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Prévia do material em texto

LEI DO
DEPOIMENTO
ESPECIAL
ANOTADA E INTERPRETADA
FLÁVIO SCHMIDT
JUIZ DE DIREITO EM MINAS GERAIS
DOCENTE DA ESCOLA JUDICIAL DES. EDÉSIO FERNANDES
(TJMG), ENFAM E CNJ
LEI DO
DEPOIMENTO
ESPECIAL
ANOTADA E INTERPRETADA
ARTIGO POR ARTIGO
Lei do Depoimento Especial Anotada e Interpretada
© Flávio Schmidt
J. H. MIZUNO 2020
Revisão: José Silva Sobrinho
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
C114c Schmidt, Flávio.
Lei do depoimento especial anotada e interpretada / Flávio Schmidt. – Leme, SP: JH Mizuno,
2020.
429 p. : 17 x 24 cm
ISBN 978-65-5526-052-6
1. Direito penal. 2. Depoimento especial. 3. Prova (Direito) – Brasil. I. Título.
 CDD 345.8105
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
Nos termos da lei que resguarda os direitos autorais, é expressamente proibida a reprodução total ou parcial
destes textos, inclusive a produção de apostilas, de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou
mecânico, inclusive através de processos xerográficos, reprográficos, de fotocópia ou gravação.
Qualquer reprodução, mesmo que não idêntica a este material, mas que caracterize similaridade confirmada
judicialmente, também sujeitará seu responsável às sanções da legislação em vigor.
A violação dos direitos autorais caracteriza-se como crime incurso no art. 184 do Código Penal, assim como
na Lei n. 9.610, de 19.02.1998.
O conteúdo da obra é de responsabilidade dos autores. Desta forma, quaisquer medidas judiciais ou
extrajudiciais concernentes ao conteúdo serão de inteira responsabilidade dos autores.
Todos os direitos desta edição reservados à
JH MIZUNO
Rua Benedito Zacariotto, 172 - Parque Alto das Palmeiras, Leme - SP, 13614-460
Correspondência: Av. 29 de Agosto, nº 90, Caixa Postal 501 - Centro, Leme - SP, 13610-210
Fone/Fax: (0XX19) 3571-0420
Visite nosso site: www.editorajhmizuno.com.br
e-mail: atendimento@editorajhmizuno.com.br
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
http://www.editorajhmizuno.com.br/
mailto:atendimento@editorajhmizuno.com.br
“Acima de tudo, agradeço a Deus, nosso maior protetor, e, depois, à minha devoção a Santo Expedito e a
Maria do Carmo, uma “santa” bajeense que deixou sua história em São Borja, RS, e até hoje irradia seus
encantos a todos que depositam nela sua fé, e que me acompanham desde o início dessa longa jornada de
conquistas profissionais; sem eles nada seria possível”
AGRADECIMENTOS
Aos meus filhos Flávio Filho, Maria Rita e Stephanie, a quem dedico esta
obra com muito carinho, por acreditar que nossas crianças e adolescentes
são a razão do nosso viver, trazem alegria, são ingênuos e sinceros em seus
atos e refletem o verdadeiro amor.
A Pâmela, minha companheira incansável, paciente e dedicada, a quem
devo tudo para conseguir atingir este objetivo.
Aos meus irmãos, Maria da Graça Schmidt Disconzi e José Roberto
Moura Schmidt, que neste momento vêm cuidando de nossa mãe, Rita
Lauter de Moura, a quem eu amo, com carinho, afeto e muito amor, o que
nos dá tranquilidade para, de longe, continuar a vida sabendo de suas
dedicações para o seu bem-estar.
Ao meu pai, Adão Schmidt (in memoriam), meu timoneiro, que tudo me
ensinou, me deu sabedoria e conhecimento, deixou registrado seu amor ao
próximo, o que incutiu em minha personalidade sempre olhar para o meu
semelhante.
Aos meus amigos, colegas e integrantes da Coordenadoria da Infância e
Juventude de Minas Geais (COINJ) ALDINA DE CARVALHO SOARES,
ANDREYA ALCÂNTARA FERREIRA CHAVES, RIZA APARECIDA NERY,
AFRÂNIO JOSÉ FONSECA NARDY, ELISEU SILVA LEITE, SÉRGIO LUIZ
MAIA, JOSÉ ROBERTO POIANI, MARCOS PADULA e RICARDO
RODRIGUES LIMA, obrigado pelo carinho, companheirismo, dedicação e
apoio para que pudesse deixar registrada esta obra às nossas crianças e
adolescentes.
À Desembargadora Valéria Rodrigues Queiroz, a quem eu devo o maior
respeito. Pessoa inconfundível, dedicada à causa infantojuvenil, reconhecida
nacionalmente pelo seu trabalho, incansável, e que nos deu oportunidade
desde 2018 de estar com ela na Coordenadoria da Infância e Juventude do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais acreditando que poderíamos mudar,
ainda mais, as condições das nossas crianças e adolescentes e, com passos
largos, estamos vencendo desafios para atingir nossos objetivos em prol
deles.
À Escola Judicial Des. Edésio Fernandes, uma das instituições mais
importantes deste país, que vem nos dando oportunidade de contribuir
para a Magistratura Mineira com a qualificação dos magistrados do TJMG.
Ao Conselho Nacional de Justiça, que acreditou em nosso trabalho e
deu oportunidade de difundir nossa experiência em outros Estados.
À Editora JH Mizuno que, mais uma vez, acreditou no nosso trabalho.
Flávio Schmidt
PREFÁCIO
A Lei n. 13.431, de 04 de abril de 2017, estabelece o sistema de
garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de
violência, tendo por objetivo resguardá-los de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, abuso, crueldade e opressão.
Para que se combata a revitimização ou vitimização secundária, esta Lei
definiu as formas e os protocolos de ouvida de criança ou adolescente
acerca da situação de violência (artigo 4º, parágrafo 1º), por meio de escuta
especializada e depoimento especial.
Em que momento se dará a escuta especializada? Qual é o órgão
competente para realizar a escuta especializada, visto que ela só pode ser
feita uma única vez?
A quem compete realizar o depoimento especial? Trata-se de uma
medida cautelar de antecipação de provas? Quais são os protocolos que os
profissionais deverão utilizar?
Se a ouvida da criança ou do adolescente não for realizada dentro dos
protocolos específicos, em local apropriado e por profissional capacitado,
acarretará nulidade processual?
Verifica-se assim, que apesar de ter entrado em vigor no ano de 2018,
ou seja, há 2 anos, esta Lei vem causando ainda diversas discussões e
interpretações entre as instituições que compõe a Rede de Proteção(rede
de Assistência Psicossocial e Sistemas de Saúde e Educação, Conselho
Tutelar, Segurança Pública e de Justiça) e o Sistema de Justiça Juvenil, quais
sejam: Polícia Militar, Polícia Civil, Estado, Município, Conselho Tutelar,
Defensoria Pública, Ministério Público e Poder Judiciário, por ser uma lei
complexa, principalmente no que tange às competências, modo e
limitações de agir de cada uma dessas instituições.
A Justiça infanto-juvenil por ser interdisciplinar é complexa na
integração de ações únicas em prol das crianças e adolescentes em situação
de vulnerabilidade. Mas a nossa missão é única: a Proteção Integral dos
direitos das crianças e dos adolescentes que estão sob a tutela do Estado
brasileiro.
A implementação de um atendimento integrado evitará o processo de
revitimização da criança ou adolescente, que sempre acontece quando as
vítimas acabam relatando a violência que sofreram inúmeras vezes, em
diferentes serviços da rede de proteção. A revitimização ou vitimização
secundária, além de trazer muito sofrimento à vítima, retarda a ajuda que
precisa ser imediata e adequadas para crianças e adolescentes.
Nesse sentido, todo o sistema de proteção deve desenvolver políticas
integradas e coordenadas que visem garantir os direitos humanos da criança
e do adolescente e resguardá-los de toda forma de violência.
Esta obra inova pela abrangência de seu conteúdo, contribuindo com
um conjunto de subsídios para orientação dos profissionais que atuam na
promoção e na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, pois é
com a nossa correta atuação que iremos blindar essas crianças das várias e
repetidas agressões sofridas, acarretando traumas irreparáveis.
De forma técnica e ética define as competências e atribuições de cada
uma das instituições já citadas, demonstrando que o não- cumprimento
desta Lei, acarretará, em tese, crime de violência institucional, entendida
como a praticada por instituição pública ou conveniada,inclusive quando
gerar revitimização, previsto no inciso IV, do art. 4º, da Lei de Depoimento
Especial.
Esta publicação é fruto de uma vasta experiência profissional e
acadêmica na área da infância e da juventude desse competente e
comprometido autor, magistrado da Comarca de Muzambinho/MG,
Membro da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais e Instrutor desta matéria na Escola
Nacional da Magistratura-Enfam e na Escola Judicial Edésio Fernandes do
TJMG, sendo um dos pioneiros na implantação da Lei de Depoimento
Especial em sua Comarca em 2009.
Precisamos caminhar juntos em uma única direção, tendo como foco,
exclusivamente, a promoção da proteção e da defesa das crianças e dos
adolescentes. Para tanto, torna-se necessário que haja interdisciplinaridade
nos nossos pensamentos e nas nossas ações.
Desembargadora Valeria Rodrigues Queiroz
Superintendente da Coordenadoria da Infância e da Juventude
doTJMG
APRESENTAÇÃO
Era um sábado pela manhã de um dia ensolarado, pássaros cantando,
clima ameno em uma cidade na Zona da Mata das Minas Gerais, Raul
Soares, quando eu, juntamente com um dos grandes amigos que fiz naquela
maravilhosa cidade, Reinaldo de Almeida César, jogávamos uma partida de
tênis na AABB (Associação Atlética do Banco do Brasil). No decorrer desse
lazer vi ao fundo da quadra uma linda menina, cabelos longos, a qual usava
um vestido claro com saia ondulada, sentada no degrau da arquibancada.
Não a vi se aproximar, apenas observei em certo momento da partida que
ela estava sentada ao fundo da quadra, ao meu lado. Não falava nada, só
observava, até que em certo momento começou a correr atrás das bolas
de tênis e as entregava em minha mão ou as jogava para pegar. Eu agradecia
e ela me retribuía com um sorriso de uma criança encantadora.
Assim foi por longos minutos, até que não a vi mais.
Continuamos a partida e fiquei com aquele rosto na memória, ainda
durante o jogo, e ao final indaguei ao parceiro se a conhecia, tendo
respondido ele que não.
Acessando a área social do Clube perguntei às pessoas que lá se
encontravam se tinham visto aquela menina, mas ninguém a vira.
Queria falar com ela, agradecer e, quem sabe, oferecer a oportunidade
de ela jogar, um dia, tênis, o que não era comum naquela cidade, prova esta
que somente Reinaldo, seus filhos e eu jogávamos na cidade.
Os dias se passaram… Fiquei com aquela imagem na memória, inclusive
me indaguei algumas vezes: quem seria aquela menina? Será que queria me
dizer alguma coisa? Não obtive respostas!
No dia 18 de setembro de 2003, pela manhã, porém, uma notícia choca
aquela pacata cidade de pouco mais de 20.000 habitantes.
Uma mãe, sem qualquer motivo aparente, fazendo uso de uma faca,
desfere inúmeros golpes contra uma criança de seis anos, o que ocasionou
sua morte.
Inexplicável!
Uma surpresa me esperava: a vítima era aquela linda menina de cabelos
longos que usava um vestido claro com saia ondulada, a qual estava sentada
no degrau da arquibancada ao fundo da quadra de tênis e que me retribuía
com um sorriso de uma criança encantadora cada vez que lhe agradecia
pela bolinha entregue.
E não foi só! Descobri da pior maneira possível a identidade dela. Após
o fato, seu pai procurou-me para contar que ela teria dito a ele que me
conheceu um dia praticando esporte. Não soube dizer que tipo de esporte,
mas era na AABB, e queria dizer tantas coisas, mas não teve oportunidade.
Quem sabe seria um pedido de socorro, narrar ou denunciar fatos os
quais só uma criança ou adolescente vítima de violência tem conhecimento
em seu íntimo e pode descrever.
Confesso que me senti culpado. Indagava: “Meu Deus, por que não me
deu a oportunidade de ouvi-la? Por que não fez parar aquela partida e
escutá-la?” Quem sabe poderia ter evitado aquela tragédia! Nunca obtive
respostas.
Lembro que foi muito difícil redigir a sentença da mãe, que assim
resultou escrita:
“Distribuir Justiça, que nada mais é do que um ato de amor, e amor é fazer o que é preciso,
de acordo com as circunstâncias, o momento, o clamor, a dor de quem sofre.
O Livro dos Salmos (88, 11) nos ensina: ‘A Justiça é a obra do bom Juiz, a paz é a obra da
Justiça.’
Neste momento em que me despojo da veste comum dos mortais para vestir a toga e
proferir meu veredicto, sabedor e consciente da minha pequenez, olho para o céu e peço ao
Criador Maior que me prepare e me eduque para ver e sentir que essa troca de roupagem
não é uma simples troca comum do dia a dia, comum no final de uma tarde estafante de
trabalho.
Em verdade, toda vez que estou coberto da toga do Juiz, sinto uma aproximação maior de
Deus. Renovo em mim um compromisso assumido diante da sociedade, mas acima de tudo,
diante do meu Deus, fonte na qual confio e a minha vida a Ele entrego.
Gibran Khalil Gibran já dizia que nossos filhos não são nossos filhos, mas sim, ânsia da vida.
O Papa João XXIII, conhecido como bonachão, nos legou que gostaria de ter um coração de
criança porque as criancinhas não guardam mágoa nem rancor e que o seu reino é o céu.
E neste instante pergunto-me: ‘onde estão J. e J. V.?’
Outra resposta não pode ser – ao lado do Pai Maior, protegidos sob Seu Manto Sagrado.
Confesso que a sentença ora lançada muito me fez refletir, talvez por acreditar que a
condição do homem é vidente – viver ou morrer – e nesta antítese passamos por momentos
inexplicáveis, talvez como condição essencial e fundamental para provar a nós mesmos da
nossa importância nesta vida que não é eterna, mas sim passageira, eis que por certo outra
melhor virá.
Em especial em minha vida, hoje, muito mais que antes do dia 14 de junho do corrente ano,
data do nascimento da minha amada filha, esse coração que bomba em meu peito vê esse
julgamento com outros olhos, não de parcialidade, mas de sentimento, de amor, carinho,
afeto, dedicação, devoção…
Busco encontrar explicação, justificativa para o comportamento de A. M., e não da ré,
conforme é chamada no processo penal. Entretanto, de início tudo é vão. Mas continuo a
insistir e chegarei ao final do meu simples convencimento com uma justificativa para tal
comportamento.
Examinando os autos em todo o seu conteúdo, quer pelo interrogatório da ré, quer pelas
provas testemunhais, nada há para justificar.
A., após devolver sua filha a Deus, de forma anormal – matando-a –, não sabe explicar o que
aconteceu.
Entretanto, volto a indagar: ‘Até que ponto, meu Deus, uma mãe que sempre teve
comportamento calmo, tranquilo e equilibrado, exceto alguns fatos isolados em sua vida, que
nunca ultrapassaram os atos corretivos na criação de sua filha, é capaz de cometer ato tão
violento e deprimente?!’
Estou certo que cada profissional em sua área de atuação dará uma explicação. Entretanto,
mesmo não querendo acreditar, mas fazendo um mergulho profundo no mundo de A., sou
obrigado a crer que, além do exame de insanidade mental, dando-lhe como inimputável,
naquele fatídico dia estava ela apossada de espíritos malignos.
Revivendo a instrução processual como um filme fotográfico, vejo A., fria e distante de todos
e de tudo. Nem uma palavra, nem um gesto, e sequer lágrimas. Mais parecia um ser ausente
com um corpo presente.
As pessoas, por meio de comentários na cidade, disseram que a ré era frequentadora da
Igreja, exceto nos últimos dias, quando dormiu as noites no Cemitério da cidade.
E aí, outra indagação: ‘Até que ponto a fé chega ao fanatismo, e se chega, será porque o
Arquiteto do Universo dá tal permissão?’
A verdade é que não sei.
São mistérios que nos envolvem desde a criação do Mundo.
Contudo, de forma lógica, há que se concluir que tudo o que excede é prejudicial ao ser
humano.
Para o juiz criminal não basta avaliar um fato, o que já não é pouco. Incumbe-lhe penetrar no
mais íntimo da alma, resolver os profundos e obscuros caminhos da mente, por vezes não
apenas sombrios, mas tenebrosos. Importa ao juiz conhecer o temperamento, o caráter, as
emoções,as paixões e tudo aquilo que possa influir na inteligência e na vontade, e mesmo
assim não pode afirmar estar seguro de haver conhecido o homem.
Gordon W. Allport já dizia: ‘ninguém pode compreender qualquer outra pessoa, porque
nenhum ser humano participa diretamente dos motivos, pensamentos e sentimentos de
outra pessoa’.
Ao ser empossado, o juiz jura cumprir as leis e a Constituição, e é certo que tem diante de si
a Lei. Mas a dificuldade não termina aí. Ao contrário, aí é que ela começa: a Lei é igual para
todos, mas as condições pessoais exigem tratamento individualizado, que só o juiz, e somente
ele, poderá usar.
É cediço que é bom ter boas leis, mas melhor ainda é ter bons Juízes; a partir de agora, no
silêncio da meditação judicial, afundado em Deus, ecoam e ressoam clamores, mas farei uso
de uma visão penetrante a ponto de compreender que os comportamentos, as ações
humanas hão de encontrar, do outro lado, uma resposta a um juiz preocupado em continuar
a obra da criação do seu corpo, da sua alma, do seu mundo.
Sinto neste momento o perfume dos campos gaúchos, meu rincão, minha vida.
Estou sensível, capaz de ouvir uma música sem que seja tocada.
Estou e sou juiz, por isso farei Justiça.
Vou aos autos, tão somente para o exame de a insanidade mental buscar a conclusão que não
poderia ser outra, que A. era, ao tempo da ação, inteiramente incapaz de entender o caráter
ilícito do fato, sendo totalmente irresponsável pelos atos da vida civil, não tendo condições de
autodeterminar-se, nem reger sua pessoa, devendo ser enquadrada nas sanções do art. 26,
caput, do Código Penal.
Outro não foi o entendimento do parquet e da defesa.
Firmo meu convencimento de que A. M. é inimputável e, destarte, está isenta de pena.”
Não muito distante, agora já em Muzambinho, Sul das Minas Gerais, em
2009, prestes a dar início às oitivas das testemunhas e vítimas de um crime
contra os costumes, ingressa na sala de audiência uma menina, pouco mais
de quatro anos, vítima do pior crime contra uma mulher: o estupro.
Perplexo, vi entrar, de mãos dadas com sua mãe, cabisbaixa, aquela
menina sem qualquer reação, apenas caminhando em direção à cadeira que
lhe esperava.
Confesso que já havia nesses anos todos de Magistratura ouvido
inúmeras crianças e adolescentes, nunca com aquela tenra idade, e muito
menos vítima de um crime tão bárbaro.
No método tradicional de oitiva de vítimas não tinha nem como dar
início aos trabalhos, porque não vinham as palavras certas… foi então que
resolvi conversar com ela e perguntar-lhe de sua escola, suas brincadeiras,
seu brinquedo preferido, o que gostava de comer etc. Todos que ali
estavam – Promotora, Advogado de Defesa, Escrevente e a própria mãe –
observavam a dificuldade de ouvi-la.
Não havendo outro meio dei início ao método tradicional de oitiva das
vítimas e disse-lhe que iria ler para ela o que ela havia dito à Polícia sobre os
fatos e, ao final, se tudo aquilo fosse verdade, bastava ela confirmar com
um simples gesto, ainda que fosse com a cabeça, tudo para evitar
constrangimento.
Ao dar início a essa leitura, pela gravidade dos fatos, parei!
Disse a todos que estavam presentes: Não, isso é um absurdo!
Não vou revitimizar essa criança. Não posso, não devo, não é justo com
esse pequeno ser, depois de tanto sofrimento diante de pessoas estranhas e
nesse ambiente hostil, reviver tudo o que sentiu. Desculpem-me, mas a
audiência está encerrada e a partir de hoje, seguindo meu colega gaúcho,
hoje Des. Daltoé, Muzambinho passará a aplicar o “Depoimento Sem Dano”
em defesa desses anjos, vítimas vulneráveis de um convívio de uma
Sociedade que não é capaz de conter o avanço de crimes contra as crianças
e adolescentes.
A partir daquela data nunca mais nenhuma criança e adolescente
reviveu seus horrores.
Como no Rio Grande do Sul em 2003, aqui não tínhamos nenhum
método e estrutura para realizar essa oitiva, mas contamos com a
compreensão do Ministério Público, representado na época pela
Promotora Gisela Stela Martins Araújo, e a Defesa, representada pelo Dr.
Marco Antônio Ângelo. Com o apoio da Assistente Social do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais, Elisandra Mirian Médici, partimos atrás de uma
psicóloga que fosse capaz de ouvir aquela menina e, não muito tempo
depois, encontramos a Dra. Viviane Cristina da Silva, que nunca tinha
ouvido falar nesse método, mas em poucas palavras aceitou o desafio de
ouvir aquela vítima.
Era chegada a hora de achar um local, ver os equipamentos… tudo
aquilo era muito novo e tínhamos urgência, porque o réu estava preso.
Não tivemos alternativa senão comprar do próprio bolso o gravador e
contar com o apoio da Secretaria de Assistência Social do Município para
ceder o prédio do CRAS e lá adaptar a sala para sua oitiva.
Lembro-me que improvisamos uma caixa de som que ficava do lado de
fora da sala onde estavam o Advogado, a Promotora, Assistente Social e eu,
ligada por um fio ao microfone dentro do local onde estavam a infante e a
psicóloga.
Tudo era armazenado naquele gravador amador que ficou sobre a caixa
de som.
Ao término daquele árduo trabalho, mas recompensador pela ausência
de revitimização da infante, contamos com o Instituto de Criminalística do
Estado de Minas Gerais para fazer a transcrição de todo o diálogo, que foi
introduzido nos autos como prova da oitiva.
Devemos reconhecer ainda que nada disso seria possível se o Tribunal
de Justiça de Minas Gerais não acolhesse esse método, ainda que
improvisado, mas pioneiro no Estado e sem qualquer normatização à
época, que, infelizmente, até o advento da Lei do Depoimento Especial,
assim continuou, embora já tivesse recomendação do Conselho Nacional
de Justiça (n. 33).
Esses relatos refletem, entre tantos casos nesse país afora, a violência
silenciosa nos lares brasileiros.
A Lei 13.431/17 tem por objetivo criar mecanismos legais para evitar
essas tragédias, no caso da oitiva qualificada, ou não revitimizar as crianças
e adolescentes quando já vítimas ou testemunhas de violência, no caso do
depoimento especial.
Esperamos que esse novo ordenamento jurídico, aplicado de acordo
com suas regras e métodos, venha auxiliar não só o Poder Judiciário dentro
de sua completa estrutura, mas aqueles que tenham conhecimentos de
fatos vinculados à violência contra crianças e adolescentes.
Afinal, quem agradece são nossas crianças e adolescentes, que por anos
foram vítimas silenciosas.
O autor
INTRODUÇÃO
Tudo começou lá em 2003, com o então Juiz da Vara da Infância e
Juventude de Porto Alegre, hoje Des. José Antônio Daltoé Cezar.
O início da prática retratada pelo criador do Depoimento Especial está
transcrito por ele próprio no item 2.1 dos comentários do art. 1.º da Lei
13.431/2017.
Essa escuta de infantes nos processos judiciais gerou debates entre os
campos jurídicos e da saúde, levando a Câmara dos Deputados a propor o
Projeto n. 35/2007, de iniciativa da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
da Exploração Sexual, que previa acrescer a Seção VIII ao Capítulo III - Dos
Procedimentos - do Título VI - Do Acesso à Justiça - da Parte Especial da
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e Adolescente,
dispondo sobre a forma de inquirição de testemunhas e produção
antecipada de prova quando se tratar de delitos tipificados no Capítulo I do
Título VI do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código
Penal, com vítima ou testemunha criança ou adolescente, e acrescentava o
art. 469-A ao Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de
Processo Penal.
O projeto tramitou de 12 de junho de 2007 a 10 de novembro de 2010,
quando a matéria ficou prejudicada em virtude da aprovação de
Substitutivo ao PLS 156/2009, remetendo a Câmara ao arquivo.
Os ideais normativos de todos os envolvidos voltaram à estaca zero.
O Conselho Nacional de Justiça, em 25/11/20101, assume então esse
papel ao nortear essa prática, por meio da Recomendação n. 33, de
23/11/2010, donde recomendouaos tribunais a criação de serviços
especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou
testemunhas de violência nos processos judiciais (Depoimento Especial).
Em 01/12/2015, contudo, os deputados federais MARIA DO ROSÁRIO
(PT-RS), ELIZIANE GAMA (REDE-MA), JOSI NUNES (PMDB-TO), ZÉ
CARLOS (PT-MA), MARGARIDA SALOMÃO (PT-MG), TADEU ALENCAR
(PSB-PE), ADELMO CARNEIRO LEÃO (PT-MG), MAINHA (SD-PI),
MARIA HELENA (PT-PB) e DARCÍSIO PERONDI (PMDB-RS)
apresentaram o PL 3.792/2015, que pretendia estabelecer o sistema de
garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de
violência.
Na justificativa do PL citava-se que o Brasil tem se ressentido da falta de
legislação que proteja os direitos de crianças e adolescentes expostos ao
sistema de justiça, seja como vítimas ou como testemunhas de violência
física, psicológica, sexual e institucional. Frequentemente o que se vê é a
falta de consideração quanto à condição de pessoas em desenvolvimento, o
que resulta em violência institucional, que se dá nas interações de crianças e
adolescentes com os órgãos educacionais, de atenção e de proteção
especial, assim como órgãos de segurança e justiça institucional. Crianças e
adolescentes são expostos à vitimização secundária, produzida pela
ineficiência no trato da questão, e à vitimização repetida, quando ocorre
mais de um incidente delitivo, ou ação ineficiente do Estado, ao largo de
um período determinado. A criança e o adolescente pagam, portanto, um
alto preço por entrarem em contato com o universo da violência, como
vítimas ou testemunhas.
Com essa preocupação, os deputados fizeram contato com
magistrados, promotores de justiça, advogados e demais especialistas em
direito e justiça da infância e adolescência para construir uma proposição
legislativa que contemplasse as recomendações baseadas em normativas
internacionais e na prática de tomada de depoimentos especiais em
distintos países.
O Grupo de Trabalho sobre o Marco Normativo da Escuta de Crianças
e Adolescentes teve em sua composição renomados peritos na questão:
André Felipe Gomma de Azevedo, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do
Estado da Bahia - TJBA, Juiz-auxiliar da Presidência do Conselho Nacional
de Justiça - CNJ, membro do Comitê Gestor Nacional da Conciliação e do
Grupo de Trabalho sobre Justiça Restaurativa; Beatriz Cruz da Silva,
Coordenadora-Geral de Ações de Prevenção em Segurança Pública e
Secretaria Nacional de Segurança Pública - Senasp, Ministério da Justiça –
MJ; Benedito Rodrigues dos Santos, Antropólogo, Professor no Programa
de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Católica de Brasília –
UCB – e Pesquisador associado do International Institute for Child Rights and
Development - IICRD, Universidade de Victoria, Canadá; Casimira Benge,
Coordenadora do Programa de Proteção à Criança, Fundo das Nações
Unidas para a Infância – UNICEF; Daniel Issler, Juiz de Direito Titular da
Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Guarulhos, Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo – TJSP – e Coordenador do Setor de
Mediação de Guarulhos; Eduardo Rezende Melo, Juiz de Direito Titular da
Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul,
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP – e Diretor da Associação
Internacional de Juízes e Magistrados da Juventude e Família – AIMJF;
Fabiana Gorenstein, Oficial de Proteção da Criança, Fundo das Nações
Unidas para a Infância – UNICEF; Heloiza de Almeida Prado Botelho Egas,
Coordenadora-Geral de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças
e Adolescentes, Secretaria Nacional de Direitos Humanos - SDH,
Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos –
MMIRDH; Itamar Batista Gonçalves, Gerente de Advocacy da Childhood
Brasil, membro da coordenação de pesquisa sobre inquirição de crianças e
adolescentes em processos judiciais; Ivanilda Figueiredo, Professora da
Faculdade de Direito do Centro de Ensino Unificado de Brasília –
UNICEUB, Doutora em Direito (PUC-Rio), Relatora de Direitos Humanos
e Estado Laico da Plataforma de Direitos Humanos - Dhesca Brasil; João
Batista Saraiva, Advogado e consultor na área de direitos de criança e
adolescente, Juiz aposentado da Infância e Juventude do Estado do Rio
Grande do Sul; José Antônio Daltoé Cezar, Desembargador do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS, Especialista em Direitos da Infância e
da Juventude, Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio
Grande do Sul - FMP/RS; Luiziana Souto Schaefer, Psicóloga (PUCRS),
Doutora em Psicologia (PUCRS), Especialista em Psicologia Jurídica,
Especialista em Psicologia Clínica, Perita Criminal/Psicóloga do Instituto-
Geral de Perícias do Rio Grande do Sul (IGP-RS) e Pesquisadora do Núcleo
de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse (NEPTE) da PUCRS; Robson
Rui Campos de Almeida, Delegado Adjunto da Delegacia Especial de
Proteção à Criança e ao Adolescente – DPCA, Polícia Civil do Distrito
Federal – PCDF; e Thiago André Pierobom de Ávila, Promotor de Justiça
Coordenador dos Núcleos de Direitos Humanos do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios – MPDFT, Promotor Chefe do Núcleo de
Enfrentamento à Violência e à Exploração Sexual contra a Criança e o
Adolescente – NEVESCA.
O clamor final do projeto de lei seria que, de fato, teria importância
essencial para o aprimoramento do sistema jurídico brasileiro e para a
conformidade da legislação doméstica aos acordos internacionais de
proteção dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes.
A Câmara dos Deputados aprovou, em 21 de fevereiro de 2017, o PL
e, em 07/03/2017, remeteu ao Senado Federal para apreciação2, onde
recebeu o n. 21/2017 (PLC3), sendo aprovado em 29 de março de 2017,
transformando-se a seguir na Lei Ordinária n. 13.431/2017.
Esse trâmite célere na reta final, contudo, teve um objetivo.
O muzambinhense IZAÍAS FARIA DE ABREU, que é servidor público
do Senado Federal e na oportunidade estava assessorando o então
Presidente do TSE Ministro Gilmar Mendes, após um breve contato pela
modernidade das redes sociais, nos confidenciou que, nos bastidores do
Congresso Nacional e Palácio do Planalto, o objetivo era aprovar o PLC e
sancionar a lei até o dia em que a Rainha da Suécia, Silvia Renate
Sommerlath, que é brasileira4, participasse do Fórum Global da Criança na
América Latina5, aderindo assim o Brasil à rede de proteção mundial da
Criança e Adolescente, além de ser um presente à Sua Majestade, que é
fundadora da Instituição Childhood Brasil6.
De fato, a sanção da Lei ocorreu durante a abertura, no dia 04 de abril
de 2017, do Global Child Forum, na Fiesp, em São Paulo, com a participação
do Rei Carlos XVI Gustavo e da Rainha Silvia, da Suécia.
Esse fato ficou marcado porque, nessa mesma época, estávamos no Rio
Grande do Sul para conhecer a estrutura do Tribunal de Justiça daquele
estado na colheita do Depoimento Especial em nome do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais, presidido à época pelo nosso amigo e saudoso Des.
Herbert Carneiro, e quem nos recepcionava era a Assistente Social do TJRS
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Marleci V. Hoffmeister, uma sumidade no assunto, e o Des. Daltoé,
momento em que juntos pudemos comemorar essa grande vitória da
proteção à infância e adolescência.
A novel lei veio normatizar mecanismos para prevenir a violência contra
crianças e adolescentes, assim como estabelece medidas de proteção e
procedimentos para tomada de depoimentos de vítimas e testemunhas de
violência.
O texto altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
8.069/1990)7, prevendo dois procedimentos possíveis para ouvir as crianças
ou adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
O primeiro procedimento é a escuta especializada, que deve ser
realizada perante órgão da rede de proteção e limitado estritamente ao
necessário para o cumprimento de sua atribuição.
O segundo é o depoimento especial, quando a criança é ouvida perante
a autoridadejudicial ou policial. Esse depoimento será intermediado por
profissionais especializados que esclarecerão à criança os seus direitos e
como será conduzida a entrevista, que será gravada em vídeo e áudio, com
preservação da intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha.
A lei ainda define direitos e garantias e estabelece a integração das
políticas de atendimento, definindo, ainda, um novo tipo penal, o que será
examinado artigo por artigo nesse trabalho, além de fornecer ao leitor um
vasto material para consultar como meio de integrar a norma em análise.
Data da publicação da Recomendação n. 33 no DJ-e n. 215/2015.
Nos termos do caput do art. 65 da Constituição Federal combinado com o art. 134 do
Regimento das Casas Legislativas.
Projeto de Lei da Câmara
Ela é filha do empresário alemão Walther Sommerlath e da brasileira Alice Soares de Toledo.
Global Child Forum (Um fórum para identificar oportunidades de negócios para investir nas
crianças e contribuir para alcançarmos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável na
América do Sul).
Criado em 1999 pela Rainha Silvia da Suécia com o objetivo de proteger a infância e garantir que
as crianças sejam crianças. A Childhood Brasil é uma organização brasileira que faz parte da
World Childhood Foundation (Childhood), instituição internacional que conta com mais três
escritórios: EUA, Alemanha e Suécia.
Art. 25, que acresceu o inciso IX ao art. 208 do ECA; e o art. 28 revogou o art. 248 do ECA.
Sumário
Art. 1º
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – História do Depoimento Especial
2.1 – Início da Prática
2.2 – Pioneirismo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em Reconhecer
a Prática do Depoimento sem Dano
2.3 – Obstinações dos Conselhos Federal de Serviço Social e de Psicologia
2.4 – Instituto Childhood: Protocolo de Entrevista Forense do NCAC (National
Children´s Advocacy Center)
2.5 – Conselho Nacional de Justiça (CNJ): Reconhecimento.
2.6 – Projetos Legislativos
3 – Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou
Testemunha de Violência
4 – Princípio da Prioridade Absoluta
5 – Direitos Humanos das Crianças e dos Adolescentes
6 – Resolução Nº 20/2005 do Conselho EConômico e Social das Nações Unidas e
Outros Diplomas Internacionais
7 – Proteção dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes no Brasil
8 – Medidas de Assistência e Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de
Violência
Art. 2º
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Descrições de uma História sem Direitos
2 – A Criança e o Adolescente como Sujeitos de Direitos Fundamentais
3 – Direitos Fundamentais Inerentes à Pessoa Humana
4 – Aplicação dos Direitos Fundamentais
5 – Atendimento pelo Poder Público
Art. 3º
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Aplicação e Interpretação da Lei do Depoimento Especial
2 – Fins Sociais da Norma
3 – Aplicação na Área Civil
4 – Condições Peculiares da Criança e do Adolescente em Desenvolvimento
5 – Garantias Asseguradas pelo Estado, Família e Sociedade
5.1. – Garantias Asseguradas pelo Estado
5.2. – Garantias Asseguradas pela Família
5.3. – Garantias Asseguradas pela Sociedade
6 – Aplicação Facultativa
Art. 4º
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Formas de Violência
2.1 – Violência Física
2.1.1 – Lei da Palmada
2.2 – Violência Psicológica
2.2.1 – No Meio Social
2.2.1.1 – Discriminação
2.2.1.2 – Depreciação ou Desrespeito
2.2.1.3 – Meios de Discriminação, Depreciação ou Desrespeito
2.2.1.3.1 – Ameaça
2.2.1.3.2 – Constrangimento
2.2.1.3.3 – Humilhação
2.2.1.3.4 – Manipulação
2.2.1.3.5 – Isolamento
2.2.1.3.6 – Agressão Verbal e Xingamento
2.2.1.3.7 – Ridicularização
2.2.1.3.8 – Indiferença
2.2.1.3.9 – Exploração
2.2.1.3.10 – Intimidação Sistemática (bullying)
2.2.1.3.11 – Comprometimento do Desenvolvimento Psíquico ou
Emocional da Criança ou do Adolescente
2.2.2 – Na Relação Familiar
2.2.2.1 – Alienação Parental como Violência Psicológica
2.2.2.2 – Alienação Parental e as Falsas Acusações de Abuso Sexual
2.2.3 – Como Conduta Criminosa
2.3 – Violência Sexual
2.3.1 – Definição de Violência Sexual
2.3.2 – Violência Sexual pelo Abuso Sexual (art. 4.º, III, alínea a)
2.3.2.1 – Incesto
2.3.3 – Violência Sexual pela Exploração Sexual Comercial (art. 4.º, III,
alínea b)
2.3.4 – Violência Sexual pelo Tráfico de Pessoas com o Fim de Exploração
Sexual (art. 4.º, III, alínea c)
2.3.5 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual Contra Criança e
Adolescente
2.3.5.1 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual em Espécie
2.3.5.1.1 – Do Estupro de Pessoas Menores de 18 Anos ou
Maiores de 14 Anos
2.3.5.1.2 – Estupro de Vulnerável
2.3.5.1.3 – Do Uso de Menor Vulnerável para Servir à Lascívia de
Outrem
2.3.5.1.4 – Da Satisfação de Lascívia Mediante Presença de
Criança ou Adolescente
2.3.5.1.5 – Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma de
Exploração Sexual de Vulnerável
2.3.5.1.6 – Uso de Menor Relativamente Vulnerável para Servir à
Lascívia de Outrem
2.3.5.1.7 – Rufianismo de Menor
2.3.5.1.8 – Do Assédio Sexual do Menor
2.3.5.2 – Da Infiltração de Agentes de Polícia para Investigação de
Crimes Contra a Dignidade Sexual de Criança e Adolescente
2.3.5.3 – O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Proteção Contra
a Pornografia e o Aliciamento Infantojuvenil
2.3.5.4 – Pedofilia, Hebefilia e Pederastia
2.4 – Violência Institucional
3 – Meio de Escuta Forense
3.1 – Introdução
3.2 – Escuta Especializada
3.3 – Depoimento Especial
4 – Revelação Espontânea da Violência à Rede de Proteção e Afins
5 – Revelação Espontânea da Violência em Casos de Intervenção de Saúde
6 – Exigência do Cumprimento da Lei (Sanções)
6.1 – Introdução
6.2 – Tipificação de Crimes
6.3 – A Tipificação de Infrações Administrativas
6.3.1 – Introdução
6.3.2 – Infrações Administrativas Específicas Aplicadas à Lei do
Depoimento Especial
6.4 – A Aplicação de Medidas Pertinentes aos Pais ou Responsáveis
6.5 – A Aplicação de Penalidades aos Encarregados de Cuidado, Às Entidades
de Atendimento Responsáveis pela Execução de Programas
Socioeducativos e de Proteção
6.6 – A Aplicação de Medidas às Entidades de Atendimento que Descumprirem
as Obrigações do Programa de Internação
6.7 – Sanções ao Poder Público
Art. 5º
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Da Aplicação da Norma
3 – Princípios Nacionais e Internacionais de Proteção à Criança e ao Adolescente
3.1 – Princípios Internacionais de Proteção à Criança e ao Adolescente
3.2 – Princípios Nacionais de Proteção à Criança e ao Adolescente
4 – Estrutura dos Direitos e Garantias Fundamentais da Criança e do Adolescente
4.1 – Receber Prioridade Absoluta e Ter Considerada a Condição Peculiar de
Pessoa em Desenvolvimento
4.2 – Receber Tratamento Digno e Abrangente
4.3 – Ter a Intimidade e as Condições Pessoais Protegidas Quando Vítima ou
Testemunha de Violência
4.4 – Ser Protegida Contra Qualquer Tipo de Discriminação,
Independentemente de Classe, Sexo, Raça, Etnia, Renda, Cultura, Nível
Educacional, Idade, Religião, Racionalidade, Procedência Regional,
Regularidade Migratória, Deficiência ou Qualquer Outra Condição Sua, de
Seus Pais ou de Seus Representantes Legais
4.5 – Receber Informação Adequada à sua Etapa de Desenvolvimento sobre
Direitos, inclusive Sociais, Serviços Disponíveis, Representação Jurídica,
Medidas de Proteção, Reparação de Danos e Qualquer Procedimento a
que seja Submetido
4.5.1 – Informação sobre os Direitos da Escuta Protegida (Escuta
Especializada e Depoimento Especial)
4.5.2 – Informação Sobre os Direitos Sociais
4.5.3 – Serviços Disponíveis em Decorrência da Escuta Protegida
4.5.4 – Representação Jurídica à Vítima ou Testemunha
4.5.5 – Medidas de Proteção à Vítima ou Testemunha
4.5.6 – Reparação de Danos
4.5.7 – Procedimentos da Escuta Protegida que Serão Submetidas as
Vítimas e Testemunhas
4.6 – Ser Ouvido e Expressar Seus Desejos e Opiniões, Assim como
Permanecer em Silêncio4.7 – Receber Assistência Qualificada Jurídica e Psicossocial Especializada,
que Facilite sua Participação e o Resguarde Contra Comportamento
Inadequado Adotado pelos Demais Órgãos Atuantes no Processo
4.8 – Ser Resguardado e Protegido de Sofrimento, com Direito a Apoio,
Planejamento de Sua Participação, Prioridade na Tramitação do
Processo, Celeridade Processual, Idoneidade do Atendimento e Limitação
das Intervenções
4.9 – Ser Ouvido em Horário que lhe for mais Adequado e Conveniente,
Sempre que Possível
4.10 – Ter Segurança, com Avaliação Contínua Sobre Possibilidade de
Intimidação, Ameaça e Outras Formas de Violência
4.11 – Ser Assistido por Profissional Capacitado e Conhecer os Profissionais
que Participam dos Procedimentos de Escuta Especializada e
Depoimento Especial
4.12 – Ser Reparado Quando Seus Direitos Forem Violados
4.13 – Conviver em Família e em Comunidade
4.14 – Ter as Informações Prestadas Tratadas Confidencialmente, Sendo
Vedada a Utilização ou o Repasse a Terceiros das Declarações Feitas
pela Criança e pelo Adolescente Vítima, Salvo para os Fins de
Assistência à Saúde e de Persecução Penal
4.14.1 – Questões Procedimentais e Processuais Vinculadas ao Sigilo da
Escuta Protegida
4.14.1.1 – Informações Internas na Serventia do Juízo ou Cartório da
Delegacia de Polícia
4.14.1.2 – Necessidade do Transporte dos Autos ou Depoimento
Especial para Fora do Poder Judiciário ou Autoridade Judiciária
4.14.1.3 – Acesso do Advogado Constituído ou Nomeado Dativo,
Defensoria Pública e o Assistente da Acusação às Informações
Decorrentes do Depoimento Especial
4.14.1.4 – Não Aplicabilidade da Súmula Vinculante 14 do STF nos
Procedimentos de Natureza Cível
4.14.1.5 – Decretação do Sigilo ou Segredo de Justiça em IP em que
há Depoimento Especial
4.14.1.6 – Acesso de Informações por Terceiros ou Advogado sem
Procuração
4.14.1.7 – Acesso ao Depoimento Especial de Testemunha ou Vítima
Protegida (Lei n. 9.807/99)
4.14.1.8 – Acesso ao Depoimento Especial de Testemunha ou Vítima
de em Processo de Natureza Cível
4.14.1.9 – Acesso ao Depoimento Especial como Prova Emprestada
4.15 – Prestar Declarações em Formato Adaptado à Criança e ao Adolescente
com Deficiência ou em Idioma Diverso do Português
4.15.1 – Crianças e Adolescentes com Deficiência
4.15.2 – Crianças e Adolescentes Estrangeiros
5 – Planejamento da Participação da Criança e do Adolescente no Depoimento
Especial pelos Profissionais e o Juízo
Art. 6º
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Natureza Jurídica das Medidas Protetivas
3 – Competência para Analisar o Pedido das Medidas Protetivas
4 – Representação e Legitimidade para Requerer as Medidas Protetivas
5 – Pressupostos para Concessão das Medidas Protetivas
6 – Momento da Concessão das Medidas Protetivas
7 – Validade e Eficácia das Medidas Protetivas
8 – Recurso
9 – Consequências pelo Descumprimento das Medidas Protetivas
10 – Aplicação Subsidiária ou Supletiva da Lei Maria da Penha, Estatuto da
Criança e do Adolescente e Outras Normas Conexas
Art. 7º
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Escuta Especializada: Definição Legal
3 – Quem Realiza a Escuta Especializada
4 – Finalidade
5 – Procedimento
6 – Valoração da Escuta Especializada
7 – Reveleção Espontânia da Violência
8 – Questões Processuais
8.1 – Ausência de Contraditório e da Ampla Defesa na Escuta Especializada
como Meio de Prova
8. 2 – Escuta Especializada Aplicada ao Ato Infracional: Oitiva Informal pelo
MP (ECA, art. 179)
8.3 – Revelação Espontânea pela Criança e Adolescente e a Recusa da
Escuta Especializada
8.4 – Substituição do Depoimento Especial pela Escuta Especializada:
Possibilidade
8.5 – Escuta Especializada pelo Conselho Tutelar: Atribuições
Art. 8º
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Teoria Geral da Prova
2.1 – Introdução
2.2 – Noção e Conceito de Prova
2.3 – Classificação da Prova
2.4 – Objeto da Prova
2.5 – Finalidade da Prova
2.6 – Direito à Prova
2.7 – Meios de Provas
2.8 – Fases da Prova
2.8.1 – Proposição
2.8.2 – Admissão
2.8.3 – Produção
2.8.4 – Valoração
2.9 – Natureza Jurídica das Leis Relativas à Prova
2.10 – Direito Intertemporal das Leis Relativas à Prova (Retroatividade,
Aplicação Imediata e Irretroatividade)
2.11 – Princípio da Territorialidade e Prova dos Fatos Ocorridos no Exterior
2.12 – Renúncia da Prova
2.13 – Hierarquia das Provas
2.14 – Sentença e a Prova (Silogismo)
2.15 – Autodefesa
2.16 – Abuso do Direito de Defesa
3 – Depoimento Especial: Definição Legal
4 – Depoimento Especial Perante Autoridade Policial
4.1 – Prisão em Flagrante e o Depoimento Especial
4.2 – Vedação do Depoimento Especial pela Autoridade Policial
4.3 – Vício Sanável pela Ação Penal e a Palavra da Vítima nos Crimes Contra
a Dignidade Sexual
5 – Depoimento Especial Perante Ministério Público
6 – Depoimento Especial Perante Autoridade Judiciária
6.1 – Depoimento Especial na Área Cível
6.1.1 – Depoimento Especial e a Alienação Parental
6.1.2 – Nas Ações de Família
6.2 – Depoimento Especial no Juizado Especial
6.3 – No Processo de Júri
6.4 – Depoimento Especial em Fase Recursal
6.5 – Depoimento Especial na Competência Originária
7 – Depoimento Especial Perante Autoridade Administrativa
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
Art. 9º
1 – Introdução
2 – Procedimento para Evitar Contato com Suposto Autor ou Acusado, ou Outra
Pessoa que Representa Ameaça, Coação ou Constrangimento
3 – Garantia à Ampla Defesa na Hipótese do Afastamento do Imputado da Sala de
Audiência
4 – Adiamento do Depoimento Especial por Restrição à Liberdade de Declarar os
Fatos
5 – Medida Protetiva em Face das Pessoas que Representam Ameaça, Coação ou
Constrangimento
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
Art. 10
1 – Introdução
2 – Local Apropriado e Acolhedor
3 – Infraestrutura
4 – Espaço Físico
5 – Privacidade da Criança ou Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência
6 – Material e Mobiliário da Sala de Escuta
7 – Ausência de Sala Especial
Art. 11
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Protocolos
2.1 – American Professional Sciety On The Abuse Children (APSAC)
2.2 – Entrevista Cognitiva (EC)
2.3 – Protocolo National Institute Of Child Health And Human Development
(NICHD)
2.4 – Protocolo RATAC
2.5 – Protocolo National Children’s Advocacy Center (NCAC).
