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Prévia do material em texto

BiléTatitSapienza 
Do desabrigo á confian§a 
Daseinsanalyse e terapia 
escuta 
Asábalo Urtó 
Enano Kenwabl l |>lw - Asaupeio 
Dala ^ de Chamada 
Tumbo Regliradopor 
- 8B6llo»ece -
© by Editora Escuta para edição em língua portuguesa 
I a edição: abril de 2007 
EDITORES 
Manoel Tosta Berlinde 
Maria Cristina Rios Magalhães 
CAPA 
Imageriaestudio 
PRODUÇÃO EDITORIAL 
Araide Sanches 
Dados internacional de C a t a l o g a ç ã o na Pub l i cação ( C I P ) 
S241d Sapienza, Bile Tatit. 
Do desabrigo à confiança : Daseinsanalyse e terapia / Bile 
Tatit Sapienza - São Paulo: Escuta, 2007. 
132 p. ; 21 cm. 
ISBN 978-85-7137-261-0 
1. Psicoterapia. 2. Fenomenologia. 3. Daseinsanalyse. 
I. Título. 
C D U 615.851 
159.964.2 
C D D 157.9 
616.8917 
(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo - CRB 10/1507) 
Editora Escuta Ltda. 
Rua Dr. Homem de Mello, 446 
05007-001 São Paulo, SP 
Telefax: (11) 3865-8950 / 3675-1190 / 3672-8345 
E-mail: escuta@uol.com.br 
www.editoraescuta.com.br 
Sumário 
Apresentação 
Introdução 
Do desabrigo à confiança 
Referências 
mailto:escuta@uol.com.br
http://www.editoraescuta.com.br
Apresentação 
A autora deste livro comentou em particular sua surpresa 
com os diversos relatos de pessoas que disseram ter se 
emocionado em algum momento da leitura de seu primeiro livro, 
Conversa sobre terapia. Surpresa por não ter imaginado que um 
texto sobre este assunto pudesse tocar assim tantos leitores. 
Este efeito é fruto de sua habilidade em conceber de 
maneira convincente as histórias de pacientes e terapeutas que 
inventa para apresentar sua visão do processo terapêutico e as 
concepções filosóficas que fundamentam sua prática. 
O que percebemos de verdadeiro nas situações que cria 
justificaria a inclusão nestes livros da advertência comum em 
romances e novelas de TV: 
Esta história não é baseada em fatos reais. 
Todos os personagens, lugares e situações 
aqui representados são fictícios. 
Qualquer semelhança é mera coincidência. 
Porém, estes livros não se propõem a ser obras de ficção. 
Foram construídos simultaneamente ao processo de elaboração 
dos cursos oferecidos pela autora na Associação Brasileira de 
Daseinsanalyse, concebidos como instrumentos para refletir sobre 
a natureza da prática terapêutica fundamentada no Dasein. 
Além de nova história imaginada para alimentar essas 
discussões, Do desabrigo à confiança situa historicamente essa 
Bile Tatit Sapienza 
abordagem e introduz alguns dos principais conceitos filosóficos 
que a orientam. 
Tanto no primeiro livro quanto neste a terapia é apresentada 
como uma situação de abertura do pensamento e do coração. 
Assim, é coerente que estes textos, instrumentos de reflexão, 
também possam mobilizar nossas emoções. 
Tarcísio Tatit Sapienza 
6 
Introdução 
Do desabrigo à confiança: daseinsanalyse e terapia tem 
como propósito contribuir para a fundamentação teórica da 
terapia daseinsanalítica. Este trabalho aprofunda o tema de 
Conversa sobre terapia. 
Considero necessária esta fundamentação porque a 
Daseinsanalyse começa a se difundir entre psicólogos e 
estudantes de psicologia. Isso nos obriga a explicitar suas bases 
na fenomenologia e no pensamento heideggeriano, no intuito de 
preservar a seriedade do trabalho terapêutico e para que essa 
prática não se estabeleça num vazio de referências. Por isso, 
parte do livro traz questões básicas de ordem filosófica. 
Trago também um exemplo clínico que permite visualizar o 
andamento de uma terapia. É um caso totalmente fictício, para que 
não haja nenhuma quebra de segredo profissional. Nele retomo 
personagens que já apareceram em Conversa sobre terapia. 
Se este texto, de certa maneira, continua Conversa sobre 
terapia, aqui aparece com mais evidência o referencial da 
Daseinsanalyse. E quando se trata disto, a dificuldade já começa 
no fato de que o pensamento de Heidegger não se organiza num 
sistema de filosofia, não cabe num sistema. Não são conceitos 
passíveis de definições simples, e a consistência interna entre eles 
é de uma outra natureza. 
Por isso, falo da Daseinsanalyse aqui deixando que minhas 
ideias se organizem da forma como vão aparecendo e chamando 
7 
Bile Tatit Sapienza 
umas às outras. Assim, escolho uma apresentação que não segue 
a tradição académica da divisão em capítulos. 
Sei que muitas palavras usadas no texto são de difícil 
compreensão para quem ainda não tem proximidade com o 
pensamento heideggeriano. Mas tentar explicar cada uma delas 
equivale a um outro livro. Como essas palavras são retomadas ao 
longo do texto, o leitor pode se familiarizar com elas, e, aos 
poucos, começar a compreendê-las. Uma compreensão maior só 
virá, entretanto, com o estudo do filósofo. 
O importante aqui é mostrar a possibilidade de uma prática 
clínica fundamentada no pensamento de Heidegger; não só a 
possibilidade, mas a fertilidade desse pensamento quando o que 
se tem em vista é o cuidado da existência. 
As aspas simples que aparecem em algumas palavras 
indicam que, naquele momento, determinada palavra está sendo 
pensada ontologicamente, isto é: minha intenção ali é pensá-la 
levando em conta essencialmente a sua relação com o ser — o 
ser em sentido geral e o ser que caracteriza fundamentalmente o 
ser homem. 
Tentar falar da Daseinsanalyse fora desse pensar seria fugir 
dos seus fundamentos. Seria pretender tirar dela o que a 
caracteriza. 
Ao mesmo tempo, quando tratamos da clínica, ali está um 
trabalho que diz respeito ao ôntico, ao concreto do que acontece 
na vida de uma determinada pessoa. 
Por isso, a todo momento transitamos do ontológico para o 
ôntico e do ôntico para o ontológico, tanto na linguagem como no 
trabalho terapêutico. 
Bile Tatit Sapienza 
8 
Do desabrigo à confiança 
Por que o interesse pela fenomenologia? Ela não se constitui 
formalmente como uma teoria, é principalmente um modo através 
do qual nos aproximamos do que pretendemos investigar. Por que 
— exatamente nesta época em que o método científico tradicional 
já provou sua eficácia, eficácia essa que se baseia na objetividade 
do real, que deve poder ser quantificado, previsto para que possa 
ser controlado — cresce o interesse por um modo de investigar 
que difere daquele tradicional? 
A fenomenologia não é apenas um modo diferente de olhar 
para a realidade. Ela se sustenta num pensamento filosófico para 
o qual é o próprio conceito de realidade que é outro, numa 
epistemologia que é outra. Quando a fenomenologia diz que olha 
para o fenómeno, isso não é uma mera substituição da palavra 
fato pela palavra fenómeno; aqui o emprego da palavra fenómeno 
se baseia numa determinada compreensão do que é 'ser'. 
A concepção filosófica que dá base para a fenomenologia, 
que permite a legitimidade desse modo de olhar o real, não traz 
em si a exclusão da possibilidade e da necessidade das ciências 
positivas. Essas continuam a ter seu lugar no mundo. Mas ela 
amplia a possibilidade e a necessidade de um outro pensar, e nisto 
talvez resida o interesse que a fenomenologia desperta. 
O interesse pelo modo fenomenológico de pensar nota-se 
especialmente no âmbito daquelas coisas que, de maneira direta 
e profunda, dizem respeito ao que é especificamente próprio do 
Bile Tatit Sapienza 
humano. Entre essas coisas se destaca o próprio fenómeno da 
existência humana. 
Quando o fenómeno da existência é trazido como foco de 
uma reflexão fenomenológica, o que começa a se manifestar aí 
são as questões fundamentais da existência, e essas questões, por 
serem essenciais, surgem com um forte apelo para que sejam 
pensadas e postas em palavras. 
O fato de considerarmos fenomenologicamente a existência 
permite que, ao olharmos para ela, afastemos de nosso olhar as 
teorias psicológicas, as concepções prévias que se acumularam 
em cima desse fenómeno de que tratamos, o existir humano. Ao 
fazermos isso, o que aparece para ser visto e para ser falado é 
o essencial, é a existência mesma, nua e crua. Nesse momento,o que há de principal no existir começa a despontar com 
prioridade como tema de estudo. 
* 
10 
Em nosso caso, como terapeutas daseinsanalistas, nosso 
olhar fenomenológico para a existência é iluminado por um 
referencial heideggeriano. A palavra Dasein (Dasein), ser-aí, 
designa exatamente aquele ente para o qual 'ser' é sempre 
questão; aquele ente que é o 'aí' onde se 'dá' 'ser'; aquele cujo 
modo de ser é ser sempre 'aí'.i Aí, onde? No 'mundo';. Aquele 
cujo modo de ser é 'existindo'. É à existência humana que nos 
referimos quando dizemos a palavra Dasein. 
Esse é um modo de pensar para o qual o essencial do 
homem não é ser racional, mas sim ser destinado ao 'cuidado' 
(Sorge).É uma filosofia para a qual o homem permanece sempre 
devedor à existência, facticamente destinado a realizar sua 
existência no meio das possibilidades todas que se apresentam a 
ele e, ao mesmo tempo, limitado pelo não poder tudo e pela morte. 
É isso o que encontramos na base da existência humana quando 
dirigimos o olhar para ela. 
* 
Para quem não sabe do que se trata, a fenomenologia e a 
Daseinsanalyse parecem ser apenas propostas "alternativas" às 
formas já consagradas, e alternativas naquele sentido de "vamos 
tentar uma coisa diferente" do tradicional, um jeito mais direto e 
mais simples de atender as pessoas que vêm só em busca de 
11 
Bile Tatit Sapienza 
resolver alguns desses problemas existenciais, ou seja, segundo 
essa opinião, aquelas questões que não necessitam ser muito 
pesquisadas, analisadas. É curiosa essa maneira de pensar, pois 
o que poderia ser mais sério do que existir? 
Outros supõem que essa seja uma maneira mais "light" de 
encarar as questões, e, "light", tanto num sentido de leve, de não 
aprofundar muito, como num sentido de mais iluminada, visto que 
parece jogar mais luz nas possibilidades que se desdobram na 
vida da pessoa em vez de aprofundar no escuro do destrutivo, ^ 
censurado, do feio que está no fundo de cada um. 
Essa ideia equivocada pode ser atraente para algumas 
pessoas que procuram terapia: "Quero me conhecer melhor, tenho 
uns probleminhas pra resolver, você sabe, essa história de baixa 
auto-estima, isso está me atrapalhando; hoje em dia a competição 
é grande, e, mesmo pra se arranjar emprego, essa coisa de não 
se ter autoconfiança já elimina a gente na primeira entrevista. E, 
além de tudo, nunca é demais a gente se conhecer melhor. Por 
isso, quero alguém que trabalhe nessa linha, não quero mexer e 
nem tenho nada de muito profundo pra ficar mexendo..." 
Para alguns psicólogos iniciantes, a fenomenologia e a 
Daseinsanalyse podem surgir, num primeiro momento, como um 
pensamento mais aberto, mais solto, que toca em questões 
interessantes, envolventes: "Que demais é tudo isso! Meu, a 
gente vai longe pensando no que é pensar; no que é ser; no que 
é existir; no ser-lançado — nossa, isto até arrepia; no cuidado — 
é bonito isso do cuidado; é impressionante essa coisa da finitude 
humana, pois, afinal, é porque o Dasein é finito, é mortal, que tudo 
fica tão importante, e escolher é tão decisivo; a fragilidade da vida 
é que faz dela uma coisa valiosa. Legal colaborar para que a 
pessoa veja que pode ampliar suas possibilidades! É com isso que 
quero trabalhar com meus pacientes. É bom isso de a gente não 
precisar ficar preso a teorias..." 
* 
12 
Do desabrigo à confiança 
ó que, ao começar a atender seus pacientes, o psicólogo 
percebe, depois de algum tempo, o quanto é mais difícil trabalhar 
sem o respaldo de uma teoria de psicologia. Nem sempre é 
cómodo manter o pensamento aberto; sentir-sé solto pode ser 
vivido como desamparo. Aqueles temas que encantam e são tão 
envolventes, quando tratados em grupos de estudo, são outra coisa 
quando trazidos na condição do sofrimento concreto de alguém 
que está na sua sala e espera algo de você. A l i se rompe o 
encantamento; aquilo só dói.^Aquelas ideias de possibilidade de 
perda, de finitude, de limites, de culpa, ali, com aquela pessoa, já 
não são ideias. Aquilo está acontecendo na vida dela e é com 
você que ela quer compaitilhar.^Uma pessoa conta que o amor da 
sua vida foi embora e agora a vida não tem mais nenhum sentido; 
outra não pode ser feliz sentindo tantas culpas; há outra que 
carrega o peso de uma doença grave; aquela outra tem um amor 
impossível; outra acabou de perder um filho; há aquela que não 
pode tolerar a injustiça que sempre recai sobre ela; vem alguém 
e diz que tem tudo o que quer, mas pergunta: "Por que viver?" E 
cada pessoa conta a sua história, conta a sua vida. Se você estiver 
junto a cada uma delas, com o pensamento e o coração abertos, 
o sofrimento poderá ser seu também. E, no entanto, você não está 
ali para afundar junto. E agora? A única coisa certa é que não é 
fácil. 
* 
E o que tem a ver isso tudo com a fenomenologia ou, no 
nosso caso, com a Daseinsanalyse? Pois não importa qual seja o 
referencial do terapeuta, aquelas questões surgem mesmo em 
qualquer terapia. 
Acontece que quando há uma técnica padronizada, bem 
definida, quando existem os parâmetros de uma teoria de 
psicologia que possibilitam ver ali um certo "quadro" em que o 
paciente se encaixa, ainda que não resolva grande coisa, isso 
coloca um algo mais em que pensar, um anteparo entre a 
13 
Bile Tatit Sapienza 
experiência de sofrimento do paciente e a impotência que 
sentimos naquele momento. 
Mas em nossa maneira de trabalhar, nossa disponibilidade 
para o que chega é de tal forma que, a cada vez, sentimos como 
se aquilo estivesse acontecendo pela primeira vez no mundo, 
como se não houvesse com o que ser comparado, como se aquele 
paciente estivesse inaugurando aquela possibilidade de sofrer. 
Essa maneira de estar com o paciente é algo que 
conquistamos aos poucos, pois a tendência mais comum do 
psicólogo é querer fazer o diagnóstico. Ele, em geral, quer 
encaixar o particular do paciente no geral da teoria. Em nosso 
caso, procuramos fazer um caminho oposto: nós nos 
despreocupamos do geral da teoria e vamos em busca da 
diferença peculiar que identifica aquele paciente. 
(O que há ali são duas pessoas, uma que conta o que a faz 
sofrer e outra que escuta e procura compreender o que está 
acontecendo naquela vida. O terapeuta não está ali lidando com 
um psiquismo, querendo explicar como e por que ele funciona de 
uma tal forma. A l i ele se encontra com a existência de um ser 
humano que quer ser compreendido por alguém e quer se 
compreender melhor. Esse modo do terapeuta estar na sessão faz 
muita diferença.) Isso não deve, entretanto, ser confundido com a 
mera expressão de um comportamento afável, de um jeito 
simpático de ser com o paciente. 
É claro que o terapeuta, qualquer que seja seu referencial 
teórico, deveria mesmo ter uma postura de quem está ali para 
compreender, deveria ser capaz de empatia. 
Para nós, porém, não se trata só de uma questão de postura. 
É mais que isso. 
* 
Algo deve ser comentado aqui. Comumente, psicólogos não 
se preocupam em saber em que filosofia, em que epistemologia 
seu trabalho clínico está baseado. Os pressupostos que fundamen-
14 
Do desabrigo à confiança 
tam a psicologia, aqueles mesmos que servem de base para as 
ciências naturais, em geral, não são explicitados pelos psicólogos. 
Assim, para alguns, fica difícil distinguir em que consiste a dife-
rença fundamental da proposta fenomenológica. Concebem a fe-
nomenologia como uma maneira de trabalhar que se prende 
apenas ao que aparece, que descreve isso sem aprofundar em 
nada, mesmo porque, para eles, fenómeno é "apenas" o que apa-
rece. Acham que, ao descrever e tomar claro para o paciente o 
que se passa, a fenomenologia poderia até ajudá-lo a se entender 
melhor e a resolver alguns problemas; não mais que isso. A fe-
nomenologia lhes parece, então, simplesmente uma alternativa 
menos rígida, despreocupada com as causas dos problemas, com 
o passado, pois o que interessa é só o presente em vista do futu-
ro. Essa é uma maneira pobre de encarar a fenomenologia.Ao menos para aqueles que se propõem a trabalhar à luz da 
fenomenologia, e especialmente da Daseinsanalyse, é importante 
que se dediquem a estudar o suficiente de filosofia para que 
tenham clareza de que sua escolha está situada, está 
fundamentada num referencial filosófico e epistemológico que é 
radicalmente outro em relação àquele mais aceito 
tradicionalmente, e para que saibam que é isso que faz toda a 
diferença. 
* 
Disse antes que na sessão de terapia o terapeuta 
daseinsanalista não está lidando com um psiquismo para ser 
explicado. Isso porque, de acordo com os pressupostos de que 
partimos, nosso trabalho não visa a uma estrutura psíquica interna 
com um mecanismo de funcionamento regido por determinadas 
leis. E, se não visamos a isso, não é porque resolvemos achar que 
não é importante trabalhar com algo interno, ou porque achamos 
que fazer isso seria mais difícil, ou por pressa de eliminar sintomas. 
Se trabalhamos assim, é porque temos razões de ordem filosófica 
para tanto. 
15 
Bile Tatit Sapienza 
Concebemos que o que temos diante de nós é uma 
'existência', ou seja, nada mais e nada menos do que aquilo que 
caracteriza o ser daquele ente chamado homem. Em nossa 
concepção podemos dispensar o conceito de psiquismo, mas não 
há como ignorar que ali diante de nós alguém existe. ) 
Compreendemos a 'existência' de tal forma que para nós não 
é necessário acrescentar a ela aquela estrutura interna chamada 
psiquismo, a qual só seria necessária se nossas concepções de 
homem e de mundo se fundamentassem no pensamento 
tradicional da metafísica, que separa homem e mundo, mente e 
corpo, sujeito que conhece e objeto do conhecimento. Se fosse 
esse o caso, aquela estrutura seria necessária para tomar possível 
a explicação de como instâncias, em princípio, tão separadas 
passam a se pôr em contato, e de como, afinal, é possível que haja 
um eu que se põe em relação com a realidade extema. E seria 
necessário também, nessas circunstâncias, conceber e explicar os 
mecanismos por meio dos quais tais coisas poderiam acontecer. 
Em nossa abordagem, a existência humana é concebida 
como algo totalmente diferente da existência de todos os outros 
entes. (A noção heideggeriana de ' ex i s tênc ia ' é tal que, 
rigorosamente falando, só o homem 'existe'. Os outros entes são. 
O ente montanha é, o ente árvore é, o ente gato é. O ente 
humano 'existe'.(Este é o ente a que chamamos Dasein, ser-aí, 
que é 'ser-no-mundo'. E quando se trata desse ente, 'existência' 
significa 'abertura' para o 'ser' em geral, e é nessa 'abertura' que 
se dá 'mundo', 'mundo' que é o entrelaçamento de significados.) 
Se 'existência' já é 'ser-no-mundo', já é esse 'aberto' prévio em 
que se dá 'mundo', onde caberia em tal contexto falarmos de 
interno e externo, de dentro e fora? Dentro ou fora de quê? 
Se, onticamente no mundo, podemos nos referir a algo 
interno ou externo em relação a alguma coisa, já é porque, 
originariamente, do ponto de vista ontológico nossa 'existência' é 
essa 'abertura' compreensiva, que tem como um de seus 
caracteres existenciais básicos a 'espacialidade', o que permite ao 
Dasein poder dizer dentro, fora, perto, longe, aqui, ali, e conceber 
16 
Do desabrigo à confiança 
o espaço físico com suas dimensões. Existir é ser esse 'aberto', 
que não pode ser fora do 'mundo', porque 'precisa' de 'mundo' 
para ser, e não pode ser dentro do 'mundo' porque fora dele não 
'há ' 'mundo' em relação ao qual ele pudesse ser dentroí A 
'existência', sendo a própria 'abertura' em que 'há' 'mundo', já 
é, de modo originário, 'compreensão' do mundo, e não apenas 
uma compreensão no sentido intelectual, mas compreensão no 
sentido de abarcar o que se apresenta, e mais, é uma 
compreensão já sempre colorida por uma disposição afetiva 
ou 'afinação' relativa ao que é compreendido.)0 fato de a 
'existência ' , considerada ontologicamente, ser essa prévia 
'abertura' compreensiva e afinada é o que permite que, 
onticamente, haja todas as formas de conhecimento e todas as 
formas de emoção. 
* 
Se o fenómeno que temos diante de nós é a existência de 
alguém, isso supõe termos de lidar com tudo que está implicado 
naquele particular modo de ser-no-mundo. A l i estão todos os 
significados e todos os afetos que compõem aquele modo de 
existir, com tudo o que eles trazem de esperança e de dor. Aquela 
existência é a sua história já vivida e a que se faz momento a 
momento. Al i está um ente que, dada sua condição de ser mortal, 
está sempre deixando de ser, mas está, ao mesmo tempo, sempre 
vindo-a-ser, dada sua condição de ser história. 
Termos diante de nós a existência de alguém parece óbvio. 
Pode ser óbvio, mas não é pouco. E, quando começamos a pensar 
em que consiste o existir humano, percebemos a seriedade do que 
nos dispomos a fazer como terapeutas: com nossa falta de poder, 
compartilhar a vida de uma pessoa, procurar ajudá-la nessa coisa 
complexa, arriscada e transitória que é existir. 
Num primeiro momento, com a ideia que temos da existência 
como vir-a-ser, como desdobrar-se de possibilidades, parece que 
isso deve ser vivido ou sentido sempre como algo bom, leve, pois 
17 
Bile Tatit Sapienza 
traz a ideia de não-aprisionamento no passado, de liberdade, de 
possibilidade de rea l ização , de transformação. Mas nos 
esquecemos de que o que vem-a-ser pode ser exatamente o que 
não queríamos jamais. 
(Existir é sempre poder ser atingido pelo esperado ou pelo 
inesperado, pelo desejado ou pelo indesejado. Conceber 
teoricamente isso a respeito da existência é uma coisa, mas não 
é fácil suportar o que chega e faz sofrer. Sabemos disso por nossa 
própria experiência, e, por isso, sabemos o que o outro deve estar 
sentindo quando isso acontece com ele.) 
Esse outro que sofre pode ser o nosso paciente. Se não 
tivermos embotado nossa sensibilidade, não podemos, mesmo 
sabendo que é profissionalmente que estamos ali, apertar um botão 
que desligue em nós a compaixão, esse poder compartilhar um 
sentimento. Quem não tem essa capacidade de compartilhar não 
deve ser terapeuta, pois é sinal de que não sabe de que seu 
paciente está falando. (A palavra "sabe", do verbo saber, tem a 
mesma etimologia de "sabor", e, nesse sentido, o saber tem a ver 
como "saber o gosto" daquilo que está sendo falado.) 
(Compartilhamos, mas não é bom que permaneçamos 
quebrados na dor do paciente, pois ele precisa de nós inteiros. Ou 
seja, não é fácil, e é bom que os jovens terapeutas saibam disso.) 
* 
Trabalhar como terapeuta não é, como parece para alguns, 
manusear Uma meia dúzia de conceitos. Conceitos que, quando 
foram pensados dentro de algumas teorias, tiveram sua razão de 
ser, têm ainda valor, mas, algumas vezes, só atrapalham o enca-
minhamento da compreensão ejn direção a coisas mais fundamen-
tais no caso daquele paciente.j Eles atrapalham justamente porque 
parecem ser tão bons, e assim se instalam no pensamento do te-
rapeuta e bloqueiam a procura por outros significados.^) 
Esses conceitos a que me refiro dizem respeito a algumas 
ideias pertencentes ao repertório dos psicólogos, algumas das 
18 
Do desabrigo à confiança 
quais já são familiares também a muitos pacientes, pois elas estão 
na mídia. Quem não ouviu falar, por exemplo, da famosa "auto-
estima", que, segundo dizem, é um perigo quando está baixa? Fala-
se disso como se se tratasse de uma baixa taxa de plaquetas ou 
de glóbulos vermelhos no sangue. E do quanto é ruim não saber 
impor limites aos outros? Dizem que todo mundo invade quando 
alguém não sabe pôr limites. E das chamadas vantagens 
secundárias? Desconfie de quem é capaz de algum sacrifício, 
sempre há algo suspeito por trás, é o que dizem. E da clássica 
insegurança? Aprendemos que ela está por trás daquele que 
parece tímido, mas mostrar que é muito seguro também pode ser 
insegurança. E da tão moderna somatização? "Engolir" as coisas 
de que não se gosta pode dar gastrite ou outros problemas de 
aparelho digestivo. Atualmente, todo mundo "sabe" disso. 
Umpouco antes estava falando de filosofia, de existência, e, 
de repente, estou aqui falando, se bem que de uma forma 
caricatural, de coisas como gastrite, auto-estima. Mas ter feito 
essa passagem de um assunto para outro pode ser bom para nos 
lembrarmos de que, quando se trata do existir humano, está tudo 
junto mesmo. 
Sofrer de gastrite, por exemplo, é uma possibilidade daquela 
pessoa que existe diante de nós, visto que a 'existência' tem 
como um de seus caracteres fundamentais a 'corporeidade' (um 
existencial), e ser corpo supõe ter um aparelho digestivo que pode 
ser atingido. Mas o que significa o fato de aquela pessoa em 
especial manifestar sua gastrite ou piorar dela em certas 
situações? Que situações são essas? Como é essa forma de ser 
no mundo que tão nitidamente mostra a vulnerabilidade daquele 
corpo sob essa forma de mal-estar? 
E, quanto àquela outra pessoa que se queixa de uma auto-
estima baixa, por que ela se vê tão sem valor? Essa maneira como 
ela se compreende e a tristeza que sente por isso são modos 
possíveis de realizações ônticas de caracteres ontológicos básicos 
do Dasein (existenciais), no caso, 'compreensão' e 'afinação'. 
São maneiras concretas de compreender e de sentir si-mesmo e 
19 
Bile Tatit Sapienza 
mundo. Concretamente, como aquela pessoa acha que ela 
precisaria ser para então valer alguma coisa? Por que isso que ela 
acha que precisaria ser é tão importante para ela? Por que em sua 
vida ela está tão presa nesses parâmetros, quem vale mais e 
quem vale menos? 
É importante que o terapeuta se lembre de que as queixas 
e as questões trazidas por alguém devem ser consideradas e 
compreendidas junto àquela história pessoal. 
/No enfoque da fenomenologia, dito aqui numa linguagem bem 
simples e coloquial, a primeira recomendação para a compreensão 
de questões que se colocam diante de nós é: livre-se da sedução 
da facilidade das ideias já prontas que, à força de serem repetidas, 
acabam por se impor a você e fique atento ao fenómeno. ] 
E o que é estar atento ao fenómeno? O que é fenómeno? O 
que é fenomenologia? 
Podemos sentir algum embaraço para responder a essas 
perguntas quando elas nos são feitas de repente. É frequente que 
depois da nossa resposta a pessoa não tenha entendido nada, ou, 
ao contrário, conclua que a fenomenologia é alguma coisa 
completamente simplória. Sabemos que se trata de suspender as 
teorias e voltar para as coisas mesmas. E o que são as coisas 
mesmas? E o que mais? 
20 
A palavra fenomenologia já foi utilizada com sentidos 
diferentes do que tem hoje. 
Lambert, em 1764, emprega essa palavra para se referir a 
uma teoria das aparências. 
Kant, numa carta a Lambert, em 1770, retoma o termo ao 
designar como phaenomenologia generalis a disciplina 
propedêutica que deveria preceder a metafísica. 
Em 1807, Hegel escreve Fenomenologia do espírito, e a 
partir daí esse termo entra na tradição filosófica. Diferentemen-
te de Kant, para quem o absoluto não é atingível pelo conhecimento, 
Hegel concebe o absoluto como cognoscível e qualifica-o como 
o Espírito. A fenomenologia é para ele a filosofia do absoluto ou do 
Espírito. É a retomada do caminho dialético que o Espírito percorre 
no desenrolar da história; ela mostra como, em cada momento da 
história, o absoluto está sempre presente em todas as formas de 
experiência: religiosa, estética, ética, jurídica, prática, política etĉ ) 
Historicamente, essa palavra aparece com alguns outros 
significados também. Mas o movimento de pensamento que no 
século XX traz o nome de fenomenologia se inicia com Husserl. 
* 
É com Edmund Husserl (1859-1938) que a fenomenologia 
passa a se referir a uma filosofia mais completa e especialmente 
21 
Bile Tatit Sapienza 
interessada na epistemologia, ou seja, na teoria do conhecimento. 
/• A questão de Husserl é principalmente chegar às essências dos 
atos de consciência pelos quais somos capazes de lembrar, de 
imaginar, de perceber, de julgar etc, e, enfim, chegar à essência 
do que é o conhecimento. Esse é o objeto principal de sua 
fenomenologia.) 
Ao trabalhar com a noção de intencionalidade da 
consc iênc ia , Husserl nos abre um caminho. Esse termo 
intencionalidade foi usado na Idade Média, mas é redefinido pelo 
filósofo e psicólogo Franz Brentano, com quem Husserl estudou. 
Brentano, que queria fazer da psicologia uma ciência empírica, 
emprega o termo intencionalidade como o que distingue o psíquico: 
toda experiência psicológica contém um objeto visado ou um objeto 
intencional. Por exemplo, pensamento é sempre pensamento sobre 
algo, é dirigido a algo; desejo é sempre desejo de algo, memória 
é sempre lembrança de algo. 
Pensar os atos de consciência (devemos lembrar que 
consciência não está sendo considerada naquele sentido que 
adquiriu depois, como algo que se opõe a inconsciente) como 
intencionais traz uma perspectiva diferente com relação a uma 
outra concepção de consciência, ou seja, de consciência como 
encapsulada no sujeito, separada do objeto, que só num segundo 
momento entraria em relação com o objeto, com o mundo. 
Considerar a consciência como intencional significa dizer 
que consciência já é sempre consciência de mundo, e mundo já 
é sempre mundo para consciência.^ 
i Se o objeto é objeto para a consciência e a consciência é 
consciência do objeto, o que temos é sempre objeto-percebido, 
objeto-pensado, objeto-imaginado, objeto-rememorado etc. Fora da 
correlação consciência-objeto não há nem consciência nem objeto. 
A fenomenologia deveria elucidar a essência dessa correlação, a 
essência do conhecimento, j 
A ênfase dada por Husserl à intencionalidade é muito impor-
tante, pois nos aproxima da possibilidade de compreendermos a 
consciência como aberta para o mundo. (Lembremos aqui que, 
22 
Do desabrigo à confiança 
depois, Heidegger vai falar no ser aberto num sentido mais radi-
cal. Dasein é a abertura em que se 'dá' mundo. Dasein é esse 
aberto, é ser-no-mundo.) 
Embora a fenomenologia que fazemos na Daseinsanalyse 
não seja a mesma de Husserl, não podemos nos esquecer de que 
a fenomenologia deve a ele algumas características básicas do 
método de abordagem ao fenómeno que nos é dado para 
compreender, por exemplo, a suspensão fenomenológica e o 
"voltar às coisas mesmas". 
