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FISIOTERPIA APLICADA À CARDIOLOGIA PROF: LEINA ORMOND PAPEL HOMEOSTÁTICO DO SISTEMA CARDIOVASCULAR Um fisiologista francês do século XIX, Claude Bernard (1813-1878), foi o primeiro a reconhecer que todos os organismos mais desenvolvidos empenham-se ativa e constantemente para evitar que o ambiente externo perturbe as condições necessárias à vida dentro do organismo. Por isso, a temperatura, concentração de oxigênio, pH, composição iônica, osmolaridade e muitas outras variáveis importantes do nosso ambiente interno são rigorosamente controlados. Tal processo de manutenção da “constância” de nosso ambiente interno ficou conhecido como homeostase. Para cumprir esta tarefa, desenvolveu-se uma elaborada rede de transporte de material: O sistema cardiovascular. Três compartimentos de líquidos, conhecidos coletivamente como água corporal total, são responsáveis por cerca de 60% do peso corporal. Esta água é distribuída entre os compartimentos intracelular, intersticial e plasmático, como indicado na Fig. 1.1. Observe que cerca de 66% de nossa água corporal estão contidos no interior das células e comunicam-se com o líquido intersticial através das membranas plasmáticas das células. Do líquido que fica fora das células (i.e., o líquido extracelular), apenas uma pequena quantidade, o volume plasmático, circula dentro do sistema cardiovascular. O sangue é composto de plasma e aproximadamente um volume igual de elementos formados (principalmente células vermelhas). O líquido plasmático circulante comunica- se com o líquido intersticial através das paredes dos pequenos vasos capilares dentro dos órgãos. Figura 1.1 O líquido intersticial é o ambiente intermediário das células individuais. (Constitui o “ambiente interno” referido por Bernard.). Tais células têm de retirar seus nutrientes assim como liberar seus produtos neste líquido intersticial, o qual, contudo, não pode ser considerado um grande reservatório de nutrientes ou uma grande “lixeira” para os produtos metabólicos, pois seu volume é menor que a metade daquele das células às quais serve. Por isso, o bem-estar das células isoladas depende sobremaneira dos mecanismos homeostáticos que regulam a composição do líquido intersticial. Esta tarefa é realizada por meio da exposição contínua do líquido intersticial ao líquido plasmático circulante “novo”. Quando o sangue passa através dos capilares, há troca de solutos entre o plasma e o líquido intersticial através do processo de difusão. O resultado final da difusão transcapilar é sempre que o líquido intersticial tende a adquirir a composição do sangue que chega. Se, por exemplo, a concentração de íons potássio no interstício de um músculo esquelético em particular fosse maior do que aquela no plasma que entra no músculo, o potássio difundir-se-ia no sangue quando passasse através dos capilares do músculo. Como isto removeria o potássio do líquido intersticial, a concentração do íon potássio diminuiria, parando de fazê-lo quando o movimento resultante do potássio para o interior dos capilares não ocorresse mais, isto é, quando a concentração intersticial atingisse à do plasma que chega. Duas condições são essenciais para este mecanismo circulatório controlar de maneira efetiva a composição do líquido intersticial: (1) deve haver fluxo sanguíneo adequado através dos capilares do tecido e (2) a composição química do sangue que chega (ou arterial) deve ser controlada para que seja a ideal para o líquido intersticial. A Fig. 1.1 mostra como o sistema de transporte cardiovascular funciona para cumprir estas tarefas. Como discutido anteriormente, as substâncias são transportadas entre as células e o plasma, nos vasos capilares dentro dos órgãos, pelo processo de difusão. Este transporte ocorre em distâncias extremamente pequenas porque nenhuma célula no corpo está localizada a mais do que cerca de 10 μm de um capilar. Com tais distâncias microscópicas, a difusão é um processo extremamente rápido que pode mover quantidades enormes de material. Contudo, a difusão é um mecanismo muito precário para mover substâncias dos capilares de um órgão, como os pulmões, para os capilares de outro órgão que pode estar a 1 m ou mais