3 – Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF)
3.1 – Introdução
3.2 – Entrevista Forense Utilizada no Contexto das Audiências de Tomada de
Depoimento Especial
3.3 – Estrutura do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF)
3.3.1 – Estágio 1: Construção do Vínculo
3.3.1.1 – Introdução
3.3.1.2 – Construção da Empatia
3.3.1.3 – Regras Básicas/Diretrizes
3.3.1.3 – Diretriz: verdade e realidade
3.3.1.3 – Diretriz: corrija-me
3.3.1.3 – Diretriz: não “chute” ou “não invente”
3.3.1.3 – Diretriz: não entendo
3.3.1.4 – Prática Narrativa
3.3.1.5 – Diálogo Sobre a Família
3.3.2 – Estágio 2: Parte Substantiva
3.3.2.1 – Transição
3.3.2.2 – Descrição Narrativa
3.3.2.3 – Seguimento e Detalhamento
3.3.2.4 – Interação com a Sala de Audiência ou Sala de Observação
3.3.2.5 – Estratégia de Transformação de Perguntas da Sala de
Audiência
3.3.2.6 – Fechamento
4 – Protocolo de Entrevista Forense (Versão Esquemático-Operativa)
5 – Protocolo a ser Aplicado pela Rede de Proteção
6 – Um Único Depoimento Especial
7 – Cautelar de Antecipação de Prova
7.1 – Introdução
7.2 – Legitimidade de Partes
7.3 – Hipóteses Obrigatórias
7.4 – Interesse Processual
7.5 – Competência
7.6 – Rito
7.7 – Decisão: Efeitos 298
7.8 – Destino dos Autos
7.9 – Juiz de Garantias
8 – Garantia à Ampla Defesa do Investigado
9 – Novo Depoimento Especial: Imprescindibilidade e Anuência da Vítima ou seu
Representante Legal
10 – Questões Processuais
10.1 – Ausência de Autoria
10.2 – Conflito de Interesses Entre a Criança ou Adolescente e o
Representante Legal
10.3 – Ausênciade Intimação do Advogado Constituído: Nulidade Relativa 302
10.4 – Réu Citado por Edital
10.5 – Dispensa do Depoimento Especial
Art. 12
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Esclarecimentos Preliminares, Informações de Direitos e os Procedimentos
a Serem Adotados, com o Planejamento da Participação da Criança ou
Adolescente
2.1 – Vedada Leitura da Denúncia ou de Outras Peças Processuais
2.2 – Reconhecimento Pessoal ou Fotográfico no Depoimento Especial do
Suspeito ou Investigado pela Criança ou Adolescente Vítima ou
Testemunha.
3 – Livre Narrativa e Intervenção Necessária por Meios Técnicos para Elucidação
dos Fatos
3.1 – Introdução
4 – Transmissão em Tempo Real e Preservação do Sigilo do Depoimento Especial
5 – Avaliação de Perguntas Complementares
6 – Perguntas Adaptadas à Linguagem da Compreensão da Criança ou do
Adolescente
7 – Gravação do Depoimento Especial em Mídia
8 – Direito de Prestar Depoimento Especial Diretamente ao Magistrado
9 – Preservação da Intimidade e da Privacidade da Vítima ou Testemunha
10 – Ausência do Suspeito ou Investigado Durante o Depoimento Especial
11 – Medidas de Proteção Específicas Sobre o Depoimento Especial
12 – Preservação e Segurança da Mídia Relativa ao Depoimento Especial
13 – Depoimento Especial em Segredo de Justiça
14 – Questões Processuais
14.1 – Compromisso de Dizer a Verdade e o Depoimento Especial
14.2 – Testemunha com Vínculo de Parentesco
14.3 – Condução Coercitiva de Testemunha
14.4 – O Sistema do Cross-Examination e o Depoimento Especial
Art. 13
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Notificação Compulsória
3 – A Relevância Penal da Omissão Descrita na Norma
4 – Notificação Compulsória de Doenças, Agravos e Eventos de Saúde Pública nos
Serviços de Saúde Públicos e Privados
5 – Atos de Violência na Rede Escolar
6 – Violência em Programa de Acolhimento Institucional ou Familiar, em Unidade
de Internação ou Semiliberdade do Sistema Socioeducativo
7 – Conscientização da Sociedade
Art. 14
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Sistemas de Justiça, Segurança Pública, Assistência Social, Educação e Saúde
3 – Ações Articuladas, Coordenadas e Efetivas para Acolhimento e Atendimento
Integral à Vítima de Violência
4 – Diretrizes das Ações
4.1 – Abrangência e Integralidade: Avaliação e Atenção Às Necessidades
Decorrentes da Violência
4.2 – Capacitação Interdisciplinar Continuada
4.3 – Mecanismos de Informações
4.4 – Planejamento Coordenado do Atendimento e do Acompanhamento
4.5 – Celeridade do Atendimento
4.6 – Prioridade do Atendimento
4.7 – Intervenção Mínima dos Profissionais
4.8 – Monitoramento e Avaliação das Políticas de Atendimento
5 – Casos de Violência Sexual: Urgência e Celeridade no Atendimento de Saúde e
Produção Probatória (Confidencialidade)
Art. 15
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Denúncia Espontânea
3 – Encaminhamento da Denúncia Espontânea
3.1 – À Autoridade Policial para Apuração de Notitia Criminis 344
3.2 – Ao Conselho Tutelar para Aplicação de Medidas de Proteção
3.3 – Ao Ministério Público para Agir de Acordo com suas Atribuições
4 – Denunciação Caluniosa e Comunicação Falsa de Crime de Contravenção
Art. 16
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Programas, Serviços ou Equipamentos
3 – Finalidade: Atenção, Atendimento Integral e Interinstitucional
4 – Composição por Equipes Multidisciplinares Especializadas
5 – Integração de Serviços
Art. 17
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Serviços de Saúde para Atenção Integral à Criança e ao Adolescnete em
Situação de Violência
3 – Finalidade: Atendimento Acolhedor
Art. 18
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Violência que Deixa Vestígio
2 – Perícia
Art. 19
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Elaboração de Plano Individual e Familiar de Atendimento
3 – Atenção à Vulnerabilidade Indireta dos Membros da Família
4 – Avaliação e Atenção às Situações de Intimidação, Ameaça, Constrangimento
ou Discriminação da Vitimização
5 – Representação ao Ministério Público
Art. 20
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Delegacias Especializadas no Atendimento de Crianças e Adolescentes
3 – Equipes Multidisciplinares Destinadas a Assessorar as Delegacias
4 – Ausência de Delegacia Especializada
5 – Observação do art. 14
Art. 21
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Situação de Risco
3 – Representação da Autoridade Policial
4 – Medidas de Proteção Específicas
4.1 – Evitar o Contato Direto com o Suposto Autor da Violência
4.2 – Afastamento Cautelar do Investigado da Residência ou Local de
Convivência
4.3 – Prisão Preventiva do Investigado
4.4 – Inclusão da Vítima ou Testemunha e sua Família nos Atendimentos
Socioassistenciais
4.5 – Inclusão em Programa de Proteção a Vítimas ou Testemunhas
Ameaçadas
4.6 – Requerer Cautelar de Antecipação de Prova
5 – Validade e Eficácia das Medidas de Proteção
Art. 22
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Meios de Provas Diversos Previstos na Própria Lei do Depoimento Especial
3 – Meios de Prova Legal, Moralmente Legítimos e Lícitos
4 – Prova Emprestada
5 – Laudo Psicossocial
6 – Questões Processuais
6.1 – Gravação de Conversa Telefônica
6.2 – Gravação de Conversa Ambiental
6.4 – Prova Digital
Art. 23
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Juizados ou Varas Especializadas Contra a Criança e o Adolescente
3 – Cumulação de Competência
4 – Ausência de Juizado ou Varas Especializadas ou Cumulação de Competência
Art. 24
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Introdução
2 – Análise do Núcleo do Tipo
3 – Sujeito do Delito
4 – Tipo Objetivo
5 – Tipo Subjetivo
6 – Consumação e Tentativa
7 – Ação Penal
8 – Escuta Especializada e Caracterização do Tipo Penal
Art. 25
Legislação Correlata
Análise Doutrinária
1 – Proteção Judicial dos Interesses Individuais, Difusos e Coletivos
2 – Atos Normativos Necessários à Efetividade da Lei do Depoimento Especial
3 – Normas Sobre o Sistema de Garantia de Direitos
ANEXOS
ANEXO I - Modelos de Decisões sobre Escuta Especializada e Depoimento
Especial
ANEXO II - Decreto Federal n. 9.603/2018
ANEXO III - Pacto Nacional pela Implementação da Lei 13.431/2017
ANEXO IV Resolução CNJ n. 299/2019
ANEXO V - Fluxo Geral da Lei 13.431/2017
ANEXO VI - Guia Prático – para Implementação da Política de Atendimento de
Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência (CNMP-PRESI
N. 61/2018)
ANEXO VII - Protocolo de Polícia Judiciária para Depoimento Especial de Criança
e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência do Distrito Federal
Padronizado no Âmbito das Polícias Civis dos Estados e do DF
ANEXO VIII - Sala do Depoimento Especial, Espaço Físico, Materiais e Mobiliário e
Equipamentos Técnicos
ANEXO VIX - Cartilha Depoimento Especial TJRS
ANEXO X - Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF Revisado 2020)
ANEXO XI - Resolução n. 20/2005 – ECOSOC
ANEXO XII - Resolução n. 113/CONANDA/2006
ANEXO XIII - Parâmetros de Atuação do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS) no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente
Vítima ou Testemunha de Violência
Referências
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MODELOS DE DECISÕES SOBRE ESCUTA ESPECIALIZADA E
DEPOIMENTO ESPECIAL
(Disponível on-line pelo QR-Code ou endereço acima)
Aplicação de Medida de Proteção: Requerimento do Ministério Público
Aplicação de Medida de Proteção: Requerimento da Vítima ou Testemunha
Aplicação de Medida de Proteção: Requerimento da Autoridade Policial
Assentada de Audiência: Direito ao Silêncio
Assentada de Audiência:aplicação de Direitos e Garantias (Art. 5.º)
Ausência do Acusado no Dia da Audiência: Despacho (Art. 9.º)
Cautelar de Produção Antecipada de Prova: Deferimento
Cautelarde Produção Antecipada de Prova: Sentença
Compartilhamento de Informações com a Rede de Proteção
Conflito de Interesse: Nomeação Assistência Qualificada Jurídica
Denúncia Espontânea ao Juízo
Depoimento Especial: Ausência de Autoria
Depoimento Especial no Júri: Indeferimento em Plenário
Depoimento Especial: Réu Citado por Edital
Depoimento Especial: Dispensa Atendimento Médico
Depoimento Especial: Dispensa por Risco à Vida ou à Integridade Física
Depoimento Especial Facultativo
Depoimento Especial com Deficiência
Dispensa do Depoimento Especial: Reiteração de Declarações Anteriores
Dispensa do Depoimento Especial: por Ser Imprescindível, Mas Sem
Anuência da Vítima ou Testemunha ou seu Representante Legal
Escuta Especializada como Meio de Prova
Indeferimento de Depoimento Especial: Alienação Parental
Notificação Compulsória ao Juízo
https://diariododireito.com.br/files/depoimento_especial.html
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Nulidade: Ausência de Intimação de Advogado Constituído pelo Réu
Nulidade do Depoimento Especial por Vício Insanáel no Inquérito Policial
Pedido de Providência Cível Ex Officio
Prova Emprestada
Vedação de Depoimento Especial Pela Autoridade Policial
Art. 1º
LEI Nº 13.431, DE 4 DE ABRIL DE 2017
TÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º Esta Lei normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos
da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, cria
mecanismos para prevenir e coibir a violência, nos termos do art. 227
da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos da Criança e
seus protocolos adicionais, da Resolução no 20/2005 do Conselho
Econômico e Social das Nações Unidas e de outros diplomas
internacionais, e estabelece medidas de assistência e proteção à criança
e ao adolescente em situação de violência.
 
Legislação Correlata
CF, art. 226, §8.º, 227, caput, e §4.º; ECA, arts. 5.º, 18-A, 70 e 70-A; Resolução n. 113/2006, do
CONANDA; Recomendação n. 33/CNJ/2010; Decreto n. 9.603/2018; e Resolução CNJ n. 299/2019.
Análise Doutrinária
1 – INTRODUÇÃO
2 – HISTÓRIA DO DEPOIMENTO ESPECIAL
2.1 – Início da Prática
2.2 – Pioneirismo do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em Reconhecer a Prática do
Depoimento Sem Dano
2.3 – Obstinações dos Conselhos Federal de Serviço Social e de Psicologia
2.4 – Instituto Childhood: Protocolo de Entrevista Forense do NCAC (National Children’s Advocacy
Center)
2.5 – Conselho Nacional de Justiça (CNJ): Reconhecimento.
2.6 – Projetos Legislativos
3 – SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE VÍTIMA OU
TESTEMUNHA DE VIOLÊNCIA
4 – PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA
5 – DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES
6 – RESOLUÇÃO Nº 20/2005 DO CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL DAS NAÇÕES UNIDAS
E OUTROS DIPLOMAS INTERNACIONAIS
7 – PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES NO BRASIL
8 – MEDIDAS DE ASSISTÊNCIA E PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE EM
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
1 – INTRODUÇÃO
Não é difícil de compreender que o direito nasceu junto com a
civilização, aliado à história da sociedade, sob a forma de costumes que
foram se tornando obrigatórios. Isso aconteceu em razão da necessidade
de um mínimo de ordem e direção, de regras de conduta, com o objetivo
de regular o convívio entre os homens e proporcionar harmonia nas
relações humanas.
O surgimento do direito teve por finalidade regular justamente essas
relações humanas, a fim de proporcionar paz e prosperidade no seio social,
para impedir a desordem, o crime e o caos que seria proporcionado pela
lei daqueles que detinham o poderio, principalmente, o econômico, ou seja,
aquele que fosse mais forte, e tendo como objetivo alcançar o bem comum
e obter a justiça.
Por isso é importante conhecer a história de uma norma jurídica, que
em outras palavras, é própria da sociedade, estando intimamente ligada ao
direito.
Com efeito, o direito surge para colocar direção, ordem, regras de
conduta para regular o convívio na sociedade, a fim de conseguir que os
homens vivam em harmonia
É importante esclarecer, diante de todos esses aspectos, que o direito
surge com o objetivo de obter justiça e realizar o bem comum, isto é, dar a
cada caso a solução merecida, adequada conforme o sentimento
humanitário ponderado e calcado em interpretação conforme os princípios
gerais do direito.
Como visto, a história não poderia estar dissociada do estudo do
direito. É nesse sentido que vem a importância dela para o Direito, que
nada mais é do que uma ciência que pesquisa e estuda o significado dos
processos de alteração das estruturas jurídicas, penetrando e convivendo
com as naturais modificações de ordem política, econômica e cultural de
uma sociedade ao longo do tempo.
Assim, por ser ciência, a história de um direito descreve e revela,
pesquisa e esclarece, coordena e explicita a vida jurídica de um povo em
todos os seus aspectos, detendo-se nas fontes, nos costumes, na legislação
que o rege, enfim, em todas as manifestações que resultam do
conhecimento dos fatos ocorridos.
Dada a sua importância, não poderíamos deixar de contar a história do
Depoimento Especial, que fez surgir a Lei 13.431/2017.
2 – HISTÓRIA DO DEPOIMENTO ESPECIAL
Na Série Justiça Pesquisa, promovida pelo Departamento de Pesquisas
Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça (DPJ/CNJ), que tem a finalidade
de realizar pesquisas de interesses do Poder Judiciário brasileiro por meio
de contratação de instituições sem fins lucrativos, incumbidas
estatuariamente da realização de pesquisas e projetos de desenvolvimento
institucional, realizou por meio da Universidade de Fortaleza – Edital de
Convocação Pública e Seleção n. 02/2017 do CNJ – o Projeto de Pesquisa
“A Oitiva de Crianças no Poder Judiciário brasileiro: estudo em foco na
implementação da Recomendação n. 33/2010 do CNJ e da Lei 13.431/2017”,
que foi divulgado no dia 30/05/2019, através do portal do CNJ1.
Neste excelente trabalho de realização da Fundação Edson Queiroz
Universidade de Fortaleza – UNIFOR – e Centro de Ciências Jurídicas
Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional, coordenado por
Antônio Jorge Pereira Júnior, tendo como pesquisadores Juliana Nogueira
Loiola, Juliana Rodrigues Barreto Cavalcante, Marília Bitencourt C. Calou P.
Rebouças, Maryunna Laís Quirino Pereira, Nardejane Martins Cardoso, Rafaela
Gomes Viana e Thiago Pessoa Colares, entre os temas apresentados está a
evolução histórica do Depoimento Especial: “Como explicado anteriormente,
houve relevante evolução normativa no tocante à proteção de direitos da
criança e do adolescente até que se chegasse ao reconhecimento de sua
importância na forma de coleta do relato de situações de violência pelos
menores no ambiente judicial. Referidas normas serviram de base para
implementação da prática do Depoimento Especial no Brasil. A Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, datada de 1989, teve como
precedente a Declaração dos Direitos das Crianças de 1959. Logo após sua
aprovação, o Brasil fez-se signatário, sendo ela anuída pelo Congresso Nacional,
mediante o Decreto Legislativo n. 28, de 14 de setembro de 1990. No dia 22
de novembro daquele ano foi promulgada pelo Decreto n. 99.710 (CONTINI,
2006, p. 4). De acordo com dados da Unicef (BRASIL, 2018): ‘A Assembleia
Geral das Nações Unidas adotou a Convenção sobre os Direitos da Criança –
Carta Magna para as crianças de todo o mundo – em 20 de novembro de 1989,
e, no ano seguinte, o documento foi oficializado como lei internacional. A
Convenção sobre os Direitos da Criança é o instrumento de direitos humanos
mais aceito na história universal. Foi ratificado por 196 países.’ A importância
do documento se traduz, primeiramente, por seu valor vinculante entre os
Estados-Partes que o ratificaram. Tais entes comprometeram-se a partir de
então a tomar medidas apropriadas de conteúdo legislativo, administrativo,
social ou educacional para garantia de proteção de crianças e adolescentes
contra toda forma dediscriminação, violência física ou mental, abuso ou
tratamento negligente, maus-tratos, exploração e abuso sexual. É pertinente
ressaltar que a Convenção foi elaborada dentro de um quadro de garantia
integral. Destarte, a norma internacional evidencia a necessidade de
priorização na gestão estatal de forma a consolidar a perspectiva da criança
como sujeito de direito. Dois dispositivos da convenção se dirigem para a ideia
inicial de proteção na oitiva dos menores dentro de processos judiciais. O art.
12, primeiro artigo, composto por dois parágrafos, trata, respectivamente do
direito à livre expressão e da oportunidade da criança ser ouvida nos processos
judiciais e administrativos que lhe respeitem diretamente ou por meio de
representante ou organismo adequado. Por sua vez, o art. 19, também
constituído por dois parágrafos, trata da proteção contra todas as formas de
violência e sugere programas de prevenção destinados a assegurar o apoio
necessário à criança, bem como medidas sociais próprias para o
acompanhamento dos casos de maus-tratos. Outros documentos, como a
Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança (1924), (elaborada no
cenário após a I Guerra Mundial), a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948) e a Declaração dos Direitos das Crianças (1959) prestaram
contribuição no sentido de enunciar a necessidade de proteção especial, ainda
que não fosse feita referência à forma de inquirição de menores em âmbito
judicial. No Brasil, após uma evolução social e legislativa, e sob influência de
alguns dos normativos internacionais anteriormente citados, culminou-se na
promulgação do art. 227 da CF/1988 e do Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA, Lei n. 8.069, de julho de 1990, estabelecendo-se o quadro-
padrão com o paradigma da proteção integral em detrimento da doutrina da
situação irregular, vinculada ao Código de Menores de 1979. Dentro desse
contexto garantista e diante do cenário de grande número de demandas
envolvendo crianças como depoentes, o Conselho Nacional de Justiça
estabeleceu orientações aos tribunais brasileiros para a coleta de depoimento
desses infantes por meio da Recomendação n. 33/2010. Em razão disso, foi
sancionada em 2017 a Lei n. 13.431, corroborando com os direcionamentos do
CNJ.”
Ocorre, entretanto, que para nós chegarmos à Lei 13.431/2017, há uma
longa história.
Neste contexto, o melhor relato é do próprio José Antônio Daltoé
Cezar, criador do “Depoimento Sem Dano”, narrado em artigo denominado
“Depoimento Sem Dano/Depoimento Especial – treze anos de uma prática
judicial”, na obra “Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes – Quando
a Multidisciplinaridade Aproxima os Olhares”2, a quem peço licença para
transcrever, confiando a ele sua autoria3 na íntegra, inclusive utilizando os
tópicos semelhantes para ser fiel ao seu texto.
2.1 – Início da Prática
O Brasil até 2003 desconhecia este método de proteção no meio
jurídico.
Tudo começou com José Antônio Daltoé Cezar, Desembargador do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Magistrado desde 1987, quando
implantou no Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre o Projeto
Depoimento Sem Dano, utilizando meios eletrônicos e a intervenção direta
de psicólogos e assistentes sociais nas inquisições judiciais de crianças e
adolescentes vítimas de violência.
O histórico dessa trajetória, contado pelo próprio, teve três momentos
distintos: “Fazendo uma trajetória dos problemas que enfrentei na jurisdição,
os quais determinaram que procurasse uma alternativa menos danosa para
ouvir jovens vítimas de violência, especialmente sexual, nas instruções dos
processos, recordo que em 1988, ano do meu ingresso na magistratura, na
comarca de Santa Maria, já nos primeiros dias de trabalho, tive que ouvir uma
menina de aproximadamente sete anos de idade, a qual era supostamente
vítima de abuso sexual por parte do padrasto, um homem com mais de vinte
anos de idade. Naquele momento relembro, eu, que vinha da advocacia civilista
e fui por quatro anos empregado de uma instituição financeira, que em nenhum
momento dos estudos que viabilizaram meu ingresso na magistratura essa
possibilidade tivesse sido aventada (ouvir crianças vítima de violência), nem na
graduação, nem nos cursos de preparação para o concurso, tampouco no
próprio concurso, seja nas provas escritas ou orais. Por óbvio que com tamanho
despreparo a escuta judicial dessa menina quase não ocorreu, e por mais
esforço que fiz para ser acolhedor, e ainda tenha o acusado sido retirado da sala
de audiências durante o depoimento, pouca ou nenhuma informação foi obtida,
terminando ele, que estava preso preventivamente, sido liberado na mesma
solenidade. A maior recordação que tenho daquele momento era o absoluto
desconforto da menina naquele ambiente. Não parava tranquila na cadeira à
minha frente, olhava para o teto insistentemente, balbuciava alguns sons que
não eram passíveis de serem entendidos. Os anos se passaram, e em todas as
comarcas na quais exerci a jurisdição, situações como aquela relatada, algumas
com maior ou menor grau de sofrimento, sempre se repetiram, e nenhum
movimento, nos meios jurídicos ou acadêmicos, foi apresentado para alterar
essa prática judicial. Lembro também que anos após a experiência antes
relatada, desta vez na comarca de São Leopoldo, ouvi uma adolescente de 12
anos que supostamente era vítima de um estupro com violência real. O
acusado, um rapaz de 19 anos de idade, dizia-se apaixonado pela adolescente,
inclusive propôs a casar com ela. O depoimento foi realizado com muito
sofrimento, mesmo tendo o rapaz sido retirado da sala de audiências, a menina
não parava de chorar, e em momento algum referiu ter consentido o ato sexual.
Disse ter sido obrigada a manter relação sexual com o acusado, que usou de
violência real, e que sequer o conhecia. Porém, o pior momento daquela
audiência estava por vir. Ao final do depoimento da vítima, quando chorava ela
compulsivamente, o defensor do acusado perguntou se ela havia gozado, em
outras palavras, se ela sentiu-se prazerosamente satisfeita com o ato sexual.
Por óbvio, a pergunta foi indeferida, mas ela foi ouvida pela adolescente, que
ficou revoltada com aquele tipo de indagação. Merecia uma menina de 12 anos
de idade, supostamente vítima de estupro com violência real, ouvir aquele tipo
de pergunta? O sistema processual penal vigente não atua, permitindo esse tipo
de prática, como vitimização secundária das vítimas que são chamadas a
prestar declarações? Terceira recordação que tenho de momentos desagradáveis
decorrentes de depoimentos prestados por jovens vítimas de violência ocorreu
em 2002 em Porto Alegre, quando então atuava como Juiz da Infância e
Juventude, em procedimento para apuração de ato infracional. Segundo a
representação oferecida pelo Ministério Público, um adolescente de 17 anos de
idade teria praticado violência sexual com uso de força contra uma menina de
07 anos de idade. Como nas vezes relatadas anteriormente, o momento do
depoimento foi muito desconfortável para a vítima. Mesmo tendo o suposto
infrator sido retirado da sala de audiências, ela nada conseguiu falar, sua
fisionomia era de pavor, chorou muito. Como resultado, apenas mais um
momento difícil para uma suposta vítima de violência sexual, sofrimento esse
não decorrente da violência que sofreu, mas de uma exposição inadequada
perante o sistema de justiça (dano secundário), e a liberação, sem qualquer
responsabilização, de um provável praticante de um ato infracional grave. Aqui,
dois males decorrentes de uma prática vetusta e inadequada, prevista em nossa
legislação penal e no ECA, quais sejam, o sofrimento da vítima, que não teve
espaço adequado para falar de suas tristezas, e o sentimento de impunidade
que possivelmente aflorou naquela jovem, o qual provavelmente praticou um
ato infracional de natureza grave.”
Após a última audiência, Daltoé afirma que não mais ouviria nenhuma
criança ou adolescentevítima de violência na forma estabelecida na
legislação.
Entretanto, após tomar esta atitude, observou que havia alguns
obstáculos a serem superados para que os depoimentos fossem colhidos de
forma mais acolhedora e satisfatória para o sistema de justiça, “[…]
incluindo nesse as próprias partes, a saber: a) escolha de uma forma alternativa
que viabilizasse a retirada do depoente de dentro da sala de audiências, sem
que isso determinasse a não observância dos princípios constitucionais da
ampla defesa e do contraditório; b) identificação de profissionais que se
dispusessem a participar desse ato processual, salientando que inexiste
previsão administrativa para o pagamento de tal tipo de trabalho; c) busca de
modelos de escuta judicial em outros países, já que no Brasil, então, não se
tinha conhecimento de nenhuma proposta acadêmica com o mesmo escopo”.
Considerando a narrativa dos fatos que o levaram a não mais ouvir
infantes vítimas de violência, precisava ele de meios para colocar em prática
sua ideia: “foi então que tive conhecimento do livro publicado pela Dra. Veleda
Dobke4, Promotora de Justiça de Porto Alegre, que apresentou dois modelos de
inquirição de crianças realizados em outros países: a) sistema de
videoconferência, com a criação de um espaço que permitisse a escuta da
vítima sem que necessitasse ela estar presente na sala de audiências; b) a
escuta da vítima através do equipamento denominado Câmara Gessell (sala de
vidro espelhado), na qual os operadores do direito permanecem em uma sala
contígua à sala de entrevista, vendo e assistindo ao depoimento, podendo em
momentos apropriados interagir com o técnico que facilita a escuta. Obtidas as
primeiras informações, pela estrutura física do Foro de Porto Alegre, em 2003,
foi feita a opção pela audiência com videoconferência. Outra dúvida surgiu
então. Quem arcaria com os custos dos equipamentos, já que não existia
nenhuma experiência anterior, conhecida no país, que justificasse um gasto
administrativo nesse sentido. A opção foi eu próprio adquirir uma câmera do
estilo das câmeras de segurança hoje conhecidas, tendo o Promotor de Justiça
João Barcelos de Souza Júnior (hoje Desembargador do TJRS) adquirido e
adaptado um gravador, não digital, que ligasse o vídeo ao áudio. Um aparelho
de TV antigo foi doado e colocado na sala de audiências, para que o
depoimento pudesse ser visualizado. O segundo obstáculo, a identificação de
profissionais que se dispusessem a participar desse ato processual, foi superado
com maior facilidade, pois o fato de ser lotado em uma vara especializada da
infância e da juventude, que então possuía equipe técnica própria (hoje não
possui mais), consultados, assistentes sociais e psicólogos concordaram em
participar do trabalho. O terceiro obstáculo, treze anos depois dos trabalhos se
iniciarem, ainda está em desenvolvimento, pois somente agora os protocolos
internacionais que regulamentam a audiência forense com jovens vítimas de
violência estão sendo validados no país. A primeira audiência na forma
apresentada ocorreu no ano de 2003, em um processo para destituição do
poder familiar de um pai acusado de abusar sexualmente de uma filha
adolescente, tendo, nesses trezes anos de prática, somente em Porto Alegre,
centenas de depoimentos sido tomados com as preocupações aqui
apresentadas.”
Este, pois, é o início do Depoimento Especial, cuja origem se dera por
uma necessidade de ouvir infantes vítimas de violências sexual, que se
tornavam acuadas e revitimizadas diante da formalidade das regras
processuais penais, somado à impunidade dos agentes pelo silêncio muitas
vezes das vítimas em não querer relatar seus sofrimentos.
2.2 – Pioneirismo do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul em Reconhecer a Prática do Depoimento Sem
Dano
Alguns meses depois da primeira audiência do Projeto Depoimento Sem
Dano, com inúmeros pedidos de Juízes para que o mentor do projeto
realizasse na Capital gaúcha a escuta no novo método de crianças e
adolescentes vítimas, surgiu a necessidade de apresentar um plano de
trabalho à Corregedoria-Geral de Justiça, que à época era comandada pelo
Desembargador Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, que na
companhia de dois juízes auxiliares, compareceram no Fórum Central para
conhecer a iniciativa, o que resultou na autorização para que fossem
instalados equipamentos modernos, como mais salas em outras 25
comarcas do Estado.
O projeto foi acolhido pela Casa Correcional, resultando a partir do
trabalho realizado na Capital a expansão para o interior.
No ano de 2008, por iniciativa do Poder Judiciário do RS, o parlamento
gaúcho aprovou a Lei 12.913/2008, que alterou a Lei 9.896/1993, e foi
sancionada pela Governadora do Estado, a qual autorizou que o Conselho
da Magistratura, excepcionalmente, transferisse para os Juizados Regionais
da Infância e da Juventude a competência dos julgamentos de adultos que
praticassem crimes sexuais contra crianças e adolescentes.
A Associação Nacional dos Defensores Públicos ajuizou a ADI n. 4.774,
na qual postulava a declaração de ilegalidade da Lei 12.913/2008, por
afrontar o ECA, que disciplina a competência das varas especializadas da
infância e da juventude.
Referido feito encontra-se pronto para ser julgado desde 23/04/20145,
já tendo a PGR e AGU apresentado seus pareceres, ambos no sentido de
que a ação seja julgada improcedente, cujo fundamento conclusivo daquele
é no sentido de que “a norma atacada está não apenas de acordo com a
Constituição e com o entendimento firmado por essa Suprema Corte, como
também consulta os interesses de crianças e adolescentes que de alguma
maneira participem dos processos a serem julgados pelos órgãos judiciários que
a lei criou”.
Com o advento da Lei 13.431/2017, que traz expresso em seu art. 23
que “os órgãos responsáveis pela organização judiciária poderão criar juizados
ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente”,
acreditamos que pode ocorrer a perda do objeto da ADI.
2.3 – Obstinações dos Conselhos Federal de Serviço
Social e de Psicologia
O Conselho Federal de Serviço Social, por meio da Resolução n. 554,
de 15 de setembro de 2009, conhecendo que no Depoimento Sem Dano,
como técnicos facilitadores da entrevista, além de psicólogos, também
atuavam assistentes sociais do quadro do TJRS, dispôs que não reconhecia a
inquirição dos infantes vítimas de violência nos processuais judicias como
sendo atribuição ou competência do profissional assistente social.
A Resolução ainda concedeu prazo de 60 dias para que os profissionais
adequassem suas atividades laborais ao que a partir de então era
disciplinado, ou seja, parassem de trabalhar no projeto, sob às
responsabilidades disciplinares ou éticas.
O Conselho Federal de Psicologia, no mesmo sentido do Conselho de
Serviço Social, editou a Resolução n. 10, de 29 de junho de 2010, na qual
também proibiu expressamente que os profissionais da psicologia
trabalhassem nas inquirições de crianças e adolescentes em situação de
violência, estabelecendo que o não cumprimento dessa disposição
constituiria falta ética-disciplinar, passível de capitulação nos dispositivos
referentes ao exercício profissional do Código de Ética, sem prejuízo de
outros que pudessem ser arguidos.
O TJRS, por conta de atingir servidores técnicos do seu quadro, ajuizou
ações perante a Justiça Federal postulando a suspensão das resoluções do
CFESS e CFP, os quais foram julgados procedentes em todas as instâncias
para o efeito de suspender permanentemente os seus efeitos, apenas no
Rio Grande do Sul.
No Ceará, em 2012, o MPF ajuizou Ação Civil Pública (n. 0004766-
50.2012.058100) e obteve a suspensão, também permanente, só que dessa
vez em todo o território nacional, das Resoluções ns. 554/2009 do CFESS e
de n. 10/2010 do CFP.
A gestão – É de batalhas que se vive a vida – 2017 a 2020 – do Conselho
Federal de Serviço Social (CFESS), no dia 20 de fevereiro de 2020, emitiu
notasobre a Resolução n. 299/2019 do CNJ.
Após uma análise histórica de uma década de discussões que sempre se
manifestou contrário, voltou a reiterar “que assistentes sociais não possuem
competência para a realização do depoimento ou oitiva de crianças e
adolescentes. Assistentes sociais possuem conhecimentos que contribuem para
o reconhecimento das necessidades das crianças, adolescentes e suas famílias e
devem atuar para que sejam atendidas, com vistas à garantia e acesso de seus
direitos”.
E no final do documento recomendou: “1) Assistentes sociais dos
Tribunais de Justiça não realizem oitiva e/ou inquirição de crianças e
adolescentes, nem tampouco apliquem os protocolos e técnicas que fujam à
formação de suas competências e atribuições profissionais; 2) Quanto aos
procedimentos que antecedem e que são posteriores ao Depoimento Especial,
ou que se articulam no processo de trabalho, devem-se observar os direitos
fundamentais da criança e/ou adolescente, fazendo uso das garantias previstas
em lei e considerando os fundamentos da Doutrina da Proteção Integral; 3)
Importante destacar que, sempre que o/a profissional for requisitado/a realizar
tarefa que não corresponda à situação de atendimento prioritário, por envolver
proteção a situação de risco a crianças e adolescentes, realize informação por
escrito em processo judicial ou protocolada no órgão adequado, indicando as
implicações decorrentes do ato. E que, havendo negação do atendimento e/ou
violação de direitos da criança e do/a adolescente, informe aos órgãos
competentes e órgãos de controle correspondentes; 4) Profissionais que estejam
sendo requisitados/as indevidamente na Rede de Proteção a realizar oitiva ou
depoimento de crianças e adolescentes (inclusive sob a denominação de
“escuta especial”) devem responder ao Judiciário, dentro do prazo estipulado na
determinação, que não possuem competência profissional para realizar tal ato,
estando impedido/a de fazê-lo de forma justificada, podendo, inclusive, se
utilizar dos documentos produzidos pelo CFESS. Devem ainda, procurar o
CRESS do seu estado e denunciar as situações de requisição indevida.
Importante informar se a Comarca possui equipe interprofissional no quadro de
servidores/as; 5) O CFESS recomenda que, dentre outras iniciativas, os CRESS
devem protocolar as informações de queixas recebidas junto às Corregedorias
dos Tribunais de Justiça ou Ministério Público (a depender da situação), bem
como remeter ao CFESS as informações e mapeamento das situações no
estado.”
Acreditamos que, embora legítima a discussão, a tendência da
recomendação é sua suspensão novamente, principalmente pelas decisões
judiciais ocorridas em sede federal em 2002 (ACP n. 0004766-
50.2012.058100).
No CNJ, pelo menos, já houve decisão contrária. O Plenário do
Conselho Nacional de Justiça julgou improcedente, por unanimidade, o
Procedimento de Controle Administrativo 0004543-46.2018.2.00.0000,
apresentado pela Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do TJSP
que buscava a nulidade do Provimento CGTJSP n. 17/2018. De acordo com
o relator, Conselheiro Valtércio de Oliveira, psicólogos e assistentes sociais
são profissionais capacitados para auxiliar os magistrados a viabilizar a
escuta protegida.
Deve-se ressaltar que “ao contra-argumento, psicólogos favoráveis ao
depoimento especial explicitam que nas entrevistas realizadas o ritmo e o
estado emocional da criança e do adolescente são respeitados, que o psicólogo,
por suas competências técnicas, ao perceber limitações ou impossibilidades do
entrevistado para falar sobre o ocorrido poderá, verbalmente ou por escrito,
contraindicar o depoimento naquele momento. Em relação ao sigilo profissional
é que não há quebra de dever de sigilo, pois no depoimento especial o psicólogo
estaria ouvindo a criança em situação que lhe diz respeito, em um contexto de
segredo de justiça. Sobre a autonomia profissional, é entendido que este é um
espaço em que os psicólogos, com suas competências técnicas e metodológicas,
podem intervir de forma interdisciplinar cada um com sua expertise, direito e
psicologia”. (TABAJASKI, VICTOLLA E VISNIEVSKI, 2019, p. 736)
Muzambinho, comarca pioneira no Estado de Minas Gerais a implantar
o Depoimento Sem Dano, em 2009, enfrentou a mesma represália dos
Conselhos em face das técnicas facilitadoras que colaboravam com a
realização da escuta, inclusive ameaçando instauração de processo
administrativo se não cessassem os trabalhos.
As profissionais, respaldadas pelo Magistrado e pelas decisões favoráveis
perante a Justiça Federal, mantiveram as escutas e não houve qualquer
ingerência por parte dos órgãos às profissionais.
Neste sentido será a tendência atual, como em todo o país, até porque
há uma norma de regência nacional que prevê a oitiva de crianças e
adolescentes por assistentes sociais e psicólogos.
2.4 – Instituto Childhood: Protocolo de entrevista
Forense do NCAC (National Children´s Advocacy Center)
Daltoé, em 2007, quando apresentava o Projeto Depoimento Sem Dano,
conheceu duas pessoas – Benedito Rodrigues dos Santos e Itamar Batista
Gonçalves – que se tornaram parceiros e deram publicidade ao projeto.
Benedito era professor da Universidade Católica de Brasília e Itamar
gerente de advocacy, da ONG Childhood Brasil, instituição ligada ao World
Childhood Foundation, organização internacional criada em 1999 pela Rainha
Silvia, da Suécia, que é brasileira, para proteger a infância, e ambos
demonstraram interesse em participar do desenvolvimento do projeto,
oferecendo apoio, recursos humanos e financeiros.
No ano seguinte (2008) a Childhood elaborou um cronograma de
viagens ao exterior para conhecimento das práticas existentes em outros
países.
Os países visitados foram Argentina, Inglaterra, Lituânia e Espanha.
O resultado da viagem foi a publicação da obra Depoimento Sem Medo
(?) – Culturas e Práticas Não-Revitimizantes7, em 2008, além de apresentar
práticas adotadas por dezenas de países.
Não parou por aí. A Childhood Brasil, buscando dar profissionalismo e
foco acadêmico ao projeto, trouxe ao Brasil profissionais com
reconhecimento internacional na matéria, entre eles, Chris Newlin, Diretor
Executivo do Centro Nacional de Proteção à Infância, Alabama, EUA; Gail
Goodman, Professora de Psicologia e Diretora do Centro de Pesquisa de
Políticas Públicas na Universidade da Califórnia, Davis, EUA; e Pamela
Hurley, Diretora do Projeto Criança-Testemunha do Centro para Criança e
Famílias no Sistema de Justiça, Ontário, Canadá. Eles foram responsáveis
por trazerem experiências de seus países e contribuíram nas capacitações
dos técnicos judiciários que trabalhavam nos procedimentos judiciais,
inclusive vinculados ao CNJ.
O resultado foi a publicação, em 2014, do livro Escuta de Crianças e
Adolescentes em Situação de Violência Sexual: Aspectos Técnicos e
Metodológicos8.
No ano de 2015, o professor Benedito Rodrigues dos Santos, com
parceria da Childhood, deu início à validação acadêmica do protocolo de
escuta de crianças e adolescentes em situação de violência, denominado
Protocolo de Entrevista Forense de NCAC (National Children´s Advocacy
Center), que foi adaptado para a realidade brasileira como Protocolo de
Entrevista Forense com Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de
Violência Sexual.
A Childhood Brasil tem convênio com o CNJ (Conselho Nacional de
Justiça) e a ENFAM (Escola Superior de Formação e Aperfeiçoamento de
Magistrados) no sentido de colaborar com a capacitação de magistrados e
servidores que trabalham no Depoimento Especial.
2.5 – Conselho Nacional de Justiça (CNJ):
Reconhecimento.
No ano de 2010 o CNJ, especificamente em 09 de novembro, em
Sessão Ordinária de n. 116º, através do ATO n. 00006060-
67.2010.2.00.0000, aprovou, por unanimidade, a Recomendação n.
33/2010, dirigida a todos os Tribunais de Justiça dos Estados e o do DF e
Territórios, para que nos processos envolvendo crianças e adolescentes
vítimasde violência, quando de seus depoimentos em juízo, fossem
observadas as seguintes orientações: a) implantação de sistema de
depoimento videogravado para as crianças e os adolescentes, o qual deverá
ser realizado em ambiente separado da sala de audiências, com a
participação de profissional especializado para atuar nessa prática; b)
capacitação de todos os profissionais que participam da escuta judicial, a
partir de então denominada Depoimento Especial, usando os princípios
básicos da entrevista cognitiva; c) o acolhimento deve contemplar o
esclarecimento à criança ou adolescente a respeito do motivo e efeito de
sua participação no depoimento especial, com ênfase à sua condição de
sujeito em desenvolvimento e do consequente direito de proteção,
preferencialmente com o emprego de cartilha previamente preparada para
esta finalidade; d) os serviços técnicos do sistema de justiça devem estar
aptos a promover o apoio, orientação e encaminhamento de assistência à
saúde física e emocional da vítima ou testemunha e seus familiares, quando
necessários, durante e após o procedimento judicial; e) implantação de
medidas de controle de tramitação processual que promovam a garantia do
princípio da atualidade, garantindo a diminuição do tempo entre o
conhecimento do fato investigado e a audiência de depoimento especial.
Daltoé ressalta “[…] que para a edição da Recomendação 33/2010, foi o
trabalho incansável da Conselheira Morgana Richa, que buscou cercar-se de
todas as informações sobre a matéria, e assim obter a anuência dos demais
Conselheiros do CNJ, que emprestou todo o seu apoio para que a prática
judicial fosse recomendada.”
O resultado do esforço dos profissionais referidos é que deu ensejo à
tramitação de projetos legislativos para que se tornasse uma realidade o
Depoimento Especial.
2.6 – Projetos Legislativos
A primeira tentativa de regulamentação do Depoimento Especial
ocorreu no ano de 2006, na Câmara dos Deputados, por meio do Projeto
de Lei que tomou o número 7.524, de autoria da Deputada Maria do
Rosário (PT-RS), o qual acrescentava o Capítulo IV-A ao Código de
Processo Penal de 1941, regulamentando a forma como seria feita a
inquirição judicial de crianças e adolescentes, como vítimas e testemunhas.
O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao
Senado Federal; contudo, nessa casa, após realização de audiência pública
da qual participaram defensores e opositores, o entendimento foi de que o
seu texto deveria ser incorporado ao projeto de lei do novo CPP que
tramitava no Congresso Nacional (Disposições Especiais Relativas à
Inquirição de Crianças e Adolescentes, artigos 192, 193 e 194), o qual foi
posteriormente aprovado e encaminhado à Câmara dos Deputados.
Como permaneceu parado por mais de seis anos sem que houvesse
previsão para seu exame, um grupo de deputados vinculados à causa da
infância e juventude de diversos partidos, novamente com a coordenação
da Deputada Maria do Rosário, elaboraram o Projeto n. 3.792/2015, que
estabelecia o sistema de garantia de direito de crianças e adolescentes
vítimas e testemunhas de violência9.
A justificativa do projeto teve como fundamento que o Brasil tem se
ressentido da falta de legislação que proteja os direitos de crianças e
adolescentes expostos ao sistema de justiça, seja como vítimas ou como
testemunhas de violência física, psicológica, sexual e institucional.
Frequentemente o que se vê é a falta de consideração quanto à condição
de pessoas em desenvolvimento, o que resulta em violência institucional
que se dá nas interações de crianças e adolescentes com os órgãos
educacionais, de atenção e de proteção especial, assim como órgãos de
segurança e justiça institucional. Crianças e adolescentes são expostos à
vitimização secundária produzida pela ineficiência no trato da questão, e à
vitimização repetida, quando ocorre mais de um incidente delitivo, ou ação
ineficiente do Estado, ao longo de um período determinado. A criança e o
adolescente pagam, portanto, um alto preço por entrarem em contato com
o universo da violência, como vítimas ou testemunhas. Com essa
preocupação estivemos em contato com magistrados, promotores de
justiça, advogados e demais especialistas em direito e justiça da infância e
adolescência para construir uma proposição legislativa que contemplasse as
recomendações baseadas em normativas internacionais e na prática de
tomada de depoimentos especiais em distintos países. O Grupo de
Trabalho sobre o Marco Normativo da Escuta de Crianças e Adolescentes
teve em sua composição renomados peritos na questão, entre eles, André
Felipe Gomma de Azevedo, Beatriz Cruz da Silva, Benedito Rodrigues dos
Santos, Casimira Benge, Daniel Issler, Eduardo Rezende Melo, Fabiana
Gorenstein, Heloiza de Almeida Prado Botelho Egas, Itamar Batista Gonçalves,
Ivanilda Figueiredo, João Batista Saraiva, José Antônio Daltoé Cezar, Luiziana
Souto Schaefer, Robson Rui Campos de Almeida e Thiago André Pierobom de
Ávila. Ao finalizar constou que o projeto de lei era essencial para o
aprimoramento do sistema jurídico brasileiro e para a conformidade da
legislação doméstica aos acordos internacionais de proteção dos direitos
humanos das crianças e dos adolescentes.
Desse último trabalho legislativo surgiu a Lei 13.431, publicada em 04
de abril de 2017, regulamentada pelo Decreto n. 9.603, de 10 de
dezembro de 2.018.
