de abril de 2018 (art. 29). O primeiro dispositivo da lei traz seu objetivo específico: “normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência”. São dois verbos bem definidos: normatizar e organizar. A lei criou regras específicas de escuta, organizando os procedimentos dentro de um sistema de garantia23 às crianças e adolescentes, sejam elas vítimas ou testemunhas de violência pela própria norma definidas, com mecanismos de prevenção e coibição da violência. Os infantes – crianças e adolescentes – serão ouvidos de duas formas: escuta especializada, que é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade (art. 7.º); e depoimento especial, que é o procedimento de oitiva da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária (8.º). Considera-se criança, para os efeitos do Estatuto da Criança e do Adolescente, a pessoa até doze anos de idade incompletos e adolescente aquele entre doze e dezoito anos de idade (ECA, art. 2.º); contudo, é facultada a aplicação da norma entre os 18 e 21 anos (LDE, art. 3.º, parágrafo único). Adota-se um critério cronológico absoluto, sem qualquer menção à condição psíquica ou biológica. Assim, é o aniversário de 12 anos que faz a criança tornar-se adolescente, e o aniversário de 18 anos que faz o adolescente tornar-se adulto. A aplicação da norma, sem prejuízo dos princípios estabelecidos nas demais normas nacionais e internacionais de proteção dos direitos da criança e do adolescente, terá como base, entre outros, os direitos e as garantias fundamentais definidos no art. 5.º da lei. A lei se aplica às vítimas ou testemunhas das violências definidas na norma, que são: física, psicológica, sexual e institucional (art. 4.º). Os casos omissos serão interpretados à luz do disposto na Lei 8.069/90 (ECA) e Lei 11.340/06 (MARIA DA PENHA)24. 2 – FINS SOCIAIS DA NORMA Quando da análise de uma norma, seja nas cadeiras acadêmicas dos cursos de direito, seja na vida profissional atuando como advogado, defensor, promotor, magistrado, todo o profissional do direito é conduzido a entender que quão melhor conhecer a lei, seus dispositivos etc. mais corretamente fará sua aplicação. Sabemos todos que há várias técnicas ou processos interpretativos – gramatical ou literal, lógico, sistemático, histórico e sociológico ou teleológico –, teorias – objetiva (mens legis) ou subjetiva (mens legislatoris) – ou efeitos da interpretação – declarativo, extensivo ou restritivo –; contudo, a abordagem neste ponto cinge-se quanto ao fim social da norma, que está previsto no art. 5.º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei 12.376/2010). Todo intérprete deve ter consciência e saber que o sentido legal para aplicar a norma ao caso concreto é empregar todas as técnicas interpretativas e os meios integradores, combinando, entre si, sem, contudo, esquecer do fim social a que se dirige e as exigências do bem comum. Não há lei que não contenha uma finalidade social imediata. Para Aristóteles: “O fim é a causa final ou aquilo em razão do qual algo se faz.” (Ética nicomaquea, VII, 8, 1151)25. O princípio da finalidade da lei norteia toda a tarefa interpretativa na busca da autêntica mens legis; por estar, como ensina Celso Bandeira de Mello26, contido no princípio da legalidade, logo a aplicação da lei em desconformidade com seus fins constitui ato de burlar a lei, pois quem desatende ao fim legal está desvirtuando a própria lei. Maria Helena Diniz afirma que na falta de definição do termo “fim social” o intérprete-aplicador em cada caso sub judice deverá averiguar se a norma a aplicar atende à finalidade social, que é variável no tempo e no espaço, aplicando o critério teleológico na interpretação da lei, sem desprezar os demais processos interpretativos. Procederá técnica teleológica, mostrando a utilidade em vincular o ato interpretativo do magistrado à sua decisão, tendo em vista um dado momento. O fim social é o objetivo de uma sociedade, encerrado na somatória de atos que constituirão a razão de sua composição; é, portanto, o bem social, que pode abranger o útil, a necessidade social e o equilíbrio de interesses etc. O intérprete-aplicador poderá (a) concluir que um caso que se enquadra na lei não deverá ser por ela regido porque não está dentro de sua razão, não atendendo à finalidade social; (b) aplicar a norma a hipóteses fáticas não contempladas pela letra da lei, mas nela incluídas, por atender a seus fins. Consequentemente, fácil será perceber que comando legal não deverá ser interpretado fora do meio social presente; imprescindível será adaptá-la às necessidades sociais existentes no momento de sua aplicação. O propósito, a finalidade, consiste em produzir na realidade social determinados efeitos que são desejados por serem valiosos, justos, convenientes, adequados à subsistência de uma sociedade e oportunos. Os fins a serem atendidos são impostos à norma jurídica pela realidade social concreta. Como dito na introdução deste dispositivo, a lei hoje só existe graças ao trabalho pioneiro do nosso colega Des. Daltoé; contudo, por trás de seu ato, estava a preocupação e garantia à proteção das crianças e dos adolescentes vítimas de violência e evitar a impunidade dos agentes ativos. Embora com alguns anos de retardo, depois de muita resistência, tudo isso é fruto da implementação de políticas públicas específicas reunidas a partir de diversos órgãos dos poderes públicos em defesa das crianças e dos adolescentes, dentro de um sistema de garantias instituído a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente e da normatização da sistemática das garantias dos direitos das crianças e dos adolescentes (Resolução n. 113/CONANDA/200627). A resolução criou um Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente que consiste na articulação e integração de políticas públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes em todos os níveis federados. Esse sistema deve promover, defender e controlar a efetivação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, coletivos e difusos, em sua integralidade, em favor de todas as crianças e dos adolescentes, de modo que sejam reconhecidos e respeitados como sujeitos de direitos e pessoas em condições peculiar de desenvolvimento, colocando-os a salvo de ameaças e violação a quaisquer de seus direitos, além de garantir a apuração e reparação dessas ameaças e violações. É dentro desse contexto normativo, pois, que a lei deve ser aplicada. 3 – APLICAÇÃO NA ÁREA CIVIL Na análise da norma, sem o devido cuidado, parece que a lei veio para atender aos anseios somente da violência criminal. Não é verdade! A proteção da novel legislação atende também as relações civis em que a criança ou adolescente seja vítima ou testemunha. O inciso II do art. 4.º define a violência psicológica e assegura a aplicação da Lei nestes casos. São inúmeras as situações às quais se aplica: a) qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao adolescente mediante ameaça, constrangimento,humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional; b) ato de alienação parental, assim entendido como a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou que causa prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este; e c) qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente a crime vigente contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, particularmente quando isso a torna testemunha. Ocorrendo, pois, a violência psicológica, deve ser aplicada a presente norma às relações da área cível, seja estatutária ou na propriamente dita. Como isso ocorre na prática? Quando a autoridade judiciária28 receber do Conselho Tutelar (ou de qualquer agente não legitimado à defesa judicial dos interesses infantojuvenis) um pedido de providências ou similar, cabe sua imediata remessa ao Ministério Público (art. 221, do ECA) para que o agente ministerial, eventualmente com base em informações adicionais a serem colhidas no âmbito de um procedimento administrativo ou inquérito civil instaurado no âmbito da Promotoria de Justiça, tome as providências administrativas (preferencialmente) ou, se necessário, judiciais, para solução do problema. O Ministério Público detém legitimidade e atribuição para promover as ações necessárias no interesse das crianças e adolescentes (ECA, arts. 201 e 212). Contudo e muitas vezes, detectada a situação de vulnerabilidade da criança ou do adolescente, o Juiz ao receber a notícia dos fatos pelo Conselho Tutelar ou de qualquer agente não legitimado à defesa judicial dos interesses infantojuvenis (v.g., diretor de escola, agente comunitário, comissário de menores, médico do PSF, assistentes sociais, psicólogos etc.) pode instaurar de ofício, se preciso for, o procedimento inominado (ou verificatório) – ECA, art. 153 – para determinar comando urgente e necessário (v.g., inclusão do infante em ensino obrigatório, suspensão do poder familiar, institucionalização familiar, abrigamento, etc.) até que haja a intervenção judicial pelos legitimados. Na prática a conclusão desse procedimento nos leva à propositura de uma medida judicial pelo MP, o arquivamento pela solução imediata com as medidas adotadas de ofício e cessão do problema que originou a abertura do procedimento ou, ainda, encaminhamento à equipe técnica para estudos e diligências necessárias, entre outros. Os Tribunais do país adotam essa posição (possibilidade) do procedimento inominado de ofício previsto no art. 153 do ECA. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Possibilidade de aplicação de medida protetiva, de ofício. Suspensão do poder familiar. Suficientes elementos comprobatórios da negligência e violência a que submetidos os menores. 1. O art. 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza a aplicação de medidas protetivas pela autoridade competente quando verificada qualquer das hipóteses de ameaça ou de violação a direitos da criança e do adolescente, previstas no art. 98 do Estatuto. Desse modo, tendo o Juízo a quo verificado que as visitas realizadas pelos agravantes representavam grave prejuízo ao bem-estar e à integridade psicológica dos infantes, bem poderia aplicar, de ofício, medida de proteção suficiente para coloca-los a salvo de qualquer situação de risco – como, de fato, o fez. 2. Os elementos probatórios coligidos nos autos do procedimento para aplicação da medida de proteção ajuizada em favor dos menores são suficientes para respaldar a decisão liminar de suspensão do poder familiar, haja vista que os genitores negligenciam a prole nos cuidados com a higiene e saúde, além do fato de o genitor perpetrar agressões físicas tanto em relação aos filhos quanto em relação à própria genitora. Tal medida, que tem por finalidade o resguardo dos infantes, não é definida e poderá ser revertida, bastando para tanto que os genitores demonstrem, a contento, que reúnem condições de exercer plenamente os deveres inerentes àquele poder, não expondo os menores a qualquer situação de risco” (AI 70057248197/RS, 8.ª Câmara Cível, rel. Luiz Felipe Brasil Santos, 04.02.2014). Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “Reputa-se legal e, por consectário, não viola direito líquido e certo da impetrante o ato do Magistrado que, atento aos interesses da criança, admite representação manejada pela psicóloga judicial e determina a aplicação de medida protetiva de abrigamento, pois percebe-se claramente a autorização constitucional e infraconstitucional para que a sociedade e o Poder Público, como um todo, atuem em defesa dos direitos e interesses dos infantes. 2. Não basta, para fins de mandado de segurança, que a pretensão ajuizada seja admissível perante o nosso ordenamento jurídico. Urge que ocorra, no caso concreto, violação ao ‘direito líquido e certo’. Esta é a condição primária e essencial ao instituto do mandamus e deve estar vinculado a fatos e situações comprovados de plano, e não ‘a posteriori’. 3 Denega-se a ordem” (MS 1.0000.08.478894-2/000, 4.ª Câm. Cível, rel. Célio César Paduani, 03.02.2009, v.u.). A Corte Superior – Superior Tribunal de Justiça – já teve oportunidade de assim se manifestar: “3. A peculiaridade reside nos limites da atuação administrativa do juízo da infância e da juventude, ao se deparar com situações urgentes que demandem a sua atuação protetiva; em síntese, a pergunta é: pode o órgão jurisdicional da infância e da juventude demandar, de ofício, providências, com base no art. 153, da Lei 8.069/90. 4. A doutrina é pacifica no sentido de que o juízo da infância pode agir de ofício para demandar providência em prol dos direitos de crianças e adolescentes que bem se amoldam ao caso concreto; Leciona Tarcísio José Martins Costa: ‘O poder geral de cautela do Juiz de Menores, atual Juiz da Infância e Juventude e da Juventude, reconhecido universalmente, sempre foi exercido independentemente de provocação, já que consiste nas medidas protecionais e preventivas que deve tomar, tendo em vista o bem-estar do próprio menor – criança e adolescente –, que deve ser resguardado e protegido por determinações judiciais, mesmo que as providências acauteladoras não estejam contempladas na própria lei’ (Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 315/316). 5. O controle jurisdicional de tais medidas deve ocorrer pelo prisma da juridicidade, ou seja, pela avaliação; por um lado, da necessidade de concretizar direitos dos menores previstos na Constituição Federal e na legislação; por outro, da proporcionalidade e razoabilidade da medida. No escrever de Roberto João Elias, ‘A faculdade concedida, entretanto, deve sempre ser utilizada em favor da criança ou do adolescente, não podendo, de forma alguma, se transformar em atitude arbitrária, que contrarie a finalidade primordial da lei, que é a proteção integral do menor. É na busca de tal desiderato que se permite a utilização dos meios não considerados na legislação. Tais meios, entretanto, devem se harmonizar completamente com os princípios que regem a matéria, devendo-se sempre recordar que o menor é sujeito e não objeto de direitos’ (Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 211-212). 6. Em síntese, não é possível reconhecer a existência de direito líquido e certo ao município impetrante que objetive anular determinação de providências no sentido de concretizar o direito a educação de menores em situação de urgência, tal como pedido pelo Conselho Tutelar. Recurso ordinário improvido.” (STJ, RMS 36.949/SP, 2.ª T., rel. HumbertoMartins, 19.03.2012, v.u.). Os procedimentos referidos então vinculados ao Estatuto da Criança e do Adolescente; contudo, na hipótese de alienação parental, as medidas judiciais devem ser adotadas por meio de ação própria e na esfera cível (Lei 12.318/2010, art. 4.º). 4 – CONDIÇÕES PECULIARES DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE EM DESENVOLVIMENTO A expressão significa que a criança e o adolescente têm todos os direitos de que são detentores os adultos desde que sejam aplicáveis à sua idade, ao grau de desenvolvimento físico ou mental e à sua capacidade de autonomia e discernimento, v.g. Um bebê não pode exercer o direito de ir e vir; uma criança não pode e não deve trabalhar, tampouco pode ser responsabilizada perante a lei pelo cometimento de um ato infracional da mesma forma que um adolescente. Serem consideradas pessoas em condição peculiar de desenvolvimento foi uma das principais conquistas das crianças. Isso significa que, além de todos os direitos de que desfrutam os adultos e que sejam aplicáveis à sua idade, a criança e o adolescente têm ainda direitos especiais decorrentes do fato de que: a) ainda não têm acesso ao conhecimento pleno de seus direitos; b) ainda não atingiram condições de defender seus direitos frente a omissões e transgressões capazes de violá-los; c) não contam com meios próprios para arcar com a situação de suas necessidades básicas; e d) por se tratar de seres em pleno desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e sociocultural, a criança e o adolescente não podem responder pelo cumprimento das leis e demais deveres e obrigações inerentes à cidadania da mesma forma que os adultos. A mesma regra está prevista no art. 6.º do ECA. Na aplicação e interpretação da Lei do Depoimento Especial devemos levar em consideração as condições peculiares das crianças e dos adolescentes. 5 – GARANTIAS ASSEGURADAS PELO ESTADO, FAMÍLIA E SOCIEDADE O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) consolidou-se a partir da Resolução 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) de 2006. O início do processo de formação do Sistema de Garantia dos Direitos, porém, é fruto de uma mobilização anterior, marcada pela Constituição de 1988 e pela promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como parâmetro para políticas públicas voltadas para crianças e jovens, em 1990. O SGDCA é formado pela integração e a articulação entre o Estado, as famílias e a sociedade civil como um todo, para garantir que a lei seja cumprida, que as conquistas do ECA e da Constituição de 1988 (no seu artigo 227) não sejam letra morta. De forma articulada e sincrônica, o SGDCA estrutura-se em três grandes eixos estratégicos de atuação: Defesa, Promoção e Controle. Essa divisão nos ajuda a entender em quais campos age cada ator envolvido e assim podemos cobrar de nossos representantes suas responsabilidades, assim como entender as nossas como cidadãos dentro do Sistema. 5.1. – Garantias Asseguradas pelo Estado O Princípio da Cooperação decorre de que a todos – Estado, Família e Sociedade – compete o dever de proteção contra a violação dos direitos da criança e do adolescente, enfim, é dever de todos prevenir a ameaça aos direitos do menor. O Estado tem uma estrutura voltada para um sistema de garantia de direitos. Esse Sistema de Garantia de Direitos é articulado por meio de três formas: promoção, controle e defesa, que envolvem vários órgãos e instituições do poder público na esfera federal, estadual e municipal, como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, as delegacias, os hospitais, as instituições de acolhimento, fundações e vários outros que devem estar articulados em rede, como um só sistema de integração. A rede trabalha com a junção de atividades, interação entre órgãos e entidades da administração pública, sem hierarquia, integrando e concretizando diretrizes de proteção aos infantes. Há descentralização do poder para melhor adequar as políticas públicas e priorizar os direitos sociais das crianças e dos adolescentes. Dentre os órgãos e instituições desta rede estão o CONANDA, os CEDCAs, os CMDCAs, o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, as Secretarias de Segurança Pública e outros órgãos e instituições com funções similares e os Conselhos Tutelares. A previsão normativa de cada um desses órgãos e instituições no sistema de proteção é de fundamental importância. Assim, o CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes – possui como funções principais definir as políticas voltadas para a área das crianças e adolescentes, poder para fiscalizar as ações executadas pelo poder público, ser responsável pelo Fundo Nacional da Criança e do Adolescente (FNCA), distribuindo as verbas de forma proporcional, defender e promover os direitos das crianças e dos adolescentes conforme estabelecido no ECA, dever de definir as diretrizes que serão traçadas em âmbito estadual e municipal e também pelos Conselhos Tutelares, dever de acompanhar a elaboração e a execução do Orçamento da União, verificando se os recursos necessários para a execução das políticas de promoção e defesa dos direitos da população infantojuvenil estão assegurados. Em relação aos CEDCAS – Conselhos Estaduais dos Direitos da Criança e do Adolescente, são órgãos colegiados existentes em cada estado da Federação que possuem atribuição para dispor sobre a Política Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente da sua área de atuação e que estabelecem normas gerais de atendimento e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. Esses conselhos são órgãos deliberativos, de caráter permanente e de composição paritária entre o Poder Público e a sociedade civil, tendo por finalidade deliberar sobre as políticas de atendimento, promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente, bem como definir prioridades e controlar as ações voltadas para essas faixas etárias da população. Os CMDCAs – Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente – são considerados os principais meios para discussão e formulação das políticas para a infância e a adolescência em âmbito municipal, pois visam estabelecer políticas e gerenciar recursos além de elaborar, deliberar e fiscalizar todos os trabalhos voltados à criança e ao adolescente, bem como efetuar a elaboração de diagnóstico sobre a situação de crianças e adolescentes no município, o registro de funcionamento e a fiscalização de entidades não governamentais e a construção de uma rede de proteção intersetorial das políticas públicas voltadas para garantir a cidadania infantojuvenil. No que se refere ao Poder Judiciário, verifica-se que no período anterior à existência do Estatuto da Criança do Adolescente – ECA havia o “Juiz de Menores”, que possuía poderes quase ilimitados. Atualmente, com o ECA, o juiz da infância tem suas funções mais delimitadas, representando o Poder Judiciário em nome do Estado, desenvolvendo os atos jurisdicionais, instruindo e atuando como julgador nos processos nos quais se discute os interesses das crianças e adolescentes em situação de risco, ameaça ou que têm seus direitos violados. Também é o juiz da infância quem julga os adolescentes infratores, aplicando-lhes as medidas socioeducativas cabíveis, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Com relação à resolução das questões referentes a crianças e adolescentes, com o surgimento do ECA, o juiz da infância e juventude tornou-se responsável apenas pelos aspectos jurisdicionais; os aspectos administrativos ficaram a cargo do Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente, que tem natureza administrativo-contenciosa. O Estatuto da Criança e do Adolescente atribuiu ao Ministério Público as funções previstas nos artigos 200 a 202. Suas atribuições podem ser resumidas em duas competências principais: atuação em ações públicas, ou seja, das ações que tratam da prevalênciado interesse da sociedade sobre o individual. Dessa forma, com relação às questões que envolvem crianças e adolescentes, cabe ao Ministério Público dar início ao procedimento de apuração de ato infracional praticado por adolescente; e Fiscal da Lei, competindo-lhe acionar a Justiça sempre que algum direito fundamental da criança ou do adolescente for violado. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê nos artigos 206 e 207 que toda criança e adolescente deve ser acompanhado por advogado de sua escolha na solução da lide, ou por Defensor Público, respeitado o segredo de justiça. Como se observa, a lei assegura os direitos às crianças e adolescentes e garante a orientação e a defesa dos seus direitos, como a ampla defesa e o contraditório, entre outros princípios constitucionais, tanto antes como no curso de um eventual processo. A Defensoria Pública tem se destacado na defesa dos adolescentes que respondem pela prática de ato infracional, mormente porque em sua maioria são hipossuficientes social e economicamente. Quanto à Secretaria de Segurança Pública, os órgãos que a integram direta ou indiretamente e os similares, a lição do educador e psicólogo Antônio José Ângelo Motti29 é salutar ao destacar que as polícias são segmentos imprescindíveis no processo de garantias de direitos, principalmente em se tratando da responsabilização de agressores, de exploradores, de traficantes de crianças, etc. Por fim, os Conselhos Tutelares que possuem a missão de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes e é considerado um órgão público municipal instituído por lei municipal. Ao Conselho Tutelar compete deliberar e agir aplicando as medidas práticas pertinentes sem interferência, exercendo suas funções com independência, inclusive para relatar e corrigir distorções existentes na própria administração municipal relativas ao atendimento das crianças e dos adolescentes. No entanto, suas decisões só podem ser revistas pelo juiz da Infância e da Juventude, a partir de requerimento de quem se sentir prejudicado. Importante observar que apesar de ser um órgão autônomo e não jurisdicional, as suas ações são passíveis de fiscalização pelos órgãos que protegem os interesses das crianças e dos adolescentes. Vale ressaltar ainda que o Conselho Tutelar é um órgão permanente, pois uma vez instituído não mais pode ser excluído, ocorrendo apenas a renovação de seus membros a cada três anos. O Conselho Tutelar deve ser utilizado como meio de transmitir às Crianças e aos Adolescentes a cidadania, atuando como aconselhador em atendimento às Crianças, Adolescentes, Pais e demais familiares. 5.2. – Garantias Asseguradas pela Família A Constituição Federal, no artigo 226, dita: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” Desse modo, destaca-se que a lei suprema efetiva a responsabilização por parte do Estado para garantir o fundamento e o alicerce familiar de maneira adequada. A importância da família na vida do indivíduo é imensurável, uma vez que, a partir dela ele adquire os primeiros conceitos que formarão os pilares de seu caráter e servirão de orientação para os caminhos a serem trilhados em toda a sua trajetória de vida. Originalmente, no Direito Romano, a família tinha um contorno patriarcal, cuja tradição reforçava o pensamento da Igreja Católica no conceito de família, influenciando o Código Civil Brasileiro de 1916, regulando as relações familiares a manter, durante muito tempo, o vínculo conjugal como indissolúvel por meio do casamento religioso, no qual a figura paterna exercia legitimamente o poder sobre os demais entes familiares, regendo o núcleo familiar como chefe absoluto, pela forte influência do poder familiar. Nesse contexto, somente era reconhecida pela nossa sociedade, como entidade familiar, a família natural constituída pelo casamento, em flagrante discriminação legislativa. A Carta Constitucional de 1988 traz um novo marco na evolução do conceito de família, reconhecendo a União Estável e a família monoparental como entidades familiares, conforme dispõe no art. 226, §§ 3º e 4º. A premissa passa a ser a proteção de todas as formas de entidade familiar diversas do casamento, fundamentadas no afeto e na solidariedade, por se tratar de norma inclusiva. A família atual abandonou, então, o sistema patriarcal, estabelecendo aos pais direitos e deveres iguais para com os filhos, cujas opiniões devem ser valoradas e respeitadas igualmente, sendo os entes sujeitos de direitos e deveres recíprocos, visando ao bem-estar comum. A Constituição Cidadã determina que sejam asseguradas às crianças e aos adolescentes os diretos fundamentais a eles inerentes em condições de liberdade e dignidade, cuja responsabilidade solidária por essa efetivação cabe à família, à sociedade em geral, à comunidade e ao poder público na figura do Estado, devido à sua vulnerabilidade em face da condição peculiar de pessoas em desenvolvimento sujeitos de direito a proteção integral. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em consonância com a Constituição e com a Declaração Internacional dos Direitos das Crianças 1989, assim consideradas até os 18 (dezoito) anos de idade, dispõe sobre os direitos e deveres das crianças e dos adolescentes como pessoas em desenvolvimento, sujeitas à proteção integral, cabendo à sociedade em geral, à família e ao Estado zelar pelo seu desenvolvimento e formação da personalidade dos adultos que serão, de modo a assegurar um futuro digno ao nosso país, verdadeiros cidadãos. Considerando que o papel da família é fundamental na concretização do sistema de garantias, há de ser considerado nos termos da nossa Constituição Federal de 1988 que estabelece ser essa a base da sociedade e, portanto, compete a ela, juntamente com o Estado, a sociedade em geral e a comunidade, assegurar à criança e ao adolescente o exercício de seus direitos fundamentais. Dentre os direitos fundamentais da criança e do adolescente está o direito à convivência familiar e comunitária. Em respeito ao disposto nos artigos 226 e 227 da Constituição Federal, as leis orgânicas das políticas sociais foram sendo editadas e reformadas aprofundando esses princípios constitucionais, regulamentados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, tornando-os operacionais e especializados, de acordo com a construção dos sistemas de atendimento de direitos. Em decorrência, se procedeu com a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social-LOAS30, da Lei Orgânica da Saúde31 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação32. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Art. 25, define como família natural “a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes”. Entretanto, a definição legal não supre a necessidade de se compreender a complexidade e riqueza dos vínculos familiares e comunitários que podem ser mobilizados nas diversas frentes de defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Para tal, torna-se necessária uma definição mais ampla de “família”, com base socioantropológica. A família pode ser pensada como um grupo de pessoas que são unidas por laços de consanguinidade, de aliança e de afinidade. Esses laços são constituídos por representações, práticas e relações que implicam obrigações mútuas. Por sua vez, essas obrigações são organizadas de acordo com a faixa etária, as relações de geração e de gênero, que definem o status da pessoa dentro do sistema de relações familiares. Como gestores e orientadores das crianças e dos adolescentes, no grupo familiar não figura apenas como atores de obrigações, mas também como agentes de proteção e defesa dos direitos emanados da Carta Constitucional e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa forma, estabelecendo-se uma interpretação sistemática dos dispositivos protetivos, constatamos que são responsáveis também quando omissos do dever de denunciar possíveis ou reconhecidas violações a direitos da criança ou adolescente Deacordo com o art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de sua família, sendo dever do poder público, da sociedade e da família assegurar com absoluta prioridade os direitos da criança e do adolescente. Além disso, afirma Carrada Firmo33 que: “as medidas de reeducação e fortalecimento das famílias, além de serem mais eficazes para a proteção de crianças e adolescentes, são muito menos onerosas para os cofres públicos, uma vez que programas de orientação, educação e recuperação física e psicológica dos pais são mais baratos”. Nenhum lugar é melhor para qualquer criança ou adolescente do que no seio de sua família natural, desde que esta seja capaz de suprir as necessidades básicas deles. Ocorre que nem sempre nos deparamos com famílias bem- estruturadas dentro da comunidade, e quando isso ocorre, um trabalho deve ser desenvolvido para que seja possível recuperar o bom relacionamento familiar para o alcance de um ambiente saudável para o desenvolvimento digno da criança ou adolescente. Uma família quando orientada e ciente de seus deveres para com os protetivamente tutelados pelo Estatuto consegue participar do sistema de garantias trabalhando no sentido de efetivar a proteção, prevenir abusos, abandono, exploração e violência. 