Para Husserl, a fenomenologia deverá seguir um caminho 
que não é aquele das especulações metafísicas nem aquele do 
raciocínio das ciências positivas. Ele pede o retorno à intuição 
originária da essência do que se apresenta como evidência para 
a consciência. 
( Em seu caminho para a análise dos fenómenos que queria 
investigar (relativos à essência do conhecimento), Husserl propõe 
um método que comporta dois momentos: a redução eidética 
(eidos-essênciã) e a redução fenomenológica. 
A redução eidética possibilita que possamos ir além da 
consciência de objetos individuais e concretos e cheguemos à 
consciência de puras essências, à intuição do eidos da coisa, 
aquilo que nela é essencial e invariável. Chegamos a isso quando, 
diante de um fenómeno, imaginativamente, retiramos dele tudo 
aquilo que pode ser retirado sem que com isso ele deixe de ser o 
que é (variação eidética); ao nos depararmos com algo (o 
invariante) que não pode ser excluído dele, algo sem o que ele 
deixaria de ser aquele fenómeno, nesse momento chegamos à sua 
essência. 
Para alcançar a essência, então, o que se faz é reduzir o 
fenómeno; reduzir, nesse caso, é purificá-lo de tudo o que ele 
comporta de inessencial. 
(Quanto à redução fenomenológica , esta suspende 
concepções e julgamentos prévios a respeito daquilo que se deseja 
investigar e procura se prender à evidência do que se apresenta 
para a consciência. Quando tudo aquilo que não é evidente à 
23 
Bile Tatit Sapienza 
consciência é suspenso, o que sobra, ou seja, o resíduo da redução 
fenomenológica, é o fenómeno na consciência. ^ 
No caso de Husserl, seu interesse é pelos próprios atos de 
consciência, cuja evidência na consciência deve lhe dar as basesde elaboração de sua teoria a respeito da essência da consciência 
ou do eu e da essência do que é conhecimento. 
O eu e o conhecimento aos quais Husserl se refere não são 
aqueles estudados pela psicologia.jSua preocupação vai além da 
esfera da experiência psicológica do ato de conhecer, isto é, vai 
além daquilo que seria imanente à experiência da consciência 
empírica; ele parte para a concepção da consciência que 
transcende a experiência empírica, ou seja, a consciência pura, 
consciência essa que é constituinte do mundo, a consciência 
transcendental. 1 
l Nesse nível, então, a redução fenomenológica torna-se 
redução transcendental, que consiste nesse esforço para 
suspender a atitude natural diante do mundo,] atitude essa que é 
própria tanto do homem comum em seu viver diário como do 
cientista, para os quais é óbvio que o mundo está aí fora e cabe 
à consciência representá-lo. ^Na redução transcendental, fica 
suspensa a maneira natural e cotidiana de ver o mundo, e este 
passa a ser visto como fenómeno puro para a consciência pura. 
Essa redução implica pôr entre parênteses todos os julgamentos 
concernentes à existência do mundo, ou seja, implica a suspensão 
(épokhê) de todo julgamento a propósito do mundo. (O mundo 
não é pressuposto, nem negado, nem afirmado.), 
* 
A fenomenologia passa a ter outras características com 
Heidegger (1889-1976), assistente e depois sucessor de Husserl 
na Universidade de Freiburg. 
(Heidegger (1971) expõe seu pensamento a respeito do que 
devem ser considerados fenómeno efenomenologia no parágrafo 
7 de Ser e tempo, sua obra de 1927.\ 
24 
Do desabrigo à confiança 
Nesse trecho ele diz que o conceito de fenómeno pode ser 
pensado, num sentido formal, como o que se mostra em si mesmo. 
Nesse caso, o sentido formal de fenomenologia é "permitir ver o 
que se mostra, tal como se mostra por si mesmo, efetivamente por 
si mesmo" (p. 45). Mas, fenomenologicamente, o que deve ser 
chamado fenómeno é "aquilo que imediata e regularmente justo 
não se mostra, aquilo que, ao contrário do que imediata e 
regularmente se mostra, está oculto, mas é algo que pertence por 
essência ao que imediata e regularmente se mostra, de tal sorte 
que constitui seu sentido e fundamento" (p. 46). O ser dos entes 
é aquilo que permanece oculto, volta a estar encoberto ou só se 
mostra "desfigurado". Pode estar tão encoberto que chega a ser 
esquecido e então não se pergunta pelo ser e seu sentido. 
(Assim, para Heidegger, em Ser e tempo, é o ser dos entes 
o que deve tornar-se fenómeno, é isso o que a fenomenologia 
deve "permitir ver". Justamente porque os fenómenos não são 
dados imediatamente, é necessária a fenomenologia. Fenomeno-
logia é a forma de chegar ao que deve ser tema da ontologia. "A 
ontologia só é possível como fenomenologia" (p. 46). ) 
Heidegger diz também, em Ser e tempo, que para o 
esclarecimento dos problemas da ontologia, de modo a chegar ao 
problema principal, que é a pergunta que interroga pelo sentido do 
ser em geral, surge a necessidade de uma ontologia fundamental 
que tenha como tema aquele ente que é ôntico-ontologicamente 
especial, o "ser-af'(a fenomenologia do "ser-af' é hermenêutica, 
no significado primitivo dessa palavra como interpretação^ E a 
hermenêutica como interpretação do ser do "ser-af' tem também 
Um sentido de uma analítica da "existencialidade" da existência. 
( Assim, para Heidegger a fenomenologia se torna uma 
ontologia e uma hermenêutica.) 
* 
É importante esclarecer em que sentido são tomadas as 
palavras ontologia e hermenêutica. 
25 
Bile Tatit Sapienza 
Em Ontologia: hermenêutica da facticidade, livro anterior 
a Ser e tempo, Heidegger (1999) diz que a palavra ontologia que 
aparece no título apenas indica que aquilo que vai ser investigado 
e a respeito do que se vai falar é o ser. 
Nesse livro há um histórico do uso da palavra hermenêutica, 
cujo resumo veremos aqui. 
Hermeneutiké, hermenêutica, como saber ou arte, deriva-se 
de hermeneuein, hermeneia, hermeneus (interpretar, interpretação, 
intérprete). 
Essa palavra ganha vários sentidos no decorrer do tempo. 
Liga-se primeiramente ao nome do deus grego Hermes, o 
mensageiro dos deuses. 
O sentido de hermeneus como mensageiro, intérprete, 
aquele que comunica, já aparece em Platão: Os poetas não são 
outra coisa que os mensageiros dos deuses. E os rapsodos, que 
recitam o que foi composto pelos poetas, são mensageiros dos 
mensageiros. 
Um escrito de Aristóteles, que trata do logos como o que 
revela os entes e nos familiariza com eles, nos foi transmitido com 
o título Peri hermeneias. Neste nosso contexto, a palavra 
hermeneia nesse título só é importante para nós pelo que ela nos 
diz sobre a história dos significados desse termo. 
Com os bizantinos, hermeneuein passa a corresponder ao que 
chamamos "significar". 
Filon apresenta Moisés como hermeneus, intérprete, 
mensageiro de Deus. 
Santo Agostinho fala de como o homem deve se aproximar 
da interpretação de passagens ambíguas das Escrituras: com 
piedade, temor a Deus e também equipado com o conhecimento 
de línguas. 
No século XVII aparece o título Hermenêutica sacra, a 
interpretação de textos sagrados. 
Com Schleiermacher (1768-1834), hermenêutica toma-se a 
arte de entender o discurso do outro, uma disciplina em conexão 
com a gramática, a retórica e a dialética. 
26 
Do desabrigo à confiança 
Dilthey (1833-1911) adota o conceito de hermenêutica de 
Schleiermacher, definindo-a como "formulação de regras de 
entendimento". 
(Em relação ao termo hermenêutica, Heidegger não o 
emprega no significado moderno; emprega-o ligado ao seu 
significado original, isto é, como interpretação, como comunicação. 
E o que ele visa nessa interpretação é a facticidade da existência.) 
A existência, em seu próprio caráter ou estrutura de ser, é 
'aí ' , é o 'aí ' , é 'ser-aí'. E o modo ou o "como" ela é 'aí' é tendo 
de ser "em cada caso"/A expressão facticidade significa que a 
existência é sempre esta, a minha, a de cada um; é cada um de 
nós que é lançado na existência, no ser-possibilidade de si mesmo, 
no ter de arcar com o seu existir.) 
Sendo fácueamente o 'aí', a existência interpreta, a partir de 
si mesma e para si mesma, seu 'ser-aí'. 
(A facticidade da exis tência é não só suscetível de 
interpretação, mas também necessitada de interpretação; ela 'é ' 
na interpretação.) 
Na temporalidade cotidiana, o possível ser-com-propriedade 
da existência se mantém oculto ou encoberto, e o que prevalece 
é um modo de ser na impropriedade que se expressa, por 
exemplo, em concepções a respeito do que é a existência (em que 
se incluem as contribuições da filosofia e da consciência 
histórica). Há concepções sobre ela, mas a existência, ela-mesma, 
se distancia de si e então Dasein se aliena de si.(Caberá à 
hermenêutica da facticidade a tarefa de perseguir e encontrar a 
alienação de si mesmo em que Dasein é enredado, isto é, a tarefa 
de fazer o Dasein, que é em cada caso, acessível a ele mesmo 
com relação ao caráter de seu ser, de comunicar Dasein a si 
mesmo^m outras palavras, a hermenêutica tem a tarefa de fazer 
a existência acessível a ela mesma (Heidegger, 1999). 
A hermenêutica de Heidegger diz respeito a uma questão 
relativa à facticidade como caráter ontológico do Dasein. De sua 
27 
Bile Tatit Sapienza 
fenomenologia hermenêutica resulta, em Ser e tempo, a analítica 
da 'existência'. 
* 
^Quanto a nós, como terapeutas, o foco do nosso trabalho é 
a pessoa que nos procura porque a existência dela, exatamente 
a dela, está precisando ser cuidadalj É o seu ser, é o sentido da 
sua vida que está em jogo, que precisa ser mais bem 
compreendido; algo ali naquela história se complicou. E a analítica 
do Dasein, ou seja, da 'existência', tal como foi feita em Ser e 
tempo, nos ajuda na compreensão do existir daquela mulher, 
daquele homem, daquela criança que chega até nós. 
E importante lembrarmos aqui uma confusão que geralmente 
surge. O fato de mantermos esse foco e o usofrequente da 
palavra existência têm possibilitado que o que fazemos na clínica 
seja equivocadamente chamado por alguns de psicologia 
existencial. 
Mas a Daseinsanalyse não é uma forma de psicologia que 
se distinguiria pela preocupação com a existência de cada um. Ela 
não é uma teoria de psicologia. 
Como psicólogos que somos, e devemos ser por formação, 
conhecemos o que é a psicologia; sabemos que, como uma 
ciência , a psicologia tem suas bases nos alicerces que 
fundamentam as ciências, que se derivaram da tradição que veio 
da metafísica. Fazemos uso das contribuições que vêm da 
psicologia, mas o lugar de nossa origem é outro. 
Nossa proveniência é de um modo de pensar para o qual 
existir é 'ser-no-mundo'. Partir dessa concepção heideggeriana de 
'ser-no-mundo' significa partir de algo totalmente diferente do que, 
tradicionalmente, tem sido o fundamento filosófico e 
epistemológico das teorias psicológicas. 
* 
28 
O fato de ter trazido a existência do Dasein para a cena ao 
fazer filosofia tem favorecido que Heidegger seja visto como um 
filósofo existencialista, embora ele mesmo não se considere como 
tal, visto que sua questão principal é outra. 
Sendo assim, é importante que nos aproximemos aqui daquilo 
que o pensamento dos filósofos existencialistas tem representado. 
Isso pode nos ajudar a compreender melhor o que distingue a 
Daseinsanalyse do existencialismo. 
* 
(o existencialismo é um movimento filosófico e literário que 
se desenvolve no século XX, particularmente na França. De um 
modo bem geral, caracteriza-se como um pensamento que não se 
preocupa em se organizar em sistemas; não se atém a definir 
qualidades humanas universais abstratas, mas se detém no fato de 
cada indivíduo ser único; distancia-se do primado da razão; 
tonsidera a 'existência como um estar lançado no mundo, 
precisando fazer escolhas e ao mesmo tempo sempre imerso na 
situação concreta; chama a atenção para o existir de modo 
autênt ico; traz para o centro da compreensão da vida a 
fragilidade, a liberdade, a angústia, o ser destinado a morrer.) 
Pascal e Kierkegaard são considerados precursores do 
existencialismo. 
29 
Bile Tatit Sapienza 
* 
Blaise Pascal, pensador do século XII , importante em todas 
as áreas às quais se dedicou, destaca-se como matemático, físico, 
filósofo e escritor francês. Convertido ao cristianismo, em seus 
cinco últimos anos de vida anota seus pensamentos, que seriam 
destinados a compor uma obra sobre religião. Essas anotações, 
embora incompletas, foram reunidas e publicadas com o nome de 
Pensamentos (2001). 
Alguns exemplos de seus pensamentos: 
622 - Tédio 
"Nada é mais insuportável para o homem do que estar em 
pleno repouso, sem paixões, sem afazeres, sem divertimento, sem 
aplicação. 
Ele sente então todo o seu nada, seu abandono, sua 
insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. 
Imediatamente -nascerão do fundo de sua alma o tédio, o 
negrume, a tristeza, a mágoa, o despeito, o desespero" (p. 268). 
(Pascal emprega o termo "divertimento" para tudo aquilo que 
distrai o homem de pensar em seu nada (di-vertere = se afastar 
de), em que se incluem não só as distrações como os jogos, a 
dança, as conversas, mas também as atividades mais sérias como 
o trabalho, as altas funções, as pesquisas da ciência.) 
200 - "O homem não é senão um caniço, o mais fraco da 
natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo 
inteiro se arme para esmagá-lo; um vapor, uma gota de água 
bastam para matá-lo. Mas, ainda que o universo o esmagasse, o 
homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata, pois ele 
sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o 
universo de nada sabe. 
Toda a nossa dignidade consiste pois no pensamento..." 
(p. 86) 
30 
Do desabrigo à confiança 
113 - Caniço pensante 
"Não é do espaço que devo procurar a minha dignidade, mas 
da ordenação do meu pensamento. Não terei vantagem em pos-
suir terras. Pelo espaço, o universo me compreende e me engo-
le como a um ponto: pelo pensamento, eu o compreendo" (p. 40). 
114 - "A grandeza do homem é grande por ele conhecer-se 
miserável; uma árvore não se conhece miserável. » 
É então ser miserável conhecer-(se) miserável, mas é ser 
grande conhecer que se é miserável" (p. 40). 
427 - ... "Não sei quem me colocou no mundo, nem o que 
é o mundo, nem o quê sou eu mesmo; estou numa ignorância 
terrível de todas as coisas; não sei o que é o meu corpo, nem 
meus sentidos, nem minha alma e mesmo essa parte de mim que 
pensa o que eu digo, que faz reflexão sobre tudo e sobre si 
mesma, e não se conhece mais do que o resto (p. 167). 
Vejo esses espantosos espaços do universo que me 
encerram, e me encontro atado a um canto dessa vasta extensão 
sem que saiba por que estou colocado neste lugar de preferência 
a outro, nem por que esse pouco de tempo que me é dado para 
viver me é atribuído neste ponto de preferência a outro de toda 
a eternidade que me precedeu e de toda aquela que vem após 
mim. Só vejo infinidades por todas as partes, que me encerram 
como a um átomo e como a uma sombra que não dura senão um 
instante sem retorno. Tudo que conheço é que devo em breve 
morrer; mas o que ignoro mais é essa morte mesma, que não 
posso evitar..." (p. 168). 
423 - "O coração tem razões que a razão desconhece; sábe-
se disso em mil coisas..." (p. 164). 
424 - "É o coração que sente a Deus, e não a razão. Eis o 
que é a fé. Deus sensível ao coração, não à razão" (p. 164). 
31 
Bile Tatit Sapienza 
199 - Desproporção do homem 
"... Pois afinal que é o homem na natureza? Um nada com 
relação ao infinito, um tudo com relação ao nada, um meio entre 
o nada e o tudo, infinitamente afastado de compreender os 
extremos; o f im das coisas e seus princípios estão para ele 
invencivelmente escondidos num segredo impenetrável... (p. 80). 
... A nossa inteligência ocupa, na ordem das coisas 
inteligíveis, a mesma posição que o nosso corpo na extensão da 
natureza..." (p. 82). 
* 
Sõren Kierkegaard, filósofo e teólogo dinamarquês do século 
XIX, escreve contra os sistemas filosóficos tradicionais, especial-
mente o hegelianismo. Diz que os sistemas são formas de procu-
rar a objetividade; a verdade, porém, não está na objetividade. No 
pensar, o que há é um esforço constante, em que as questões não 
recebem respostas, mas permanecem no estado de questionamen-
to. O resultado inevitável da reflexão é chegar a paradoxos. 
Para ele, Deus ou qualquer relação do indivíduo com Deus 
não cabem dentro de nenhum sistema filosófico. 
O homem se caracteriza pelo desespero, que tem origem 
nas contradições da sua existência e na sua distância de Deus: "O 
homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de 
eterno, de liberdade e de necessidade." 
Diante do "penso, logo sou" de Descartes, ele escreve: 
"Mais eu penso, menos sou, e menos eu penso, mais sou." 
Entre seus livros estão Conceito de angústia e Tratado do 
desespero. Diz que só depois de ter atravessado a angústia e 
depois de ter sofrido os assaltos do desespero o homem atingirá 
o que é verdadeiro. 
Kierkegaard distingue três estados de vida: o estético (do 
prazer), o ético e o religioso. Vive uma existência cristã, e quando 
diz "eu não sou cristão" é que não se sente digno do cristianismo 
profundo tal como ele concebe. 
32 
Do desabrigo à confiança 
Ele descreve a existência religiosa como interioridade, 
diálogo íntimo entre o homem e Deus, o Todo-Outro. A existência 
é a tensão angustiada em direção à transcendência. 
Diz que o cristianismo, como uma religião da transcendência, 
funda-se sobre um paradoxo para a razão, ou seja, a afirmação 
de que Deus, o eterno, se encarnou em Jesus Cristo. Mas quando 
está presente a paixão da fé, a razão pode reconhecer seus 
próprios limites e aceitar esse paradoxo. Isso, que é um escândalo 
para a razão, é o caminho para a fé. A fé não é a certeza diante 
de ideias claras e distintas, mas um risco; é preciso um salto para 
a fé. Ela é entremeadade incerteza e de não-crença. 
Kierkegaard frequentemente usa o verbo existir (at 
existere), num sentido especial, para se referir à existência 
humana. Assim, Deus não "existe", embora seja a eterna 
realidade. Descreve a existência humana como um processo 
inacabado, no qual o "indivíduo" (um conceito-chave em seu 
pensamento) deve se responsabilizar por conquistar uma 
identidade como um eu por meio de escolhas livres. 
Ao se referir ao indivíduo autêntico, fala de como isso custa 
sofrimento e da necessidade de esse indivíduo permanecer só, e, 
se necessário, contra a "multidão". 
* 
(É após a Segunda Guerra Mundial que o existencialismo se 
afirma como um movimento cultural importante^ Não só faltam 
respostas para tanta perplexidade diante daqueles acontecimen-
tos como a própria maneira de perguntar parece que precisa ser 
diferente. Não bastam os grandes sistemas filosóficos de até então. 
(Do ponto de vista filosófico, é a fenomenologia que possibilita 
o desenvolvimento do existencialismo. As ideias de Husserl já 
estão presentes, por exemplo, a proposta da redução 
fenomenológica, que suspende os sistemas de interpretação e 
pretende ir "às coisas mesmas". A existência humana pode, então, 
passar a ser alvo de uma reflexão fenomenológica. \ 
33 
Bile Tatit Sapienza 
* 
( Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo e escritor francês, é 
influenciado pela fenomenologia de Husserl e pelo pensamento de 
Heidegger. j 
Publica ensaios: A imaginação, O imaginário, Esboço de 
uma teoria das emoções. Suas principais obras filosóficas são O 
ser e o nada e Crítica da razão dialética. Na literatura, o 
romance principal é A náusea. Entre as peças de teatro estão 
Entre quatro paredes, As moscas, Mortos sem sepultura, O 
diabo e o bom Deus. 
(Em sua obra filosófica O ser e o nada, Sartre (1943) se 
dedica a fazer uma fenomenologia do ser. Considera o ser como 
ser-em-si, como ser-para-si e como ser-para-o-outro. São regiões 
do ser. ) 
- Ser-em-si 
, 0 ser-em-si é o ser repleto de si mesmo, e, precisamente por 
isso, é opaco a si mesmo, e não poderia ser presente a si. ) 
/ - Ser-para-si — consciência^ 
Para que o ser possa ser presente a si, é preciso que haja 
algum afastamento, pois "presença a" implica dualidade, alguma 
separação ao menos virtual. "A presença do ser a si implica um 
descolamento do ser com relação a si. (...) a presença a si supõe 
que uma fissura impalpável se introduziu no ser. Se ele é presente 
a si, é que ele não é completamente si.^Á presença é uma 
degradação imediata da coincidência, pois ela supõe a separação. 
Mas se perguntarmos agora: que é o que separa o sujeito de si 
mesmo, somos obrigados a confessar que é nada" (p. 113). (...) 
"O nada é o pôr em questão do ser pelo ser, quer dizer, justamente 
a consciência ou o para-si" (p. 115). 
Ao abordar isso que ele chama de ser-para-si, ou seja, a 
consciência, Sartre traz como tema a realidade humana. 
-, Ser-para-o-outro 
". . . tenho necessidade do outro para apreender plenamente 
todas as estruturas de meu ser; o para-si remete ao para-o-outro" 
(p. 260). 
34 
Do desabrigo à confiança 
i Sartre dedica muitas reflexões a respeito da questão do 
corpo humano. 
"... o corpo — nosso corpo — tem como caráter particular 
ser essencialmente o conhecido pelo outro: o que eu conheço 
é o corpo dos outros, e o essencial do que sei do meu corpo vem 
da maneira como os outros o vêem. Assim, a natureza de meu 
corpo me remete à existência do outro e ao meu ser-para-o-outro. 
(...) pois a realidade humana deve ser em seu ser, num só e 
mesmo surgimento, para-si-para-o-outro" (p. 255). ) 
Segundo ele, o homem não possui uma essência definida a 
priori (por exemplo,, animal racional). O ser humano surge na 
espontaneidade e só depois se define por aquilo que ele vem a ser 
no devir da existência. Nesse sentido, a existência precede a 
essência. 
Quanto à liberdade, ele diz que ela não é algo que o homem 
tem como uma capacidade humana. A liberdade é algo que o 
homem é. Ela é originária. Entre suas possibilidades o homem 
escolhe, assume um projeto de existência, o seu modo de ser no 
mundo, ij 
O paradoxo da liberdade consiste em que "... só há liberdade 
em situação e só há situação pela liberdade. A realidade humana 
encontra em toda parte resistências e obstáculos que ela não 
criou; mas essas resistências e esses obstáculos só têm sentido 
na e pela escolha livre que a realidade humana é" (p. 534). E só 
diante de um fim livremente posto pela realidade humana que o 
dado do mundo pode se mostrar como algo capaz de constranger 
a liberdade ou como algo favorável a ela. 
(Sartre diz: "... é na angústia que o homem toma consciência 
de sua liberdade ou, se se prefere, a angústia é o modo de ser da 
liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade 
é em seu ser em questão para ela mesma" (p. 64). ) 
O homem é condenado a ter de escolher. Ele é sempre 
responsável. O ato "autêntico" é aquele pelo qual o homem 
assume sua situação e a ultrapassa por sua ação. 
Nossos atos nos julgam e são irreversíveis. E em vão, diante 
de nossos atos, querermos justificá-los apelando à boa intenção ou 
35 
BilêTatitSapienza 
dizendo que foram feitos inconscientemente. Isso seria "má fé", 
que é testemunhada pela consciência do outro, cuja existência 
aparece como uma ameaça insuportável. Não podemos escapar 
do "olhar" do outro. 
O homem é comprometido com o contexto real e concreto 
em que vive, e, mesmo se for indiferente a isso, esse ser 
indiferente é uma escolha, é seu modo de responder às 
solicitações de seu mundo, de seu tempo. Não há a desculpa de 
se dizer determinado pelos fatos que configuram uma situação. 
* 
Nessa amostra de algumas ideias de filósofos ligados ao 
existencialismo, podemos ver que há pontos semelhantes ao 
pensamento de Heidegger. Mas o pensamento deste filósofo não 
significa o mesmo que o existencialismo. 
Heidegger (1967) diz em Sobre o humanismo que a 
importante frase de Sartre sobre a precedência da existentia 
frente à essentia justifica o nome de "Existencialismo" como um 
título adequado a essa filosofia. Ele acrescenta que essa frase do 
"Existencialismo", entretanto, nada tem em comum com a frase 
que está em Ser e tempo. 
Nesse mesmo livro, Heidegger diz que a frase que está 
grifada em Ser e tempo é: "A essência do Dasein está na 
existência." E isso quer dizer: "O homem se essencializa de tal 
sorte que ele é o lugar (Da), isto é, a clareira do ser (p. 43) (...) 
"O homem é, enquanto ec-siste" (p. 49). 
Ao falar da existência como ec-sistência, Heidegger evoca 
"a determinação do que o homem é no destino da Verdade do ser" 
(p. 45). O foco de seu pensamento está principalmente no 
considerar o homem como o destinatário da doação de ser. 
* 
Percorremos aqui, ainda que ligeiramente, um caminho que 
passa por algumas ideias da fenomenologia e do existencialismo. 
36 
Do desabrigo à confiança 
Nossa preocupação, entretanto, é a Daseinsanalyse, que tem 
como base a fenomenologia hermenêutica que, em Ser e tempo, 
se.dedica à analítica do Dasein — aquele ente cujo caráter 
essencial é o 'cuidado' (Sorge) pelo ser em geral e pelo seu 
próprio ser. 
No referencial heideggeriano, 'ser' já é sempre 'doação' a 
Dasein, e precisa de Dasein como destinatário de sua 'doação'. 
Esse referencial implica profundas diferenças diante da ontologia 
e da epistemologia tradicionais. 
Embora ao empregarmos o termo Dasein estejamos nos 
referindo ao ente humano, o nome Dasein permanece para 
indicar que esse ente se distingue exatamente por seu caráter de 
ser-aí: 'aí' no 'mundo', e o 'aí' do ser.̂ ) 
t 
37 
A terapia daseinsanalítica so faz sentido dentro do referencial 
filosófico heideggeriano. E, assim, soa estranho quando ouvimos 
perguntar se, em nossa clínica, trabalhamos com determinados 
conceitos psicológicos bastante conhecidos pelos psicólogos em 
geral. Tais conceitos a que me refiro são importantes e têm 
sentido nas teorias que precisam deles paraexplicar como 
funciona o psiquismo do homem. Mas eles ficam ociosos em nossa 
concepção de homem como Dasein, que já é sempre 'ser-no-
mundo'; o 'aí ' onde se 'dá' 'ser'; a 'abertura' que 'compreende' 
'ser' — 'ser', que se dá e se encobre. 
Se levamos a sério a fenomenologia que fazemos junto ao 
nosso paciente, mesmo que conheçamos aqueles conceitos 
tradicionais da psicologia, eles devem ficar em "suspensão".]Nós 
nos detemos no que se manifesta, num esforço — e é um esforço 
mesmo — para a compreensão do sentido daquilo que, ao mesmo 
tempo, se desoculta e se oculta. Vamos rodeando, numa escuta 
pacienciosa, com perguntas simples, com pequenas observações. 
Nisto que o paciente está dizendo agora, o que mais pode estar 
implicado? Que modo de ser-no-mundo é esse que possibilita que 
tal coisa exista nele? Em que chão isso se assenta? Como isso 
que ele conta entra em sua história? Para onde isso aponta? Junto 
a que outros significados isso que ele diz faz sentido? Que 
manifestação corporal acompanha sua fala? 
Quando nos acostumamos a pensar assim, sabendo que é 
próprio do fenómeno tanto o mostrar como o ocultar e que, 
38 
Do desabrigo à confiança 
portanto, é preciso que permaneçamos no esforço para a 
interpretação e a explicitação do seu sentido naquela existência 
em particular, percebemos o quanto teria sido pobre se tivéssemos 
apressadamente nos restringido a algum conceito psicológico 
prévio, desses que servem para todo mundo. Quando paciente e 
terapeuta se aproximam da compreensão de um sentido mais 
"próprio" de algo que foi trazido para a sessão, isso tem o sabor 
de uma coisa verdadeira. 
* 
(A explicitação de um sentido, entretanto, não é algo que se 
dê com a garantia de não mais voltar para o encobrimento.jA 'doa-
ção' de ser comporta a 'ocultação'. E é próprio do Dasein, ain-
da que ele seja a 'abertura'em que se 'dá ' 'ser', poder ter, 
onticamente, uma restrição na sua possibilidade de compreensão; 
ele pode permanecer na ou voltar para a penumbra de uma com-
preensão obscura — nem sempre faz sol de meio-dia na clareira... 
Mas por que algo que na terapia já estava desocultado, 
explicitado, pode voltar a se encobrir? Nosso paciente 
frequentemente volta a ter como questão algo que parecia já 
compreendido, já aceito. 
Compreender alguma coisa é a realização ôntica do 
existencial ' compreensão ' , que está sempre imbricado no 
existencial 'afinação', o qual se traduz onticamente em alguma 
emoção. 
Então, compreender alguma coisa pode vir carregado de 
emoções pertencentes a uma 'afinação' existencial que, naquele 
caso do paciente, corresponde ao encontrar-se desabrigado, ao 
encontrar-se na inospitalidade. E Dasein tende a fugir do estar 
desabrigado refugiando-se no cotidiano. Não é estranho que se 
afaste de certas compreensões que apontam para o inóspito da 
existência. 
Compreender algo a respeito de si, se aproximar da 
possibilidade de ser mais 'propriamente' si-mesmo pode ser 
39 
Bile Tatit Sapienza 
incómodo, porque talvez essa compreensão tire do abrigo 
proporcionado pelo "ser como todo mundo é". O "ser como todo 
mundo é" não está sendo tomado aqui como o que caracteriza 
aquele sobre quem se diz: é um tipo "sem personalidade", é um 
tipo "maria-vai-com-as-outras". Ao contrário, o "ser como todo 
mundo é" pode se expressar exatamente no dizer "a gente tem 
que ser autêntico", "a gente tem que ter personalidade", pois 
essas mensagens estão presentes o tempo todo em nossa cultura. 
O se aproximar da possibilidade de ser mais 'próprio' tem a 
ver com o poder ouvir um chamado que vem de si mesmcj — E 
eu? A mim, sendo no mundo em que sou, com a história que é a 
minha, o que é pedido? — e responder a esse chamado. 
Compreender, ouvir o chamado e responder a ele pode não ser 
confortável, porque nessa hora a pessoa se expõe, e isso traz 
consequências, ou porque a resposta, uma vez dada, pode custar 
muito esforço ou mesmo alguma renúncia. 
* 
O incómodo de se aproximar do ser mais 'propriamente' si 
mesmo acontece também porque, ao se aproximar do seu ser 
mais próprio, Dasein 'se encontra' na sua condição fundamental 
de ser ' lançado' na existência sem garantias, e, além disso, 
responsável por ela, 'devedor' à existência. O ser 'devedor', 
frequentemente, no cotidiano da vida surge como sentimento de 
culpa diante do que se fez ou do que se deixou de fazer. 
iMais que um incómodo, a 'angústia' se anuncia quando, 
compreendendo quem ele é mais 'propriamente', Dasein 
compreende que seu tempo acaba, que ele é mortal, não como 
sempre soube que "tudo que é vivo morre", ou como quando 
aprendeu um exemplo de silogismo: "Todo homem é mortal; 
Sócrates é homem; portanto Sócrates é mortal." Compreende que 
não vai morrer "como" todo mundo, é "ele" quem vai 
necessariamente morrer, sem saber quando, de que jeito, e sem 
saber bem o que é morrer. Dessa mesma forma sabe que os que 
ele ama também vão morrer. 