3 – SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS DA CRIANÇA E
DO ADOLESCENTE VÍTIMA OU TESTEMUNHA DE
VIOLÊNCIA
A Lei 13.431/2017 normatiza e organiza o sistema de garantia de
direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, e
cria mecanismos para prevenir e coibir a violência.
O Decreto n. 9.60310, de 10 de dezembro de 2018, regulamentou a Lei
nº 13.431, de 4 de abril de 2017, e em sua Seção I do Capítulo II, traz a
estrutura do sistema de garantia de direitos.
A composição do Sistema de Garantia de Direitos e os responsáveis
pela detecção dos sinais de violência são os órgãos, os programas, os serviços
e os equipamentos das políticas setoriais que integram os eixos de promoção,
controle e defesa dos direitos da criança e do adolescente.
O sistema trabalhará de forma integrada e coordenada, garantidos os
cuidados necessários e a proteção das crianças e dos adolescentes vítimas
ou testemunhas de violência, os quais deverão (a) instituir,
preferencialmente no âmbito dos conselhos de direitos das crianças e dos
adolescentes, o comitê de gestão colegiada da rede de cuidado e de
proteção social das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de
violência, com a finalidade de articular, mobilizar, planejar, acompanhar e
avaliar as ações da rede intersetorial, além de colaborar para a definição
dos fluxos de atendimento e o aprimoramento da integração do referido
comitê; (b) definir o fluxo de atendimento; e (c) criar grupos intersetoriais
locais para discussão, acompanhamento e encaminhamento de casos de
suspeita ou de confirmação de violência contra crianças e adolescentes.
O sistema tem toda uma estrutura de proteção à criança e adolescente
para garantir seus direitos, que será analisado de acordo com os
dispositivos na norma em comento.
4 – PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA
O primeiro dispositivo da lei traz seu objetivo específico: “normatiza e
organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou
testemunha de violência, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência”.
A aplicação e interpretação da norma veremos adiante, quando da
análise do art. 3.º; contudo, desde já, podemos verificar que a lei deixou
claro que ela veio para normatizar e organizar a oitiva de crianças e
adolescentes.
A lei criou regras específicas de escuta, organizando os procedimentos
dentro de um sistema de garantia às crianças e adolescentes, sejam elas
vítimas ou testemunhas de violência pela própria norma definidas, com
mecanismos de prevenção e coibição da violência.
Os infantes – crianças e adolescentes– serão ouvidos de duas formas:
escuta especializada, que é o procedimento de entrevista sobre situação de
violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção,
limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua
finalidade (art. 7.º); e depoimento especial, que é o procedimento de oitiva
da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante
autoridade policial ou judiciária (8.º).
A normatização da escuta protegida veio para atender a uma garantia
constitucional: Princípio da Prioridade Absoluta (CF, art. 227, como previsto nos
arts. 4.º e 100, parágrafo único, II, do Estatuto da Criança e Adolescente11).
Está previsto na Carta Magna que é dever da família, da sociedade e do
Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente tem
origem relativamente recente. No direito romano, com a separação dos
pais os filhos ficavam com o pai, tendo em vista a concepção vigente à
época de que o pai era o senhor e proprietário de tudo, inclusive dos filhos.
No século XIV, surgiu na Inglaterra o instituto do parens patriae, que se
consubstanciava em uma prerrogativa do Rei e da Coroa para proteger
pessoas incapazes e suas propriedades; no século XVII, houve a
diferenciação das atribuições do parens patriae para a proteção das crianças
e dos loucos, impondo-se assim outros standards de conduta, ou seja, a
variação do tratamento conforme a situação diferenciada.
Foi nesse período de transformações que se constatou que o sistema
de tutela da criança e do adolescente passava por políticas públicas, ou seja,
dada a necessidade de tutela diferenciada da criança e do adolescente, era
necessária a intervenção do Estado. No âmbito dessa mudança de
comportamentos teve início, já no século XIX, a presunção de que os
pequenos, até os sete anos de idade, deveriam ficar com a mãe, em
princípio a pessoa mais adequada para cuida da criança (tender years
presumption). Embora pudesse parecer, à primeira vista, que se tratara de
uma simples mudança, do ambiente paterno ao materno, foi uma alteração
de grandes proporções, em virtude de sua justificativa: a presunção do
ambiente materno fundava-se essencialmente nos ‘melhores interesses das
crianças’.
O princípio do Best Interest foi consagrado no 7.º Princípio da
Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, segundo o qual, “os melhores
interesses da criança serão a diretriz a nortear os responsáveis pela sua
educação e orientação; esta responsabilidade cabe, em primeiro lugar, aos
pais”. Dando seguimento à Declaração de 1959, a Convenção sobre os
Direitos da Criança, de 1989, fixou no art. 3.º, 1, que “todas as ações
relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de
bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos
devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança”.
O princípio do “melhor interesse da criança” é corolário da doutrina da
proteção integral, que perpassou os mandamentos da Carta Magna de
1988. Tal doutrina sustenta que a criança e o adolescente têm direitos
específicos a serem protegidos. O dever de proteção não se limita ao
Estado, mas se estende à família e à sociedade, constituindo um dever
social.
Não obstante os inquestionáveis avanços, ainda existem graves
obstáculos que distanciam a tutela integral da criança da realidade. Vive-se,
assim, na prática brasileira, um concreto problema de eficácia das normas
que atribuem à criança e ao adolescente um extenso rol exemplificativo de
direitos e garantias fundamentais; por outro lado, basta verificar a violência
doméstica, abuso sexual, mortalidade infantil, trabalho infantil, trabalho
escravo, prostituição infantil, descumprimento dos deveres paternais,
dentre outros.
A escuta especializada e o depoimento especial vêm ao encontro desses
direitos para garantir aos infantes a proteção do Estado para narrarem as
violências sofridas ou que presenciaram evitando a revitimização.
5 – DIREITOS HUMANOS DAS CRIANÇAS E DOS
ADOLESCENTES
O Brasil, segundo Luciano Maia12 (2008, p. 117), é parte de quase todas
as convenções e tratados de direitos humanos celebrados no âmbito das
Nações Unidas. Dentre eles, os principais instrumentos internacionais de
proteção e defesa dos Direitos Humanos são: Pacto Internacional dos
Direitos Civil e Políticos (1966), incorporado ao Direito Brasileiro pelo
Decreto n. 592, de 07/07/1992; Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (1966), incorporado ao Direito Brasileiro pelo Decreto n.
592, de 07/07/1992; Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial (1968), incorporado ao Direito Brasileiro
pelo Decreto 65.810, de 09/12/1969; Convenção Internacional Sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979),
incorporado ao Direito Brasileiro pelo Decreto 89.460, de 20/03/1984;
Convenção Sobre os Direitos da Criança (1989), incorporado ao Direito
Brasileiro pelo Decreto 99.710, de 21/11/1990; e Convenção Contra a
Tortura e Outras Formas de Tratamento Desumanos ou Cruéis (1984),
incorporado ao Direito Brasileiro pelo Decreto n. 98.386, de 09/11/1989, e
pela Lei 9.455/97.
Hoje a Convenção sobre os Direitos da Criança é um dos instrumentos
mais importantes reconhecidos internacionalmente, mas no passado
recente não era assim.
O início do debate internacional sobre os Direitos das Crianças e
Adolescentes tem um marco: caso Marie Anne.
BASTOS13 retrata este caso, que teve grande repercussão no século
XIX. Ocorreu na cidade de Nova York, no EUA. A menina (Maria Anne)
tinha nove anos e sofria maus-tratos pelos pais, o que desencadeou uma
grande repercussão no ano de 1896, fazendo com que o caso chegasse aos
tribunais. No entanto, até aquele momento não existia, no sistema
judiciário norte-americano, uma entidade destinada à proteção e defesa dos
direitos das crianças e adolescentes, o que desencadeou um sentimento de
defesa por parte da Sociedade Protetora dos Animais, que alegou que até
mesmo os animais devem ser livres de uma vida de agressões, tratamentos
violentos ou degradantes.
A primeira referência que se tem, em âmbito internacional, sobre a
proteção específica dos direitos humanos da infância e da adolescência é a
Juvenile Court Art de Illinois, que foi o primeiro Tribunal de Menores nos
Estados Unidos, criado em 1899. A ideia espalhou-se pela Europa entre
1905 e 1921, quando praticamente todos os países europeus criaram seus
Tribunais de Menores (SPOSATO, 2006, p. 3314).
No entanto, foi após a Primeira Guerra Mundial, quando um grande
número de crianças e adolescentes tinham se tornado órfãos, que “os
menores” começaram a ter reconhecidos seus direitos, com a criação de
um Comitê de Proteção da Infância pela Liga das Nações em 1919,
considerado o primeiro órgão governamental supranacional a aprimorar e
focar seu trabalho nas crianças (VANNUCHI; OLIVEIRA, 2010, p. 3315).
Em 1924 incorporou-se pela Liga das Nações, reunida em Genebra,
pela primeira vez a expressão Declaração dos Direitos da Criança,
resultado de um trabalho do Comitê de Proteção da Infância.
Essa declaração, que foi elaborada e redigida por membros da ONG Sav
the Children, representa o primeiro documento internacional sobre os
Direitos da Criança, buscando garantir a proteção e motivar os Estados-
Membros a estabelecerem dispositivos que garantissem a proteção dessa
população em âmbito nacional.
Veio a Segunda Guerra Mundial e graves direitos dos infantes foram
atingidos, milhares de crianças ficaram órfãs ou deslocadas de seuspais e
famílias; atrocidades ocorreram envolvendo crianças e adolescentes. A
ONU criou o fundo de ajuda internacional (Unicef – United Nations
International Child Emergency Fund) com o objetivo de socorrer “os
menores” a partir dos países devastados pela guerra, mas se exigia algo
mais.
A ONU, então, em 1959, dá mais abrangência com a Declaração
Universal dos Direitos da Criança, na qual reafirma a importância de se
garantir a universalidade, a objetividade e a igualdade nas questões relativas
aos direitos da criança. A partir dessa declaração as crianças e adolescentes
passaram a ser considerados prioridade absoluta e sujeitos de direitos em
sentido amplo.
ANGÉLICA BARROSO BASTOS16 afirma que apesar de se reconhecer
uma proteção especial às crianças prevista em documentos internacionais
como a Declaração de Genebra, de 1924, e a Declaração dos Direitos
importantes, como de 1959, a doutrina da Proteção Integral somente
ganhou contornos mais definidos em 1963, com o Congresso Pan-
americano realizado em Mar del Plata, na Argentina, quando a Proteção
Integral do Menor foi tema central. Com base nesse congresso ocorreu em
1969 a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (conhecida como
Pacto de San José da Costa Rica), na qual se estabeleceu o conceito de
proteção integral, definindo no art. 19 que “toda a criança tem o direito de
proteção que a sua condição de menor requer, por parte da família, da
sociedade e do Estado” (COSTA, 2004, p. 01).
6 – RESOLUÇÃO Nº 20/2005 DO CONSELHO
ECONÔMICO E SOCIAL DAS NAÇÕES UNIDAS E OUTROS
DIPLOMAS INTERNACIONAIS
As Nações Unidas, por meio do Conselho Econômico e Social das
Nações Unidas – ECOSOC –, elaboraram a Resolução n. 20/2005, que
estabelece diretrizes internacionais para que os órgãos jurisdicionais dos
estados participantes adotem com a finalidade de garantir a integridade e os
direitos das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes.
O anexo17 da Resolução prevê a estrutura no Ato Administrativo.
O escopo da Resolução são os procedimentos adotados em face dos
infantes, que também garantem o direito à ampla defesa do autor da
violência, equilibrando, assim, os direitos, as garantias e a eficácia do
processo, protegendo a criança e o adolescente.
O Relatório Analítico Propositivo – JUSTIÇA PESQUISA – A Oitiva de
Crianças no Poder Judiciário Brasileiro, com foco na implementação da
Recomendação n. 33/2010 do CNJ e da Lei 13.431/201718, aborda em
síntese as diretrizes, os princípios, direitos e as boas práticas para oitiva de
crianças e adolescentes: “As diretrizes que devem ser adotadas pelos países
inseridos nas Nações Unidas estão anexadas ao relatório. Nela estão
estabelecidos objetivos que devem ser perseguidos pelos estados, quais sejam:
(a) revisão de leis e procedimento internos, com finalidade de garantir-se a
compatibilidade principiológica; (b) auxílio aos governos, organizações não
governamentais na formulação e aplicação da legislação, políticas e programas;
(c) orientação de profissionais e voluntários; (d) orientação e ajuda aos que
lidam diretamente com as crianças em processo, para que confiram a estas
tratamento sensível e compatível à vulnerabilidade. Por conseguinte, são
estabelecidos na resolução em comento princípios que devem nortear os
operacionalizadores dos processos que envolvam crianças. São eles: (1)
dignidade relacionada diretamente ao respeito da criança; (2) não
discriminação, enquanto postulado da isonomia, que indica que o tratamento
deve ser o mesmo para toda e qualquer criança; (3) melhor interesse da
criança, evidenciado na proteção integral e preocupação com o desenvolvimento
harmonioso; e, por fim, (4) participação, na perspectiva de que a criança e o
adolescente são, sobretudo, sujeitos de direito com direito à voz e de serem
ouvidos em processo, precipuamente aos que lhe digam respeito. A Resolução n.
20/2005 ainda elenca direitos que devem ser observados no âmbito dos países,
quais sejam: (1) direito a tratamento digno e com compaixão; (2) direito à
proteção de qualquer discriminação; (3) direito à informação de forma
abrangente; (4) direito a ser ouvido e a expressar opiniões e preocupações; (5)
direito à assistência eficaz; (6) direito à privacidade; (7) direito à proteção
quanto às eventuais adversidades processuais; (8) direito à segurança; (9)
direito à reparação; (10) direito a medidas preventivas especiais. Por fim, na
resolução há preocupação com a implementação das denominadas boas
práticas para oitiva de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas em
processos criminais. Enfatiza-se que o principal aspecto para se garantir a
realização da prova eficientemente no processo penal com a preservação dos
direitos da criança depende da qualificação dos profissionais. Portanto, um dos
esforços na implementação é a formação, educação, informação e treinamento
continuados dos profissionais que realizam procedimentos de oitiva de crianças
e adolescentes. Há que se focar no desenvolvimento de competências para
implementação do DE, conforme expõe Marleci V. Hoffmeister (2019, p. 116):
[…] ao se falar em processo de capacitação, não podemos perder de vista a
estreita relação que há com o termo competência, pois não basta ter recebido
capacitação se o profissional não desenvolveu as competências para planejar,
executar, desenvolver”.
Diretrizes sobre Justiça para as crianças vítimas ou testemunhas de
crimes, portanto, estabelecem boas práticas baseadas no consenso do
conhecimento contemporâneo e das normas, padrões e princípios
internacionais e regionais relevantes e devem ser aplicadas em
conformidade com a legislação nacional e os procedimentos judiciais
pertinentes, bem como ter em conta as condições jurídicas, sociais,
econômicas, culturais e geográficas.
No entanto, os Estados devem esforçar-se constantemente para
superar dificuldades práticas na aplicação das Diretrizes.
7 – PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS
ADOLESCENTES NO BRASIL
A Lei 8.069/90 (ECA) operou uma verdadeira revolução no
ordenamento jurídico nacional, introduzindo novos paradigmas na proteção
e garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes.
A norma estatutária regulamentou a doutrina da proteção integral,
recepcionada pelo art. 227 da CF, apresentando um diploma inovador,
verdadeiro instrumento da democracia participativa, retirando dos infantes
a condição de mero objeto de medidas policiais e judiciais, conferindo-lhes
a posição de sujeitos de direitos fundamentais.
Deu-se a condição de prioridade nacional, fornecendo meios
necessários à efetivação de seus interesses, direitos e garantias.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é considerado mundialmente
um dos melhores textos legais sobre a matéria relacionada a proteção de
crianças.
A doutrina de proteção integral adotada pelo ECA decorre da
Convenção dos Direitos da Criança.
O art. 2.º, item 2, da Convenção dos Direitos da Criança, dispões sobre
o termo proteção. O art. 19 obriga todos os Estados a adotar medidas
legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas a proteger as
crianças contra todas as formas de violência. Daí a origem da referida
norma-base do ECA: o art. 19 da convenção.
O ECA perfilha a doutrina da proteção integral, baseada no
reconhecimento de direitos especiais e específicos de todas as crianças e
adolescentes (v. art. 3.º). Embora a Convenção não faça expressa menção
ao termo proteção integral, esse novo paradigma fica evidenciado diante da
grande quantidade de direitos reconhecidos. Foi anteriormente prevista no
texto constitucional, no art. 227, instituindo a chamada prioridade absoluta.
A palavra informa a precedência, a “prima facie” dos direitos da criança e
do adolescente em confronto com os outros. Isso em razão da fragilidade e
da vulnerabilidade, devendo existir um regime especial de proteção (Luís
Carlos Barroso, voto proferido no RExt 777889).
Assim, a doutrina da proteção integral e o princípiodo melhor interesse
são duas regras basilares do direito da infância e da juventude que devem
permear todo tipo de interpretação dos casos envolvendo crianças e
adolescentes.
Trata-se da admissão da prioridade absoluta dos direitos da criança e do
adolescente.
8 – MEDIDAS DE ASSISTÊNCIA E PROTEÇÃO À CRIANÇA E
AO ADOLESCENTE EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
Ao final do disposto, observa-se que o legislador frisou a observação da
norma às medidas de assistência e proteção.
A norma garante a proteção integral, o que já estava previsto em outros
ordenamentos jurídicos, mas acresceu regras de assistência diante da
violência, que são medidas que podem ser adotadas contra o agressor ou
usadas pelos infantes, a saber: a) receber assistência jurídica qualificada e
psicossocial especializada, e facilite a sua participação e o resguarde contra
comportamento inadequado adotado pelos demais órgãos atuantes no
processo; b) ser assistido por profissional capacitado e conhecer os
profissionais que participam dos procedimentos de escuta especializada e
depoimento especial; e c) direito a pleitear medidas protetivas contra o
autor da violência; etc.
O importante dentro de todo o ordenamento da novel legislação é que
está garantida a proteção dos infantes para relatar seus sofrimentos sem
revitimização, embora encontremos alguns poucos doutrinadores que ainda
acham tempo para criticar essa iniciativa afirmando que esse tipo de
legislação serve apenas como lei que promete garantias contraditórias,
quando o real não atinge o ideal (triste assim!).
Art. 2º
Art. 2º A criança e o adolescente gozam dos direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas a proteção integral
e as oportunidades e facilidades para viver sem violência e preservar
sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e
social, e gozam de direitos específicos à sua condição de vítima ou
testemunha.
Parágrafo único. A União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios desenvolverão políticas integradas e coordenadas que visem
a garantir os direitos humanos da criança e do adolescente no âmbito
das relações domésticas, familiares e sociais, para resguardá-los de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, abuso,
crueldade e opressão.
Legislação Correlata
CF, arts. 1.º, III, 3.º, IV, 5.º, caput, I, 226, §8.º, parte final, e 227, caput, parte final, e §4.º; Lei
13.431/2017, arts. 4.º, §4.º, 14, 16, parágrafo único, e 25; ECA, arts. 3.º, 4.º, caput e parágrafo
único, 5.º, 17, 18, 70-A, 86 e 100, parágrafo único, I, II e III, e 208, XI; e Decreto n. 9.603/2018.
Análise Doutrinária
1 – DESCRIÇÕES DE UMA HISTÓRIA SEM DIREITOS
2 – A CRIANÇA E O ADOLESCENTE COMO SUJEITOS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
3 – DIREITOS FUNDAMENTAIS INERENTES À PESSOA HUMANA
4 – APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
5 – ATENDIMENTO PELO PODER PÚBLICO
1 – DESCRIÇÕES DE UMA HISTÓRIA SEM DIREITOS
Os infantes, crianças e adolescentes, até há pouco tempo não gozavam
de qualquer direito.
A história nos conta isso. NUCCI19, utilizando a lição de André Karst
Kaminski, conta-nos esta história: “na época medieval, sob os olhos europeus,
os menores não tinham quase nenhum valor, pois não produziam com a mesma
capacidade do adulto e ainda tinham de ser alimentados, cuidados, vestidos…
Enfim, eram indivíduos dependentes, motivo pelo qual muitos acabavam
morrendo pelo abandono, pela negligência ou pela exploração quando vendidos
para servir de escravos, ou embarcados para servir de mão de obra nas
navegações, empreendendo esforços sobre-humanos, consumindo alimentação
estragada e convivendo em um ambiente desprovido das mínimas condições de
saúde e higiene. Além disso, e em decorrência da proibição da presença de
mulheres nos navios, o que envolvia também um certo misticismo de que
atraíam o azar à expedição, o menor era também seviciado, servindo de
‘mulher’ nas embarcações, que às vezes lotavam mais de 80 homens e ficavam
no mar por quase um ano. (…) Essa, então, foi a primeira criança – portuguesa
– que aqui chegou: abandonada, vendida, explorada, seviciada. Depois,
sabemos, a mesma forma de tratamento dos conquistadores continuou com a
criança indígena – brasileira – que aqui foi encontrada, ludibriada, dominada,
reduzida em sua liberdade e escravizada, mesmo contra a vontade dos jesuítas
católicos, que depois para cá vieram a fim de catequizá-las (em 1570, D.
Sebastião redige a Carta Régia, garantindo liberdade aos índios, cuja escravidão
só seria definitivamente proibida em 1595). E isso também se seguiu por um
longo período com a criança africana, já nascida filha da escravidão (em 1538
começam a chegar os primeiros escravos africanos: no Período Colonial, mais de
quatro milhões foram trazidos, a grande maioria jovens do sexo masculino)” –
O Conselho Tutelar, a Criança e o ato infracional: proteção ou punição?, p.
15.
Na sequência, citando Lidia Natalia Dobrianskyj Weber, Laços de
Ternura, Pesquisas e Histórias de Adoção, p. 28, traz outro trecho desta
história sem direitos: “[…] desde a Antiguidade, em praticamente todas as
sociedades, o abandono ou exposição de crianças e, mesmo o infanticídio, eram
práticas comuns. Nesta época a família estava sob a autoridade do pai, o qual
tinha direito à vida e à morte sobre seus filhos. Para os romanos, o direito à vida
era outorgado em um ritual, geralmente pelo pai, que tinha direitos ilimitados
sobre seus filhos. O recém-nascido era depositado aos pés de seu pai e, se ele
desejasse reconhece-lo, tomava-o em seus braços; se o pai saía da sala, a
criança era levada para fora da casa e exposta na rua. Se a criança não morria
de fome ou de frio, pertencia a qualquer pessoa que desejasse criá-la e
transformá-la em escrava. Legalmente, esse direito durou até o século IV d. C.,
mas informalmente, o infanticídio e o abandono eram práticas comuns até o
final da Idade Média. É possível perceber o clima reinante por um pensamento
do famoso filósofo Aristóteles, que dizia: ‘um filho e um escravo são propriedade
dos pais e nada do que se faça com sua propriedade é injusto, pois não pode
haver injustiça com a propriedade de alguém’ (Roig e Ochotorena, 1993)”.
Somente em época recente passamos a valorar nossas crianças e
adolescentes, conferindo a eles direitos com proteção integral.
2 – A CRIANÇA E O ADOLESCENTE COMO SUJEITOS DE
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Segundo J. J. Gomes Canotilho20, direitos fundamentais “são os direitos
do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-
temporalmente […] direitos fundamentais seriam os direitos objetctivamente
vigentes numa ordem jurídica concreta”.
Esses direitos são considerados inatos ao ser humanos e estão previstos
na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e presentes
nos Estados Democráticos de Direito.
A Constituição de 1988 previu e assegurou em seu art. 5.º os direitos
fundamentais.
No que tange à criança e ao adolescente, o legislador constituinte
particularizou dentre os direitos fundamentais aqueles que se mostram
indispensáveis à formação do indivíduo ainda em desenvolvimento,
elencando-os no caput do art. 227: direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar.
O Estatuto da Criança e do Adolescente consagrou em seu artigo 3.º a
criança e o adolescente como sujeitos de direitos, e não como objetos.
Está previsto no ECA que a criança e o adolescente gozam de todos os
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção
integral de que trata o estatuto, assegurando-se, por lei ou por outros
meios, todas as oportunidades e facilidades a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de
liberdade e de dignidade.
O dispositivo em análise é quase uma reprodução do que já prevê o art.
3.º do ECA, sendo decorrência natural do contidono art. 5.º, caput, e
inciso I, da CF, que confere a todas as crianças e adolescentes igualdade de
direitos em relação a todos os demais cidadãos brasileiros e estrangeiros
residentes no país.
A garantia prevista na ordem jurídica é que, apesar da ausência da plena
capacidade civil, as pessoas em desenvolvimento têm o poder de
ostentarem, como titulares, prerrogativas inerentes ao exercício de direitos
fundamentais. Poderão, pois, exercer livremente os direitos humanos
reconhecimentos internamente que, positivados, passam a ostentar o status
de fundamentais.
3 – DIREITOS FUNDAMENTAIS INERENTES À PESSOA
HUMANA
A Constituição Federal de 1988, no caput do art. 5.º, reconhece como
titular de direitos fundamentais, orientada pelo princípio da dignidade
humana (inciso III do art. 1.º) e pelos conexos princípios da isonomia e da
universalidade, toda e qualquer pessoa, seja ela brasileira ou estrangeira
residente no País.
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano,
que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua
proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de
condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana,
pode ser definido como direitos fundamentais.
Esses direitos têm elevada posição hermenêutica em relação aos demais
direitos previstos no ordenamento jurídico, diante das diversas
características presentes21: imprescritibilidade (os direitos humanos
fundamentais não se perdem pelo decurso do prazo), inalienabilidade (não
há possibilidade de transferência dos direitos humanos fundamentais),
inviolabilidade (impossibilidade de desrespeito por determinações
infraconstitucionais ou por atos das autoridades públicas, sob pena de
responsabilidade civil, administrativa e criminal), universalidade (a
abrangência desses direitos engloba todos os indivíduos,
independentemente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou convicção
político-filosófica), efetividade (a atuação do Poder Público deve ser no
sentido de garantir a efetivação dos direitos e garantias previstos, com
mecanismo coercitivos para tanto, uma vez que a Constituição Federal não
se satisfaz com o simples reconhecimento abstrato), interdependência (as
várias previsões constitucionais, apenas de autônomas, possuem diversas
intersecções para atingir suas finalidades) e complementaridade (os direitos
humanos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas na
forma conjunta, com a finalidade de alcance dos objetivos previstos pelo
legislador constituinte).
A Carta Magna, em seu Título II, classificou os direitos fundamentais em
cinco capítulos: Direitos Individuais e Coletivos (correspondem aos direitos
diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de sua própria
personalidade, v.g., vida, dignidade, honra e liberdade, estando previstos no
art. 5.º), Direitos Sociais (tem por finalidade a melhoria das condições de
vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, que
configura um dos fundamentos de nosso Estado Democrático, estando
consagrado no art. 6.º), Direitos de Nacionalidade (é o vínculo jurídico
político que liga um indivíduo a certo e determinado Estado, fazendo desde
indivíduo um componente do povo, da dimensão pessoal deste Estado,
capacitando-o a exigir sua proteção e sujeitando-o ao cumprimento de
deveres impostos), Direitos Políticos (conjunto de regras que disciplina as
formas de atuação da soberania popular) e Direitos Relacionados à
Existência, Organização e Participação em Partidos Políticos (a CF
regulamentou os partidos políticos como instrumentos necessários e
importantes para preservação do Estado Democrático de Direito,
assegurando- lhes autonomia e plena liberdade de atuação, para concretizar
o sistema representativo).
O respeito aos direitos humanos fundamentais, principalmente pelas
autoridades públicas, é pilastra mestra na construção de um verdadeiro
Estado Democrático de Direito.
A previsão dos direitos humanos fundamentais direciona-se
basicamente para a proteção à dignidade humana em seu sentido mais
amplo.
A norma que instituiu o Depoimento Especial assegura que a criança e
o adolescente gozam dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.
4 – APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Constituiu-se regra assegurar a proteção integral e as oportunidades e
facilidades para viver sem violência e preservar sua saúde física e mental e
seu desenvolvimento moral, intelectual e social, gozando, ainda, de direitos
específicos à sua condição de vítima ou testemunha.
A criança e o adolescente em decorrência de sua idade, estágio de
formação da personalidade, deve ter-lhe assegurado viver em um mundo
sem violência, preservando sua saúde, seja física ou mental, para que possa
se desenvolver moral e intelectualmente dentro do seio social.
Ocorrendo, entretanto, qualquer violência definida na lei (art. 4.º), seja
ela vítima ou testemunha, é-lhe assegurada nessas condições a aplicação
dos direitos fundamentais, evitando, assim, que sofra mais com seus
horrores.
5 – ATENDIMENTO PELO PODER PÚBLICO
Os entes federados deverão desenvolver políticas integradas e
coordenadas que visem a garantir os direitos humanos da criança e do
adolescente no âmbito das relações domésticas, familiares e sociais, para
resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, abuso, crueldade e opressão.
O legislador avocou o Poder Público para realizar essa tarefa de política
de atendimento.
O Decreto n. 9.603/2018, de 10 de dezembro de 2018, que
regulamentou a Lei 13.431/2017, reforçou esse entendimento ao imputar a
ele (Poder Público) o dever de assegurar as condições de atendimento
adequadas para que crianças e adolescentes vítimas de violência ou
testemunhas de violência sejam acolhidos e protegidos e possam se
expressar livremente em um ambiente compatível com suas necessidades,
características e particularidades (art. 8.º).
Esse atendimento deve ocorrer dentro do sistema de garantia de
direitos22.
Art. 3º
Art. 3º Na aplicação e interpretação desta Lei serão considerados os
fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições
peculiares da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento, às quais o Estado, a família e a sociedade devem
assegurar a fruição dos direitos fundamentais com absoluta prioridade.
Parágrafo único. A aplicação desta Lei é facultativa para as vítimas e
testemunhas de violência entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos,
conforme disposto no parágrafo único do art. 2º da Lei no 8.069, de 13
de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Legislação Correlata
CF, art. 227, caput, e §4.º; Lei 13.431/2017, arts. 4.º, § 4.º, 14, 16, parágrafo único, e 25; ECA, arts.
1.º, 2.º, caput e parágrafo único, 4.º, 5.º, 6.º e 100, parágrafo único, II e IV; Estatuto da Juventude
(Lei 12.852/2013); Leis 12.318 e 12.318/2010; e Decreto n. 9.603/2018.
Análise Doutrinária
1 – APLICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA LEI DO DEPOIMENTO ESPECIAL
2 – FINS SOCIAIS DA NORMA
3 – APLICAÇÃO À ÁREA CÍVEL
4 – CONDIÇÕES PECULIARES DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE EM DESENVOLVIMENTO
5 – GARANTIAS ASSEGURADAS PELO ESTADO, FAMÍLIA E SOCIEDADE
5.1 – Garantias Asseguradas pelo Estado
5.2 – Garantias Asseguradas pela Família
5.3 – Garantias Asseguradas pela Sociedade
6 – APLICAÇÃO FACULTIVA
1 – APLICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA LEI DO
DEPOIMENTO ESPECIAL
No direito brasileiro quem disciplina a aplicação das leis em geral é a Lei
de Introdução às Normas do Direito brasileiro (Lei 12.376/2010).
Sua função é reger as normas, indicando como interpretá-las ou aplicá-
las, determinando-lhe a vigência e a eficácia.
O intérprete, dentro desse contexto, deve examinar a norma de
acordo com as regras do vernáculo, utilizando de raciocínio lógico para
uma análise metódica da norma em toda a sua extensão, desvendando seu
sentido e alcance a partir do ordenamento jurídico de que é parte,relacionando-se com todas as outras com o mesmo objetivo, direta ou
indiretamente, partindo da premissa dos seus antecedentes históricos,
verificando-se as circunstâncias fáticas e jurídicas que lhe antecederam,
tomando como parâmetro a sua finalidade, adaptando-a às novas exigências
sociais.
A Lei 13.431 foi publicada no Diário Oficial da União em 05 de abril de
2017, e teve período de vacatio legis de um ano (art. 29), entrando em
vigor em 05 de abril de 2018 (art. 29).
O primeiro dispositivo da lei traz seu objetivo específico: “normatiza e
organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou
testemunha de violência, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência”.
São dois verbos bem definidos: normatizar e organizar.
A lei criou regras específicas de escuta, organizando os procedimentos
dentro de um sistema de garantia23 às crianças e adolescentes, sejam elas
vítimas ou testemunhas de violência pela própria norma definidas, com
mecanismos de prevenção e coibição da violência.
Os infantes – crianças e adolescentes – serão ouvidos de duas formas:
escuta especializada, que é o procedimento de entrevista sobre situação de
violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção,
limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua
finalidade (art. 7.º); e depoimento especial, que é o procedimento de oitiva
da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante
autoridade policial ou judiciária (8.º).
Considera-se criança, para os efeitos do Estatuto da Criança e do
Adolescente, a pessoa até doze anos de idade incompletos e adolescente
aquele entre doze e dezoito anos de idade (ECA, art. 2.º); contudo, é
facultada a aplicação da norma entre os 18 e 21 anos (LDE, art. 3.º,
parágrafo único).
Adota-se um critério cronológico absoluto, sem qualquer menção à
condição psíquica ou biológica. Assim, é o aniversário de 12 anos que faz a
criança tornar-se adolescente, e o aniversário de 18 anos que faz o
adolescente tornar-se adulto.
A aplicação da norma, sem prejuízo dos princípios estabelecidos nas
demais normas nacionais e internacionais de proteção dos direitos da
criança e do adolescente, terá como base, entre outros, os direitos e as
garantias fundamentais definidos no art. 5.º da lei.
A lei se aplica às vítimas ou testemunhas das violências definidas na
norma, que são: física, psicológica, sexual e institucional (art. 4.º).
Os casos omissos serão interpretados à luz do disposto na Lei 8.069/90
(ECA) e Lei 11.340/06 (MARIA DA PENHA)24.
2 – FINS SOCIAIS DA NORMA
Quando da análise de uma norma, seja nas cadeiras acadêmicas dos
cursos de direito, seja na vida profissional atuando como advogado,
defensor, promotor, magistrado, todo o profissional do direito é conduzido
a entender que quão melhor conhecer a lei, seus dispositivos etc. mais
corretamente fará sua aplicação.
Sabemos todos que há várias técnicas ou processos interpretativos –
gramatical ou literal, lógico, sistemático, histórico e sociológico ou
teleológico –, teorias – objetiva (mens legis) ou subjetiva (mens legislatoris) –
ou efeitos da interpretação – declarativo, extensivo ou restritivo –;
contudo, a abordagem neste ponto cinge-se quanto ao fim social da norma,
que está previsto no art. 5.º da Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro (Lei 12.376/2010).
Todo intérprete deve ter consciência e saber que o sentido legal para
aplicar a norma ao caso concreto é empregar todas as técnicas
interpretativas e os meios integradores, combinando, entre si, sem,
contudo, esquecer do fim social a que se dirige e as exigências do bem
comum.
Não há lei que não contenha uma finalidade social imediata.
Para Aristóteles: “O fim é a causa final ou aquilo em razão do qual algo se
faz.” (Ética nicomaquea, VII, 8, 1151)25.
O princípio da finalidade da lei norteia toda a tarefa interpretativa na
busca da autêntica mens legis; por estar, como ensina Celso Bandeira de
Mello26, contido no princípio da legalidade, logo a aplicação da lei em
desconformidade com seus fins constitui ato de burlar a lei, pois quem
desatende ao fim legal está desvirtuando a própria lei.
Maria Helena Diniz afirma que na falta de definição do termo “fim
social” o intérprete-aplicador em cada caso sub judice deverá averiguar se a
norma a aplicar atende à finalidade social, que é variável no tempo e no
espaço, aplicando o critério teleológico na interpretação da lei, sem
desprezar os demais processos interpretativos. Procederá técnica
teleológica, mostrando a utilidade em vincular o ato interpretativo do
magistrado à sua decisão, tendo em vista um dado momento. O fim social é
o objetivo de uma sociedade, encerrado na somatória de atos que
constituirão a razão de sua composição; é, portanto, o bem social, que
pode abranger o útil, a necessidade social e o equilíbrio de interesses etc. O
intérprete-aplicador poderá (a) concluir que um caso que se enquadra na
lei não deverá ser por ela regido porque não está dentro de sua razão, não
atendendo à finalidade social; (b) aplicar a norma a hipóteses fáticas não
contempladas pela letra da lei, mas nela incluídas, por atender a seus fins.
Consequentemente, fácil será perceber que comando legal não deverá ser
interpretado fora do meio social presente; imprescindível será adaptá-la às
necessidades sociais existentes no momento de sua aplicação.
O propósito, a finalidade, consiste em produzir na realidade social
determinados efeitos que são desejados por serem valiosos, justos,
convenientes, adequados à subsistência de uma sociedade e oportunos.
Os fins a serem atendidos são impostos à norma jurídica pela realidade
social concreta.
Como dito na introdução deste dispositivo, a lei hoje só existe graças ao
trabalho pioneiro do nosso colega Des. Daltoé; contudo, por trás de seu
ato, estava a preocupação e garantia à proteção das crianças e dos
adolescentes vítimas de violência e evitar a impunidade dos agentes ativos.
Embora com alguns anos de retardo, depois de muita resistência, tudo
isso é fruto da implementação de políticas públicas específicas reunidas a
partir de diversos órgãos dos poderes públicos em defesa das crianças e
dos adolescentes, dentro de um sistema de garantias instituído a partir do
Estatuto da Criança e do Adolescente e da normatização da sistemática das
garantias dos direitos das crianças e dos adolescentes (Resolução n.
113/CONANDA/200627).
A resolução criou um Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do
Adolescente que consiste na articulação e integração de políticas públicas
governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos
normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e
controle para a efetivação dos direitos humanos das crianças e dos
adolescentes em todos os níveis federados.
Esse sistema deve promover, defender e controlar a efetivação dos
direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, coletivos e difusos,
em sua integralidade, em favor de todas as crianças e dos adolescentes, de
modo que sejam reconhecidos e respeitados como sujeitos de direitos e
pessoas em condições peculiar de desenvolvimento, colocando-os a salvo
de ameaças e violação a quaisquer de seus direitos, além de garantir a
apuração e reparação dessas ameaças e violações.
É dentro desse contexto normativo, pois, que a lei deve ser aplicada.
3 – APLICAÇÃO NA ÁREA CIVIL
Na análise da norma, sem o devido cuidado, parece que a lei veio para
atender aos anseios somente da violência criminal.
Não é verdade!
A proteção da novel legislação atende também as relações civis em que
a criança ou adolescente seja vítima ou testemunha.
O inciso II do art. 4.º define a violência psicológica e assegura a aplicação
da Lei nestes casos.
São inúmeras as situações às quais se aplica: a) qualquer conduta de
discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao
adolescente mediante ameaça, constrangimento,humilhação, manipulação,
isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença,
exploração ou intimidação sistemática (bullying) que possa comprometer
seu desenvolvimento psíquico ou emocional; b) ato de alienação parental,
assim entendido como a interferência na formação psicológica da criança ou
do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós
ou por quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao
repúdio de genitor ou que causa prejuízo ao estabelecimento ou à
manutenção de vínculo com este; e c) qualquer conduta que exponha a
criança ou o adolescente, direta ou indiretamente a crime vigente contra
membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do
ambiente em que cometido, particularmente quando isso a torna
testemunha.
Ocorrendo, pois, a violência psicológica, deve ser aplicada a presente
norma às relações da área cível, seja estatutária ou na propriamente dita.
Como isso ocorre na prática?
Quando a autoridade judiciária28 receber do Conselho Tutelar (ou de
qualquer agente não legitimado à defesa judicial dos interesses
infantojuvenis) um pedido de providências ou similar, cabe sua imediata
remessa ao Ministério Público (art. 221, do ECA) para que o agente
ministerial, eventualmente com base em informações adicionais a serem
colhidas no âmbito de um procedimento administrativo ou inquérito civil
instaurado no âmbito da Promotoria de Justiça, tome as providências
administrativas (preferencialmente) ou, se necessário, judiciais, para solução
do problema.
O Ministério Público detém legitimidade e atribuição para promover as
ações necessárias no interesse das crianças e adolescentes (ECA, arts. 201
e 212).
Contudo e muitas vezes, detectada a situação de vulnerabilidade da
criança ou do adolescente, o Juiz ao receber a notícia dos fatos pelo
Conselho Tutelar ou de qualquer agente não legitimado à defesa judicial dos
interesses infantojuvenis (v.g., diretor de escola, agente comunitário,
comissário de menores, médico do PSF, assistentes sociais, psicólogos etc.)
pode instaurar de ofício, se preciso for, o procedimento inominado (ou
verificatório) – ECA, art. 153 – para determinar comando urgente e
necessário (v.g., inclusão do infante em ensino obrigatório, suspensão do
poder familiar, institucionalização familiar, abrigamento, etc.) até que haja a
intervenção judicial pelos legitimados.
Na prática a conclusão desse procedimento nos leva à propositura de
uma medida judicial pelo MP, o arquivamento pela solução imediata com as
medidas adotadas de ofício e cessão do problema que originou a abertura
do procedimento ou, ainda, encaminhamento à equipe técnica para estudos
e diligências necessárias, entre outros.
Os Tribunais do país adotam essa posição (possibilidade) do
procedimento inominado de ofício previsto no art. 153 do ECA.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Possibilidade de aplicação de
medida protetiva, de ofício. Suspensão do poder familiar. Suficientes elementos
comprobatórios da negligência e violência a que submetidos os menores. 1. O
art. 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente autoriza a aplicação de
medidas protetivas pela autoridade competente quando verificada qualquer das
hipóteses de ameaça ou de violação a direitos da criança e do adolescente,
previstas no art. 98 do Estatuto. Desse modo, tendo o Juízo a quo verificado
que as visitas realizadas pelos agravantes representavam grave prejuízo ao
bem-estar e à integridade psicológica dos infantes, bem poderia aplicar, de
ofício, medida de proteção suficiente para coloca-los a salvo de qualquer
situação de risco – como, de fato, o fez. 2. Os elementos probatórios coligidos
nos autos do procedimento para aplicação da medida de proteção ajuizada em
favor dos menores são suficientes para respaldar a decisão liminar de suspensão
do poder familiar, haja vista que os genitores negligenciam a prole nos cuidados
com a higiene e saúde, além do fato de o genitor perpetrar agressões físicas
tanto em relação aos filhos quanto em relação à própria genitora. Tal medida,
que tem por finalidade o resguardo dos infantes, não é definida e poderá ser
revertida, bastando para tanto que os genitores demonstrem, a contento, que
reúnem condições de exercer plenamente os deveres inerentes àquele poder,
não expondo os menores a qualquer situação de risco” (AI 70057248197/RS,
8.ª Câmara Cível, rel. Luiz Felipe Brasil Santos, 04.02.2014).
Tribunal de Justiça de Minas Gerais: “Reputa-se legal e, por consectário,
não viola direito líquido e certo da impetrante o ato do Magistrado que, atento
aos interesses da criança, admite representação manejada pela psicóloga
judicial e determina a aplicação de medida protetiva de abrigamento, pois
percebe-se claramente a autorização constitucional e infraconstitucional para
que a sociedade e o Poder Público, como um todo, atuem em defesa dos direitos
e interesses dos infantes. 2. Não basta, para fins de mandado de segurança,
que a pretensão ajuizada seja admissível perante o nosso ordenamento jurídico.
Urge que ocorra, no caso concreto, violação ao ‘direito líquido e certo’. Esta é a
condição primária e essencial ao instituto do mandamus e deve estar vinculado
a fatos e situações comprovados de plano, e não ‘a posteriori’. 3 Denega-se a
ordem” (MS 1.0000.08.478894-2/000, 4.ª Câm. Cível, rel. Célio César
Paduani, 03.02.2009, v.u.).
A Corte Superior – Superior Tribunal de Justiça – já teve oportunidade
de assim se manifestar: “3. A peculiaridade reside nos limites da atuação
administrativa do juízo da infância e da juventude, ao se deparar com situações
urgentes que demandem a sua atuação protetiva; em síntese, a pergunta é:
pode o órgão jurisdicional da infância e da juventude demandar, de ofício,
providências, com base no art. 153, da Lei 8.069/90. 4. A doutrina é pacifica no
sentido de que o juízo da infância pode agir de ofício para demandar
providência em prol dos direitos de crianças e adolescentes que bem se
amoldam ao caso concreto; Leciona Tarcísio José Martins Costa: ‘O poder geral
de cautela do Juiz de Menores, atual Juiz da Infância e Juventude e da
Juventude, reconhecido universalmente, sempre foi exercido
independentemente de provocação, já que consiste nas medidas protecionais e
preventivas que deve tomar, tendo em vista o bem-estar do próprio menor –
criança e adolescente –, que deve ser resguardado e protegido por
determinações judiciais, mesmo que as providências acauteladoras não estejam
contempladas na própria lei’ (Estatuto da Criança e do Adolescente
Comentado. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 315/316). 5. O controle
jurisdicional de tais medidas deve ocorrer pelo prisma da juridicidade, ou seja,
pela avaliação; por um lado, da necessidade de concretizar direitos dos menores
previstos na Constituição Federal e na legislação; por outro, da
proporcionalidade e razoabilidade da medida. No escrever de Roberto João
Elias, ‘A faculdade concedida, entretanto, deve sempre ser utilizada em favor da
criança ou do adolescente, não podendo, de forma alguma, se transformar em
atitude arbitrária, que contrarie a finalidade primordial da lei, que é a proteção
integral do menor. É na busca de tal desiderato que se permite a utilização dos
meios não considerados na legislação. Tais meios, entretanto, devem se
harmonizar completamente com os princípios que regem a matéria, devendo-se
sempre recordar que o menor é sujeito e não objeto de direitos’ (Comentários
ao Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, 4
ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 211-212). 6. Em síntese, não é possível
reconhecer a existência de direito líquido e certo ao município impetrante que
objetive anular determinação de providências no sentido de concretizar o direito
a educação de menores em situação de urgência, tal como pedido pelo
Conselho Tutelar. Recurso ordinário improvido.” (STJ, RMS 36.949/SP, 2.ª T.,
rel. HumbertoMartins, 19.03.2012, v.u.).
Os procedimentos referidos então vinculados ao Estatuto da Criança e
do Adolescente; contudo, na hipótese de alienação parental, as medidas
judiciais devem ser adotadas por meio de ação própria e na esfera cível (Lei
12.318/2010, art. 4.º).
4 – CONDIÇÕES PECULIARES DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE EM DESENVOLVIMENTO
A expressão significa que a criança e o adolescente têm todos os
direitos de que são detentores os adultos desde que sejam aplicáveis à sua
idade, ao grau de desenvolvimento físico ou mental e à sua capacidade de
autonomia e discernimento, v.g. Um bebê não pode exercer o direito de ir
e vir; uma criança não pode e não deve trabalhar, tampouco pode ser
responsabilizada perante a lei pelo cometimento de um ato infracional da
mesma forma que um adolescente.
Serem consideradas pessoas em condição peculiar de desenvolvimento
foi uma das principais conquistas das crianças.
