Prévia do material em texto
BiléTatitSapienza Do desabrigo á confian§a Daseinsanalyse e terapia escuta Asábalo Urtó Enano Kenwabl l |>lw - Asaupeio Dala ^ de Chamada Tumbo Regliradopor - 8B6llo»ece - © by Editora Escuta para edição em língua portuguesa I a edição: abril de 2007 EDITORES Manoel Tosta Berlinde Maria Cristina Rios Magalhães CAPA Imageriaestudio PRODUÇÃO EDITORIAL Araide Sanches Dados internacional de C a t a l o g a ç ã o na Pub l i cação ( C I P ) S241d Sapienza, Bile Tatit. Do desabrigo à confiança : Daseinsanalyse e terapia / Bile Tatit Sapienza - São Paulo: Escuta, 2007. 132 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-7137-261-0 1. Psicoterapia. 2. Fenomenologia. 3. Daseinsanalyse. I. Título. C D U 615.851 159.964.2 C D D 157.9 616.8917 (Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo - CRB 10/1507) Editora Escuta Ltda. Rua Dr. Homem de Mello, 446 05007-001 São Paulo, SP Telefax: (11) 3865-8950 / 3675-1190 / 3672-8345 E-mail: escuta@uol.com.br www.editoraescuta.com.br Sumário Apresentação Introdução Do desabrigo à confiança Referências mailto:escuta@uol.com.br http://www.editoraescuta.com.br Apresentação A autora deste livro comentou em particular sua surpresa com os diversos relatos de pessoas que disseram ter se emocionado em algum momento da leitura de seu primeiro livro, Conversa sobre terapia. Surpresa por não ter imaginado que um texto sobre este assunto pudesse tocar assim tantos leitores. Este efeito é fruto de sua habilidade em conceber de maneira convincente as histórias de pacientes e terapeutas que inventa para apresentar sua visão do processo terapêutico e as concepções filosóficas que fundamentam sua prática. O que percebemos de verdadeiro nas situações que cria justificaria a inclusão nestes livros da advertência comum em romances e novelas de TV: Esta história não é baseada em fatos reais. Todos os personagens, lugares e situações aqui representados são fictícios. Qualquer semelhança é mera coincidência. Porém, estes livros não se propõem a ser obras de ficção. Foram construídos simultaneamente ao processo de elaboração dos cursos oferecidos pela autora na Associação Brasileira de Daseinsanalyse, concebidos como instrumentos para refletir sobre a natureza da prática terapêutica fundamentada no Dasein. Além de nova história imaginada para alimentar essas discussões, Do desabrigo à confiança situa historicamente essa Bile Tatit Sapienza abordagem e introduz alguns dos principais conceitos filosóficos que a orientam. Tanto no primeiro livro quanto neste a terapia é apresentada como uma situação de abertura do pensamento e do coração. Assim, é coerente que estes textos, instrumentos de reflexão, também possam mobilizar nossas emoções. Tarcísio Tatit Sapienza 6 Introdução Do desabrigo à confiança: daseinsanalyse e terapia tem como propósito contribuir para a fundamentação teórica da terapia daseinsanalítica. Este trabalho aprofunda o tema de Conversa sobre terapia. Considero necessária esta fundamentação porque a Daseinsanalyse começa a se difundir entre psicólogos e estudantes de psicologia. Isso nos obriga a explicitar suas bases na fenomenologia e no pensamento heideggeriano, no intuito de preservar a seriedade do trabalho terapêutico e para que essa prática não se estabeleça num vazio de referências. Por isso, parte do livro traz questões básicas de ordem filosófica. Trago também um exemplo clínico que permite visualizar o andamento de uma terapia. É um caso totalmente fictício, para que não haja nenhuma quebra de segredo profissional. Nele retomo personagens que já apareceram em Conversa sobre terapia. Se este texto, de certa maneira, continua Conversa sobre terapia, aqui aparece com mais evidência o referencial da Daseinsanalyse. E quando se trata disto, a dificuldade já começa no fato de que o pensamento de Heidegger não se organiza num sistema de filosofia, não cabe num sistema. Não são conceitos passíveis de definições simples, e a consistência interna entre eles é de uma outra natureza. Por isso, falo da Daseinsanalyse aqui deixando que minhas ideias se organizem da forma como vão aparecendo e chamando 7 Bile Tatit Sapienza umas às outras. Assim, escolho uma apresentação que não segue a tradição académica da divisão em capítulos. Sei que muitas palavras usadas no texto são de difícil compreensão para quem ainda não tem proximidade com o pensamento heideggeriano. Mas tentar explicar cada uma delas equivale a um outro livro. Como essas palavras são retomadas ao longo do texto, o leitor pode se familiarizar com elas, e, aos poucos, começar a compreendê-las. Uma compreensão maior só virá, entretanto, com o estudo do filósofo. O importante aqui é mostrar a possibilidade de uma prática clínica fundamentada no pensamento de Heidegger; não só a possibilidade, mas a fertilidade desse pensamento quando o que se tem em vista é o cuidado da existência. As aspas simples que aparecem em algumas palavras indicam que, naquele momento, determinada palavra está sendo pensada ontologicamente, isto é: minha intenção ali é pensá-la levando em conta essencialmente a sua relação com o ser — o ser em sentido geral e o ser que caracteriza fundamentalmente o ser homem. Tentar falar da Daseinsanalyse fora desse pensar seria fugir dos seus fundamentos. Seria pretender tirar dela o que a caracteriza. Ao mesmo tempo, quando tratamos da clínica, ali está um trabalho que diz respeito ao ôntico, ao concreto do que acontece na vida de uma determinada pessoa. Por isso, a todo momento transitamos do ontológico para o ôntico e do ôntico para o ontológico, tanto na linguagem como no trabalho terapêutico. Bile Tatit Sapienza 8 Do desabrigo à confiança Por que o interesse pela fenomenologia? Ela não se constitui formalmente como uma teoria, é principalmente um modo através do qual nos aproximamos do que pretendemos investigar. Por que — exatamente nesta época em que o método científico tradicional já provou sua eficácia, eficácia essa que se baseia na objetividade do real, que deve poder ser quantificado, previsto para que possa ser controlado — cresce o interesse por um modo de investigar que difere daquele tradicional? A fenomenologia não é apenas um modo diferente de olhar para a realidade. Ela se sustenta num pensamento filosófico para o qual é o próprio conceito de realidade que é outro, numa epistemologia que é outra. Quando a fenomenologia diz que olha para o fenómeno, isso não é uma mera substituição da palavra fato pela palavra fenómeno; aqui o emprego da palavra fenómeno se baseia numa determinada compreensão do que é 'ser'. A concepção filosófica que dá base para a fenomenologia, que permite a legitimidade desse modo de olhar o real, não traz em si a exclusão da possibilidade e da necessidade das ciências positivas. Essas continuam a ter seu lugar no mundo. Mas ela amplia a possibilidade e a necessidade de um outro pensar, e nisto talvez resida o interesse que a fenomenologia desperta. O interesse pelo modo fenomenológico de pensar nota-se especialmente no âmbito daquelas coisas que, de maneira direta e profunda, dizem respeito ao que é especificamente próprio do Bile Tatit Sapienza humano. Entre essas coisas se destaca o próprio fenómeno da existência humana. Quando o fenómeno da existência é trazido como foco de uma reflexão fenomenológica, o que começa a se manifestar aí são as questões fundamentais da existência, e essas questões, por serem essenciais, surgem com um forte apelo para que sejam pensadas e postas em palavras. O fato de considerarmos fenomenologicamente a existência permite que, ao olharmos para ela, afastemos de nosso olhar as teorias psicológicas, as concepções prévias que se acumularam em cima desse fenómeno de que tratamos, o existir humano. Ao fazermos isso, o que aparece para ser visto e para ser falado é o essencial, é a existência mesma, nua e crua. Nesse momento,o que há de principal no existir começa a despontar com prioridade como tema de estudo. * 10 Em nosso caso, como terapeutas daseinsanalistas, nosso olhar fenomenológico para a existência é iluminado por um referencial heideggeriano. A palavra Dasein (Dasein), ser-aí, designa exatamente aquele ente para o qual 'ser' é sempre questão; aquele ente que é o 'aí' onde se 'dá' 'ser'; aquele cujo modo de ser é ser sempre 'aí'.i Aí, onde? No 'mundo';. Aquele cujo modo de ser é 'existindo'. É à existência humana que nos referimos quando dizemos a palavra Dasein. Esse é um modo de pensar para o qual o essencial do homem não é ser racional, mas sim ser destinado ao 'cuidado' (Sorge).É uma filosofia para a qual o homem permanece sempre devedor à existência, facticamente destinado a realizar sua existência no meio das possibilidades todas que se apresentam a ele e, ao mesmo tempo, limitado pelo não poder tudo e pela morte. É isso o que encontramos na base da existência humana quando dirigimos o olhar para ela. * Para quem não sabe do que se trata, a fenomenologia e a Daseinsanalyse parecem ser apenas propostas "alternativas" às formas já consagradas, e alternativas naquele sentido de "vamos tentar uma coisa diferente" do tradicional, um jeito mais direto e mais simples de atender as pessoas que vêm só em busca de 11 Bile Tatit Sapienza resolver alguns desses problemas existenciais, ou seja, segundo essa opinião, aquelas questões que não necessitam ser muito pesquisadas, analisadas. É curiosa essa maneira de pensar, pois o que poderia ser mais sério do que existir? Outros supõem que essa seja uma maneira mais "light" de encarar as questões, e, "light", tanto num sentido de leve, de não aprofundar muito, como num sentido de mais iluminada, visto que parece jogar mais luz nas possibilidades que se desdobram na vida da pessoa em vez de aprofundar no escuro do destrutivo, ^ censurado, do feio que está no fundo de cada um. Essa ideia equivocada pode ser atraente para algumas pessoas que procuram terapia: "Quero me conhecer melhor, tenho uns probleminhas pra resolver, você sabe, essa história de baixa auto-estima, isso está me atrapalhando; hoje em dia a competição é grande, e, mesmo pra se arranjar emprego, essa coisa de não se ter autoconfiança já elimina a gente na primeira entrevista. E, além de tudo, nunca é demais a gente se conhecer melhor. Por isso, quero alguém que trabalhe nessa linha, não quero mexer e nem tenho nada de muito profundo pra ficar mexendo..." Para alguns psicólogos iniciantes, a fenomenologia e a Daseinsanalyse podem surgir, num primeiro momento, como um pensamento mais aberto, mais solto, que toca em questões interessantes, envolventes: "Que demais é tudo isso! Meu, a gente vai longe pensando no que é pensar; no que é ser; no que é existir; no ser-lançado — nossa, isto até arrepia; no cuidado — é bonito isso do cuidado; é impressionante essa coisa da finitude humana, pois, afinal, é porque o Dasein é finito, é mortal, que tudo fica tão importante, e escolher é tão decisivo; a fragilidade da vida é que faz dela uma coisa valiosa. Legal colaborar para que a pessoa veja que pode ampliar suas possibilidades! É com isso que quero trabalhar com meus pacientes. É bom isso de a gente não precisar ficar preso a teorias..." * 12 Do desabrigo à confiança ó que, ao começar a atender seus pacientes, o psicólogo percebe, depois de algum tempo, o quanto é mais difícil trabalhar sem o respaldo de uma teoria de psicologia. Nem sempre é cómodo manter o pensamento aberto; sentir-sé solto pode ser vivido como desamparo. Aqueles temas que encantam e são tão envolventes, quando tratados em grupos de estudo, são outra coisa quando trazidos na condição do sofrimento concreto de alguém que está na sua sala e espera algo de você. A l i se rompe o encantamento; aquilo só dói.^Aquelas ideias de possibilidade de perda, de finitude, de limites, de culpa, ali, com aquela pessoa, já não são ideias. Aquilo está acontecendo na vida dela e é com você que ela quer compaitilhar.^Uma pessoa conta que o amor da sua vida foi embora e agora a vida não tem mais nenhum sentido; outra não pode ser feliz sentindo tantas culpas; há outra que carrega o peso de uma doença grave; aquela outra tem um amor impossível; outra acabou de perder um filho; há aquela que não pode tolerar a injustiça que sempre recai sobre ela; vem alguém e diz que tem tudo o que quer, mas pergunta: "Por que viver?" E cada pessoa conta a sua história, conta a sua vida. Se você estiver junto a cada uma delas, com o pensamento e o coração abertos, o sofrimento poderá ser seu também. E, no entanto, você não está ali para afundar junto. E agora? A única coisa certa é que não é fácil. * E o que tem a ver isso tudo com a fenomenologia ou, no nosso caso, com a Daseinsanalyse? Pois não importa qual seja o referencial do terapeuta, aquelas questões surgem mesmo em qualquer terapia. Acontece que quando há uma técnica padronizada, bem definida, quando existem os parâmetros de uma teoria de psicologia que possibilitam ver ali um certo "quadro" em que o paciente se encaixa, ainda que não resolva grande coisa, isso coloca um algo mais em que pensar, um anteparo entre a 13 Bile Tatit Sapienza experiência de sofrimento do paciente e a impotência que sentimos naquele momento. Mas em nossa maneira de trabalhar, nossa disponibilidade para o que chega é de tal forma que, a cada vez, sentimos como se aquilo estivesse acontecendo pela primeira vez no mundo, como se não houvesse com o que ser comparado, como se aquele paciente estivesse inaugurando aquela possibilidade de sofrer. Essa maneira de estar com o paciente é algo que conquistamos aos poucos, pois a tendência mais comum do psicólogo é querer fazer o diagnóstico. Ele, em geral, quer encaixar o particular do paciente no geral da teoria. Em nosso caso, procuramos fazer um caminho oposto: nós nos despreocupamos do geral da teoria e vamos em busca da diferença peculiar que identifica aquele paciente. (O que há ali são duas pessoas, uma que conta o que a faz sofrer e outra que escuta e procura compreender o que está acontecendo naquela vida. O terapeuta não está ali lidando com um psiquismo, querendo explicar como e por que ele funciona de uma tal forma. A l i ele se encontra com a existência de um ser humano que quer ser compreendido por alguém e quer se compreender melhor. Esse modo do terapeuta estar na sessão faz muita diferença.) Isso não deve, entretanto, ser confundido com a mera expressão de um comportamento afável, de um jeito simpático de ser com o paciente. É claro que o terapeuta, qualquer que seja seu referencial teórico, deveria mesmo ter uma postura de quem está ali para compreender, deveria ser capaz de empatia. Para nós, porém, não se trata só de uma questão de postura. É mais que isso. * Algo deve ser comentado aqui. Comumente, psicólogos não se preocupam em saber em que filosofia, em que epistemologia seu trabalho clínico está baseado. Os pressupostos que fundamen- 14 Do desabrigo à confiança tam a psicologia, aqueles mesmos que servem de base para as ciências naturais, em geral, não são explicitados pelos psicólogos. Assim, para alguns, fica difícil distinguir em que consiste a dife- rença fundamental da proposta fenomenológica. Concebem a fe- nomenologia como uma maneira de trabalhar que se prende apenas ao que aparece, que descreve isso sem aprofundar em nada, mesmo porque, para eles, fenómeno é "apenas" o que apa- rece. Acham que, ao descrever e tomar claro para o paciente o que se passa, a fenomenologia poderia até ajudá-lo a se entender melhor e a resolver alguns problemas; não mais que isso. A fe- nomenologia lhes parece, então, simplesmente uma alternativa menos rígida, despreocupada com as causas dos problemas, com o passado, pois o que interessa é só o presente em vista do futu- ro. Essa é uma maneira pobre de encarar a fenomenologia.Ao menos para aqueles que se propõem a trabalhar à luz da fenomenologia, e especialmente da Daseinsanalyse, é importante que se dediquem a estudar o suficiente de filosofia para que tenham clareza de que sua escolha está situada, está fundamentada num referencial filosófico e epistemológico que é radicalmente outro em relação àquele mais aceito tradicionalmente, e para que saibam que é isso que faz toda a diferença. * Disse antes que na sessão de terapia o terapeuta daseinsanalista não está lidando com um psiquismo para ser explicado. Isso porque, de acordo com os pressupostos de que partimos, nosso trabalho não visa a uma estrutura psíquica interna com um mecanismo de funcionamento regido por determinadas leis. E, se não visamos a isso, não é porque resolvemos achar que não é importante trabalhar com algo interno, ou porque achamos que fazer isso seria mais difícil, ou por pressa de eliminar sintomas. Se trabalhamos assim, é porque temos razões de ordem filosófica para tanto. 15 Bile Tatit Sapienza Concebemos que o que temos diante de nós é uma 'existência', ou seja, nada mais e nada menos do que aquilo que caracteriza o ser daquele ente chamado homem. Em nossa concepção podemos dispensar o conceito de psiquismo, mas não há como ignorar que ali diante de nós alguém existe. ) Compreendemos a 'existência' de tal forma que para nós não é necessário acrescentar a ela aquela estrutura interna chamada psiquismo, a qual só seria necessária se nossas concepções de homem e de mundo se fundamentassem no pensamento tradicional da metafísica, que separa homem e mundo, mente e corpo, sujeito que conhece e objeto do conhecimento. Se fosse esse o caso, aquela estrutura seria necessária para tomar possível a explicação de como instâncias, em princípio, tão separadas passam a se pôr em contato, e de como, afinal, é possível que haja um eu que se põe em relação com a realidade extema. E seria necessário também, nessas circunstâncias, conceber e explicar os mecanismos por meio dos quais tais coisas poderiam acontecer. Em nossa abordagem, a existência humana é concebida como algo totalmente diferente da existência de todos os outros entes. (A noção heideggeriana de ' ex i s tênc ia ' é tal que, rigorosamente falando, só o homem 'existe'. Os outros entes são. O ente montanha é, o ente árvore é, o ente gato é. O ente humano 'existe'.(Este é o ente a que chamamos Dasein, ser-aí, que é 'ser-no-mundo'. E quando se trata desse ente, 'existência' significa 'abertura' para o 'ser' em geral, e é nessa 'abertura' que se dá 'mundo', 'mundo' que é o entrelaçamento de significados.) Se 'existência' já é 'ser-no-mundo', já é esse 'aberto' prévio em que se dá 'mundo', onde caberia em tal contexto falarmos de interno e externo, de dentro e fora? Dentro ou fora de quê? Se, onticamente no mundo, podemos nos referir a algo interno ou externo em relação a alguma coisa, já é porque, originariamente, do ponto de vista ontológico nossa 'existência' é essa 'abertura' compreensiva, que tem como um de seus caracteres existenciais básicos a 'espacialidade', o que permite ao Dasein poder dizer dentro, fora, perto, longe, aqui, ali, e conceber 16 Do desabrigo à confiança o espaço físico com suas dimensões. Existir é ser esse 'aberto', que não pode ser fora do 'mundo', porque 'precisa' de 'mundo' para ser, e não pode ser dentro do 'mundo' porque fora dele não 'há ' 'mundo' em relação ao qual ele pudesse ser dentroí A 'existência', sendo a própria 'abertura' em que 'há' 'mundo', já é, de modo originário, 'compreensão' do mundo, e não apenas uma compreensão no sentido intelectual, mas compreensão no sentido de abarcar o que se apresenta, e mais, é uma compreensão já sempre colorida por uma disposição afetiva ou 'afinação' relativa ao que é compreendido.)0 fato de a 'existência ' , considerada ontologicamente, ser essa prévia 'abertura' compreensiva e afinada é o que permite que, onticamente, haja todas as formas de conhecimento e todas as formas de emoção. * Se o fenómeno que temos diante de nós é a existência de alguém, isso supõe termos de lidar com tudo que está implicado naquele particular modo de ser-no-mundo. A l i estão todos os significados e todos os afetos que compõem aquele modo de existir, com tudo o que eles trazem de esperança e de dor. Aquela existência é a sua história já vivida e a que se faz momento a momento. Al i está um ente que, dada sua condição de ser mortal, está sempre deixando de ser, mas está, ao mesmo tempo, sempre vindo-a-ser, dada sua condição de ser história. Termos diante de nós a existência de alguém parece óbvio. Pode ser óbvio, mas não é pouco. E, quando começamos a pensar em que consiste o existir humano, percebemos a seriedade do que nos dispomos a fazer como terapeutas: com nossa falta de poder, compartilhar a vida de uma pessoa, procurar ajudá-la nessa coisa complexa, arriscada e transitória que é existir. Num primeiro momento, com a ideia que temos da existência como vir-a-ser, como desdobrar-se de possibilidades, parece que isso deve ser vivido ou sentido sempre como algo bom, leve, pois 17 Bile Tatit Sapienza traz a ideia de não-aprisionamento no passado, de liberdade, de possibilidade de rea l ização , de transformação. Mas nos esquecemos de que o que vem-a-ser pode ser exatamente o que não queríamos jamais. (Existir é sempre poder ser atingido pelo esperado ou pelo inesperado, pelo desejado ou pelo indesejado. Conceber teoricamente isso a respeito da existência é uma coisa, mas não é fácil suportar o que chega e faz sofrer. Sabemos disso por nossa própria experiência, e, por isso, sabemos o que o outro deve estar sentindo quando isso acontece com ele.) Esse outro que sofre pode ser o nosso paciente. Se não tivermos embotado nossa sensibilidade, não podemos, mesmo sabendo que é profissionalmente que estamos ali, apertar um botão que desligue em nós a compaixão, esse poder compartilhar um sentimento. Quem não tem essa capacidade de compartilhar não deve ser terapeuta, pois é sinal de que não sabe de que seu paciente está falando. (A palavra "sabe", do verbo saber, tem a mesma etimologia de "sabor", e, nesse sentido, o saber tem a ver como "saber o gosto" daquilo que está sendo falado.) (Compartilhamos, mas não é bom que permaneçamos quebrados na dor do paciente, pois ele precisa de nós inteiros. Ou seja, não é fácil, e é bom que os jovens terapeutas saibam disso.) * Trabalhar como terapeuta não é, como parece para alguns, manusear Uma meia dúzia de conceitos. Conceitos que, quando foram pensados dentro de algumas teorias, tiveram sua razão de ser, têm ainda valor, mas, algumas vezes, só atrapalham o enca- minhamento da compreensão ejn direção a coisas mais fundamen- tais no caso daquele paciente.j Eles atrapalham justamente porque parecem ser tão bons, e assim se instalam no pensamento do te- rapeuta e bloqueiam a procura por outros significados.^) Esses conceitos a que me refiro dizem respeito a algumas ideias pertencentes ao repertório dos psicólogos, algumas das 18 Do desabrigo à confiança quais já são familiares também a muitos pacientes, pois elas estão na mídia. Quem não ouviu falar, por exemplo, da famosa "auto- estima", que, segundo dizem, é um perigo quando está baixa? Fala- se disso como se se tratasse de uma baixa taxa de plaquetas ou de glóbulos vermelhos no sangue. E do quanto é ruim não saber impor limites aos outros? Dizem que todo mundo invade quando alguém não sabe pôr limites. E das chamadas vantagens secundárias? Desconfie de quem é capaz de algum sacrifício, sempre há algo suspeito por trás, é o que dizem. E da clássica insegurança? Aprendemos que ela está por trás daquele que parece tímido, mas mostrar que é muito seguro também pode ser insegurança. E da tão moderna somatização? "Engolir" as coisas de que não se gosta pode dar gastrite ou outros problemas de aparelho digestivo. Atualmente, todo mundo "sabe" disso. Umpouco antes estava falando de filosofia, de existência, e, de repente, estou aqui falando, se bem que de uma forma caricatural, de coisas como gastrite, auto-estima. Mas ter feito essa passagem de um assunto para outro pode ser bom para nos lembrarmos de que, quando se trata do existir humano, está tudo junto mesmo. Sofrer de gastrite, por exemplo, é uma possibilidade daquela pessoa que existe diante de nós, visto que a 'existência' tem como um de seus caracteres fundamentais a 'corporeidade' (um existencial), e ser corpo supõe ter um aparelho digestivo que pode ser atingido. Mas o que significa o fato de aquela pessoa em especial manifestar sua gastrite ou piorar dela em certas situações? Que situações são essas? Como é essa forma de ser no mundo que tão nitidamente mostra a vulnerabilidade daquele corpo sob essa forma de mal-estar? E, quanto àquela outra pessoa que se queixa de uma auto- estima baixa, por que ela se vê tão sem valor? Essa maneira como ela se compreende e a tristeza que sente por isso são modos possíveis de realizações ônticas de caracteres ontológicos básicos do Dasein (existenciais), no caso, 'compreensão' e 'afinação'. São maneiras concretas de compreender e de sentir si-mesmo e 19 Bile Tatit Sapienza mundo. Concretamente, como aquela pessoa acha que ela precisaria ser para então valer alguma coisa? Por que isso que ela acha que precisaria ser é tão importante para ela? Por que em sua vida ela está tão presa nesses parâmetros, quem vale mais e quem vale menos? É importante que o terapeuta se lembre de que as queixas e as questões trazidas por alguém devem ser consideradas e compreendidas junto àquela história pessoal. /No enfoque da fenomenologia, dito aqui numa linguagem bem simples e coloquial, a primeira recomendação para a compreensão de questões que se colocam diante de nós é: livre-se da sedução da facilidade das ideias já prontas que, à força de serem repetidas, acabam por se impor a você e fique atento ao fenómeno. ] E o que é estar atento ao fenómeno? O que é fenómeno? O que é fenomenologia? Podemos sentir algum embaraço para responder a essas perguntas quando elas nos são feitas de repente. É frequente que depois da nossa resposta a pessoa não tenha entendido nada, ou, ao contrário, conclua que a fenomenologia é alguma coisa completamente simplória. Sabemos que se trata de suspender as teorias e voltar para as coisas mesmas. E o que são as coisas mesmas? E o que mais? 20 A palavra fenomenologia já foi utilizada com sentidos diferentes do que tem hoje. Lambert, em 1764, emprega essa palavra para se referir a uma teoria das aparências. Kant, numa carta a Lambert, em 1770, retoma o termo ao designar como phaenomenologia generalis a disciplina propedêutica que deveria preceder a metafísica. Em 1807, Hegel escreve Fenomenologia do espírito, e a partir daí esse termo entra na tradição filosófica. Diferentemen- te de Kant, para quem o absoluto não é atingível pelo conhecimento, Hegel concebe o absoluto como cognoscível e qualifica-o como o Espírito. A fenomenologia é para ele a filosofia do absoluto ou do Espírito. É a retomada do caminho dialético que o Espírito percorre no desenrolar da história; ela mostra como, em cada momento da história, o absoluto está sempre presente em todas as formas de experiência: religiosa, estética, ética, jurídica, prática, política etĉ ) Historicamente, essa palavra aparece com alguns outros significados também. Mas o movimento de pensamento que no século XX traz o nome de fenomenologia se inicia com Husserl. * É com Edmund Husserl (1859-1938) que a fenomenologia passa a se referir a uma filosofia mais completa e especialmente 21 Bile Tatit Sapienza interessada na epistemologia, ou seja, na teoria do conhecimento. /• A questão de Husserl é principalmente chegar às essências dos atos de consciência pelos quais somos capazes de lembrar, de imaginar, de perceber, de julgar etc, e, enfim, chegar à essência do que é o conhecimento. Esse é o objeto principal de sua fenomenologia.) Ao trabalhar com a noção de intencionalidade da consc iênc ia , Husserl nos abre um caminho. Esse termo intencionalidade foi usado na Idade Média, mas é redefinido pelo filósofo e psicólogo Franz Brentano, com quem Husserl estudou. Brentano, que queria fazer da psicologia uma ciência empírica, emprega o termo intencionalidade como o que distingue o psíquico: toda experiência psicológica contém um objeto visado ou um objeto intencional. Por exemplo, pensamento é sempre pensamento sobre algo, é dirigido a algo; desejo é sempre desejo de algo, memória é sempre lembrança de algo. Pensar os atos de consciência (devemos lembrar que consciência não está sendo considerada naquele sentido que adquiriu depois, como algo que se opõe a inconsciente) como intencionais traz uma perspectiva diferente com relação a uma outra concepção de consciência, ou seja, de consciência como encapsulada no sujeito, separada do objeto, que só num segundo momento entraria em relação com o objeto, com o mundo. Considerar a consciência como intencional significa dizer que consciência já é sempre consciência de mundo, e mundo já é sempre mundo para consciência.