de distância. Conseqüentemente, as substâncias são transportadas entre os órgãos pelo processo de convecção, pelo qual as substâncias movem-se juntamente com o fluxo sanguíneo simplesmente porque se encontram dissolvidas ou de outra forma contidas no sangue. As distâncias relativas envolvidas no transporte cardiovascular não estão bem ilustradas na Fig. 1.1. Se a figura fosse desenhada em escala, com 1 polegada (2,54 cm) representando a distância dos capilares até as células no músculo da panturrilha, os capilares nos pulmões teriam de estar localizados a cerca de 24 km de distância! A disposição funcional geral do sistema cardiovascular encontra-se ilustrada na Fig. 1.2. Como um ponto de vista funcional, e não anatômico, está expresso nesta figura, o coração aparece em três locais: como a bomba cardíaca direita, como a bomba cardíaca esquerda e como o tecido do músculo cardíaco. É prática comum visualizar o sistema cardiovascular como (1) circulação pulmonar, composta de bomba cardíaca direita e pulmões, e (2) circulação sistêmica, na qual a bomba cardíaca esquerda fornece sangue para os órgãos sistêmicos (todas as estruturas, exceto a porção de troca gasosa dos pulmões). As circulações pulmonar e sistêmica são dispostas em série, isto é, uma após a outra. Conseqüentemente, os corações direito e esquerdo devem, cada um, bombear um volume idêntico de sangue a cada minuto. Esta quantidade é chamada de débito cardíaco. Um débito cardíaco de 5 a 6 l/min é normal para um indivíduo em repouso. Como indicado na Fig. 1.2, os órgãos sistêmicos são funcionalmente dispostos em paralelo (i.e., lado a lado) no sistema cardiovascular. Há duas conseqüências importantes deste arranjo em paralelo. Primeiro, aproximadamente todos os órgãos sistêmicos recebem sangue de composição idêntica – aquele que acabou de deixar os pulmões e é conhecido como sangue arterial. Segundo, o fluxo através de qualquer um dos órgãos sistêmicos pode ser controlado independentemente do fluxo através de outros órgãos. Assim, por exemplo, a resposta cardiovascular ao exercício de todo o corpo pode envolver aumento do fluxo sanguíneo através de alguns órgãos, redução do fluxo sanguíneo através de outros e nenhuma alteração do fluxo sanguíneo de ainda outros. Muitos dos órgãos no corpo ajudam a realizar a tarefa de recondicionar continuamente o sangue que circula no sistema cardiovascular. Papéis essenciais são desempenhados por órgãos, tais como os pulmões, que se comunicam com o ambiente externo. Como fica evidente no arranjo mostrado na Fig. 1.2, qualquer sangue que acabou de passar através de um órgão sistêmico retorna para o coração direito e é bombeado através dos pulmões, onde o oxigênio e o dióxido de carbono são trocados. Por isso, a composição gasosa do sangue sempre é recondicionada imediatamente após deixar o órgão sistêmico. Assim como os pulmões, muitos órgãos sistêmicos também servem para recondicionar a composição do sangue, embora o circuito do fluxo impeça que eles façam isto cada vez que o sangue completa um circuito. Os rins, por exemplo, ajustam a composição eletrolítica do sangue que passa por eles continuamente. Pelo fato de o sangue recondicionado pelos rins misturar-se livremente com todo o sangue circulante e os eletrólitos, bem como a água, passarem livremente através da maior parte das paredes dos capilares, os rins controlam o equilíbrio eletrolítico de todo o ambiente interno. Para isto ocorrer, é necessário que uma determinada unidade de sangue passe freqüentemente através dos rins. Na verdade, os rins (sob condições de repouso) normalmente recebem cerca de 20% do débito cardíaco, oque excede grandemente a quantidade de fluxo necessária para suprir as necessidades de nutrientes do tecido renal. Esta situação é comum nos órgãos que têm uma função de condicionamento do sangue. Os órgãos que condicionam o sangue também podem suportar, pelo menos temporariamente, reduções importantes do fluxo sanguíneo. A pele, por exemplo, pode facilmente tolerar uma grande redução do fluxo sanguíneo quando é necessário conservar o calor do corpo. A maior parte dos grandes órgãos abdominais também recai nesta categoria. A razão é simplesmente que, devido às suas funções de condicionamento