Isso significa que, além de todos os direitos de que desfrutam os adultos
e que sejam aplicáveis à sua idade, a criança e o adolescente têm ainda
direitos especiais decorrentes do fato de que: a) ainda não têm acesso ao
conhecimento pleno de seus direitos; b)
ainda não atingiram condições de defender seus direitos frente a omissões
e transgressões capazes de violá-los; c) não contam com meios próprios
para arcar com a situação de suas necessidades básicas; e d) por se tratar
de seres em pleno desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e
sociocultural, a criança e o adolescente não podem responder pelo
cumprimento das leis e demais deveres e obrigações inerentes à cidadania
da mesma forma que os adultos.
A mesma regra está prevista no art. 6.º do ECA.
Na aplicação e interpretação da Lei do Depoimento Especial devemos
levar em consideração as condições peculiares das crianças e dos
adolescentes.
5 – GARANTIAS ASSEGURADAS PELO ESTADO, FAMÍLIA E
SOCIEDADE
O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente
(SGDCA) consolidou-se a partir da Resolução 113 do Conselho Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) de 2006.
O início do processo de formação do Sistema de Garantia dos Direitos,
porém, é fruto de uma mobilização anterior, marcada pela Constituição de
1988 e pela promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
como parâmetro para políticas públicas voltadas para crianças e jovens, em
1990.
O SGDCA é formado pela integração e a articulação entre o Estado, as
famílias e a sociedade civil como um todo, para garantir que a lei seja
cumprida, que as conquistas do ECA e da Constituição de 1988 (no seu
artigo 227) não sejam letra morta.
De forma articulada e sincrônica, o SGDCA estrutura-se em três
grandes eixos estratégicos de atuação: Defesa, Promoção e Controle. Essa
divisão nos ajuda a entender em quais campos age cada ator envolvido e
assim podemos cobrar de nossos representantes suas responsabilidades,
assim como entender as nossas como cidadãos dentro do Sistema.
5.1. – Garantias Asseguradas pelo Estado
O Princípio da Cooperação decorre de que a todos – Estado, Família e
Sociedade – compete o dever de proteção contra a violação dos direitos da
criança e do adolescente, enfim, é dever de todos prevenir a ameaça aos
direitos do menor.
O Estado tem uma estrutura voltada para um sistema de garantia de
direitos.
Esse Sistema de Garantia de Direitos é articulado por meio de três
formas: promoção, controle e defesa, que envolvem vários órgãos e
instituições do poder público na esfera federal, estadual e municipal, como
o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, as delegacias,
os hospitais, as instituições de acolhimento, fundações e vários outros que
devem estar articulados em rede, como um só sistema de integração.
A rede trabalha com a junção de atividades, interação entre órgãos e
entidades da administração pública, sem hierarquia, integrando e
concretizando diretrizes de proteção aos infantes.
Há descentralização do poder para melhor adequar as políticas públicas
e priorizar os direitos sociais das crianças e dos adolescentes.
Dentre os órgãos e instituições desta rede estão o CONANDA, os
CEDCAs, os CMDCAs, o Poder Judiciário, o Ministério Público, a
Defensoria Pública, as Secretarias de Segurança Pública e outros órgãos e
instituições com funções similares e os Conselhos Tutelares.
A previsão normativa de cada um desses órgãos e instituições no
sistema de proteção é de fundamental importância. Assim, o CONANDA –
Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes – possui como
funções principais definir as políticas voltadas para a área das crianças e
adolescentes, poder para fiscalizar as ações executadas pelo poder público,
ser responsável pelo Fundo Nacional da Criança e do Adolescente (FNCA),
distribuindo as verbas de forma proporcional, defender e promover os
direitos das crianças e dos adolescentes conforme estabelecido no ECA,
dever de definir as diretrizes que serão traçadas em âmbito estadual e
municipal e também pelos Conselhos Tutelares, dever de acompanhar a
elaboração e a execução do Orçamento da União, verificando se os
recursos necessários para a execução das políticas de promoção e defesa
dos direitos da população infantojuvenil estão assegurados.
Em relação aos CEDCAS – Conselhos Estaduais dos Direitos da Criança e
do Adolescente, são órgãos colegiados existentes em cada estado da
Federação que possuem atribuição para dispor sobre a Política Estadual dos
Direitos da Criança e do Adolescente da sua área de atuação e que
estabelecem normas gerais de atendimento e defesa dos direitos das
crianças e dos adolescentes. Esses conselhos são órgãos deliberativos, de
caráter permanente e de composição paritária entre o Poder Público e a
sociedade civil, tendo por finalidade deliberar sobre as políticas de
atendimento, promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente,
bem como definir prioridades e controlar as ações voltadas para essas
faixas etárias da população.
Os CMDCAs – Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do
Adolescente – são considerados os principais meios para discussão e
formulação das políticas para a infância e a adolescência em âmbito
municipal, pois visam estabelecer políticas e gerenciar recursos além de
elaborar, deliberar e fiscalizar todos os trabalhos voltados à criança e ao
adolescente, bem como efetuar a elaboração de diagnóstico sobre a
situação de crianças e adolescentes no município, o registro de
funcionamento e a fiscalização de entidades não governamentais e a
construção de uma rede de proteção intersetorial das políticas públicas
voltadas para garantir a cidadania infantojuvenil.
No que se refere ao Poder Judiciário, verifica-se que no período
anterior à existência do Estatuto da Criança do Adolescente – ECA havia o
“Juiz de Menores”, que possuía poderes quase ilimitados. Atualmente, com
o ECA, o juiz da infância tem suas funções mais delimitadas, representando
o Poder Judiciário em nome do Estado, desenvolvendo os atos
jurisdicionais, instruindo e atuando como julgador nos processos nos quais
se discute os interesses das crianças e adolescentes em situação de risco,
ameaça ou que têm seus direitos violados. Também é o juiz da infância
quem julga os adolescentes infratores, aplicando-lhes as medidas
socioeducativas cabíveis, de acordo com o Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Com relação à resolução das questões referentes a crianças e
adolescentes, com o surgimento do ECA, o juiz da infância e juventude
tornou-se responsável apenas pelos aspectos jurisdicionais; os aspectos
administrativos ficaram a cargo do Conselho Tutelar da Criança e do
Adolescente, que tem natureza administrativo-contenciosa.
O Estatuto da Criança e do Adolescente atribuiu ao Ministério Público
as funções previstas nos artigos 200 a 202. Suas atribuições podem ser
resumidas em duas competências principais: atuação em ações públicas, ou
seja, das ações que tratam da prevalênciado interesse da sociedade sobre o
individual. Dessa forma, com relação às questões que envolvem crianças e
adolescentes, cabe ao Ministério Público dar início ao procedimento de
apuração de ato infracional praticado por adolescente; e Fiscal da Lei,
competindo-lhe acionar a Justiça sempre que algum direito fundamental da
criança ou do adolescente for violado.
O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê nos artigos 206 e 207
que toda criança e adolescente deve ser acompanhado por advogado de
sua escolha na solução da lide, ou por Defensor Público, respeitado o
segredo de justiça.
Como se observa, a lei assegura os direitos às crianças e adolescentes e
garante a orientação e a defesa dos seus direitos, como a ampla defesa e o
contraditório, entre outros princípios constitucionais, tanto antes como no
curso de um eventual processo.
A Defensoria Pública tem se destacado na defesa dos adolescentes que
respondem pela prática de ato infracional, mormente porque em sua
maioria são hipossuficientes social e economicamente.
Quanto à Secretaria de Segurança Pública, os órgãos que a integram
direta ou indiretamente e os similares, a lição do educador e psicólogo
Antônio José Ângelo Motti29 é salutar ao destacar que as polícias são
segmentos imprescindíveis no processo de garantias de direitos,
principalmente em se tratando da responsabilização de agressores, de
exploradores, de traficantes de crianças, etc.
Por fim, os Conselhos Tutelares que possuem a missão de zelar pelo
cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes e é considerado
um órgão público municipal instituído por lei municipal.
Ao Conselho Tutelar compete deliberar e agir aplicando as medidas
práticas pertinentes sem interferência, exercendo suas funções com
independência, inclusive para relatar e corrigir distorções existentes na
própria administração municipal relativas ao atendimento das crianças e dos
adolescentes.
No entanto, suas decisões só podem ser revistas pelo juiz da Infância e
da Juventude, a partir de requerimento de quem se sentir prejudicado.
Importante observar que apesar de ser um órgão autônomo e não
jurisdicional, as suas ações são passíveis de fiscalização pelos órgãos que
protegem os interesses das crianças e dos adolescentes.
Vale ressaltar ainda que o Conselho Tutelar é um órgão permanente,
pois uma vez instituído não mais pode ser excluído, ocorrendo apenas a
renovação de seus membros a cada três anos.
O Conselho Tutelar deve ser utilizado como meio de transmitir às
Crianças e aos Adolescentes a cidadania, atuando como aconselhador em
atendimento às Crianças, Adolescentes, Pais e demais familiares.
5.2. – Garantias Asseguradas pela Família
A Constituição Federal, no artigo 226, dita: “A família, base da
sociedade, tem especial proteção do Estado.” Desse modo, destaca-se que a
lei suprema efetiva a responsabilização por parte do Estado para garantir o
fundamento e o alicerce familiar de maneira adequada.
A importância da família na vida do indivíduo é imensurável, uma vez
que, a partir dela ele adquire os primeiros conceitos que formarão os
pilares de seu caráter e servirão de orientação para os caminhos a serem
trilhados em toda a sua trajetória de vida.
Originalmente, no Direito Romano, a família tinha um contorno
patriarcal, cuja tradição reforçava o pensamento da Igreja Católica no
conceito de família, influenciando o Código Civil Brasileiro de 1916,
regulando as relações familiares a manter, durante muito tempo, o vínculo
conjugal como indissolúvel por meio do casamento religioso, no qual a
figura paterna exercia legitimamente o poder sobre os demais entes
familiares, regendo o núcleo familiar como chefe absoluto, pela forte
influência do poder familiar. Nesse contexto, somente era reconhecida pela
nossa sociedade, como entidade familiar, a família natural constituída pelo
casamento, em flagrante discriminação legislativa.
A Carta Constitucional de 1988 traz um novo marco na evolução do
conceito de família, reconhecendo a União Estável e a família monoparental
como entidades familiares, conforme dispõe no art. 226, §§ 3º e 4º. A
premissa passa a ser a proteção de todas as formas de entidade familiar
diversas do casamento, fundamentadas no afeto e na solidariedade, por se
tratar de norma inclusiva.
A família atual abandonou, então, o sistema patriarcal, estabelecendo
aos pais direitos e deveres iguais para com os filhos, cujas opiniões devem
ser valoradas e respeitadas igualmente, sendo os entes sujeitos de direitos e
deveres recíprocos, visando ao bem-estar comum. A Constituição Cidadã
determina que sejam asseguradas às crianças e aos adolescentes os diretos
fundamentais a eles inerentes em condições de liberdade e dignidade, cuja
responsabilidade solidária por essa efetivação cabe à família, à sociedade em
geral, à comunidade e ao poder público na figura do Estado, devido à sua
vulnerabilidade em face da condição peculiar de pessoas em
desenvolvimento sujeitos de direito a proteção integral.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em consonância com a
Constituição e com a Declaração Internacional dos Direitos das Crianças
1989, assim consideradas até os 18 (dezoito) anos de idade, dispõe sobre
os direitos e deveres das crianças e dos adolescentes como pessoas em
desenvolvimento, sujeitas à proteção integral, cabendo à sociedade em
geral, à família e ao Estado zelar pelo seu desenvolvimento e formação da
personalidade dos adultos que serão, de modo a assegurar um futuro digno
ao nosso país, verdadeiros cidadãos.
Considerando que o papel da família é fundamental na concretização do
sistema de garantias, há de ser considerado nos termos da nossa
Constituição Federal de 1988 que estabelece ser essa a base da sociedade
e, portanto, compete a ela, juntamente com o Estado, a sociedade em geral
e a comunidade, assegurar à criança e ao adolescente o exercício de seus
direitos fundamentais.
Dentre os direitos fundamentais da criança e do adolescente está o
direito à convivência familiar e comunitária. Em respeito ao disposto nos
artigos 226 e 227 da Constituição Federal, as leis orgânicas das políticas
sociais foram sendo editadas e reformadas aprofundando esses princípios
constitucionais, regulamentados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,
tornando-os operacionais e especializados, de acordo com a construção
dos sistemas de atendimento de direitos. Em decorrência, se procedeu
com a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social-LOAS30, da Lei
Orgânica da Saúde31 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação32.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Art. 25, define como
família natural “a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus
descendentes”. Entretanto, a definição legal não supre a necessidade de se
compreender a complexidade e riqueza dos vínculos familiares e
comunitários que podem ser mobilizados nas diversas frentes de defesa dos
direitos de crianças e adolescentes. Para tal, torna-se necessária uma
definição mais ampla de “família”, com base socioantropológica. A família
pode ser pensada como um grupo de pessoas que são unidas por laços de
consanguinidade, de aliança e de afinidade. Esses laços são constituídos por
representações, práticas e relações que implicam obrigações mútuas. Por
sua vez, essas obrigações são organizadas de acordo com a faixa etária, as
relações de geração e de gênero, que definem o status da pessoa dentro do
sistema de relações familiares.
Como gestores e orientadores das crianças e dos adolescentes, no
grupo familiar não figura apenas como atores de obrigações, mas também
como agentes de proteção e defesa dos direitos emanados da Carta
Constitucional e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa forma,
estabelecendo-se uma interpretação sistemática dos dispositivos
protetivos, constatamos que são responsáveis também quando omissos do
dever de denunciar possíveis ou reconhecidas violações a direitos da
criança ou adolescente
Deacordo com o art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio de
sua família, sendo dever do poder público, da sociedade e da família
assegurar com absoluta prioridade os direitos da criança e do adolescente.
Além disso, afirma Carrada Firmo33 que: “as medidas de reeducação e
fortalecimento das famílias, além de serem mais eficazes para a proteção de
crianças e adolescentes, são muito menos onerosas para os cofres públicos,
uma vez que programas de orientação, educação e recuperação física e
psicológica dos pais são mais baratos”.
Nenhum lugar é melhor para qualquer criança ou adolescente do que
no seio de sua família natural, desde que esta seja capaz de suprir as
necessidades básicas deles.
Ocorre que nem sempre nos deparamos com famílias bem-
estruturadas dentro da comunidade, e quando isso ocorre, um trabalho
deve ser desenvolvido para que seja possível recuperar o bom
relacionamento familiar para o alcance de um ambiente saudável para o
desenvolvimento digno da criança ou adolescente.
Uma família quando orientada e ciente de seus deveres para com os
protetivamente tutelados pelo Estatuto consegue participar do sistema de
garantias trabalhando no sentido de efetivar a proteção, prevenir abusos,
abandono, exploração e violência.
5.3. – Garantias Asseguradas pela Sociedade
A todos os membros da sociedade impõe-se o respeito e a submissão
às normas expressas nos tratados e convenções internacionais, na nossa
Carta Magna e no Estatuto da criança e do adolescente. O Estado é
responsável pela implementação das políticas públicas de bem-estar da
infância e juventude, porém, a sociedade tem sua corresponsabilidade
expressamente prevista na Lei n° 8.069/1990. A responsabilidade dos
atores sociais começa na escolha dos responsáveis pela elaboração das leis
de proteção à criança e ao adolescente, e se estende, alcançando a
cobrança para a implantação dos direitos legalmente previstos. O Estatuto
é um instrumento importante nas mãos do Estado Brasileiro, pois trabalha
para transformar a realidade da criança e do adolescente que por
decorrência histórica são vítimas de abandono e de exploração econômica
e social. Nesse atual contexto, repensar o papel da sociedade parece ser,
também, um ponto-chave na aplicação do Sistema de Garantias e Direitos
da Infância e Adolescência com vistas à proteção integral. “O Estatuto da
Criança e do Adolescente atribuiu o dever de prevenir a ocorrência de ameaça
ou violação dos direitos da criança e do adolescente a toda sociedade (art. 70),
impondo medidas de prevenção às pessoas físicas e jurídicas, conforme se
depreende dos arts. 74 a 85, prevendo penas constantes dos arts. 235/244 e
245/248, respectivamente, para os crimes e infrações administrativas contra a
criança e o adolescente, sendo tais crimes de ação pública incondicionada.”34
Não cabe à sociedade substituir o Estado, mas sobretudo, fazer o
controle social. O Sistema de Garantias de Direitos à Criança e ao
adolescente estabelece que, para a implementação das normas estatuídas
no ECA, deve haver um reordenamento institucional que atenda ao
seguinte tripé: promoção, controle social e defesa. Na sociedade civil
devem estar todos esses eixos na visão de sua vocação primária: controle
social.
Precisamos pensar nas crianças e nos adolescentes sob o enfoque de
sua peculiar condição de desenvolvimento. É importante que a sociedade
se conscientize, conheça e exerça seu papel para mudança de
comportamento diante dos paradigmas da proteção integral e da prioridade
absoluta, além de se posicionar na articulação e mobilização em prol do
controle e efetivação das políticas públicas para infância e adolescência.
Ademais, a sociedade civil atua de forma imprescindível no monitoramento
e na efetivação de denúncias das violações ou supostas violações por parte
do Estado, da família, ou, até mesmo, das próprias crianças e adolescentes
que se expõem a situações de risco. Diante do exposto, é preciso visualizar
perspectivas positivas para a realidade da infância e juventude brasileira,
porque a normatividade vigente é preciosa e certamente tem capacidade
de gerar efeitos, o que se faz necessário é conscientizar a sociedade do que
significa a proteção integral e em quais perspectivas essa proteção não
pode ser afastada.
6 – APLICAÇÃO FACULTATIVA
O parágrafo único prevê a aplicação facultativa da norma “às vítimas e
testemunhas de violência entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos,
conforme disposto no parágrafo único do art. 2.º da Lei 8.069…” (ECA).
Nos procedimentos nos quais há vítima ou testemunha entre 18 a 21
anos e nas hipóteses do parágrafo único do art. 2.º do ECA, a norma é
facultativa.
Pela interpretação, em um primeiro momento asseguramos que, aos
menores de 18 (dezoito) anos – crianças e adolescentes –, a aplicação dela
é obrigatória, sob pena de nulidade, além de caracterizar violência
institucional (art. 4.º, IV).
A referência ao parágrafo único do art. 2.º do ECA está ligada
diretamente ao fato de que uma pessoa completar 18 anos não interfere na
apuração de ato infracional nem na aplicabilidade de medida socioeducativa
em curso.
A matéria era objeto de discussão no meio acadêmico e nos tribunais
até que o STJ pacificou esse entendimento, inclusive virou súmula: Súmula
605 – “A superveniência da maioridade penal não interfere na apuração de ato
infracional nem na aplicabilidade de medida socioeducativa em curso, inclusive
na liberdade assistida, enquanto não atingida a idade de 21 anos.”
A súmula é o resumo de entendimentos consolidados nos julgamentos e
serve para a orientação da comunidade jurídica a respeito da jurisprudência
do tribunal.
Consideramos que, embora ela seja facultativa, o ideal é que seja
aplicada sempre. Os princípios que embasam a presente lei preconizam a
humanização e o cuidado com as vítimas ou testemunhas das violências
descritas por ela própria (art. 4.º) e decorrem naturalmente do princípio da
dignidade da pessoa humana (CF, art. 1.º, III), o que deveria ser uma regra,
e não exceção.
Lado outro, acreditamos, contudo, que embora haja referência
específica ao parágrafo único do art. 2.º do ECA, pode ela ser aplicada em
outras hipóteses, ainda que por analogia.
Vejamos que o Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei 13.143/2015 –,
na parte especial, que trata do acesso à justiça (Livro II, Título I, arts. 79 a
87), prevê à pessoa com deficiência – aquela que tem impedimento de longo
prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação
com uma ou mais barreiras pode obstruir sua participação plena e efetiva na
sociedade em igualdade de condições com a demais pessoas (LDF, art. 2.º) – o
dever de ser oferecido todos os recursos de tecnologia assistiva (TA)
disponíveis para que a pessoa com deficiência tenha garantido o acesso à
justiça sempre que figure em um dos polos da ação ou atue como
testemunha (art. 80, caput).
Neste caso, diante de uma situação em que o deficiente seja parte,
vítima ou testemunha, independentemente da sua idade, é possível que,
dentro da estrutura da realização da escuta forense –, especializada ou
depoimento especial –, seja ele(a) no ambiente adequado – Tecnologia
Assistiva (TA)35 – acolhido para prestar suas declarações ou depoimento.
No mesmo sentido é o caso da extensão da proteção integral à figura
do jovem além dos 21 anos36, que é o caso do Estatuto da Juventude (Lei
12.852/2013, art. 1.º, §1.º), com garantia à promoção do efetivo acesso
daqueles jovens com deficiência à justiça em igualdade de condições com as
demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais
adequadas a sua idade (art. 38, VI).
Art. 4º
Art. 4º Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das
condutas criminosas, são formas de violência:
I - violência física, entendida como a ação infligida à criança ou ao
adolescente que ofenda sua integridadeou saúde corporal ou que lhe
cause sofrimento físico;
II - violência psicológica:
a) qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em
relação à criança ou ao adolescente mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão
verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou
intimidação sistemática (bullying) que possa comprometer seu
desenvolvimento psíquico ou emocional;
b) o ato de alienação parental, assim entendido como a interferência na
formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou
induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob
sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou
que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo
com este;
c) qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou
indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de
sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido,
particularmente quando isto a torna testemunha;
III - violência sexual, entendida como qualquer conduta que constranja
a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou
qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou
vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda:
a) abuso sexual, entendido como toda ação que se utiliza da criança ou
do adolescente para fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato
libidinoso, realizado de modo presencial ou por meio eletrônico, para
estimulação sexual do agente ou de terceiro;
b) exploração sexual comercial, entendida como o uso da criança ou
do adolescente em atividade sexual em troca de remuneração ou
qualquer outra forma de compensação, de forma independente ou sob
patrocínio, apoio ou incentivo de terceiro, seja de modo presencial ou
por meio eletrônico;
c) tráfico de pessoas, entendido como o recrutamento, o transporte, a
transferência, o alojamento ou o acolhimento da criança ou do
adolescente, dentro do território nacional ou para o estrangeiro, com o
fim de exploração sexual, mediante ameaça, uso de força ou outra
forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade,
aproveitamento de situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação
de pagamento, entre os casos previstos na legislação;
IV - violência institucional, entendida como a praticada por instituição
pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização.
§ 1º Para os efeitos desta Lei, a criança e o adolescente serão ouvidos
sobre a situação de violência por meio de escuta especializada e
depoimento especial.
§ 2º Os órgãos de saúde, assistência social, educação, segurança pública
e justiça adotarão os procedimentos necessários por ocasião da
revelação espontânea da violência.
§ 3º Na hipótese de revelação espontânea da violência, a criança e o
adolescente serão chamados a confirmar os fatos na forma especificada
no § 1º deste artigo, salvo em caso de intervenções de saúde.
§ 4º O não cumprimento do disposto nesta Lei implicará a aplicação
das sanções previstas na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto
da Criança e do Adolescente).
Legislação Correlata
CF, art. 227, caput, e §4.º; Lei 13.431/2017, art. 7º a 13, parágrafo único; CC, arts. 1.589, parágrafo
único; CP, arts. 213 a 226; ECA, arts. 5.º, 13, 17, 18, 18-A, 18-B 19, II e III, 22, 33, §4.º, 56, I, 70-A,
70-B, 94-A, 98, 100, parágrafo único, I, XI e XII, 136, I e II, 190-A a 190-E, 208, 212, 213, 216, 232,
239, 240 a 241-E, 244-A e 245; Lei 9.455/97 (Tortura); Lei 12.318/10 (Alienação Parental); Lei
12.845/13 (Atendimento Obrigatório e Integral de Pessoas em situação de Violência Sexual) e
Decreto n. 7.958/13; Lei 13.185/15 (Bullying); Lei 13.344/16 (Prevenção e Repressão ao Tráfico
Interno e Internacional de Pessoas; Decreto n. 9.603/2018; e Res. CNJ n. 299/2019.
Análise Doutrinária
1 – INTRODUÇÃO
2 – FORMAS DE VIOLÊNCIA
2.1 – VIOLÊNCIA FÍSICA
2.1.1 – Lei da Palmada
2.2 – VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
2.2.1 – No Meio Social
2.2.1.1 – Discriminação
2.2.1.2 – Depreciação ou Desrespeito
2.2.1.3 – Meios de Discriminação, Depreciação ou Desrespeito
2.2.1.3.1 – Ameaça
2.2.1.3.2 – Constrangimento
2.2.1.3.3 – Humilhação
2.2.1.3.4 – Manipulação
2.2.1.3.5 – Isolamento
2.2.1.3.6 – Agressão Verbal e Xingamento
2.2.1.3.7 – Ridicularização
2.2.1.3.8 – Indiferença
2.2.1.3.9 – Exploração
2.2.1.3.10 – Intimidação Sistemática (bullying)
2.2.1.3.11 – Comprometimento do Desenvolvimento Psíquico ou Emocional da Criança ou do
Adolescente
2.2.2 – Na Relação Familiar
2.2.2.1 – Alienação Parental como Violência Psicológica
2.2.2.2 – Alienação Parental e as Falsas Acusações de Abuso Sexual
2.2.3 – Como Conduta Criminosa
2.3 – VIOLÊNCIA SEXUAL
2.3.1 – Definição de Violência Sexual
2.3.2 – Violência Sexual pelo Abuso Sexual (art. 4.º, III, alínea a)
2.3.2.1 – Incesto
2.3.3 – Violência Sexual pela Exploração Sexual Comercial (art. 4.º, III, alínea b)
2.3.4 – Violência Sexual pelo Tráfico de Pessoas com o Fim de Exploração Sexual (art. 4.º, III, alínea
c)
2.3.5 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual contra Criança e Adolescente
2.3.5.1 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual em Espécie
2.3.5.1.1 – Do Estupro de Pessoas Menores de 18 anos ou Maiores de 14 Anos
2.3.5.1.2 – Estupro de Vulnerável
2.3.5.1.3 – Do Uso de Menor Vulnerável para Servir à Lascívia de Outrem
2.3.5.1.4 – Da Satisfação da Lascívia Mediante Presença de Criança ou Adolescente
2.3.5.1.5 – Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma de Exploração Sexual de Vulnerável
2.3.5.1.6 – Uso de Menor Relativamente Vulnerável para Servir à Lascívia de Outrem
2.3.5.1.7 – Rufianismo de Menor
2.3.5.1.8 – Do Assédio Sexual do Menor
2.3.5.2 – Da Infiltração de Agentes de Polícia para a Investigação de Crimes contra a Dignidade
Sexual de Crianças e Adolescentes
2.3.5.3 – O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Proteção Contra a Pornografia e o Aliciamento
Infantojuvenil
2.3.5.4 – Pedofilia, Hebefilia e Pederastia
2.4 – VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL
3 – MEIO DE ESCUTA FORENSE
3.1 – Introdução
3.2 – Escuta Especializada
3.3 – Depoimento Especial
4 – REVELAÇÃO ESPONTÂNEA DA VIOLÊNCIA À REDE DE PROTEÇÃO E AFINS
5 – REVELAÇÃO ESPONTÂNEA DA VIOLÊNCIA EM CASOS DE INTERVENÇÃO DE SAÚDE
6 – EXIGÊNCIA DO CUMPRIMENTO DA LEI (SANÇÕES)
6.1 – Introdução
6.2 – Tipificação de Crimes
6.3 – A Tipificação de Infrações Administrativas
6.3.1 – Introdução
6.3.2 – Infrações Administrativas Específicas Aplicadas à Lei do Depoimento Especial
6.4 – A Aplicação de Medidas Pertinentes aos Pais ou Responsáveis
6.5 – A Aplicação de Penalidades aos Encarregados de Cuidado, às Entidades de Atendimento
Responsáveis pela Execução de Programas Socioeducativos e de Proteção
6.6 – A Aplicação de Medidas às Entidades de Atendimento que Descumprirem as Obrigações do
Programa de Internação
6.7 – Sanções ao Poder Público
1 – INTRODUÇÃO
Violência é definida pela Organização Mundial da Saúde como “o uso
intencional de força física ou poder, ameaçados ou reais, contra si mesmo,
contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que resultem ou
tenham grande probabilidade de resultar em ferimento, morte, dano
psicológico, mau desenvolvimento ou privação”, embora o grupo reconheça
que a inclusão de “uso do poder” em sua definição expande a compreensão
convencional da palavra.
Segundo Morais37 (1985, p.24): “(…) violência está em tudo que é capaz
de imprimir sofrimento ou destruição ao corpo do homem, bem como o que
pode degradar ou causar transtornos à sua integridade psíquica. Resumindo:
violentar o homem é arrancá-lo da sua integridade física e mental”.
A violência em muitas formas é evitável. Existe uma forte relação entre
os níveis de violência e os fatores modificáveis, como a pobreza
concentrada, a desigualdade de renda e de gênero, o uso nocivo do álcool e
a ausência de relações seguras, estáveis e estimulantes entre as crianças e
os pais. As estratégias que abordam as causas subjacentesda violência
podem ser eficazes na prevenção da violência.
No meio social em que vivemos, estamos expostos cada dia a mais
violência, não só pelo que vivenciamos no cotidiano da vida em sociedade
(relação social), como aquilo que nos é sugestionado a ver, ler ou ouvir
sobre a violência, gerando a institucionalização cultural deste ato e capaz de
mudar comportamentos por conta da forma como ela é vista.
Na literatura, a representação da violência é rica e variada. Há exemplos
interessantes em Euclides da Cunha (que fez Os Sertões; tem um relato
primoroso da Guerra dos Canudos), e destaca-se a obra do chamado
regionalismo nordestino de José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano
Ramos. Em Capitães de areia (1936), Jorge Amado mostra, com ternura, a
violência de um grupo de meninos abandonados nas rua de Salvador; em
Jubiabá (1935), ele mostra a trajetória de Antônio Balduíno, menino de rua
que pratica atos criminosos menores, boxeador, assassino (quando o olho
da piedade vazou), vagabundo e finalmente grevista, que aprende o caminho
da razão justamente quando confrontado com a violência política. Mas é
Graciliano Ramos que, na literatura do Brasil, se compara a Dostoiévski38
na presença constante da violência. Suas obras trazem quase
invariavelmente o conflito do homem que sofre alguma restrição, alguma
coação ou alguma rejeição social, econômica ou cultural e tenta inutilmente
reverter esse quadro. Em seus livros de memórias, como Infância (1945) e
Memórias do Cárcere (1953) Graciliano documenta sua própria convivência
com o mundo violento e cruel.
O cinema é um veículo que tem uma grande infiltração mundial. Muitos
dos filmes apresentam cenas de extrema e exagerada violência. A vida
humana é por vezes tratada como algo banal. Trata-se também de um tipo
de violência cultural, na medida em que são estabelecidos novos valores
incompatíveis com a conduta humana.
A televisão tem sido tema de muita discussão em relação às cenas de
violência realística. Muitas vezes, quase simultaneamente, expõe em suas
programações, nos telejornais, telenovelas e seriados. A grande infiltração
da televisão em todos os lares pode rapidamente difundir alguns dos tipos
de violência. Existem em vários programas uma forma de violência
explícita, entre elas a violência verbal, a que costuma ser mais encontrada
na mídia.
E o que mais preocupa atualmente, dentro do público que a lei protege,
são os jogos de videogame. O incentivo desse tipo de cultura, que hoje
inclusive se tornou uma modalidade de esporte, amplamente divulgado pela
mídia televisiva e internet, cria adolescentes e jovens com uma índole
violenta, levando para a vida real suas angústias fictícias ou demonstração
de poder vinculados ao sucesso do jogo. Existem diversos relatos de
infratores e agentes que ao praticar seus atos se inspiraram em cenas e
personagens considerados heróis nos jogos. O caso mais recente no Brasil
foi o “Massacre de Suzano”, no início de 2019, em que jovens entraram em
uma escola estadual e mataram vários alunos e funcionários. O perfil de um
deles, de 17 anos, nas redes sociais, mostra imagens em que ele faz gestos
com as mãos imitando armas, aponta o dedo para a própria cabeça, aponta
uma arma para a câmera e usa a máscara com a qual aparece morto no
chão da escola. Entre as publicações divulgadas à época há imagens do
símbolo anarquista (um círculo com um ‘A’ no meio) e desenhos de cenas
de guerra, uma imagem dos atores da série “Hannibal”. O outro, de 25
anos, também em um perfil de rede social, tinha na foto de capa um
soldado com um fuzil na mão, imagens de combates e de jogos de
videogame de tiros, e se intitulava integrante de grupos com nomes
sugestivos, como “Cidadão armado”, “Um amor: armas” e “Eu gosto de
armas e não sou bandido”.
Tudo isso demonstra o quão a cultura do entretenimento é capaz de
gerar violência.
Os jovens não mais precisam sair de casa para ter acesso a violência. Ela
está presente no nosso meio e cada vez mais extrema, o que gera no meio
social uma intranquilidade aos pais e responsáveis dessas crianças e
adolescentes.
2 – FORMAS DE VIOLÊNCIA
Para efeitos desta Lei são formas de violência a física, a psicológica, a
sexual e a institucional, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas.
Observa-se que a Lei definiu formas de violência interpessoal, que se
classificam em duas categorias: a violência familiar e conjugal, que em geral
ocorre no próprio lar, e a violência comunitária, que acontece fora do lar,
entre pessoas que não têm vínculos de parentesco ou entre pessoas que
podem ou não se conhecer.
A violência familiar e conjugal inclui os maus-tratos das crianças e
adolescentes e a violência doméstica.
A violência comunitária inclui a violência entre crianças e adolescentes,
estupro, agressão sexual de estranhos e a violência em ambientes
institucionais, como escolas, locais de trabalho, etc.
Quando a violência interpessoal ocorre nas famílias, suas consequências
psicológicas podem afetar os pais, as crianças e adolescentes, seus
relacionamentos a curto e longo prazos.
As definições da violência pelo legislador têm o cunho de qualificar as
diversas formas, sem prejuízo da conduta vinculada à violação de bens
penalmente protegidos.
Isso significa dizer que se a conduta do agente vier a caracterizar um
fato típico responderá pela conduta criminosa (v.g., lesão corporal, estupro
de vulnerável), independentemente da aplicação das regras previstas nesta
legislação (v.g., escuta protegida, aplicação de medidas protetivas aos
infantes em face do agressor, etc.).
Não se trata de dar outro sentido à conceituação ou definição de
violência, como se fosse uma intromissão para definir (ou redefinir) termos
já conhecidos e utilizados pela legislação em geral, como no próprio ECA e
Código Penal.
Estabeleceram-se conceitos claros, objetivos e concisos das violências,
com um único objetivo: dar segurança em aplicar corretamente a norma
aos casos concretos de violência vinculados à definição dada pelo legislador.
Para o profissional do direito, que tem conhecimento de interpretação,
até acesso a um glossário, torna-se fácil; contudo, a lei não foi criada para
especialistas e, sim, à população, que em sua maioria são pessoas normais e
sem conhecimento jurídico para interpretar uma norma, exigindo, pois, a
presença de definições em seu texto, sob pena de estender condutas
diversas daquelas pretendidas pelo próprio legislador quando de sua
elaboração.
2.1 – VIOLÊNCIA FÍSICA
A violência física, segundo a norma, é entendida como a ação infligida à
criança ou ao adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou que
lhe cause sofrimento físico.
A ação deve ser atribuída à criança ou adolescente e pode ser ato
comissivo (aquele que o agente pratica através de uma ação) ou omissivo
(aquele que se pratica através de uma omissão, um não agir).
No direito penal, em termos de conduta delitiva, se vai além e prevê
essas duas ações, acrescidas da conduta comissiva por omissão: a) Crimes
comissivos – aqueles que consistem em um agir. Ex. O autor do homicídio
esfaqueia a vítima; b) Crimes omissivos próprios ou puros – aqueles crimes
que contêm a descrição de uma conduta propriamente omissiva com verbos
como “omitir”, “deixar de” etc. Ex. Omissão de Socorro (CP, art. 135); e c)
Crimes omissivos impróprios ou Comissivos por omissão – são crimes que
têm em sua descrição típica um verbo de ação, mas que também podem ser
cometidos de forma omissiva impropriamente, desde que o agente tenha o
dever jurídico de agir na forma do artigo 13, § 2º., “a” a “c”, do CP. Ex. A mãe
que, desejando ver o filho de tenra idade morto, deixa de amamentá-lo e
propiciar-lhe os cuidados básicos.
A ofensa deve ser dirigida à integridade (constituída de modificação do
organismo humano por intermédio de ferimentos, mutilações, equimoses, etc.)
ou saúde corporal (engloba perturbações fisiológicas que correspondem ao
desajusteno funcionamento de algum órgão ou sistema componente do corpo
humano, como o que causa vômitos, paralisia, impotência sexual, transmissão
intencional de doença que afete função respiratória ou circulatória) ou que lhe
causa sofrimento físico39 (emoção motivada por qualquer condição que
submeta nosso sistema nervoso ao desgaste, decorrente de qualquer outra
sensação, que pode ser consciente [provoca dor ou infelicidade] ou inconsciente
[se traduz em esgotamento ou cansaço]).
2.1.1 – Lei da Palmada
A Lei 13.010/2014 alterou o ECA para estabelecer o direito da criança e
do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos
ou de tratamento cruel ou degradante, e a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional para introduzir na grade curricular e como temas
transversais conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de
todas as formas de violência contra a criança e o adolescente.
A alteração legislativa criou uma mudança cultural da sociedade
brasileira, que por vezes era normal educar os filhos pela correção física.
A novel legislação não se aplica apenas ao ambiente familiar e
doméstico, mas também a cuidadores de crianças e adolescentes, na
escola, nas casas de acolhimento institucional e nas unidades de internação.
O legislador definiu o castigo físico como toda a ação de natureza
disciplinar ou punitiva com o uso de força física que resulte em sofrimento
físico ou lesão à criança e ao adolescente, e o tratamento cruel ou
degradante, como a conduta ou a forma cruel de tratamento que humilhe,
ameace gravemente ou ridicularize a criança ou o adolescente.
Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os agentes
públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa
encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, educá-los ou
protegê-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante
como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto
estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes
medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso: a)
encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;
b) encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; c)
encaminhamento a cursos ou programas de orientação; obrigação de
encaminhar a criança a tratamento especializado; e d) advertência.
Essas medidas serão aplicadas pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo de
outras providências legais pela Autoridade Competente, como a suspensão
ou perda do poder familiar (ECA, art. 129).
Pela análise do contexto da norma percebe-se a possibilidade de
questionamentos quanto ao critério utilizado do autor da denúncia ou dos
conselheiros tutelares dos critérios subjetivos de quem os denuncie.
É nítida a intervenção estatal à instituição familiar que pais e
responsáveis são considerados infratores e serão submetidos a tratamento
psicológico ou psiquiátrico por ter dado uma palmada educativa em um filho.
Acreditamos que na aplicação da lei deve ser levado em consideração o
bom senso dentro da análise do caso concreto.
É certo que uma atitude imprudente, abusiva, extrema, agressiva de
forma desmedida, reiterada e desproporcional deve, sim, ensejar a
aplicação da norma; contudo, aquela correção eventual e moderada não
caracteriza nem um tipo penal, muito menos enseja a aplicação de sanção
administrativa ao suposto infrator.
2.2 – VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
É considerada a forma mais subjetiva e de difícil identificação.
Cremos que pelo caráter subjetivo, a norma ao definir a violência
psicológica discriminou em três áreas distintas de abrangência: a) no meio
social – qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em
relação à criança ou ao adolescente mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento,
ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática (bullying)
que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional; b) na
relação familiar – o ato de alienação parental, assim entendido como a
interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente,
promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os
tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de
genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de
vínculo com este; e c) como conduta criminosa – qualquer conduta que
exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime
violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio,
independentemente do ambiente em que cometido, particularmente
quando isto a torna testemunha.
2.2.1 – No Meio Social
O meio social em que um indivíduo, um ser social, está inserido. Esse
meio social é composto por vários e diversificados grupos sociais, com
valores, visões e normas diferentes ou idênticas, buscando para si (para o
ser social) ou para o grupo como um todo a inserção social.
Nesse meio podem ocorrer condutas que vêm caracterizar a violência
psicológica e pelas dificuldades da sua definição o próprio legislador se
encarregou de descrever aquelas que considera violência de forma
individual: discriminação e depreciação ou desrespeito em relação à Criança ou
ao Adolescente.
2.2.1.1 – Discriminação
Discriminar é uma ação preconceituosa em relação a uma pessoa ou
grupo de pessoas. Ela ocorre quando alguém adota uma atitude
preconceituosa (baseada em ideias preconcebidas) em relação a alguém,
seja por questões raciais, de gênero, orientação sexual, nacionalidade,
religião, situação econômica ou qualquer outro aspecto social40.
Uma atitude discriminatória resulta na violação do artigo 7 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “todos são iguais
perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei.
Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a
presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”.
A discriminação resulta na segregação e exclusão social dos indivíduos
discriminados, que se veem menos representados e marginalizados na
sociedade.
2.2.1.2 – Depreciação ou Desrespeito
A depreciação significa rebaixar o valor, a qualidade, a virtude de (algo,
alguém ou de si mesmo); desprezar(-se), desdenhar(-se), menoscabar(-se).
E o desrespeito é o comportamento, atitude, particularidade ou quaisquer
coisas e/ou ações que denotam falta de respeito, que é uma ação de
apreço, consideração, deferência.
2.2.1.3 – Meios de Discriminação, Depreciação ou
Desrespeito
O rebaixamento, desprezo, menosprezo e a falta de apreço ou
consideração, previstos no dispositivo legal devem emanar de ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e
xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática
(bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou
emocional.
2.2.1.3.1 – Ameaça
A análise – definição – desta conduta está ligada à relação que envolve a
manifestação (ato positivo).
Na relação sem cunho penal é um ato (aceno, gesto, sinal, escrito ou
palavra) dirigido a outrem com o fim de advertir ou atemorizar,
intimidando-o.
Como definição jurídica, a ameaça é um ato delituoso pelo qual alguém,
verbalmente ou por escrito, por gesto ou por qualquer outro meio
simbólico e inequívoco, promete fazer injustamente um mal grave a
determinada pessoa.
A doutrina costuma classificar a ameaça em algumas espécies: a)
Ameaça direta – aquela que incide sobre a pessoa ou patrimônio da vítima; b)
Ameaça indireta – aquela que incide sobre pessoas próximas à vítima devido a
laços familiares, amorosos, de amizade, etc.; c) Ameaça explícita – feita
diretamente, de maneira clara, sem sutilezas. Por exemplo, dizer a alguém que
vai agredi-lo; d) Ameaça implícita – aquela feita sutilmente, indiretamente, de
forma velada. Por exemplo, dizer a alguém que ela ficaria muito feia com os
doisolhos inchados; e e) Ameaça condicional – quando a ameaça do mal está
condicionada a alguma ação ou omissão da vítima. Por exemplo: se você repetir
o que disse lhe dou um tapa.
2.2.1.3.2 – Constrangimento
É o ato pelo qual alguém impõe mediante coerção, coibição ou
opressão, a violência, criando ao ofendido uma aflição, mal-estar, vergonha
ou vexame que resultam em aborrecimento e insatisfação.
No Distrito Federal há um caso específico de constrangimento que
resultou, inclusive, em punição penal, mas que reflete bem a conduta da
violência envolvendo o constrangimento.
A ofensora, vinculada a entidade educacional, depois de ofender um
aluno de tenra idade, chamando-o de “feio” e de “saco de cocô”, na
presença de outras crianças, arrastando-o pelos braços até uma certa “Sala
de Bebê”, termo jocoso e pejorativo inventado pelos professores da escola
para designar o local onde os infantes eram deixados de castigo, acabou por
constranger a vítima deixando evidentes as consequências negativas da
conduta praticada ante o quadro observado de regressão no
desenvolvimento da criança, que passou urinar nas calças, ter dificuldades
para dormir e adotar comportamento infantilizado (TJDF, Processo n.
0003247-40.2016.8.07.0007 [Segrego de Justiça], Rel. George Lopes, DJ
23/08/2018, DJE 31/08/2018, pp. 115/118).
Na cidade onde estou como magistrado (Muzambinho, MG), uma
criança institucionalizada na Casa Lar, mantida pelo Poder Judiciário local,
fez um relato à diretoria da instituição de que uma determinada
Conselheira Tutelar, quando esteve em sua escola para fazer apresentação
do trabalho da entidade, por várias vezes mencionou seu nome aos demais
colegas de sala, informando que, caso houvesse algo em suas residências
que caracterizasse fato de violência em decorrência dos infantes (alunos), o
caminho de todos era a Casa Lar, mencionando o local onde A. se
encontrava abrigado. Ele mesmo contou o quanto ficou constrangido
daquela fala, não só pela sua exposição, como divulgar o problema familiar
que estava passando. Não restou outra alternativa senão encaminhar os
fatos ao Ministério Público para as devidas providências em face da
Conselheira Tutelar.
Em algumas decisões, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu que
deve ser tida como humilhante qualquer situação que fuja à normalidade e
que seja capaz de interferir no estado psicológico do indivíduo a ponto de
lhe causar aflição, angústia ou desequilíbrio em seu bem-estar. Para o
tribunal não há humilhação quando se constata que não houve tratamento
abusivo (REsp 658.975).
A conduta, quando caracterizada, é descrita também como tipo penal
no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 232, como vexame ou
constrangimento.
2.2.1.3.3 – Humilhação
É sinônimo de submissão, rebaixamento, vexame, afronta e vergonha.
Surge de um desejo do ser humano de se sentir superior rebaixando outros
indivíduos e tem origem na desigualdade41.
A humilhação, além de desagradável, diminui a autoestima da vítima,
diminuindo sua perseverança dentro do meio social no qual sofreu a ofensa
(violência).
Ela fere a dignidade da pessoa humana e traz consequência graves e
negativas ao público infantojuvenil, que pode levar a dificuldades
psicológicos, como a depressão, ansiedade, entre outros.
A exposição da criança ou adolescente mediante humilhação se dá na
escola, no meio social, na família e até no trabalho, quando se trata de
menor aprendiz42.
A mais comum é no meio social, quando a própria sociedade rebaixa
pessoas que são consideradas socialmente inferiores. Quem não se lembra
do menino K. S., na Bahia, em 11 de junho de 2018, que foi impedido por
um segurança de um Shopping de ter o almoço pago por um cliente na
praça de alimentação do empreendimento? Se não bastasse, a matéria
viralizou na internet, causando mais constrangimento à vítima, embora
tenha o infante encontrado algum tipo de conforto por pessoas que,
sensibilizadas com o fato, deram a ele uma oportunidade43.
Outra forma danosa é praticada pelos pais na educação dos filhos.
Muitos, seja ela pública ou privada, utilizando do constrangimento em face
dos filhos para discipliná-los. Vilma Medina, Diretora de Guiainfantil.com,
afirma que “[…] humilhar as crianças em público ou em particular é como
quando as crianças são vítimas de abuso e intimidação escolar (bullying). A
sensação de indefesa e de pouca dignidade é a mesma.”