5.3. – Garantias Asseguradas pela Sociedade A todos os membros da sociedade impõe-se o respeito e a submissão às normas expressas nos tratados e convenções internacionais, na nossa Carta Magna e no Estatuto da criança e do adolescente. O Estado é responsável pela implementação das políticas públicas de bem-estar da infância e juventude, porém, a sociedade tem sua corresponsabilidade expressamente prevista na Lei n° 8.069/1990. A responsabilidade dos atores sociais começa na escolha dos responsáveis pela elaboração das leis de proteção à criança e ao adolescente, e se estende, alcançando a cobrança para a implantação dos direitos legalmente previstos. O Estatuto é um instrumento importante nas mãos do Estado Brasileiro, pois trabalha para transformar a realidade da criança e do adolescente que por decorrência histórica são vítimas de abandono e de exploração econômica e social. Nesse atual contexto, repensar o papel da sociedade parece ser, também, um ponto-chave na aplicação do Sistema de Garantias e Direitos da Infância e Adolescência com vistas à proteção integral. “O Estatuto da Criança e do Adolescente atribuiu o dever de prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente a toda sociedade (art. 70), impondo medidas de prevenção às pessoas físicas e jurídicas, conforme se depreende dos arts. 74 a 85, prevendo penas constantes dos arts. 235/244 e 245/248, respectivamente, para os crimes e infrações administrativas contra a criança e o adolescente, sendo tais crimes de ação pública incondicionada.”34 Não cabe à sociedade substituir o Estado, mas sobretudo, fazer o controle social. O Sistema de Garantias de Direitos à Criança e ao adolescente estabelece que, para a implementação das normas estatuídas no ECA, deve haver um reordenamento institucional que atenda ao seguinte tripé: promoção, controle social e defesa. Na sociedade civil devem estar todos esses eixos na visão de sua vocação primária: controle social. Precisamos pensar nas crianças e nos adolescentes sob o enfoque de sua peculiar condição de desenvolvimento. É importante que a sociedade se conscientize, conheça e exerça seu papel para mudança de comportamento diante dos paradigmas da proteção integral e da prioridade absoluta, além de se posicionar na articulação e mobilização em prol do controle e efetivação das políticas públicas para infância e adolescência. Ademais, a sociedade civil atua de forma imprescindível no monitoramento e na efetivação de denúncias das violações ou supostas violações por parte do Estado, da família, ou, até mesmo, das próprias crianças e adolescentes que se expõem a situações de risco. Diante do exposto, é preciso visualizar perspectivas positivas para a realidade da infância e juventude brasileira, porque a normatividade vigente é preciosa e certamente tem capacidade de gerar efeitos, o que se faz necessário é conscientizar a sociedade do que significa a proteção integral e em quais perspectivas essa proteção não pode ser afastada. 6 – APLICAÇÃO FACULTATIVA O parágrafo único prevê a aplicação facultativa da norma “às vítimas e testemunhas de violência entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos, conforme disposto no parágrafo único do art. 2.º da Lei 8.069…” (ECA). Nos procedimentos nos quais há vítima ou testemunha entre 18 a 21 anos e nas hipóteses do parágrafo único do art. 2.º do ECA, a norma é facultativa. Pela interpretação, em um primeiro momento asseguramos que, aos menores de 18 (dezoito) anos – crianças e adolescentes –, a aplicação dela é obrigatória, sob pena de nulidade, além de caracterizar violência institucional (art. 4.º, IV). A referência ao parágrafo único do art. 2.º do ECA está ligada diretamente ao fato de que uma pessoa completar 18 anos não interfere na apuração de ato infracional nem na aplicabilidade de medida socioeducativa em curso. A matéria era objeto de discussão no meio acadêmico e nos tribunais até que o STJ pacificou esse entendimento, inclusive virou súmula: Súmula 605 – “A superveniência da maioridade penal não interfere na apuração de ato infracional nem na aplicabilidade de medida socioeducativa em curso, inclusive na liberdade assistida, enquanto não atingida a idade de 21 anos.” A súmula é o resumo de entendimentos consolidados nos julgamentos e serve para a orientação da comunidade jurídica a respeito da jurisprudência do tribunal. Consideramos que, embora ela seja facultativa, o ideal é que seja aplicada sempre. Os princípios que embasam a presente lei preconizam a humanização e o cuidado com as vítimas ou testemunhas das violências descritas por ela própria (art. 4.º) e decorrem naturalmente do princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1.º, III), o que deveria ser uma regra, e não exceção. Lado outro, acreditamos, contudo, que embora haja referência específica ao parágrafo único do art. 2.º do ECA, pode ela ser aplicada em outras hipóteses, ainda que por analogia. Vejamos que o Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei 13.143/2015 –, na parte especial, que trata do acesso à justiça (Livro II, Título I, arts. 79 a 87), prevê à pessoa com deficiência – aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com a demais pessoas (LDF, art. 2.º) – o dever de ser oferecido todos os recursos de tecnologia assistiva (TA) disponíveis para que a pessoa com deficiência tenha garantido o acesso à justiça sempre que figure em um dos polos da ação ou atue como testemunha (art. 80, caput). Neste caso, diante de uma situação em que o deficiente seja parte, vítima ou testemunha, independentemente da sua idade, é possível que, dentro da estrutura da realização da escuta forense –, especializada ou depoimento especial –, seja ele(a) no ambiente adequado – Tecnologia Assistiva (TA)35 – acolhido para prestar suas declarações ou depoimento. No mesmo sentido é o caso da extensão da proteção integral à figura do jovem além dos 21 anos36, que é o caso do Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013, art. 1.º, §1.º), com garantia à promoção do efetivo acesso daqueles jovens com deficiência à justiça em igualdade de condições com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais adequadas a sua idade (art. 38, VI). Art. 4º Art. 4º Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas, são formas de violência: I - violência física, entendida como a ação infligida à criança ou ao adolescente que ofenda sua integridadeou saúde corporal ou que lhe cause sofrimento físico; II - violência psicológica: a) qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao adolescente mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional; b) o ato de alienação parental, assim entendido como a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este; c) qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, particularmente quando isto a torna testemunha; III - violência sexual, entendida como qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda: a) abuso sexual, entendido como toda ação que se utiliza da criança ou do adolescente para fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato libidinoso, realizado de modo presencial ou por meio eletrônico, para estimulação sexual do agente ou de terceiro; b) exploração sexual comercial, entendida como o uso da criança ou do adolescente em atividade sexual em troca de remuneração ou qualquer outra forma de compensação, de forma independente ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiro, seja de modo presencial ou por meio eletrônico; c) tráfico de pessoas, entendido como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da criança ou do adolescente, dentro do território nacional ou para o estrangeiro, com o fim de exploração sexual, mediante ameaça, uso de força ou outra forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, aproveitamento de situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de pagamento, entre os casos previstos na legislação; IV - violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização. § 1º Para os efeitos desta Lei, a criança e o adolescente serão ouvidos sobre a situação de violência por meio de escuta especializada e depoimento especial. § 2º Os órgãos de saúde, assistência social, educação, segurança pública e justiça adotarão os procedimentos necessários por ocasião da revelação espontânea da violência. § 3º Na hipótese de revelação espontânea da violência, a criança e o adolescente serão chamados a confirmar os fatos na forma especificada no § 1º deste artigo, salvo em caso de intervenções de saúde. § 4º O não cumprimento do disposto nesta Lei implicará a aplicação das sanções previstas na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Legislação Correlata CF, art. 227, caput, e §4.º; Lei 13.431/2017, art. 7º a 13, parágrafo único; CC, arts. 1.589, parágrafo único; CP, arts. 213 a 226; ECA, arts. 5.º, 13, 17, 18, 18-A, 18-B 19, II e III, 22, 33, §4.º, 56, I, 70-A, 70-B, 94-A, 98, 100, parágrafo único, I, XI e XII, 136, I e II, 190-A a 190-E, 208, 212, 213, 216, 232, 239, 240 a 241-E, 244-A e 245; Lei 9.455/97 (Tortura); Lei 12.318/10 (Alienação Parental); Lei 12.845/13 (Atendimento Obrigatório e Integral de Pessoas em situação de Violência Sexual) e Decreto n. 7.958/13; Lei 13.185/15 (Bullying); Lei 13.344/16 (Prevenção e Repressão ao Tráfico Interno e Internacional de Pessoas; Decreto n. 9.603/2018; e Res. CNJ n. 299/2019. Análise Doutrinária 1 – INTRODUÇÃO 2 – FORMAS DE VIOLÊNCIA 2.1 – VIOLÊNCIA FÍSICA 2.1.1 – Lei da Palmada 2.2 – VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA 2.2.1 – No Meio Social 2.2.1.1 – Discriminação 2.2.1.2 – Depreciação ou Desrespeito 2.2.1.3 – Meios de Discriminação, Depreciação ou Desrespeito 2.2.1.3.1 – Ameaça 2.2.1.3.2 – Constrangimento 2.2.1.3.3 – Humilhação 2.2.1.3.4 – Manipulação 2.2.1.3.5 – Isolamento 2.2.1.3.6 – Agressão Verbal e Xingamento 2.2.1.3.7 – Ridicularização 2.2.1.3.8 – Indiferença 2.2.1.3.9 – Exploração 2.2.1.3.10 – Intimidação Sistemática (bullying) 2.2.1.3.11 – Comprometimento do Desenvolvimento Psíquico ou Emocional da Criança ou do Adolescente 2.2.2 – Na Relação Familiar 2.2.2.1 – Alienação Parental como Violência Psicológica 2.2.2.2 – Alienação Parental e as Falsas Acusações de Abuso Sexual 2.2.3 – Como Conduta Criminosa 2.3 – VIOLÊNCIA SEXUAL 2.3.1 – Definição de Violência Sexual 2.3.2 – Violência Sexual pelo Abuso Sexual (art. 4.º, III, alínea a) 2.3.2.1 – Incesto 2.3.3 – Violência Sexual pela Exploração Sexual Comercial (art. 4.º, III, alínea b) 2.3.4 – Violência Sexual pelo Tráfico de Pessoas com o Fim de Exploração Sexual (art. 4.º, III, alínea c) 2.3.5 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual contra Criança e Adolescente 2.3.5.1 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual em Espécie 2.3.5.1.1 – Do Estupro de Pessoas Menores de 18 anos ou Maiores de 14 Anos 2.3.5.1.2 – Estupro de Vulnerável 2.3.5.1.3 – Do Uso de Menor Vulnerável para Servir à Lascívia de Outrem 2.3.5.1.4 – Da Satisfação da Lascívia Mediante Presença de Criança ou Adolescente 2.3.5.1.5 – Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma de Exploração Sexual de Vulnerável 2.3.5.1.6 – Uso de Menor Relativamente Vulnerável para Servir à Lascívia de Outrem 2.3.5.1.7 – Rufianismo de Menor 2.3.5.1.8 – Do Assédio Sexual do Menor 2.3.5.2 – Da Infiltração de Agentes de Polícia para a Investigação de Crimes contra a Dignidade Sexual de Crianças e Adolescentes 2.3.5.3 – O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Proteção Contra a Pornografia e o Aliciamento Infantojuvenil 2.3.5.4 – Pedofilia, Hebefilia e Pederastia 2.4 – VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL 3 – MEIO DE ESCUTA FORENSE 3.1 – Introdução 3.2 – Escuta Especializada 3.3 – Depoimento Especial 4 – REVELAÇÃO ESPONTÂNEA DA VIOLÊNCIA À REDE DE PROTEÇÃO E AFINS 5 – REVELAÇÃO ESPONTÂNEA DA VIOLÊNCIA EM CASOS DE INTERVENÇÃO DE SAÚDE 6 – EXIGÊNCIA DO CUMPRIMENTO DA LEI (SANÇÕES) 6.1 – Introdução 6.2 – Tipificação de Crimes 6.3 – A Tipificação de Infrações Administrativas 6.3.1 – Introdução 6.3.2 – Infrações Administrativas Específicas Aplicadas à Lei do Depoimento Especial 6.4 – A Aplicação de Medidas Pertinentes aos Pais ou Responsáveis 6.5 – A Aplicação de Penalidades aos Encarregados de Cuidado, às Entidades de Atendimento Responsáveis pela Execução de Programas Socioeducativos e de Proteção 6.6 – A Aplicação de Medidas às Entidades de Atendimento que Descumprirem as Obrigações do Programa de Internação 6.7 – Sanções ao Poder Público 1 – INTRODUÇÃO Violência é definida pela Organização Mundial da Saúde como “o uso intencional de força física ou poder, ameaçados ou reais, contra si mesmo, contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que resultem ou tenham grande probabilidade de resultar em ferimento, morte, dano psicológico, mau desenvolvimento ou privação”, embora o grupo reconheça que a inclusão de “uso do poder” em sua definição expande a compreensão convencional da palavra. Segundo Morais37 (1985, p.24): “(…) violência está em tudo que é capaz de imprimir sofrimento ou destruição ao corpo do homem, bem como o que pode degradar ou causar transtornos à sua integridade psíquica. Resumindo: violentar o homem é arrancá-lo da sua integridade física e mental”. A violência em muitas formas é evitável. Existe uma forte relação entre os níveis de violência e os fatores modificáveis, como a pobreza concentrada, a desigualdade de renda e de gênero, o uso nocivo do álcool e a ausência de relações seguras, estáveis e estimulantes entre as crianças e os pais. As estratégias que abordam as causas subjacentesda violência podem ser eficazes na prevenção da violência. No meio social em que vivemos, estamos expostos cada dia a mais violência, não só pelo que vivenciamos no cotidiano da vida em sociedade (relação social), como aquilo que nos é sugestionado a ver, ler ou ouvir sobre a violência, gerando a institucionalização cultural deste ato e capaz de mudar comportamentos por conta da forma como ela é vista. Na literatura, a representação da violência é rica e variada. Há exemplos interessantes em Euclides da Cunha (que fez Os Sertões; tem um relato primoroso da Guerra dos Canudos), e destaca-se a obra do chamado regionalismo nordestino de José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos. Em Capitães de areia (1936), Jorge Amado mostra, com ternura, a violência de um grupo de meninos abandonados nas rua de Salvador; em Jubiabá (1935), ele mostra a trajetória de Antônio Balduíno, menino de rua que pratica atos criminosos menores, boxeador, assassino (quando o olho da piedade vazou), vagabundo e finalmente grevista, que aprende o caminho da razão justamente quando confrontado com a violência política. Mas é Graciliano Ramos que, na literatura do Brasil, se compara a Dostoiévski38 na presença constante da violência. Suas obras trazem quase invariavelmente o conflito do homem que sofre alguma restrição, alguma coação ou alguma rejeição social, econômica ou cultural e tenta inutilmente reverter esse quadro. Em seus livros de memórias, como Infância (1945) e Memórias do Cárcere (1953) Graciliano documenta sua própria convivência com o mundo violento e cruel. O cinema é um veículo que tem uma grande infiltração mundial. Muitos dos filmes apresentam cenas de extrema e exagerada violência. A vida humana é por vezes tratada como algo banal. Trata-se também de um tipo de violência cultural, na medida em que são estabelecidos novos valores incompatíveis com a conduta humana. A televisão tem sido tema de muita discussão em relação às cenas de violência realística. Muitas vezes, quase simultaneamente, expõe em suas programações, nos telejornais, telenovelas e seriados. A grande infiltração da televisão em todos os lares pode rapidamente difundir alguns dos tipos de violência. Existem em vários programas uma forma de violência explícita, entre elas a violência verbal, a que costuma ser mais encontrada na mídia. E o que mais preocupa atualmente, dentro do público que a lei protege, são os jogos de videogame. O incentivo desse tipo de cultura, que hoje inclusive se tornou uma modalidade de esporte, amplamente divulgado pela mídia televisiva e internet, cria adolescentes e jovens com uma índole violenta, levando para a vida real suas angústias fictícias ou demonstração de poder vinculados ao sucesso do jogo. Existem diversos relatos de infratores e agentes que ao praticar seus atos se inspiraram em cenas e personagens considerados heróis nos jogos. O caso mais recente no Brasil foi o “Massacre de Suzano”, no início de 2019, em que jovens entraram em uma escola estadual e mataram vários alunos e funcionários. O perfil de um deles, de 17 anos, nas redes sociais, mostra imagens em que ele faz gestos com as mãos imitando armas, aponta o dedo para a própria cabeça, aponta uma arma para a câmera e usa a máscara com a qual aparece morto no chão da escola. Entre as publicações divulgadas à época há imagens do símbolo anarquista (um círculo com um ‘A’ no meio) e desenhos de cenas de guerra, uma imagem dos atores da série “Hannibal”. O outro, de 25 anos, também em um perfil de rede social, tinha na foto de capa um soldado com um fuzil na mão, imagens de combates e de jogos de videogame de tiros, e se intitulava integrante de grupos com nomes sugestivos, como “Cidadão armado”, “Um amor: armas” e “Eu gosto de armas e não sou bandido”. Tudo isso demonstra o quão a cultura do entretenimento é capaz de gerar violência. Os jovens não mais precisam sair de casa para ter acesso a violência. Ela está presente no nosso meio e cada vez mais extrema, o que gera no meio social uma intranquilidade aos pais e responsáveis dessas crianças e adolescentes. 2 – FORMAS DE VIOLÊNCIA Para efeitos desta Lei são formas de violência a física, a psicológica, a sexual e a institucional, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas. Observa-se que a Lei definiu formas de violência interpessoal, que se classificam em duas categorias: a violência familiar e conjugal, que em geral ocorre no próprio lar, e a violência comunitária, que acontece fora do lar, entre pessoas que não têm vínculos de parentesco ou entre pessoas que podem ou não se conhecer. A violência familiar e conjugal inclui os maus-tratos das crianças e adolescentes e a violência doméstica. A violência comunitária inclui a violência entre crianças e adolescentes, estupro, agressão sexual de estranhos e a violência em ambientes institucionais, como escolas, locais de trabalho, etc. Quando a violência interpessoal ocorre nas famílias, suas consequências psicológicas podem afetar os pais, as crianças e adolescentes, seus relacionamentos a curto e longo prazos. As definições da violência pelo legislador têm o cunho de qualificar as diversas formas, sem prejuízo da conduta vinculada à violação de bens penalmente protegidos. Isso significa dizer que se a conduta do agente vier a caracterizar um fato típico responderá pela conduta criminosa (v.g., lesão corporal, estupro de vulnerável), independentemente da aplicação das regras previstas nesta legislação (v.g., escuta protegida, aplicação de medidas protetivas aos infantes em face do agressor, etc.). Não se trata de dar outro sentido à conceituação ou definição de violência, como se fosse uma intromissão para definir (ou redefinir) termos já conhecidos e utilizados pela legislação em geral, como no próprio ECA e Código Penal. Estabeleceram-se conceitos claros, objetivos e concisos das violências, com um único objetivo: dar segurança em aplicar corretamente a norma aos casos concretos de violência vinculados à definição dada pelo legislador. Para o profissional do direito, que tem conhecimento de interpretação, até acesso a um glossário, torna-se fácil; contudo, a lei não foi criada para especialistas e, sim, à população, que em sua maioria são pessoas normais e sem conhecimento jurídico para interpretar uma norma, exigindo, pois, a presença de definições em seu texto, sob pena de estender condutas diversas daquelas pretendidas pelo próprio legislador quando de sua elaboração. 2.1 – VIOLÊNCIA FÍSICA A violência física, segundo a norma, é entendida como a ação infligida à criança ou ao adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou que lhe cause sofrimento físico. A ação deve ser atribuída à criança ou adolescente e pode ser ato comissivo (aquele que o agente pratica através de uma ação) ou omissivo (aquele que se pratica através de uma omissão, um não agir). No direito penal, em termos de conduta delitiva, se vai além e prevê essas duas ações, acrescidas da conduta comissiva por omissão: a) Crimes comissivos – aqueles que consistem em um agir. Ex. O autor do homicídio esfaqueia a vítima; b) Crimes omissivos próprios ou puros – aqueles crimes que contêm a descrição de uma conduta propriamente omissiva com verbos como “omitir”, “deixar de” etc. Ex. Omissão de Socorro (CP, art. 135); e c) Crimes omissivos impróprios ou Comissivos por omissão – são crimes que têm em sua descrição típica um verbo de ação, mas que também podem ser cometidos de forma omissiva impropriamente, desde que o agente tenha o dever jurídico de agir na forma do artigo 13, § 2º., “a” a “c”, do CP. Ex. A mãe que, desejando ver o filho de tenra idade morto, deixa de amamentá-lo e propiciar-lhe os cuidados básicos. A ofensa deve ser dirigida à integridade (constituída de modificação do organismo humano por intermédio de ferimentos, mutilações, equimoses, etc.) ou saúde corporal (engloba perturbações fisiológicas que correspondem ao desajusteno funcionamento de algum órgão ou sistema componente do corpo humano, como o que causa vômitos, paralisia, impotência sexual, transmissão intencional de doença que afete função respiratória ou circulatória) ou que lhe causa sofrimento físico39 (emoção motivada por qualquer condição que submeta nosso sistema nervoso ao desgaste, decorrente de qualquer outra sensação, que pode ser consciente [provoca dor ou infelicidade] ou inconsciente [se traduz em esgotamento ou cansaço]). 2.1.1 – Lei da Palmada A Lei 13.010/2014 alterou o ECA para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para introduzir na grade curricular e como temas transversais conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente. A alteração legislativa criou uma mudança cultural da sociedade brasileira, que por vezes era normal educar os filhos pela correção física. A novel legislação não se aplica apenas ao ambiente familiar e doméstico, mas também a cuidadores de crianças e adolescentes, na escola, nas casas de acolhimento institucional e nas unidades de internação. O legislador definiu o castigo físico como toda a ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso de força física que resulte em sofrimento físico ou lesão à criança e ao adolescente, e o tratamento cruel ou degradante, como a conduta ou a forma cruel de tratamento que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize a criança ou o adolescente. Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, educá-los ou protegê-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso: a) encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; b) encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; c) encaminhamento a cursos ou programas de orientação; obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado; e d) advertência. Essas medidas serão aplicadas pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais pela Autoridade Competente, como a suspensão ou perda do poder familiar (ECA, art. 129). Pela análise do contexto da norma percebe-se a possibilidade de questionamentos quanto ao critério utilizado do autor da denúncia ou dos conselheiros tutelares dos critérios subjetivos de quem os denuncie. É nítida a intervenção estatal à instituição familiar que pais e responsáveis são considerados infratores e serão submetidos a tratamento psicológico ou psiquiátrico por ter dado uma palmada educativa em um filho. Acreditamos que na aplicação da lei deve ser levado em consideração o bom senso dentro da análise do caso concreto. É certo que uma atitude imprudente, abusiva, extrema, agressiva de forma desmedida, reiterada e desproporcional deve, sim, ensejar a aplicação da norma; contudo, aquela correção eventual e moderada não caracteriza nem um tipo penal, muito menos enseja a aplicação de sanção administrativa ao suposto infrator. 2.2 – VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA É considerada a forma mais subjetiva e de difícil identificação. Cremos que pelo caráter subjetivo, a norma ao definir a violência psicológica discriminou em três áreas distintas de abrangência: a) no meio social – qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao adolescente mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional; b) na relação familiar – o ato de alienação parental, assim entendido como a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este; e c) como conduta criminosa – qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, particularmente quando isto a torna testemunha. 2.2.1 – No Meio Social O meio social em que um indivíduo, um ser social, está inserido. Esse meio social é composto por vários e diversificados grupos sociais, com valores, visões e normas diferentes ou idênticas, buscando para si (para o ser social) ou para o grupo como um todo a inserção social. Nesse meio podem ocorrer condutas que vêm caracterizar a violência psicológica e pelas dificuldades da sua definição o próprio legislador se encarregou de descrever aquelas que considera violência de forma individual: discriminação e depreciação ou desrespeito em relação à Criança ou ao Adolescente. 2.2.1.1 – Discriminação Discriminar é uma ação preconceituosa em relação a uma pessoa ou grupo de pessoas. Ela ocorre quando alguém adota uma atitude preconceituosa (baseada em ideias preconcebidas) em relação a alguém, seja por questões raciais, de gênero, orientação sexual, nacionalidade, religião, situação econômica ou qualquer outro aspecto social40. Uma atitude discriminatória resulta na violação do artigo 7 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”. A discriminação resulta na segregação e exclusão social dos indivíduos discriminados, que se veem menos representados e marginalizados na sociedade. 2.2.1.2 – Depreciação ou Desrespeito A depreciação significa rebaixar o valor, a qualidade, a virtude de (algo, alguém ou de si mesmo); desprezar(-se), desdenhar(-se), menoscabar(-se). E o desrespeito é o comportamento, atitude, particularidade ou quaisquer coisas e/ou ações que denotam falta de respeito, que é uma ação de apreço, consideração, deferência. 2.2.1.3 – Meios de Discriminação, Depreciação ou Desrespeito O rebaixamento, desprezo, menosprezo e a falta de apreço ou consideração, previstos no dispositivo legal devem emanar de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional. 2.2.1.3.1 – Ameaça A análise – definição – desta conduta está ligada à relação que envolve a manifestação (ato positivo). Na relação sem cunho penal é um ato (aceno, gesto, sinal, escrito ou palavra) dirigido a outrem com o fim de advertir ou atemorizar, intimidando-o. Como definição jurídica, a ameaça é um ato delituoso pelo qual alguém, verbalmente ou por escrito, por gesto ou por qualquer outro meio simbólico e inequívoco, promete fazer injustamente um mal grave a determinada pessoa. A doutrina costuma classificar a ameaça em algumas espécies: a) Ameaça direta – aquela que incide sobre a pessoa ou patrimônio da vítima; b) Ameaça indireta – aquela que incide sobre pessoas próximas à vítima devido a laços familiares, amorosos, de amizade, etc.; c) Ameaça explícita – feita diretamente, de maneira clara, sem sutilezas. Por exemplo, dizer a alguém que vai agredi-lo; d) Ameaça implícita – aquela feita sutilmente, indiretamente, de forma velada. Por exemplo, dizer a alguém que ela ficaria muito feia com os doisolhos inchados; e e) Ameaça condicional – quando a ameaça do mal está condicionada a alguma ação ou omissão da vítima. Por exemplo: se você repetir o que disse lhe dou um tapa. 2.2.1.3.2 – Constrangimento É o ato pelo qual alguém impõe mediante coerção, coibição ou opressão, a violência, criando ao ofendido uma aflição, mal-estar, vergonha ou vexame que resultam em aborrecimento e insatisfação. No Distrito Federal há um caso específico de constrangimento que resultou, inclusive, em punição penal, mas que reflete bem a conduta da violência envolvendo o constrangimento. A ofensora, vinculada a entidade educacional, depois de ofender um aluno de tenra idade, chamando-o de “feio” e de “saco de cocô”, na presença de outras crianças, arrastando-o pelos braços até uma certa “Sala de Bebê”, termo jocoso e pejorativo inventado pelos professores da escola para designar o local onde os infantes eram deixados de castigo, acabou por constranger a vítima deixando evidentes as consequências negativas da conduta praticada ante o quadro observado de regressão no desenvolvimento da criança, que passou urinar nas calças, ter dificuldades para dormir e adotar comportamento infantilizado (TJDF, Processo n. 0003247-40.2016.8.07.0007 [Segrego de Justiça], Rel. George Lopes, DJ 23/08/2018, DJE 31/08/2018, pp. 115/118). Na cidade onde estou como magistrado (Muzambinho, MG), uma criança institucionalizada na Casa Lar, mantida pelo Poder Judiciário local, fez um relato à diretoria da instituição de que uma determinada Conselheira Tutelar, quando esteve em sua escola para fazer apresentação do trabalho da entidade, por várias vezes mencionou seu nome aos demais colegas de sala, informando que, caso houvesse algo em suas residências que caracterizasse fato de violência em decorrência dos infantes (alunos), o caminho de todos era a Casa Lar, mencionando o local onde A. se encontrava abrigado. Ele mesmo contou o quanto ficou constrangido daquela fala, não só pela sua exposição, como divulgar o problema familiar que estava passando. Não restou outra alternativa senão encaminhar os fatos ao Ministério Público para as devidas providências em face da Conselheira Tutelar. Em algumas decisões, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu que deve ser tida como humilhante qualquer situação que fuja à normalidade e que seja capaz de interferir no estado psicológico do indivíduo a ponto de lhe causar aflição, angústia ou desequilíbrio em seu bem-estar. Para o tribunal não há humilhação quando se constata que não houve tratamento abusivo (REsp 658.975). A conduta, quando caracterizada, é descrita também como tipo penal no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 232, como vexame ou constrangimento. 2.2.1.3.3 – Humilhação É sinônimo de submissão, rebaixamento, vexame, afronta e vergonha. Surge de um desejo do ser humano de se sentir superior rebaixando outros indivíduos e tem origem na desigualdade41. A humilhação, além de desagradável, diminui a autoestima da vítima, diminuindo sua perseverança dentro do meio social no qual sofreu a ofensa (violência). Ela fere a dignidade da pessoa humana e traz consequência graves e negativas ao público infantojuvenil, que pode levar a dificuldades psicológicos, como a depressão, ansiedade, entre outros. A exposição da criança ou adolescente mediante humilhação se dá na escola, no meio social, na família e até no trabalho, quando se trata de menor aprendiz42. A mais comum é no meio social, quando a própria sociedade rebaixa pessoas que são consideradas socialmente inferiores. Quem não se lembra do menino K. S., na Bahia, em 11 de junho de 2018, que foi impedido por um segurança de um Shopping de ter o almoço pago por um cliente na praça de alimentação do empreendimento? Se não bastasse, a matéria viralizou na internet, causando mais constrangimento à vítima, embora tenha o infante encontrado algum tipo de conforto por pessoas que, sensibilizadas com o fato, deram a ele uma oportunidade43. Outra forma danosa é praticada pelos pais na educação dos filhos. Muitos, seja ela pública ou privada, utilizando do constrangimento em face dos filhos para discipliná-los. Vilma Medina, Diretora de Guiainfantil.com, afirma que “[…] humilhar as crianças em público ou em particular é como quando as crianças são vítimas de abuso e intimidação escolar (bullying). A sensação de indefesa e de pouca dignidade é a mesma.” O que é certo no que se refere à infância é no sentido de que alguns pesquisadores têm considerado a prática da humilhação como nefasta ao desenvolvimento infantil, uma vez que ela conduz a consequências psíquicas danosas (NESBIT; KARAGIANIS, 1987; KLEIN, 1991; LEWIS, 1992)44. 