do sangue, seu fluxo sanguíneo normal excede muito mais aquele necessário para manter suas necessidades metabólicas básicas. O cérebro, músculo cardíaco e os músculos esqueléticos são exemplos de órgãos nos quais o sangue flui somente para suprir as necessidades metabólicas do tecido. Eles não recondicionam o sangue para o benefício de outros órgãos. O fluxo para o cérebro e músculo cardíaco em geral é apenas ligeiramente maior do que o necessário para seu metabolismo, e eles não toleram bem interrupções no fluxo sanguíneo. Pode ocorrer perda da consciência alguns segundos após a suspensão do fluxo cerebral, e pode haver lesões permanentes no cérebro em apenas 4 min sem fluxo. De maneira semelhante, o músculo cardíaco (miocárdio) normalmente consome cerca de 75% do oxigênio fornecido a ele, e a capacidade de bombeamento do coração começa a se deteriorar entre os batimentos de uma interrupção do fluxo coronariano. Como veremos adiante, a tarefa de fornecer fluxo sanguíneo adequado para o cérebro e o músculo cardíaco recebe alta prioridade no funcionamento geral do sistema cardiovascular. Figura 1.2 O CORAÇÃO Ação de bombeamento O coração fica no centro da cavidade torácica, suspenso por suas ligações com os grandes vasos, dentro de uma bolsa fibrosa fina chamada de pericárdio. Uma pequena quantidade de líquido na bolsa lubrifica a superfície do coração e possibilita que ele se mova livremente durante a contração e o relaxamento. O fluxo sanguíneo através de todos os órgãos é passivo e ocorre apenas porque a pressão arterial é mantida mais alta do que a pressão venosa pela ação de bombeamento do coração. A bomba cardíaca direita fornece a energia necessária para mover o sangue através dos vasos pulmonares, e a bomba cardíaca esquerda fornece a energia para mover o sangue através dos órgãos sistêmicos. A quantidade de sangue advinda de cada ventrículo bombeada por minuto (o débito cardíaco, DC) depende do volume de sangue ejetado em cada batimento (o volume sistólico, VS) e do número de batimentos cardíacos por minuto (a freqüência cardíaca, FC), como se segue: DC = VS × FC Volume/minuto = volume/batimento × batimentos/minuto Por isso, todas as influências no débito cardíaco devem agir mudando ou a freqüência cardíaca ou o volume sistólico. Tais influências serão descritas em detalhes nos capítulos subseqüentes. A via do fluxo sanguíneo através destas câmaras do coração é indicada na Fig.1.3 . O sangue venoso retorna dos órgãos sistêmicos para o átrio direito através das veias cavas superior e inferior. Ele passa através da valva tricúspide para o ventrículo direito e daí é bombeado através da valva pulmonar para a circulação pulmonar através das artérias pulmonares. O sangue venoso pulmonar oxigenado flui nas veias pulmonares para o átrio esquerdo e passa através da valva mitral para o ventrículo esquerdo. Daí é bombeado através da válvula aórtica para a aorta, a fim de ser distribuído para os órgãos sistêmicos. Embora a anatomia geral da bomba cardíaca direita seja um pouco diferente daquela da bomba cardíaca esquerda, os princípios de bombeamento são idênticos. Cada bomba consiste em um ventrículo, que é uma câmara fechada circundada por uma parede muscular, como ilustrado na Fig. 1.4. As valvas são estruturalmente projetadas para permitir o fluxo em apenas uma direção bem como abrir e fechar passivamente em resposta à direção das diferenças de pressão através delas. A ação de bombeamento ventricular ocorre porque o volume da câmara intraventricular é ciclicamente mudado pela contração e relaxamento rítmico e sincronizado das células do músculo cardíaco isoladas que estão dispostas em uma orientação Fig. 1.3 Via de fluxo sanguíneo circunferencial dentro da parede ventricular. Quando as células do músculo ventricular estão se contraindo, geram uma tensão circunferencial nas paredes ventriculares que faz com que a pressão dentro da câmara aumente. Assim que a pressão ventricular excede a pressão na artéria pulmonar (bomba direita) ou aorta (bomba esquerda), o sangue é forçado para fora da câmara através da válvula de saída, como mostrado na Fig. 1.5. Esta fase do ciclo cardíaco durante a qual as células do músculo ventricular estão se contraindo é