O que é certo no que se refere à infância é no sentido de que alguns
pesquisadores têm considerado a prática da humilhação como nefasta ao
desenvolvimento infantil, uma vez que ela conduz a consequências psíquicas
danosas (NESBIT; KARAGIANIS, 1987; KLEIN, 1991; LEWIS, 1992)44.
2.2.1.3.4 – Manipulação
http://guiainfantil.com/
O ato de manipular significa pressionar ou influenciar alguém a agir ou
pensar de determinada forma, por interesses próprios ou de terceiros.
A conduta do sujeito está ligada a uma ação em que para obter o
resultado desejado forja determinado fato, manejando meios que podem
até ser falsificados, com manobras com fins de manipular algo (fato ou ato).
Uma reflexão interessante é relatada pela Dra. Teresa Paula Marques45
em relação à manipulação infantil. Cita ela em seu artigo quando isso ocorre
no conflito familiar: “Este tipo de cena é muito comum. Comparar, semear a
discórdia entre os pais constitui uma das técnicas de manipulação emocional.
Por isso mesmo há que estar alerta e ter a resposta sempre preparada. É
absolutamente normal que os pais não estejam sintonizados em determinadas
regras. Cada um tem a sua história familiar e interiorizou modelos de conduta
certamente bastante distintos. Quando há um divórcio todas essas diferenças
se acentuam, mas mesmo em casais que vivem juntos existem diferenças no
modo como encaram a educação dos filhos. Por esse motivo é muito importante
que haja diálogo entre o casal, pois só assim se trocam experiências e criam
consensos. O ideal seria que começassem a fazê-lo quando os filhos são ainda
um projeto, antes de sentirem a pressão da criança real. De qualquer modo, é
absolutamente fundamental que a criança não tenha a ideia de ter o poder de
semear a discórdia entre os pais. Caso isso aconteça, vai sentir-se culpada e
essa culpabilidade aumenta a insegurança e fragiliza-lhe a autoestima.”
Essa análise apurada da conduta infantil nos traduz perfeitamente o que
significa, muitas vezes, uma simples manipulação infantil, que pode ter
consequências jurídicas graves aos envolvidos, inclusive aos infantes.
No mesmo artigo, Marques afirma que às vezes até nos espantamos com
o “talento” que algumas crianças têm para manipular os adultos. Elas fazem
olhinhos de choro, queixam-se, amuam-se… insistem até à exaustão com o
propósito de “levar a água ao seu moinho”. O certo é que muitas vezes o
conseguem, pois acabam por vencer os mais velhos pelo cansaço! “Por que é
que a Joana pode ir e eu não?”, “a Maria pode ficar e ver televisão até tarde,
por que é que eu não posso?” As comparações são uma das técnicas mais
comuns quando falamos em manipulação. Todas as crianças começam
desde cedo a tentar controlar os pais. Pouco a pouco apercebe-se que
algumas estratégias são eficazes e não hesitam em utilizá-las. Tentam
encontrar os pontos fracos, que passam muitas vezes por manifestações de
carinho (abraços, beijos) e testar os limites dentro dos quais se podem
mover. Vão tateando e, se não lhes forem impostas regras, continuam à
procura dos limites, o que os vai transformar em pequenos seres
provocadores e insaciáveis. De igual modo, quando as regras não são claras
e estão constantemente a mudar, cria-se uma grande confusão que pode
aumentar a tendência para o conflito e para a manipulação.
É importante ter essa consideração para o fim de analisar a conduta
descrita pela criança ou adolescente como meio de violência.
Corre-se o risco de haver um conflito de interesses entre a criança ou
adolescentes, por seus sinais passados de simulaçãoinfantil, e a realidade
presente do caso concreto.
São observações importantes que não podem ser desconsideradas, até
porque podemos estar diante de um interesse exclusivamente do infante.
Em nossas andanças como Magistrado, lembro-me de um caso
específico em que o filho, que tinha 12 anos de idade, gostava de jogar
futebol, frequentar clube social com piscina, andar de moto, viajar, entre
tantas outras coisas da idade. O conflito envolvia os pais. Ele declarava
violência, hoje descrita na lei e examinada neste tópico, em face da
genitora, e por conta de uma decisão judicial acabamos por dar a guarda
unilateral ao pai. Como já havia implantado o depoimento especial,
observamos quando de sua oitiva que o seu único objetivo era estar com o
pai, com a finalidade de ter o conforto de seus interesses, diante das
dificuldades da genitora, que era pessoa simples e não podia fornecer tudo
aquilo que o pai lhe propiciava. Não houve dúvida da manipulação para
estar naquela situação. O resultado foi a guarda compartilhada.
Isso denota o quão é importante o depoimento especial para dirimir e
esclarecer as dúvidas surgidas em casos envolvendo os conflitos familiares.
2.2.1.3.5 – Isolamento
O isolamento é o afastamento ou separação da criança ou adolescente
do convívio social, familiar ou educacional, deixando o infante sem
comunicação.
No sentido físico consiste em colocá-lo(a) fora de contato com outras
pessoas ou fatores.
Atualmente, diante do elevado número de crimes envolvendo a
juventude, com a saída mais precoce ao convívio social, muitas vezes os
pais ou responsáveis agem com restrição à liberdade dos adolescentes
como forma de proteção (garantia de sua segurança).
O isolamento mais tradicional do qual se pode ter notícia é o castigo,
que é uma forma de isolamento, pois mantém o infante separado do meio
em que vive, restringindo seu direito e liberdade de ir e vir, para educá-lo
ou adverti-lo de algum ato que não deveria ter realizado.
Há necessidade de sopesar a conduta do agente para definir se
caracteriza ou não a violência por meio do isolamento, pois muitas das
vezes podemos estar diante de um ato de correção.
2.2.1.3.6 – Agressão Verbal e Xingamento
O xingamento46 é um meio de agressão verbal.
A agressão é a investida de alguém em face de outrem com a intenção
de ofender, provocando, hostilizando, com intuito destrutivo.
Não há agressão física ou via de fato, apenas manifestação pela fala
(discurso).
Na relação familiar, social e educacional, discussões e até mesmo
simples brigas acontecem e não há nada de anormal nisso; contudo, se
durante um conflito de interesses pessoais houve insultos, xingamentos e
humilhações, isto pode vir a caracterizar agressão verbal.
É mister entender que não existe um meio ou fórmula específica para
descobrir se o que foi falado se trata de agressão física ou não.
Alguns doutrinadores e especialistas na área da psicologia e psiquiatria
dão algum norte para identificar possíveis atos comissivos de agressão, mas
uma coisa é certa: sempre quando algo se torna anormal, fora do padrão,
devemos considerar para análise de uma possível conduta de violência.
Nesse sentido, como podemos então identificar uma agressão verbal47:
Uma discussão ou briga comum é diferente de um ataque ou agressão
verbal, que como o nome já diz, é usada para controlar ou ferir alguém.
Uma pessoa agressiva apresenta um comportamento padrão diante de
determinadas situações, nas quais se sente ameaçada ou por necessidade
de autoafirmação. Alguns tipos de agressão verbal são mais perceptíveis,
como falar exaltadamente e usar palavrões, por exemplo. Mas existem
outras atitudes menos evidentes que podem caracterizar esse tipo de
agressividade. Algumas formas de identificar uma agressão verbal são: a) Os
argumentos são sempre irrelevantes. A conversa nunca é simples e tranquila,
parecendo mais um ataque; b) Você tem sua fala interrompida a todo
momento, e o indivíduo agressivo tem o costume falar alto demais; c) A pessoa
agressiva sempre tenta se impor, não aceitando os outros pontos de vista; d)
Você se sente dominado e parece que seu espaço está sendo invadido; e) Existe
tensão ao interagir com a pessoa agressiva; f) Você sente um esgotamento
emocional e fica sem energia depois ao interagir com alguém agressivo; e g) Os
comentários de uma pessoa agressiva costumam ser depreciativos, interferindo
na autoestima e autoconfiança da pessoa agredida.
2.2.1.3.7 – Ridicularização
Ação ou efeito de ridicularizar alguém, com exposição ao ridículo de
um fato ou ato perante terceiros ou a si próprio.
É o mesmo que escárnio (zoar, esculhambar, menosprezar e desdenhar)
e achincalhação (comportamento de alguém com a finalidade de humilhar
outrem com risos, repleto de graça, zombaria).
Para melhor definição da conduta seria analisar seu antônimo, que é a
exaltação ou elogio.
Nos tempos atuais, um índice crescente e muito comum de
ridicularização vem ocorrendo na internet, principalmente nas redes sociais
como Facebook, Instagram, WhatsApp, Twitter, etc.
O que ocorre na maioria das vezes é uma exposição demasiada de
pessoas, muitas delas vítimas de atrocidades sem qualquer fundamento
social que utilizam a internet para viralizar o conteúdo da mídia com o
objetivo de ridicularizar seu(sua) opositor(a).
Em Muzambinho, interior das Minas Gerais, no início de 2018, algumas
adolescentes divulgaram uma lista do “ranking do sexo”, na qual incluíram o
nome de 100 (cem) mulheres, adultas e adolescentes, identificando-as
como prostitutas.
A lista rodou entre os grupos das redes sociais, o que ensejou o
acréscimo aleatório de outras tantas mulheres pelo belo prazer da
“brincadeira”, o que levou as mulheres ofendidas a serem ridicularizadas
publicamente.
A notícia viralizou em todo o território nacional, com cobertura
jornalística de grandes veículos de comunicação48, inclusive muitas das
vítimas (da lista) perderam seus empregos e tiveram que deixar a cidade
por vergonha de transitar entre seus conterrâneos, pouco mais de 20.000
habitantes justamente pela exposição e ridicularização.
É cada vez mais comum pessoas descompromissadas agirem dessa
forma, expondo a vida de outros na internet, causando um mal
extremamente gravíssimo e muitas vezes irreparável.
Não se trata apenas de uma violência psicológica, mas também violação
de outros direitos (CF, art. 5.º49, X, e CC, art. 2050).
Portanto, não curta nem compartilhe conteúdo dessa natureza. O
importante é denunciar, além de frisar que aquela atitude é ilegal. O
exemplo desta campanha pode ser a hashtag: #DigaNaoARidicularização.
Podemos citar outros exemplos51 que servem como referência para
análise do conteúdo vinculado à violência psicológica.
Elizabeth Ann Velásquez, mais conhecida por Lizzie Velásquez, uma das
três pessoas no mundo a ter uma rara condição médica sabida por
proporcionar nenhum acúmulo de gordura no corpo, se tornou alvo de
uma divulgação hashtag: #AMulherMaisFeiadoMundo. As pessoas que
fizeram tal divulgação não sabiam da patologia de Lizzie e que ela
arrecadava fundos ao redor do mundo para pesquisas laboratoriais por
meio de palestras motivacionais, possíveis a partir de seu sítio eletrônico.
Lizzie Velásquez não só se graduou e hoje é palestrante motivadora, como
também tem livros publicados e papel de liderança na busca por direitos e
patrocínio na internet, além de muito em breve lançar o documentário A
Brave Heart - The Lizzie Velasquez Story (Um Coração Valente - A Estória
de Lizzie Velasquez, em tradução livre).
Outra vítima muito comum de práticas abusivas em redes sociais são os
portadores de progeria, transtorno genético caracterizado pelo
envelhecimento precoce e também denominado síndrome da progeria de
Hutchinson-Gilford. Na progeria há o acometimento do gene LMNA,
responsável pela proteína estrutural prelamina A. A prelamina A será
convertida em proteína lamina A em pessoas saudáveis a partir da remoção
do grupo farnesilde sua composição química, mas em portadores de
progeria a prelamina A continua com esse grupo farnesil em sua
composição química, de forma que a prelamina A será convertida na
proteína progerina, e não em lamina A. Como consequência da
permanência do grupo farnesil e a conversão da lamina A em progerina, o
núcleo de todas as células do corpo humano se tornarão deficientes,
afetando a capacidade de divisão de cada uma dessas células e assim
impedindo a capacidade de rejuvenescimento e causando o envelhecimento
precoce. A apresentação clínica mais típica de progeria é a incapacidade de
ganhar massa corporal, condição dermatológica similar ao escleroderma e
com enrugamento, baixa estatura, alopecia, além de uma aparência física
distinta. Ao longo da vida, os portadores de progeria muito provavelmente
enfrentarão também aterosclerose, insuficiência renal, perda de acuidade
visual e ainda problemas cardiovasculares. A única coisa que eles não
merecem ter ao longo da vida é desrespeito. A personalidade virtual com
progeria mais vitimada é Hayley Okines, britânica que apesar da pouca
idade já tem livro lançado e cujas maiores informações podem ser
acessadas em seu sítio eletrônico. Existem diversos outros transtornos e
milhares de pessoas que com eles convivem e com eles batalham na busca
por tratamentos que possam comprovadamente melhorar seus
prognósticos ou mesmo prover cura.
Tudo isso causa às pessoas que são vítimas dessas divulgações
ridicularização, que é um meio de violência psicológica.
A ideia de trazer para a análise esses fatos é uma forma de demonstrar
como são os meios pelos quais os agentes agem atualmente para atingir
outros de maneira vil e repugnante.
2.2.1.3.8 – Indiferença
A indiferença está na ausência de interesse de alguma coisa, falta de
consideração por algo ou com outrem, é a apatia pelo sentimento alheio.
Trata-se de uma atitude em na qual a pessoa se mantém acomodada,
apática, não demonstrando qualquer preocupação ou apreensão pelo fato
que está ocorrendo, comportando-se de forma indiferente diante de algo
ou de alguém.
Vemos que caracteriza a violência psicológica “qualquer conduta de
discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao
adolescente mediante…” indiferença.
Analisando somente a conduta da indiferença, sem que haja a
responsabilidade social ou legal, poderíamos afirmar que não caracterizaria
a violência o agir, por si só, com indiferença.
A conduta ilegal geradora da violência, comissiva ou omissiva, dar-se-á a
partir da discriminação, depreciação ou desrespeito em relação aos infantes
mediante o ato de indiferença decorrente da responsabilidade legal de cada
um dentro da relação jurídica que se encontra.
Considerando a relação familiar, os pais ou responsáveis têm deveres e
responsabilidades no cuidado dos infantes (ECA, art. 22) e na relação social
todos devem velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a
salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório
ou constrangedor (ECA, art. 18).
DIGIÁCOMO52, Murillo & Eduardo afirmam que “é importante
destacar que não só a ação, mas também a omissão pode ganhar ares de
violência psicológica, principalmente nos casos em que alguém,
voluntariamente e deliberadamente, deixa de praticar certa conduta em
proveito da criança/adolescente, tendo especial impacto quando provém de
outro membro da família. Tal omissão pode ser cometida dentro ou fora do
lar, por algum membro da família de origem ou extensa, incluindo pessoas
que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de
consanguinidade, valendo lembrar que o conceito de violência intrafamiliar
não se refere apenas ao espaço físico no qual a violência ocorre, mas
também diz respeito ao vínculo familiar (ou afetivo) que se constrói e se
mantém”.
2.2.1.3.9 – Exploração
A exploração vinculada à conduta vedada está aliada ao aproveitamento
abusivo, que se trata de utilizar, usar ou tirar vantagem ilegal de outrem, que
no caso são as crianças e os adolescentes.
Quando se fala em exploração infantil, aí se incluem a criança e o
adolescente. A primeira a lembrar a mente é o trabalho infantil, meio mais
cruel de exploração dos infantes.
Trata-se de um dos maiores problemas sociais que ainda assolam o
mundo com grande impacto, violando os direitos humanos e as legislações
locais.
O trabalho infantil consiste em toda e qualquer forma de trabalho que
seja exercido por crianças e adolescentes com idade menor àquela definida
pela legislação de cada país. No Brasil, esse limite é de 16 anos, salvo
enquadramentos como aprendiz, que permite a partir dos 14 anos de idade
(CLT, art. 403, caput, e Lei n. 10.097/2000).
As consequências do trabalho infantil são inúmeras, entre elas a física
(apresentam graves problemas de saúde), educacional (apresentam
dificuldade de aprendizagem, o que levam ao abandono da escola) e a
psicológica. Essa última, que mais nos interessa dentro do contexto da
análise do dispositivo, está vinculada à capacidade desses indivíduos de se
relacionar e aprender, além das condições precárias de trabalho no local,
muitas vezes sendo vítimas de abusos físicos, sexuais e emocionais,
ocasionando uma série de doenças psicológicas.
De acordo com o último Censo do IBGE53, de 2010, mais de 3 milhões
de crianças e adolescentes trabalham ilegalmente no Brasil. Desse total, 1,6
milhão não possuíam 16 anos de idade. O trabalho infantil é um dos
maiores problemas sociais do Brasil, de modo que cerca de 30% da mão
de obra das crianças se encontram no setor agropecuário. Do total, mais de
60% ocorrem nas regiões Norte e Nordeste do país, abrangendo 65% de
crianças negras e 70% de meninos.
Mas não é só o trabalho infantil que caracteriza a violência psicológica!
Qualquer um que, aproveitando abusivamente de criança ou
adolescente com a intenção de utilizar, usar ou tirar vantagem está a
cometer a violência.
O que é recorrente nas vias públicas do Brasil, cada dia mais crescente,
são crianças sendo exploradas pelos pais para pedir dinheiro ou como meio
de sensibilizar o cidadão da necessidade em decorrência do infante e com
isso obtém ajuda para alimentá-lo, mas muitas vezes os recursos são
empregados no vício das drogas ou álcool, ficando a criança em segundo
plano. Infelizmente, é comum, inclusive, até se alugar filho para que haja a
exploração por outrem que não detém prole54.
2.2.1.3.10 – Intimidação Sistemática (bullying)
Bullying55 é a prática de atos violentos, intencionais e repetidos contra
uma pessoa indefesa, que podem causar danos físicos e psicológicos às
vítimas. O termo surgiu a partir do inglês bully , palavra que significa tirano,
brigão ou valentão na tradução para o português. No Brasil, o bullying é
traduzido como o ato de bulir, tocar, bater, socar, zombar, tripudiar,
ridicularizar, colocar apelidos humilhantes, etc.
A violência é praticada por um ou mais indivíduos, com o objetivo de
intimidar, humilhar ou agredir fisicamente a vítima.
O bullying geralmente é feito contra alguém que não consegue se
defender ou entender os motivos que levam a tal agressão. Normalmente,
a vítima teme os agressores, seja por causa da sua aparente superioridade
física ou pela intimidação e influência que exercem sobre o meio social em
que está inserido.
Tales Alves Paranahiba e Taís Alves Paranahiba,56 em artigo publicado
no site do MPPR, denominado “O uso do ECA no combate ao bullying”,
afirmam que “[…] é um comportamento milenar; faz parte da natureza
humana, infelizmente. A Bíblia registra um caso de bullying, quando Ismael, um
adolescente, filho de Abraão com Agar, ria de seu irmão Isaque, que era ainda
uma criança, filho de Abraão com Sara. Esse comportamento de Ismael causou
indignação em Sara (Gn. 21.9). O bullying sempre existiu, nossas crianças não
passaram a sofrer ameaças, receber apelidos ou provocações só a partir da
década de 70, quando pela primeira vez se falou sobre esse tipo deintimidação
ocorrida na escola”.
No mesmo trabalho ressaltam que “[…] o ambiente mais propício para a
ocorrência do bullying com suas consequências deletérias é na escola, onde
meninos e meninas sofrem diversos tipos de perseguições em um momento da
vida em que estão formando a visão de si, a autoconsciência, a visão do mundo
à sua volta e, principalmente na idade escolar; piadas, insultos, apelidos e
diversas outras formas de atingir a moral podem acarretar consequências por
toda a vida. Visto que a opinião que se faz de si não está ainda completamente
formada (se é que um dia estará…) e para sua formação a opinião do outro é
extremante importante. A história medieval registra um caso de bullying no
ambiente escolar: Tomás de Aquino, o doutor da Igreja Católica, foi apelidado
por seus colegas de “boi mudo”, haja vista seu comportamento quieto atrelado
a seu porte físico. O professor advertiu dizendo que o mundo inteiro ouviria o
alto mugido desse “boi mudo”. Não tratado corretamente durante a infância e
adolescência, aquelas piadinhas acerca da cor da pele, da deficiência física, da
orientação sexual, as agressões físicas ou verbais ultrajantes em decorrência
dessas peculiaridades poderão evoluir para condutas racistas, homofóbicas e
toda sorte de odiosos preconceitos. É importante saber que tanto o agressor
quanto o agredido precisam de ajuda. O agressor, por não se relacionar de
forma saudável, lança mão de armas como a intimidação, brigas para
demonstrar força e poder. Essa criança ou adolescente, se não for bem
orientado, provavelmente será um adulto que vai continuar impondo a força, o
poder, no ambiente de trabalho, familiar, por meio da agressão e intimidação,
culminando no famigerado assédio moral. O Estatuto da Criança e do
Adolescente é um instrumento eficaz para lidar com esse fato. Utilizado
corretamente, sem negligência, será possível mitigar a proliferação dessa
deletéria conduta, tratando-a seriamente e diminuindo sua incidência no
ambiente familiar, laboral e social durante a fase adulta”.
Quem de nós, independentemente da idade, não lembra de alguma vez
fazer uma brincadeira com algum(a) colega mais próximo(a) de escola
colocando um apelido sem qualquer malícia?
Não há dúvida de que brincadeira, gozação e apelidos na escola de
muito tempo está presente na vida social e, quando respeitosa, faz até bem
para o convívio, além de ser saudável e humorado entre amigos e colegas,
mas quando foge dessa normalidade, ingressa no meio vexatório, agressivo,
violento; deixa de ser uma brincadeira, passando a uma conduta vedada.
No que se refere àquela época, quanto aos apelidos dados aos colegas,
fica uma reflexão: embora não tivéssemos qualquer malícia, maldade,
intenção de intimidar, zombar, quem sabe, ali, muitas vezes, estávamos
criando uma situação desagradável ao terceiro (colega), que pode ter
trazido consequências psicológicas à adolescência e juventude e, muitas
vezes, barreiras instransponíveis à vida adulta e de forma silenciosa.
Alguns exemplos de apelidos comuns no meio escolar: gordo (pessoa
acima do peso), taquara ou cano (pessoa muito magra), girafa (pessoa alta),
cambeta (pernas tortas ou com dificuldade de andar), rastilho (pessoas com
dedos dos pés grandes e separados), fogueira (cabelo ruivo), Topo Gigio ou
orelha de elefante (pessoa que tinha orelhas grandes) toquinho de amarrar
égua ou botijão de gás (pessoa de baixa estatura), “paia” de aço ou Bombril
(cabeço enrolado), dentuço ou coelho (dentes salientes), “zarôio” ou vesgo
(pessoa estrábica), testa de amolar faca (pessoa que tem testa saliente),
quatro-olhos (quem usa óculos), pé-de-pato (pé de numeração grande), nariz
de tucano (pessoa que tinha nariz grande), etc.
Muitos desses fatos ficaram marcados, inclusive trazem com os
ofendidos a marca desta “brincadeira”, mantendo-se até a fase adulta os
apelidos recebidos na escola.
Na minha terra natal, São Borja, e em Bagé, ambas no Rio Grande do
Sul, meus maiores e grandes amigos da infância trazem associados aos seus
nomes os apelidos por seus familiares, ou até por nós mesmos na vida
social e escolar à época: CABEÇA (Mariovane Weis), CABEÇUDO (Joni
Jorge Dubal Daercher), CANO (Adriano Pires Moraes), CARECA (José
Horáci Gattiboni), CEBOLA (Narlon Bastos Pereira), ELTINHO (Elton dos
Santos Almeida), FARELO (Antônio Carlos Rocha Almeida), JABURU (Jaime
Jacob Tachetto), LIMÃO (Manolo Riesgo), MACACO (José Antônio Chafim
Falcão), MOSA (Mário Carlos Rocha Almeida), PEDALADA (João Carlos
Rocha Almeida), PÉ-DE-PATO (Paulo Ricardo Teixeira), PEITO-DE-
POMBA (Rafael Escobar), PEPEU (Rogério Taschetto), PICA (José Luiz
Krieger Gattiboni), PIMPIM (José Luiz Moreno), PORRADA (Renato
Baglioni), TIACA (Djalma Pires Leal Júnior), TIMBÓ (Claiton Renner),
TOTTI (Celso Moraes Jr.), SORRISO (Valério Aquino), XIXI (Omar Saud) e
XÚRIA (Celso Antônio Luz de Deus).
Na minha família não era diferente. Minha querida irmã, MARIA DA
GRAÇA SCHMIDT DISCONZI (BAIXINHA); meu irmão ROBERTO
MOURA SCHMIDT (GORDO), e minha avó paterna, ANA RITA DAS
DORES SCHMIDT(CHININHA).
Diante desse contexto, a discussão sobre o bullying ganhou espaço no
Brasil e motivou a regulamentação de novas leis para coibir esse tipo de
conduta.
A Lei 13.185, de 06 de novembro de 2.015, instituiu o Programa de
Combate à Intimidação Sistemática (Bullying).
No contexto e para os fins da r. Lei, considerou intimidação sistemática
(bullying) todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo
que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo,
contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la,
causando dor e angústia à vítima em uma relação de desequilíbrio de poder
entre as partes envolvidas.
Segundo a norma, caracteriza-se a intimidação sistemática (bullying)
quando há violência física ou psicológica em atos de intimidação,
humilhação ou discriminação e, ainda: ataques físicos, insultos pessoais,
comentários sistemáticos e apelidos pejorativos, ameaças por quaisquer meios,
grafites depreciativos, expressões preconceituosas, isolamento social consciente
e premeditado e pilhérias.
Na rede mundial de computadores – internet – há cyberbullying quando
se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a
violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de
constrangimento psicossocial.
O bullying pode ser classificado, conforme as ações praticadas: verbal –
insultar, xingar e apelidar pejorativamente; moral – difamar, caluniar,
disseminar rumores; sexual – assediar, induzir e/ou abusar; social – ignorar,
isolar e excluir; psicológico –perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar,
dominar, manipular, chantagear e infernizar; físico – socar, chutar, bater;
material – furtar, roubar, destruir pertences de outrem; e virtual –depreciar,
enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar fotos e dados
pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de
constrangimento psicológico e social.
Em decorrência do bullying diversos crimes podem ser praticados.
Cristiano Rodrigues, em artigo publicado no site do LFG57 denominado
“Quais as leis sobre bullying e as penalidades?”, traz condutas consideradas
criminosas previstas pelo Direito Penal: “(a) O Bullying moral e o verbal
configuram crime de injúria, que é o mais básico, como o xingar a pessoa. O
professor esclarece que há várias formas de injúria, inclusive a preconceituosa,
que envolve questões de raça, etnia, religião, etc. Porém, é o xingamento em si
que pode caracterizar difamação, que é o ato de fazer fofoca, falar mal da
vítima para outros colegas. Essa prática pode, inclusive, caracterizar a injúria
real, prevista pelo artigo 140, parágrafo 2º do Código Penal, que é a ofensa
direta, feita por meios físicos, como puxar o cabelo, jogar um copo d’água na
cara da vítima ou empurrá-la para que ela caia no chão; (b) Bullying físico: são
ascondutas físicas, que é empurrar, bater e outras agressões físicas. Se a
situação fica um pouco mais agressiva, essa prática pode cair para o crime de
lesão corporal, afirma o advogado. Mas ele pondera que a maioria dos casos de
bullying desse tipo acabam se caracterizando lesão corporal leve, prevista pelo
artigo 129 do Código Penal; (c) Bullying patrimonial: são os atos em que a
vítima tem um bem subtraído, seja por meio de furto ou brincadeiras que
geram danos materiais. Rodrigues cita o exemplo do agressor que joga o
celular da vítima no chão e quebra o aparelho; um outro caso é o de roubo
ou ameaça que levam a pessoa a entregar dinheiro ou algum bem para o
praticante de bullying. Ele pode ainda fazer ameaças de agressões posteriores
ou até mesmo praticar a extorsão, que é diferente do roubo. “Às vezes, a
pessoa acaba tendo que entregar voluntariamente um bem mediante a ameaça
de um mal futuro”, diz Rodrigues. O professor ressalta que todos esses crimes
são patrimoniais e podem ser praticados na esfera do bullying, como o furto
previsto no artigo 155, o roubo no artigo 157, e extorsão no artigo 158 do
Código Penal; (d) Bullying de constrangimento legal: alguns tipos de bullying são
interpretados como condutas de constrangimento legal, crime previsto no artigo
146 do Código Penal. O constrangimento legal ocorre quando a vítima é
obrigada a fazer algo que não queira mediante ameaça grave; e (e) Bullying
sexual: a prática do bullying sexual pode resultar em estupro, que, segundo
Rodrigues, é “hoje um crime que não exige penetração nem sexo em si”. De
acordo com ele, qualquer ato sexual forçado, desde um beijo até apalpar a
parte íntima, masturbação ou sexo, configura o estupro, crime do artigo 213 do
Código Penal. O professor observa que a maioria dos casos de bullying envolve
menores de idade. Se a vítima tiver menos de 14 anos, a intimidação sexual
caracteriza estupro de vulnerável, conforme expressa o Código Penal em seu
artigo 217A”.
A outra lei que faz referência ao bullying é a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 –, alterada
pela Lei 13.663, de 14 de maio de 2018, para incluir a promoção de
medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos
de violência e a promoção da cultura de paz entre as incumbências dos
estabelecimentos de ensino, o que resultou na alteração do art. 12, IX, que
prevê a “promoção de medidas de conscientização, de prevenção e de combate
a todos os tipos de violência, especialmente a intimidação sistemática (bullying)
no âmbito das escolas.”
Essa lei veio para reforçar a regulamentação anterior de Combate ao
Bullying (Lei 13.185/2015). Os objetivos das r. leis é conscientizar e prevenir
a prática da intimidação sistemática.
E a família tem um papel importante nesse contexto. Além dos direitos
que o Estado garante a ela, exige o comprometimento de seus deveres,
juntamente com o Estado, de assegurar, com absoluta prioridade, os
direitos fundamentais da criança e do adolescente (CF, art. 227), que é o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária e colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
exigência indeclinável do cumprimento daquele dever.
Desta forma, deve partir de casa a repreensão desse comportamento,
não deixar criar no lar condutas voltadas à intimidação sistemática de seu
semelhante, como se isso fosse coisa normal ou comum. Devemos tratar
com rigor, esclarecer a conduta vedada, admoestar quando agir de forma
contrária. Só assim podemos evitar que eles sejam ou façam vítimas do
bullying.
Sem contar, ainda, que a prática do bullying pelas crianças e
adolescentes pode acarretar a responsabilidade dos pais ou responsáveis,
incluindo indenização às vítimas.
A jurisprudência já teve a oportunidade de condenar civilmente a mãe
pelo cyberbullying praticado pelo filho infante, que criou página na internet
exclusivamente para ofender colega de classe com fatos e imagens
extremamente agressivas [TJRJ, AC 7003750094, 6ª Câmara Cível, Rel.
Liege Puricelli Pires, j. 30/06/2010]. (FARIAS, ROSENVALD, BRAGA
NETTO, 2014, p. 87858).
A escola é outra entidade importante de combate à intimidação
sistemática.
FARIAS, ROSENVALD e BRAGA NETTO, 2014, p. 62759, afirmam que
“há, com lamentável frequência, nas escolas e estabelecimentos de ensino, os
casos de bullying. Crianças e adolescentes são objetos de humilhação e
desprezo pelos mais fortes, quando não sofrem agressões físicas. Tais casos
preocupam, progressivamente, os educadores, pois não raro resultam em
suicídios, ou traumas psicológicos que acompanharão o adulto pelo resto da
vida”.
Diante desses fatos a escola tem a obrigação de agir e impedir que
continue a intimidação sistemática, além de identificar os opressores,
tomando as providências estatutárias adequadas de proteção (ECA, art.
136, I e II), sob pena de ser inclusive responsabilizada.
A jurisprudência já se manifestou sobre o assunto: “APELAÇÕES CÍVEIS.
SUBCLASSE. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS
MATERIAIS E MORAIS. BULLYNG ESCOLAR. COMPROVAÇÃO.
RESPONSABILIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO DE ENSINO. DIREITO À
INDENIZAÇÃO PATRIMONIAL PARCIALMENTE RECONHECIDO. DIREITO À
INDENIZAÇÃO EXTRAPATRIMONIAL RECONHECIDO E VALOR ARBITRADO A
ESSE TÍTULO MANTIDO. 1. Caso em que o conjunto probatório constante nos
autos releva que a ré falhou no dever de cuidado que lhe cabia, decorrente do
serviço educacional prestado, ao não ser capaz de adotar as providências
necessárias (ferramentas pedagógicas investigativas e inibidoras adequadas)
para que o autor, um de seus alunos, não sofresse agressões físicas, verbais e
comportamentais de colegas (bullying) e, por conta disso, precisasse trocar de
escola para voltar a ter um ambiente escolar saudável e desenvolvedor. 2. Dano
moral ínsito ao próprio mal físico e emocional que o autor, uma criança de dez
anos, sofreu ao ser vítima de bullying no ambiente escolar e em tal grau que
retirou por completo o desejo do menor de permanecer em escola que já
frequentava pelo terceiro ano seguido. Valor da indenização bem dosado em R$
6.000,00, sopesado que (I) as agressões não partiram de prepostos da ré, cuja
responsabilização decorre por sua conduta omissiva, de não diagnosticar a
prática do bullying diante dos elementos que possuía e de não coibir
adequadamente a prática do mesmo a ponto de fazê-lo cessar, e que (II) o
autor se adaptou bem à nova escola, evidenciando que o mal sofrido não
provocou qualquer trauma ou outras consequências gravosas. 3. Danos
materiais caracterizados, consistentes nos valores que precisaram ser gastos
com materiais escolares complementares e uniformes exigidos pela escola para
a qual o autor precisou ser transferido, bem como nos valores despendidos com
o acompanhamento psicológico recebido e as aulas de reforço do mês
subsequente à transferência de escola, necessárias para compensar a queda de
desempenho escolar provocada no período em que o autor sofreu bullying.”
(Apelação Cível Nº 70072796303, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Eugênio Facchini Neto, Julgado em 28/06/2017).
2.2.1.3.11 – Comprometimento do Desenvolvimento
Psíquico ou Emocional da Criança ou do Adolescente
A violência psicológica a que se refere a alínea “a” do inciso II do art.
4.º, se trata de qualquer conduta de discriminação, depreciação ou
desrespeito em relação à criança ou adolescente por meio das figuras
descritas nos itens 2.2.1.3.1 a 2.2.1.3.10, deste artigo, que possa
comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional.
O desenvolvimento psíquico60 ocorre por meio da organização e
elaboração de experiências emocionais desde o nosso nascimento. As
primeiras experiências emocionais acontecem no contato entre mãe e
bebê, desde a vida uterina,estendendo-se para o meio familiar e os grupos
sociais, como a escola.
O indivíduo busca o crescimento e desenvolvimento para se sentir
autônomo, incitado por seus desejos, seu crescimento, as necessidades
biológicas e as exigências do mundo externo. Na busca do amadurecimento
emocional, ele luta incansavelmente para o seu crescimento e ao mesmo
tempo busca a gratificação rápida e imediata para suprir sua necessidade de
prazer (PAPALIA & OLDS, 2006).
Durante o desenvolvimento da criança, ela se depara com algumas
situações de frustrações. Como certas angústias de saber que precisa de
outras pessoas para satisfazer suas necessidades, que são independentes e
autônomas dela. Angústias que não serão satisfeitas de acordo com o seu
desejo. E é justamente no momento de vivenciar essas angústias que o
indivíduo anseia um lugar aonde haja somente o prazer, buscando o
máximo uma estratégia para fugir do desprazer. Geralmente nesse
momento de crises momentâneas o indivíduo que acha a solução para
aliviar sua frustração, se a escolha for uma opção saudável, ele amadurece e
vai se desenvolvendo psiquicamente. Se não for saudável, a tendência é
regredir psicologicamente (BEE, 1997).
A escolha do indivíduo dependerá principalmente do adulto que o
acompanha na fase da infância. Como esse adulto irá educá-lo e ajudá-lo
com o desenvolvimento psicológico. Dependendo da forma de estimular a
criança no seu crescimento irá resultar em consequências positivas ou
negativas para a vida dela, que irá refletir na fase adulta do indivíduo. A
partir daí se estabelece o nível de resistência a frustrações, indivíduos
infelizes com muito ou os felizes com pouco (PAPALIA & OLDS, 2006).
Desenvolvimento emocional61, por sua vez, é a aquisição, com o tempo,
de meios e formas comportamentais de manifestar seu temperamento no
ambiente social e nas atividades cotidianas, incluindo a escola, v.g. Desde os
primeiros meses e anos de vida a criança já apresenta características inatas,
que nasceram com ela e que, assim, parecem ter um forte componente
biológico e genético. Essas características levam a respostas motoras e de
atenção que geram consequências positivas ou negativas na interação social
e na execução de tarefas nos mais diversos ambientes. Como todo
comportamento, a persistência ou inibição de determinados “excessos” ou
ações emocionais negativas podem ser modulados e modificados pela
intervenção de seus cuidadores no sentido de equilibrá-los e permitir
melhor adaptação.
Tudo aquilo que possa comprometer o desenvolvimento psíquico e
emocional da criança e do adolescente decorrente de conduta
discriminatória ou depreciativa por meio de ameaça, indiferença, bullying,
entre outras figuras descrita na norma, é violência psicológica.
2.2.2 – Na Relação Familiar
2.2.2.1 – Alienação Parental como Violência Psicológica
O legislador acresceu como violência psicológica, dentro das relações
familiares, a alienação parental.
A Síndrome de Alienação Parental (SAP), conforme proposta
originalmente pelo psiquiatra Richard Gardner, na década de 1980,
descreve “um fenômeno que se manifesta primariamente no contexto litigioso
das disputas judiciais pela guarda dos filhos. Conforme o autor, a síndrome é
identificada pela manifestação no comportamento da criança de uma
campanha de rejeição e degradação a um dos genitores, sem que houvesse
justificativa para esta conduta. A causa desse comportamento seria o
doutrinamento da criança por parte do genitor alienante com o objetivo de
romper o vínculo desta com o genitor alienado”62.
Trata-se originalmente de uma matéria atrelada à área cível e o
legislador incluiu na Lei 13.431/2017 para garantir às crianças e aos
adolescentes, vítimas ou testemunhas da alienação, a escuta protegida.
O legislador definiu na alínea b do inciso II do art. 4.º da Lei
13.431/2017, o que considera o ato de alienação parental: “a interferência
na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida
por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob sua autoridade,
guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou que cause prejuízo ao
estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este”.
O dispositivo faz a transcrição fiel do art. 2.º da Lei 12.318, de 26 de
agosto de 201063, que dispõe sobre a alienação parental.
São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim
declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou
com auxílio de terceiros: a) realizar campanha de desqualificação da
conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; b)
dificultar o exercício da autoridade parental; c) dificultar contato de criança
ou adolescente com genitor; d) dificultar o exercício do direito
regulamentado de convivência familiar; e) omitir deliberadamente a genitor
informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive
escolares, médicas e alterações de endereço; f) apresentar falsa denúncia
contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou
dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; e g) mudar o
domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a
convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares
deste ou com avós.
A prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da
criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a
realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo familiar,
constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente e descumprimento
dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela ou
guarda.
Trata-se de um exercício abusivo da autoridade parental e um maltrato
psicoemocional da criança. Muitas vezes expresso em uma obsessão de
cuidar sufocante, interferindo com a intersubjetividade da criança64.
É importante que se diga que o depoimento especial no caso de
alienação parental não é o meio de prova exclusivo para atestar sua
ocorrência. Há exigência legal65 segundo a qual, havendo indício da prática
de ato de alienação parental em ação autônoma ou incidental, o juízo, se
necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial66. Exige-se um
laudo pericial e terá base em ampla avaliação psicológica ou biopsicossocial,
conforme o caso, compreendendo, inclusive, entrevista pessoal com as
partes, exame de documentos dos autos, histórico do relacionamento do
casal e da separação, cronologia de incidentes, avaliação da personalidade
dos envolvidos e exame da forma como a criança ou adolescente se
manifesta acerca de eventual acusação contra genitor. A prova técnica será
realizada por profissional ou equipe multidisciplinar habilitados, exigindo,
em qualquer caso, aptidão comprovada por histórico profissional ou
acadêmico para diagnosticar atos de alienação parental. Esse trabalho exige
tempo, não é algo que se realiza em uma fala exclusiva da criança ou do
adolescente durante o depoimento especial. A escuta protegida surge para
complementar esta prova, garantindo à criança ou adolescente, se
necessário serem ouvidos, que seja por meio de depoimento especial.
2.2.2.2 – Alienação Parental e as Falsas Acusações de
Abuso Sexual
A grande celeuma, atualmente, vinculada à alienação parental são as
falsas acusações de abuso sexual pelo(a) genitor(a) alienador(a).
Essa prática está definida no inciso VI do art. art. 2.º da Lei
12.318/2010: “apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares
deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a
criança ou adolescente”.
Os fatos recorrentes no dia a dia forense são de que simples afirmativas
do alienador já são o suficiente para afastar o(a) filho(a) do alienado,
ignorando não só o direito do infante, garantido pelo Princípio do Melhor
Interesse da Criança (CF, 227), como do adulto pelo Princípio da Presunção da
Inocência (CF, art. LVII).
É importante que esse assunto seja tratadocom cautela, pois se trata de
fato grave e, em certos casos, as falsas acusações podem causar danos
irreparáveis aos envolvidos, dentro do núcleo familiar, além de atingir os
profissionais vinculados à produção da prova do abuso.
A primeira medida tomada geralmente na hipótese de denúncia de
abuso sexual é afastar o abusador da vítima, no caso o alienado, com a ideia
de proteção à criança ou adolescente.
Quando os fatos são confirmados há uma sucessão de atos vantajosos
resultados da medida, principalmente a favor da vítima (criança ou
adolescente); entretanto, o que vem ocorrendo atualmente é um índice
elevado, embora não se tenha números exatos, de falsas acusações de
abuso sexual com a intenção de afastar o(a) filho(a) do alienado.
Neste último caso surge outro grande problema: a morosidade da
Justiça. O fato de as comarcas estarem abarrotadas de processos, carência
de recursos de pessoal, estrutura, equipamentos, entre outros, fazem com
que os magistrados não tenham condições de atender à demanda a
contento para uma devida prestação jurisdicional. Daí o fato tem
agravamento, porque podemos estar afastando o alienado, que pode ser
inocente, do convívio com seu(sua) filho(a), o que pode acarretar no futuro
por conta disso a repulsa do próprio infante ao genitor alienado, o que seria
natural.
A decisão judicial, inclusive, acaba integrando o iter criminis do
alienador,67 que é sabedor dessa deficiência jurídica e envolve o Poder
Judiciário, que afasta o(a) filho(a) do(a) genitor(a) sem comprovação
suficiente dos fatos de forma liminar, acarretando, por outro lado, uma
forma de incutir falsas memórias nos infantes.
O Superior Tribunal de Justiça no REsp 1609726/DF, analisando um caso
envolvendo abuso sexual de infante e os princípios constitucionais de
interesses das partes envolvidas, disse que “inobstante hajam acusações de
abuso sexual de menor pelo genitor, não se pode privá-lo totalmente do convívio
com a infante, quando existentes outras formas de resguardar a incolumidade
sexual da incapaz, sem, contudo, recorrer a medidas drásticas, tais como ceifar
totalmente os vínculos familiares entre pai e filha. III. Quando houver colisão
entre princípios de envergadura constitucional, deve ser exercida pelo
magistrado a adequada ponderação entre os valores envolvidos, para que nem
um, nem outro direito seja sacrificado”.
A decisão está ligada à presunção de culpa nas falsas acusações de abuso
sexual; contudo, pela experiência de anos na Magistratura e depois de
analisar inúmeros casos desta natureza, o mais importante é filtrar a
produção cognitiva da prova sumária colacionada aos autos com o pedido
inicial.
Neste sentido, podemos colacionar a decisão do TJSP, da lavra do
Relator Des. Carlos Alberto Garbi, da 10.ª Câmara de Direito Privado, no
AI n. 2070734-54.2014.8.26.0000, em julgamento ocorrido em 14/10/2014:
“CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. FALSA
NOTÍCIA DE ABUSO SEXUAL. ATOS DE ALIENAÇÃO PARENTAL. 1. Decisão
agravada que indeferiu o pedido de suspensão das visitas do genitor à filha do
casal por considerar temerária e sem fundamento as alegações de abuso do
genitor. 2. O resultado do segundo exame pericial, concluído durante o
processamento do recurso, também resultou negativo e as circunstâncias dos
autos indicam a prática de atos de alienação parental por parte da genitora, em
prejuízo à criança. O processo de alienação parental, quando desmotivado, e
caso detectado em sua fase inicial e reversível, deve ser obstado a fim de se
evitar as graves consequências da instalação de síndrome de alienação parental
na criança e/ou adolescente, as quais tendem a se perpetuar por toda a sua
vida futura. 4. Se por um lado a prática processual revela a dificuldade de se
identificar e neutralizar os atos de alienação parental, por outro lado, não pode
o Juiz condescender com os atos de desmotivada e evidente alienação parental,
para fins de auxiliar o agente alienador a alcançar o seu intento, de forma
rápida (e ainda mais drástica), em evidente prejuízo à criança. 5. Deve-se
restabelecer a regular convivência entre a criança e o genitor, a qual, diante das
circunstâncias que se revelam nos autos, sequer deveria ter sido interrompida,
não fosse a temerária e insubsistente acusação da genitora. Deve ser ressaltado
que, no caso, não há falta de provas, e sim provas de que os fatos relatados
pela genitora são inverídicos. 6. Recurso não provido. Antecipação de tutela
recursal revogada para restabelecer as visitas paternas.”
ALESANDRA ULLMANN,68 em excelente artigo denominado “Da
Inconstitucionalidade do Princípio da Culpabilidade Presumida nas Falsas
Acusações de Abuso Sexual”, aborda de forma arrebatadora a questão
envolvendo as provas produzidas no início do processo, inclusive relata
consequência aos profissionais pelos laudos fornecidos: “6. Das Provas – Há
algumas formas de se efetivar o procedimento de uma falsa acusação de abuso
sexual contra um dos genitores com a única intenção de provocar seu
afastamento do filho comum. A primeira delas, e mais habitual, é a busca no
judiciário de uma decisão liminar inaudita altera pars, ou seja, sem a oitiva da
parte contrária. Este procedimento no qual na maioria das vezes basta uma
mera alegação de desconfiança que o menor estaria sofrendo algum tipo de
abuso por parte do outro genitor ou familiar para que, na quase totalidade dos
casos, ‘pela segurança do menor’, se consiga uma medida de afastamento
temporário e proibição da convivência. Em alguns casos, o procedimento inicial
vem acompanhado de laudos unilaterais, de profissionais contratados e pagos
pela parte, que de alguma forma corroboram com a alegação, havendo em
muitos casos fotografias de partes íntimas de crianças sem data e identificação,
tendo como única intenção chocar quem analisa o feito. Algumas vezes,
também, o processo vem acompanhado de declarações de amigos e parentes do
acusador, e ainda de trechos de áudios ou filmagens da criança de tenra idade
relatando exatamente o que aquele responsável quer que ela diga. Importante
que se ressalte que essa forma de alienação parental vai além do âmbito
familiar, pois para corroborar a tese do pretenso abuso, o acusador envolve
psicólogos, médicos, professores, parentes, amigos e outros. Ou seja, o
alienador, nesse caso acusador, utiliza-se do círculo extenso da família e dos
amigos para trazer aliados que confirmem sua forma de agir. Fazer de familiares
e amigos próximos e comuns ao ex-casal cumplices de sua jornada é o primeiro
passo para a extensão direta da alienação parental, pois se engana quem pensa
que a alienação só se dá com o filho comum, transforma-se em um apartheid,
uma divisão entre meus e seus. Minha família x sua família, meus amigos x seus
amigos, profissionais de minha escolha x profissionais de sua escolha. Nesse
jogo perverso o alienador utiliza-se ainda das instituições próximas do menor
para, de alguma forma, auxiliá-lo no afastamento do outro, como a escola, os
médicos, psicólogos e outros…”.