2.2.1.3.4 – Manipulação http://guiainfantil.com/ O ato de manipular significa pressionar ou influenciar alguém a agir ou pensar de determinada forma, por interesses próprios ou de terceiros. A conduta do sujeito está ligada a uma ação em que para obter o resultado desejado forja determinado fato, manejando meios que podem até ser falsificados, com manobras com fins de manipular algo (fato ou ato). Uma reflexão interessante é relatada pela Dra. Teresa Paula Marques45 em relação à manipulação infantil. Cita ela em seu artigo quando isso ocorre no conflito familiar: “Este tipo de cena é muito comum. Comparar, semear a discórdia entre os pais constitui uma das técnicas de manipulação emocional. Por isso mesmo há que estar alerta e ter a resposta sempre preparada. É absolutamente normal que os pais não estejam sintonizados em determinadas regras. Cada um tem a sua história familiar e interiorizou modelos de conduta certamente bastante distintos. Quando há um divórcio todas essas diferenças se acentuam, mas mesmo em casais que vivem juntos existem diferenças no modo como encaram a educação dos filhos. Por esse motivo é muito importante que haja diálogo entre o casal, pois só assim se trocam experiências e criam consensos. O ideal seria que começassem a fazê-lo quando os filhos são ainda um projeto, antes de sentirem a pressão da criança real. De qualquer modo, é absolutamente fundamental que a criança não tenha a ideia de ter o poder de semear a discórdia entre os pais. Caso isso aconteça, vai sentir-se culpada e essa culpabilidade aumenta a insegurança e fragiliza-lhe a autoestima.” Essa análise apurada da conduta infantil nos traduz perfeitamente o que significa, muitas vezes, uma simples manipulação infantil, que pode ter consequências jurídicas graves aos envolvidos, inclusive aos infantes. No mesmo artigo, Marques afirma que às vezes até nos espantamos com o “talento” que algumas crianças têm para manipular os adultos. Elas fazem olhinhos de choro, queixam-se, amuam-se… insistem até à exaustão com o propósito de “levar a água ao seu moinho”. O certo é que muitas vezes o conseguem, pois acabam por vencer os mais velhos pelo cansaço! “Por que é que a Joana pode ir e eu não?”, “a Maria pode ficar e ver televisão até tarde, por que é que eu não posso?” As comparações são uma das técnicas mais comuns quando falamos em manipulação. Todas as crianças começam desde cedo a tentar controlar os pais. Pouco a pouco apercebe-se que algumas estratégias são eficazes e não hesitam em utilizá-las. Tentam encontrar os pontos fracos, que passam muitas vezes por manifestações de carinho (abraços, beijos) e testar os limites dentro dos quais se podem mover. Vão tateando e, se não lhes forem impostas regras, continuam à procura dos limites, o que os vai transformar em pequenos seres provocadores e insaciáveis. De igual modo, quando as regras não são claras e estão constantemente a mudar, cria-se uma grande confusão que pode aumentar a tendência para o conflito e para a manipulação. É importante ter essa consideração para o fim de analisar a conduta descrita pela criança ou adolescente como meio de violência. Corre-se o risco de haver um conflito de interesses entre a criança ou adolescentes, por seus sinais passados de simulaçãoinfantil, e a realidade presente do caso concreto. São observações importantes que não podem ser desconsideradas, até porque podemos estar diante de um interesse exclusivamente do infante. Em nossas andanças como Magistrado, lembro-me de um caso específico em que o filho, que tinha 12 anos de idade, gostava de jogar futebol, frequentar clube social com piscina, andar de moto, viajar, entre tantas outras coisas da idade. O conflito envolvia os pais. Ele declarava violência, hoje descrita na lei e examinada neste tópico, em face da genitora, e por conta de uma decisão judicial acabamos por dar a guarda unilateral ao pai. Como já havia implantado o depoimento especial, observamos quando de sua oitiva que o seu único objetivo era estar com o pai, com a finalidade de ter o conforto de seus interesses, diante das dificuldades da genitora, que era pessoa simples e não podia fornecer tudo aquilo que o pai lhe propiciava. Não houve dúvida da manipulação para estar naquela situação. O resultado foi a guarda compartilhada. Isso denota o quão é importante o depoimento especial para dirimir e esclarecer as dúvidas surgidas em casos envolvendo os conflitos familiares. 2.2.1.3.5 – Isolamento O isolamento é o afastamento ou separação da criança ou adolescente do convívio social, familiar ou educacional, deixando o infante sem comunicação. No sentido físico consiste em colocá-lo(a) fora de contato com outras pessoas ou fatores. Atualmente, diante do elevado número de crimes envolvendo a juventude, com a saída mais precoce ao convívio social, muitas vezes os pais ou responsáveis agem com restrição à liberdade dos adolescentes como forma de proteção (garantia de sua segurança). O isolamento mais tradicional do qual se pode ter notícia é o castigo, que é uma forma de isolamento, pois mantém o infante separado do meio em que vive, restringindo seu direito e liberdade de ir e vir, para educá-lo ou adverti-lo de algum ato que não deveria ter realizado. Há necessidade de sopesar a conduta do agente para definir se caracteriza ou não a violência por meio do isolamento, pois muitas das vezes podemos estar diante de um ato de correção. 2.2.1.3.6 – Agressão Verbal e Xingamento O xingamento46 é um meio de agressão verbal. A agressão é a investida de alguém em face de outrem com a intenção de ofender, provocando, hostilizando, com intuito destrutivo. Não há agressão física ou via de fato, apenas manifestação pela fala (discurso). Na relação familiar, social e educacional, discussões e até mesmo simples brigas acontecem e não há nada de anormal nisso; contudo, se durante um conflito de interesses pessoais houve insultos, xingamentos e humilhações, isto pode vir a caracterizar agressão verbal. É mister entender que não existe um meio ou fórmula específica para descobrir se o que foi falado se trata de agressão física ou não. Alguns doutrinadores e especialistas na área da psicologia e psiquiatria dão algum norte para identificar possíveis atos comissivos de agressão, mas uma coisa é certa: sempre quando algo se torna anormal, fora do padrão, devemos considerar para análise de uma possível conduta de violência. Nesse sentido, como podemos então identificar uma agressão verbal47: Uma discussão ou briga comum é diferente de um ataque ou agressão verbal, que como o nome já diz, é usada para controlar ou ferir alguém. Uma pessoa agressiva apresenta um comportamento padrão diante de determinadas situações, nas quais se sente ameaçada ou por necessidade de autoafirmação. Alguns tipos de agressão verbal são mais perceptíveis, como falar exaltadamente e usar palavrões, por exemplo. Mas existem outras atitudes menos evidentes que podem caracterizar esse tipo de agressividade. Algumas formas de identificar uma agressão verbal são: a) Os argumentos são sempre irrelevantes. A conversa nunca é simples e tranquila, parecendo mais um ataque; b) Você tem sua fala interrompida a todo momento, e o indivíduo agressivo tem o costume falar alto demais; c) A pessoa agressiva sempre tenta se impor, não aceitando os outros pontos de vista; d) Você se sente dominado e parece que seu espaço está sendo invadido; e) Existe tensão ao interagir com a pessoa agressiva; f) Você sente um esgotamento emocional e fica sem energia depois ao interagir com alguém agressivo; e g) Os comentários de uma pessoa agressiva costumam ser depreciativos, interferindo na autoestima e autoconfiança da pessoa agredida. 2.2.1.3.7 – Ridicularização Ação ou efeito de ridicularizar alguém, com exposição ao ridículo de um fato ou ato perante terceiros ou a si próprio. É o mesmo que escárnio (zoar, esculhambar, menosprezar e desdenhar) e achincalhação (comportamento de alguém com a finalidade de humilhar outrem com risos, repleto de graça, zombaria). Para melhor definição da conduta seria analisar seu antônimo, que é a exaltação ou elogio. Nos tempos atuais, um índice crescente e muito comum de ridicularização vem ocorrendo na internet, principalmente nas redes sociais como Facebook, Instagram, WhatsApp, Twitter, etc. O que ocorre na maioria das vezes é uma exposição demasiada de pessoas, muitas delas vítimas de atrocidades sem qualquer fundamento social que utilizam a internet para viralizar o conteúdo da mídia com o objetivo de ridicularizar seu(sua) opositor(a). Em Muzambinho, interior das Minas Gerais, no início de 2018, algumas adolescentes divulgaram uma lista do “ranking do sexo”, na qual incluíram o nome de 100 (cem) mulheres, adultas e adolescentes, identificando-as como prostitutas. A lista rodou entre os grupos das redes sociais, o que ensejou o acréscimo aleatório de outras tantas mulheres pelo belo prazer da “brincadeira”, o que levou as mulheres ofendidas a serem ridicularizadas publicamente. A notícia viralizou em todo o território nacional, com cobertura jornalística de grandes veículos de comunicação48, inclusive muitas das vítimas (da lista) perderam seus empregos e tiveram que deixar a cidade por vergonha de transitar entre seus conterrâneos, pouco mais de 20.000 habitantes justamente pela exposição e ridicularização. É cada vez mais comum pessoas descompromissadas agirem dessa forma, expondo a vida de outros na internet, causando um mal extremamente gravíssimo e muitas vezes irreparável. Não se trata apenas de uma violência psicológica, mas também violação de outros direitos (CF, art. 5.º49, X, e CC, art. 2050). Portanto, não curta nem compartilhe conteúdo dessa natureza. O importante é denunciar, além de frisar que aquela atitude é ilegal. O exemplo desta campanha pode ser a hashtag: #DigaNaoARidicularização. Podemos citar outros exemplos51 que servem como referência para análise do conteúdo vinculado à violência psicológica. Elizabeth Ann Velásquez, mais conhecida por Lizzie Velásquez, uma das três pessoas no mundo a ter uma rara condição médica sabida por proporcionar nenhum acúmulo de gordura no corpo, se tornou alvo de uma divulgação hashtag: #AMulherMaisFeiadoMundo. As pessoas que fizeram tal divulgação não sabiam da patologia de Lizzie e que ela arrecadava fundos ao redor do mundo para pesquisas laboratoriais por meio de palestras motivacionais, possíveis a partir de seu sítio eletrônico. Lizzie Velásquez não só se graduou e hoje é palestrante motivadora, como também tem livros publicados e papel de liderança na busca por direitos e patrocínio na internet, além de muito em breve lançar o documentário A Brave Heart - The Lizzie Velasquez Story (Um Coração Valente - A Estória de Lizzie Velasquez, em tradução livre). Outra vítima muito comum de práticas abusivas em redes sociais são os portadores de progeria, transtorno genético caracterizado pelo envelhecimento precoce e também denominado síndrome da progeria de Hutchinson-Gilford. Na progeria há o acometimento do gene LMNA, responsável pela proteína estrutural prelamina A. A prelamina A será convertida em proteína lamina A em pessoas saudáveis a partir da remoção do grupo farnesilde sua composição química, mas em portadores de progeria a prelamina A continua com esse grupo farnesil em sua composição química, de forma que a prelamina A será convertida na proteína progerina, e não em lamina A. Como consequência da permanência do grupo farnesil e a conversão da lamina A em progerina, o núcleo de todas as células do corpo humano se tornarão deficientes, afetando a capacidade de divisão de cada uma dessas células e assim impedindo a capacidade de rejuvenescimento e causando o envelhecimento precoce. A apresentação clínica mais típica de progeria é a incapacidade de ganhar massa corporal, condição dermatológica similar ao escleroderma e com enrugamento, baixa estatura, alopecia, além de uma aparência física distinta. Ao longo da vida, os portadores de progeria muito provavelmente enfrentarão também aterosclerose, insuficiência renal, perda de acuidade visual e ainda problemas cardiovasculares. A única coisa que eles não merecem ter ao longo da vida é desrespeito. A personalidade virtual com progeria mais vitimada é Hayley Okines, britânica que apesar da pouca idade já tem livro lançado e cujas maiores informações podem ser acessadas em seu sítio eletrônico. Existem diversos outros transtornos e milhares de pessoas que com eles convivem e com eles batalham na busca por tratamentos que possam comprovadamente melhorar seus prognósticos ou mesmo prover cura. Tudo isso causa às pessoas que são vítimas dessas divulgações ridicularização, que é um meio de violência psicológica. A ideia de trazer para a análise esses fatos é uma forma de demonstrar como são os meios pelos quais os agentes agem atualmente para atingir outros de maneira vil e repugnante. 2.2.1.3.8 – Indiferença A indiferença está na ausência de interesse de alguma coisa, falta de consideração por algo ou com outrem, é a apatia pelo sentimento alheio. Trata-se de uma atitude em na qual a pessoa se mantém acomodada, apática, não demonstrando qualquer preocupação ou apreensão pelo fato que está ocorrendo, comportando-se de forma indiferente diante de algo ou de alguém. Vemos que caracteriza a violência psicológica “qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao adolescente mediante…” indiferença. Analisando somente a conduta da indiferença, sem que haja a responsabilidade social ou legal, poderíamos afirmar que não caracterizaria a violência o agir, por si só, com indiferença. A conduta ilegal geradora da violência, comissiva ou omissiva, dar-se-á a partir da discriminação, depreciação ou desrespeito em relação aos infantes mediante o ato de indiferença decorrente da responsabilidade legal de cada um dentro da relação jurídica que se encontra. Considerando a relação familiar, os pais ou responsáveis têm deveres e responsabilidades no cuidado dos infantes (ECA, art. 22) e na relação social todos devem velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor (ECA, art. 18). DIGIÁCOMO52, Murillo & Eduardo afirmam que “é importante destacar que não só a ação, mas também a omissão pode ganhar ares de violência psicológica, principalmente nos casos em que alguém, voluntariamente e deliberadamente, deixa de praticar certa conduta em proveito da criança/adolescente, tendo especial impacto quando provém de outro membro da família. Tal omissão pode ser cometida dentro ou fora do lar, por algum membro da família de origem ou extensa, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consanguinidade, valendo lembrar que o conceito de violência intrafamiliar não se refere apenas ao espaço físico no qual a violência ocorre, mas também diz respeito ao vínculo familiar (ou afetivo) que se constrói e se mantém”. 2.2.1.3.9 – Exploração A exploração vinculada à conduta vedada está aliada ao aproveitamento abusivo, que se trata de utilizar, usar ou tirar vantagem ilegal de outrem, que no caso são as crianças e os adolescentes. Quando se fala em exploração infantil, aí se incluem a criança e o adolescente. A primeira a lembrar a mente é o trabalho infantil, meio mais cruel de exploração dos infantes. Trata-se de um dos maiores problemas sociais que ainda assolam o mundo com grande impacto, violando os direitos humanos e as legislações locais. O trabalho infantil consiste em toda e qualquer forma de trabalho que seja exercido por crianças e adolescentes com idade menor àquela definida pela legislação de cada país. No Brasil, esse limite é de 16 anos, salvo enquadramentos como aprendiz, que permite a partir dos 14 anos de idade (CLT, art. 403, caput, e Lei n. 10.097/2000). As consequências do trabalho infantil são inúmeras, entre elas a física (apresentam graves problemas de saúde), educacional (apresentam dificuldade de aprendizagem, o que levam ao abandono da escola) e a psicológica. Essa última, que mais nos interessa dentro do contexto da análise do dispositivo, está vinculada à capacidade desses indivíduos de se relacionar e aprender, além das condições precárias de trabalho no local, muitas vezes sendo vítimas de abusos físicos, sexuais e emocionais, ocasionando uma série de doenças psicológicas. De acordo com o último Censo do IBGE53, de 2010, mais de 3 milhões de crianças e adolescentes trabalham ilegalmente no Brasil. Desse total, 1,6 milhão não possuíam 16 anos de idade. O trabalho infantil é um dos maiores problemas sociais do Brasil, de modo que cerca de 30% da mão de obra das crianças se encontram no setor agropecuário. Do total, mais de 60% ocorrem nas regiões Norte e Nordeste do país, abrangendo 65% de crianças negras e 70% de meninos. Mas não é só o trabalho infantil que caracteriza a violência psicológica! Qualquer um que, aproveitando abusivamente de criança ou adolescente com a intenção de utilizar, usar ou tirar vantagem está a cometer a violência. O que é recorrente nas vias públicas do Brasil, cada dia mais crescente, são crianças sendo exploradas pelos pais para pedir dinheiro ou como meio de sensibilizar o cidadão da necessidade em decorrência do infante e com isso obtém ajuda para alimentá-lo, mas muitas vezes os recursos são empregados no vício das drogas ou álcool, ficando a criança em segundo plano. Infelizmente, é comum, inclusive, até se alugar filho para que haja a exploração por outrem que não detém prole54. 2.2.1.3.10 – Intimidação Sistemática (bullying) Bullying55 é a prática de atos violentos, intencionais e repetidos contra uma pessoa indefesa, que podem causar danos físicos e psicológicos às vítimas. O termo surgiu a partir do inglês bully , palavra que significa tirano, brigão ou valentão na tradução para o português. No Brasil, o bullying é traduzido como o ato de bulir, tocar, bater, socar, zombar, tripudiar, ridicularizar, colocar apelidos humilhantes, etc. A violência é praticada por um ou mais indivíduos, com o objetivo de intimidar, humilhar ou agredir fisicamente a vítima. O bullying geralmente é feito contra alguém que não consegue se defender ou entender os motivos que levam a tal agressão. Normalmente, a vítima teme os agressores, seja por causa da sua aparente superioridade física ou pela intimidação e influência que exercem sobre o meio social em que está inserido. Tales Alves Paranahiba e Taís Alves Paranahiba,56 em artigo publicado no site do MPPR, denominado “O uso do ECA no combate ao bullying”, afirmam que “[…] é um comportamento milenar; faz parte da natureza humana, infelizmente. A Bíblia registra um caso de bullying, quando Ismael, um adolescente, filho de Abraão com Agar, ria de seu irmão Isaque, que era ainda uma criança, filho de Abraão com Sara. Esse comportamento de Ismael causou indignação em Sara (Gn. 21.9). O bullying sempre existiu, nossas crianças não passaram a sofrer ameaças, receber apelidos ou provocações só a partir da década de 70, quando pela primeira vez se falou sobre esse tipo deintimidação ocorrida na escola”. No mesmo trabalho ressaltam que “[…] o ambiente mais propício para a ocorrência do bullying com suas consequências deletérias é na escola, onde meninos e meninas sofrem diversos tipos de perseguições em um momento da vida em que estão formando a visão de si, a autoconsciência, a visão do mundo à sua volta e, principalmente na idade escolar; piadas, insultos, apelidos e diversas outras formas de atingir a moral podem acarretar consequências por toda a vida. Visto que a opinião que se faz de si não está ainda completamente formada (se é que um dia estará…) e para sua formação a opinião do outro é extremante importante. A história medieval registra um caso de bullying no ambiente escolar: Tomás de Aquino, o doutor da Igreja Católica, foi apelidado por seus colegas de “boi mudo”, haja vista seu comportamento quieto atrelado a seu porte físico. O professor advertiu dizendo que o mundo inteiro ouviria o alto mugido desse “boi mudo”. Não tratado corretamente durante a infância e adolescência, aquelas piadinhas acerca da cor da pele, da deficiência física, da orientação sexual, as agressões físicas ou verbais ultrajantes em decorrência dessas peculiaridades poderão evoluir para condutas racistas, homofóbicas e toda sorte de odiosos preconceitos. É importante saber que tanto o agressor quanto o agredido precisam de ajuda. O agressor, por não se relacionar de forma saudável, lança mão de armas como a intimidação, brigas para demonstrar força e poder. Essa criança ou adolescente, se não for bem orientado, provavelmente será um adulto que vai continuar impondo a força, o poder, no ambiente de trabalho, familiar, por meio da agressão e intimidação, culminando no famigerado assédio moral. O Estatuto da Criança e do Adolescente é um instrumento eficaz para lidar com esse fato. Utilizado corretamente, sem negligência, será possível mitigar a proliferação dessa deletéria conduta, tratando-a seriamente e diminuindo sua incidência no ambiente familiar, laboral e social durante a fase adulta”. Quem de nós, independentemente da idade, não lembra de alguma vez fazer uma brincadeira com algum(a) colega mais próximo(a) de escola colocando um apelido sem qualquer malícia? Não há dúvida de que brincadeira, gozação e apelidos na escola de muito tempo está presente na vida social e, quando respeitosa, faz até bem para o convívio, além de ser saudável e humorado entre amigos e colegas, mas quando foge dessa normalidade, ingressa no meio vexatório, agressivo, violento; deixa de ser uma brincadeira, passando a uma conduta vedada. No que se refere àquela época, quanto aos apelidos dados aos colegas, fica uma reflexão: embora não tivéssemos qualquer malícia, maldade, intenção de intimidar, zombar, quem sabe, ali, muitas vezes, estávamos criando uma situação desagradável ao terceiro (colega), que pode ter trazido consequências psicológicas à adolescência e juventude e, muitas vezes, barreiras instransponíveis à vida adulta e de forma silenciosa. Alguns exemplos de apelidos comuns no meio escolar: gordo (pessoa acima do peso), taquara ou cano (pessoa muito magra), girafa (pessoa alta), cambeta (pernas tortas ou com dificuldade de andar), rastilho (pessoas com dedos dos pés grandes e separados), fogueira (cabelo ruivo), Topo Gigio ou orelha de elefante (pessoa que tinha orelhas grandes) toquinho de amarrar égua ou botijão de gás (pessoa de baixa estatura), “paia” de aço ou Bombril (cabeço enrolado), dentuço ou coelho (dentes salientes), “zarôio” ou vesgo (pessoa estrábica), testa de amolar faca (pessoa que tem testa saliente), quatro-olhos (quem usa óculos), pé-de-pato (pé de numeração grande), nariz de tucano (pessoa que tinha nariz grande), etc. Muitos desses fatos ficaram marcados, inclusive trazem com os ofendidos a marca desta “brincadeira”, mantendo-se até a fase adulta os apelidos recebidos na escola. Na minha terra natal, São Borja, e em Bagé, ambas no Rio Grande do Sul, meus maiores e grandes amigos da infância trazem associados aos seus nomes os apelidos por seus familiares, ou até por nós mesmos na vida social e escolar à época: CABEÇA (Mariovane Weis), CABEÇUDO (Joni Jorge Dubal Daercher), CANO (Adriano Pires Moraes), CARECA (José Horáci Gattiboni), CEBOLA (Narlon Bastos Pereira), ELTINHO (Elton dos Santos Almeida), FARELO (Antônio Carlos Rocha Almeida), JABURU (Jaime Jacob Tachetto), LIMÃO (Manolo Riesgo), MACACO (José Antônio Chafim Falcão), MOSA (Mário Carlos Rocha Almeida), PEDALADA (João Carlos Rocha Almeida), PÉ-DE-PATO (Paulo Ricardo Teixeira), PEITO-DE- POMBA (Rafael Escobar), PEPEU (Rogério Taschetto), PICA (José Luiz Krieger Gattiboni), PIMPIM (José Luiz Moreno), PORRADA (Renato Baglioni), TIACA (Djalma Pires Leal Júnior), TIMBÓ (Claiton Renner), TOTTI (Celso Moraes Jr.), SORRISO (Valério Aquino), XIXI (Omar Saud) e XÚRIA (Celso Antônio Luz de Deus). Na minha família não era diferente. Minha querida irmã, MARIA DA GRAÇA SCHMIDT DISCONZI (BAIXINHA); meu irmão ROBERTO MOURA SCHMIDT (GORDO), e minha avó paterna, ANA RITA DAS DORES SCHMIDT(CHININHA). Diante desse contexto, a discussão sobre o bullying ganhou espaço no Brasil e motivou a regulamentação de novas leis para coibir esse tipo de conduta. A Lei 13.185, de 06 de novembro de 2.015, instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying). No contexto e para os fins da r. Lei, considerou intimidação sistemática (bullying) todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. Segundo a norma, caracteriza-se a intimidação sistemática (bullying) quando há violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou discriminação e, ainda: ataques físicos, insultos pessoais, comentários sistemáticos e apelidos pejorativos, ameaças por quaisquer meios, grafites depreciativos, expressões preconceituosas, isolamento social consciente e premeditado e pilhérias. Na rede mundial de computadores – internet – há cyberbullying quando se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial. O bullying pode ser classificado, conforme as ações praticadas: verbal – insultar, xingar e apelidar pejorativamente; moral – difamar, caluniar, disseminar rumores; sexual – assediar, induzir e/ou abusar; social – ignorar, isolar e excluir; psicológico –perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar, manipular, chantagear e infernizar; físico – socar, chutar, bater; material – furtar, roubar, destruir pertences de outrem; e virtual –depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social. Em decorrência do bullying diversos crimes podem ser praticados. Cristiano Rodrigues, em artigo publicado no site do LFG57 denominado “Quais as leis sobre bullying e as penalidades?”, traz condutas consideradas criminosas previstas pelo Direito Penal: “(a) O Bullying moral e o verbal configuram crime de injúria, que é o mais básico, como o xingar a pessoa. O professor esclarece que há várias formas de injúria, inclusive a preconceituosa, que envolve questões de raça, etnia, religião, etc. Porém, é o xingamento em si que pode caracterizar difamação, que é o ato de fazer fofoca, falar mal da vítima para outros colegas. Essa prática pode, inclusive, caracterizar a injúria real, prevista pelo artigo 140, parágrafo 2º do Código Penal, que é a ofensa direta, feita por meios físicos, como puxar o cabelo, jogar um copo d’água na cara da vítima ou empurrá-la para que ela caia no chão; (b) Bullying físico: são ascondutas físicas, que é empurrar, bater e outras agressões físicas. Se a situação fica um pouco mais agressiva, essa prática pode cair para o crime de lesão corporal, afirma o advogado. Mas ele pondera que a maioria dos casos de bullying desse tipo acabam se caracterizando lesão corporal leve, prevista pelo artigo 129 do Código Penal; (c) Bullying patrimonial: são os atos em que a vítima tem um bem subtraído, seja por meio de furto ou brincadeiras que geram danos materiais. Rodrigues cita o exemplo do agressor que joga o celular da vítima no chão e quebra o aparelho; um outro caso é o de roubo ou ameaça que levam a pessoa a entregar dinheiro ou algum bem para o praticante de bullying. Ele pode ainda fazer ameaças de agressões posteriores ou até mesmo praticar a extorsão, que é diferente do roubo. “Às vezes, a pessoa acaba tendo que entregar voluntariamente um bem mediante a ameaça de um mal futuro”, diz Rodrigues. O professor ressalta que todos esses crimes são patrimoniais e podem ser praticados na esfera do bullying, como o furto previsto no artigo 155, o roubo no artigo 157, e extorsão no artigo 158 do Código Penal; (d) Bullying de constrangimento legal: alguns tipos de bullying são interpretados como condutas de constrangimento legal, crime previsto no artigo 146 do Código Penal. O constrangimento legal ocorre quando a vítima é obrigada a fazer algo que não queira mediante ameaça grave; e (e) Bullying sexual: a prática do bullying sexual pode resultar em estupro, que, segundo Rodrigues, é “hoje um crime que não exige penetração nem sexo em si”. De acordo com ele, qualquer ato sexual forçado, desde um beijo até apalpar a parte íntima, masturbação ou sexo, configura o estupro, crime do artigo 213 do Código Penal. O professor observa que a maioria dos casos de bullying envolve menores de idade. Se a vítima tiver menos de 14 anos, a intimidação sexual caracteriza estupro de vulnerável, conforme expressa o Código Penal em seu artigo 217A”. A outra lei que faz referência ao bullying é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 –, alterada pela Lei 13.663, de 14 de maio de 2018, para incluir a promoção de medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência e a promoção da cultura de paz entre as incumbências dos estabelecimentos de ensino, o que resultou na alteração do art. 12, IX, que prevê a “promoção de medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência, especialmente a intimidação sistemática (bullying) no âmbito das escolas.” Essa lei veio para reforçar a regulamentação anterior de Combate ao Bullying (Lei 13.185/2015). Os objetivos das r. leis é conscientizar e prevenir a prática da intimidação sistemática. E a família tem um papel importante nesse contexto. Além dos direitos que o Estado garante a ela, exige o comprometimento de seus deveres, juntamente com o Estado, de assegurar, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais da criança e do adolescente (CF, art. 227), que é o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária e colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, exigência indeclinável do cumprimento daquele dever. Desta forma, deve partir de casa a repreensão desse comportamento, não deixar criar no lar condutas voltadas à intimidação sistemática de seu semelhante, como se isso fosse coisa normal ou comum. Devemos tratar com rigor, esclarecer a conduta vedada, admoestar quando agir de forma contrária. Só assim podemos evitar que eles sejam ou façam vítimas do bullying. Sem contar, ainda, que a prática do bullying pelas crianças e adolescentes pode acarretar a responsabilidade dos pais ou responsáveis, incluindo indenização às vítimas. A jurisprudência já teve a oportunidade de condenar civilmente a mãe pelo cyberbullying praticado pelo filho infante, que criou página na internet exclusivamente para ofender colega de classe com fatos e imagens extremamente agressivas [TJRJ, AC 7003750094, 6ª Câmara Cível, Rel. Liege Puricelli Pires, j. 30/06/2010]. (FARIAS, ROSENVALD, BRAGA NETTO, 2014, p. 87858). A escola é outra entidade importante de combate à intimidação sistemática. FARIAS, ROSENVALD e BRAGA NETTO, 2014, p. 62759, afirmam que “há, com lamentável frequência, nas escolas e estabelecimentos de ensino, os casos de bullying. Crianças e adolescentes são objetos de humilhação e desprezo pelos mais fortes, quando não sofrem agressões físicas. Tais casos preocupam, progressivamente, os educadores, pois não raro resultam em suicídios, ou traumas psicológicos que acompanharão o adulto pelo resto da vida”. Diante desses fatos a escola tem a obrigação de agir e impedir que continue a intimidação sistemática, além de identificar os opressores, tomando as providências estatutárias adequadas de proteção (ECA, art. 136, I e II), sob pena de ser inclusive responsabilizada. A jurisprudência já se manifestou sobre o assunto: “APELAÇÕES CÍVEIS. SUBCLASSE. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. BULLYNG ESCOLAR. COMPROVAÇÃO. RESPONSABILIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO DE ENSINO. DIREITO À INDENIZAÇÃO PATRIMONIAL PARCIALMENTE RECONHECIDO. DIREITO À INDENIZAÇÃO EXTRAPATRIMONIAL RECONHECIDO E VALOR ARBITRADO A ESSE TÍTULO MANTIDO. 1. Caso em que o conjunto probatório constante nos autos releva que a ré falhou no dever de cuidado que lhe cabia, decorrente do serviço educacional prestado, ao não ser capaz de adotar as providências necessárias (ferramentas pedagógicas investigativas e inibidoras adequadas) para que o autor, um de seus alunos, não sofresse agressões físicas, verbais e comportamentais de colegas (bullying) e, por conta disso, precisasse trocar de escola para voltar a ter um ambiente escolar saudável e desenvolvedor. 