chamada de sístole. Pelo fato de a pressão ser mais alta no ventrículo do que no átrio durante a sístole, a válvula de entrada ou atrioventricular (AV) é fechada. Quando as células do músculo ventricular se relaxam, a pressão no ventrículo cai abaixo daquela no átrio, a valva AV se abre, e o ventrículo se reenche com sangue, como mostrado à direita na Fig. 1.5. Esta porção do ciclo cardíaco é chamada de diástole. A válvula de saída é fechada durante a diástole por ser a pressão arterial maior do que a pressão intraventricular. Após o período de enchimento diastólico, a fase sistólica do novo ciclo cardíaco é iniciada. Figura 1.4 Fig. 1.4 Ação de bombeamento ventricular Excitação A ação de bombeamento eficiente do coração requer uma coordenação precisa da contração de milhões de células isoladas do músculo cardíaco. A contração de cada célula é desencadeada quando um impulso elétrico excitatório (potencial de ação) passa rapidamente sobre sua membrana. A coordenação adequada da atividade contrátil das células isoladas do músculo cardíaco é atingida primariamente pela condução dos potenciais de ação de uma célula para a próxima através de sinapses (gap junctions) que conectam todas as células do coração a um sincício funcional (i.e., atuando como uma unidade sincrônica). Além disso, as células musculares em determinadas áreas do coração são especificamente adaptadas para controlar a freqüência da excitação cardíaca, a via de condução e a taxa de propagação do impulso através das várias regiões do coração. Os principais componentes deste especializado sistema de excitação e condução são mostrados na Fig. 1.5 e incluem o nodo sinoatrial (nodo SA), nodo atrioventricular (nodo AV), o feixe de His e os ramos do feixe direito e esquerdo compostos de células especializadas chamadas fibras de Purkinje. O nodo SA contém células especializadas que normalmente funcionam como o marca-passo cardíaco e iniciam o potencial de ação conduzido através do coração. O nodo AV contém células de condução lenta que normalmente funcionam para criar um pequeno atraso entre a contração atrial e a contração ventricular. As fibras de Purkinje são especializadas para condução rápida e asseguram que todas as células ventriculares se contraiam aproximadamente no mesmo instante. Influências neurais autonômicas Embora o coração possa bater inerentemente por si só, a função cardíaca pode ser profundamente influenciada pelos impulsos neurais de ambas as divisões, simpática e parassimpática, do sistema nervoso autônomo. Estes impulsos permitem que o bombeamento cardíaco seja alterado para se adequar às mudanças nas necessidades homeostáticas do organismo. Todas as porções do coração mostram-se ricamente inervadas por fibras simpáticas adrenérgicas. Quando ativos, estes nervos simpáticos liberam norepinefrina (noradrelina) nas células cardíacas. A norepinefrina interage com os receptores β1-adrenérgicos nas células do músculo cardíacopara aumentar a freqüência cardíaca, a velocidade de condução do potencial de ação, bem como a força de contração e as freqüências de contração e relaxamento. Acima de tudo, a ativação simpática age para aumentar o bombeamento cardíaco. As fibras colinérgicas do nervo parassimpático chegam ao coração atráves do nervo vago e inervam o nodo SA, o nodo AV e o músculo atrial. Quando ativos, estes nervos parassimpáticos liberam acetilcolina nas células do músculo cardíaco. A acetilcolina interage com os receptores muscarínicos nas células do músculo cardíaco, para diminuir a freqüência cardíaca (nodo SA), e diminuem a velocidade de condução do potencial de ação (nodo AV). Os nervos parassimpáticos também podem agir para diminuir a força de contração das células musculares atriais (mas não as ventriculares). Acima de tudo, a ativação parassimpática age para diminuir o bombeamento cardíaco. Em geral, um aumento na atividade do nervo parassimpático é acompanhado de uma redução da atividade do nervo simpático e vice-versa. Figura 1.5 Nodo sinoatrial Nodo atrioventricular Feixe de His Ramo esquerdo do feixe Ramo direito do feixe Músculo ventricular Fig. 1.5 Sistema de condução elétrica do coração. Mohrman, David E., Fisiologia cardiovascular. 6. ed.. Porto Alegre : AMGH, 2011.