Da análise da prova dentro das instituições de ensino ULLMANN afirma
que “a escola é o local, longe de casa, onde as crianças mais tempo passam,
teoricamente um local neutro, sem provocações, sem disputas, sem a ostensiva
necessidade de escolha entre um ou outro genitor. No entanto, na prática, não
é desta forma que acontece. Vale lembrar que a separação dos pais é sempre
um trauma a ser superado pelo menor. E, dependendo da forma com que esta
se dê e do comportamento dos pais ao lidar com a situação, que por si só já
causa stress e perda de referências para o filho comum, a criança pode reagir
de formas diversas, seja tornando-se mais agressiva, introspectiva, chorosa e
manhosa, menos comunicativa, com atraso no aprendizado, comportamento
regredido, e diversas outras formas de manifestação. Ou seja, é mais do que
norma que a criança modifique seu comportamento diante da separação dos
pais. As dificuldadesapresentadas pelos menores no momento de se separar de
pai e mãe, na entrada e saída da escola, são demonstrativos da readaptação a
uma nova situação de vida, e não necessariamente que o pequeno não deseja ir
com um ou com outro. A insegurança dos filhos é fruto da insegurança dos pais,
e assim deve ser encarado […] como exemplo, é comum se verificar em
processos judiciais que surgem declarações de escolas, professores e mães de
coleguinhas da criança afirmando simples intenção de afirmar ou fazer prova de
que a criança teme o genitor ou não quer sair da escola com ele. Tais
‘documentos’ devem ser analisados com todo cuidado possível, pois certamente
quem os emitiu não possui capacidade técnica para avaliar o momento que a
criança está vivendo e as sensações de medo e abandono do outro quando não
se encontra na companhia de ambos os genitores”.
É importante registrar que a legislação atual objetivou diminuir o
afastamento de um dos pais com a instituição de ensino e o
desenvolvimento do filho, determinando que as escolas e cursos de
extensão tenham a obrigação de prestar informações a ambos os genitores,
independentemente da situação jurídica deles. Trata-se da Lei 9.394/96, que
estabelece as Diretrizes e Bases do Ministério da Educação e Cultura, que
foi alterado pela Lei 12.013/20019, e o art. 1269 passou a obrigar as
instituições de ensino a fornecer informações a ambos os genitores,
conviventes ou não com seus filhos.
A atuação dos Psicólogos nas questões familiares envolvendo esse
assunto, com emissão de documentos, é outro fator determinante como
produção de prova e causa consequências jurídicas graves, não só às partes,
como aos próprios profissionais, como ressalta ULMANN70: “Um dos
instrumentos utilizados pelos genitores que pretendem, de forma maldosa,
afastar o outro do filho menor, é a indução de alguns profissionais da área de
saúde para tanto, sendo que a utilização de laudos, declarações, pareceres
médicos e psicológicos para justificar o pedido de afastamento do genitor ao
judiciário virou lugar comum nos processos que envolvem falsas acusações de
abuso sexual advindos de um processo sórdido de alienação parental. O
trabalho dos psicólogos no deslinde dos processos judiciais envolvendo questões
familiares é de suma importância, desde que realizado de forma isenta e
baseada nas normas e regulamentações de seu Conselho. O Código de Ética da
profissão trata de forma bastante clara das responsabilidades do profissional, e
várias resoluções específicas norteiam o atuar dos psicólogos. Dentre elas
temos as Resoluções 07/2003 (Institui o Manual de Elaboração de Documentos
Escritos produzidos pelo psicólogo, decorrentes de avaliação psicológica e revoa
a Resolução CFP o 17/2002), 08/2010 (Dispõe sobre a atuação do psicólogo
como perito e assistente técnico no Poder Judiciário) e 17/2012 (Dispõe sobre a
atuação do psicólogo como Perito nos diversos contextos). Todas as regras
contidas nas resoluções acima citadas e enumeradas visam ao desempenho de
forma idônea do profissional da área de psicologia de forma que seu atuar,
especificamente em questões que envolvam processos judiciais na área de
família, não colaborem de forma alguma com qualquer tipo de alienação
parental praticada por um dos genitores ou guardião. Importante ressaltar que
a elaboração de laudos ou pareceres que serão utilizados por uma das partes
impõe ao psicólogo uma grande responsabilidade: a de analisar e avaliar o
contexto familiar das pessoas que envolvem o litígio, para só assim apresentar
qualquer documento ao contratante. A não observação desse princípio poderá
fazer com que a utilização do documento em um processo judicial enseje
decisões que nem sempre resguardam as partes envolvidas, sendo que o mau
uso de documentos ambíguos ou inconclusivos emitidos por psicólogos pode dar
início a um processo de alienação parental, firmar a crença de uma falsa
acusação, seja de abuso moral, sexual, físico, tortura psicológica e outros.”
Visando essa imparcialidade e preocupados com a grande quantidade de
profissionais punidos pelos Conselhos Regionais e Federal em razão da não
observação dos principais preconizados no regramento específico, o
CREPOP – Centro de Referência Técnica de Psicologia e Políticas Públicas,
em conjunto com o Conselho Federal de Psicologia, elaboraram manual
contendo referências técnicas para atuação do psicólogo em varas da
família71.
ULLMANN,72 em seu artigo, cita punição por violação a infração aos
artigos 2.º, alíneas b e h, art. 7.º e 9.º do Código de Ética da Profissão de
Psicólogo73.
No que se referem aos documentos emitidos por médicos, principalmente
os pediatras e ginecologistas, registre-se que são outros profissionais que
têm importância nesse contexto e acabam por agravar a situação muitas
das vezes, seja de forma voluntária ou não, com participação direta no
resultado, decorrente da produção do documento de sua lavra, que no
meio jurídico tem peso de laudo e/ou atestado de um profissional que é
reconhecidamente respeitado no meio social e profissional por tudo o que
representa na sociedade.
Ainda se referindo a ULLMANN74, ela adverte que “vale sempre levar
em consideração dois pontos específicos: o primeiro, que a parte que pretende
provar uma tese de abuso não se utilizará de laudos, declarações ou
documentos que se apresentem contra a sua tese. Ou seja, na maioria dos caos
de falsa acusação de abuso, há a busca por diversos profissionais, até que um,
por uma razão ou outra, corrobore por escrito com a tese do acusador – e
ninguém nunca saberá disso. Em segundo lugar, vale lembrar que o relato aos
médicos e profissionais é feito pela parte interessada, e quando esses são
tomados como verdade absoluta, a indução de um posicionamento já vem
implícita na escrita do profissional”.
Por fim, nos resta retratar o atuar dos operadores do direito e advogado,
que são indispensáveis à aplicação do direito e das garantias constitucionais.
Esclarece-se que muitos deles são envolvidos também, direta ou
indiretamente, em fatos fantasiosos, mentirosos, adulterados, falsos, para
encampar a ideia de obter para si o(a) filho(a) exclusivamente em prejuízo
da convivência familiar com o(a) genitor(a) alienada(o).
Acreditamos que pelo Código de Ética do Advogado, para evitar uma
lide temerária, deverá investigar por todos os meios que lhe são possíveis,
após análise da prova que lhe é apresentada, a situação fática-probatória.
Caso necessário recorra aos profissionais que emitiram os documentos e
tenha uma conversa franca e aberta, com autorização de seu cliente, para
evitar a quebra do sigilo profissional; debata com outros profissionais,
reflita, discuta, etc. É importante que sejam esgotadas todas as lacunas e
dúvidas. Somente após a convicção, somada à prova, é que se deve dar azo
a uma pretensão subjetiva pública em juízo.
Não se pode perder de vista que o Estatuto da Advocacia (Lei nº
8.906/94), no art. 32, parágrafo único, dá pela responsabilidade solidária do
advogado para responder pela litigância de má-fé, seja por sustentar lide
temerária, seja por atos processuais praticados nesta condição75.
Por todas essas considerações, é importante que, diante de uma
situação concreta de abuso sexual, haja uma correta interpretação da
norma para se respaldar.
O art. 5.º da Lei 12.318/2010 (Lei da Alienação Parental) destaca que
“havendo indício da prática de ato de alienação parental, em ação autônoma
ou incidental, o juiz, se necessário, determinará perícia psicológica ou
biopsicossocial”.
Ora, reconhecendo o indício da alienação (art. 4.º da referida lei),
aplicam-se as medidas provisórias necessárias para preservação da
integridade psicológica da criança ou do adolescente, inclusive sua
convivência com o genitor ou viabilizar a efetiva reaproximação, se for o
caso, e determinar, imediatamente, a realização de perícia psicológica ou
biopsicossocial.
Qualquer dúvida será sanada, posto quea prova a ser produzida é do
Juízo e garantido o contraditório e a ampla defesa do alienado.
O art. 5.º da Alienação Parental destaca que “havendo indício da prática
de ato de alienação parental, em ação autônoma ou incidental, o juiz, se
necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial”.
Uma forma de obter informações é o Depoimento Especial.
De qualquer sorte, toda e qualquer cautela nunca é demais, sendo
importante que se reflita antes de decidir liminarmente o acolhimento da
alienação parental baseado em indícios de abuso sexual, que podem ser
falsas e acabarão por causar prejuízos às partes, principalmente aos
infantes.
2.2.3 – Como Conduta Criminosa
A última definição de Violência Psicológica é também a mais ampla
possível, uma vez que o legislador considerou que “qualquer conduta que
exponha a criança ou adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento
contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do
ambiente em que cometido, particularmente quando isto a torne testemunha.”
A conduta vinculada à definição da violência psicológica pode ser
definida como o meio de agir, direta (pela própria pessoa) ou indiretamente
(por intermédio de terceiros), de forma negativa (são aquelas consideradas
moralmente reprováveis), por meio de um ato comissivo (é aquele que o
agente pratica o ato através de uma ação) ou omissivo (é aquele que se
pratica o ato através de uma omissão, um não agir).
A conduta vedada é aquela de expor a criança ou adolescente, direta ou
indiretamente, a crime violento contra membro da sua família ou de sua
rede de apoio.
O expor significa fazer com que uma pessoa fique em exposição a
alguma coisa que no contexto da norma seria o crime violento. Essa
exposição pode ser direta (presencial) ou indireta (encoberta e não
explícita). A título de exemplo, um pai que agride uma mãe na residência do
casal na presença dos filhos, trata-se de uma exposição direta; ou a
agressão, nas mesmas circunstâncias, quando ocorre sem a presença dos
filhos, porém eles tomam conhecimento através das marcas deixadas na
vítima (mãe), trata-se de uma exposição indireta.
A conduta expositiva deve ser de um crime violento e exige
direcionamento alternativo a dois núcleos de vítimas: a) membros da família;
ou b) rede de apoio.
A Lei de Introdução ao Código Penal brasileiro – Decreto-lei n.
3.914/41 – faz a seguinte definição de crime: “Considera-se crime a infração
penal que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer
alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração
a que a lei comina, isoladamente, penas de prisão simples ou de multa, ou
ambas, alternativa ou cumulativamente.”
A norma se limitou apenas a destacar as características que distinguem
as infrações penais consideradas crimes daquelas que constituem
contravenções penais, as quais, como se percebe, restringem-se à natureza
da pena de prisão aplicável.
Deve-se adotar o conceito analítico de crime, que segundo Welzel é a
ação humana voluntária e consciente dirigida a uma finalidade. No conceito
analítico de crime há alguns elementos estruturais, sendo eles: ação típica,
antijurídica e culpável. No entendimento dominante no Brasil, “crime é a
ação típica e antijurídica”, admitindo a culpabilidade somente como mero
pressuposto da pena.
É importante analisar a classificação das infrações penais para entender
as condutas puníveis.
O Brasil adota a classificação Bipartida, que é a divisão mais utilizada
pelas legislações penais. As condutas puníveis dividem-se em crimes ou
delitos e contravenções que seriam espécie de gênero infração penal.
Ontologicamente76 não há diferença entre crime e contravenção. As
contravenções, que por vezes são chamadas de crimes-anões, são condutas
que apresentam menor gravidade em relação aos crimes, por isso sofrem
sanções mais brandas. O fundamento da distinção é puramente político-
criminal e o critério é simplesmente quantitativo ou extrínseco, com base
na sanção assumindo caráter formal. Com efeito, nosso ordenamento
jurídico aplica a pena de prisão para os crimes, sob as modalidades de
reclusão e detenção, e, para as contravenções, quando for o caso, a de
prisão simples. Assim, o critério distintivo entre crime e contravenção é
dado pela natureza de pena privativa de liberdade cominada.
Nota-se que o legislador ordinário aventou, expressamente, apenas e
tão somente a expressão “crimes”, deixando de fora a terminologia
“contravenção”.
Neste caso aplica-se à contravenção penal para caracterizar violência
psicológica?
Observamos, antes de tudo, que o legislador fez menção a “crime
violento”. No caso da contravenção, pela análise do Decreto-lei n.
3.688/41, que se refere à Lei das Contravenções Penais, não encontramos
nenhuma infração penal na qual haja violência.
Assim, poderíamos responder negativamente!
Ocorre, entretanto, que se tratando de um fato que envolve infração
penal dentro do núcleo familiar ou na rede de apoio, surge uma questão
que envolve as vias de fato, prevista no art. 21 da Lei de Contravenção
Penal77.
Essa questão vem rendendo discussão no meio jurídico e envolve
diretamente a Maria da Penha, que é a norma que mais se aplica aos fatos
familiares, inclusive com o mesmo contexto aqui discutido.
Muito se debate em sede policial e jurídica se a contravenção penal de
vias de fato, no âmbito da violência doméstica, seria autuada por Termo
Circunstanciado de Ocorrência (TCO) ou se por Auto de Prisão em
Flagrante Delito (e até mesmo por Portaria, para o nascedouro do
Inquérito Policial).
A discussão se dá, principalmente, por conta da redação do art. 41 da
Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que enuncia que aos “crimes
praticados” com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de
setembro de 1995.
Nesse ponto, veja a redação do art. 41 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria
da Penha): “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a
mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n.º 9.099, de
26 de setembro de 1995.”
Nota-se que o legislador ordinário, como na Lei 13.431/2017, aventou,
expressamente, apenas e tão somente a expressão “crimes”, deixando de
fora a terminologia “contravenção”.
O Superior Tribunal de Justiça entendeu que a expressão crime deveria
abranger a contravenção penal de vias de fato.
De forma, a contravenção penal de vias de fato, no âmbito da violência
doméstica, à luz da jurisprudência do STJ78, teve afastada a incidência da Lei
9.099/1995.
Esse também foi o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal
Federal quando do julgamento do HC 106.212/MS (DJ13.06.2011), de
relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que se adotou o posicionamento
no sentido de que o art. 41 seria aplicado aos crimes e às contravenções
penais praticados no âmbito de violência doméstica e familiar. Analise-se a
ementa do julgado: “Violência doméstica. Artigo 41 da Lei n.º 11.3402006.
Alcance. O preceito do artigo 41 da Lei n.º 11.340/2006 alcança toda e
qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia
contravenção penal, como é a relativa a vias de fato. Violência doméstica.
Artigo 41 da LEI n.º 11.340/2006. Afastamento da Lei n.º 9.099/1995.
Constitucionalidade. Ante a opção político-normativa prevista no artigo 98,
inciso I, e a proteção versada no artigo 226, § 8.º, ambos da Constituição
Federal, surge harmônico com esta última o afastamento peremptório da Lei n.º
9.099/1995 – mediante o artigo 41 da Lei n.º 11.340/2006 – no processo-
crime a revelar violência contra a mulher. Isso porque, segundo o disposto no
artigo 226, § 8.º, da Constituição Federal, “O Estado assegurará a assistência à
família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para
coibir a violência no âmbito de suas relações.” (STF, HC 106.212/MS (DJ
13.06.2011), Rel. Min. Marco Aurélio,Tribunal Pleno, j. 24.03.2011, DJe-
112 divulg. 10.06.2011, public. 13.06.2011, RTJ 219/521, RT, v. 100, n. 910,
p. 307-327, 2011).
E o que isso tem a ver com a análise da violência psicológica em termos
práticos?
A interpretação da norma, dentro desse contexto já reconhecido pelo
STJ, acreditamos que caracteriza a violência psicológica caso haja a
exposição de uma criança ou adolescente, direta ou indiretamente, à
contravenção de vias de fato por parte de algum membro de sua família ou
de sua rede de apoio.
Indagamos: uma genitora que, diariamente, é vítima de vias de fato na
presença dos filhos dentro do lar conjugal (tapas, pontapés, chutes, puxões de
cabelo, arrastões, etc.) não caracterizaria uma exposição de violência
psicológica à criança ou adolescente, ainda que não deixasse marcas no corpo
dela, só porque o legislador no art. 4.º, alínea c, da Lei 13.431/2017, afirma
que a violência se dá quando ocorre crime violento?
À luz da finalidade última da norma jurídico-constitucional, tenho que,
considerados os fins sociais a que a lei se destina (art. 3.º), não há dúvida de
que a resposta é afirmativa, i. é, caracterizaria a violência.
E quanto ao crime culposo? Não caracteriza a violência psicológica,
posto que o agente age sem dolo, sua vontade não é dirigida à obtenção de
um resultado criminoso ou o risco de produzi-lo. O crime é resultante da
inobservância do cuidado necessário do agente, o qual não intenta nem
assume o risco do resultado típico, porém a ele dá causa por imprudência,
negligência e imperícia. Ou seja, é um agir descuidado que acaba por gerar
um resultado ilícito não desejável, porém previsível.
Vejamos, em análise ao crime violento, que o legislador exige o
direcionamento alternativo a dois núcleos de vítimas: a) membros da família;
ou b) rede de apoio.
Para saber quem são os membros de uma família, antes, porém,
devemos definir o que seria uma família.
ABREU79, na conceituação de família, afirma que o conceito é amplo,
podendo ser definido diferentemente dependendo da perspectiva
abordada, do viés sociológico, dos costumes e das tradições, assim como
da cultura e o local estudado.
De acordo com Caio Mário80, família em sentido genérico e biológico é
o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum; em
senso estrito, a família se restringe ao grupo formado pelos pais e filhos; e
em sentido universal é considerada a célula social por excelência.
Já Maria Helena Diniz81 discorre sobre família no sentido amplo como
todos os indivíduos que estiverem ligados pelo vínculo da consanguinidade
ou da afinidade, chegando a incluir estranhos. No sentido restrito é o
conjunto de pessoas unidas pelos laços do matrimônio e da filiação, ou seja,
unicamente os cônjuges e a prole.
Na área jurídica o tema possui uma definição mais restrita. Como regra
geral, o Direito Civil considera membros da família apenas as pessoas
unidas por relação conjugal ou de parentesco. As várias legislações definem,
por sua vez, o âmbito do parentesco. A Constituição Federal de 1988
abrange a família como sendo o relacionamento entre um homem e uma
mulher, podendo surgir o casamento ou uma união estável. Afirma também
que pode ser composta pelo aspecto social. O direito de família estuda, em
síntese, as relações das pessoas unidas pelo matrimônio, bem como aqueles
que convivem em uniões sem casamento; dos filhos e das relações desses
com os pais, da sua proteção por meio de tutela dos incapazes por meio da
curatela82.
Desse modo, importa considerar a família em um conceito amplo,
como parentesco, ou seja, o conjunto de pessoas unidas por um vínculo
jurídico de natureza familiar, porém, esse conjunto não recebe tratamento
pacífico e uniforme. A ordem jurídica enfoca-a em razão de seus membros
ou de suas relações recíprocas83.
A definição legal de família que mais se aproxima do formato atual foi a
conceituada pelo legislador a partir da entrada em vigor da Lei Maria da
Penha (Lei 11/340/2006, art. 5.º, II): “comunidade formada por indivíduos que
são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou
por vontade expressa”.
Maria Berenice Dias84 afirma que “pela primeira vez o legislador, de forma
corajosa, define o que é família trazendo um conceito que corresponde ao
formato atual dos vínculos afetivos. Fala indivíduos, e não em um homem e uma
mulher. Também não se limita a reconhecer como família a união constituída
pelo casamento. Aliás não poderia fazê-lo, até porque a constituição federal
esgarçou o conceito de família e monoparental, sem no entanto deixar ao
desabrigo outros modelos familiares ao usar a expressão ‘entende-se também
como entidade familiar’ (CF, art. 226, §4.º). Assim as famílias anaparentais
(formada entre os irmãos), as homoafetivas e as famílias paralelas (quando o
homem mantém duas famílias), igualmente estão albergadas no conceito
constitucional de entidade familiar como merecedora da especial tutela do
Estado”.
Porém, conforme o entendimento da sociedade vai evoluindo, o
conceito de família vai se modificando, passando a existir vários tipos de
família. Atualmente, o entendimento mais comum estabelece que família
seja a união de pessoas ligadas pelo afeto.
Recentemente, surgiram discussões acerca dos direitos e da família no
caso de pessoas homossexuais, que, até então, eram repudiados pela
sociedade. Hoje, após o julgamento pelo STF, a união é reconhecida, cujos
laços são iguais aos de outras pessoas no meio social, entre eles, de
família85.
Dessa forma, o reconhecimento da união homoafetiva como a família
incidente independe da orientação sexual. Assim, lésbicas, travestis,
transexuais e transgêneros que têm identidade feminina, estão ao seu
abrigo quando a violência ocorre entre pessoas que possuem relação
afetiva no âmbito da unidade familiar.
Para a sociedade, a simples relação de consanguinidade não é mais
importante do que os laços afetivos e do que a própria convivência no
âmbito familiar. A estrutura da família, teoricamente, é baseada nos laços de
confiança, no amor, no respeito, na reciprocidade, na harmonia e no bem-
estar comum.
Os membros de uma família, geralmente, são os pais e os filhos e seus
descendentes.
Ocorre, entretanto, que em face da legislação de proteção integral à
criança ou adolescente, é comum tratarmos da família extensa ou ampliada
aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do
casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou o
adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. Trata-se
de espécie de família natural, em distinção à família substituta.
Neste caso são membros da família extensa os avós, tios, primos,
sobrinhos, etc.
Lado outro, a rede de apoio são aqueles que detêm
a criança ou o adolescente em sede transitória, de caráter provisório e
excepcional. Trata-se da família substituta, nascida dos institutos jurídicos da
guarda, tutela, acolhimento familiar, apadrinhamento, etc.
Os membros da rede de apoio são aqueles responsáveis pela proteção
da criança e do adolescente (guardião, tutor, acolhedor, padrinho, etc.) e os
integrantes de sua família (a família do guardião, tutor, acolhedor, padrinho,
etc.). Nesse último caso não se deve dar proteção apenas ao responsável
da criança ou adolescente se os infantes vivem no núcleo familiar do
responsável. Qualquer conduta criminosa cometida em face desses
integrantes integra a esfera da violência psicológica.
O local (ambiente) da conduta delitiva (infração criminal) pouco
interessa para caracterizar a violência.
Vejamos que o dispositivo faz referência a “independentemente do
ambiente em que é cometido”. Isso significa dizer que o fato pode ser em
público (rua, praça, escola, clube social, restaurante, bar, salão de beleza,
etc.) ou em lugar reservado (dentro da própria residência da vítima).
O importante, embora não seja obrigatório, é que a conduta seja
voltada “particularmentepara tornar testemunha”, o que acaba por
transformar a vida do(a) infante, com reflexos negativos e consequências
psicológicas graves e, quem sabe, para o resto de sua vida, muitas vezes
irrecuperável.
Essa afirmativa soa no sentido de que, caso um membro da família seja
vítima de um crime violento o qual a criança ou adolescente não tenha
presenciado, mas que conviva no lar com ela, acompanhando seu
sofrimento, seja pelas lesões físicas ou psicológicas, este reflexo atinge
diretamente o(a) menor, o que causa a violência psicológica indireta dos
fatos.
2.3 – VIOLÊNCIA SEXUAL
A violência sexual contra crianças e adolescentes é uma das formas mais
perversas de violência, pois se caracteriza pelo uso da sexualidade desta
população, de maneira a violar seus direitos sexuais e sua intimidade. Essa
faceta da violência apresenta-se de maneira desigual e é estabelecida pelas
relações de poder, mando e obediência, principalmente quando a vítima é
uma criança e/ou um adolescente.
Kristense86 et al., 1998, p. 33, define como “todo ato ou jogo sexual,
relação hetero ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança ou
adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança ou
adolescente ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa
ou de outra pessoa”.
A violência sexual, devido à sua complexidade, divide-se em: a) abuso
sexual intrafamiliar e extrafamiliar; e b) exploração sexual e comercial
de crianças e adolescentes.
Define-se abuso sexual intrafamiliar como o uso da sexualidade da
criança e/ou do adolescente por pessoas com vínculos de parentesco. O
abuso extrafamiliar é quando os abusadores não têm vínculos familiares.
A exploração sexual e comercial define-se pela exploração da sexualidade
de crianças e adolescentes e está ligada ao comércio com fins de lucro por
aliciadores, agentes, clientes, os quais estão inseridos em um sistema de
exploração. A exploração sexual e comercial de crianças e adolescentes
está dividida em quatro contextos: 1) Exploração sexual no contexto de
prostituição – ação na qual crianças/adolescentes podem ser levados ao
ato da prostituição pelos próprios pais ou tornam-se vítimas do aliciamento
de outros adultos, sendo apresentados ao mercado da prostituição com a
promessa de melhores condições de vida. No entanto, não cabe denominar
criança e adolescente como “prostitutas”, pois estão inseridas em um
contexto de prostituição, sendo exploradas como objeto sexual por
pessoas que formam uma rede de aliciadores; 2) Tráfico para fins de
exploração sexual – é forma de exploração voltada para o tráfico de
crianças e adolescentes e envolve atividade de aliciamento, rapto,
intercâmbio e transferência em território nacional ou outro país, com a
finalidade comercial ligada à prostituição, turismo, pornografia, trabalho
escravo e tráfico humano; 3) Exploração sexual no contexto de turismo
– acontece quando crianças/adolescentes são assediados por turistas,
estrangeiros ou não. Geralmente há envolvimento, cumplicidade ou
omissão de estabelecimentos comerciais que tendem a se beneficiar de
alguma forma com esse tipo de exploração; e 4) Pornografia
infantojuvenil – exposição de órgãos sexuais de crianças/adolescentes ou a
realização de atividades sexuais explícitas reais ou simuladas em imagem ou
vídeo.
A violência sexual, descrita no inciso III do art. 4.º, é quem sabe a pior e
mais grave de todas as praticadas em face da criança ou adolescente e,
infelizmente, são também as mais frequentes envolvendo infantes como
vítimas ou testemunhas.
Faleiros e Campos, com propriedade, ressaltam que a violência sexual
praticada contra criança “[…] deturpa as relações socioafetivas e culturais
entre adultos e crianças/adolescentes, ao transformá-las em relações
genitalizadas, erotizadas, comerciais, violentas e criminosas; confunde, nas
crianças e nos adolescentes violentados, a representação social dos papéis dos
adultos, descaracterizando as representações sociais de pai, irmão, avô, tio,
professor, religioso, profissional, empregador, quando violentadores sexuais, o
que implica a perda da legitimidade e da autoridade do adulto e de seus papéis
e funções sociais; inverte a natureza das relações adulto/criança e adolescente
definidas socialmente, tornando-se desumanas em lugar de humanas;
desprotetoras em lugar de protetoras; agressivas em lugar de afetivas;
individualistas e narcisistas em lugar de solidárias; dominadoras em lugar de
democráticas, dependentes em lugar de libertadoras, perversas em lugar de
amorosas, desestruturadoras em lugar de socializadoras; confunde os limites
intergeracionais (2000, p. 10)”87.
As alíneas a, b e c do referido inciso expõem cenários de violência
sexual já descritos em tipos penais no Código Penal, no Título referente aos
delitos contra a dignidade sexual, além de outros, que estão previstos como
crimes contra a liberdade individual.
2.3.1 – Definição de Violência Sexual
O legislador definiu no inciso III do art. 4.º como violência sexual aquela
“entendida como qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a
praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso,
inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que
compreenda abuso sexual, exploração sexual comercial e tráfico de pessoa com
o fim de exploração sexual”.
O objetivo da norma foi abranger toda e qualquer conduta, descrita no
Código Penal quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente e em outras
normas infraconstitucionais, que envolva criança e adolescente em práticas
sexuais de qualquer natureza, inclusive por meio eletrônico.
É importante ter consciência na análise dessa violência que, pela
definição da violência sexual dada pelo legislador ordinário na Lei
13.431/2017, o texto expresso no dispositivo em análise caracteriza, na sua
grande maioria, tipos penais (crime) e, neste caso, como previsto no caput,
para efeitos na norma não tem prejuízo a tipificação da conduta criminosa,
que veremos adiante.
No mesmo sentido da análise da conduta da violência psicológica (v.
item 2.2.3), a conduta vinculada à definição da violência sexual pode ser
definida como o meio de agir, direta (pela própria pessoa) ou indiretamente
(por intermédio de terceiros), de forma negativa (são aquelas consideradas
moralmente reprováveis), por meio de um ato comissivo (é aquele que o
agente pratica o ato através de uma ação) ou omissivo (é aquele que se
pratica o ato através de uma omissão, um não agir).
A conduta vedada deve constranger a criança ou a adolescente a praticar
ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive
exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que
compreenda abuso sexual, exploração sexual comercial e tráfico de pessoa com
o fim de exploração sexual.
Constranger é forçar, obrigar, impor, compelir. Quem sofre
constrangimento é constrangido por outrem a fazer o que não quer. É o
estado de aperto, compressão, de quem foi constrangido, violentado88.
Quem constrange atua de modo contrário à vontade do outro, que faz
alguma coisa, deixa de fazê-la, ou permite que com ele se faça, a
contragosto. É inerente ao verbo que define o núcleo do tipo penal que a
vítima não queira a conduta do agente. Tolera-se em razão de circunstância
excepcional, mas o fato tolerado não é do seu agrado; em condições usuais,
não o aceitaria.
A nosso juízo o legislador foi infeliz ao descrever o verbo (constranger)
como sendo o meio para caracterizar a violência sexual.
Em se tratando de vítima com idade inferior a 14 anos, irrelevante
perquirir, para fins de caracterização de crime (ou da violência sexual), se
houve ou não o seu “constrangimento” e/ou (muito menos) fazer qualquer
“juízo de valor” acerca da sua conduta ou “experiência sexual” prévia
(como não raro acontece), valendo lembrar que tanto o art. 5.º do ECA,
quanto os arts. 2.º, parágrafo único, e 5.º, IV, da Lei13.431/2017, com
respaldo no art. 227, caput, da CF, proíbem toda e qualquer descriminação
dessas práticas, seja aferido se elas seriam ou não merecedoras da proteção
conferida pela norma89.
O Superior Tribunal de Justiça, neste sentido, recentemente editou a
Súmula n. 593, com o propósito de unificar o entendimento a respeito de
elementar afeta ao crime de estupro de vulnerável: “O crime de estupro de
vulnerável se configura com conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com
menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a
prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento
amoroso com o agente.”
Desta forma, entendemos que falhou o legislador ao exigir para que
haja a violência sexual definida nesta norma o constrangimento da vítima ou
testemunha, quando a “…lei estabelece um verdadeiro “dever geral de
abstinência” em relação à prática de atos sexuais com pessoas de inferior idade
a 14 anos e que todos têm o dever de respeitar e fazer respeitar”90.
Os atos sexuais são a conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso:
conjunção carnal é a relação sexual caracterizada pela introdução do pênis
na vagina, dispensando-se penetração completa ou ejaculação; e ato
libidinoso é qualquer prática diversa, tendente a excitar ou satisfazer a libido
humana, podendo ser assim também entendido aquele ato, objetivamente
identificável com uma prática libidinosa, mas destinado a menosprezar ou
humilhar a vítima.
Acresceu-se, ainda, a exposição do corpo em foto ou vídeo por meio
eletrônico ou não, que compreenda abuso sexual, exploração sexual comercial
e tráfico de pessoa com o fim de exploração sexual.
Com a facilidade de transmissão de imagens proporcionada pelas redes
sociais, cresce o hábito de enviar imagens do corpo para grupos de amigos
ou para companheiros(as) de romance.
E isso, infelizmente, não tem idade.
Qual a motivação que leva as pessoas, na maioria jovens, a adotar esse
procedimento?
Enviar um “presente” ou uma lembrança para alguém que se ama. Uma
demonstração de carinho ou de compromisso, como se o risco que
estivesse correndo, ao colocar sua intimidade na “rede”, fosse uma prova
de sua paixão ou entrega? Ou será uma mera demonstração de narcisismo
e autopromoção?
Pode ser considerado, para quem transmite, um hábito saudável, ou
pelo menos inocente, que irá promover e estimular a liberdade de
expressão, ou será uma atitude que poderá trazer surpresas desagradáveis
no futuro?
São inúmeras indagações para as quais, muitas vezes, não obteremos
respostas.
Ocorre, contudo, que isso faz com que pessoas desprovidas de caráter,
maldosos, delituosos, utilizem esse mesmo mecanismo para cometer
violência sexual em face de crianças e adolescência, nos termos da norma
analisada.
Na posse de fotos ou vídeos, o agente divulga nas redes sociais,
principalmente, crianças ou adolescentes, para fins sexuais.
Não obrigatoriamente a divulgação (exposição) deve ser por meio
eletrônico.
Pode ocorrer pessoalmente (entre duas ou mais pessoas por vários
meios, v.g., entre si uma mostrando a outra, carta, fac-símile, etc.) ou
publicamente (divulgação em ambiente aberto, v.g., Digital Versatile Disc
[DVD], Compact Disc [CD], Memória USB Flash Drive [Pen drive], mural,
faixa, etc.).
2.3.2 – Violência Sexual pelo Abuso Sexual (art. 4.º, III,
alínea a)
O primeiro meio de entender, de perceber o significado de violência
sexual, foi descrito pelo legislador “como toda a ação que se utiliza da
criança ou do adolescente para fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato
libidinoso, realizado de modo presencial ou por meio eletrônico, para
estimulação sexual do agente ou de terceiro”.
Para a organização Mundial da Saúde (OMS), abuso sexual infantil é
“definido como qualquer atividade sexual (incluindo intercurso vagina/anal,
contato gênito-anal, contato gênito/genital, carícias em partes íntimas,
masturbação, exposição a pornografia ou a adultos mantendo relações sexuais)
envolvendo uma criança incapaz de dar seu consentimento”. (Salvagni;
Wagner, 2006, p. 2). É considerado um dos maiores problemas de saúde
pública do mundo (Johnson, 2004, pp. 121/132), podendo ocorrer em
qualquer faixa etária, inclusive com os bebês (Ferreira, 1999), o que justifica
o envolvimento cada vez maior de toda a sociedade e do poder público na
busca de diagnóstico precoce e de políticas públicas capazes de estancar
seus elevados índices91.
Para Christoffel e colaboradores (1992), o abuso é termo usado para
definir uma forma de maus-tratos de crianças e adolescentes com violência
física e psicológica associada, geralmente repetitivo e intencional. Faleiros e
Campos, por sua vez, afirmam que “[…] o abuso sexual deve ser entendido
como uma situação de ultrapassagem (além, excessiva) de limites de direitos
humanos, legais, de poder, de papéis, do nível de desenvolvimento da vítima, do
que esta sabe e compreende, do que o abusado pode consentir, fazer e viver, de
regras sociais e familiares e de tabus. E que as situações de abuso infligem
maus-tratos à vítima (2000, p. 7)”92.
Pela interpretação da norma – literal – o abuso sexual decorre da
conduta, omissiva ou comissiva, de se aproveitar do(a) Infante para fins
lascivos, seja pela conjunção carnal ou outro meio libidinoso, de modo
presencial (pessoalmente) ou meio eletrônico (conjunto de meios de
comunicação que necessita de recursos eletrônicos ou eletromecânicos
para que o usuário final tenha acesso ao conteúdo – vídeos ou áudios
gravados ou transmitidos – v.g., redes sociais, e-mails), com a finalidade de
instigar sexualmente o agente (o próprio abusador) ou terceiros.
O abuso, como a exploração comercial e o tráfico de pessoas, esses dois
últimos serão vistos adiante, com o fim de exploração sexual, são
manifestações de um conceito mais amplo, que é a violência sexual.
No caso em análise, o abuso sexual vai ocorrer quando uma criança ou
adolescente é usado para estimular ou satisfazer sexualmente um adulto
(lascívia). Tudo isso acontece imposto, normalmente, por sedução, força
física ou ameaça. Esse tipo de abuso pode ocorrer sem contato físico
(assédio sexual, abuso sexual verbal, pornografia, etc.) ou por meio de
contato físico.
São inúmeras situações que levam à prática do abuso sexual: fazer com
que uma criança ou um adolescente assista a filmes pornográficos ou
presenciem relações sexuais; fazer com que uma criança ou um adolescente
vejam adultos nus, revistas pornográficas ou adultos se masturbando; fotografar
ou filmar crianças e adolescentes nus, em posturas eróticas; ficar observando os
genitais de crianças e adolescentes para conseguir se excitar, mesmo que seja
de forma escondida, podendo assustá-la ou perturbá-la; falar sobre relações
sexuais com crianças ou adolescentes com a finalidade de se excitar ou de
deixá-los excitados; tocar ou acariciar os órgãos genitais de uma criança; ter
relação sexual oral, anal ou genital com uma criança, etc.
É importante que, dentro desse contexto de exemplos, alguns ocorrem
no meio familiar e não têm conotação de lascívia, não devendo ser
considerado abuso sexual. Exemplo: é natural, muitas vezes, que os pais,
independentemente de qual deles (pai ou mãe), durante um banho, possa
ter contato com o(a) filho(a) despido (nu), mas, nesse caso e por si só, não
caracteriza violência se não tiver voltada para satisfação de seu desejo
sexual ou da criança e adolescente; contudo, como sempre esclareço, são
condutas que, sempre, devem ser evitadas, independentemente de
qualquer coisa, a partir da mais tenra idade, seja qual sexo for, para evitar a
promiscuidade – mistura confusa e desordenada – de sentimento, que é
desconhecida nesta idade, ainda mais que estão em formação de
personalidade.
No mesmo sentido é a ressalva quanto ao conceito atual de família, que
inclui a homossexual e, neste caso, quando a família seja constituída de dois
homens ou duas mulheres e o sexo do(a)filho(a) é oposto. Até que haja a
consciência do infante sobre a condição de gênero envolvendo a relação
dos genitores, qualquer conduta desses, mesmo como dito na relação
heterossexual, não havendo conduta lasciva, todo o cuidado é pouco diante
do reflexo natural de conhecimento da criança ou do adolescente, o que
pode resultar em informações falsas sobre determinado fato ou ato
envolvendo a relação familiar.
Os efeitos psicológicos do abuso sexual infantil pode causar danos tanto
a curto prazo quanto a longo prazo, incluindo psicopatologias93 mais tarde
na vida. Indicadores e efeitos incluem depressão, ansiedade, transtornos
alimentares, baixa autoestima, somatização, transtorno de sono e
transtornos dissociativo e de ansiedade, incluindo estresse pós-traumático.
Enquanto crianças podem apresentar comportamento regressivo, como
sucção do polegar ou xixi na cama, o mais forte indicador de abuso sexual é
a atitude sexual e inapropriado conhecimento e interesse sexual. As vítimas
podem retirar-se das atividades escolares e sociais e apresentar vários
problemas de aprendizagem e comportamentais, incluindo crueldade
contra animais, déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), Desvio de
Conduta e Transtorno Desafiador Opositivo (TDO). Gravidez na
adolescência e comportamentos sexuais de risco podem aparecer na
adolescência. Crianças vítimas de abuso sexual demonstram quase quatro
vezes mais incidência de automutilação.
Para demonstrarmos a consequência do trauma deixado pelo abuso
sexual cometido na infância quando não tínhamos a garantia de proteção do
Estado para que as vítimas ou testemunhas pudessem, com segurança,
revelar a violência sofrida ou vivenciada, podemos citar o exemplo da
apresentadora Rainha do Baixinhos, Maria da Graça Xuxa Meneghel, ou
simplesmente XUXA. Ela, recentemente, revelou em sua coluna no Portal
Vogue, que foi divulgado pela Globo.com,94 o relato do abuso sexual que
sofreu na infância e seu trauma até hoje e que somente aos 50 anos teve
coragem de contar publicamente para ajudar outras pessoas a não
passarem por isto: “Vou contar um episódio que é o mais difícil que vivi nos
meus 56 anos. É difícil escrever, pois tenho que reviver todos os sentimentos:
culpa, raiva, impotência e medo. Mas se isso puder ajudar alguém a pelo menos
entender essa tribo de gente que assim como eu sofreu abuso, já valeu meu
sufoco e esforço. Tudo começou muito cedo, eu devia ter uns 4 anos talvez, e
morava no Sul com minha família toda. Bloqueei muito sobre esse assunto,
então eu não sei se é essa data de fato, talvez um ano a mais ou a menos. O
que eu me lembro? O cheiro e a sensação… Minha mãe costumava colocar um
edredom no chão depois do almoço e deitar com nós cinco para tirar um
soninho na parte da tarde. Eles costumavam nos dar um elixir que abria o
apetite. Como sou intolerante ao álcool e sei que nesse elixir tinha álcool –
mesmo que em dose pequena – dormia mais profundo do que meus irmãos. No
Sul também era comum misturar vinho com água e açúcar e dar para as
crianças, o que também me deixava com mais sono do que o normal. Minha
mãe ficou grávida muito cedo e nunca teve babá, tentava dar de tudo para nós
cinco. Hoje em dia, as pessoas podem ver isso como falta de cuidado, mas não
foi o caso da minha mãe, que nunca deixaria nada de mal acontecer com um
dos cinco filhos dela. Mas aconteceu. Depois de anos perguntei às minhas irmãs
se algo parecido havia acontecido com elas também, mas para minha surpresa,
http://globo.com/
não. Por que eu fui a escolhida? Não sei, mas me lembro de um cheiro de álcool
de alguém, uma barba que machucou o meu rosto e algo que foi colocado na
minha boca. Acordei dizendo que alguém tinha feito xixi na minha boca e meus
irmãos disseram que eu tinha sonhado. Essa foi minha primeira experiência
com abuso sexual, que, diga-se de passagem, eu não me lembro direito, mas
existiram outros casos… Me lembro que andávamos de Kombi… Nós,
crianças, íamos atrás. Eu tinha 5 ou 6 anos e os mais velhos eram pré-
adolescentes, primos de segundo grau e amigos muito próximos da família.
Sentia tocarem em mim, colocavam o dedo, doía, não sabia distinguir o que
sentia, por isso não chorava e nem reclamava com ninguém sobre o acontecido.
Essa mesma pessoa vinha ao Rio quando eu já tinha entre 9 e 10 anos, e,
quando a família dormia, colocava seus dedos por debaixo dos lençóis e me
tocava. Nesse tempo, esse parente distante já era um adolescente e sempre
que podia me tocava. Por que eu não gritava, não chorava? Não sei! Aos 11
anos, meu professor de matemática do colégio Itu, que atendia pelo nome de
Maurício, me chamou depois da aula e, mesmo na frente da minha amiga Yara,
ele disse que queria me deixar só de calcinha e colocar nas minhas coxas. Me
perguntava: o que seria isso? Foi então que eu vi pela primeira vez alguém se
masturbar. No outro dia, ele mandou que eu fosse ao quadro para escrever
alguma coisa antes que os outros alunos da sala entrassem. Era hora do
recreio, ele disse que isso iria me ajudar nas notas finais. Eu escrevi o que ele
queria no quadro e vi que ele se tocava embaixo da mesa, usava uma calça
quadriculada e se mexia muito, não entendia muito bem o que ele estava
fazendo… Foi aí que o ouvi gemer e depois se limpar. Eu perguntei o que tinha
acontecido, se aquilo era colocar nas coxas. Ele riu e disse que não, mas que
faria isso em mim, que não iria me machucar e que se eu falasse pra alguém
sobre o que eu tinha visto ou o que ele havia falado: ‘ninguém iria acreditar,
pois entre a palavra de um aluno e de um professor, o professor sempre ganha.’
Cheguei em casa e na hora do jantar perguntei à minha irmã Mara o que era
colocar nas coxas. Ela ficou furiosa e sem me explicar, queria apenas saber
quem tinha me falado aquilo. Eu me borrei de medo, mas falei. Foi aí que eu e
meu irmão fomos transferidos para o colégio de padre São Judas Tadeu – hoje
Santa Monica – e lá tudo melhorou. Por que isso aconteceu comigo? Não sei.
Por que não gritei? Por que não falei logo pra minha mãe? Não sei! Não sei
mesmo. Com esta mesma idade meus peitos começaram a crescer, eram dois
caroços que doíam mais do que o normal, não podia dormir de bruços, tinha
que usar top para tapar e camisas transparentes nem pensar. Minha vó Olívia,
mãe da minha mãe, tinha um namorado chamado Ubirajara, que pretendia se
casar com ela. Eu ia ao apartamento dela, ficava vendo TV e o futuro “vovô”
ficava perto e me fazia carinho até que minha vó fosse costurar e ele pedia para
eu sentar no colo dele. Às vezes ele tomava banho e deixava a porta aberta. O
barulho que minha vó fazia enquanto cozinhava ou costurava o deixava livre
para vir até a porta se tocar me olhando. Eu não entendia por que ele fazia isso
e nunca perguntei nada. Então ele começou a tocar meus futuros peitos – sim,
ainda não tinha nada a não ser um mamilo um pouco maior. Uma vez, vendo
TV, ele acariciou meu cabelo, o cheirou e logo depois desceu a mão para os
meus (quase) seios e os apertou. Doeu e eu o fiz parar, e ele disse que era só
um carinho e que só o “vovô” podia fazer porque me amava como neta. Por que
não gritei? Por que não chorei alto? Por que não falei para minha mãe? Não sei,
não sei, mas minha mãe decidiu pedir para minha vó não casar com ele. Meus
irmãos foram contra e eu fui a favor da minha mãe. Eu disse que se minha mãe
não queria e não gostava eu também não queria e não gostava. Foi o máximo
que eu fiz pra protestar o que vivi dos meus 10 aos 11 anos. Com essa mesma
idade eu frequentava Coroa Grande nas férias, era uma praia do litoral do Rio
de Janeiro. Meu pai alugou uma casa, a casa azul, que era muito pequena, só
tinham dois quartos. Meu pai e minha mãe ficavam em um, e o outro, com dois
beliches, era onde dormíamos eu e meus irmãos. No alto verão dormíamos na
varanda, de tanto calor, e minha mãe colocava o famoso edredom e fazia uma
cama enorme. Lá dormíamos eu, meus irmãos, amigos dos meus irmãose às
vezes um casal amigo dos meus pais. O homem, que se chamava Álvaro, era
sem dúvida o melhor amigo do meu pai. Ele dormia no meio de todos para fazer
companhia e cuidar das crianças, mas eu acordava com sua mão me tocando.