2. Dano moral ínsito ao próprio mal físico e emocional que o autor, uma criança de dez anos, sofreu ao ser vítima de bullying no ambiente escolar e em tal grau que retirou por completo o desejo do menor de permanecer em escola que já frequentava pelo terceiro ano seguido. Valor da indenização bem dosado em R$ 6.000,00, sopesado que (I) as agressões não partiram de prepostos da ré, cuja responsabilização decorre por sua conduta omissiva, de não diagnosticar a prática do bullying diante dos elementos que possuía e de não coibir adequadamente a prática do mesmo a ponto de fazê-lo cessar, e que (II) o autor se adaptou bem à nova escola, evidenciando que o mal sofrido não provocou qualquer trauma ou outras consequências gravosas. 3. Danos materiais caracterizados, consistentes nos valores que precisaram ser gastos com materiais escolares complementares e uniformes exigidos pela escola para a qual o autor precisou ser transferido, bem como nos valores despendidos com o acompanhamento psicológico recebido e as aulas de reforço do mês subsequente à transferência de escola, necessárias para compensar a queda de desempenho escolar provocada no período em que o autor sofreu bullying.” (Apelação Cível Nº 70072796303, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eugênio Facchini Neto, Julgado em 28/06/2017). 2.2.1.3.11 – Comprometimento do Desenvolvimento Psíquico ou Emocional da Criança ou do Adolescente A violência psicológica a que se refere a alínea “a” do inciso II do art. 4.º, se trata de qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou adolescente por meio das figuras descritas nos itens 2.2.1.3.1 a 2.2.1.3.10, deste artigo, que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional. O desenvolvimento psíquico60 ocorre por meio da organização e elaboração de experiências emocionais desde o nosso nascimento. As primeiras experiências emocionais acontecem no contato entre mãe e bebê, desde a vida uterina,estendendo-se para o meio familiar e os grupos sociais, como a escola. O indivíduo busca o crescimento e desenvolvimento para se sentir autônomo, incitado por seus desejos, seu crescimento, as necessidades biológicas e as exigências do mundo externo. Na busca do amadurecimento emocional, ele luta incansavelmente para o seu crescimento e ao mesmo tempo busca a gratificação rápida e imediata para suprir sua necessidade de prazer (PAPALIA & OLDS, 2006). Durante o desenvolvimento da criança, ela se depara com algumas situações de frustrações. Como certas angústias de saber que precisa de outras pessoas para satisfazer suas necessidades, que são independentes e autônomas dela. Angústias que não serão satisfeitas de acordo com o seu desejo. E é justamente no momento de vivenciar essas angústias que o indivíduo anseia um lugar aonde haja somente o prazer, buscando o máximo uma estratégia para fugir do desprazer. Geralmente nesse momento de crises momentâneas o indivíduo que acha a solução para aliviar sua frustração, se a escolha for uma opção saudável, ele amadurece e vai se desenvolvendo psiquicamente. Se não for saudável, a tendência é regredir psicologicamente (BEE, 1997). A escolha do indivíduo dependerá principalmente do adulto que o acompanha na fase da infância. Como esse adulto irá educá-lo e ajudá-lo com o desenvolvimento psicológico. Dependendo da forma de estimular a criança no seu crescimento irá resultar em consequências positivas ou negativas para a vida dela, que irá refletir na fase adulta do indivíduo. A partir daí se estabelece o nível de resistência a frustrações, indivíduos infelizes com muito ou os felizes com pouco (PAPALIA & OLDS, 2006). Desenvolvimento emocional61, por sua vez, é a aquisição, com o tempo, de meios e formas comportamentais de manifestar seu temperamento no ambiente social e nas atividades cotidianas, incluindo a escola, v.g. Desde os primeiros meses e anos de vida a criança já apresenta características inatas, que nasceram com ela e que, assim, parecem ter um forte componente biológico e genético. Essas características levam a respostas motoras e de atenção que geram consequências positivas ou negativas na interação social e na execução de tarefas nos mais diversos ambientes. Como todo comportamento, a persistência ou inibição de determinados “excessos” ou ações emocionais negativas podem ser modulados e modificados pela intervenção de seus cuidadores no sentido de equilibrá-los e permitir melhor adaptação. Tudo aquilo que possa comprometer o desenvolvimento psíquico e emocional da criança e do adolescente decorrente de conduta discriminatória ou depreciativa por meio de ameaça, indiferença, bullying, entre outras figuras descrita na norma, é violência psicológica. 2.2.2 – Na Relação Familiar 2.2.2.1 – Alienação Parental como Violência Psicológica O legislador acresceu como violência psicológica, dentro das relações familiares, a alienação parental. A Síndrome de Alienação Parental (SAP), conforme proposta originalmente pelo psiquiatra Richard Gardner, na década de 1980, descreve “um fenômeno que se manifesta primariamente no contexto litigioso das disputas judiciais pela guarda dos filhos. Conforme o autor, a síndrome é identificada pela manifestação no comportamento da criança de uma campanha de rejeição e degradação a um dos genitores, sem que houvesse justificativa para esta conduta. A causa desse comportamento seria o doutrinamento da criança por parte do genitor alienante com o objetivo de romper o vínculo desta com o genitor alienado”62. Trata-se originalmente de uma matéria atrelada à área cível e o legislador incluiu na Lei 13.431/2017 para garantir às crianças e aos adolescentes, vítimas ou testemunhas da alienação, a escuta protegida. O legislador definiu na alínea b do inciso II do art. 4.º da Lei 13.431/2017, o que considera o ato de alienação parental: “a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este”. O dispositivo faz a transcrição fiel do art. 2.º da Lei 12.318, de 26 de agosto de 201063, que dispõe sobre a alienação parental. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros: a) realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; b) dificultar o exercício da autoridade parental; c) dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; d) dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; e) omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; f) apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; e g) mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós. A prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda. Trata-se de um exercício abusivo da autoridade parental e um maltrato psicoemocional da criança. Muitas vezes expresso em uma obsessão de cuidar sufocante, interferindo com a intersubjetividade da criança64. É importante que se diga que o depoimento especial no caso de alienação parental não é o meio de prova exclusivo para atestar sua ocorrência. Há exigência legal65 segundo a qual, havendo indício da prática de ato de alienação parental em ação autônoma ou incidental, o juízo, se necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial66. Exige-se um laudo pericial e terá base em ampla avaliação psicológica ou biopsicossocial, conforme o caso, compreendendo, inclusive, entrevista pessoal com as partes, exame de documentos dos autos, histórico do relacionamento do casal e da separação, cronologia de incidentes, avaliação da personalidade dos envolvidos e exame da forma como a criança ou adolescente se manifesta acerca de eventual acusação contra genitor. A prova técnica será realizada por profissional ou equipe multidisciplinar habilitados, exigindo, em qualquer caso, aptidão comprovada por histórico profissional ou acadêmico para diagnosticar atos de alienação parental. Esse trabalho exige tempo, não é algo que se realiza em uma fala exclusiva da criança ou do adolescente durante o depoimento especial. A escuta protegida surge para complementar esta prova, garantindo à criança ou adolescente, se necessário serem ouvidos, que seja por meio de depoimento especial. 2.2.2.2 – Alienação Parental e as Falsas Acusações de Abuso Sexual A grande celeuma, atualmente, vinculada à alienação parental são as falsas acusações de abuso sexual pelo(a) genitor(a) alienador(a). Essa prática está definida no inciso VI do art. art. 2.º da Lei 12.318/2010: “apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente”. Os fatos recorrentes no dia a dia forense são de que simples afirmativas do alienador já são o suficiente para afastar o(a) filho(a) do alienado, ignorando não só o direito do infante, garantido pelo Princípio do Melhor Interesse da Criança (CF, 227), como do adulto pelo Princípio da Presunção da Inocência (CF, art. LVII). É importante que esse assunto seja tratadocom cautela, pois se trata de fato grave e, em certos casos, as falsas acusações podem causar danos irreparáveis aos envolvidos, dentro do núcleo familiar, além de atingir os profissionais vinculados à produção da prova do abuso. A primeira medida tomada geralmente na hipótese de denúncia de abuso sexual é afastar o abusador da vítima, no caso o alienado, com a ideia de proteção à criança ou adolescente. Quando os fatos são confirmados há uma sucessão de atos vantajosos resultados da medida, principalmente a favor da vítima (criança ou adolescente); entretanto, o que vem ocorrendo atualmente é um índice elevado, embora não se tenha números exatos, de falsas acusações de abuso sexual com a intenção de afastar o(a) filho(a) do alienado. Neste último caso surge outro grande problema: a morosidade da Justiça. O fato de as comarcas estarem abarrotadas de processos, carência de recursos de pessoal, estrutura, equipamentos, entre outros, fazem com que os magistrados não tenham condições de atender à demanda a contento para uma devida prestação jurisdicional. Daí o fato tem agravamento, porque podemos estar afastando o alienado, que pode ser inocente, do convívio com seu(sua) filho(a), o que pode acarretar no futuro por conta disso a repulsa do próprio infante ao genitor alienado, o que seria natural. A decisão judicial, inclusive, acaba integrando o iter criminis do alienador,67 que é sabedor dessa deficiência jurídica e envolve o Poder Judiciário, que afasta o(a) filho(a) do(a) genitor(a) sem comprovação suficiente dos fatos de forma liminar, acarretando, por outro lado, uma forma de incutir falsas memórias nos infantes. O Superior Tribunal de Justiça no REsp 1609726/DF, analisando um caso envolvendo abuso sexual de infante e os princípios constitucionais de interesses das partes envolvidas, disse que “inobstante hajam acusações de abuso sexual de menor pelo genitor, não se pode privá-lo totalmente do convívio com a infante, quando existentes outras formas de resguardar a incolumidade sexual da incapaz, sem, contudo, recorrer a medidas drásticas, tais como ceifar totalmente os vínculos familiares entre pai e filha. III. Quando houver colisão entre princípios de envergadura constitucional, deve ser exercida pelo magistrado a adequada ponderação entre os valores envolvidos, para que nem um, nem outro direito seja sacrificado”. A decisão está ligada à presunção de culpa nas falsas acusações de abuso sexual; contudo, pela experiência de anos na Magistratura e depois de analisar inúmeros casos desta natureza, o mais importante é filtrar a produção cognitiva da prova sumária colacionada aos autos com o pedido inicial. Neste sentido, podemos colacionar a decisão do TJSP, da lavra do Relator Des. Carlos Alberto Garbi, da 10.ª Câmara de Direito Privado, no AI n. 2070734-54.2014.8.26.0000, em julgamento ocorrido em 14/10/2014: “CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. FALSA NOTÍCIA DE ABUSO SEXUAL. ATOS DE ALIENAÇÃO PARENTAL. 1. Decisão agravada que indeferiu o pedido de suspensão das visitas do genitor à filha do casal por considerar temerária e sem fundamento as alegações de abuso do genitor. 2. O resultado do segundo exame pericial, concluído durante o processamento do recurso, também resultou negativo e as circunstâncias dos autos indicam a prática de atos de alienação parental por parte da genitora, em prejuízo à criança. O processo de alienação parental, quando desmotivado, e caso detectado em sua fase inicial e reversível, deve ser obstado a fim de se evitar as graves consequências da instalação de síndrome de alienação parental na criança e/ou adolescente, as quais tendem a se perpetuar por toda a sua vida futura. 4. Se por um lado a prática processual revela a dificuldade de se identificar e neutralizar os atos de alienação parental, por outro lado, não pode o Juiz condescender com os atos de desmotivada e evidente alienação parental, para fins de auxiliar o agente alienador a alcançar o seu intento, de forma rápida (e ainda mais drástica), em evidente prejuízo à criança. 5. Deve-se restabelecer a regular convivência entre a criança e o genitor, a qual, diante das circunstâncias que se revelam nos autos, sequer deveria ter sido interrompida, não fosse a temerária e insubsistente acusação da genitora. Deve ser ressaltado que, no caso, não há falta de provas, e sim provas de que os fatos relatados pela genitora são inverídicos. 6. Recurso não provido. Antecipação de tutela recursal revogada para restabelecer as visitas paternas.” ALESANDRA ULLMANN,68 em excelente artigo denominado “Da Inconstitucionalidade do Princípio da Culpabilidade Presumida nas Falsas Acusações de Abuso Sexual”, aborda de forma arrebatadora a questão envolvendo as provas produzidas no início do processo, inclusive relata consequência aos profissionais pelos laudos fornecidos: “6. Das Provas – Há algumas formas de se efetivar o procedimento de uma falsa acusação de abuso sexual contra um dos genitores com a única intenção de provocar seu afastamento do filho comum. A primeira delas, e mais habitual, é a busca no judiciário de uma decisão liminar inaudita altera pars, ou seja, sem a oitiva da parte contrária. Este procedimento no qual na maioria das vezes basta uma mera alegação de desconfiança que o menor estaria sofrendo algum tipo de abuso por parte do outro genitor ou familiar para que, na quase totalidade dos casos, ‘pela segurança do menor’, se consiga uma medida de afastamento temporário e proibição da convivência. Em alguns casos, o procedimento inicial vem acompanhado de laudos unilaterais, de profissionais contratados e pagos pela parte, que de alguma forma corroboram com a alegação, havendo em muitos casos fotografias de partes íntimas de crianças sem data e identificação, tendo como única intenção chocar quem analisa o feito. Algumas vezes, também, o processo vem acompanhado de declarações de amigos e parentes do acusador, e ainda de trechos de áudios ou filmagens da criança de tenra idade relatando exatamente o que aquele responsável quer que ela diga. Importante que se ressalte que essa forma de alienação parental vai além do âmbito familiar, pois para corroborar a tese do pretenso abuso, o acusador envolve psicólogos, médicos, professores, parentes, amigos e outros. Ou seja, o alienador, nesse caso acusador, utiliza-se do círculo extenso da família e dos amigos para trazer aliados que confirmem sua forma de agir. Fazer de familiares e amigos próximos e comuns ao ex-casal cumplices de sua jornada é o primeiro passo para a extensão direta da alienação parental, pois se engana quem pensa que a alienação só se dá com o filho comum, transforma-se em um apartheid, uma divisão entre meus e seus. Minha família x sua família, meus amigos x seus amigos, profissionais de minha escolha x profissionais de sua escolha. Nesse jogo perverso o alienador utiliza-se ainda das instituições próximas do menor para, de alguma forma, auxiliá-lo no afastamento do outro, como a escola, os médicos, psicólogos e outros…”. Da análise da prova dentro das instituições de ensino ULLMANN afirma que “a escola é o local, longe de casa, onde as crianças mais tempo passam, teoricamente um local neutro, sem provocações, sem disputas, sem a ostensiva necessidade de escolha entre um ou outro genitor. No entanto, na prática, não é desta forma que acontece. Vale lembrar que a separação dos pais é sempre um trauma a ser superado pelo menor. E, dependendo da forma com que esta se dê e do comportamento dos pais ao lidar com a situação, que por si só já causa stress e perda de referências para o filho comum, a criança pode reagir de formas diversas, seja tornando-se mais agressiva, introspectiva, chorosa e manhosa, menos comunicativa, com atraso no aprendizado, comportamento regredido, e diversas outras formas de manifestação. Ou seja, é mais do que norma que a criança modifique seu comportamento diante da separação dos pais. As dificuldadesapresentadas pelos menores no momento de se separar de pai e mãe, na entrada e saída da escola, são demonstrativos da readaptação a uma nova situação de vida, e não necessariamente que o pequeno não deseja ir com um ou com outro. A insegurança dos filhos é fruto da insegurança dos pais, e assim deve ser encarado […] como exemplo, é comum se verificar em processos judiciais que surgem declarações de escolas, professores e mães de coleguinhas da criança afirmando simples intenção de afirmar ou fazer prova de que a criança teme o genitor ou não quer sair da escola com ele. Tais ‘documentos’ devem ser analisados com todo cuidado possível, pois certamente quem os emitiu não possui capacidade técnica para avaliar o momento que a criança está vivendo e as sensações de medo e abandono do outro quando não se encontra na companhia de ambos os genitores”. É importante registrar que a legislação atual objetivou diminuir o afastamento de um dos pais com a instituição de ensino e o desenvolvimento do filho, determinando que as escolas e cursos de extensão tenham a obrigação de prestar informações a ambos os genitores, independentemente da situação jurídica deles. Trata-se da Lei 9.394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases do Ministério da Educação e Cultura, que foi alterado pela Lei 12.013/20019, e o art. 1269 passou a obrigar as instituições de ensino a fornecer informações a ambos os genitores, conviventes ou não com seus filhos. A atuação dos Psicólogos nas questões familiares envolvendo esse assunto, com emissão de documentos, é outro fator determinante como produção de prova e causa consequências jurídicas graves, não só às partes, como aos próprios profissionais, como ressalta ULMANN70: “Um dos instrumentos utilizados pelos genitores que pretendem, de forma maldosa, afastar o outro do filho menor, é a indução de alguns profissionais da área de saúde para tanto, sendo que a utilização de laudos, declarações, pareceres médicos e psicológicos para justificar o pedido de afastamento do genitor ao judiciário virou lugar comum nos processos que envolvem falsas acusações de abuso sexual advindos de um processo sórdido de alienação parental. O trabalho dos psicólogos no deslinde dos processos judiciais envolvendo questões familiares é de suma importância, desde que realizado de forma isenta e baseada nas normas e regulamentações de seu Conselho. O Código de Ética da profissão trata de forma bastante clara das responsabilidades do profissional, e várias resoluções específicas norteiam o atuar dos psicólogos. Dentre elas temos as Resoluções 07/2003 (Institui o Manual de Elaboração de Documentos Escritos produzidos pelo psicólogo, decorrentes de avaliação psicológica e revoa a Resolução CFP o 17/2002), 08/2010 (Dispõe sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário) e 17/2012 (Dispõe sobre a atuação do psicólogo como Perito nos diversos contextos). Todas as regras contidas nas resoluções acima citadas e enumeradas visam ao desempenho de forma idônea do profissional da área de psicologia de forma que seu atuar, especificamente em questões que envolvam processos judiciais na área de família, não colaborem de forma alguma com qualquer tipo de alienação parental praticada por um dos genitores ou guardião. Importante ressaltar que a elaboração de laudos ou pareceres que serão utilizados por uma das partes impõe ao psicólogo uma grande responsabilidade: a de analisar e avaliar o contexto familiar das pessoas que envolvem o litígio, para só assim apresentar qualquer documento ao contratante. A não observação desse princípio poderá fazer com que a utilização do documento em um processo judicial enseje decisões que nem sempre resguardam as partes envolvidas, sendo que o mau uso de documentos ambíguos ou inconclusivos emitidos por psicólogos pode dar início a um processo de alienação parental, firmar a crença de uma falsa acusação, seja de abuso moral, sexual, físico, tortura psicológica e outros.” Visando essa imparcialidade e preocupados com a grande quantidade de profissionais punidos pelos Conselhos Regionais e Federal em razão da não observação dos principais preconizados no regramento específico, o CREPOP – Centro de Referência Técnica de Psicologia e Políticas Públicas, em conjunto com o Conselho Federal de Psicologia, elaboraram manual contendo referências técnicas para atuação do psicólogo em varas da família71. ULLMANN,72 em seu artigo, cita punição por violação a infração aos artigos 2.º, alíneas b e h, art. 7.º e 9.º do Código de Ética da Profissão de Psicólogo73. No que se referem aos documentos emitidos por médicos, principalmente os pediatras e ginecologistas, registre-se que são outros profissionais que têm importância nesse contexto e acabam por agravar a situação muitas das vezes, seja de forma voluntária ou não, com participação direta no resultado, decorrente da produção do documento de sua lavra, que no meio jurídico tem peso de laudo e/ou atestado de um profissional que é reconhecidamente respeitado no meio social e profissional por tudo o que representa na sociedade. Ainda se referindo a ULLMANN74, ela adverte que “vale sempre levar em consideração dois pontos específicos: o primeiro, que a parte que pretende provar uma tese de abuso não se utilizará de laudos, declarações ou documentos que se apresentem contra a sua tese. Ou seja, na maioria dos caos de falsa acusação de abuso, há a busca por diversos profissionais, até que um, por uma razão ou outra, corrobore por escrito com a tese do acusador – e ninguém nunca saberá disso. Em segundo lugar, vale lembrar que o relato aos médicos e profissionais é feito pela parte interessada, e quando esses são tomados como verdade absoluta, a indução de um posicionamento já vem implícita na escrita do profissional”. Por fim, nos resta retratar o atuar dos operadores do direito e advogado, que são indispensáveis à aplicação do direito e das garantias constitucionais. Esclarece-se que muitos deles são envolvidos também, direta ou indiretamente, em fatos fantasiosos, mentirosos, adulterados, falsos, para encampar a ideia de obter para si o(a) filho(a) exclusivamente em prejuízo da convivência familiar com o(a) genitor(a) alienada(o). Acreditamos que pelo Código de Ética do Advogado, para evitar uma lide temerária, deverá investigar por todos os meios que lhe são possíveis, após análise da prova que lhe é apresentada, a situação fática-probatória. Caso necessário recorra aos profissionais que emitiram os documentos e tenha uma conversa franca e aberta, com autorização de seu cliente, para evitar a quebra do sigilo profissional; debata com outros profissionais, reflita, discuta, etc. É importante que sejam esgotadas todas as lacunas e dúvidas. Somente após a convicção, somada à prova, é que se deve dar azo a uma pretensão subjetiva pública em juízo. Não se pode perder de vista que o Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), no art. 32, parágrafo único, dá pela responsabilidade solidária do advogado para responder pela litigância de má-fé, seja por sustentar lide temerária, seja por atos processuais praticados nesta condição75. Por todas essas considerações, é importante que, diante de uma situação concreta de abuso sexual, haja uma correta interpretação da norma para se respaldar. O art. 5.º da Lei 12.318/2010 (Lei da Alienação Parental) destaca que “havendo indício da prática de ato de alienação parental, em ação autônoma ou incidental, o juiz, se necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial”. Ora, reconhecendo o indício da alienação (art. 4.º da referida lei), aplicam-se as medidas provisórias necessárias para preservação da integridade psicológica da criança ou do adolescente, inclusive sua convivência com o genitor ou viabilizar a efetiva reaproximação, se for o caso, e determinar, imediatamente, a realização de perícia psicológica ou biopsicossocial. Qualquer dúvida será sanada, posto quea prova a ser produzida é do Juízo e garantido o contraditório e a ampla defesa do alienado. O art. 5.º da Alienação Parental destaca que “havendo indício da prática de ato de alienação parental, em ação autônoma ou incidental, o juiz, se necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial”. Uma forma de obter informações é o Depoimento Especial. De qualquer sorte, toda e qualquer cautela nunca é demais, sendo importante que se reflita antes de decidir liminarmente o acolhimento da alienação parental baseado em indícios de abuso sexual, que podem ser falsas e acabarão por causar prejuízos às partes, principalmente aos infantes. 2.2.3 – Como Conduta Criminosa A última definição de Violência Psicológica é também a mais ampla possível, uma vez que o legislador considerou que “qualquer conduta que exponha a criança ou adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, particularmente quando isto a torne testemunha.” A conduta vinculada à definição da violência psicológica pode ser definida como o meio de agir, direta (pela própria pessoa) ou indiretamente (por intermédio de terceiros), de forma negativa (são aquelas consideradas moralmente reprováveis), por meio de um ato comissivo (é aquele que o agente pratica o ato através de uma ação) ou omissivo (é aquele que se pratica o ato através de uma omissão, um não agir). A conduta vedada é aquela de expor a criança ou adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro da sua família ou de sua rede de apoio. O expor significa fazer com que uma pessoa fique em exposição a alguma coisa que no contexto da norma seria o crime violento. Essa exposição pode ser direta (presencial) ou indireta (encoberta e não explícita). A título de exemplo, um pai que agride uma mãe na residência do casal na presença dos filhos, trata-se de uma exposição direta; ou a agressão, nas mesmas circunstâncias, quando ocorre sem a presença dos filhos, porém eles tomam conhecimento através das marcas deixadas na vítima (mãe), trata-se de uma exposição indireta. A conduta expositiva deve ser de um crime violento e exige direcionamento alternativo a dois núcleos de vítimas: a) membros da família; ou b) rede de apoio. A Lei de Introdução ao Código Penal brasileiro – Decreto-lei n. 3.914/41 – faz a seguinte definição de crime: “Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamente, penas de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.” A norma se limitou apenas a destacar as características que distinguem as infrações penais consideradas crimes daquelas que constituem contravenções penais, as quais, como se percebe, restringem-se à natureza da pena de prisão aplicável. Deve-se adotar o conceito analítico de crime, que segundo Welzel é a ação humana voluntária e consciente dirigida a uma finalidade. No conceito analítico de crime há alguns elementos estruturais, sendo eles: ação típica, antijurídica e culpável. No entendimento dominante no Brasil, “crime é a ação típica e antijurídica”, admitindo a culpabilidade somente como mero pressuposto da pena. É importante analisar a classificação das infrações penais para entender as condutas puníveis. O Brasil adota a classificação Bipartida, que é a divisão mais utilizada pelas legislações penais. As condutas puníveis dividem-se em crimes ou delitos e contravenções que seriam espécie de gênero infração penal. Ontologicamente76 não há diferença entre crime e contravenção. As contravenções, que por vezes são chamadas de crimes-anões, são condutas que apresentam menor gravidade em relação aos crimes, por isso sofrem sanções mais brandas. O fundamento da distinção é puramente político- criminal e o critério é simplesmente quantitativo ou extrínseco, com base na sanção assumindo caráter formal. Com efeito, nosso ordenamento jurídico aplica a pena de prisão para os crimes, sob as modalidades de reclusão e detenção, e, para as contravenções, quando for o caso, a de prisão simples. Assim, o critério distintivo entre crime e contravenção é dado pela natureza de pena privativa de liberdade cominada. Nota-se que o legislador ordinário aventou, expressamente, apenas e tão somente a expressão “crimes”, deixando de fora a terminologia “contravenção”. Neste caso aplica-se à contravenção penal para caracterizar violência psicológica? Observamos, antes de tudo, que o legislador fez menção a “crime violento”. No caso da contravenção, pela análise do Decreto-lei n. 3.688/41, que se refere à Lei das Contravenções Penais, não encontramos nenhuma infração penal na qual haja violência. Assim, poderíamos responder negativamente! Ocorre, entretanto, que se tratando de um fato que envolve infração penal dentro do núcleo familiar ou na rede de apoio, surge uma questão que envolve as vias de fato, prevista no art. 21 da Lei de Contravenção Penal77. Essa questão vem rendendo discussão no meio jurídico e envolve diretamente a Maria da Penha, que é a norma que mais se aplica aos fatos familiares, inclusive com o mesmo contexto aqui discutido. Muito se debate em sede policial e jurídica se a contravenção penal de vias de fato, no âmbito da violência doméstica, seria autuada por Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) ou se por Auto de Prisão em Flagrante Delito (e até mesmo por Portaria, para o nascedouro do Inquérito Policial). A discussão se dá, principalmente, por conta da redação do art. 41 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que enuncia que aos “crimes praticados” com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995. Nesse ponto, veja a redação do art. 41 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha): “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995.” Nota-se que o legislador ordinário, como na Lei 13.431/2017, aventou, expressamente, apenas e tão somente a expressão “crimes”, deixando de fora a terminologia “contravenção”. O Superior Tribunal de Justiça entendeu que a expressão crime deveria abranger a contravenção penal de vias de fato. De forma, a contravenção penal de vias de fato, no âmbito da violência doméstica, à luz da jurisprudência do STJ78, teve afastada a incidência da Lei 9.099/1995. Esse também foi o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do HC 106.212/MS (DJ13.06.2011), de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que se adotou o posicionamento no sentido de que o art. 41 seria aplicado aos crimes e às contravenções penais praticados no âmbito de violência doméstica e familiar. Analise-se a ementa do julgado: “Violência doméstica. Artigo 41 da Lei n.º 11.3402006. Alcance. O preceito do artigo 41 da Lei n.º 11.340/2006 alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia contravenção penal, como é a relativa a vias de fato. Violência doméstica. Artigo 41 da LEI n.º 11.340/2006. Afastamento da Lei n.º 9.099/1995. Constitucionalidade. Ante a opção político-normativa prevista no artigo 98, inciso I, e a proteção versada no artigo 226, § 8.º, ambos da Constituição Federal, surge harmônico com esta última o afastamento peremptório da Lei n.º 9.099/1995 – mediante o artigo 41 da Lei n.º 11.340/2006 – no processo- crime a revelar violência contra a mulher. Isso porque, segundo o disposto no artigo 226, § 8.º, da Constituição Federal, “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” (STF, HC 106.212/MS (DJ 13.06.2011), Rel. Min. Marco Aurélio,Tribunal Pleno, j. 24.03.2011, DJe- 112 divulg. 10.06.2011, public. 