^ i Se o objeto é objeto para a consciência e a consciência é consciência do objeto, o que temos é sempre objeto-percebido, objeto-pensado, objeto-imaginado, objeto-rememorado etc. Fora da correlação consciência-objeto não há nem consciência nem objeto. A fenomenologia deveria elucidar a essência dessa correlação, a essência do conhecimento, j A ênfase dada por Husserl à intencionalidade é muito impor- tante, pois nos aproxima da possibilidade de compreendermos a consciência como aberta para o mundo. (Lembremos aqui que, 22 Do desabrigo à confiança depois, Heidegger vai falar no ser aberto num sentido mais radi- cal. Dasein é a abertura em que se 'dá' mundo. Dasein é esse aberto, é ser-no-mundo.) Embora a fenomenologia que fazemos na Daseinsanalyse não seja a mesma de Husserl, não podemos nos esquecer de que a fenomenologia deve a ele algumas características básicas do método de abordagem ao fenómeno que nos é dado para compreender, por exemplo, a suspensão fenomenológica e o "voltar às coisas mesmas". Para Husserl, a fenomenologia deverá seguir um caminho que não é aquele das especulações metafísicas nem aquele do raciocínio das ciências positivas. Ele pede o retorno à intuição originária da essência do que se apresenta como evidência para a consciência. ( Em seu caminho para a análise dos fenómenos que queria investigar (relativos à essência do conhecimento), Husserl propõe um método que comporta dois momentos: a redução eidética (eidos-essênciã) e a redução fenomenológica. A redução eidética possibilita que possamos ir além da consciência de objetos individuais e concretos e cheguemos à consciência de puras essências, à intuição do eidos da coisa, aquilo que nela é essencial e invariável. Chegamos a isso quando, diante de um fenómeno, imaginativamente, retiramos dele tudo aquilo que pode ser retirado sem que com isso ele deixe de ser o que é (variação eidética); ao nos depararmos com algo (o invariante) que não pode ser excluído dele, algo sem o que ele deixaria de ser aquele fenómeno, nesse momento chegamos à sua essência. Para alcançar a essência, então, o que se faz é reduzir o fenómeno; reduzir, nesse caso, é purificá-lo de tudo o que ele comporta de inessencial. (Quanto à redução fenomenológica , esta suspende concepções e julgamentos prévios a respeito daquilo que se deseja investigar e procura se prender à evidência do que se apresenta para a consciência. Quando tudo aquilo que não é evidente à 23 Bile Tatit Sapienza consciência é suspenso, o que sobra, ou seja, o resíduo da redução fenomenológica, é o fenómeno na consciência. ^ No caso de Husserl, seu interesse é pelos próprios atos de consciência, cuja evidência na consciência deve lhe dar as basesde elaboração de sua teoria a respeito da essência da consciência ou do eu e da essência do que é conhecimento. O eu e o conhecimento aos quais Husserl se refere não são aqueles estudados pela psicologia.jSua preocupação vai além da esfera da experiência psicológica do ato de conhecer, isto é, vai além daquilo que seria imanente à experiência da consciência empírica; ele parte para a concepção da consciência que transcende a experiência empírica, ou seja, a consciência pura, consciência essa que é constituinte do mundo, a consciência transcendental. 1 l Nesse nível, então, a redução fenomenológica torna-se redução transcendental, que consiste nesse esforço para suspender a atitude natural diante do mundo,] atitude essa que é própria tanto do homem comum em seu viver diário como do cientista, para os quais é óbvio que o mundo está aí fora e cabe à consciência representá-lo. ^Na redução transcendental, fica suspensa a maneira natural e cotidiana de ver o mundo, e este passa a ser visto como fenómeno puro para a consciência pura. Essa redução implica pôr entre parênteses todos os julgamentos concernentes à existência do mundo, ou seja, implica a suspensão (épokhê) de todo julgamento a propósito do mundo. (O mundo não é pressuposto, nem negado, nem afirmado.), * A fenomenologia passa a ter outras características com Heidegger (1889-1976), assistente e depois sucessor de Husserl na Universidade de Freiburg. (Heidegger (1971) expõe seu pensamento a respeito do que devem ser considerados fenómeno efenomenologia no parágrafo 7 de Ser e tempo, sua obra de 1927.\ 24 Do desabrigo à confiança Nesse trecho ele diz que o conceito de fenómeno pode ser pensado, num sentido formal, como o que se mostra em si mesmo. Nesse caso, o sentido formal de fenomenologia é "permitir ver o que se mostra, tal como se mostra por si mesmo, efetivamente por si mesmo" (p. 45). Mas, fenomenologicamente, o que deve ser chamado fenómeno é "aquilo que imediata e regularmente justo não se mostra, aquilo que, ao contrário do que imediata e regularmente se mostra, está oculto, mas é algo que pertence por essência ao que imediata e regularmente se mostra, de tal sorte que constitui seu sentido e fundamento" (p. 46). O ser dos entes é aquilo que permanece oculto, volta a estar encoberto ou só se mostra "desfigurado". Pode estar tão encoberto que chega a ser esquecido e então não se pergunta pelo ser e seu sentido. (Assim, para Heidegger, em Ser e tempo, é o ser dos entes o que deve tornar-se fenómeno, é isso o que a fenomenologia deve "permitir ver". Justamente porque os fenómenos não são dados imediatamente, é necessária a fenomenologia. Fenomeno- logia é a forma de chegar ao que deve ser tema da ontologia. "A ontologia só é possível como fenomenologia" (p. 46). ) Heidegger diz também, em Ser e tempo, que para o esclarecimento dos problemas da ontologia, de modo a chegar ao problema principal, que é a pergunta que interroga pelo sentido do ser em geral, surge a necessidade de uma ontologia fundamental que tenha como tema aquele ente que é ôntico-ontologicamente especial, o "ser-af'(a fenomenologia do "ser-af' é hermenêutica, no significado primitivo dessa palavra como interpretação^ E a hermenêutica como interpretação do ser do "ser-af' tem também Um sentido de uma analítica da "existencialidade" da existência. ( Assim, para Heidegger a fenomenologia se torna uma ontologia e uma hermenêutica.) * É importante esclarecer em que sentido são tomadas as palavras ontologia e hermenêutica. 25 Bile Tatit Sapienza Em Ontologia: hermenêutica da facticidade, livro anterior a Ser e tempo, Heidegger (1999) diz que a palavra ontologia que aparece no título apenas indica que aquilo que vai ser investigado e a respeito do que se vai falar é o ser. Nesse livro há um histórico do uso da palavra hermenêutica, cujo resumo veremos aqui. Hermeneutiké, hermenêutica, como saber ou arte, deriva-se de hermeneuein, hermeneia, hermeneus (interpretar, interpretação, intérprete). Essa palavra ganha vários sentidos no decorrer do tempo. Liga-se primeiramente ao nome do deus grego Hermes, o mensageiro dos deuses. O sentido de hermeneus como mensageiro, intérprete, aquele que comunica, já aparece em Platão: Os poetas não são outra coisa que os mensageiros dos deuses. E os rapsodos, que recitam o que foi composto pelos poetas, são mensageiros dos mensageiros. Um escrito de Aristóteles, que trata do logos como o que revela os entes e nos familiariza com eles, nos foi transmitido com o título Peri hermeneias. Neste nosso contexto, a palavra hermeneia nesse título só é importante para nós pelo que ela nos diz sobre a história dos significados desse termo. Com os bizantinos, hermeneuein passa a corresponder ao que chamamos "significar". Filon apresenta Moisés como hermeneus, intérprete, mensageiro de Deus. Santo Agostinho fala de como o homem deve se aproximar da interpretação de passagens ambíguas das Escrituras: com piedade, temor a Deus e também equipado com o conhecimento de línguas. No século XVII aparece o título Hermenêutica sacra, a interpretação de textos sagrados. Com Schleiermacher (1768-1834), hermenêutica toma-se a arte de entender o discurso do outro, uma disciplina em conexão com a gramática, a retórica e a dialética. 26 Do desabrigo à confiança Dilthey (1833-1911) adota o conceito de hermenêutica de Schleiermacher, definindo-a como "formulação de regras de entendimento". (Em relação ao termo hermenêutica, Heidegger não o emprega no significado moderno; emprega-o ligado ao seu significado original, isto é, como interpretação, como comunicação. E o que ele visa nessa interpretação é a facticidade da existência.) A existência, em seu próprio caráter ou estrutura de ser, é 'aí ' , é o 'aí ' , é 'ser-aí'. E o modo ou o "como" ela é 'aí' é tendo de ser "em cada caso"/A expressão facticidade significa que a existência é sempre esta, a minha, a de cada um; é cada um de nós que é lançado na existência, no ser-possibilidade de si mesmo, no ter de arcar com o seu existir.) Sendo fácueamente o 'aí', a existência interpreta, a partir de si mesma e para si mesma, seu 'ser-aí'. (A facticidade da exis tência é não só suscetível de interpretação, mas também necessitada de interpretação; ela 'é ' na interpretação.) Na temporalidade cotidiana, o possível ser-com-propriedade da existência se mantém oculto ou encoberto, e o que prevalece é um modo de ser na impropriedade que se expressa, por exemplo, em concepções a respeito do que é a existência (em que se incluem as contribuições da filosofia e da consciência histórica). Há concepções sobre ela, mas a existência, ela-mesma, se distancia de si e então Dasein se aliena de si.(Caberá à hermenêutica da facticidade a tarefa de perseguir e encontrar a alienação de si mesmo em que Dasein é enredado, isto é, a tarefa de fazer o Dasein, que é em cada caso, acessível a ele mesmo com relação ao caráter de seu ser, de comunicar Dasein a si mesmo^m outras palavras, a hermenêutica tem a tarefa de fazer a existência acessível a ela mesma (Heidegger, 1999). A hermenêutica de Heidegger diz respeito a uma questão relativa à facticidade como caráter ontológico do Dasein. De sua 27 Bile Tatit Sapienza fenomenologia hermenêutica resulta, em Ser e tempo, a analítica da 'existência'. * ^Quanto a nós, como terapeutas, o foco do nosso trabalho é a pessoa que nos procura porque a existência dela, exatamente a dela, está precisando ser cuidadalj É o seu ser, é o sentido da sua vida que está em jogo, que precisa ser mais bem compreendido; algo ali naquela história se complicou. E a analítica do Dasein, ou seja, da 'existência', tal como foi feita em Ser e tempo, nos ajuda na compreensão do existir daquela mulher, daquele homem, daquela criança que chega até nós. E importante lembrarmos aqui uma confusão que geralmente surge. O fato de mantermos esse foco e o usofrequente da palavra existência têm possibilitado que o que fazemos na clínica seja equivocadamente chamado por alguns de psicologia existencial. Mas a Daseinsanalyse não é uma forma de psicologia que se distinguiria pela preocupação com a existência de cada um. Ela não é uma teoria de psicologia. Como psicólogos que somos, e devemos ser por formação, conhecemos o que é a psicologia; sabemos que, como uma ciência , a psicologia tem suas bases nos alicerces que fundamentam as ciências, que se derivaram da tradição que veio da metafísica. Fazemos uso das contribuições que vêm da psicologia, mas o lugar de nossa origem é outro. Nossa proveniência é de um modo de pensar para o qual existir é 'ser-no-mundo'. Partir dessa concepção heideggeriana de 'ser-no-mundo' significa partir de algo totalmente diferente do que, tradicionalmente, tem sido o fundamento filosófico e epistemológico das teorias psicológicas. * 28 O fato de ter trazido a existência do Dasein para a cena ao fazer filosofia tem favorecido que Heidegger seja visto como um filósofo existencialista, embora ele mesmo não se considere como tal, visto que sua questão principal é outra. Sendo assim, é importante que nos aproximemos aqui daquilo que o pensamento dos filósofos existencialistas tem representado. Isso pode nos ajudar a compreender melhor o que distingue a Daseinsanalyse do existencialismo. * (o existencialismo é um movimento filosófico e literário que se desenvolve no século XX, particularmente na França. De um modo bem geral, caracteriza-se como um pensamento que não se preocupa em se organizar em sistemas; não se atém a definir qualidades humanas universais abstratas, mas se detém no fato de cada indivíduo ser único; distancia-se do primado da razão; tonsidera a 'existência como um estar lançado no mundo, precisando fazer escolhas e ao mesmo tempo sempre imerso na situação concreta; chama a atenção para o existir de modo autênt ico; traz para o centro da compreensão da vida a fragilidade, a liberdade, a angústia, o ser destinado a morrer.) Pascal e Kierkegaard são considerados precursores do existencialismo. 29 Bile Tatit Sapienza * Blaise Pascal, pensador do século XII , importante em todas as áreas às quais se dedicou, destaca-se como matemático, físico, filósofo e escritor francês. Convertido ao cristianismo, em seus cinco últimos anos de vida anota seus pensamentos, que seriam destinados a compor uma obra sobre religião. Essas anotações, embora incompletas, foram reunidas e publicadas com o nome de Pensamentos (2001). Alguns exemplos de seus pensamentos: 622 - Tédio "Nada é mais insuportável para o homem do que estar em pleno repouso, sem paixões, sem afazeres, sem divertimento, sem aplicação. Ele sente então todo o seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. Imediatamente -nascerão do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a tristeza, a mágoa, o despeito, o desespero" (p. 268). (Pascal emprega o termo "divertimento" para tudo aquilo que distrai o homem de pensar em seu nada (di-vertere = se afastar de), em que se incluem não só as distrações como os jogos, a dança, as conversas, mas também as atividades mais sérias como o trabalho, as altas funções, as pesquisas da ciência.) 200 - "O homem não é senão um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo; um vapor, uma gota de água bastam para matá-lo. Mas, ainda que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata, pois ele sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo de nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste pois no pensamento..." (p. 86) 30 Do desabrigo à confiança 113 - Caniço pensante "Não é do espaço que devo procurar a minha dignidade, mas da ordenação do meu pensamento. Não terei vantagem em pos- suir terras. Pelo espaço, o universo me compreende e me engo- le como a um ponto: pelo pensamento, eu o compreendo" (p. 40). 114 - "A grandeza do homem é grande por ele conhecer-se miserável; uma árvore não se conhece miserável. » É então ser miserável conhecer-(se) miserável, mas é ser grande conhecer que se é miserável" (p. 40). 427 - ... "Não sei quem me colocou no mundo, nem o que é o mundo, nem o quê sou eu mesmo; estou numa ignorância terrível de todas as coisas; não sei o que é o meu corpo, nem meus sentidos, nem minha alma e mesmo essa parte de mim que pensa o que eu digo, que faz reflexão sobre tudo e sobre si mesma, e não se conhece mais do que o resto (p. 167). Vejo esses espantosos espaços do universo que me encerram, e me encontro atado a um canto dessa vasta extensão sem que saiba por que estou colocado neste lugar de preferência a outro, nem por que esse pouco de tempo que me é dado para viver me é atribuído neste ponto de preferência a outro de toda a eternidade que me precedeu e de toda aquela que vem após mim. Só vejo infinidades por todas as partes, que me encerram como a um átomo e como a uma sombra que não dura senão um instante sem retorno. Tudo que conheço é que devo em breve morrer; mas o que ignoro mais é essa morte mesma, que não posso evitar..." (p. 168). 423 - "O coração tem razões que a razão desconhece; sábe- se disso em mil coisas..." (p. 164). 424 - "É o coração que sente a Deus, e não a razão. Eis o que é a fé. Deus sensível ao coração, não à razão" (p. 164). 31 Bile Tatit Sapienza 199 - Desproporção do homem "... Pois afinal que é o homem na natureza? Um nada com relação ao infinito, um tudo com relação ao nada, um meio entre o nada e o tudo, infinitamente afastado de compreender os extremos; o f im das coisas e seus princípios estão para ele invencivelmente escondidos num segredo impenetrável... (p. 80). ... A nossa inteligência ocupa, na ordem das coisas inteligíveis, a mesma posição que o nosso corpo na extensão da natureza..." (p. 82). * Sõren Kierkegaard, filósofo e teólogo dinamarquês do século XIX, escreve contra os sistemas filosóficos tradicionais, especial- mente o hegelianismo. Diz que os sistemas são formas de procu- rar a objetividade; a verdade, porém, não está na objetividade. No pensar, o que há é um esforço constante, em que as questões não recebem respostas, mas permanecem no estado de questionamen- to. O resultado inevitável da reflexão é chegar a paradoxos. Para ele, Deus ou qualquer relação do indivíduo com Deus não cabem dentro de nenhum sistema filosófico. O homem se caracteriza pelo desespero, que tem origem nas contradições da sua existência e na sua distância de Deus: "O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade." Diante do "penso, logo sou" de Descartes, ele escreve: "Mais eu penso, menos sou, e menos eu penso, mais sou." Entre seus livros estão Conceito de angústia e Tratado do desespero. Diz que só depois de ter atravessado a angústia e depois de ter sofrido os assaltos do desespero o homem atingirá o que é verdadeiro. Kierkegaard distingue três estados de vida: o estético (do prazer), o ético e o religioso. Vive uma existência cristã, e quando diz "eu não sou cristão" é que não se sente digno do cristianismo profundo tal como ele concebe. 32 Do desabrigo à confiança Ele descreve a existência religiosa como interioridade, diálogo íntimo entre o homem e Deus, o Todo-Outro. A existência é a tensão angustiada em direção à transcendência. Diz que o cristianismo, como uma religião da transcendência, funda-se sobre um paradoxo para a razão, ou seja, a afirmação de que Deus, o eterno, se encarnou em Jesus Cristo. Mas quando está presente a paixão da fé, a razão pode reconhecer seus próprios limites e aceitar esse paradoxo. Isso, que é um escândalo para a razão, é o caminho para a fé. A fé não é a certeza diante de ideias claras e distintas, mas um risco; é preciso um salto para a fé. Ela é entremeadade incerteza e de não-crença. Kierkegaard frequentemente usa o verbo existir (at existere), num sentido especial, para se referir à existência humana. Assim, Deus não "existe", embora seja a eterna realidade. Descreve a existência humana como um processo inacabado, no qual o "indivíduo" (um conceito-chave em seu pensamento) deve se responsabilizar por conquistar uma identidade como um eu por meio de escolhas livres. Ao se referir ao indivíduo autêntico, fala de como isso custa sofrimento e da necessidade de esse indivíduo permanecer só, e, se necessário, contra a "multidão". * (É após a Segunda Guerra Mundial que o existencialismo se afirma como um movimento cultural importante^ Não só faltam respostas para tanta perplexidade diante daqueles acontecimen- tos como a própria maneira de perguntar parece que precisa ser diferente. Não bastam os grandes sistemas filosóficos de até então. (Do ponto de vista filosófico, é a fenomenologia que possibilita o desenvolvimento do existencialismo. As ideias de Husserl já estão presentes, por exemplo, a proposta da redução fenomenológica, que suspende os sistemas de interpretação e pretende ir "às coisas mesmas". A existência humana pode, então, passar a ser alvo de uma reflexão fenomenológica. \ 33 Bile Tatit Sapienza * ( Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo e escritor francês, é influenciado pela fenomenologia de Husserl e pelo pensamento de Heidegger. j Publica ensaios: A imaginação, O imaginário, Esboço de uma teoria das emoções. Suas principais obras filosóficas são O ser e o nada e Crítica da razão dialética. Na literatura, o romance principal é A náusea. Entre as peças de teatro estão Entre quatro paredes, As moscas, Mortos sem sepultura, O diabo e o bom Deus. (Em sua obra filosófica O ser e o nada, Sartre (1943) se dedica a fazer uma fenomenologia do ser. Considera o ser como ser-em-si, como ser-para-si e como ser-para-o-outro. São regiões do ser. ) - Ser-em-si , 0 ser-em-si é o ser repleto de si mesmo, e, precisamente por isso, é opaco a si mesmo, e não poderia ser presente a si. ) / - Ser-para-si — consciência^ Para que o ser possa ser presente a si, é preciso que haja algum afastamento, pois "presença a" implica dualidade, alguma separação ao menos virtual. "A presença do ser a si implica um descolamento do ser com relação a si. (...) a presença a si supõe que uma fissura impalpável se introduziu no ser. Se ele é presente a si, é que ele não é completamente si.^Á presença é uma degradação imediata da coincidência, pois ela supõe a separação. Mas se perguntarmos agora: que é o que separa o sujeito de si mesmo, somos obrigados a confessar que é nada" (p. 113). (...) "O nada é o pôr em questão do ser pelo ser, quer dizer, justamente a consciência ou o para-si" (p. 115). Ao abordar isso que ele chama de ser-para-si, ou seja, a consciência, Sartre traz como tema a realidade humana. -, Ser-para-o-outro ". . . tenho necessidade do outro para apreender plenamente todas as estruturas de meu ser; o para-si remete ao para-o-outro" (p. 260). 34 Do desabrigo à confiança i Sartre dedica muitas reflexões a respeito da questão do corpo humano. "... o corpo — nosso corpo — tem como caráter particular ser essencialmente o conhecido pelo outro: o que eu conheço é o corpo dos outros, e o essencial do que sei do meu corpo vem da maneira como os outros o vêem. Assim, a natureza de meu corpo me remete à existência do outro e ao meu ser-para-o-outro. (...) pois a realidade humana deve ser em seu ser, num só e mesmo surgimento, para-si-para-o-outro" (p. 255). ) Segundo ele, o homem não possui uma essência definida a priori (por exemplo,, animal racional). O ser humano surge na espontaneidade e só depois se define por aquilo que ele vem a ser no devir da existência. Nesse sentido, a existência precede a essência. Quanto à liberdade, ele diz que ela não é algo que o homem tem como uma capacidade humana. A liberdade é algo que o homem é. Ela é originária. Entre suas possibilidades o homem escolhe, assume um projeto de existência, o seu modo de ser no mundo, ij O paradoxo da liberdade consiste em que "... só há liberdade em situação e só há situação pela liberdade. A realidade humana encontra em toda parte resistências e obstáculos que ela não criou; mas essas resistências e esses obstáculos só têm sentido na e pela escolha livre que a realidade humana é" (p. 534). E só diante de um fim livremente posto pela realidade humana que o dado do mundo pode se mostrar como algo capaz de constranger a liberdade ou como algo favorável a ela. (Sartre diz: "... é na angústia que o homem toma consciência de sua liberdade ou, se se prefere, a angústia é o modo de ser da liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade é em seu ser em questão para ela mesma" (p. 64). ) O homem é condenado a ter de escolher. Ele é sempre responsável. O ato "autêntico" é aquele pelo qual o homem assume sua situação e a ultrapassa por sua ação. Nossos atos nos julgam e são irreversíveis. E em vão, diante de nossos atos, querermos justificá-los apelando à boa intenção ou 35 BilêTatitSapienza dizendo que foram feitos inconscientemente. Isso seria "má fé", que é testemunhada pela consciência do outro, cuja existência aparece como uma ameaça insuportável. Não podemos escapar do "olhar" do outro. O homem é comprometido com o contexto real e concreto em que vive, e, mesmo se for indiferente a isso, esse ser indiferente é uma escolha, é seu modo de responder às solicitações de seu mundo, de seu tempo. Não há a desculpa de se dizer determinado pelos fatos que configuram uma situação. * Nessa amostra de algumas ideias de filósofos ligados ao existencialismo, podemos ver que há pontos semelhantes ao pensamento de Heidegger. Mas o pensamento deste filósofo não significa o mesmo que o existencialismo. Heidegger (1967) diz em Sobre o humanismo que a importante frase de Sartre sobre a precedência da existentia frente à essentia justifica o nome de "Existencialismo" como um título adequado a essa filosofia. Ele acrescenta que essa frase do "Existencialismo", entretanto, nada tem em comum com a frase que está em Ser e tempo. Nesse mesmo livro, Heidegger diz que a frase que está grifada em Ser e tempo é: "A essência do Dasein está na existência." E isso quer dizer: "O homem se essencializa de tal sorte que ele é o lugar (Da), isto é, a clareira do ser (p. 43) (...) "O homem é, enquanto ec-siste" (p. 49). Ao falar da existência como ec-sistência, Heidegger evoca "a determinação do que o homem é no destino da Verdade do ser" (p. 45). O foco de seu pensamento está principalmente no considerar o homem como o destinatário da doação de ser. * Percorremos aqui, ainda que ligeiramente, um caminho que passa por algumas ideias da fenomenologia e do existencialismo. 36 Do desabrigo à confiança Nossa preocupação, entretanto, é a Daseinsanalyse, que tem como base a fenomenologia hermenêutica que, em Ser e tempo, se.dedica à analítica do Dasein — aquele ente cujo caráter essencial é o 'cuidado' (Sorge) pelo ser em geral e pelo seu próprio ser. No referencial heideggeriano, 'ser' já é sempre 'doação' a Dasein, e precisa de Dasein como destinatário de sua 'doação'. Esse referencial implica profundas diferenças diante da ontologia e da epistemologia tradicionais. Embora ao empregarmos o termo Dasein estejamos nos referindo ao ente humano, o nome Dasein permanece para indicar que esse ente se distingue exatamente por seu caráter de ser-aí: 'aí' no 'mundo', e o 'aí' do ser.̂ ) t 37 A terapia daseinsanalítica so faz sentido dentro do referencial filosófico heideggeriano. E, assim, soa estranho quando ouvimos perguntar se, em nossa clínica, trabalhamos com determinados conceitos psicológicos bastante conhecidos pelos psicólogos em geral. Tais conceitos a que me refiro são importantes e têm sentido nas teorias que precisam deles paraexplicar como funciona o psiquismo do homem. Mas eles ficam ociosos em nossa concepção de homem como Dasein, que já é sempre 'ser-no- mundo'; o 'aí ' onde se 'dá' 'ser'; a 'abertura' que 'compreende' 'ser' — 'ser', que se dá e se encobre. Se levamos a sério a fenomenologia que fazemos junto ao nosso paciente, mesmo que conheçamos aqueles conceitos tradicionais da psicologia, eles devem ficar em "suspensão".]Nós nos detemos no que se manifesta, num esforço — e é um esforço mesmo — para a compreensão do sentido daquilo que, ao mesmo tempo, se desoculta e se oculta. Vamos rodeando, numa escuta pacienciosa, com perguntas simples, com pequenas observações. Nisto que o paciente está dizendo agora, o que mais pode estar implicado? Que modo de ser-no-mundo é esse que possibilita que tal coisa exista nele? Em que chão isso se assenta? Como isso que ele conta entra em sua história? Para onde isso aponta? Junto a que outros significados isso que ele diz faz sentido? Que manifestação corporal acompanha sua fala? Quando nos acostumamos a pensar assim, sabendo que é próprio do fenómeno tanto o mostrar como o ocultar e que, 38 Do desabrigo à confiança portanto, é preciso que permaneçamos no esforço para a interpretação e a explicitação do seu sentido naquela existência em particular, percebemos o quanto teria sido pobre se tivéssemos apressadamente nos restringido a algum conceito psicológico prévio, desses que servem para todo mundo. Quando paciente e terapeuta se aproximam da compreensão de um sentido mais "próprio" de algo que foi trazido para a sessão, isso tem o sabor de uma coisa verdadeira. * (A explicitação de um sentido, entretanto, não é algo que se dê com a garantia de não mais voltar para o encobrimento.jA 'doa- ção' de ser comporta a 'ocultação'. E é próprio do Dasein, ain- da que ele seja a 'abertura'em que se 'dá ' 'ser', poder ter, onticamente, uma restrição na sua possibilidade de compreensão; ele pode permanecer na ou voltar para a penumbra de uma com- preensão obscura — nem sempre faz sol de meio-dia na clareira... Mas por que algo que na terapia já estava desocultado, explicitado, pode voltar a se encobrir? Nosso paciente frequentemente volta a ter como questão algo que parecia já compreendido, já aceito. Compreender alguma coisa é a realização ôntica do existencial ' compreensão ' , que está sempre imbricado no existencial 'afinação', o qual se traduz onticamente em alguma emoção. Então, compreender alguma coisa pode vir carregado de emoções pertencentes a uma 'afinação' existencial que, naquele caso do paciente, corresponde ao encontrar-se desabrigado, ao encontrar-se na inospitalidade. E Dasein tende a fugir do estar desabrigado refugiando-se no cotidiano. Não é estranho que se afaste de certas compreensões que apontam para o inóspito da existência. Compreender algo a respeito de si, se aproximar da possibilidade de ser mais 'propriamente' si-mesmo pode ser 39 Bile Tatit Sapienza incómodo, porque talvez essa compreensão tire do abrigo proporcionado pelo "ser como todo mundo é". O "ser como todo mundo é" não está sendo tomado aqui como o que caracteriza aquele sobre quem se diz: é um tipo "sem personalidade", é um tipo "maria-vai-com-as-outras". Ao contrário, o "ser como todo mundo é" pode se expressar exatamente no dizer "a gente tem que ser autêntico", "a gente tem que ter personalidade", pois essas mensagens estão presentes o tempo todo em nossa cultura. O se aproximar da possibilidade de ser mais 'próprio' tem a ver com o poder ouvir um chamado que vem de si mesmcj — E eu? A mim, sendo no mundo em que sou, com a história que é a minha, o que é pedido? — e responder a esse chamado. Compreender, ouvir o chamado e responder a ele pode não ser confortável, porque nessa hora a pessoa se expõe, e isso traz consequências, ou porque a resposta, uma vez dada, pode custar muito esforço ou mesmo alguma renúncia. * O incómodo de se aproximar do ser mais 'propriamente' si mesmo acontece também porque, ao se aproximar do seu ser mais próprio, Dasein 'se encontra' na sua condição fundamental de ser ' lançado' na existência sem garantias, e, além disso, responsável por ela, 'devedor' à existência. O ser 'devedor', frequentemente, no cotidiano da vida surge como sentimento de culpa diante do que se fez ou do que se deixou de fazer. iMais que um incómodo, a 'angústia' se anuncia quando, compreendendo quem ele é mais 'propriamente', Dasein compreende que seu tempo acaba, que ele é mortal, não como sempre soube que "tudo que é vivo morre", ou como quando aprendeu um exemplo de silogismo: "Todo homem é mortal; Sócrates é homem; portanto Sócrates é mortal." Compreende que não vai morrer "como" todo mundo, é "ele" quem vai necessariamente morrer, sem saber quando, de que jeito, e sem saber bem o que é morrer. Dessa mesma forma sabe que os que ele ama também vão morrer. 