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19 TÓPICO 3 AS FUNÇÕES DA LITERATURA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Assim como a arte pode ter um conceito mais comum, que está ligado ao belo, à apreciação, essa é, também, uma das definições mais recorrentes de literatura, sendo que, nesse viés, a literatura não teria outro compromisso além do estético. Essa é a primeira função da literatura, a estética. Seria assim a contemplação do belo. No entanto, a literatura também pode ser pragmática; atende a anseios ideológicos de determinados grupos; atua como forma de protesto à política e à sociedade; informa, de maneira particular, ativando sentimentos e sensações; funciona como catarse, de forma a purificar o espírito do autor e do leitor. São essas as funções da literatura e, de acordo com o descrito acima, são nomeadas como: função cognitiva, político-social, pragmática, catártica e lúdica. Veremos com mais detalhes cada uma delas a seguir. 2 IDENTIFICAÇÃO DAS FUNÇÕES DA LITERATURA Assim como outras formas de arte, a literatura tem o intuito de mobilizar sentimentos e sensações através da palavra, não se trata apenas de usá-la como meio de comunicação, embora também o faça. Enquanto outros textos têm uma finalidade talvez mais objetiva, a arte literária permite transpor o mundo do nosso cotidiano sem dele se perder, permitindo-se à subjetividade dos textos de caráter conotativo, ou seja, que adquirem uma interpretação polissêmica. Apesar disso, a literatura está ligada à sociedade que representa, afinal, os escritores são cidadãos de um meio social específico. Dessa forma, é comum ouvirmos que o artista recria a realidade, tornando-a mais interessante e, por vezes, mágica ou mística. O que vamos observar a seguir é que a literatura não tem uma finalidade específica, porém não é ingênua, nem vaga, não acontece simplesmente ao acaso, ela exerce várias funções em relação ao público leitor que vai desde a contemplação da beleza à emotividade e à mobilização política e social. UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 20 NOTA Conotativo: que tem sentido figurado, diferente daquele dicionarizado, quando uma palavra ou expressão adquire novos sentidos. Polissêmica: que pode ter diferentes sentidos conforme o contexto e os sujeitos envolvidos (nesse caso, escritor/leitor/sociedade). 2.1 FUNÇÃO ESTÉTICA Podemos afirmar que esta talvez seja a mais representativa das funções da literatura, visto que se encontra mesmo no cerne daquilo que a maioria dos conceitos aponta sobre o que vem a ser arte e literatura. Como identificamos neste material, ao falar sobre a literatura e seus conceitos, ela tem o sentido de fenômeno estético e produção artística. É o fazer estético, criativo, que difere o texto literário do científico, jornalístico etc. Não é apenas o tema que toca o leitor, mas principalmente a maneira como ele é retratado, a maneira como ele interpela o seu público, os sentimentos e emoções que desperta. Não se trata apenas de dizer, mas principalmente a maneira como é dito. A capacidade de apreciar o belo, o bonito e as sensações que sentimos em contato com a obra literária se relacionam ao emprego adequado da metrificação, do ritmo, da rima, das figuras de linguagem, da articulação de personagens, estruturação do enredo etc. Olavo Bilac, poeta brasileiro que muito se esmerou em utilizar técnicas perfeitas na produção de sua literatura, expressa seu ideal de escritor no poema Profissão de fé, comparando o trabalho do poeta à produção de uma joia. Invejo o ourives quando escrevo: Imito o amor Com que ele, em ouro, o alto relevo Faz de uma flor. Por isso, corre, por servir-me, Sobre o papel A pena como em prata firme Corre o cinzel. Torce, aprimora, alteia, lima A frase: e, enfim, TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA 21 No verso de ouro engasta a rima Como um rubi. Quero que a estrofe cristalina Dobrada ao jeito Do ourives saia da oficina Sem defeito: Assim procedo. Minha pena Segue esta norma, Por te servir, Deusa serena, Serena Forma! Nota-se a preocupação estética tanto pelas palavras do poeta quanto pela apresentação das rimas e da estrutura do poema em questão. Vinícius de Moraes escreveu sonetos, sempre se preocupando com as características formais. O soneto, por natureza, deve sempre ser composto