40 
Do desabrigo à confiança 
/ Quando Dasein compreende, e aceita, que ele é finito, que 
ele acaba, compreende que não é só no tempo que ele acabará 
um dia, mas que ele acaba também num outro sentido, isto é, há 
um limite para o "até onde" ele chega, há um limite para o "até 
onde ele pode", porque ele não pode tudo. j 
Esse "até onde" não se refere ao espaço físico (isso a 
Internet resolveria...), mas ao "até onde" vai seu controle. Quando 
seu poder se amplia e ele consegue coisas antes inimagináveis, 
por isso mesmo ele penetra em áreas dentro das quais, de novo, 
haverá sempre algo que ele não pode ter, não pode fazer, não pode 
ser. O próprio Dasein, como 'abertura' que é, abre esses novos 
âmbitos em que a 'doação ' de ser continua, isto é, em que 
continua o acontecer das coisas, em que continua se abrindo o 
mundo, que o solicita; novas possibilidades se apresentam e novas 
escolhas são necessárias, e, de novo, Dasein não pode realizar 
escolhas que se excluem. 
Quanto mais se ampliam os limites de seu poder, mais 
complicada se toma a responsabilidade de precisar escolher entre 
alternativas. Isso se aplica a todas as áreas da vida, e em todas 
elas levanta preocupações éticas. 
* 
O "até onde" chega seu poder não diz respeito a distâncias, 
pode acabar ali bem perto mesmo, ao seu lado. Ele não pode, por 
exemplo, obrigar nem impedir que o outro goste dele; não pode se 
obrigar a gostar do outro nem se impedir disso. 
Seu controle acaba mais perto ainda, acaba no seu próprio 
corpo, no corpo que ele é. Apesar do aumento de conhecimentos 
sobre o corpo humano, o que amplia muito o controle possível 
sobre ele, a cada momento processos corporais estão em 
andamento, dos quais Dasein nem se dá conta. "O ser corporal 
de Dasein é o existencial que, mais de perto, nos conta que existir 
é ao mesmo tempo indigência e potência (Pompeia, 2003, p. 33). 
A indigência, no que este termo pode significar o não se 
bastar, o não se garantir, o ser necessitado, expressa a condição 
41 
Bile Tatit Sapienza 
do Dasein, que tem como um de seus existenciais o ser um corpo 
destinado a morrer. A indigência assusta. E a potência de ser 
também assusta. 
* 
Dasein é aquele ente que existe sendo sempre o seu já sido, 
a sua história, e aquele a quem falta ser. Faltar-lhe ser significa 
o seu ser incompleto (até que morra) e, ao mesmo tempo, significa 
que, por ser ele a 'abertura' em que se 'dá' 'ser', sempre há lugar 
para que nessa abertura continue a se dar a 'doação' de 'ser'; 
para que, onticamente, mais coisas venham ao seu encontro. Se, 
por um lado, o acontecer das coisas tem a ver com possibilidades 
que se realizam e tornam mais plena a existência, por outro, o 
realizar-se de algumas possibilidades é exatamente perda. 
(Desabrigado, devedor, finito, angustiado, vivendo na falta, 
com as perdas, e, contudo, podendo responder ao chamado para 
ser mais propriamente si-mesmo e corresponder à sua destinação 
existencial, fazendo planos, alimentando sonhos, querendo ser feliz. 
Assim é o Dasein em sua indigência e potênciade ser. Esse é o 
ser humano que está junto a nós na terapia.) 
Cada ser humano carrega em si todos hs paradoxos e todos 
os conflitos que significam existir: sentimentos contraditórios; 
querer e não querer ao mesmo tempo; precisar se tornar si 
mesmo e se afastar de si mesmo; precisar de um sentido para a 
vida e, muitas vezes, não conseguir se dedicar a ele; saber de sua 
necessidade do outro e sentir o difícil que pode ser conviver com 
o outro; precisar de proteção e saber de seu desabrigo. 
42 
(Temos para cada paciente um olhar que é dirigido para ele 
em particular, para aquela história de vida, para as possibilidades 
de desdobramento daquele futuro. Mas não perdemos de vista a 
compreensão que temos de tudo aquilo que, ontologicamente, 
caracteriza o Dasein, ou seja, os existenciais ou seus caracteres 
fundamentais., 
Todos os existenciais, de algum modo, se expressam no viver 
concreto (ôntico) do paciente, seja nos momentos em que ele está 
mais próximo de sua 'propriedade', seja nos momentos em que 
estáp mais possível perdido na 'impropriedade' do cotidiano. 
São, por exemplo, caracteres fundamentais do Dasein: 
'compreensão' , 'afinação', 'temporalidade', 'espacialidade', 
'corporeidade', 'ser-com'. I 
Todos os existenciais são sempre imbricados uns nos outros. 
Vejamos alguns exemplos dessa imbricação. 
'Ser-com' e 'afinação' 
Dasein é ser-com mesmo quando escolhe estar só ou é 
obrigado a issoJ E esse ser-com acontece sempre numa 
determinada afinação. Em cada caso, quem é o outro para este 
Dasein? Pois o outro não é meramente "um outro", como uma 
coisa qualquer. Percebo e sinto o outro como aquele que me 
protege, aquele de quem preciso sempre suspeitar, aquele a quem 
43 
BilêTatit Sapienza 
devo temer, aquele que eu engano, aquele que me engana, aquele 
que eu controlo, aquele de quem não quero depender, aquele que 
me persegue, aquele que eu abandono, aquele que me abandona, 
aquele que eu amo, e assim por diante. No seu ser-com o outro, 
Dasein sempre 'se encontra', ou está numa determinada afinação. 
O modo prevalente de alguém ser com ps outros marca 
grandemente a tonalidade afetiva de sua vida. ) 
'Ser-no-mundo', 'corporeidade' e 'ser-com' 
Quando dizemos que 'corporeidade' é um existencial, não 
estamos dizendo algo que parece óbvio, isto é, que Dasein "tem" 
um corpo ou existe "em" um corpo, esse corpo material objeto da 
Física, da Química, da Biologia. Também não estamos repetindo 
a atualmente tão bem lembrada relação entre corpo ou processos 
corporais e questões emocionais. 
( Compreender a corporeidade como um existencial significa 
dizer que o ser corporal é para o Dasein uma determinação 
ontológica. Dasein é seu corpo. E corporalmente que Dasein é-
no-mundo. E, além disso, o mundo que temos só é este que 
temos porque a nossa corporeidade é esta que somos.) 
Compreendemos isso quando nos damos conta de que as cores, 
as formas, os sons, os cheiros, enfim, tudo o que caracteriza os 
entes com que nos deparamos poderia ser diferente se, por 
exemplo, nossos olhos, nossos ouvidos, nosso olfato fossem outros. 
E, se fossem outros os processos cerebrais, como seria a 
compreensão humana dos fenómenos todos, inclusive da nossa 
própria vida, e, a partir dessa compreensão que então teríamos, 
o que iríamos dizer a respeito das coisas e de nós mesmos? Que 
questões teríamos? Que outras dimensões estariam abertas para 
o humano e como seria isso a que chamamos mundo? 
/ Dasein é corporalmente-no-mundo-com-os-outros. ) 
^ É sendo o corpo que somos, com tudo o que nos caracteriza 
de modo momentâneo ou de modo mais permanente como sexo, 
cor, se com saúde ou não, se bonitos ou não, se velhos ou moços, 
44 
Do desabrigo à confiança 
movimentos ágeis ou lentos, tamanho, com fome ou saciados, 
cansados ou não, gordos ou magros, com sorrisos ou carrancudos 
e assim por diante, que interagimos uns com os outros, que somos 
uns com os outros. 
Sendo o corpo que somos, nossas necessidades estão aí 
presentes e temos de nos haver com elas. A sexualidade está 
entre as necessidades mais básicas do ser humano. E o interesse 
sexual pelo outro se inclui também entre as possibilidades 
concretas de Dasein em seu ser-com-os-outros. Em torno do 
amor erótico gira grande parte das preocupações humanas. Por 
causa desse amor, as pessoas sofrem, são felizes; alguém 
encontra sentido na vida, alguém quer morrer. Histórias de amor, 
da forma como são vividas, ou como não são vividas, por qualquer 
que seja o motivo, perpassam a terapia. 
| 'Compreensão' e 'afinação' 
A imbricação entre elas é o que faz com que tudo aquilo que 
compreendemos venha sempre acompanhado com algum tipo de 
sentimento, ainda que seja de indiferença vAssim, por exemplo, 
alguém que, em sua vida pessoal, compreende a possibilidade de 
os acontecimentos da vida se darem independentemente de seu 
controle pode viver isso de uma forma afinada na desproteção, no 
desabrigo que significa o não ter garantias de nada, que aponta 
sempre para o perigo iminente; e aí um sentimento de medo está 
quase sempre presente. Um outro vive essa mesma compreensão 
do não poder controlar tudo como sendo o caráter da gratuidade 
do dar-se das coisas, o que significa desabrigo e desproteção, mas 
significa também algo que o libera da necessidade de ter de 
controlar tudo, e isso pode ser vivido como um sentimento maior 
de liberdade, de não precisar viver sempre em estado de alerta. 
E um outro, ainda, talvez viva esse não poder controlar tudo como 
um sentimento de indiferença, como um "tanto faz eu ser ou fazer 
de um modo ou de outro, visto que nada está sob meu controle, 
é tudo fruto do acaso". Mas, por outro lado, um sentimento de 
45 
Bile Tatit Sapienza 
indiferença pode também vir junto com um modo oposto de 
compreender a exis tência , isto é, a exis tência como 
completamente predeterminada, em que também "não importa o 
que eu faça, pois o que tiver de ser será". Ainda um outro vive 
o compreender que não controla tudo como um sentimento de 
humildade diante do imponderável, que não o desobriga de fazer 
a sua parte, e que o faz se sentir alegre pelo tanto que, 
gratuitamente, tem recebido. 
46 
A maneira como trabalhamos em terapia se dá como um 
compartilhar a interpretação da facticidade daquela existência que 
temos junto a nós no consultório. Interpretação aqui não quer dizer 
encaixar aquilo que o paciente traz no referencial de uma teoria 
de psicologia. Quer dizer, diante do que ele traz, tendo como 
horizontes, ao mesmo tempo, os existenciais e aquela história 
particular, empenhar-se não só na explicitação do sentido do que 
aparece como na ampliação desse sentido, na procura do que 
pode estar encoberto — pois o que é se dá e se oculta —, 
propiciando assim que o paciente possa alargar e aprofundar a 
compreensão de como está sendo seu modo de existir. 
Mas, frequentemente, deparamo-nos com uma pergunta: 
Como o pensamento de um filósofo, cuja intenção não é fornecer 
subsídios para a clínica, pode servir de base para uma prática 
terapêutica? 
Isso é possível porque, como já vimos, ao se dedicar à sua 
questão principal, Heidegger se detém na análise do ente para o 
qual ser é questão, o Dasein. A partir daí, podemos ter uma 
profunda compreensão dos caracteres básicos da existência 
humana. Esses existenciais servem de referência para a nossa 
compreensão do paciente. 
Sabemos que o Dasein se caracteriza por ser 'fáctico', isto 
é, ele ' é ' lançado na existência, tendo de ser, tendo de 'cuidar' da 
sua existência. Cada um tem a sua existência como questão, deve 
47 
Bile Tatit Sapienza 
a si mesmo esse cuidado. E esse cuidado inclui si mesmo, o outro, 
as coisas todas do mundo; abrange o passado, o presente e o 
futuro. Destinado ao cuidado e, ao mesmo tempo, tendo de contar 
com a falta de garantias e com a transitoriedade de tudo: esse é 
o nosso paciente, que se aflige pelas escolhas que tem de fazer; 
sofre por suas perdas; tem de se haver com seus amores e 
desamores;se angustia diante da finitude e não tem como não se 
preocupar com sua vida. 
A compreensão que temos do Dasein como o ente que 
realiza a sua essência nesse 'cuidar' do 'ser' permeia todo o 
nosso cuidado com a existência concreta do paciente. 
O pensamento de Heidegger repercutiu entre psiquiatras que 
viram aí uma nova possibilidade de compreensão de seus 
pacientes. 
Os suíços Binswanger (1881-1966) e Boss (1903-1990) 
foram alguns desses. 
Medard Boss, que manteve contato pessoal com Heidegger 
desde 1947, organizou os Seminários com o filósofo em Zollikon, 
a partir de 1959. Esses Seminários começaram com uma 
conferência de Heidegger no auditório da clínica de psiquiatria da 
Universidade de Zurique. Esses encontros favoreceram a entrada 
da Daseinsanalyse na clínica. Medard Boss fundou a Sociedade 
de Daseinsanalyse na Suíça. 
Em 1971, Sólon Spanoudis (1922-1981), psiquiatra grego 
radicado no Brasil, entrou em contato com Medard Boss. A partir 
daí e dos encontros que se seguiram entre esses dois psiquiatras 
e alguns psicólogos de São Paulo, teve origem a Associação 
Brasileira de Daseinsanalyse, filiada à da Suíça. 
48 
Vamos agora chegar mais perto da clínica, pois é nesse 
cotidiano que nos encontramos face a face com o fenómeno que 
nos diz respeito: a existência do paciente. 
Diferentemente do professor que prepara uma aula, que 
decide o que quer falar naquele dia, que atividade vai propor para 
os alunos, o terapeuta não escolhe previamente o que vai ser 
tratado. O assunto da terapia surge na hora. O paciente até pode 
pensar: "Hoje quero falar de tal coisa." Mas o terapeuta está 
disponível para o que vier. 
A terapia pode seguir, durante um tempo, um rumo mais ou 
menos estável, mas a possibilidade das surpresas está sempre ali. 
Isso porque podem mudar tanto a percepção que o paciente tem 
das coisas como a percepção que ele tem de si mesmo, e, além 
disso, porque acontecimentos na sua vida podem modificar tudo. 
A cada dia o terapeuta sabe quem vem para a terapia, mas não 
sabe como vem. 
Como exemplo de uma terapia, vamos nos aproximar de um 
caso que não é verdadeiro, mas não é impossível. 
A psicóloga de um hospital, j á quase no fim de seu dia de 
trabalho, foi visitar uma paciente que estava internada desde cedo. 
Tinham lhe dito que se tratava de uma moça que havia sofrido um 
grave acidente de carro na estrada e que, após os primeiros 
socorros, esperava em seu quarto para ser removida para outro 
49 
Bile Tatit Sapienza 
hospital. Disseram que a paciente tinha estado muito agitada, e 
depois de um sedativo havia dormido, e agora seria bom que 
alguém fosse falar com ela um pouco. 
Chegando ao quarto, bateu na porta, pediu licença e entrou. 
— Oi, eu sou fulana, trabalho aqui como psicóloga. Estou 
vindo para saber como você está. Caso você queira falar com 
alguém, estou disponível para conversar com você. 
E parou de falar. Viu os hematomas, os ferimentos e as 
lágrimas no rosto da mulher. De imediato, não dava para saber se 
era jovem, mas, aos poucos, percebeu que era jovem sim. 
A moça falou com voz sonolenta: 
— Dói tudo... Meu rosto... 
A psicóloga permaneceu algum tempo no quarto aguardando 
que ela ainda quisesse falar mais alguma coisa, e depois disse 
apenas: 
— Descanse, volto outra hora. 
Saiu e foi tomar café. Encontrou o médico que havia 
atendido a paciente e ele lhe disse: 
— Viu a moça? Fiz só o mais urgente para evitar infecção 
nos ferimentos, dei a ela um sedativo, ela estava num estado... Vai 
ser preciso um plástico. Será removida para um outro hospital. 
A psicóloga sentiu um mal-estar meio indefinido. 
Em seguida pegou seu carro e foi para casa. A estrada 
estava boa, mas dirigiu meio preocupada. Pensou em como era 
difícil ter de viajar todos os dias para trabalhar naquele hospital, 
mas esse era o jeito agora. 
Chegou em casa, tomou banho e depois se olhou no espelho. 
Viu seus cabelos bem lavados. Os da paciente do hospital ainda 
tinham alguma coisa meio empastada que devia ter sido usada para 
remover o sangue. Viu seu rosto harmonioso e gostou do que viu, 
mas não ficou alegre. Pensou: "Ontem ela deve ter se olhado no 
espelho como eu agora." Enquanto secava os cabelos, chorou 
lembrando-se da moça. 
Ligou para os amigos e foi encontrá-los no mesmo bar de 
sempre. Conversaram e tomaram cerveja como nos outros dias, 
mas ela não estava igual. Um dos amigos reparou e disse: 
50 
Do desabrigo à confiança 
— Que foi? Você não está bem. 
Ela respondeu: 
— Estou bem agora, mas o dia foi pesado no hospital. 
Também, por que eu tinha de entrar naquele quarto? Se eu 
deixasse pra amanhã ficaria livre de ver o que vi . Nunca tinha 
visto alguém tão machucado. Meu, não dá pra aguentar. Não sai 
da minha cabeça aquele rosto. Foi um acidente de carro. Você 
fica feito uma pasmada ali na frente da pessoa, sem ter o que 
fazer, sem ter o que dizer. O que adianta ser psicóloga? Qualquer 
coisa que a gente diga não faz sentido. E tudo uma papagaiada. 
Estou sendo chata, desculpa, agora não é hora pra falar disso. Mas 
é que me pegou fundo mesmo. E eu aqui, tomando cerveja, 
falando que não dá pra aguentar; daqui a pouco esqueço e a 
minha vida continua igual. E ela? O que vai ser dela? 
Os amigos entraram na' conversa e cada um tinha uma 
história sobre algo referente a esse assunto. O peso inicial foi 
sendo aliviado. Ela não demorou muito para ir embora porque 
precisava levantar cedo para ir trabalhar. 
* 
No dia seguinte, na entrada do hospital, informou-se sobre 
aquela paciente, e disseram-lhe que ela já havia sido levada para 
outro hospital. Conversou com a funcionária da portaria, que lhe 
deu algumas informações sobre a moça acidentada. Disse que, 
segundo o homem que a acompanhava, que também tinha tido uns 
ferimentos leves, eles voltavam do litoral quando o carro 
derrapou, quebrou uma grade e rolou na ribanceira. A moça 
estava dirigindo. Esse acompanhante avisou alguns parentes dele 
e foi liberado algumas horas depois, pois com ele nada havia de 
grave. Ele pagou os atendimentos, inclusive as despesas com a 
remoção da moça, mas não sabia dar informações sobre ela, pois 
não conhecia sua família. Mas encontraram na bolsa dela uma 
agenda com um telefone que era o de sua mãe. A mãe foi vê-la, 
mas não conseguiu conversar com ela; apenas falou com o moço, 
seu acompanhante, e foi embora. 
51 
Bile Tatit Sapienza 
A psicóloga saiu dali pensando nos imprevistos da vida, 
achando que os dois tinham estado provavelmente numa festa, e, 
de repente, a moça lá, naquele estado.... Depois foi cuidar do seu 
trabalho daquele dia. 
Quando voltou para casa nessa noite, estava lá sua tia, que 
era psicóloga também. Comentou seu encontro com a paciente do 
hospital, o quanto ela havia sido tocada pela situação. A tia então 
falou: 
— Esse é um desses casos em que, depois de passar a noite 
na balada, a pessoa sai dirigindo, ainda pega uma estrada, e depois 
dá nisso. São irresponsáveis, e ainda bem que, ao menos, o 
companheirc dela não se machucou. Até que ele foi legal de pagar 
as despesas dela. 
— Pode ser, tia. Mas mesmo assim, é um horror! Se você 
visse como ela estava! Num momento, quanta energia, quanta 
vida, e de uma hora pra outra ... 
— Quanta vida! É o que você pensa. Não sei, não. Sempre 
por trás desse "quanta vida" o que existe é uma destrutividade 
muito grande. Por que uma menina sai dirigindo desse jeito, 
certamente depois de beber muito e, quem sabe, com alguma 
droga? Por quê? Você não vê que aí há no fundo uma vontade de 
acabar com a vida? 
— Ah, tia. Você não está exagerando em concluir assim 
sobre essa destrutividade da moça? A gente nada sabe sobre ela. 
— Mas a gente consegue sacar essas coisas. E digo mais: 
você não disse que o companheiro dela não sabia nada a seu 
respeito? Pois é, as meninas saem com caras mais velhos, ricos, 
vão à procura de facilidades na vida. Acabam exagerando em 
tudo, e ainda essa aí acaba pondo a vida do outro em risco, além 
da sua própria. E issonão é destrutividade? A destrutividade tem 
muitas formas! A destrutividade vem disfarçada de... 
A moça parou de prestar atenção e pensou: "Que coisa 
chata! Acabou com a minha vontade de conversar..." 
Alguma coisa que ela não sabia bem o que era tinha se 
esvaziado naquela hora, e se sentiu sozinha. 
52 
Do desabrigo à confiança 
Depois que ela saiu da sala, a tia ainda falou para quem 
estava lá: 
— Nos primeiros tempos de clínica é assim mesmo. Ela está 
impressionada. Mas se você se deixar levar assim pelos problemas 
dos outros, você está perdida. A gente precisa esfriar a cabeça 
e pensar com objetividade. Cada coisa sempre tem sua 
explicação, não dá para se fugir disso. 
Cada um deu ainda mais alguma opinião até que a conversa 
tomou outro rumo. 
* 
Aquela paciente foi removida para outro hospital, e, como a 
plástica de que necessitava era uma cirurgia reparadora, foi logo 
atendida, e teve a sorte de ser atendida por um ótimo cirurgião. 
Ele se comoveu com o rosto desfigurado da jovem e tratou dela 
com um cuidado especial. Ela ficou no hospital os dias que podiam 
ser cobertos pelo seu seguro de saúde e depois foi para casa. Sua 
mãe já havia comunicado seu acidente à empresa onde ela 
trabalhava. 
Em casa não havia muito o que fazer a não ser pensar, 
chorar, responder o menos possível ao que era perguntado, 
evitando sempre olhar no espelho. Não tinha esperança de voltar 
para o mesmo trabalho; sabia que era fundamental a aparência. 
E havia outra coisa que a fazia sofrer: saber que o fulano que 
estava com ela na hora do acidente, não havia procurado ter 
notícias suas. Ela se lembrava de que lhe haviam dito, no primeiro 
hospital, que ele não tinha se machucado muito. Chegou a ligar 
para seu celular mas ninguém atendia. 
Um dia uma colega de trabalho foi visitá-la, e, num certo 
momento, falou para a colega que ela não sabia como tinha 
acontecido aquilo, pois quantas vezes tinha saído com ele de carro 
e ele dirigia muito bem. A amiga lhe disse então: 
— Mas me disseram que era você quem estava dirigindo! 
E ela respondeu: 
— Não, era ele. 
53 
Bile Tatit Sapienza 
A mãe dela, que estava por perto, fez um sinal para que a 
amiga parasse com o assunto. Depois, longe dela, disse: 
— Ela está meio confusa nessa história. Sabe, não é por mal 
que ela diz que não era ela. Já me disseram que isso é por causa 
do trauma do acidente. Me explicaram que, quando uma coisa é 
muito ruim, a pessoa, às vezes, começa a achar que aquilo não foi 
por causa dela, mais ou menos isso, não sei te dizer direito, meio 
que esquece como foi tudo. Mas lá no hospital o homem que 
estava com ela me contou que ela estava dirigindo. Até que ele 
foi muito bom, pagou os primeiros socorros, facilitou a remoção 
dela pro outro hospital. 
A amiga ficou mais um tempo e depois foi embora. No dia 
seguinte comentou com o pessoal da empresa o quanto tinha 
ficado chocada com a aparência da colega. Os outros disseram 
coisas como: "Que loucura! Justo ela, bonita daquele jeito! E 
agora, como vai ser? Que horror!" 
Uma das colegas falou: 
— Ela estava tão feliz! Há poucos dias me contou que estava 
saindo com um cara muito legal. Estava encantada, apaixonada. 
Disse que nunca em sua vida tinha recebido tantas flores como 
agora. E machucou muito mesmo o rosto dela? 
— Nem dá pra descrever — respondeu a outra. 
— Mas com uma plástica dá pra recuperar? 
— Difícil. Ela já foi bem atendida por um ótimo cirurgião 
plástico que dava plantão naquele dia no hospital pra onde foi 
removida. Mas, mesmo assim, o estrago foi muito grande. Ela 
está arrasada. A mãe dela disse que ela está ainda muito confusa. 
Também, não é pra menos! 
Alguém disse: 
— De uma hora pra outra a vida vira de cabeça pra baixo! 
O que vai ser dela? 
Uma das moças comentou: 
— Estranho isso que foi dito sobre ela estar dirigindo. Ela 
dizia que não gostava de dirigir em estrada. E ele também se 
machucou muito? 
— Que nada! Só uns arranhões. 
54 
Do desabrigo à confiança 
* 
Passaram-se alguns dias e a moça começou a fazer os 
retornos ao hospital para acompanhar a evolução das várias 
cirurgias que precisou fazer no rosto. Tinha vergonha de mostrar 
o rosto ainda inchado, as cicatrizes recentes. 
No hospital havia um serviço de psicologia. Foi encaminhada 
para um apoio psicológico destinado a alguns pacientes muito 
necessitados de ajuda. E a ajuda que recebeu foi preciosa. Teve 
oportunidade de falar do desastre, de reclamar da vida, de chorar 
muito. Começou a entender que sua vida não seria mais a mesma, 
que algumas mudanças viriam; grandes e pequenas mudanças. 
Algumas pequenas ela já começou a fazer, por exemplo, passou 
a usar o cabelo de modo a esconder um pouco o rosto, sempre 
de óculos escuros. Não se sentia em condição de manter seu 
trabalho, em que uma aparência impecável era exigida. Seu chefe 
colocou-a para trabalhar no escritório da empresa. 
Infelizmente esse atendimento psicológico tinha um tempo 
limitado. Na última sessão ela disse à terapeuta: 
— Sabe, nunca tinha pensado em terapia. E agora, veja, me 
abri tanto com você, não sei como teria aguentado isso sozinha. 
Ia ser bom continuar. Me lembrei de uma outra psicóloga que 
apareceu no meu caminho nesses últimos tempos. Até já tinha me 
esquecido. Foi no mesmo dia do acidente, quando eu estava no 
primeiro hospital em que fui atendida. Estava péssima ainda, em 
estado de choque, como se diz. Cuidaram de meus ferimentos, e, 
depois que consegui relaxar um pouco à custa de um remédio que 
me deram, eu me lembro de que, numa certa hora, entrou no 
quarto uma moça dizendo que era psicóloga; nem sei direito o que 
falou; devo ter dito alguma coisa pra ela; eu quase não podia falar. 
Depois perguntou se a terapeuta poderia atendê-la em outro 
consultório. 
A terapeuta respondeu que não seria possível, pois estava 
com uma viagem marcada e ficaria um ano fazendo um curso em 
outra cidade. E a moça disse: 
— Que pena! Ia ser muito bom continuar com você. 
55 
Bile Tatit Sapienza 
— Mas eu vou dar pra você o nome de uma pessoa em 
quem confio muito. Você vai se acertar com ela, tenho certeza. 
* 
A moça só foi procurar a nova psicóloga depois de dois ou 
três meses. 
Chegou e disse logo por que estava ali, como quem está com 
pressa. Falou que fez três meses de terapia num serviço 
psicológico de um hospital onde havia feito cirurgia plástica, aliás, 
várias intervenções por causa de um acidente de carro que 
sofrera. E em seguida toda a sua amargura começou a aparecer 
nas palavras, na postura, na expressão do rosto, que, apesar dos 
óculos escuros, estampava sua tristeza. 
A terapeuta perguntou quando tinha sido o acidente e a moça 
disse a data e o lugar. 
"Meu Deus, é ela!", pensou a terapeuta. 
Ouviu ainda o nome do hospital onde havia sido o primeiro 
atendimento. 
Na surpresa, perdeu algumas coisas que a moça dizia; difícil 
prestar atenção tão presa estava na sua aparência. E pensou: 
"Faz quase seis meses, agora dá pra ver como ela é." 
Alguém poderia dizer aqui que isso só acontece em novela. 
Mas o fato é que naquele dia em que sua colega lhe telefonou e 
disse que havia dado seu nome para uma moça que iria procurá-
la, ela foi informada de que se tratava de alguém que tinha feito 
cirurgia plástica por causa de um acidente. Naquela hora, ela 
chegou a se lembrar do caso da moça vista no hospital. Mas... isto 
agora era demais. 
E enquanto ela se refazia da surpresa, a moça continuava 
falando: 
— ... se você visse como eu fiquei, agora até que está bom 
em vista de como foi. No meio de tanta coisa ruim não posso me 
queixar do meu atendimento. Mas logo em seguida eu pirei 
mesmo. Não tinha mais chão. O que passei não tem nome. A 
56 
Do desabrigo à confiança 
gente não quer ver ninguém. A psicóloga lá do hospital me 
aguentou. Mas a terapia lá é só por três meses. Então ela me 
indicou você. Não vim logo em seguida, não sei por quê. 
— Mas agora você está aqui. E antes disso você já havia 
feito alguma terapia? 
—Não, nunca senti necessidade. Tinha amigas que faziam, 
mas eu brincava com elas, dizia que eu não precisava disso, não 
era louca. Mas agora, de uma hora pra outra, mudou tudo. Não 
sou mais quem era, não tenho mais o que tinha. Não é que eu 
tenha perdido coisas, não, é a minha vida que está perdida. Minha 
vida acabou. Você está me vendo viva aqui sentada na sua 
frente. Mas eu não estou viva. O que sobrou de mim é resto. O 
que fiz pra merecer isso? Você entende? Não há o que fazer. 
Todo dia acordo de manhã e vejo que a minha vida é isso. A vida 
de todo mundo continua, e eu tenho que aguentar isso sozinha. 
Nesse momento a moça já'chorava muito. 
A terapeuta, depois de um tempo, disse para ela: 
— É tudo muito triste. E a gente fica se perguntando como 
é que se continua a viver depois disso, não é? De repente, 
acontece alguma coisa que faz a vida desabar e, em seguida, não 
há mais como escapar do acontecido. A vida está marcada por 
aquilo que aconteceu. Deve haver mil perguntas sem respostas: 
"Por que isso? Por que assim? Por quê? E agora?" E nem sempre 
a gente pode compartilhar essas coisas com as pessoas, mesmo 
com as mais queridas. Então a gente fica só. 
Quando conseguiu parar de chorar, a moça disse: 
— Na verdade eu sei que nada pode ser mudado, não tenho 
o que esperar. Mas eu preciso falar; pode ser que assim eu 
entenda alguma coisa dentro desse absurdo todo. Foi por isso que 
eu vim. 
— Conversar ajuda. Você deve estar cheia de perguntas, e 
todas as perguntas cabem aqui, se bem que nem sempre a gente 
encontre as respostas. Algumas vezes, o que se compartilha é o 
não-entendimento. Outras vezes é só a dor. 
— De dor eu entendo... Mas tenho estado muito só. A outra 
terapeuta me indicou você, e eu quero tentar. 
57 
Bile Tatit Sapienza 
— Estou disponível pra atender você. Mas antes há uma 
coisa que quero que saiba. É o seguinte. Está acontecendo uma 
enorme coincidência aqui. No dia do seu acidente eu vi você. É 
isso. Há pouco você me disse "se você visse como eu fiquei", não 
é? Então você sabe agora que eu vi. Não sei se isso a incomoda. 
— Como é isso? Você estava no hospital? No primeiro ou 
no outro onde fui operada? 
— No primeiro. Eu trabalhava lá. Quando foi socorrida em 
seguida ao acidente, você teve um atendimento de emergência, 
tomou um sedativo, dormiu um pouco. Depois que acordou, fui ao 
seu quarto pra perguntar como estava, saber se queria falar com 
alguém. Você não tinha condição de falar com ninguém, estava 
com muita dor e com muito sono. Então eu disse que voltaria 
depois, mas no dia seguinte você já havia sido removida pra outro 
hospital. Então, foi assim, eu a vi lá por uns minutos. Só agora, ao 
ouvi-la contar o dia e o lugar onde aconteceu tudo, me dei conta 
de que era você. 