13.06.2011, RTJ 219/521, RT, v. 100, n. 910, p. 307-327, 2011). E o que isso tem a ver com a análise da violência psicológica em termos práticos? A interpretação da norma, dentro desse contexto já reconhecido pelo STJ, acreditamos que caracteriza a violência psicológica caso haja a exposição de uma criança ou adolescente, direta ou indiretamente, à contravenção de vias de fato por parte de algum membro de sua família ou de sua rede de apoio. Indagamos: uma genitora que, diariamente, é vítima de vias de fato na presença dos filhos dentro do lar conjugal (tapas, pontapés, chutes, puxões de cabelo, arrastões, etc.) não caracterizaria uma exposição de violência psicológica à criança ou adolescente, ainda que não deixasse marcas no corpo dela, só porque o legislador no art. 4.º, alínea c, da Lei 13.431/2017, afirma que a violência se dá quando ocorre crime violento? À luz da finalidade última da norma jurídico-constitucional, tenho que, considerados os fins sociais a que a lei se destina (art. 3.º), não há dúvida de que a resposta é afirmativa, i. é, caracterizaria a violência. E quanto ao crime culposo? Não caracteriza a violência psicológica, posto que o agente age sem dolo, sua vontade não é dirigida à obtenção de um resultado criminoso ou o risco de produzi-lo. O crime é resultante da inobservância do cuidado necessário do agente, o qual não intenta nem assume o risco do resultado típico, porém a ele dá causa por imprudência, negligência e imperícia. Ou seja, é um agir descuidado que acaba por gerar um resultado ilícito não desejável, porém previsível. Vejamos, em análise ao crime violento, que o legislador exige o direcionamento alternativo a dois núcleos de vítimas: a) membros da família; ou b) rede de apoio. Para saber quem são os membros de uma família, antes, porém, devemos definir o que seria uma família. ABREU79, na conceituação de família, afirma que o conceito é amplo, podendo ser definido diferentemente dependendo da perspectiva abordada, do viés sociológico, dos costumes e das tradições, assim como da cultura e o local estudado. De acordo com Caio Mário80, família em sentido genérico e biológico é o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum; em senso estrito, a família se restringe ao grupo formado pelos pais e filhos; e em sentido universal é considerada a célula social por excelência. Já Maria Helena Diniz81 discorre sobre família no sentido amplo como todos os indivíduos que estiverem ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade, chegando a incluir estranhos. No sentido restrito é o conjunto de pessoas unidas pelos laços do matrimônio e da filiação, ou seja, unicamente os cônjuges e a prole. Na área jurídica o tema possui uma definição mais restrita. Como regra geral, o Direito Civil considera membros da família apenas as pessoas unidas por relação conjugal ou de parentesco. As várias legislações definem, por sua vez, o âmbito do parentesco. A Constituição Federal de 1988 abrange a família como sendo o relacionamento entre um homem e uma mulher, podendo surgir o casamento ou uma união estável. Afirma também que pode ser composta pelo aspecto social. O direito de família estuda, em síntese, as relações das pessoas unidas pelo matrimônio, bem como aqueles que convivem em uniões sem casamento; dos filhos e das relações desses com os pais, da sua proteção por meio de tutela dos incapazes por meio da curatela82. Desse modo, importa considerar a família em um conceito amplo, como parentesco, ou seja, o conjunto de pessoas unidas por um vínculo jurídico de natureza familiar, porém, esse conjunto não recebe tratamento pacífico e uniforme. A ordem jurídica enfoca-a em razão de seus membros ou de suas relações recíprocas83. A definição legal de família que mais se aproxima do formato atual foi a conceituada pelo legislador a partir da entrada em vigor da Lei Maria da Penha (Lei 11/340/2006, art. 5.º, II): “comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”. Maria Berenice Dias84 afirma que “pela primeira vez o legislador, de forma corajosa, define o que é família trazendo um conceito que corresponde ao formato atual dos vínculos afetivos. Fala indivíduos, e não em um homem e uma mulher. Também não se limita a reconhecer como família a união constituída pelo casamento. Aliás não poderia fazê-lo, até porque a constituição federal esgarçou o conceito de família e monoparental, sem no entanto deixar ao desabrigo outros modelos familiares ao usar a expressão ‘entende-se também como entidade familiar’ (CF, art. 226, §4.º). Assim as famílias anaparentais (formada entre os irmãos), as homoafetivas e as famílias paralelas (quando o homem mantém duas famílias), igualmente estão albergadas no conceito constitucional de entidade familiar como merecedora da especial tutela do Estado”. Porém, conforme o entendimento da sociedade vai evoluindo, o conceito de família vai se modificando, passando a existir vários tipos de família. Atualmente, o entendimento mais comum estabelece que família seja a união de pessoas ligadas pelo afeto. Recentemente, surgiram discussões acerca dos direitos e da família no caso de pessoas homossexuais, que, até então, eram repudiados pela sociedade. Hoje, após o julgamento pelo STF, a união é reconhecida, cujos laços são iguais aos de outras pessoas no meio social, entre eles, de família85. Dessa forma, o reconhecimento da união homoafetiva como a família incidente independe da orientação sexual. Assim, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros que têm identidade feminina, estão ao seu abrigo quando a violência ocorre entre pessoas que possuem relação afetiva no âmbito da unidade familiar. Para a sociedade, a simples relação de consanguinidade não é mais importante do que os laços afetivos e do que a própria convivência no âmbito familiar. A estrutura da família, teoricamente, é baseada nos laços de confiança, no amor, no respeito, na reciprocidade, na harmonia e no bem- estar comum. Os membros de uma família, geralmente, são os pais e os filhos e seus descendentes. Ocorre, entretanto, que em face da legislação de proteção integral à criança ou adolescente, é comum tratarmos da família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou o adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. Trata-se de espécie de família natural, em distinção à família substituta. Neste caso são membros da família extensa os avós, tios, primos, sobrinhos, etc. Lado outro, a rede de apoio são aqueles que detêm a criança ou o adolescente em sede transitória, de caráter provisório e excepcional. Trata-se da família substituta, nascida dos institutos jurídicos da guarda, tutela, acolhimento familiar, apadrinhamento, etc. Os membros da rede de apoio são aqueles responsáveis pela proteção da criança e do adolescente (guardião, tutor, acolhedor, padrinho, etc.) e os integrantes de sua família (a família do guardião, tutor, acolhedor, padrinho, etc.). Nesse último caso não se deve dar proteção apenas ao responsável da criança ou adolescente se os infantes vivem no núcleo familiar do responsável. Qualquer conduta criminosa cometida em face desses integrantes integra a esfera da violência psicológica. O local (ambiente) da conduta delitiva (infração criminal) pouco interessa para caracterizar a violência. Vejamos que o dispositivo faz referência a “independentemente do ambiente em que é cometido”. Isso significa dizer que o fato pode ser em público (rua, praça, escola, clube social, restaurante, bar, salão de beleza, etc.) ou em lugar reservado (dentro da própria residência da vítima). O importante, embora não seja obrigatório, é que a conduta seja voltada “particularmentepara tornar testemunha”, o que acaba por transformar a vida do(a) infante, com reflexos negativos e consequências psicológicas graves e, quem sabe, para o resto de sua vida, muitas vezes irrecuperável. Essa afirmativa soa no sentido de que, caso um membro da família seja vítima de um crime violento o qual a criança ou adolescente não tenha presenciado, mas que conviva no lar com ela, acompanhando seu sofrimento, seja pelas lesões físicas ou psicológicas, este reflexo atinge diretamente o(a) menor, o que causa a violência psicológica indireta dos fatos. 2.3 – VIOLÊNCIA SEXUAL A violência sexual contra crianças e adolescentes é uma das formas mais perversas de violência, pois se caracteriza pelo uso da sexualidade desta população, de maneira a violar seus direitos sexuais e sua intimidade. Essa faceta da violência apresenta-se de maneira desigual e é estabelecida pelas relações de poder, mando e obediência, principalmente quando a vítima é uma criança e/ou um adolescente. Kristense86 et al., 1998, p. 33, define como “todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança ou adolescente ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa”. A violência sexual, devido à sua complexidade, divide-se em: a) abuso sexual intrafamiliar e extrafamiliar; e b) exploração sexual e comercial de crianças e adolescentes. Define-se abuso sexual intrafamiliar como o uso da sexualidade da criança e/ou do adolescente por pessoas com vínculos de parentesco. O abuso extrafamiliar é quando os abusadores não têm vínculos familiares. A exploração sexual e comercial define-se pela exploração da sexualidade de crianças e adolescentes e está ligada ao comércio com fins de lucro por aliciadores, agentes, clientes, os quais estão inseridos em um sistema de exploração. A exploração sexual e comercial de crianças e adolescentes está dividida em quatro contextos: 1) Exploração sexual no contexto de prostituição – ação na qual crianças/adolescentes podem ser levados ao ato da prostituição pelos próprios pais ou tornam-se vítimas do aliciamento de outros adultos, sendo apresentados ao mercado da prostituição com a promessa de melhores condições de vida. No entanto, não cabe denominar criança e adolescente como “prostitutas”, pois estão inseridas em um contexto de prostituição, sendo exploradas como objeto sexual por pessoas que formam uma rede de aliciadores; 2) Tráfico para fins de exploração sexual – é forma de exploração voltada para o tráfico de crianças e adolescentes e envolve atividade de aliciamento, rapto, intercâmbio e transferência em território nacional ou outro país, com a finalidade comercial ligada à prostituição, turismo, pornografia, trabalho escravo e tráfico humano; 3) Exploração sexual no contexto de turismo – acontece quando crianças/adolescentes são assediados por turistas, estrangeiros ou não. Geralmente há envolvimento, cumplicidade ou omissão de estabelecimentos comerciais que tendem a se beneficiar de alguma forma com esse tipo de exploração; e 4) Pornografia infantojuvenil – exposição de órgãos sexuais de crianças/adolescentes ou a realização de atividades sexuais explícitas reais ou simuladas em imagem ou vídeo. A violência sexual, descrita no inciso III do art. 4.º, é quem sabe a pior e mais grave de todas as praticadas em face da criança ou adolescente e, infelizmente, são também as mais frequentes envolvendo infantes como vítimas ou testemunhas. Faleiros e Campos, com propriedade, ressaltam que a violência sexual praticada contra criança “[…] deturpa as relações socioafetivas e culturais entre adultos e crianças/adolescentes, ao transformá-las em relações genitalizadas, erotizadas, comerciais, violentas e criminosas; confunde, nas crianças e nos adolescentes violentados, a representação social dos papéis dos adultos, descaracterizando as representações sociais de pai, irmão, avô, tio, professor, religioso, profissional, empregador, quando violentadores sexuais, o que implica a perda da legitimidade e da autoridade do adulto e de seus papéis e funções sociais; inverte a natureza das relações adulto/criança e adolescente definidas socialmente, tornando-se desumanas em lugar de humanas; desprotetoras em lugar de protetoras; agressivas em lugar de afetivas; individualistas e narcisistas em lugar de solidárias; dominadoras em lugar de democráticas, dependentes em lugar de libertadoras, perversas em lugar de amorosas, desestruturadoras em lugar de socializadoras; confunde os limites intergeracionais (2000, p. 10)”87. As alíneas a, b e c do referido inciso expõem cenários de violência sexual já descritos em tipos penais no Código Penal, no Título referente aos delitos contra a dignidade sexual, além de outros, que estão previstos como crimes contra a liberdade individual. 2.3.1 – Definição de Violência Sexual O legislador definiu no inciso III do art. 4.º como violência sexual aquela “entendida como qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda abuso sexual, exploração sexual comercial e tráfico de pessoa com o fim de exploração sexual”. O objetivo da norma foi abranger toda e qualquer conduta, descrita no Código Penal quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente e em outras normas infraconstitucionais, que envolva criança e adolescente em práticas sexuais de qualquer natureza, inclusive por meio eletrônico. É importante ter consciência na análise dessa violência que, pela definição da violência sexual dada pelo legislador ordinário na Lei 13.431/2017, o texto expresso no dispositivo em análise caracteriza, na sua grande maioria, tipos penais (crime) e, neste caso, como previsto no caput, para efeitos na norma não tem prejuízo a tipificação da conduta criminosa, que veremos adiante. No mesmo sentido da análise da conduta da violência psicológica (v. item 2.2.3), a conduta vinculada à definição da violência sexual pode ser definida como o meio de agir, direta (pela própria pessoa) ou indiretamente (por intermédio de terceiros), de forma negativa (são aquelas consideradas moralmente reprováveis), por meio de um ato comissivo (é aquele que o agente pratica o ato através de uma ação) ou omissivo (é aquele que se pratica o ato através de uma omissão, um não agir). A conduta vedada deve constranger a criança ou a adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda abuso sexual, exploração sexual comercial e tráfico de pessoa com o fim de exploração sexual. Constranger é forçar, obrigar, impor, compelir. Quem sofre constrangimento é constrangido por outrem a fazer o que não quer. É o estado de aperto, compressão, de quem foi constrangido, violentado88. Quem constrange atua de modo contrário à vontade do outro, que faz alguma coisa, deixa de fazê-la, ou permite que com ele se faça, a contragosto. É inerente ao verbo que define o núcleo do tipo penal que a vítima não queira a conduta do agente. Tolera-se em razão de circunstância excepcional, mas o fato tolerado não é do seu agrado; em condições usuais, não o aceitaria. A nosso juízo o legislador foi infeliz ao descrever o verbo (constranger) como sendo o meio para caracterizar a violência sexual. Em se tratando de vítima com idade inferior a 14 anos, irrelevante perquirir, para fins de caracterização de crime (ou da violência sexual), se houve ou não o seu “constrangimento” e/ou (muito menos) fazer qualquer “juízo de valor” acerca da sua conduta ou “experiência sexual” prévia (como não raro acontece), valendo lembrar que tanto o art. 5.º do ECA, quanto os arts. 2.º, parágrafo único, e 5.º, IV, da Lei13.431/2017, com respaldo no art. 227, caput, da CF, proíbem toda e qualquer descriminação dessas práticas, seja aferido se elas seriam ou não merecedoras da proteção conferida pela norma89. O Superior Tribunal de Justiça, neste sentido, recentemente editou a Súmula n. 593, com o propósito de unificar o entendimento a respeito de elementar afeta ao crime de estupro de vulnerável: “O crime de estupro de vulnerável se configura com conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.” Desta forma, entendemos que falhou o legislador ao exigir para que haja a violência sexual definida nesta norma o constrangimento da vítima ou testemunha, quando a “…lei estabelece um verdadeiro “dever geral de abstinência” em relação à prática de atos sexuais com pessoas de inferior idade a 14 anos e que todos têm o dever de respeitar e fazer respeitar”90. Os atos sexuais são a conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso: conjunção carnal é a relação sexual caracterizada pela introdução do pênis na vagina, dispensando-se penetração completa ou ejaculação; e ato libidinoso é qualquer prática diversa, tendente a excitar ou satisfazer a libido humana, podendo ser assim também entendido aquele ato, objetivamente identificável com uma prática libidinosa, mas destinado a menosprezar ou humilhar a vítima. Acresceu-se, ainda, a exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda abuso sexual, exploração sexual comercial e tráfico de pessoa com o fim de exploração sexual. Com a facilidade de transmissão de imagens proporcionada pelas redes sociais, cresce o hábito de enviar imagens do corpo para grupos de amigos ou para companheiros(as) de romance. E isso, infelizmente, não tem idade. Qual a motivação que leva as pessoas, na maioria jovens, a adotar esse procedimento? Enviar um “presente” ou uma lembrança para alguém que se ama. Uma demonstração de carinho ou de compromisso, como se o risco que estivesse correndo, ao colocar sua intimidade na “rede”, fosse uma prova de sua paixão ou entrega? Ou será uma mera demonstração de narcisismo e autopromoção? Pode ser considerado, para quem transmite, um hábito saudável, ou pelo menos inocente, que irá promover e estimular a liberdade de expressão, ou será uma atitude que poderá trazer surpresas desagradáveis no futuro? São inúmeras indagações para as quais, muitas vezes, não obteremos respostas. Ocorre, contudo, que isso faz com que pessoas desprovidas de caráter, maldosos, delituosos, utilizem esse mesmo mecanismo para cometer violência sexual em face de crianças e adolescência, nos termos da norma analisada. Na posse de fotos ou vídeos, o agente divulga nas redes sociais, principalmente, crianças ou adolescentes, para fins sexuais. Não obrigatoriamente a divulgação (exposição) deve ser por meio eletrônico. Pode ocorrer pessoalmente (entre duas ou mais pessoas por vários meios, v.g., entre si uma mostrando a outra, carta, fac-símile, etc.) ou publicamente (divulgação em ambiente aberto, v.g., Digital Versatile Disc [DVD], Compact Disc [CD], Memória USB Flash Drive [Pen drive], mural, faixa, etc.). 2.3.2 – Violência Sexual pelo Abuso Sexual (art. 4.º, III, alínea a) O primeiro meio de entender, de perceber o significado de violência sexual, foi descrito pelo legislador “como toda a ação que se utiliza da criança ou do adolescente para fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato libidinoso, realizado de modo presencial ou por meio eletrônico, para estimulação sexual do agente ou de terceiro”. Para a organização Mundial da Saúde (OMS), abuso sexual infantil é “definido como qualquer atividade sexual (incluindo intercurso vagina/anal, contato gênito-anal, contato gênito/genital, carícias em partes íntimas, masturbação, exposição a pornografia ou a adultos mantendo relações sexuais) envolvendo uma criança incapaz de dar seu consentimento”. (Salvagni; Wagner, 2006, p. 2). É considerado um dos maiores problemas de saúde pública do mundo (Johnson, 2004, pp. 121/132), podendo ocorrer em qualquer faixa etária, inclusive com os bebês (Ferreira, 1999), o que justifica o envolvimento cada vez maior de toda a sociedade e do poder público na busca de diagnóstico precoce e de políticas públicas capazes de estancar seus elevados índices91. Para Christoffel e colaboradores (1992), o abuso é termo usado para definir uma forma de maus-tratos de crianças e adolescentes com violência física e psicológica associada, geralmente repetitivo e intencional. Faleiros e Campos, por sua vez, afirmam que “[…] o abuso sexual deve ser entendido como uma situação de ultrapassagem (além, excessiva) de limites de direitos humanos, legais, de poder, de papéis, do nível de desenvolvimento da vítima, do que esta sabe e compreende, do que o abusado pode consentir, fazer e viver, de regras sociais e familiares e de tabus. E que as situações de abuso infligem maus-tratos à vítima (2000, p. 7)”92. Pela interpretação da norma – literal – o abuso sexual decorre da conduta, omissiva ou comissiva, de se aproveitar do(a) Infante para fins lascivos, seja pela conjunção carnal ou outro meio libidinoso, de modo presencial (pessoalmente) ou meio eletrônico (conjunto de meios de comunicação que necessita de recursos eletrônicos ou eletromecânicos para que o usuário final tenha acesso ao conteúdo – vídeos ou áudios gravados ou transmitidos – v.g., redes sociais, e-mails), com a finalidade de instigar sexualmente o agente (o próprio abusador) ou terceiros. O abuso, como a exploração comercial e o tráfico de pessoas, esses dois últimos serão vistos adiante, com o fim de exploração sexual, são manifestações de um conceito mais amplo, que é a violência sexual. No caso em análise, o abuso sexual vai ocorrer quando uma criança ou adolescente é usado para estimular ou satisfazer sexualmente um adulto (lascívia). Tudo isso acontece imposto, normalmente, por sedução, força física ou ameaça. Esse tipo de abuso pode ocorrer sem contato físico (assédio sexual, abuso sexual verbal, pornografia, etc.) ou por meio de contato físico. São inúmeras situações que levam à prática do abuso sexual: fazer com que uma criança ou um adolescente assista a filmes pornográficos ou presenciem relações sexuais; fazer com que uma criança ou um adolescente vejam adultos nus, revistas pornográficas ou adultos se masturbando; fotografar ou filmar crianças e adolescentes nus, em posturas eróticas; ficar observando os genitais de crianças e adolescentes para conseguir se excitar, mesmo que seja de forma escondida, podendo assustá-la ou perturbá-la; falar sobre relações sexuais com crianças ou adolescentes com a finalidade de se excitar ou de deixá-los excitados; tocar ou acariciar os órgãos genitais de uma criança; ter relação sexual oral, anal ou genital com uma criança, etc. É importante que, dentro desse contexto de exemplos, alguns ocorrem no meio familiar e não têm conotação de lascívia, não devendo ser considerado abuso sexual. Exemplo: é natural, muitas vezes, que os pais, independentemente de qual deles (pai ou mãe), durante um banho, possa ter contato com o(a) filho(a) despido (nu), mas, nesse caso e por si só, não caracteriza violência se não tiver voltada para satisfação de seu desejo sexual ou da criança e adolescente; contudo, como sempre esclareço, são condutas que, sempre, devem ser evitadas, independentemente de qualquer coisa, a partir da mais tenra idade, seja qual sexo for, para evitar a promiscuidade – mistura confusa e desordenada – de sentimento, que é desconhecida nesta idade, ainda mais que estão em formação de personalidade. No mesmo sentido é a ressalva quanto ao conceito atual de família, que inclui a homossexual e, neste caso, quando a família seja constituída de dois homens ou duas mulheres e o sexo do(a)filho(a) é oposto. Até que haja a consciência do infante sobre a condição de gênero envolvendo a relação dos genitores, qualquer conduta desses, mesmo como dito na relação heterossexual, não havendo conduta lasciva, todo o cuidado é pouco diante do reflexo natural de conhecimento da criança ou do adolescente, o que pode resultar em informações falsas sobre determinado fato ou ato envolvendo a relação familiar. Os efeitos psicológicos do abuso sexual infantil pode causar danos tanto a curto prazo quanto a longo prazo, incluindo psicopatologias93 mais tarde na vida. Indicadores e efeitos incluem depressão, ansiedade, transtornos alimentares, baixa autoestima, somatização, transtorno de sono e transtornos dissociativo e de ansiedade, incluindo estresse pós-traumático. Enquanto crianças podem apresentar comportamento regressivo, como sucção do polegar ou xixi na cama, o mais forte indicador de abuso sexual é a atitude sexual e inapropriado conhecimento e interesse sexual. As vítimas podem retirar-se das atividades escolares e sociais e apresentar vários problemas de aprendizagem e comportamentais, incluindo crueldade contra animais, déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), Desvio de Conduta e Transtorno Desafiador Opositivo (TDO). Gravidez na adolescência e comportamentos sexuais de risco podem aparecer na adolescência. Crianças vítimas de abuso sexual demonstram quase quatro vezes mais incidência de automutilação. Para demonstrarmos a consequência do trauma deixado pelo abuso sexual cometido na infância quando não tínhamos a garantia de proteção do Estado para que as vítimas ou testemunhas pudessem, com segurança, revelar a violência sofrida ou vivenciada, podemos citar o exemplo da apresentadora Rainha do Baixinhos, Maria da Graça Xuxa Meneghel, ou simplesmente XUXA. Ela, recentemente, revelou em sua coluna no Portal Vogue, que foi divulgado pela Globo.com,94 o relato do abuso sexual que sofreu na infância e seu trauma até hoje e que somente aos 50 anos teve coragem de contar publicamente para ajudar outras pessoas a não passarem por isto: “Vou contar um episódio que é o mais difícil que vivi nos meus 56 anos. É difícil escrever, pois tenho que reviver todos os sentimentos: culpa, raiva, impotência e medo. Mas se isso puder ajudar alguém a pelo menos entender essa tribo de gente que assim como eu sofreu abuso, já valeu meu sufoco e esforço. Tudo começou muito cedo, eu devia ter uns 4 anos talvez, e morava no Sul com minha família toda. Bloqueei muito sobre esse assunto, então eu não sei se é essa data de fato, talvez um ano a mais ou a menos. O que eu me lembro? O cheiro e a sensação… Minha mãe costumava colocar um edredom no chão depois do almoço e deitar com nós cinco para tirar um soninho na parte da tarde. Eles costumavam nos dar um elixir que abria o apetite. Como sou intolerante ao álcool e sei que nesse elixir tinha álcool – mesmo que em dose pequena – dormia mais profundo do que meus irmãos. No Sul também era comum misturar vinho com água e açúcar e dar para as crianças, o que também me deixava com mais sono do que o normal. Minha mãe ficou grávida muito cedo e nunca teve babá, tentava dar de tudo para nós cinco. Hoje em dia, as pessoas podem ver isso como falta de cuidado, mas não foi o caso da minha mãe, que nunca deixaria nada de mal acontecer com um dos cinco filhos dela. Mas aconteceu. Depois de anos perguntei às minhas irmãs se algo parecido havia acontecido com elas também, mas para minha surpresa, http://globo.com/ não. Por que eu fui a escolhida? Não sei, mas me lembro de um cheiro de álcool de alguém, uma barba que machucou o meu rosto e algo que foi colocado na minha boca. Acordei dizendo que alguém tinha feito xixi na minha boca e meus irmãos disseram que eu tinha sonhado. Essa foi minha primeira experiência com abuso sexual, que, diga-se de passagem, eu não me lembro direito, mas existiram outros casos… Me lembro que andávamos de Kombi… Nós, crianças, íamos atrás. Eu tinha 5 ou 6 anos e os mais velhos eram pré- adolescentes, primos de segundo grau e amigos muito próximos da família. Sentia tocarem em mim, colocavam o dedo, doía, não sabia distinguir o que sentia, por isso não chorava e nem reclamava com ninguém sobre o acontecido. Essa mesma pessoa vinha ao Rio quando eu já tinha entre 9 e 10 anos, e, quando a família dormia, colocava seus dedos por debaixo dos lençóis e me tocava. Nesse tempo, esse parente distante já era um adolescente e sempre que podia me tocava. Por que eu não gritava, não chorava? Não sei! Aos 11 anos, meu professor de matemática do colégio Itu, que atendia pelo nome de Maurício, me chamou depois da aula e, mesmo na frente da minha amiga Yara, ele disse que queria me deixar só de calcinha e colocar nas minhas coxas. Me perguntava: o que seria isso? Foi então que eu vi pela primeira vez alguém se masturbar. No outro dia, ele mandou que eu fosse ao quadro para escrever alguma coisa antes que os outros alunos da sala entrassem. Era hora do recreio, ele disse que isso iria me ajudar nas notas finais. Eu escrevi o que ele queria no quadro e vi que ele se tocava embaixo da mesa, usava uma calça quadriculada e se mexia muito, não entendia muito bem o que ele estava fazendo… Foi aí que o ouvi gemer e depois se limpar. Eu perguntei o que tinha acontecido, se aquilo era colocar nas coxas. Ele riu e disse que não, mas que faria isso em mim, que não iria me machucar e que se eu falasse pra alguém sobre o que eu tinha visto ou o que ele havia falado: ‘ninguém iria acreditar, pois entre a palavra de um aluno e de um professor, o professor sempre ganha.’ Cheguei em casa e na hora do jantar perguntei à minha irmã Mara o que era colocar nas coxas. Ela ficou furiosa e sem me explicar, queria apenas saber quem tinha me falado aquilo. Eu me borrei de medo, mas falei. Foi aí que eu e meu irmão fomos transferidos para o colégio de padre São Judas Tadeu – hoje Santa Monica – e lá tudo melhorou. Por que isso aconteceu comigo? Não sei. Por que não gritei? Por que não falei logo pra minha mãe? Não sei! Não sei mesmo. Com esta mesma idade meus peitos começaram a crescer, eram dois caroços que doíam mais do que o normal, não podia dormir de bruços, tinha que usar top para tapar e camisas transparentes nem pensar. Minha vó Olívia, mãe da minha mãe, tinha um namorado chamado Ubirajara, que pretendia se casar com ela. Eu ia ao apartamento dela, ficava vendo TV e o futuro “vovô” ficava perto e me fazia carinho até que minha vó fosse costurar e ele pedia para eu sentar no colo dele. Às vezes ele tomava banho e deixava a porta aberta. O barulho que minha vó fazia enquanto cozinhava ou costurava o deixava livre para vir até a porta se tocar me olhando. Eu não entendia por que ele fazia isso e nunca perguntei nada. Então ele começou a tocar meus futuros peitos – sim, ainda não tinha nada a não ser um mamilo um pouco maior. Uma vez, vendo TV, ele acariciou meu cabelo, o cheirou e logo depois desceu a mão para os meus (quase) seios e os apertou. Doeu e eu o fiz parar, e ele disse que era só um carinho e que só o “vovô” podia fazer porque me amava como neta. Por que não gritei? Por que não chorei alto? Por que não falei para minha mãe? Não sei, não sei, mas minha mãe decidiu pedir para minha vó não casar com ele. Meus irmãos foram contra e eu fui a favor da minha mãe. Eu disse que se minha mãe não queria e não gostava eu também não queria e não gostava. Foi o máximo que eu fiz pra protestar o que vivi dos meus 10 aos 11 anos. Com essa mesma idade eu frequentava Coroa Grande nas férias, era uma praia do litoral do Rio de Janeiro. Meu pai alugou uma casa, a casa azul, que era muito pequena, só tinham dois quartos. Meu pai e minha mãe ficavam em um, e o outro, com dois beliches, era onde dormíamos eu e meus irmãos. No alto verão dormíamos na varanda, de tanto calor, e minha mãe colocava o famoso edredom e fazia uma cama enorme. Lá dormíamos eu, meus irmãos, amigos dos meus irmãose às vezes um casal amigo dos meus pais. O homem, que se chamava Álvaro, era sem dúvida o melhor amigo do meu pai. Ele dormia no meio de todos para fazer companhia e cuidar das crianças, mas eu acordava com sua mão me tocando. Por que eu? Não sei! Aos 13 anos, ele fez uma casa e me chamou para ver como estavam as obras. Disse que eu teria um quarto para dormir lá quando quisesse… Eu até o chamava de padrinho! Ele disse: “Dá um abraço no seu padrinho, faz tempo que você não faz isso” e me encurralou na parede de pedras da varanda e colocou suas mãos por debaixo da minha camiseta. Eu estava de biquíni e camisetão. Ele tentou beijar minha boca. Me lembro que chovia e eu saí correndo pela rua até chegar na praia. Chorava muito, peguei um punhado de areia e passava no meu corpo para limpar toda sujeira que estava impregnada há anos… Chorei muito e pensei: se falo pra minha mãe, eles vão se separar, pois ele era o melhor amigo do meu pai. Se falo para o meu irmão, ele vai querer matá-lo… O que fiz? Me calei até quase os 50 anos, quando resolvi falar no Fantástico, pois queria divulgar o disque-denúncia, o Disque 100. Queria alertar as pessoas. Nós geralmente não queremos falar, porque é feio, porque não é certo, porque aprendemos que sempre tem que ter um culpado numa situação como essa. E é claro que nos sentimos culpados – eu me sentia culpada apenas por existir. Dos 4 até os meus 13 anos eu passei por várias situações que me fizeram ter mania de limpeza. Tomo de 3 a 4 banhos por dia, tenho vontade de estar com crianças, pois elas não me fariam nenhum mal – isso é coisa de adulto. Hoje, quero emprestar minha voz em campanhas paras crianças que não falam, não gritam e choram sozinhas. Eu preciso fazer isso por elas, já que não fiz por mim.” Ainda não foi identificado um padrão característico de sintomas específicos e há várias hipóteses sobre a causalidade dessas associações. 