40 Do desabrigo à confiança / Quando Dasein compreende, e aceita, que ele é finito, que ele acaba, compreende que não é só no tempo que ele acabará um dia, mas que ele acaba também num outro sentido, isto é, há um limite para o "até onde" ele chega, há um limite para o "até onde ele pode", porque ele não pode tudo. j Esse "até onde" não se refere ao espaço físico (isso a Internet resolveria...), mas ao "até onde" vai seu controle. Quando seu poder se amplia e ele consegue coisas antes inimagináveis, por isso mesmo ele penetra em áreas dentro das quais, de novo, haverá sempre algo que ele não pode ter, não pode fazer, não pode ser. O próprio Dasein, como 'abertura' que é, abre esses novos âmbitos em que a 'doação ' de ser continua, isto é, em que continua o acontecer das coisas, em que continua se abrindo o mundo, que o solicita; novas possibilidades se apresentam e novas escolhas são necessárias, e, de novo, Dasein não pode realizar escolhas que se excluem. Quanto mais se ampliam os limites de seu poder, mais complicada se toma a responsabilidade de precisar escolher entre alternativas. Isso se aplica a todas as áreas da vida, e em todas elas levanta preocupações éticas. * O "até onde" chega seu poder não diz respeito a distâncias, pode acabar ali bem perto mesmo, ao seu lado. Ele não pode, por exemplo, obrigar nem impedir que o outro goste dele; não pode se obrigar a gostar do outro nem se impedir disso. Seu controle acaba mais perto ainda, acaba no seu próprio corpo, no corpo que ele é. Apesar do aumento de conhecimentos sobre o corpo humano, o que amplia muito o controle possível sobre ele, a cada momento processos corporais estão em andamento, dos quais Dasein nem se dá conta. "O ser corporal de Dasein é o existencial que, mais de perto, nos conta que existir é ao mesmo tempo indigência e potência (Pompeia, 2003, p. 33). A indigência, no que este termo pode significar o não se bastar, o não se garantir, o ser necessitado, expressa a condição 41 Bile Tatit Sapienza do Dasein, que tem como um de seus existenciais o ser um corpo destinado a morrer. A indigência assusta. E a potência de ser também assusta. * Dasein é aquele ente que existe sendo sempre o seu já sido, a sua história, e aquele a quem falta ser. Faltar-lhe ser significa o seu ser incompleto (até que morra) e, ao mesmo tempo, significa que, por ser ele a 'abertura' em que se 'dá' 'ser', sempre há lugar para que nessa abertura continue a se dar a 'doação' de 'ser'; para que, onticamente, mais coisas venham ao seu encontro. Se, por um lado, o acontecer das coisas tem a ver com possibilidades que se realizam e tornam mais plena a existência, por outro, o realizar-se de algumas possibilidades é exatamente perda. (Desabrigado, devedor, finito, angustiado, vivendo na falta, com as perdas, e, contudo, podendo responder ao chamado para ser mais propriamente si-mesmo e corresponder à sua destinação existencial, fazendo planos, alimentando sonhos, querendo ser feliz. Assim é o Dasein em sua indigência e potênciade ser. Esse é o ser humano que está junto a nós na terapia.) Cada ser humano carrega em si todos hs paradoxos e todos os conflitos que significam existir: sentimentos contraditórios; querer e não querer ao mesmo tempo; precisar se tornar si mesmo e se afastar de si mesmo; precisar de um sentido para a vida e, muitas vezes, não conseguir se dedicar a ele; saber de sua necessidade do outro e sentir o difícil que pode ser conviver com o outro; precisar de proteção e saber de seu desabrigo. 42 (Temos para cada paciente um olhar que é dirigido para ele em particular, para aquela história de vida, para as possibilidades de desdobramento daquele futuro. Mas não perdemos de vista a compreensão que temos de tudo aquilo que, ontologicamente, caracteriza o Dasein, ou seja, os existenciais ou seus caracteres fundamentais., Todos os existenciais, de algum modo, se expressam no viver concreto (ôntico) do paciente, seja nos momentos em que ele está mais próximo de sua 'propriedade', seja nos momentos em que estáp mais possível perdido na 'impropriedade' do cotidiano. São, por exemplo, caracteres fundamentais do Dasein: 'compreensão' , 'afinação', 'temporalidade', 'espacialidade', 'corporeidade', 'ser-com'. I Todos os existenciais são sempre imbricados uns nos outros. Vejamos alguns exemplos dessa imbricação. 'Ser-com' e 'afinação' Dasein é ser-com mesmo quando escolhe estar só ou é obrigado a issoJ E esse ser-com acontece sempre numa determinada afinação. Em cada caso, quem é o outro para este Dasein? Pois o outro não é meramente "um outro", como uma coisa qualquer. Percebo e sinto o outro como aquele que me protege, aquele de quem preciso sempre suspeitar, aquele a quem 43 BilêTatit Sapienza devo temer, aquele que eu engano, aquele que me engana, aquele que eu controlo, aquele de quem não quero depender, aquele que me persegue, aquele que eu abandono, aquele que me abandona, aquele que eu amo, e assim por diante. No seu ser-com o outro, Dasein sempre 'se encontra', ou está numa determinada afinação. O modo prevalente de alguém ser com ps outros marca grandemente a tonalidade afetiva de sua vida. ) 'Ser-no-mundo', 'corporeidade' e 'ser-com' Quando dizemos que 'corporeidade' é um existencial, não estamos dizendo algo que parece óbvio, isto é, que Dasein "tem" um corpo ou existe "em" um corpo, esse corpo material objeto da Física, da Química, da Biologia. Também não estamos repetindo a atualmente tão bem lembrada relação entre corpo ou processos corporais e questões emocionais. ( Compreender a corporeidade como um existencial significa dizer que o ser corporal é para o Dasein uma determinação ontológica. Dasein é seu corpo. E corporalmente que Dasein é- no-mundo. E, além disso, o mundo que temos só é este que temos porque a nossa corporeidade é esta que somos.) Compreendemos isso quando nos damos conta de que as cores, as formas, os sons, os cheiros, enfim, tudo o que caracteriza os entes com que nos deparamos poderia ser diferente se, por exemplo, nossos olhos, nossos ouvidos, nosso olfato fossem outros. E, se fossem outros os processos cerebrais, como seria a compreensão humana dos fenómenos todos, inclusive da nossa própria vida, e, a partir dessa compreensão que então teríamos, o que iríamos dizer a respeito das coisas e de nós mesmos? Que questões teríamos? Que outras dimensões estariam abertas para o humano e como seria isso a que chamamos mundo? / Dasein é corporalmente-no-mundo-com-os-outros. ) ^ É sendo o corpo que somos, com tudo o que nos caracteriza de modo momentâneo ou de modo mais permanente como sexo, cor, se com saúde ou não, se bonitos ou não, se velhos ou moços, 44 Do desabrigo à confiança movimentos ágeis ou lentos, tamanho, com fome ou saciados, cansados ou não, gordos ou magros, com sorrisos ou carrancudos e assim por diante, que interagimos uns com os outros, que somos uns com os outros. Sendo o corpo que somos, nossas necessidades estão aí presentes e temos de nos haver com elas. A sexualidade está entre as necessidades mais básicas do ser humano. E o interesse sexual pelo outro se inclui também entre as possibilidades concretas de Dasein em seu ser-com-os-outros. Em torno do amor erótico gira grande parte das preocupações humanas. Por causa desse amor, as pessoas sofrem, são felizes; alguém encontra sentido na vida, alguém quer morrer. Histórias de amor, da forma como são vividas, ou como não são vividas, por qualquer que seja o motivo, perpassam a terapia. | 'Compreensão' e 'afinação' A imbricação entre elas é o que faz com que tudo aquilo que compreendemos venha sempre acompanhado com algum tipo de sentimento, ainda que seja de indiferença vAssim, por exemplo, alguém que, em sua vida pessoal, compreende a possibilidade de os acontecimentos da vida se darem independentemente de seu controle pode viver isso de uma forma afinada na desproteção, no desabrigo que significa o não ter garantias de nada, que aponta sempre para o perigo iminente; e aí um sentimento de medo está quase sempre presente. Um outro vive essa mesma compreensão do não poder controlar tudo como sendo o caráter da gratuidade do dar-se das coisas, o que significa desabrigo e desproteção, mas significa também algo que o libera da necessidade de ter de controlar tudo, e isso pode ser vivido como um sentimento maior de liberdade, de não precisar viver sempre em estado de alerta. E um outro, ainda, talvez viva esse não poder controlar tudo como um sentimento de indiferença, como um "tanto faz eu ser ou fazer de um modo ou de outro, visto que nada está sob meu controle, é tudo fruto do acaso". Mas, por outro lado, um sentimento de 45 Bile Tatit Sapienza indiferença pode também vir junto com um modo oposto de compreender a exis tência , isto é, a exis tência como completamente predeterminada, em que também "não importa o que eu faça, pois o que tiver de ser será". Ainda um outro vive o compreender que não controla tudo como um sentimento de humildade diante do imponderável, que não o desobriga de fazer a sua parte, e que o faz se sentir alegre pelo tanto que, gratuitamente, tem recebido. 46 A maneira como trabalhamos em terapia se dá como um compartilhar a interpretação da facticidade daquela existência que temos junto a nós no consultório. Interpretação aqui não quer dizer encaixar aquilo que o paciente traz no referencial de uma teoria de psicologia. Quer dizer, diante do que ele traz, tendo como horizontes, ao mesmo tempo, os existenciais e aquela história particular, empenhar-se não só na explicitação do sentido do que aparece como na ampliação desse sentido, na procura do que pode estar encoberto — pois o que é se dá e se oculta —, propiciando assim que o paciente possa alargar e aprofundar a compreensão de como está sendo seu modo de existir. Mas, frequentemente, deparamo-nos com uma pergunta: Como o pensamento de um filósofo, cuja intenção não é fornecer subsídios para a clínica, pode servir de base para uma prática terapêutica? Isso é possível porque, como já vimos, ao se dedicar à sua questão principal, Heidegger se detém na análise do ente para o qual ser é questão, o Dasein. A partir daí, podemos ter uma profunda compreensão dos caracteres básicos da existência humana. Esses existenciais servem de referência para a nossa compreensão do paciente. Sabemos que o Dasein se caracteriza por ser 'fáctico', isto é, ele ' é ' lançado na existência, tendo de ser, tendo de 'cuidar' da sua existência. Cada um tem a sua existência como questão, deve 47 Bile Tatit Sapienza a si mesmo esse cuidado. E esse cuidado inclui si mesmo, o outro, as coisas todas do mundo; abrange o passado, o presente e o futuro. Destinado ao cuidado e, ao mesmo tempo, tendo de contar com a falta de garantias e com a transitoriedade de tudo: esse é o nosso paciente, que se aflige pelas escolhas que tem de fazer; sofre por suas perdas; tem de se haver com seus amores e desamores;se angustia diante da finitude e não tem como não se preocupar com sua vida. A compreensão que temos do Dasein como o ente que realiza a sua essência nesse 'cuidar' do 'ser' permeia todo o nosso cuidado com a existência concreta do paciente. O pensamento de Heidegger repercutiu entre psiquiatras que viram aí uma nova possibilidade de compreensão de seus pacientes. Os suíços Binswanger (1881-1966) e Boss (1903-1990) foram alguns desses. Medard Boss, que manteve contato pessoal com Heidegger desde 1947, organizou os Seminários com o filósofo em Zollikon, a partir de 1959. Esses Seminários começaram com uma conferência de Heidegger no auditório da clínica de psiquiatria da Universidade de Zurique. Esses encontros favoreceram a entrada da Daseinsanalyse na clínica. Medard Boss fundou a Sociedade de Daseinsanalyse na Suíça. Em 1971, Sólon Spanoudis (1922-1981), psiquiatra grego radicado no Brasil, entrou em contato com Medard Boss. A partir daí e dos encontros que se seguiram entre esses dois psiquiatras e alguns psicólogos de São Paulo, teve origem a Associação Brasileira de Daseinsanalyse, filiada à da Suíça. 48 Vamos agora chegar mais perto da clínica, pois é nesse cotidiano que nos encontramos face a face com o fenómeno que nos diz respeito: a existência do paciente. Diferentemente do professor que prepara uma aula, que decide o que quer falar naquele dia, que atividade vai propor para os alunos, o terapeuta não escolhe previamente o que vai ser tratado. O assunto da terapia surge na hora. O paciente até pode pensar: "Hoje quero falar de tal coisa." Mas o terapeuta está disponível para o que vier. A terapia pode seguir, durante um tempo, um rumo mais ou menos estável, mas a possibilidade das surpresas está sempre ali. Isso porque podem mudar tanto a percepção que o paciente tem das coisas como a percepção que ele tem de si mesmo, e, além disso, porque acontecimentos na sua vida podem modificar tudo. A cada dia o terapeuta sabe quem vem para a terapia, mas não sabe como vem. Como exemplo de uma terapia, vamos nos aproximar de um caso que não é verdadeiro, mas não é impossível. A psicóloga de um hospital, j á quase no fim de seu dia de trabalho, foi visitar uma paciente que estava internada desde cedo. Tinham lhe dito que se tratava de uma moça que havia sofrido um grave acidente de carro na estrada e que, após os primeiros socorros, esperava em seu quarto para ser removida para outro 49 Bile Tatit Sapienza hospital. Disseram que a paciente tinha estado muito agitada, e depois de um sedativo havia dormido, e agora seria bom que alguém fosse falar com ela um pouco. Chegando ao quarto, bateu na porta, pediu licença e entrou. — Oi, eu sou fulana, trabalho aqui como psicóloga. Estou vindo para saber como você está. Caso você queira falar com alguém, estou disponível para conversar com você. E parou de falar. Viu os hematomas, os ferimentos e as lágrimas no rosto da mulher. De imediato, não dava para saber se era jovem, mas, aos poucos, percebeu que era jovem sim. A moça falou com voz sonolenta: — Dói tudo... Meu rosto... A psicóloga permaneceu algum tempo no quarto aguardando que ela ainda quisesse falar mais alguma coisa, e depois disse apenas: — Descanse, volto outra hora. Saiu e foi tomar café. Encontrou o médico que havia atendido a paciente e ele lhe disse: — Viu a moça? Fiz só o mais urgente para evitar infecção nos ferimentos, dei a ela um sedativo, ela estava num estado... Vai ser preciso um plástico. Será removida para um outro hospital. A psicóloga sentiu um mal-estar meio indefinido. Em seguida pegou seu carro e foi para casa. A estrada estava boa, mas dirigiu meio preocupada. Pensou em como era difícil ter de viajar todos os dias para trabalhar naquele hospital, mas esse era o jeito agora. Chegou em casa, tomou banho e depois se olhou no espelho. Viu seus cabelos bem lavados. Os da paciente do hospital ainda tinham alguma coisa meio empastada que devia ter sido usada para remover o sangue. Viu seu rosto harmonioso e gostou do que viu, mas não ficou alegre. Pensou: "Ontem ela deve ter se olhado no espelho como eu agora." Enquanto secava os cabelos, chorou lembrando-se da moça. Ligou para os amigos e foi encontrá-los no mesmo bar de sempre. Conversaram e tomaram cerveja como nos outros dias, mas ela não estava igual. Um dos amigos reparou e disse: 50 Do desabrigo à confiança — Que foi? Você não está bem. Ela respondeu: — Estou bem agora, mas o dia foi pesado no hospital. Também, por que eu tinha de entrar naquele quarto? Se eu deixasse pra amanhã ficaria livre de ver o que vi . Nunca tinha visto alguém tão machucado. Meu, não dá pra aguentar. Não sai da minha cabeça aquele rosto. Foi um acidente de carro. Você fica feito uma pasmada ali na frente da pessoa, sem ter o que fazer, sem ter o que dizer. O que adianta ser psicóloga? Qualquer coisa que a gente diga não faz sentido. E tudo uma papagaiada. Estou sendo chata, desculpa, agora não é hora pra falar disso. Mas é que me pegou fundo mesmo. E eu aqui, tomando cerveja, falando que não dá pra aguentar; daqui a pouco esqueço e a minha vida continua igual. E ela? O que vai ser dela? Os amigos entraram na' conversa e cada um tinha uma história sobre algo referente a esse assunto. O peso inicial foi sendo aliviado. Ela não demorou muito para ir embora porque precisava levantar cedo para ir trabalhar. * No dia seguinte, na entrada do hospital, informou-se sobre aquela paciente, e disseram-lhe que ela já havia sido levada para outro hospital. Conversou com a funcionária da portaria, que lhe deu algumas informações sobre a moça acidentada. Disse que, segundo o homem que a acompanhava, que também tinha tido uns ferimentos leves, eles voltavam do litoral quando o carro derrapou, quebrou uma grade e rolou na ribanceira. A moça estava dirigindo. Esse acompanhante avisou alguns parentes dele e foi liberado algumas horas depois, pois com ele nada havia de grave. Ele pagou os atendimentos, inclusive as despesas com a remoção da moça, mas não sabia dar informações sobre ela, pois não conhecia sua família. Mas encontraram na bolsa dela uma agenda com um telefone que era o de sua mãe. A mãe foi vê-la, mas não conseguiu conversar com ela; apenas falou com o moço, seu acompanhante, e foi embora. 51 Bile Tatit Sapienza A psicóloga saiu dali pensando nos imprevistos da vida, achando que os dois tinham estado provavelmente numa festa, e, de repente, a moça lá, naquele estado.... Depois foi cuidar do seu trabalho daquele dia. Quando voltou para casa nessa noite, estava lá sua tia, que era psicóloga também. Comentou seu encontro com a paciente do hospital, o quanto ela havia sido tocada pela situação. A tia então falou: — Esse é um desses casos em que, depois de passar a noite na balada, a pessoa sai dirigindo, ainda pega uma estrada, e depois dá nisso. São irresponsáveis, e ainda bem que, ao menos, o companheirc dela não se machucou. Até que ele foi legal de pagar as despesas dela. — Pode ser, tia. Mas mesmo assim, é um horror! Se você visse como ela estava! Num momento, quanta energia, quanta vida, e de uma hora pra outra ... — Quanta vida! É o que você pensa. Não sei, não. Sempre por trás desse "quanta vida" o que existe é uma destrutividade muito grande. Por que uma menina sai dirigindo desse jeito, certamente depois de beber muito e, quem sabe, com alguma droga? Por quê? Você não vê que aí há no fundo uma vontade de acabar com a vida? — Ah, tia. Você não está exagerando em concluir assim sobre essa destrutividade da moça? A gente nada sabe sobre ela. — Mas a gente consegue sacar essas coisas. E digo mais: você não disse que o companheiro dela não sabia nada a seu respeito? Pois é, as meninas saem com caras mais velhos, ricos, vão à procura de facilidades na vida. Acabam exagerando em tudo, e ainda essa aí acaba pondo a vida do outro em risco, além da sua própria. E issonão é destrutividade? A destrutividade tem muitas formas! A destrutividade vem disfarçada de... A moça parou de prestar atenção e pensou: "Que coisa chata! Acabou com a minha vontade de conversar..." Alguma coisa que ela não sabia bem o que era tinha se esvaziado naquela hora, e se sentiu sozinha. 52 Do desabrigo à confiança Depois que ela saiu da sala, a tia ainda falou para quem estava lá: — Nos primeiros tempos de clínica é assim mesmo. Ela está impressionada. Mas se você se deixar levar assim pelos problemas dos outros, você está perdida. A gente precisa esfriar a cabeça e pensar com objetividade. Cada coisa sempre tem sua explicação, não dá para se fugir disso. Cada um deu ainda mais alguma opinião até que a conversa tomou outro rumo. * Aquela paciente foi removida para outro hospital, e, como a plástica de que necessitava era uma cirurgia reparadora, foi logo atendida, e teve a sorte de ser atendida por um ótimo cirurgião. Ele se comoveu com o rosto desfigurado da jovem e tratou dela com um cuidado especial. Ela ficou no hospital os dias que podiam ser cobertos pelo seu seguro de saúde e depois foi para casa. Sua mãe já havia comunicado seu acidente à empresa onde ela trabalhava. Em casa não havia muito o que fazer a não ser pensar, chorar, responder o menos possível ao que era perguntado, evitando sempre olhar no espelho. Não tinha esperança de voltar para o mesmo trabalho; sabia que era fundamental a aparência. E havia outra coisa que a fazia sofrer: saber que o fulano que estava com ela na hora do acidente, não havia procurado ter notícias suas. Ela se lembrava de que lhe haviam dito, no primeiro hospital, que ele não tinha se machucado muito. Chegou a ligar para seu celular mas ninguém atendia. Um dia uma colega de trabalho foi visitá-la, e, num certo momento, falou para a colega que ela não sabia como tinha acontecido aquilo, pois quantas vezes tinha saído com ele de carro e ele dirigia muito bem. A amiga lhe disse então: — Mas me disseram que era você quem estava dirigindo! E ela respondeu: — Não, era ele. 53 Bile Tatit Sapienza A mãe dela, que estava por perto, fez um sinal para que a amiga parasse com o assunto. Depois, longe dela, disse: — Ela está meio confusa nessa história. Sabe, não é por mal que ela diz que não era ela. Já me disseram que isso é por causa do trauma do acidente. Me explicaram que, quando uma coisa é muito ruim, a pessoa, às vezes, começa a achar que aquilo não foi por causa dela, mais ou menos isso, não sei te dizer direito, meio que esquece como foi tudo. Mas lá no hospital o homem que estava com ela me contou que ela estava dirigindo. Até que ele foi muito bom, pagou os primeiros socorros, facilitou a remoção dela pro outro hospital. A amiga ficou mais um tempo e depois foi embora. No dia seguinte comentou com o pessoal da empresa o quanto tinha ficado chocada com a aparência da colega. Os outros disseram coisas como: "Que loucura! Justo ela, bonita daquele jeito! E agora, como vai ser? Que horror!" Uma das colegas falou: — Ela estava tão feliz! Há poucos dias me contou que estava saindo com um cara muito legal. Estava encantada, apaixonada. Disse que nunca em sua vida tinha recebido tantas flores como agora. E machucou muito mesmo o rosto dela? — Nem dá pra descrever — respondeu a outra. — Mas com uma plástica dá pra recuperar? — Difícil. Ela já foi bem atendida por um ótimo cirurgião plástico que dava plantão naquele dia no hospital pra onde foi removida. Mas, mesmo assim, o estrago foi muito grande. Ela está arrasada. A mãe dela disse que ela está ainda muito confusa. Também, não é pra menos! Alguém disse: — De uma hora pra outra a vida vira de cabeça pra baixo! O que vai ser dela? Uma das moças comentou: — Estranho isso que foi dito sobre ela estar dirigindo. Ela dizia que não gostava de dirigir em estrada. E ele também se machucou muito? — Que nada! Só uns arranhões. 54 Do desabrigo à confiança * Passaram-se alguns dias e a moça começou a fazer os retornos ao hospital para acompanhar a evolução das várias cirurgias que precisou fazer no rosto. Tinha vergonha de mostrar o rosto ainda inchado, as cicatrizes recentes. No hospital havia um serviço de psicologia. Foi encaminhada para um apoio psicológico destinado a alguns pacientes muito necessitados de ajuda. E a ajuda que recebeu foi preciosa. Teve oportunidade de falar do desastre, de reclamar da vida, de chorar muito. Começou a entender que sua vida não seria mais a mesma, que algumas mudanças viriam; grandes e pequenas mudanças. Algumas pequenas ela já começou a fazer, por exemplo, passou a usar o cabelo de modo a esconder um pouco o rosto, sempre de óculos escuros. Não se sentia em condição de manter seu trabalho, em que uma aparência impecável era exigida. Seu chefe colocou-a para trabalhar no escritório da empresa. Infelizmente esse atendimento psicológico tinha um tempo limitado. Na última sessão ela disse à terapeuta: — Sabe, nunca tinha pensado em terapia. E agora, veja, me abri tanto com você, não sei como teria aguentado isso sozinha. Ia ser bom continuar. Me lembrei de uma outra psicóloga que apareceu no meu caminho nesses últimos tempos. Até já tinha me esquecido. Foi no mesmo dia do acidente, quando eu estava no primeiro hospital em que fui atendida. Estava péssima ainda, em estado de choque, como se diz. Cuidaram de meus ferimentos, e, depois que consegui relaxar um pouco à custa de um remédio que me deram, eu me lembro de que, numa certa hora, entrou no quarto uma moça dizendo que era psicóloga; nem sei direito o que falou; devo ter dito alguma coisa pra ela; eu quase não podia falar. Depois perguntou se a terapeuta poderia atendê-la em outro consultório. A terapeuta respondeu que não seria possível, pois estava com uma viagem marcada e ficaria um ano fazendo um curso em outra cidade. E a moça disse: — Que pena! Ia ser muito bom continuar com você. 55 Bile Tatit Sapienza — Mas eu vou dar pra você o nome de uma pessoa em quem confio muito. Você vai se acertar com ela, tenho certeza. * A moça só foi procurar a nova psicóloga depois de dois ou três meses. Chegou e disse logo por que estava ali, como quem está com pressa. Falou que fez três meses de terapia num serviço psicológico de um hospital onde havia feito cirurgia plástica, aliás, várias intervenções por causa de um acidente de carro que sofrera. E em seguida toda a sua amargura começou a aparecer nas palavras, na postura, na expressão do rosto, que, apesar dos óculos escuros, estampava sua tristeza. A terapeuta perguntou quando tinha sido o acidente e a moça disse a data e o lugar. "Meu Deus, é ela!", pensou a terapeuta. Ouviu ainda o nome do hospital onde havia sido o primeiro atendimento. Na surpresa, perdeu algumas coisas que a moça dizia; difícil prestar atenção tão presa estava na sua aparência. E pensou: "Faz quase seis meses, agora dá pra ver como ela é." Alguém poderia dizer aqui que isso só acontece em novela. Mas o fato é que naquele dia em que sua colega lhe telefonou e disse que havia dado seu nome para uma moça que iria procurá- la, ela foi informada de que se tratava de alguém que tinha feito cirurgia plástica por causa de um acidente. Naquela hora, ela chegou a se lembrar do caso da moça vista no hospital. Mas... isto agora era demais. E enquanto ela se refazia da surpresa, a moça continuava falando: — ... se você visse como eu fiquei, agora até que está bom em vista de como foi. No meio de tanta coisa ruim não posso me queixar do meu atendimento. Mas logo em seguida eu pirei mesmo. Não tinha mais chão. O que passei não tem nome. A 56 Do desabrigo à confiança gente não quer ver ninguém. A psicóloga lá do hospital me aguentou. Mas a terapia lá é só por três meses. Então ela me indicou você. Não vim logo em seguida, não sei por quê. — Mas agora você está aqui. E antes disso você já havia feito alguma terapia? —Não, nunca senti necessidade. Tinha amigas que faziam, mas eu brincava com elas, dizia que eu não precisava disso, não era louca. Mas agora, de uma hora pra outra, mudou tudo. Não sou mais quem era, não tenho mais o que tinha. Não é que eu tenha perdido coisas, não, é a minha vida que está perdida. Minha vida acabou. Você está me vendo viva aqui sentada na sua frente. Mas eu não estou viva. O que sobrou de mim é resto. O que fiz pra merecer isso? Você entende? Não há o que fazer. Todo dia acordo de manhã e vejo que a minha vida é isso. A vida de todo mundo continua, e eu tenho que aguentar isso sozinha. Nesse momento a moça já'chorava muito. A terapeuta, depois de um tempo, disse para ela: — É tudo muito triste. E a gente fica se perguntando como é que se continua a viver depois disso, não é? De repente, acontece alguma coisa que faz a vida desabar e, em seguida, não há mais como escapar do acontecido. A vida está marcada por aquilo que aconteceu. Deve haver mil perguntas sem respostas: "Por que isso? Por que assim? Por quê? E agora?" E nem sempre a gente pode compartilhar essas coisas com as pessoas, mesmo com as mais queridas. Então a gente fica só. Quando conseguiu parar de chorar, a moça disse: — Na verdade eu sei que nada pode ser mudado, não tenho o que esperar. Mas eu preciso falar; pode ser que assim eu entenda alguma coisa dentro desse absurdo todo. Foi por isso que eu vim. — Conversar ajuda. Você deve estar cheia de perguntas, e todas as perguntas cabem aqui, se bem que nem sempre a gente encontre as respostas. Algumas vezes, o que se compartilha é o não-entendimento. Outras vezes é só a dor. — De dor eu entendo... Mas tenho estado muito só. A outra terapeuta me indicou você, e eu quero tentar. 