— Mas isso é muito doido! Tenho uma lembrança de que 
entrou alguém no quarto e disse que era psicóloga, mas isso se 
mistura com uma porção de outras lembranças. Naquele dia eu 
estava fora de mim. Que coisa! 
— Pra mim também isso é muito estranho. E estamos aqui 
podendo conversar agora. Pra você tudo bem que eu já a tenha 
visto naquele dia? 
— Tudo bem. Por que haveria problema? Acho até bom. 
Também não sei por que acho bom. Você me conheceu no pior 
dia que eu já vivi. 
— Quis deixar isso claro para que, se começarmos uma 
terapia, não haja, de minha parte, alguma coisa que eu esteja 
sabendo a seu respeito sem que você saiba que eu sei. Poderia 
ser o caso de uma pessoa não querer ter sido vista naquela 
condição de precariedade de alguém que acabou de sofrer um 
desastre daquele jeito. Não sei o que você pensa disso. Se não 
contasse isso agora, eu não ficaria à vontade com você. 
— Estou entendendo. Já disse que, por mim, não há 
problema. Até pode ser bom, assim você sabe que não estou 
58 
Do desabrigo à confiança 
exagerando. Mas, pensando bem, podia mesmo acontecer que 
alguma pessoa não gostasse de ter sido vista no dia mais horroroso 
de sua vida, em que ela se sentia como um monstro. Mas, no meu 
caso, não me importo com isso. 
Já tinha também passado pela cabeça da terapeuta, logo nos 
primeiros momentos em que percebeu quem era a paciente, a 
pergunta: "Eu quero atendê-la?" Pois ainda se lembrava do quanto 
havia ficado impressionada naquele dia. Mas hoje estava certa de 
que queria fazer esse atendimento, que não seria fácil. 
A moça falou em seguida de sua dificuldade financeira no 
momento. Disse que continuava trabalhando ná mesma empresa 
de antes do acidente, mas numa outra função. Era uma empresa 
que lidava com cosméticos. Antes trabalhava em vendas, mas 
fazia também demonstrações dos produtos em feiras, lojas, salões 
de beleza; maquiava modelos, artistas, e era exigido que ela 
também estivesse sempre impecavelmente maquiada. Agora 
estava só no escritório, e perdera as comissões que recebia antes. 
Não podia nem reclamar, porque já tinha tido sorte de não perder 
o emprego depois de ter precisado faltar tanto tempo, e sabia que 
sua aparência não correspondia mais às exigências do trabalho. 
Não podia contar com a ajuda de ninguém, ao contrário, era ela 
quem ajudava a mãe. Enfim, tinha receio de não poder pagar a 
terapia. 
A terapeuta lhe disse que poderiam fazer um acordo quanto 
a isso. Pagaria o que fosse possível agora e depois fariam novos 
acertos. Combinaram que ela viria duas vezes por semana. 
Ela disse: 
— Eu tinha seu telefone na minha bolsa, mas estava adiando 
a vinda aqui. Queria tentar sair disto sozinha, mas está 
complicado. 
— Quando você diz "sair disto", o que é mais precisamente 
esse "disto"? 
— Ora, é tudo o que se passou comigo. Minha vida não é 
mais a mesma; tem hora em que não me conheço mais. Tenho 
muita confusão na minha cabeça. Se começo a pensar muito, me 
afundo numa depressão que não tem tamanho. Estou ficando com 
59 
Bile Tatit Sapienza 
medo, a gente não sabe onde isso vai parar. Se não fosse a 
terapeuta lá do hospital, acho que eu não ia aguentar. Era só com 
ela que eu conseguia falar, era só ela que me ouvia. As outras 
pessoas não suportam. A gente não tem com quem dividir. 
— Compartilhar ajuda a aguentar. E nós vamos poder 
continuar a conversar aqui. 
Conversaram mais um certo tempo e ela ficou de voltar dali 
a dois dias. 
Depois que a paciente saiu, a terapeuta permaneceu na sala 
por um longo tempo. Estava admirada da coincidência. 
Sabia que precisaria de força para estar junto de alguém 
sofrendo tanto. Sentiu um certo medo, mas não teve dúvida de 
que queria mesmo atender essa moça. 
Começou a pensar: "Ela quer ajuda pra sair disto, mas esse 
sair disto precisa passar ainda por um longo entrar nisto. Não será 
possível cortar caminho. Diz que não se conhece mais, mas o que 
é para ela esse não me conheço mais? Sei que tem a ver com a 
alteração do rosto, mas o que mais? E a sua confusão? E a sua 
tristeza? E o seu medo? Como é a sua história, e como ficará essa 
história agora tão profundamente modificada?" 
Lembrou-se do encontro no hospital, do sofrimento que a 
impressionara tanto. "E agora, como vai ser esta terapia? Será que 
vai dar certo? O que é mesmo que espero com esse dar certo? 
Minha vontade é ajudá-la; mas o que poderia ser ajuda? Não faço 
ideia. Nunca vou poder devolver pra ela as coisas que perdeu... 
O que faço com a fenomenologia aqui? Nesta hora, o que vale 
aquilo tudo de que a gente fala — ser-no-mundo, ser-com e es-
sas coisas todas que a gente estuda? O que faço com os tais exis-
tenciais? Ontem mesmo a gente falava dessas coisas no grupo de 
estudo. Compreensão é um existencial. E daí? Nem sei por que 
pensei nisso agora. Acho que é porque não estou entendendo 
nada, ela não está entendendo nada, ninguém entende nada quando 
acontece uma coisa dessas. Sem noção! . . . É, mas... se com-
60 
Do desabrigo à confiança 
preender é abarcar, de alguma forma ela compreende o que acon-
teceu na sua vida, alguma coisa que modificou tudo, mesmo que 
olhe pra isso e só veja confusão na sua cabeça; e tenho de ad-
mitir que, de algummodo, eu também compreendo o que acon-
teceu, compreendo como deve estar se sentindo. Se isso é 
horrível pra mim, imagino pra ela. Que vivência de medo deve 
carregar! Jogada na desproteção, no desabrigo de um mundo hos-
til , na dor de ter perdido tanto! É isso. Ela perdeu muito. Tristeza 
e medo. Um medo ligado ao acontecido e que vai também para 
o futuro. É isso. É a tal história da temporalidade. .O passado dela 
não volta. O que ela pode esperar do futuro? O desejo é de sair 
disso, é como o desejo de acordar de um pesadelo. Mas ela não 
vai acordar desse pesadelo, porque isso não é um sonho. Ela não 
tem mais o rosto perfeito que tinha. O que é mesmo corporeida-
de? Complicado. É isso. O fato de sermos corpo escancara nos-
sa fragilidade!... Tem hora que não me conheço mais, disse ela. 
Como deve ser difícil perder-se assim!... Ela quase não falou so-
bre sua relação com as pessoas, a não ser que ajuda a mãe e que 
a terapeuta do hospital aguentou com ela coisas pesadas. O ser 
com os outros... E agora, eu com ela? Ela espera algo de mim. 
Eu estou com ela. Ainda não sei o que posso fazer por ela. Ela 
está tocando a vida. Passo agora a fazer parte da sua vida. Como 
me preocupei com ela no dia daquela visita no hospital! Naquele 
dia eu pensava nela, mas pensava também em mim. Aconteceu 
com ela, podia ter acontecido comigo. Sei o que eu estaria sen-
tindo se tivesse sido comigo. E se ela me perguntar: Por que eu? 
Não vou saber responder. Será que alguém sabe? O tal dar-se das 
coisas que ouvi naquela palestra! Mas tem cada coisa que se 
dá!... Deixa pra lá. Ah... aceitação. Era essa a palavra que o pro-
fessor falou naquele dia...; difícil entender isso. Também, estou 
querendo demais agora. Foi só uma primeira entrevista." 
Mais tarde, já em casa, a terapeuta voltou a pensar no 
atendimento que tinha aceitado fazer. "Será que isso de eu ter 
61 
Bile Tatit Sapienza 
ficado tão emocionada naquele dia no hospital não vai atrapalhar? 
E a neutralidade do terapeuta, como fica? Preciso estar atenta pra 
não deixar que meus sentimentos se misturem com os dela. Isso 
eu posso fazer. Deixar de sentir, ignorar o quanto essas desgraças 
súbitas mexem comigo, isso eu não posso. E nem acredito que o 
terapeuta deva ser uma parede. Por que deveria ser? Eu e ela 
somos gente, e, como gente, nós temos nossos sonhos. Não posso 
fazer de conta que não sei o que significa pra uma moça o que 
ela está passando neste momento. Eu só não posso me afundar 
na dor que é dela, que eu compartilho porque, sendo gente, dói 
também em mim ver gente sofrendo. Mas é ela quem tem de se 
apropriar da dor pelo que ela perdeu. Foi ela quem perdeu. Só 
assim vou poder ajudá-la a se reencontrar, quem sabe." 
* 
Era com aquela existência que a terapeuta tinha entrado em 
contato. Aquele era o fenómeno que se manifestava na juventude, 
nas cicatrizes, nas lágrimas, nos gestos, nas palavras da moça. 
Uma existência num momento de abalo, de corte, de interrupção 
do rumo planejado para a vida, de esvaziamento de sentido, uma 
existência literalmente ferida. Ainda haveria muito para aparecer. 
Deixar que aparecesse, no meio de todos os encobrimentos que 
também viriam, poder pensar e pôr em linguagem o que 
aparecesse; logos penetrando a manifestação: elas estariam 
fazendo uma fenomenologia. 
Num certo momento a paciente havia dito algumas coisas 
que chamaram a atenção da terapeuta: estava adiando a vinda; 
queria poder sair daquilo sozinha. 
A terapeuta poderia ter se detido no porquê do adiamento da 
vinda, ou no sentido do querer sair daquilo sozinha, ou seja, sem 
ajuda. Mas escolheu outro caminho. Deteve-se no sair "disto", 
dando ênfase para o que seria este "isto" do qual a paciente 
queria sair. Obviamente, ela sabia que essa palavra se referia à 
situação sofrida que estava sendo vivida. Mas ela queria ouvir da 
62 
Do desabrigo à confiança 
moça, ainda que ligeiramente num primeiro momento, como ela, 
particularmente, estava vivendo a sua dor. 
Foi assim que surgiram aqueles: minha vida não é mais a 
mesma; não me conheço mais; confusão; depressão; medo. 
Apareceram também o seu querer sair daquele estado e a sua 
capacidade de confiar em alguém, quando ela se referiu à outra 
terapeuta. Uma pequena pergunta — o que é esse "disto"? — 
tinha contribuído para uma aproximação daquele modo de existir, 
para abrir um caminho de pensamento. 
Naquela hora bastava isso. Não era para aprofundar nada. 
A terapeuta apenas deixou clara a sua disponibilidade para 
conversar e compartilhar com ela o que viesse. Dizer mais teria 
sido excessivo. 
*, 
Na sessão seguinte, logo ao sentar-se, a moça começou a 
falar: 
— Eu não sei por onde começo. Com a outra psicóloga, 
estava tudo ainda tão perto, fazia só uns quinze dias; acho que o 
que mais fiz foi chorar. Tinha ainda constantemente diante de mim 
a cena do acidente; todas as noites sonhava com isso. Era quase 
só disso que eu falava o tempo inteiro com ela. Precisava me 
lembrar bem de como tinha sido tudo. Sabe que não me lembro 
direito dele na hora do acidente? Ora, nem contei ainda pra você. 
Eu estava com meu namorado. Sabe que nunca mais soube dele? 
Só me disseram, ainda no primeiro hospital, que ele quase não se 
machucou. Acho que me machuquei daquele jeito porque a lataria 
entrou no meu rosto. Sei lá. Também nem adianta querer saber 
por quê. Já aconteceu mesmo. Eu fiquei desacordada na hora. Em 
seguida, por muito tempo, duas imagens não saíam da minha 
cabeça: o carro rolando e depois eu mesma, quando já estava no 
hospital, acho que algumas horas depois, passando a mão no meu 
rosto e percebendo os ferimentos. Naquela hora, além da dor já 
compreendi o estrago que tinha acontecido. Vou dizer uma coisa 
63 
Bile Tatit Sapienza 
pra você: eu preferia ter morrido naquela hora. O que adianta 
continuar vivendo desse jeito? Se eu digo isso, as pessoas falam 
que não é certo a gente dizer isso. Mas só quem passa é que 
sabe... Estava falando do meu namorado. Ele simplesmente 
sumiu. Eu queria muito ter notícia dele. Eu gostava mesmo dele. 
Mas não quero que ele saiba de mim. Deus me livre de ele me 
ver agora. Mas você não acha estranho ele nunca mais procurar 
saber de mim? Ele poderia perguntar por mim a algum conhecido. 
Ele sabe onde trabalho. Ele tinha meu telefone. Acho que ele não 
quer mesmo saber. Eu conhecia um ou outro amigo dele, mas 
nunca mais vi ninguém. A gente em geral saía só os dois. Ele dizia 
que não queria me dividir com outras pessoas, que eu era só dele 
e ele era só meu, essas coisas, você sabe. Romântico como só 
ele. Olhe só, vim aqui hoje achando que não ia saber como 
começar, e não parei ainda de falar. Não sei se pra começar a 
terapia a gente deve contar primeiro algumas coisas assim como 
idade, quem são os pais, se tem irmãos, essas coisas. Não sei se 
é importante você saber disso antes de começar. Já fui falando 
de qualquer jeito. 
A terapeuta ouvia. Percebia na paciente o seu querer saber 
qual era o modo certo de fazer terapia, mas o que aparecia 
principalmente eram o peso que o acidente tinha em sua vida e 
o incómodo com a indiferença do namorado. A terapeuta também 
pensou: "Estranho isso de ele não querer saber o que aconteceu 
com a namorada." Mas não falou nada sobre isso, pois não vinha 
ao caso esclarecer uma possível maneira estranha de ser de outra 
pessoa que não a sua paciente. O importante era que a moça 
pudesse falar do quanto ela achava isso estranho. Depois disse: 
— Não se preocupe em falar numa certa ordem ou 
sequência. Fale o que você tiver vontade. 
— Acho que vou falar muito da mesma coisa, porque a 
minha vida está resumida nisto: o que aconteceu e o que vai ser 
de mim agora. Parece que as outras coisas, pois é óbvio que 
existem outras coisas na minha vida, foram todas engolidas por 
isso. O jeito como tudo era antes é sempre comparado com o 
64 
Do desabrigo à confiança 
como é agora; quando penso em como as coisas vão ser de agora 
em diante, fica tudo ligado a isto de agora.E isto de agora é tão 
mim... O que vai ser de mim? Tenho sobrevivido dia por dia, mas 
tem hora em que acho que não vou aguentar passar a vida desse 
jeito... Vai haver um momento em que não vou saber o que fazer. 
Quando tento falar disso com alguma pessoa, já sei o que vem: 
"Você está viva, isso é o mais importante; aparência não é o que 
conta; você vale pelo que você é." Mas eu é que sei o que é 
amanhecer de um jeito e na manhã do mesmo dia... Eu me 
conhecia do jeito que eu era antes. E agora? Não sou a mesma. 
Não é questão de aparência. Falei pra você há pouco que acho 
estranho ele não ter querido saber de mim. Não é nada estranho. 
Ele não pode mesmo querer mais nada comigo. Nenhum homem 
vai se interessar por mim. 
Isso tudo, de um ponto em diante, ela disse chorando. 
A terapeuta permanecia atenta e tocada pelo que via, pelo 
que escutava. E o pior era se sentir como quem nada tem a dizer. 
Bem que se lembrou de alguma coisa referente a questões, por 
exemplo, de auto-estima, de identidade: ela sente que não vai mais 
ser querida, valorizada; com a mudança de seu rosto ela não está 
mais podendo se reconhecer como sendo ela. Mas pensou: 
"Nossa, como isso é pouco! Tenho até vergonha de dizer pra ela 
alguma coisa desse tipo. Como aquilo tudo pelo que ela está 
passando vai caber em conceitos?" Então disse apenas: 
— Você pode falar todo o tempo que quiser sobre o seu 
sofrimento, que estou vendo que é muito grande. 
— Tem sido difícil suportar sozinha a tristeza que sinto. Pois 
a verdade é esta: estou sozinha. Ainda nos primeiros dias, as pes-
soas estavam muito abaladas com o que tinha acontecido e me 
davam espaço pra que eu pudesse estar infeliz; eu tinha dores no 
corpo, as cirurgias do rosto eram recentes, enfim, é isso. Mas nin-
guém está aí pra ficar suportando tristezas dos outros por muito 
tempo. As pessoas têm mais o que fazer na vida além disso, não é? 
Conversaram algumas outras coisas até o final da sessão, e, 
quando acabou, ela disse: 
65 
Bile Tatit Sapienza 
— Obrigada por ter me ouvido. 
A moça, depois que saiu, pensou: "Falei mais do que 
imaginava. Ela parece legal, é tranquila. Do jeito que estou, acho 
que é duro pra a lguém me aguentar. Nem eu estou me 
aguentando. Mas uma coisa ficou bem clara pra mim: não esqueci 
ainda o fulano e não engulo isso de ele não ter se preocupado em 
saber de mim. Tinha a impressão de que já era caso encerrado, 
mas o assunto foi ele. Fazia tempo que não falava dele. Nem 
gosto de contar essa mágoa pra ninguém. Remoer coisas sem 
solução me dá raiva. Ninguém pode me dar de volta o que eu tinha, 
o que eu era. O que é que vai adiantar ficar falando pra ela? Pode 
ser que eu acabe pior de tanto remexer. Dá vontade de entregar 
os pontos, deixar como está." 
Foi para casa e avisou a mãe que não queria jantar. Disse 
que estava com dor de cabeça e foi para o quarto. Chorou como 
nos primeiros dias após o acontecido e pensou: "Voltei pior de lá." 
* 
Agora, você que está lendo, olhe isso tudo com bastante 
objetividade. O fato é que na estrada tal, no dia tal, um homem e 
uma mulher viajavam num carro que rolou numa ribanceira. Com 
ele não aconteceu quase nada, e ela ficou gravemente ferida, 
principalmente no rosto. Foram atendidos no hospital X. Ele foi 
logo liberado e ela, após os primeiros socorros, foi removida para 
outro hospital, onde sofreu algumas cirurgias no rosto. 
Esse é o fato, que pode aparecer numa notícia de jornal como 
tantas outras equivalentes e até piores. Já estamos acostumados 
com tantas tragédias; lemos, pensamos um pouco nos perigos que 
nos rodeiam, lastimamos que seja assim, e vamos cuidar da vida. 
Mas, neste caso, estamos aqui envolvidos com essa moça 
que sofreu o acidente. Não é a ocorrência de número tal entre 
outras naquele mês, naquela estrada. Já não é mais um mero fato. 
66 
Do desabrigo à confiança 
É uma pessoa que se feriu gravemente num acidente. Já não 
estamos mais no domínio da mera objetividade neutra. A 
existência dela caiu sob o foco do nosso olhar. E, quando a 
existência entra em foco, abre-se o mundo humano, o mundo dos 
significados. O que é um acidente assim para essa pessoa? Como 
fica o mundo dela? Como tem sido a sua história? Como vai ser 
de agora em diante? Por que acontecem coisas assim? Como isso 
repercutiu nas pessoas que a conhecem? 
Por exemplo, como ficou a pessoa que dirigia o carro na 
hora do acidente? Sei que era seu acompanhante quem dirigia. 
Aliás, uns dias antes, ele havia dito a seu terapeuta: "Tenho saído 
com uma gata, coisa fina." Após o acidente, não sei qual foi seu 
comentário com outras pessoas, mas, com o terapeuta, o que ele 
conseguiu exprimir de mais profundo foi: "Cara, a gata deu zebra." 
Isso mostra um modo de ser-no-mundo-com o outro. E como seria 
o modo de ser dela com relação a ele? 
Como terá se sentido a mãe dela? E seus amigos? 
Para aquela psicóloga, que a viu machucada e agora é sua 
terapeuta, isso tudo foi motivo de muitas indagações sobre a vida, 
não só o desastre em si, como também a coincidência de encontrá-
la de novo como sua paciente. 
Neste começo de terapia, a terapeuta está se sentindo 
insegura. Depois do primeiro atendimento, teve a impressão de que 
não sabia nada. Pensou: "Nem sequer consigo ver qual é a queixa 
principal dela. Parece que toda ela é uma queixa só. Não sei por 
onde a gente vai começar. O que eu tenho pra dizer a ela? O que 
será que ela acha que posso fazer por ela? Será que ela não vai 
ficar cada vez mais deprimida, e, se for assim, o que pode 
acontecer? Nem quero pensar!" 
* 
No dia marcado para a próxima sessão, a paciente teve 
vontade de não ir. Lembrou-se de que no outro dia havia voltado 
mais triste de lá. Mas, em seguida, mudou de ideia: "Eu vou hoje. 
67 
Bile Tatit Sapienza 
Preciso falar pra ela uma coisa. Não posso ficar sozinha com 
isso. Pra quem mais posso falar? Só espero que ela me entenda." 
Foi para a sessão. Quando chegou, entretanto, em vez de 
entrar logo no assunto que havia planejado, começou a falar de 
outra coisa. Achou importante contar o que tinha sentido ao voltar 
para casa no outro dia. 
— Na sessão passada, depois que saí daqui, me senti muito 
mal. Será que vale a pena a gente ficar remexendo no que já 
passou? Não há nada que possa ser mudado na minha vida. Vou 
falar, você vai me ouvir, mas o que adianta? Já faz seis meses que 
tudo aconteceu. Nos primeiros dias, nas primeiras semanas, eu 
estava como alguém que explodiu. Parece que havia pedaços de 
mim jogados pra todo lado. De um dia pro outro minha vida tinha 
se transformado numa coisa que eu não sabia o que era. De 
repente, eu estranhava tudo, eu me estranhava, não sabia como 
lidar comigo mesma; não queria me olhar no espelho; não queria 
que me vissem. Via que as pessoas também não sabiam como agir 
comigo. Algumas ficavam com pena, outras queriam parecer que 
não achavam nada tão terrível. O médico que me operou foi 
superlegal comigo. Ele sim, parece que ele via o quanto eu estava 
mal. Disse que eu tinha me machucado muito, que seria preciso 
reconstituir meu rosto. Eram vários os cortes que ele teria de 
suturar. Fiquei o maior tempo na sala de cirurgia. E depois, então, 
quando já tinha voltado pro quarto, que susto levei na hora em que 
fui ao banheiro e olhei no espelho. Parecia um monstro. Chorei 
muito. Nessas primeiras noites me davam um remédio pra dormir. 
E quando, já livre dos pontos, pude enxergar bem as cicatrizes! 
Nossa, naquela hora pensei: "Por que não morri?" 
A terapeuta ouvia, atenta ao que era dito e à emoção que 
estava ali. 
A moça parou um pouco e pegou a caixa de lenços na 
mesinha que estava ao lado. Só então a terapeuta percebeu que 
os lenços estavam quase no fim. 
— Acabei com seus lenços. E só começar a falar e dá nisso. 
Virei uma chorona. 
68 
Do desabrigo à confiança 
Enquanto isso a terapeuta pegou outra caixa, deu para ela e 
falou: 
— Chorar pode fazer bem. 
— Eu sei. Não há mesmo mais nada que eu possa fazer. Só 
que nãosei até quando suporto viver desse jeito. Não vejo solução 
pra minha vida. Está difícil, entende? Não tenho mais direção, 
porque eu tinha um caminho pra seguir, mas agora acabou tudo 
em nada. A minha vida ficou muito sem graça. Não há sentido em 
nada. Sabe que de uns tempos pra cá tenho um sonho que se 
repete muito? Não sei bem como é a história do sonho, mas 
sempre há um pedaço em que escurece o céu e, de repente, é 
noite..., e me dá muito medo aquele escuro..., muito medo. Não 
vejo nada. Acordo sempre nessa hora, e é difícil dormir de novo. 
No dia seguinte, me levanto cansada. Quando acontece isso, fica 
complicado trabalhar. Acho que esse sonho tem tudo a ver 
comigo. Sabe que é assim mesmo que me sinto? Eu estou no 
escuro. É assim: nunca mais vai amanhecer o dia... Nunca mais. 
Ontem mesmo tive esse sonho. Você não concorda comigo? 
— Você quer saber se concordo com a sua compreensão do 
sonho ou pergunta se acho que nunca mais vai amanhecer o dia? 
— Tinha perguntado sobre o sentido do sonho, porque acho 
que o sonho da gente sempre quer dizer alguma coisa, não é? Eu 
já l i sobre isso nas revistas. Agora, quanto à outra coisa que você 
falou, sei que nunca mais vai amanhecer o dia. Você entende o 
que quero dizer? 
— Entendo o que você está dizendo. Parece que o seu 
sonho mostra mesmo o momento que você vive agora: momento 
de uma mudança repentina, a impossibilidade de enxergar 
qualquer coisa, porque falta luz. O escuro assusta. E você acorda 
de tanto medo. O medo é de quê? Medo daquilo que já 
aconteceu? Medo do que está por vir? Ou será medo porque não 
há nada por vir? Medo porque não há futuro? 
— É medo de tudo. Mesmo quando não tenho sonho 
nenhum, muitas vezes acordo assustada. Faz muito tempo que nâo 
durmo direito. Você falou de futuro. Eu não tenho mais futuro. 
69 
Bile Tatit Sapienza 
Quando não se tem o que esperar, mesmo que a gente ache que 
vai continuar vivendo, não importa por quanto tempo, isso não é 
a mesma coisa que ter futuro. Como é que a gente vive sem 
futuro? 
— Será que não há futuro ou será que você não vê futuro 
porque está escuro agora? 
— De um jeito ou do outro, é a mesma coisa. Não posso ver 
nada porque está escuro, e, ao mesmo tempo, porque não há nada 
lá na frente pra ser visto. Eu sei que é assim. Tudo o que eu 
pretendia da vida, desde menina, acabou aqui nesta escuridão que 
me dá medo. E como na noite do meu sonho. E eu queria tanta 
coisa! 
— E se, na sua noite, ao menos surgisse a lua pra clarear 
um pouco, uma luazinha, só quarto crescente, depois, quem sabe, 
uma lua cheia? Será que daria pra enxergar alguma coisa? E, se 
desse, o que você veria? 
— Imagine só! A minha noite não tem lua nenhuma. E, 
mesmo que tivesse, não ia adiantar nada. Pode ser até que desse 
pra ver alguma coisa, mas seriam só coisas ruins. Não me iludo 
mais. Não espero mais nada de bom. 
— E as coisas que acontecem na vida são só aquelas que 
a gente espera? 
— Certamente não. Você pergunta isso justo pra mim! Não 
vale a pena fazer planos. Quem passou pelo que eu passei não 
espera nada. A gente não sabe de nada, não sabe do dia seguinte, 
não sabe nem do minuto seguinte. Bobo é quem fica imaginando: 
"Vai ser assim, assim, vou fazer tal coisa, isso, aquilo." Tudo 
besteira. Sem mais nem menos, sabe-se lá o que está por vir. 
— Pois então! 
— Então o quê? 
— Ora, como saber o que pode ainda acontecer? 
— Eu só sei que na minha frente o que há é só um vazio. 
— Quem sabe, se você começar a aprender a perceber as 
coisas mesmo no escuro, você vai poder distinguir um pouco mais 
o que ainda faz parte da sua vida, e, no meio disso, talvez possa 
70 
Do desabrigo à confiança 
enxergar alguma coisa que não tenha se estragado por completo, 
ou, talvez, alguma coisa não esperada possa acontecer. 
— Não sei o que é pior, se é o vazio, o escuro onde não há 
nada pra se ver ou se é o mim que pode vir a qualquer hora. Sabe, 
na verdade, eu não quero esperar nada. Esperança é coisa que 
não existe pra mim. 
— É isso. Ainda está tudo escuro. Vamos viver algum tempo 
no escuro. 
A moça já tinha parado de chorar. Recolocou a caixa de 
lenços em cima da mesa e disse: 
— O pior é que, esteja claro ou esteja escuro, a vida não quer 
saber disso. Com ânimo ou sem ânimo tenho de dar conta do meu 
trabalho. Pensando bem, até é bom. Se não fosse isso, minha 
cabeça já teria estourado. Quando estou muito envolvida com o 
trabalho, consigo me livrar um pouco dos meus pensamentos 
mins. Nos fins de semana fico pior. Ainda bem que tenho umas 
amigas que me chamam pra fazer qualquer coisa, quase sempre 
um cinema. Não curto mais ir a lugares movimentados. 
— Que pensamentos mins são esses que você tem? 
— Tudo o que aconteceu. Isso me tira a vontade de viver... 
Ter obrigações na vida é o que me segura. O trabalho tem sido 
a minha salvação. 
Ela passou a falar da sua rotina diária de trabalho, de um ou 
outro colega, do filme a que tinha assistido no último fim de 
semana. 
E assim a sessão tomou um ramo mais leve. 
A paciente olhou no relógio e disse: 
— Passou rápido. Já estamos terminando, não é? Engraçado, 
hoje eu tinha vindo com vontade de falar especialmente sobre uma 
coisa, e acabei falando de outra. Fica pra outra vez. 
A moça foi para casa e, antes de dormir, ao fechar a janela 
do quarto, viu um risquinho de lua. Lembrou-se da conversa que 
houve na terapia e olhou de novo. "Era só o que faltava, eu aqui 
71 
Bile Tatit Sapienza 
prestando atenção nessa bobagem", pensou. E olhou mais uma vez 
antes de fechar a janela. 
A terapeuta permaneceu ainda mais um tempo no consultório 
e começou a se lembrar da sessão: "Ela repete tanto que não sabe 
até quando aguenta, que preferia ter morrido. Será que pensa 
realmente em morrer? Pode ser só força de expressão, e pode 
não ser. Disse que tem obrigações na vida. A que será que ela se 
refere? Interessante o sonho. Parece um sonho exemplar. Não 
vai mais amanhecer. Se o dia não amanhece não há o dia seguinte. 
Ela perdeu o futuro. Viajei no sonho dela. Parece que senti o 
medo que ela sente do escuro repentino. Também sinto uma coisa 
meio estranha quando o tempo fecha de repente. É opressivo. Dá 
a impressão de que vai cair uma tempestade. Mas parece que a 
ameaça que ela sente é diferente, a tempestade dela já houve. O 
que assusta é nunca mais poder sair disso. Acabei falando aquela 
história de lua. Será que foi meio bobo? Será que ela percebeu o 
que eu quis dizer pra ela? Acho que essa história ainda vai voltar. 
Como é mesmo o nome daquele texto? Ah. . . é Desfecho: 
encerramento de um processo. Foi aí que l i alguma coisa sobre 
a compreensão que começa na penumbra, sobre a necessidade de 
não ter pressa. Ainda bem que hoje isto caminhou; estava com 
medo de me sentir perdida na sessão. Ah, se acontecesse alguma 
coisa boa na vida dela! O que é que poderia ser bom? Não faço 
ideia. Neste momento, se alguém me perguntasse pra que serve 
a terapia, ia ser difícil dizer. A gente pode tão pouco! Por que uma 
pessoa que está tão infeliz pega o carro, enfrenta o trânsito, e 
vem se encontrar com a gente? Vou levar este atendimento pra 
supervisão. Do jeito que ela estava no dia do acidente..., é incrível 
o quanto ela está melhor. Naquele dia, pensei que não houvesse 
o que fazer. O médico dela deve ser bom mesmo. Hoje dá pra 
perceber como ela é. Falou que o médico havia dito que teria de 
reconstituir seu rosto. Isso que é técnica! Ainda bem que isso 
existe. E a nossa técnica? Não dá pra pensar por aí. Não posso 
pensar em reconstituir a vida dela. O que será que eu posso?" 