Por que eu? Não sei! Aos 13 anos, ele fez uma casa e me chamou para ver
como estavam as obras. Disse que eu teria um quarto para dormir lá quando
quisesse… Eu até o chamava de padrinho! Ele disse: “Dá um abraço no seu
padrinho, faz tempo que você não faz isso” e me encurralou na parede de
pedras da varanda e colocou suas mãos por debaixo da minha camiseta. Eu
estava de biquíni e camisetão. Ele tentou beijar minha boca. Me lembro que
chovia e eu saí correndo pela rua até chegar na praia. Chorava muito, peguei
um punhado de areia e passava no meu corpo para limpar toda sujeira que
estava impregnada há anos… Chorei muito e pensei: se falo pra minha mãe,
eles vão se separar, pois ele era o melhor amigo do meu pai. Se falo para o meu
irmão, ele vai querer matá-lo… O que fiz? Me calei até quase os 50 anos,
quando resolvi falar no Fantástico, pois queria divulgar o disque-denúncia, o
Disque 100. Queria alertar as pessoas. Nós geralmente não queremos falar,
porque é feio, porque não é certo, porque aprendemos que sempre tem que ter
um culpado numa situação como essa. E é claro que nos sentimos culpados –
eu me sentia culpada apenas por existir. Dos 4 até os meus 13 anos eu passei
por várias situações que me fizeram ter mania de limpeza. Tomo de 3 a 4
banhos por dia, tenho vontade de estar com crianças, pois elas não me fariam
nenhum mal – isso é coisa de adulto. Hoje, quero emprestar minha voz em
campanhas paras crianças que não falam, não gritam e choram sozinhas. Eu
preciso fazer isso por elas, já que não fiz por mim.”
Ainda não foi identificado um padrão característico de sintomas
específicos e há várias hipóteses sobre a causalidade dessas associações.
2.3.2.1 – Incesto
Incesto é a atividade sexual entre membros de uma família ou entre
parentes que possui uma relação de consanguinidade (relações de sangue).
A terminologia da palavra incesto é derivada do latim incestum, que quer
dizer estritamente “sacrilégio”. Incestum deriva de incestus, que significa
“impuro e sujo”. Incestus, por sua vez, é forjada a partir do privativo in e
cestus, que é uma deformação de castus, que significa “casto” e “puro”.
Assim incestus também tem a definição de “não casto”.
O tabu do incesto é e tem sido um dos mais difundidos de todos os
tabus culturais, tanto no presente e em muitas sociedades antigas, como a
China, Grécia antiga e o Direito Romano.
Na Bíblia há duas referências explícitas ao incesto. A primeira diz
respeito a Ló e suas filhas, quando elas embebedam o pai e com ele se
deitam para ficarem grávidas e terem filhos com ele (Gênesis 19:30-38). Já
a segunda diz respeito ao relacionamento de Amnon e Tamar, meio-irmãos
por parte de pai, pois ambos eram filhos do rei David (II Samuel 13).
Tempos antes, na época de Moisés, no Livro de Levítico 18:6-18 e 20:11-
12, foram proibidas as relações incestuosas.
Maria Berenice Dias,95 em sua obra Incesto e Alienação Parental, traz
excelente material doutrinário sobre o assunto, a quem pedimos vênia para
reproduzir em parte em face do excelente material apresentado: “Freud
achou de complexo de Édipo o sentimento de amor do filho com relação a um
dos pais e o ciúme com relação ao outro. A criança se apaixona pelo genitor do
sexo oposto e vê o outro como um incômodo obstáculo à realização de seus
desejos. O fato de a criança ter impulsos eróticos com relação a um dos pais
não quer dizer que ficaria realmente feliz caso os realizasse. Trata-se de
sentimento inconsciente, que faz parte do desenvolvimento psicológico normal.
O complexo de Édipo pode ser definido como sentimentos relacionados aos
desejos incestuosos, suas proibições e seus desdobramentos.”
Afirma ela que “os pais exercem funções específicas no desenvolvimento
dos filhos. São protagonistas naturais das primeiras fantasias sexuais, que
configuram o complexo de Édipo. A constituição psíquica do indivíduo está
condicionada à forma como se realiza a interdição aos impulsos incestuosos.
Trata-se da imposição de limite aos desejos. Diferencia a ordem do caos. A
proibição do incesto tem o efeito de lei, que estabelece uma ordem de
repercussão ampla em diferentes níveis. O reconhecimento da existência de leis
tem enorme importância para o desenvolvimento psicológico do indivíduo, pois
rege seu convívio na sociedade. A interdição do incesto define as gerações, a
função de cada pessoa no núcleo familiar, e deixa claro que os parceiros dos
filhos devem provir de famílias diferentes. Sua proibição impede duas tendências
fundamentais do ser humano: matar o pai e casar com a mãe. Lacan chama de
Lei do Pai a interdição do incesto, que impede o menino de se deitar com a
mãe. O pai representa a proibição à desobediência. O incesto configura o gozo
a que o filho aspira, o gozo imaginado, desejado, sonhado, a que o sujeito não
tem acesso em razão da intervenção do pai. O que é um não, que impede o
filho de gozar sexualmente de sua mãe.”
O incesto leva à Lei do Silêncio dentro do núcleo familiar: primeiro,
porque há ideia de que a família é sagrada, todos devem manter-se unidos,
nada pode ser capaz de dissociar essa relação; segundo, caso haja o
rompimento desse laço, haverá a desestruturação familiar, que acarretará a
separação de seus membros, o que ninguém quer; terceiro, em decorrência
do vínculo familiar, há, ainda, a sujeição da vítima à superioridade do
abusador, quer pela força física, quer pela sua autoridade; quarto, muitas
vezes há cumplicidade indireta do parceiro para não romper o vínculo com
o abusado por seus sentidos afetuosos; e, por fim, a fragilidade emocional da
vítima.
Um dos grandes fatores que elevam o índice dessa relação promíscua é
a estrutura patriarcal da família, que, embora a mulher tenha ganhado
espaço na sociedade (trabalho, educação, etc.), ainda persiste o que
acarreta a submissão de todo o núcleo ao arrimo econômico da família.
Esse mesmo fato ocorre muitas vezes na violência envolvendo Maria da
Penha. Quantas e quantas mulheres, depois de agredidas, vitimizadas,
muitas delas com lesões graves, que nunca trabalharam e sempre estiveram
na condição de dependente do marido, de forma espontânea e por
liberalidade, procuram a Autoridade Policial, o MP ou Poder Judiciário com
a intenção de se retratar da representação da denúncia?
Isso, de alguma forma, na relação incestuosa, cria uma dependência
moral perante o abusador, o que faz com que não haja denúncia ou se
sujeitam à conduta de violência sexual. “Muitas vezes o pretexto para
introduzir atitudes sexualizadas é a alegação de que se trata de educação
sexual. Sustenta o abusador ser natural que seja ele quem deva ensinar
determinadas coisas às filhas. Passa, assim, a acariciar a vítima de uma forma
bastante gentil, o que pode ser uma experiência prazerosa para ela. No estágio
seguinte, começa a masturbá-la, como sendo algo que faz parte de sua
iniciação sexual. Convence a vítima de que aquela é uma relação de amor que
ninguém vai entender, sendo necessário, por isso, manter segredo. A
possibilidade de denúncia leva à ameaça de atenção e afeto. Afirma que todos
os pais agem assim com suas filhas. Para garantir que não seja descoberto,
oferece recompensas, concede privilégios.”96
Algo que intriga muito, mas que a psicologia trata com sabedoria a
matéria, mas é preciso ter consciência, refere-se aos sentimentos
decorrentes do abuso: “Como a vítima é submetida a estímulos sexuais desde
muito cedo e com muita frequência, algumas vezes se sente excitada e chega
ao orgasmo. Não se pode falar em prazer, mas em excitação, pois se trata de
reação fruto de estimulação mecânica. Aliás, esse é um argumento utilizado
pelo abusador para convencê-la de que ela quis o abuso. Isso a faz
experimentar vergonha e culpa. Sente quefoi traída não só pelo genitor, mas
também pelo seu próprio corpo. Tudo isso sempre gera muita confusão, e as
sequelas psicológicas são mais perversas”.97
Depois dessa fase, passa a chantagens, referindo-se que pode ser preso,
que a mãe não entenderá, que a culpa é da vítima, que ela será
institucionalizada, ameaças, etc. Tudo isso leva a confusão de conduta, o
que resulta, mais uma vez, em retrair-se e aceitar o abuso por anos.
Berenice98 questiona: a partir de que ponto uma relação entre
membros de uma família deixa de ser considerada afetiva para ser
considerada sexual? “O incesto é antinatural e não é uma relação prazerosa.
As relações incestuosas são difíceis de ser identificadas, até porque se iniciam
com gestos de afeto, são carinhos que se transformam em toques e carícias. Na
maioria das vezes são práticas que não se resumem a episódios isolados, mas se
prolongam no tempo. Perduram por muitos anos e só cessam com a denúncia. É
fantasiosa a crença de que as agressões vão cessar. Não adianta ser boazinha,
tentar se esconder ou ficar feia. Nada disso segura o abusador. A vítima está
exposta ininterruptamente ao enorme poder conferido ao pai. Não tem para
onde escapar. Não sabe se defender e não entende sequer a agressão de que é
vítima. Não pode pedir socorro, mas se pedir não será ouvida, será
desacreditada.”
Acreditamos que, na relação intrafamiliar, os filhos veem nos pais – pai
ou mãe – o acolhimento, o amparo, o afeto, a afeição, o apreço, a ternura,
o carinho em seus momentos de lazer, de angústia, de sofrimento, de
ansiedade, de dúvidas, de amargura, de incertezas, de aflição, de desgosto,
de dor, enfim.
Isso, é claro, dentro de uma relação sadia e saudável, sem conduta
incestuosa.
Consideramos que uma grande parte dos filhos têm em seus pais o
espelho do sexo oposto, como referência a pessoa que, no amanhã, deve
ser seu companheiro ou companheira para uma vida toda.
Repito, o raciocínio não está vinculado ao agente com personalidade
pedófila e, sim, referindo-se a fatos que podem ocorrer em relações
familiares normais, sem que haja a predestinação da violência sexual.
Voltamos ao pensamento inicial. Diante do contexto referido, é possível
que, em decorrência de um conflito conjugal entre os pais (ausência de
relações sexuais entre o casal), estresse na vida profissional, solidão, etc., os
filhos, buscando do(a) genitor(a) aquele aporte de segurança ao qual nos
referimos, muitas das vezes, com gestos de carinho (v.g., buscar um colo,
dar beijos, abraços, etc.) e contato físico, possa despertar silenciosamente o
desejo do abusador, que resultará na conduta de violência sexual sem que a
vítima perceba, posto que é indefesa, está buscando do(a) genitor(a) um
conforto, que acabou encontrando.
Nesse aspecto, a criança ou o adolescente solicita ternura, enquanto o
adulto doente responde com sexualidade genital99.
O agravamento dessa situação se dá à vítima de pouca idade, pelo fato
de que não se encontra em condições de entender o significado do ato e
entra em um estado que lhe provoca, entre as consequências, um bloqueio
para comentar o acontecido.
Na maior parte das vezes, crianças e adolescentes de todas as classes
sociais são violentadas dentro da própria casa, por pais, padrastos, parentes
e amigos da família, nesta ordem. O incesto é encontrado em famílias de
todos os níveis e classes sociais. Existe a falsa ideia de que a violência sexual
acontece em famílias pobres, puro preconceito. O abuso independe da
situação econômica ou sociocultural da família. Não é exclusivo de
nenhuma profissão, idade, grupo religioso, situação econômica ou raça.
Ainda que o número de denúncias se apresente, em sua maioria, entre
famílias de baixo nível socioeconômico, não quer isso dizer que o abuso
sexual em famílias de classe média ou alta seja mais escasso. O que ocorre
é que nas famílias de melhores condições financeiras há maior possibilidade
de impedir que o incesto transcenda ao mundo exterior. Busca-se a solução
por meio de ajuda psicológica, sem promover a denúncia policial100.
Não se pode perder de vista um aspecto importante: endogamia101.
A consanguinidade aumenta a taxa de distúrbios genéticos e congênitos
entre a prole, especialmente doenças herdadas conhecidas como distúrbios
autossômicos recessivos, como fibrose cística, Doença de Tay-Sachs, talassemia
e doença falciforme. Também aumenta a taxa de malformação congênita,
retardo mental, cegueira e disfunção auditiva102.
2.3.3 – Violência Sexual pela Exploração Sexual
Comercial (art. 4.º, III, alínea b)
O segundo meio de entender, de perceber o significado de violência
sexual, foi descrito pela exploração sexual comercial, que o legislador assim
descreveu: “entendida como uso da criança ou adolescente em atividade
sexual em troca de remuneração ou qualquer outra forma de compensação, de
forma independente ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiros, seja de
modo presencial ou por meio eletrônico”.
Leonardo Cavalcante de Araújo Melo, Universidade Potiguar, e
Rosângela Francischini, Universidade do Rio Grande do Norte, em artigo
“Exploração sexual comercial de crianças e adolescentes: um ensaio
conceitual”103, com a finalidade de se chegar a uma conceituação crítica e
contextual, fizeram uma revisão da discussão do conceito trabalhado por
autores da área, buscando fazer um paralelo com as diretrizes propostas
por documentos internacionais, como a Declaração de Estocolmo.
Nesse contexto afirmaram que o fenômeno da Exploração Sexual
Comercial de Crianças e Adolescentes é, atualmente, prioridade das
agendas de políticas públicas de muitos governos democráticos dos países
ocidentais e setores da sociedade civil, além de se constituir objeto de
estudos em diferentes áreas de conhecimento, sendo o discurso da
Psicologia bastante presente. No Brasil, o fenômeno começou a ter maior
visibilidade a partir da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) realizada
no início da década de 1990, que se deteve na investigação de denúncias de
casos de prostituição infantojuvenil (Libório, 2004; Sousa 2004).
Anteriormente a esse período, a criança e o adolescente no país não
ocupavam lugar de preocupação tão acentuada por parte do Estado e
setores da sociedade civil. A partir de uma série de ações e movimentos –
como a instituição do Ano internacional da Criança, em 1979, o Movimento
Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), em 1985, dentre
outros – e a promulgação da Carta Constitucional de 1988 e,
posteriormente, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990,
é que essa parte da população foi trazida para o centro das discussões
nacionais, sendo, também, considerada “sujeitos de direitos”, em
substituição da categoria “menor”, outrora empregada (Sousa, 2004). O
fenômeno Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes –
ESCCA – desde então vem sofrendo várias transformações conceituais,
pois sua definição é fruto de percursos históricos que envolvem, dentre
outras questões, o paradigma da proteção integral, inaugurado no país pelo
ECA. A ESCCA, em sua definição, demanda a apresentação de concepções
que abarquem suas especificidades em relação a outras formas de violência
sexual (Faleiros, 2000; Libório, 2004; Dos Santos, 2007). Há uma grande
discussão acerca da conceituação do fenômeno, não existindo apenas uma
forma de defini-lo.
O nosso legislador, quando da edição da Lei 13.431/2017, definiu a
exploração sexual comercial. Disse ele que é o uso (utilidade, emprego,
valia, serviço, proveito e proficuidade) da criança ou adolescente em
atividade sexual (realizar um ato ou uma ação concernem à satisfação da
necessidade e desejo sexual) em troca de remuneração (gratificação, prêmio,
recompensa) ou qualquer outra forma de compensação (dar algo em troca),
de forma independente (o próprio abusador por si só) ou sob patrocínio,
apoio ou incentivo de terceiro (contribuição ou auxílio de outrem), seja de
modo presencial (corpopresente) ou por meio eletrônico (meios de
comunicação que necessitam de recursos eletrônicos para que o usuário
final tenha acesso ao conteúdo gravado ou transmitido em tempo real).
A ESCCA é um fenômeno de grande complexidade, que se reflete na
dificuldade de sua identificação, além de seu imbricamento com inúmeros
outros fenômenos e fatores que se correlacionam e se coinfluenciam.
Leonardo Cavalcante de Araújo Melo e Rosângela Francischini104, neste
sentido, afirmam: “Assim, elencaremos aqui algumas especificidades que
consideramos de extrema importância para a conceituação de ESCCA de acordo
com as direções indicadas na Declaração de Estocolmo (1996), buscando
caracterizá-las de uma forma geral. Entendemos que a tentativa de fazer essa
caracterização é delicada, pois os fenômenos em questão, além de serem de
difícil caracterização, ainda são contextuais, ou seja, carregam características
históricas e temporais dos locais nos quais acontecem, obedecendo a toda uma
dinâmica própria, de cada contexto específico. Ainda assim, é de extrema
necessidade situar minimamente essas características específicas do fenômeno
da exploração sexual comercial infantojuvenil, de maneira que uma indicação
mínima de sua existência já possibilita um olhar mais cuidadoso e apurado
daqueles que se dedicam a estudar e intervir no fenômeno. O “Mercado do
Sexo” será discutido aqui como um aspecto específico para uma conceituação
de exploração sexual comercial. O termo “mercado” reflete a natureza
primordialmente econômica que perpassa a exploração sexual e, dessa forma,
estudá-la por um viés que focalize o fenômeno por uma perspectiva econômica,
situada na sociedade capitalista de consumo, é um caminho que pode ajudar na
compreensão do cerne do funcionamento da ESCCA. Ora, a própria
nomenclatura do fenômeno – exploração sexual comercial – elenca dois termos
próprios dos estudos que se detêm em estudar as dinâmicas da sociedade
capitalista contemporânea, por meio de um viés marxista: “exploração” e
“comercial”. Para Faleiros (2000), o sistema capitalista é estruturado na
produção oriunda das propriedades privadas, que geram lucro e acumulação de
capital. Aqueles que possuem meios privados que garantem a produção se
valem dos que não têm acesso a esse meio, comprando sua força física,
explorando essa força por meio da categoria conceitual trabalho. Essa categoria
conceitual exige um estudo aprofundado, no cerne da teoria marxista. Aqui
discorreremos brevemente sobre o assunto, inserindo-o na discussão da ESCCA.
Trabalho, para a teoria marxista, é a categoria fundante do sujeito, o que o
distingue dos outros animais. É a capacidade de transformar a natureza, com
ou sem mediação de instrumento, visando suprir suas necessidades. Por meio da
produção é possível o acúmulo de capital, gerando lucros. Dessa máxima se
estrutura o comércio na sociedade capitalista contemporânea. O
comércio/mercado se estrutura na troca de capital por bens ou serviços,
expressando-se pela maneira como se organizam as trocas realizadas em
determinados universos, por indivíduos, organizações, empresas, governos
(Faleiros 2000, 2004). Entendemos que as trocas no processo de exploração
sexual nem sempre obedecem ao binômio “mercadoria dinheiro”, de forma que
elas podem envolver objetos, serviços ou qualquer coisa que venha a suprir uma
necessidade da pessoa em condição de exploração ou de seu aliciador. Seguindo
essa linha de raciocínio, na busca pela compreensão de como se constroem
algumas relações sociais nesse sistema, para Pateman (1988) as relações
sociais, de caráter livre, nas quais todos são iguais em direitos, obedecem a
contratos sociais. Contudo, há contratos em que as partes não são
consideradas livres e/ou iguais: casamentos, trabalho, exploração sexual, dentre
outras. A autora também reflete que a troca é algo inerente a esses contratos,
assim como há contratos em que há uma dissonância de poderes entres as
partes; então, uma das partes não tem escolha a não ser aceitar termos
desfavoráveis propostos pela parte que está em condição de superioridade. O
interessante dessa proposição é que ela revela que uma das partes do contrato,
a que está em situação de superioridade, tem, implicitamente, o direito de
determinar como a outra cumprirá a sua parte na troca e, assim, são
estabelecidas formas de relação dominadoras e subordinantes (Pateman,
1988). Assim, Faleiros (2000, 2004), em concordância com Pateman (1988),
ressalta que, dessa forma de relação surge uma espécie de “proteção” da parte
dominadora em relação à parte subordinada. A proteção é entendida como
condições de sobrevivência, que se expressam em forma de salário,
alimentação, habitação, entre outros, como acontecem em contratos
trabalhistas. Portanto, na ESCCA, ocorre um “contrato sexual” que, segundo
Pateman (1988), constitui-se em uma forma de acesso e utilização do corpo
por uma pessoa que contrata, por outro, que dispõe seu corpo neste “acordo”.
Aliando-se a essa concepção, Faleiros (2000, 2004) traz a reflexão de que, no
mercado do sexo, esse contrato sexual é atravessado por fenômenos do mundo
capitalista globalizado, quais sejam: a pobreza e a exclusão. Para a autora, a
busca da compreensão da ESCCA é também a tentativa de compreender as
determinações históricas da sociedade na qual ela está inserida. Segundo ela,
“a formação econômica, social e cultural da América Latina, assentada na
colonização e na escravidão, produziu uma sociedade escravagista, elites
oligárquicas dominantes e dominadoras de categorias sociais inferiorizadas pela
raça, cor, gênero e idade”. (Faleiros, 2000, p. 19). Essa formação
socioeconômica do povo latino-americano “gerou” categorias sociais dominadas
(índios, negros, escravos, mulheres e crianças, pobres, etc.) que permanecem
até os dias atuais fortemente excluídas de espaços que, muitas vezes, lhes são
garantidos por direitos (escolas, mercado de trabalho, serviços de saúde, meios
de habitação, de cultura, da sociedade de consumo, etc.). Dessa maneira
percebe-se que a instituição mercado é atravessada por essas características,
determinantes de algumas formas de relação. O contexto histórico deve ser
levado em consideração para que se compreendam as dinâmicas relacionais de
algumas conjunturas específicas e suas influências nos mercados desses
momentos sócio-históricos. Nesse caso, o mercado do sexo. O mercado do sexo
é um sistema comercial, segundo os ditames capitalistas, no qual existe a
produção e a comercialização de mercadorias (serviços e produtos sexuais).
Nesse mercado há relações de dominação, segundo descrito por Pateman
(1988), no qual crianças e adolescentes são, forçadamente, colocadas na
condição de mercadorias a serem negociadas, obedecendo a um rígido contrato
sexual (Faleiros, 2000, 2004). O mercado do sexo se expressa como um
mercado negro. Para Sandroni (1989, citado por Faleiros, 2004) “mercado
negro” significa compra e venda de bens e serviços feitos clandestinamente,
para se desviar de leis ou normas estabelecidas em determinado contexto.
Assim, muitos protagonistas do mercado do sexo (comerciantes, agenciadores,
abusadores de forma geral, etc.) funcionam com cobertura legal, sob nomes
fantasia que não correspondem à realidade da atividade comercial declarada.
Por se caracterizar um sistema comercial, o mercado do sexo pode se inserir em
redes. Entendemos “redes” de acordo com o autor Faleiros (1998), que as
descreve como articulações de autores/organizações objetivando ações em
conjunto, multidimensionais, com responsabilidades compartilhadas. Assim,
diversos estudos (V. Faleiros, 1998; E. Faleiros, 2000, 2004; Sousa, 2000,
2002, 2004; Sousa, 2008; Leal, 1999; dentre outros) vêm demonstrando que a
exploração sexual é um fenômeno que cada vez mais articula-se em diversas
redes: redes de tráfico de mulheres, tráfico de drogas, falsificação de
documentos, indústria pornográfica, etc.. De acordo com Leal e Leal (2002),em pesquisa realizada sobre o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para
fins de exploração sexual comercial no Brasil – Pestraf – as chamadas “redes de
favorecimento” organizam-se numa estrutura na qual diversos atores
desempenham diferentes funções, objetivando a exploração que tem como
finalidade ganhos (materiais ou não). São citados como atores dessas redes:
aliciadores, proprietários de estabelecimentos comerciais, empregados,
prestadores de serviços – por exemplo, taxistas –, dentre outros tipos de
intermediários. As redes funcionam articuladas diretamente com ramos
comerciais prestadores de serviços, sob fachadas de empresas (legais ou
ilegais). Dentre os mercados que facilitam o funcionamento de fenômenos
como a ESCCA e tráfico de pessoas para fins de exploração estão empresas do
ramo do turismo, entretenimento, transporte, moda, indústria pornográfica,
agências de serviços (por exemplo, massagens, acompanhantes, etc.) (Leal e
Leal, 2002). As redes de tráfico organizam-se utilizando aparatos tecnológicos e
estruturas organizacionais que permitem grande agilidade em sua mobilização.
Tais redes contam com sistemas de informações que controlam as ações desde
o aliciamento de pessoas, o transporte das mesmas, alojamentos e vigilância,
permitindo, praticamente, total controle das ações das vítimas. Além disso, há
intensa ligação com o mercado do crime organizado em âmbito internacional
(Leal e Leal, 2002). De acordo com o exposto, percebe-se que o mercado do
sexo consiste em um fenômeno complexo, atravessado por vários
determinantes, e que engloba inúmeras pessoas, com diversas finalidades. Não
apenas as crianças e adolescentes estão sujeitos às dinâmicas do mercado do
sexo, como também, por exemplo, mulheres envolvidas com atividades ligadas à
indústria sexual, ao tráfico de pessoas. Assim, evidencia-se a diferenciação
existente da participação de crianças e adolescentes nesse mercado,
caracterizando-se uma forma particular de exploração sexual. Encerramos essa
seção buscando reafirmar a importância da necessidade de contextualização de
cada episódio de violência sexual, situando-os em seus contextos históricos,
buscando uma compreensão das forças políticas e ideológicas que o cercam,
para que se chegue a “diagnósticos” de que esses episódios se caracterizam
como exploração sexual comercial. A importância disso refere-se ao “que fazer”
quando do conhecimento da existência desse fenômeno. Suas especificidades
exigem, para o seu enfrentamento, ações, cuidados e olhares específicos que
orientem posturas profissionais igualmente específicas. Buscaremos elencar, na
próxima seção, os principais direcionamentos oriundos dos três congressos
mundiais contra a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes
ocorridos até o presente momento (Estocolmo, 1996; Yokohama, 2001; Rio de
Janeiro, 2008). Tais direcionamentos são de fundamental importância, pois
norteiam formulações de políticas públicas para o enfrentamento da ESCCA nos
países signatários.”
Notamos que a diferença entre o abuso sexual para a exploração sexual
está no fato de que nesta há utilização sexual de crianças e adolescentes
com fins comerciais e lucrativos, ou seja, vendem-se seus corpos para
conseguir dinheiro. Quase sempre existe a participação de um(a)
aliciador(a), ou seja, alguém que lucra intermediando a relação com o
usuário ou cliente. É caracterizada também pela produção de materiais
pornográficos (vídeos, fotografias, filmes, sites da internet).
A criança ou adolescente nunca se prostitui, trata-se de uma vítima do
sistema de exploração comercial da sexualidade.
2.3.4 – Violência Sexual pelo Tráfico de Pessoas com o
Fim de Exploração Sexual (art. 4.º, III, alínea c)
O terceiro e último meio de entender, de perceber o significado de
violência sexual, foi descrito pelo tráfico de pessoas com o fim de
exploração sexual, que o legislador descreveu como aquele “entendido
como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o
acolhimento da criança ou adolescente dentro do território nacional ou para o
estrangeiro, com o fim de exploração sexual mediante ameaça, uso de força ou
outra forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade,
aproveitamento de situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de
pagamento, entre os casos previstos na legislação.”
A definição do tráfico de pessoa com o fim de exploração sexual na Lei
13.431/2017 tem sua origem na definição mais aceita internacionalmente,
que se encontra no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas
Contra o Crime Organizado Transnacional relativo a Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, que foi
assinado em Palermo no ano de 2000, e que já foi ratificado pelo governo
brasileiro e que segundo o Protocolo significa: “O recrutamento, o
transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas,
recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à
fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou
à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de
exploração.”
A definição foi adaptada à infância e juventude.
De acordo com a interpretação da norma, o tráfico de pessoas significa o
recrutamento, que é o atrair, o transporte, que é a condução, a transferência,
que é enviar para algum lugar, o alojamento, que é a morada temporária, ou
o acolhimento, que é abrigar, a criança ou o adolescente, dentro do Brasil
ou para o estrangeiro, com o fim de exploração do corpo e sexualidade,
mediante ameaça (intimidação), uso de força ou outra forma de coação (agir
contra sua vontade), rapto (arrebatar por meio de violência), fraude (meio
de ludibriar), engano (equivocado), abuso de autoridade (conduta abusiva de
poder), aproveitamento de situação de vulnerabilidade (estado de fraqueza)
ou entrega ou aceitação de pagamento (mediante recompensa ou
remuneração, que pode ou não ser em espécie) entre os casos previstos na
legislação (delitos contra a dignidade sexual105, além de outros, que estão
previstos como crimes contra a liberdade individual).
A exploração sexual é o meio pelo qual o indivíduo obtém lucro
financeiro por conta da prostituição de outra pessoa, seja em troca de
favores sexuais, incentivo à prostituição, pornografia, turismo sexual ou
rufianismo.
O problema envolvendo o tráfico de crianças para fins sexuais e outras
finalidades é um problema de âmbito mundial, não se restringido, pois, ao
Brasil. As autoridades governamentais têm tentado a todo custo inibir esse
problema, mas o sucesso não tem sido frequente. As entidades não
governamentais têm feito também um esforço concentrado para que esse
problema possa diminuir.
O Brasil publicou a Lei 13.344/2016, para atacar essa questão dispondo
sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e
sobre medidas de atenção às vítimas, inclusive tem campanha do Governo
Federal sobre a denúncia da exploração sexual infantil: Denuncie – Disque
100.
Infelizmente, o número é crescente diante do poderio financeiro dos
agentes aliciadores, além da tecnologia envolvida.
As vítimas são atraídas de todos os modos e meios, muitas delas pela
esperança de trabalho com boa remuneração, e as crianças raptadas, na sua
maioria, por promessa de promissoras carreiras de modelo, porém acabam
realizando trabalho escravo e sofrendo violência sexual.
As principais causas do tráfico de pessoas são as economias, as políticas
fragilizadas dos países, poucas oportunidades de trabalho, acesso restrito à
educação, facilidade, rapidez dos meios de transporte internacionais, falta
de policiamento nas fronteiras, agilidade nas transferências de dinheiro,
rápida comunicação e ausência de direitos das vítimas.
O tráfico escraviza suas vítimas, forçando-as a se prostituírem em
péssimas condições,arriscando a própria vida, sendo marginalizadas e
tratadas como imigrantes ilegais em meio a abusos desumanos.
Outro modo para o crime ser visto, ou seja, vendo o crime por outro
lado, fica claro que uma outra coisa que é usada para que o crime seja
incentivado é o fetiche que os clientes têm pela mercadoria nesse mercado,
no qual essa mercadoria nada mais é do que uma vítima do tráfico de
pessoas para a exploração sexual, que é submetida aos desejos do cliente
pelo preço que ele está disposto a pagar pelos serviços a serem prestados.
O tráfico de crianças forma uma das mais graves violações dos direitos
humanos no mundo e acontece em todas as regiões do Planeta. Na
verdade, foi somente na última década que a prevalência e consequências
desse crime ganharam notoriedade internacional devido ao aumento
drástico na investigação e ação pública.106.
O Brasil enfrenta esse tráfico com ratificação do Protocolo de Palermo
2004. Os países passaram a adotar várias medidas destinadas ao
enfrentamento do tráfico de pessoas, destacando-se a Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em 2006, o Primeiro Plano Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (I PNETP), em 2008, e o Segundo
Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (II PNETP), em
2013. A Política e sua execução por meio do PNETP, estão estruturadas em
três grandes eixos de estratégia, como: a) prevenção; b) a repressão e a
responsabilização dos autores; e c) atendimento à vítima. Esse conjunto de
ações é considerado um marco histórico por reconhecer o crime de tráfico
de pessoas como um problema cuja gravidade da atuação estatal articulada
com vários ministérios, instituições públicas e sociedade civil107 e, por fim,
como dito, pela publicação da Lei 13.344/2016.
A violência sexual, definida nesse dispositivo, deve ser interpretada em
consonância com a Lei 13.344/2016.
O enfrentamento ao tráfico de pessoas atenderá, entre outros, os ss.
princípios: a) respeito à dignidade da pessoa humana; b) promoção e
garantia da cidadania e dos direitos humanos; c) universalidade,
indivisibilidade e interdependência; d) não discriminação por motivo de
gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência,
nacionalidade, atuação profissional, raça, religião, faixa etária, situação
migratória ou outro status; e) transversalidade das dimensões de gênero,
orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, raça e faixa etária
nas políticas públicas; f) atenção integral às vítimas diretas e indiretas,
independentemente de nacionalidade e de colaboração em investigações ou
processos judiciais; e g) proteção integral da criança e do adolescente.
A proteção e o atendimento à vítima direta ou indireta do tráfico de
pessoas compreendem (a) assistência jurídica, social, de trabalho e
emprego e de saúde; (b) acolhimento e abrigo provisório; (c) atenção às
suas necessidades específicas, especialmente em relação a questões de
gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência,
nacionalidade, raça, religião, faixa etária, situação migratória, atuação
profissional, diversidade cultural, linguagem, laços sociais e familiares ou
outro status ; (d) preservação da intimidade e da identidade; (e) prevenção
à revitimização no atendimento e nos procedimentos investigatórios e
judiciais; (f) atendimento humanizado; e (g) informação sobre
procedimentos administrativos e judiciais.
A atenção às vítimas dar-se-á com a interrupção da situação de
exploração ou violência, a sua reinserção social, a garantia de facilitação do
acesso à educação, à cultura, à formação profissional e ao trabalho e, no
caso de crianças e adolescentes, a busca de sua reinserção familiar e
comunitária.
No exterior, a assistência imediata a vítimas brasileiras estará a cargo da
rede consular brasileira e será prestada independentemente de sua situação
migratória, ocupação ou outro status.
A assistência à saúde deve compreender os aspectos de recuperação
física e psicológica da vítima.
Segundo o site politize, estudos feitos pela OMT (Organização Mundial
do Trabalho) o tráfico humano movimenta cerca de 32 bilhões de dólares
por ano, dos quais 79% das vítimas são destinadas à prostituição, em
seguida ao comércio de órgãos e à exploração de trabalho escravo em
latifúndios, na pecuária, oficinas de costura e na construção civil.
Um total de 63,2 mil vítimas de tráfico de pessoas foram detectadas em
106 países e territórios entre 2012 e 2014, de acordo com o relatório
publicado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime
(UNODC). As mulheres têm sido a maior parte das vítimas —
frequentemente destinadas à exploração sexual, e o percentual de homens
traficados para trabalho forçado aumentou. As crianças permanecem como
o segundo grupo mais afetado pelo crime, depois das mulheres,
representando de 25% a 30% do total no período analisado.
Esse crime cresce ano após ano e o número de rotas para circulação
das vítimas também. No Brasil existem 241 rotas do tráfico nacional e
internacional da exploração sexual de mulheres e adolescentes. Para uma
melhor compreensão devemos atrelar essas rotas às proporções de pobres
nos mesmos locais para analisarmos que as regiões com maiores rotas são
as mesmas com os maiores índices na proporção de pobreza: Norte,
número de rotas é de 76, com percentual de 43,2% de pobreza; Nordeste
tem um número de rotas de 69, com índice de 45,8% de pobreza; Sudeste,
o número de rotas é 35 e o índice de pobreza no patamar de 23%; no
Centro-Oeste, o número de rotas é 33, cujo índice de pobreza chega a
24,8; e, por fim, o Sul, que tem o número de rotas de 28, com índice de
pobreza menor de todas as regiões (20,1%).
Portanto, diante desse cenário, tanto no Brasil como no mundo fica
evidente que qualquer esforço para o combate ao tráfico de pessoas deve
levar também em consideração ações mais amplas, como o combate à
pobreza e às desigualdades sociais, assim como a defesa dos direitos
humanos a todos.
2.3.5 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual contra
Criança e Adolescente
O Título VI do Código Penal, com a nova redação dada pela Lei no
12.015, de 7 de agosto de 2009, passou a prever os chamados crimes
contra a dignidade sexual, modificando, assim, a redação anterior constante
do referido Título, que previa os crimes contra os costumes.
Rogério Greco108 afirma que a expressão crimes contra os costumes já
não traduzia a realidade dos bens juridicamente protegidos pelos tipos
penais que se encontravam no Título VI do Código Penal. O foco da
proteção já não era mais a forma como as pessoas deveriam se comportar
sexualmente perante a sociedade do século XXI, mas sim a tutela da sua
dignidade sexual. A dignidade sexual é uma das espécies do gênero
dignidade da pessoa humana. Ingo Wolfgang Sarlet esclarece a expressão
dignidade: “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem à pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua
participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida
em comunhão com os demais seres humanos”109.
Greco ainda afirma que “o nome dado a um Título ou mesmo a um
Capítulo do Código Penal tem o condão de influenciar na análise de cada
figura típica nele contida, pois que, através de uma interpretação sistêmica,
que leva em consideração a situação topográfica do artigo, ou mesmo de
uma interpretação teleológica, na qual se busca a finalidade da proteção
legal, se pode concluir a respeito do bem que se quer proteger, conduzindo,
assim, de forma mais segura o intérprete, que não poderá fugir às orientações
nele contida”.
Ao incluir os crimes sexuais num títulodenominado Dos Crimes contra
a Dignidade Sexual, parece inegável que os legisladores da reforma penal de
2009 quiseram sinalizar uma diferente objetividade jurídica desses delitos.
Ao situá-los no âmbito da dignidade, remeteram o intérprete a um
fundamento da república, inscrito logo no art. 1.º da Constituição Federal.
Importa, assim, ao intérprete da lei penal conhecer o perfil dessa categoria
jurídica para melhor compreender o sentido da localização espacial dos
crimes sexuais num título com tal nomenclatura110.
2.3.5.1 – Os Crimes Contra a Dignidade Sexual em
Espécie
Como exposto alhures, as modalidades de violação dos direitos sexuais
de crianças e adolescente têm diversas formas de expressão que vão além
da agressão física e psicológica. Assim, tutelando tais direitos, apresenta-se
prioritariamente a Constituição Federal, que se encarregou de destacar
garantias e prever punição para os casos de inobservância. Senão vejamos:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.” (CF, art. 227).
O §4.º do mesmo diploma legal dispõe que a “lei punirá severamente o
abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”.
Diante disso, percebe-se que o Dispositivo Constitucional deu ensejo a
vasta legislação protetora da dignidade sexual dos infantojuvenis, lançando
mão de um rol taxativo, disposto no Código Penal e no Estatuto da Criança
e do Adolescente, que será apresentado sem esgotar as peculiaridades de
cada tipo penal, destacando tão somente suas premissas conceituais.
2.3.5.1.1 – Do Estupro de Pessoas Menores de 18 anos ou
Maiores de 14 Anos
O artigo 213, caput, do CP define o estupro como o ato de “constranger
alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a
praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Ocorre que, quando o citado crime é praticado contra menores de 18
(dezoito) anos e maiores de 14 (catorze) anos, incide uma qualificadora
(§1.º) e o que seria punido com pena de 6 (seis) a 10 (dez) anos passa para
8 a 12 anos.
Demonstra-se, com isso, a maior proteção dada aos adolescentes com
o advento da Lei nº. 12.015, de 07 de agosto de 2009, que alterou o Título
VI da Parte Especial do Código Penal (Decreto-lei nº. 2.848, de 07 de
dezembro de 1940). É necessário destacar, ainda, que com a mudança
ocorrida pela citada lei o crime de estupro passou a ser considerado crime
comum, podendo qualquer pessoa ser vítima do delito, ou seja, tanto o
homem quanto a mulher poderá ser sujeito passivo da tipificação do art.
213 do CP.
2.3.5.1.2 – Estupro de Vulnerável
A vulnerabilidade caracteriza-se pela completa falta de discernimento
para o consentimento da prática de atos sexuais. E em que pese à
semelhança com o estupro descrito no artigo 213 do CP, trata-se de um
tipo penal completamente novo.
O Estupro de Vulnerável está tipificado no art. 217-A, que diz: “Ter
conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze)
anos.”
Com essa inovação, a lei quis proteger aqueles, em especial os infantes
que não têm capacidade plena para exercer sua sexualidade, ou seja,
aqueles que não podem resistir e de certa forma ainda não sabem escolher
entre o fazer e o não fazer e mais do que isso não sabem as possíveis
consequências pelo ato de fazer, havendo ainda, o caso daqueles que têm
discernimento mas por algum motivo resistem.
2.3.5.1.3 – Do Uso de Menor Vulnerável para Servir à
Lascívia de Outrem
O tipo Penal descrito no art. 218 do CP não foi devidamente nomeado,
como geralmente ocorre. O legislador se absteve de focar na figura do
induzimento, determinando a vítima ao deixar expresso que se trata de
pessoa menor de 14 anos: “Induzir alguém menor de 14 anos a satisfazer a
lascívia de outrem.”
No caso desse tipo penal, o induzimento refere-se a convencer o
menor de 14 anos a se submeter à lascívia de terceiro em troca de
vantagens pecuniárias, ou não, mas que aparentemente lhe traria
benefícios.
2.3.5.1.4 – Da Satisfação de Lascívia Mediante Presença
de Criança ou Adolescente
Esse tipo Penal é novo e destaca-se como uma ramificação do tipo
penal anteriormente (2.3.5.1.3). Trata-se do artigo 218-A do CP, que
diferentemente do artigo 218, submete ou induz a criança ou o adolescente
não à prática do ato, mas a presenciar os atos sexuais abrangendo tanto a
conjunção carnal quanto os atos libidinosos em geral, tudo isso como forma
de satisfação de lascívia própria ou de outrem. Para melhor análise das
referidas indagações, apresenta-se o artigo ipsis litteris: “Artigo 218-A.
Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-o a
presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia
própria ou de outrem.”
Destaque-se, por fim, que o legislador mais uma vez faz referência ao
menor de 14 anos e, portanto, assim como ocorre nos demais, trata-se de
crime comum, podendo alcançar o sexo feminino ou masculino.
2.3.5.1.5 – Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma
de Exploração Sexual de Vulnerável
O artigo 218-B dispõe: “Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra
forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a
prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone.”
Percebe-se da leitura do citado artigo que o legislador traz outra
inovação. Primeiro por também ser uma ramificação do artigo 218 e depois
por inserir o delito de favorecimento da prostituição ou outra forma de
exploração sexual de vulnerável. Novamente destacando a questão do
vulnerável, dessa vez ampliando o rol para os menores de 18 anos,
diferentemente do que preceitua o artigo anterior, que faz referência
apenas aos menores de 14 anos. Notável, com isso, a proteção dada aos
infantojuvenis com a reforma da legislação penal, que indubitavelmente
garante com mais afinco os Direitos Constitucionais dessas crianças e
adolescentes. Ainda mais nos dias atuais, em que a sexualidade está cada
vez mais posta no mercado como forma de mantença das esfaceladas
famílias brasileiras.
2.3.5.1.6 – Uso de Menor Relativamente Vulnerável para
Servir à Lascívia de Outrem
Trata-se de induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem (CP, art. 227).
Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se
o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão,
tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação,
de tratamento ou de guarda, a pena é aumentada (§1.º).
O bem jurídico protegido aqui consiste não somente na liberdade
sexual do menor relativamente vulnerável (maior de 14 anos e menor de
18 anos), mas na sua moral sexual, que é flagrantemente violentada no
crime de lenocídio (outra nomenclatura para o tipo penal).
O lenão (autor do crime) induz especificamente o maior de 14
(catorze) anos e menor de 18 (dezoito) anos a satisfazer a lascívia de
outrem, pouco importando o ato lascivo que será implementado depois.
2.3.5.1.7 – Rufianismo de Menor
O Rufianismo está previsto no art. 230 do CP e é objeto de discussão
doutrinária e jurisprudencial no que diz respeito à sua similitude com o
crime de favorecimento à prostituição. Controvérsias à parte, é mais um
tipo penal que envolve crianças e adolescentes, e assim preceitua: “Art. 230
- Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros
ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça.”
A pena é agravada se a vítima for menor de 18 (dezoito) e maior de 14
(quatorze) anos ou se o crime é cometido por ascendente, padrasto,madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador,
preceptor ou empregador da vítima, ou por quem assumiu, por lei ou outra
forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância (§1.º), como se o crime
é cometido mediante violência, grave ameaça, fraude ou outro meio que
impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima, sem prejuízo
da pena correspondente à violência (§2.º).
O enfoque desse tipo penal está na expressão tirar proveito, fazendo
com que isso o diferencie dos demais, ou seja, não basta induzir ou
convencer à prática do delito, é necessário a característica comercial da
qual decorra lucratividade. Outrossim, nos casos de envolvimento de
pessoas maiores de 14 e menores de 18 anos, incide uma causa de
majoração da pena, que mais uma vez resgata o caráter protetivo às
pessoas vulneráveis, decorrente da inovadora legislação Penal.
2.3.5.1.8 – Do Assédio Sexual do Menor
O crime de assédio sexual decorre de relação trabalhista com enfoque
no superior hierárquico, também contemplado pela Lei nº 12.015/2009, ao
adicionar ao tipo penal um parágrafo de causa de aumento da pena nos
casos de vitimização de menores de 18 (dezoito) anos. Expressa o art. 216-
A: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento
sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou
ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.”
O §2.º prevê o aumento de pena quando a vítima é menor de 18 anos:
“A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito)
anos.”
Por tudo o que fora exposto na Lei nº 12.015/2009, que reformou o
Código Penal, mostra-se como um importante avanço na luta contra a
exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes vítimas de um sistema
familiar ou social falido que constantemente submete esses infantojuvenis a
situações de degradação psicossocial.
2.3.5.2 – Da Infiltração de Agentes de Polícia para
Investigação de Crimes contra a Dignidade Sexual de
Criança e Adolescente
A Lei 13.441, de 8 de maio de 2017, acrescentou a Seção V-A no
Capítulo III do Título VI do ECA (Acesso à Justiça).
A infiltração de agentes de polícia na internet com o fim de investigar os
crimes previstos nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D desta Lei
e nos arts. 154-A, 217-A, 218, 218-A e 218-B do Decreto-Lei nº 2.848, de
7 de dezembro de 1940 (Código Penal), obedecerá às seguintes regras: a)
será precedida de autorização judicial devidamente circunstanciada e
fundamentada, que estabelecerá os limites da infiltração para obtenção de
prova, ouvido o Ministério Público; b) dar-se-á mediante requerimento do
Ministério Público ou representação de delegado de polícia e conterá a
demonstração de sua necessidade, o alcance das tarefas dos policiais, os
nomes ou apelidos das pessoas investigadas e, quando possível, os dados de
conexão ou cadastrais que permitam a identificação dessas pessoas; e c)
não poderá exceder o prazo de 90 (noventa) dias, sem prejuízo de
eventuais renovações, desde que o total não exceda a 720 (setecentos e
vinte) dias e seja demonstrada sua efetiva necessidade, a critério da
autoridade judicial.
A autoridade judicial e o Ministério Público poderão requisitar
relatórios parciais da operação de infiltração antes do término do prazo de
infiltração legal.