2.3.2.1 – Incesto Incesto é a atividade sexual entre membros de uma família ou entre parentes que possui uma relação de consanguinidade (relações de sangue). A terminologia da palavra incesto é derivada do latim incestum, que quer dizer estritamente “sacrilégio”. Incestum deriva de incestus, que significa “impuro e sujo”. Incestus, por sua vez, é forjada a partir do privativo in e cestus, que é uma deformação de castus, que significa “casto” e “puro”. Assim incestus também tem a definição de “não casto”. O tabu do incesto é e tem sido um dos mais difundidos de todos os tabus culturais, tanto no presente e em muitas sociedades antigas, como a China, Grécia antiga e o Direito Romano. Na Bíblia há duas referências explícitas ao incesto. A primeira diz respeito a Ló e suas filhas, quando elas embebedam o pai e com ele se deitam para ficarem grávidas e terem filhos com ele (Gênesis 19:30-38). Já a segunda diz respeito ao relacionamento de Amnon e Tamar, meio-irmãos por parte de pai, pois ambos eram filhos do rei David (II Samuel 13). Tempos antes, na época de Moisés, no Livro de Levítico 18:6-18 e 20:11- 12, foram proibidas as relações incestuosas. Maria Berenice Dias,95 em sua obra Incesto e Alienação Parental, traz excelente material doutrinário sobre o assunto, a quem pedimos vênia para reproduzir em parte em face do excelente material apresentado: “Freud achou de complexo de Édipo o sentimento de amor do filho com relação a um dos pais e o ciúme com relação ao outro. A criança se apaixona pelo genitor do sexo oposto e vê o outro como um incômodo obstáculo à realização de seus desejos. O fato de a criança ter impulsos eróticos com relação a um dos pais não quer dizer que ficaria realmente feliz caso os realizasse. Trata-se de sentimento inconsciente, que faz parte do desenvolvimento psicológico normal. O complexo de Édipo pode ser definido como sentimentos relacionados aos desejos incestuosos, suas proibições e seus desdobramentos.” Afirma ela que “os pais exercem funções específicas no desenvolvimento dos filhos. São protagonistas naturais das primeiras fantasias sexuais, que configuram o complexo de Édipo. A constituição psíquica do indivíduo está condicionada à forma como se realiza a interdição aos impulsos incestuosos. Trata-se da imposição de limite aos desejos. Diferencia a ordem do caos. A proibição do incesto tem o efeito de lei, que estabelece uma ordem de repercussão ampla em diferentes níveis. O reconhecimento da existência de leis tem enorme importância para o desenvolvimento psicológico do indivíduo, pois rege seu convívio na sociedade. A interdição do incesto define as gerações, a função de cada pessoa no núcleo familiar, e deixa claro que os parceiros dos filhos devem provir de famílias diferentes. Sua proibição impede duas tendências fundamentais do ser humano: matar o pai e casar com a mãe. Lacan chama de Lei do Pai a interdição do incesto, que impede o menino de se deitar com a mãe. O pai representa a proibição à desobediência. O incesto configura o gozo a que o filho aspira, o gozo imaginado, desejado, sonhado, a que o sujeito não tem acesso em razão da intervenção do pai. O que é um não, que impede o filho de gozar sexualmente de sua mãe.” O incesto leva à Lei do Silêncio dentro do núcleo familiar: primeiro, porque há ideia de que a família é sagrada, todos devem manter-se unidos, nada pode ser capaz de dissociar essa relação; segundo, caso haja o rompimento desse laço, haverá a desestruturação familiar, que acarretará a separação de seus membros, o que ninguém quer; terceiro, em decorrência do vínculo familiar, há, ainda, a sujeição da vítima à superioridade do abusador, quer pela força física, quer pela sua autoridade; quarto, muitas vezes há cumplicidade indireta do parceiro para não romper o vínculo com o abusado por seus sentidos afetuosos; e, por fim, a fragilidade emocional da vítima. Um dos grandes fatores que elevam o índice dessa relação promíscua é a estrutura patriarcal da família, que, embora a mulher tenha ganhado espaço na sociedade (trabalho, educação, etc.), ainda persiste o que acarreta a submissão de todo o núcleo ao arrimo econômico da família. Esse mesmo fato ocorre muitas vezes na violência envolvendo Maria da Penha. Quantas e quantas mulheres, depois de agredidas, vitimizadas, muitas delas com lesões graves, que nunca trabalharam e sempre estiveram na condição de dependente do marido, de forma espontânea e por liberalidade, procuram a Autoridade Policial, o MP ou Poder Judiciário com a intenção de se retratar da representação da denúncia? Isso, de alguma forma, na relação incestuosa, cria uma dependência moral perante o abusador, o que faz com que não haja denúncia ou se sujeitam à conduta de violência sexual. “Muitas vezes o pretexto para introduzir atitudes sexualizadas é a alegação de que se trata de educação sexual. Sustenta o abusador ser natural que seja ele quem deva ensinar determinadas coisas às filhas. Passa, assim, a acariciar a vítima de uma forma bastante gentil, o que pode ser uma experiência prazerosa para ela. No estágio seguinte, começa a masturbá-la, como sendo algo que faz parte de sua iniciação sexual. Convence a vítima de que aquela é uma relação de amor que ninguém vai entender, sendo necessário, por isso, manter segredo. A possibilidade de denúncia leva à ameaça de atenção e afeto. Afirma que todos os pais agem assim com suas filhas. Para garantir que não seja descoberto, oferece recompensas, concede privilégios.”96 Algo que intriga muito, mas que a psicologia trata com sabedoria a matéria, mas é preciso ter consciência, refere-se aos sentimentos decorrentes do abuso: “Como a vítima é submetida a estímulos sexuais desde muito cedo e com muita frequência, algumas vezes se sente excitada e chega ao orgasmo. Não se pode falar em prazer, mas em excitação, pois se trata de reação fruto de estimulação mecânica. Aliás, esse é um argumento utilizado pelo abusador para convencê-la de que ela quis o abuso. Isso a faz experimentar vergonha e culpa. Sente quefoi traída não só pelo genitor, mas também pelo seu próprio corpo. Tudo isso sempre gera muita confusão, e as sequelas psicológicas são mais perversas”.97 Depois dessa fase, passa a chantagens, referindo-se que pode ser preso, que a mãe não entenderá, que a culpa é da vítima, que ela será institucionalizada, ameaças, etc. Tudo isso leva a confusão de conduta, o que resulta, mais uma vez, em retrair-se e aceitar o abuso por anos. Berenice98 questiona: a partir de que ponto uma relação entre membros de uma família deixa de ser considerada afetiva para ser considerada sexual? “O incesto é antinatural e não é uma relação prazerosa. As relações incestuosas são difíceis de ser identificadas, até porque se iniciam com gestos de afeto, são carinhos que se transformam em toques e carícias. Na maioria das vezes são práticas que não se resumem a episódios isolados, mas se prolongam no tempo. Perduram por muitos anos e só cessam com a denúncia. É fantasiosa a crença de que as agressões vão cessar. Não adianta ser boazinha, tentar se esconder ou ficar feia. Nada disso segura o abusador. A vítima está exposta ininterruptamente ao enorme poder conferido ao pai. Não tem para onde escapar. Não sabe se defender e não entende sequer a agressão de que é vítima. Não pode pedir socorro, mas se pedir não será ouvida, será desacreditada.” Acreditamos que, na relação intrafamiliar, os filhos veem nos pais – pai ou mãe – o acolhimento, o amparo, o afeto, a afeição, o apreço, a ternura, o carinho em seus momentos de lazer, de angústia, de sofrimento, de ansiedade, de dúvidas, de amargura, de incertezas, de aflição, de desgosto, de dor, enfim. Isso, é claro, dentro de uma relação sadia e saudável, sem conduta incestuosa. Consideramos que uma grande parte dos filhos têm em seus pais o espelho do sexo oposto, como referência a pessoa que, no amanhã, deve ser seu companheiro ou companheira para uma vida toda. Repito, o raciocínio não está vinculado ao agente com personalidade pedófila e, sim, referindo-se a fatos que podem ocorrer em relações familiares normais, sem que haja a predestinação da violência sexual. Voltamos ao pensamento inicial. Diante do contexto referido, é possível que, em decorrência de um conflito conjugal entre os pais (ausência de relações sexuais entre o casal), estresse na vida profissional, solidão, etc., os filhos, buscando do(a) genitor(a) aquele aporte de segurança ao qual nos referimos, muitas das vezes, com gestos de carinho (v.g., buscar um colo, dar beijos, abraços, etc.) e contato físico, possa despertar silenciosamente o desejo do abusador, que resultará na conduta de violência sexual sem que a vítima perceba, posto que é indefesa, está buscando do(a) genitor(a) um conforto, que acabou encontrando. Nesse aspecto, a criança ou o adolescente solicita ternura, enquanto o adulto doente responde com sexualidade genital99. O agravamento dessa situação se dá à vítima de pouca idade, pelo fato de que não se encontra em condições de entender o significado do ato e entra em um estado que lhe provoca, entre as consequências, um bloqueio para comentar o acontecido. Na maior parte das vezes, crianças e adolescentes de todas as classes sociais são violentadas dentro da própria casa, por pais, padrastos, parentes e amigos da família, nesta ordem. O incesto é encontrado em famílias de todos os níveis e classes sociais. Existe a falsa ideia de que a violência sexual acontece em famílias pobres, puro preconceito. O abuso independe da situação econômica ou sociocultural da família. Não é exclusivo de nenhuma profissão, idade, grupo religioso, situação econômica ou raça. Ainda que o número de denúncias se apresente, em sua maioria, entre famílias de baixo nível socioeconômico, não quer isso dizer que o abuso sexual em famílias de classe média ou alta seja mais escasso. O que ocorre é que nas famílias de melhores condições financeiras há maior possibilidade de impedir que o incesto transcenda ao mundo exterior. Busca-se a solução por meio de ajuda psicológica, sem promover a denúncia policial100. Não se pode perder de vista um aspecto importante: endogamia101. A consanguinidade aumenta a taxa de distúrbios genéticos e congênitos entre a prole, especialmente doenças herdadas conhecidas como distúrbios autossômicos recessivos, como fibrose cística, Doença de Tay-Sachs, talassemia e doença falciforme. Também aumenta a taxa de malformação congênita, retardo mental, cegueira e disfunção auditiva102. 2.3.3 – Violência Sexual pela Exploração Sexual Comercial (art. 4.º, III, alínea b) O segundo meio de entender, de perceber o significado de violência sexual, foi descrito pela exploração sexual comercial, que o legislador assim descreveu: “entendida como uso da criança ou adolescente em atividade sexual em troca de remuneração ou qualquer outra forma de compensação, de forma independente ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiros, seja de modo presencial ou por meio eletrônico”. Leonardo Cavalcante de Araújo Melo, Universidade Potiguar, e Rosângela Francischini, Universidade do Rio Grande do Norte, em artigo “Exploração sexual comercial de crianças e adolescentes: um ensaio conceitual”103, com a finalidade de se chegar a uma conceituação crítica e contextual, fizeram uma revisão da discussão do conceito trabalhado por autores da área, buscando fazer um paralelo com as diretrizes propostas por documentos internacionais, como a Declaração de Estocolmo. Nesse contexto afirmaram que o fenômeno da Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes é, atualmente, prioridade das agendas de políticas públicas de muitos governos democráticos dos países ocidentais e setores da sociedade civil, além de se constituir objeto de estudos em diferentes áreas de conhecimento, sendo o discurso da Psicologia bastante presente. No Brasil, o fenômeno começou a ter maior visibilidade a partir da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) realizada no início da década de 1990, que se deteve na investigação de denúncias de casos de prostituição infantojuvenil (Libório, 2004; Sousa 2004). Anteriormente a esse período, a criança e o adolescente no país não ocupavam lugar de preocupação tão acentuada por parte do Estado e setores da sociedade civil. A partir de uma série de ações e movimentos – como a instituição do Ano internacional da Criança, em 1979, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), em 1985, dentre outros – e a promulgação da Carta Constitucional de 1988 e, posteriormente, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, é que essa parte da população foi trazida para o centro das discussões nacionais, sendo, também, considerada “sujeitos de direitos”, em substituição da categoria “menor”, outrora empregada (Sousa, 2004). O fenômeno Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes – ESCCA – desde então vem sofrendo várias transformações conceituais, pois sua definição é fruto de percursos históricos que envolvem, dentre outras questões, o paradigma da proteção integral, inaugurado no país pelo ECA. A ESCCA, em sua definição, demanda a apresentação de concepções que abarquem suas especificidades em relação a outras formas de violência sexual (Faleiros, 2000; Libório, 2004; Dos Santos, 2007). Há uma grande discussão acerca da conceituação do fenômeno, não existindo apenas uma forma de defini-lo. O nosso legislador, quando da edição da Lei 13.431/2017, definiu a exploração sexual comercial. Disse ele que é o uso (utilidade, emprego, valia, serviço, proveito e proficuidade) da criança ou adolescente em atividade sexual (realizar um ato ou uma ação concernem à satisfação da necessidade e desejo sexual) em troca de remuneração (gratificação, prêmio, recompensa) ou qualquer outra forma de compensação (dar algo em troca), de forma independente (o próprio abusador por si só) ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiro (contribuição ou auxílio de outrem), seja de modo presencial (corpopresente) ou por meio eletrônico (meios de comunicação que necessitam de recursos eletrônicos para que o usuário final tenha acesso ao conteúdo gravado ou transmitido em tempo real). A ESCCA é um fenômeno de grande complexidade, que se reflete na dificuldade de sua identificação, além de seu imbricamento com inúmeros outros fenômenos e fatores que se correlacionam e se coinfluenciam. Leonardo Cavalcante de Araújo Melo e Rosângela Francischini104, neste sentido, afirmam: “Assim, elencaremos aqui algumas especificidades que consideramos de extrema importância para a conceituação de ESCCA de acordo com as direções indicadas na Declaração de Estocolmo (1996), buscando caracterizá-las de uma forma geral. Entendemos que a tentativa de fazer essa caracterização é delicada, pois os fenômenos em questão, além de serem de difícil caracterização, ainda são contextuais, ou seja, carregam características históricas e temporais dos locais nos quais acontecem, obedecendo a toda uma dinâmica própria, de cada contexto específico. Ainda assim, é de extrema necessidade situar minimamente essas características específicas do fenômeno da exploração sexual comercial infantojuvenil, de maneira que uma indicação mínima de sua existência já possibilita um olhar mais cuidadoso e apurado daqueles que se dedicam a estudar e intervir no fenômeno. O “Mercado do Sexo” será discutido aqui como um aspecto específico para uma conceituação de exploração sexual comercial. O termo “mercado” reflete a natureza primordialmente econômica que perpassa a exploração sexual e, dessa forma, estudá-la por um viés que focalize o fenômeno por uma perspectiva econômica, situada na sociedade capitalista de consumo, é um caminho que pode ajudar na compreensão do cerne do funcionamento da ESCCA. Ora, a própria nomenclatura do fenômeno – exploração sexual comercial – elenca dois termos próprios dos estudos que se detêm em estudar as dinâmicas da sociedade capitalista contemporânea, por meio de um viés marxista: “exploração” e “comercial”. Para Faleiros (2000), o sistema capitalista é estruturado na produção oriunda das propriedades privadas, que geram lucro e acumulação de capital. Aqueles que possuem meios privados que garantem a produção se valem dos que não têm acesso a esse meio, comprando sua força física, explorando essa força por meio da categoria conceitual trabalho. Essa categoria conceitual exige um estudo aprofundado, no cerne da teoria marxista. Aqui discorreremos brevemente sobre o assunto, inserindo-o na discussão da ESCCA. Trabalho, para a teoria marxista, é a categoria fundante do sujeito, o que o distingue dos outros animais. É a capacidade de transformar a natureza, com ou sem mediação de instrumento, visando suprir suas necessidades. Por meio da produção é possível o acúmulo de capital, gerando lucros. Dessa máxima se estrutura o comércio na sociedade capitalista contemporânea. O comércio/mercado se estrutura na troca de capital por bens ou serviços, expressando-se pela maneira como se organizam as trocas realizadas em determinados universos, por indivíduos, organizações, empresas, governos (Faleiros 2000, 2004). Entendemos que as trocas no processo de exploração sexual nem sempre obedecem ao binômio “mercadoria dinheiro”, de forma que elas podem envolver objetos, serviços ou qualquer coisa que venha a suprir uma necessidade da pessoa em condição de exploração ou de seu aliciador. Seguindo essa linha de raciocínio, na busca pela compreensão de como se constroem algumas relações sociais nesse sistema, para Pateman (1988) as relações sociais, de caráter livre, nas quais todos são iguais em direitos, obedecem a contratos sociais. Contudo, há contratos em que as partes não são consideradas livres e/ou iguais: casamentos, trabalho, exploração sexual, dentre outras. A autora também reflete que a troca é algo inerente a esses contratos, assim como há contratos em que há uma dissonância de poderes entres as partes; então, uma das partes não tem escolha a não ser aceitar termos desfavoráveis propostos pela parte que está em condição de superioridade. O interessante dessa proposição é que ela revela que uma das partes do contrato, a que está em situação de superioridade, tem, implicitamente, o direito de determinar como a outra cumprirá a sua parte na troca e, assim, são estabelecidas formas de relação dominadoras e subordinantes (Pateman, 1988). Assim, Faleiros (2000, 2004), em concordância com Pateman (1988), ressalta que, dessa forma de relação surge uma espécie de “proteção” da parte dominadora em relação à parte subordinada. A proteção é entendida como condições de sobrevivência, que se expressam em forma de salário, alimentação, habitação, entre outros, como acontecem em contratos trabalhistas. Portanto, na ESCCA, ocorre um “contrato sexual” que, segundo Pateman (1988), constitui-se em uma forma de acesso e utilização do corpo por uma pessoa que contrata, por outro, que dispõe seu corpo neste “acordo”. Aliando-se a essa concepção, Faleiros (2000, 2004) traz a reflexão de que, no mercado do sexo, esse contrato sexual é atravessado por fenômenos do mundo capitalista globalizado, quais sejam: a pobreza e a exclusão. Para a autora, a busca da compreensão da ESCCA é também a tentativa de compreender as determinações históricas da sociedade na qual ela está inserida. Segundo ela, “a formação econômica, social e cultural da América Latina, assentada na colonização e na escravidão, produziu uma sociedade escravagista, elites oligárquicas dominantes e dominadoras de categorias sociais inferiorizadas pela raça, cor, gênero e idade”. (Faleiros, 2000, p. 19). Essa formação socioeconômica do povo latino-americano “gerou” categorias sociais dominadas (índios, negros, escravos, mulheres e crianças, pobres, etc.) que permanecem até os dias atuais fortemente excluídas de espaços que, muitas vezes, lhes são garantidos por direitos (escolas, mercado de trabalho, serviços de saúde, meios de habitação, de cultura, da sociedade de consumo, etc.). Dessa maneira percebe-se que a instituição mercado é atravessada por essas características, determinantes de algumas formas de relação. O contexto histórico deve ser levado em consideração para que se compreendam as dinâmicas relacionais de algumas conjunturas específicas e suas influências nos mercados desses momentos sócio-históricos. Nesse caso, o mercado do sexo. O mercado do sexo é um sistema comercial, segundo os ditames capitalistas, no qual existe a produção e a comercialização de mercadorias (serviços e produtos sexuais). Nesse mercado há relações de dominação, segundo descrito por Pateman (1988), no qual crianças e adolescentes são, forçadamente, colocadas na condição de mercadorias a serem negociadas, obedecendo a um rígido contrato sexual (Faleiros, 2000, 2004). O mercado do sexo se expressa como um mercado negro. Para Sandroni (1989, citado por Faleiros, 2004) “mercado negro” significa compra e venda de bens e serviços feitos clandestinamente, para se desviar de leis ou normas estabelecidas em determinado contexto. Assim, muitos protagonistas do mercado do sexo (comerciantes, agenciadores, abusadores de forma geral, etc.) funcionam com cobertura legal, sob nomes fantasia que não correspondem à realidade da atividade comercial declarada. Por se caracterizar um sistema comercial, o mercado do sexo pode se inserir em redes. Entendemos “redes” de acordo com o autor Faleiros (1998), que as descreve como articulações de autores/organizações objetivando ações em conjunto, multidimensionais, com responsabilidades compartilhadas. Assim, diversos estudos (V. Faleiros, 1998; E. Faleiros, 2000, 2004; Sousa, 2000, 2002, 2004; Sousa, 2008; Leal, 1999; dentre outros) vêm demonstrando que a exploração sexual é um fenômeno que cada vez mais articula-se em diversas redes: redes de tráfico de mulheres, tráfico de drogas, falsificação de documentos, indústria pornográfica, etc.. De acordo com Leal e Leal (2002),em pesquisa realizada sobre o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil – Pestraf – as chamadas “redes de favorecimento” organizam-se numa estrutura na qual diversos atores desempenham diferentes funções, objetivando a exploração que tem como finalidade ganhos (materiais ou não). São citados como atores dessas redes: aliciadores, proprietários de estabelecimentos comerciais, empregados, prestadores de serviços – por exemplo, taxistas –, dentre outros tipos de intermediários. As redes funcionam articuladas diretamente com ramos comerciais prestadores de serviços, sob fachadas de empresas (legais ou ilegais). Dentre os mercados que facilitam o funcionamento de fenômenos como a ESCCA e tráfico de pessoas para fins de exploração estão empresas do ramo do turismo, entretenimento, transporte, moda, indústria pornográfica, agências de serviços (por exemplo, massagens, acompanhantes, etc.) (Leal e Leal, 2002). As redes de tráfico organizam-se utilizando aparatos tecnológicos e estruturas organizacionais que permitem grande agilidade em sua mobilização. Tais redes contam com sistemas de informações que controlam as ações desde o aliciamento de pessoas, o transporte das mesmas, alojamentos e vigilância, permitindo, praticamente, total controle das ações das vítimas. Além disso, há intensa ligação com o mercado do crime organizado em âmbito internacional (Leal e Leal, 2002). De acordo com o exposto, percebe-se que o mercado do sexo consiste em um fenômeno complexo, atravessado por vários determinantes, e que engloba inúmeras pessoas, com diversas finalidades. Não apenas as crianças e adolescentes estão sujeitos às dinâmicas do mercado do sexo, como também, por exemplo, mulheres envolvidas com atividades ligadas à indústria sexual, ao tráfico de pessoas. Assim, evidencia-se a diferenciação existente da participação de crianças e adolescentes nesse mercado, caracterizando-se uma forma particular de exploração sexual. Encerramos essa seção buscando reafirmar a importância da necessidade de contextualização de cada episódio de violência sexual, situando-os em seus contextos históricos, buscando uma compreensão das forças políticas e ideológicas que o cercam, para que se chegue a “diagnósticos” de que esses episódios se caracterizam como exploração sexual comercial. A importância disso refere-se ao “que fazer” quando do conhecimento da existência desse fenômeno. Suas especificidades exigem, para o seu enfrentamento, ações, cuidados e olhares específicos que orientem posturas profissionais igualmente específicas. Buscaremos elencar, na próxima seção, os principais direcionamentos oriundos dos três congressos mundiais contra a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes ocorridos até o presente momento (Estocolmo, 1996; Yokohama, 2001; Rio de Janeiro, 2008). Tais direcionamentos são de fundamental importância, pois norteiam formulações de políticas públicas para o enfrentamento da ESCCA nos países signatários.” Notamos que a diferença entre o abuso sexual para a exploração sexual está no fato de que nesta há utilização sexual de crianças e adolescentes com fins comerciais e lucrativos, ou seja, vendem-se seus corpos para conseguir dinheiro. Quase sempre existe a participação de um(a) aliciador(a), ou seja, alguém que lucra intermediando a relação com o usuário ou cliente. É caracterizada também pela produção de materiais pornográficos (vídeos, fotografias, filmes, sites da internet). A criança ou adolescente nunca se prostitui, trata-se de uma vítima do sistema de exploração comercial da sexualidade. 2.3.4 – Violência Sexual pelo Tráfico de Pessoas com o Fim de Exploração Sexual (art. 4.º, III, alínea c) O terceiro e último meio de entender, de perceber o significado de violência sexual, foi descrito pelo tráfico de pessoas com o fim de exploração sexual, que o legislador descreveu como aquele “entendido como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da criança ou adolescente dentro do território nacional ou para o estrangeiro, com o fim de exploração sexual mediante ameaça, uso de força ou outra forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, aproveitamento de situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de pagamento, entre os casos previstos na legislação.” A definição do tráfico de pessoa com o fim de exploração sexual na Lei 13.431/2017 tem sua origem na definição mais aceita internacionalmente, que se encontra no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional relativo a Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, que foi assinado em Palermo no ano de 2000, e que já foi ratificado pelo governo brasileiro e que segundo o Protocolo significa: “O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.” A definição foi adaptada à infância e juventude. De acordo com a interpretação da norma, o tráfico de pessoas significa o recrutamento, que é o atrair, o transporte, que é a condução, a transferência, que é enviar para algum lugar, o alojamento, que é a morada temporária, ou o acolhimento, que é abrigar, a criança ou o adolescente, dentro do Brasil ou para o estrangeiro, com o fim de exploração do corpo e sexualidade, mediante ameaça (intimidação), uso de força ou outra forma de coação (agir contra sua vontade), rapto (arrebatar por meio de violência), fraude (meio de ludibriar), engano (equivocado), abuso de autoridade (conduta abusiva de poder), aproveitamento de situação de vulnerabilidade (estado de fraqueza) ou entrega ou aceitação de pagamento (mediante recompensa ou remuneração, que pode ou não ser em espécie) entre os casos previstos na legislação (delitos contra a dignidade sexual105, além de outros, que estão previstos como crimes contra a liberdade individual). A exploração sexual é o meio pelo qual o indivíduo obtém lucro financeiro por conta da prostituição de outra pessoa, seja em troca de favores sexuais, incentivo à prostituição, pornografia, turismo sexual ou rufianismo. O problema envolvendo o tráfico de crianças para fins sexuais e outras finalidades é um problema de âmbito mundial, não se restringido, pois, ao Brasil. As autoridades governamentais têm tentado a todo custo inibir esse problema, mas o sucesso não tem sido frequente. As entidades não governamentais têm feito também um esforço concentrado para que esse problema possa diminuir. O Brasil publicou a Lei 13.344/2016, para atacar essa questão dispondo sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas, inclusive tem campanha do Governo Federal sobre a denúncia da exploração sexual infantil: Denuncie – Disque 100. Infelizmente, o número é crescente diante do poderio financeiro dos agentes aliciadores, além da tecnologia envolvida. As vítimas são atraídas de todos os modos e meios, muitas delas pela esperança de trabalho com boa remuneração, e as crianças raptadas, na sua maioria, por promessa de promissoras carreiras de modelo, porém acabam realizando trabalho escravo e sofrendo violência sexual. As principais causas do tráfico de pessoas são as economias, as políticas fragilizadas dos países, poucas oportunidades de trabalho, acesso restrito à educação, facilidade, rapidez dos meios de transporte internacionais, falta de policiamento nas fronteiras, agilidade nas transferências de dinheiro, rápida comunicação e ausência de direitos das vítimas. O tráfico escraviza suas vítimas, forçando-as a se prostituírem em péssimas condições,arriscando a própria vida, sendo marginalizadas e tratadas como imigrantes ilegais em meio a abusos desumanos. Outro modo para o crime ser visto, ou seja, vendo o crime por outro lado, fica claro que uma outra coisa que é usada para que o crime seja incentivado é o fetiche que os clientes têm pela mercadoria nesse mercado, no qual essa mercadoria nada mais é do que uma vítima do tráfico de pessoas para a exploração sexual, que é submetida aos desejos do cliente pelo preço que ele está disposto a pagar pelos serviços a serem prestados. O tráfico de crianças forma uma das mais graves violações dos direitos humanos no mundo e acontece em todas as regiões do Planeta. Na verdade, foi somente na última década que a prevalência e consequências desse crime ganharam notoriedade internacional devido ao aumento drástico na investigação e ação pública.106. O Brasil enfrenta esse tráfico com ratificação do Protocolo de Palermo 2004. Os países passaram a adotar várias medidas destinadas ao enfrentamento do tráfico de pessoas, destacando-se a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em 2006, o Primeiro Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (I PNETP), em 2008, e o Segundo Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (II PNETP), em 2013. A Política e sua execução por meio do PNETP, estão estruturadas em três grandes eixos de estratégia, como: a) prevenção; b) a repressão e a responsabilização dos autores; e c) atendimento à vítima. Esse conjunto de ações é considerado um marco histórico por reconhecer o crime de tráfico de pessoas como um problema cuja gravidade da atuação estatal articulada com vários ministérios, instituições públicas e sociedade civil107 e, por fim, como dito, pela publicação da Lei 13.344/2016. A violência sexual, definida nesse dispositivo, deve ser interpretada em consonância com a Lei 13.344/2016. O enfrentamento ao tráfico de pessoas atenderá, entre outros, os ss. princípios: a) respeito à dignidade da pessoa humana; b) promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos; c) universalidade, indivisibilidade e interdependência; d) não discriminação por motivo de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, atuação profissional, raça, religião, faixa etária, situação migratória ou outro status; e) transversalidade das dimensões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, raça e faixa etária nas políticas públicas; f) atenção integral às vítimas diretas e indiretas, independentemente de nacionalidade e de colaboração em investigações ou processos judiciais; e g) proteção integral da criança e do adolescente. A proteção e o atendimento à vítima direta ou indireta do tráfico de pessoas compreendem (a) assistência jurídica, social, de trabalho e emprego e de saúde; (b) acolhimento e abrigo provisório; (c) atenção às suas necessidades específicas, especialmente em relação a questões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, raça, religião, faixa etária, situação migratória, atuação profissional, diversidade cultural, linguagem, laços sociais e familiares ou outro status ; (d) preservação da intimidade e da identidade; (e) prevenção à revitimização no atendimento e nos procedimentos investigatórios e judiciais; (f) atendimento humanizado; e (g) informação sobre procedimentos administrativos e judiciais. A atenção às vítimas dar-se-á com a interrupção da situação de exploração ou violência, a sua reinserção social, a garantia de facilitação do acesso à educação, à cultura, à formação profissional e ao trabalho e, no caso de crianças e adolescentes, a busca de sua reinserção familiar e comunitária. No exterior, a assistência imediata a vítimas brasileiras estará a cargo da rede consular brasileira e será prestada independentemente de sua situação migratória, ocupação ou outro status. A assistência à saúde deve compreender os aspectos de recuperação física e psicológica da vítima. Segundo o site politize, estudos feitos pela OMT (Organização Mundial do Trabalho) o tráfico humano movimenta cerca de 32 bilhões de dólares por ano, dos quais 79% das vítimas são destinadas à prostituição, em seguida ao comércio de órgãos e à exploração de trabalho escravo em latifúndios, na pecuária, oficinas de costura e na construção civil. Um total de 63,2 mil vítimas de tráfico de pessoas foram detectadas em 106 países e territórios entre 2012 e 2014, de acordo com o relatório publicado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). As mulheres têm sido a maior parte das vítimas — frequentemente destinadas à exploração sexual, e o percentual de homens traficados para trabalho forçado aumentou. As crianças permanecem como o segundo grupo mais afetado pelo crime, depois das mulheres, representando de 25% a 30% do total no período analisado. Esse crime cresce ano após ano e o número de rotas para circulação das vítimas também. No Brasil existem 241 rotas do tráfico nacional e internacional da exploração sexual de mulheres e adolescentes. Para uma melhor compreensão devemos atrelar essas rotas às proporções de pobres nos mesmos locais para analisarmos que as regiões com maiores rotas são as mesmas com os maiores índices na proporção de pobreza: Norte, número de rotas é de 76, com percentual de 43,2% de pobreza; Nordeste tem um número de rotas de 69, com índice de 45,8% de pobreza; Sudeste, o número de rotas é 35 e o índice de pobreza no patamar de 23%; no Centro-Oeste, o número de rotas é 33, cujo índice de pobreza chega a 24,8; e, por fim, o Sul, que tem o número de rotas de 28, com índice de pobreza menor de todas as regiões (20,1%). Portanto, diante desse cenário, tanto no Brasil como no mundo fica evidente que qualquer esforço para o combate ao tráfico de pessoas deve levar também em consideração ações mais amplas, como o combate à pobreza e às desigualdades sociais, assim como a defesa dos direitos humanos a todos. 