72 
Do desabrigo à confiança 
Na outra sessão a paciente demorou uns dez minutos para 
chegar. A terapeuta pensou: "Será que ela não vem?" 
Logo ao chegar, ela se desculpou pelo atraso; disse que 
precisou ficar mais um pouquinho no trabalho. Em seguida 
começou a falar: 
— Queria conversar sobre uma coisa aqui. Isso me 
incomoda muito. Já contei pra você que estava com meu 
namorado naquele carro. Meu namorado...,já nem sei se ele era 
meu namorado. Saíamos juntos muitas vezes, todos os dias ele me 
mandava flores. Não sei mais se isso é namorar. Mas o fato é que 
estava com ele naquele dia, voltando da praia. Saímos de uma 
festa quase de manhã, tomamos café na padaria e pegamos a 
estrada. Tá certo que eu tinha bebido, mas ele tinha bebido muito 
mais, isso sem contar o resto. Em resumo, ninguém ali tinha 
condição de dirigir. O certo teria sido descansar ao menos um 
pouco antes. Foi loucura. E ainda havia neblina. Mas ele insistiu 
em vir. E aí deu no que deu. Não vi como foi o acidente, acho que 
peguei no sono um pouco antes. Numa certa hora, só vi o carro 
virando morro abaixo, e, quando parou, vi que havia sangue. Acho 
que eu tinha tentado proteger o rosto com as mãos. O cinto de 
segurança impediu que eu fosse jogada pra fora, mas assim 
mesmo devo ter me batido muito dentro do carro. Depois não vi 
mais nada. Daí só me lembro de estar no hospital, alguém limpava 
meu rosto, me deram algum remédio e dormi. Não o vi mais. 
Quando consegui melhorar daquele estado, perguntei por ele, e me 
disseram que ele estava bem e já tinha tido alta. Soube também 
que minha mãe tinha estado lá. A tarde fui removida pro outro 
hospital, onde fiz as cirurgias. Aí minha mãe me contou que ele 
havia sido muito bom, tinha pago os primeiros socorros, a 
remoção de ambulância, enfim..., e que depois entraria em 
contato comigo. Estou esperando até hoje... Só tinha o número do 
celular dele. Ele me dizia que seu trabalho era prestação de 
serviço de informática pra várias empresas, não tinha um lugar 
73 
Bile Tatit Sapienza 
fixo de trabalho. Então, fiquei sem nenhuma referência. Começo 
a falar e me desvio; o que queria comentar hoje com você é isto. 
Já aconteceu de, em conversa comigo, pessoas do meu trabalho 
me dizerem qualquer coisa que indica que elas acham que era eu 
quem estava dirigindo naquela hora. Elas falam como quem tem 
certeza. De onde será que vem essa ideia das pessoas? E tem 
mais. Minha mãe também já me disse isso. E não era eu. Não que 
isso faça diferença agora. Mas não era. Não estou ficando louca 
pra inventar isso. Sabe o que minha mãe chegou a me falar? "Tudo 
bem que você não se lembre; você bateu muito a cabeça..." Isso 
é um absurdo! Como se não bastasse tudo o mais, isso me 
incomoda muito. Digo pra pessoa que era ele quem estava 
dirigindo; a pessoa acaba dizendo que isso não é o importante e 
fica com uma cara de quem tolera que eu esteja mentindo, ou que 
esteja com a cabeça atrapalhada, sei lá. E fico com isso só pra 
mim. Por que tenho de passar por isso também? Será que, de 
repente, vou ter de acreditar mais nos outros do que em mim? Às 
vezes penso: "Como será que socorreram a gente? Será que 
quem ajudou a gente a sair lá de baixo não viu que eu estava do 
lado do passageiro?" Não vi nada, estava desacordada. Mas não 
posso duvidar de mim. Pense bem: por que eu iria inventar uma 
coisa dessas? 
Diante disso, a terapeuta se percebeu sem ter o que falar. 
A paciente ficou quieta por algum tempo. A terapeuta se lembrou 
de que o modo como a pessoa vê uma situação pode ser mais 
importante que o fato acontecido. Mas pensou também que, neste 
caso, a questão da paciente era diferente; dizia respeito 
exatamente ao fato de ela estar passando por mentirosa ou por 
incapaz de se lembrar de algo tão importante. Essa era a questão 
da paciente no momento. E a questão da terapeuta era: como é 
que eu entro nisso? 
A moça continuou: 
— Não é fácil. Posso ter muitos defeitos, mas mentirosa 
nunca fui . Também não quero que pensem que estou 
desmemoriada. Um dia falei pra minha mãe que eu não tinha 
74 
Do desabrigo à confiança 
perdido a memória. Daí ela me disse que tinha comentado isso na 
cabeleireira, e uma psicóloga que estava lá explicou que, mesmo 
sem perder a memória, eu devia ter me esquecido disso porque 
pra mim era difícil admitir que eu tivesse feito uma coisa tão 
horrível. Então, veja, não tenho saída. Você vê saída? 
— O que você considera como saída? Seria conseguir que 
acreditem em você? 
— Acho que mereço que acreditem em mim. Veja bem, 
quanto a tudo o que aconteceu, sei que não vai mudar nada se 
acreditarem ou não. Mas pra mim faz muita diferença. Chego a 
ter medo de começar também a desconfiar de mim. Será que vai 
acontecer isso? 
— Ninguém pode testemunhar a seu favor, não é? 
— É isso. Estou sozinha até nisso. Pensando agora. Você... 
você acredita em mim? 
— Não tenho nenhum motivo pra não acreditar em você... 
Mais que isso. Acredito em você. 
Quando a terapeuta disse isso, não foi para tranquilizar a 
moça. Era realmente o que sentia. Ao dizer "acredito em você", 
ela pensou: "Até agora nada me dá motivo pra não acreditar nela." 
A moça teve uma expressão de alívio. Ficou quieta por algum 
tempo e disse depois: 
— Já estava desistindo disso. Que bom! 
Isso foi o que aconteceu de principal na sessão desse dia. 
Depois que acabou, a terapeuta começou a refletir sobre o 
andamento daquele encontro e pensou: "Será que estou sendo 
ingénua nisso? E se isso for uma invenção meio delirante? Ou até 
uma mentira mesmo? Mas por que também não pode ser 
verdade? Se o acidente foi no início da manhã, ainda devia estar 
escuro, com neblina; se ninguém viu o que aconteceu, só vale a 
palavra do namorado. Por que ele seria mais confiável que ela? 
É verdade que ele deve ter providenciado o resgate, talvez tenha 
chamado gente pra ajudar; também pagou o hospital. Mas 
75 
Bile Tatit Sapienza 
também é verdade que sumiu depois. É estranho alguém sumir 
desse jeito. Ela não parece de nenhum modo alguém fora da 
realidade. Acho que é por isso que acredito nela. Pelo menos 
agora é assim. Também não é minha função ser detetive. Deve 
ser duro saber que os outros suspeitam assim da gente. Como se 
não bastasse tudo o mais, como diz ela. Sem contar com a 
primeira entrevista, hoje foi nosso terceiro encontro. Ainda é muito 
pouco pra saber como isto vai caminhar." 
A moça foi para casa, conversou um pouco com a mãe, e 
depois folheou uma revista que estava por ali. Fazia muito tempo 
que não lia nada. Ainda com a revista nas mãos pensou: "Ela 
disse que acredita no que digo. Ainda bem. Parece que acredita 
mesmo. Será que disse isso só pra eu me sentir melhor? Mas se 
fosse só isso, acho que ela iria falar só a primeira parte, quando 
disse que não tinha motivo pra não acreditar; mas ela acrescentou 
que acredita em mim. Também acho que uma psicóloga não fala 
coisas só pra agradar. Aquela que me atendeu lá no hospital me 
disse algumas vezes coisas duras de ouvir, mas que eu precisava 
ouvir." 
Foi pensando coisas assim que ela dormiu nessa noite um 
pouco menos infeliz. 
* 
Até agora estivemos falando sobre essas duas pessoas, a 
moça acidentada e a psicóloga que passou a atendê-la como 
paciente. Outra pessoa muito importante nesse caso, entretanto, 
é o homem que estava com ela naquele carro. 
A respeito dele, sei muito pouco. Sei que quando aquilo 
aconteceu fazia pouco mais de um ano que ele estava em terapia. 
Ao começar o caso com a moça, contou para seu terapeuta que 
ele estava saindo com uma garota linda, corpo perfeito e "o rosto, 
então, difícil um mais bonito". Acrescentou que não era nada 
76 
Do desabrigo à confiança 
sério, pois para ele as mulheres eram todas iguais, só mudando a 
embalagem. Na sessão seguinte ao acidente, diante da pergunta 
do terapeuta a respeito do que havia sentido quando viu o rosto 
dela desfigurado, respondeu: "Sou muito sensível pra essas coisas, 
não aguento ver sangue. Senti nojo." 
Sei também que a partir desse dia seu terapeuta sentiu que 
não tinha mais condição de atender esse paciente. 
Fizeram mais algumas sessões até que um dia o terapeuta 
disse a ele mais ou menos isto: 
— Temos de conversar sobre uma coisa. Faz já algum 
tempo que estamos juntos neste processo de terapia. Acho que 
conseguimos falar sobre uma porção de coisas da sua vida, seus 
interesses, algumas questões de trabalho, enfim,parece que 
conseguimos... Bem, mas agora, estou sentindo que alguma coisa 
não está caminhando como acho que deveria. Certamente que é 
limite meu. Em alguns momentos não estou à vontade com você 
em questões que esbarram muito de perto com valores que são 
meus. Isso prejudica o andamento da terapia. Acho que outro 
profissional poderia atender melhor você. Não é certo prolongar 
a terapia deste jei to. Não sei se você percebe o que está 
acontecendo da mesma forma como eu percebo. 
— Pra falar a verdade, nunca reparei nisso. Acho que a 
gente conversa legal. Se bem que, às vezes, você sai com umas 
perguntas muito caretas. Mas nem todo mundo pensa como eu, 
sei disso. Se você não quer mais me atender, ora ... não tem 
problema nenhum. Valeu. Acho que até já durou tempo demais! 
Foi bom pra eu ver bem quais são mesmo os planos que tenho pra 
minha vida. E isso, é legal a gente se ouvir falando. Mas, cara, isso 
me pegou de surpresa. Essa história de que é limite seu, de que 
não é certo continuar a terapia desse jeito, é tudo um jeito de me 
mandar embora. E chato isso, sabia? Não acho legal ser mandado 
embora. É traição da sua parte. 
— Se esse tempo serviu pra você pensar realmente quais 
são os seus planos pra sua vida, que bom! Quanto ao mais, 
acredite: não posso continuar seu atendimento. Tenho aqui os 
77 
Bile Tatit Sapienza 
nomes de duas pessoas que você poderá procurar. E espero, de 
verdade, que dê certo. 
O paciente colocou no bolso o papel com os nomes e disse 
com ironia: 
— Vou pensar no seu caso com carinho. 
A conversa acabou aí, porque em seguida o paciente se 
levantou, abriu a porta e saiu sem se despedir. 
Depois disso, não soube mais dele. Não sei se procurou outro 
terapeuta. 
* 
Quanto à terapia da moça, que já dura uns três meses, as 
sessões têm decorrido num clima depressivo, em que predominam 
pensamentos como estes: "Que coisa é essa, a vida, em que, de 
uma hora pra outra tudo muda? Por que essas puxadas de tapete? 
Por que comigo? Sofrimento tem alguma finalidade?" 
A terapeuta acompanha suas falas atentamente, com um 
interesse genuíno, e, frequentemente, tem a impressão de que nada 
tem para oferecer à paciente. E pensa: "Essas perguntas também 
são minhas. Qualquer coisa que eu quisesse dizer a ela com a 
pretensão de responder soaria falso." 
A moça sempre compara a sua vida de antes com a vida de 
agora. Antes, o maior prazer em ir a festas, em sair com amigos, 
muitas paqueras. Hoje, raramente sai. Vai uma vez ou outra ao 
cinema, de vez em quando vai com uma amiga para a praia. Não 
tem vontade de conhecer ninguém. Não gosta quando encontra 
velhos conhecidos. 
* 
Outro dia ela falou para a terapeuta: 
— Ontem foi meu aniversário. Minha mãe fez um bolo pra 
mim. Eu não quis chamar ninguém pra ir lá em casa. Mas tive 
uma surpresa lá no meu trabalho. Eles levaram bolo com velinha 
e tudo. 
78 
Do desabrigo à confiança 
— Quantos anos você fez? 
— Vinte anos. 
Chorou ao dizer isso, e acrescentou: 
— Não pensava que seria assim. Fazer vinte anos era pra 
ser um marco na minha vida. Desde pequena eu achava que era 
o máximo fazer vinte anos: a gente já não é uma menininha, e a 
vida está inteira. Cheguei deste jeito... Só desilusão. 
— Muita desilusão. Mas será que assim mesmo a sua vida 
não está aí? É certo que ela tomou outro rumo, mas... 
— Que é isso...? Não é que só tenha tomado outro rumo. 
Minha vida acabou. Isso sim! Estou viva, mas nada tem sentido. 
Não posso planejar nada. E a gente não vive sem planos. 
— O que aconteceu não cabia nos seus planos. O que não 
é planejado também acontece. A gente não se dá conta do quanto 
a vida está em aberto, até que topa com o imprevisto. 
— Ponha imprevisto nisso! Justo comigo, um imprevisto 
desse tamanho! Por quê? Sempre planejei a minha vida. Sabe, 
desde pequena nunca fui maria-vai-com-as-outras; sabia o que 
queria. Até pra comprar roupa eu preferia juntar algum dinheiro 
que desse pra comprar o que era do meu gosto. As vezes 
acontecia de nunca chegar a hora de comprar porque, quando 
tinha juntado o dinheiro, aquilo já tinha acabado na loja. Nem sei 
por que estou falando disso, não vem ao caso agora. Já sei. Estava 
dizendo que tinha vontade própria. Fazer planos era comigo! 
Nossa, quanto devaneio! Mas não eram coisas absurdas. Sabia 
que não podia contar com minha família. Quando meu pai morreu 
eu tinha dez anos e minha irmã cinco. Foi muito duro pra minha 
mãe criar a gente. Ainda bem que me deram uma bolsa no colégio 
onde eu estudava e consegui acabar o segundo grau. Minha irmã 
ainda está lá. Mas não pude ir em seguida pra faculdade; cursinho 
é caro. Além disso, me envolvi muito com meu trabalho. Minha 
mãe sozinha não dá conta de tudo. Ela já trabalhou muito e não 
tem boa saúde. Eu pago o curso de inglês da minha irmã. Não 
estou reclamando, não. É só pra dizer que, desde cedo, percebi 
que a vida não era fácil e que eu dependia de mim mesma. 
79 
Bile Tatit Sapienza 
Entende? Isso faz a gente não ficar à espera do que aconteça. A 
gente tem de fazer acontecer. 
— E, não dá pra ficar só esperando sem fazer nada. 
— Eu não tenho dúvida. Nada cai do céu. 
— A gente tem de fazer o que pode ser feito pra conseguir 
o que acha importante. Mas isso não dá garantia de que aquilo se 
realize. O que acontece resulta da ação da gente e também de 
uma porção de outras coisas que a gente não controla. Você não 
concorda com isso? 
— E. Infelizmente às vezes é assim mesmo. As coisas 
podem fugir do controle da gente. Disso eu sei. Mas, no meu 
caso, foi demais! Quando uma coisa acontece a tal ponto fora de 
qualquer expectativa, tão absurdamente, dá vontade de largar de 
tudo. A gente se desilude completamente, perde a confiança na 
vida. Eu estou assim. 
— Vejo que você perdeu a confiança. Mas como era a sua 
confiança antes? Em que você confiava e depois deixou de 
confiar? 
— Ora, eu sempre achei que a gente andando direito, fazen-
do as coisas como devem ser feitas, a vida tinha de dar certo. 
— O que você considera que é dar certo a vida? 
— Cada um sabe o que considera que é dar certo a sua vida. 
Acho que dar certo é realizar o que faz a pessoa feliz, é poder 
seguir o caminho que a gente planejou. 
— E o que você planejou pra sua vida? 
— Ah, tanta coisa! Sempre quis ser uma mulher com uma 
profissão, e há muito tempo decidi que queria trabalhar nessas 
coisas que dizem respeito à estética facial, corporal. Eu me 
imaginava lidando com cremes, maquiagem, produtos pra cabelos, 
tudo que se refere à beleza. Isso pode parecer uma futilidade, mas 
pra mim não. Quando era criança e me perguntavam o que eu 
queria ser quando crescesse, dizia que queria ser dona de salão 
de beleza. Talvez essa ideia tenha vindo porque parece que já 
nasci vaidosa. Gostava de brincar de arrumar o cabelo das 
meninas, de maquiar as bonecas. 
80 
Do desabrigo à confiança 
— Você fala sobre seus planos de trabalho. E fala também 
que perdeu a confiança na vida, perdeu a confiança na 
possibilidade de seus planos darem certo. Essa desconfiança vem 
a partir do seu acidente, não é? Mas por que o acidente a 
impediria de realizar o trabalho de que você tanto gosta? 
— Dói ter de admitir isto. Dói dizer isto com todas as letras: 
eu fiquei feia. Veja bem: f-e-i-a. É a primeira vez que pronuncio 
essa palavra em voz alta pra me referir a mim. Sempre falo coisas 
como "o que aconteceu comigo", ou "já não sou como era antes", 
ou "não me reconheço", coisas mais ou menos assim. Me dói 
dizer isto. Hoje eu sou feia. É assim que estou comemorando 
meus vinte anos. Não é só uma questão de poder ter um 
determinado trabalho. Mas o trabalho com que sempre sonhei me 
lembra a toda hora o que me aconteceu, quer dizer, me lembra que 
estou feia. Não me acostumo-com isso. Sabe, de manhã eu tomo 
banho, escovo os dentes, passo um pente no cabelo de qualquer 
jeito, um batom e saio, mal me olho no espelho. Eu não era assim. 
Não gosto mais de me ver. Você acha que posso achar graça em 
circular peloslugares onde só se fala de beleza, eu, com esta 
cara? 
Com aquela pergunta relativa a planos de trabalho, a 
terapeuta tinha tido a intenção de aproximar para a moça a ideia 
de que sua vida não estava completamente fechada. Aliás, ela 
continuava a trabalhar na mesma empresa de antes, e, segundo 
o que havia contado, estava se dedicando muito às suas novas 
funções. Mas o que aconteceu foi outra coisa: o pensamento da 
paciente seguiu outro mmo, entrando fundo no foco de sua dor. 
E, chorando, a paciente continuou: 
— Vinte anos ontem, e deu tudo errado. 
E a terapeuta pensou: "E agora? Ela tem razão no que está 
falando. Uma vida toda baseada no fato de ser bonita. O que eu 
digo pra ela?" 
Enquanto ainda pensava no que diria, ouviu da paciente: 
— Você sabe o que significa dar tudo errado? Aquilo em que 
a gente apostou, de repente, diz: isso não é pra você, você não 
81 
Bile Tatit Sapienza 
serve mais; bate com a porta na cara da gente. Falando assim, 
você pode até pensar que fui sempre fútil. As pessoas costumam 
dizer que beleza não é tudo, nem é o mais importante. Mas era 
assim que eu me conhecia. E nunca tirei vantagem da minha 
aparência. Você entende? Não faltam homens dispostos a fazer 
de tudo por causa de mulher bonita. Ficam bobos. E há alguns 
velhos ricos, então, que são piores. Ainda mais depois que 
inventaram o viagra. Coitados, eles se sentem tão poderosos! 
Qualquer dia te conto as cantadas que já levei. Mas tive uma boa 
formação. Acho que isso vem da educação que minha mãe me 
deu. Eu sabia que era bonita, e procurava fazer disso uma coisa 
que me abrisse portas para o trabalho. Não nego que sentia muito 
prazer quando as pessoas me olhavam, me elogiavam, é natural. 
Qualquer mulher sabe que isso é muito bom. Eu pretendia amar 
uma pessoa, queria casar, sabe? Como é que vai ser isso agora? 
Não sei como começaria um namoro. E não é só por causa das 
minhas cicatrizes. Há uma outra coisa. Como é que vou acreditar 
num homem agora? Estava gostando dele, entende? Não sei o que 
pensar dele. Como é que uma pessoa some assim? Confiar em 
quem? 
— Você tem razão nisso tudo. É duro levar da vida uma 
puxada de tapete como essa que você levou. Veja, mesmo 
sabendo que o sofrimento de cada um é único, sabe o que me 
vem à lembrança neste instante? Um compositor, um grande 
músico que fica completamente surdo. Olhe o que a vida apronta! 
Já pensou no que significa para um grande músico não poder ouvir 
a música que compõe? Você já ouviu a Nona Sinfonia de 
Beethoven? Pois ele mesmo não ouviu. Ele tinha consigo os sons, 
a melodia, e deu aos outros essa música, deu ao mundo. E ainda 
acrescentou no final a Ode à Alegria, melodia para os versos de 
um poeta, Schiller. Não é demais? Justamente Ode à alegria. 
Quando começou a ficar surdo, podemos imaginar que talvez ele 
tenha pensado: "Justo comigo; como é que vou fazer música?" 
Pois ele fez. Agora, com você, não sabemos ainda como vai ser. 
Mas acredito que a vida vai mostrar no tempo certo. 
82 
Do desabrigo à confiança 
— Esse era um génio; já ouvi falar dele, mas eu não sou 
Beethoven. 
— Não, não é. Você é você. Mais bonita ou menos bonita, 
você é você. Ainda se tivesse ficado feia, você é você. O que 
você tem pra dar ao mundo? 
— Nossa! Eu levei a maior paulada do mundo. Se tiver de 
dar alguma coisa vai ser só a minha revolta. Não tenho mais nada. 
Me tomaram tudo. 
— E o que você pretende fazer pra manifestar a sua revolta? 
^ — Sei lá! 
— Pense um pouco. Se revoltar contra o mundo, ora, isso 
é muito vago. O mundo vai se importar com a sua revolta? Que 
coisas do mundo vão ser atingidas por ela? Árvores, casas, carros, 
cachorros, ou o quê? São as pessoas? Que pessoas? 
— Sei lá! As pessoas más. 
— Pessoas más não costumam se importar com isso. 
— Depende. Mas, de alguma forma, essas pessoas têm de 
pagar pelo que fazem. 
— Ao dizer isso, você pensa mais exatamente em quem? 
— Nele. Ele não pode simplesmente fazer o que fez e ficar 
tudo por isso mesmo. O desastre foi culpa dele. Depois pagou o 
hospital, grande coisa! Queria ver se eu tivesse morrido. Como é 
que ele ia fazer pra se ver livre de mim? Ia me deixar largada lá? 
Pensei muito em morrer depois. Quando comecei a vir aqui eu 
pensava nisso. Tenho ainda em casa uma caixa dos remédios que 
tomei pra dormir no hospital. Era só tomar tudo de uma vez. Ou 
podia fazer qualquer outra coisa; há muitos jeitos de morrer. Só 
não faço isso porque tenho minha mãe e minha irmã. Elas não 
merecem passar por isso. Já pensou? O que ia ser delas? Mas, 
se eu morresse, quem sabe ele ficaria sabendo da notícia e teria 
remorso. Sabe, por um tempo, pensei que, mesmo se resolvesse 
morrer, queria contar essas coisas todas pra você, assim, pelo 
menos iria existir no mundo alguém sabendo de tudo. Alguém 
precisava saber do quanto não aceito isso tudo. Não aceito estas 
cicatrizes. Não aceito ter de passar por uma irresponsável que 
83 
Bile Tatit Sapienza 
causou o acidente e não é capaz de assumir isso. Não aceito ter 
tido um homem que, depois de tudo, some como se tivesse 
evaporado, como se eu tivesse sonhado que ele existiu. Isso não 
é justo comigo. Mas você tem razão. Quem vai se importar com 
isso? 
— Quando perguntei se o mundo iria se importar com a sua 
revolta, queria que você tivesse a clareza de discriminar qual é o 
alvo dela, quem você quer atingir. Você quer atingir alguém. Mas 
tem uma capacidade de amar que faz com que não queira 
prejudicar certas pessoas; não quer, por exemplo, que sua mãe e 
sua irmã sofram por você. Apesar da sua revolta, você mantém 
essa capacidade de ter consideração, de ter cuidado para com os 
seres humanos. Isso é sinal de que o que aconteceu não arrasou 
você completamente. Você disse há pouco que tinha perdido a 
confiança na vida. Mas veja, você tem confiado em mim, senão 
não estaria aqui abrindo todas essas coisas. Não acho que você 
me conta essas coisas só pra que haja uma pessoa sabedora de 
suas desgraças. Mesmo porque, o que eu faria com essas 
informações? Você me vê como alguém que se importa com sua 
vida, que pode compartilhar seu sofrimento. Então, você consegue 
sentir o que significa o outro ser humano, e isso mostra que alguns 
aspectos do seu mundo, de você mesma, estão preservados, e, se 
é assim, a vida ainda pode recobrar algum sentido. Você disse que 
não é Beethoven. E não é mesmo. Quem é você? Como você é? 
O que é próprio de você? Acho que seria bom você se conhecer 
mais, saber que outras características também são suas, além 
daquelas, como a vaidade, por exemplo. O que mais faz parte de 
você? De seu ser? Será que a sua história acabou aí? Você tem 
consciência de que faria falta pra sua mãe, pra sua irmã. 
Certamente faria falta pra muitas pessoas que gostam de você. 
Quando eu disse que você é você, eu queria dizer que, embora 
possa ter mudado alguma coisa em sua aparência física, você não 
deixou de ser quem é, e sua história continua. Isso quer dizer 
também que, quanto aos seus projetos de vida, eles vão continuar 
aí cobrando você, pedindo pra que sejam realizados. Você 
84 
Do desabrigo à confiança 
realmente não é Beethoven, não tem de dar música ao mundo. 
Olhe, tomara que você perceba que o que tem pra dar ao mundo 
continua sendo a realização da sua vida da maneira mais plena 
que você puder. 
Neste ponto, a moça já não chorava Sua expressão tinha mu-
dado. E a terapeuta estava meio assustada com o que tinha aca-
bado de dizer. "De onde saiu tudo isso que eu falei?", pensou ela. 
Depois que a sessão acabou, já fora da sala, a terapeuta 
abraçou-a e disse: "Parabéns pelos seus vinte anos. Desejo que 
você seja muito feliz." 
A expressão da moça era a de quem percebia que esse 
cumprimento era sincero, e, também com sinceridade, disse 
apenas: 
— Obrigada. 
Quando chegou em casa sua mãe lhe disse que havia um 
recado do hospital para que ela entrasse em contato com a 
secretária do seu médico. Como já era noite, deixou para ligar no 
outro dia. 
* 
Na outra sessãohouve este diálogo: 
— Sabe, aquela música de que você falou? No outro dia, 
depois que saí daqui, comprei o CD e escutei quando cheguei em 
casa. Aquele pedaço do final a gente às vezes ouve nos 
casamentos, na saída dos noivos, não é? Eu não sabia qual era o 
nome. Superlindo. E o cara surdo! Nunca tive costume de ouvir 
música desse tipo. Minha mãe me disse: "O que deu em você? 
O maior tempo sem ouvir nada e hoje vai ouvir logo Beethoven! 
Estou gostando de ver." E verdade mesmo, nunca mais tinha 
ligado o som. 
A terapeuta disse: 
— Que bom que você gostou! E lindo mesmo. 
85 
Bile Tatit Sapienza 
E acrescentou, meio cantarolando: 
— E aquela do tchan-tchan-tchan-tchan, você já ouviu? 
E a paciente, também cantarolando: 
— Esse pedaço do tchan-tchan-tchan-tchan já. 
Foi inevitável que as duas rissem. 
— Essa é dele também, é a Quinta. 
— Quinta o quê? 
— Sinfonia 
Alguma coisa nova tinha surgido. Parece que veio do nada. 
Na ida para casa a moça pegou um trânsito muito lento, e, 
num certo momento, com o carro parado, ela olhou para o céu e 
viu a lua; era quarto crescente. Uma bobagem, mas isso a fez se 
lembrar do dia em que a terapeuta, a propósito do seu sonho com 
a noite repentina, tinha lhe falado da possibilidade de haver uma 
lua em sua noite, ainda que fosse quase nada, só quarto crescente. 
Ela se surpreendeu quando sentiu que tinha sorrido um pouco. "Eu 
aqui presa neste trânsito. Rindo por quê? Devo estar mal 
mesmo", pensou. 
* 
Uns dias depois, ela falou: 
— Tinha me esquecido de contar pra você. Na semana 
passada recebi um recado do consultório do meu cirurgião. É que 
estava na hora do retorno pra uma avaliação de como tinha ficado 
meu rosto depois desses meses. Fui lá, e ele me falou que está 
contente com o resultado, mas que ainda há o que ser feito. Agora 
que meu rosto está desinchado é hora de alguns procedimentos 
que podem melhorar mais minha aparência. Ele não entrou muito 
nos detalhes do que deve ser feito, mas disse que há técnicas 
incríveis atualmente. Quando eu disse que, provavelmente, isso 
tudo sairia muito caro, ele falou que havia chance de fazer meu 
tratamento entrar como parte de uma pesquisa que está realizando 
86 
Do desabrigo à confiança 
pro seu trabalho de pós-doutorado, e que ele dispõe de uma verba 
pra isso. Ficou de me avisar quando devo voltar lá pra tratar desse 
assunto. 
Ela acrescentou ainda: 
— Você é a primeira pessoa pra quem estou contando isso. 
Não sei se acho bom ou se fico com medo. Dá medo de depositar 
muita esperança e depois não dar certo. Mas se der certo mesmo, 
não vou nem acreditar. Não esperava mais nada. Na hora em que 
ele falou, e ele falou com tanta certeza, fiquei emocionada. Por 
um momento me passou a ideia de que eu poderia voltar a ser 
como antes. 
— Você está feliz então com essa possibilidade. 
— Não digo que não esteja, mas não quero embarcar em 
expectativas. 
* 
Numa sessão que ocorreu uns dois meses depois, a moça 
contou o seguinte. Seu chefe pediu sua ajuda na preparação e na 
execução de um evento, quando começariam a divulgar um novo 
produto. Ela achou difícil responder na hora, ficou confusa, tentou 
recusar. Disse a ele que poderia ajudar permanecendo no 
escritório. Diante disso, o chefe falou então: "Você não acha que 
já está há tempo demais entocada nesse escritório? A gente 
precisa de você lá fora também. As meninas que vão fazer as 
demonstrações precisam de alguém como você, que tenha mais 
experiência e capacidade de liderança. Até quando pensa que 
pode ficar fugindo do que é preciso fazer? Não estou querendo 
pressionar você. Tenho respeitado esse seu tempo de 
recuperação, sei que passou por um trauma grande, mas você não 
espera que isso dure pra sempre, não é? Além de tudo, isso não 
faz bem pra você. Pense sobre isso. Quero sua resposta 
afirmativa, certo?" 
Acabou de relatar isso e acrescentou: 
< — Fiquei aflita com essa história. Ele foi muito compreensivo 
íMse tempo todo. É verdade que tenho produzido bastante; o 
87 
Bile Tatit Sapienza 
trabalho lá nunca esteve tão bem organizado e em dia como depois 
que comecei a ficar no escritório. Por que agora ele vem com 
isso? E ele estava falando sério. Tenho até medo de não fazer o 
que está pedindo. E se ele me manda embora? Não posso correr 
esse risco. 
— E. Você tem aí uma questão pra resolver. Ou escolhe 
aceitar o trabalho, colaborar com seu chefe e as colegas que 
precisam de você, ou, escolhe continuar a se esconder. Do que 
você está se escondendo? 
— Não estou propriamente me escondendo. Acontece que 
não tenho mais a mesma desenvoltura pra aparecer em público. 
Se bem que, nesse evento, eu estaria mais nos bastidores 
orientando e preparando as meninas. Mas, mesmo assim, pra mim 
é duro, sabe? 
— Você tem medo do quê? 