57 Bile Tatit Sapienza — Estou disponível pra atender você. Mas antes há uma coisa que quero que saiba. É o seguinte. Está acontecendo uma enorme coincidência aqui. No dia do seu acidente eu vi você. É isso. Há pouco você me disse "se você visse como eu fiquei", não é? Então você sabe agora que eu vi. Não sei se isso a incomoda. — Como é isso? Você estava no hospital? No primeiro ou no outro onde fui operada? — No primeiro. Eu trabalhava lá. Quando foi socorrida em seguida ao acidente, você teve um atendimento de emergência, tomou um sedativo, dormiu um pouco. Depois que acordou, fui ao seu quarto pra perguntar como estava, saber se queria falar com alguém. Você não tinha condição de falar com ninguém, estava com muita dor e com muito sono. Então eu disse que voltaria depois, mas no dia seguinte você já havia sido removida pra outro hospital. Então, foi assim, eu a vi lá por uns minutos. Só agora, ao ouvi-la contar o dia e o lugar onde aconteceu tudo, me dei conta de que era você. — Mas isso é muito doido! Tenho uma lembrança de que entrou alguém no quarto e disse que era psicóloga, mas isso se mistura com uma porção de outras lembranças. Naquele dia eu estava fora de mim. Que coisa! — Pra mim também isso é muito estranho. E estamos aqui podendo conversar agora. Pra você tudo bem que eu já a tenha visto naquele dia? — Tudo bem. Por que haveria problema? Acho até bom. Também não sei por que acho bom. Você me conheceu no pior dia que eu já vivi. — Quis deixar isso claro para que, se começarmos uma terapia, não haja, de minha parte, alguma coisa que eu esteja sabendo a seu respeito sem que você saiba que eu sei. Poderia ser o caso de uma pessoa não querer ter sido vista naquela condição de precariedade de alguém que acabou de sofrer um desastre daquele jeito. Não sei o que você pensa disso. Se não contasse isso agora, eu não ficaria à vontade com você. — Estou entendendo. Já disse que, por mim, não há problema. Até pode ser bom, assim você sabe que não estou 58 Do desabrigo à confiança exagerando. Mas, pensando bem, podia mesmo acontecer que alguma pessoa não gostasse de ter sido vista no dia mais horroroso de sua vida, em que ela se sentia como um monstro. Mas, no meu caso, não me importo com isso. Já tinha também passado pela cabeça da terapeuta, logo nos primeiros momentos em que percebeu quem era a paciente, a pergunta: "Eu quero atendê-la?" Pois ainda se lembrava do quanto havia ficado impressionada naquele dia. Mas hoje estava certa de que queria fazer esse atendimento, que não seria fácil. A moça falou em seguida de sua dificuldade financeira no momento. Disse que continuava trabalhando ná mesma empresa de antes do acidente, mas numa outra função. Era uma empresa que lidava com cosméticos. Antes trabalhava em vendas, mas fazia também demonstrações dos produtos em feiras, lojas, salões de beleza; maquiava modelos, artistas, e era exigido que ela também estivesse sempre impecavelmente maquiada. Agora estava só no escritório, e perdera as comissões que recebia antes. Não podia nem reclamar, porque já tinha tido sorte de não perder o emprego depois de ter precisado faltar tanto tempo, e sabia que sua aparência não correspondia mais às exigências do trabalho. Não podia contar com a ajuda de ninguém, ao contrário, era ela quem ajudava a mãe. Enfim, tinha receio de não poder pagar a terapia. A terapeuta lhe disse que poderiam fazer um acordo quanto a isso. Pagaria o que fosse possível agora e depois fariam novos acertos. Combinaram que ela viria duas vezes por semana. Ela disse: — Eu tinha seu telefone na minha bolsa, mas estava adiando a vinda aqui. Queria tentar sair disto sozinha, mas está complicado. — Quando você diz "sair disto", o que é mais precisamente esse "disto"? — Ora, é tudo o que se passou comigo. Minha vida não é mais a mesma; tem hora em que não me conheço mais. Tenho muita confusão na minha cabeça. Se começo a pensar muito, me afundo numa depressão que não tem tamanho. Estou ficando com 59 Bile Tatit Sapienza medo, a gente não sabe onde isso vai parar. Se não fosse a terapeuta lá do hospital, acho que eu não ia aguentar. Era só com ela que eu conseguia falar, era só ela que me ouvia. As outras pessoas não suportam. A gente não tem com quem dividir. — Compartilhar ajuda a aguentar. E nós vamos poder continuar a conversar aqui. Conversaram mais um certo tempo e ela ficou de voltar dali a dois dias. Depois que a paciente saiu, a terapeuta permaneceu na sala por um longo tempo. Estava admirada da coincidência. Sabia que precisaria de força para estar junto de alguém sofrendo tanto. Sentiu um certo medo, mas não teve dúvida de que queria mesmo atender essa moça. Começou a pensar: "Ela quer ajuda pra sair disto, mas esse sair disto precisa passar ainda por um longo entrar nisto. Não será possível cortar caminho. Diz que não se conhece mais, mas o que é para ela esse não me conheço mais? Sei que tem a ver com a alteração do rosto, mas o que mais? E a sua confusão? E a sua tristeza? E o seu medo? Como é a sua história, e como ficará essa história agora tão profundamente modificada?" Lembrou-se do encontro no hospital, do sofrimento que a impressionara tanto. "E agora, como vai ser esta terapia? Será que vai dar certo? O que é mesmo que espero com esse dar certo? Minha vontade é ajudá-la; mas o que poderia ser ajuda? Não faço ideia. Nunca vou poder devolver pra ela as coisas que perdeu... O que faço com a fenomenologia aqui? Nesta hora, o que vale aquilo tudo de que a gente fala — ser-no-mundo, ser-com e es- sas coisas todas que a gente estuda? O que faço com os tais exis- tenciais? Ontem mesmo a gente falava dessas coisas no grupo de estudo. Compreensão é um existencial. E daí? Nem sei por que pensei nisso agora. Acho que é porque não estou entendendo nada, ela não está entendendo nada, ninguém entende nada quando acontece uma coisa dessas. Sem noção! . . . É, mas... se com- 60 Do desabrigo à confiança preender é abarcar, de alguma forma ela compreende o que acon- teceu na sua vida, alguma coisa que modificou tudo, mesmo que olhe pra isso e só veja confusão na sua cabeça; e tenho de ad- mitir que, de algummodo, eu também compreendo o que acon- teceu, compreendo como deve estar se sentindo. Se isso é horrível pra mim, imagino pra ela. Que vivência de medo deve carregar! Jogada na desproteção, no desabrigo de um mundo hos- til , na dor de ter perdido tanto! É isso. Ela perdeu muito. Tristeza e medo. Um medo ligado ao acontecido e que vai também para o futuro. É isso. É a tal história da temporalidade. .O passado dela não volta. O que ela pode esperar do futuro? O desejo é de sair disso, é como o desejo de acordar de um pesadelo. Mas ela não vai acordar desse pesadelo, porque isso não é um sonho. Ela não tem mais o rosto perfeito que tinha. O que é mesmo corporeida- de? Complicado. É isso. O fato de sermos corpo escancara nos- sa fragilidade!... Tem hora que não me conheço mais, disse ela. Como deve ser difícil perder-se assim!... Ela quase não falou so- bre sua relação com as pessoas, a não ser que ajuda a mãe e que a terapeuta do hospital aguentou com ela coisas pesadas. O ser com os outros... E agora, eu com ela? Ela espera algo de mim. Eu estou com ela. Ainda não sei o que posso fazer por ela. Ela está tocando a vida. Passo agora a fazer parte da sua vida. Como me preocupei com ela no dia daquela visita no hospital! Naquele dia eu pensava nela, mas pensava também em mim. Aconteceu com ela, podia ter acontecido comigo. Sei o que eu estaria sen- tindo se tivesse sido comigo. E se ela me perguntar: Por que eu? Não vou saber responder. Será que alguém sabe? O tal dar-se das coisas que ouvi naquela palestra! Mas tem cada coisa que se dá!... Deixa pra lá. Ah... aceitação. Era essa a palavra que o pro- fessor falou naquele dia...; difícil entender isso. Também, estou querendo demais agora. Foi só uma primeira entrevista." Mais tarde, já em casa, a terapeuta voltou a pensar no atendimento que tinha aceitado fazer. "Será que isso de eu ter 61 Bile Tatit Sapienza ficado tão emocionada naquele dia no hospital não vai atrapalhar? E a neutralidade do terapeuta, como fica? Preciso estar atenta pra não deixar que meus sentimentos se misturem com os dela. Isso eu posso fazer. Deixar de sentir, ignorar o quanto essas desgraças súbitas mexem comigo, isso eu não posso. E nem acredito que o terapeuta deva ser uma parede. Por que deveria ser? Eu e ela somos gente, e, como gente, nós temos nossos sonhos. Não posso fazer de conta que não sei o que significa pra uma moça o que ela está passando neste momento. Eu só não posso me afundar na dor que é dela, que eu compartilho porque, sendo gente, dói também em mim ver gente sofrendo. Mas é ela quem tem de se apropriar da dor pelo que ela perdeu. Foi ela quem perdeu. Só assim vou poder ajudá-la a se reencontrar, quem sabe." * Era com aquela existência que a terapeuta tinha entrado em contato. Aquele era o fenómeno que se manifestava na juventude, nas cicatrizes, nas lágrimas, nos gestos, nas palavras da moça. Uma existência num momento de abalo, de corte, de interrupção do rumo planejado para a vida, de esvaziamento de sentido, uma existência literalmente ferida. Ainda haveria muito para aparecer. Deixar que aparecesse, no meio de todos os encobrimentos que também viriam, poder pensar e pôr em linguagem o que aparecesse; logos penetrando a manifestação: elas estariam fazendo uma fenomenologia. Num certo momento a paciente havia dito algumas coisas que chamaram a atenção da terapeuta: estava adiando a vinda; queria poder sair daquilo sozinha. A terapeuta poderia ter se detido no porquê do adiamento da vinda, ou no sentido do querer sair daquilo sozinha, ou seja, sem ajuda. Mas escolheu outro caminho. Deteve-se no sair "disto", dando ênfase para o que seria este "isto" do qual a paciente queria sair. Obviamente, ela sabia que essa palavra se referia à situação sofrida que estava sendo vivida. Mas ela queria ouvir da 62 Do desabrigo à confiança moça, ainda que ligeiramente num primeiro momento, como ela, particularmente, estava vivendo a sua dor. Foi assim que surgiram aqueles: minha vida não é mais a mesma; não me conheço mais; confusão; depressão; medo. Apareceram também o seu querer sair daquele estado e a sua capacidade de confiar em alguém, quando ela se referiu à outra terapeuta. Uma pequena pergunta — o que é esse "disto"? — tinha contribuído para uma aproximação daquele modo de existir, para abrir um caminho de pensamento. Naquela hora bastava isso. Não era para aprofundar nada. A terapeuta apenas deixou clara a sua disponibilidade para conversar e compartilhar com ela o que viesse. Dizer mais teria sido excessivo. *, Na sessão seguinte, logo ao sentar-se, a moça começou a falar: — Eu não sei por onde começo. Com a outra psicóloga, estava tudo ainda tão perto, fazia só uns quinze dias; acho que o que mais fiz foi chorar. Tinha ainda constantemente diante de mim a cena do acidente; todas as noites sonhava com isso. Era quase só disso que eu falava o tempo inteiro com ela. Precisava me lembrar bem de como tinha sido tudo. Sabe que não me lembro direito dele na hora do acidente? Ora, nem contei ainda pra você. Eu estava com meu namorado. Sabe que nunca mais soube dele? Só me disseram, ainda no primeiro hospital, que ele quase não se machucou. Acho que me machuquei daquele jeito porque a lataria entrou no meu rosto. Sei lá. Também nem adianta querer saber por quê. Já aconteceu mesmo. Eu fiquei desacordada na hora. Em seguida, por muito tempo, duas imagens não saíam da minha cabeça: o carro rolando e depois eu mesma, quando já estava no hospital, acho que algumas horas depois, passando a mão no meu rosto e percebendo os ferimentos. Naquela hora, além da dor já compreendi o estrago que tinha acontecido. Vou dizer uma coisa 63 Bile Tatit Sapienza pra você: eu preferia ter morrido naquela hora. O que adianta continuar vivendo desse jeito? Se eu digo isso, as pessoas falam que não é certo a gente dizer isso. Mas só quem passa é que sabe... Estava falando do meu namorado. Ele simplesmente sumiu. Eu queria muito ter notícia dele. Eu gostava mesmo dele. Mas não quero que ele saiba de mim. Deus me livre de ele me ver agora. Mas você não acha estranho ele nunca mais procurar saber de mim? Ele poderia perguntar por mim a algum conhecido. Ele sabe onde trabalho. Ele tinha meu telefone. Acho que ele não quer mesmo saber. Eu conhecia um ou outro amigo dele, mas nunca mais vi ninguém. A gente em geral saía só os dois. Ele dizia que não queria me dividir com outras pessoas, que eu era só dele e ele era só meu, essas coisas, você sabe. Romântico como só ele. Olhe só, vim aqui hoje achando que não ia saber como começar, e não parei ainda de falar. Não sei se pra começar a terapia a gente deve contar primeiro algumas coisas assim como idade, quem são os pais, se tem irmãos, essas coisas. Não sei se é importante você saber disso antes de começar. Já fui falando de qualquer jeito. A terapeuta ouvia. Percebia na paciente o seu querer saber qual era o modo certo de fazer terapia, mas o que aparecia principalmente eram o peso que o acidente tinha em sua vida e o incómodo com a indiferença do namorado. A terapeuta também pensou: "Estranho isso de ele não querer saber o que aconteceu com a namorada." Mas não falou nada sobre isso, pois não vinha ao caso esclarecer uma possível maneira estranha de ser de outra pessoa que não a sua paciente. O importante era que a moça pudesse falar do quanto ela achava isso estranho. Depois disse: — Não se preocupe em falar numa certa ordem ou sequência. Fale o que você tiver vontade. — Acho que vou falar muito da mesma coisa, porque a minha vida está resumida nisto: o que aconteceu e o que vai ser de mim agora. Parece que as outras coisas, pois é óbvio que existem outras coisas na minha vida, foram todas engolidas por isso. O jeito como tudo era antes é sempre comparado com o 64 Do desabrigo à confiança como é agora; quando penso em como as coisas vão ser de agora em diante, fica tudo ligado a isto de agora.E isto de agora é tão mim... O que vai ser de mim? Tenho sobrevivido dia por dia, mas tem hora em que acho que não vou aguentar passar a vida desse jeito... Vai haver um momento em que não vou saber o que fazer. Quando tento falar disso com alguma pessoa, já sei o que vem: "Você está viva, isso é o mais importante; aparência não é o que conta; você vale pelo que você é." Mas eu é que sei o que é amanhecer de um jeito e na manhã do mesmo dia... Eu me conhecia do jeito que eu era antes. E agora? Não sou a mesma. Não é questão de aparência. Falei pra você há pouco que acho estranho ele não ter querido saber de mim. Não é nada estranho. Ele não pode mesmo querer mais nada comigo. Nenhum homem vai se interessar por mim. Isso tudo, de um ponto em diante, ela disse chorando. A terapeuta permanecia atenta e tocada pelo que via, pelo que escutava. E o pior era se sentir como quem nada tem a dizer. Bem que se lembrou de alguma coisa referente a questões, por exemplo, de auto-estima, de identidade: ela sente que não vai mais ser querida, valorizada; com a mudança de seu rosto ela não está mais podendo se reconhecer como sendo ela. Mas pensou: "Nossa, como isso é pouco! Tenho até vergonha de dizer pra ela alguma coisa desse tipo. Como aquilo tudo pelo que ela está passando vai caber em conceitos?" Então disse apenas: — Você pode falar todo o tempo que quiser sobre o seu sofrimento, que estou vendo que é muito grande. — Tem sido difícil suportar sozinha a tristeza que sinto. Pois a verdade é esta: estou sozinha. Ainda nos primeiros dias, as pes- soas estavam muito abaladas com o que tinha acontecido e me davam espaço pra que eu pudesse estar infeliz; eu tinha dores no corpo, as cirurgias do rosto eram recentes, enfim, é isso. Mas nin- guém está aí pra ficar suportando tristezas dos outros por muito tempo. As pessoas têm mais o que fazer na vida além disso, não é? Conversaram algumas outras coisas até o final da sessão, e, quando acabou, ela disse: 65 Bile Tatit Sapienza — Obrigada por ter me ouvido. A moça, depois que saiu, pensou: "Falei mais do que imaginava. Ela parece legal, é tranquila. Do jeito que estou, acho que é duro pra a lguém me aguentar. Nem eu estou me aguentando. Mas uma coisa ficou bem clara pra mim: não esqueci ainda o fulano e não engulo isso de ele não ter se preocupado em saber de mim. Tinha a impressão de que já era caso encerrado, mas o assunto foi ele. Fazia tempo que não falava dele. Nem gosto de contar essa mágoa pra ninguém. Remoer coisas sem solução me dá raiva. Ninguém pode me dar de volta o que eu tinha, o que eu era. O que é que vai adiantar ficar falando pra ela? Pode ser que eu acabe pior de tanto remexer. Dá vontade de entregar os pontos, deixar como está." Foi para casa e avisou a mãe que não queria jantar. Disse que estava com dor de cabeça e foi para o quarto. Chorou como nos primeiros dias após o acontecido e pensou: "Voltei pior de lá." * Agora, você que está lendo, olhe isso tudo com bastante objetividade. O fato é que na estrada tal, no dia tal, um homem e uma mulher viajavam num carro que rolou numa ribanceira. Com ele não aconteceu quase nada, e ela ficou gravemente ferida, principalmente no rosto. Foram atendidos no hospital X. Ele foi logo liberado e ela, após os primeiros socorros, foi removida para outro hospital, onde sofreu algumas cirurgias no rosto. Esse é o fato, que pode aparecer numa notícia de jornal como tantas outras equivalentes e até piores. Já estamos acostumados com tantas tragédias; lemos, pensamos um pouco nos perigos que nos rodeiam, lastimamos que seja assim, e vamos cuidar da vida. Mas, neste caso, estamos aqui envolvidos com essa moça que sofreu o acidente. Não é a ocorrência de número tal entre outras naquele mês, naquela estrada. Já não é mais um mero fato. 66 Do desabrigo à confiança É uma pessoa que se feriu gravemente num acidente. Já não estamos mais no domínio da mera objetividade neutra. A existência dela caiu sob o foco do nosso olhar. E, quando a existência entra em foco, abre-se o mundo humano, o mundo dos significados. O que é um acidente assim para essa pessoa? Como fica o mundo dela? Como tem sido a sua história? Como vai ser de agora em diante? Por que acontecem coisas assim? Como isso repercutiu nas pessoas que a conhecem? Por exemplo, como ficou a pessoa que dirigia o carro na hora do acidente? Sei que era seu acompanhante quem dirigia. Aliás, uns dias antes, ele havia dito a seu terapeuta: "Tenho saído com uma gata, coisa fina." Após o acidente, não sei qual foi seu comentário com outras pessoas, mas, com o terapeuta, o que ele conseguiu exprimir de mais profundo foi: "Cara, a gata deu zebra." Isso mostra um modo de ser-no-mundo-com o outro. E como seria o modo de ser dela com relação a ele? Como terá se sentido a mãe dela? E seus amigos? Para aquela psicóloga, que a viu machucada e agora é sua terapeuta, isso tudo foi motivo de muitas indagações sobre a vida, não só o desastre em si, como também a coincidência de encontrá- la de novo como sua paciente. Neste começo de terapia, a terapeuta está se sentindo insegura. Depois do primeiro atendimento, teve a impressão de que não sabia nada. Pensou: "Nem sequer consigo ver qual é a queixa principal dela. Parece que toda ela é uma queixa só. Não sei por onde a gente vai começar. O que eu tenho pra dizer a ela? O que será que ela acha que posso fazer por ela? Será que ela não vai ficar cada vez mais deprimida, e, se for assim, o que pode acontecer? Nem quero pensar!" * No dia marcado para a próxima sessão, a paciente teve vontade de não ir. Lembrou-se de que no outro dia havia voltado mais triste de lá. Mas, em seguida, mudou de ideia: "Eu vou hoje. 67 Bile Tatit Sapienza Preciso falar pra ela uma coisa. Não posso ficar sozinha com isso. Pra quem mais posso falar? Só espero que ela me entenda." Foi para a sessão. Quando chegou, entretanto, em vez de entrar logo no assunto que havia planejado, começou a falar de outra coisa. Achou importante contar o que tinha sentido ao voltar para casa no outro dia. — Na sessão passada, depois que saí daqui, me senti muito mal. Será que vale a pena a gente ficar remexendo no que já passou? Não há nada que possa ser mudado na minha vida. Vou falar, você vai me ouvir, mas o que adianta? Já faz seis meses que tudo aconteceu. Nos primeiros dias, nas primeiras semanas, eu estava como alguém que explodiu. Parece que havia pedaços de mim jogados pra todo lado. De um dia pro outro minha vida tinha se transformado numa coisa que eu não sabia o que era. De repente, eu estranhava tudo, eu me estranhava, não sabia como lidar comigo mesma; não queria me olhar no espelho; não queria que me vissem. Via que as pessoas também não sabiam como agir comigo. Algumas ficavam com pena, outras queriam parecer que não achavam nada tão terrível. O médico que me operou foi superlegal comigo. Ele sim, parece que ele via o quanto eu estava mal. Disse que eu tinha me machucado muito, que seria preciso reconstituir meu rosto. Eram vários os cortes que ele teria de suturar. Fiquei o maior tempo na sala de cirurgia. E depois, então, quando já tinha voltado pro quarto, que susto levei na hora em que fui ao banheiro e olhei no espelho. Parecia um monstro. Chorei muito. Nessas primeiras noites me davam um remédio pra dormir. E quando, já livre dos pontos, pude enxergar bem as cicatrizes! Nossa, naquela hora pensei: "Por que não morri?" A terapeuta ouvia, atenta ao que era dito e à emoção que estava ali. A moça parou um pouco e pegou a caixa de lenços na mesinha que estava ao lado. Só então a terapeuta percebeu que os lenços estavam quase no fim. — Acabei com seus lenços. E só começar a falar e dá nisso. Virei uma chorona. 68 Do desabrigo à confiança Enquanto isso a terapeuta pegou outra caixa, deu para ela e falou: — Chorar pode fazer bem. — Eu sei. Não há mesmo mais nada que eu possa fazer. Só que nãosei até quando suporto viver desse jeito. Não vejo solução pra minha vida. Está difícil, entende? Não tenho mais direção, porque eu tinha um caminho pra seguir, mas agora acabou tudo em nada. A minha vida ficou muito sem graça. Não há sentido em nada. Sabe que de uns tempos pra cá tenho um sonho que se repete muito? Não sei bem como é a história do sonho, mas sempre há um pedaço em que escurece o céu e, de repente, é noite..., e me dá muito medo aquele escuro..., muito medo. Não vejo nada. Acordo sempre nessa hora, e é difícil dormir de novo. No dia seguinte, me levanto cansada. Quando acontece isso, fica complicado trabalhar. Acho que esse sonho tem tudo a ver comigo. Sabe que é assim mesmo que me sinto? Eu estou no escuro. É assim: nunca mais vai amanhecer o dia... Nunca mais. Ontem mesmo tive esse sonho. Você não concorda comigo? — Você quer saber se concordo com a sua compreensão do sonho ou pergunta se acho que nunca mais vai amanhecer o dia? — Tinha perguntado sobre o sentido do sonho, porque acho que o sonho da gente sempre quer dizer alguma coisa, não é? Eu já l i sobre isso nas revistas. Agora, quanto à outra coisa que você falou, sei que nunca mais vai amanhecer o dia. Você entende o que quero dizer? — Entendo o que você está dizendo. Parece que o seu sonho mostra mesmo o momento que você vive agora: momento de uma mudança repentina, a impossibilidade de enxergar qualquer coisa, porque falta luz. O escuro assusta. E você acorda de tanto medo. O medo é de quê? Medo daquilo que já aconteceu? Medo do que está por vir? Ou será medo porque não há nada por vir? Medo porque não há futuro? — É medo de tudo. Mesmo quando não tenho sonho nenhum, muitas vezes acordo assustada. Faz muito tempo que nâo durmo direito. Você falou de futuro. Eu não tenho mais futuro. 69 Bile Tatit Sapienza Quando não se tem o que esperar, mesmo que a gente ache que vai continuar vivendo, não importa por quanto tempo, isso não é a mesma coisa que ter futuro. Como é que a gente vive sem futuro? — Será que não há futuro ou será que você não vê futuro porque está escuro agora? — De um jeito ou do outro, é a mesma coisa. Não posso ver nada porque está escuro, e, ao mesmo tempo, porque não há nada lá na frente pra ser visto. Eu sei que é assim. Tudo o que eu pretendia da vida, desde menina, acabou aqui nesta escuridão que me dá medo. E como na noite do meu sonho. E eu queria tanta coisa! — E se, na sua noite, ao menos surgisse a lua pra clarear um pouco, uma luazinha, só quarto crescente, depois, quem sabe, uma lua cheia? Será que daria pra enxergar alguma coisa? E, se desse, o que você veria? — Imagine só! A minha noite não tem lua nenhuma. E, mesmo que tivesse, não ia adiantar nada. Pode ser até que desse pra ver alguma coisa, mas seriam só coisas ruins. Não me iludo mais. Não espero mais nada de bom. — E as coisas que acontecem na vida são só aquelas que a gente espera? — Certamente não. Você pergunta isso justo pra mim! Não vale a pena fazer planos. Quem passou pelo que eu passei não espera nada. A gente não sabe de nada, não sabe do dia seguinte, não sabe nem do minuto seguinte. Bobo é quem fica imaginando: "Vai ser assim, assim, vou fazer tal coisa, isso, aquilo." Tudo besteira. Sem mais nem menos, sabe-se lá o que está por vir. — Pois então! — Então o quê? — Ora, como saber o que pode ainda acontecer? — Eu só sei que na minha frente o que há é só um vazio. — Quem sabe, se você começar a aprender a perceber as coisas mesmo no escuro, você vai poder distinguir um pouco mais o que ainda faz parte da sua vida, e, no meio disso, talvez possa 70 Do desabrigo à confiança enxergar alguma coisa que não tenha se estragado por completo, ou, talvez, alguma coisa não esperada possa acontecer. — Não sei o que é pior, se é o vazio, o escuro onde não há nada pra se ver ou se é o mim que pode vir a qualquer hora. Sabe, na verdade, eu não quero esperar nada. Esperança é coisa que não existe pra mim. — É isso. Ainda está tudo escuro. Vamos viver algum tempo no escuro. A moça já tinha parado de chorar. Recolocou a caixa de lenços em cima da mesa e disse: — O pior é que, esteja claro ou esteja escuro, a vida não quer saber disso. Com ânimo ou sem ânimo tenho de dar conta do meu trabalho. Pensando bem, até é bom. Se não fosse isso, minha cabeça já teria estourado. Quando estou muito envolvida com o trabalho, consigo me livrar um pouco dos meus pensamentos mins. Nos fins de semana fico pior. Ainda bem que tenho umas amigas que me chamam pra fazer qualquer coisa, quase sempre um cinema. Não curto mais ir a lugares movimentados. — Que pensamentos mins são esses que você tem? — Tudo o que aconteceu. Isso me tira a vontade de viver... Ter obrigações na vida é o que me segura. O trabalho tem sido a minha salvação. Ela passou a falar da sua rotina diária de trabalho, de um ou outro colega, do filme a que tinha assistido no último fim de semana. E assim a sessão tomou um ramo mais leve. A paciente olhou no relógio e disse: — Passou rápido. Já estamos terminando, não é? Engraçado, hoje eu tinha vindo com vontade de falar especialmente sobre uma coisa, e acabei falando de outra. Fica pra outra vez. A moça foi para casa e, antes de dormir, ao fechar a janela do quarto, viu um risquinho de lua. Lembrou-se da conversa que houve na terapia e olhou de novo. "Era só o que faltava, eu aqui 71 Bile Tatit Sapienza prestando atenção nessa bobagem", pensou. E olhou mais uma vez antes de fechar a janela. A terapeuta permaneceu ainda mais um tempo no consultório e começou a se lembrar da sessão: "Ela repete tanto que não sabe até quando aguenta, que preferia ter morrido. Será que pensa realmente em morrer? Pode ser só força de expressão, e pode não ser. Disse que tem obrigações na vida. A que será que ela se refere? Interessante o sonho. Parece um sonho exemplar. Não vai mais amanhecer. Se o dia não amanhece não há o dia seguinte. Ela perdeu o futuro. Viajei no sonho dela. Parece que senti o medo que ela sente do escuro repentino. Também sinto uma coisa meio estranha quando o tempo fecha de repente. É opressivo. Dá a impressão de que vai cair uma tempestade. Mas parece que a ameaça que ela sente é diferente, a tempestade dela já houve. O que assusta é nunca mais poder sair disso. Acabei falando aquela história de lua. Será que foi meio bobo? Será que ela percebeu o que eu quis dizer pra ela? Acho que essa história ainda vai voltar. Como é mesmo o nome daquele texto? Ah. . . é Desfecho: encerramento de um processo. Foi aí que l i alguma coisa sobre a compreensão que começa na penumbra, sobre a necessidade de não ter pressa. Ainda bem que hoje isto caminhou; estava com medo de me sentir perdida na sessão. Ah, se acontecesse alguma coisa boa na vida dela! O que é que poderia ser bom? Não faço ideia. Neste momento, se alguém me perguntasse pra que serve a terapia, ia ser difícil dizer. A gente pode tão pouco! Por que uma pessoa que está tão infeliz pega o carro, enfrenta o trânsito, e vem se encontrar com a gente? Vou levar este atendimento pra supervisão. Do jeito que ela estava no dia do acidente..., é incrível o quanto ela está melhor. Naquele dia, pensei que não houvesse o que fazer. O médico dela deve ser bom mesmo. Hoje dá pra perceber como ela é. Falou que o médico havia dito que teria de reconstituir seu rosto. Isso que é técnica! Ainda bem que isso existe. E a nossa técnica? Não dá pra pensar por aí. Não posso pensar em reconstituir a vida dela. O que será que eu posso?" 