por duas estrofes de quatro versos (quartetos) e duas estrofes de três versos (tercetos), se não for assim, não será um soneto. Além disso, o escritor traz a seus poemas melodia, rima e métrica perfeita. O que nos leva a compreender: existe uma preocupação com a forma, prevista pela função estética. Você pode notar que aqui fazemos a escanção de cada verso do poema (divisão em sílabas poéticas), de maneira que se observa mesmo uma preocupação matemática do poeta ao fazer cada verso com o mesmo número de sílabas. Soneto de Fidelidade De/ tu/do ao/ meu/ a/mor/ se/rei/ a/ten/to An/tes/ e /com/ tal /ze/lo, e/ sem/pre, e/ tan/to Que/ mes/mo em/ fa/ce/ do/ mai/or/ en/can/to De/le /se en/can/te /mais/ meu/ pen/sa/men/to Que/ro/ vi/vê/-lo em/ ca/da/ vão/ mo/men/to E em/ seu/ lou/vor/ hei/ de es/pa/lhar/ meu/ can/to E/ rir/ meu/ ri/so e/ de/rra/mar/ meu/ pran/to Ao/ seu/ pe/sar/ ou/ seu/ con/ten/ta/men/to E as/sim/ quan/do/ mais/ tar/de/ me/ pro/cu/re Quem/ sa/be a/ mor/te, an/gús/tia/ de/ quem/ vi/ve Quem/ sa/be a/ so/li/dão/, fim/ de/ quem/ a/ma Eu/ pos/sa/ me/ di/zer/ do a/mor (que/ ti/ve): Que/ não/ se/ja i/mor/tal,/ pos/to /que é/ cha/ma Mas/ que/ se/ja in/fi/ni/to en/quan/to/ du/re Vinícius de Moraes UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 22 Veja que as rimas são as mesmas em cada verso das duas primeiras estrofes e se intercalam na penúltima e última estrofe. Quanto à métrica, temos um soneto decassílabo, ou seja, todos os versos têm dez sílabas poéticas, que não são contadas como na divisão de sílabas de palavras para outros fins. As sílabas poéticas fazem-se de acordo com a sonoridade, de maneira que, por vezes, a sílaba final de uma palavra aglutina-se à inicial de outra, geralmente isso acontece quando há encontro de vogais. Isso pode parecer um pouco complexo agora, mas não se preocupe, as regras de metrificação serão estudadas na segunda unidade deste material. Nesse momento, as trouxemos com o intuito de exemplificar o seu uso como uma das regras estruturais com vistas à estética literária. Apesar de a preocupação estética estar no cerne da produção literária, os textos podem ter funções práticas, como informar e fazer perceber o conhecimento. É o que veremos a seguir ao tratar da função cognitiva. 2.2 FUNÇÃO COGNITIVA Entende-se por função cognitiva aquela em que o escritor descreve a percepção do conhecimento de maneira particular, a forma pessoal como visualiza o mundo ao seu redor é o espaço em que razão e emoção se fundem. Leia o poema a seguir e observe que, além das características do gênero poesia, como o ritmo e sonoridade, a informação transmitida faz parte do cotidiano, porém o texto literário está impregnado da emoção, da percepção pessoal de uma dada realidade. O poema informa uma realidade a partir do ponto de vista do eu lírico. O bicho Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. Manuel Bandeira Analisemos agora uma reportagem que trata do mesmo tema: TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA 23 Homem cata comida no lixo perto de local de reunião da Rio+20 Ele contou que recolhe restos de carne crua para alimentar a família. Sem trabalho, ele mora nas ruas do Rio de Janeiro há oito anos. Um homem foi visto catando comida no lixo em frente ao prédio onde ocorria uma reunião sobre segurança alimentar da Rio+20. O flagrante foi feito bem em frente ao Centro de Convenções Sul América, a Cidade Nova, no Centro do Rio de Janeiro, durante uma reportagem para o Globo Rural, nesta sexta-feira (22).Como mostrou o RJTV, Luciano da Silva, de 26 anos, contou que há oito anos mora nas ruas e depende dos restos de comida para sobreviver. O que ele cata no lixo serve de alimento para toda a família. Como não trabalha, ele diz que costuma pegar no lixo pedaços de carne crua e de comida pronta. O flagrante foi feito no dia em que o documento final da Rio+20 foi divulgado. Entre os temas tratados está justamente a erradicação da pobreza. FONTE: HOMEM CATA COMIDA NO LIXO PERTO DE LOCAL DE REUNIÃO DA RIO+20. Rio de Janeiro, 22 jun. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/natureza/rio20/noticia/2012/06/ homem-cata-comida-no-lixo-perto-de-local-de-reuniao-da-rio20.html>. Acesso em: 23 abr. 2017. Nesse último texto, o tema é bastante semelhante ao do poema de Manuel Bandeira, porém é escrito de maneira impessoal, tem caráter comunicativo e não explora aspectos emotivos. Poderíamos ainda dizer, segundo algumas definições de literatura, que essa característica de sobriedade e imparcialidade diante da informação categoriza esse segundo texto como não literário. Tanto o poema quanto a reportagem têm caráter informativo, porém o primeiro imprime uma marca pessoal e podemos até dizer que, além disso, caminha para uma crítica social. Este aspecto, aliás, é trabalhado pela função político-social ou engajada, sobre a qual trataremos a seguir. 2.3 FUNÇÃO POLÍTICO-SOCIAL OU ENGAJADA Compreende-se como aquela que trata de problemáticas características de determinado contexto espaçotemporal. Conforme Paviani (2003, p. 85), “a arte em sua suprema determinação é um passado. No momento atual cabe antecedência à reflexão”. Ou seja, nessa perspectiva, a arte como função social deve prevalecer à perspectiva de existência da arte pela arte. Segundo ele, Hegel afirmava que “A ciência da arte é muito mais necessária em nossa época do que em outras nas quais a arte chegava por si mesma a obter inteira satisfação” (PAVIANI, 2003, p. 85). Contemporaneamente, a arte e a literatura adquirem o espaço de discussão político-social, retrata as carências da sociedade atual. http://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/cidade/rio-de-janeiro.html UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 24 O poema O bicho, que usamos para tratar da função cognitiva, ao mesmo tempo que explicita uma realidade de maneira pessoal, traz uma crítica social a respeito das desigualdades sociais, de forma que, além da função cognitiva, traz também a função de literatura engajada. Um autor brasileiro de bastante destaque nesse aspecto é Ferreira Gullar, definido por Costa (2017, p. 58) como escritor que tem “autenticidade temática pelo engajamento político-social; na verdade, um letal ‘punhal de fina lâmina’ quando ativista verbal, o que lhe garante lugar de destaque na poesia brasileira”. Leia o poema a seguir e observe nele a função de que estamos falando. Não há vagas O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras – porque o poema, senhores, está fechado: “não há vagas” Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço O poema, senhores, não fede nem cheira. Ferreira Gullar TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA 25 IMPORTANT E As obras costumam ter direitos autorais até 70 anos após a morte de seu autor. Ferreira Gullar faleceu em 2016. Porém, segundo Ana Beatriz Nunes Barbosa (2017), “há usos que são permitidos, MESMO NO CASO DE OBRA PROTEGIDA. Seriam estes casos os das chamadas limitações ao direito autoral: [...] • A citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra. • A reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Observação da autora deste material: Esse critério também é utilizado em outras obras que constam neste estudo, onde poemas são citadas na íntegra para fins de entendimento e análise, mas não obras completas dos autores. É muito importante saber distinguir o que é a utilização necessária para fins de estudo do simples plágio (cópia, sem o resguardo da autoria). Este último constitui crime. Publicado em 1963, o poema acima retrata problemas sociais e econômicos do país que, por ironia, continuam muitíssimo atuais, como o custo de vida, o desemprego, a falta de espaço e importância para a poesia, como o autor demonstra através da metalinguagem do poema referindo-se a ele mesmo. Afinal, nesse contexto, o poema “não fede nem cheira”. Podemos compreender a palavra poema como a beleza da vida e, num contexto social em que falta às pessoas o básico para sua subsistência e o seu tempo é ocupado com a mera sobrevivência, não há espaço para interpretar o belo ou se ocupar da arte. Outros autores, como Castro Alves, já apresentavam uma poesia engajada em Navio Negreiro, por exemplo. Veja o trecho a seguir: E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais ... Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais... Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri! No entanto o capitão manda a manobra, 26 UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? E após fitando o céu que se desdobra, Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!..." Castro Alves, também conhecido como o poeta dos escravos, retrata nesse poema a dor dos negros durante as viagens marítimas, e vai brincando entre essa dor (chora, de raiva delira, enlouquece) e elementos “lúdicos” (como a dança, a risada, a canção...). Uma combinação sarcástica e cruel, retratando uma realidade em que alguns seres humanos são torturados e têm suas vidas anuladas em prol do conforto alheio. Da maneira como está configurado, faz uma crítica feroz a essa realidade e esse jogo entre a dor e o riso que nos mostra a loucura de tal situação. O mesmo poema foi musicado por Caetano Veloso e Maria Bethânia e enaltece, além do problema representado pela poesia, toda a sua rima e melodia. Vale a pena conferir. Ao falar a respeito de literatura engajada, é nítido que o conceito de arte como expressão do belo não se desfaz da função estética, mas agrega nova função relacionada à crítica, ou seja, a literatura adquire caráter prático. Sobre isso, vamos tratar ao abordar a função pragmática da literatura. 2.4 FUNÇÃO PRAGMÁTICA Também conhecida como utilitária, passa pelo viés de uma literatura que busca outro fim além da estética, busca um fim não artístico, não sendo valorizada por si mesma apenas, mas pela sua finalidade. Analisa-se aqui a capacidade que a arte tem de pregar uma ideologia. Observamos isso desde o período romântico, em que a obra Iracema, de José de Alencar, tem um pano de fundo histórico, a começar pelo próprio título, que é um anagrama da palavra América. O romance conta ao mesmo tempo a história de amor entre Iracema e o europeu Martim. Dessa união nasce Moacir, que, filho de índia e europeu, representa a formação da identidade nacional. Outros aspectos, como a valorização da natureza e celebração das características brasileiras, elementostípicos do período romântico, são ideologias inculcadas pela obra. Esta representa ainda a chegada do branco como a quebra de harmonia existente nas comunidades indígenas, representada pelos conflitos causados pela presença de Martim. No modernismo observamos também algumas ideologias trazidas pela arte. Prega-se a ideologia de uma cultura nova, a ruptura com o que é estrangeiro para dar espaço a elementos nacionais, à valorização da cultura brasileira. Essa ruptura, porém, não se dá completamente. TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA 27 Passamos a descrever o nacional, mas após “devorar” os conceitos europeus, especialmente das artes de vanguarda, daí o conceito de antropofagismo. “Devora-se o outro”, deglute-se, “vomita-se”, restando dele apenas a forma, mas trazendo a valorização dos temas nacionais, ideologia pregada pela arte. Marcou esse período a frase de Oswald de Andrade: “Tupi or not tupi, that is the question”. Cultivar ou não o nacional. Porém, a brincadeira de substituir o tupi pelo verbo to be (ser) joga justamente com essa questão de construir uma ideologia nacional, mas sobre uma concepção artística europeia. Trouxemos aqui apenas exemplos de quando essa função lúdica ocorre, porém acontece em quaisquer textos ou obras de arte que busquem inculcar no público determinada ideologia. Retomando o termo “vomitar”, compreendemos que esse ato equivale a uma “limpeza do organismo”, uma forma de pôr para fora o que está a incomodar. Em sentido semelhante surge a função catártica da literatura, que se refere não a detritos humanos, mas à expurgação (purificação) de sentimentos e emoções através da literatura. 2.5 FUNÇÃO CATÁRTICA Conforme o Dicionário Priberam (2017), a palavra catarse foi utilizada por Aristóteles como a purificação sentida pelos espectadores durante e após uma representação dramática. Também apresenta os sentidos de libertação de emoção ou sentimento que sofreu repressão. Quando a literatura provoca esses efeitos, ela estará exercendo a função catártica. Alguns escritores sentem a catarse durante a escrita, bem como o leitor ou espectador de uma determinada obra escrita ou cinematográfica pode ter esse sentimento de catarse/purificação emocional, sentindo alívio de suas tensões e frustrações, identificando-se com determinado personagem e suas ações. Giacon (s.d., p. 6) observa que “nas peças teatrais e no cinema essa função atinge seu grau máximo pelo uso de visão e audição, contudo nos textos literários é necessário que o escritor faça o leitor percorrer um caminho tortuoso até o