2.3.5 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual contra Criança e Adolescente O Título VI do Código Penal, com a nova redação dada pela Lei no 12.015, de 7 de agosto de 2009, passou a prever os chamados crimes contra a dignidade sexual, modificando, assim, a redação anterior constante do referido Título, que previa os crimes contra os costumes. Rogério Greco108 afirma que a expressão crimes contra os costumes já não traduzia a realidade dos bens juridicamente protegidos pelos tipos penais que se encontravam no Título VI do Código Penal. O foco da proteção já não era mais a forma como as pessoas deveriam se comportar sexualmente perante a sociedade do século XXI, mas sim a tutela da sua dignidade sexual. A dignidade sexual é uma das espécies do gênero dignidade da pessoa humana. Ingo Wolfgang Sarlet esclarece a expressão dignidade: “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem à pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”109. Greco ainda afirma que “o nome dado a um Título ou mesmo a um Capítulo do Código Penal tem o condão de influenciar na análise de cada figura típica nele contida, pois que, através de uma interpretação sistêmica, que leva em consideração a situação topográfica do artigo, ou mesmo de uma interpretação teleológica, na qual se busca a finalidade da proteção legal, se pode concluir a respeito do bem que se quer proteger, conduzindo, assim, de forma mais segura o intérprete, que não poderá fugir às orientações nele contida”. Ao incluir os crimes sexuais num títulodenominado Dos Crimes contra a Dignidade Sexual, parece inegável que os legisladores da reforma penal de 2009 quiseram sinalizar uma diferente objetividade jurídica desses delitos. Ao situá-los no âmbito da dignidade, remeteram o intérprete a um fundamento da república, inscrito logo no art. 1.º da Constituição Federal. Importa, assim, ao intérprete da lei penal conhecer o perfil dessa categoria jurídica para melhor compreender o sentido da localização espacial dos crimes sexuais num título com tal nomenclatura110. 2.3.5.1 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual em Espécie Como exposto alhures, as modalidades de violação dos direitos sexuais de crianças e adolescente têm diversas formas de expressão que vão além da agressão física e psicológica. Assim, tutelando tais direitos, apresenta-se prioritariamente a Constituição Federal, que se encarregou de destacar garantias e prever punição para os casos de inobservância. Senão vejamos: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (CF, art. 227). O §4.º do mesmo diploma legal dispõe que a “lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”. Diante disso, percebe-se que o Dispositivo Constitucional deu ensejo a vasta legislação protetora da dignidade sexual dos infantojuvenis, lançando mão de um rol taxativo, disposto no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, que será apresentado sem esgotar as peculiaridades de cada tipo penal, destacando tão somente suas premissas conceituais. 2.3.5.1.1 – Do Estupro de Pessoas Menores de 18 anos ou Maiores de 14 Anos O artigo 213, caput, do CP define o estupro como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Ocorre que, quando o citado crime é praticado contra menores de 18 (dezoito) anos e maiores de 14 (catorze) anos, incide uma qualificadora (§1.º) e o que seria punido com pena de 6 (seis) a 10 (dez) anos passa para 8 a 12 anos. Demonstra-se, com isso, a maior proteção dada aos adolescentes com o advento da Lei nº. 12.015, de 07 de agosto de 2009, que alterou o Título VI da Parte Especial do Código Penal (Decreto-lei nº. 2.848, de 07 de dezembro de 1940). É necessário destacar, ainda, que com a mudança ocorrida pela citada lei o crime de estupro passou a ser considerado crime comum, podendo qualquer pessoa ser vítima do delito, ou seja, tanto o homem quanto a mulher poderá ser sujeito passivo da tipificação do art. 213 do CP. 2.3.5.1.2 – Estupro de Vulnerável A vulnerabilidade caracteriza-se pela completa falta de discernimento para o consentimento da prática de atos sexuais. E em que pese à semelhança com o estupro descrito no artigo 213 do CP, trata-se de um tipo penal completamente novo. O Estupro de Vulnerável está tipificado no art. 217-A, que diz: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos.” Com essa inovação, a lei quis proteger aqueles, em especial os infantes que não têm capacidade plena para exercer sua sexualidade, ou seja, aqueles que não podem resistir e de certa forma ainda não sabem escolher entre o fazer e o não fazer e mais do que isso não sabem as possíveis consequências pelo ato de fazer, havendo ainda, o caso daqueles que têm discernimento mas por algum motivo resistem. 2.3.5.1.3 – Do Uso de Menor Vulnerável para Servir à Lascívia de Outrem O tipo Penal descrito no art. 218 do CP não foi devidamente nomeado, como geralmente ocorre. O legislador se absteve de focar na figura do induzimento, determinando a vítima ao deixar expresso que se trata de pessoa menor de 14 anos: “Induzir alguém menor de 14 anos a satisfazer a lascívia de outrem.” No caso desse tipo penal, o induzimento refere-se a convencer o menor de 14 anos a se submeter à lascívia de terceiro em troca de vantagens pecuniárias, ou não, mas que aparentemente lhe traria benefícios. 2.3.5.1.4 – Da Satisfação de Lascívia Mediante Presença de Criança ou Adolescente Esse tipo Penal é novo e destaca-se como uma ramificação do tipo penal anteriormente (2.3.5.1.3). Trata-se do artigo 218-A do CP, que diferentemente do artigo 218, submete ou induz a criança ou o adolescente não à prática do ato, mas a presenciar os atos sexuais abrangendo tanto a conjunção carnal quanto os atos libidinosos em geral, tudo isso como forma de satisfação de lascívia própria ou de outrem. Para melhor análise das referidas indagações, apresenta-se o artigo ipsis litteris: “Artigo 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-o a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem.” Destaque-se, por fim, que o legislador mais uma vez faz referência ao menor de 14 anos e, portanto, assim como ocorre nos demais, trata-se de crime comum, podendo alcançar o sexo feminino ou masculino. 2.3.5.1.5 – Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma de Exploração Sexual de Vulnerável O artigo 218-B dispõe: “Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone.” Percebe-se da leitura do citado artigo que o legislador traz outra inovação. Primeiro por também ser uma ramificação do artigo 218 e depois por inserir o delito de favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável. Novamente destacando a questão do vulnerável, dessa vez ampliando o rol para os menores de 18 anos, diferentemente do que preceitua o artigo anterior, que faz referência apenas aos menores de 14 anos. Notável, com isso, a proteção dada aos infantojuvenis com a reforma da legislação penal, que indubitavelmente garante com mais afinco os Direitos Constitucionais dessas crianças e adolescentes. Ainda mais nos dias atuais, em que a sexualidade está cada vez mais posta no mercado como forma de mantença das esfaceladas famílias brasileiras. 2.3.5.1.6 – Uso de Menor Relativamente Vulnerável para Servir à Lascívia de Outrem Trata-se de induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem (CP, art. 227). Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda, a pena é aumentada (§1.º). O bem jurídico protegido aqui consiste não somente na liberdade sexual do menor relativamente vulnerável (maior de 14 anos e menor de 18 anos), mas na sua moral sexual, que é flagrantemente violentada no crime de lenocídio (outra nomenclatura para o tipo penal). O lenão (autor do crime) induz especificamente o maior de 14 (catorze) anos e menor de 18 (dezoito) anos a satisfazer a lascívia de outrem, pouco importando o ato lascivo que será implementado depois. 2.3.5.1.7 – Rufianismo de Menor O Rufianismo está previsto no art. 230 do CP e é objeto de discussão doutrinária e jurisprudencial no que diz respeito à sua similitude com o crime de favorecimento à prostituição. Controvérsias à parte, é mais um tipo penal que envolve crianças e adolescentes, e assim preceitua: “Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça.” A pena é agravada se a vítima for menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (quatorze) anos ou se o crime é cometido por ascendente, padrasto,madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou por quem assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância (§1.º), como se o crime é cometido mediante violência, grave ameaça, fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima, sem prejuízo da pena correspondente à violência (§2.º). O enfoque desse tipo penal está na expressão tirar proveito, fazendo com que isso o diferencie dos demais, ou seja, não basta induzir ou convencer à prática do delito, é necessário a característica comercial da qual decorra lucratividade. Outrossim, nos casos de envolvimento de pessoas maiores de 14 e menores de 18 anos, incide uma causa de majoração da pena, que mais uma vez resgata o caráter protetivo às pessoas vulneráveis, decorrente da inovadora legislação Penal. 2.3.5.1.8 – Do Assédio Sexual do Menor O crime de assédio sexual decorre de relação trabalhista com enfoque no superior hierárquico, também contemplado pela Lei nº 12.015/2009, ao adicionar ao tipo penal um parágrafo de causa de aumento da pena nos casos de vitimização de menores de 18 (dezoito) anos. Expressa o art. 216- A: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.” O §2.º prevê o aumento de pena quando a vítima é menor de 18 anos: “A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos.” Por tudo o que fora exposto na Lei nº 12.015/2009, que reformou o Código Penal, mostra-se como um importante avanço na luta contra a exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes vítimas de um sistema familiar ou social falido que constantemente submete esses infantojuvenis a situações de degradação psicossocial. 2.3.5.2 – Da Infiltração de Agentes de Polícia para Investigação de Crimes contra a Dignidade Sexual de Criança e Adolescente A Lei 13.441, de 8 de maio de 2017, acrescentou a Seção V-A no Capítulo III do Título VI do ECA (Acesso à Justiça). A infiltração de agentes de polícia na internet com o fim de investigar os crimes previstos nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D desta Lei e nos arts. 154-A, 217-A, 218, 218-A e 218-B do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), obedecerá às seguintes regras: a) será precedida de autorização judicial devidamente circunstanciada e fundamentada, que estabelecerá os limites da infiltração para obtenção de prova, ouvido o Ministério Público; b) dar-se-á mediante requerimento do Ministério Público ou representação de delegado de polícia e conterá a demonstração de sua necessidade, o alcance das tarefas dos policiais, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas e, quando possível, os dados de conexão ou cadastrais que permitam a identificação dessas pessoas; e c) não poderá exceder o prazo de 90 (noventa) dias, sem prejuízo de eventuais renovações, desde que o total não exceda a 720 (setecentos e vinte) dias e seja demonstrada sua efetiva necessidade, a critério da autoridade judicial. A autoridade judicial e o Ministério Público poderão requisitar relatórios parciais da operação de infiltração antes do término do prazo de infiltração legal. Para efeitos da norma, consideram-se dados de conexão as informações referentes a hora, data, início, término, duração, endereço de Protocolo de Internet (IP) utilizado e terminal de origem da conexão; e dados cadastrais como as informações referentes a nome e endereço de assinante ou de usuário registrado ou autenticado para a conexão a quem o endereço de IP, identificação de usuário ou código de acesso, tenha sido atribuído no momento da conexão. A infiltração de agentes de polícia na internet não será admitida se a prova puder ser obtida por outros meios. As informações da operação de infiltração serão encaminhadas diretamente ao juiz responsável pela autorização da medida, que zelará por seu sigilo. Antes da conclusão da operação, o acesso aos autos será reservado ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia responsável pela operação, com o objetivo de garantir o sigilo das investigações. Não comete crime o policial que oculta sua identidade para, por meio da internet, colher indícios de autoria e materialidade dos crimes previstos nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D do ECA e nos termos dos arts. 154-A, 217-A, 218, 218-A e 218-B do Código Penal. O agente policial infiltrado que deixar de observar a estrita finalidade da investigação responderá pelos excessos praticados. Os órgãos de registro e cadastro público poderão incluir nos bancos de dados próprios, mediante procedimento sigiloso e requisição da autoridade judicial, as informações necessárias à efetividade da identidade fictícia criada. O procedimento sigiloso será numerado e tombado em livro específico. Concluída a investigação, todos os atos eletrônicos praticados durante a operação deverão ser registrados, gravados, armazenados e encaminhados ao juiz e ao Ministério Público, juntamente com relatório circunstanciado. Os atos eletrônicos registrados citados serão reunidos em autos apartados e apensados ao processo criminal juntamente com o inquérito policial, assegurando-se a preservação da identidade do agente policial infiltrado e a intimidade das crianças e dos adolescentes envolvidos. 2.3.5.3 – O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Proteção Contra a Pornografia e o Aliciamento Infantojuvenil O Estatuto da Criança e do Adolescente enquanto legislação especial protetora dos Direitos Infantojuvenis também se preocupou em dar suporte ao Código Penal, tratando de questões que se mostram preocupantes relacionadas fundamentalmente à pornografia e ao aliciamento. Em linhas gerais, com o intuito de apenas apontar tais crimes sem esgotar a fundamentação, apontam-se os crimes previstos nos artigos 240, 241 – A, 241 – B, 241 – C, 241 – D, e 244-A. Todos relacionados à preservação da imagem e integridade física e moral. O art. 240 trata prioritariamente da imagem, vedando condutas como produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente. O 241 aborda a venda ou exposição de material pornográfico. Já o 241-A e B tratam, respectivamente, da divulgação e posse de tais materiais. O 241-C e D dispõem sobre produção e aliciamento, respectivamente. Por fim, o 244-A, que se assemelha ao artigo 218-B do Código Penal, faz menção à prostituição e exploração sexual. 2.3.5.4 – Pedofilia, Hebefilia e Pederastia Quando se fala em violência sexual envolvendo criança e adolescente nos vem à mente a expressão do agente como pedófilo. Afinal, o que é um pedófilo ou um hebéfilo? A pedofilia é uma preferência sexual por crianças até a puberdade111 ou em puberdade precoce,112 e é classificada como parafilia113 pela Organização Mundial da Saúde (Classificação Internacional de Doenças ou CID-10, item F65.4), vinculada às Nações Unidas. A efebofilia, por vezes referida como hebefilia [do grego “ephebos” – pessoa jovem pós-pubescente, ou “hebe” – juventude + “philia” – amor ou amizade] é uma preferência sexual na qual um adulto tem uma atração sexual primária por adolescentes pubescentes ou pós-pubescentes (geralmente entre 15 e 18 anos). A hebefilia é definida como uma atração sexual primária ou exclusiva de um adulto em relação a adolescentes do sexo feminino, masculino ou ambos, adulto esse que depende de estímulos visuais de adolescentes para obter excitação e orgasmo. Assim, a efebofilia não deve se confundir com uma atração sexual indiferente por adultos ou adolescentes, nem com uma atração sexual eventual ou esporádica por adolescente da parte de um adulto. A pederastia designa especificamente uma atração sexual de um homem por rapazes adolescentes. 2.4 –VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL O inciso IV do art. 4.º da Lei do Depoimento Especial entende como violência institucional a praticada por instituição pública ou privada, inclusive quando gerar revitimização. O contexto da violência institucional está ligado diretamente ao sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha das violências definidas na própria norma (física, psicológica e sexual). Pela definição do dispositivo, duas são as formas de gerar a violência institucional: praticada por instituição pública ou privada ou quando gera revitimização. O Decreto n. 9.603, de 2018, que regulamentou a Lei 13.431/2017, em seu artigo 5.º, inciso I e II, trouxe a definição da violência institucional e da revitimização. A violência institucional é a praticada por agente público no desempenho de função pública, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência. O agente público é todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer forma de investidura ou vinculo, mandato, cargo, emprego ou função pública. A instituição de qualquer natureza, seja ela pública ou privada, deve ser entendia como um estabelecimento ou organização, formal ou informal, criada para promover um determinando tipo de serviço. O ato do agente pode ser uma conduta positiva (ação – ato de fazer) ou negativa (omissão – ato de não fazer) e conduta deve prejudicar o atendimento à criança ou adolescente, vítima ou testemunha, de uma das violências físicas, psicológicas ou sexuais. A revitimização é o discurso ou prática institucional que submeta crianças e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos, invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem. O fim social da norma é colher, de forma protegida, os relatos dos infantes, uma única vez, salvo quando justificada sua imprescindibilidade pela autoridade competente e houver concordância da vítima ou testemunha (art. 11, §2.º), pois não se justifica que elas se submetam a procedimentos dispensáveis, recorrentes ou invasivos que os levam a reviverem seus horrores, gerando mais sofrimento, o que acaba por expor sua pessoa. 3 – MEIO DE ESCUTA FORENSE 3.1 – Introdução A violência em face de uma criança ou adolescente, de um modo geral, esconde neles um silêncio, uma negação, um refúgio introvertido de medo, angústia, receio, capazes de impedir que esses sujeitos de direitos declarem normalmente seus sentimentos por inúmeros motivos. A conduta dos agentes, muitas vezes, não deixa vestígios, o que agrava a situação, fazendo com que os infantes fiquem à mercê de provas contundentes sobre a violência contra eles praticadas, principalmente a sexual, que é justamente a mais grave de todas elas. Neste sentido, Azambuja114, baseando-se na literatura, afirma que “[…] somente em uma minoria de casos o exame físico conduz com confiança ao achado definitivo de abuso sexual, o que acaba por dificultar a investigação pelos profissionais da saúde, menos capacitados, apenas de outros indicadores se fazerem presentes”. Somado a isso, encontramos ainda a repreensão do agressor por meio de ameaças ou coação para impedir que os fatos sejam divulgados. Caso os fatos ocorram em relação do âmbito intrafamiliar, o pacto do silêncio agrava a situação, pois o abusador impõe à vítima o silêncio. Dentro desse contexto surge a ela uma confusão de sentimentos capaz de impedir relate, por livre e espontânea vontade, suas angústias, seus sofrimentos. Considerando esse contexto, na maioria das vezes traumático, é que o legislador criou mecanismo de escuta protegida e, para os fins da norma em análise, os infantes serão ouvidos sobre a situação de violência por meio de escuta especializada e depoimento especial (Lei, 13.431, art. 4.º, §1.º). 3.2 – Escuta Especializada A escuta especializada é o procedimento realizado pelos órgãos da rede de proteção nos campos da educação, da saúde, da assistência social, da segurança pública e dos direitos humanos, com o objetivo de assegurar o acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a superação das consequências da violação sofrida, limitado ao estritamente necessário para o cumprimento da finalidade de proteção social e de provimento de cuidados. A criança ou o adolescente deve ser informado em linguagem compatível com o seu desenvolvimento acerca dos procedimentos formais pelos quais terá que passar e sobre a existência de serviços específicos da rede de proteção, de acordo com as demandas de cada situação. A busca de informações para o acompanhamento da criança e do adolescente deverá ser priorizada com os profissionais envolvidos no atendimento, com seus familiares ou acompanhantes. O profissional envolvido no atendimento primará pela liberdade de expressão da criança ou do adolescente e sua família e evitará questionamentos que fujam dos objetivos da escuta especializada. A escuta especializada não tem o escopo de produzir prova para o processo de investigação e de responsabilização, e fica limitada estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade de proteção social e de provimento de cuidados. Esse meio de escuta tem o objetivo único de aferir qual medida protetiva seria a mais adequada no caso concreto, inexistindo, até então, interesse em investigar a ocorrência (BRASIL, 2.017, pp. 27/28115). A escuta especializada será realizada por profissional capacitado dentro do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, o qual deve participar de cursos de capacitação para o desempenho adequado das funções previstas na regulamentação da norma. Os órgãos, os serviços, os programas e os equipamentos da rede de proteção adotarão procedimentos de atendimento condizentes com os princípios estabelecidos no art. 2º do Decreto n. 9.603/2018, que regulamentou a Lei 13.431/2017. 3.3 – Depoimento Especial O depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária com a finalidade de produção de provas. Tem ele caráter investigativo e de produção de provas. Essa escuta deverá primar pela não revitimização e pelos limites etários e psicológicos de desenvolvimento da criança ou do adolescente. A autoridade policial ou judiciária deverá avaliar se é indispensável a oitiva da criança ou do adolescente, consideradas as demais provas existentes, de forma a preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e social. A criança ou o adolescente serão respeitados em sua iniciativa de não falar sobre a violência sofrida, ou seja, têm o direito de permanecer em silêncio, inclusive não devem se fazer questionamentos para registro das perguntas na gravação, sob pena de revitimizá-la. O depoimento especial deverá ser gravado com equipamento que assegure a qualidade audiovisual. A sala de depoimento especial será reservada, silenciosa, com decoração acolhedora e simples, para evitar distrações. Esse ambiente, inclusive, poderá ter sala de observação ou equipamento tecnológico destinado ao acompanhamento e à contribuição de outros profissionais da área da segurança pública e do sistema de justiça. O depoimento especial será regido pelo Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF) – Resolução n. 299/CNJ/2019. Ele deverá ser conduzido por autoridades capacitadas, observando o meio de capacitação do regulamento da norma 13.431/2017, e realizado em ambiente adequado ao desenvolvimento da criança ou do adolescente. A condução do depoimento especial observará o seguinte: a) os repasses de informações ou os questionamentos que possam induzir orelato da criança ou do adolescente deverão ser evitados em qualquer fase da oitiva; b) os questionamentos que atentem contra a dignidade da criança ou do adolescente ou, ainda, que possam ser considerados violência institucional deverão ser evitados; c) o profissional responsável conduzirá livremente a oitiva sem interrupções, garantida sua autonomia profissional e respeitados os códigos de ética e as normas profissionais; d) as perguntas demandadas pelos componentes da sala de observação serão realizadas após a conclusão da oitiva; e) as questões provenientes da sala de observação poderão ser adaptadas à linguagem da criança ou do adolescente e ao nível de seu desenvolvimento cognitivo e emocional, de acordo com seu interesse superior; e f) durante a oitiva, deverão ser respeitadas as pausas prolongadas, os silêncios e o tempo que a criança ou o adolescente necessitarem. A oitiva deverá ser registrada na sua íntegra desde o começo. Em casos de ocorrência de problemas técnicos impeditivos ou de bloqueios emocionais que impeçam a conclusão da oitiva, ela deverá ser reagendada, respeitadas as particularidades da criança ou do adolescente. 4 – REVELAÇÃO ESPONTÂNEA DA VIOLÊNCIA À REDE DE PROTEÇÃO E AFINS A violência, seja ela qual for, antes das garantias asseguradas aos infantes como sujeitos de direito, não chegavam à Justiça, de um modo geral, seja pelas barreiras naturais dos relatos dos infantes já narrados acima, seja por ausência de mecanismo para que pudesse ser identificado um rito para seu aperfeiçoamento. Desta forma, o legislador criou e os órgãos de saúde, assistência social, educação, segurança pública e justiça deverão adotar o procedimento – rito – necessário para dar andamento por ocasião das revelações espontâneas da violência sofrida pela criança ou pelo adolescente. Na hipótese de o profissional de qualquer das áreas referidas identificar ou a criança ou adolescente revelar atos de violência, ele deverá: a) acolher a criança ou o adolescente; b) informar à criança ou ao adolescente, ou ao responsável ou à pessoa de referência, sobre direitos, procedimentos de comunicação à autoridade policial e ao conselho tutelar; c) encaminhar a criança ou o adolescente, quando couber, para atendimento emergencial em órgão do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência; e d) comunicar o Conselho Tutelar. As redes de ensino deverão contribuir para o enfrentamento das vulnerabilidades que possam comprometer o pleno desenvolvimento escolar de crianças e adolescentes por meio da implementação de programas de prevenção à violência. O Suas disporá de serviços, programas, projetos e benefícios para prevenção das situações de vulnerabilidades, riscos e violações de direitos de crianças e de adolescentes e de suas famílias no âmbito da proteção social básica e especial. A proteção social básica deverá fortalecer a capacidade protetiva das famílias e prevenir as situações de violência e de violação de direitos da criança e do adolescente, além de direcioná-los à proteção social especial para o atendimento especializado quando essas situações forem identificadas. O acompanhamento especializado de crianças e adolescentes em situação de violência e de suas famílias será realizado preferencialmente no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), por meio do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos, em articulação com os demais serviços, programas e projetos do Suas. Caso não haja CREAS, a criança ou o adolescente será encaminhado ao profissional de referência da proteção social especial. As crianças e os adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e em situação de risco pessoal e social, cujas famílias ou cujos responsáveis se encontrem temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção, podem acessar os serviços de acolhimento de modo excepcional e provisório, hipótese em que os profissionais deverão observar as normas e as orientações referentes aos processos de escuta qualificada quando se configurarem situações de violência. A autoridade policial procederá ao registro da ocorrência policial e realizará a perícia, se necessário. O registro da ocorrência policial consiste na descrição preliminar das circunstâncias em que se deram o fato e, sempre que possível, será elaborado a partir de documentação remetida por outros serviços, programas e equipamentos públicos, além do relato do acompanhante da criança ou do adolescente. O registro da ocorrência policial deverá ser assegurado, ainda que a criança ou o adolescente esteja desacompanhado. A autoridade policial priorizará a busca de informações com a pessoa que acompanha a criança ou o adolescente, de forma a preservá-lo, observado o disposto na Lei nº 13.431, de 2017. Sempre que possível a descrição do fato não será realizada diante da criança ou do adolescente. A descrição do fato não será realizada em lugares públicos que ofereçam exposição da identidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência. A perícia médica ou psicológica primará pela intervenção profissional mínima. A perícia física será realizada somente nos casos em que se fizer necessária a coleta de vestígios, evitada a perícia para descarte da ocorrência de fatos. Os peritos deverão, sempre que possível, obter as informações necessárias sobre o fato ocorrido com os adultos acompanhantes da criança ou do adolescente ou por meio de atendimento prévio realizado pela rede de serviços. Recebida a comunicação de que trata o art. 13 da Lei nº 13.431, de 2017, o Conselho Tutelar deverá efetuar o registro do atendimento realizado, do qual deverão constar as informações coletadas com o familiar ou o acompanhante da criança ou do adolescente e aquelas necessárias à aplicação da medida de proteção da criança ou do adolescente. Os profissionais envolvidos no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência primarão pela não revitimização da criança ou adolescente e darão preferência à abordagem de questionamentos mínimos e estritamente necessários ao atendimento. Poderá ser coletada informação com outros profissionais do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, além de familiar ou acompanhante da criança ou do adolescente. Caso a violência contra a criança ou o adolescente ocorra em programa de acolhimento institucional ou familiar, em unidade de internação ou semiliberdade do sistema socioeducativo, o fato será imediatamente avaliado pela equipe multiprofissional, considerado o melhor interesse da criança ou do adolescente. No atendimento à criança e ao adolescente pertencente a povos ou comunidades tradicionais, deverão ser respeitadas suas identidades sociais e culturais, seus costumes e suas tradições. Poderão ser adotadas práticas dos povos e das comunidades tradicionais em complementação às medidas de atendimento institucional No atendimento à criança ou ao adolescente pertencente a povos indígenas, a Fundação Nacional do Índio – Funai, do Ministério da Justiça, e o Distrito Sanitário Especial Indígena do Ministério da Saúde deverão ser comunicados. 