72 Do desabrigo à confiança Na outra sessão a paciente demorou uns dez minutos para chegar. A terapeuta pensou: "Será que ela não vem?" Logo ao chegar, ela se desculpou pelo atraso; disse que precisou ficar mais um pouquinho no trabalho. Em seguida começou a falar: — Queria conversar sobre uma coisa aqui. Isso me incomoda muito. Já contei pra você que estava com meu namorado naquele carro. Meu namorado...,já nem sei se ele era meu namorado. Saíamos juntos muitas vezes, todos os dias ele me mandava flores. Não sei mais se isso é namorar. Mas o fato é que estava com ele naquele dia, voltando da praia. Saímos de uma festa quase de manhã, tomamos café na padaria e pegamos a estrada. Tá certo que eu tinha bebido, mas ele tinha bebido muito mais, isso sem contar o resto. Em resumo, ninguém ali tinha condição de dirigir. O certo teria sido descansar ao menos um pouco antes. Foi loucura. E ainda havia neblina. Mas ele insistiu em vir. E aí deu no que deu. Não vi como foi o acidente, acho que peguei no sono um pouco antes. Numa certa hora, só vi o carro virando morro abaixo, e, quando parou, vi que havia sangue. Acho que eu tinha tentado proteger o rosto com as mãos. O cinto de segurança impediu que eu fosse jogada pra fora, mas assim mesmo devo ter me batido muito dentro do carro. Depois não vi mais nada. Daí só me lembro de estar no hospital, alguém limpava meu rosto, me deram algum remédio e dormi. Não o vi mais. Quando consegui melhorar daquele estado, perguntei por ele, e me disseram que ele estava bem e já tinha tido alta. Soube também que minha mãe tinha estado lá. A tarde fui removida pro outro hospital, onde fiz as cirurgias. Aí minha mãe me contou que ele havia sido muito bom, tinha pago os primeiros socorros, a remoção de ambulância, enfim..., e que depois entraria em contato comigo. Estou esperando até hoje... Só tinha o número do celular dele. Ele me dizia que seu trabalho era prestação de serviço de informática pra várias empresas, não tinha um lugar 73 Bile Tatit Sapienza fixo de trabalho. Então, fiquei sem nenhuma referência. Começo a falar e me desvio; o que queria comentar hoje com você é isto. Já aconteceu de, em conversa comigo, pessoas do meu trabalho me dizerem qualquer coisa que indica que elas acham que era eu quem estava dirigindo naquela hora. Elas falam como quem tem certeza. De onde será que vem essa ideia das pessoas? E tem mais. Minha mãe também já me disse isso. E não era eu. Não que isso faça diferença agora. Mas não era. Não estou ficando louca pra inventar isso. Sabe o que minha mãe chegou a me falar? "Tudo bem que você não se lembre; você bateu muito a cabeça..." Isso é um absurdo! Como se não bastasse tudo o mais, isso me incomoda muito. Digo pra pessoa que era ele quem estava dirigindo; a pessoa acaba dizendo que isso não é o importante e fica com uma cara de quem tolera que eu esteja mentindo, ou que esteja com a cabeça atrapalhada, sei lá. E fico com isso só pra mim. Por que tenho de passar por isso também? Será que, de repente, vou ter de acreditar mais nos outros do que em mim? Às vezes penso: "Como será que socorreram a gente? Será que quem ajudou a gente a sair lá de baixo não viu que eu estava do lado do passageiro?" Não vi nada, estava desacordada. Mas não posso duvidar de mim. Pense bem: por que eu iria inventar uma coisa dessas? Diante disso, a terapeuta se percebeu sem ter o que falar. A paciente ficou quieta por algum tempo. A terapeuta se lembrou de que o modo como a pessoa vê uma situação pode ser mais importante que o fato acontecido. Mas pensou também que, neste caso, a questão da paciente era diferente; dizia respeito exatamente ao fato de ela estar passando por mentirosa ou por incapaz de se lembrar de algo tão importante. Essa era a questão da paciente no momento. E a questão da terapeuta era: como é que eu entro nisso? A moça continuou: — Não é fácil. Posso ter muitos defeitos, mas mentirosa nunca fui . Também não quero que pensem que estou desmemoriada. Um dia falei pra minha mãe que eu não tinha 74 Do desabrigo à confiança perdido a memória. Daí ela me disse que tinha comentado isso na cabeleireira, e uma psicóloga que estava lá explicou que, mesmo sem perder a memória, eu devia ter me esquecido disso porque pra mim era difícil admitir que eu tivesse feito uma coisa tão horrível. Então, veja, não tenho saída. Você vê saída? — O que você considera como saída? Seria conseguir que acreditem em você? — Acho que mereço que acreditem em mim. Veja bem, quanto a tudo o que aconteceu, sei que não vai mudar nada se acreditarem ou não. Mas pra mim faz muita diferença. Chego a ter medo de começar também a desconfiar de mim. Será que vai acontecer isso? — Ninguém pode testemunhar a seu favor, não é? — É isso. Estou sozinha até nisso. Pensando agora. Você... você acredita em mim? — Não tenho nenhum motivo pra não acreditar em você... Mais que isso. Acredito em você. Quando a terapeuta disse isso, não foi para tranquilizar a moça. Era realmente o que sentia. Ao dizer "acredito em você", ela pensou: "Até agora nada me dá motivo pra não acreditar nela." A moça teve uma expressão de alívio. Ficou quieta por algum tempo e disse depois: — Já estava desistindo disso. Que bom! Isso foi o que aconteceu de principal na sessão desse dia. Depois que acabou, a terapeuta começou a refletir sobre o andamento daquele encontro e pensou: "Será que estou sendo ingénua nisso? E se isso for uma invenção meio delirante? Ou até uma mentira mesmo? Mas por que também não pode ser verdade? Se o acidente foi no início da manhã, ainda devia estar escuro, com neblina; se ninguém viu o que aconteceu, só vale a palavra do namorado. Por que ele seria mais confiável que ela? É verdade que ele deve ter providenciado o resgate, talvez tenha chamado gente pra ajudar; também pagou o hospital. Mas 75 Bile Tatit Sapienza também é verdade que sumiu depois. É estranho alguém sumir desse jeito. Ela não parece de nenhum modo alguém fora da realidade. Acho que é por isso que acredito nela. Pelo menos agora é assim. Também não é minha função ser detetive. Deve ser duro saber que os outros suspeitam assim da gente. Como se não bastasse tudo o mais, como diz ela. Sem contar com a primeira entrevista, hoje foi nosso terceiro encontro. Ainda é muito pouco pra saber como isto vai caminhar." A moça foi para casa, conversou um pouco com a mãe, e depois folheou uma revista que estava por ali. Fazia muito tempo que não lia nada. Ainda com a revista nas mãos pensou: "Ela disse que acredita no que digo. Ainda bem. Parece que acredita mesmo. Será que disse isso só pra eu me sentir melhor? Mas se fosse só isso, acho que ela iria falar só a primeira parte, quando disse que não tinha motivo pra não acreditar; mas ela acrescentou que acredita em mim. Também acho que uma psicóloga não fala coisas só pra agradar. Aquela que me atendeu lá no hospital me disse algumas vezes coisas duras de ouvir, mas que eu precisava ouvir." Foi pensando coisas assim que ela dormiu nessa noite um pouco menos infeliz. * Até agora estivemos falando sobre essas duas pessoas, a moça acidentada e a psicóloga que passou a atendê-la como paciente. Outra pessoa muito importante nesse caso, entretanto, é o homem que estava com ela naquele carro. A respeito dele, sei muito pouco. Sei que quando aquilo aconteceu fazia pouco mais de um ano que ele estava em terapia. Ao começar o caso com a moça, contou para seu terapeuta que ele estava saindo com uma garota linda, corpo perfeito e "o rosto, então, difícil um mais bonito". Acrescentou que não era nada 76 Do desabrigo à confiança sério, pois para ele as mulheres eram todas iguais, só mudando a embalagem. Na sessão seguinte ao acidente, diante da pergunta do terapeuta a respeito do que havia sentido quando viu o rosto dela desfigurado, respondeu: "Sou muito sensível pra essas coisas, não aguento ver sangue. Senti nojo." Sei também que a partir desse dia seu terapeuta sentiu que não tinha mais condição de atender esse paciente. Fizeram mais algumas sessões até que um dia o terapeuta disse a ele mais ou menos isto: — Temos de conversar sobre uma coisa. Faz já algum tempo que estamos juntos neste processo de terapia. Acho que conseguimos falar sobre uma porção de coisas da sua vida, seus interesses, algumas questões de trabalho, enfim,parece que conseguimos... Bem, mas agora, estou sentindo que alguma coisa não está caminhando como acho que deveria. Certamente que é limite meu. Em alguns momentos não estou à vontade com você em questões que esbarram muito de perto com valores que são meus. Isso prejudica o andamento da terapia. Acho que outro profissional poderia atender melhor você. Não é certo prolongar a terapia deste jei to. Não sei se você percebe o que está acontecendo da mesma forma como eu percebo. — Pra falar a verdade, nunca reparei nisso. Acho que a gente conversa legal. Se bem que, às vezes, você sai com umas perguntas muito caretas. Mas nem todo mundo pensa como eu, sei disso. Se você não quer mais me atender, ora ... não tem problema nenhum. Valeu. Acho que até já durou tempo demais! Foi bom pra eu ver bem quais são mesmo os planos que tenho pra minha vida. E isso, é legal a gente se ouvir falando. Mas, cara, isso me pegou de surpresa. Essa história de que é limite seu, de que não é certo continuar a terapia desse jeito, é tudo um jeito de me mandar embora. E chato isso, sabia? Não acho legal ser mandado embora. É traição da sua parte. — Se esse tempo serviu pra você pensar realmente quais são os seus planos pra sua vida, que bom! Quanto ao mais, acredite: não posso continuar seu atendimento. Tenho aqui os 77 Bile Tatit Sapienza nomes de duas pessoas que você poderá procurar. E espero, de verdade, que dê certo. O paciente colocou no bolso o papel com os nomes e disse com ironia: — Vou pensar no seu caso com carinho. A conversa acabou aí, porque em seguida o paciente se levantou, abriu a porta e saiu sem se despedir. Depois disso, não soube mais dele. Não sei se procurou outro terapeuta. * Quanto à terapia da moça, que já dura uns três meses, as sessões têm decorrido num clima depressivo, em que predominam pensamentos como estes: "Que coisa é essa, a vida, em que, de uma hora pra outra tudo muda? Por que essas puxadas de tapete? Por que comigo? Sofrimento tem alguma finalidade?" A terapeuta acompanha suas falas atentamente, com um interesse genuíno, e, frequentemente, tem a impressão de que nada tem para oferecer à paciente. E pensa: "Essas perguntas também são minhas. Qualquer coisa que eu quisesse dizer a ela com a pretensão de responder soaria falso." A moça sempre compara a sua vida de antes com a vida de agora. Antes, o maior prazer em ir a festas, em sair com amigos, muitas paqueras. Hoje, raramente sai. Vai uma vez ou outra ao cinema, de vez em quando vai com uma amiga para a praia. Não tem vontade de conhecer ninguém. Não gosta quando encontra velhos conhecidos. * Outro dia ela falou para a terapeuta: — Ontem foi meu aniversário. Minha mãe fez um bolo pra mim. Eu não quis chamar ninguém pra ir lá em casa. Mas tive uma surpresa lá no meu trabalho. Eles levaram bolo com velinha e tudo. 78 Do desabrigo à confiança — Quantos anos você fez? — Vinte anos. Chorou ao dizer isso, e acrescentou: — Não pensava que seria assim. Fazer vinte anos era pra ser um marco na minha vida. Desde pequena eu achava que era o máximo fazer vinte anos: a gente já não é uma menininha, e a vida está inteira. Cheguei deste jeito... Só desilusão. — Muita desilusão. Mas será que assim mesmo a sua vida não está aí? É certo que ela tomou outro rumo, mas... — Que é isso...? Não é que só tenha tomado outro rumo. Minha vida acabou. Isso sim! Estou viva, mas nada tem sentido. Não posso planejar nada. E a gente não vive sem planos. — O que aconteceu não cabia nos seus planos. O que não é planejado também acontece. A gente não se dá conta do quanto a vida está em aberto, até que topa com o imprevisto. — Ponha imprevisto nisso! Justo comigo, um imprevisto desse tamanho! Por quê? Sempre planejei a minha vida. Sabe, desde pequena nunca fui maria-vai-com-as-outras; sabia o que queria. Até pra comprar roupa eu preferia juntar algum dinheiro que desse pra comprar o que era do meu gosto. As vezes acontecia de nunca chegar a hora de comprar porque, quando tinha juntado o dinheiro, aquilo já tinha acabado na loja. Nem sei por que estou falando disso, não vem ao caso agora. Já sei. Estava dizendo que tinha vontade própria. Fazer planos era comigo! Nossa, quanto devaneio! Mas não eram coisas absurdas. Sabia que não podia contar com minha família. Quando meu pai morreu eu tinha dez anos e minha irmã cinco. Foi muito duro pra minha mãe criar a gente. Ainda bem que me deram uma bolsa no colégio onde eu estudava e consegui acabar o segundo grau. Minha irmã ainda está lá. Mas não pude ir em seguida pra faculdade; cursinho é caro. Além disso, me envolvi muito com meu trabalho. Minha mãe sozinha não dá conta de tudo. Ela já trabalhou muito e não tem boa saúde. Eu pago o curso de inglês da minha irmã. Não estou reclamando, não. É só pra dizer que, desde cedo, percebi que a vida não era fácil e que eu dependia de mim mesma. 79 Bile Tatit Sapienza Entende? Isso faz a gente não ficar à espera do que aconteça. A gente tem de fazer acontecer. — E, não dá pra ficar só esperando sem fazer nada. — Eu não tenho dúvida. Nada cai do céu. — A gente tem de fazer o que pode ser feito pra conseguir o que acha importante. Mas isso não dá garantia de que aquilo se realize. O que acontece resulta da ação da gente e também de uma porção de outras coisas que a gente não controla. Você não concorda com isso? — E. Infelizmente às vezes é assim mesmo. As coisas podem fugir do controle da gente. Disso eu sei. Mas, no meu caso, foi demais! Quando uma coisa acontece a tal ponto fora de qualquer expectativa, tão absurdamente, dá vontade de largar de tudo. A gente se desilude completamente, perde a confiança na vida. Eu estou assim. — Vejo que você perdeu a confiança. Mas como era a sua confiança antes? Em que você confiava e depois deixou de confiar? — Ora, eu sempre achei que a gente andando direito, fazen- do as coisas como devem ser feitas, a vida tinha de dar certo. — O que você considera que é dar certo a vida? — Cada um sabe o que considera que é dar certo a sua vida. Acho que dar certo é realizar o que faz a pessoa feliz, é poder seguir o caminho que a gente planejou. — E o que você planejou pra sua vida? — Ah, tanta coisa! Sempre quis ser uma mulher com uma profissão, e há muito tempo decidi que queria trabalhar nessas coisas que dizem respeito à estética facial, corporal. Eu me imaginava lidando com cremes, maquiagem, produtos pra cabelos, tudo que se refere à beleza. Isso pode parecer uma futilidade, mas pra mim não. Quando era criança e me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, dizia que queria ser dona de salão de beleza. Talvez essa ideia tenha vindo porque parece que já nasci vaidosa. Gostava de brincar de arrumar o cabelo das meninas, de maquiar as bonecas. 80 Do desabrigo à confiança — Você fala sobre seus planos de trabalho. E fala também que perdeu a confiança na vida, perdeu a confiança na possibilidade de seus planos darem certo. Essa desconfiança vem a partir do seu acidente, não é? Mas por que o acidente a impediria de realizar o trabalho de que você tanto gosta? — Dói ter de admitir isto. Dói dizer isto com todas as letras: eu fiquei feia. Veja bem: f-e-i-a. É a primeira vez que pronuncio essa palavra em voz alta pra me referir a mim. Sempre falo coisas como "o que aconteceu comigo", ou "já não sou como era antes", ou "não me reconheço", coisas mais ou menos assim. Me dói dizer isto. Hoje eu sou feia. É assim que estou comemorando meus vinte anos. Não é só uma questão de poder ter um determinado trabalho. Mas o trabalho com que sempre sonhei me lembra a toda hora o que me aconteceu, quer dizer, me lembra que estou feia. Não me acostumo-com isso. Sabe, de manhã eu tomo banho, escovo os dentes, passo um pente no cabelo de qualquer jeito, um batom e saio, mal me olho no espelho. Eu não era assim. Não gosto mais de me ver. Você acha que posso achar graça em circular peloslugares onde só se fala de beleza, eu, com esta cara? Com aquela pergunta relativa a planos de trabalho, a terapeuta tinha tido a intenção de aproximar para a moça a ideia de que sua vida não estava completamente fechada. Aliás, ela continuava a trabalhar na mesma empresa de antes, e, segundo o que havia contado, estava se dedicando muito às suas novas funções. Mas o que aconteceu foi outra coisa: o pensamento da paciente seguiu outro mmo, entrando fundo no foco de sua dor. E, chorando, a paciente continuou: — Vinte anos ontem, e deu tudo errado. E a terapeuta pensou: "E agora? Ela tem razão no que está falando. Uma vida toda baseada no fato de ser bonita. O que eu digo pra ela?" Enquanto ainda pensava no que diria, ouviu da paciente: — Você sabe o que significa dar tudo errado? Aquilo em que a gente apostou, de repente, diz: isso não é pra você, você não 81 Bile Tatit Sapienza serve mais; bate com a porta na cara da gente. Falando assim, você pode até pensar que fui sempre fútil. As pessoas costumam dizer que beleza não é tudo, nem é o mais importante. Mas era assim que eu me conhecia. E nunca tirei vantagem da minha aparência. Você entende? Não faltam homens dispostos a fazer de tudo por causa de mulher bonita. Ficam bobos. E há alguns velhos ricos, então, que são piores. Ainda mais depois que inventaram o viagra. Coitados, eles se sentem tão poderosos! Qualquer dia te conto as cantadas que já levei. Mas tive uma boa formação. Acho que isso vem da educação que minha mãe me deu. Eu sabia que era bonita, e procurava fazer disso uma coisa que me abrisse portas para o trabalho. Não nego que sentia muito prazer quando as pessoas me olhavam, me elogiavam, é natural. Qualquer mulher sabe que isso é muito bom. Eu pretendia amar uma pessoa, queria casar, sabe? Como é que vai ser isso agora? Não sei como começaria um namoro. E não é só por causa das minhas cicatrizes. Há uma outra coisa. Como é que vou acreditar num homem agora? Estava gostando dele, entende? Não sei o que pensar dele. Como é que uma pessoa some assim? Confiar em quem? — Você tem razão nisso tudo. É duro levar da vida uma puxada de tapete como essa que você levou. Veja, mesmo sabendo que o sofrimento de cada um é único, sabe o que me vem à lembrança neste instante? Um compositor, um grande músico que fica completamente surdo. Olhe o que a vida apronta! Já pensou no que significa para um grande músico não poder ouvir a música que compõe? Você já ouviu a Nona Sinfonia de Beethoven? Pois ele mesmo não ouviu. Ele tinha consigo os sons, a melodia, e deu aos outros essa música, deu ao mundo. E ainda acrescentou no final a Ode à Alegria, melodia para os versos de um poeta, Schiller. Não é demais? Justamente Ode à alegria. Quando começou a ficar surdo, podemos imaginar que talvez ele tenha pensado: "Justo comigo; como é que vou fazer música?" Pois ele fez. Agora, com você, não sabemos ainda como vai ser. Mas acredito que a vida vai mostrar no tempo certo. 82 Do desabrigo à confiança — Esse era um génio; já ouvi falar dele, mas eu não sou Beethoven. — Não, não é. Você é você. Mais bonita ou menos bonita, você é você. Ainda se tivesse ficado feia, você é você. O que você tem pra dar ao mundo? — Nossa! Eu levei a maior paulada do mundo. Se tiver de dar alguma coisa vai ser só a minha revolta. Não tenho mais nada. Me tomaram tudo. — E o que você pretende fazer pra manifestar a sua revolta? ^ — Sei lá! — Pense um pouco. Se revoltar contra o mundo, ora, isso é muito vago. O mundo vai se importar com a sua revolta? Que coisas do mundo vão ser atingidas por ela? Árvores, casas, carros, cachorros, ou o quê? São as pessoas? Que pessoas? — Sei lá! As pessoas más. — Pessoas más não costumam se importar com isso. — Depende. Mas, de alguma forma, essas pessoas têm de pagar pelo que fazem. — Ao dizer isso, você pensa mais exatamente em quem? — Nele. Ele não pode simplesmente fazer o que fez e ficar tudo por isso mesmo. O desastre foi culpa dele. Depois pagou o hospital, grande coisa! Queria ver se eu tivesse morrido. Como é que ele ia fazer pra se ver livre de mim? Ia me deixar largada lá? Pensei muito em morrer depois. Quando comecei a vir aqui eu pensava nisso. Tenho ainda em casa uma caixa dos remédios que tomei pra dormir no hospital. Era só tomar tudo de uma vez. Ou podia fazer qualquer outra coisa; há muitos jeitos de morrer. Só não faço isso porque tenho minha mãe e minha irmã. Elas não merecem passar por isso. Já pensou? O que ia ser delas? Mas, se eu morresse, quem sabe ele ficaria sabendo da notícia e teria remorso. Sabe, por um tempo, pensei que, mesmo se resolvesse morrer, queria contar essas coisas todas pra você, assim, pelo menos iria existir no mundo alguém sabendo de tudo. Alguém precisava saber do quanto não aceito isso tudo. Não aceito estas cicatrizes. Não aceito ter de passar por uma irresponsável que 83 Bile Tatit Sapienza causou o acidente e não é capaz de assumir isso. Não aceito ter tido um homem que, depois de tudo, some como se tivesse evaporado, como se eu tivesse sonhado que ele existiu. Isso não é justo comigo. Mas você tem razão. Quem vai se importar com isso? — Quando perguntei se o mundo iria se importar com a sua revolta, queria que você tivesse a clareza de discriminar qual é o alvo dela, quem você quer atingir. Você quer atingir alguém. Mas tem uma capacidade de amar que faz com que não queira prejudicar certas pessoas; não quer, por exemplo, que sua mãe e sua irmã sofram por você. Apesar da sua revolta, você mantém essa capacidade de ter consideração, de ter cuidado para com os seres humanos. Isso é sinal de que o que aconteceu não arrasou você completamente. Você disse há pouco que tinha perdido a confiança na vida. Mas veja, você tem confiado em mim, senão não estaria aqui abrindo todas essas coisas. Não acho que você me conta essas coisas só pra que haja uma pessoa sabedora de suas desgraças. Mesmo porque, o que eu faria com essas informações? Você me vê como alguém que se importa com sua vida, que pode compartilhar seu sofrimento. Então, você consegue sentir o que significa o outro ser humano, e isso mostra que alguns aspectos do seu mundo, de você mesma, estão preservados, e, se é assim, a vida ainda pode recobrar algum sentido. Você disse que não é Beethoven. E não é mesmo. Quem é você? Como você é? O que é próprio de você? Acho que seria bom você se conhecer mais, saber que outras características também são suas, além daquelas, como a vaidade, por exemplo. O que mais faz parte de você? De seu ser? Será que a sua história acabou aí? Você tem consciência de que faria falta pra sua mãe, pra sua irmã. Certamente faria falta pra muitas pessoas que gostam de você. Quando eu disse que você é você, eu queria dizer que, embora possa ter mudado alguma coisa em sua aparência física, você não deixou de ser quem é, e sua história continua. Isso quer dizer também que, quanto aos seus projetos de vida, eles vão continuar aí cobrando você, pedindo pra que sejam realizados. Você 84 Do desabrigo à confiança realmente não é Beethoven, não tem de dar música ao mundo. Olhe, tomara que você perceba que o que tem pra dar ao mundo continua sendo a realização da sua vida da maneira mais plena que você puder. Neste ponto, a moça já não chorava Sua expressão tinha mu- dado. E a terapeuta estava meio assustada com o que tinha aca- bado de dizer. "De onde saiu tudo isso que eu falei?", pensou ela. Depois que a sessão acabou, já fora da sala, a terapeuta abraçou-a e disse: "Parabéns pelos seus vinte anos. Desejo que você seja muito feliz." A expressão da moça era a de quem percebia que esse cumprimento era sincero, e, também com sinceridade, disse apenas: — Obrigada. Quando chegou em casa sua mãe lhe disse que havia um recado do hospital para que ela entrasse em contato com a secretária do seu médico. Como já era noite, deixou para ligar no outro dia. * Na outra sessãohouve este diálogo: — Sabe, aquela música de que você falou? No outro dia, depois que saí daqui, comprei o CD e escutei quando cheguei em casa. Aquele pedaço do final a gente às vezes ouve nos casamentos, na saída dos noivos, não é? Eu não sabia qual era o nome. Superlindo. E o cara surdo! Nunca tive costume de ouvir música desse tipo. Minha mãe me disse: "O que deu em você? O maior tempo sem ouvir nada e hoje vai ouvir logo Beethoven! Estou gostando de ver." E verdade mesmo, nunca mais tinha ligado o som. A terapeuta disse: — Que bom que você gostou! E lindo mesmo. 