conflito para atingir o máximo do grau catártico de uma obra”. Um conto, por exemplo, de maneira geral é composto pela apresentação do enredo, conflito, busca pela solução desse conflito, clímax e desfecho. O clímax é o ponto alto do conto, momento de maior tensão, quando ficamos numa grande expectativa para saber o desfecho. Se compararmos a uma telenovela, esse seria justamente o ponto em que acaba o capítulo e tem-se de esperar pelo próximo capítulo, no dia seguinte. O desfecho é quando o conflito se resolve, “a justiça é feita”. O clímax é o momento de maior tensão para a personagem e também para o espectador ou leitor, já no desfecho ocorre o alívio, a descarga de toda tensão. 28 UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? A Cartomante, de Machado de Assis, conta a história do casal Vilela e Rita e seu amigo, Camilo. Rita e Camilo são amantes e este receia que Vilela tenha descoberto o caso porque o chamou à sua casa para uma conversa. O caminho de Camilo até a residência do casal é de extrema tensão, o leitor acompanha o drama psicológico do personagem durante todo o percurso. O clímax se dá no momento em que Vilela recebe Camilo e o leva até uma sala, onde se dá o desfecho da situação. O clímax cria o ápice de tensão, que é liberada com o desfecho trágico do conto. A função catártica também pode ser identificada quando o autor descarrega no texto os sentimentos guardados, talvez em busca de alívio. É o que se pode perceber em Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos. Versos Íntimos Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de sua última quimera. Somente a Ingratidão – esta pantera – Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija! Augusto dos Anjos NOTA quimera = esperança Escarro = Matéria viscosa expelida pela boca depois dos esforços da expectoração. Chaga = pancada ou ferida Afaga = acaricia Escarra = O ato de expelir pela boca matéria viscosa. TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA 29 É possível interpretar que no poema o autor coloca todo o seu rancor, sua decepção e descrença em relação ao mundo e às pessoas e, possivelmente, o desejo de uma contrapartida, como forma de vingança representada pelos dois últimos versos. A função catártica aparece de forma bastante nítida no poema. Assim como a literatura provoca no leitor momentos onde há certo “descarrego de emoções”, exercendo seu caráter catártico, pode também ter uma função lúdica, quando se apresenta como uma forma de jogo, de prazer e entretenimento, como ocorre com a função lúdica. 2.6 FUNÇÃO LÚDICA Conforme Giacon (s.d.), o autor escreve por prazer, seja como forma de trabalho, seja como forma de passatempo. Há uma ligação entre escritor e leitor, visto que o segundo também encontra o prazer na fruição da leitura, ou seja, ainda que a interação de ambos com o texto não aconteça simultaneamente, ocorre entre eles um pacto. Essa função da literatura fica bastante explícita em alguns textos de Machado de Assis, quando este estabelece um diálogo aberto com seu leitor, chamando-o à reflexão sobre o texto. Temos a seguir um excerto de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que exemplifica bem o caso. Era fixa a minha ideia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja e não esteja aí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. NOTA O exemplar do livro utilizado para a citação acima está em e-book Kindle e, por esse motivo, não possui data de publicação e numeração de páginas. Este é um exemplo nítido de autor que literalmente dialoga com o leitor como se ele estivesse à sua frente, supondo o que pensa e prevendo suas reações. Em outros textos, Machado convida seu leitor a ser um leitor ruminante, ou seja, rumina suas leituras, reflete a respeito delas. As funções da literatura que abordamos são as mais recorrentes nos materiais de Teoria literária, no entanto, alguns autores podem trazer também outras funções ou, ainda, diferentes nomenclaturas. 