— Não é medo. É que não gosto de saber que vão fazer 
comparações. Nesses ambientes dão muito valor pra essas coisas. 
Uma espinha que surge na testa de alguém já é motivo pra 
comentário, fulana engorda meio quilo e já dizem que está gorda. 
E assim. 
— O pessoal que vai estar lá sabe do seu acidente? 
— Ah, sim. Todo mundo sabe. Aliás, depois disso, já estive 
com quase todas aquelas pessoas. O pessoal sempre foi muito 
simpático comigo. 
— Então? O que acha que vai acontecer se, nesse ambiente 
de meninas bonitas, você exibir seu rosto? 
— Meu rosto era perfeito. Veja agora. Esta marca na minha 
testa, está até um pouco afundada aqui — e pela primeira vez 
ergueu a franja para mostrar —, cicatriz aqui, aqui, aqui. Você 
queria mais? Você não deve saber o que é isto, porque seu rosto 
está intato. O que vai acontecer é que vou me lembrar mais ainda 
do que perdi. Não venha me dizer que a beleza não é tudo, que 
a beleza vem de dentro. Isso eu já ouvi demais. E também não 
quero que tenham pena de mim. 
— Concordo com tudo o que diz. Só não concordo quando 
diz que, se você se expuser, vai se lembrar mais ainda do que 
88 
Do desabrigo à confiança 
perdeu. Talvez, num primeiro momento, a lembrança venha mais 
intensa mesmo. Mas me parece que, a todo momento, você já 
carrega essa lembrança do que foi perdido. Mais que uma 
lembrança, parece que isso ocupa sempre o centro de tudo. E no 
que você mais pensa. Sua aparência. Pode ser que, conseguindo 
se aproximar mais das pessoas, perceba que elas não estão 
pensando em você o tempo todo. Elas pensam em outras coisas 
também. É pra você mesma que você tem sido preocupação todo 
o tempo. E você tem se visto sempre como se estivesse reduzida 
a essas cicatrizes. 
— Você está sendo dura. 
— Estou dizendo o modo como vejo as coisas neste 
momento. Não dizer isso seria, de pena de você, contribuir pra que 
continue a se esconder. E, pelo que você contou, parece que, por 
meio de seu chefe, o mundo está dizendo que precisa de você. 
— Já disse que não quero que ninguém tenha pena de mim. 
Falei que você foi dura porque é duro ouvir isso. Sempre achei 
feio gente que só pensa em si. E você me diz que só me preocupo 
comigo, que estou me achando o centro de tudo. Pode ser que eu 
esteja me achando no centro, mas não é por me sentir importante; 
é por causa da tristeza que sinto; isso me impede de pensar noutra 
coisa. 
— E é uma tristeza revoltada, que não pode aceitar o que 
se alterou em seu rosto. Mas o fato de não aceitar não muda em 
nada o acontecido. Você apenas se esconde e se fecha. Não 
gostaria de, mesmo triste, deixar entrar mais ar na sua vida? 
— Bem que gostaria. Tenho saudade da minha vida. E 
engraçado isso de se ter saudade de si mesma. Pensando bem, 
não é só do meu rosto que tenho saudade. É também de como eu 
era. Tinha o maior pique, tanto pra me divertir como pra trabalhar. 
Acho que é por isso que meu chefe quer que eu volte a participar 
das atividades. Mais um pouco e já vai fazer um ano do meu 
acidente, e desde então estou neste desânimo. O que tenho feito 
é trabalhar, saio muito pouco; ainda bem que minhas amigas me 
procuram; vou ao cinema. Mas nunca mais saí com rapaz nenhum. 
89 
BileTatit Sapienza 
Outro dia estava com um colega de trabalho numa lanchonete no 
prédio da empresa. Pedimos café e pão de queijo. Na hora de 
pegar o pão de queijo no balcão, pusemos as mãos na mesma 
hora. Ele segurou minha mão por um momento. Eu me assustei. 
Ele pediu desculpa e disse: "Não leve a mal, por favor." Fiquei 
sem jeito e respondi que não era nada, que tinha sido um acaso. 
Daí ele disse: "Não foi acaso. E já que fiz isso, quero te dizer uma 
coisa. Por que a gente não sai um dia pra comer uma pizza, tomar 
qualquer coisa? A gente podia se conhecer melhor fora do 
trabalho. A gente se dá tão bem. A não ser que algum namorado 
ciumento não te deixe sair." Fiquei atrapalhada. Não esperava. 
Disse que agora não, quem sabe algum dia, enfim, nem sei direito 
o que falei. Ele disse que estava bem e ficou tudo por isso 
mesmo. Mas sabe que depois fiquei me lembrando do toque da 
mão dele? Há quanto tempo não tenho ninguém que me faça um 
carinho. Tenho saudade disso. 
— Parece que você começa a querer ser feliz de novo. 
A sessão já estava no final. 
Ao sair a moça disse: 
— Valeu! 
Depois, a terapeuta pensou: "Nossa, como foi duro dizer 
aquilo. Me lembro do que senti ao vê-la pela primeira vez naquele 
hospital. Naquela ocasião, como é que eu iria pensar que algum 
dia falaria isso pra ela? Mas a vida dela tem de ser retomada. É 
aquela história do 'cuidado'. O modo como ela está cuidando da 
própria vida acaba por reduzir muito sua existência. Ela ainda tem 
muito pela frente, não é justo que murche desse jeito. O fato de 
ter conseguido se dedicar tanto ao trabalho, de pensar tanto na 
mãe e na irmã, isso já mostra que ela tem garra. Mas ela tem mais 
o que viver. Como ela é diferente daquela descrição feita pela tia 
fulana naquela noite em que contei da moça que eu tinha visto no 
hospital. Esse aperto que o chefe deu pode ter sido uma coisa 
boa. Curioso isso de terapia. A gente tem de aproveitar a chance 
90 
Do desabrigo à confiança 
dada por coisas assim e entrar por aí. É isto. O desenrolar-se da 
vida é a matéria-prima da terapia. É essa a matéria com que a 
gente trabalha. Mas é o que se desenrola fora ou dentro da 
pessoa? Ora, esta pergunta não tem sentido, se estou pensando 
na existência como ser-no-mundo; se só 'há' 'mundo' para o 
Dasein; se o Dasein 'precisa' de 'mundo' para ser. O que seria 
o fora e o que seria o dentro? Acho que isso do desenrolar-se da 
vida deve ter a ver com aquele tal acontecer das coisas, a tal 
doação de ser de que o professor falava na palestra. E para o 
Dasein que tudo que 'é ' se manifesta, é para ele que a 'doação' 
de 'ser' se dá. Nossa, espero que eu não esteja extrapolando. 
Mas é isso, a vida não pára de acontecer. O paciente vem porque, 
nesse acontecer, alguma coisa se complicou muito pra ele. E, 
durante a terapia, tudo continua acontecendo, tanto dentro da 
sessão quanto fora dela. Hoje, por exemplo, ela trouxe coisas que 
tinham acontecido lá no seu trabalho. Olhamos para isso, e esse 
olhar é também um acontecer. Nós duas estávamos atentas a 
algo que começou a se manifestar ali na sessão, algo que, como 
sempre, mostra alguma coisa e oculta alguma coisa. E o que a 
gente tem de fazer é ampliar a desocultação; é permitir que aquilo 
possa ser pensado, possa ser posto em linguagem. Será que estou 
no caminho da fenomenologia? Houve um momento em que me 
pareceu que ela ficou meio brava comigo, na hora em que ela 
disse que eu estava sendo dura com ela. É compreensível que, 
depois de tudo, ela encare como sendo rudeza qualquer coisa que 
pareça uma cobrança; a vida é que tem uma dívida com ela. Só 
que a gente sabe que as coisas não são assim. A vida é sempre 
credora. Ela pode dar no máximo uma moratória, um prazo pra 
que a pessoa se reorganize. E é duro mesmo ouvir isso. Ela não 
esperava o que eu disse. Eu podia ter comentado isso com ela, ter 
falado do que ela sentiu com relação a mim; mas privilegiei outra 
coisa, achei que devia falar dela com relação a ela mesma, com 
relação àquilo que diz respeito à vida dela fora da sessão. A vida 
dela não gira em tomo de mim; o terapeuta não é o centro da vida 
do paciente; não que isso não possa acontecer e que não deva ser 
91 
Bile Tatit Sapienza 
conversado quando acontece; mas não precisa ser alimentado. 
Chega de pensar por hoje. Amanhã levo isso pra supervisão." 
A moça saiu da sessão pensando: "Hoje estou cansada. Não 
estou bem. Vou só tomar um leite e cair na cama; preciso dormir." 
* 
Num outro dia, num certo momento da sessão a conversa 
tomou este rumo: 
— Hoje participei de uma reunião com o pessoal lá do 
trabalho. Era pra tratar do lançamento da linha de produtos que 
vem aí. A gente tem de começar a campanha logo, pra ver se sai 
ainda este ano. Você sabe, isso envolve contato com pessoal de 
publicidade. Eles precisam conhecer o produto. Eles também 
querem saber pra que público o produto é destinado. O fulano, 
colega nosso, já ficou de procurar um publicitário amigo dele. E, 
junto com isso, a gente precisa continuar vendendo a linha de 
maquiagem. É por isso que meu chefe me falou naquele dia que 
eu ia ter de trabalhar com as meninas que desfilam. Já contei pra 
você que sou boa nisso. Elas sempre dizem que tenho mão boa 
pra maquiar. Adoro isso. A mesma facilidade que tenho pra 
maquiar as outras tenho também pra me maquiar, aliás, tinha. 
Agora não uso mais nada. É rosto lavado e um batom de leve. Às 
vezes olho o rosto de uma mulher, pode ser em qualquer lugar, na 
fila do banco, no supermercado, e já imagino como ficaria se 
fosse bem maquiado. Acho que a pessoa tem de ter bom senso 
pra isso. Você não pode usar pra ir trabalhar, pra ir a uma reunião 
de amigos, o mesmo que usaria pra uma festa à noite, um 
casamento, por exemplo. Fica ridículo. Cada coisa na sua hora. 
Não gosto desse estilo perua. Acho que as coisas têm de ter 
harmonia, têm de ser adequadas. A mesma coisa é com roupas. 
Lá em casa, a gente nunca teve dinheiro sobrando, mas eu sempre 
cuidei de me vestir de um modo que tivesse a ver com a ocasião. 
92 
Do desabrigo à confiança 
Mesmo não tendo muita roupa, é sempre bom ter a roupa certa. 
Você não acha? Minha irmã, ela tem quinze anos, sabe, ela é um 
pouco exagerada, mas espero que aprenda. A gente estava 
falando de maquiagem, não é? Então, não é só ir passando bases 
e sombras, essas coisas, mas a pessoa precisa cuidar do estado 
da pele. Aprendi, acho que foi numa aula de biologia, que a pele 
é um órgão. Não é incrível? Então, a gente tem de cuidar. Veja 
só, a pele está em contato com o mundo externo, sofrendo 
agressões de fora o tempo todo, essa poluição e tudo o mais. 
Falar em agressão... , veja o que aconteceu comigo. Ponha 
agressão nisso que me aconteceu. E foi de uma hora pra outra. 
O esperado é que a pele vá se transformando aos poucos; a 
pessoa envelhece. Mas não isso de a gente amanhecer de um 
jeito e no fim do mesmo dia estar desfigurada. Que ódio eu tenho 
daquele desgraçado. Maldita,hora em que conheci aquele cara. 
Não dá pra aceitar isso tudo que aconteceu. 
— Essa é uma dessas coisas que a vida joga pra gente. 
Diante de algumas coisas que a vida oferece, ou até mesmo 
empurra pra gente, é possível dizer "não quero", é possível 
escolher recusar. Diante de outras, não. Ela não deixa alternativa. 
Acontece e pronto. Não cabe escolha nesse momento. O que 
cabe escolher depois é o modo como se vai viver com o 
acontecido. Ninguém escolhe ter os ferimentos que você teve. 
Mas teve. E agora? Agora aparece um novo campo de escolha. 
Como é que você vai querer viver com isso que aconteceu? 
— Pra quem está de fora é fácil dizer isso. Eu não sei. Eu 
não tenho escolha. 
— Mas ter de escolher faz parte da vida. E se você não 
escolhe, está escolhendo não escolher. Você quer transformar o 
resto da sua existência num grande lamento por suas cicatrizes? 
Você já me falou várias vezes de seus planos de vida, de suas 
metas, e de como elas foram interrompidas. Ter planos, saber o 
que quer conseguir, claroque isso faz parte da vida. Mas o que 
mais pra você significa existir? Será que era só mostrar o seu rosto 
bonito? O que eu quero dizer é isto. O que mais existe pra nortear 
93 
Bile Tatit Sapienza 
a sua existência? Tudo o que você tinha pra realizar no mundo 
teria de passar, necessariamente, por um rosto absolutamente 
perfeito? 
— Pensando assim, eu sei que, tudo, não. Mas na prática é 
assim. A pessoa aprende a se ver a vida inteira de um modo, a 
vida se encaminha por ali, a história da gente vai sendo de um 
jeito, e a gente não sabe viver de outro jeito. 
— Será que é só questão de não saber viver de outro jeito? 
Será que, no seu caso, isso não tem a ver com a vergonha que 
você sente do seu rosto? 
— Não, não é vergonha. Não acho que a pessoa deva ter 
vergonha de alguma coisa que não é desonra. Mau-caratismo sim 
é que é vergonha. Não uma doença ou outra coisa assim. 
— Outra coisa assim. Você quer dizer cicatrizes no rosto? 
— É... 
— Se não é por vergonha, quando você não quer mais sair, 
não quer conhecer gente, não quer rever pessoas, não quer 
aparecer junto às outras meninas sem cicatrizes, por que é então? 
— Eu acho que tenho vergonha mesmo. 
E depois de um tempo: 
— Por que a gente sente vergonha? 
— Não sei exatamente por quê. Talvez seja porque a beleza, 
a perfeição de formas, e isso sempre segundo alguns padrões, é 
um valor. Isso pode ser visto na história toda da humanidade. E 
principalmente a beleza feminina. No seu caso, se você sente 
vergonha, como é essa vergonha? 
— É a comparação que me incomoda. Me incomoda o olhar 
da outra pessoa. Se é alguém que já me conhecia, acho que está 
pensando "nossa, como ela mudou, coitada"; ou pode ser que, por 
dentro, ela diga "bem feito", ou, mesmo que não seja tanto assim, 
pelo menos vai pensar "veja como a vida é, essa aí, toda bonita, 
vaidosa, olha só agora". Você sabe como são as pessoas. Você 
sabe que tem gente que gosta quando o outro se ferra. Tem gente 
que não suporta ver que a outra pessoa tem alguma coisa que ela 
não tem, ou que ela tem menos. Então, quando a gente perde, elas 
94 
Do desabrigo à confiança 
gostam. E, se é alguém que não me conhecia deve pensar "o que 
será que aconteceu com ela?", e, mesmo que não fique me 
perguntando, sei que depois vai perguntar pra alguém. Isso me 
chateia, ser objeto de curiosidade para os outros, entende? 
— Ser objeto de curiosidade sempre chateia? Antes você 
achava muito ruim quando as pessoas ficavam curiosas a 
respeito, por exemplo, do perfume que você usava, ou de quem 
era seu novo namorado, ou coisas assim? 
— Isso é diferente. É até estimulante saber que estão 
prestando atenção na gente. Mas no meu* caso agora é 
completamente outra coisa. Não é propriamente a curiosidade que 
incomoda. É que ninguém gosta de se sentir inferior. 
— Então, o que incomoda, tanto na comparação que as 
pessoas podem fazer como na curiosidade que elas podem ter, é 
se sentir inferior. Será que a vergonha começa por aí? Acho que 
a vergonha é esse incómodo, não é? 
— Mas você acha que alguém pode gostar de se sentir 
inferior? 
— Acho que ninguém gosta de se sentir inferior, 
especialmente naquelas coisas que valoriza. Se a pessoa valoriza 
muito a inteligência, não vai gostar de se sentir inferior nessa área; 
se valoriza muito o dinheiro, mesma coisa; o bom mecânico não 
quer perder em comparação com outro mecânico. Mas é razoável 
poder admitir que outro possa ser mais inteligente, mais rico, 
melhor mecânico; admitir a possibilidade de não ser o máximo, 
mesmo naquela coisa que se valoriza tanto. Será que você não 
pode admitir não ser o máximo em matéria de beleza? E aquilo 
que eu perguntei há pouco pra você. Será que tudo que você pode 
e quer fazer na vida precisa depender de um rosto absolutamente 
perfeito? 
— Não. Absolutamente perfeito, não. Mas também você há 
de concordar que não precisava ter estas marcas que ficaram. E 
minhas marcas não são só no rosto... Sabe, elas ficaram na minha 
alma... Na estante lá de casa onde estão os livros que foram do 
meu pai, vi um livro em francês com o nome La mort dans l 'âme, 
95 
Bile Tatit Sapienza 
quer dizer, A morte na alma. É de um autor chamado Sartre, não 
sei se você conhece. Eu não sei qual é o assunto do livro, mas na 
hora em que vi esse título, pensei: "E isso o que eu tenho." Sabe, 
alguma coisa muito profunda em mim morreu, e a dor é muito 
intensa. Você sabe o que é isso? São sonhos perdidos, e quem está 
de fora poderia dizer: "Amime outros sonhos." Mas não é fácil. 
Porque os sonhos da gente envolvem outras pessoas; a gente 
precisa poder confiar em alguém, senão como é que se pode ser 
feliz? É horrível não poder acreditar em ninguém. Pior ainda, não 
poder confiar nem em si mesma. Pois como é que vou confiar em 
mim, se pude me enganar daquele jeito? Como é que a gente ama 
uma pessoa daquele tipo? Se depois, até numa coisa tão concreta, 
de tanto todo mundo falar, quase perco a certeza de que não era 
eu quem dirigia o carro? Quando a gente se arrisca a perder até 
uma certeza como essa, o que sobra? Que papel eu fazia nessa 
história? Quem era eu? Tem hora em que piro um pouco e acho 
que essa história não existiu, ele não existiu. Se ele ao menos 
tivesse me procurado depois, nem que fosse só pra saber como 
eu estava... Ele não precisava continuar comigo, eu ia 
compreender. Mas sumir assim foi cruel. E isso. Foi cruel. Como 
é que a gente vive depois, quando se perde toda a confiança, 
quando não se espera nada? 
— Será isso a morte na alma? Continuar se movendo, 
falando, cumprindo as tarefas do dia-a-dia, mas sem encontrar 
nenhum "para quê" que valha a pena. E isso? 
— É. Alguma coisa essencial na gente morre... 
Depois de um pouco de silêncio, ela continuou: 
— Sabe, ultimamente tem me vindo um outro pensamento: 
"Será que eu também colaborei pra que isso tudo acontecesse? 
Como pude me enganar tanto?" Fico com esta questão comigo: 
"Por que topei entrar num carro com alguém totalmente bêbado 
dirigindo? Como me descuidei desse jeito?" As vezes me pego 
pensando isso. E duro, sabe? Isso tem me incomodado. Mas como 
é que eu podia não vir com ele? Eu tinha que voltar pra cá. E todo 
mundo bebe mesmo, e a gente tem que voltar pra casa, não é? 
96 
Do desabrigo à confiança 
Ah, não sei mais nada... Agora, ele..., ele sim, tinha que saber que 
estava sem condição de dirigir. Tem hora em que não sei o que 
pensar dele. Como ele pôde me abandonar desse jeito? Às vezes 
sabe o que começo a imaginar? Imagino que ele teve alta do 
hospital, foi pra casa, que, aliás, nunca soube onde era, e depois 
ele pode ter tido alguma coisa como uma hemorragia interna, por 
exemplo; então ele morreu, e ninguém pôde me avisar; nem 
sabiam que eu existia. Penso coisas assim. Tudo é possível. Nem 
tenho certeza do nome dele pra poder perguntar. Sabia o nome, 
é lógico, mas não o sobrenome. A gente se chamava por apelidos 
carinhosos. E o trabalho, eu já contei pra você, ele dizia que 
prestava serviço de informática a algumas empresas. Nunca vi um 
documento dele. Também era só o que faltava, a gente pedir o 
documento de alguém com quem vai sair! Isso não tem 
cabimento. Bom, mas sei que tudo isso é viagem minha. Ele deve 
é estar muito bem por aí. Eu é que estou perdendo meu tempo 
pensando nisso. Claro que, quando saiu do hospital, ele tinha sido 
bem examinado, não ia acontecer de morrer em casa. O pessoal 
lá era cuidadoso. Eu, por exemplo, fui muito bem tratada. Mas não 
adianta ficar lembrando disso agora; hoje nem dá mais tempo. 
Você não se cansa de me ouvir falando sempre da mesma coisa? 
Há quanto tempo venho aqui e o assunto é só esse. Mas se não 
for com você, com quem vou falar dessas coisas? 
— O que você fala é o que teria mesmo de falar. Não acho 
que seja sempre a mesma coisa, não é uma repetição. A nossa 
conversa está caminhando. Você não vê como está tendo 
coragem de tocar mais de perto nessas coisas tão doloridas? 
— Vejo. Mas até que ponto isso é bom? Não quero me 
afundarmais. Está na hora de ir embora. 
Depois da sessão, a terapeuta pensou no quanto é inesperado 
o rumo que toma a conversa na terapia e como é importante estar 
atenta para acompanhar o que surge. Quando começou o assunto 
sobre a reunião de trabalho, ela imaginou que a moça fosse 
97 
Bile Tatit Sapienza 
comunicar alguma decisão que tivesse tomado referente ao aceitar 
ou não o que seu chefe havia pedido, mas sua fala passou a ser 
sobre maquiagem, cuidados com a pele, moda, e daí chegou à sua 
falta de sorte. Ela aproveitou alguns momentos para tocar na 
necessidade de reencontrar novos caminhos de realização da vida, 
tentou fazer com que a paciente entrasse em contato com seu 
sentimento de vergonha pela aparência. Mas os toques dados por 
ela relativos a essas importantes questões da existência da moça, 
mais do que terem servido para que essas questões fossem 
pensadas no momento, abriram caminho para que outras coisas 
se manifestassem: o cerne daquela dor, aquilo que a paciente 
chamou de morte na alma; e uma possível parcela de sua 
responsabilidade pelo acontecido. 
* 
Num outro dia, ao chegar, a moça foi logo dizendo: 
— Hoje vou deitar nesse divã. Mas se não me sentir bem 
eu sento, tá bom? Acho que vai ser esquisito falar sem olhar pra 
você. 
— Experimente. 
— Será? 
Acomodou a almofada e deitou-se. Ficou uns minutos de 
olhos fechados e calada, e depois abriu os olhos e falou: 
— É estranho. Vou ficar olhando pro teto? Nunca tinha 
reparado no revestimento desse teto. É outra a visão da sala. Mas 
sabe, hoje resolvi que queria experimentar. Nos filmes a gente vê 
essa história de divã. Os pacientes todos deitam pra falar? 
— Nem todos. Alguns deitam algumas vezes e outras vezes 
não. Mas deitar facilita que a fala fique mais solta, que a pessoa 
se preocupe menos com a coerência lógica daquilo que está 
falando. 
— Se eu tiver vontade de olhar pra trás, posso olhar? 
— Pode, sempre que quiser. 
— Sumiu tudo. Parece que não tenho nada pra falar. 
98 
Do desabrigo à confiança 
Ficou quieta um pouco e depois disse: 
— Tive um sonho que quero contar pra você. Foi 
anteontem. Sabe, aquele tipo de sonho que contei uma vez 
continua. Aquela sensação de escuridão repentina; só varia o lugar 
onde estou. Mas o de anteontem foi diferente. Havia muita terra, 
mas terra marrom mesmo, cor de terra quando a gente pinta a 
terra num desenho. Aqueles desenhos que a gente faz quando é 
criança: tem um verde que a gente diz que é a grama; tem umas 
florzinhas; eu fazia sempre umas florzinhas coloridas de cinco 
pétalas; e tem um marrom que a gente diz que é a terra. Então, 
era um marrom assim. Muita terra, mas o diferente é que era terra 
mexida, toda revirada. Sabe quando num lugar a terra está 
revolvida? Era assim. O sonho é só isso. Muita terra marrom. 
Acordei em seguida e pensei "Que sonho sem pé nem cabeça, 
vou contar pra ela." 
A terapeuta pensou: "O que será isso? Por que ela salientou 
tanto essa cor do desenho de criança?" E a paciente continuou: 
— O que você acha? 
— Vamos pensar no seu sonho. Acho interessante o seu 
modo de explicar a cor da terra dizendo que é cor de terra de 
desenho de criança. Por que não é só cor de terra e pronto? 
— É que no sonho era importante a terra, mas a cor também 
era muito nítida. Tem um marrom nas caixas de lápis de cor que 
é meio feio, mas tem um marrom cor de terra que é bonito. Olhe 
o que estou falando: a terra marrom cor do marrom cor de terra. 
Eu via bem essa cor no sonho. 
— Então a terra do seu sonho era bonita? 
— Era bonita. O estranho era estar toda revolvida. 
— Revolvida como? Teria havido alguma coisa lá? 
— Não sei. Estava revolvida em toda a extensão. 
A terapeuta ligou essa terra revolvida com o sentimento da 
moça de ter tido sua vida toda mexida nos últimos tempos. Mas 
não disse isso. Apenas perguntou: 
— Você já viu terra desse jeito? 
— Assim, inteiramente mexida, não. Mas já vi quando em 
algum lugar vai haver uma plantação e então eles mexem a terra 
99 
Bile Tatit Sapienza 
antes, ou quando vão construir alguma coisa numa região e 
revolvem tudo pra nivelar, pra preparar o terreno. Entende? Acho 
que era assim. É possível que fossem plantar ou, quem sabe, 
construir lá naquela terra. 
A terapeuta pensou: "Ainda bem que não falei o que tinha 
pensado antes." E disse: 
— É, parece que sim. Numa terra bonita, marrom-cor-de-
terra, alguma coisa está pra ser plantada ou construída. E tem a 
cor dos desenhos de criança. Desenhos de criança. Isso diz 
alguma coisa pra você? 
— Ora, desenhos de criança a gente só faz quando é 
criança. Depois, nunca mais. Outras coisas também a gente perde 
quando cresce. 
— Por exemplo? 
— Confiança. 
— Mas no seu sonho há um toque de criança, há a cor de 
terra dos desenhos de cr iança. Será que há um toque de 
confiança? 
A moça rapidamente olhou para trás. Havia lágrimas em seu 
rosto quando ela disse para a terapeuta: 
— Será possível? 
— E possível. 
Ela voltou a olhar para a frente e ficou quieta por uns cinco 
minutos. 
Depois a terapeuta perguntou: 
— Você quer contar em que está pensando agora? 
— Estava me lembrando da última sessão. Mas acho que já 
pensei bastante sobre isso. 
Ela passou a falar do fim de semana na praia com amigos 
de seu trabalho. 
No final da sessão, ao se sentar, ela disse. 
— Estou um pouco atordoada, acho que me levantei muito 
depressa. Estranhei logo no começo, mas acho que foi bom. 
100 
Do desabrigo à confiança 
Depois que ela saiu, a terapeuta disse baixinho para si 
mesma: "Isto está caminhando, que bom." 
* 
Num certo dia, logo ao se deitar no divã, a moça iniciou esta 
conversa: 
— Ontem as meninas foram fazer uma apresentação dos 
nossos cremes e da linha de maquiagem num salão de chá aí num 
clube. Foi um chá beneficente, e essa apresentação foi pra atrair 
a compra de convites pelas sócias do clube. Pra nós isso também 
foi bom. É uma superpropaganda. Houve sorteio de umas 
cestinhas com alguns produtos. Há uns três dias, quando 
planejamos como iria ser, dei a ideia de que, em vez de só fazer 
um desfile das meninas já maquiadas, seria legal que elas, durante 
o chá, num lugar visível para as convidadas, começassem a ter a 
pele preparada para a maquiagem, quer dizer, alguém iria 
limpando, fazendo uma massagem, hidratando a pele delas. Em 
seguida elas começariam a ser maquiadas, e, depois, andariam 
pelo salão mostrando o resultado. Todo mundo lá gostou da ideia, 
e meu chefe disse: "Você vai com elas como supervisora." Ele 
falou isso tão sério que não tive como não concordar. Então, ontem 
cedo, resolvi cortar umas pontas do meu cabelo, fiz um banho de 
creme, essas coisas. Fazia o maior tempo que nem me lembrava 
de cabelo. Depois fui pro trabalho pra sair de lá com o pessoal. 
Antes de sairmos meu chefe falou: "Como você não vai se 
maquiar lá, vai ter de chegar j á bem produzida. Trate de se 
embelezar." Eu não tinha pensado em fazer isso nem lá, nem hora 
nenhuma. Já tinha feito muito em ter dado um jeito no cabelo. Mas 
fazer o quê? Peguei a caixa com os produtos que a gente 
costuma usar e fui em direção a um espelho. Nessa hora, chegou 
um meu amigo e disse: "Sente aí que sou eu que vou maquiar 
você hoje." Nem deu tempo de eu dizer que não precisava e ele 
já estava protegendo a minha roupa com uma toalha. Eu sentei, 
ele pegou meu cabelo e puxou meio pra trás, prendeu mais ou 
101 
Bile Tatit Sapienza 
menos, e, nessa hora, pensei: "Minha testa! Ele está vendo a 
minha testa." Isso foi muito ruim por um momento, mas em 
seguida me acalmei e o que veio à minha cabeça foi isto: "Agora, 
seja o que Deus quiser." E parei de me preocupar. Me entreguei 
à sensação boa de ter alguém cuidando de mim; não fazia mal que 
ele pudesse observar bem de perto as cicatrizes, que ele pusesse 
as mãos nelas. Há quanto tempo nem eu mesma me olho direito. 
Meu rosto vê só água e sabonete. Ele passou um creme 
hidratante, massageou bem devagar, com a maior paciência; 
passou base, pó, blush, uma sombra levenos olhos, delineador, 
rímel, tudo. Depois, deu uma boa ajeitada no meu cabelo e pôs um 
espelho na minha frente. Disse: "Agora olhe." Eu olhei, e como 
foi bom! Eu me reconheci; por um momento, vi que eu estava ali 
de novo. Você sabe como é isso, não é? As lágrimas nessas 
horas... Ele percebeu e disse: "Chorar justo agora, não! Você quer 
manchar tudo e me fazer perder o meu trabalho?" Ele falou 
como quem brinca que está bravo, cheio de carinho. Senti que foi 
com carinho que ele tratou do meu rosto. Sabe que eu beijei as 
mãos dele? Eu disse: "Obrigada por tudo." E ele falou: "Eu é que 
estou agradecido a você, menina. Há tempo estou esperando pra 
ver esta minha amiga assim, linda, cheia de charme." Ele enxugou 
meus olhos, deu uns retoques e disse: "Chega de conversa, anda 
logo senão a gente atrasa tudo." Desci a escada numa correria, 
quase caí... nossa, já pensou se eu caio? O pessoal já tinha ido. 
Mas deu tempo. O salão de chá ainda estava meio vazio. Eu 
queria muito contar isso pra você. Foi um sucesso. A ideia que eu 
tinha dado funcionou super. Hoje cedo fizemos uma avaliação de 
ontem e todo mundo achou que foi um dos melhores eventos que 
a empresa já fez. Mas o principal que eu quero dizer pra você é 
que, nos momentos em que estive lá, quase não me lembrei de 
cicatriz nem de nada. Eu estava absorvida olhando o andamento 
das coisas. 
— Que coisa boa você está contando. 
— Foi bom mesmo. Parece que aconteceu um pouco daquilo 
que você falou há algum tempo. Aquilo... se eu ia escolher fazer 
102 
Do desabrigo à confiança 
da minha vida um lamento pelas minhas cicatrizes; aquilo doeu, 
sabe? Mas acho que eu precisava ouvir isso de alguém, não de 
qualquer pessoa, mas de você. No começo eu não iria aguentar. 
Mas, de uns tempos pra cá, sinto que não quero que tenham pena 
de mim. Então como é que vou ficar, eu mesma, me lamentando? 