85 Bile Tatit Sapienza E acrescentou, meio cantarolando: — E aquela do tchan-tchan-tchan-tchan, você já ouviu? E a paciente, também cantarolando: — Esse pedaço do tchan-tchan-tchan-tchan já. Foi inevitável que as duas rissem. — Essa é dele também, é a Quinta. — Quinta o quê? — Sinfonia Alguma coisa nova tinha surgido. Parece que veio do nada. Na ida para casa a moça pegou um trânsito muito lento, e, num certo momento, com o carro parado, ela olhou para o céu e viu a lua; era quarto crescente. Uma bobagem, mas isso a fez se lembrar do dia em que a terapeuta, a propósito do seu sonho com a noite repentina, tinha lhe falado da possibilidade de haver uma lua em sua noite, ainda que fosse quase nada, só quarto crescente. Ela se surpreendeu quando sentiu que tinha sorrido um pouco. "Eu aqui presa neste trânsito. Rindo por quê? Devo estar mal mesmo", pensou. * Uns dias depois, ela falou: — Tinha me esquecido de contar pra você. Na semana passada recebi um recado do consultório do meu cirurgião. É que estava na hora do retorno pra uma avaliação de como tinha ficado meu rosto depois desses meses. Fui lá, e ele me falou que está contente com o resultado, mas que ainda há o que ser feito. Agora que meu rosto está desinchado é hora de alguns procedimentos que podem melhorar mais minha aparência. Ele não entrou muito nos detalhes do que deve ser feito, mas disse que há técnicas incríveis atualmente. Quando eu disse que, provavelmente, isso tudo sairia muito caro, ele falou que havia chance de fazer meu tratamento entrar como parte de uma pesquisa que está realizando 86 Do desabrigo à confiança pro seu trabalho de pós-doutorado, e que ele dispõe de uma verba pra isso. Ficou de me avisar quando devo voltar lá pra tratar desse assunto. Ela acrescentou ainda: — Você é a primeira pessoa pra quem estou contando isso. Não sei se acho bom ou se fico com medo. Dá medo de depositar muita esperança e depois não dar certo. Mas se der certo mesmo, não vou nem acreditar. Não esperava mais nada. Na hora em que ele falou, e ele falou com tanta certeza, fiquei emocionada. Por um momento me passou a ideia de que eu poderia voltar a ser como antes. — Você está feliz então com essa possibilidade. — Não digo que não esteja, mas não quero embarcar em expectativas. * Numa sessão que ocorreu uns dois meses depois, a moça contou o seguinte. Seu chefe pediu sua ajuda na preparação e na execução de um evento, quando começariam a divulgar um novo produto. Ela achou difícil responder na hora, ficou confusa, tentou recusar. Disse a ele que poderia ajudar permanecendo no escritório. Diante disso, o chefe falou então: "Você não acha que já está há tempo demais entocada nesse escritório? A gente precisa de você lá fora também. As meninas que vão fazer as demonstrações precisam de alguém como você, que tenha mais experiência e capacidade de liderança. Até quando pensa que pode ficar fugindo do que é preciso fazer? Não estou querendo pressionar você. Tenho respeitado esse seu tempo de recuperação, sei que passou por um trauma grande, mas você não espera que isso dure pra sempre, não é? Além de tudo, isso não faz bem pra você. Pense sobre isso. Quero sua resposta afirmativa, certo?" Acabou de relatar isso e acrescentou: < — Fiquei aflita com essa história. Ele foi muito compreensivo íMse tempo todo. É verdade que tenho produzido bastante; o 87 Bile Tatit Sapienza trabalho lá nunca esteve tão bem organizado e em dia como depois que comecei a ficar no escritório. Por que agora ele vem com isso? E ele estava falando sério. Tenho até medo de não fazer o que está pedindo. E se ele me manda embora? Não posso correr esse risco. — E. Você tem aí uma questão pra resolver. Ou escolhe aceitar o trabalho, colaborar com seu chefe e as colegas que precisam de você, ou, escolhe continuar a se esconder. Do que você está se escondendo? — Não estou propriamente me escondendo. Acontece que não tenho mais a mesma desenvoltura pra aparecer em público. Se bem que, nesse evento, eu estaria mais nos bastidores orientando e preparando as meninas. Mas, mesmo assim, pra mim é duro, sabe? — Você tem medo do quê? — Não é medo. É que não gosto de saber que vão fazer comparações. Nesses ambientes dão muito valor pra essas coisas. Uma espinha que surge na testa de alguém já é motivo pra comentário, fulana engorda meio quilo e já dizem que está gorda. E assim. — O pessoal que vai estar lá sabe do seu acidente? — Ah, sim. Todo mundo sabe. Aliás, depois disso, já estive com quase todas aquelas pessoas. O pessoal sempre foi muito simpático comigo. — Então? O que acha que vai acontecer se, nesse ambiente de meninas bonitas, você exibir seu rosto? — Meu rosto era perfeito. Veja agora. Esta marca na minha testa, está até um pouco afundada aqui — e pela primeira vez ergueu a franja para mostrar —, cicatriz aqui, aqui, aqui. Você queria mais? Você não deve saber o que é isto, porque seu rosto está intato. O que vai acontecer é que vou me lembrar mais ainda do que perdi. Não venha me dizer que a beleza não é tudo, que a beleza vem de dentro. Isso eu já ouvi demais. E também não quero que tenham pena de mim. — Concordo com tudo o que diz. Só não concordo quando diz que, se você se expuser, vai se lembrar mais ainda do que 88 Do desabrigo à confiança perdeu. Talvez, num primeiro momento, a lembrança venha mais intensa mesmo. Mas me parece que, a todo momento, você já carrega essa lembrança do que foi perdido. Mais que uma lembrança, parece que isso ocupa sempre o centro de tudo. E no que você mais pensa. Sua aparência. Pode ser que, conseguindo se aproximar mais das pessoas, perceba que elas não estão pensando em você o tempo todo. Elas pensam em outras coisas também. É pra você mesma que você tem sido preocupação todo o tempo. E você tem se visto sempre como se estivesse reduzida a essas cicatrizes. — Você está sendo dura. — Estou dizendo o modo como vejo as coisas neste momento. Não dizer isso seria, de pena de você, contribuir pra que continue a se esconder. E, pelo que você contou, parece que, por meio de seu chefe, o mundo está dizendo que precisa de você. — Já disse que não quero que ninguém tenha pena de mim. Falei que você foi dura porque é duro ouvir isso. Sempre achei feio gente que só pensa em si. E você me diz que só me preocupo comigo, que estou me achando o centro de tudo. Pode ser que eu esteja me achando no centro, mas não é por me sentir importante; é por causa da tristeza que sinto; isso me impede de pensar noutra coisa. — E é uma tristeza revoltada, que não pode aceitar o que se alterou em seu rosto. Mas o fato de não aceitar não muda em nada o acontecido. Você apenas se esconde e se fecha. Não gostaria de, mesmo triste, deixar entrar mais ar na sua vida? — Bem que gostaria. Tenho saudade da minha vida. E engraçado isso de se ter saudade de si mesma. Pensando bem, não é só do meu rosto que tenho saudade. É também de como eu era. Tinha o maior pique, tanto pra me divertir como pra trabalhar. Acho que é por isso que meu chefe quer que eu volte a participar das atividades. Mais um pouco e já vai fazer um ano do meu acidente, e desde então estou neste desânimo. O que tenho feito é trabalhar, saio muito pouco; ainda bem que minhas amigas me procuram; vou ao cinema. Mas nunca mais saí com rapaz nenhum. 89 BileTatit Sapienza Outro dia estava com um colega de trabalho numa lanchonete no prédio da empresa. Pedimos café e pão de queijo. Na hora de pegar o pão de queijo no balcão, pusemos as mãos na mesma hora. Ele segurou minha mão por um momento. Eu me assustei. Ele pediu desculpa e disse: "Não leve a mal, por favor." Fiquei sem jeito e respondi que não era nada, que tinha sido um acaso. Daí ele disse: "Não foi acaso. E já que fiz isso, quero te dizer uma coisa. Por que a gente não sai um dia pra comer uma pizza, tomar qualquer coisa? A gente podia se conhecer melhor fora do trabalho. A gente se dá tão bem. A não ser que algum namorado ciumento não te deixe sair." Fiquei atrapalhada. Não esperava. Disse que agora não, quem sabe algum dia, enfim, nem sei direito o que falei. Ele disse que estava bem e ficou tudo por isso mesmo. Mas sabe que depois fiquei me lembrando do toque da mão dele? Há quanto tempo não tenho ninguém que me faça um carinho. Tenho saudade disso. — Parece que você começa a querer ser feliz de novo. A sessão já estava no final. Ao sair a moça disse: — Valeu! Depois, a terapeuta pensou: "Nossa, como foi duro dizer aquilo. Me lembro do que senti ao vê-la pela primeira vez naquele hospital. Naquela ocasião, como é que eu iria pensar que algum dia falaria isso pra ela? Mas a vida dela tem de ser retomada. É aquela história do 'cuidado'. O modo como ela está cuidando da própria vida acaba por reduzir muito sua existência. Ela ainda tem muito pela frente, não é justo que murche desse jeito. O fato de ter conseguido se dedicar tanto ao trabalho, de pensar tanto na mãe e na irmã, isso já mostra que ela tem garra. Mas ela tem mais o que viver. Como ela é diferente daquela descrição feita pela tia fulana naquela noite em que contei da moça que eu tinha visto no hospital. Esse aperto que o chefe deu pode ter sido uma coisa boa. Curioso isso de terapia. A gente tem de aproveitar a chance 90 Do desabrigo à confiança dada por coisas assim e entrar por aí. É isto. O desenrolar-se da vida é a matéria-prima da terapia. É essa a matéria com que a gente trabalha. Mas é o que se desenrola fora ou dentro da pessoa? Ora, esta pergunta não tem sentido, se estou pensando na existência como ser-no-mundo; se só 'há' 'mundo' para o Dasein; se o Dasein 'precisa' de 'mundo' para ser. O que seria o fora e o que seria o dentro? Acho que isso do desenrolar-se da vida deve ter a ver com aquele tal acontecer das coisas, a tal doação de ser de que o professor falava na palestra. E para o Dasein que tudo que 'é ' se manifesta, é para ele que a 'doação' de 'ser' se dá. Nossa, espero que eu não esteja extrapolando. Mas é isso, a vida não pára de acontecer. O paciente vem porque, nesse acontecer, alguma coisa se complicou muito pra ele. E, durante a terapia, tudo continua acontecendo, tanto dentro da sessão quanto fora dela. Hoje, por exemplo, ela trouxe coisas que tinham acontecido lá no seu trabalho. Olhamos para isso, e esse olhar é também um acontecer. Nós duas estávamos atentas a algo que começou a se manifestar ali na sessão, algo que, como sempre, mostra alguma coisa e oculta alguma coisa. E o que a gente tem de fazer é ampliar a desocultação; é permitir que aquilo possa ser pensado, possa ser posto em linguagem. Será que estou no caminho da fenomenologia? Houve um momento em que me pareceu que ela ficou meio brava comigo, na hora em que ela disse que eu estava sendo dura com ela. É compreensível que, depois de tudo, ela encare como sendo rudeza qualquer coisa que pareça uma cobrança; a vida é que tem uma dívida com ela. Só que a gente sabe que as coisas não são assim. A vida é sempre credora. Ela pode dar no máximo uma moratória, um prazo pra que a pessoa se reorganize. E é duro mesmo ouvir isso. Ela não esperava o que eu disse. Eu podia ter comentado isso com ela, ter falado do que ela sentiu com relação a mim; mas privilegiei outra coisa, achei que devia falar dela com relação a ela mesma, com relação àquilo que diz respeito à vida dela fora da sessão. A vida dela não gira em tomo de mim; o terapeuta não é o centro da vida do paciente; não que isso não possa acontecer e que não deva ser 91 Bile Tatit Sapienza conversado quando acontece; mas não precisa ser alimentado. Chega de pensar por hoje. Amanhã levo isso pra supervisão." A moça saiu da sessão pensando: "Hoje estou cansada. Não estou bem. Vou só tomar um leite e cair na cama; preciso dormir." * Num outro dia, num certo momento da sessão a conversa tomou este rumo: — Hoje participei de uma reunião com o pessoal lá do trabalho. Era pra tratar do lançamento da linha de produtos que vem aí. A gente tem de começar a campanha logo, pra ver se sai ainda este ano. Você sabe, isso envolve contato com pessoal de publicidade. Eles precisam conhecer o produto. Eles também querem saber pra que público o produto é destinado. O fulano, colega nosso, já ficou de procurar um publicitário amigo dele. E, junto com isso, a gente precisa continuar vendendo a linha de maquiagem. É por isso que meu chefe me falou naquele dia que eu ia ter de trabalhar com as meninas que desfilam. Já contei pra você que sou boa nisso. Elas sempre dizem que tenho mão boa pra maquiar. Adoro isso. A mesma facilidade que tenho pra maquiar as outras tenho também pra me maquiar, aliás, tinha. Agora não uso mais nada. É rosto lavado e um batom de leve. Às vezes olho o rosto de uma mulher, pode ser em qualquer lugar, na fila do banco, no supermercado, e já imagino como ficaria se fosse bem maquiado. Acho que a pessoa tem de ter bom senso pra isso. Você não pode usar pra ir trabalhar, pra ir a uma reunião de amigos, o mesmo que usaria pra uma festa à noite, um casamento, por exemplo. Fica ridículo. Cada coisa na sua hora. Não gosto desse estilo perua. Acho que as coisas têm de ter harmonia, têm de ser adequadas. A mesma coisa é com roupas. Lá em casa, a gente nunca teve dinheiro sobrando, mas eu sempre cuidei de me vestir de um modo que tivesse a ver com a ocasião. 92 Do desabrigo à confiança Mesmo não tendo muita roupa, é sempre bom ter a roupa certa. Você não acha? Minha irmã, ela tem quinze anos, sabe, ela é um pouco exagerada, mas espero que aprenda. A gente estava falando de maquiagem, não é? Então, não é só ir passando bases e sombras, essas coisas, mas a pessoa precisa cuidar do estado da pele. Aprendi, acho que foi numa aula de biologia, que a pele é um órgão. Não é incrível? Então, a gente tem de cuidar. Veja só, a pele está em contato com o mundo externo, sofrendo agressões de fora o tempo todo, essa poluição e tudo o mais. Falar em agressão... , veja o que aconteceu comigo. Ponha agressão nisso que me aconteceu. E foi de uma hora pra outra. O esperado é que a pele vá se transformando aos poucos; a pessoa envelhece. Mas não isso de a gente amanhecer de um jeito e no fim do mesmo dia estar desfigurada. Que ódio eu tenho daquele desgraçado. Maldita,hora em que conheci aquele cara. Não dá pra aceitar isso tudo que aconteceu. — Essa é uma dessas coisas que a vida joga pra gente. Diante de algumas coisas que a vida oferece, ou até mesmo empurra pra gente, é possível dizer "não quero", é possível escolher recusar. Diante de outras, não. Ela não deixa alternativa. Acontece e pronto. Não cabe escolha nesse momento. O que cabe escolher depois é o modo como se vai viver com o acontecido. Ninguém escolhe ter os ferimentos que você teve. Mas teve. E agora? Agora aparece um novo campo de escolha. Como é que você vai querer viver com isso que aconteceu? — Pra quem está de fora é fácil dizer isso. Eu não sei. Eu não tenho escolha. — Mas ter de escolher faz parte da vida. E se você não escolhe, está escolhendo não escolher. Você quer transformar o resto da sua existência num grande lamento por suas cicatrizes? Você já me falou várias vezes de seus planos de vida, de suas metas, e de como elas foram interrompidas. Ter planos, saber o que quer conseguir, claroque isso faz parte da vida. Mas o que mais pra você significa existir? Será que era só mostrar o seu rosto bonito? O que eu quero dizer é isto. O que mais existe pra nortear 93 Bile Tatit Sapienza a sua existência? Tudo o que você tinha pra realizar no mundo teria de passar, necessariamente, por um rosto absolutamente perfeito? — Pensando assim, eu sei que, tudo, não. Mas na prática é assim. A pessoa aprende a se ver a vida inteira de um modo, a vida se encaminha por ali, a história da gente vai sendo de um jeito, e a gente não sabe viver de outro jeito. — Será que é só questão de não saber viver de outro jeito? Será que, no seu caso, isso não tem a ver com a vergonha que você sente do seu rosto? — Não, não é vergonha. Não acho que a pessoa deva ter vergonha de alguma coisa que não é desonra. Mau-caratismo sim é que é vergonha. Não uma doença ou outra coisa assim. — Outra coisa assim. Você quer dizer cicatrizes no rosto? — É... — Se não é por vergonha, quando você não quer mais sair, não quer conhecer gente, não quer rever pessoas, não quer aparecer junto às outras meninas sem cicatrizes, por que é então? — Eu acho que tenho vergonha mesmo. E depois de um tempo: — Por que a gente sente vergonha? — Não sei exatamente por quê. Talvez seja porque a beleza, a perfeição de formas, e isso sempre segundo alguns padrões, é um valor. Isso pode ser visto na história toda da humanidade. E principalmente a beleza feminina. No seu caso, se você sente vergonha, como é essa vergonha? — É a comparação que me incomoda. Me incomoda o olhar da outra pessoa. Se é alguém que já me conhecia, acho que está pensando "nossa, como ela mudou, coitada"; ou pode ser que, por dentro, ela diga "bem feito", ou, mesmo que não seja tanto assim, pelo menos vai pensar "veja como a vida é, essa aí, toda bonita, vaidosa, olha só agora". Você sabe como são as pessoas. Você sabe que tem gente que gosta quando o outro se ferra. Tem gente que não suporta ver que a outra pessoa tem alguma coisa que ela não tem, ou que ela tem menos. Então, quando a gente perde, elas 94 Do desabrigo à confiança gostam. E, se é alguém que não me conhecia deve pensar "o que será que aconteceu com ela?", e, mesmo que não fique me perguntando, sei que depois vai perguntar pra alguém. Isso me chateia, ser objeto de curiosidade para os outros, entende? — Ser objeto de curiosidade sempre chateia? Antes você achava muito ruim quando as pessoas ficavam curiosas a respeito, por exemplo, do perfume que você usava, ou de quem era seu novo namorado, ou coisas assim? — Isso é diferente. É até estimulante saber que estão prestando atenção na gente. Mas no meu* caso agora é completamente outra coisa. Não é propriamente a curiosidade que incomoda. É que ninguém gosta de se sentir inferior. — Então, o que incomoda, tanto na comparação que as pessoas podem fazer como na curiosidade que elas podem ter, é se sentir inferior. Será que a vergonha começa por aí? Acho que a vergonha é esse incómodo, não é? — Mas você acha que alguém pode gostar de se sentir inferior? — Acho que ninguém gosta de se sentir inferior, especialmente naquelas coisas que valoriza. Se a pessoa valoriza muito a inteligência, não vai gostar de se sentir inferior nessa área; se valoriza muito o dinheiro, mesma coisa; o bom mecânico não quer perder em comparação com outro mecânico. Mas é razoável poder admitir que outro possa ser mais inteligente, mais rico, melhor mecânico; admitir a possibilidade de não ser o máximo, mesmo naquela coisa que se valoriza tanto. Será que você não pode admitir não ser o máximo em matéria de beleza? E aquilo que eu perguntei há pouco pra você. Será que tudo que você pode e quer fazer na vida precisa depender de um rosto absolutamente perfeito? — Não. Absolutamente perfeito, não. Mas também você há de concordar que não precisava ter estas marcas que ficaram. E minhas marcas não são só no rosto... Sabe, elas ficaram na minha alma... Na estante lá de casa onde estão os livros que foram do meu pai, vi um livro em francês com o nome La mort dans l 'âme, 95 Bile Tatit Sapienza quer dizer, A morte na alma. É de um autor chamado Sartre, não sei se você conhece. Eu não sei qual é o assunto do livro, mas na hora em que vi esse título, pensei: "E isso o que eu tenho." Sabe, alguma coisa muito profunda em mim morreu, e a dor é muito intensa. Você sabe o que é isso? São sonhos perdidos, e quem está de fora poderia dizer: "Amime outros sonhos." Mas não é fácil. Porque os sonhos da gente envolvem outras pessoas; a gente precisa poder confiar em alguém, senão como é que se pode ser feliz? É horrível não poder acreditar em ninguém. Pior ainda, não poder confiar nem em si mesma. Pois como é que vou confiar em mim, se pude me enganar daquele jeito? Como é que a gente ama uma pessoa daquele tipo? Se depois, até numa coisa tão concreta, de tanto todo mundo falar, quase perco a certeza de que não era eu quem dirigia o carro? Quando a gente se arrisca a perder até uma certeza como essa, o que sobra? Que papel eu fazia nessa história? Quem era eu? Tem hora em que piro um pouco e acho que essa história não existiu, ele não existiu. Se ele ao menos tivesse me procurado depois, nem que fosse só pra saber como eu estava... Ele não precisava continuar comigo, eu ia compreender. Mas sumir assim foi cruel. E isso. Foi cruel. Como é que a gente vive depois, quando se perde toda a confiança, quando não se espera nada? — Será isso a morte na alma? Continuar se movendo, falando, cumprindo as tarefas do dia-a-dia, mas sem encontrar nenhum "para quê" que valha a pena. E isso? — É. Alguma coisa essencial na gente morre... Depois de um pouco de silêncio, ela continuou: — Sabe, ultimamente tem me vindo um outro pensamento: "Será que eu também colaborei pra que isso tudo acontecesse? Como pude me enganar tanto?" Fico com esta questão comigo: "Por que topei entrar num carro com alguém totalmente bêbado dirigindo? Como me descuidei desse jeito?" As vezes me pego pensando isso. E duro, sabe? Isso tem me incomodado. Mas como é que eu podia não vir com ele? Eu tinha que voltar pra cá. E todo mundo bebe mesmo, e a gente tem que voltar pra casa, não é? 96 Do desabrigo à confiança Ah, não sei mais nada... Agora, ele..., ele sim, tinha que saber que estava sem condição de dirigir. Tem hora em que não sei o que pensar dele. Como ele pôde me abandonar desse jeito? Às vezes sabe o que começo a imaginar? Imagino que ele teve alta do hospital, foi pra casa, que, aliás, nunca soube onde era, e depois ele pode ter tido alguma coisa como uma hemorragia interna, por exemplo; então ele morreu, e ninguém pôde me avisar; nem sabiam que eu existia. Penso coisas assim. Tudo é possível. Nem tenho certeza do nome dele pra poder perguntar. Sabia o nome, é lógico, mas não o sobrenome. A gente se chamava por apelidos carinhosos. E o trabalho, eu já contei pra você, ele dizia que prestava serviço de informática a algumas empresas. Nunca vi um documento dele. Também era só o que faltava, a gente pedir o documento de alguém com quem vai sair! Isso não tem cabimento. Bom, mas sei que tudo isso é viagem minha. Ele deve é estar muito bem por aí. Eu é que estou perdendo meu tempo pensando nisso. Claro que, quando saiu do hospital, ele tinha sido bem examinado, não ia acontecer de morrer em casa. O pessoal lá era cuidadoso. Eu, por exemplo, fui muito bem tratada. Mas não adianta ficar lembrando disso agora; hoje nem dá mais tempo. Você não se cansa de me ouvir falando sempre da mesma coisa? Há quanto tempo venho aqui e o assunto é só esse. Mas se não for com você, com quem vou falar dessas coisas? — O que você fala é o que teria mesmo de falar. Não acho que seja sempre a mesma coisa, não é uma repetição. A nossa conversa está caminhando. Você não vê como está tendo coragem de tocar mais de perto nessas coisas tão doloridas? — Vejo. Mas até que ponto isso é bom? Não quero me afundarmais. Está na hora de ir embora. Depois da sessão, a terapeuta pensou no quanto é inesperado o rumo que toma a conversa na terapia e como é importante estar atenta para acompanhar o que surge. Quando começou o assunto sobre a reunião de trabalho, ela imaginou que a moça fosse 97 Bile Tatit Sapienza comunicar alguma decisão que tivesse tomado referente ao aceitar ou não o que seu chefe havia pedido, mas sua fala passou a ser sobre maquiagem, cuidados com a pele, moda, e daí chegou à sua falta de sorte. Ela aproveitou alguns momentos para tocar na necessidade de reencontrar novos caminhos de realização da vida, tentou fazer com que a paciente entrasse em contato com seu sentimento de vergonha pela aparência. Mas os toques dados por ela relativos a essas importantes questões da existência da moça, mais do que terem servido para que essas questões fossem pensadas no momento, abriram caminho para que outras coisas se manifestassem: o cerne daquela dor, aquilo que a paciente chamou de morte na alma; e uma possível parcela de sua responsabilidade pelo acontecido. * Num outro dia, ao chegar, a moça foi logo dizendo: — Hoje vou deitar nesse divã. Mas se não me sentir bem eu sento, tá bom? Acho que vai ser esquisito falar sem olhar pra você. — Experimente. — Será? Acomodou a almofada e deitou-se. Ficou uns minutos de olhos fechados e calada, e depois abriu os olhos e falou: — É estranho. Vou ficar olhando pro teto? Nunca tinha reparado no revestimento desse teto. É outra a visão da sala. Mas sabe, hoje resolvi que queria experimentar. Nos filmes a gente vê essa história de divã. Os pacientes todos deitam pra falar? — Nem todos. Alguns deitam algumas vezes e outras vezes não. Mas deitar facilita que a fala fique mais solta, que a pessoa se preocupe menos com a coerência lógica daquilo que está falando. — Se eu tiver vontade de olhar pra trás, posso olhar? — Pode, sempre que quiser. — Sumiu tudo. Parece que não tenho nada pra falar. 98 Do desabrigo à confiança Ficou quieta um pouco e depois disse: — Tive um sonho que quero contar pra você. Foi anteontem. Sabe, aquele tipo de sonho que contei uma vez continua. Aquela sensação de escuridão repentina; só varia o lugar onde estou. Mas o de anteontem foi diferente. Havia muita terra, mas terra marrom mesmo, cor de terra quando a gente pinta a terra num desenho. Aqueles desenhos que a gente faz quando é criança: tem um verde que a gente diz que é a grama; tem umas florzinhas; eu fazia sempre umas florzinhas coloridas de cinco pétalas; e tem um marrom que a gente diz que é a terra. Então, era um marrom assim. Muita terra, mas o diferente é que era terra mexida, toda revirada. Sabe quando num lugar a terra está revolvida? Era assim. O sonho é só isso. Muita terra marrom. Acordei em seguida e pensei "Que sonho sem pé nem cabeça, vou contar pra ela." A terapeuta pensou: "O que será isso? Por que ela salientou tanto essa cor do desenho de criança?" E a paciente continuou: — O que você acha? — Vamos pensar no seu sonho. Acho interessante o seu modo de explicar a cor da terra dizendo que é cor de terra de desenho de criança. Por que não é só cor de terra e pronto? — É que no sonho era importante a terra, mas a cor também era muito nítida. Tem um marrom nas caixas de lápis de cor que é meio feio, mas tem um marrom cor de terra que é bonito. Olhe o que estou falando: a terra marrom cor do marrom cor de terra. Eu via bem essa cor no sonho. — Então a terra do seu sonho era bonita? — Era bonita. O estranho era estar toda revolvida. — Revolvida como? Teria havido alguma coisa lá? — Não sei. Estava revolvida em toda a extensão. A terapeuta ligou essa terra revolvida com o sentimento da moça de ter tido sua vida toda mexida nos últimos tempos. Mas não disse isso. Apenas perguntou: — Você já viu terra desse jeito? — Assim, inteiramente mexida, não. Mas já vi quando em algum lugar vai haver uma plantação e então eles mexem a terra 99 Bile Tatit Sapienza antes, ou quando vão construir alguma coisa numa região e revolvem tudo pra nivelar, pra preparar o terreno. Entende? Acho que era assim. É possível que fossem plantar ou, quem sabe, construir lá naquela terra. A terapeuta pensou: "Ainda bem que não falei o que tinha pensado antes." E disse: — É, parece que sim. Numa terra bonita, marrom-cor-de- terra, alguma coisa está pra ser plantada ou construída. E tem a cor dos desenhos de criança. Desenhos de criança. Isso diz alguma coisa pra você? — Ora, desenhos de criança a gente só faz quando é criança. Depois, nunca mais. Outras coisas também a gente perde quando cresce. — Por exemplo? — Confiança. — Mas no seu sonho há um toque de criança, há a cor de terra dos desenhos de cr iança. Será que há um toque de confiança? A moça rapidamente olhou para trás. Havia lágrimas em seu rosto quando ela disse para a terapeuta: — Será possível? — E possível. Ela voltou a olhar para a frente e ficou quieta por uns cinco minutos. Depois a terapeuta perguntou: — Você quer contar em que está pensando agora? — Estava me lembrando da última sessão. Mas acho que já pensei bastante sobre isso. Ela passou a falar do fim de semana na praia com amigos de seu trabalho. No final da sessão, ao se sentar, ela disse. — Estou um pouco atordoada, acho que me levantei muito depressa. Estranhei logo no começo, mas acho que foi bom. 100 Do desabrigo à confiança Depois que ela saiu, a terapeuta disse baixinho para si mesma: "Isto está caminhando, que bom." * Num certo dia, logo ao se deitar no divã, a moça iniciou esta conversa: — Ontem as meninas foram fazer uma apresentação dos nossos cremes e da linha de maquiagem num salão de chá aí num clube. Foi um chá beneficente, e essa apresentação foi pra atrair a compra de convites pelas sócias do clube. Pra nós isso também foi bom. É uma superpropaganda. Houve sorteio de umas cestinhas com alguns produtos. Há uns três dias, quando planejamos como iria ser, dei a ideia de que, em vez de só fazer um desfile das meninas já maquiadas, seria legal que elas, durante o chá, num lugar visível para as convidadas, começassem a ter a pele preparada para a maquiagem, quer dizer, alguém iria limpando, fazendo uma massagem, hidratando a pele delas. Em seguida elas começariam a ser maquiadas, e, depois, andariam pelo salão mostrando o resultado. Todo mundo lá gostou da ideia, e meu chefe disse: "Você vai com elas como supervisora." Ele falou isso tão sério que não tive como não concordar. Então, ontem cedo, resolvi cortar umas pontas do meu cabelo, fiz um banho de creme, essas coisas. Fazia o maior tempo que nem me lembrava de cabelo. Depois fui pro trabalho pra sair de lá com o pessoal. Antes de sairmos meu chefe falou: "Como você não vai se maquiar lá, vai ter de chegar j á bem produzida. Trate de se embelezar." Eu não tinha pensado em fazer isso nem lá, nem hora nenhuma. Já tinha feito muito em ter dado um jeito no cabelo. Mas fazer o quê? Peguei a caixa com os produtos que a gente costuma usar e fui em direção a um espelho. Nessa hora, chegou um meu amigo e disse: "Sente aí que sou eu que vou maquiar você hoje." Nem deu tempo de eu dizer que não precisava e ele já estava protegendo a minha roupa com uma toalha. Eu sentei, ele pegou meu cabelo e puxou meio pra trás, prendeu mais ou 101 Bile Tatit Sapienza menos, e, nessa hora, pensei: "Minha testa! Ele está vendo a minha testa." Isso foi muito ruim por um momento, mas em seguida me acalmei e o que veio à minha cabeça foi isto: "Agora, seja o que Deus quiser." E parei de me preocupar. Me entreguei à sensação boa de ter alguém cuidando de mim; não fazia mal que ele pudesse observar bem de perto as cicatrizes, que ele pusesse as mãos nelas. Há quanto tempo nem eu mesma me olho direito. Meu rosto vê só água e sabonete. Ele passou um creme hidratante, massageou bem devagar, com a maior paciência; passou base, pó, blush, uma sombra levenos olhos, delineador, rímel, tudo. Depois, deu uma boa ajeitada no meu cabelo e pôs um espelho na minha frente. Disse: "Agora olhe." Eu olhei, e como foi bom! Eu me reconheci; por um momento, vi que eu estava ali de novo. Você sabe como é isso, não é? As lágrimas nessas horas... Ele percebeu e disse: "Chorar justo agora, não! Você quer manchar tudo e me fazer perder o meu trabalho?" Ele falou como quem brinca que está bravo, cheio de carinho. Senti que foi com carinho que ele tratou do meu rosto. Sabe que eu beijei as mãos dele? Eu disse: "Obrigada por tudo." E ele falou: "Eu é que estou agradecido a você, menina. Há tempo estou esperando pra ver esta minha amiga assim, linda, cheia de charme." Ele enxugou meus olhos, deu uns retoques e disse: "Chega de conversa, anda logo senão a gente atrasa tudo." Desci a escada numa correria, quase caí... nossa, já pensou se eu caio? O pessoal já tinha ido. Mas deu tempo. O salão de chá ainda estava meio vazio. Eu queria muito contar isso pra você. Foi um sucesso. A ideia que eu tinha dado funcionou super. Hoje cedo fizemos uma avaliação de ontem e todo mundo achou que foi um dos melhores eventos que a empresa já fez. Mas o principal que eu quero dizer pra você é que, nos momentos em que estive lá, quase não me lembrei de cicatriz nem de nada. Eu estava absorvida olhando o andamento das coisas. — Que coisa boa você está contando. — Foi bom mesmo. Parece que aconteceu um pouco daquilo que você falou há algum tempo. Aquilo... se eu ia escolher fazer 102 Do desabrigo à confiança da minha vida um lamento pelas minhas cicatrizes; aquilo doeu, sabe? Mas acho que eu precisava ouvir isso de alguém, não de qualquer pessoa, mas de você. No começo eu não iria aguentar. Mas, de uns tempos pra cá, sinto que não quero que tenham pena de mim. Então como é que vou ficar, eu mesma, me lamentando? Agora eu penso, por que será que fiquei tanto tempo sem querer cuidar do meu rosto? — Vejo aí aquela história do ou tudo ou nada: não aceito nada menos do que o absolutamente completo, perfeito; o que for menos que isso não é digno de mim. Mas vejo outra coisa também. Tendo os recursos de que você dispõe — e a prova disso está no resultado do trato que seu amigo deu no seu rosto ontem —, insistir em não minimizar as marcas que tanto a perturbam pode ser um jeito de dizer sempre a si mesma: "O que foi feito de mim!" De alguma forma você está sempre deixando muito evidentes os danos que sofreu, lembrando a sua condição de vítima de coisas injustas, vítima de um mundo injusto. Pense um pouco. Qual pode ser o sentido dessa, vamos dizer, greve de beleza que você tem feito? Está certo que, nos primeiros meses, era compreensível que não quisesse nem olhar no espelho pra não ver seu rosto inchado, as manchas roxas e tudo o mais. Mas já faz algum tempo que você, cujo trabalho é exatamente esse, corrigir imperfeições, ajudar a beleza, já podia estar cuidando de se ajudar nesse aspecto. Não fazer isso que sentido pode ter? Exatamente você pra quem ser bonita sempre significou tanto? — Eu fui vítima sim. Mas não ponho isso como culpa de um mundo injusto. Não seria certo eu pensar isso, porque no mundo tem gente boa também. — Mas um mundo que permite acontecer o que aconteceu com você; um mundo em que é possível uma menina sair de manhã de uma festa, linda, e, na tarde do mesmo dia, ter de evitar o espelho pra não ver seu rosto ferido; um mundo que abriga tanto essas pessoas boas, como você acabou de dizer, como abriga também pessoas capazes de agir como seu ex-namorado agiu, talvez você considere esse um mundo culpado. 