30 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A literatura exerce distintas funções. Retomamos a seguir cada uma delas de forma breve. o Função estética: é a responsável pelo mais recorrente dos conceitos de arte, que é a representação do belo, daquilo que é digno de contemplação, está ligada aos aspectos formais considerados ideais a cada gênero. o Função cognitiva: descreve o conhecimento de forma particular, fundindo razão e emoção. Tem caráter informativo, mas apresenta uma visão particular sobre um fato ou situação, apelando para a emotividade. o Função político-social ou engajada: preocupa-se com as problemáticas políticas e sociais, assumindo uma posição crítica e, por vezes, até militante. o Função pragmática: compreende que a literatura não é apenas produto da estética,mas deve ser utilitária. Vai além da arte e, por vezes, pode servir a ideologias específicas. o Função catártica: tem a capacidade de provocar no autor e no leitor a libertação de sentimentos ou emoções reprimidas, causando um efeito de purificação. o Função lúdica: Geralmente é representada por textos em que há um diálogo explícito entre escritor e leitor. O prazer do autor no ato da escrita é visível ao leitor. 31 1 A literatura é conhecida como a arte da palavra e, como tal, funciona como instrumento de comunicação e interação social. Há uma concepção de que o papel primordial da literatura é estético, porém observamos que ela vai além da mera contemplação e assume outras funções, como o lazer e o entretenimento, informação, reflexão, conhecimento, cultura, ou ainda, traz questionamentos políticos e denúncia de fatos sociais. Com base nesse contexto, relacione as colunas de forma a indicar as características adequadas a cada função da literatura. I- Função estética II- Função cognitiva III- Função político-social ou engajada IV- Função pragmática V- Função catártica VI- Função lúdica ( ) Comumente é representada por textos em que há um diálogo explícito entre escritor e leitor. São textos em que o prazer do autor no ato da escrita é perceptível. ( ) Provoca no leitor o sentimento de libertação de uma emoção ou sentimento reprimido, causando a purificação, alívio das tensões. ( ) A literatura, de acordo com essa função, tem um caráter utilitário. Deve ir além da arte e, por vezes, pode mesmo trabalhar a favor de determinadas ideologias. ( ) Trata de problemáticas de determinado contexto social, ou seja, traz uma discussão sobre fatos políticos e sociais. ( ) Descreve o conhecimento de forma particular, pessoal, fundindo razão e emoção, ou seja, tem caráter informativo, mas apresenta uma visão emotiva e particular. ( ) Está no fundamento daquilo que se considera arte e tem o sentido de fenômeno do belo e da produção artística. As características de cada função da linguagem são apontadas corretamente na seguinte ordem: a) ( ) VI, V, IV, III, II, I b) ( ) V, VI, IV, III, II, I c) ( ) I, II, III, IV, V, VI d) ( ) VI, I, V, II, IV, III AUTOATIVIDADE 32 2 Leia os poemas seguir e responda qual função da literatura está mais presente em cada um deles. POEMA 1 Psicologia de um vencido Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância, Sofro, desde a epigênese da infância, A influência má dos signos do zodíaco. Profundissimamente hipocondríaco, Este ambiente me causa repugnância... Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Que se escapa da boca de um cardíaco. Já o verme — este operário das ruínas — Que o sangue podre das carnificinas Come, e à vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há-de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgânica da terra! Augusto dos Anjos a) ( ) Função estética b) ( ) Função Cognitiva c) ( ) Função Político-social ou Engajada d) ( ) Função Pragmática e) ( ) Função Catártica f) ( ) Função Lúdica POEMA 2 Quando o português chegou Debaixo duma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português. Oswald de Andrade 33 a) ( ) Função estética b) ( ) Função Cognitiva c) ( ) Função Político-social ou Engajada d) ( ) Função Pragmática e) ( ) Função Catártica f) ( ) Função Lúdica POEMA 3 “Sete quedas por mim passaram, e todas sete se esvaíram. Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele a memória dos índios, pulverizada, já não desperta o mínimo arrepio. Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes, aos apagados fogos de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se os sete fantasmas das águas assassinadas por mão do homem, dono do planeta”. Carlos Drummond de Andrade a) ( ) Função estética b) ( ) Função Cognitiva c) ( ) Função Político-social ou Engajada d) ( ) Função Pragmática e) ( ) Função Catártica f) ( ) Função Lúdica