Agora eu penso, por que será que fiquei tanto tempo sem querer 
cuidar do meu rosto? 
— Vejo aí aquela história do ou tudo ou nada: não aceito 
nada menos do que o absolutamente completo, perfeito; o que for 
menos que isso não é digno de mim. Mas vejo outra coisa também. 
Tendo os recursos de que você dispõe — e a prova disso está no 
resultado do trato que seu amigo deu no seu rosto ontem —, 
insistir em não minimizar as marcas que tanto a perturbam pode 
ser um jeito de dizer sempre a si mesma: "O que foi feito de 
mim!" De alguma forma você está sempre deixando muito 
evidentes os danos que sofreu, lembrando a sua condição de 
vítima de coisas injustas, vítima de um mundo injusto. Pense um 
pouco. Qual pode ser o sentido dessa, vamos dizer, greve de 
beleza que você tem feito? Está certo que, nos primeiros meses, 
era compreensível que não quisesse nem olhar no espelho pra não 
ver seu rosto inchado, as manchas roxas e tudo o mais. Mas já 
faz algum tempo que você, cujo trabalho é exatamente esse, 
corrigir imperfeições, ajudar a beleza, já podia estar cuidando de 
se ajudar nesse aspecto. Não fazer isso que sentido pode ter? 
Exatamente você pra quem ser bonita sempre significou tanto? 
— Eu fui vítima sim. Mas não ponho isso como culpa de um 
mundo injusto. Não seria certo eu pensar isso, porque no mundo 
tem gente boa também. 
— Mas um mundo que permite acontecer o que aconteceu 
com você; um mundo em que é possível uma menina sair de 
manhã de uma festa, linda, e, na tarde do mesmo dia, ter de evitar 
o espelho pra não ver seu rosto ferido; um mundo que abriga tanto 
essas pessoas boas, como você acabou de dizer, como abriga 
também pessoas capazes de agir como seu ex-namorado agiu, 
talvez você considere esse um mundo culpado. 
103 
Bile Tatit Sapienza 
— Não tinha pensado com essas palavras, mas é isso 
mesmo. É muita injustiça. 
— Se a vida, ou se o mundo aprontou isso com você, será 
que ao menos você não poderia tratar a si mesma com mais 
carinho atenuando as marcas da injustiça que sente que sofreu? 
Ela olhou para trás e permaneceu um pouco de tempo 
olhando para a terapeuta, que continuou a falar: 
— Será que você não pode se desarmar um pouco e 
permitir que as pessoas se cheguem a você? Seu amigo, ontem, 
precisou ser muito decidido pra conseguir que você lhe desse a 
chance de poder ajudá-la. E olhe que o que ele fez por você foi 
muito mais que uma maquiagem... Você percebe o alcance disso 
que seu amigo fez por você? 
Olhando de novo para a frente, a moça falou: 
— Claro que sim. Não consigo nem dizer. Se eu contar isso 
pra alguém, vai parecer uma banalidade: meu amigo me maquiou 
pra eu ir a um evento. Mas só eu sei o que significou pra mim 
esse gesto dele. Sei, e não sei. Não sei se foi o sentir o toque 
cuidadoso daquela mão no meu rosto tão maltratado, ou se foi o 
fato de eu sentir que era como se ele estivesse me dizendo, sem 
falar nada, alguma coisa como: "você importa pra mim". Alguma 
coisa se reabriu. Ele apareceu na hora certa. Estava pensando 
agora também na decisão do meu chefe de me mandar pra um 
trabalho externo. Ele deve ter insistido nisso por achar que seria 
bom pra mim. E pra falar a verdade, foi bom mesmo. Se 
dependesse só de mim, não sei se eu tomaria a iniciativa. 
A conversa continuou, mas o principal que aconteceu foi 
isso. 
* 
Num outro dia, a moça começou a falar logo que deitou: 
— Um ano hoje. No ano passado era segunda-feira. Saímos 
da balada e fomos tomar café da manhã numa padaria próxima. 
Nossa, hoje está tudo tão claro! Comprei uns biscoitos pra comer 
104 
Do desabrigo à confiança 
no caminho, aqueles de polvilho. É uma especialidade daquela 
padaria; já tinha comprado lá na semana anterior. Eu ia começar 
a comer. Quando me viu abrindo a embalagem dos biscoitos, ele 
disse: "Não coma isso no meu carro; vai fazer a maior porcaria." 
Deu um tapa nas minhas mãos e os biscoitos caíram. Eu disse: 
"Pára de ser grosso comigo." E ele falou: "Se não está gostando, 
é só dizer; eu paro o carro e você desce." Acho que me lembro 
disso porque na hora eu estranhei muito; foi a primeira vez que 
ele falou desse jeito comigo; ele era um doce de pessoa. Fiquei 
quieta, porque estava magoada. E, além disso, estava com muito 
sono. Devo ter dormido em seguida. Hoje, contando isso aqui, eu 
penso: "Será que ele estava começando a se cansar de mim?" 
Fazia um mês que a gente estava saindo, e ele era o máximo em 
gentileza. Eu dizia para minhas amigas: "Encontrei o homem da 
minha vida." E era isso mesmo'. Estava apaixonada de fato, e 
certa de que ele também estava por mim. Sabe que a lembrança 
que me vem dele hoje me traz saudade? Eu gostei mesmo dele. 
A moça ficou quieta. A terapeuta pensou: "Pelo que ela está 
contando, era ele mesmo quem estava dirigindo." Esperou que ela 
se referisse a isso, mas não foi o que aconteceu. O que a paciente 
disse foi isto: 
— Nem eu me entendo. Como posso ainda me lembrar dele 
com saudade? Foi só um mês. Mas nunca fui tão feliz como 
durante aquele mês. Todos os dias o rapazinho da floricultura lá 
de perto do meu trabalho ia me levar um botão de rosa vermelha 
em nome dele. Ele deve ter deixado pago o mês inteiro. Eu punha 
o botão num vasinho solitário, sabe, aquele em que só cabe uma 
flor. Ele dizia que mandava uma única flor porque eu era única. 
Era para eu me lembrar disso. Depois eu ia colocando os botões 
juntos num vaso maior. Minhas amigas iam todos os dias ver se 
já tinha chegado o botão do dia. Veja, eu aqui me lembrando 
dessas bobagens. Um dia perguntei por que ele não tinha se 
casado ainda, pois ele tem uns trinta e cinco ou quarenta anos, não 
parece nem trinta, e ele disse que nunca tinha encontrado a 
mulher certa. Sabe que pensei que poderia ser eu essa mulher? 
105 
Bile Tatit Sapienza 
Bem, em seguida acabou-se o tempo dos botões de rosa e agora 
estou eu aqui falando de um homem que parece que não existiu. 
A terapeuta não falou nada. Deixou que ela ficasse com 
suas recordações. 
Depois a paciente continuou: 
— Agora, pondo os pés no chão, sabe o que meu chefe me 
disse hoje? Ele falou que vou ter umapromoção. Na verdade, vou 
continuar fazendo a mesma coisa, mas de um modo mais formal. 
Quero dizer, agora passo a ter oficialmente um cargo no escritó-
rio, alguma coisa que tem mais a ver com a administração da 
empresa. Vou precisar ter contato com os fornecedores, os reven-
dedores. Você já viu, não é? Não posso evitar o público. Isso ainda 
me assusta, mas não tanto como antes. Ainda me vêm à cabeça 
aquelas ideias: "O que será que tal pessoa está pensando do meu 
rosto? Será que está me achando feia?" Mas vou em frente. Você 
deve ter notado que tenho me pintado um pouco, não é? 
— Tenho notado, sim. Foi a partir do dia daquele trabalho 
durante o chá naquele clube. 
— Foi mesmo. Aconteceu alguma coisa especial naquele 
dia. Meu amigo foi demais. Depois daquele dia pensei: "Por que 
não? Maquiagem é pra isso mesmo." 
— Sim, mas a questão é mais que se maquiar ou não. O 
que vejo se passando com você é uma modificação mais profunda 
no seu modo de ser diante da sua vida. Você está podendo encarar 
as pessoas sem se sentir tão envergonhada e infeliz. Talvez haja 
nisso uma recuperação da possibilidade de confiar, seja nas 
pessoas, seja no que as situações podem trazer pra você. Sei que 
boba você não é pra acreditar que todo mundo é bom. Mas, quer 
você queira quer você não queira, as coisas continuam 
acontecendo na sua vida. Então, por que não abrir os olhos, os 
ouvidos e o coração, pra ver, ouvir e sentir se chega alguma coisa 
boa no meio disso tudo? Por que não haveria de chegar? Você 
está começando a poder estar de um modo diferente no seu 
mundo: o mundo do seu trabalho, o mundo das amizades, o mundo 
das pessoas desconhecidas, o mundo da sua relação com a beleza, 
o mundo da dor, o mundo da saudade, enfim..., é isso. 
106 
Do desabrigo à confiança 
— Depois que meu chefe me falou da minha promoção, e 
ele disse que tenho jeito pra essas coisas, me veio a ideia de fazer 
a faculdade de administração. Se eu ganhar melhor, vou poder 
pagar a faculdade. Mas sabe que tem hora que me dá vontade de 
estudar psicologia? 
— Há muita coisa que está em aberto pra você. 
— Isso é tudo muito novo. Minha cabeça está lotada de 
coisas em que preciso pensar. 
* 
Duas semanas depois, ela disse para a terapeuta: 
— Você se lembra de eu ter contado que meu médico falou 
de uns tratamentos que pretendia fazer no meu rosto? Pois é, 
ontem a secretária dele me chamou pra ir até lá. Ele reviu tudo, 
achou que a evolução foi muito boa, melhor do que ele esperava. 
Disse que, quando me viu naquele dia no hospital, ele não tinha 
muita esperança. Ontem ele me explicou o que foi preciso fazer 
naquela hora. Eu tinha vários cortes, e dois deles muito profundos. 
Não se tratava só de dar pontos. Acho que foi por isso que me 
removeram do primeiro hospital para o outro. Era preciso fazer 
aproximações de camadas mais profundas de pele, foi mais ou 
menos o que entendi. Ele disse que, felizmente, minha pele é boa 
pra cicatrização, e isso ajudou. Aquele médico do primeiro hospital 
foi consciencioso quando preferiu não mexer e me mandou pra um 
lugar com mais recursos. Agora ele quer usar uma técnica que, 
segundo ele, melhora muito a cicatriz. Nem me pergunte, porque 
não sei direito como é. De um ponto em diante, não prestava mais 
atenção na explicação dele. Estava pensando em como cheguei 
lá naquele dia. Pensava na sorte que tive de encontrar esse 
médico... Que homem! Ah, e pra este afundamento aqui na minha 
testa, ele disse que vai retirar um pouquinho de osso de alguma 
parte do meu corpo mesmo, pra não haver rejeição, e vai colocar 
aqui. Disse que vai ficar perfeito. Ele é muito otimista. Não sei 
como isso tudo pode fazer parte do seu trabalho de pós-doutorado, 
107 
Bile Tatit Sapienza 
como ele falou uma vez. Mas não compete a mim ficar 
perguntando isso, não é? Perguntou se concordo com tudo. Eu 
disse que sim. Marcamos pra fazer isso daqui a duas semanas 
mais ou menos. Ótimo isso, não? 
— Ótimo mesmo. 
— Sabe em que estou pensando? Não sei falar do jeito como 
você falou uma vez, mas é alguma coisa sobre aquela história de 
eu estar me vendo como vítima de um mundo culpado; mas é do 
mundo mesmo que vem a ajuda pra mim. Várias coisas que a 
gente já falou aqui me voltam agora à cabeça. Ah, sabe, uma hora 
o Dr. Fulano falou pra assistente dele que estava perto: "Veja que 
menina bonita, ainda bem que não estraguei o rosto dela." A 
médica riu da brincadeira. Eu pensei: "Imagine, ele estragar o 
meu rosto. Justo ele! Ele foi um anjo." Não falei nada, nem 
consegui dizer "obrigada". Estava com um nó na garganta. 
— Era gratidão, não era? 
— E isso mesmo. A você também sou grata. 
— Gratidão é uma qualidade humana muito importante. E 
rara. Mas tudo o que temos feito aqui é trabalho de nós duas. 
Depois disso, ficaram um bom tempo em silêncio. 
* 
Uma semana depois, antes de deitar, ela se sentou no divã, 
e disse: 
— Hoje vi a foto dele na coluna social, com uma moça que 
não sei quem é. Vi o sobrenome dele: Fulano de Tal e Tal, um dos 
diretores da empresa Tal. Dizia o nome dela também, da alta 
sociedade. Levei um choque! Todo bonitão. Eu estava em pé 
folheando o jornal enquanto esperava minha irmã acabar de tomar 
café, porque eu ia dar carona pra ela até o colégio. Passei mal. 
Me segurei na cadeira pra não cair. Minha irmã se assustou, 
minha mãe veio correndo. Mostrei o jornal pra minha mãe: "Mãe, 
olhe ele aqui." Ela disse: "É mesmo, o moço que falou comigo no 
hospital naquele dia." Desandei a chorar. Só consegui sair à tarde 
108 
Do desabrigo à confiança 
pra trabalhar, porque não podia faltar de jeito nenhum hoje. 
Bandido. Por que nunca mais me procurou? Como é que um ser 
humano abandona outro ser humano desse jeito? 
Depois disso deitou, virou para o canto, se encolheu, e só 
chorou, até o final. A sessão desse dia consistiu no acolhimento 
silencioso dessa tristeza. 
* 
109 
Paremos, por enquanto, essa história e deixemos em aberto 
os desdobramentos da vida dessa moça. 
Vamos refletir a respeito dessa terapia que imaginamos como 
exemplo. 
Vocês repararam que, para descrever as sessões, trouxe aqui 
acontecimentos exteriores ao espaço da terapia. Será que não 
bastaria termos nos concentrado apenas no ocorrido nas sessões? 
O que conta para compreendermos o processo terapêutico não 
seria apenas aquilo que se passa no consultório, ou seja, a fala do 
paciente e a fala do terapeuta, as emoções ali presentes? 
Mas pensemos. Alguém, por exemplo, cujo trabalho consiste 
em fazer objetos de barro, tem o momento, tem o espaço onde 
lida com o barro, tem o modo de lidar com o barro. O barro é a 
matéria-prima com que ele trabalha. Seu trabalho supõe que haja 
o barro. E a terapia? Ela se passa num certo momento, num certo 
espaço, de um certo modo. E a matéria-prima do trabalho de 
terapia é a vida. O trabalho do terapeuta supõe que haja o 
acontecer da vida, e a vida é maior, é mais que o momento de 
terapia. Aliás, a terapia também entra como parte da vida, o 
momento privilegiado em que se cuida do seu sentido; em que se 
cuida do acontecer de tudo o que afeta aquela existência. A 
terapia não trata de um "psicológico", como se isso fosse algo 
110 
Do desabrigo à confiança 
desconectado de mundo. Mesmo quando o paciente está vivendo 
fora da realidade que os outros compartilham, ainda assim é 
mundo. Ainda assim, ali está o acontecer da vida, da sua vida. 
Considerado ontologicamente, Dasein é sempre o 'aí' onde se 'dá' 
'ser'. E 'ser' se 'dá' para Dasein nos acontecimentos, nos entes, 
se mostrando e se ocultando. Onticamente, existir significa poder 
ser afetado por tudo e ter de se haver com o que se deu, com o 
que se dá e com o que pode vir a se dar. O trazido pelo paciente 
para a sessão de terapia diz respeito ao seu viver, ao seu ser-no-
mundo. 
Uma determinada terapia só faz sentido quando referida ao 
existir de alguém que concretamente existe. Por isso, para 
exemplificar um processo terapêutico, quis trazer também a vida 
que se passafora do consultório, pois é diante disso que tem 
sentido o que é posto em linguagem e é vivido como sentimentos 
na terapia. 
* 
A moça que serviu de exemplo foi imaginada como alguém 
cujo sentido da vida se rompe de forma súbita e violenta. De uma 
hora para outra, tudo o que compunha sua existência se 
desarranja, e seu futuro se fecha. O que fazemos diante de 
alguém que vive um momento assim? Nosso primeiro sentimento 
é de total impotência. Mesmo que o terapeuta acredite que existir 
é vir-a-ser, que possibilidades estão em aberto, não leva a nada 
a pressa em querer que a outra pessoa também acredite nisso. 
Diante de perdas muito grandes, insistir em que o paciente veja 
que o futuro está aberto, ou é algo que não chega até ele — ele 
não tem ainda como aceitar isso —, ou é algo que chega até ele 
como um descaso ou incompreensão por parte do terapeuta. Há 
dores ou desilusões que podem durar muito, muito tempo. As vezes 
podem durar a vida inteira... 
Neste exemplo, a terapeuta consegue trazer um elemento 
novo para ser pensado quando, uma vez, depois de concordar com 
111 
Bile Tatit Sapienza 
o quanto é sofrido levar da vida uma grande puxada de tapete, 
introduz na conversa uma alusão a Beethoven, que, depois de sur-
do, compõe uma grande sinfonia. E quando a paciente responde 
que ele era um génio, e ela não é ele, a terapeuta aproveita para 
perguntar o que, exatamente não sendo ele, ela tem para dar ao 
mundo. A ênfase aí não está nas possibilidades abertas, mas sim 
no 'ser devedor'. A reação da paciente mostra alguma surpresa 
com a fala da terapeuta, tanto que responde em seguida — pro-
vavelmente meio brava — que já tinha levado a maior paulada uu 
mundo, e, se tivesse de dar ainda alguma coisa, seria a sua re olta. 
A terapeuta não insiste e, só mais adiante, diz a ela: "Quanto a 
seus projetos de vida, eles vão continuar aí cobrando você." 
Ela considera que isso poderá vir a ter sentido para a 
paciente, que, em outros momentos, ao se referir ao valor do seu 
trabalho, às obrigações que tinha na vida, à consideração pela 
mãe e pela irmã, já havia se mostrado como alguém capaz de se 
sentir responsável. Então, acha que talvez aquela sua fala possa 
ser acolhida. 
Com um outro paciente, provavelmente, a terapeuta teria 
encaminhado a conversa de uma outra maneira. 
Embora seja difícil para a pessoa que perdeu muito começar 
a encontrar alguma abertura para o futuro, a terapeuta está atenta 
para o que possa favorecer a entrada nessa direção. Há uma 
sessão em que a paciente diz que tem saudade da sua vida e conta 
a história do pão de queijo na lanchonete. Isso surge como ocasião 
para lembrá-la de que há vida para ser vivida. 
* 
Havia dito antes que uma terapia só faz sentido com 
referência ao existir concreto de alguém. O mesmo vale para o 
significado dos sonhos que um paciente conta. Mesmo que, pelo 
fato de compartilharmos a linguagem, possamos dispor de 
significados compartilhados culturalmente, ainda assim, os 
significados contidos no sonho de um paciente devem ser 
112 
Do desabrigo à confiança 
procurados junto ao contexto da sua vida. É só aí que um sonho 
pode ter sentido, e não dentro de uma teoria de psicologia. E o 
sentido explicitado deve servir para ampliar a compreensão que 
o paciente tem de como ele está sendo-no-mundo. 
A terapeuta do nosso exemplo tem essa preocupação de 
perguntar, de permanecer junto àquilo que a paciente tem a dizer 
sobre as imagens com as quais ela compõe seu sonho. No sonho 
do céu que escurece de repente, a própria moça fala do seu estar 
no escuro, do nunca mais amanhecer o dia. Parece que não há 
muito o que acrescentar aí, mas a terapeuta traz à luz outros 
desdobramentos dessa primeira compreensão: o aspecto brusco 
da mudança, o não poder ver, o medo, a ausência de futuro, e, por 
fim, abre a pergunta sobre o que ela veria se, com um mínimo de 
luz, pudesse enxergar um pouco. E chega à perda da esperança. 
No sonho da terra revolvida, ela se detém na terra que é cor 
de terra pintada com o marrom cor de terra de desenho de 
criança. Com perguntas e paciência, se aproxima de algo que, 
para a moça, diz respeito ao ser criança: a confiança. E sugere 
a ela: "Será que aí há um toque de confiança?" 
Não só no que se refere aos sonhos relatados, mas em toda 
a fala da moça, a terapeuta se esforça para que aquilo se 
desdobre em significados ao mesmo tempo mais precisos e mais 
amplos. Há um momento, por exemplo, em que elas percorrem um 
caminho que passa pela possibilidade de fazer da vida um grande 
lamento, pela vergonha do rosto, pelo valor da beleza, pelo ser 
objeto de curiosidade, pelo temor da comparação, pelo sentir-se 
inferior, pela necessidade de perfeição. Acabam por chegar ao 
sentimento da crueldade daquela forma de abandono e àquilo que 
a paciente chama de morte na alma. Em seguida, a moça 
consegue se aproximar de algo que, até aquele momento, estava 
encoberto: sua parcela de responsabilidade pelo acontecido. 
"Como me descuidei desse jeito?" 
113 
Bile Tatit Sapienza 
Se, como no dizer de Heidegger, a hermenêut ica da 
facticidade tem a tarefa de fazer o Dasein acessível a si mesmo 
com relação ao caráter de seu ser, embora o dito por ele se refira 
a um outro contexto, onticamente é isso também o que está 
acontecendo nessa terapia. O esforço aqui é para tornar a 
facticidade de uma existência particular, ou seja, a existência 
daquela moça que procurou a terapia, acessível a ela mesma. 
Terapeuta e paciente estão ali num processo de interpretar e 
explicitar o que se manifesta ocultado naquilo que aparece. 
A terapeuta faz algumas considerações e perguntas, muito 
simples, que têm a ver com o que está sendo falado. Por exemplo, 
quando a moça diz que ficou muito aflita por seu chefe tê-la 
encarregado de um trabalho fora do escritório, ela mostra que aí 
está uma questão que a paciente não pode deixar de resolver: 
colaborar com o chefe e as colegas ou continuar a se esconder. 
E ainda pergunta em seguida do que ela tem medo. A moça não 
havia dito nada sobre se esconder, ao contrário, ela acha que não 
está propriamente se escondendo, apenas não tem a mesma 
desenvoltura, e também diz que não tem medo, apenas não gosta 
de comparações. A terapeuta, entretanto, interpreta o "ficar aflita" 
diante do pedido do chefe como manifestação do querer se 
esconder e do medo, e a conversa se encaminha de modo a 
mostrar o quanto a paciente tem se fechado na preocupação 
consigo mesma. Em que a terapeuta se baseia para dizer à 
paciente que ela está se escondendo, tem medo e está o tempo 
todo fechada na preocupação consigo? Ela se baseia em tudo o 
que vem aparecendo na terapia: desde o começo, no sonho em que 
anoitece de repente, lá está o medo; ela se esconde ao evitar as 
pessoas, se esconde até de si mesma, mal se olha no espelho. Com 
medo e precisando se esconder, faz sentido que ela se torne para 
si mesma o centro de sua preocupação: ela "sabe" que as 
pessoas, quando a vêem, ficam curiosas por saber o que lhe 
aconteceu e vão perguntar a alguém; o trabalho com o qual 
sempre sonhou faz com que se lembre, a toda hora, que está feia. 
Quando, certa vez, a paciente pergunta por que será que ela 
passou tanto tempo sem cuidar de seu rosto, a terapeuta, embora 
114 
Do desabrigo à confiança 
sem afirmar, sugere que isso possa ser um modo de manter viva 
a marca do que sofreu por culpa de um mundo injusto, um jeito 
de dizer sempre a si mesma: "O que foi feito de mim!" Mas como 
ela sugere isso, se antes havia dito que a paciente quer esconder 
suas marcas, quer se esconder? E que sentimentos se misturam. 
Alguém pode não querer que vejam ou saibam o que o faz sofrer, 
e sentir, ao mesmo tempo, que precisa conservar cuidadosamente 
registrado tudo o que diz respeito a esse sofrer. Mas por que 
alguém pode querer manter a lembrança de algo ruim? No caso 
dessa moça, se ela sofre com sua aparência, por que não cuidar 
de melhorá-la? E que tentar melhorar alguma coisa significa darespaço para a esperança, e esperar supõe, em algum grau, confiar 
que algo possa vir, ou seja, "se iludir de novo", e isso pode ser 
arriscado. Não investir na melhora pode ser um jeito de dizer a 
si mesma: "Sei agora que a vida é cruel; que bobagem é acreditar 
na vida!" E assim ela se instala na amargura, e, de alguma forma, 
ali está o seu protesto. Vemos que o pensamento da terapeuta vai 
à procura de um sentido mais amplo que poderia estar encoberto 
naquele não se cuidar. E depois acena com uma possibilidade. 
"Será que ao menos você não poderia tratar a si mesma com 
mais carinho?" 
* 
Notamos que, em alguns momentos, o encaminhamento da 
conversa poderia ter sido outro. Assim, quando a terapeuta fala 
para a paciente o quanto ela tem estado preocupada consigo 
mesma, a paciente diz: "Você está sendo dura." A terapeuta 
poderia ter se detido nessa fala da paciente, algo que tinha a ver 
com um sentimento relativo à terapeuta naquela hora. Considera, 
entretanto, que o problema da moça não é basicamente com ela, 
a terapeuta; sua questão é outra. Prioriza, então, a entrada em 
outra coisa mais importante para a paciente: a relação que está 
sendo vivida com o mundo num sentido mais abrangente. 
* 
115 
Bile Tatit Sapienza 
Importante nessa terapia é o vínculo que se forma, e isso se 
mostra em várias situações. Mesmo que em alguns momentos 
surja alguma irritação, parece que a moça sente que é possível 
confiar na terapeuta. Já no início, um dia ela pensa em não ir à 
terapia (quem sabe, até não voltar mais), mas muda de ideia 
quando se lembra de que precisa contar uma coisa para a 
terapeuta, e pensa: "Pra quem mais posso falar?" Num outro dia, 
vemos como para ela é significativo saber que a terapeuta 
acredita nela, quando diz que não estava dirigindo o carro. A 
ligação com a terapeuta se mostra também quando ela diz: 
"Mesmo se eu resolvesse morrer, eu queria contar essas coisas 
todas pra você, assim pelo menos ia existir no mundo alguém 
sabendo de tudo." Está sempre presente a sua necessidade de 
compartilhar. Da parte da terapeuta está presente a solicitude que 
acolhe. 
* 
A vinda dessa moça para a terapia exemplifica, num grau 
muito intenso, o sentimento de estar desabrigado, de se encontrar 
na inospitalidade da existência, isso que caracteriza, em geral, a 
procura de terapia. Embora algumas coisas ainda tenham sentido 
para ela, por exemplo, manter seu trabalho porque precisa ajudar 
a mãe e a irmã, os seus sonhos de mulher jovem foram cortados 
de repente. Não há mais um futuro em que ela possa ser feliz. Ela 
confiava em si mesma, nas pessoas, na vida que viria, e deixou 
de confiar. Deixar de confiar é não mais acreditar, não mais 
esperar. O que aconteceu em sua vida fez com que se petrificasse 
a capacidade de esperar por qualquer outro acontecimento de 
natureza diferente daquele vivido, isto é, a sua vida parou ali, o 
acontecido engole qualquer possibilidade diferente dele mesmo. 
Não há, para ela, o poder ser diferente do que ela está sendo 
agora (sentir-se feia, abandonada, infeliz); o poder ser diferente 
na atitude de um homem (sedução e abandono); o poder ser 
diferente da vida (a vida que puxa o tapete). É como se, para 
116 
Do desabrigo à confiança 
aquele Dasein, tudo o que pode ser já tivesse se esgotado naquilo 
que foi; aquela abertura compreensiva está afinada no modo 
amargo da desilusão, em que se estreitam demais as possibilidades 
de as coisas acontecerem de outro modo, de 'ser' se 'dar' de 
outro modo, de continuar a 'doação de ser'. 
* 
Essa terapia ainda continua. Vimos como a moça chegou, 
como ela e a terapeuta começaram um percurso que será longo. 
É o percurso do trabalho terapêutico. Esse trabalho parte de um 
sentimento de estar desabrigado e "caminha na direção da 
confiança, a afinação na qual Dasein se abre para a manifestação 
dos acontecimentos que se dão, que se deram e que se darão em 
sua história, acolhe-os, e, ao mesmo tempo, se entrega à doação 
que tudo doa, se entrega à sua própria existência, se entrega à sua 
destinação existencial" (Pompeia, 2004, p. 19). 
Caminhar na direção da confiança é difícil para quem está 
vivendo com a única certeza de que não pode confiar em ninguém, 
em nada, de que está rodeado pela indiferença ou pela hostilida-
de do mundo. Para quem está vivendo assim, não há o que espe-
rar; a única dimensão da vida que se desvela é a da falta de 
sentido. Diante da impossibilidade de se dedicar a um sentido, ou 
a pessoa sucumbe de uma vez, ou se põe a, desesperadamente, 
procurar estratégias de sobrevivência que possam preencher o 
vazio de sua vida. 
Aquela expressão 'doação de ser' pertence a um contexto 
filosófico ligado à questão relativa ao 'ser', contexto esse em que 
'ser' é considerado como sempre 'doado' ao homem, cuja 
'existência' consiste em ser sempre a 'abertura' para o 'ser'. 
Mas, como terapeutas, podemos compreender a expressão numa 
referência à história vivida de cada um. Aí, então, cada vez que 
alguém fala ou pensa coisas como: "Que é isso que me acontece? 
Como foi mesmo que se deu tal coisa? Que significou tudo aquilo? 
O que será que vai acontecer comigo? Não entendo o que 
117 
Bile Tatit Sapienza 
acontece. Que bom que aconteceu isto! Não espero que aconteça 
nada de bom. Para onde caminha o mundo? ele pode não ser 
filósofo, mas o que está sempre em questão para ele é o ser: o 
que é, o que fo i , o que será; é sempre ser se dando nos 
acontecimentos da vida. O homem não tem como deixar de ser 
essa abertura que, essencialmente, em algum grau e de algum 
modo, compreende ser. Mas, em algum grau e de algum modo 
também, sua compreensão não é completa, por isso ele continua 
perguntando pelo que é, pelo que foi, pelo que vai ser. Mesmo 
quando, na desilusão, não quer mais saber de nada, a pergunta 
emudece pela perplexidade ou pelo desânimo, mas é perplexidade 
ou desânimo diante da questão. 
Quando dizemos que a terapia deveria caminhar na direção 
do sentimento de confiança, de entrega à 'doação de ser', 
queremos realçar como é importante que o paciente possa vir a 
sentir que sua história está se fazendo, ela não acabou ainda; que, 
dia a dia, é inevitável que novos acontecimentos se dêem; que é 
possível que o sentido da sua vida venha a ser rearticulado. Isso 
supõe primeiramente que ele possa desenvolver uma capacidade 
de aceitação — e isso é difícil — do que foi, do que está sendo, 
do que pode vir a ser, e de acolhimento do que é dado, até como 
condição para poder transformar alguma coisa. 
* 
118 
Voltemos à nossa moça. No dia em que falou da foto no 
jornal, depois de ter chorado a sessão inteira, já em pé, ela disse: 
— Parece que estou acordando de um pesadelo pra entrar 
numa realidade pior. Não há mais nada nublado; está tudo muito 
claro. Por eu ser bonita, ele me quis. Da parte dele, essa foi a 
única coisa verdadeira. Nenhum afeto por mim. 
* 
Nas sessões que se seguiram, o assunto principal foi sempre 
esse, a frieza dele. As perguntas que apareciam eram sobre o 
porquê das mentiras a respeito do seu trabalho, da sua vida 
particular: "Será que ele tinha medo de que eu quisesse explorá-
lo de alguma maneira? Será que dou a impressão de ser esse tipo 
de mulher? Será que eu tinha como perceber as mentiras e fui 
muito tonta?" 
* 
Passado algum tempo, surgiu este diálogo numa sessão: 
— Estou pensando naquele dia do acidente. Por muito 
menos, é aberto processo nesses casos. Como foi que ele se saiu 
disso? Já sei de onde veio essa história de que era eu quem estava 
dirigindo. Nossa, será que o dinheiro pode tanto assim? 