103 Bile Tatit Sapienza — Não tinha pensado com essas palavras, mas é isso mesmo. É muita injustiça. — Se a vida, ou se o mundo aprontou isso com você, será que ao menos você não poderia tratar a si mesma com mais carinho atenuando as marcas da injustiça que sente que sofreu? Ela olhou para trás e permaneceu um pouco de tempo olhando para a terapeuta, que continuou a falar: — Será que você não pode se desarmar um pouco e permitir que as pessoas se cheguem a você? Seu amigo, ontem, precisou ser muito decidido pra conseguir que você lhe desse a chance de poder ajudá-la. E olhe que o que ele fez por você foi muito mais que uma maquiagem... Você percebe o alcance disso que seu amigo fez por você? Olhando de novo para a frente, a moça falou: — Claro que sim. Não consigo nem dizer. Se eu contar isso pra alguém, vai parecer uma banalidade: meu amigo me maquiou pra eu ir a um evento. Mas só eu sei o que significou pra mim esse gesto dele. Sei, e não sei. Não sei se foi o sentir o toque cuidadoso daquela mão no meu rosto tão maltratado, ou se foi o fato de eu sentir que era como se ele estivesse me dizendo, sem falar nada, alguma coisa como: "você importa pra mim". Alguma coisa se reabriu. Ele apareceu na hora certa. Estava pensando agora também na decisão do meu chefe de me mandar pra um trabalho externo. Ele deve ter insistido nisso por achar que seria bom pra mim. E pra falar a verdade, foi bom mesmo. Se dependesse só de mim, não sei se eu tomaria a iniciativa. A conversa continuou, mas o principal que aconteceu foi isso. * Num outro dia, a moça começou a falar logo que deitou: — Um ano hoje. No ano passado era segunda-feira. Saímos da balada e fomos tomar café da manhã numa padaria próxima. Nossa, hoje está tudo tão claro! Comprei uns biscoitos pra comer 104 Do desabrigo à confiança no caminho, aqueles de polvilho. É uma especialidade daquela padaria; já tinha comprado lá na semana anterior. Eu ia começar a comer. Quando me viu abrindo a embalagem dos biscoitos, ele disse: "Não coma isso no meu carro; vai fazer a maior porcaria." Deu um tapa nas minhas mãos e os biscoitos caíram. Eu disse: "Pára de ser grosso comigo." E ele falou: "Se não está gostando, é só dizer; eu paro o carro e você desce." Acho que me lembro disso porque na hora eu estranhei muito; foi a primeira vez que ele falou desse jeito comigo; ele era um doce de pessoa. Fiquei quieta, porque estava magoada. E, além disso, estava com muito sono. Devo ter dormido em seguida. Hoje, contando isso aqui, eu penso: "Será que ele estava começando a se cansar de mim?" Fazia um mês que a gente estava saindo, e ele era o máximo em gentileza. Eu dizia para minhas amigas: "Encontrei o homem da minha vida." E era isso mesmo'. Estava apaixonada de fato, e certa de que ele também estava por mim. Sabe que a lembrança que me vem dele hoje me traz saudade? Eu gostei mesmo dele. A moça ficou quieta. A terapeuta pensou: "Pelo que ela está contando, era ele mesmo quem estava dirigindo." Esperou que ela se referisse a isso, mas não foi o que aconteceu. O que a paciente disse foi isto: — Nem eu me entendo. Como posso ainda me lembrar dele com saudade? Foi só um mês. Mas nunca fui tão feliz como durante aquele mês. Todos os dias o rapazinho da floricultura lá de perto do meu trabalho ia me levar um botão de rosa vermelha em nome dele. Ele deve ter deixado pago o mês inteiro. Eu punha o botão num vasinho solitário, sabe, aquele em que só cabe uma flor. Ele dizia que mandava uma única flor porque eu era única. Era para eu me lembrar disso. Depois eu ia colocando os botões juntos num vaso maior. Minhas amigas iam todos os dias ver se já tinha chegado o botão do dia. Veja, eu aqui me lembrando dessas bobagens. Um dia perguntei por que ele não tinha se casado ainda, pois ele tem uns trinta e cinco ou quarenta anos, não parece nem trinta, e ele disse que nunca tinha encontrado a mulher certa. Sabe que pensei que poderia ser eu essa mulher? 105 Bile Tatit Sapienza Bem, em seguida acabou-se o tempo dos botões de rosa e agora estou eu aqui falando de um homem que parece que não existiu. A terapeuta não falou nada. Deixou que ela ficasse com suas recordações. Depois a paciente continuou: — Agora, pondo os pés no chão, sabe o que meu chefe me disse hoje? Ele falou que vou ter umapromoção. Na verdade, vou continuar fazendo a mesma coisa, mas de um modo mais formal. Quero dizer, agora passo a ter oficialmente um cargo no escritó- rio, alguma coisa que tem mais a ver com a administração da empresa. Vou precisar ter contato com os fornecedores, os reven- dedores. Você já viu, não é? Não posso evitar o público. Isso ainda me assusta, mas não tanto como antes. Ainda me vêm à cabeça aquelas ideias: "O que será que tal pessoa está pensando do meu rosto? Será que está me achando feia?" Mas vou em frente. Você deve ter notado que tenho me pintado um pouco, não é? — Tenho notado, sim. Foi a partir do dia daquele trabalho durante o chá naquele clube. — Foi mesmo. Aconteceu alguma coisa especial naquele dia. Meu amigo foi demais. Depois daquele dia pensei: "Por que não? Maquiagem é pra isso mesmo." — Sim, mas a questão é mais que se maquiar ou não. O que vejo se passando com você é uma modificação mais profunda no seu modo de ser diante da sua vida. Você está podendo encarar as pessoas sem se sentir tão envergonhada e infeliz. Talvez haja nisso uma recuperação da possibilidade de confiar, seja nas pessoas, seja no que as situações podem trazer pra você. Sei que boba você não é pra acreditar que todo mundo é bom. Mas, quer você queira quer você não queira, as coisas continuam acontecendo na sua vida. Então, por que não abrir os olhos, os ouvidos e o coração, pra ver, ouvir e sentir se chega alguma coisa boa no meio disso tudo? Por que não haveria de chegar? Você está começando a poder estar de um modo diferente no seu mundo: o mundo do seu trabalho, o mundo das amizades, o mundo das pessoas desconhecidas, o mundo da sua relação com a beleza, o mundo da dor, o mundo da saudade, enfim..., é isso. 106 Do desabrigo à confiança — Depois que meu chefe me falou da minha promoção, e ele disse que tenho jeito pra essas coisas, me veio a ideia de fazer a faculdade de administração. Se eu ganhar melhor, vou poder pagar a faculdade. Mas sabe que tem hora que me dá vontade de estudar psicologia? — Há muita coisa que está em aberto pra você. — Isso é tudo muito novo. Minha cabeça está lotada de coisas em que preciso pensar. * Duas semanas depois, ela disse para a terapeuta: — Você se lembra de eu ter contado que meu médico falou de uns tratamentos que pretendia fazer no meu rosto? Pois é, ontem a secretária dele me chamou pra ir até lá. Ele reviu tudo, achou que a evolução foi muito boa, melhor do que ele esperava. Disse que, quando me viu naquele dia no hospital, ele não tinha muita esperança. Ontem ele me explicou o que foi preciso fazer naquela hora. Eu tinha vários cortes, e dois deles muito profundos. Não se tratava só de dar pontos. Acho que foi por isso que me removeram do primeiro hospital para o outro. Era preciso fazer aproximações de camadas mais profundas de pele, foi mais ou menos o que entendi. Ele disse que, felizmente, minha pele é boa pra cicatrização, e isso ajudou. Aquele médico do primeiro hospital foi consciencioso quando preferiu não mexer e me mandou pra um lugar com mais recursos. Agora ele quer usar uma técnica que, segundo ele, melhora muito a cicatriz. Nem me pergunte, porque não sei direito como é. De um ponto em diante, não prestava mais atenção na explicação dele. Estava pensando em como cheguei lá naquele dia. Pensava na sorte que tive de encontrar esse médico... Que homem! Ah, e pra este afundamento aqui na minha testa, ele disse que vai retirar um pouquinho de osso de alguma parte do meu corpo mesmo, pra não haver rejeição, e vai colocar aqui. Disse que vai ficar perfeito. Ele é muito otimista. Não sei como isso tudo pode fazer parte do seu trabalho de pós-doutorado, 107 Bile Tatit Sapienza como ele falou uma vez. Mas não compete a mim ficar perguntando isso, não é? Perguntou se concordo com tudo. Eu disse que sim. Marcamos pra fazer isso daqui a duas semanas mais ou menos. Ótimo isso, não? — Ótimo mesmo. — Sabe em que estou pensando? Não sei falar do jeito como você falou uma vez, mas é alguma coisa sobre aquela história de eu estar me vendo como vítima de um mundo culpado; mas é do mundo mesmo que vem a ajuda pra mim. Várias coisas que a gente já falou aqui me voltam agora à cabeça. Ah, sabe, uma hora o Dr. Fulano falou pra assistente dele que estava perto: "Veja que menina bonita, ainda bem que não estraguei o rosto dela." A médica riu da brincadeira. Eu pensei: "Imagine, ele estragar o meu rosto. Justo ele! Ele foi um anjo." Não falei nada, nem consegui dizer "obrigada". Estava com um nó na garganta. — Era gratidão, não era? — E isso mesmo. A você também sou grata. — Gratidão é uma qualidade humana muito importante. E rara. Mas tudo o que temos feito aqui é trabalho de nós duas. Depois disso, ficaram um bom tempo em silêncio. * Uma semana depois, antes de deitar, ela se sentou no divã, e disse: — Hoje vi a foto dele na coluna social, com uma moça que não sei quem é. Vi o sobrenome dele: Fulano de Tal e Tal, um dos diretores da empresa Tal. Dizia o nome dela também, da alta sociedade. Levei um choque! Todo bonitão. Eu estava em pé folheando o jornal enquanto esperava minha irmã acabar de tomar café, porque eu ia dar carona pra ela até o colégio. Passei mal. Me segurei na cadeira pra não cair. Minha irmã se assustou, minha mãe veio correndo. Mostrei o jornal pra minha mãe: "Mãe, olhe ele aqui." Ela disse: "É mesmo, o moço que falou comigo no hospital naquele dia." Desandei a chorar. Só consegui sair à tarde 108 Do desabrigo à confiança pra trabalhar, porque não podia faltar de jeito nenhum hoje. Bandido. Por que nunca mais me procurou? Como é que um ser humano abandona outro ser humano desse jeito? Depois disso deitou, virou para o canto, se encolheu, e só chorou, até o final. A sessão desse dia consistiu no acolhimento silencioso dessa tristeza. * 109 Paremos, por enquanto, essa história e deixemos em aberto os desdobramentos da vida dessa moça. Vamos refletir a respeito dessa terapia que imaginamos como exemplo. Vocês repararam que, para descrever as sessões, trouxe aqui acontecimentos exteriores ao espaço da terapia. Será que não bastaria termos nos concentrado apenas no ocorrido nas sessões? O que conta para compreendermos o processo terapêutico não seria apenas aquilo que se passa no consultório, ou seja, a fala do paciente e a fala do terapeuta, as emoções ali presentes? Mas pensemos. Alguém, por exemplo, cujo trabalho consiste em fazer objetos de barro, tem o momento, tem o espaço onde lida com o barro, tem o modo de lidar com o barro. O barro é a matéria-prima com que ele trabalha. Seu trabalho supõe que haja o barro. E a terapia? Ela se passa num certo momento, num certo espaço, de um certo modo. E a matéria-prima do trabalho de terapia é a vida. O trabalho do terapeuta supõe que haja o acontecer da vida, e a vida é maior, é mais que o momento de terapia. Aliás, a terapia também entra como parte da vida, o momento privilegiado em que se cuida do seu sentido; em que se cuida do acontecer de tudo o que afeta aquela existência. A terapia não trata de um "psicológico", como se isso fosse algo 110 Do desabrigo à confiança desconectado de mundo. Mesmo quando o paciente está vivendo fora da realidade que os outros compartilham, ainda assim é mundo. Ainda assim, ali está o acontecer da vida, da sua vida. Considerado ontologicamente, Dasein é sempre o 'aí' onde se 'dá' 'ser'. E 'ser' se 'dá' para Dasein nos acontecimentos, nos entes, se mostrando e se ocultando. Onticamente, existir significa poder ser afetado por tudo e ter de se haver com o que se deu, com o que se dá e com o que pode vir a se dar. O trazido pelo paciente para a sessão de terapia diz respeito ao seu viver, ao seu ser-no- mundo. Uma determinada terapia só faz sentido quando referida ao existir de alguém que concretamente existe. Por isso, para exemplificar um processo terapêutico, quis trazer também a vida que se passafora do consultório, pois é diante disso que tem sentido o que é posto em linguagem e é vivido como sentimentos na terapia. * A moça que serviu de exemplo foi imaginada como alguém cujo sentido da vida se rompe de forma súbita e violenta. De uma hora para outra, tudo o que compunha sua existência se desarranja, e seu futuro se fecha. O que fazemos diante de alguém que vive um momento assim? Nosso primeiro sentimento é de total impotência. Mesmo que o terapeuta acredite que existir é vir-a-ser, que possibilidades estão em aberto, não leva a nada a pressa em querer que a outra pessoa também acredite nisso. Diante de perdas muito grandes, insistir em que o paciente veja que o futuro está aberto, ou é algo que não chega até ele — ele não tem ainda como aceitar isso —, ou é algo que chega até ele como um descaso ou incompreensão por parte do terapeuta. Há dores ou desilusões que podem durar muito, muito tempo. As vezes podem durar a vida inteira... Neste exemplo, a terapeuta consegue trazer um elemento novo para ser pensado quando, uma vez, depois de concordar com 111 Bile Tatit Sapienza o quanto é sofrido levar da vida uma grande puxada de tapete, introduz na conversa uma alusão a Beethoven, que, depois de sur- do, compõe uma grande sinfonia. E quando a paciente responde que ele era um génio, e ela não é ele, a terapeuta aproveita para perguntar o que, exatamente não sendo ele, ela tem para dar ao mundo. A ênfase aí não está nas possibilidades abertas, mas sim no 'ser devedor'. A reação da paciente mostra alguma surpresa com a fala da terapeuta, tanto que responde em seguida — pro- vavelmente meio brava — que já tinha levado a maior paulada uu mundo, e, se tivesse de dar ainda alguma coisa, seria a sua re olta. A terapeuta não insiste e, só mais adiante, diz a ela: "Quanto a seus projetos de vida, eles vão continuar aí cobrando você." Ela considera que isso poderá vir a ter sentido para a paciente, que, em outros momentos, ao se referir ao valor do seu trabalho, às obrigações que tinha na vida, à consideração pela mãe e pela irmã, já havia se mostrado como alguém capaz de se sentir responsável. Então, acha que talvez aquela sua fala possa ser acolhida. Com um outro paciente, provavelmente, a terapeuta teria encaminhado a conversa de uma outra maneira. Embora seja difícil para a pessoa que perdeu muito começar a encontrar alguma abertura para o futuro, a terapeuta está atenta para o que possa favorecer a entrada nessa direção. Há uma sessão em que a paciente diz que tem saudade da sua vida e conta a história do pão de queijo na lanchonete. Isso surge como ocasião para lembrá-la de que há vida para ser vivida. * Havia dito antes que uma terapia só faz sentido com referência ao existir concreto de alguém. O mesmo vale para o significado dos sonhos que um paciente conta. Mesmo que, pelo fato de compartilharmos a linguagem, possamos dispor de significados compartilhados culturalmente, ainda assim, os significados contidos no sonho de um paciente devem ser 112 Do desabrigo à confiança procurados junto ao contexto da sua vida. É só aí que um sonho pode ter sentido, e não dentro de uma teoria de psicologia. E o sentido explicitado deve servir para ampliar a compreensão que o paciente tem de como ele está sendo-no-mundo. A terapeuta do nosso exemplo tem essa preocupação de perguntar, de permanecer junto àquilo que a paciente tem a dizer sobre as imagens com as quais ela compõe seu sonho. No sonho do céu que escurece de repente, a própria moça fala do seu estar no escuro, do nunca mais amanhecer o dia. Parece que não há muito o que acrescentar aí, mas a terapeuta traz à luz outros desdobramentos dessa primeira compreensão: o aspecto brusco da mudança, o não poder ver, o medo, a ausência de futuro, e, por fim, abre a pergunta sobre o que ela veria se, com um mínimo de luz, pudesse enxergar um pouco. E chega à perda da esperança. No sonho da terra revolvida, ela se detém na terra que é cor de terra pintada com o marrom cor de terra de desenho de criança. Com perguntas e paciência, se aproxima de algo que, para a moça, diz respeito ao ser criança: a confiança. E sugere a ela: "Será que aí há um toque de confiança?" Não só no que se refere aos sonhos relatados, mas em toda a fala da moça, a terapeuta se esforça para que aquilo se desdobre em significados ao mesmo tempo mais precisos e mais amplos. Há um momento, por exemplo, em que elas percorrem um caminho que passa pela possibilidade de fazer da vida um grande lamento, pela vergonha do rosto, pelo valor da beleza, pelo ser objeto de curiosidade, pelo temor da comparação, pelo sentir-se inferior, pela necessidade de perfeição. Acabam por chegar ao sentimento da crueldade daquela forma de abandono e àquilo que a paciente chama de morte na alma. Em seguida, a moça consegue se aproximar de algo que, até aquele momento, estava encoberto: sua parcela de responsabilidade pelo acontecido. "Como me descuidei desse jeito?" 113 Bile Tatit Sapienza Se, como no dizer de Heidegger, a hermenêut ica da facticidade tem a tarefa de fazer o Dasein acessível a si mesmo com relação ao caráter de seu ser, embora o dito por ele se refira a um outro contexto, onticamente é isso também o que está acontecendo nessa terapia. O esforço aqui é para tornar a facticidade de uma existência particular, ou seja, a existência daquela moça que procurou a terapia, acessível a ela mesma. Terapeuta e paciente estão ali num processo de interpretar e explicitar o que se manifesta ocultado naquilo que aparece. A terapeuta faz algumas considerações e perguntas, muito simples, que têm a ver com o que está sendo falado. Por exemplo, quando a moça diz que ficou muito aflita por seu chefe tê-la encarregado de um trabalho fora do escritório, ela mostra que aí está uma questão que a paciente não pode deixar de resolver: colaborar com o chefe e as colegas ou continuar a se esconder. E ainda pergunta em seguida do que ela tem medo. A moça não havia dito nada sobre se esconder, ao contrário, ela acha que não está propriamente se escondendo, apenas não tem a mesma desenvoltura, e também diz que não tem medo, apenas não gosta de comparações. A terapeuta, entretanto, interpreta o "ficar aflita" diante do pedido do chefe como manifestação do querer se esconder e do medo, e a conversa se encaminha de modo a mostrar o quanto a paciente tem se fechado na preocupação consigo mesma. Em que a terapeuta se baseia para dizer à paciente que ela está se escondendo, tem medo e está o tempo todo fechada na preocupação consigo? Ela se baseia em tudo o que vem aparecendo na terapia: desde o começo, no sonho em que anoitece de repente, lá está o medo; ela se esconde ao evitar as pessoas, se esconde até de si mesma, mal se olha no espelho. Com medo e precisando se esconder, faz sentido que ela se torne para si mesma o centro de sua preocupação: ela "sabe" que as pessoas, quando a vêem, ficam curiosas por saber o que lhe aconteceu e vão perguntar a alguém; o trabalho com o qual sempre sonhou faz com que se lembre, a toda hora, que está feia. Quando, certa vez, a paciente pergunta por que será que ela passou tanto tempo sem cuidar de seu rosto, a terapeuta, embora 114 Do desabrigo à confiança sem afirmar, sugere que isso possa ser um modo de manter viva a marca do que sofreu por culpa de um mundo injusto, um jeito de dizer sempre a si mesma: "O que foi feito de mim!" Mas como ela sugere isso, se antes havia dito que a paciente quer esconder suas marcas, quer se esconder? E que sentimentos se misturam. Alguém pode não querer que vejam ou saibam o que o faz sofrer, e sentir, ao mesmo tempo, que precisa conservar cuidadosamente registrado tudo o que diz respeito a esse sofrer. Mas por que alguém pode querer manter a lembrança de algo ruim? No caso dessa moça, se ela sofre com sua aparência, por que não cuidar de melhorá-la? E que tentar melhorar alguma coisa significa darespaço para a esperança, e esperar supõe, em algum grau, confiar que algo possa vir, ou seja, "se iludir de novo", e isso pode ser arriscado. Não investir na melhora pode ser um jeito de dizer a si mesma: "Sei agora que a vida é cruel; que bobagem é acreditar na vida!" E assim ela se instala na amargura, e, de alguma forma, ali está o seu protesto. Vemos que o pensamento da terapeuta vai à procura de um sentido mais amplo que poderia estar encoberto naquele não se cuidar. E depois acena com uma possibilidade. "Será que ao menos você não poderia tratar a si mesma com mais carinho?" * Notamos que, em alguns momentos, o encaminhamento da conversa poderia ter sido outro. Assim, quando a terapeuta fala para a paciente o quanto ela tem estado preocupada consigo mesma, a paciente diz: "Você está sendo dura." A terapeuta poderia ter se detido nessa fala da paciente, algo que tinha a ver com um sentimento relativo à terapeuta naquela hora. Considera, entretanto, que o problema da moça não é basicamente com ela, a terapeuta; sua questão é outra. Prioriza, então, a entrada em outra coisa mais importante para a paciente: a relação que está sendo vivida com o mundo num sentido mais abrangente. * 115 Bile Tatit Sapienza Importante nessa terapia é o vínculo que se forma, e isso se mostra em várias situações. Mesmo que em alguns momentos surja alguma irritação, parece que a moça sente que é possível confiar na terapeuta. Já no início, um dia ela pensa em não ir à terapia (quem sabe, até não voltar mais), mas muda de ideia quando se lembra de que precisa contar uma coisa para a terapeuta, e pensa: "Pra quem mais posso falar?" Num outro dia, vemos como para ela é significativo saber que a terapeuta acredita nela, quando diz que não estava dirigindo o carro. A ligação com a terapeuta se mostra também quando ela diz: "Mesmo se eu resolvesse morrer, eu queria contar essas coisas todas pra você, assim pelo menos ia existir no mundo alguém sabendo de tudo." Está sempre presente a sua necessidade de compartilhar. Da parte da terapeuta está presente a solicitude que acolhe. * A vinda dessa moça para a terapia exemplifica, num grau muito intenso, o sentimento de estar desabrigado, de se encontrar na inospitalidade da existência, isso que caracteriza, em geral, a procura de terapia. Embora algumas coisas ainda tenham sentido para ela, por exemplo, manter seu trabalho porque precisa ajudar a mãe e a irmã, os seus sonhos de mulher jovem foram cortados de repente. Não há mais um futuro em que ela possa ser feliz. Ela confiava em si mesma, nas pessoas, na vida que viria, e deixou de confiar. Deixar de confiar é não mais acreditar, não mais esperar. O que aconteceu em sua vida fez com que se petrificasse a capacidade de esperar por qualquer outro acontecimento de natureza diferente daquele vivido, isto é, a sua vida parou ali, o acontecido engole qualquer possibilidade diferente dele mesmo. Não há, para ela, o poder ser diferente do que ela está sendo agora (sentir-se feia, abandonada, infeliz); o poder ser diferente na atitude de um homem (sedução e abandono); o poder ser diferente da vida (a vida que puxa o tapete). É como se, para 116 Do desabrigo à confiança aquele Dasein, tudo o que pode ser já tivesse se esgotado naquilo que foi; aquela abertura compreensiva está afinada no modo amargo da desilusão, em que se estreitam demais as possibilidades de as coisas acontecerem de outro modo, de 'ser' se 'dar' de outro modo, de continuar a 'doação de ser'. * Essa terapia ainda continua. Vimos como a moça chegou, como ela e a terapeuta começaram um percurso que será longo. É o percurso do trabalho terapêutico. Esse trabalho parte de um sentimento de estar desabrigado e "caminha na direção da confiança, a afinação na qual Dasein se abre para a manifestação dos acontecimentos que se dão, que se deram e que se darão em sua história, acolhe-os, e, ao mesmo tempo, se entrega à doação que tudo doa, se entrega à sua própria existência, se entrega à sua destinação existencial" (Pompeia, 2004, p. 19). Caminhar na direção da confiança é difícil para quem está vivendo com a única certeza de que não pode confiar em ninguém, em nada, de que está rodeado pela indiferença ou pela hostilida- de do mundo. Para quem está vivendo assim, não há o que espe- rar; a única dimensão da vida que se desvela é a da falta de sentido. Diante da impossibilidade de se dedicar a um sentido, ou a pessoa sucumbe de uma vez, ou se põe a, desesperadamente, procurar estratégias de sobrevivência que possam preencher o vazio de sua vida. Aquela expressão 'doação de ser' pertence a um contexto filosófico ligado à questão relativa ao 'ser', contexto esse em que 'ser' é considerado como sempre 'doado' ao homem, cuja 'existência' consiste em ser sempre a 'abertura' para o 'ser'. Mas, como terapeutas, podemos compreender a expressão numa referência à história vivida de cada um. Aí, então, cada vez que alguém fala ou pensa coisas como: "Que é isso que me acontece? Como foi mesmo que se deu tal coisa? Que significou tudo aquilo? O que será que vai acontecer comigo? Não entendo o que 117 Bile Tatit Sapienza acontece. Que bom que aconteceu isto! Não espero que aconteça nada de bom. Para onde caminha o mundo? ele pode não ser filósofo, mas o que está sempre em questão para ele é o ser: o que é, o que fo i , o que será; é sempre ser se dando nos acontecimentos da vida. O homem não tem como deixar de ser essa abertura que, essencialmente, em algum grau e de algum modo, compreende ser. Mas, em algum grau e de algum modo também, sua compreensão não é completa, por isso ele continua perguntando pelo que é, pelo que foi, pelo que vai ser. Mesmo quando, na desilusão, não quer mais saber de nada, a pergunta emudece pela perplexidade ou pelo desânimo, mas é perplexidade ou desânimo diante da questão. Quando dizemos que a terapia deveria caminhar na direção do sentimento de confiança, de entrega à 'doação de ser', queremos realçar como é importante que o paciente possa vir a sentir que sua história está se fazendo, ela não acabou ainda; que, dia a dia, é inevitável que novos acontecimentos se dêem; que é possível que o sentido da sua vida venha a ser rearticulado. Isso supõe primeiramente que ele possa desenvolver uma capacidade de aceitação — e isso é difícil — do que foi, do que está sendo, do que pode vir a ser, e de acolhimento do que é dado, até como condição para poder transformar alguma coisa. * 118 Voltemos à nossa moça. No dia em que falou da foto no jornal, depois de ter chorado a sessão inteira, já em pé, ela disse: — Parece que estou acordando de um pesadelo pra entrar numa realidade pior. Não há mais nada nublado; está tudo muito claro. Por eu ser bonita, ele me quis. Da parte dele, essa foi a única coisa verdadeira. Nenhum afeto por mim. * Nas sessões que se seguiram, o assunto principal foi sempre esse, a frieza dele. As perguntas que apareciam eram sobre o porquê das mentiras a respeito do seu trabalho, da sua vida particular: "Será que ele tinha medo de que eu quisesse explorá- lo de alguma maneira? Será que dou a impressão de ser esse tipo de mulher? Será que eu tinha como perceber as mentiras e fui muito tonta?" * Passado algum tempo, surgiu este diálogo numa sessão: — Estou pensando naquele dia do acidente. Por muito menos, é aberto processo nesses casos. Como foi que ele se saiu disso? Já sei de onde veio essa história de que era eu quem estava dirigindo. Nossa, será que o dinheiro pode tanto assim? 