5 – REVELAÇÃO ESPONTÂNEA DA VIOLÊNCIA EM CASOS DE INTERVENÇÃO DE SAÚDE O §3.º do art. 4.º da Lei 13.431/2017 prevê a revelação espontânea à rede de proteção e afins, que são os órgãos de saúde, assistência social, educação, segurança pública e justiça, cujo procedimento (rito) dos agentes políticos e das autoridades auxiliam a criança ou adolescente, foi descrito no item anterior (4). Ocorre, entretanto, que pode ocorrer a revelação espontânea durante a intervenção de saúde do infante. Nesse caso, o §3.º do art. 4.º faz ressalva à regra da escuta protegida por meio da especializada e depoimento especial. Segundo DIGIÁCOMO,116 “[…] o dispositivo destaca a possibilidade (nuncaobrigatoriamente, especialmente em face do disposto no art. 5.º, inciso VI, desta lei), de que o relato da vítima seja posteriormente reproduzido mediante depoimento especial ou escuta especializada, de modo a ser usado como prova em processo criminal ou civil instaurado em decorrência da violência por ela sofrida (reafirmando assim que ambos os métodos são igualmente válidos e podem ser usados para tal desiderato). A ressalva estabelecida em relação a atendimentos à saúde, tomando por base a regra de interpretação contida no art. 3.º desta lei, assim como o disposto nos arts. 13 e 22 deste mesmo Diploma, deve ser entendida não como a vedação da revelação, pelos profissionais de saúde, do que foi relatado aos órgãos e autoridades competentes, mas sim como a previsão de que, em tais casos, deve-se procurar evitar que a criança/adolescente vítima ou testemunha seja novamente ouvida, quer por meio da escuta especializada, quer do depoimento especial, com a busca da produção de prova do ocorrido por outros meios (lícitos) em Direito admissíveis, a começar pelo depoimento dos próprios profissionais que atenderam o caso. O que se procura resguardar é a relação de confiança entre a criança/adolescente vítima ou testemunha de violência e o profissional de saúde perante a qual o fato foi relatado, que se quebrada, pode comprometer a continuidade do atendimento/tratamento ao qual a mesma está sendo eventualmente submetida, e mesmo ser fonte de violência institucional, nos moldes do previsto no art. 4.º, inciso IV, desta Lei. Assim sendo, quando a revelação da violência ocorre, por exemplo, durante eventual tratamento psicológico ao qual a criança/adolescente vítima ou testemunha está sendo submetida, ela a princípio não deverá ser ouvida novamente, persistindo, no entanto, o dever do profissional de saúde comunicar o que foi relatado (cf. art. 13, caput, desta lei), assim como de servir como testemunha nos processos criminais e/ou cíveis instaurados em decorrência do fato (incidindo aqui o disposto no art. 22 desta lei, que preconiza a busca de formas alternativas de comprovação da violência praticada”. Ao médico, por sigilo profissional, é vedado revelar fato de que tenha conhecimento em virtude de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Esta é a regra prevista no art. 73 do Código de Ética Médica (Resolução CFM n. 1.931/09).117 Desta forma, todo e qualquer médico que tomar conhecimento de alguma violência em face da criança ou adolescente, seja vítima ou testemunha, tem o dever legal de comunicar as autoridades competentes os fatos, o que não significa violar o sigilo profissional do Código de Ética. O que vem a ser “dever legal”? Ora, como a própria expressão sugere, é uma obrigação imposta por lei, significando que o agente, ao atuar tipicamente, não faz nada mais do que “cumprir uma obrigação”. Mas para que essa conduta, embora típica, seja lícita, é necessário que esse dever derive direta ou indiretamente de “lei”. Por “lei” entenda-se não apenas a lei penal, mas também a civil, comercial, administrativa etc. Não é necessário, também, que essa obrigação esteja imposta textualmente no corpo de uma lei estrito sensu. Pode constar de decreto, regulamento ou qualquer ato administrativo infralegal, desde que originários de lei. O mesmo se diga em relação a decisões judiciais que nada mais são do que determinações emanadas do Poder Judiciário em cumprimento da lei e está na lei ou dela derive. O profissional liberal responsável pelo atendimento deverá servir de testemunha quanto a violência relatada espontaneamente. No mesmo sentido é o caso dos profissionais assistentes sociais e psicólogos os quais, durante o atendimento, venham a tomar conhecimento de fatos que narram violência. No caso da Assistente Social, a quebra do sigilo só é admissível quando se tratarem de situações cuja gravidade possa, envolvendo ou não fato delituoso, trazer prejuízo aos interesses do/a usuário/a, de terceiros/as e da coletividade. A revelação será feita dentro do estritamente necessário, quer em relação ao assunto revelado, quer ao grau e número de pessoas que dele devam tomar conhecimento (Resolução CEFESS n. 273/93, art. 18, c/c Lei 8662/93). É dever do Psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional. Nas situações em que se configure conflito entre as exigências decorrentes dessa regra e as afirmações dos princípios fundamentais previstas no próprio Código de Ética, excetuando-se os casos previstos em lei, o psicólogo poderá decidir pela quebra de sigilo, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo. Não podemos esquecer que, no art. 2.º do Código, ao profissional é vedada a prática ou ser conivente com quaisquer atos que caracterizem negligência, entre elas deixar de comunicar a autoridade competente a notícia de um fato criminoso. Em caso de quebra do sigilo, o psicólogo deverá restringir-se a prestar as informações estritamente necessárias e quando requisitado a depor em juízo poderá prestar informações, considerando o previsto no Código de Ética (Resolução CFP n. 010/05, art. 9.º, 10 e 11). Sobre a atuação dos Profissionais – Assistentes Técnicos e Psicólogos – vejamos o que prevê as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do TJSP, que por meio do Provimento n. 17/2018, datado de 05 de junho, acresceu o parágrafo único ao artigo 804: “Os Psicólogos e Assistentes Sociais atuarão como peritos do Juízo e não como testemunhas, exceto se o fato a ser provado ocorreu durante o atendimento realizado pela equipe multidisciplinar.” Esse provimento, diga-se de passagem, foi questionado pela Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do TJSP e buscava sua nulidade no CNJ (Procedimento de Controle Administrativo n. 0004543- 46.2018.2.00.0000), que foi julgado improcedente na Sessão n. 301ª da Corte Colegiada Administrativa. 6 – EXIGÊNCIA DO CUMPRIMENTO DA LEI (SANÇÕES) 6.1 – Introdução O §4.º do art. 4.º prevê que o não cumprimento do disposto nesta Lei implicará a aplicação das sanções previstas na Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Considerando a regra de interpretação em que o artigo é a menor porção de uma lei que ainda guarda as suas características. Sendo assim, a forma correta de interpretar um artigo é concêntrica, e não linear, ou seja, deve-se entender que o centro orbital de um artigo é o seu caput, tudo o circunstancia: os parágrafos, incisos, alíneas e itens que porventura o integram. Assim, a interpretação exige certo grau de abstração do intérprete para que, em uma visão espacial mais acurada, compreenda que os parágrafos, por exemplo, são subdivisões do assunto do caput, enquanto os incisos são exemplificações do assunto do parágrafo ou do próprio caput; já as alíneas são enumerações (quase sempre taxativas) do conteúdo dos parágrafos; e, finalmente, os itens são enumerações do assunto que está na alínea. Dessa forma, analisando o disposto na regra descrita no §4.º do art. 4.º – não cumprimento do disposto – poderia levar a interpretação de que estaria restrito ao artigo, simplesmente. Há evidente erro de indicação do legislador ao incluir a regra em um parágrafo, que é vinculado a seu caput. Na verdade, o que se pretendeu foi afirmar (declarar) que o não respeito a qualquer artigo da norma fará com que o infrator fique sujeito às sanções previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. É certo que o próprio artigo 4.º, §§1.º ao 3.º, de forma resumida trazem a abrangência quase total de todas as normas que devem ser cumpridas: a) criança e o adolescente, quando vítimas ou testemunhas de alguma das violências previstas na lei, serão ouvidos por meio de escuta especializada e depoimento especial; b) a rede de proteção, órgãos afins e autoridadecompetentes adotarão os procedimentos necessários por ocasião da revelação espontânea da violência; e c) na hipótese de revelação espontânea da violência o(a) infante será chamado a confirmar os fatos na forma da escuta protegida, exceto na hipótese de intervenção de saúde (v. item 5 deste artigo). Não é só! A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios desenvolverão políticas integradas e coordenadas que visem a garantir os direitos humanos da criança e do adolescente no âmbito das relações domésticas, familiares e sociais, para resguardá-los de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, abuso, crueldade e opressão118. O Estado deve assegurar os direitos e garantias previstos no art. 5.º da Lei do Depoimento Especial. As políticas implementares nos sistemas de justiça, segurança pública, assistência social, educação e saúde deverão adotar ações articuladas, coordenadas e efetivas voltadas ao acolhimento e ao atendimento integral às vítimas de violência. Os Entes Federados poderão criar serviços de atendimento, de ouvidoria ou de resposta, pelos meios de comunicação disponíveis, integrados às redes de proteção, para receber denúncias de violações de direitos de criança e adolescentes, como criar, no âmbito do SUS, serviços para atenção integral aos infantes em situação de violência, de forma a garantir o atendimento acolhedor, e no âmbito do SUAS, procedimentos como para atender aos fins da norma (LDE, art. 19). A Segurança Pública, por meio do poder público, deve criar mecanismos – delegacia e equipe especializada – para cumprir a escuta protegida. A Justiça, por meio do Poder Judiciário, deve criar juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente, disponibilizar para a prestação jurisdicional meios de realizar o depoimento especial com as garantias asseguradas pela norma. De tudo o que foi dito, certo é que todos, incluindo família, sociedade, a comunidade e o Estado têm o dever fundamental de promover a observância dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, como de colocá-los a salvo de qualquer forma de abuso e negligência. Não adianta prever direitos sem que existam instrumentos capazes de responsabilizar os que não cumprem as normas. Dessa maneira, o ECA previu um complexo sistema de responsabilização (sanções) pelo qual é possível a aplicação de medidas judiciais e de penas com finalidades educativas e punitivas. Nesse sentido, a não observância do dever fundamental indicado pode incorrer em (a) tipificação de crimes, (b) a tipificação de infrações administrativas, (c) a aplicação de medidas pertinentes aos pais ou responsáveis, (d) a aplicação de penalidades às entidades de atendimento responsáveis pela execução de programas socioeducativos e de proteção e (e) a aplicação de medidas às entidades de atendimento que descumprirem as obrigações do programa de internação. O certo é que nem todas as sanções previstas no ECA devem ser aplicadas à Lei do Depoimento Especial pelo fato de não serem compatíveis e, pois, na análise de cada uma delas, nos limitaremos àquelas aplicáveis. 6.2 – Tipificação de Crimes Os tipos penais descritos no ECA – Seção II do Capítulo I do Título VII – trazem diversas condutas criminosas e as que podem ser aplicadas à Lei do Depoimento Especial são algumas específicas, como sanção pelo descumprimento de suas normas. Primeiro, “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento” – ECA, art. 232. O infante deve estar legalmente sob custódia, guarda ou vigilância; do contrário, outras figuras típicas de privação da liberdade incidirão. O núcleo do tipo é submeter (sujeitar), que se conjuga a vexame (vergonha) ou constrangimento (situação de violência ou coação psicológica). É possível que as pessoas, órgãos ou autoridades envolvidas no relato de uma violência da vítima ou testemunha, sem os devidos cuidados na condução de sua escuta protegida, possam estar sujeitas a prática delitiva desta conduta. Vejamos, v.g., que uma diretora de escola ao tomar conhecimento dos fatos (violência sexual) em face de um infante não dê sequência ao procedimento do Decreto 9.603/2018, submetendo a criança ou adolescente a atos reiterados de narrativas dos fatos (revitimização119), acaba por cometer violência institucional120 (LDE, art. 4.º, IV). No mesmo sentido integrantes do Conselho Tutelar, CRAS, CREAS, Autoridades Judiciárias, etc. Segundo, “impedir ou embaraçar a ação de autoridade judiciária, membro do Conselho Tutelar ou representante do Ministério Público o exercício de função prevista nesta lei” – ECA, art. 236. Aos pais e responsáveis que colocarem obstáculo, interromperem ou perturbarem, complicando a realização de uma ação judicial, de um representante do Conselho Tutelar ou do MP, quando no exercício das suas funções do ECA, devem ser punidos pelo tipo descrito neste tópico. Como se trata de tipo misto alternativo – impedir ou embaraçar – em que o agente pode praticar ambas as condutas, responde apenas por um só delito. Nesta hipótese é possível analisar uma conduta muito comum envolvendo o Depoimento Especial ou Escuta Especializada, qual seja, quando a criança ou adolescente faz a narrativa de uma violência a pessoa diversa da família em que terceiros tomam conhecimento e o fato é relato ao Conselho Tutelar ou MP, que, quando acionados, encontram resistência dos próprios pais ou responsáveis para que a verdade seja desvendada, até porque muitas vezes envolve integrante da família de quem se está a proteger. Dúvida poderia surgir quanto a norma se referir ao fato de que o tipo descreve no “exercício de função prevista nesta lei”, referindo-se ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Pois bem. Vejamos que a Lei do Depoimento Especial, ao dispor em seu §4.º do art. 4.º da Lei 13.431/2017, o não cumprimento de qualquer norma prevista naquela lei implicaria na aplicação das sanções prevista no ECA, quer dizer que, por força legal, devem os agentes políticos cumprirem a norma, o que faz com que haja, caso não atendidas as normas estatutárias, a punição de acordo com o tipo penal, uma vez que o objeto jurídico é justamente o interesse da Administração da Justiça, no campo da proteção aos interesses da criança e do adolescente. Terceiro, “subtrair criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar substituto” – ECA, art. 237. Trata-se de uma conduta em que retira-se o(a) infante de um lugar, com quem está sob guarda, levando-o(a) a outro diverso. A guarda deve ser judicial (v.g., tutor) ou legal (v.g., poder familiar) e a finalidade é a colocação em lar substituto, i. e, a convivência com outra família, que pode ser extensa ou substituta, desde que não haja ordem judicial para tanto. O tipo pode ser também facilmente aplicado à Lei do Depoimento Especial quando em decorrência de uma criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência for entregue a terceiros por medida de proteção (LDE, art. 6.º), e os pais ou responsáveis, não satisfeitos com a conduta, retirarem-na desse local para entregar a outrem (terceiros). Observa-se que o art. 249 do Código Penal – subtração de incapaz – tem confronto com o presente tipo em análise; contudo, o previsto no art. 237 do ECA deve prevalecer por existir finalidade especial para agir, além de ser lei mais recente. Quarto, “promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro” – ECA, art. 239. A conduta tem a finalidade de proporcionar ou fornecer ajuda para enviar criança ou adolescente para o exterior, cujos elementos normativos alternativos são sem observar as formalidades legais, ainda que sem o intuito de obter lucro, e, observando ou não as formalidade legais, mas com o objetivo de obterlucro. Essa questão está intimamente ligada à Violência Sexual pelo Tráfico de Pessoas com o Fim de Exploração Sexual (art. 4.º, III, alínea c) – v. item 2.3.4 do art. 4.º – em que se busca evitar o tráfico internacional de crianças e adolescentes, preocupação imperante em todo o mundo. É importante que a consumação do delito, no entanto, independe da remessa efetiva do(a) infante para o exterior, bastando a concretização do ato, cujo objetivo seja esse. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu: “O delito tipificado no art. 239 do Estatuto da Criança e do Adolescente é formal, porque consuma-se com a simples conduta de auxiliar na efetivação de atos destinados ao envio de criança ao exterior, sem a observância das formalidades legais ou com a finalidade de obter lucro, não sendo exigido o efetivo envio do menor ao exterior.” (REsp 1.023.002/PE, 6.ª T., rel. Alderita Ramos de Oliveira, 09.08.2012, v.u.). Nucci,121 ao confrontar o dispositivo com o art. 245, §2.º, do Código Penal, afirma que “analisando detidamente os dois tipos penais, cremos que o art. 239 da Lei 8.069/90, por ser mais abrangente e também especial, revogou, tacitamente, o referido no art. 245, §2.º, do Código Penal. Neste, o agente auxilia a efetivação de ato destinado ao envio de menor para o exterior, com o fito de obter lucro. Naquele, o autor auxilia ou promove a efetivação de ato destinado a enviar criança ou adolescente ao exterior, com o fito de obter lucro ou com inobservância das formalidades legais. Logo, mais amplo e abrangente”. A competência para análise do tipo penal é da Justiça Federal (CF, art. 109, V). Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal (HC 121472/PE, 1.ª T., rel. Dias Toffoli, 19.08.2014, m.v.). Quinto, “produzir, reproduzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornografia envolvendo criança ou adolescente” – ECA, art. 240, caput. No caput do tipo penal são seis as condutas criminosas previstas, ligadas entre si, direta ou indiretamente, à criação do material pornográfico: produzir (realizar, levar a efeito), reproduzir (imitar fielmente), dirigir (comandar), fotografar (tirar foto de alguém), filmar (registrar em vídeo alguém) e registrar (colocar em base de dados) cena de sexo explícito ou pornográfica, assim entendida qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais (ECA, art. 241-E). O §1.º do art. 240 do ECA impõe a mesma pena de quem “agencia, facilita, recruta, coage, ou de qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena”. Nos moldes do caput e do parágrafo primeiro do dispositivo, na essência o que se pune é a utilização de criança ou adolescente em cena pornográfica, de sexo explícito ou vexatório, nas peças de comunicação elencadas. A pena é aumentada se o agente comete o crime no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la; prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou prevalecendo-se de relações de parentesco consanguíneo ou afim até o terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela ou com seu consentimento. As condutas são consideradas de tipos mistos alternativos, ou seja, se o agente, no mesmo contexto fático, incorrer em mais de uma ação nuclear típica (agencia e facilita, v.g.) responderá por apenas um crime. O dispositivo está intimamente ligado à violência sexual (LDE, art. 4.º, III), entendida como qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda (a) abuso sexual122 e (b) exploração sexual comercial123. Nas hipóteses de violência sexual em face da criança ou do adolescente os agentes estão sujeitos às sanções do presente dispositivo penal do ECA. Sexto, “vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente” – ECA, art. 241. Analisando o núcleo do tipo vemos que se trata de alienar por um determinado valor ou apresentar algo para que se seja objeto de alienação imagens, vídeos ou qualquer registro (dados em gerais) de criança ou adolescente em cenas de sexo explícito ou pornográficos. No mesmo sentido do tipo anterior, tem ligação direta a violência sexual definida no art. 4.º, III, da Lei do Depoimento Especial. Incorrendo o agente naquelas hipóteses, aplicar-se-á a ele a sanção penal definida no tipo em análise, conforme a conduta fática. Sétimo, “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente” – ECA, art. 240- A. O caput do dispositivo traz sete ações nucleares típicas, todas associadas à difusão (especialmente pela rede mundial de computadores) do material pornográfico já produzido: oferecer (propor para aceitação), trocar (permutar, substituir), disponibilizar (permitir o acesso), transmitir (remeter de um lugar a outro), distribuir (proporcionar a entrega indeterminada), publicar (tornar manifesto) e divulgar (difundir, propagar)124. Aqueles que disponibilizam instrumento de armazenamento ou assessoram o agente que pretende a divulgação também estão sujeitos a sanção, conforme dispõe o §1.º do art. 240-A: “I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo; e II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.” Contudo, o §2.º do mesmo dispositivo legal impôs uma condição objetiva de punibilidade, posto que só são puníveis os agentes quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que se refere o caput do tipo penal. Novamente a conduta criminosa está ligada à violência sexual (LDE, art. 4.º, III). Oitavo, “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfico envolvendo criança ou adolescente” – ECA, art. 241-B. As condutas típicas visam punir especialmente o consumidor do material pornográfico: adquirir (obter), possuir (desfrutar) e armazenar (guardar) imagem, cenas ou qualquer registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfico envolvendo criança ou adolescente. Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de comunicar às autoridades competentes a ocorrência das condutas descritas nos arts. 240, 241-A e 241-C do ECA e, ainda, quando a comunicação for feita por agente público no exercício de suas funções, membro de entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas finalidades institucionais, o recebimento, o processamento e o encaminhamento de notícia dos crimes descritos neste dispositivo e, ainda, representante legal e funcionários responsáveis de provedor de acesso ou serviço prestado por meio de rede de computadores, até o recebimento do material relativo à notícia feita à autoridade policial, ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário (ECA, art. 241-B, §2.º). Lado outro, o legislador considerou minorante da pena a quantidade de material pornográfico apreendido, o que pode reduzir a pena em 1/3 (um) a 2/3 (dois terços). Neste caso, beneficia aquele que ocasionalmente foi surpreendido com pequena quantidade de material ilegal, conduta que demonstrainfante potencialidade lesiva. Como critério para a diminuição poderá o juiz utilizar tanto a efetiva quantidade de imagens, vídeos ou registros quanto o conteúdo por eles revelado. Se, por exemplo, foram duas ou três imagens que apenas insinuam a prática de algum ato sexual, a diminuição pode se dar no máximo, o que não se revela possível se a exibição for de sexo explícito125. Trata-se de conduta ligada à violência sexual definida na Lei 13.431/2017. Nono, “simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual” – ECA, art. 241-C. A Lei 11.829, de 2008, que acresceu ao ECA o dispositivo, tem a preocupação quanto à criação de material pornográfico envolvendo criança e adolescente. Vejamos que não há a participação direta do(a) infante na cena explícita ou pornográfica; contudo, a simulação de sua participação atinge a moral da criança e do adolescente, além de provocar a produção de cenas reais de terceiros. Nas mesmas penas incorre quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido (ECA, art. 241-C, parágrafo único). Na hipótese do(a) infante que é envolvido(a) pela simulação e sofre violência sexual definida na Lei do Depoimento Especial, tem garantida sua aplicação. Décimo, “aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso” – ECA, art. 241-D. O tipo em análise, marcado pela prevenção, pune aquele que aliciar (atrair), assediar (importunar), instigar (induzir) ou constranger (forçar, coagir), por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato de libidinagem (comportamento denominado grooming)126. Com a difusão e o acesso fácil aos meios de comunicação através da internet, principalmente redes sociais (Facebook, Instagram, etc.), os agentes cada dia mais buscam nesses meios atrair crianças e adolescentes para prática lasciva, o que motivou a definição do presente tipo. Pune-se também quem facilitar (põe à disposição) ou induzir (incute, sugere) o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso: neste caso, o agente, agindo indiretamente, com a finalidade de praticar ato libidinoso com a criança, proporciona seu acesso a material de conteúdo pornográfico, com a finalidade de fazê-la crer na naturalidade daquelas cenas; e pratica as condutas descritas no caput com o fim de induzir a criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita: aqui as condutas são as mesmas previstas no caput (aliciar, assediar, instigar ou constranger), tendo como objeto também a criança, modificando-se somente a finalidade, que passa a ser a exibição do infante em cenas de sexo explícito ou pornográfico127. São meros atos preparatórios de crime mais grave (estupro de vulnerável), que ocorrendo, o analisado restará absolvido. 6.3 – A Tipificação de Infrações Administrativas 6.3.1 – Introdução A finalidade da infração administrativa é assegurar a regularidade de algum campo sob tutela do poder público no interesse da sociedade ou do Estado128. Segundo Válter Kenji Ishida “toda conduta que viola norma jurídica é tida como ilícita. Pode ocorrer que esse ilícito seja de natureza administrativa, civil ou penal. A diferença entre o ilícito civil e o penal e o ilícito administrativo recai sobre o órgão que impõe a sanção, no exercício de sua função típica ou atípica. Ao contrário da sanção penal, em que o juiz exerce efetivamente a jurisdição para aplicar a pena, na infração administrativa o juiz exerce o denominado ato administrativo punitivo. A sanção administrativa e, portanto, a própria infração administrativa do ECA estão inseridas no chamado direito administrativo punitivo externo. É externo porque se aplica ao jurisdicionado, já que o interno se refere ao direito disciplinar público, atinente aos servidores públicos. No caso da infração administrativa do ECA, a punição administrativa do Poder Judiciário é nitidamente o exercício sobre terceiros do poder de polícia129”. O ECA contempla 164 infrações de natureza administrativa derivadas da violação dos direitos da criança e do adolescente. Nos artigos 245 ao 258-C, o ECA tipificou condutas consideradas infrações administrativas e, ao mesmo tempo, atribuiu penas em razão de sua prática. Exige para apurar a conduta infracional o procedimento judicial, de competência da Vara da Infância e Juventude, cuja legitimidade de ação é do Ministério Público, do Conselho Tutelar e, ainda, pode ocorrer por autuação provocada por voluntários credenciados da Vara da Infância e Juventude (ECA, arts. 194 a 198). E o prazo prescricional das infrações administrativas é de cinco anos. Nesse sentido, segue a doutrina130: “Tratando-se de sanção administrativa, a multa prevista nas infrações administrativas tipificadas no Estatuto segue as regras de Direito Administrativo, sendo, por assim, quinquenal o prazo prescricional”. Não é diferente a posição da jurisprudência: “É de cinco anos a prescrição das infrações administrativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente” (TJMG, Apelação n. 10481070662137001, 5.ª Câmara Cível, rel. Des. Versiani Penna, 21.02.2013). 6.3.2 – Infrações Administrativas Específicas Aplicadas à Lei do Depoimento Especial ► ECA, art. 245: “Deixar o profissional da saúde, da assistência social ou da educação ou qualquer pessoa que exerça cargo, emprego ou função pública de comunicar à autoridade competente os casos que tenha conhecimento envolvendo suspeita ou confirmação de castigo físico, tratamento cruel ou degradante ou maus-tratos contra criança ou adolescente.” O tipo está intimamente ligado à violência física, psicológica e sexual (LDE, art. 4.º, I e II). A conduta ilícita dos sujeitos ativos é a omissão, consistente em deixar de comunicar (não avisar, não alertar) os atos ou fatos descritos no tipo penal (maus-tratos, castigos, etc.). A infração é própria, i. e, somente pode ser cometida pelos sujeitos apontados no tipo: médico (não inclui enfermeiros, técnicos de enfermagem, psicólogos, fisioterapeutas, biólogo, farmacêutico, etc.), professor (não inclui o funcionário dos serviços gerais da escola, a auxiliar de sala, monitor, superintendente administrativo, coordenador pedagógico, etc.) e responsável por estabelecimento de saúde ou ensino fundamental, pré- escola ou creche (diretor do local, excluindo-se os funcionários e subalternos). A conduta omissiva dos profissionais é direcionada à autoridade competente. No caso, a autoridade a que se refere é o membro do Conselho Tutelar (ECA, art. 13) e, na sua falta, o MP ou Juiz da Infância e Juventude ou que acumule tal competência. Lado outro, entendemos que, dentro de uma abrangência lato sensu, em que os profissionais procurando dar notícia do fato para que sejam tomadas as providências devidas em face da criança ou adolescente, a comunicação à Autoridade Policial ou, até mesmo o registro de um Boletim de Ocorrência junto à Polícia Militar, é suficiente para que a infração deixe de existir, posto que, ambos, são autoridades, embora sem competência para atuar na infância, mas para dar cabo à cessação ou investigação da violência por maus-tratos. ► ECA, art. 249: “Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar.” A conduta administrativa prevê duas figuras típicas: a) omissão aos deveres inerentes ao poder familiar ou decorrentes da tutela ou guarda; e b) omissão às determinações da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar. Há, contudo, uma discussão de quem seriam os sujeitos ativos da conduta infracional: Nucci131 –