119 
Bile Tatit Sapienza 
— Pode. Dinheiro não pode tudo, mas pode muito. 
— Dinheiro não pode dar paz de consciência..., mas isso é 
pra quem tem consciência. 
Ficou um pouco quieta e em seguida falou: 
— Um dia ainda acerto esse cara. Sabendo agora quem ele 
é, eu poderia ir atrás dele; mas não quero fazer isso. Só sei que 
ainda vai chegar a hora desse acerto de contas. Ah, se vai! 
O tratamento planejadopara ser feito em seu rosto deveria 
ter acontecido uma semana depois do dia em que viu a foto dele 
no jornal. Ela não quis fazer mais nada naquela ocasião. Só uns 
dois meses depois voltou a falar sobre esse assunto. Então a 
terapeuta perguntou se ela havia desistido do tratamento. E ela 
respondeu: 
— Acho que o susto que levei com aquela foto e tudo mais 
que começou a vir ao meu pensamento me deixaram meio 
atordoada. Eu me afundei no trabalho, ainda mais depois que tive 
a promoção. Depois daquele dia em que vi a foto dele fiquei 
diferente. Antes, era uma tristeza muito grande, uma amargura, 
mas agora o que sinto é raiva: raiva dele sempre, e, às vezes, raiva 
de mim, por ter sido tão boba. Perdi o ânimo de voltar ao médico 
pra tratar das minhas cicatrizes. Você pode me achar meio louca, 
mas parece que até comecei a querer que fique tudo como está. 
Em vista de como poderia ter ficado, até que está ótimo. Já me 
acostumei, converso com naturalidade com as pessoas. Pra que 
mais? Tenho saído com as meninas, fui outro dia a uma festa. A 
única diferença é que namorar não faz mais parte dos meus 
planos. 
— E por que não faz parte? 
— Ora, você sabe o porquê. 
— Imagino que tenha medo de que os homens sejam todos 
como aquele. Não quer correr o risco de topar com um outro 
igual, não é? E agora, quanto a não querer fazer o tratamento que 
120 
Do desabrigo à confiança 
seu médico propôs, por que será isso? Você estava animada com 
a ideia. Por que será que você se recusa a melhorar ainda mais 
sua aparência? Quer garantir que os homens não se aproximem 
de você por achá-la bonita? Beleza se transformou numa coisa 
perigosa? 
— Não é isso, é que estou assumindo agora a vida do jeito 
que ela é, e ela é assim. É dura mesmo. Tudo o que me aconteceu 
serviu pra me mostrar que eu era sonhadora demais, que eu 
acreditava nas pessoas. Minha mãe vivia me prevenindo; ela me 
dizia pra ter cuidado com os homens. É o mesmo que ela diz pra 
minha irmã agora. Parece que ela estava adivinhando o que iria 
me acontecer. Já meu pai era diferente. Quando ele teve o enfarte 
eu tinha dez anos. Meu pai me dizia sempre, meio brincando, mas 
ao mesmo tempo falando sério: "Que filhinha bonitinha essa que 
eu tenho." Uma vez minha mãe disse pra ele: "Pare de estragar 
a menina com essa bobagem de bonitinha." Nesse dia, me lembro 
de ele ter dito: "Ela não vai se estragar por causa disso. O que 
ela tem é um dom." Que saudade eu tenho do meu pai! Se ele 
estivesse vivo, iria me dar o maior apoio nisso tudo. Sabe, ele era 
professor de literatura. Uma pessoa muito sensível. Deu aula no 
colégio onde estudei. Por isso me deram a bolsa de estudos depois 
que ele morreu. Minha mãe era diferente, sempre muito 
preocupada e aflita com tudo. Ela era boa do jeito dela. Mas me 
diga você. O que fiz de errado nessa história que me aconteceu? 
Se não tivesse havido o acidente, e se ele passasse a me tratar 
mal como fez na hora em que bateu nas minhas mãos e fez voar 
o pacote de biscoitos, eu teria percebido, eu não iria continuar com 
ele. Maldita hora em que entrei naquele carro com ele bêbado 
daquele jeito. Foi aí que eu errei... Estou me lembrando do meu 
pai: "O que ela tem é um dom." Se estivesse aqui, ele iria dizer 
para eu ir, sim, fazer o tratamento que o médico propôs. Sabe de 
uma coisa? Amanhã mesmo vou ligar pra ele. 
— Pois é, seu pai chamava de dom alguma coisa que foi 
dada sem você pedir, sem ir atrás. Aconteceu de você ter nascido 
assim. Por que não aceitar, por que não manter uma coisa que 
121 
Bile Tatit Sapienza 
você sempre sentiu como sendo boa? Por outro lado, outras coisas 
sentidas como muito ruins também aconteceram sem que você 
fosse atrás delas. Essas também foram dadas como se deram. E 
essas, mesmo que custe, não há como recusar, porque elas se 
impuseram. Então, se você está sendo capaz de aceitar a vida 
dura como ela é, como você disse hoje, por que não aceitar, por 
que não receber também o que pode chegar de bom pra você? 
— Pensando bem, não tem cabimento, é até feio não 
aceitar uma coisa que meu médico me ofereceu de boa vontade, 
que faz parte do trabalho dele. Isso é até fazer pouco caso da 
sorte que tive de encontrar uma pessoa como ele. Bendita hora 
em que, ao entrar naquele hospital, era ele quem estava de 
plantão. Ele é uma pessoa especial. Gosto muito dele. 
— Imagino que goste mesmo. 
* 
Depois disso, mais de dois anos já se passaram. Foram 
excelentes os resultados dos tratamentos feitos pelo seu médico. 
Ficaram algumas marcas ainda, muito mais leves, nada que 
estrague o conjunto do seu rosto. Ela se cuida também com uma 
dermatologista que trabalha no consultório dele. E a terapia 
continua. Depois de o mais urgente ter se acalmado, começaram 
a chegar as lembranças mais antigas, alegrias e tristezas da 
infância e da adolescência. Apareceram também as coisas novas, 
como ela cwstuma dizer, algumas já sendo realizadas, como o 
progresso que ela tem tido na empresa em que trabalha, e outras 
com as quais ela não sabe ainda o que fazer, coisas que se 
anunciam... O que importa é que ela está sendo capaz de retomar 
o cuidado da sua vida. 
Outro dia ela contou para a terapeuta que, ao fazer uma 
limpeza de armário, encontrou a caixinha quase cheia de remédios 
que havia trazido do hospital e jogou os comprimidos na privada. 
Disse então: 
— Vi os remédios e me lembrei de que, mesmo depois que 
comecei a vir aqui, por algum tempo eu ainda queria morrer. Eu 
122 
Do desabrigo à confiança 
sabia que havia essa saída pra mim. Mas isso foi sendo adiado até 
que, quando me dei conta, essa hora já tinha passado..., não que 
a minha dor fosse menor. Não sei o que aconteceu. Bem, eu sei 
que tem a ver com o fato de eu vir aqui. Será que falar ajuda? 
Só sei que muita coisa mudou na minha vida, algumas coisas 
perderam a importância que tinham, e outras se tornaram 
importantes. Ah, por falar nisso, na próxima semana eu não venho. 
Deu certo a abertura daquela filial da empresa. Você se lembra 
de que falei disso há um tempo? E isso, vou ter de viajar pra dar 
uma força para o pessoal de lá. A gente se vê só na outra semana. 
O problema vai ser na faculdade, tenho provas marcadas. Mas eu 
converso depois com os professores, a gente dá um jeito. 
Ela falou um pouco mais sobre o trabalho e a faculdade até 
acabar a sessão. 
Nesse dia, depois que ela saiu, a terapeuta ficou se 
lembrando de quando, no começo da terapia, tinha se perguntado: 
"O que posso fazer por ela?" Até agora ainda não sabia dizer 
exatamente o que tinha feito, mas gostou dessa ideia de ter 
contribuído para aquele adiamento da morte. E pensou: "Enquanto 
isso, deu tempo de tanta coisa acontecer! Onde foi mesmo que 
eu l i dá-se tempo, dá-se serl Lembrei. Está naquele texto Tempo 
e ser, de Heidegger. Se bem que lá o sentido dessas expressões 
é outro. Lá se trata de 'tempo' e 'ser' como as questões do 
pensamento, as questões da filosofia... Mas por que essas 
expressões me vieram à cabeça agora? Eu estava pensando no 
dar-se de tempo e no dar-se de ser para cada ser humano, pois, 
afinal, cada um tem de se haver constantemente com o sentido 
do seu ser e do ser de tudo que se apresenta a ele e o afeta de 
algum modo; tem de se haver com o sido, o estar sendo e o 
poder ser de sua existência, e o poder não ser... E isso. Pensando 
na terapia, quanta coisa se deu nesse espaço de tempo!... Só sei 
que, durante a terapia, ela foi escolhendo viver..., e, enquanto isso, 
tivemos tempo... Mas, afinal, o que se deu aqui na terapia? Ela 
123 
B i l e Tatit Sapienza 
não conseguia mais ver sentido em sua vida. Me lembro de quando 
ela falou da morte na alma. Sinto que atravessamos um lugar 
muito árido. Mas em algum momento o sentido começou a ser 
rearticulado. Como é difícil falar disso! Não sei dizer em que 
momento começou a se dar uma transformação, mas sei que 
houve uma transformação. Ela era a própria imagem do desabrigo 
quando a conheci. Não sei bem quando e como foi que elacomeçou a aceitar e a acolher aquilo que pôde ter sido dado, 
aquela possibilidade que, mesmo tão indesejada, se realizou — o 
doloroso de sua vida —; nem quando e como foi que ela começou 
a aceitar e a acolher o que pode ser dado dia a dia, num 
ressurgimento da confiança que possibilita a entrega ao que se 
apresenta a ela e a solicita. Parecia impossível. Mas aconteceu. 
Sinto que hoje, ainda que com momentos de grande tristeza — isso 
faz parte da vida —, a existência dela pode conter, pode abarcar 
tanto aquela desilusão tão grande, um pedaço de sua história, 
como a dimensão de futuro, em que sua história continua. Estou 
me lembrando agora daquele seu antigo sonho, em que nunca 
mais o dia iria amanhecer..." 
124 
Referências 
HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro 
Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. 
El ser y el tiempo. Trad. José Gaos. México: Fondo de Cultura 
Económica, 1971. 
Ontology - The Hermeneutics of Facticity. Trad. John van 
Buren. Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 1999. 
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Mar-
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POMPEIA, João Augusto. Corporeidade. Revista da Associação Brasi-
leira de Daseinsanalyse, São Paulo, n. 12,2003. 
POMPEIA, João Augusto. Aspectos emocionais na terapia daseinsana-
lítica. Revista Brasileira de Daseinsanalyse, São Paulo, n. 13, 2004. 
SARTRE, Jean-Paul. L'être et le néant. Paris: Gallimard, 1943. 
Os textos "Desfecho: encerramento de um processo" e "Tempo e ser", 
cujas referências aparecem no pensamento da terapeuta imaginada no 
exemplo, estão em: 
HEIDEGGER, Martin. Tempo e ser. Trad. Ernildo Stein. In: Os Pensado-
res. São Paulo: Nova Cultural, 1989. 
POMPEIA, João Augusto e SAPIENZA, B i l e Tatit. Desfecho: encerramen-
to de um processo. In: Na presença do sentido. Uma aproximação feno-
menológica a questões existenciais básicas. São Paulo: Educ/Paulus, 
2004. 
125 
LIVROS PUBLICADOS PELA EDITORA ESCUTA 
Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, Renato Mezan (esg.) 
Do gozo criador, Carlos D. Perez 
O manuscrito perdido de Freud, H. Haydt de S. Mello 
O psicanalista e seu ofício, Conrad Stein 
Elementos da interpretação, Guy Rosolato 
A pulsão de morte, André Green et al. 
Psicanálise de sintomas sociais, Sergio A. Rodriguez/Manoel T. Berlinck (orgs.) 
Família e doença mental, Isidoro Berenstein 
Narcisismo de vida, narcisismo de morte, André Green 
As Erínias de uma mãe, Conrad Stein 
Notas de psicologia e psiquiatria social, Armando Bauleo 
Trauma, amor e fantasia, Franklin Goldgrub 
Clínica psicanalítica: estudos, Pierre Fedida 
Psicanálise da clínica cotidiana, Manoel Tosta Berlinck 
O acalanto e o horror, Ana Lúcia C. Jorge 
A Representação. Ensaio psicanalítico, Nicos Nicolaidis 
O desenvolvimento kleiniano I. Desenv. clínico de Freud, Donald Meltzer 
Édipo africano, Marie-Cécile e Edmond Ortigues 
Comunicação e representação, Pierre Fedida (org.) 
Ensaios de psicanálise e semiótica, Miriam Chnaiderman 
Freud e o problema do poder, Leon Rozitchner 
Melanie Klein: evoluções, Elias M. da Rocha Barros (org.) 
Figurações do feminino, Daniele Brun 
14 conferências sobre Jacques Lacan, Fani Hisgail (org.) 
Introdução à psicanálise, Luis Hornstein 
O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro, Piera Aulagnier 
O desenvolvimento kleiniano II. Des. clínico de M. Klein, Donald Meltzer 
Tausk e o aparelho de influenciar na psicose, Joel Birman ( org.) 
A construção do espaço analítico, Serge Viderman 
Um intérprete em busca de sentido - I, Piera Aulagnier 
Um intérprete em busca de sentido - II, Piera Aulagnier 
Ter um talento, ter um sintoma, Denise Morel 
A dialética freudiana I: Prática do método psicanalítico, Claude Le Guen 
O inconsciente: várias leituras, Felícia Knobloch (org.) 
Psicose: uma leitura psicanalítica, Chaim S. Katz (org.) 
História da histeria, Etienne Trillat 
A rua como espaço clínico, Equipe de A.T. do Hospital-Dia A CASA (org.) 
A clínica freudiana, Isidoro Vegh 
O título da letra, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe 
Quando a primavera chegar, M. Masud R. Khan 
O Deus odioso. O diabo amoroso. Psicanálise e representação do mal, Mareio 
Peter de Souza Leite e Jacques Cazotte 
As bases do amor materno, Margarete Hilferding, Teresa Pinheiro e Helena B. 
Vianna 
Transferências, Abrão SIavutzky 
Do sujeito à imagem. Uma história do olho em Freud, Hervé Huot 
O sentimento de identidade, Nicole Berry 
Gigante pela própria natureza, Emilio Rodrigué 
Freud e o homem dos ratos, Patrick J . Mahony 
Nome, figura e memória, Pierre Fedida 
A supervisão na psicanálise, Conrad Stein et al. 
Perturbador mundo novo, SBPSP (org.) 
Cidadãos não vão ao paraíso, Alba Zaluar (Co-ed.Edunicamp) 
Casal e família como paciente, Magdalena Ramos (org.) 
Mancar não é pecado, Lucien Israel 
Crónicas científicas, Anna Verónica Mautner 
Penare, Celia Eid e Maria Lúcia Arroyo 
A histérica, o sexo e o médico, Lucien Israel 
Olho d'água. Arte e loucura em exposição, João Frayze-Pereira 
Vida bandida, Voltaire de Souza 
Figuras da teoria psicanalítica, Renato Mezan (Co-ed. Edusp) 
Em busca da escola ideal, Neda Lian Branco Martins 
A casca e o núcleo, Nicolas Abraham e Maria Tõrok 
Ah! As belas lições!, Radmila Zygouris 
Sigmund Freud. O século da Psicanálise (3 vols.), Emilio Rodrigué 
A dialética da falta, Alba Gomes Guerra e Patrícia Simões 
A interpretação, Elisabeth Saporiti 
Fato em psicanálise, UPA 
O corpo de Ulisses. Modernidade e materialismo em Adorno e Horkheimer, Pau-
lo Ghiraldelli Jr. (esg.) 
Considerações sobre o psiquismo do feto, Therezinha G. de Souza-Dias 
Isaías Melsohn. A psicanálise e a vida, Bela Sister e Marilsa Taffarel (orgs.) 
Outra beleza. Estudo da beleza para a psicanálise, Cláudio Bastidas 
O sítio de estrangeiro, Pierre Fedida 
Psicoterapia breve psicanalítica, Haydée C. Kahtuni 
O processo analítico, UPA 
Elaboração psíquica. Teoria e clínica psicanalítica, Paulina Cymrot 
A linguagem dos bebés, Marie-Claire Busnel 
Uma pulsão espetacular, Psicanálise e teatro, Mauro P. Meiches 
Freud. Um ciclo de leituras, Silvia L . Alonso e Ana M. S. Leal (orgs.) 
Cadernos de Bion 1, Júlio C. Conte (org.) 
O estrangeiro, Caterina Koltai (org.) 
Eu corpando. O ego e o corpo em Freud, Liana Albernaz de M. Bastos 
Diálogos, Gilles Deleuze e Claire Parnet 
O sintoma da criança e a dinâmica do casal, Isabel Cristina Gomes 
A escuta, a transferência e o brincar, UPA 
Sexo, Rosely Sayão (Co-ed. Via Lettera) 
A prova pela fala, Roland Gori (Co-ed.UCG) 
O instante de dizer, Marie-Jose Del Volgo (Co-ed.UCG) 
0 desenv. kleiniano III. O significado clínico da obra de Bion, Donald Meltzer 
Achados chistosos da psicanálise nas crónicas de J.Simão, Jane de Almeida (Co-Educ) 
A história de Tobias. Um estudo sobre o animus e o pai, Fabíola Luz 
Freud e a consciência, Oswaldo França Neto 
Pulsões de vida, Radmila Zygouris 
Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi, Luis Cláudio Figueiredo 
Transferência, sedução e colonização, UPA 
Febem, família e identidade. O lugar do Outro. Isabel Kahn Marin 
A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica, Gina K. Levinzon 
Mosaico de letras. Ensaios de psicanálise, Urania Tourinho Peres 
Cadernos de Bion II, Júlio César Conte (org.) 
Memórias de um autodidata no Brasil, Mauricio Tragtemberg 
Ética e técnica em psicanálise, Luís Cláudio Figueiredo e Nelson Coelho Jr. 
A arte do encontro de Vinícius de Moraes, Sónia Alem Marrach 
Educação para o futuro. Psicanálise e educação, M. Cristina M. Kupfer 
Política e psicanálise. O estrangeiro, Caterina Koltai 
Nas encruzilhadas do ódio, Micheline Enriquez 
Aids. A nova desrazão da humanidade, Henrique F . Carneiro 
O problema da identificação em Freud, Paulo de Carvalho Ribeiro 
Catástrofe e representação, Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva (orgs.) 
Conformismo, ética, subjetividade e objetividade, UPA 
A histérica entre Freud e Lacan, Monique David-Ménard 
Como a mente humana produz ideias, J . Vasconcelos 
Mulher no Brasil. Nossas marcas e mitos, MarisaBelém 
A clínica conta histórias, Lúcia B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.) 
O olhar do engano. Autismo e outro primordial, L i a Ribeiro Fernandes 
Doença ocupacional, Marina Durand 
Os avatares da transmissão psíquica geracional, Olga B. R. Correa (org.) 
Abertura para uma discoteca, Roland de Candé 
A conversa infinita -LA palavra plural, Maurice Blanchot 
A morte de Sócrates. Monólogo filosófico, Zeferino Rocha 
Cenários sociais e abordagem clínica, José Newton Garcia de Araújo e Teresa 
Cristina Carreteiro (orgs.) (Co-Fumec) 
O que é diagnosticar em psiquiatria, Jorge J. Saurí 
A constituição do inconsciente em práticas clínica na França do século XIX, Sid-
nei José Cazeto 
Narcisismo, superego e o sonhar, UPA 
Psicofarmacologia e psicanálise, M. Cristina Rios Magalhães (org.) 
A Escola Livre de Sociologia e Política. Anos de Formação 1933-1953. De-
poimentos, íris Kantor, Débora A. Mac ie l , Júlio Assis Simões (orgs.) 
Linha de horizonte - por uma poética do ato criador, Edith Derdyk 
Diagnóstico compreensivo simbólico. Uma psicossomática para a prática clíni-
ca, Susana de Albuquerque Lins Serino 
O carvalho e o pinheiro. Freud e o estilo romântico, Ines Loureiro 
O conceito de repetição em Freud, Lúcia Grossi dos Santos (co-Fumec) 
Driblando a perversão. Psicanálise, futebol e subjetividade brasileira, Cláu-
dio Bastidas 
O cálculo neurótico do gozo, Christian Ingo Lenz Dunker 
Psicanálise e educação. Questões do cotidiano, Renate Meyer Sanches 
Espinosa. Filosofia prática, Gilles Deleuze 
Os gregos e o irracional, E . R. Dodds 
Vínculos e instituições. Uma escuta psicanalítica, Olga B. Ruiz Correa (org.) 
Em torno de O mal-estar na cultura de Freud, Jacques Le Rider, Michel Plon, 
Gerard Raulet, Henri Rey-Flaud 
Personalidade, ideologia e psicopatologia crítica, Virgínia Moreira e Tod Sloan 
Encontros e desencontros entre Winnicott e Lacan, Perla Klautau 
Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo, Silvia Alonso et.al. (orgs.) 
Psicopatologia psicanalítica e outros estudos, UPA 
O gozo en-cena. Sobre o masoquismo e a mulher, Eliane Z. Schermann 
Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da hospitalidade, Anne 
Dufourmantelle/Jacques Derrida 
Os rumos da psicanálise no Brasil: um estudo sobre a transmissão psicanalítica, 
Eliana Araújo Nogueira do Vale 
Psicanálise. Elementos para a clínica contemporânea, Luís Cláudio Figueiredo 
Psicologia do desempenho. Corpo pulsional & corpo mocional, José Luis Moraguès 
Memória e exílio, Sybil Safdie Douek 
Desafios para a psicanálise contemporânea, Lúcia B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.) 
Os caminhos do trauma em N. Abraham e Maria Torok, Suzana P. Antunes 
Universidade e governo. Professores da Unicamp no período FHC, Mônica Tei-
xeira (org.) 
Envelhecer com desenvolvimento pessoal, Ana Maria S. R. Varella 
Mudanças no relacionamento afetivo-sexual, Tânia da G. Nogueira (co-Fumec) 
Falar em público. Experiência de mal-estar na trajetória profissional contempo-
rânea, Nazildes Lobo 
TPM - Tensão, paixão e mal-estar. A subjetivação de uma mulher em tensão 
pré-menstrual, Juçara Rocha Soares Mapurunga 
Melanie Klein. Estilo e pensamento, M. Elisa de Ulhoa Cintra e Luis Cláudio F i -
gueiredo 
Ética e finitude, Zeljko Loparic 
Transferência, contratransferência e outros estudos, UPA 
A formação do psicólogo, João L . Ferreira Neto (Co-Fumec) 
A dominação do corpo no mundo administrado, Conrado Ramos 
O analista trabalhando, UPA 
Prostituição: o eterno feminino, Eliana dos Reis Calligaris 
Cruzamentos 2. Pensando a violência, Fernando Kunzler e Bárbara Conte (orgs.) 
A violência no coração da cidade. Um estudo psicanalítico, Paulo Cesar Endo 
Winnicott na clínica e na instituição, Renate Meyer Sanches (org.) 
Perversão em cena, Eliane Chermann Kogut 
Autoritarismo afetivo. A Prússia como sentimento, Gisálio Cerqueira Filho 
Dialética da vertigem. Adorno e a filosofia moral, Douglas Garcia Alves Júnior 
(co-Fumec) 
A festa tecnológica, Glaucia Dunley (Co-Fiocruz) 
História da psicanálise. São Paulo 1920-1969, Carmen Lúcia M. V. de Oliveira 
Memória da língua. Imigração e nacionalidade, Maria Onice Paye 
Sobre arte e psicanálise, Tânia Rivera e Vladimir Safatle (orgs.) 
O sintoma e suas faces, Lucía B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.) 
Controvérsias psicanalíticas, UPA 
Tornar-se herdeiro. A transmissão psíquica entre gerações, Tatiana Inglez-
Mazzarella 
Gozo, Néstor A. Braunstein 
C O L E Ç Ã O 
B I B L I O T E C A D E P S I C O P A T O L O G I A F U N D A M E N T A L 
Melancolia, Urania Tourinho Peres (org.) 
Histeria, Manoel Tosta Berlinck (org.) 
Autismos, Paulina S. Rocha (org.) 
Depressão, Pierre Fédida 
Pânico e desamparo, Mario Eduardo Costa Pereira 
Anorexia e bulimia, Rodolfo Urribarri (org.) 
Dor, Manoel Tosta Berlinck (org.) 
Toxicomanias, Durval Mazzei Nogueira Filho 
Diferenças sexuais, Paulo Roberto Ceccarelli 
Os destinos da angústia na psicanálise freudiana, Zeferino Rocha 
Hysteria, Christopher Bollas 
Psicopatologia fundamental, Manoel Tosta Berlinck 
Culpa, Urania T. Peres (org.) 
A paixão silenciosa, Maria Helena de Barros e Silva 
Clínica da melancolia, Ana Cleide G. Moreira (Co-Edufpa) 
Depressão, estação psique. Refúgio, espera, encontro, Daniel Delouya 
Hipocondria, M. Aisenstein, A. Fine e G. Pragier (orgs.) 
Dos benefícios da depressão. Elogio da psicoterapia, Pierre Fédida 
Superego, Marta Rezende Cardoso 
Angústia, Vera Lopes Besset 
Doenças do corpo e doenças da alma, Lazslo A. Avila. 
Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Edilene Freire de Queiroz e Antonio 
Ricardo Rodrigues da Silva (orgs.) 
Violências, Isabel da Silva Kahn Marin 
Psicopatologia dos ataques de pânico, Mário Eduardo Costa Pereira 
Masoquismo mortífero e masoquismo guardião da vida, Benno Rosenberg 
A bulimia, B. Brusset, C. Couvreur, A. Fine (orgs.) 
A neurose obsessiva, Bernard Brusset e Catherine Couvreur (orgs.) 
Limites, Marta Rezende Cardoso (org.) 
O eu e o corpo, Lazslo A. Avila 
A clínica da perversão, Edilene Freire Queiroz 
Psicopatologia e disfunção erétil, Maria Virgínia Filomena Cremasco Grassi 
Obsessiva neurose, Manoel T. Berlinck (org.) 
Adolescentes, Marta Rezende Cardoso (org.) 
Imperativos do supereu, Marta Gerez Ambertin 
Traumas, Ana Maria Rudge (org.) 
A fenomenologia das psicoses, Arthur Tatossian 
COLEÇÃO — INFÂNCIA E PSICANÁLISE 
Rumo à palavra. Três crianças autistas em psicanálise, M.-Christine Laznik-Penot 
Sublimação da sexualidade infantil, Paulo A. Buchvitz 
A criança e o infantil em psicanálise, Silvia Abu-Jamra Zornig 
A história da psicanálise de crianças no Brasil, Jorge Luís Ferreira Abrão 
O lugar dos pais na psicanálise de crianças, Ana Maria Sigal de Rosemberg 
O que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição, Leda 
Mariza F. Bernardino (org.) 
Cata-ventos. Invenções na clínica psicanalítica institucional, Paulina S. Rocha 
(org.) 
COLEÇÃO — O S E X T O L O B O 
Hello Brasil!, Contardo Calligaris 
Clínica do social. Ensaios, Luiz Tarlei de Aragão (org.) 
Exílio e tortura, Maren e Marcelo Vinar 
Extrasexo. Ensaio sobre o transexualismo, Catherine Millot 
Alcoolismo, delinquência, toxicomania, Charles Melman 
Imigrantes. Incidências subjetivas das mudanças de língua e país, Charles 
Melman 
Fantasia de Brasil, Octávio Souza 
Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos, Luis Cláudio Figueiredo 
(Co-Educ) 
A face e o verso. Estudos sobre o homoerotismo - / / , Jurandir Freire Costa 
O que é ser brasileiro? Carmen Backes 
COLEÇÃO — E N S A I O S 
Merleau-Ponty. Filosofia como corpo e existência, Nelson Coelho Jr. e Paulo 
Sérgio do Carmo 
O inconsciente como potência subversiva, Alfredo Naffah Neto 
O pensamento japonês, Hiroshi Oshima 
Comunicação e psicanálise, Jeanne Marie Machado de Freitas 
Clarice Lispector. A paixão segundo C.L., Berta Waldmann 
A pulsão anarquista, Nathalie Zaltzman 
Escutar, recordar, dizer, Luís Cláudio Figueiredo (Co-Educ) 
Sintoma social dominante e moralização infantil, He lo í sa Fernandez (Co-
Edusp)Na sombra da cidade, Maria Cristina Rios Magalhães (org.) 
Estados-da-alma da psicanálise, Jacques Derrida 
O vínculo inédito, Radmila Zygouris 
Nem todos os caminhos levam a Roma, Radmila Zygouris 
COLEÇÃO — TÉLOS 
Ensaios de clínica psicanalítica, François Perrier 
A formação do psicanalista, François Perrier 
Afeto e linguagem nos primeiros escritos de Freud, Monique Schneider 
Como a interpretação vem ao psicanalista, René Major (org.) 
COLEÇÃO — L I N H A S D E F U G A 
A invenção do psicológico, Luís Cláudio Mendonça Figueiredo (Co-Educ) 
Limiares do contemporâneo, Rogério da Costa (org.) 
A psicoterapia em busca de Dioniso, Alfredo Naffah Neto (Co-Educ) 
As árvores de conhecimentos, Pierre Levy e Michel Authier 
As pulsões, Arthur Hyppólito de Moura (org.) (Co-Educ) 
C O L E Ç Ã O — T R A N S V E S S I A S 
O corpo erógeno. Uma introdução à teoria do complexo de Édipo, Serge Leclaire 
C O L E Ç Ã O — P L E T H O S 
A palavra insensata. Poesia e psicanálise, Eliane Fonseca 
Contratransferência, Suzana Alves Viana 
Poética do erótico, Samira Chalhub 
A Escola. Um enfoque fenomenológico, Vitória Helena Cunha Esposito 
Psicanálise, política, lógica, Célio Garcia 
A eternidade da maçã. Freud e a ética, Flávio Carvalho Ferraz 
A cara e o rosto. Ensaio de Gestalt Terapia, Ana Maria Loffredo (esg.) 
Pacto Re-Velado. Psicanálise e clandestinidade política, Maria Auxiliadora de Al-
meida Cunha Arantes 
A poesia, o mar e a mulher: um só Vinícius, Guaraciaba Micheletti 
Psiquismo humano, Marco Aurélio Baggio 
Semiótica da canção. Melodia e letra, Luiz Tatit 
A cientifwidade da psicanálise. Popper e Peirce, Elisabeth Saporiti 
A força da realidade na clínica freudiana, Nelson Coelho Júnior 
Corpoafecto: o psicólogo no hospital geral, Marilia A. Muylaert 
Crianças na rua, Ana Carmen Martin dei Collado 
Um olhar no meio do caminho, Sônia Wolf 
Os dizeres nas esquizofrenias. Uma cartola sem fundo, Mariluci Novaes 
C O L E Ç Ã O - F I L O S O F I A NO B R A S I L 
Freud na filosofia brasileira, Leopoldo Fulgêncio e Richard T. Simanke (orgs.) 
Kant no Brasil, Daniel Omar Peres (org.) 
Origem: C O M P R A 
Livr. Cia dos Livros 
Preço: R$ 11,95 
Solic. Coordenação 
Data: 16/11/09 
Título 
Projeto Gráfico 
Diagramação 
Revisão 
Formato 
Tipologia 
Papel 
Número de páginas 
Tiragem 
Impressão 
Do desabrigo à confiança. Daseinsanalyse 
e terapia 
Diogo Angelozi Rossano » 
Diogo Angelozi Rossatto 
Tereza Cristina P. Teixeira 
14 x 21 cm 
Times New Roman (11/13) 
Cartão Royai 250g (capa) 
Off set 75g (miolo) 
132 
2.000 
Editora e Gráfica Vida e Conscência