Para efeitos da norma, consideram-se dados de conexão as informações
referentes a hora, data, início, término, duração, endereço de Protocolo de
Internet (IP) utilizado e terminal de origem da conexão; e dados cadastrais
como as informações referentes a nome e endereço de assinante ou de
usuário registrado ou autenticado para a conexão a quem o endereço de IP,
identificação de usuário ou código de acesso, tenha sido atribuído no
momento da conexão.
A infiltração de agentes de polícia na internet não será admitida se a
prova puder ser obtida por outros meios.
As informações da operação de infiltração serão encaminhadas
diretamente ao juiz responsável pela autorização da medida, que zelará por
seu sigilo.
Antes da conclusão da operação, o acesso aos autos será reservado ao
juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia responsável pela
operação, com o objetivo de garantir o sigilo das investigações.
Não comete crime o policial que oculta sua identidade para, por meio
da internet, colher indícios de autoria e materialidade dos crimes previstos
nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D do ECA e nos termos dos
arts. 154-A, 217-A, 218, 218-A e 218-B do Código Penal.
O agente policial infiltrado que deixar de observar a estrita finalidade da
investigação responderá pelos excessos praticados.
Os órgãos de registro e cadastro público poderão incluir nos bancos de
dados próprios, mediante procedimento sigiloso e requisição da autoridade
judicial, as informações necessárias à efetividade da identidade fictícia
criada.
O procedimento sigiloso será numerado e tombado em livro específico.
Concluída a investigação, todos os atos eletrônicos praticados durante a
operação deverão ser registrados, gravados, armazenados e encaminhados
ao juiz e ao Ministério Público, juntamente com relatório circunstanciado.
Os atos eletrônicos registrados citados serão reunidos em autos
apartados e apensados ao processo criminal juntamente com o inquérito
policial, assegurando-se a preservação da identidade do agente policial
infiltrado e a intimidade das crianças e dos adolescentes envolvidos.
2.3.5.3 – O Estatuto da Criança e do Adolescente e a
Proteção Contra a Pornografia e o Aliciamento
Infantojuvenil
O Estatuto da Criança e do Adolescente enquanto legislação especial
protetora dos Direitos Infantojuvenis também se preocupou em dar
suporte ao Código Penal, tratando de questões que se mostram
preocupantes relacionadas fundamentalmente à pornografia e ao
aliciamento.
Em linhas gerais, com o intuito de apenas apontar tais crimes sem
esgotar a fundamentação, apontam-se os crimes previstos nos artigos 240,
241 – A, 241 – B, 241 – C, 241 – D, e 244-A. Todos relacionados à
preservação da imagem e integridade física e moral. O art. 240 trata
prioritariamente da imagem, vedando condutas como produzir, reproduzir,
dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo
explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente. O 241 aborda
a venda ou exposição de material pornográfico. Já o 241-A e B tratam,
respectivamente, da divulgação e posse de tais materiais. O 241-C e D
dispõem sobre produção e aliciamento, respectivamente. Por fim, o 244-A,
que se assemelha ao artigo 218-B do Código Penal, faz menção à
prostituição e exploração sexual.
2.3.5.4 – Pedofilia, Hebefilia e Pederastia
Quando se fala em violência sexual envolvendo criança e adolescente
nos vem à mente a expressão do agente como pedófilo.
Afinal, o que é um pedófilo ou um hebéfilo?
A pedofilia é uma preferência sexual por crianças até a puberdade111 ou
em puberdade precoce,112 e é classificada como parafilia113 pela
Organização Mundial da Saúde (Classificação Internacional de Doenças ou
CID-10, item F65.4), vinculada às Nações Unidas.
A efebofilia, por vezes referida como hebefilia [do grego “ephebos” –
pessoa jovem pós-pubescente, ou “hebe” – juventude + “philia” – amor ou
amizade] é uma preferência sexual na qual um adulto tem uma atração
sexual primária por adolescentes pubescentes ou pós-pubescentes
(geralmente entre 15 e 18 anos).
A hebefilia é definida como uma atração sexual primária ou exclusiva de
um adulto em relação a adolescentes do sexo feminino, masculino ou
ambos, adulto esse que depende de estímulos visuais de adolescentes para
obter excitação e orgasmo. Assim, a efebofilia não deve se confundir com
uma atração sexual indiferente por adultos ou adolescentes, nem com uma
atração sexual eventual ou esporádica por adolescente da parte de um
adulto.
A pederastia designa especificamente uma atração sexual de um
homem por rapazes adolescentes.
2.4 –VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL
O inciso IV do art. 4.º da Lei do Depoimento Especial entende como
violência institucional a praticada por instituição pública ou privada, inclusive
quando gerar revitimização.
O contexto da violência institucional está ligado diretamente ao sistema
de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha
das violências definidas na própria norma (física, psicológica e sexual).
Pela definição do dispositivo, duas são as formas de gerar a violência
institucional: praticada por instituição pública ou privada ou quando gera
revitimização.
O Decreto n. 9.603, de 2018, que regulamentou a Lei 13.431/2017, em
seu artigo 5.º, inciso I e II, trouxe a definição da violência institucional e da
revitimização.
A violência institucional é a praticada por agente público no desempenho
de função pública, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos
comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou ao
adolescente vítima ou testemunha de violência.
O agente público é todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente
ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou
qualquer forma de investidura ou vinculo, mandato, cargo, emprego ou
função pública.
A instituição de qualquer natureza, seja ela pública ou privada, deve ser
entendia como um estabelecimento ou organização, formal ou informal,
criada para promover um determinando tipo de serviço.
O ato do agente pode ser uma conduta positiva (ação – ato de fazer) ou
negativa (omissão – ato de não fazer) e conduta deve prejudicar o
atendimento à criança ou adolescente, vítima ou testemunha, de uma das
violências físicas, psicológicas ou sexuais.
A revitimização é o discurso ou prática institucional que submeta
crianças e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos,
invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de
violência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou
exposição de sua imagem.
O fim social da norma é colher, de forma protegida, os relatos dos
infantes, uma única vez, salvo quando justificada sua imprescindibilidade
pela autoridade competente e houver concordância da vítima ou
testemunha (art. 11, §2.º), pois não se justifica que elas se submetam a
procedimentos dispensáveis, recorrentes ou invasivos que os levam a
reviverem seus horrores, gerando mais sofrimento, o que acaba por expor
sua pessoa.
3 – MEIO DE ESCUTA FORENSE
3.1 – Introdução
A violência em face de uma criança ou adolescente, de um modo geral,
esconde neles um silêncio, uma negação, um refúgio introvertido de medo,
angústia, receio, capazes de impedir que esses sujeitos de direitos declarem
normalmente seus sentimentos por inúmeros motivos.
A conduta dos agentes, muitas vezes, não deixa vestígios, o que agrava
a situação, fazendo com que os infantes fiquem à mercê de provas
contundentes sobre a violência contra eles praticadas, principalmente a
sexual, que é justamente a mais grave de todas elas. Neste sentido,
Azambuja114, baseando-se na literatura, afirma que “[…] somente em uma
minoria de casos o exame físico conduz com confiança ao achado definitivo de
abuso sexual, o que acaba por dificultar a investigação pelos profissionais da
saúde, menos capacitados, apenas de outros indicadores se fazerem
presentes”.
Somado a isso, encontramos ainda a repreensão do agressor por meio
de ameaças ou coação para impedir que os fatos sejam divulgados.
Caso os fatos ocorram em relação do âmbito intrafamiliar, o pacto do
silêncio agrava a situação, pois o abusador impõe à vítima o silêncio.
Dentro desse contexto surge a ela uma confusão de sentimentos capaz
de impedir relate, por livre e espontânea vontade, suas angústias, seus
sofrimentos.
Considerando esse contexto, na maioria das vezes traumático, é que o
legislador criou mecanismo de escuta protegida e, para os fins da norma em
análise, os infantes serão ouvidos sobre a situação de violência por meio de
escuta especializada e depoimento especial (Lei, 13.431, art. 4.º, §1.º).
3.2 – Escuta Especializada
A escuta especializada é o procedimento realizado pelos órgãos da rede
de proteção nos campos da educação, da saúde, da assistência social, da
segurança pública e dos direitos humanos, com o objetivo de assegurar o
acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a
superação das consequências da violação sofrida, limitado ao estritamente
necessário para o cumprimento da finalidade de proteção social e de
provimento de cuidados.
A criança ou o adolescente deve ser informado em linguagem
compatível com o seu desenvolvimento acerca dos procedimentos formais
pelos quais terá que passar e sobre a existência de serviços específicos da
rede de proteção, de acordo com as demandas de cada situação.
A busca de informações para o acompanhamento da criança e do
adolescente deverá ser priorizada com os profissionais envolvidos no
atendimento, com seus familiares ou acompanhantes.
O profissional envolvido no atendimento primará pela liberdade de
expressão da criança ou do adolescente e sua família e evitará
questionamentos que fujam dos objetivos da escuta especializada.
A escuta especializada não tem o escopo de produzir prova para o
processo de investigação e de responsabilização, e fica limitada
estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade de
proteção social e de provimento de cuidados.
Esse meio de escuta tem o objetivo único de aferir qual medida
protetiva seria a mais adequada no caso concreto, inexistindo, até então,
interesse em investigar a ocorrência (BRASIL, 2.017, pp. 27/28115).
A escuta especializada será realizada por profissional capacitado dentro
do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou
testemunha de violência, o qual deve participar de cursos de capacitação
para o desempenho adequado das funções previstas na regulamentação da
norma.
Os órgãos, os serviços, os programas e os equipamentos da rede de
proteção adotarão procedimentos de atendimento condizentes com os
princípios estabelecidos no art. 2º do Decreto n. 9.603/2018, que
regulamentou a Lei 13.431/2017.
3.3 – Depoimento Especial
O depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou
adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial
ou judiciária com a finalidade de produção de provas.
Tem ele caráter investigativo e de produção de provas.
Essa escuta deverá primar pela não revitimização e pelos limites etários
e psicológicos de desenvolvimento da criança ou do adolescente.
A autoridade policial ou judiciária deverá avaliar se é indispensável a
oitiva da criança ou do adolescente, consideradas as demais provas
existentes, de forma a preservar sua saúde física e mental e seu
desenvolvimento moral, intelectual e social.
A criança ou o adolescente serão respeitados em sua iniciativa de não
falar sobre a violência sofrida, ou seja, têm o direito de permanecer em
silêncio, inclusive não devem se fazer questionamentos para registro das
perguntas na gravação, sob pena de revitimizá-la.
O depoimento especial deverá ser gravado com equipamento que
assegure a qualidade audiovisual.
A sala de depoimento especial será reservada, silenciosa, com
decoração acolhedora e simples, para evitar distrações. Esse ambiente,
inclusive, poderá ter sala de observação ou equipamento tecnológico
destinado ao acompanhamento e à contribuição de outros profissionais da
área da segurança pública e do sistema de justiça.
O depoimento especial será regido pelo Protocolo Brasileiro de
Entrevista Forense (PBEF) – Resolução n. 299/CNJ/2019.
Ele deverá ser conduzido por autoridades capacitadas, observando o
meio de capacitação do regulamento da norma 13.431/2017, e realizado
em ambiente adequado ao desenvolvimento da criança ou do adolescente.
A condução do depoimento especial observará o seguinte: a) os
repasses de informações ou os questionamentos que possam induzir orelato da criança ou do adolescente deverão ser evitados em qualquer fase
da oitiva; b) os questionamentos que atentem contra a dignidade da criança
ou do adolescente ou, ainda, que possam ser considerados violência
institucional deverão ser evitados; c) o profissional responsável conduzirá
livremente a oitiva sem interrupções, garantida sua autonomia profissional e
respeitados os códigos de ética e as normas profissionais; d) as perguntas
demandadas pelos componentes da sala de observação serão realizadas
após a conclusão da oitiva; e) as questões provenientes da sala de
observação poderão ser adaptadas à linguagem da criança ou do
adolescente e ao nível de seu desenvolvimento cognitivo e emocional, de
acordo com seu interesse superior; e f) durante a oitiva, deverão ser
respeitadas as pausas prolongadas, os silêncios e o tempo que a criança ou
o adolescente necessitarem.
A oitiva deverá ser registrada na sua íntegra desde o começo.
Em casos de ocorrência de problemas técnicos impeditivos ou de
bloqueios emocionais que impeçam a conclusão da oitiva, ela deverá ser
reagendada, respeitadas as particularidades da criança ou do adolescente.
4 – REVELAÇÃO ESPONTÂNEA DA VIOLÊNCIA À REDE DE
PROTEÇÃO E AFINS
A violência, seja ela qual for, antes das garantias asseguradas aos infantes
como sujeitos de direito, não chegavam à Justiça, de um modo geral, seja
pelas barreiras naturais dos relatos dos infantes já narrados acima, seja por
ausência de mecanismo para que pudesse ser identificado um rito para seu
aperfeiçoamento.
Desta forma, o legislador criou e os órgãos de saúde, assistência social,
educação, segurança pública e justiça deverão adotar o procedimento – rito
– necessário para dar andamento por ocasião das revelações espontâneas
da violência sofrida pela criança ou pelo adolescente.
Na hipótese de o profissional de qualquer das áreas referidas identificar
ou a criança ou adolescente revelar atos de violência, ele deverá: a) acolher
a criança ou o adolescente; b) informar à criança ou ao adolescente, ou ao
responsável ou à pessoa de referência, sobre direitos, procedimentos de
comunicação à autoridade policial e ao conselho tutelar; c) encaminhar a
criança ou o adolescente, quando couber, para atendimento emergencial
em órgão do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente
vítima ou testemunha de violência; e d) comunicar o Conselho Tutelar.
As redes de ensino deverão contribuir para o enfrentamento das
vulnerabilidades que possam comprometer o pleno desenvolvimento
escolar de crianças e adolescentes por meio da implementação de
programas de prevenção à violência.
O Suas disporá de serviços, programas, projetos e benefícios para
prevenção das situações de vulnerabilidades, riscos e violações de direitos
de crianças e de adolescentes e de suas famílias no âmbito da proteção
social básica e especial.
A proteção social básica deverá fortalecer a capacidade protetiva das
famílias e prevenir as situações de violência e de violação de direitos da
criança e do adolescente, além de direcioná-los à proteção social especial
para o atendimento especializado quando essas situações forem
identificadas.
O acompanhamento especializado de crianças e adolescentes em
situação de violência e de suas famílias será realizado preferencialmente no
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), por
meio do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e
Indivíduos, em articulação com os demais serviços, programas e projetos
do Suas.
Caso não haja CREAS, a criança ou o adolescente será encaminhado ao
profissional de referência da proteção social especial.
As crianças e os adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e em
situação de risco pessoal e social, cujas famílias ou cujos responsáveis se
encontrem temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de
cuidado e proteção, podem acessar os serviços de acolhimento de modo
excepcional e provisório, hipótese em que os profissionais deverão
observar as normas e as orientações referentes aos processos de escuta
qualificada quando se configurarem situações de violência.
A autoridade policial procederá ao registro da ocorrência policial e
realizará a perícia, se necessário.
O registro da ocorrência policial consiste na descrição preliminar das
circunstâncias em que se deram o fato e, sempre que possível, será
elaborado a partir de documentação remetida por outros serviços,
programas e equipamentos públicos, além do relato do acompanhante da
criança ou do adolescente.
O registro da ocorrência policial deverá ser assegurado, ainda que a
criança ou o adolescente esteja desacompanhado.
A autoridade policial priorizará a busca de informações com a pessoa
que acompanha a criança ou o adolescente, de forma a preservá-lo,
observado o disposto na Lei nº 13.431, de 2017.
Sempre que possível a descrição do fato não será realizada diante da
criança ou do adolescente.
A descrição do fato não será realizada em lugares públicos que
ofereçam exposição da identidade da criança ou do adolescente vítima ou
testemunha de violência.
A perícia médica ou psicológica primará pela intervenção profissional
mínima.
A perícia física será realizada somente nos casos em que se fizer
necessária a coleta de vestígios, evitada a perícia para descarte da
ocorrência de fatos.
Os peritos deverão, sempre que possível, obter as informações
necessárias sobre o fato ocorrido com os adultos acompanhantes da
criança ou do adolescente ou por meio de atendimento prévio realizado
pela rede de serviços.
Recebida a comunicação de que trata o art. 13 da Lei nº 13.431, de
2017, o Conselho Tutelar deverá efetuar o registro do atendimento
realizado, do qual deverão constar as informações coletadas com o familiar
ou o acompanhante da criança ou do adolescente e aquelas necessárias à
aplicação da medida de proteção da criança ou do adolescente.
Os profissionais envolvidos no sistema de garantia de direitos da criança
e do adolescente vítima ou testemunha de violência primarão pela não
revitimização da criança ou adolescente e darão preferência à abordagem
de questionamentos mínimos e estritamente necessários ao atendimento.
Poderá ser coletada informação com outros profissionais do sistema de
garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de
violência, além de familiar ou acompanhante da criança ou do adolescente.
Caso a violência contra a criança ou o adolescente ocorra em programa
de acolhimento institucional ou familiar, em unidade de internação ou
semiliberdade do sistema socioeducativo, o fato será imediatamente
avaliado pela equipe multiprofissional, considerado o melhor interesse da
criança ou do adolescente.
No atendimento à criança e ao adolescente pertencente a povos ou
comunidades tradicionais, deverão ser respeitadas suas identidades sociais e
culturais, seus costumes e suas tradições.
Poderão ser adotadas práticas dos povos e das comunidades
tradicionais em complementação às medidas de atendimento institucional
No atendimento à criança ou ao adolescente pertencente a povos
indígenas, a Fundação Nacional do Índio – Funai, do Ministério da Justiça, e
o Distrito Sanitário Especial Indígena do Ministério da Saúde deverão ser
comunicados.
5 – REVELAÇÃO ESPONTÂNEA DA VIOLÊNCIA EM CASOS
DE INTERVENÇÃO DE SAÚDE
O §3.º do art. 4.º da Lei 13.431/2017 prevê a revelação espontânea à
rede de proteção e afins, que são os órgãos de saúde, assistência social,
educação, segurança pública e justiça, cujo procedimento (rito) dos agentes
políticos e das autoridades auxiliam a criança ou adolescente, foi descrito
no item anterior (4).
Ocorre, entretanto, que pode ocorrer a revelação espontânea durante
a intervenção de saúde do infante. Nesse caso, o §3.º do art. 4.º faz
ressalva à regra da escuta protegida por meio da especializada e
depoimento especial.
Segundo DIGIÁCOMO,116 “[…] o dispositivo destaca a possibilidade
(nuncaobrigatoriamente, especialmente em face do disposto no art. 5.º, inciso
VI, desta lei), de que o relato da vítima seja posteriormente reproduzido
mediante depoimento especial ou escuta especializada, de modo a ser usado
como prova em processo criminal ou civil instaurado em decorrência da
violência por ela sofrida (reafirmando assim que ambos os métodos são
igualmente válidos e podem ser usados para tal desiderato). A ressalva
estabelecida em relação a atendimentos à saúde, tomando por base a regra de
interpretação contida no art. 3.º desta lei, assim como o disposto nos arts. 13 e
22 deste mesmo Diploma, deve ser entendida não como a vedação da
revelação, pelos profissionais de saúde, do que foi relatado aos órgãos e
autoridades competentes, mas sim como a previsão de que, em tais casos,
deve-se procurar evitar que a criança/adolescente vítima ou testemunha seja
novamente ouvida, quer por meio da escuta especializada, quer do depoimento
especial, com a busca da produção de prova do ocorrido por outros meios
(lícitos) em Direito admissíveis, a começar pelo depoimento dos próprios
profissionais que atenderam o caso. O que se procura resguardar é a relação de
confiança entre a criança/adolescente vítima ou testemunha de violência e o
profissional de saúde perante a qual o fato foi relatado, que se quebrada, pode
comprometer a continuidade do atendimento/tratamento ao qual a mesma está
sendo eventualmente submetida, e mesmo ser fonte de violência institucional,
nos moldes do previsto no art. 4.º, inciso IV, desta Lei. Assim sendo, quando a
revelação da violência ocorre, por exemplo, durante eventual tratamento
psicológico ao qual a criança/adolescente vítima ou testemunha está sendo
submetida, ela a princípio não deverá ser ouvida novamente, persistindo, no
entanto, o dever do profissional de saúde comunicar o que foi relatado (cf. art.
13, caput, desta lei), assim como de servir como testemunha nos processos
criminais e/ou cíveis instaurados em decorrência do fato (incidindo aqui o
disposto no art. 22 desta lei, que preconiza a busca de formas alternativas de
comprovação da violência praticada”.
Ao médico, por sigilo profissional, é vedado revelar fato de que tenha
conhecimento em virtude de sua profissão, salvo por motivo justo, dever
legal ou consentimento, por escrito, do paciente.
Esta é a regra prevista no art. 73 do Código de Ética Médica (Resolução
CFM n. 1.931/09).117
Desta forma, todo e qualquer médico que tomar conhecimento de
alguma violência em face da criança ou adolescente, seja vítima ou
testemunha, tem o dever legal de comunicar as autoridades competentes
os fatos, o que não significa violar o sigilo profissional do Código de Ética.
O que vem a ser “dever legal”? Ora, como a própria expressão sugere,
é uma obrigação imposta por lei, significando que o agente, ao atuar
tipicamente, não faz nada mais do que “cumprir uma obrigação”. Mas para
que essa conduta, embora típica, seja lícita, é necessário que esse dever
derive direta ou indiretamente de “lei”. Por “lei” entenda-se não apenas a
lei penal, mas também a civil, comercial, administrativa etc. Não é
necessário, também, que essa obrigação esteja imposta textualmente no
corpo de uma lei estrito sensu. Pode constar de decreto, regulamento ou
qualquer ato administrativo infralegal, desde que originários de lei. O
mesmo se diga em relação a decisões judiciais que nada mais são do que
determinações emanadas do Poder Judiciário em cumprimento da lei e está
na lei ou dela derive.
O profissional liberal responsável pelo atendimento deverá servir de
testemunha quanto a violência relatada espontaneamente.
No mesmo sentido é o caso dos profissionais assistentes sociais e
psicólogos os quais, durante o atendimento, venham a tomar conhecimento
de fatos que narram violência.
No caso da Assistente Social, a quebra do sigilo só é admissível quando
se tratarem de situações cuja gravidade possa, envolvendo ou não fato
delituoso, trazer prejuízo aos interesses do/a usuário/a, de terceiros/as e da
coletividade. A revelação será feita dentro do estritamente necessário, quer
em relação ao assunto revelado, quer ao grau e número de pessoas que
dele devam tomar conhecimento (Resolução CEFESS n. 273/93, art. 18, c/c
Lei 8662/93).
É dever do Psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por
meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou
organizações, a que tenha acesso no exercício profissional. Nas situações
em que se configure conflito entre as exigências decorrentes dessa regra e
as afirmações dos princípios fundamentais previstas no próprio Código de
Ética, excetuando-se os casos previstos em lei, o psicólogo poderá decidir
pela quebra de sigilo, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo.
Não podemos esquecer que, no art. 2.º do Código, ao profissional é
vedada a prática ou ser conivente com quaisquer atos que caracterizem
negligência, entre elas deixar de comunicar a autoridade competente a
notícia de um fato criminoso. Em caso de quebra do sigilo, o psicólogo
deverá restringir-se a prestar as informações estritamente necessárias e
quando requisitado a depor em juízo poderá prestar informações,
considerando o previsto no Código de Ética (Resolução CFP n. 010/05, art.
9.º, 10 e 11).
Sobre a atuação dos Profissionais – Assistentes Técnicos e Psicólogos –
vejamos o que prevê as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da
Justiça do TJSP, que por meio do Provimento n. 17/2018, datado de 05 de
junho, acresceu o parágrafo único ao artigo 804: “Os Psicólogos e Assistentes
Sociais atuarão como peritos do Juízo e não como testemunhas, exceto se o
fato a ser provado ocorreu durante o atendimento realizado pela equipe
multidisciplinar.”
Esse provimento, diga-se de passagem, foi questionado pela Associação
dos Assistentes Sociais e Psicólogos do TJSP e buscava sua nulidade no CNJ
(Procedimento de Controle Administrativo n. 0004543-
46.2018.2.00.0000), que foi julgado improcedente na Sessão n. 301ª da
Corte Colegiada Administrativa.
6 – EXIGÊNCIA DO CUMPRIMENTO DA LEI (SANÇÕES)
6.1 – Introdução
O §4.º do art. 4.º prevê que o não cumprimento do disposto nesta Lei
implicará a aplicação das sanções previstas na Lei 8.069, de 13 de julho de
1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Considerando a regra de interpretação em que o artigo é a menor
porção de uma lei que ainda guarda as suas características. Sendo assim, a
forma correta de interpretar um artigo é concêntrica, e não linear, ou seja,
deve-se entender que o centro orbital de um artigo é o seu caput, tudo o
circunstancia: os parágrafos, incisos, alíneas e itens que porventura o
integram. Assim, a interpretação exige certo grau de abstração do
intérprete para que, em uma visão espacial mais acurada, compreenda que
os parágrafos, por exemplo, são subdivisões do assunto do caput, enquanto
os incisos são exemplificações do assunto do parágrafo ou do próprio
caput; já as alíneas são enumerações (quase sempre taxativas) do conteúdo
dos parágrafos; e, finalmente, os itens são enumerações do assunto que
está na alínea.
Dessa forma, analisando o disposto na regra descrita no §4.º do art. 4.º
– não cumprimento do disposto – poderia levar a interpretação de que
estaria restrito ao artigo, simplesmente.
Há evidente erro de indicação do legislador ao incluir a regra em um
parágrafo, que é vinculado a seu caput. Na verdade, o que se pretendeu foi
afirmar (declarar) que o não respeito a qualquer artigo da norma fará com que
o infrator fique sujeito às sanções previstas no Estatuto da Criança e do
Adolescente.
É certo que o próprio artigo 4.º, §§1.º ao 3.º, de forma resumida
trazem a abrangência quase total de todas as normas que devem ser
cumpridas: a) criança e o adolescente, quando vítimas ou testemunhas de
alguma das violências previstas na lei, serão ouvidos por meio de escuta
especializada e depoimento especial; b) a rede de proteção, órgãos afins e
autoridadecompetentes adotarão os procedimentos necessários por
ocasião da revelação espontânea da violência; e c) na hipótese de revelação
espontânea da violência o(a) infante será chamado a confirmar os fatos na
forma da escuta protegida, exceto na hipótese de intervenção de saúde (v.
item 5 deste artigo).
Não é só!
A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios desenvolverão
políticas integradas e coordenadas que visem a garantir os direitos humanos
da criança e do adolescente no âmbito das relações domésticas, familiares e
sociais, para resguardá-los de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, abuso, crueldade e opressão118.
O Estado deve assegurar os direitos e garantias previstos no art. 5.º da
Lei do Depoimento Especial.
As políticas implementares nos sistemas de justiça, segurança pública,
assistência social, educação e saúde deverão adotar ações articuladas,
coordenadas e efetivas voltadas ao acolhimento e ao atendimento integral
às vítimas de violência.
Os Entes Federados poderão criar serviços de atendimento, de
ouvidoria ou de resposta, pelos meios de comunicação disponíveis,
integrados às redes de proteção, para receber denúncias de violações de
direitos de criança e adolescentes, como criar, no âmbito do SUS, serviços
para atenção integral aos infantes em situação de violência, de forma a
garantir o atendimento acolhedor, e no âmbito do SUAS, procedimentos
como para atender aos fins da norma (LDE, art. 19).
A Segurança Pública, por meio do poder público, deve criar
mecanismos – delegacia e equipe especializada – para cumprir a escuta
protegida.
A Justiça, por meio do Poder Judiciário, deve criar juizados ou varas
especializadas em crimes contra a criança e o adolescente, disponibilizar
para a prestação jurisdicional meios de realizar o depoimento especial com
as garantias asseguradas pela norma.
De tudo o que foi dito, certo é que todos, incluindo família, sociedade,
a comunidade e o Estado têm o dever fundamental de promover a
observância dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, como de
colocá-los a salvo de qualquer forma de abuso e negligência.
Não adianta prever direitos sem que existam instrumentos capazes de
responsabilizar os que não cumprem as normas. Dessa maneira, o ECA
previu um complexo sistema de responsabilização (sanções) pelo qual é
possível a aplicação de medidas judiciais e de penas com finalidades
educativas e punitivas.
Nesse sentido, a não observância do dever fundamental indicado pode
incorrer em (a) tipificação de crimes, (b) a tipificação de infrações
administrativas, (c) a aplicação de medidas pertinentes aos pais ou
responsáveis, (d) a aplicação de penalidades às entidades de atendimento
responsáveis pela execução de programas socioeducativos e de proteção e
(e) a aplicação de medidas às entidades de atendimento que descumprirem
as obrigações do programa de internação.
O certo é que nem todas as sanções previstas no ECA devem ser
aplicadas à Lei do Depoimento Especial pelo fato de não serem compatíveis
e, pois, na análise de cada uma delas, nos limitaremos àquelas aplicáveis.
6.2 – Tipificação de Crimes
Os tipos penais descritos no ECA – Seção II do Capítulo I do Título VII
– trazem diversas condutas criminosas e as que podem ser aplicadas à Lei
do Depoimento Especial são algumas específicas, como sanção pelo
descumprimento de suas normas.
Primeiro, “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou
vigilância a vexame ou a constrangimento” – ECA, art. 232.
O infante deve estar legalmente sob custódia, guarda ou vigilância; do
contrário, outras figuras típicas de privação da liberdade incidirão.
O núcleo do tipo é submeter (sujeitar), que se conjuga a vexame
(vergonha) ou constrangimento (situação de violência ou coação
psicológica).
É possível que as pessoas, órgãos ou autoridades envolvidas no relato
de uma violência da vítima ou testemunha, sem os devidos cuidados na
condução de sua escuta protegida, possam estar sujeitas a prática delitiva
desta conduta.
Vejamos, v.g., que uma diretora de escola ao tomar conhecimento dos
fatos (violência sexual) em face de um infante não dê sequência ao
procedimento do Decreto 9.603/2018, submetendo a criança ou
adolescente a atos reiterados de narrativas dos fatos (revitimização119),
acaba por cometer violência institucional120 (LDE, art. 4.º, IV).
No mesmo sentido integrantes do Conselho Tutelar, CRAS, CREAS,
Autoridades Judiciárias, etc.
Segundo, “impedir ou embaraçar a ação de autoridade judiciária, membro
do Conselho Tutelar ou representante do Ministério Público o exercício de
função prevista nesta lei” – ECA, art. 236.
Aos pais e responsáveis que colocarem obstáculo, interromperem ou
perturbarem, complicando a realização de uma ação judicial, de um
representante do Conselho Tutelar ou do MP, quando no exercício das suas
funções do ECA, devem ser punidos pelo tipo descrito neste tópico.
Como se trata de tipo misto alternativo – impedir ou embaraçar – em
que o agente pode praticar ambas as condutas, responde apenas por um só
delito.
Nesta hipótese é possível analisar uma conduta muito comum
envolvendo o Depoimento Especial ou Escuta Especializada, qual seja,
quando a criança ou adolescente faz a narrativa de uma violência a pessoa
diversa da família em que terceiros tomam conhecimento e o fato é relato
ao Conselho Tutelar ou MP, que, quando acionados, encontram resistência
dos próprios pais ou responsáveis para que a verdade seja desvendada, até
porque muitas vezes envolve integrante da família de quem se está a
proteger.
Dúvida poderia surgir quanto a norma se referir ao fato de que o tipo
descreve no “exercício de função prevista nesta lei”, referindo-se ao Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Pois bem.
Vejamos que a Lei do Depoimento Especial, ao dispor em seu §4.º do
art. 4.º da Lei 13.431/2017, o não cumprimento de qualquer norma
prevista naquela lei implicaria na aplicação das sanções prevista no ECA,
quer dizer que, por força legal, devem os agentes políticos cumprirem a
norma, o que faz com que haja, caso não atendidas as normas estatutárias,
a punição de acordo com o tipo penal, uma vez que o objeto jurídico é
justamente o interesse da Administração da Justiça, no campo da proteção
aos interesses da criança e do adolescente.
Terceiro, “subtrair criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua
guarda em virtude de lei ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar
substituto” – ECA, art. 237.
Trata-se de uma conduta em que retira-se o(a) infante de um lugar, com
quem está sob guarda, levando-o(a) a outro diverso.
A guarda deve ser judicial (v.g., tutor) ou legal (v.g., poder familiar) e a
finalidade é a colocação em lar substituto, i. e, a convivência com outra
família, que pode ser extensa ou substituta, desde que não haja ordem
judicial para tanto.
O tipo pode ser também facilmente aplicado à Lei do Depoimento
Especial quando em decorrência de uma criança ou adolescente vítima ou
testemunha de violência for entregue a terceiros por medida de proteção
(LDE, art. 6.º), e os pais ou responsáveis, não satisfeitos com a conduta,
retirarem-na desse local para entregar a outrem (terceiros).
Observa-se que o art. 249 do Código Penal – subtração de incapaz –
tem confronto com o presente tipo em análise; contudo, o previsto no art.
237 do ECA deve prevalecer por existir finalidade especial para agir, além
de ser lei mais recente.
Quarto, “promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de
criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades
legais ou com o fito de obter lucro” – ECA, art. 239.
A conduta tem a finalidade de proporcionar ou fornecer ajuda para
enviar criança ou adolescente para o exterior, cujos elementos normativos
alternativos são sem observar as formalidades legais, ainda que sem o
intuito de obter lucro, e, observando ou não as formalidade legais, mas com
o objetivo de obterlucro.
Essa questão está intimamente ligada à Violência Sexual pelo Tráfico de
Pessoas com o Fim de Exploração Sexual (art. 4.º, III, alínea c) – v. item 2.3.4
do art. 4.º – em que se busca evitar o tráfico internacional de crianças e
adolescentes, preocupação imperante em todo o mundo.
É importante que a consumação do delito, no entanto, independe da
remessa efetiva do(a) infante para o exterior, bastando a concretização do
ato, cujo objetivo seja esse. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já
decidiu: “O delito tipificado no art. 239 do Estatuto da Criança e do
Adolescente é formal, porque consuma-se com a simples conduta de auxiliar na
efetivação de atos destinados ao envio de criança ao exterior, sem a observância
das formalidades legais ou com a finalidade de obter lucro, não sendo exigido o
efetivo envio do menor ao exterior.” (REsp 1.023.002/PE, 6.ª T., rel. Alderita
Ramos de Oliveira, 09.08.2012, v.u.).
Nucci,121 ao confrontar o dispositivo com o art. 245, §2.º, do Código
Penal, afirma que “analisando detidamente os dois tipos penais, cremos que o
art. 239 da Lei 8.069/90, por ser mais abrangente e também especial, revogou,
tacitamente, o referido no art. 245, §2.º, do Código Penal. Neste, o agente
auxilia a efetivação de ato destinado ao envio de menor para o exterior, com o
fito de obter lucro. Naquele, o autor auxilia ou promove a efetivação de ato
destinado a enviar criança ou adolescente ao exterior, com o fito de obter lucro
ou com inobservância das formalidades legais. Logo, mais amplo e abrangente”.
A competência para análise do tipo penal é da Justiça Federal (CF, art.
109, V). Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal (HC 121472/PE, 1.ª T.,
rel. Dias Toffoli, 19.08.2014, m.v.).
Quinto, “produzir, reproduzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer
meio, cena de sexo explícito ou pornografia envolvendo criança ou adolescente”
– ECA, art. 240, caput.
No caput do tipo penal são seis as condutas criminosas previstas, ligadas
entre si, direta ou indiretamente, à criação do material pornográfico:
produzir (realizar, levar a efeito), reproduzir (imitar fielmente), dirigir
(comandar), fotografar (tirar foto de alguém), filmar (registrar em vídeo
alguém) e registrar (colocar em base de dados) cena de sexo explícito ou
pornográfica, assim entendida qualquer situação que envolva criança ou
adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição
dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins
primordialmente sexuais (ECA, art. 241-E).
O §1.º do art. 240 do ECA impõe a mesma pena de quem “agencia,
facilita, recruta, coage, ou de qualquer modo intermedeia a participação de
criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda
quem com esses contracena”.
Nos moldes do caput e do parágrafo primeiro do dispositivo, na
essência o que se pune é a utilização de criança ou adolescente em cena
pornográfica, de sexo explícito ou vexatório, nas peças de comunicação
elencadas.
A pena é aumentada se o agente comete o crime no exercício de cargo
ou função pública ou a pretexto de exercê-la; prevalecendo-se de relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou prevalecendo-se de
relações de parentesco consanguíneo ou afim até o terceiro grau, ou por
adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a
qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela ou com seu
consentimento.
As condutas são consideradas de tipos mistos alternativos, ou seja, se o
agente, no mesmo contexto fático, incorrer em mais de uma ação nuclear
típica (agencia e facilita, v.g.) responderá por apenas um crime.
O dispositivo está intimamente ligado à violência sexual (LDE, art. 4.º,
III), entendida como qualquer conduta que constranja a criança ou o
adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato
libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou
não, que compreenda (a) abuso sexual122 e (b) exploração sexual
comercial123.
Nas hipóteses de violência sexual em face da criança ou do adolescente
os agentes estão sujeitos às sanções do presente dispositivo penal do ECA.
Sexto, “vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que
contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou
adolescente” – ECA, art. 241.
Analisando o núcleo do tipo vemos que se trata de alienar por um
determinado valor ou apresentar algo para que se seja objeto de alienação
imagens, vídeos ou qualquer registro (dados em gerais) de criança ou
adolescente em cenas de sexo explícito ou pornográficos.
No mesmo sentido do tipo anterior, tem ligação direta a violência
sexual definida no art. 4.º, III, da Lei do Depoimento Especial.
Incorrendo o agente naquelas hipóteses, aplicar-se-á a ele a sanção
penal definida no tipo em análise, conforme a conduta fática.
Sétimo, “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou
divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou
telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo
explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente” – ECA, art. 240-
A.
O caput do dispositivo traz sete ações nucleares típicas, todas
associadas à difusão (especialmente pela rede mundial de computadores)
do material pornográfico já produzido: oferecer (propor para aceitação),
trocar (permutar, substituir), disponibilizar (permitir o acesso), transmitir
(remeter de um lugar a outro), distribuir (proporcionar a entrega
indeterminada), publicar (tornar manifesto) e divulgar (difundir,
propagar)124.
Aqueles que disponibilizam instrumento de armazenamento ou
assessoram o agente que pretende a divulgação também estão sujeitos a
sanção, conforme dispõe o §1.º do art. 240-A: “I – assegura os meios ou
serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata
o caput deste artigo; e II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de
computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste
artigo.”
Contudo, o §2.º do mesmo dispositivo legal impôs uma condição
objetiva de punibilidade, posto que só são puníveis os agentes quando o
responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa
de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que se refere o caput do tipo
penal.
Novamente a conduta criminosa está ligada à violência sexual (LDE, art.
4.º, III).
Oitavo, “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia,
vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou
pornográfico envolvendo criança ou adolescente” – ECA, art. 241-B.
As condutas típicas visam punir especialmente o consumidor do
material pornográfico: adquirir (obter), possuir (desfrutar) e armazenar
(guardar) imagem, cenas ou qualquer registro que contenha cena de sexo
explícito ou pornográfico envolvendo criança ou adolescente.
Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de
comunicar às autoridades competentes a ocorrência das condutas descritas
nos arts. 240, 241-A e 241-C do ECA e, ainda, quando a comunicação for
feita por agente público no exercício de suas funções, membro de entidade,
legalmente constituída, que inclua, entre suas finalidades institucionais, o
recebimento, o processamento e o encaminhamento de notícia dos crimes
descritos neste dispositivo e, ainda, representante legal e funcionários
responsáveis de provedor de acesso ou serviço prestado por meio de rede
de computadores, até o recebimento do material relativo à notícia feita à
autoridade policial, ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário (ECA, art.
241-B, §2.º).
Lado outro, o legislador considerou minorante da pena a quantidade de
material pornográfico apreendido, o que pode reduzir a pena em 1/3 (um)
a 2/3 (dois terços). Neste caso, beneficia aquele que ocasionalmente foi
surpreendido com pequena quantidade de material ilegal, conduta que
demonstrainfante potencialidade lesiva. Como critério para a diminuição
poderá o juiz utilizar tanto a efetiva quantidade de imagens, vídeos ou
registros quanto o conteúdo por eles revelado. Se, por exemplo, foram
duas ou três imagens que apenas insinuam a prática de algum ato sexual, a
diminuição pode se dar no máximo, o que não se revela possível se a
exibição for de sexo explícito125.
Trata-se de conduta ligada à violência sexual definida na Lei
13.431/2017.
Nono, “simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo
explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação
de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual” – ECA,
art. 241-C.
A Lei 11.829, de 2008, que acresceu ao ECA o dispositivo, tem a
preocupação quanto à criação de material pornográfico envolvendo criança
e adolescente.
Vejamos que não há a participação direta do(a) infante na cena explícita
ou pornográfica; contudo, a simulação de sua participação atinge a moral da
criança e do adolescente, além de provocar a produção de cenas reais de
terceiros.
Nas mesmas penas incorre quem vende, expõe à venda, disponibiliza,
distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou
armazena o material produzido (ECA, art. 241-C, parágrafo único).
Na hipótese do(a) infante que é envolvido(a) pela simulação e sofre
violência sexual definida na Lei do Depoimento Especial, tem garantida sua
aplicação.
Décimo, “aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de
comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso” – ECA,
art. 241-D.
O tipo em análise, marcado pela prevenção, pune aquele que aliciar
(atrair), assediar (importunar), instigar (induzir) ou constranger (forçar,
coagir), por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela
praticar ato de libidinagem (comportamento denominado grooming)126.
Com a difusão e o acesso fácil aos meios de comunicação através da
internet, principalmente redes sociais (Facebook, Instagram, etc.), os
agentes cada dia mais buscam nesses meios atrair crianças e adolescentes
para prática lasciva, o que motivou a definição do presente tipo.
Pune-se também quem facilitar (põe à disposição) ou induzir (incute,
sugere) o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou
pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso: neste caso, o
agente, agindo indiretamente, com a finalidade de praticar ato libidinoso
com a criança, proporciona seu acesso a material de conteúdo
pornográfico, com a finalidade de fazê-la crer na naturalidade daquelas
cenas; e pratica as condutas descritas no caput com o fim de induzir a
criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita: aqui as
condutas são as mesmas previstas no caput (aliciar, assediar, instigar ou
constranger), tendo como objeto também a criança, modificando-se
somente a finalidade, que passa a ser a exibição do infante em cenas de
sexo explícito ou pornográfico127.
São meros atos preparatórios de crime mais grave (estupro de
vulnerável), que ocorrendo, o analisado restará absolvido.
6.3 – A Tipificação de Infrações Administrativas
6.3.1 – Introdução
A finalidade da infração administrativa é assegurar a regularidade de
algum campo sob tutela do poder público no interesse da sociedade ou do
Estado128.
Segundo Válter Kenji Ishida “toda conduta que viola norma jurídica é tida
como ilícita. Pode ocorrer que esse ilícito seja de natureza administrativa, civil
ou penal. A diferença entre o ilícito civil e o penal e o ilícito administrativo recai
sobre o órgão que impõe a sanção, no exercício de sua função típica ou atípica.
Ao contrário da sanção penal, em que o juiz exerce efetivamente a jurisdição
para aplicar a pena, na infração administrativa o juiz exerce o denominado ato
administrativo punitivo. A sanção administrativa e, portanto, a própria infração
administrativa do ECA estão inseridas no chamado direito administrativo
punitivo externo. É externo porque se aplica ao jurisdicionado, já que o interno
se refere ao direito disciplinar público, atinente aos servidores públicos. No caso
da infração administrativa do ECA, a punição administrativa do Poder Judiciário
é nitidamente o exercício sobre terceiros do poder de polícia129”.
O ECA contempla 164 infrações de natureza administrativa derivadas
da violação dos direitos da criança e do adolescente.
Nos artigos 245 ao 258-C, o ECA tipificou condutas consideradas
infrações administrativas e, ao mesmo tempo, atribuiu penas em razão de
sua prática.
Exige para apurar a conduta infracional o procedimento judicial, de
competência da Vara da Infância e Juventude, cuja legitimidade de ação é do
Ministério Público, do Conselho Tutelar e, ainda, pode ocorrer por
autuação provocada por voluntários credenciados da Vara da Infância e
Juventude (ECA, arts. 194 a 198).
E o prazo prescricional das infrações administrativas é de cinco anos.
Nesse sentido, segue a doutrina130: “Tratando-se de sanção administrativa, a
multa prevista nas infrações administrativas tipificadas no Estatuto segue as
regras de Direito Administrativo, sendo, por assim, quinquenal o prazo
prescricional”. Não é diferente a posição da jurisprudência: “É de cinco anos
a prescrição das infrações administrativas previstas no Estatuto da Criança e
do Adolescente” (TJMG, Apelação n. 10481070662137001, 5.ª Câmara
Cível, rel. Des. Versiani Penna, 21.02.2013).
6.3.2 – Infrações Administrativas Específicas Aplicadas à
Lei do Depoimento Especial
► ECA, art. 245: “Deixar o profissional da saúde, da assistência social ou
da educação ou qualquer pessoa que exerça cargo, emprego ou função pública
de comunicar à autoridade competente os casos que tenha conhecimento
envolvendo suspeita ou confirmação de castigo físico, tratamento cruel ou
degradante ou maus-tratos contra criança ou adolescente.”
O tipo está intimamente ligado à violência física, psicológica e sexual
(LDE, art. 4.º, I e II).
A conduta ilícita dos sujeitos ativos é a omissão, consistente em deixar
de comunicar (não avisar, não alertar) os atos ou fatos descritos no tipo
penal (maus-tratos, castigos, etc.).
A infração é própria, i. e, somente pode ser cometida pelos sujeitos
apontados no tipo: médico (não inclui enfermeiros, técnicos de
enfermagem, psicólogos, fisioterapeutas, biólogo, farmacêutico, etc.),
professor (não inclui o funcionário dos serviços gerais da escola, a auxiliar de
sala, monitor, superintendente administrativo, coordenador pedagógico,
etc.) e responsável por estabelecimento de saúde ou ensino fundamental, pré-
escola ou creche (diretor do local, excluindo-se os funcionários e
subalternos).
A conduta omissiva dos profissionais é direcionada à autoridade
competente. No caso, a autoridade a que se refere é o membro do
Conselho Tutelar (ECA, art. 13) e, na sua falta, o MP ou Juiz da Infância e
Juventude ou que acumule tal competência.
Lado outro, entendemos que, dentro de uma abrangência lato sensu,
em que os profissionais procurando dar notícia do fato para que sejam
tomadas as providências devidas em face da criança ou adolescente, a
comunicação à Autoridade Policial ou, até mesmo o registro de um Boletim
de Ocorrência junto à Polícia Militar, é suficiente para que a infração deixe
de existir, posto que, ambos, são autoridades, embora sem competência
para atuar na infância, mas para dar cabo à cessação ou investigação da
violência por maus-tratos.
► ECA, art. 249: “Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres
inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim
determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar.”
A conduta administrativa prevê duas figuras típicas: a) omissão aos
deveres inerentes ao poder familiar ou decorrentes da tutela ou guarda; e b)
omissão às determinações da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar.
Há, contudo, uma discussão de quem seriam os sujeitos ativos da
conduta infracional: Nucci131 –

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