119 Bile Tatit Sapienza — Pode. Dinheiro não pode tudo, mas pode muito. — Dinheiro não pode dar paz de consciência..., mas isso é pra quem tem consciência. Ficou um pouco quieta e em seguida falou: — Um dia ainda acerto esse cara. Sabendo agora quem ele é, eu poderia ir atrás dele; mas não quero fazer isso. Só sei que ainda vai chegar a hora desse acerto de contas. Ah, se vai! O tratamento planejadopara ser feito em seu rosto deveria ter acontecido uma semana depois do dia em que viu a foto dele no jornal. Ela não quis fazer mais nada naquela ocasião. Só uns dois meses depois voltou a falar sobre esse assunto. Então a terapeuta perguntou se ela havia desistido do tratamento. E ela respondeu: — Acho que o susto que levei com aquela foto e tudo mais que começou a vir ao meu pensamento me deixaram meio atordoada. Eu me afundei no trabalho, ainda mais depois que tive a promoção. Depois daquele dia em que vi a foto dele fiquei diferente. Antes, era uma tristeza muito grande, uma amargura, mas agora o que sinto é raiva: raiva dele sempre, e, às vezes, raiva de mim, por ter sido tão boba. Perdi o ânimo de voltar ao médico pra tratar das minhas cicatrizes. Você pode me achar meio louca, mas parece que até comecei a querer que fique tudo como está. Em vista de como poderia ter ficado, até que está ótimo. Já me acostumei, converso com naturalidade com as pessoas. Pra que mais? Tenho saído com as meninas, fui outro dia a uma festa. A única diferença é que namorar não faz mais parte dos meus planos. — E por que não faz parte? — Ora, você sabe o porquê. — Imagino que tenha medo de que os homens sejam todos como aquele. Não quer correr o risco de topar com um outro igual, não é? E agora, quanto a não querer fazer o tratamento que 120 Do desabrigo à confiança seu médico propôs, por que será isso? Você estava animada com a ideia. Por que será que você se recusa a melhorar ainda mais sua aparência? Quer garantir que os homens não se aproximem de você por achá-la bonita? Beleza se transformou numa coisa perigosa? — Não é isso, é que estou assumindo agora a vida do jeito que ela é, e ela é assim. É dura mesmo. Tudo o que me aconteceu serviu pra me mostrar que eu era sonhadora demais, que eu acreditava nas pessoas. Minha mãe vivia me prevenindo; ela me dizia pra ter cuidado com os homens. É o mesmo que ela diz pra minha irmã agora. Parece que ela estava adivinhando o que iria me acontecer. Já meu pai era diferente. Quando ele teve o enfarte eu tinha dez anos. Meu pai me dizia sempre, meio brincando, mas ao mesmo tempo falando sério: "Que filhinha bonitinha essa que eu tenho." Uma vez minha mãe disse pra ele: "Pare de estragar a menina com essa bobagem de bonitinha." Nesse dia, me lembro de ele ter dito: "Ela não vai se estragar por causa disso. O que ela tem é um dom." Que saudade eu tenho do meu pai! Se ele estivesse vivo, iria me dar o maior apoio nisso tudo. Sabe, ele era professor de literatura. Uma pessoa muito sensível. Deu aula no colégio onde estudei. Por isso me deram a bolsa de estudos depois que ele morreu. Minha mãe era diferente, sempre muito preocupada e aflita com tudo. Ela era boa do jeito dela. Mas me diga você. O que fiz de errado nessa história que me aconteceu? Se não tivesse havido o acidente, e se ele passasse a me tratar mal como fez na hora em que bateu nas minhas mãos e fez voar o pacote de biscoitos, eu teria percebido, eu não iria continuar com ele. Maldita hora em que entrei naquele carro com ele bêbado daquele jeito. Foi aí que eu errei... Estou me lembrando do meu pai: "O que ela tem é um dom." Se estivesse aqui, ele iria dizer para eu ir, sim, fazer o tratamento que o médico propôs. Sabe de uma coisa? Amanhã mesmo vou ligar pra ele. — Pois é, seu pai chamava de dom alguma coisa que foi dada sem você pedir, sem ir atrás. Aconteceu de você ter nascido assim. Por que não aceitar, por que não manter uma coisa que 121 Bile Tatit Sapienza você sempre sentiu como sendo boa? Por outro lado, outras coisas sentidas como muito ruins também aconteceram sem que você fosse atrás delas. Essas também foram dadas como se deram. E essas, mesmo que custe, não há como recusar, porque elas se impuseram. Então, se você está sendo capaz de aceitar a vida dura como ela é, como você disse hoje, por que não aceitar, por que não receber também o que pode chegar de bom pra você? — Pensando bem, não tem cabimento, é até feio não aceitar uma coisa que meu médico me ofereceu de boa vontade, que faz parte do trabalho dele. Isso é até fazer pouco caso da sorte que tive de encontrar uma pessoa como ele. Bendita hora em que, ao entrar naquele hospital, era ele quem estava de plantão. Ele é uma pessoa especial. Gosto muito dele. — Imagino que goste mesmo. * Depois disso, mais de dois anos já se passaram. Foram excelentes os resultados dos tratamentos feitos pelo seu médico. Ficaram algumas marcas ainda, muito mais leves, nada que estrague o conjunto do seu rosto. Ela se cuida também com uma dermatologista que trabalha no consultório dele. E a terapia continua. Depois de o mais urgente ter se acalmado, começaram a chegar as lembranças mais antigas, alegrias e tristezas da infância e da adolescência. Apareceram também as coisas novas, como ela cwstuma dizer, algumas já sendo realizadas, como o progresso que ela tem tido na empresa em que trabalha, e outras com as quais ela não sabe ainda o que fazer, coisas que se anunciam... O que importa é que ela está sendo capaz de retomar o cuidado da sua vida. Outro dia ela contou para a terapeuta que, ao fazer uma limpeza de armário, encontrou a caixinha quase cheia de remédios que havia trazido do hospital e jogou os comprimidos na privada. Disse então: — Vi os remédios e me lembrei de que, mesmo depois que comecei a vir aqui, por algum tempo eu ainda queria morrer. Eu 122 Do desabrigo à confiança sabia que havia essa saída pra mim. Mas isso foi sendo adiado até que, quando me dei conta, essa hora já tinha passado..., não que a minha dor fosse menor. Não sei o que aconteceu. Bem, eu sei que tem a ver com o fato de eu vir aqui. Será que falar ajuda? Só sei que muita coisa mudou na minha vida, algumas coisas perderam a importância que tinham, e outras se tornaram importantes. Ah, por falar nisso, na próxima semana eu não venho. Deu certo a abertura daquela filial da empresa. Você se lembra de que falei disso há um tempo? E isso, vou ter de viajar pra dar uma força para o pessoal de lá. A gente se vê só na outra semana. O problema vai ser na faculdade, tenho provas marcadas. Mas eu converso depois com os professores, a gente dá um jeito. Ela falou um pouco mais sobre o trabalho e a faculdade até acabar a sessão. Nesse dia, depois que ela saiu, a terapeuta ficou se lembrando de quando, no começo da terapia, tinha se perguntado: "O que posso fazer por ela?" Até agora ainda não sabia dizer exatamente o que tinha feito, mas gostou dessa ideia de ter contribuído para aquele adiamento da morte. E pensou: "Enquanto isso, deu tempo de tanta coisa acontecer! Onde foi mesmo que eu l i dá-se tempo, dá-se serl Lembrei. Está naquele texto Tempo e ser, de Heidegger. Se bem que lá o sentido dessas expressões é outro. Lá se trata de 'tempo' e 'ser' como as questões do pensamento, as questões da filosofia... Mas por que essas expressões me vieram à cabeça agora? Eu estava pensando no dar-se de tempo e no dar-se de ser para cada ser humano, pois, afinal, cada um tem de se haver constantemente com o sentido do seu ser e do ser de tudo que se apresenta a ele e o afeta de algum modo; tem de se haver com o sido, o estar sendo e o poder ser de sua existência, e o poder não ser... E isso. Pensando na terapia, quanta coisa se deu nesse espaço de tempo!... Só sei que, durante a terapia, ela foi escolhendo viver..., e, enquanto isso, tivemos tempo... Mas, afinal, o que se deu aqui na terapia? Ela 123 B i l e Tatit Sapienza não conseguia mais ver sentido em sua vida. Me lembro de quando ela falou da morte na alma. Sinto que atravessamos um lugar muito árido. Mas em algum momento o sentido começou a ser rearticulado. Como é difícil falar disso! Não sei dizer em que momento começou a se dar uma transformação, mas sei que houve uma transformação. Ela era a própria imagem do desabrigo quando a conheci. Não sei bem quando e como foi que elacomeçou a aceitar e a acolher aquilo que pôde ter sido dado, aquela possibilidade que, mesmo tão indesejada, se realizou — o doloroso de sua vida —; nem quando e como foi que ela começou a aceitar e a acolher o que pode ser dado dia a dia, num ressurgimento da confiança que possibilita a entrega ao que se apresenta a ela e a solicita. Parecia impossível. Mas aconteceu. Sinto que hoje, ainda que com momentos de grande tristeza — isso faz parte da vida —, a existência dela pode conter, pode abarcar tanto aquela desilusão tão grande, um pedaço de sua história, como a dimensão de futuro, em que sua história continua. Estou me lembrando agora daquele seu antigo sonho, em que nunca mais o dia iria amanhecer..." 124 Referências HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. El ser y el tiempo. Trad. José Gaos. México: Fondo de Cultura Económica, 1971. Ontology - The Hermeneutics of Facticity. Trad. John van Buren. Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 1999. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Mar- tins Fontes, 2001. POMPEIA, João Augusto. Corporeidade. Revista da Associação Brasi- leira de Daseinsanalyse, São Paulo, n. 12,2003. POMPEIA, João Augusto. Aspectos emocionais na terapia daseinsana- lítica. Revista Brasileira de Daseinsanalyse, São Paulo, n. 13, 2004. SARTRE, Jean-Paul. L'être et le néant. Paris: Gallimard, 1943. Os textos "Desfecho: encerramento de um processo" e "Tempo e ser", cujas referências aparecem no pensamento da terapeuta imaginada no exemplo, estão em: HEIDEGGER, Martin. Tempo e ser. Trad. Ernildo Stein. In: Os Pensado- res. São Paulo: Nova Cultural, 1989. POMPEIA, João Augusto e SAPIENZA, B i l e Tatit. Desfecho: encerramen- to de um processo. In: Na presença do sentido. Uma aproximação feno- menológica a questões existenciais básicas. São Paulo: Educ/Paulus, 2004. 125 LIVROS PUBLICADOS PELA EDITORA ESCUTA Psicanálise, judaísmo: ressonâncias, Renato Mezan (esg.) Do gozo criador, Carlos D. Perez O manuscrito perdido de Freud, H. Haydt de S. Mello O psicanalista e seu ofício, Conrad Stein Elementos da interpretação, Guy Rosolato A pulsão de morte, André Green et al. Psicanálise de sintomas sociais, Sergio A. Rodriguez/Manoel T. Berlinck (orgs.) Família e doença mental, Isidoro Berenstein Narcisismo de vida, narcisismo de morte, André Green As Erínias de uma mãe, Conrad Stein Notas de psicologia e psiquiatria social, Armando Bauleo Trauma, amor e fantasia, Franklin Goldgrub Clínica psicanalítica: estudos, Pierre Fedida Psicanálise da clínica cotidiana, Manoel Tosta Berlinck O acalanto e o horror, Ana Lúcia C. Jorge A Representação. Ensaio psicanalítico, Nicos Nicolaidis O desenvolvimento kleiniano I. Desenv. clínico de Freud, Donald Meltzer Édipo africano, Marie-Cécile e Edmond Ortigues Comunicação e representação, Pierre Fedida (org.) Ensaios de psicanálise e semiótica, Miriam Chnaiderman Freud e o problema do poder, Leon Rozitchner Melanie Klein: evoluções, Elias M. da Rocha Barros (org.) Figurações do feminino, Daniele Brun 14 conferências sobre Jacques Lacan, Fani Hisgail (org.) Introdução à psicanálise, Luis Hornstein O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro, Piera Aulagnier O desenvolvimento kleiniano II. Des. clínico de M. Klein, Donald Meltzer Tausk e o aparelho de influenciar na psicose, Joel Birman ( org.) A construção do espaço analítico, Serge Viderman Um intérprete em busca de sentido - I, Piera Aulagnier Um intérprete em busca de sentido - II, Piera Aulagnier Ter um talento, ter um sintoma, Denise Morel A dialética freudiana I: Prática do método psicanalítico, Claude Le Guen O inconsciente: várias leituras, Felícia Knobloch (org.) Psicose: uma leitura psicanalítica, Chaim S. Katz (org.) História da histeria, Etienne Trillat A rua como espaço clínico, Equipe de A.T. do Hospital-Dia A CASA (org.) A clínica freudiana, Isidoro Vegh O título da letra, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe Quando a primavera chegar, M. Masud R. Khan O Deus odioso. O diabo amoroso. Psicanálise e representação do mal, Mareio Peter de Souza Leite e Jacques Cazotte As bases do amor materno, Margarete Hilferding, Teresa Pinheiro e Helena B. Vianna Transferências, Abrão SIavutzky Do sujeito à imagem. Uma história do olho em Freud, Hervé Huot O sentimento de identidade, Nicole Berry Gigante pela própria natureza, Emilio Rodrigué Freud e o homem dos ratos, Patrick J . Mahony Nome, figura e memória, Pierre Fedida A supervisão na psicanálise, Conrad Stein et al. Perturbador mundo novo, SBPSP (org.) Cidadãos não vão ao paraíso, Alba Zaluar (Co-ed.Edunicamp) Casal e família como paciente, Magdalena Ramos (org.) Mancar não é pecado, Lucien Israel Crónicas científicas, Anna Verónica Mautner Penare, Celia Eid e Maria Lúcia Arroyo A histérica, o sexo e o médico, Lucien Israel Olho d'água. Arte e loucura em exposição, João Frayze-Pereira Vida bandida, Voltaire de Souza Figuras da teoria psicanalítica, Renato Mezan (Co-ed. Edusp) Em busca da escola ideal, Neda Lian Branco Martins A casca e o núcleo, Nicolas Abraham e Maria Tõrok Ah! As belas lições!, Radmila Zygouris Sigmund Freud. O século da Psicanálise (3 vols.), Emilio Rodrigué A dialética da falta, Alba Gomes Guerra e Patrícia Simões A interpretação, Elisabeth Saporiti Fato em psicanálise, UPA O corpo de Ulisses. Modernidade e materialismo em Adorno e Horkheimer, Pau- lo Ghiraldelli Jr. (esg.) Considerações sobre o psiquismo do feto, Therezinha G. de Souza-Dias Isaías Melsohn. A psicanálise e a vida, Bela Sister e Marilsa Taffarel (orgs.) Outra beleza. Estudo da beleza para a psicanálise, Cláudio Bastidas O sítio de estrangeiro, Pierre Fedida Psicoterapia breve psicanalítica, Haydée C. Kahtuni O processo analítico, UPA Elaboração psíquica. Teoria e clínica psicanalítica, Paulina Cymrot A linguagem dos bebés, Marie-Claire Busnel Uma pulsão espetacular, Psicanálise e teatro, Mauro P. Meiches Freud. Um ciclo de leituras, Silvia L . Alonso e Ana M. S. Leal (orgs.) Cadernos de Bion 1, Júlio C. Conte (org.) O estrangeiro, Caterina Koltai (org.) Eu corpando. O ego e o corpo em Freud, Liana Albernaz de M. Bastos Diálogos, Gilles Deleuze e Claire Parnet O sintoma da criança e a dinâmica do casal, Isabel Cristina Gomes A escuta, a transferência e o brincar, UPA Sexo, Rosely Sayão (Co-ed. Via Lettera) A prova pela fala, Roland Gori (Co-ed.UCG) O instante de dizer, Marie-Jose Del Volgo (Co-ed.UCG) 0 desenv. kleiniano III. O significado clínico da obra de Bion, Donald Meltzer Achados chistosos da psicanálise nas crónicas de J.Simão, Jane de Almeida (Co-Educ) A história de Tobias. Um estudo sobre o animus e o pai, Fabíola Luz Freud e a consciência, Oswaldo França Neto Pulsões de vida, Radmila Zygouris Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi, Luis Cláudio Figueiredo Transferência, sedução e colonização, UPA Febem, família e identidade. O lugar do Outro. Isabel Kahn Marin A criança adotiva na psicoterapia psicanalítica, Gina K. Levinzon Mosaico de letras. Ensaios de psicanálise, Urania Tourinho Peres Cadernos de Bion II, Júlio César Conte (org.) Memórias de um autodidata no Brasil, Mauricio Tragtemberg Ética e técnica em psicanálise, Luís Cláudio Figueiredo e Nelson Coelho Jr. A arte do encontro de Vinícius de Moraes, Sónia Alem Marrach Educação para o futuro. Psicanálise e educação, M. Cristina M. Kupfer Política e psicanálise. O estrangeiro, Caterina Koltai Nas encruzilhadas do ódio, Micheline Enriquez Aids. A nova desrazão da humanidade, Henrique F . Carneiro O problema da identificação em Freud, Paulo de Carvalho Ribeiro Catástrofe e representação, Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva (orgs.) Conformismo, ética, subjetividade e objetividade, UPA A histérica entre Freud e Lacan, Monique David-Ménard Como a mente humana produz ideias, J . Vasconcelos Mulher no Brasil. Nossas marcas e mitos, MarisaBelém A clínica conta histórias, Lúcia B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.) O olhar do engano. Autismo e outro primordial, L i a Ribeiro Fernandes Doença ocupacional, Marina Durand Os avatares da transmissão psíquica geracional, Olga B. R. Correa (org.) Abertura para uma discoteca, Roland de Candé A conversa infinita -LA palavra plural, Maurice Blanchot A morte de Sócrates. Monólogo filosófico, Zeferino Rocha Cenários sociais e abordagem clínica, José Newton Garcia de Araújo e Teresa Cristina Carreteiro (orgs.) (Co-Fumec) O que é diagnosticar em psiquiatria, Jorge J. Saurí A constituição do inconsciente em práticas clínica na França do século XIX, Sid- nei José Cazeto Narcisismo, superego e o sonhar, UPA Psicofarmacologia e psicanálise, M. Cristina Rios Magalhães (org.) A Escola Livre de Sociologia e Política. Anos de Formação 1933-1953. De- poimentos, íris Kantor, Débora A. Mac ie l , Júlio Assis Simões (orgs.) Linha de horizonte - por uma poética do ato criador, Edith Derdyk Diagnóstico compreensivo simbólico. Uma psicossomática para a prática clíni- ca, Susana de Albuquerque Lins Serino O carvalho e o pinheiro. Freud e o estilo romântico, Ines Loureiro O conceito de repetição em Freud, Lúcia Grossi dos Santos (co-Fumec) Driblando a perversão. Psicanálise, futebol e subjetividade brasileira, Cláu- dio Bastidas O cálculo neurótico do gozo, Christian Ingo Lenz Dunker Psicanálise e educação. Questões do cotidiano, Renate Meyer Sanches Espinosa. Filosofia prática, Gilles Deleuze Os gregos e o irracional, E . R. Dodds Vínculos e instituições. Uma escuta psicanalítica, Olga B. Ruiz Correa (org.) Em torno de O mal-estar na cultura de Freud, Jacques Le Rider, Michel Plon, Gerard Raulet, Henri Rey-Flaud Personalidade, ideologia e psicopatologia crítica, Virgínia Moreira e Tod Sloan Encontros e desencontros entre Winnicott e Lacan, Perla Klautau Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo, Silvia Alonso et.al. (orgs.) Psicopatologia psicanalítica e outros estudos, UPA O gozo en-cena. Sobre o masoquismo e a mulher, Eliane Z. Schermann Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da hospitalidade, Anne Dufourmantelle/Jacques Derrida Os rumos da psicanálise no Brasil: um estudo sobre a transmissão psicanalítica, Eliana Araújo Nogueira do Vale Psicanálise. Elementos para a clínica contemporânea, Luís Cláudio Figueiredo Psicologia do desempenho. Corpo pulsional & corpo mocional, José Luis Moraguès Memória e exílio, Sybil Safdie Douek Desafios para a psicanálise contemporânea, Lúcia B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.) Os caminhos do trauma em N. Abraham e Maria Torok, Suzana P. Antunes Universidade e governo. Professores da Unicamp no período FHC, Mônica Tei- xeira (org.) Envelhecer com desenvolvimento pessoal, Ana Maria S. R. Varella Mudanças no relacionamento afetivo-sexual, Tânia da G. Nogueira (co-Fumec) Falar em público. Experiência de mal-estar na trajetória profissional contempo- rânea, Nazildes Lobo TPM - Tensão, paixão e mal-estar. A subjetivação de uma mulher em tensão pré-menstrual, Juçara Rocha Soares Mapurunga Melanie Klein. Estilo e pensamento, M. Elisa de Ulhoa Cintra e Luis Cláudio F i - gueiredo Ética e finitude, Zeljko Loparic Transferência, contratransferência e outros estudos, UPA A formação do psicólogo, João L . Ferreira Neto (Co-Fumec) A dominação do corpo no mundo administrado, Conrado Ramos O analista trabalhando, UPA Prostituição: o eterno feminino, Eliana dos Reis Calligaris Cruzamentos 2. Pensando a violência, Fernando Kunzler e Bárbara Conte (orgs.) A violência no coração da cidade. Um estudo psicanalítico, Paulo Cesar Endo Winnicott na clínica e na instituição, Renate Meyer Sanches (org.) Perversão em cena, Eliane Chermann Kogut Autoritarismo afetivo. A Prússia como sentimento, Gisálio Cerqueira Filho Dialética da vertigem. Adorno e a filosofia moral, Douglas Garcia Alves Júnior (co-Fumec) A festa tecnológica, Glaucia Dunley (Co-Fiocruz) História da psicanálise. São Paulo 1920-1969, Carmen Lúcia M. V. de Oliveira Memória da língua. Imigração e nacionalidade, Maria Onice Paye Sobre arte e psicanálise, Tânia Rivera e Vladimir Safatle (orgs.) O sintoma e suas faces, Lucía B. Fuks e Flávio C. Ferraz (orgs.) Controvérsias psicanalíticas, UPA Tornar-se herdeiro. A transmissão psíquica entre gerações, Tatiana Inglez- Mazzarella Gozo, Néstor A. Braunstein C O L E Ç Ã O B I B L I O T E C A D E P S I C O P A T O L O G I A F U N D A M E N T A L Melancolia, Urania Tourinho Peres (org.) Histeria, Manoel Tosta Berlinck (org.) Autismos, Paulina S. Rocha (org.) Depressão, Pierre Fédida Pânico e desamparo, Mario Eduardo Costa Pereira Anorexia e bulimia, Rodolfo Urribarri (org.) Dor, Manoel Tosta Berlinck (org.) Toxicomanias, Durval Mazzei Nogueira Filho Diferenças sexuais, Paulo Roberto Ceccarelli Os destinos da angústia na psicanálise freudiana, Zeferino Rocha Hysteria, Christopher Bollas Psicopatologia fundamental, Manoel Tosta Berlinck Culpa, Urania T. Peres (org.) A paixão silenciosa, Maria Helena de Barros e Silva Clínica da melancolia, Ana Cleide G. Moreira (Co-Edufpa) Depressão, estação psique. Refúgio, espera, encontro, Daniel Delouya Hipocondria, M. Aisenstein, A. Fine e G. Pragier (orgs.) Dos benefícios da depressão. Elogio da psicoterapia, Pierre Fédida Superego, Marta Rezende Cardoso Angústia, Vera Lopes Besset Doenças do corpo e doenças da alma, Lazslo A. Avila. Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, Edilene Freire de Queiroz e Antonio Ricardo Rodrigues da Silva (orgs.) Violências, Isabel da Silva Kahn Marin Psicopatologia dos ataques de pânico, Mário Eduardo Costa Pereira Masoquismo mortífero e masoquismo guardião da vida, Benno Rosenberg A bulimia, B. Brusset, C. Couvreur, A. Fine (orgs.) A neurose obsessiva, Bernard Brusset e Catherine Couvreur (orgs.) Limites, Marta Rezende Cardoso (org.) O eu e o corpo, Lazslo A. Avila A clínica da perversão, Edilene Freire Queiroz Psicopatologia e disfunção erétil, Maria Virgínia Filomena Cremasco Grassi Obsessiva neurose, Manoel T. Berlinck (org.) Adolescentes, Marta Rezende Cardoso (org.) Imperativos do supereu, Marta Gerez Ambertin Traumas, Ana Maria Rudge (org.) A fenomenologia das psicoses, Arthur Tatossian COLEÇÃO — INFÂNCIA E PSICANÁLISE Rumo à palavra. Três crianças autistas em psicanálise, M.-Christine Laznik-Penot Sublimação da sexualidade infantil, Paulo A. Buchvitz A criança e o infantil em psicanálise, Silvia Abu-Jamra Zornig A história da psicanálise de crianças no Brasil, Jorge Luís Ferreira Abrão O lugar dos pais na psicanálise de crianças, Ana Maria Sigal de Rosemberg O que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição, Leda Mariza F. Bernardino (org.) Cata-ventos. Invenções na clínica psicanalítica institucional, Paulina S. Rocha (org.) COLEÇÃO — O S E X T O L O B O Hello Brasil!, Contardo Calligaris Clínica do social. Ensaios, Luiz Tarlei de Aragão (org.) Exílio e tortura, Maren e Marcelo Vinar Extrasexo. Ensaio sobre o transexualismo, Catherine Millot Alcoolismo, delinquência, toxicomania, Charles Melman Imigrantes. Incidências subjetivas das mudanças de língua e país, Charles Melman Fantasia de Brasil, Octávio Souza Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos, Luis Cláudio Figueiredo (Co-Educ) A face e o verso. Estudos sobre o homoerotismo - / / , Jurandir Freire Costa O que é ser brasileiro? Carmen Backes COLEÇÃO — E N S A I O S Merleau-Ponty. Filosofia como corpo e existência, Nelson Coelho Jr. e Paulo Sérgio do Carmo O inconsciente como potência subversiva, Alfredo Naffah Neto O pensamento japonês, Hiroshi Oshima Comunicação e psicanálise, Jeanne Marie Machado de Freitas Clarice Lispector. A paixão segundo C.L., Berta Waldmann A pulsão anarquista, Nathalie Zaltzman Escutar, recordar, dizer, Luís Cláudio Figueiredo (Co-Educ) Sintoma social dominante e moralização infantil, He lo í sa Fernandez (Co- Edusp)Na sombra da cidade, Maria Cristina Rios Magalhães (org.) Estados-da-alma da psicanálise, Jacques Derrida O vínculo inédito, Radmila Zygouris Nem todos os caminhos levam a Roma, Radmila Zygouris COLEÇÃO — TÉLOS Ensaios de clínica psicanalítica, François Perrier A formação do psicanalista, François Perrier Afeto e linguagem nos primeiros escritos de Freud, Monique Schneider Como a interpretação vem ao psicanalista, René Major (org.) COLEÇÃO — L I N H A S D E F U G A A invenção do psicológico, Luís Cláudio Mendonça Figueiredo (Co-Educ) Limiares do contemporâneo, Rogério da Costa (org.) A psicoterapia em busca de Dioniso, Alfredo Naffah Neto (Co-Educ) As árvores de conhecimentos, Pierre Levy e Michel Authier As pulsões, Arthur Hyppólito de Moura (org.) (Co-Educ) C O L E Ç Ã O — T R A N S V E S S I A S O corpo erógeno. Uma introdução à teoria do complexo de Édipo, Serge Leclaire C O L E Ç Ã O — P L E T H O S A palavra insensata. Poesia e psicanálise, Eliane Fonseca Contratransferência, Suzana Alves Viana Poética do erótico, Samira Chalhub A Escola. Um enfoque fenomenológico, Vitória Helena Cunha Esposito Psicanálise, política, lógica, Célio Garcia A eternidade da maçã. Freud e a ética, Flávio Carvalho Ferraz A cara e o rosto. Ensaio de Gestalt Terapia, Ana Maria Loffredo (esg.) Pacto Re-Velado. Psicanálise e clandestinidade política, Maria Auxiliadora de Al- meida Cunha Arantes A poesia, o mar e a mulher: um só Vinícius, Guaraciaba Micheletti Psiquismo humano, Marco Aurélio Baggio Semiótica da canção. Melodia e letra, Luiz Tatit A cientifwidade da psicanálise. Popper e Peirce, Elisabeth Saporiti A força da realidade na clínica freudiana, Nelson Coelho Júnior Corpoafecto: o psicólogo no hospital geral, Marilia A. Muylaert Crianças na rua, Ana Carmen Martin dei Collado Um olhar no meio do caminho, Sônia Wolf Os dizeres nas esquizofrenias. Uma cartola sem fundo, Mariluci Novaes C O L E Ç Ã O - F I L O S O F I A NO B R A S I L Freud na filosofia brasileira, Leopoldo Fulgêncio e Richard T. Simanke (orgs.) Kant no Brasil, Daniel Omar Peres (org.) Origem: C O M P R A Livr. Cia dos Livros Preço: R$ 11,95 Solic. Coordenação Data: 16/11/09 Título Projeto Gráfico Diagramação Revisão Formato Tipologia Papel Número de páginas Tiragem Impressão Do desabrigo à confiança. Daseinsanalyse e terapia Diogo Angelozi Rossano » Diogo Angelozi Rossatto Tereza Cristina P. Teixeira 14 x 21 cm Times New Roman (11/13) Cartão Royai 250g (capa) Off set 75g (miolo) 132 2.000 Editora e Gráfica Vida e Conscência